You are on page 1of 5

CONFLUENZE Vol. 5, No.

Chiziane, Paulina, Balada de amor ao vento. 5. ed.


Maputo, Ndjira, 2010
 
Ana  Paula  Pertile  
UNIVERSIDADE  FEDERAL  DE  SANTA  MARIA

Uma narrativa peculiar. Assim poderiam ser caracterizados os romances


de uma mulher negra que escreve em língua portuguesa na África Austral. Esse
estranhamento, que já poderia ser suficientemente compreendido por se tratar de
uma autora que constrói suas narrativas a partir de um ponto de vista marcado
pela experiência feminina, igualmente se justifica pela retratação, através da
obra, de uma cultura que é extremamente diferente da Ocidental. Essa é Paulina
Chiziane, uma escritora moçambicana.
Nascida em 1955, na província de Gaza, no sul de Moçambique, uma
região fortemente patriarcal, Paulina Chiziane mudou-se aos sete anos com a
família para os subúrbios da antiga capital colonial, a cidade de Lourenço
Marques, atual Maputo. De família protestante em que se falavam as línguas
chope e ronga, aprendeu a língua portuguesa apenas quando ingressou na escola.
Anos mais tarde, iniciou seus estudos em linguística na Universidade Eduardo
Mondlane, também em Maputo, sem os concluir.
Na juventude, a escritora participou ativamente da vida política de
Moçambique: foi membro da Frente de Libertação Moçambicana (FRELIMO) e,
aos vinte anos, “cantou o hino de independência moçambicana” (Gonçalves,
2012). No entanto, as frouxas políticas de combate à poligamia e a consequente
aceitação desta como característica da cultura nacional no combate à monogamia
do “homem branco” pela FRELIMO desiludiram-na de continuar na vida
partidária. Assim, trocou a militância da juventude pelo auxílio à Cruz
Vermelha, e dedicou-se à carreira de escritora.
Seus livros não refletem a situação bélica pela luta de independência,
como esperado e de costume em outras narrativas de autores de África; refletem,
além das experiências vividas pela autora como membro da Cruz Vermelha, a
desilusão frente à miséria de uma nação regida por tradições arcaizantes e
vitimada por uma cultura generalizante, imposta pelo olhar do colonialismo. Seu
livro de estreia, que já teve cinco edições, foi também o primeiro romance de
autoria feminina moçambicano. Balada de amor ao vento (1990) é, então,
responsável por dar voz à personagem Sarnau, uma moçambicana
subalternizada e sujeita às leis tradicionais e aos revezes da poligamia.
Outras personagens femininas promovidas à condição de narradoras por
Paulina Chiziane foram Minosse e Wusheni, em Ventos do apocalipse (1993); Vera,
em O sétimo juramento (2000); Rami, em Niketche: uma história de poligamia (2002), e
Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta – mulheres de diferentes
gerações de uma mesma família –, em O alegre canto da perdiz (2008). Dentro desta
vasta produção narrativa, a escritora recebeu, em 2003, ex-aequo, o Prêmio José
Craveirinha de Literatura pelo romance Niketche: uma história de poligamia, ao lado

