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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 7-25 FEV.

2011

DIREITO, ESTADO E PODER:


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POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN

Luiz Eduardo Motta

RESUMO

A Teoria do Estado, no campo da Ciência Política, viveu momentos de crise, em particular na passagem dos
anos 1980 para os 1990, quando algumas correntes intelectuais apontavam que o Estado-nação e as
instituições estatais deixariam de ocupar um papel central como objetos de análise. O presente artigo vai de
encontro a essa posição e visa a estabelecer uma análise comparativa de dois dos mais sistemáticos autores
que trataram do conceito de Estado moderno e da relação deste com o Direito moderno: Hans Kelsen e
Nicos Poulantzas. O ponto de partida é a analogia estabelecida entre ambos por David Easton, em seu
artigo O sistema político sitiado pelo Estado, que identifica a obra marxista de Poulantzas com a teoria
sistêmica e normativa de Kelsen sobre o Direito e o Estado. De fato, paradoxalmente, Poulantzas converge
em muitos aspectos com Kelsen quando critica o pensamento liberal (ao qual Kelsen é filiado) e quando
define que o Estado de Direito seria a antítese dos estados autoritários. Mas, a despeito dessas convergências,
as diferenças entre Poulantzas e Kelsen demarcam duas formas distintas no trato teórico e político sobre os
conceitos de Direito e Estado. Para Kelsen, o Estado é impermeável, não havendo contradições e fissuras
internas, enquanto, para Poulantzas, o Estado é definido como um campo estratégico de lutas, permeado de
micropolíticas e de contradições. O artigo é composto de uma introdução, seguida por duas seções que
sistematizam as principais definições de Kelsen e Poulantzas sobre o papel do Estado e do Direito modernos,
além de uma conclusão, que demarca os aspectos convergentes e divergentes entre os dois autores.
PALAVRAS-CHAVE: Nicos Poulantzas; Hans Kelsen; Direito; Estado; poder.

I. INTRODUÇÃO sua fase de maturidade (científica, em oposição à


filosófica de sua juventude, como define Althusser
A reflexão teórica sobre os conceitos de Esta-
e a sua escola), a exemplo das obras Ideologia
do e de Direito tem sido uma das marcas predo-
Alemã, Grundrisse, Crítica ao Programa de Gotha
minantes do pensamento moderno. Isso é percep-
e o Capital. Também cabe destacar o interesse de
tível nas mais distintas correntes de pensamento
Engels por essa temática em seus livros Anti-
da filosofia política moderna a exemplo do
Dühring e A Origem da Família, da Propriedade
jusnaturalismo de Hobbes, Locke, Rousseau e
e do Estado.
Kant, como também no utilitarismo de Bentham e
Stuart Mill. O mesmo ocorreu na obra dos pre- Essa tradição ainda permaneceu na primeira
cursores da Sociologia Política, como metade do século XX, por meio de autores mar-
Montesquieu, Tocqueville e Max Weber. O pen- xistas como Stuckha, Pasukanis, Reisner,
samento marxista também não ficou por menos. Vyshinsky, Golunskii, Strogovich, Korovin,
A questão do Estado e do Direito estão presentes Krylov, Yudin, além do próprio Gramsci, de modo
no jovem Marx em 1843, na sua obra Crítica da disperso e assistemático, em seus Cadernos do
Filosofia do Direito de Hegel, como também de cárcere. Nicos Poulantzas (1936-1979), com efei-
modo disperso nos seus escritos tidos como de to, foi o pensador marxista que mais contribuiu a
essa problemática na segunda metade do século
passado. Suas reflexões sobre o Estado e o Direi-
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Marxismo to estiveram presentes em toda a sua obra desde a
e Ciências Sociais, no XXXII Congresso Anual da Associ- sua fase existencialista sartreana, em A natureza
ação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, em das coisas e do Direito, passando pela sua aproxi-
2008.

Recebido em 1 de fevereiro de 2009.


Aprovado em 7 de julho de 2009.
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 38, p. 7-25, fev. 2011
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DIREITO, ESTADO E PODER: POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN

mação do marxismo estruturalista de Althusser até iniciado na primeira metade do século XX, sua
a sua última obra O Estado, o poder e o socialis- teoria do Direito permanece influente no campo
mo. Esse é um ponto crucial que o diferencia dos jurídico dos países que adotam o modelo da civil
demais marxistas ocidentais que se ativeram mais law (a exemplo do Brasil, Argentina, Itália e Fran-
às questões relacionadas à ideologia, à cultura e à ça, além de outros países), repercutindo direta-
epistemologia, como Lukács, Althusser, Sartre, mente na práxis dos operadores do Direito; 2)
Della Volpe, Marcuse, Benjamim e Adorno2. embora bastante conhecido no meio acadêmico
do Direito, é um autor praticamente desconheci-
O objetivo deste artigo é recuperar a impor-
do no campo da Sociologia e da Ciência Política,
tante contribuição de Poulantzas à problemática
não apenas no Brasil, mas também em outras for-
do Direito e do Estado, tendo em vista o
mações sociais (MANERO, 1988, p. 11), a des-
surgimento desse tema no atual contexto marca-
peito de sua influência sobre autores da área do
do pela chamada “judicialização” da política e das
Direito mais conhecidos no campo das Ciências
relações sociais que, de fato, resgatou o interesse
Sociais, como Norberto Bobbio ou Charles
de vários cientistas sociais por esse tema3. Con-
Eisenmann, e de sua oposição sistemática às in-
tudo, apesar do retorno da temática do Direito e
terpretações sociológicas do Direito, como Max
do Estado e da relação destes com a sociedade, a
Weber ou Eugen Ehrlich, e aos marxistas em ge-
obra de Poulantzas raramente tem sido citada di-
ral, notadamente Pasukanis; 3) a sua teoria sobre
ante às contribuições de Habermas ou Rawls, que
o Direito e o Estado tornam-no um liberal atípico
têm sido mais influentes entre os acadêmicos no
nesse contexto em que o liberalismo é associado
Brasil. Para isso, optei em fazer uma análise com-
à corrente neoliberal de Hayek, Mises, Friedman,
parativa de sua teoria com a de um dos mais im-
além dos liberais políticos pluralistas, como Dahl,
portantes teóricos do Direito e do Estado do sé-
já que o Estado ocupa um papel central em sua
culo XX: Hans Kelsen.
obra, na medida em que ele tem como função
Embora seja um autor pouquíssimo citado por precípua a regulação dos indivíduos, não somen-
Poulantzas em suas obras (com exceção de sua te no aspecto político, mas também no econômi-
tese de doutorado, A natureza das coisas e do Di- co, isto é, em suas ações no mercado.
reito), a escolha de Hans Kelsen (1881-1973) para
No entanto, há uma meia-verdade nas decla-
dialogar com a sua teoria do Direito e do Estado
rações de Easton, apesar de ser incorreta a sua
não foi fortuita, tampouco aleatória. O interesse
afirmação de que haveria alguma aproximação te-
em compará-los iniciou-se por uma provocação
órica e metodológica entre Poulantzas e Kelsen:
de David Easton, em seu artigo “O sistema políti-
há, com efeito, semelhanças entre ambos os au-
co sitiado pelo Estado”, que em uma passagem
tores no que concerne ao papel coativo do Direito
associa a teoria do Estado de Poulantzas à de
nas sociedades modernas, na ilusão da “separa-
Kelsen4. Além disso, há outros fatores que moti-
ção de poderes”, na formação da “vontade geral”
varam a sua escolha: 1) apesar de sua obra ter se
do Estado, na associação do direito à ética e à
justiça, no monopólio do uso da força do Estado
moderno etc.
2 Para uma crítica do marxismo ocidental pelo ponto de
Para demonstrar os meus argumentos, este
vista do marxismo, ver as obras de Perry Anderson: A crise artigo divide-se em três partes: na primeira será
da crise do marxismo (1984) e Considerações sobre o
apresentada a definição de Kelsen sobre os con-
marxismo ocidental (1989). Do ponto de vista liberal, ver
José Guilherme Merquior, com O marxismo ocidental ceitos de Estado, Direito e democracia, demons-
(1987). trando as suas diferenças em relação às interpre-
3 Cf., no Brasil, os trabalhos de Werneck Vianna, Maria tações sociológicas do Direito, como a de Max
Tereza Sadek, Cátia Aída Silva, Andrei Koerner e Rogério Weber e do marxismo, e das concepções
Arantes. neoliberais, em especial Hayek, que é alvo de suas
4 A passagem é a seguinte: “O Estado (para Poulantzas) críticas. Na segunda me deterei na contribuição
torna-se um conjunto de regras que controlam o comporta-
de Poulantzas ao tema e das mudanças em seu
mento, e parece que nestas se esgota toda a questão da luta enfoque ao longo do conjunto de sua obra, embo-
pelo poder. Ficamos tentados a exclamar: um eco das regras ra venha a me deter a partir do período em que se
jurídicas de Hans Kelsen” (EASTON, 1982, p. 136). aproxima do marxismo estruturalista, deixando de

