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André Carvalho

A Conciliação
Copyright © 2018 André Carvalho

Todos os direitos reservados.

ISBN-13: 9781980510970
Para aqueles que acreditaram

nesta história do começo ao fim


PRÓLOGO

O que você faz quando perde tudo? O que você faz


quando olha para si mesmo e vê que perdeu a pessoa que
ama? Essa é uma pergunta difícil.
Bem... às vezes tudo se parece como um teste, um
teste da vida... de escolhas e conhecimento. Você tem que
enfrentar o problema por si próprio para conhecê-lo
profundamente.
Ninguém disse que a vida seria ou deveria ser fácil.
É o contrário, na verdade. A vida é difícil, é um saco e
precisamos entender o que será de nós.
A vida pode nos enganar, a vida pode nos pregar
peças e estamos aqui justamente para isso. Mas nossa
tarefa, nossa missão é enganá-la de volta, pois somente
nossas escolhas podem definir quem somos.

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6 de Janeiro de 2010, Quarta-Feira.

— Hoje vocês entraram aqui como duas pessoas,


mas sairão como uma só. Uma união de suas vidas e
almas. Eterna. Uma história que caberá somente a
vocês escrever. E a todos aqui presentes, testemunhas
desse amor, desse comprometimento, serão também
parte importante dessa nova etapa que começa agora.
Pois é assim que vos declaro marido e mulher.
Era uma noite nublada de sábado quando eu e David
voltávamos da anual e clássica Winter-Night Party. Era
uma festa que sempre rolava em um lugar diferente a
cada ano, sendo que um dos principais objetivos dos
organizadores era sempre realizar um evento ainda
maior que o do ano anterior. Faz um tempo que essa
loucura começou e é incrível como ano após ano somos
novamente surpreendidos pela grandiosa produção.
Era um lugar para todos os gostos, para todas as idades
e esse era o grande segredo do grandioso sucesso.

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Claro que um evento desse porte requer um local
adequado e é por isso que as grandes cidades eram
sempre as premiadas. Premiadas sim, claro... Era uma
excelente atração para a cidade, mesmo que fosse por
pouco tempo. Pessoas de todo canto do país e até de
fora compareciam.
Não preciso nem dizer que ela nunca tinha
acontecido na pequena e aconchegante Whiteview,
uma cidadezinha ao norte da Califórnia, onde moro.
Entretanto, desde que David e eu nos conhecemos e ele
me convenceu a ir pela primeira vez, fizemos disso um
compromisso anual. Era a nossa noite. Uma noite para
esquecer de tudo, para se divertir e não pensar no
amanhã.
Um pouco imprudente, se me permito dizer.
Contudo, se existia um momento para que eu e David
pudéssemos extravasar, o momento era esse.
Saímos de lá muito tarde da noite... ou será que
era muito cedo da manhã? Seja como for, estávamos
exaustos. Tivemos que caminhar por alguns minutos
até encontrar nosso carro, que estava longe até demais.

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David cambaleava um pouco e sorria abobalhado para
mim.
Vamos deixar uma coisa clara aqui, ok? Não
somos de beber, não mesmo. Principalmente eu... mas
algumas escapadinhas, às vezes, não faz mal à
ninguém.
Como sabíamos que alguém teria que dirigir na
volta, me segurei... talvez mais do que gostaria.
Ano que vem chamaremos um táxi!
Eu trazia um dos braços de David sob meu ombro
e não conseguia segurar o riso quando ele beijava
minha bochecha.
— Você não se cansa nunca, não é? — caçoei,
estendendo minha mão a ele. — As chaves. Serei sua
motorista esta noite, o que acha?
— Ooooh, eu gosto disso... Minha motorista. —
respondeu, lançando-me um olhar provocador.
Ele tirou as chaves do bolso e quase tropeçou
numa pedra que não conseguiu ver. O lugar era muito
mal iluminado, mas consegui pegá-lo no último
segundo, quando David apontou para um carro prata

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que se destacava num mar de outras cores. Ao
pararmos ao lado do carro ele me agarrou subitamente,
me deixando sem fôlego com um beijo intenso. Quando
finalmente pude respirar, o abracei com força.
— Eu te amo — deixei essas três palavrinhas
soarem livremente à medida que os lábios de David se
arqueavam num sorriso perfeito. Um sorriso que me
dizia tudo que eu precisava saber.
Quando entramos no carro, David ligou o som.
Dei partida e logo saímos do estacionamento. Em
poucos minutos estávamos percorrendo a rodovia.
— Esta noite valeu a pena, não?
— Com certeza! — respondi, sorrindo.
Dirigi tranquilamente por mais alguns
quilômetros e, conforme íamos prosseguindo, a
quantidade de postes de iluminação diminuía.
Continuei e entramos numa área que parecia ter
saído de um filme de fantasmas. David, desconfiado,
me perguntou se estávamos no caminho certo, pois ele
não se lembrava daquele trecho. Diminui a velocidade e
começamos a prestar atenção. Poucos metros

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percorridos, David avistou um caminho à direita
naquela estrada sem fim e eu, ao mesmo tempo, notei
outro caminho à esquerda. Ótimo, pensei, estamos
perdidos. Reduzi ainda mais a velocidade, quase
parando, tentando me aproximar de um acostamento
quase inexistente e David olhou para o seu lado
esquerdo, através da minha janela. Um barulho muito
distante chamara sua atenção, mas ele não conseguiu
enxergar nada naquele breu total.
— Acho que estamos perdidos. Não acha melhor
ligar para... — nunca tive a chance de terminar o que
pretendia dizer, pois subitamente minha atenção tinha
sido atraída completamente para o barulho que David
ouvira anteriormente. Ele agora parecia mais próximo
e a última coisa que vimos foi uma luz ofuscante se
aproximando.
Os minutos seguintes se resumiram a escuridão
total...

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I

12 de Fevereiro de 2011, Domingo.

Estava quase anoitecendo quando eu voltava de uma


longa viagem a trabalho. Da janela do táxi vi o sol se
pondo.
Semana passada fui enviada à Nova York para
cuidar de um caso de uma empresa milionária, cliente
do escritório de advocacia em que eu trabalhava, o
maior de Whiteview. Quando digo maior, na verdade,
quero dizer o único de grande porte da região.
Como acabei lá? Bem, contarei um pouco da
minha história.
Nos meus tempos de criança, morando em Nova
York, eu sonhava em ser advogada e recebia o maior
apoio dos meus pais e minha irmã caçula. Meu pai foi
um grande advogado criminalista e trabalhava num
dos maiores escritórios da cidade.

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Quando eu estava próximo de terminar o ensino
médio, algo devastador aconteceu em minha vida. Meu
pai se foi. Mas não naturalmente. Fora assassinado.
Tudo o que sei até hoje foi o que minha mãe me contou,
com muita relutância, após diversos pedidos de
esclarecimento. Era horrível, sim, mas eu precisava
saber. Ela também não tinha total conhecimento de
tudo, e o que sei é que velhos comparsas dos piores
bandidos da cidade, os quais meu pai ajudou a mandar
para trás das grades não estavam nada felizes com o
sucesso e eficiência dele.
Dói lembrar disso. Ainda mais porque o caso
nunca foi concluído. O submundo do crime de Nova
York era tão entranhado em corrupção que se tornou
quase impossível descobrir o que realmente havia
acontecido.
Passados dois meses minha mãe decidiu se
mudar. Dizia ela que não poderia mais ficar naquele
lugar, pois as lembranças eram fortes demais para
serem trazidas à tona. Sem contar o perigo para minha

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irmã e eu. E foi assim que nos mudamos para
Whiteview, o lar da minha mãe quando pequena.
Ela costumava dizia que precisava se mudar para
fugir das lembranças, mas tempos depois percebi que
ela apenas queria ficar próxima dos seus pais
novamente. Meus avós maternos eram de idade muito
avançada, mas nos ajudaram naqueles tempos difíceis
da melhor maneira que conseguiram... até não
puderem mais.
Assim, com o descontento de minha mãe, decidi
seguir a carreira que meu pai tanto prezava.
Ao nos mudarmos para Whiteview, foi difícil para
minha mãe me manter em uma boa escola. Tínhamos
nossas economias, claro, embora não fosse o suficiente.
Mesmo assim, eu me esforçava o máximo para manter
meu histórico impecável. Tão impecável que lutei até
conseguir que minha inscrição em Stanford fosse
aceita.
Eu sabia que meu pai estaria orgulhoso de mim,
onde quer que estivesse. Eu queria seguir os seus

