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TEMAS EM DEBATE PIAGET E VIGOTSKY: NOVOS ARGUMENTOS PARA UMA CONTROVERSIA JOSE ANTONIO CASTORINA Universidade de Buenos Aires Tradug&o: Neide Luzia de Rezende Este artigo versa sobre a renovagdéo do debate entre Piaget e Vigotsky, enfatizando a andlise da problemdtica diferente por eles abordada. Sao especificadas as caractertsticas das argumentagées sobre o desenvolvimento e aprendizagem, a mudanga conceitual, a atividade, e 0 paradoxo da aprendizagem. Procura-se demonstrar que as anélises piagetianas e vigotskianas mantém sua problematizagdo especifica, mas mantém também a compatibilidade entre elas. Essa compatibilidade e 0 fato de compartilharem certas teses metodoldgicas e tedricas fundamentais ensejam uma perspectiva de colaboracdo nas pesquisas sobre problemas relativos @ psicologia. Além disso discute-se a posigdo de Bruner sobre a incompatibilidade das obras e sdo apresentadas algumas implicagées para o exame da prdtica educativa. Nos iltimos anos multiplicaram-se os trabalhos centrados no exame das relagdes entre as teorias de Piaget e Vigotsky. A discusséio tem sido impulsionada pelo interesse crescente na psicologia do desenvolvimento, pelos problemas da aquisigio da linguagem ou contextualizagtio dos atos de conhecimento, e, em especial, pela implementag&o dessas teorias no mundo da educagio. Do ponto de vista da andlise sociolégica, essa implementagio pode ser considerada como uma espécie de “recuperagao” das teorias para legitimar diversas praticas educativas. Nas Gltimas décadas limitou-se a autonomia das Cad. Pesq. 0.105 p.160-183 nov.1998 instituigdes educacionais e incrementou-se 0 trabalho dos docentes com ins- trugdes igualmente limitadas. O pensamento de Vigotsky tem sido considerado adequado para esse cenério, grandemente contextualizado, no qual os caminhos € os textos educativos esto claramente negociados (Bernstein, 1994). Os tericos € os docentes se apropriaram, por sua vez, das idéias “piagetianas” para justificar uma pedagogia progressiva liberal, propria do cenério educacional e das demandas sociais dos anos sessenta. Propomo-nos aprofundar aqui, no nfvel das praticas discursivas, os efeitos da legitimagao de certas leituras das teorias de Piaget e de Vigotsky com relagdo as praticas educacionais. No nfvel metaterico, tem predominado uma forte contraposigao entre essas teorias, com conseqiiéncias também na implementagdo educacional. Esse en- foque, que denominamos a versio standard (Castorina, 1996), centrando-nos na natureza das perspectivas bsicas assumidas por ambos os pensadores, tem sido objeto de nossas recentes discussdes. Tal critica permite por em xeque a pertinéncia epistémica de tal “recuperacio” operada pelo dispositivo educacional, que deu lugar a uma seleco parcial, a uma leitura deformante das obras e a uma implementagio direta das teorias no mundo educacional. Por outro lado, certos autores recentemente tém oferecido uma versio muito mais matizada da controvérsia e propdem novas questées para pensar as relagdes entre as perspectivas (Glasserman, 1994; Brockmeier in Tryphone, Vonéche, 1996; Smith in Tryphone, Vonéche, 1996). O propésito desse trabalho é ampliar nossa anidlise anterior (Castorina, 1996) atendo-nos a uma interpretago de conjunto dos programas de investigacio de Piaget e de Vigotsky, com suas potencialidades e limitagdes. Vamos examinar as teméticas que possam ter relevancia para a prética educativa e Para a psicopedagogia: a relago entre desenvolvimento e aprendizagem, particularmente a diversidade de perspectivas diante do paradoxo da aprendi- zagem; a natureza da atividade cognitiva; os processos de mudanga conceitual. Por tltimo, pensando na colaboragao possfvel entre os pesquisadores que se inspiram em ambas as perspectivas, queremos enfatizar nossa tese da “com- patibilidade” dos enfoques de Piaget e Vigotsky em oposigo as teses da “fusiio” e da “incompatibilidade”, esta tltima sustentada por Bruner (1997). UMA ALTERNATIVA A INTERPRETACAO STANDARD Segundo a versio standard, ambos os autores (e as obras que neles se inspiram) deram respostas teéricas radicalmente diferentes a perguntas comuns: 161 se 0 desenvolvimento cognoscitivo é universal ou contextual, se a aprendizagem depende do desenvolvimento ou vice-versa, se 0 conhecimento é um ato puramente individual ou uma atividade social; se o desenvolvimento se explica por interagio social ou por interaco com o meio fisico. A oposigao das teses parece nftida. Pelo lado piagetiano: uma seqiiéncia universal de desenvolvimento de estruturas légicas, 4 margem de qualquer contexto sociocultural; 0 sujeito “epistémico” que adquire individualmente o conhecimento por meio de sua atividade estruturante, enfrentando solitariamente © mundo; a explicag3o do desenvolvimento cognoscitivo € endégena j4 que © mecanismo de equilibragdo progressiva das agdes do sujeito é independente da intervengio social; as aprendizagens dependem em grande medida das aquisi¢des dos sujeitos durante o desenvolvimento espontaneo. Pelo lado vigotskyano: nao h4 uma linha do desenvolvimento cognoscitivo, mas caminhos que dependem dos contextos culturais; os sujeitos que adquirem seus conhecimentos so socialmente interativos; 0 desenvolvimento se explica pela internalizagéo dos instrumentos culturais, de modo preferencialmente ex6geno; o desenvolvimento cognoscitivo é precedido e dirigido pelos processos de ensino-aprendizagem. Segundo a versio standard, muito influente no meio educacional, essas respostas teéricas permitem derivar conseqiiéncias opostas para a interpretagio das praticas de educacio. Na teoria piagetiana, de acordo com essa perspectiva, acentua-se invariavelmente a construg&o dos alunos a partir de seus saberes mais gerais adquiridos em seu desenvolvimento esponténeo; estudam-se as produgGes individuais separadamente das interagdes nas prdticas escolares; além disso, subalterniza-se o ensino, enfocado como uma transmisséio que pode obstruir as atividades de “descobrimento” dos alunos. Obviamente, infere-se que o docente intervém no processo de aprendizagem, porém como um suscitador e facilitador dessa atividade construtiva. Na perspectiva vigotskyana, estudam-se as aquisigdes escolares auxiliadas pelos instrumentos socioculturais, dando relevancia & transmissdo dos saberes obje- tivados. Os docentes tém uma atividade tutelar, de sustentagao do acesso dos estudantes aos saberes mais avangados. Segundo nosso enfoque (Castorina, 1996), é discutivel que Piaget e Vigotsky se tenham colocado as mesmas quest6es, a que responderam mais ou menos pontualmente. Pelo contrério: em ambos os autores, cada questo sobre determinada temética adquire em cada caso um significado peculiar porque foi proposta no horizonte de probleméticas diferentes. Dito de outro modo, ha perguntas bdsicas distintas que orientaram as pesquisas de cada um. Se conseguirmos elucidd-las, pode desaparecer a oposi¢ao taxativa entre as teses centrais, assim como entre suas conseqiiéncias educativas. 