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lado a sua fase existencialista sartreana e as apro- vro Teoria geral do Direito e do Estado, em 1945.
ximações que teve com o marxismo historicista Sua teoria é definida como “pura” no sentido de
de Lukács e Goldmann. Nesta seção mostrarei as que ela não estaria “contaminada” por elementos
diferenças teóricas e políticas (como também as estranhos ao Direito, como a Filosofia e a Socio-
convergências) entre Poulantzas e Kelsen. Por fim, logia. Embora Kelsen tivesse influência do
a conclusão, que aponta a importância de neokantismo em relação ao conflito de valores (na
Poulantzas à temática do Direito e do Estado, separação dos juízos de valor dos juízos de fato,
como uma alternativa teórica aos modelos teóri- tal qual Max Weber), Richard Posner (2001, p. 3)
cos ora vigentes que têm predominado sobre esse e Bob Jessop (1985, p. 44) observam que a sua
tema. teoria do Direito estava também sob nítida influ-
ência do positivismo lógico do Círculo de Viena,
II. O DIREITO E O ESTADO NORMATIVO DE
já que tinha como modelo as ciências naturais
HANS KELSEN
(SGARBI, 2007, p. 3). A “vericabilidade” das ciên-
Embora seja de origem judia, Hans Kelsen5, cias jurídicas dar-se-ia pela efetividade das normas.
tal como Karl Marx, não tinha uma profunda Para Posner, a pretensão de Kelsen foi a de criar
vinculação com a cultura e a religião judaicas (era uma ciência do Direito, nos moldes da física
ateu) e fez o seu primário numa escola evangélica newtoniana, já que assim como os fenômenos da
em Viena. Apesar desse distanciamento e de nun- física gravitacional ocorrem em qualquer tempo e
ca ter militado politicamente no campo da esquer- lugar do planeta, o mesmo ocorreria com o Direito
da, isso não o impediu de ter sido perseguido pelo em qualquer tipo de sociedade, independentemente
regime nazista, o que acabou resultando em seu do tempo e da cultura (POSNER, 2001, p. 4).
exílio nos Estados Unidos em 1940, numa forma-
Kelsen define que a ciência do Direito é, com
ção social de base jurídica calcada na commom
efeito, a ciência das normas. A ordem jurídico-
law e adversa ao positivismo jurídico (ou civil
estatal nada mais é do que a articulação hierárqui-
law)6 de Kelsen. Embora tivesse um forte interes-
ca de um conjunto de normas estruturado a partir
se pelas áreas de Física, Matemática e Filosofia,
de uma norma fundamental (Grundnorm). Kelsen
acabou optando pelo estudo do Direito na Facul-
define a norma fundamental como uma norma cuja
dade de Viena em 1900, uma decisão que foi fun-
validade não pode ser derivada de uma norma su-
damental, não apenas profissionalmente, mas tam-
perior. Todas as normas cuja validade pode ter
bém em sua futura produção intelectual. Em 1908,
sua origem remontada a uma mesma norma fun-
conseguiu uma bolsa de estudos para estudar em
damental formam um sistema de normas, uma
Heidelberg, onde veio a conhecer a obra de seu
ordem. Essa norma básica, em sua condição de
professor de Teoria Geral do Estado, George
origem comum, constitui o vínculo entre todas as
Jellinek, e onde teve os seus primeiros contatos
diferentes normas em que consiste uma ordem
com a teoria sociológica de Max Weber (de quem
(KELSEN, 1990, p. 116).
só veio a conhecer pessoalmente depois da I Guer-
ra Mundial). Tanto Jellinek como Weber tornar- Para Kelsen, portanto, o Direito é um “sistema
se-iam dois dos principais alvos de críticas de de regras” marcado por uma positividade lógica,
Kelsen, quando este começou a criar a sua teoria em oposição ao Direito entendido como justiça, o
“pura” do Direito. que demarcaria uma posição valorativa no Direi-
to. Sua posição é diametralmente oposta à Filoso-
A teoria “pura” do Direito de Kelsen começou
fia do Direito, na qual se associa a questão do
aos poucos a ser elaborada nos anos de 1910,
Direito com a moral e a justiça. A questão da jus-
mas só veio a atingir a sua maturidade em 1934,
tiça, para Kelsen, estaria inserida no discurso filo-
quando publicou Teoria pura do Direito e, poste-
sófico, e não no científico. Assim sendo, o Direi-
riormente, dando continuidade a sua teoria, o li-
to não seria restrito a uma forma de governo ide-
al, mas a qualquer forma organizacional jurídica.
Como diz Kelsen,“do ponto de vista da ciência,
5 Os dados biográficos de Kelsen foram extraídos de Bas- livre de quaisquer julgamentos valorativos, mo-
tos (2003). rais ou políticos, a democracia e o liberalismo são
6 Sobre as diferenças entre a commom law e a civil law, apenas dois princípios possíveis de organização
consultar o livro de John H. Merrymam, The Civil law social, exatamente como o são a autocracia e o
Tradition (1993). socialismo. Não há nenhuma razão científica pela

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qual o conceito de Direito deva ser definido de que instituem a propriedade privada, a história exibe
modo a excluir estes últimos. Tal como emprega- outras que reconhecem a propriedade privada,
do nestas investigações, o conceito de Direito não quando muito, apenas num âmbito bastante res-
tem quaisquer conotações morais. [...] Direito e trito. [...] Declarar a propriedade como um direi-
justiça são dois conceitos diferentes. O Direito, to natural, porque é o único que corresponde à
considerado como distinto da justiça, é o Direito natureza, é uma tentativa de tornar absoluto um
positivo. É o conceito de Direito positivo que está princípio especial que, historicamente, em certo
em questão aqui; e uma ciência do Direito positi- tempo e sob certas condições políticas e econô-
vo deve ser claramente distinguida de uma filoso- micas, tornou-se direito positivo” (idem, p. 18).
fia da justiça” (idem, p. 13).
Então, pelo seu caráter sancionador, o Direito é
Também sua oposição à Sociologia do Direito definido por Kelsen como uma ordem coercitiva.
de Weber ou à de Ehrlich é clara, já que o Direito Nesse sentido, haveria um aspecto em comum quan-
não poderia ser definido a partir das ações sociais do falamos do Direito dos babilônios antigos e do
de caráter racional, como quer Weber, e, Direito vigente atualmente nos EUA, como também
tampouco, como Ehrlich, de que o Direito origi- de uma tribo ashanti na África Ocidental e dos suí-
na-se, não do Estado, mas da “ordem interna das ços na Europa, pois todos empregam uma técnica
organizações sociais” (EHRLICH, 1986, p. 27), social específica (o Direito) que consiste em obter a
isto é, na própria sociedade. Isso significa para conduta social desejada dos homens por meio da
Kelsen que o Estado e o Direito têm de ser vistos ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada em
como uma coisa única, não havendo uma relação caso de conduta contrária (idem, p. 26).
dual. O Direito, portanto, antecede e forma o Es-
A perspectiva de Kelsen rejeita a concepção
tado.
teórica de Weber e de Jellinek, porque ambos ado-
Embora Kelsen reconheça uma grande dificul- tam o que ele denomina de “teoria dualista do Es-
dade em definir conceitualmente o termo Estado, tado”, na qual se trata o Direito e o Estado como
devido às diferentes acepções que esse conceito objetos distintos. Jellinek (2000) separa o Estado
tem recebido pelas mais distintas correntes do num plano sociológico (fático) e num plano jurí-
pensamento sociopolítico moderno, a seu ver o dico (regras normativas). Já Weber (1978) consi-
Estado só poderia ser explicado de modo mais dera o Estado moderno a combinação de um sis-
preciso pelo ponto de vista puramente jurídico. tema jurídico racional com um aparato burocráti-
Em outras palavras, o Estado teria de ser visto co e, assim, expressa a forma de dominação polí-
como um fenômeno jurídico, uma pessoa jurídi- tica moderna. Para Kelsen, o Estado como comu-
ca que representasse a comunidade como uma nidade jurídica não é algo separado de sua ordem
ordem jurídica nacional, em contraposição a ou- jurídica: “[...] devemos admitir que a comunidade
tras ordens jurídicas de caráter internacional a que chamamos de ‘Estado’ é a ‘sua’ ordem jurí-
(KELSEN, 1990, p. 188). O Estado como ordem dica” (KELSEN, 1990, p. 185). Como observa
social deve ser precisamente idêntico ao Direito, Scarbi (2007, p. 118), Kelsen reitera o argumento
a uma ordem jurídica nacional. Essa identidade da precedência de uma idéia de Direito nas defini-
entre ambos os conceitos define a teoria do Direi- ções sociológicas de Estado. Assim, ataca Weber
to de Kelsen como monista, visto que somente ao duplicar impropriamente o Estado, elaborando
pelo Estado o Direito (a lei) torna-se legítimo. considerações de cunho normativo-formal e subs-
tancial ou empírico.
Desse modo, o Direito positivo estaria em di-
reção diametralmente oposta ao Direito natural. O Estado para Kelsen,“não é a uma ação ou
Para Kelsen, não haveria direitos a priori ou quantidade de ações [...]. O Estado é aquela or-
inalienáveis constituídos antes da formação do dem da conduta humana que chamamos de or-
Estado. Um exemplo seria o direito de proprieda- dem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações
de que é central na teoria liberal de John Locke7. humanas, a idéia a qual os indivíduos adaptam sua
Segundo Kelsen, “[...] ao lado de ordens jurídicas conduta. Se a conduta humana adaptada a essa
ordem forma o objeto da sociologia, então o seu
objeto não é o Estado.. Não existe nenhum con-
7 Ver, por exemplo, o capítulo V de Segundo tratado do ceito sociológico de Estado ao lado do conceito
governo civil, de John Locke. jurídico. Tal conceito duplo de Estado é impossí-

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vel logicamente, senão por outro motivo, pelo que garanta a liberdade das ações dos indivíduos.
menos pelo fato de não poder existir mais de um Para Kelsen, é o Direito formal que estabelece a
conceito do mesmo objeto. Existe apenas um con- linguagem dos atores estatais (em especial o Di-
ceito jurídico de Estado: o Estado como ordem reito Constitucional e Administrativo) já que esta-
jurídica, centralizada” (KELSEN, 1990, p. 190). belece um elo de identidade aos agentes do Esta-
do em seus mais diferentes níveis hierárquicos.
Apesar de suas divergências teóricas e
Um órgão estatal significa, na linguagem conceitual
metodológicas com Max Weber, Kelsen vai ao seu
de Kelsen, “um individuo que cumpre uma fun-
encontro ao concordar que a força derivada do
ção específica. A qualidade de órgão de um indi-
Direito é monopólio do Estado moderno (WEBER,
víduo é constituída por sua função. Ele é um por-
1978, p. 314-315). Segundo Kelsen, o Direito está
que e na medida em que executa uma função cri-
em franca oposição à anarquia, esta compreendi-
adora ou aplicadora de direito” (idem, p. 194).
da como uma ordem social baseada exclusiva-
Nesse sentido, todo funcionário público pode ser
mente na obediência voluntária dos indivíduos sem
considerado um “órgão” do Estado, já que pratica
o recurso da coerção. Conforme afirma Kelsen, o
e reproduz a normatividade estatal.
Direito e a força não devem ser compreendidos
como absolutamente antagônicos, porque o Di- Outro aspecto a ser destacado na Teoria do
reito é uma organização da força e vincula certas Estado de Kelsen diz respeito ao tempo e ao espa-
condições para o uso da força nas relações entre ço do Estado moderno. Para Kelsen, o Estado
os homens, autorizando o emprego da força ape- somente tem validade de acordo com um territó-
nas por certos indivíduos e sob certas circuns- rio no qual aplica as medidas legais. Nesse aspec-
tâncias. O indivíduo que, autorizado pela ordem to, Kelsen não avança nada em relação ao que
jurídica, aplica a medida coercitiva atua como Weber (1978, p. 901-902) já tinha afirmado. Se-
agente dessa ordem ou como um órgão da comu- gundo Kelsen, o território do Estado é o espaço
nidade, constituído por ela. Apenas esse indiví- dentro do qual é permitido que os atos do Estado
duo, apenas o órgão da comunidade, está autori- e, em especial, os seus atos coercitivos, sejam
zado a empregar a força. O Estado, portanto, deve efetuados. É o espaço dentro do qual o Estado – e
ser definido como uma organização política por isso significa: os seus órgãos –, está autorizado
ser uma ordem que regula o uso da força, porque pelo Direito Internacional a executar a ordem ju-
ela monopoliza o uso da força. O Estado é uma rídica nacional. A ordem jurídica internacional
sociedade politicamente organizada porque é uma determina como a validade das ordens jurídicas
comunidade constituída por uma ordem coerciti- nacionais está restrita a certo espaço e quais são
va, e essa ordem coercitiva é o Direito (KELSEN, as fronteiras desse espaço (KELSEN, 1990,
1990, p. 27, 191). p. 208).
Nesse sentido, o conceito de Estado de Direi- Com relação ao tempo, Kelsen enfatiza que
to, para Kelsen, destoa em relação à clássica defi- durabilidade de um Estado deve-se a sua
nição liberal, que está presente em Montesquieu, temporalidade normativo-jurídica. Para Kelsen,
Tocqueville e nos neoliberais, como Hayek. O “um Estado existe não apenas no espaço, mas tam-
Estado de Direito, segundo Kelsen, não é sinôni- bém no tempo, e, se consideramos o território
mo de “liberdade negativa”, isto é, a liberdade en- um elemento do Estado, então temos de conside-
tendida como ausência de impedimento ou de rar também o período de sua existência como um
constrangimento por parte do poder estatal sobre elemento do Estado. Quando se diz que não pode
os indivíduos. O Estado de Direito não é associa- existir mais de um Estado no mesmo espaço, ob-
do ao Estado liberal. Para Kelsen – convergindo, viamente, pretende-se dizer que não pode existir
assim, com Weber e o próprio Poulantzas (como mais de um Estado dentro do mesmo espaço ao
veremos a seguir) – qualquer organização estatal mesmo tempo. [...] Exatamente como o território
moderna, seja liberal, democrática ou autoritária é é um elemento do Estado não no sentido de um
definida como um Estado de Direito. Essa posi- espaço natural que o Estado preenche como um
ção de Kelsen o faz um liberal realista (ou hetero- corpo físico, mas apenas no sentido da esfera
doxo), distinto dos liberais “utópicos” (ou orto- territorial de validade da ordem jurídica nacional,
doxos). O Direito, assim, significa o exercício le- assim o tempo, o período de existência, é um ele-
gal do uso da força, da coação, e não uma “redoma” mento apenas no sentido de que corresponde à