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passos. Queria me tornar uma grande advogada. E
assim foi.
Terminei a faculdade e me inscrevi para um
cargo no Departamento de Justiça do Estado da
Califórnia. Era uma enorme responsabilidade e eu teria
que me mudar para Los Angeles. Mas não desisti e fui
até o fim. Após um período tenso de estudos, consegui
a aprovação, sendo uma das primeiras colocadas.
Ah claro, não posso esquecer que a mera menção
do meu pai me fez ser recebida de braços abertos. Eram
muitos os que o conheciam e o admiravam,
principalmente por todo seu extenso trabalho realizado
no outro lado do país. Eu sei que poderia me beneficiar
disso... Ser filha do grande Jack Harris me trazia
algumas prerrogativas. Entretanto, decidi que seria eu
quem construiria meu caminho. O mérito deveria ser
meu. Eu deveria ser a melhor, não por ser filha de um
grande homem, mas sendo uma grande mulher; uma
grande profissional.
Batalhei ano após ano até assumir um cargo
próximo ao Procurador-Geral do Estado. Era uma

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grande honra e responsabilidade. Mas após um tempo,
comecei a me sentir estranha naquele lugar. Eu sabia
que estava em um dos melhores lugares para trabalhar,
mas algo não me parecia certo. Eu não estava
completamente feliz ali.
Desculpe, papai.
Naquele mesmo ano, recebi a pior notícia
possível, depois que meu pai se fora. Minha mãe havia
sofrido um AVC. Recebi a notícia de minha irmã, que
teve de me ligar durante uma reunião
importantíssima. Os médicos não souberam explicar o
que exatamente causou o acidente, mas de uma coisa
eu e ela sabíamos: mamãe nunca tinha sido a mesma
depois da morte de papai e piorava a cada ano. Sua
saúde estava precária e nem mesmo os cuidados de
minha irmã, que permaneceu em Whiteview, foram
suficientes para evitar este terrível acontecimento.
Confesso que era uma tortura ter que seguir
minha carreira em um lugar tão distante enquanto
minha mãe se encontrava naquela situação.
Discutimos diversas vezes, mas ela não queria que eu

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voltasse. Sabia ela que minha chance em Los Angeles
era única. Pode-se dizer que um dos motivos de eu estar
aqui seria para deixá-la feliz, orgulhosa. Mas como
posso realizar o desejo de uma pessoa tão importante
para mim e fechar os olhos para o que talvez fosse mais
importante ainda. O meu desejo.
Eu sempre achei que era isso que eu queria. Um
cargo poderoso, importante. Ser uma mulher poderosa.
Bem, isso eu não nego. Porém, não ali. Não naquele
meio.
E não são as pessoas de lá. Sou eu e somente eu.
Eu não sabia o que fazer a seguir. Sair, ficar?
Então minha mãe se foi. Sua morte me despertou
daquele transe. Tive, então, que fazer a escolha mais
difícil da minha carreira.
Deixei Los Angeles.

Fazia muito frio e enquanto eu percorria as ruas e


avenidas do centro de Whiteview, podia ver pela janela
do táxi a calmaria daquela cidadezinha. Era tão bom

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estar de volta e eu não via a hora de chegar em casa e
preparar uma boa xícara de café.
O táxi parou em frente a uma casa amarelo claro
de dois andares. Aquela era a casa em que eu e David
escolhemos para ser o nosso lar durante muitos anos.
Agora era só minha.
Eu não queria que fosse assim, nem em um
milhão de anos, mas o que eu poderia fazer? Nada o
traria de volta. Fazia dois anos que David se fora... se
fora assim como papai e mamãe. Seria meu destino
perder todos próximos a mim? Eu duvidava que essa
pergunta algum dia seria respondida.
Voltei à Terra quando o motorista do táxi deu
duas batidinhas pelo lado de fora da janela, me
chamando. Durante o meu devaneio ele já havia pegado
a minha mala e me esperava, um pouco impaciente.
Desci do carro e paguei pela corrida.
Agarrei a alça da mala e me despedi do motorista,
caminhando até a casa, sonhando em ver a porta de
entrada se abrindo e David vindo ao meu encontro para
me abraçar. Talvez eu precisasse me desprender desses

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tipos de sentimentos e esperanças. Já tive de ouvir
diversas vezes o quão mal isso faz para mim, mas o que
eu poderia fazer? Não é algo que vai embora tão fácil.
Não mesmo. Uma vida de sonhos e planejamentos
jogados na inútil lixeira da vida.
Cheguei à soleira, respirei fundo e entrei. Os
sonhos de segundos atrás foram embora quando vi que
tudo estava exatamente do jeito que deixei quando
parti. Havia alguns papéis jogados pela mesa de vidro
da sala de estar, um casaco pendurado em um mancebo
próximo à porta.
Deixei a mala próximo ao mancebo e caminhei
até o sofá, largando minha bolsa. Fui até a cozinha e
acendi o fogão, deixando um bule de água para ferver
enquanto eu voltava para pegar minha bolsa.
Nisso o telefone da cozinha começou a tocar.
— Olá.
— Kate? Bem-vinda de volta — disse a voz de um
homem na outra linha.
— Acabei de entrar em casa. Você teve sorte —
brinquei. — Como vocês estão?

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— Está tudo ótimo. Bom... Jenna queria saber de
você, me pediu para deixar uma mensagem. Mas já que
te encontrei aí... — escutei o homem chamando
alguém, longe do fone. — Ela já vem falar com você. E a
viagem, correu tudo bem?
— Ah, tudo bem... Sim, foi tudo muito bem. É
sempre bom voltar à Nova York.
— Fico feliz por você. Afinal, eu sei que não é
nada fácil aguentar as pontas depois do que... bem...
você sabe.
— Não se preocupe, Mark. Eu ficarei bem,
eventualmente.
Ouvi um suspiro de Mark do outro lado. Parecia
que ele não sabia mais o que dizer.
— Oh, Jenna está aqui. Nos falamos outra hora.
Naquele momento ouvi a água atingir a
temperatura certa. Corri até o fogão bem a tempo de
ouvir uma segunda voz na linha.
— Ei, Katie.

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— Jenna... É tão bom ouvir sua voz! — Fazia
tempo que eu e Jenna não conversávamos bem. Sentia
sua falta.
— E eu digo o mesmo. Você parece tão cansada.
Espero que tenha corrido tudo bem lá em Nova York.
— É o maldito jet lag. Nada que uma noite de
sono não resolva.
— Claro... é uma pena, pois eu tinha planos para
hoje à noite. E você seria a convidada de honra. Estou
morrendo de saudades, mas eu entendo...
— Eu sinto muito, Jenna. Eu também sinto a sua
falta.
— Vou te perdoar dessa vez, mas da próxima
você não me escapa, viu?
Eu ri, sabendo que ela iria me cobrar duramente.
E ai de mim se arranjasse uma desculpa novamente.
Mas seria uma outra hora, um outro dia.
— Está combinado. Nos falamos depois, ok?
— Até mais!

