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Capítulo I

Homo estheticus
"Toda individuação é precária, agnóstica,
e, em conseqüência, fonte de morte."

(R Abellio, Sol invictus)


C ada época tem suas idéias obsedantes que, é claro, não
são nada além de pessoais. Essas são encontradas de
diversos modos em todas as expressões societais como a
literatura, os modos de vida, as múltiplas formas culturais, sem
esquecer as ideologias, sejam elas políticas, jornalísticas ou
eruditas. Uma dessas idéias obsedantes, que de uma maneira
transversal percorre todas as civilizações, está no sentido
simples do termo vida moral. Em outras palavras, o que é que
fundamenta ou permité o estar-junto (Zusam men-sein)? De
minha parte, formularia essa obsessão da seguinte maneira:
às vezes, ela exprime-se enquanto morale stricto sensu, isto
é, assume a forma de uma categoria dominante, universal,
rígida, e privilegia com isso, o projeto, a produtividade e o
puritanismo, numa palavra, a lógica do dever-ser. Às vezes,
ao contrário, vai valorizar o sensível. a comunicação, a emoção
coletiva, e será então mais relativa, completamente depen-
dente dos grupos (ou tribos) que estrutura enquanto tais, será
então uma ethiça, um ethos que vem de baixo. Moral versus
ética. Já tive ocasião de colocar essa dicotomia que me parece
pouco pensada e que, no entanto, é de todo pertinente para
compreender nosso tempo. De fato, o fim de uma moral uni··
versal. o relativismo moral que se observa de um modo em-
pírico, a eclosão de modos de vida alternativos, tudo isso não
Significa que não haja códigos específicos. Pode-se, antes,
admitir a hipótese de que o que era marginalizado em período
de produtiVidade difrata-se em uma multidão de marginalida-
des centrais. O que formularei com a expressão ética da es-
tética 1 Essa ligação não é nova, o ideal grego do kaloskaga-

1. Formulei a hipótese do ressurgimento de um hamo estlJeticus no nQ 1 dos Cahiers


de Recherche sur l'Imaginaire, Ed. Privat, Toulouse, 1988.

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thos, ou certas instituições do Renascimento, estão aí para pode-se dizer que o fato culinário, o jogo das aparências, os
prová-I02. É possível que seja uma pista das mais prospectivas. pequenos momentos festivos, as deambulações diárias, os
Pode-se dizer também que tudo o que se chama "pós-mo- lazeres, etc. não podem mais ser considerados como elemen-
derno" é, pura e Simplesmente, um modo de distinguir a tos sem importância ou frívolos da vida social. Enquanto
ligação existente entre a ética e a estética. Não desejo dar a exprimem as emoções coletivas, eles constituem uma verda-
esse termo pós-moderno um estatuto conceitual. Tomemo-lo, deira "centralidade subterrânea", um irreprimível querer viver,
de um modo cômodo, como o conjunto das categorias e das que convém analisar. Há autonomia das "formas" banais da
sensibilidades alternativas às que prevaleceram durante a existência que, numa perspectiva utilitária ou racionalista, não
modernidade. Tratar-se-ia, portanto, de um colocar em pers- têm finalidade, mas que não deixam de ser plenas de sentido,
pectiva, de uma categoria espiritual que permitisse justificar mesmo se esse se esgota in actu.
a saturação de um episteme, e compreender o momento O estar-junto moral ou político, tal como prevaleceu na
precário que se situa entre o fim de um mundo e o nascimento modernidade, não é senão a forma profana da religião. Ou,
de um outro. U. Eco compara-o ao maneirismo, e pergunta-se ainda, ele exprime bem a história da salvação, de início cristã:
se o pós-modernismo não seria o nome contemporâneo "do espera da parusia, depOis progressista: mito do desenvolvi-
maneirismo enquanto categoria meta-histórica,,3. Portanto,
mento, particularmente forte no século XIX. Mas a partir do
um modus operandi que esteja apto a acentuar a intenção ou
momento em que o fundamento divino perde sua substância,
o querer "artístico", que me parece animar em profundidade
do momento em que o progresso não é mais considerado como
as diversas agregações que compõem a sociedade.
um imperativo categórico, a existência social é, desde então,
A história da arte alemã formulou isso através da expres- devolvida a si própria. Para ser mais preciso, a divindade não
são Kunstwollen. É possível extrapolar essa noção, estendê-la é mais uma entidade tipificada e unificada, mas tende a se
ao conjunto da vida social. De fato, não é mais possível reduzir dissolver no conjunto coletivo para se tornar o "divino social".
a arte apenas às grandes obras qualificadas geralmente de É quando o mundo é devolvido a si mesmo, quando vale por
culturais. É toda a vida cotidiana que pode ser considerada si mesmo, que vai se acentuar o que me liga ao outro: o que
uma obra de arte. Por causa da massificação da cultura, com se pode chamar "religação". É assim que compreendo a
certeza, mas também porque todas as situações e práticas expressão de Nietzsche, "a vontade de poder enquanto arte,,5.
minúsculas constituem à terreno sobre o qual se elevam Na ótica moral, só Deus é o grande artista; ou seus sucedâ-
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cultura e civilização. Sem que seja possível se estender aqui , neos: Estado, história, progresso, o que dá no mesmo. É d'Ele
(ou d'eles) que depende a criação ou recriação de todas as
coisas. É isto que fundamenta a noção do poder que obnubila
2. Cf. por exemplo W. Pater, Essais sur J'Art et la Renaissance, Paris, Klincksieck, 1985, tanto, por fortalecê-la ou contestá-la os tempos modernos. É
p. 158.
3. U. Eco, ApostilJe au "Nom de la Rose". Paris,. Grasset, 1985, p. 537. Cf. também
isso que constitui a razão última de iniciativa SOCiológica. O
sobre o assunto a análise da "pós-história" de A. Gehlen, proposta por G. Vattimo, mundo entregue a si próprio vai, cada vez mais, confiar na
La {in de la modernité. Paris, Seuil, 1987, p. l1s.
4. Dei um exemplo, nesse sentido, no meu artigo in "Societés" nº 6, novembro 1985, Paris,
Masson. Cf. também os capítulos sobre a aparência e a teatralidade no meu llvro: M.
Maffesoli, La Conquête du Présent. Pow' une socio1ogie de la vie quotidienne. Paris, PUF, 5. Nietzsche, La vo1anté de Puissance, trago 794, 797. Tomo emprestado o termo
1979. Sobre o lazer, remeto à obra de J. Dumazedier. A seu modo, Pierre Sansot: Les "religação" a Baile de Bal. Sobre a dicotomia "poder-potência", remeto ao capítulo
formes sensib1es de la vie soda1e. Paris, PUF, 1986, insistiu bem nessa perspectiva. I de meu livro M. Maffesoli, La vio1ence tota1itaire. Paris, PUF, 1979.