“Finestre” 144
CONFLUENZE Vol. 5, No. 2

de Mia Couto. O romance Niketche é o único romance da autora publicado no


Brasil (pela editora Companhia das Letras, em 2004).
Embora autora de cinco romances publicados, Paulina Chiziane recusa a
posição de romancista, autodenominando-se uma contadora de histórias, talvez por
considerar as influências da tradição oral em suas narrativas. Fruto de sua
experiência com a oralidade é seu primeiro romance, Balada de amor ao vento
(1990), em que “recupera as histórias dos rongas e dos chopes” (Gonçalves, 2012),
as origens genealógicas da própria autora. Balada de amor ao vento (2010) conta a
história de amor entre Sarnau e Mwando, a partir do foco narrativo da
personagem Sarnau, que relata as desventuras às quais se submeteu para viver o
amor de sua vida e que a levou da realeza e da riqueza à miséria: “venceu-me a
carne, venceu-me o coração, sou apenas a escrava do sentimento que é mais forte
do que eu” (Chiziane, 2010, p. 97). Assim, a personagem-narradora recupera o
passado e inicia a narrativa reconstruindo a sua trajetória desde o dia em que
conheceu o objeto de seu amor, o jovem Mwando.
Na festa em comemoração à passagem de Mwando à maioridade, Sarnau
investe em uma aproximação mais íntima entre os dois. Ele, seminarista, acaba
sucumbindo aos desejos carnais, e consequentemente redimensiona seu futuro e
o dela. A educação cristã, no entanto, impede Mwando de unir-se em
matrimônio com alguém que não tenha sido educado dentro dos mesmos
preceitos. Sarnau é, pois, abandonada grávida, e Mwando casa-se com Sumbi
para viver um casamento monogâmico sob as bases cristãs. Desolada, Sarnau
tenta o suicídio e acaba por abortar o filho que esperava dele.
Na ausência de Mwando, Nguila, herdeiro da tribo Zucula, lobola Sarnau
como sua primeira esposa. O entendimento das relações geradas pelo ato do
lobolo é de fundamental importância para a compreensão do livro. Nas tradições
autóctones dos povos bantu da África Austral, ele é uma complexa relação de
troca de favores entre tribos. A oferta do lobolo implica a compensação à tribo da
mulher lobolada pela perda do ventre feminino, capaz de gerar descendentes, bem
como pela perda, pela família da noiva, da força de trabalho que a mesma
representa junto ao seu núcleo familiar. Mas, via de regra, o lobolo recebido pelo
casamento de uma filha representa a possibilidade de pagamento do lobolo para o
casamento de um irmão (ou mesmo de vários) da jovem lobolada. Há uma troca
de valores simbólicos entre clãs, e a manutenção do casamento é de extrema
importância, pois a separação de um implica a devolução do dote/lobolo que, na
maioria das vezes, foi subsídio para outro casamento, gerando uma separação
matrimonial em série.
Assim é descrito o lobolo, na voz de Sarnau:

- Meu pai, minha mãe, meus avós e todos os defuntos. Aceitei esta oferta, esta
humilhação, que é o testemunho da minha partida. Vou agora pertencer à outra
família, mas ficam estas vacas que me substituem1. Que estas vacas lobolem mais
almas, que aumentem o número da nossa família, que tragam esposas para este
lar, de modo que nunca falte água, nem milho, nem lume (Chiziane, 2010, p. 39).

Fica muito evidente, nesta passagem, o tipo de tratamento destinado às


mulheres neste contexto: objetificadas, as mulheres servem apenas para

1
O lobolo de Sarnau, em especial, representou o ressarcimento de trinta e seis vacas ainda não
paridas à sua família, um valor realmente alto se comparado ao de uma proposta de lobolo
regular.
 

“Finestre” 145
CONFLUENZE Vol. 5, No. 2

reproduzir e para trabalhar nas machambas2, a fim de gerar o sustento da família.


Desse modo, os parâmetros de avaliação da beleza feminina, nas culturas
campesinas tradicionais, baseiam-se na capacidade feminina de, a partir do
trabalho braçal, garantir a produtividade da machamba. A esse respeito, é
sintomática a constatação da narradora quanto ao papel da mulher:

É como vos digo, cada mundo tem a sua beleza. No campo é mais belo o rosto
queimado de sol. São belas as pernas fortes e musculosas, os calcanhares
rachados que galgam quilómetros para que em casa nunca falte água, nem milho,
nem lume. São mais belas as mãos calosas, os corpos que lutam ao lado do sol, do
vento e da chuva para fazer da natureza o milagre de parir a felicidade e a
fortuna (Chiziane, 2010, p. 41).