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Desliguei o telefone e fui terminar de preparar o
café, pensando na conversa com Jenna. Eu realmente
sentia falta deles.
Servi uma xícara bem generosa, dando um gole e
depois deixando-a em cima da mesa da sala. A mala
ficaria para depois. Eu estava muito cansada e só queria
me livrar desse monte de roupa de viagem. Fui até o
quarto e tirei peça por peça. Gorro, cachecol, sobretudo
e minha bota de cano alto. Troquei o resto por uma
confortável camisola e me deparei com o relógio no
criado-mudo mostrando 20h27min. Logo ao lado havia
um porta-retratos com uma fotografia minha e de
David. Peguei-a e uma lágrima solitária desceu pelo
meu rosto.
Com todas as minhas forças, coloquei o porta-
retratos de volta no lugar e voltei para a sala, pois
precisava terminar alguns relatórios para amanhã. O
cansaço e o sono não poderiam me derrubar tão cedo.
Bebi outro gole de café e peguei minha bolsa do sofá.
Tirei uma pasta de dentro e despejei o conteúdo
na mesa da sala. Aquela bagunça me deixava

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desconfortável. Todos aqueles relatórios e documentos
de outros casos. Eu sabia que precisava colocá-los em
ordem, só não sabia quando.
Começou uma chuvinha gostosa e passado
algum tempo acabei adormecendo em cima dos papéis.
Comecei a sonhar... Eu já havia sonhado com David
antes, mas esse sonho parecia tão real. Eu estava
deitada em minha cama, protegida até o pescoço com a
coberta e lá estava ele, sentado numa cadeirinha no
canto do quarto, pensativo. Seus olhos castanhos
escuros fixavam o chão e eu o ouvi dizer com uma voz
distante: “Não foi sua culpa.”.
Aquilo me atingiu de uma forma que senti como
se uma faca atravessasse meu peito e congelei por
alguns segundos. Eu realmente não sabia o que fazer,
mas sussurrei seu nome. Ele estava sentado de costas
quando virou somente a cabeça e eu pude ver seu rosto
fantasmagórico olhando para mim. Seu olhar
transmitia compaixão.
— Sinto sua falta — foram as únicas palavras que
consegui reunir naquele momento.

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— Não diga isso, você ficará bem.
Subitamente despertei daquele sonho tão vívido,
me endireitei na cadeira, levei minhas mãos ao rosto e
comecei a chorar. Havia parado de chover.
Foi um sonho muito estranho, tão real. Levantei-
me e, indo até o quarto, vesti a primeira roupa que vi
pela frente. Marchei até a sala, pegando minha bolsa e
as chaves do carro. Aproveitei também e agarrei o
casaco que estava pendurado na cadeira da mesa de
jantar e saí. Naquele momento, naquela casa,
principalmente depois do sonho tudo me fazia pensar
em David e eu só precisava de um lugar calmo.
Dei partida no carro e dirigi sem destino até que
resolvi parar em uma praça não muito longe. Não era
uma praça grande. Havia alguns bancos, muitas
árvores e um pequeno lago raso. Caminhei até a
margem e observei os reflexos na água. Encarei a mim
mesma e reparei que não havia pegado luvas.

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Pus imediatamente minhas mãos nos bolsos no
casaco na tentativa de esquentá-las e senti algo dentro.
Era uma fotografia. Para ser mais exata, uma fotografia
minha e de David, alguns dias depois do nosso
casamento. Contemplei sem pressa nossa felicidade.
Éramos tão felizes e agora tudo chegou ao fim. Não era
justo que tivesse acabado desse jeito. Tínhamos uma
vida pela frente, planos e sonhos que ficarão agora
somente na memória. Fiquei refletindo sobre isso por
algum tempo e decidi fazer mais uma parada antes de
voltar para casa.
Dei meia volta indo em direção ao carro. Logo em
seguida ouvi um ruído vindo de trás de alguns
arbustos. Um galho quebrando, talvez. Havia alguém
lá, mas não fiquei muito tempo para descobrir. Apertei
o passo e em segundos estava dando a partida no carro.
Dirigi até a minha próxima parada. Cheguei em frente a
um sobrado branco com um bonito jardim. Caminhei
até a porta e bati. Segundos depois ela se abriu.
— Katie! Que surpresa!
— Oi Jenna. Será que posso entrar?

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Ela me olhou como se eu tivesse feito a pergunta
errada. Ao invés de responder me estendeu os braços.
Eu me aproximei e a abracei. Jenna era mais ou menos
do meu tamanho, tinha cabelos curtinhos na altura dos
ombros, lisos e escuros como a noite. Seus olhos verdes
claros refletiam a felicidade ao me ver.
— Desculpe-me te incomodar tão tarde... É que
acho que preciso de alguém para conversar.
Jenna me lançou um sorriso de consolo e eu a
acompanhei até a sala.
— E quem melhor que sua irmãzinha? — Jenna
era uma pessoa encantadora com seus trinta e dois
anos. — Vamos, pode me contar tudo.
Suspirei e então falei de uma vez.
— Bem... Isso vai soar um pouco estranho — e
comecei a lembrar do sonho que tive com David. — Eu
adormeci enquanto estava dando uma olhada nas
informações sobre o acidente e acabei sonhando com
David. Mas foi um sonho tão real, diferente de todos os
outros. Ele disse que não foi minha culpa. – Senti meus

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olhos começando a marejar. - Eu não sei quanto tempo
mais vou conseguir lidar com isso.
Simplesmente desmoronei nos braços de Jenna e
comecei a chorar. Ela me abraçou apertado e isso me
fez sentir melhor.
— Não é nem um pouco estranho, Katie. Eu sei o
quanto dói — falou Jenna. — Perder alguém que ama.
Depois de um tempo eu havia me acalmado um
pouco, mas o choro ainda não passava. Jenna olhou
para os meus olhos, agora vermelhos e inchados e me
disse com toda a calma que transmitia.
— Olha... Se existe uma coisa que eu sei é que
você não pode deixar ser vencida por isso, Katie. Você é
tão jovem e tem uma vida inteira pela frente. Você tem
que ser forte agora mais do que nunca.
É incrível como alguém pode fazer você se sentir
melhor apenas com palavras. Jenna é essa pessoa. Não
importa o que ela diz, mas como ela diz.
— Tive uma ideia. Vamos nos divertir um pouco
esta noite, tudo bem? — falou ela.
— Certo. Mas, ah... Vocês não iam sair hoje?

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— Sim, sim... mas queríamos que você fosse
junto. Agora espere só um minuto, vou pegar algo para
bebermos.
Jenna se levantou e foi até outro cômodo e voltou
pouco tempo depois trazendo consigo duas taças e uma
garrafa de vinho.

Minha nossa, estou uma bagunça. Eu estava bastante


tonta. Lembro-me de Jenna dizendo para não beber
tanto, mas acabei exagerando. Ela estava me levando
para o quarto. Quando entramos, Jenna acendeu a luz e
foi uma sensação horrível. A intensidade parecia
triplicada. Cerrei os olhos para ver por onde estava indo
e por fim caí na cama. Jenna me trouxe uma coberta.
— Obrigado.
Ela sorriu e me deu um beijo de boa noite na
testa. Caminhou até a porta e com um click a luz se
apagou.

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— Minha cabeça está rodando.
— Se divertiu querida? — Era David novamente.
Virei-me rapidamente e segundos depois a
imagem que se formou em minha cabeça era de David
sentado na ponta da cama, olhando diretamente para
mim. Desta vez com um olhar feliz.
— Vamos dizer que aproveitei mais do que
deveria.
Nós dois rimos. Era tão bom vê-lo novamente.
Endireitei-me na cama e resolvi fazer uma pergunta
que não saía da minha cabeça.
— Você é real?
— Se o seu coração acreditar, então eu sou.
E eu acreditava.
— Meu amor. Prometa-me uma coisa.
— Qualquer coisa. — respondeu ele.
— Não me deixe — eu estava quase suplicando.
— Preciso tanto de você agora.
Ele me olhou com simplicidade e se aproximou
de mim.

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— Kathy, meu amor... Eu nunca irei te deixar.
Preste atenção...
Ele fez uma pequena pausa e olhou em meus
olhos marrons profundos.
— Nossas vidas são difíceis, são sim... E nossas
perdas são irreparáveis às vezes. Então fique de luto,
mas lute contra isso e encontre o seu caminho de volta
pelos seus próprios termos e pelo seu próprio jeito. E
saiba que eu sempre estarei aqui com você. Não
pessoalmente, mas sempre em seu coração.
Eu não consegui dizer mais nada após isso. Meu
olhar continuava suplicante e vi David se
aproximando. Senti algo em meus lábios. Passei meus
dedos por entre as ondas dos seus cabelos castanhos e
segurando suas mãos, fechei os olhos quando ele me
beijou. Pensei ter sentido um calor envolver meu corpo,
mas se dissipou antes mesmo que eu pudesse entender
o que tinha acontecido. Quando abri meus olhos
novamente, percebi que ainda estava debaixo das
cobertas.