162 Qual € a pergunta basica de Vigotsky? Segundo minha interpretagio, € a busca do estatuto dos processos psfquicos, invocando a insuficiéncia da psicologia de seu tempo — por um lado, as psicologias materialistas e comportamentalistas, centradas nas reagdes dos organismos, e por outro, as Psicologias da consciéncia. Seu problema era superar a tese bdsica subjacente a essas psicologias: 0 dualismo cartesiano dos fenémenos corporais e as formagdes mentais. Sob a influéncia do antidualismo da substincia em Spinoza, da dialética de Hegel e da interpretagdo social do “humano” em Marx (Wertsch, 1985; Bronckart in Tryphon, Vonéche, 1996), busca um principio explicativo para as fungées psfquicas superiores. O propésito era mostrar de que maneira o social se converte no psiquico (no quanto 0 “influencia”, supondo sua existéncia prévia) e em seguida a forma com que o psfquico interage com o corporal (Bronckart in Tryphon, Vonéche, 1996). A partir dessa perspectiva de conjunto, Vigotsky propés-se demonstrar como se configura a atividade psiquica a partir da intervengiio dos sistemas de signos. Quer dizer, como os individuos que pertencem a uma determinada cultura chegam a apropriar-se e a controlar o sistema de signos que a constituem. A pergunta acerca da constituigaio dos processos psiquicos, Vigotsky responde apontando sua origem social: 0 pensamento s6 se explica por sua génese, € esta reside na internalizagio dos sistemas de signos que funcionam como mediadores culturais. Nesse sentido, sua perspectiva original reside na articulacio da aproximagao genética, da origem social das funges psiquicas e da tese central da mediagao cultural. Qual é a problematica de Piaget? Trata-se de como os sujeitos passam de um estado de menor a maior nivel de conhecimento. Em outras palavras, que tipo de relago epistémica entre 0 objeto e o sujeito de conhecimento d4 conta das mudangas na legitimagdo dos saberes. Por isso, nosso epistemologista formula os seguintes problemas: o que formaliza a légica: as intuigdes, as formas a priori ou a coordenacao de agdes? Como se constituem as explicagdes causais no conhecimento cientifico? Qual é o alcance dos observaveis em nosso conhecimento? Como chega a ser “necessério” para um sujeito um conhecimento matemdtico? Como mudam as idéias sociais dos sujeitos e com base em que interagées com 0 objeto? A resposta a essas Perguntas corresponde & epistemologia, conquanto se apéie nos resultados obtidos pelo método histérico-critico e na psicogénese. Dessa forma, a problemética epistemolégica constitui as indagagées psicoge- néticas, e estas dio uma parte da sustentagio empirica para as hipdteses epistemoldgicas. Curiosamente, a tese construtivista que resulta das investigagdes sobre o desenvolvimento, tende, como em Vigotsky, a superar o dualismo, neste caso o dualismo epistemoldgico entre sujeito e objeto. Assim, 0 sujeito vai estruturando um mundo de significados ao transformar sua relagio com 163 o real, penetrando inacabadamente neste tltimo e reconstruindo suas préprias articulagdes no caso da légica e da matemitica. £ importantfssimo recordar que os mecanismos e instrumentos psicolégicos, como a equilibragio, os processos de abstragao e generalizagaio ou a formagio de novos “possiveis” s6 adquirem sentido em decorréncia da problemitica epistemolégica e por sua relagio com a tese construtivista da originalidade do ponto de vista do sujeito em sua interacfio com os objetos. Para dar um exemplo banal, suponhamos 0 célebre enunciado matemitico “7+5=12” que exemplifica para Kant um tipo de conhecimento universal ¢ necessério. Piaget colocaria as seguintes questdes: como ele chega a ser “necessério” para um sujeito? Qual é sua génese e mediante que tipo de abstrago se forma? Ele se constréi a partir de uma intuigio de um mundo platénico ou provém dela? O que interessaria a Vigotsky, por sua vez, seria o modo como as formulagdes matemiticas, auténticos instrumentos culturais, sio adquiridas por meio da interagio e da negociagio. Nao se trata das mesmas questdes. Em sintese, trata-se da busca de uma teoria psicolégica da constituigio dos fenémenos psfquicos superiores, para um, e de uma teoria do conhecimento entendido como um processo, de menor a maior grau de validade, para o outro. Com relagao as diferengas apontadas, cabe mencionar que Vigotsky se ocupou de certos problemas epistemolégicos da psicologia como ciéncia, referentes & reconsideragio de seus métodos e estrutura (por exemplo, a justificagaio de um “prinefpio explicativo” superador do dualismo cartesiano) e também da questao ontolégica do psiquico (Vigotsky, 1991). Em troca, Piaget elaborou a prépria psicologia genética para produzir pesquisa empirica destinada a verificar hipéteses epistemoldgicas referidas ao mecanismo de formagio dos conhecimentos (e em relac&o a histéria da ciéncia). Por outro lado, a questio do estatuto do psfquico ficou praticamente em suspenso na obra de Piaget (Bronckart in Tryphon, Vonéche, 1996). Essas probleméticas dario um rumo especffico ao tratamento de diversos temas: a natureza da atividade, a conscientizagio, a modificagio conceitual, as relagdes entre aprendizagem e desenvolvimento, entre outros. O PREDOMINIO DA APRENDIZAGEM OU DO DESENVOLVIMENTO Em primeiro lugar, a classica questéo dos vinculos entre aprendizagem e desenvolvimento, um caso paradigmiético da oposigio das idéias de nossos autores. 