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potência intrínseca que o constitui. A criação, em suas diver- °


No quadro de nossa presente proposta, vita1ismo postula
sas formas, jorrará de uma dinâmica sempre renovada, e que existe uma criatividade popular, uma criatividade do
sempre plural. As diversas situações sociais, os modos de vida, senso comum, uma criatividade instintiva, de certo modo, que
as experiências poderão ser consideradas múltiplas expressões serve de substrato às diversas criações sociais. Para dar uma
de um vitalismo poderoso. Outra maneira de exprimir o poli- única ilustração desse fenômeno, lembrar-me-ei que, em um
teísmo dos valores. momento onde a sofisticação artística se desenvolvia, a crítica
É isso o que pode servir de pano de fundo à estética e a essencial que se fazia à pintura de G. Coubert era justamente
sua função de ética. O fato de experimentar em comum que acentuava uma espéCie de "produtividade natural e es-
suscita um valor, é vetor de criação. Que esta seja macroscó- pontânea" . Isso tinha ares de povo e cheirava, sobretudo mal.
pica ou minúscula, que ela se ligue aos modos de vida, à à gleba. Ele produzia "suas obras tão simplesmente quanto
produção, ao ambiente, à própria comunicação, não faz dife- uma macieira produz maçãs,,6, Julgamento intelectualista,
rença. A potência coletiva cria uma obra de arte: a vida social traduzindo bem a separação de que se tratou, e que passou,
em seu todo, e em suas diversas modalidades, É, portanto, a por isso, para a doxa cultural. A título de anedota, lembro-me,
partir de uma arte generalizada que se pode compreender a por ocasião de uma visita ao museu de MODtnellier, de
estética como faculdade de sentir em comum. Ao fazer isto, comentários irônicos, e um pouco incômodos, de meu mestre
retomo a concepção que Kant dava à aisthesis: a ênfase, sendo diante do traseiro saliente, e bastante "natural", da Baigneuse.
colocada menos sobre o objeto artístico como tal, que sobre Seja como for, o naturalismo é antes de tudo o índice de uma
o processo que me faz admirar esse objeto. profunda simpatia, no sentido forte do termo, das pessoas e
das coisas. Ele despreza a separação, processos de distinção,
É preciso reconhecer que o pressuposto sobre o qual se e repousa, antes de tudo, na correspondência.
fundamenta essa hipótese é o do vitalismo que pode assumir
formas diversas, É essa que pode nos incitar a focalizar nossa análise sobre
a emoção estética e seu caráter societal. A emoção não mais
Eu o veria, contemporaneamente, como ultrapassagem da como um simples fenômeno psicológico, ou como suplemento
estrita separação natureza/cultura, É sobre tal separação que da alma sem conseqüência, mas também Gomo estrutura
repousa essencialmente o episteme moderno. Ora, atualmente antropológica, cujos efeitos ficam por apreciar. Isso nos leva a
são numerosos os índices, que mostram a confusão dos dois considerar a idéia obsedante do estar-junto como sendo es-
pólos em questão; ou pelo menos sua interpenetração. O que se sencialmente uma "religação" mística sem objeto particular.
pode resumir, graças à fórmula bem conhecida: culturalização Assim como se pode considerar a arte como forma pura, é
da natureza, naturalização da cultura. Em outras palavras, a possível enxergar a sociedade como Simples faculdade de
relação com o ambiente social está indissoluvelmente ligada à agregação. É nesse sentido que a emoção estética pode servir
que remete ao ambiente natural, Inúmeros são os domínios onde de cimento, Com certeza, este cimentará a partir de elementos
uma tal "ecologização" do mundo é evidente. Seja na maneira "objetivos": trabalho, ação militante, festas grupais, unifor-
(e na matéria) de se vestir, de se alimentar, no que diz respeito
à qualidade da vida, sem esquecer as filosofias e outros modos
de produzir, a natureza não é mais apenas objeto a explorar,
mas torna-se parceira obrigatória. E é de se prever que esse 6. Cf. M. Schapiro. StyIe, alUcIe et société, Paris, Gallimard, 1982: "Courbet et
vitalismo seja chamado a se desenvolver. l'imagerie p opuIaile", p 296.