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esfera temporal de validade. Ambas as esferas são responsáveis pelo povo. Se a separação da função
limitadas. Assim como o Estado não é espacial- legislativa das funções aplicadoras de Direito, ou
mente infinito, ele não é temporalmente eterno” um controle do órgão legislativo pelos órgãos
(idem, p. 217). aplicadores de Direito e, sobretudo, se o controle
das funções legislativa e administrativa pelos tri-
Apesar de Kelsen definir o Estado como um
bunais está previsto pela constituição de uma de-
conjunto de normas das qual a norma fundamen-
mocracia, isso só pode ser explicado por motivos
tal determina as demais que estão vinculadas a
históricos, e não justificados como elementos es-
ela, sua análise sobre a “separação” de poderes
pecificamente democráticos (idem, p. 275).
como também sobre a representação e a demo-
cracia possuem um grau de realismo que destoa Kelsen também critica a noção de vontade ge-
da dogmática ingênua que permeia os manuais de ral ou vontade única porque, para ele, a repre-
Direito. A definição de “separação” de poderes de sentação do povo na democracia moderna não
Kelsen antecede as leituras de Charles Einsemann passa de uma ficção. Nenhuma das democracias
e Louis Althusser sobre o Espírito das leis de existentes ditas “representativas” seriam de fato
Montesquieu, em que refutam a visão distorcida representativas (idem, p. 283). Devido à impossi-
dessa obra que predomina em seus interpretes ju- bilidade técnica do “povo” exercer diretamente sua
rídicos. Em outras palavras, os poderes não seri- soberania, recorre-se à ficção da representação,
am independentes e harmônicos entre si, mas sim na qual se reproduz a idéia de que o parlamento é
interdependentes e havendo práticas similares em apenas um representante do povo, de que o povo
cada poder (elaboração de leis e medidas, regras pode exprimir a sua própria vontade apenas no
administrativas, burocracia, força legal etc.). parlamento e por meio dele (KELSEN, 2000, p.
Como afirma Kelsen, “[...] não se pode falar de 48). Há, portanto, uma tensão entre a ideologia
uma separação entre a legislação e as outras fun- democrática e a democracia real. Se o ideal de-
ções do Estado no sentido de que o órgão mocrático implica a ausência de “chefe”, este é
‘Legislativo’ – excluindo os chamados órgãos um fato que está longe de ocorrer na democracia
‘Executivo’ e ‘Judiciário’ – seria, sozinho, com- real que tem na figura do Presidente ou na do Pri-
petente para exercer essa função” (idem, p. 266). meiro-Ministro a principal representação política
da República moderna. No entanto, há uma gran-
Indo de encontro à corrente liberal clássica que
de diferença com o modelo autocrático de gover-
vê na separação de poderes a “pedra de toque” da
no: uma pluralidade de chefes políticos, no interi-
democracia moderna, Kelsen não considera que
or e fora do Estado. De acordo com Kelsen, “a
essa separação seja fundamental à democracia8
criação desses numerosos chefes torna-se o pro-
ou que um poder controlando outro poder seja o
blema central da democracia real [...] democracia
prisma principal dela. Para ele, o princípio de uma
essa que se distingue da autocracia real não tanto
separação de poderes, compreendido literalmente
pela essência, mas sobretudo pelo grande número
ou interpretado como um princípio de divisão de
de chefes” (idem, p. 91).
poderes, não é essencialmente democrático. Ao
contrário, correspondente à idéia de democracia Kelsen demarca, ao longo de seu livro A de-
é a noção de que todo o poder deve estar concen- mocracia, a diferença entre a democracia
trado no povo e, onde não é possível a democra- procedimental e a autocracia. Para Kelsen, há uma
cia direta, mas apenas a indireta, que todo o poder distinção rigorosa entre o sistema autocrático e o
deve ser exercido por um órgão colegiado cujos democrático: enquanto o último é dinâmico, o pri-
membros sejam eleitos pelo povo e juridicamente meiro é estático. Segundo suas observações, “na
ideologia autocrática o governante representa um
valor absoluto. Sendo de origem divina ou dotado
8 Como fica claro no seguinte trecho: “Do ponto de vista de forças sobrenaturais, ele não é considerado um
da ideologia, uma separação dos poderes, atribuição da le- órgão que é, ou pode ser, criado pela comunida-
gislação e da execução a órgãos diferentes, não corresponde de. [...] Em uma democracia, por outro lado, a
em absoluto à idéia de que o povo só deva ser governado questão de como designar os magistrados é trata-
por si mesmo. [...] É quase ironia da história que uma repú-
blica como a dos EUA aceite fielmente o dogma da separa-
da a luz clara da reflexão racional. O governo re-
ção dos poderes e que o leve a extremos exatamente em presenta não uma valor absoluto, mas apenas um
nome da democracia” (KELSEN, 2000, p. 89-90). valor relativo. Todos os órgãos da comunidade

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são eleitos apenas para um breve período. Até escolha de nosso trabalho. Isso é verdade. Não se
mesmo o chefe do executivo só é ‘líder’ por al- pode negar, porém, que, em um sistema econô-
gum tempo e apenas em alguns aspectos, uma mico capitalista, essa liberdade também constitui
vez que não só o seu mandato é limitado, mas um privilégio de relativamente poucos, mesmo que
também sua competência” (idem, p. 188)9. a constituição democrática proíba qualquer res-
trição legislativa, administrativa ou jurídica dessa
A crítica de Kelsen ao autocratismo não é su-
liberdade” (idem, p. 277).
ficiente para que seu pensamento político seja iden-
tificado aos neoliberais como Hayek que, por si- A relação de Kelsen com o liberalismo ortodo-
nal, foi alvo de críticas de Kelsen no tocante à xo é, com efeito, tensa e problemática. A demo-
questão da incompatibilidade da democracia com cracia, para Kelsen, identifica-se com o liberalis-
o socialismo ou, em outras palavras, da impossi- mo político, mas não necessariamente com o eco-
bilidade do sistema econômico coletivo com de- nômico. Sua visão sobre o papel do Estado com o
mocracia. Esse argumento de Hayek (1990) é liberalismo é realista, haja vista que se o liberalis-
refutado por Kelsen numa passagem em que afir- mo tolera o Estado é porque a burguesia o vê como
ma: “[...] a democracia seja compatível com o um instrumento eficaz para a defesa da proprie-
socialismo. Contudo, nego enfaticamente que, para dade privada, visto que o Estado não representa
realizar esse programa, seja necessário redefinir o para Kelsen o interesse geral da sociedade
conceito de democracia. É possível substituir o (HERRERA, 1998, p. 204). Hayek, inclusive, clas-
capitalismo por uma democracia socialista sem sificava Kelsen como socialista e o seu positivismo
que, para tanto, seja preciso mudar o significado jurídico, como antiliberal (idem, p. 203).
de democracia” (KELSEN, 2000, p. 264).
A despeito de suas polêmicas com o liberalis-
Coletivismo e economia planificada existem em mo ortodoxo, Kelsen também se apresentou como
vários graus e, portanto, não podem ser reduzi- um crítico da teoria marxista ao escrever vários
das ao conceito de totalitarismo, que seria o cole- artigos, desde os anos 1920, além do livro Teoria
tivismo no seu mais alto grau. Ademais, participar comunista do Direito, escrito na sua fase
do mercado financeiro não faz parte do cotidiano estadunidense, em plena Guerra Fria, no ano de
de todos, mas apenas de uma minoria. Efetiva- 1955. Sua crítica ao marxismo é desferida tanto
mente, possuir um quantum de capital pode reali- nos aspectos teóricos como políticos. Trata o
zar certos objetivos que não seriam alcançados marxismo como uma nova “religião” e o identifi-
sem este. Kelsen nos dá o exemplo de um grupo ca ao cristianismo, pois, assim como este, seu
de religiosos que precisa de um capital para a cons- discurso fala dos despossuídos e, tal qual o cris-
trução de uma igreja. Uma sociedade socialista que tianismo, que quebrou a hegemonia greco-roma-
controla os meios econômicos poderá ou não ce- na, aquele se tornou uma alternativa real de poder
der esse capital, o que acarreta também um con- organizado no moderno sistema estatal (KELSEN,
trole não-econômico (a criação de uma igreja). 1988, p. 64).
No entanto, numa sociedade capitalista, a situa-
Sua oposição é, sobretudo, no que concerne à
ção pode também não ser diferente, na medida
fase de transição socialista e o fim do Estado (e,
em que um banco pode negar esse empréstimo
conseqüentemente, do Direito) na fase comunis-
por não visualizar lucro nessa transação. Como
ta. Nesse aspecto, Kelsen associa o marxismo ao
afirma Kelsen, “do ponto de vista dos homens que
anarquismo e considera utópica a afirmação de
precisam de um edifício para seu serviço religio-
uma sociedade sem Estado, já que a natureza hu-
so, não faz a menor diferença se quem lhes recu-
mana, por ser imutável, não findaria as relações
sa os meios econômicos necessários são os ban-
de poder na sociedade: “[...] esta inclinação pri-
cos ou uma autoridade central. Tem-se afirmado
mitiva do homem de dominar os demais encon-
que em um sistema econômico socialista da eco-
tra-se no fato da exploração econômica ser so-
nomia planificada não pode haver liberdade na
mente uma de suas inumeráveis formas de mani-
festar-se, que não é, ademais, a mais importante,
9 Norberto Bobbio inspira-se em Kelsen, ao distinguir o seria infinitamente estúpido pensar que com o
dinamismo da democracia em relação ao despotismo, en- desaparecimento da exploração econômica desa-
tendido como uma forma de governo estático, em seu livro parecerá também o fato de que o homem abuse
O futuro da democracia (1997). de seu poder” (idem, p. 79).