164 Na versio de Vigotsky, a aprendizagem tem um papel central para o desenvolvimento dos conhecimentos. Qualquer processo de aprendizagem € de ensino-aprendizagem, incluindo aquele que aprende, o que ensina e a relagdo entre ambos. Porém o ensino nao exige a presenga fisica do professor, de modo que 0 “outro social” pode adotar duas formas: por um lado, uma crianga que aprende informalmente a usar certos instrumentos ao internalizar 0s significados culturais dos objetos, inscritos na linguagem, sem requerer um ensino explicito; por outro lado, no ensino intencional, de tipo escolar, os professores intervém dando lugar a ganhos que nfo se dariam de modo espontaneo. Portanto, o individuo chega em todos os casos a desenvolver seus conhecimentos a partir da matéria-prima subministrada pelo contexto cultural e pela interna- lizago de seus instrumentos, gracas a alguma atividade mediadora de um outro. Nesse sentido, a conexdo entre desenvolvimento e aprendizagem se exemplifica com a metéfora da “zona de desenvolvimento proximal”: um “espago dinamico” entre os problemas que uma crianga pode resolver sozinha e os que deveré resolver unicamente com ajuda de outro individuo que sabe mais para, em seguida, chegar a domind-los por si mesma. Isto 6, a aprendizagem orientada Por outro se adianta ao desenvolvimento, coloca-o em movimento (Vigotsky, 1979). Segundo essa perspectiva, a trajetéria do desenvolvimento é dependente da internalizagio da cultura. O alcance e os limites do desenvolvimento se definem culturalmente: se um individuo vive num ambiente Agrafo, jamais serd alfabetizado, a menos que participe de prdticas sociais que suscitem seu aprendizado (Oliveira, 1993). E Obvio, entio, que um processo de desenvol- vimento requer situagdes de aprendizagem. Todas as pesquisas sobre aprendizagem na escola de Genebra tiveram um propésito epistemoldgico. Isso vale para os estudos que mostraram primeiro que no h4 seqliéncias de aprendizagem em fungio da experiéncia sem instrumentos de assimilag%o, ou os que estabeleceram que n&o havia apren- dizagem estrita de estruturas de conhecimento (Castorina, Lenzi, Fernandez, 1985). Porém, isso vale sobretudo para os estudos que objetivavam produzir modi- ficagdes na construgdo de estruturas de conhecimento, apelando para a tomada de consciéncia dos conflitos entre esquemas de conhecimento e para sua Progressiva coordenagao. Assiste-se ent&o a mudangas em tais esquemas, nas condigdes peculiares da intervengio experimental, tendo em conta que tais mudangas foram processadas fora daquelas condigdes (Inhelder et al., 1975). 165 Em outras palavras, para explicar a aceleragio do desenvolvimento na situacio de aprendizagem, estabeleceu-se uma continuidade entre os mecanismos res- ponsdveis pela formagao de sistemas de conhecimento no desenvolvimento € 0S que operam na situacdo de aprendizagem. Interpretou-se ambos os processos em termos da equilibragZo dos sistemas cognitivos. O contraste que daj resulta € notério, mesmo para o préprio Vigotsky (1979): num caso, a aprendizagem precedendo e guiando o desenvolvimento, no outro, a aprendizagem dependendo do desenvolvimento. No entanto, as questées foram examinadas dentro de diferentes problemdticas: a hipétese de que o ensino-aprendizagem orienta o curso do desenvolvimento se enquadra na pergunta sobre a constituig&o da subjetividade, respondida basicamente em termos da apropriagio dos mediadores culturais; a hipétese da continuidade entre desenvolvimento e aprendizagem se afirma sobre o fundo da questio da constituigao do ponto de vista do sujeito, enfocada como a reconstrugio ativa dos objetos, qualquer que seja 0 modo com que sio apresentados. Portanto, a significagio da relagio entre desenvolvimento e aprendizagem depende do enfoque problemético j4 destacado. Nesse sentido, as hipdteses de Piaget e as de Vigotsky adquirem aceitabilidade ou nao por seu grau de consisténcia com as teses principais de cada programa e pela capacidade de resolver os problemas colocados. Qualquer comparacio que suponha uma alternativa estrita entre as teorias da aprendizagem desconhece a complexidade e a diversidade dos nfveis de andlises levantados pelas indagacgées. O PARADOXO DA APRENDIZAGEM Fodor (1976; 1981) deu uma nova versio do paradoxo da aprendizagem, j4 apresentada no Ménon de Plato (Castorina, 1994), e que parece atacar as bases de toda teoria da aprendizagem por reconstrugiio. Segundo essa versio, qualquer teoria da aprendizagem ou do desenvolvimento de nogdes novas se torna paradoxal, devendo-se concluir daf que a aprendizagem_ genuina € logicamente impossivel. O caso mais evidente € aquele no qual se pretende adquirir um conceito “primitivo” (que n&o pode ser representado por outro), j4 que € impossivel formular uma hipdtese a seu respeito sem utilizar © proprio conceito primitivo. Sob © pressuposto de que a verificagio de uma hipétese ¢ a Gnica maneira de aprender uma nova estrutura ou atributo, toda nova aquisigfo genuina é impossfvel (Smith, 1996). A condig&o para uma aprendizagem por verificagao € que 0 “novo” conceito deve ser um caso do conceito disponfvel no aprendiz. Para que a aprendizagem seja possfvel deve haver um saber disponfvel, de forma que todo novo conceito deve estar contido no anterior. Disso deriva a aceitagéo do inatismo do saber anterior. 166 paradoxo mencionado apresenta um desafio as teorias de Piaget e Vigotsky na medida de seus compromissos com a aquisicio de saberes novos. No caso da teoria piagetiana, tem-se afirmado que cai irremediavelmente no paradoxo (Fodor, 1981; Pozo, 1989; Castorina, 1994) ao tentar explicar a formagiio de estruturas mais complexas a partir de outras mais simples, j4 que de um sistema mais fraco nao pode derivar um superior (por exemplo, as operagoes a partir de sistemas pré-operatérios), como no caso das experiéncias de aprendizagem j4 comentadas, a formagio de esquemas sistematicamente coordenados ¢ novos em relaco aos esquemas mais elementares. Segundo o caréter paradoxal da aprendizagem de conceitos novos, isso nio seria possfvel, a menos que o sistema mais avangado estivesse j4 contido no mais frdgil. Na versio de Pozo (1989) o paradoxo teria a seguinte forma: cada indivfduo constréi estruturas mais avangadas, porém todos chegam a elas por uma espécie de “necessidade” légica do desenvolvimento. Ha algum modo de evitar 0 paradoxo na teoria de Piaget? E provavel que a principal linha de defesa se situe na tese da equilibracio, que explica a superagdo e integragao de idéias ou sistemas anteriores a partir da desestabilizagio de um sistema, por meio da tomada de consciéncia das contradigdes a que dio lugar os desequilibrios, e pelos processos de abstracio. Nessa versio, os sistemas se desequilibram por estarem abertos as interagdes com diferentes situagdes, pelo tipo de problemas com que se defrontam, supondo determinadas “condigdes do ambiente”, inclufdas as relagdes sociais. A direcio da mudanga depende dessas restrigdes. Mas nao se postula uma determinagao unfvoca nem uma necessidade légica na formagio de um sistema a partir de precedentes: “h4 incerteza acerca do caminho preciso que um sistema submetido a perfodos sucessivos de instabilidade seguiré” (Garcia, 1989. p.130) A teoria da equilibraco apresenta dificuldades, operacionais particularmente, para explicar a modificagiio de sistemas conceituais. Contudo, a idéia de “equilibragao” em seu sentido mais profundo envolve uma rejeicdo a “neces- sidade” l6gica da seqiiéncia de niveis de desenvolvimento (Piaget, 1978). Somente sob as condigdes de instabilidade dos sistemas (por exemplo, dos esquemas prévios a serem articulados na aprendizagem), inclufdas as de seu contexto social, e admitindo uma certa diversidade de sistemas poss{veis “2 frente”, constituiram-se com regularidade as estruturas cognoscitivas. Isso tende a enfraquecer 0 cardter paradoxal da teoria (Castorina, 1994). Vejamos 0 desafio que o paradoxo da aprendizagem coloca para a teoria vigotskyana. A princfpio, segundo Bereiter (1985), 0 fato de a aprendizagem 167 se dar pela internalizagao do conhecimento disponfvel situa esse conhecimento na cultura e n&o na crianga. Isso parece evitar 0 paradoxo, porque a complexidade nao se dé na cabega das criangas. No entanto, para Bereiter a questo se recoloca na hora de explicar como se produz o processo individual de interiorizagao. Também se poderia ver a chave para a resposta da teoria vigotskyana ao paradoxo na hip6tese da “zona de desenvolvimento proximal — Z.D.P.”