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mes, ações de caridade, etc., mas esses só serão pretextos Nietzsche, existe uma ligação estreita entre "a potência" e a
que legitimam a relação com outrem. Matéria-prima de um arte. Sabe-se o quanto são esclarecedoras para o nosso tempo
certo modo, necessária mas não suficiente. Isso pode parecer algumas de suas visões proféticas Acontece o mesmo com
um pouco idealista ou espiritualista, irritante até para nós que um SOCiólogo francês, não muito conhecido, contemporâneo
estamos habituados a medir tudo pelo padrão da eficiência e muito apreciado por Nietzsche, com o qual ele partilhava
rac,ionalista, mas a efervescência contemporânea, até nos seus uma mesma sensibilidade filosófica. Falo de J.M. Guyau, que,
aspectos mais chocantes, é uma realidade que é inútil querer em particular em L'Art au point de vue sociologique (1887),
negar. Por isso, é melhor compreendê-la. A geopolítica não insistiu longamente na ligação existente entre a emoção esté-
basta para entender as revoluções islâmicas. A crise econô- tica, a solidariedade e o complexo. É preciso, certamente,
mica não explica por si só a falência de uma certa moral do atualizar suas análises, mas sua intuição de base é admiravel-
trabalho. O marketing turístico não basta para justificar as mente pertinente, em particular quando sublinha a importân-
loucuras das multidões estivais. O desenvolvimento das seitas, cia do princípio de simpatia social8
o sucesso da astrologia e outras manifestações da mesma Guyau, de fato, não deixa de observar que nossas "facul-
fonte não poderiam ser reduzidos a esse chavão que é a dades simpáticas e ativas" estão estreitamente ligadas, e que
escalada do irracionalismo. Do mesmo modo, os sincretismos
, polítiCOS ou ideológicos não saíram unicamente do evidente
charlatanismo dos profissionais da política ou dos formadores .
é essa ligação mesmo que especifica a vitalidade de uma dada
época, e serve de fundamento a toda forma de socialidade. É

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nesse sentido que a estética está ligada com a ética. Isso
de opinião. Enfim, a fome canina da comunicação não remete Significa reconhecer a importância do "imaterial" no próprio
simplesmente ao desenvolvimento tecnológico. seio do "material". Eis que não deixa de ser prospectivo em
Em cada um desses casos, ' e ainda em muitos outros, um momento em que, graças ao desenvolvimento tecnológi-
parece que se está em confronto com um verdadeiro impulso co, à eficácia das "imagens imateriais" através da mídia, as
instintivo, uma espécie de vis a tergo, que incita a se reunir próprias empresas dirigem seus esforços em direção dos
por tudo e por qualquer coisa, importando apenas , afinal, o "investimentos imateriais" para se tornarem mais competiti-
ambiente afetivo no qual cada um está imerso. Daí a transfor- vas. No âmago do real, há um "irreal", irredutível cuja ação
mação de um grupo em outro, o desengajamento e a irrespon- está longe de ser desprezível. As sociedades mecânicas das
sabilidade que são o sinal dos tempos, e que tentei representar quais a modernidade é um bom exemplo, têm tendência a
pela metáfora do "neotribalismo,,7. Em suma, esboça-se um homogeneizar, a se basear num só valor, ou num conjunto de
novo dado social que acentua, antes de tudo, a fusão, ' sem valores diretamente operacionais. Não acontece o mesmo nas
levar em conta o seu porquê. É, contudo, possível que essa sociedades complexas que, em construção, explodiram, e
fusão, repito, por mais chocante que seja, determine a nova onde formiga uma multipliCidade de valores perfeitamente
forma de solidariedade nas sociedades complexas. Para heterogêneos uns aos outros. Eis o paradoxo: essas sociedades