A protagonista do romance parte, então, para o curral, isto é, o ambiente


de poligamia (que assim é denominado por Sarnau), uma vez que nele a
protagonista é submetida às agressões do marido violento e à convivência com
outras quinze mulheres, esposas do rei, pai de Nguila. Sob os encargos de
primeira esposa do futuro rei, Sarnau é responsável por gerar o herdeiro do
trono. Mas, a demora de sua gravidez, motiva a aquisição de novas esposas por
Nguila, novas “esposas-irmãs” de Sarnau. Entre elas, as atenções de Nguila são
destinadas à quinta esposa: Phati. Também o nascimento de duas meninas
gêmeas do ventre de Sarnau distancia-a ainda mais do futuro rei, de quem
somente atrai desprezo, uma vez que Nguila espera que Sarnau dê a luz a um
menino que se torne herdeiro do trono.
Em paralelo à vida de Sarnau na realeza, Mwando, após ser explorado
pela única esposa ao relativizar as tarefas que, em uma sociedade tradicional, são
exercidas pela mulher, é traído e abandonado por Sumbi. Desiludido e rejeitada,
Mwando e Sarnau reencontram-se e redescobrem as relações sexuais entre os
dois, mantidas no passado. Grávida de Mwando novamente, Sarnau vê-se
obrigada a ter relações sexuais com Nguila o mais rapidamente possível, a fim de
que ele assuma a paternidade do filho que Sarnau espera de Mwando. Eis, então,
que é descoberta por Phati e, denunciada em seus planos de “camuflar” a real
paternidade do filho que carrega no ventre, é obrigada a fugir. Ela e Mwando
partem e aportam em uma ilha de pescadores. Lá levam uma vida tranquila com
a promessa de um casamento aos padrões da monogamia até a chegada de
soldados a mando de Nguila, encarregados de matar Mwando. Este foge e, mais
uma vez, Sarnau é deixada para trás, novamente à espera de um filho.
Para ver-se livre de Nguila e impedir que os casamentos que ajudou a
3
lobolar desfaçam-se, é necessário pagar o alto preço do seu lobolo. Sarnau parte,
assim, para Lourenço Marques, e aloja-se na Mafalala, bairro pobre da capital,
prostituindo-se para sobreviver e saldar sua dívida com o ex-marido.
Simultaneamente, Mwando envolve-se com a mulher de um sipaio (soldado da
polícia colonial) e é deportado para Angola, a fim de trabalhar nas lavouras de
cana e café. Lá faz uso dos ensinamentos eclesiásticos, atuando como “Padre

2
A machamba é uma área de cultivo agrícola destinada à subsistência do núcleo familiar, da qual
as mulheres são as responsáveis pela manutenção e prosperidade.
3
O lobolo de Sarnau promoveu outros vinte quatro casamentos, pois as vacas desse lobolo casaram
os dois irmãos de Sarnau com seis mulheres; e os irmãos destas utilizaram o mesmo gado para
casar, e assim por diante. Caso o valor das trinta e seis vacas não fosse restituído à família de
Nguila, elas seriam recolhidas, e vinte e quatro casamentos seriam desfeitos!