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DIREITO, ESTADO E PODER: POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN

O paradoxo contraditório em Kelsen, nessa sua pressas em seu livro Teoria comunista do Direito.
crítica ao marxismo, é de que, embora seja um Só para me deter em Pasukanis (o mais represen-
positivista lógico e adversário dos jusnaturalistas, tativo no contexto de Kelsen e o mais analisado
apóia-se no conceito de natureza humana para nessa obra), ele é criticado por se apoderar de
refutar a possibilidade de uma sociedade sem Es- alguns elementos verdadeiramente ideológicos da
tado (ou, pelo menos, nos moldes do Estado mo- teoria burguesa, a fim de desacreditar o Direito
derno). Como observa Manero, é contraditório aos burguês, ao qual confunde com uma teoria ideo-
seus pressupostos “metaéticos” afirmar que nada lógica desse Direito. Para Kelsen, “Pasukanis imi-
que pertença à facticidade pode ser aduzido em ta a interpretação econômica dos fenômenos po-
pró ou contra um valor. Ademais, a crítica ao co- líticos feita por Marx reduzindo em geral os fenô-
munismo anárquico como ideal irrealizável nos menos jurídicos, no campo da jurisprudência, a
mostra um Kelsen que poderia ser qualificado fenômenos econômicos que podem existir somente
como “jusnaturalismo mínimo”. Ao apelar pela num sistema capitalista de economia baseado no
natureza humana não permitiria justificar nenhum princípio de propriedade privada dos meios de
conteúdo normativo determinado, pois a própria produção” (KELSEN, 1957, p. 132).
existência de um ordenamento coativo encontra-
Pasukanis é também criticado por Kelsen pelo
ria sua justificação nessa mesma natureza
seu reducionismo econômico que enfatiza as re-
(MANERO, 1988, p. 52).
lações dos possuidores de mercadoria e esquece
Sua posição crítica à teoria marxista não pas- outros aspectos do Direito na sociedade capitalis-
sou despercebida por alguns intelectuais marxianos ta (no campo privado), como a relação entre ma-
especializados no tema de Estado e do Direito. rido e mulher, pais e filhos, que podem também
Pasukanis dedica boa parte de sua obra A teoria existir numa sociedade comunista. O ponto mais
geral do direito e o marxismo para criticar o frágil da Teoria do Direito de Pasukanis, para
neokantismo de Kelsen descolado do mundo real. Kelsen, ocorre na sua diluição do Direito Público
Sua crítica é que “uma tal teoria geral do Direito, no campo privado. Com a finalidade de identificar
que não explica nada, que a priori dá as costas às o Direito com as relações econômicas específi-
realidades de fato, quer dizer, à vida social, e que cas, somente o Direito Privado – como relação
se preocupa com as normas, sem se preocupar entre indivíduos isolados, sujeitos de interesses
com as suas origens (o que é uma questão egoístas – é o Direito verdadeiro no sentido do
metajurídica), ou de suas relações com quaisquer vocábulo. Pasukanis considera que o Direito Pú-
interesses materiais, não pode pretender o título blico, como relação entre o Estado e os indivídu-
de teoria” (PASUKANIS, 1989, p. 16). os, não pode ser Direito em seu verdadeiro senti-
do porque o Estado é um fenômeno metajurídico
A teoria formalisto-normativista de Kelsen é
inconcebível como sujeito de Direito. Kelsen, por
identificada por Pasukanis à teoria econômica
seu turno, afirma que, dentro do campo do cha-
neoclássica, pelo fato de se apoiarem em um
mado Direito Privado, há não apenas conflitos
formalismo abstrato e em uma interpretação mate-
entre interesses individuais, mas também confli-
mática das ações econômicas, dissociadas da reali-
tos entre interesses coletivos. Se o Estado realiza
dade. Como observa Pasukanis, “a relação jurídica
uma ação executiva contra um indivíduo é porque
é, para utilizar a expressão marxista, uma relação
seu efeito sancionador visa também ao conjunto
abstrata unilateral, mas que não aparece nesta
da sociedade.
unilateralidade como o resultado do trabalho
conceitual de um sujeito pensante, mas como o Se Kelsen critica o marxismo pela sua utopia
produto da evolução social. [...] Para afirmar a exis- anárquica antiestatal, a sua crítica ao stalinismo é
tência objetiva do direito não é suficiente conhecer de outro teor, já que o problema deve-se ao forta-
o seu conteúdo normativo, mas é necessário saber lecimento do aparato estatal que ia de encontro
se este conteúdo normativo é realizado na vida pe- aos pressupostos estabelecidos por Marx, Engels
las relações sociais” (idem, p. 37; 57). e Lênin. A expressão máxima dessa contradição
do regime stalinista foi a elaboração da Constitui-
As críticas de Kelsen aos clássicos do marxis-
ção de 1936, que, ao mesmo tempo em que afir-
mo (Marx, Engels e Lênin), como também aos
mava a inexistência de uma sociedade sem con-
contemporâneos de Pasukanis (Stuchka,
tradição entre as classes sociais, fortalecia e legi-
Vyshisky, entre outros), foram amplamente ex-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 7-25 FEV. 2011

timava o papel do Estado: “O Estado soviético é, Guerra Mundial, e, em seguida, a sua tese de
segundo sua própria Constituição, a organização doutorado, A natureza das coisas e do Direito:
jurídica de sua sociedade sem classes. Parece um ensaio sobre a dialética do fato e do valor.
supérfluo dizer que essa Constituição – como qual- Nesse período, Poulantzas esteve plenamente en-
quer outra constituição – não antecipa dissolução volvido no círculo intelectual ligado à revista Les
alguma do Estado que constitui; que, como qual- Temps Modernes, de Jean-Paul Sartre, no qual se
quer outra, sustenta a sua validez por tempo ilimi- destacavam Maurice Merleau-Ponty e Simone de
tado” (idem, p. 156). Mais adiante, em uma ho- Beauvoir. As influências do marxismo
menagem implícita a seu adversário teórico e po- existencialista de Sartre, além das concepções
lítico Pasukanis, Kelsen afirma: “Mas ao se fazer historicistas de Lukács e Goldmann, foram evi-
evidente que o Estado não era só uma máquina dentes nesse seu período inicial.
coercitiva que assegurava o sistema de economia
Essa influência é nítida em seu artigo publica-
capitalista, e que demonstrava ser o instrumento
do na Les Temps Modernes em agosto-setembro
necessário para defender um sistema de econo-
de 1964: A teoria marxista do Estado e do Direito
mia socialista, não foi possível manter as tendên-
e o problema da “alternativa”. Entretanto, nesse
cias anárquicas da doutrina marxista. Em conse-
pequeno artigo pode-se encontrar elementos so-
qüência, os autores soviéticos que de boa fé havi-
bre o Estado e o Direito que serão desenvolvidos
am seguido essa direção agora indesejável foram
em obras posteriores, como Poder político e clas-
submetidos ao ostracismo. Tal foi a sorte de
ses sociais e O Estado, o poder, o socialismo.
Pasukanis, cuja teoria jurídica é só a aplicação
Poulantzas, no início desse artigo, estabelece uma
coerente da doutrina anarquista de Marx e Engels
linha de demarcação de sua posição em relação às
ao problema do direito” (idem, p. 158).
perspectivas voluntaristas sobre o Direito e o Es-
Vejamos a seguir a contribuição teórica de tado nos trabalhos de Reisner e Vishiski, que con-
Nicos Poulantzas aos conceitos de Direito e de sideram o Direito como um conjunto de normas
Estado na sociedade capitalista. emitidas pelo Estado que referendam a explora-
ção das classes oprimidas pela classe dominante,
III. O DIREITO E O ESTADO NA PERSPEC-
sendo o Estado constituindo a vontade-poder. A
TIVA DO CONFLITO, EM NICOS
outra, de tendência economicista, representada por
POULANTZAS
Stuchka e Pasukanis, considera o Direito como
A relação de Poulantzas com o Direito iniciou- sistema e ordem de relações sociais ratificada pelo
se em seu lar10. Seu pai, Aristides Poulantzas, era Estado e que corresponde, para Stuchka, aos in-
uma liderança no campo jurídico grego, exercen- teresses da classe dominante e, para Pasukanis,
do a carreira de advogado. Poulantzas ingressou mais particularmente às relações entre possuido-
na Faculdade de Direito da Universidade de Ate- res de mercadorias. Para Poulantzas, tanto uma
nas em 1953 e formou-se em 1957, sendo reco- como outra dessas tendências não parecem ter
nhecido como um aluno excelente ao receber o conseguido captar o sentido exato da pertinência
seu diploma. Embora tenha sido registrado na do nível jurídico e estatal da superestrutura
Associação de Advogados de Atenas, nunca exer- (POULANTZAS, 1969, p. 12)11. A discussão so-
ceu a profissão. Em vez disso, optou por conti- bre esse tema, para Poulantzas, tem uma finalida-
nuar estudando o Direito em nível de pós-gradua- de não somente teórica, mas, sobretudo, política,
ção na Alemanha. Residiu durante um tempo em no que concerne à transição ao socialismo nas
Munique no ano de 1960. Contudo, devido às in- sociedades industrializadas ocidentais e seus efei-
fluências do nazismo, que ainda perduravam na tos em uma estratégia e tática revolucionárias. Daí
Alemanha, mudou-se para Paris, onde lecionou a necessidade de uma análise específica da supe-
Filosofia do Direito na Universidade Pantheón- restrutura jurídica e estatal (idem, p. 11, 34).
Sorbonne. Durante esse período, ele preparou a
sua tese de pós-graduação, O renascimento do
Direito natural na Alemanha após a Segunda
11 A crítica às perspectivas voluntaristas, como a
economicista, será retomada em seus últimos textos, quan-
10 Os dados biográficos de Nicos Poulantzas foram obti- do critica as concepções do Estado-sujeito e do Estado-
dos no livro de Bob Jessop (1985). coisa (ou instrumento).