8. Cf. no apaixonante livro, do qual falarei, muitas vezes, a análise de J.M . Guyau,
7. Prossigo aqui a reflexão apresentada no meu livro Le temps des tribus (Meridiens, L'Art, au point de vue sociologique. Paris, Felix Alcan (11 ª edição), 1920, e o prefácio
Klincksieck, 1988), onde analiso a multiplicação dos pequenos grupos efêmeros na de A. Fouillée, p. V, VIII. De J.M. Guyau pode-se também ler com proveito: Esquisse
sociedade pós-moderna. d'une morale sans obligation ni sanction. Paris (21 ª edição), Felix Alcan, 1935.

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são, evidentemente, politeístas, e não resta dúvida de que um contornos difusos e perfeitamente fluidos. É essa a caracte-
ambiente específico as caracteriza, elas segregam também rística das sociedades pós-modernas.
um "espírito de tempo" particular. Em uma palavra, sem ter
uma unidade, não deixam de possuir uma certa unicidade 9 . Assim, a unicidade da constelação em questão é feita do
entre cruzamento e da correspondência dos microvalores éti-
Pode-se pensar que este seja o caso da estética que cos, religiOSOS, culturais, sexuais, produtivos, que, por sedi-
garante, desde então, a sinergia social, a convergência das mentação, constituem o solo da comunicação. A estética terá,
ações, das vontades, que permite um equilíbrio, mesmo que portanto, por função ressaltar a eficácia das formas de simpa-
conflitual, dos mais sólidos. Os historiadores mostram que a tia e seu papel de "laço" social no novo paradigma que se
arte stricto sensu pôde representar esse papel em inúmeras esboça. A partir do momento em que se esteja de acordo sobre
civilizações; pode-se imaginar que a vida cotidiana enquanto a correspondência orgânica que liga as pessoas, "as palavras
obra de arte poss'a também representá-lo hoje em dia. É de e as coisas", a partir do momento em que se reconheça que
propósito que emprego a palavra ambiente para descrever esse todas as situações, todas as experiências, por menores que
"espírito do tempo", pois a ética da estética no cotidiano não sejam, participam de um ambiente geral, a partir do momento
passa de distintiva. Falei de fusão, talvez fosse até preciso falar em que nos dediquemos a sublinhar que os imaginários de
de uma confusão, metáfora dionisíaca como se sabe. Uma diversas espécies irrigam em profundidade a vida societal,
recente sondagem da SOFRES salientava, há pouco, o enfra- então, para retomar uma expressão da Escola de Frankfurt, "a
quecimento do sentimento de pertença a uma classe social atividade comunicacional" prevalecerá, para compreender o
precisa (jUlho de 1987). Desafecção que só pode se ampliar, que chamei de idéia obsedante do estar-junto. A atividade
pois se os organismos oficiais e a maior parte da sociologia comunicacional é altamente complexa e necessita de uma
continuam a funcionar sobre as sempiternas "categorias só- instrumentação teórica que esteja à altura do desafio. A temá-
cio-profissionais", parece que seja transversalmente que se tica da atração pode fazer parte dela 11. Atração das sensibili-
elaboram os signos de reconhecimento: práticas culturais, dades que podem engendrar novas formas de solidariedade.
faixas etárias, participação de grupos afetivos. Em suma, o Atrações e repulsões que podem desenhar a carta de uma
que se chama de prática das redes lO . O que dizer, senão que, astronomia social complexa, onde sob a aparente divagação
num processo de mas~ificação constante, operam-se conden- dos trajetos pessoais e tribais encontrar-se-iam códigos, re-
sações, organizam-se tribos mais ou menos efêmeras que gras, costumes constrangedores, deixando pouco espaço para
comungam valores minúsculos, e que, em um balé sem fim, a vontade ou para o cálculo racional. À temática da liberação
entrechocam-se, atraem-se, repelem-se numa constelação de que, sob suas diversas modulações, animou a modernidade
desde o fim do século XVIII, sucederia assim a temática da
atração com sua conotação um pouco animal, ou com seu
ambiente pelo menos não racional.
9. Enquanto a unidade exprime uma entidade fechada e homogênea (identidade,
indivíduo, estado-nação), a noção medieval de unicidade traduz a abertura, o
heterogêneo (identificação, pessoa, pOliculturalismo).
10. SOFRES, julho de 1987, análise in "Le Monde", 11 de agosto de 1987. Sobre as
11. Remeto aqui à sociologia figurativa que, na linha de G. Durand, desenvolve P.
redes, as tribos e a transversalidade que isso comporta, cf. meu livro precedente:
Tacussel: L'attraction sociaIe. Paris, Méridiens, Klmcksieck, 1984; cf. também J.M.
M. Maffesoli, Le temps des Tribus. Paris, Méridiens, Klincksieck, 1988.
Guyau, L'Art... op. cit., p. XLV.