. Nesta, a énfase dos processos de aprendizagem estd na atividade produtiva “externa”, exercida sem necessidade de estabelecer continuidade com sistemas mais elementares, mobilizados quando cada crianga entra na Z.D.P. Em outras palavras, a internalizagao atua a partir da interag’o social para produzir a tevisio das idéias iniciais. Se a construgdo € externa, as criangas nao tém de realizar por sua prépria conta estruturas mais complexas, podendo-se considerar as interagdes sociais como 0 momento mais importante da elaboragao. Em tal perspectiva, a disponibilidade dos saberes no sistema social seria uma maneira mais razodvel de evitar 0 paradoxo do que a disbonibilidade biolégica, inata, sustentada por Fodor (apud Newman et al., 1989). Em resumo, as dificuldades de interpretar a passagem do menos complexo ao mais complexo s6 se colocam para as correntes de pensamento centradas no predominio da construgdo individual. Para Bereiter (1985), se a hipdtese da “internalizagéo” na escola socioistérica nao pode eliminar o problema de como os indivfduos reconstroem os recursos culturais, retoma-se 0 paradoxo. Ao contrério, no outro enfoque (Newman et al., 1989) tal hipétese de “internalizagao” n&o enfrenta o paradoxo: a interago social e as ferramentas culturais si0 muito mais que recursos para o conhecimento individual, tem uma intervengio produtiva na mudanga cognitiva. Ao deslocar 0 centro do estudo, pode-se evitar 0 paradoxo. Talvez a questo resida em estabelecer se tal deslocamento elimina 0 paradoxo, ou se esse reaparece cada vez que se coloca a “novidade” na elaboragio intelectual. Da perspectiva dos problemas vigotyskianos, sé se evitaria o paradoxo se se considerasse que os novos saberes esto j4 dispontveis nos docentes, que, por sua vez, os introduzem tutelarmente na Z.D.P., dando lugar a uma interagio com os alunos. Pois bem, da perspectiva piagetiana € preciso assumir e superar 0 paradoxo, apelando para a construgio do ponto de vista do sujeito. Nessa perspectiva, a transmissio dos saberes disponfveis nfio assegura sua reconstrugao em cada indivfduo, nem a interag%o conjunta explica como o saber social se torna “novo” para o aprendiz. Quer dizer, € preciso mostrar como os alunos repensam ‘os conhecimentos sociais disponiveis (Smith in Tryphon, Vonéche, 1996), por meio de quais processos levantam hip6teses sobre os recursos culturais e como os convertem em objeto de conhecimento. 168 Portanto, ao considerar relevante a reformulagio das idéias ou sistemas adquiridos pelos aprendizes, retoma-se o paradoxo. Nossa argumentacio atém-se, pois, 4 pertinéncia, em principio, da teoria da equilibragdo a esse respeito. A ATIVIDADE COGNOSCITIVA Acabamos de mostrar a importancia da nogdo de “internalizagao” na teoria da aprendizagem de Vigotsky. Basicamente se trata de um processo que vai de um plano externo, social, a outro interno, individual; do funcionamento interpsicolégico mediado pelos instrumentos culturais ao domfnio destes no funcionamento intrapsicolégico. Deve-se enfatizar que aquilo que foi adquirido no plano interno nao é uma simples transferéncia ou cépia do plano externo no interno, nao se tratando de descrever um aluno que receberia passivamente as influéncias sociais. Pelo contrério, pode-se falar de uma reconstruc&o interna que transforma o inter- nalizado: Vigotsky mostra que quando a linguagem externa se transforma em linguagem interna, modifica sua forma (Lawrence, Valsiner, 1993). Portanto, a internalizagéo concebida por Vigotsky é ativa. Pois bem, o que quer dizer “atividade” nessa perspectiva? Em princfpio, realiza-se no campo da utilizagio dos instrumentos de mediag&io e envolve alguma participagio mental do individuo para fazer com que ocorra internamente o que primeiro sucedia como atividade externa. Vigotsky formulou, entZo, uma tese claramente nfo comportamentalista da “internalizagio”, embora nfio tenha chegado a especificar como os individuos terminam por ser capazes de dominar os mediadores semiéticos, qual o mecanismo da transformagio psicolégica e qual a contribuig&o do sujeito (Martf in Tryphon, Vonéche, 1996). Por sua vez, na perspectiva construtivista de Piaget, o comeco do conhecimento, de qualquer conhecimento, a ago do sujeito sobre o objeto. A partir dela, pode-se analisar a interagdo entre ambos e os dados subministrados pelo objeto e elaborados pelo sujeito (Garcfa, 1997a). Assim, os sujeitos constroem sistemas légico-matemiticos de coordenagio das agdes e das “teorias” que estruturam setores ou 4reas do conhecimento. A ago é constitutiva do conhecimento porque o significado de um objeto é basicamente o “que se pode fazer com ele”. Atuar transformar o objeto significativamente, seja primeiro pela ago sensdrio-motriz, seja depois pelo “o que se pode dizer” e “o que se pode pensar”, (Garcia, 1997), isto é, da ago pratica & conceituagao e a posterior ago retroativa da segunda sobre a primeira. 