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DIREITO, ESTADO E PODER: POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN

A alternativa teórica a esses modelos tória do direito não consiste em uma investigação
voluntarista e economicista encontra-se no méto- de nenhum desenvolvimento linear do ‘jurídico’
do dialético interno-externo já desenvolvido em cujo presente nos diz as chaves de compreensão
sua tese A natureza das coisas e do Direito. Para de seu passado, cuja atualidade fosse o desdobra-
Poulantzas, é necessário considerar não apenas a mento ou a desagregação de sua essência. Trata-
lógica interna dos quatro princípios do Direito se de construir conceitos de direito segundo os
moderno (abstração, generalidade, formalismo e diversos modos de produção no interior dos quais
regulamentação, que foram desenvolvidos pelo está previamente localizado. [...] Dado que uma
positivismo jurídico de Hans Kelsen), mas tam- formação real se caracteriza por uma coexistên-
bém examinar as determinações externas desse cia histórica de vários modos de produção defini-
sistema. Internamente, é necessário investigar dos em sua pureza teórica, o nível jurídico de uma
como o sistema jurídico revela uma específica formação consiste em uma coexistência concreta
axiomatização, hierarquização de poderes e coe- de vários ‘direitos’ pertencentes teoricamente aos
rência lógica – tal como a validade das normas diversos modos de produção coexistentes. Sem
superiores sobre as normas inferiores (outro eco embargo, o que predomina por regra geral no ní-
da teoria de Kelsen). Externamente, é preciso vel jurídico, é o direito pertencente ao modo de
mostrar como esse sistema está relacionado à produção nesta formação” (POULANTZAS, 1974,
exploração das classes oprimidas por meio do p. 38-39).
poder repressivo do Estado. Complementando
Interessa a Poulantzas assinalar a importância
esse argumento, Poulantzas afirma que toda nor-
das autonomias das estruturas e a implicância que
ma ou instituição particular gerada a partir dos
há entre elas. De acordo com Poulantzas, os efei-
dados concretos da base (ponto de vista externo)
tos de uma estrutura (a econômica) sobre outra
será integrada ali adotando as características es-
(a jurídica) manifestam-se como limites que re-
pecíficas desse universo e inserindo-se em seu
gem as variações dessas estruturas, mas também
funcionamento próprio (ponto de vista interno)
o modo de intervenção de uma estrutura sobre
(idem, p. 27).
outra. A intervenção do econômico no jurídico
O trabalho seguinte de Poulantzas sobre a pro- exerce-se por meio das estruturas próprias do ju-
blemática do Direito e do Estado foi em 1967, no rídico, originadas a partir dos limites estabeleci-
artigo Sobre a teoria marxista do Direito, publica- dos pelo econômico e o conjunto da estrutura desse
do na revista Archives de Philosophie du Droit. modo. Por outra parte, Poulantzas percebe que
Nesse trabalho, já se percebe a guinada teórica de essa relação de limites e de variações não é de
Poulantzas, que abandona a concepção existenci- nenhum modo unívoca: o jurídico serve também
al-historicista de cunho humanista da sua primei- para determinar os limites do econômico no inte-
ra fase e começa adotar o léxico althusseriano rior de uma estrutura de conjunto da qual o eco-
desenvolvido nas obras A favor de Marx e Ler o nômico só em última instância manifesta-se como
Capital, como os conceitos de formação social, dominante. Dentro desses limites que o jurídico
estrutura com dominante, autonomia relativa das fixa ao econômico, tem lugar a intervenção do
estruturas, sujeito suporte, além da crítica ao con- jurídico no econômico (idem, p. 45-46).
ceito de alienação do jovem Marx (que estava pre-
Para Poulantzas, “o direito moderno
sente nos trabalhos anteriores) e a elaboração do
corresponde à exploração de classe e à domina-
conceito de individualização. Boa parte dessas re-
ção política de classe. [...] O desvendamento da
flexões sobre o Estado e o Direito será retomada
relação constitutiva do direito e da luta de classes
e sistematizada na sua primeira grande obra, Po-
só pode ser cientificamente estabelecida por sua
der político e classes sociais.
localização previa no conjunto complexo das es-
Nesse artigo, Poulantzas retoma a sua crítica truturas de um modo de produção e de uma for-
às correntes voluntaristas e economicistas do mação. Precisamente esta localização é a que nos
marxismo, embora não ofereça como “alternati- dá as chaves para a investigação de sua relação
va” o método dialético externo-interno sobre o com o campo da luta de classes” (idem, p. 49).
Direito e o Estado. A questão aqui é definir o Di-
Contudo, como observa James Martin,
reito como uma instância específica do modo de
Poulantzas gradualmente foi abandonando o Di-
produção (especialmente a capitalista) e as suas
reito como seu tema principal, substituindo-o pelo
variáveis nas distintas formações sociais: “A his-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 7-25 FEV. 2011

Estado e o seu significado teórico no modo de minantes, mas também intervir, de acordo com a
produção capitalista (MARTIN, 2008, p. 6). A conjuntura concreta, contra os interesses a longo
contribuição original de Poulantzas, a partir de prazo desta ou daquela fração da classe domi-
Poder político e classes sociais, é romper com a nante: compromissos e sacrifícios por vezes ne-
velha tradição da teoria do Estado marxista que cessários para a realização do seu interesse políti-
concebe o Estado como um instrumento sob con- co de classe. Pode-se citar como exemplo as po-
trole total das classes dominantes. Poulantzas rom- lítica sociais dos estados capitalistas que tiveram
pe com essa perspectiva ao introduzir a questão (e ainda têm) uma importância significativa desde
da autonomia relativa das instâncias no modo de o século XX (idem, p. 281).
produção capitalista, que vinha sendo desenvolvi-
Nessa sua primeira grande obra de repercus-
da por Althusser e sua escola, em relação à políti-
são internacional, ele retoma a problemática do
ca e ao Estado. Como destacou Décio Saes
Direito ao longo do livro, sobretudo no capítulo
(1998), essa problemática é tratada por Poulantzas
III, “Traços fundamentais do Estado capitalista”,
de modo distinto, ora abordando como uma ins-
e no IV, “Unidade do poder e a autonomia relativa
tância de um modo de produção, ora tratando da
do Estado capitalista”, dando-lhe um novo signi-
especificidade da autonomia relativa do econômi-
ficado. Em Poder político e classes sociais, o Di-
co e do político no modo de produção capitalista
reito (ou ideologia jurídico-política) é analisado
(MPC), ora analisando a autonomia do aparelho
enquanto uma região do nível ideológico, ao lado
estatal capitalista em relação às classes dominan-
de outras regiões da ideologia (moral, religiosa,
tes (ou bloco no poder). De qualquer forma, é
econômica, estética etc.), mas assumindo no MPC
nesse último enfoque que a teoria do Estado de
e nas formações sociais capitalistas o papel domi-
Poulantzas demarcou a sua contribuição no cam-
nante (idem, p. 204-205). Segundo Poulantzas,
po da Ciência Política.
as noções de liberdade, igualdade, direitos, deve-
Poulantzas define que a autonomia relativa do res, reino da lei, Estado de Direito, nação, indiví-
Estado capitalista diz respeito não diretamente à duos-pessoas, vontade geral, em suma, as pala-
relação das suas estruturas com as relações de vras de ordem sob as quais a exploração burgue-
produção, mas à relação do Estado com o campo sa de classe entrou e reinou na história, foram
da luta de classes, em particular a sua autonomia diretamente importadas do sentido jurídico-políti-
relativa em relação às classes ou frações do bloco co e tendo como papel decisivo a formação de
no poder e, por extensão, aos seus aliados ou su- uma casta de “juristas especializados” na elabora-
portes. Assim, essa autonomia relativa do Estado ção desse discurso ideológico. Assim sendo, a ide-
deve ser examinada na sua relação com o campo ologia jurídico-política assume o mesmo papel
da luta de classes, particularmente, da luta políti- dominante no MPC tal como foi a ideologia moral
ca de classes. Essa relação reflete de fato a rela- e filosófica no modo de produção antigo e a ideo-
ção entre as instâncias, pois dela é o efeito, e a logia religiosa no modo de produção feudal (idem,
relação do Estado com a luta política de classe p. 206). O maior efeito dessa ideologia, para
concentra em si a relação entre os níveis das es- Poulantzas, é o efeito de isolamento, porque se
truturas e o campo das práticas de classe. Ou seja: “o sagrado e a religião ligam, a ideologia jurídico-
o caráter de unidade do poder de Estado, relacio- política, em primeiro momento, separa e desliga
nado ao seu papel na luta de classe, é o reflexo do no sentido em que Marx nos diz que ela ‘liberta’
seu papel de unidade em relação às instâncias; a os agentes dos laços ‘naturais’” (idem, p. 208).
sua autonomia relativa diante das classes ou fra-
Ao isolar os indivíduos, a ideologia jurídico-
ções politicamente dominantes é o reflexo da au-
política somente os unifica no nível do discurso,
tonomia relativa das instâncias de uma formação
por meio da concepção do Estado-nação que re-
capitalista (POULANTZAS, 1977, p. 252-253).
presenta o “interesse geral” da sociedade diante
Essa autonomia relativa do Estado – seja nos os indivíduos privados. Estes, criados pela ideo-
de exceção, como o fascista ou o bonapartista, logia dominante, são apresentados como unifica-
seja nos de corte liberal – permite-lhe precisamente dos por meio de uma “igual” e “livre” participação
intervir, não somente com vista a realizar com- na comunidade “nacional”, sob a égide das clas-
promissos em relação às classes dominadas, que, ses dominantes (ou o bloco no poder), que são
a longo prazo, mostram-se úteis para os próprios consideradas como encarnando a “vontade popu-
interesses econômicos das classes e frações do- lar”. Desse modo, Poulantzas considera que a

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DIREITO, ESTADO E PODER: POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN