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É assim que se pode compreender o que chamarei de
Uma tal temática pode tornar a dar sentido a uma metá~
tactilidade contemporânea, esse horror ao vácuo que leva à
fora, freqüentemente empregada pelos sociólogos: a de corpo
agregação indiferenciada, que faz com que, sem o menor
social. Pois é exatamente de corpo social que se trata na
sentido, as pessoas se reúnam. Essa tactilidade pode ser
atração e na repulsão. De início, do corpo pessoal, com seus
considerada a forma contemporânea de uma relação com o
"humores", sua sensualidade, suas exigências e suas coações,
outro que faz a economia da mediação racional e finalizada.
~ seguida, desse corpo que se defronta, roça em outros
Que, no limite, faz também a economia do próprio sujeito, ou
corpos, e finalmente, de um corpo coletivo, de um "corpo
pelo menos do sujeito como entidade separada tal como se
místico" segundo a tradição cristã, resultante dos fluxos, dos
impôs progreSSivamente na tradição ocidental. De fato, o
contatos, das eVitações, das acomodações induzidas pelo
processo de atração-repulsão e a ambiência estética que lhe
espaço que se partilha. Todas as coisas que remetem à
serve de moldura, o acento sobre a globalidade, tudo isso
interatividade, cara à teoria da comunicação, e, acrescentarei,
favorece uma configuração social em que os pólos objetivo e
a interpenetrabilidade dos corpos, cuja importância começa a
subjetivo têm tendência a se esbaterem. De um modo paro-
ser apreciada. De fato, a atração e a corporeidade caminham
xístico, reencontra-se essa tendência nos pintores impressio-
juntas, e, de um modo mais ou menos marcante, nossas teorias
nistas que se empenham em dissolver a dicotomia sujei-
começam a levar em conta esses fenômenos 12 O que se pode,
to-objeto, que se empenham, como pôde observar M. Shapiro,
pelo menos, reconhecer é que essa temática acentua o aspec-
para que "a distância original entre o homem e os objetos
to tátil da existência. Os historiadores da arte que falam a esse
neutros que o cercam [seja] reabsorvida por submersão co-
respeito de dimensão "háptica" (A. Riegel) notaram o ressur-
mum num estado passivo, chamado sensação,,13. Talvez não
gimento cíclico desse fenômeno. Pode-se indicar que esse só
seja oportuno chamar essa sensação de paSSividade; na minha
traduz a conjunção de elementos sensuais: ênfase na aparên-
opinião, trata-se antes de uma "não-atividade" um pouco
cia, importância do hedonismo, desenvolvimento festivo (mu-
vitalista ou panteísta, e que se sente "em casa" numa natureza
sical' esportivo), coisas que só se compreendem pela presença
que não tem lugar para ser objetivada. A atração das sensibi-
do outro, a presença com o outro, coisas que, também para
lidades é, acabo de dizer, panteísta: todas as coisas participam
retomar uma notação das Memórias de Adriano, conduzem a
do divino. É uma espéCie de pensamento mágico que não é
"elaborar um sistema .de conhecimento humano baseado no
bipolar, mas que se investe numa multipliCidade de "lugares"
erótico, uma teoria do contato" ... (M. Yourcenar). De fato, a
tão sagrados uns quanto os outros.
:emática da atração leva a sério a idéia do corpo social, isto
e, o que faz de cada um um elemento do conjunto global. O É, a esse respeito, instrutivo observar a importância que
acento é, a partir daí, colocado prioritariamente sobre aquilo retoma o bestiário na vida cotidiana, seja na publicidade,
de que todos participam, sobre a soma mais que sobre as através da multiplicação dos animais domésticos, sem esque-
partes. cer as palavras suaves que pontuam as relações afetivas. Há
aí um naturalismo que lembra a função emblemática que pôde
representar o bestiário em outros períodos também holísti-

12. Cf., sob a dlfeção de J.M. Berthelot, o número 15 de "sociétés" Paris ed. Masson 13. M. Shapiro, Style. artiste et saciété. Op. cit., p. 338.
1987. " ,