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II

Eu queria sonhar para sempre. Ter David ao meu lado


novamente era ótimo. Tentei dormir e quis muito
voltar para o mesmo sonho, mas era quase impossível.
Olhei o relógio e, vendo que ainda era de madrugada,
fiquei me lembrando dos bons momentos que tive com
David. Lembrei-me do dia em que nos conhecemos...
Eu estava trabalhando até tarde em meu escritório.
Tinha vários processos para revisar e estava exausta.
Foi quando um homem muito bonito, alto, de cabelos
castanhos parou à porta do meu escritório, me
perguntando onde ficava a sala de audiências.
Houve algo naquele primeiro olhar e acabei
acompanhando-o até a sala de audiências. Ao
chegarmos ele olhou para mim e agradeceu.
Novamente senti algo naquele olhar. Algo que eu
não pude explicar e sei que o homem sentiu também,
pois quando eu estava voltando pelo corredor não

26
resisti mais uma olhadela. Ele ainda estava ali parado
próximo à porta e me olhava com um sorriso mínimo.
E eu gostei.
Finalmente amanheceu e Jenna apareceu com uma
bandeja de café da manhã. Ela me perguntou se eu
estava melhor e menti que sim. Ainda estava um pouco
tonta, mas não quis que ela soubesse o quanto eu era
fraca pra bebida. Abracei-a e sussurrei em seu ouvido
um “obrigado”. Momentos depois Mark apareceu à
porta para se despedir e foi trabalhar. Terminei meu
café da manhã com muito gosto e Jenna me
acompanhou até a cozinha.
— Você deveria aparecer mais vezes – disse ela.
Realmente, eu deveria. Assenti agradecida para
ela e pensei nas últimas vezes que tínhamos nos
encontrado. Com um último abraço e um largo sorriso
no rosto eu me despedi. Agarrei meu casaco e caminhei
até o carro, parado do outro lado da rua. Notei que
havia algo no para-brisa: um papel. Peguei-o e percebi
que era, na verdade, uma fotografia. Um homem com
um sorriso bruto me encarava, aparentando uns

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quarenta e tantos anos. Tinha uma barba por fazer e
um cabelo bem curto, num estilo militar. Não havia
nenhuma mensagem, nenhum bilhete, somente a foto.
Joguei-a para dentro da bolsa e entrei no carro. Dei uma
passada rápida em casa para pegar minhas coisas e fui
para o trabalho.
Chegando lá, rumei decidida para minha sala e
comecei a organizar alguns papéis. Pouco tempo depois
uma das estagiárias apareceu me informando que
havia alguém à minha espera, um homem. Estranhei
por um momento, pois não me lembrava de ter
marcado nenhum horário logo de manhã, mas pedi que
o deixasse entrar.
Terminei de esvaziar minha bolsa com os
documentos que ainda restavam quando ouvi uma
batida à porta.
— Ah, obrigado, Charlotte. — Agradeci,
indicando que não precisava mais dos serviços da
jovem, caminhei até o homem. Vestia preto e sua
postura intimidadora revelava um coldre com uma
pistola na cintura e um distintivo preso no cinto. Mais

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acima, no bolso do paletó, apenas uma plaqueta de
metal escrito “E. Price”. Era alto, cabelos comportados
muito escuros e olhos castanho claros penetrantes.
Finalizando o look de homem de preto, uma maleta
pendia de sua mão esquerda.
— Katherine James-Button — falei eu estendendo
a mão.
— Elijah Price, Departamento de Polícia de
Lakeport. Sou detetive — falou o homem me
cumprimentando. — Obrigado por me receber tão
rapidamente.
Senti sua mão apertando a minha um pouco
mais forte que o normal.
— Em que posso ajudá-lo? Espero não ter me
metido em nenhum problema.
Ele sorriu e tirou de dentro da maleta alguns
papéis. Me entregou sem dizer nada. Abri, curiosa, e
presa na primeira página havia uma foto. A mesma que
encontrei em meu carro hoje de manhã. Peguei-a,
estendendo frente a seu rosto.
— Quem é?

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— Byron Burton Turner. Acho melhor você dar
uma lida no restante dos papéis — falou ele, decidido.
Olhei para ele, desconfiada, e sentei na cadeira,
abrindo a pasta e dando uma lida rápida nos papéis. A
cada página eu ficava mais indignada.
— Onde conseguiu tudo isso?
— Bem... Desculpe todo o mistério. Eu estava
checando alguns relatórios outro dia e me deparei com
essa pasta. Vi sua foto e a reconheci. Eu estava de
plantão na noite do seu acidente...
— Você está me dizendo que atendeu a
ocorrência do acidente que matou meu marido? —
perguntei e Elijah assentiu.
Lakeport era uma cidade um pouco maior que
Whiteview e ficava a apenas alguns quilômetros de
distância. De repente vários flashes com os fragmentos
que eu ainda me lembrava do acidente me atingiram
em cheio. O acidente acontecera em uma estrada
próxima à saída de Lakeport, onde a ocorrência fora
registrada. Então imediatamente bloqueei todo e
qualquer pensamento que me vinha à mente. Era

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muita dor. Sentada na cadeira, me voltei aos papéis e
continuei lendo os relatórios e ligando as informações
com tudo aquilo que já tinha reunido.
— Isto é ótimo — dizia eu sem desviar os olhos. —
Como é que nunca fiquei sabendo da existência desses
documentos? — Eu procurara incessantemente
durante meses e meses evidências que me ajudassem a
entender o que havia acontecido naquela noite, mas
nunca cheguei perto de entender, mas estes novos
documentos pareciam ser a chave de tudo isso.
Elijah permaneceu em silêncio e eu levantei a
cabeça fuzilando-o com o olhar.
— Fiquei sabendo da sua procura por provas e
evidências sobre o acidente. Como disse... Encontrei
esses documentos por acaso, um tanto escondidos nas
gavetas — ele parecia um pouco desconfortável. —
Pensei que você gostaria de tê-los.
Concordei intrigada.
— Bom... Ainda estou dando uma olhada nos
arquivos da polícia para ver se encontro mais alguma

31
coisa. Se precisar de algo — ele tirou um papel do bolso
e anotou algo — é só me ligar.
Apanhei o papel e agradeci pela ajuda.
Acompanhei-o até a porta e me despedi.
Eu decidi que naquele dia eu deixaria tudo o que
tinha de fazer de lado e iria me focar somente nas
informações que Elijah trouxera. Eu lia várias e várias
vezes aqueles documentos e juntava as informações
com as que eu já tinha para tentar encontrar algo que
não havia visto antes, mas ainda não tinha avançado
quase nada. Já estava ficando tarde e eu passara o dia
inteiro no escritório. Estava exausta e precisava de um
descanso.
Eu estava indo embora quando avistei um
homem parado do outro lado da rua. Ele não me
parecia estranho. Cerrei os olhos tentando vê-lo melhor
e foi quando o reconheci. Era o homem da foto, Byron
Turner. Fiquei paralisada por alguns segundos e então
minhas pernas começaram a se mover instintivamente
na direção dele. Subitamente fui interrompida por um
caminhão que atravessou pela rua, bloqueando minha

32
visão. Quando o caminhão foi embora, o homem havia
sumido.

No dia seguinte eu estava de volta ao escritório


logo cedo. Ainda intrigada pelo dia anterior. Será que vi
mesmo Byron Turner ou era tudo minha imaginação?
Foi então que me deparei com uma pasta antiga da
época de antes de eu ter me casado com David. Peguei a
pasta e corri até minha mesa, abrindo-a e puxando
tudo para fora. Comecei a ler sem parar. Minutos depois
fui interrompida pelo telefone tocando. A secretária do
escritório me informou que Elijah Price aguardava na
linha e pedi que transferisse a ligação para mim.
— Acho que encontrei algo — disse ele, direto.
Ele me deu uma breve explicação sobre a
descoberta e combinamos de nos encontramos à tarde.
Passei então o resto da manhã relendo os documentos
da nova pasta que eu havia pego. Próximo às uma e
meia da tarde Charlotte, a estagiária, veio me avisar
que Elijah havia chegado. Pedi que o deixasse entrar.