“Finestre” 146
CONFLUENZE Vol. 5, No. 2

Moçambique”, dirigente espiritual no degredo, até juntar economias suficientes


para retornar à terra natal.
Passaram-se então quinze anos, e Mwando reencontra Sarnau no Mercado
da Mafalala, vendendo tomates. “É o homem da minha desgraça” (Chiziane,
2010, p. 140) declara Sarnau, que foge das investidas de Mwando para que
reatem a antiga relação. Ele a persegue até a sua palhota – casa simples, cujo
nome alude às palhas que a cobrem – onde Sarnau acaba por ceder a suas
súplicas, mesmo sabendo que provavelmente terá de sustentá-lo.
A narrativa passa-se predominantemente na parte sul do país,
caracteristicamente poligâmica e machista, reforçada pela presença da fé
muçulmana, que também advoga em favor da poligamia. Em entrevista à Rádio
Internacional da China, Paulina Chiziane comenta o seguinte com respeito à
poligamia: “a Igreja Cristã, o sistema colonial e o sistema pós-colonial são
monogâmicos, mas as pessoas vivem entre aquilo que é lei, religião e tradição. E
acontecem muitas complicações. Os homens casam-se com uma mulher aos olhos
do mundo, mas continuam a ter quatro ou cinco” (Chiziane, 2013). Mas a
monogamia também é opressiva e objetificante, uma vez que:

[...] sob a perspectiva das mulheres, não há grande diferença entre monogamia e
poligamia, uma vez que ambas são regimes que operam dentro de um contrato
heterossexual, que tem por finalidade a submissão das mulheres à dominação
masculina (Alós, 2012, p. 85).

No romance, o confronto poligamia e monogamia, termina por resultar


indiferente em termos do que reserva para as mulheres humildes na sociedade
moçambicana, pois não há grandes diferenças entre um e outro: as mulheres
continuam a ser oprimidas em ambos os contratos relacionais: “com a poligamia,
com a monogamia ou mesmo solitária, a vida da mulher é sempre dura”
(Chiziane, 2010, p. 137). O grande diferencial em Balada de amor ao vento (2010) é
apresentar e desenvolver os assuntos sob o ponto de vista da atingida pela
execução dessas relações, a mulher, transfigurada na voz narrativa de Sarnau.
Paulina Chiziane dá ao leitor a oportunidade de ler uma história a partir
de outra perspectiva, que não as várias versões de uma única história sobre a
África, contada e recontada pelas vozes do Ocidente (Adichie, 2009). Então, pelo
poder de fabulação do discurso literário, o outro – uma mulher moçambicana
através de uma voz também feminina –, silenciado pela história oficial, pode se
fazer-se ouvir e desconstruir visões incompletas e estereotipadas de uma cultura.

Bibliografía

ADICHIE, Chamamanda Ngozi. “O perigo de uma única história”. Conferência


Anual Ted Global, Oxford, 2009. http://www.geledes.org.br/em-
debate/colunistas/4902-chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-historia
[14/05/13].
ALÓS, Anselmo Peres. “O romance de autoria feminina em Moçambique: Balada
de amor ao vento, de Paulina Chiziane”. Todas as letras. São Paulo
(Universidade Mackenzie), v. 14, n. 2. p. 78-86. 2012.
http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tl/article/view/4204/3756.
[13/05/13].
 

“Finestre” 147
CONFLUENZE Vol. 5, No. 2

CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 1. ed. Maputo, Associação dos


Escritores Moçambicanos, 1990.
CHIZIANE, Paulina. Ventos do apocalipse. Maputo, Edição da autora, 1993.
CHIZIANE, Paulina. O sétimo juramento. Lisboa, Caminho, 2000.
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. Lisboa, Caminho 2002.
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 2. ed. Lisboa, Caminho, 2007.
CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Lisboa, Caminho, 2008.
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 5. ed. Maputo, Ndjira, 2010.
CHIZIANE, Paulina. Rota das Letras: Festival Literário de Macau. Entrevista à Rádio
Internacional da China. http://portuguese.cri.cn/2021/2013/03/19/1s164056.htm.
[12/05/13].
GONÇALVES, Adelto. O feminismo negro de Paulina Chiziane.
http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/265-
generos-em-noticias/16623-o-feminismo-negro-de-paulina-chiziane
[12/05/13]. (Versão digital do texto original publicado em Chaves, Rita e
Macêdo, Tania (orgs.). Passagens para o Índico: encontros brasileiros com a
literatura moçambicana. Maputo: Marimbique Conteúdos e Publicações,
2012, p. 33-41).
 

“Finestre” 148

You might also like