169 Na nossa opinido, a atividade cognoscitiva na perspectiva de Vigotsky e na de Piaget toma rumos diferentes, levando-se em conta que Vigotsky nao formulou uma teoria explicita da atividade, a qual se se encontra em Leontiev (apud Wertsch, 1991). E interessante mostrar nesse autor a substituigao da nogio de “assimilagao” piagetiana pela de “apropriagao” (Leontiev, 1981). No enfoque socioistérico, apropriar-se de um instrumento cultural equivale a realizar as fungdes que ele desempenha nas atividades culturalmente organizadas. Isso vale tanto para um martelo quanto para a escrita ou os simbolos convencionais da matemiatica. Nesse sentido, um aluno tem de compreender como utilizar um objeto elaborado socialmente no seu préprio contexto. Pensamos que um bom exemplo seria a apropriacaio da escrita, ou seja, como assumir as fungGes que os adultos da cultura alfabética Ihe atribuem, ou como a crianga utiliza adequadamente a escrita nas circunstancias em que a utilizam os adultos. Para que isso acontega, os alunos podem participar de atividades de maior complexidade do que aquelas que conseguem dominar no momento. No caso de transitarem com sucesso pela Z.D.P., as criangas atuam como se “estivessem em outro lugar”, como se assumissem as fungdes que os adultos atribuem aos instrumentos culturais enquanto interagem com eles. Por sua vez, a nogao de “assimilagao” faz referéncia as significagdes emanadas da ago esquematizada, sejam elas sistemas légicos ou conceituais “de dreas” (“teorias” implicitas sobre 0 mundo ffsico ou social ou hipétese sobre a escrita). A questo entio é a seguinte: em que marco interpretativo as criangas incorporam, por exemplo, as marcas gr4ficas ou as ordens de um professor, como as convertem em objetos de conhecimento. Ao produzir sua significagio e durante um longo processo de construgio, vaio estabelecendo “a partir de seu proprio ponto de vista” que fungdes sdo préprias 4 escrita ou quais proprias & autoridade escolar (Ferreiro in Castorina, 1996; Lenzi, Castorina, 1996). A distingdo entre “apropriag’io” ¢ “assimilagdo” nao expressa sé uma diferenga de metdforas bisicas — uma de origem socioistérica e a outra de caréter biolégico — como entendem Newman et al. (1989), mas creio que apresenta duas teses centrais vinculadas & natureza das perguntas que sio formuladas. Por um lado, que “para compreender é preciso criar” os instrumentos assi- miladores na interagio com os objetos (Garcia, 1996); por outro lado, que “compreender tem uma origem social”, j4 que a sociedade é portadora de mediadores necess4rios para o desenvolvimento da mente (Cole, Wertsch, 1996). Antes mencionamos eventualmente uma dificuldade e uma divida do programa vigotskyano: a elucidagdo pormenorizada do processo de internalizagao. Em 170 termos da prética educacional, a aprendizagem escolar apresenta situagdes em que uma certa elabora¢ao da crianga Ihe permite ter acesso a novas competéncias, supondo-se a ajuda de outra pessoa. Até onde € pertinente esperar que essa Pperspectiva elucide a questio? Com relagao ao programa piagetiano, é conhecida a utilizagio simplificadora, mencionada no inicio, da teoria do desenvolvimento e da aprendizagem: enfatizar os processos construtivos espontineos dos alunos, subalternizar o ensino, semelhante a uma transmissaio comportamentalista; crer que a exploragaio de diversos materiais, apoiados apenas em suas estruturas Idgico-matemiticas Permitiria dar aos alunos acesso aos conhecimentos “cientificos” (Castorina, 1994), Por outro lado, € evidente que os alunos nao chegam, por si mesmos, com apenas uma participagiio facilitadora ou suscitadora dos docentes, aos conhe- cimentos escolares. Nao ha diivida de que a génese artificial que se produz na sala de aula, na reconstrugiio dos saberes matematicos ou sociais, envolve uma participagdo de outra qualidade por parte dos docentes e a elaboracio pelos alunos de sistemas conceituais apropriados a natureza dos saberes “institufdos”. Trata-se de um desafio que o programa piagetiano pode assumir: estudar o Processo de construgiio de saberes mais avangados, nas condigdes especificas das situagées diddticas, em que se articulam o “saber institu{do”, os conhe- cimentos prévios dos alunos e a intengdo de ensinar (Lemoyne, 1996). Essa questo est4 de acordo com o niicleo epistemolégico do programa piagetiano (Castorina, 1997a). Do ponto de vista da agio “a /a Piaget”, trata-se da assimilagio da informacdo Proveniente do mundo ou do docente aos esquemas (e As teorias) prévios; da conjugagao original de esquemas e hipéteses; das atividades de exploragao. de objetos e situagdes durante as tentativas para resolver problemas; das atividades mentais de abstragdio de conceitos sociais ou propriedades mate- maticas; da antecipagdo dos efeitos a serem obtidos, seja no conhecimento empfrico do mundo natural ou social, seja nos célculos inferenciais em matemitica. S6 a investigagio empirica na sala de aula dos processos ativos de elaboragao nas condig6es didéticas mostrar até onde funcionam para campos especificos de saber (social, natural e matemdtico) os mecanismos de conscientizagao, desequilibracdo reequilibragio por meio de abstragées € generalizacées. Com relagio a isso, as investigagdes mais atuais (Olson, 1986; Martf in Tryphon e Vonéche, 1996) mostram que os sistemas semiéticos utilizados pelos alunos nio s6 apéiam sua atividade cognoscitiva, mas também modificam seu funcionamento e seu potencial comunicativo. Nesse sentido, pode-se 71 estabelecer diferengas relevantes na atividade cognoscitiva a partir do emprego ou nao de mediagées simbélicas e segundo o tipo dessas mediagdes. Isso € testemunhado no caso da modificagdo do pensamento matemético dos alunos pela intervencio da notag&o convencional. No entanto, nao se deve concluir que estamos diante de um processo de mao Unica: os alunos se defrontam na escola com um rico caudal de notagdes matemiticas (e de outras formas lingiifsticas) j4 constitufdas socialmente, mas eles devem reconstruf-las por via da abstragao reflexiva, da conscientizacao e da generalizagao. Em outras palavras, € necess4rio que as interagdes sociais (com docentes e colegas) regulem, em sentido vigotskyano, a apropriago dos instrumentos de mediag&o, mas é também imprescindivel sua reorganizagao por esses processos intelectuais. A MUDANCA CONCEITUAL Nos iiltimos anos desenvolveu-se amplamente o campo das pesquisas sobre a mudanga conceitual das idéias prévias dos alunos rumo ao “saber cientifico”. Segundo o modelo classico (Pozner et al., 1982), e sob a influéncia direta da “nova filosofia” da ciéncia (sobretudo, Khun, 1962) a mudanga conceitual foi interpretada como uma transformagio de “paradigmas”. As idéias prévias (em diversas dreas do conhecimento) deviam ser acionadas e desafiadas por situagdes propostas em sala de aula, o que levaria os alunos a reconhecerem sua inconsisténcia. Tanto a resisténcia 4 mudanga (por exemplo, nas idéias quase aristotélicas sobre movimento ou sobre a continuidade da matéria), como as razées da modificagéo eram vistas como andlogas as estudadas na hist6ria da ciéncia. Esse modelo foi questionado em virtude de seu uso acritico da filosofia da ciéncia (Castorina, 1995) e também por seu descuido ao considerar que a dispersdo conceitual tem correspondéncia com diferentes situagdes sociais. Pelo contrério, observa-se que toda avaliagio de uma concepgdo como mais legitima ou apropriada do que outra nfo pode ser realizada fora de algum contexto (Linder, 1993). De resto, Strike e Pozner (1993) revisaram 0 modelo cléssico, dando um lugar relevante ao “contexto ecolégico”. Pois bem, a teoria vigotskyana da aprendizagem de conceitos cientfficos a partir dos conceitos cotidianos pode apoiar a perspectiva contextualista (Howe, 1996) e ser uma contribui¢o importante para o exame da mudanga conceitual. A distingio vigotskyana entre conhecimentos cotidianos e conceitos cientfficos considera que os primeiros sio adquiridos como resultado da experiéncia individual, embora estejam sob a influéncia da linguagem adulta; sio utilizados espontaneamente mas nao podem ser definidos conscientemente e sio invo- luntérios; incluem os objetos que sdo generalizados nas situagdes empfricas. 