33
Reparei que ele carregava uma pasta tão fina que eu
pensei não haver nada dentro, mas me enganei. Elijah
tirou poucas folhas de relatório e me apontou um
endereço.
— Depois de ontem fiz uma pesquisa no banco de
dados da polícia e encontrei este endereço. Acredito ser
um possível endereço de Byron Turner.
— Byron Turner... — sussurrei, me lembrando
sobre o dia anterior.
— De acordo com os documentos que te
entreguei ontem, ele foi registrado como possível
suspeito.
Quando me dei conta, estava com minha bolsa
pendurada no ombro e a caminho da porta.
— Vamos? — Elijah me olhou por um momento e
eu completei. — Não passo mais nenhum minuto
esperando informações. Quero ir até este endereço
agora.
— Agora? Sem um mandado será inútil uma
investigação — mas era tarde demais, eu já havia

34
passado pela porta. Escutei Elijah vindo atrás de mim.
— Espere! Não vamos nos apressar.
— Vem comigo ou fique aqui — falei,
energicamente, me virando em direção a ele.
Minutos depois Elijah e eu estávamos no meu
carro, a caminho do endereço.
— Avenida Norton, 387. É logo ali na frente —
falou Elijah.
Fui reduzindo a velocidade enquanto
entrávamos em um bairro muito tranquilo e bonito.
Tudo naquela paisagem parecia perfeita, até que
avistamos uma casa do lado direito da avenida. Ela
definitivamente arruinava o visual do bairro. Entre
duas casas muito bem decoradas havia uma caindo aos
pedaços, abandonada e suja. Grande parte das paredes
com pichações, as janelas bloqueadas por inúteis
tábuas de madeira, agora quase despencando.
— Alguém devia tomar alguma atitude em
relação a isso — e apontei para casa. Elijah concordou
comigo e desceu do carro com a mão no coldre depois

35
de eu estacionar. — Acho que não será necessário um
mandado — completei, debochando.
— Definitivamente — respondeu ele, subindo a
pequena escada e parando à soleira. Empurrou a porta e
ela despencou dos trincos com um baque surdo no chão
de madeira, levantando uma espessa camada de poeira.
Elijah cobriu o nariz com seu braço esquerdo e
permaneceu com o direito no coldre.
Eu caminhava atrás dele, atenta. O lugar deveria
ser lar de moradores de rua durante um bom tempo,
devido ao estado da casa.
— Não acho que Byron Turner mora aí — falei.
— Seria difícil.
Elijah adentrou a casa e se o visual da fachada
parecia horrível, não se comparava ao interior. O que
restou dos móveis estavam em todos os cantos,
quebrados e espalhados como se um tornado tivesse
destruído tudo. Haviam cadeiras sem pernas, um sofá e
umas poltronas estouradas. Não havia energia elétrica.
As paredes cheias de bolor e grande parte da pintura
toda descascada. Havia alguns quadros velhos

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pendurados por um fio e outros já tinham até caído.
Encontramos vidro quebrado pelo chão e a única fonte
de luz vinha de pequenas frestas das tábuas que
bloqueavam as janelas e iluminavam alguns cantos
mais do que outros.
— O que houve com esse lugar? — Perguntei,
abismada. — Tem certeza que esse é o endereço certo?
— Deveria ser — respondeu ele, com um tom de
dúvida na voz. — Estou tão estupefato quanto você.
Caminhei pela sala observando o que sobrou dos
móveis e me deparei com um canto ao lado do sofá
destruído. Reparei num rastro diferente no chão, como
se algo tivesse sido empurrado recentemente,
removendo uma parte da grossa poeira.
— Ei, olhe isto aqui.
Elijah estava distraído no outro canto da sala,
analisando um dos poucos quadros que ainda pendia
nas paredes. Ele se virou, não mais interessado no
quadro e olhou para mim.
— Encontrou algo? — perguntei.

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— Não... Nada de importante — respondeu,
dando de ombros. — O que você tinha dito?
— Tem algo escondido aqui, veja — falei,
animada, apontando para o canto do sofá.
Ele me olhou intrigado. Me abaixei e coloquei a
mão por entre o sofá e a parede e tateei a procura de
algo. Elijah me lançou um olhar de curiosidade. Enfiei o
braço mais fundo e de repente senti algo. Agarrei o que
parecia ser um pedaço de papel e olhei esperançosa
para Elijah.
— Encontrou algo? — Ele se aproximou de mim
quando tirei meu braço do vão. Eu não estava
segurando um pedaço de papel, mas sim uma
fotografia. Quando a virei para analisar, senti um frio
percorrendo minha espinha.
Como aquilo estava ali?
— Não. Isso não é possível.
— É David, não?
Era a mesma foto minha e de David que eu
carregava comigo. A mesma que foi tirada pouco
depois do nosso casamento. Levantei-me olhando

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petrificada para a foto. Só eu e David possuíamos
aquela foto e eu tinha certeza que as duas estavam
muito bem guardadas comigo.
— Sim... — respondi, desnorteada.
— Deixe-me ver — pediu ele, estendendo a mão
para mim — Tem alguma ideia de como foi parar aí?
— Não. Eu achava que tinha as duas únicas
cópias existentes, mas pelo visto não... — dizendo isso,
tirei a que tinha da bolsa e entreguei as duas para
Elijah. Ele pegou a minha cópia com a mão esquerda e
com a direita tirou do bolso da calça um pequeno pano,
segurou a foto que achamos e falou logo em seguida.
— Podemos mandar analisar se encontramos
digitais.
Claro! Eu fiquei tão distraída por encontrar
aquela foto lá que precisou de um tempo para voltar a
pensar melhor. E me lembrei do dia anterior.
— Elijah, me lembrei de algo agora. — Estava um
pouco receosa. — Ontem, quando estava indo para casa
posso jurar que vi alguém me observando do outro lado
da rua... — fiz uma pequena pausa e vi que Elijah me

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olhava, curioso. Enchi o pulmão de ar e disse o nome. —
Byron.
— Você viu Byron? — notei certa indignação em
sua voz. Como se fosse a última coisa que ele esperava
ouvir nesse momento.
— Eu tenho quase certeza que sim. Foi muito
rápido. Posso ter me enganado.
Elijah com certeza estava um pouco perturbado
depois dessa notícia e eu não fazia ideia do porquê, mas
tinha a impressão de que ele não estava me contando
algo.
— Está tudo bem?
Ele demorou alguns segundos para voltar a
atenção a mim, dizendo:
— Sim, claro. Estou ótimo. — Pegou as fotos,
colocou a que encontramos em um saco plástico e
guardando-as no bolso do paletó. — Acho que
terminamos por aqui, não?
— Mas e o resto da casa? — Eu estava imaginando
o porquê de ele querer sair com tanta pressa de lá, mas

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eu não estava satisfeita. — Espere só mais um pouco,
deixe-me procurar por mais alguma coisa.
— Está bem. Estarei lá fora esperando. Vou
aproveitar e ligar para alguns analistas. Afinal,
queremos esses resultados o quanto antes, certo? —
falou, dando um tapinha no bolso onde estavam as
fotos e se dirigindo para a porta.
Continuei lá dentro por mais alguns minutos,
mas saí da casa com um ar derrotado. Não havia
encontrado mais nada. Chegando lá fora, vi Elijah
desligando o celular e tudo o que pude ouvir foi algo
como “Está tudo certo, quero esses resultados o quanto
antes!”. Caminhei até ele, dizendo que não havia
encontrado mais nada e ele esboçou desapontamento.
— É uma pena. Mas pelo menos temos algo para
começar a investigar. Já liguei para os analistas e
saindo daqui levarei a foto — entramos no carro e dei
partida. — Disseram que teremos resultados dentro de
uns dois dias.
Voltamos ao meu escritório e Elijah entrou
apressado em seu carro.