dominância da região jurídico-política na ideolo- que isso seja específico a essa ideologia. Para ele,
gia dominante burguesa corresponde precisamente isso é válido para toda a região dominante de uma
a essa dissimulação particular da dominação de ideologia dominante. Desse modo, a atividade eco-
classe. O impacto dessa região sobre as outras nômica das sociedades pré-capitalistas também
regiões do ideológico e, além disso, o papel políti- seria invadida pelo discurso ideológico dominante
co da ideologia burguesa dominante, consiste, daquele modo de produção (antigo, feudal, asiáti-
assim, não somente em justificar os interesses co). Se Poulantzas – partindo de Althusser – com-
econômicos diretos das classes dominantes, mas preende que o modo de produção é um todo com-
principalmente em pressupor, compor ou impor a plexo articulado com dominante, isso significa que
representação de uma “igualdade” entre “indiví- todos os níveis implicam-se mutuamente, não sen-
duos privados”, “idênticos”, “diferentes” e “iso- do redutíveis ao nível econômico que determina
lados”, unificados na universalidade política do em última instância (idem, p. 215).
Estado-nação (idem, p. 209-210). E é nesse cará-
O conceito de Direito só voltou a ser tratado
ter unificador do Estado-Nação que a tida liberda-
de modo sistemático por Poulantzas dez anos após
de do indivíduo privado dissipa-se perante a auto-
Poder político e classes sociais, quando publicou
ridade do Estado, que encarna a vontade geral.
O Estado, o poder, o socialismo, que marcou uma
Para a ideologia política burguesa, não pode exis-
virada no seu pensamento, embora muito dos pre-
tir nenhum limite de direito e de princípio à ativi-
ceitos teóricos constituídos desde Poder Político
dade e às invasões do Estado na chamada esfera
ainda se mantivessem. Nesse livro, o conceito de
do individual-privado. Isso significa para
Estado capitalista é ampliado, pois não somente
Poulantzas que o individualismo da ideologia polí-
faz parte das relações de classe na produção, ao
tica burguesa, apesar de se opor ao fenômeno “to-
separar politicamente os trabalhadores em indiví-
talitário”, o tem como seu par, caminhando lado a
duos (efeito de isolamento). Agora o Estado capi-
lado (idem, p. 213-214).
talista é ao mesmo tempo produto e modelador
Os órgãos de administração representam a das relações objetivas de classe. Assim, se o Esta-
unidade do poder de Estado, o que constitui uma do capitalista surgiu da luta de classes, ele tam-
das características da burocracia moderna, e que bém é moldado por essa luta. O Estado não é um
funciona como hierarquia de competências por sujeito com vontade autônoma, nem tampouco um
delegação do poder central. A própria relação dos instrumento de classes, mas sim uma condensação
poderes institucionais do Estado – relação conce- material das relações de forças, isto é, um campo
bida como uma “separação” dos três poderes, não de batalhas estratégico (POULANTZAS, 1978, p.
é de fato fixada no Estado capitalista, senão como 152). Além da ruptura com a estratégia leninista
uma distribuição do poder, a partir da unidade (HALL, 2000, p. xii; THOMAS, 2002, p. 76;
indivisa da soberania estatal. Assim, para CODATO, 2008, p. 82), da adoção de Rosa
Poulantzas, a unidade do Estado encontra-se “no Luxemburgo e de Pietro Ingrao na estratégia do
sistema jurídico moderno em sentido estrito esse socialismo democrático (POULANTZAS, 1978,
conjunto normativo específico, constituído a partir p. 277-295; CARNOY, 1994, p. 213-215) e de
dos ‘sujeitos do Direito’ decalcados sobre a ima- sua aproximação crítica ao conceito de poder em
gem dos cidadãos, apresenta, no mais alto grau, Foucault (JESSOP, 1985, p. 18; 320; BANDEI-
uma unidade sistemática na medida em que regu- RA, 2000, p. 238; HALL, 2000, p. xi; xvi;), esse
lamenta, por meio da lei, a unidade destes ‘sujei- livro tem um caráter premonitório, como observa
tos’” (idem, p. 274-275). Paul Thomas (2002, p. 76-77), em relação à crise
da esquerda e à ascensão do autoritarismo estatal
O fato é que para Poulantzas a ideologia jurídi-
de Reagan e Thatcher nos anos 1980.
co-política burguesa não comporta, na sua pró-
pria estrutura, limites de princípio e de direito às A questão do Direito e de sua relação com o
intervenções da instância política no econômico Estado capitalista é abordada na primeira parte do
ou no ideológico. Contudo, se essa ideologia pe- livro A materialidade institucional do Estado e,
netra e invade todas as atividades sociais, inclusi- de modo menos sistemático, na quarta parte, em
ve a atividade econômica, ao contrário do que que trata do estatismo autoritário e da ascensão
apregoam os representantes do neo-liberalismo da administração estatal. O Direito (a lei) é defini-
(Hayek e Friedmann), Poulantzas não considera do como um dos quatro elementos que formam a

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 7-25 FEV. 2011

materialidade institucional do Estado, ao lado da classes e grupos dirigentes entram em “curto cir-
divisão de conhecimento e poder, da cuito” e não conseguem mais controlar os seto-
individualização e da nação. Poulantzas, ao co- res subalternos, como entendem Gramsci e
locar o Estado em relação com as relações de pro- Althusser12. Para Poulantzas, a violência legal as-
dução e a divisão social do trabalho, “nada mais é sume outro papel porque ela “sustenta permanen-
que primeiro momento certamente diferenciado, temente as técnicas do poder e os mecanismos
de um único e mesmo processo: o de relacionar o do consentimento, está inscrita na trama dos dis-
Estado com o conjunto do campo de lutas” positivos disciplinares e ideológicos, e molda a
(POULANTZAS, 1978, p. 54). materialidade do corpo social sobre o qual age a
dominação, mesmo quando a violência não se exer-
Poulantzas concorda com Kelsen na definição
ce diretamente” (idem, p. 88) Assim sendo, a vio-
de que o Estado de Direito não pode ser definido
lência física organizada torna-se na sociedade ca-
como o limite ao autoritarismo estatal, pois foi
pitalista a condição de existência e a garantia da
por intermédio do Estado moderno que as ações
reprodução. À medida que a sociedade civil
repressoras dos aparelhos de Estado obtiveram
desmilitariza-se e desarma-se, o conflito entre os
maior precisão e eficácia devido a sua ação racio-
setores dominados e dominantes desloca-se para
nal ser instituída em lei. A definição liberal do Es-
outros campos de lutas, como as organizações
tado de Direito nada mais é que um efeito ilusório
políticas e sindicais. Portanto, de um estado de
do discurso político-jurídico. Toda forma estatal,
guerra civil permanente, de conflitos armados, os
mesmo a mais totalitária, como o nazismo ale-
novos tipos de organização dissimulam essa guerra
mão, edificou-se por intermédio da lei e da
abertamente física para o campo da legalidade.
racionalidade jurídica.
Essa monopolização da força pelo Estado capita-
Logo, essa suposta cisão entre lei e violência é lista somente é legítima devido ao fato de que a
falsa, segundo Poulantzas, principalmente no Es- regulamentação jurídica e a estrutura legal permi-
tado moderno. Retomando Weber e argumentos tem a todos os setores organizados legalmente o
já iniciados em Poder político e classes sociais acesso ao poder (pelo menos no sentido formal
(1977, p. 211-212), Poulantzas afirma que, dife- das leis).
rentemente dos Estados pré-capitalistas, é o Esta-
A lei, cabe destacar, não assume um papel pu-
do moderno que detém o monopólio legal do uso
ramente negativo da ordem física: ela também é
da violência como também do monopólio da guer-
um conglomerado de interditos e censura. A lei
ra. A lei é o código da violência pública organiza-
impõe o silêncio ou deixa dizer (a prestar jura-
da, ou seja, a lei é parte integrante da ordem re-
mento, a denunciar etc.). Segundo Poulantzas, é
pressiva e da organização da violência por todo o
falsa a separação entre leis positivas e negativas,
Estado. Portanto, “o Estado edita a regra, pro-
pois a lei organiza o campo repressivo como re-
nuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campo
pressão daquilo que se faz quando a lei proíbe e
de injunções, de interditos, de censura, assim cri-
também como repressão daquilo que não se faz
ando o terreno para a aplicação e o objeto da vio-
quando a lei obriga que se faça. Destarte, a re-
lência” (POULANTZAS, 1978, p. 84).
pressão jamais é pura negatividade: não se esgota
Poulantzas considera, então, que o Estado e a nem no exercício efetivo da violência física, nem
sociedade moderna, longe de serem antagônicos em sua interiorização. Há na repressão outra coi-
ao exercício da força, estão completamente asso- sa, a qual raramente se analisa: os mecanismos do
ciados a ela, tanto do ponto de vista material como medo. Isso significa que, no plano imaginário, a
simbólico. É o caso de ressaltar que a formação violência estatal sempre está presente quando a lei
do exército nacional tem a mesma origem da es- é acionada sobre os sujeitos.
cola moderna. Não foi casual que o exército naci-
Outro aspecto destacado por Poulantzas so-
onal foi o modelo organizacional para a formação
bre a lei é que esta também é igualmente eficaz
da burocracia estatal moderna (idem, p. 89).
nos dispositivos de criação do consentimento.
A violência física monopolizada pelo Estado Poulantzas faz uma crítica ao conceito de “poder
moderno tem um lugar determinante, mas isso não
se deve ao fato dela somente ser utilizada em últi-
ma instância, quando as instituições (ou apare- 12 Ver Gramsci, Maquiavel, a política e o estado moderno
lhos ideológicos) que formam a hegemonia das (1980), e Althusser, Positions (1976).

19
DIREITO, ESTADO E PODER: POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN

simbólico”, de Bourdieu, na medida em que este alguma lei eterna, seja ela originária de um interdi-
estaria desprezando a violência física e apenas se to universal ou de uma lei natural” (idem, p. 94).
preocuparia em relação ao consentimento. Apesar
A lei moderna, para Poulantzas, portanto, ocupa
de suas diferenças, pode-se encontrar uma con-
um papel central na organização da reprodução
vergência entre Poulantzas e Bourdieu a respeito
das relações de poder da sociedade. A legitimida-
dessa questão. Para Bourdieu, o universo jurídico
de do poder desloca-se em direção à legalidade, o
é relativamente independente e o Estado moderno
que a distingue da legalidade organizada com base
é definido como o detentor do monopólio da vio-
no sagrado. A lei torna-se a categoria fundamental
lência simbólica legítima, que pode ser combina-
da soberania do Estado: a ideologia jurídico-polí-
da com o uso da força física. O Direito racional
tica suplanta a ideologia religiosa. A função de le-
moderno possui uma eficácia simbólica por ser
gitimidade desloca-se em direção à lei, instância
reconhecido como legítimo e ignorado como ar-
impessoal e abstrata. A lei torna-se a “encarnação
bitrário (BOURDIEU, 1989, p. 225). Poulantzas
da Razão: é nas formas do Direito e da ideologia
não se distancia muito de Bourdieu quando afirma
jurídica que se conduz a luta contra a Religião, e
que a lei tem um papel-chave na criação de con-
nas categorias jurídicas é que pensam as ciências
sentimento, não se atendo apenas à repressão fí-
físicas da Idade da Luz. A lei abstrata, formal,
sica, como fica claro nesse parágrafo: “A lei- re-
universal, é a verdade dos sujeitos, é o saber que
gra, por meio de sua discursividade e textura,
constitui os sujeitos jurídicos-políticos e que ins-
oculta as realidades político-econômicas, compor-
taura a diferença entre o privado e o público”
ta lacunas e vazios estruturais, transpõe essas re-
(idem, p. 98).
alidades para a cena política por meio de um me-
canismo próprio de ocultação- inversão. Traduz A lei torna-se o discurso oficial do Estado
assim a representação imaginária da sociedade e moderno e, ao mesmo tempo, é esse discurso que
do poder da classe dominante. A lei é, sob esse organiza a materialidade institucional desse Esta-
aspecto, e paralelamente a seu lugar no dispositi- do, sobretudo por intermédio do Direito Adminis-
vo repressivo, um dos fatores importantes da or- trativo, que por ser um sistema de normas gerais,
ganização do consentimento das classes domina- abstratas, formais e axiomatizadas, tem a função
das, embora a legitimidade (o consentimento) não de organizar e regular as relações entre os esca-
se identifique nem se limite à legalidade” lões e aparelhos impessoais de exercício de po-
(POULANTZAS, 1978, p. 92). der. Todo agente do Estado (parlamentares, juízes,
fiscais, diplomatas, defensores públicos, promo-
Retomando o argumento de Poder político e
tores, advogados, policiais, assistentes sociais,
classes sociais sobre o Estado de Direito liberal
assessores etc.) é um intelectual (na acepção
conviver com as ações arbitrárias (quando não
gramsciana), visto que é um homem da lei, que
totalitárias), isso se explicaria pelo fato de que a
conhece as leis e as regras porque as aplica e as
ação do Estado em muito ultrapassa a lei ou a re-
materializa. O tratamento que esses agentes do
gulamentação jurídica. Significa que o Estado age
Estado dão à população demarca uma forma de
também transgredindo a lei-regra que edita, o que
poder-saber, pois sempre cobram do cidadão o
vem a se denominar de razão de Estado. Isso quer
conhecimento das leis e das regras jurídicas: “Nin-
dizer que a legalidade traz no seu bojo “apêndi-
guém é ignorante da lei”. Essa máxima destacada
ces” de ilegalidade, e que a ilegalidade do Estado
por Poulantzas exprime a dependência-subordi-
está sempre inscrita na legalidade que o institui.
nação da população que ignora seus direitos dian-
Assim sendo, a ilegalidade é freqüentemente parte
te dos funcionários públicos que detém esse co-
da lei e, mesmo quando ilegalidade e legalidade
nhecimento. A lei moderna torna-se, então, um
são distintas, não englobariam duas organizações
segredo de Estado.
separadas, espécie de Estado paralelo (ilegalida-
de) e de Estado de Direito (legalidade). Ilegalidade Esse conhecimento jurídico por parte dos
e legalidade fazem parte de uma única e mesma agentes de Estado não é casual, mas faz parte da
estrutura institucional. Como afirma Poulantzas, materialidade institucional do Estado capitalista.
“a ação do Estado sempre ultrapassa a lei pois o O conhecimento do Direito não é exclusivo aos
Estado pode, dentro de certos limites, modificar operadores do Direito, mas a qualquer agente es-
sua própria lei. O Estado não é a simples figura de tatal, na medida em que está sujeitado às normas