172 Os segundos so trazidos verbalmente pela escola ou pelo mestre, mesmo quando o aluno carega de experiéncias concretas com eles; sio nao apenas conscientes como também voluntdrios e objeto de uma determinada atividade tedrica (sua defini¢ao lingiifstica); 0 objeto conceitual ndo se introduz direta- mente, mas sim dentro de um sistema de categorias légicas e de contraposic¢des (Vigotsky, 1993; Luria, 1993). A mudanga conceitual poderia ser interpretada como um processo no qual o aluno, com a ajuda do professor, e a partir de suas idéias cotidianas, adquite novas idéias, tornando flexfveis seu conhecimento e aplicando-o a diversas situages. Isso implica a integragao das nogées cotidianas no sistema lingiiistico dos conceitos cientificos. Assim, a modificagio da nogdo cotidiana “de que o sol gira ao redor da Terra” pelo conceito de “a Terra é um dos muitos planetas” € um passo rumo a um sistema que inclui definigdes explicitas; do mesmo modo o € passar das idéias espontaneas sobre o “presidente benfeitor” ao sistema da teoria politica que define sistematicamente as fungdes do presidente. Com relagiio a isso, cabe mencionar que os conceitos cotidianos siio condigao para a aprendizagem do sistema conceitual e este retroativamente ressignifica os primeiros. Pois bem, um processo de mudanga conceitual no poderia ser sustentado fora das relagdes contextuais: por um lado, enfatizam-se as interagdes com © docente, baseadas nos instrumentos lingilfsticos, para promover a reflexio dos alunos visando a integrag&o do saber cotidiano no sistema conceitual; por outro lado, as decisdes instrucionais levam em conta de preferéncia a diversidade de situagdes em que se inserem os conceitos a serem ensinados. Pode-se citar estudos que mostram uma certa incorporagiio de conhecimentos biolégicos adquiridos na experiéncia comum no interior de um sistema cientifico. Por exemplo, as criangas que cuidam de animais em casa ou na escola e fazem classificagées cotidianas com eles, chegam a usar de modo mais flexfvel e generalizam melhor 0 conhecimento taxondémico que lhes é ensinado, quando comparadas as criangas que nao participam dessa experiéncia (nagaki, 1990). Em sintese, 0 foco da proposta consiste em atender aos contextos prdticos e escolares, dando lugar a que as nogdes espontaneas se incorporem nos sistemas “institufdos” pela interag&io, negociagiio e participagao (Howe, 1996). Essa promogao da mudanga conceitual busca escassamente a confrontagao das idéias cotidianas com as experiéncias e com os objetos do saber escolar. Centra-se mais no discurso compartilhado, nos tempos e nos modos de negociar a aproximacio orientada para os conceitos cientfficos, e muito menos nas atividades que respondem as demandas propriamente cog- noscitivas. Qual seria uma perspectiva piagetiana diante da mudanga conceitual? Em princfpio, as extensdes do programa piagetiano destacaram a construgio de “teorias” infantis em diferentes dreas do conhecimento. Assim, as criangas 173 formulam hipéteses de escrita ou idéias sistemdticas sobre fendmenos naturais ou instituigdes sociais (a autoridade escolar ou politica). Em qualquer dessas idéias existe alguma organizacdo légico-mateméatica (Fer- reiro, 1986; Castorina, 1997b). Isso nao reduz em nada a especificidade conceitual dessas construgdes, j4 que so conhecimentos de “rea” (lingiifstica, fisica ou social). Ademais, tais “teorias” e hipéteses implicitas chegam a constituir as idéias prévias que so reconstrufdas na diregiio do saber “‘a ser ensinado”. A mudanga conceitual pode ser interpretada nos termos da hipétese de continuidade entre desenvolvimento, aprendizagem escolar € sociogénese da ciéncia, no sentido dos mecanismos de sua construg’o. Tal continuidade € a postulag#o de modos e instrumentos comuns, a serem verificados na investigagio psicolégica e hist6rica, porém atendendo as pecu- liaridades das interagdes com os objetos: na pratica da histéria da ciéncia, no desenvolvimento de nogées, e com os objetos propostos pela escola nas condigées das situagdes diddticas (Castorina, 1997b). Este tiltimo caso implica estudar a reorganizagfio conceitual nas interagdes sociais com o docente e com outros alunos, a partir do reconhecimento do valor dos saberes socialmente “institufdos”. O construtivismo nao afirma um sujeito “solitério” e exige as interagdes sociais para facilitar e desestruturar as interpretagdes dos objetos, inclufdos aqueles propostos pelo ensino. Basicamente, sustenta-se a vigéncia da problemitica epistemolégica da formagao dos conhecimentos, da psicogénese as revolugées cientificas, mas também no interior das condigdes préprias aos contextos de ensino-aprendizagem. Nesse caso, como nogées e argumentos mais complexos dos alunos s&o produzidos com base em suas idéias prévias, e envolvendo alguma desestabilizagdo dessas idéias, ocorre uma tomada de consciéncia de suas dificuldades e posterior reconstrugaio dessas nogdes de modo mais ou menos progressivo (Castorina, Lenzi, Aisenberg, 1997). Em vista de tudo isso, a extens&o atual do programa piagetiano até a “mudanga conceitual” n&o confirma as criticas de Vigotsky sobre a obra inicial de Piaget, no sentido que, para este, 0 ensino de conceitos na escola seria inconsistente em relago & formagio de nogGes espontaneas; que estudar os conceitos no ensino nada nos diria sobre 0 modo de pensar das criangas (Van der Veer, Valsiner, 1991). Pelo que foi dito, as interpretagdes da mudanga conceitual nos dois programas de pesquisa expressam os vieses préprios ao tipo de pergunta formulada. Assim, justifica-se a énfase dos estudos socioistéricos na negociacio dos significados e nas relagdes entre os contextos cotidianos e escolar, ou o papel decisivo dos mediadores lingiifsticos para sustentar 0 pensamento. Também 174 se justifica a énfase psicogenética na mobilizagio das idéias prévias que ressignificam os contetidos escolares, sua confrontagio com estes, inclusive com situagdes empifricas ou experimentais