41
— Tenho que resolver um assunto agora, mas te
aviso assim que chegarem os resultados.
Assenti e me despedi dele. Fiquei ali parada por
alguns segundos tentando absorver tudo o que
acontecera. O que diabos aquela foto estaria fazendo
numa casa decrépita como aquela?
Incapaz de solucionar este mistério, resolvi dar
uma passada numa lanchonete próxima ao escritório.
Era uma tarde muito nublada, mas o sol lutava para
sair do meio das nuvens.
Chegando à lanchonete pedi um café duplo bem
forte e escolhi um dos pães que tinha acabado de sair
do forno. Mal estava me virando para procurar uma
mesa quando escutei alguém me chamando. Deparei-
me com Jenna sentada bem lá no canto. Fui
imediatamente ao encontro dela.
— Katie, que bom te ver! — disse ela, levantando-
se para me abraçar.
— E eu digo o mesmo — respondi, me sentando à
mesa. — Acabei de voltar de um lugar com um detetive
que me trouxe algumas informações sobre o acidente.

42
— E como foi? Conseguiram algo? — falou Jenna,
apreensiva.
— Na verdade, só uma foto.
Contei a Jenna tudo sobre Elijah e Byron.
Mencionei que a foto que encontramos era a foto que
ela mesma tinha tirado tempos depois do casamento.
— E você não tem nenhuma ideia de como foi
parar lá?
— Não. Eu realmente achei que eu tivesse as
únicas duas — respondi, pensando em tudo o que
aconteceu e o que possivelmente viria a seguir.
Jenna segurou minha mão e olhou fundo nos
meus olhos.
— Eu te amo, irmãzinha. Tenho tanto medo de te
perder. Promete que não vai se meter em nenhum
problema.
— Não vou. Prometo. — Apertei mais sua mão e a
puxei para um abraço.

43
III

Aquele dia tinha começado com uma descoberta que


me deixou inquieta.
Saí da lanchonete e voltei para o escritório. A
secretária me chamou quando passei pela recepção e
me disse que alguém havia deixado uma carta para
mim, mais cedo. Ela me entregou um pequeno
envelope, mas não havia nada escrito em nenhum dos
lados.
— Obrigada — enfiei o envelope na bolsa
seguindo para a minha sala. Uma vez lá dentro coloquei
minha bolsa rapidamente sob a cadeira e puxei o
misterioso envelope. Hesitei por alguns segundos e, por
fim, rompi o lacre. Dentro havia um pedacinho de
papel, mas quando li, não fazia nenhum sentido. Havia
somente uma curta mensagem e nenhuma assinatura
de quem tinha mandado.

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Decidi que tinha coisas mais importantes para
pensar do que um pedacinho de papel com uma
mensagem estranha, então simplesmente o descartei,
rasgando-o em vários pedaços. O dia que havia
começado com descobertas estava terminando num
terrível tédio.
Quando deu minha hora, peguei minha bolsa e
saí pelo corredor. Estava na metade do caminho
quando fui atingida por uma memória, que veio
inesperadamente.

— Será que você não entende? — dizia um


homem, muito irritado.
— Por favor! O que está acontecendo com você?!
— respondeu uma mulher, indignada e desesperada. —
Não faça isso comigo.
O homem não estava a fim de ouvir nada que a
mulher falava.
— Julia, por favor. Pare.

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Julia estava chorando e se aproximou do homem
segurando seus braços, tentando desesperadamente
olhar em seus olhos. O homem simplesmente virou o
rosto se recusando a encará-la. Então ele me viu.
— Srta. James, que bom que chegou — disse
David, com um olhar aliviado.
— No horário combinado — respondi,
formalmente. — Então, vamos?
— Você não pode fazer isso! Eu o amo! — disse
Julia diretamente a mim.

Não sei o porquê me lembrei daquele dia, mas me


pareceu tão estranho agora. Julia Davis era esposa de
David naquela época e tudo entre eles acabou de um
jeito ruim, complicado. Julia recebeu uma ordem de
restrição depois que passou a perseguir David,
querendo-o de volta após um tumultuoso divórcio. A
única coisa que sei é que depois daquela reunião eu
nunca mais tive notícias dela. Foi meu trabalho como
advogada de David conseguir aquela ordem, mas me

46
sentia mal por Julia, pois eu sentia que no fundo ela o
amava de verdade.
Sacudi a cabeça, tentando mandar tais
lembranças para longe e continuei andando pelo
corredor, justo quando meu celular começou a tocar,
ecoando pelas paredes. Atendi e chamei, mas ninguém
respondeu. Desliguei e continuei andando. Minutos
depois uma nova ligação, a qual atendi com a voz um
pouco alterada.
— Quem é?!
Esperei alguns segundos, certa de que ninguém
responderia de novo. Respirei fundo, quase desligando
o celular novamente quando uma voz me chamou:
— Katherine?
Eu conhecia aquela voz! Mas de onde?
— Quem está falando? — perguntei.
Houve um pequeno momento de pausa, mas a
voz falou:
— Sou eu — mais uma pausa. — Julia.

47
Eu podia ouvir sua respiração acelerada do outro
lado e esperei que ela dissesse algo. Que diabos ela
poderia querer, me ligando assim, de repente?
— Eu preciso conversar com você — disse Julia.
— Estou ouvindo.
— Não pode ser por telefone — ela ofegava e
falava quase sussurrando. — Olhe, sei que não
começamos bem. Mas tenho algo que pode interessar
você.
— Já faz muito tempo que não tenho notícias de
você — falei.
Ela suspirou.
— Me desculpe. Aqueles não foram bons tempos
para mim, mas eu gostaria de compensar. Só me ouça,
preciso me encontrar com você, hoje.
— O que tiver para dizer, Julia... Diga agora, por
favor.
Julia soltou outro suspiro, esse mais longo e eu
podia ouvi-la tentando controlar sua ansiedade.

48
— Está bem, mas me escute — ela abaixou a voz
mais ainda, agora definitivamente sussurrando. —
Você recebeu meu bilhete hoje?
— Sim — mas que diabos essa mulher está
planejando?
— Ah, certo. Bem, você precisa acreditar em mim
quando eu digo que o bilhete diz a verdade...
— Calma aí — eu a interrompi, subindo um
pouco a voz. — Isso não faz sentido.
— Katherine. Existem coisas que eu não posso
explicar por telefone, pois não é seguro e é por isso que
te peço novamente para considerar meu pedido.
Prometo que te contarei tudo que sei.
Eu não tive escolha a não ser aceitar. Julia parecia
desesperada e eu sentia que ela realmente sabia de algo
interessante. Combinamos de nos encontrarmos no
mesmo dia em uma praça não tão longe da minha casa.
Não podia negar que estava ansiosa.
Saindo do escritório, tomei um caminho
diferente para casa. Foi quando avistei do lado oposto
da rua, Elijah saindo de um edifício residencial com um

49
embrulho embaixo do braço. Estacionei o carro e fiquei
olhando. Ele não estava com o uniforme da polícia e
fiquei me perguntando o que ele fazia em Whiteview tão
tarde. Peguei o celular e liguei para ele. Quando Elijah
notou o toque, pegou o aparelho e o encarou por alguns
segundos, finalmente atendendo.
— Alô — ele soava impaciente.
— Ah, olá — tentei pensar em algo rapidamente
para falar. — Eu só estava me perguntando se você teve
alguma notícia sobre as fotos.
— Kate, nós a encontramos essa manhã. Temos
que dar um tempo para os analistas — disse Elijah.
— Certo...
Elijah olhou para os lados, como se estivesse se
escondendo de alguém e em seguida falou:
— Escute, eu preciso ir... Estou ocupado com
algumas coisas aqui na delegacia. A gente se fala
depois, tudo bem?
— O.K. Claro. Sem problemas — respondi,
pensando no porque ele tinha mentido. — Até mais.