20
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 7-25 FEV. 2011

do Direito Administrativo (outra ressonância de inteiramente, pois os subconjuntos ideológicos dos


Kelsen). Ademais, o Estado capitalista coopta ou- setores dominados estão também cristalizados sob
tras formas de saber para além do conhecimento a dominância dessa ideologia, nas instituições do
jurídico. Com efeito, como afirma Poulantzas, o Estado.
Estado capitalista demarca uma rigorosa distin-
Contudo, isso não significa que os agentes do
ção com as formas de poder precedentes, pelo
Estado identificados com as demandas das clas-
seu caráter impessoal, anônimo, formal e especi-
ses populares adotem uma postura radical nas suas
alizado, isto é, em outras palavras, o Estado ca-
práticas no interior do Estado. Para Poulantzas,
racteriza-se por um conjunto de práticas que re-
os agentes de Estado que pendem para as massas
produzem um domínio de saber no qual grande
populares vivem comumente suas revoltas nos
parcela da população está excluída.
termos da ideologia dominante, tal como ela se
Poulantzas, de fato, converge com Kelsen na corporifica na ossatura do Estado. O que quase
crítica da impossibilidade da vontade geral sempre os coloca contra os setores dominantes e
rousseauniana no Estado moderno, como já visto as esferas superiores do Estado é que a domina-
em Poder político e classes sociais. Porém, em O ção de grandes interesses econômicos sobre o
Estado, o poder, o socialismo, Poulantzas acen- Estado põe em questão seu papel de garantia da
tua essa questão ao realçar as contradições do bloco “ordem” e da “eficácia” socioeconômica, destrói
do poder e a forma como elas atravessam os di- a “autoridade” estatal e o sentido das tradicionais
versos ramos e aparelhos de Estado, a burocra- hierarquias no seio do Estado. Eles interpretam o
cia. Muito mais do que um corpo de funcionários aspecto, por exemplo, de uma democratização do
e de pessoal de Estado unitário e cimentado em Estado não como uma intervenção popular nos
torno de uma vontade política unívoca, lida-se com negócios públicos, mas como uma restauração de
feudos, clãs, diferentes facções, em suma, com seu próprio papel de árbitros acima dos conflitos
uma multidão de micropolíticas diversificadas. A sociais. Eles reivindicam uma “descolonização” do
política de Estado é “certamente decifrável como Estado em relação aos grandes interesses econô-
cálculo estratégico embora mais como resultante micos, o que significa que o Estado assuma seu
de uma coordenação conflitual de micropolíticas próprio papel político. Assim, mesmo os agentes
e táticas explícitas e divergentes, do que como estatais que se inclinam para as massas populares
formulação racional de um projeto global e coe- não apenas não colocam em questão a reprodu-
rente” (idem, p. 149). ção da divisão social do trabalho no interior do
Estado – a burocratização hierarquizada –, mas,
Poulantzas também ressalta que as contradi-
além disso, geralmente não dão importância à di-
ções e os conflitos sociais inscrevem-se no seio
visão política dirigentes-dirigidos enraizada nas
do Estado por meio também das divisões internas
instituições estatais (idem, p. 170-174).
no seio do pessoal de Estado em amplo sentido
(administração, judiciário, militares, policiais etc.), Outro aspecto teórico sobre o Estado moder-
o que o diferencia da concepção de Estado homo- no que distingue Poulantzas de Kelsen é a respeito
gêneo e sem fissuras de Kelsen. Mesmo se esse dos conceitos de tempo e espaço, visto que dis-
pessoal constitui uma categoria social detentora tintamente do modelo kelseniano, que generaliza a
de uma unidade própria, efeito da organização do aplicação desses conceitos a qualquer tipo de Es-
Estado e de sua autonomia relativa, ele não deixa tado, sem delimitá-lo historicamente, Poulantzas
de ter um lugar no conflito social e é, então, divi- demarca uma descontinuidade do Estado capita-
dido. Se as contradições dos setores dominantes lista em relação aos Estados precedentes. Para
refletem-se nos agentes de Estado, as pressões Poulantzas, não obstante houvesse diferenças en-
dos setores populares, e suas contradições, tam- tre as matrizes espaciais das sociedades antigas e
bém os atingem já que se encontram presentes na feudais, ambas possuíam traços em comum quan-
ossatura do Estado capitalista. Decerto que o Es- do comparadas à matriz espacial capitalista. Elas
tado reproduz e inculca uma ideologia de neutrali- apresentavam um espaço contínuo, homogêneo,
dade, de representar uma vontade e interesses simétrico, reversível e aberto. Por sua vez, a ma-
gerais, de árbitro dos conflitos sociais. É a forma triz espacial moderna é um espaço serial,
que reveste a ideologia dominante no seio das ins- fracionado, descontínuo, parcelário, celular e
tituições estatais: mas esta ideologia não domina irreversível, que é específico da divisão taylorista

21
DIREITO, ESTADO E PODER: POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN

do trabalho em cadeia na fábrica. Esse espaço descontinuidade em relação às matrizes preceden-


matricial, portanto, é feito de distâncias, de bre- tes, haja vista que ela possui novas relações de
chas, de fracionamentos em série, de paliçadas e produção e uma divisão social do trabalho mais
fronteiras, mas não tem fim; o processo de tra- complexa. A tecnologia, a indústria, o trabalho em
balho capitalista é tendencialmente globalizável série implicam um tempo segmentado, serial e di-
(cooperação ampliada). Esse processo inscreve- vidido em momentos iguais, cumulativo e
se num espaço novo que, precisamente, implica irreversível porque “é direcionado para o produto
as segmentações seriais e balizamentos. Logo, o e, por meio dele, para a reprodução ampliada, a
espaço moderno é um espaço no qual se desloca acumulação de capital; em outras palavras, um
infinitamente atravessando as separações, onde processo de produção e de reprodução que tem
cada lugar define-se pelo seu isolamento dos ou- um objetivo e uma finalidade, mas não possui fim.
tros, espaço sobre o qual se expande, assimilan- Um tempo mensurável e estritamente controlável
do novos segmentos que ele homogeneíza, des- pelos relógios, cronômetros dos contra-mestres,
locando as fronteiras. Como observa Poulantzas, pelos relógios de ponto e calendários precisos”
“o que é importante, não é esse deslocamento de (idem, p. 121).
fronteiras, mas o aparecimento de fronteiras no
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
sentido moderno do termo, i. e., de limites
deslocáveis sob uma trama serial e descontínua Como vimos no decorrer desse texto, há de
que fixa em todo lugar o dentro e o fora” (idem, fato pontos convergentes entre Poulantzas e Kelsen
p. 115). no tocante ao significado de determinados con-
ceitos do campo político e jurídico constituídos
Destarte, a matriz espacial moderna é o prin-
na modernidade, como “soberania popular”, “von-
cípio da constituição do território nacional sob a
tade geral”, “separação de poderes”, a linguagem
forma do Estado-nação. O território nacional não
jurídica dos agentes estatais, a desvinculação do
pode ser definido apenas pela extensão do solo
conceito de Estado de Direito da sua acepção li-
nacional, mas, sobretudo, pela materialização do
beral clássica e do conceito filosófico de justiça e
Estado moderno em seus aparelhos (exército, es-
de sua identificação como força repressiva no as-
cola, burocracia centralizada, prisões). Poulantzas
pecto normativo. Entretanto, as semelhanças ter-
chama atenção à questão de que os campos de
minam quando Poulantzas afirma que a constitui-
concentração são frutos do Estado moderno no
ção das normas está relacionada à região ideológi-
exercício do seu poder. A modernidade dos cam-
ca jurídico-política da superestrutura do modo de
pos de concentração deve-se ao fato de que ma-
produção capitalista, ou quando trata o Estado não
terializam a mesma matriz espacial de poder que o
como um conceito homogêneo, impermeável às
território nacional. Esses campos são a forma de
contradições e aos conflitos da sociedade, mas
reclusão dos excluídos da nação, “antinacionais”,
sim como algo heterogêneo, permeado de fissuras
“estrangeiros”, no interior do próprio território
e de contradições, constituído pela divisão social
nacional, isto é, são constituídas fronteiras den-
do trabalho e atravessado pela lutas de classes.
tro do Estado-nação. Daí a noção moderna de “ini-
Em suma, uma arena de conflitos e de batalhas
migo interno”.
estratégicas. E esses aspectos parecem ser igno-
Outro elemento fundamental na constituição rados por David Easton em sua afirmação com-
do Estado moderno diz respeito à matriz temporal parativa. De fato, como observa Jessop (1985, p.
e à noção de historicidade. Apesar das distinções 45-46), a influência de temas kelsenianos na teo-
entre as matrizes temporais antiga e feudal, ambas ria do Estado e do Direito na fase sartreana de
apresentavam traços comuns devido à sua repro- Poulantzas sobreviveram na sua fase posterior sob
dução simples, e não ampliada como nas socieda- influência de Althusser, como em Poder político
des capitalistas. Suas matrizes temporais eram de e classes sociais, quando afirma que a unidade do
tempos plurais e singulares; porém cada um des- Estado capitalista deriva da ordem legal soberana.
ses tempos era contínuo, homogêneo, reversível Embora essa influência também esteja presente
e repetitivo. Não existia nem sucessão, nem co- em O Estado, o poder, o socialismo, Poulantzas
nexões, nem acontecimentos. É o tempo presen- demarca uma profunda distinção com Kelsen, pois
te que atribui seu sentido ao antes e ao depois. Já enquanto para este o Direito é igual ao Estado e é
a matriz temporal moderna marca uma completamente autônomo da sociedade,