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COS
14 . É preciso também fazer referência, sem lhe atribuir um bretudo não é uma certeza imediata,,16. Havia audácia procla-
valor pejorativo, ao fetichismo do espaço e dos lugares que o mando isso num momento de individualismo triunfante, pois
constituem. Inúmeras dessas expressões não deixam de ser é justamente a partir da fortaleza do "eu" que a modernidade
criticáveis, como a mitificação que constitui o desenvolvimen- empreendeu a conquista da natureza e a regulação do mundo
to da casa individual. Não resta dúvida que habitá-la torna-se social. Mas tratam-se de uma visão profética bem mais aguda,
novamente um ato poético. Do mesmo modo, a multiplicação pois é também uma das tarefas do pensador. As fissuras às
'de residências secundárias, o que se pôde chamar "secunda- quais, além das alegações, o filósofo estava atento, tornaram-
ridade", é o início de uma pesquisa de raízes. Reencontramos se progressivamente evidências maciças. Pelo menos, para
aqui a carga antropológica da domus antiga. A dimensão aqueles que se atêm a pensar sem preconceitos. Em todo o
ctoniana do espaço, o que me liga à terra e às suas divindades, caso, evidências vividas pela maioria. Pois, no que diz respeito
é vetor de socialidade. Poder-se-ia também fazer referência à identidade ideológica, política, sexual, profissional, é sobre-
aos sucessos dos produtos da terra e ocasiões festivas que tudo com as "incertezas imediatas" que nos confrontamos
suscitam. De fato, os exemplos abundam, e é fácil a cada um hoje em dia.
encontrar ilustrações empíricas. Basta assinalar que, além de São essas incertezas de diversas espécies, exprimindo-se
polaridades, na verdade divididas (subjetiv%bjetivo), às na multiplicação dos prefixos "meta-" ou "trans-" (que reen-
quais associamos um pensamento da separação na filosofia contram-se na moda, na teoria ou na observação jornalística),
(natureza/cultura), uma análise da distinção na sociologia que fundamentam as "culturas dos sentimentos" (Gefühlskul-
(classes, CSP), estamos cada vez mais fortalecidos por uma tur). Essas podem ser imorais em relação às normas estabele-
série de curtos-circuitos permanentes, por vaivéns constantes cidas, não deixam de ser promissoras. Seu devir é, aliás, ins-
que, para retomar uma expressão de A. Berque 15 , forçam-nos trutivo: de início são combatidas, depois toleradas, em segui-
a pensar a "trajetividade" em obra na pós-história. da, aceitas, e, enfim, pouco a pouco capilarizam-se no con-
O indivíduo, portanto, acaba por ser absorvido num con- junto do corpo social. Esse processo é conhecido. Para o que
junto mais indiferenciado. É talvez essa a lição essencial do nos ocupa, direi que isto nos permite compreender o deslize
paradigma estético que permite pensar a configuração societal de uma lógica de identidade para uma lógica da identificação.
alternativa que se esl)oça. Assim como observava muito bem Aquela é essencialmente individualista, mas essa é muito
Nietzsche: "Esse velho e ilustre 'eu' não é ... para dizê-lo em mais coletiva. A cultura do sentimento é, portanto, a conse-
termos moderados, senão uma hipótese, uma alegação, so- qüência da atração. Agregamo-nos segundo as ocorrências ou
os desejos. É uma espécie de acaso objetivo que prevalece.
Mas o valor, a admiração, o "hobby", o gosto que são parti-
lhados tornam-se cimento, são vetores de ética. Para ser mais
14. Remeto aqui á obra-mestra de G. Durand, Les structures anthropologiques de preciso, denomino ética, uma moral "sem obrigação nem
J'imaginaire. Paris, Bordas, 1969. Para uma aplicação de sua tese á publicidade, cf. sanção"; sem outra obrigação que a de unir -se, de ser membro
A. Sauvageot: Figures de la publicité, fjgures du monde. PUF, Paris, 1987. A respeito
da emblemática do bestiário, cf. J. Baltrusaitis, Le Moyen Âge fantastique, Paris,
do corpo coletivo, sem outra sanção que a de ser excluído, se
Flammarion, 1981.
15. Sobre a noção de "trajetividade", cf. A. Berque: Le sauvage at J'artifice. Paris,
Gallimard, 1986. Sobre a "secundaridade", cf. a pesquisa de P. Sansot, H. Strohl,
H. Torgue, C. Verdillon, L'espace et son double. Paris, Champ Urbain, 1979. 16. Nietzsche, Par-delà le bien et le mal. Paris, Aubier-Montaigne, 1978, p. 49.