para permitir sua reorganizagao. De acordo com os interesses que predominem, podem relevar-se também algumas dificuldades na constituig&o da teoria da mudanga conceitual. No enfoque socioistérico, ha um grande otimismo com relagdo a reorganizacaio dos conceitos cotidianos. Em particular, chama atengdo o fato de que a zona de desenvolvimento proximal seja 4s vezes demasiado “préxima”, nio havendo lugar para os obstéculos que os alunos devam vencer em certas ocasides para aprender os conceitos. Por exemplo, sabemos que para ter acesso ao conceito de ntimero negativo, os alunos devem romper fortemente com certas intuigdes aritméticas (Vergnaud, 1989); ou que para apreender o sistema conceitual do governo devem superar sua versio “benfeitora e moralizante” do presidente (Castorina, Lenzi, Aisenberg, 1997). Talvez, ao nio adotar o ponto de vista do sujeito, ao n&o reconstruir as vicissitudes de suas nogdes, ndo se tenha dado lugar relevante para os conflitos cognoscitivos nem para os obstdculos epistemoldégicos. Por sua vez, os incipientes estudos inspirados no programa piagetiano, embora coloquem as interagdes sociais como uma condigio necesséria do conhecimento individual, ainda nfo assumiram suficientemente o papel “estruturante” dos sistemas de mediago social que devem ser reconstrufdos pelos alunos; tampouco identificaram com precisdo a sistematicidade “especifica” dos co- nhecimentos prévios. Falta também indagar sobre os processos de transformagaio das “teorias prévias” tendo em vista a diversidade dos contextos, em particular dos contextos didaticos. A COMPATIBILIDADE OU NAO ENTRE OS PROGRAMAS Este artigo desenvolveu uma longa argumentagdo para provar que os programas de Piaget e Vigotsky n&o dao respostas opostas aos mesmos problemas. Ao apresentar as perguntas bdsicas que orientam a produgio das hipéteses sobre as relagdes entre desenvolvimento e aprendizagem, ou o modo de afrontar 0 paradoxo da aprendizagem, ou a atividade cognoscitiva, incluindo a mudanga conceitual, parece que a incompatibilidade se dissolve. Em outras palavras, as hipéteses centrais dos dois programas nio sio incom- pativeis entre si, no sentido de que a aceitacgdo de uma implicaré a recusa da outra. Por exemplo, afirmar a negociagio orientada e contextual de significados para produzir a mudanca conceitual nado é incompativel com 175 sustentar que a aquisig&o de novos significados implica a superago de conflitos entre as idéias prévias ou entre elas e os objetos. Mais ainda, um exame cuidadoso ressalta que as hipéteses centrais de um programa n&o exigem a aceitagio nem a recusa das hipéteses do outro. Portanto, do ponto de vista légico pode-se falar da compatibilidade dos programas. Se assim for, a investigagtio psicolégica do desenvolvimento e aprendizagem escolar pode tirar proveito das diferengas entre, por exemplo, o enfoque que d4 primazia aos artefatos culturais em Vigotsky e aquele que d4 primazia & estruturagio dos objetos em Piaget. Isso quer dizer que as diferengas nao devem ser ocultadas mas ressignificadas ao serem situadas nas probleméticas, inclusive para avaliar aquelas que sio muito profundas e continuam gerando sérias interrogagées, como o processo de aquisigéo da linguagem. Dessa forma, pode-se evitar tanto a incompatibilidade paralisante como a pretensao de justapor os postulados dos programas, numa versdo eclética que n&o permitiria superar os limites e a dificuldades de um e de outro. Em minha opiniao, essa compatibilidade abre um amplo campo de investigagao sobre os processos de aprendizagem e desenvolvimento dos conhecimentos em diferentes reas. Porém essa colaboracao sé é possivel se os programas compartilharem certos princfpios, mesmo tendo seus préprios caminhos. Assim, ser-lhes-ia comum, entre outros, a recusa 4 oposig&o entre individuo e sociedade, a confirmagio de uma relagio necesséria, constitutiva, de tais pélos; a tese de relagdes dialéticas, contra todo dualismo cartesiano, entre objeto e sujeito num caso, entre mundo social e subjetividade, no outro; a perspectiva metodolégica que torna imprescindfvel a reconstrugio genética dos conhecimentos, ou ainda a desconfianga quanto aos métodos experimentais das ciéncias duras para esses estudos (Van der Veer, Valsineer, 1991, Bidell, 1988). Seguindo essa diregaio, mencionamos em diversas passagens a factibilidade de estudar os processos reconstrutivos em contextos de ensino. Ao serem criadas zonas de desenvolvimento proximal para a aquisigio de conceitos disciplinares (por exempo, as teorias sobre 0 governo, ou os conceitos do sistema planetério) prope-se um cendrio original para a pesquisa psicogenttica. Claramente, pode-se investigar o processo de orientag&o tutelar para que se Ppossa transitar por uma Z.D.P. e, durante seu transcurso, averiguar a passagem de conhecimentos de menor a maior validade (das nogdes prévias até os conceitos do saber institufdo). Nao obstante, Bruner (1997) nos tira toda esperanga de investigacio comum entre vigotskyanos e piagetianos, ao celebrar a divergéncia radical das pers- pectivas. 176 Em sua anélise, Piaget, com explicagdes universais, tratou do mundo fisico ou de inferéncias com necessidade Iégica, que se se validam empfrica ou formalmente. Vigotsky, por seu lado, ocupou-se de saberes locais, contextuais, inclusive de narrativas que constituem o mundo social. Estas so validadas pela interpretagao. Segundo Bruner, estamos diante de duas concepgdes auto-suficientes do conhecimento. Para estudar como uma crianga justifica suas explicagdes causais (por exemplo, por que os corpos flutuam) no sao necess4rios contextos nem variago cultural. Pelo contrério, para examinar como uma crianga compreende uma norma (por exemplo, escolar ou politica), sio necessdrios e suficientes a comunicagiio e o sistema cultural. Segundo esse enfoque, uma psicogénese de sistemas légicos e atribufdos 4 natureza é incompativel com a génese dos conhecimentos sobre o humano. E natural pensar que se duas concepgdes so incompativeis no sentido “forte” que Ihe havia dado Kuhn (1962) isso implica afirmar que s&o incompardveis. Dessa forma, os termos aqui considerados, como “atividade” ou “interiorizagio” teriam um significado préprio em cada corpus tedrico. Além disso, nao poderiam ser traduzidos de um paradigma a outro; os membros de uma escola e de outra viveriam em mundos literalmente diferentes. Assim, um piagetiano n&o poderia entender 0 mesmo termo se empregado no sentido vigotskyano. Entretanto, a incompatibilidade foi abrandada nos tltimos trabalhos de Kuhn (1987), ao distinguir-se entre “tradugio” e “interpretagao”. Os membros de dois paradigmas podem se comunicar na auséncia de uma