50
Voltei para casa ainda com a mentira de Elijah e o
bilhete de Julia na cabeça e tomei um bom banho.
Combinamos de nos encontrarmos às sete horas e só
faltavam dez minutos. Peguei minha bolsa, meu casaco
e saí. Já tinha deixado o carro estacionado do lado de
fora. Eu não parava de pensar no que Julia teria de tão
importante para me contar pessoalmente. Tive o
pressentimento que Elijah não deveria saber, pois
minhas dúvidas em relação a ele só cresciam e eu ainda
estava confusa quanto a sua misteriosa aparição.
Eu estava me aproximando da praça e parei o
carro um pouco afastado, continuando o caminho a pé.
Encontrei um banco e me sentei para esperar. A praça
estava completamente deserta e não gostei muito da
sensação de estar lá sozinha, à noite. Cinco minutos se
passaram e eu continuava esperando. Dez minutos.
Quinze minutos e eu já estava quase indo embora,
aborrecida, quando ouvi um barulho, um ronco que
irrompeu aquele silêncio sepulcral. Virei-me
rapidamente a tempo de ver os faróis de carro
iluminando por entre os arbustos até que se apagaram.

51
Continuei ali parada olhando para o ponto onde o farol
se apagara. Com a mão esquerda puxei uma mecha de
cabelo para trás da orelha e finalmente a vi. Julia estava
diferente, para melhor. Sua beleza continuava intacta e
seus longos cabelos dourados reluziam à fraca luz
daquela noite.
Ela veio andando trazendo uma pasta embaixo
do braço, mas parou a uma distância considerável de
mim.
— Julia — ela me olhou com um olhar feliz e
sincero.
— Como vai você, Katherine?
— Bem, estou bem — respondi, tentando ser
simpática. — E você... Está ótima.
— Ah, obrigado — falou ela, abrindo um tímido
sorriso. — Bom, vamos nos sentar?
As luzes dos postes começavam a acender para
iluminar a total escuridão. Fazia uma típica noite de
inverno e eu estava bem agasalhada com meu casaco
de couro marrom escuro e minhas luvas de couro
pretas. Julia também estava preparada para a noite fria

52
e vestia uma grossa blusa preta com um cachecol cor de
sangue.
Caminhamos até o centro da praça onde haviam
mais bancos e era mais afastado da rua. Sentamos e eu
olhei para seus olhos cinzentos e notei que eles
pareciam preocupados.
— Está tudo bem?
— Sim, sim — disse Julia, olhando para o
pequeno lago que havia no centro da praça. — Só é
estranho depois de tudo o que aconteceu... Estarmos
aqui.
Ela olhava para mim e eu entendia perfeitamente
o que ela queria dizer. Perder David era um pesadelo e
eu não tinha dúvidas que era tão difícil para ela quanto
era para mim.
— Estou aqui para ajudá-la.
— No que exatamente? Ainda não entendi o que
seu bilhete queria dizer — Havia algo nela que me fazia
sentir algum tipo de afeição e também uma estranha
sensação de conforto. Durante o último ano eu não
tinha saído muito, sendo a maior parte do tempo

53
dedicada ao trabalho. Era bom revê-la, por incrível que
pareça.
Julia acomodou sua pasta sob as pernas e
começou a tirar alguns papéis e fotos.
— Certo, o bilhete...
— O que você quis dizer com “Não confie em
Elijah”? — pensei no meu telefonema para Elijah mais
cedo, como se estivesse sendo observado. — Vi-o saindo
de um edifício hoje e liguei escondida para ele... — Julia
agora me olhava, interessada. — Ele mentiu sobre onde
estava. Eu gostaria de saber o que ele estava fazendo
em Whiteview tão tarde — Julia soltou um suspiro
como se dissesse “eu já imaginava”. Então eu continuei.
— Você me disse que tinha algo para contar...
— Desculpe-me por fazer tanto mistério, mas
precisava mesmo me encontrar com você e contar tudo
pessoalmente, pois acredito ser mais seguro — eu
sentia sua voz trêmula e seu olhar ainda preocupado.
— Seguro? — perguntei, desconfiada.
— Vou te contar, mas eu preciso que confie em
mim — num milésimo de segundo sua voz se revestiu

54
de uma firmeza que eu não conhecia, o que me fez
prestar mais atenção. — Tudo o que conversarmos
agora precisa ficar em segredo. Elijah não pode saber
que andamos nos encontrando.
Julia não estava para brincadeira e concordei.
— Eu entendo. Não contarei nada a ninguém.
Ela agradeceu com a cabeça, respirou fundo e
começou a falar.
— Bom... Tudo começou alguns meses atrás
quando eu fazia meu trajeto habitual para minha loja.
Porém, algumas vezes eu me sentia desconfortável,
como se não estivesse sozinha... Como se alguém
estivesse me seguindo. Foi quando descobri Elijah —
Julia estava agora com as fotos em mãos e me entregou
algumas. Quando vi a terceira foto, reconheci o edifício
que o vi hoje.
— Esta foto... Você sabe o que ele estava fazendo
aqui?
— Na verdade, eu esperava que você também
pudesse me ajudar — dizia ela esperançosa. — Como
quis deixar tudo em segredo, eu mesma fui atrás dele e

55
tirei as fotos, tentando reunir o máximo de
informações possíveis e tentar descobrir porque
parecia que eu estava sendo observada por ele. Mas é
difícil... Não obtive tantos resultados quanto esperava.
— Este edifício... Foi onde vi Elijah hoje — Julia
não parecia surpresa — Ele mora lá?
— Não. Pelo menos eu acredito que não. — Ela
abaixou a cabeça, olhando para seus jeans. Estava
pensando em algo.
— Você sabe de alguma coisa? — Ela não
respondeu e eu tratei de refazer a pergunta. — Julia.
Você sabe de alguma coisa?
Ela se endireitou, mas ainda parecia muito
distante.
— Desculpe-me, Kate.
— Você está bem? — perguntei, preocupada.
— Sim — disse ela, virando-se para mim. — Na
verdade, acho que sei de algo sim. Não faz tanto tempo.
Na verdade, foi há algumas semanas, enquanto eu
ainda estava investigando Elijah — Julia fez uma pausa

56
para me apontar uma foto que estava junto da pilha em
minhas coxas. — Olhe.
Meu olhar recaiu sobre a foto que ela apontava e
me senti paralisada, quando notei a pessoa junto de
Elijah.
— Esta foto foi tirada na frente do edifício que
você o viu hoje — explicou Julia. — Você sabe quem é
esse homem junto de Elijah, não sabe?
— Sim... — mas que diabos Elijah estava fazendo
com ele? — É o suspeito principal do acidente que
matou David, Byron Turner.
— Exatamente. Eu também aproveitei para saber
mais sobre ele e adivinha só... É como se ele não
existisse. Só encontrei informações inúteis e antigas.
Tenho certeza que ele deveria fazer algo da vida.
— Bom, ele permanece foragido, portanto não me
espanta a falta de informações atuais. Mas qual seu
interesse nele? As investigações preliminares não
foram nem um pouco produtivas, então o deixamos de
lado.
Julia me encarou, inquieta.

57
— Sim, li os relatórios, mas há algo que talvez
você não saiba. Pesquisei recentemente sobre o cara e
não encontrei nada. Nada. Não há mais registros sobre
ele em lugar algum.
Olhei para ela, indignada.
— Ele não pode simplesmente deixar de existir.
Ela me encarou, apreensiva.
— Na verdade, pode sim — olhei para ela,
tentando compreender, mas não fazia sentido. Julia,
então, tirou de dentro da pasta uma folha de papel
dobrada pela metade e me entregou.
— Uma declaração de óbito? Isso não faz o menor
sentido. Não é possível. Eu o vi.
— Eu entendo que você esteja confusa, mas ainda
tenho uma última coisa para te mostrar — ela se
levantou e fez um sinal com a cabeça. — Vamos.
— Para onde?
— Vamos fazer uma visita a Byron Turner.
Eu poderia esperar muitas coisas desse encontro
com Julia, menos isso. O que ela queria dizer com fazer

58
uma visita a Byron? A polícia o procurou por meses,
mas não tiveram sequer um pingo de resultado.
Minutos mais tarde Julia e eu estávamos no meu
carro a caminho do cemitério. Chegando lá Julia
caminhou até o portão e se certificou que estava
fechado. Soltou um resmungo e se virou para mim.
— Vamos ter que fazer do jeito difícil — ela foi até
o muro ao lado do portão e deu um impulso para
agarrar no topo e pulou para o outro lado.
— Não podemos fazer isso! — falei, sussurrando
para ela do outro lado do muro e escutei sua voz em
seguida.
— Fica fria. Venha, você precisa ver isso.
Eu a segui, sem muita opção. O muro não era alto
e, com um pulo, eu agarrei o topo. Dei um impulso e
pulei para o outro lado. Foi quando me dei conta que eu
estava no interior do cemitério no meio da noite. O que
eu estava fazendo?!
Julia estava mais a frente, segurando uma
pequena lanterna que tirara do bolso. Com certeza ela já
havia planejado tudo.