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cessa o interesse (inter-esse) que me liga ao grupo. Eis a ética


da estética: o fato de experimentar junto algo é fator da Lebenswelt, O mundo da vida é o que une de um modo não
socialização. consciente. É uma ética no sentido forte do termo: isto é, o
que permite que a partir de algo que é exterior a mim possa
Com certeza, esse processo significa o fim ou, mais
se operar um reconhecimento de mim mesmo. Esse algo exte-
exatamente, a saturação, dos valores dominantes e gerais que
rior pode ser um outro eu-mesmo: outrem, um outro enquanto
são aceitos e partilhados contratualmente pela maioria. De
outro: objeto, um outro enquanto qualquer outro: a alteridade
fato, a identificação agrega cada pessoa a um pequeno grupo
ou a deidade. Em todos os casos, e é isso o que é importante,
ou a uma série de grupos. O que implica uma multiplicidade
reconhecemo-nos em outrem, a partir de outrem.
de valores opostos uns aos outros. É isso que fez com qúe se
falasse, sem razão, em narcisismo. Sem razão, se se concebe Assim como o que eu disse do narcisismo coletivo que é
o narcisismo como o estreitamento sobre o mundo individual. causa e efeito de uma mitologia comum (história familiar,
como é costume analisá-lo. Em compensação, é de todo legí- história de grupo ... ), uma obra de arte só tem sentido para os
timo vislumbrar um narcisismo coletivo, se o compreendemos que nela se reconhecem e que a criaram. O que explica, aliás,
como o fato de produzir e de viver uma mitologia específica. a multiplicidade das obras culturais, suas variações seguindo
Esse narcisismo coletivo, sem deixar de ser individual. põe a os lugares e os espaços; o que pode parecer de mau-gosto
tônica na estética, pois o que ele promove, é esse estilo aqui e agora, podendo ser ali e ontem o auge da arte. Como
particular, esse modo de vida, essa ideologia, esse uniforme diz Guyau, "uma obra de arte só emociona aqueles de quem
vestimentário, esse valor sexual. em suma, o que é da ordem ela é o signo"lB Nesse sentido, pode-se ultrapassar a platitude
da paixão partilhada. que constitui, para a estética, a arte pela arte: o formalismo.
Com esse, pode-se reconhecer que existe uma autonomia das
Nem que seja por um instante, é preciso insistir sobre esse
formas. Não autonomia em si, mas uma autonomia em relação
último ponto que, em particular, faz compreender, in fine, a
a outras formas, uma autonomia relativa. Toda forma signifi-
estreita conexão que estabeleci entre a ética e a estética. O
cante para tal grupo pode ser insignificante para um outro.
valor tribal que fundamenta o narcisismo coletivo é causa e
Portanto, a forma tem a ver com um grupo particular. Foi o
efeito do que a filosofia alemã, com um dos seus resumos que
que chamei de "formismo" (in O conhecimento comum, capo
são o seu segredo, chamou Lebenswelt, um mundo de vida.
IV): o que permite a um dado grupo constituir-se enquanto
Assim como nos deleitamos em reconhecê-lo, o próprio desses
tal, permitindo-lhe ser totalmente autônomo em relação a um
Lebenswelten é serem inconscientes, e, nesse sentido, podem
outro.
ser comparados aos epistemas de Foucault, ou ainda aos
paradigmas de Kuhn 17 Há aí como que um ethos ou vitalismo. Essa função de reconhecimento, esse efeito estético de
Ou seja, na base de toda representação ou de toda ação, há um dado signo é um outro modo de falar do simbolismo. Um
uma sensibilidade coletiva e uma reunião extralógica que simbolismo generalizadO: num movimento sem fim de ações/
servem de fundamento à existência social. Nesse sentido, o retroações, reconheço um signo reconhecendo com outros, e
assim reconheço o que me une a outros. Está bem evidente
que esse processo, como já disse, não é, de modo algum,

17. Cf. A análIse aguda que faz J.G. Merquior, Foucault ou 1e nillilisme de la clJaire.
Paris, PUF, 1986, p. 45.
18. J.M. Guyau, l,'Art... op. cit., p. 38.