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 7-25 FEV. 2011

Poulantzas afirma que o Estado como objeto te- e os neoliberais, ou neolibertários, como Michael
órico é uma instância política com autonomia Hardt e Antonio Negri em seu livro Império, nos
relativa em relação às outras instâncias que com- dias de hoje.
põem o modo de produção capitalista, como
É paradoxal o fato de que as análises de
também em sua última fase intelectual, quando
Poulantzas sobre a relação entre o Direito e o Es-
define o Estado como um espaço de lutas de
tado moderno tenham sido pouco discutidas no
poder entre as classes sociais, além do Direito
meio acadêmico diante de outros autores, como
ser definido como um dos elementos que com-
foi o caso de Foucault nos anos 1980 e de
põem o Estado capitalista. Ademais, o Estado
Habermas e Rawls a partir dos anos 1990, levan-
capitalista é percebido como uma unidade con-
do em conta que a nossa matriz jurídica da civil
traditória da legalidade e ilegalidade, e que ele
law foi o alvo principal da análise de Poulantzas.
mesmo infringe a sua própria legalidade, algo
Por outro lado, sua teoria é de grande valia quan-
que não seria cabível na dogmática racionalista
do tratamos hoje da chamada “judicialização” da
do Direito (e, conseqüentemente, do Estado) de
política e das relações sociais e de seus atores
Kelsen.
institucionais como o Ministério Público, a
O desenho do Estado moderno que Poulantzas Defensoria Pública, a Magistratura, entre outros,
sugere em O Estado, o poder, o socialismo vai de pois Poulantzas fornece-nos meios teóricos de
encontro à pirâmide normativa formulada por compreensão das lutas internas entre os aparatos
Kelsen. Enquanto para Kelsen o Estado configu- estatais (poderes Executivo, Judiciário, Legislativo)
ra-se como um triângulo no qual demarca o po- como também dos conflitos internos em cada
der das normas, do topo sobre a base, o desenho aparato estatal.
esboçado por Poulantzas assemelha-se mais a um
A teoria do Estado e do Direito de Poulantzas,
retângulo pontilhado por núcleos e focos de po-
portanto, ainda está na ordem do dia e ainda re-
der real situados em lugares estratégicos dos di-
presenta uma significativa importância para tra-
versos aparelhos de Estado, e entre os quais se
tarmos dos conflitos cada vez mais complexos
deslocam. Contudo, uma convergência que não
entre o Estado e a sociedade e, sobretudo, dentro
se pode negar em ambos os autores é o fato de
do Estado. E cabe principalmente aos cientistas
tratarem o Estado como um conceito central em
sociais identificados com a sua teoria desenvol-
suas obras, ao contrário de diferentes perspecti-
verem-na para refletir e analisar os conflitos vi-
vas teóricas que insistiram em negá-lo, ou
gentes hoje e os de amanhã.
desprezá-lo, como fez Easton no passado recente

Luiz Eduardo Motta (luizpmotta@ig.com.br) é Professor de Ciência Política na Universidade Federal do


Rio de Janeiro (UFRJ).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 295-300 OUT. 2010
ABSTRACTS

LAW, STATE AND POWER: POULANTZAS AND HIS CONFRONTATION WITH KELSEN
Luiz Eduardo Motta
The Theory of the State, in the field of Political Science, has undergone moments of crisis, particularly
in the passage from the 1980s to the 1990s, when exponents of certain intellectual currents argued that
the Nation-State and state institutions were losing their central position as objects of analysis. The
present article counters this argument and attempts a comparative analysis of two of the most systematic
authors who dealt with the concept of the modern State and its relationship with modern Law: Hans
Kelsen and Nicos Poulantzas. Our point of departure is the analogy was established between the two
by David Easton, in his article, “The Political System under State Siege”, in which he identifies
Poulantzas’ Marxist work with Kelsen’s systemic and normative work on Law and the State. In fact,
paradoxically, Poulantzas may be seen as in agreement with many aspects of Kelsen’s critique of
liberal thought (a school to which the latter is in fact affiliated) as well as with his definition of the State
of Law as the antithesis of authoritarian States.. Yet despite this convergence, the differences between
Poulantzas and Kelsen are representative of two distinct forms of political and theoretical treatment of
the concepts of Law and the State. For Kelsen, the State is impermeable, not riven by internal
contradictions or fissures, while for Poulantzas, the State is defined as a strategic field of struggles,
permeated by micro-policies and contradictions. The present article consists of an introduction, which
is then followed by two sections that present a synthesis of Kelsen’s and Poulantzas’ positions on the
role of the modern State and the Law, and providing a concluding section in which the major points of
agreement and disagreement in the work of these authors are pointed out.
KEYWORDS: Nicos Poulantzas; Hans Kelsen; Law; the State; Power.
* * *
SCHUMPERIAN MINIMALISM, ECONOMIC THEORY OF DEMOCRACY AND
RATIONAL CHOICE
Ricardo Borges Gama Neto
Democracy is one of the most widely-discussed themes in Political Science. There is unanimous
agreement regarding the legitimacy of the democratic regime in the face of those that oppose it.
Nonetheless, if there is consensus on the defense of democracy, there is no analogous consensus
regarding what the concept really means. Debate on the theme re-emerges as a consequence of
the crisis of political representation in countries where democracy has been consolidated, of the fall
of authoritarian regimes in eastern Europe, Asia and Latin America and the incertainties surrounding
consolidation of democratic regimes. This article analyzes some of the inflections that are present in
democratic theory, particularly on issues that involve the relationship between democracy, the logic
of collective action, political representation, interest and accountability. We begin by presenting
Max Weber’s influence on Joseph Schumpeter’s theory of democracy, followed by the bases of his
minimalism, his influence on Robert Dahl’s pluralism, the paradoxes of the logic of collective action
and of economic theory of democracy. We then go on to particular aspects of concepts of political
representation, responsibility, interest, forming of preferences and general will. We find that the
meaning of political representation has become increasingly complex, particularly because its practice
has not been consonant with the “ideal of popular representation in politics” that is characteristic of
democratic utopia. There is a clear hiatus between the demand for more representation and how in
fact the latter materializes within society. Nonetheless, we argue that, notwithstanding all the criticisms
it has received, democracy as a system of government survives under different social and historical
conditions and this happens because all democratic regimes share one common feature: representative
institutions. Without them, democracy is a mere fiction.
KEYWORDS: Democracy; Minimalism; Political Representation; Accountability.
* * *
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 303-309 OUT. 2010
RESUMES

DROIT, ETAT ET POUVOIR: POULANTZAS ET LES CONFRONTATIONS AVEC KELSEN


Luiz Eduardo Motta
La Théorie de l’Etat, dans le domaine de la Science Politique, a vécu de moments de crise, en
particulier entre les années 1980 et 1990, quand certains courants intellectuels indiquaient que l’Etat-
nation et les institutions de l’Etat cesseraient d’occuper un rôle central comme objet d’analyse. Cet
article va à l’encontre de cette position et vise établir une analyse comparative de deux des auteurs
les plus systématiques qui ont abordé le concept d’Etat moderne et de la relation de celui-ci avec le
Droit moderne: Hans Kelsen et Nicos Poulantzas. Le point de départ est l’analogie établie entre
tous les deux par David Easton, dans son article “Le système politique assiégé par l’Etat”, qui
identifie l’œuvre marxiste de Poulantzas avec la théorie systémique et normative de Kelsen sur le
Droit et l’Etat. En effet, paradoxalement, Poulantzas converge en beaucoup d’aspects avec Kelsen
quand il critique la pensée libérale (dont Kelsen est un affilié) et quand il définit que l’Etat de Droit
serait l’antithèse des Etats autoritaires. Mais, malgré ces convergences, les différences entre
Poulantzas et Kelsen délimitent deux formes distinguées dans l’approche théorique et politique sur
les concepts de Droit et Etat. Pour Kelsen, l’Etat est imperméable, sans contradictions ni fissures
internes, alors que pour Poulantzas, l’Etat est défini comme un domaine stratégique de luttes, imprégné
de micro-politiques et de contradictions. L’article est composé par une introduction, suivie de deux
sections qui systématisent les principales définitions de Kelsen et Poulantzas sur le rôle de l’Etat
moderne et du Droit moderne; et encore une conclusion, qui délimite les aspects convergents et
divergents entre les deux auteurs.
MOTS-CLES: Nicos Poulantzas; Hans Kelsen; Droit; Etat; pouvoir.
* * *
LE MINIMALISME DE SCHUMPETER, THEORIE ECONOMIQUE DE LA DEMOCRATIE
ET DU CHOIX RATIONNEL
Ricardo Borges Gama Neto
La démocratie est l’un des thèmes les plus discutés dans la Science Politique. Il existe une unanimité
autour de la legitimité du régime démocratique vis-à-vis ses opposants. Toutefois, si la défense de la
démocratie est consensuelle, la même concordance sur son significat n'existe pas. Le débat sur le
thème resurgit comme une conséquence de la crise de la représentation politique dans les pays de
démocratie consolidée, de la faillite des régimes autoritaires dans les pays de l’Est Européen, Asie
et Amérique Latine et des incertitudes par rapport à la consolidation des régimes démocratiques.
L'article analyse certains points d'inflexion existants dans la théorie démocratique, particulièrement
les questions concernant la relation entre la démocratie, la logique de l’action collective, la
représentation politique, l’intérêt et la reddition de comptes. Il commence par présenter l’influence
de Max Weber sur la théorie de la démocratie de Joseph Schumpeter; après, il présente les fondements
du minimalisme, son influence sur le pluralisme de Robert Dahl, les paradoxes de la logique de
l'action collective et la théorie économique de la démocratie, en citant aussi certains aspects des
concepts de la représentation politique, la responsabilisation, l’intérêt, la formation de préférences
et la volonté générale. On affirme que le sens de la représentation politique devient de plus en plus
complexe, spécialement parce que sa pratique ne s'allie pas avec “l'idéal de la représentation populaire
dans la politique”, caractéristique de l’utopie démocratique. Il y a une lacune entre l’exigence pour
plus de représentation et comment elle existe en effet dans la société. Toutefois, l'article défend
que, malgré toutes les critiques qu’elle reçoit, la démocratie tant que système de gouvernement
survit sous diverses conditions sociales et historiques différentes, et cela se produit parce que il y a
quelque chose de commun dans tous les régimes démocratiques : des institutions représentatives.
Sans ces institutions, l’existence des démocraties ne serait pas possible.

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