tradugiio, porque fazem apelo ao mesmo recurso dos historiadores para entender uma produ¢gao do passado, ou seja, a interpretag&o. Assim, um pesquisador pode descrever em sua propria lingua os referentes dos termos da outra lingua. S6 quando isso n&o ocorre estamos numa situagaio de incompatibilidade estrita. Ao adotar essa perspectiva, diversa da assumida por Bruner (1997), nao ha um obstdculo invencfvel para a comunicagio entre piagetianos e vigotskyanos. Sem conseguir uma tradugio completa dos textos de um paradigma a outro, pode-se entender reciprocamente as teses centrais (por exemplo, a “atividade”, “{nternalizagao”, “aprendizagem” ou “desenvolvimento”). Além de questionar a incompatibilidade pode-se reduzir a umicidade de potencialidades epist€micas que Bruner atribui A perspectiva piagetiana. Nossas préprias pesquisas (Castorina, Gil Antén, 1994; Lenzi, Castorina, 1996) mos- traram que as explicagées infantis sobre a legitimagao da autoridade (sobretudo a escolar) sio possfveis a partir de uma interpretacio dos sfmbolos (os atos de autoridade, os ritos escolares ou as ordens enunciadas). Essa compreensaio do significado social das normas implica uma interagio comunicativa e intencional com as autoridades. Em outras palavras, as explicagdes das razdes 77 de “porque € preciso obedecer” se articulam com a “hermenéutica” dos atos cotidianos da autoridade, na experiéncia normativa das criangas. As criangas produziram argumentos de menor a maior legitimidade (as “teorias” sobre a autoridade) nos diversos contextos de interagio intencional com as autoridades. Pode-se indagar af sobre uma construgéo de saber social acerca das normas culturais, incluindo interpretagdes simbélicas. No paradigma psi- cogenético nao se assume o individualismo anticultural, nem se supée uma seqiiéncia universal desses conhecimentos sociais. Também podemos lembrar 0 que foi dito sobre as aquisigdes na escola. Na Perspectiva epistemoldgica construtivista é possfvel se perguntar sobre a aprendizagem por reconstrugio dos saberes disciplinares durante sua transmissao, atentando para as situages didéticas e para as varidveis de mediagao. Dentro e fora da escola as criancas “tém de inventar o que a cultura Ihes oferece; tm de fazer 0 que encontram...” (Brockmeier, 1996. p.133). Dessa forma, a perspectiva piagetiana nao est destinada apenas a explicar os objetos da natureza, sem poder averiguar a compreensio infantil das normas e produtos culturais; no se limita a ocupar-se unicamente dos processos gerais de construgio, 4 margem de toda situagdo contextual; a estudar hipéteses infantis a margem da internalizagao da cultura. Em sintese, hé comunicago dos significados dos conceitos das tradigdes vigotskyana e piagetiana, 0 que evita a “incompatibilidade”. Além disso, no enfoque piagetiano renovado, segundo entendemos, nao h4 um corte nitido entre construir e interpretar. Portanto, no celebramos um contraponto entre paradigmas incompativeis (Bruner, 1997) mas a colaborac&o entre programas compativeis em sua diferenca. Mais ainda: a énfase na construcio ou na explicagiio, num caso, € na interpretacdo contextual ou a narrativa, no outro, j4 constitui um exemplo interessante de desafio recfproco. Quer dizer que os problemas e solugdes originais surgidos numa perspectiva causam impacto em outra, no sentido de obrigé-la a encarar as questdes, 0 que envolve a possfvel revisdio das préprias hip6teses. CONCLUSOES Finalmente, nos permitimos sugerir algumas decorréncias, entre outras possfveis, de nossa reviséo da controvérsia Piaget-Vigotsky, em relago & pratica psi- copedagégica e educacional. A principal é a confirmag%io de uma articulagdo entre os nfveis de anélise no estudo dos processos de aprendizagem, 0 que supde sua complexidade, 178 no momento apenas “intufda”, ainda nao elaborada sistematicamente. Pelo menos, em sentido provisério, duas problemiticas diferentes permitiram es- clarecer outras tantas dimensGes do processo de aprendizagem. A compatibi- lidade dos enfoques e a adogio de certos princfpios que sustentam o cardter relacional do conhecimento, em contraposigfio ao dualismo, abrem a perspectiva das pesquisas conjuntas acerca de temas relevantes. Sobre essa base, justifica-se 0 estudo da aquisigao de saberes matemiticos em contextos caracterizados por formas especificas de negociaczio de signifi- cados, em atividades comerciais de criancas marginais (Saxe et al., 1994). Pode-se tentar o estudo “interprogramatico” da mudanga conceitual de nogdes em sala de aula, investigando as interagdes “tuteladas” pelo docente e, ao Mesmo tempo, a reconstrugéo do ponto de vista do sujeito. Para alcangar uma explicagao satisfatéria e promover a mudanga conceitual é fundamental assumir as promessas e as limitagdes de cada perspectiva. O enfoque socioist6rico poderia ser visto como um horizonte para a psico- pedagogia. Um profissional deve hoje considerar que todo processo de apren- dizagem 6 intrinsecamente cultural, que é produzido gragas as interagdes mediadas por quem sabe mais e em uma diversidade de contextos. 6 tio importante avaliar 0 que um aluno pode aprender com a ajuda de outro que seria preciso questionar os instrumentos classicos de diagndstico intelectual, centrados nos sujeitos subtrafdos a tais interagdes, e os prognésticos sobre a aprendizagem (Van der Veer, Valsiner, 1991). Os educadores sio obrigados a considerar a construgio dos sistemas de conhecimento, pois estabelecer 0 modo com que os alunos significam os objetos propostos culturalmente, com que formulam, sustentam e modificam suas hipéteses (em qualquer 4rea de conhecimento) € uma questo crucial para conduzir suas intervengdes sobre o processo de aprendizagem. Uma lig&o que se poder extrair da controvérsia entre Piaget e Vigotsky é que os psicopedagogos e educadores nao podem “fundir” as perspectivas sobre a aprendizagem nem “tomar” aspectos de um e de outro no momento de intervir sobre a aprendizagem, Trata-se de examinar as produgées dos alunos, fazendo-se em cada caso as perguntas pertinentes como base para articular os niveis de andlise nos quais temos insistido. Por Ultimo, gostaria de chamar a atengGo para os riscos de assumir as aprendizagens apenas como processos gerais, interpretados no vazio, como se se realizassem fora de contexto. Uma verso que separasse os mecanismos da aprendizagem dos saberes constitufdos em suas pr6prias 4reas e dos contextos de ensino, impediria os educadores ¢ psicopedagogos de estabelecerem a trajetéria precisa da reconstrugio conceitual e, portanto, a prépria indole das aquisicdes ¢ dificuldades que se revelam na aprendizagem. 179

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