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redutível ao que se chama geralmente de obra de arte . Essa imorais que, além de todo julgamento normativo, podem ser
função signo, ou a emoção coletiva em relação a um signo, reconhecidas como sendo técnicas de automodelagem, ou
pode-se exprimir graças a uma vestimenta, um hábito, um que têm uma função "etho-poética" (Plutarco) 19. Sejam os cai-
gosto, e, certamente, uma literatura, uma música, etc . A admi- xões de isolamento sensoriais, muito na moda nas megalópo-
ração suscitada, por um ou outro desses elementos, e muitos les contemporâneas, os diversos "body-building", sem esque-
outros ainda, é vetor de organização específica. É, de fato, cer o jogging e, seguramente, todas as técnicas de inspiração
muito delicado dizer se a Associação dos Amadores de Lin- oriental, estamos em presença de um corpo que nos dedica-
güiças Autênticas (em fr. AAAA) é menos importante que mos a "epifanizar", a valorizar. Notemos, no entanto, que, até
a que preside aos destinos culturais de Cérisy-Ia-Salle. Cada em seus aspectos mais "privados", esse corpo só é construído
urna, a seu modo, tem urna função estética no sentido indi- para ser visto. É teatralizado ao mais alto grau. Na publiCida-
cado acima: o de atração de sensibilidades. de, na moda, na dança, só é paramentado para ser apresentado
No que diz respeito à idéia obsedante do estar-junto - em espetáculo. Pode-se dizer que se trata de uma socialização
obsedante para a sociedade, obsedante para o SOCiólogo - que é, talvez, específica, mas que não deixa de apresentar
pode-se, portanto, concordar com o fato de que todos os todas as características da socialização: a de integrar num
elementos subsumidos pelo termo "estética" (sensibilidade, conjunto e de transcender o indivíduo. Acontece que, para
sensação, sentimento, atração) podem ser ângulos de ataque isso, a tônica é colocada mais na sensação coletiva que num
dos mais pertinentes. Talvez seja preciso dizer que, segundo projeto racional comum. Mas o resultado não é diferente: fazer
o pêndulo próprio às histórias humanas, da parte do mecanis- participar desse corpo geral. de um corpo social. Nesse
mo de saturação inerente a todos os fenômenos sociais, o que sentido, a estética, no sentido amplo, pode ter uma função de
é considerado como frívolo num dado conjunto civilizacional agregação, e fortalecer o que chamo de sociabilidade.
vai se tornar determinante para um outro. Assim, a estética Para Durkheim, sabe-se, "nos indivíduos, como nas socie- .
marginalizada na perspectiva finalizada da história pode se dades, um desenvolvimento descomedido das faculdades es-
tornar central na do destino (a pós-história). Naquela, cada téticas é um grave sintoma do ponto de vista da moralidade,,20.
coisa só vale na medida em que se inscreve numa mecânica Trata-se de uma nota típica da sensibilidade teórica, proce-
evolutiva, o drama no.seu sentido etmológico (dramein); nesta, dendo a partir de uma lógica do "dever-ser". A SOCiologia de
cada coisa, sendo elemento significante de uma organicidade, Durkheim é, desse ponto de vista, a ilustração perfeita de um
vale por si mesma: daí o trágico do que se vive no presente. pensamento que se diz a serviço do progresso da humanidade.
Numa visão de conjunto (o holismo ou o que chamei de Ele teve, a esse respeito, uma longa posteridade e, com menos
unicidade), pode haver sinergia entre a ética e a estética. O
que pode evitar, ao mesmo tempo, o formalismo da arte pela
arte do estetismo e o dogmatismo moralizador do puritanismo
político. Ao fazer isso, pode-se estar em condições de apreciar
inúmeras atitudes, experiências, situações como sendo, para 19. Sobre a automodelagem e a citação de Plutarco, cf. M. Foucault, L'usage das
plaisirs. Paris, Gallimard, 1984, p. 19. cf. também a tese em andamento de T. OreI
retomar a expressão de M. Foucault, modos de "amoldar-se sobre L'auto-façonnage, Paris V, Sorbone. Sobre a ligação entre ética e estética a
como sujeito ético" . Vê-se todo o interesse dessa perspectiva: partir de uma análise de J. Joyce, cf. H. Broch, Création littéraire eC connaissance.
Paris, Gallimard, 1966, p. 212.
pode haver muitas atitudes sociais consideradas frívolas ou
20. E. Durkheim, De la division du travail social, Paris, PUF, 1960, p. 14.

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li

talento, é verdade, inúmeros são os que continuam a desfazer


seu credo moralizador. Parece-me que a noção de narcisismo
coletivo pode nos incitar a reconhecer que, embora centrado
nos mais próximos, isto é, o corpo, o movimento "tribal" não
deixa de moldar uma ética talvez inquietante para nós, mas
igualmente sólida. Em todo o caso, esse reconhecimento, para
aqueles que estão, antes de tudo, ligados à lucidez, pode, de
um lado, conduzir a ter mais prudênCia nas apreciações. Ele
pode, por outro lado, incitar a essa audácia do pensamento
que, fora das certezas tranqüilizantes, está em condições de
captar o aspecto promissor do que está nascendo, ou renas-
cendo. No caso, depois do homo politicus e do homo econo-
micus, não nos confrontamos com o surgimento de um homo Capítulo II
estheticus?

Da disponibilidade
social
"Você luta como se não tivesse
nada mais a fazer, e vive como se estivesse
a mil léguas do campo de batalha. "

(Libanius, Carta a Julien)

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