59
— Por aqui, Kate!
Eu caminhei seguindo o pequeno facho de luz
que mostrava o caminho até Julia. Estava um breu total
a não ser pela luz da lanterna. Cheguei até ela e, juntas,
caminhamos com calma pelos caminhos entre os
túmulos. Aquele lugar era assustador durante a noite e
eu nunca entraria lá sozinha. Julia estava se mostrando
mais confiante e de alguma forma eu me sentia segura
junto dela.
À medida que adentrávamos no cemitério, mais
assustador o lugar ficava. Com todas aquelas estátuas
de santos e anjos que se postavam por todo o canto
protegendo as entradas das criptas e mausoléus.
Começou a ventar e uma fina camada de névoa se
formara próximo à grama. Folhas mortas caídas das
árvores se arrastavam pelo lugar e por entre nossos
pés.
— Vamos, estamos quase chegando — disse Julia,
mudando de caminho e seguindo para leste.
Eu estava reconhecendo aquela parte do
cemitério. Costumava frequentar regularmente. David

60
estava enterrado ali e de repente uma pergunta saltou
da minha boca:
— Tem certeza de que estamos no caminho
certo?
— Tenho. É logo ali.
Eu não sabia se Julia tinha conhecimento que
David estava ali perto, mas continuei a segui-la,
relutante, até que uma corrente de ar soprou contra
nós. Vi os cabelos de Julia esvoaçando e ela
instintivamente cobrindo o rosto com as mãos e
virando o corpo para se proteger. Eu que estava logo
atrás também me protegi, mas minha atenção se
voltou a Julia, quando ela me chamou com um tom de
surpresa misturado com tristeza na voz.
— O que? — respondi, passando a mão em minha
franja e jogando os cabelos para trás. — Encontrou o
que estávamos procurando?
— Venha até aqui.
Cheguei mais próximo e encarei a lápide que
Julia apontava com olhos lacrimejantes. Ela o
encontrara.

61
— Eu nunca cheguei a visitá-lo — eu sentia pena
dela.
Eu me aproximei e sussurrei um “sinto muito”,
colocando minha mão em seu ombro. Julia começou a
chorar e logo em seguida desabou em meus braços.
Consolei-a por um tempo até que ela se acalmasse. Ela
havia passado por muitas situações difíceis e agora eu
entendia o que era perder alguém que ama. Eu queria
ajudá-la de alguma forma, mas tudo o que pude fazer
foi abraçá-la mais forte até ela se acalmar. Quando Julia
me soltou, olhou-me e deu um sorriso de
agradecimento.
— Devemos continuar — disse ela, apontando
um caminho e enxugando as lágrimas.
Concordei e minutos depois nós estávamos
paradas em frente a uma segunda lápide. Bem menor e
mais mal cuidada que a de David. Haviam poucas
coisas escritas na pedra.

BYRON BURTON TURNER


☼ 20/05/1974 † 05/10/2010
62
“Descanse em paz”

— Bem, aqui está ele — disse Julia, virando-se


para mim. — Byron Turner.
Eu olhei para a lápide com um assombro e
desentendimento.
— Não pode ser. Tem certeza de que não é apenas
alguém com o mesmo nome?
— Receio que não — respondeu ela. — E acredito
que ele forjou a própria morte.
— O que? Você tem certeza disso? — Julia
balançou a cabeça, confiante.
— Eu realmente procurei saber mais sobre Byron.
Estava decidida a ajudar você, Kate. Byron era a única
pista, o único suspeito. E foi assim que Elijah me
descobriu. Ele me abordou de um jeito não tão gentil.
Disse-me para desistir do que eu estava fazendo, mas
ao invés disso comecei a tomar mais cuidado nas
investigações. Isso tudo me soava muito estranho.
Então descobri que ele procurou por você e resolvi
finalmente interferir. Não confio nem um pouco nele.

63
— E você quis me ajudar? — tentei não soar
muito rude e ela pareceu entender.
— Nós duas passamos por coisas terríveis. Não
vou mentir para você, nunca vou deixar de amar David.
Mas soube deixá-lo ir e quis compensar tudo o que fiz
vocês passarem depois do divórcio. Eu sinto muito.
Fiquei feliz com aquela atitude e decidi que
aceitaria toda ajuda que ela me oferecesse.
— E agora, o que faremos?
— Acho que devemos ir atrás do Byron que está
vivo — disse Julia.
— Com isso eu talvez posso ajudar. Elijah me
passou algumas informações sobre ele. Não tive tempo
de analisar para ver se eram realmente verdade, mas
podemos tentar.
Julia concordou com a cabeça, animada.
— Devemos investigar isso em segredo e irei
enrolar Elijah. Vamos, te levo de volta para o parque.
Voltamos rapidamente, pulamos o muro e
entramos em meu carro. A viagem de volta foi um
tanto silenciosa. Quando deixei Julia na praça ela

64
agradeceu mais uma vez por eu ter confiado nela e se
despediu.
Minutos mais tarde eu estava guardando meu
carro na garagem e entrava em casa. Julia havia
deixado as fotos da investigação comigo e tratei de
guardá-las em um lugar seguro. Fui até meu quarto,
abri o armário e puxei vários cabides de roupas. Havia
um fundo falso. Retirei a parte de madeira e lá estava
um cofre. Usei a combinação para destrancá-lo e
guardei as fotos.
Voltei para a cozinha, preparei um lanche e comi
com muito gosto antes de ir me deitar.

Abri os olhos e olhei para o relógio na cabeceira; ele


marcava 3h16min. Levantei da cama — um pouco
desorientada por conta do sono — e fui até o banheiro.
Depois de me aliviar, lavei as mãos e me olhei no
espelho. Abaixei-me para jogar água no rosto e quanto
me levantei tomei um susto que fez meu coração subir
pela garganta. Com um grito me virei rapidamente. Lá

65
estava ele, David, parado próximo à porta. Ele vestia
um traje social; estava bem arrumado.
— David! — meu coração batia forte e eu tentava
me acalmar respirando fundo. — Estou sonhando?
Ele riu.
— Você me assustou.
— Desculpe-me — eu não me segurei e me
adiantei para abraçá-lo e ele estendeu seus braços me
acolhendo. Foi a melhor sensação que senti há muito
tempo, mas demorei a perceber que seu corpo estava
frio, um frio um tanto envolvente e mesmo assim não
quis me soltar dele.
— Senti falta do seu abraço — disse David e sua
voz reverberava em minha cabeça.
Eu levantei o rosto, olhando para ele e o beijei.
Senti seus lábios frios tocarem os meus. Ele passou os
dedos pelas mechas do meu cabelo e em seguida sorriu
radiante para mim.
— Como você está?
— Eu estou ótima, meu amor — eu estava
segurando suas mãos e não queria mais soltar. Eu

66
sentia falta daquele olhar apaixonado —, mas tem algo
que preciso te contar. — Ele agora me olhava, atento —
Me encontrei com Julia hoje.
— O que aconteceu? — disse ele, passando a mão
em meu rosto.
— Ela me ajudou — e contei tudo o que ela tinha
me dito.
— Você acha que pode confiar nela, meu anjo?
— Desta vez eu acredito que sim... Senti até pena
dela. Julia realmente te amava.
David balançou a cabeça, compreensivo.
— Eu entendo, mas eu e ela não estávamos mais
dando certo. Foi difícil para mim também — ele
acariciou meu rosto e me deu outro beijo, um pouco
mais demorado. — Mas agora você é tudo para mim.
Queria ter você de volta — eu sorri para ele e o abracei
forte. — Preciso ir agora. Não posso ficar muito tempo.
Eu te amo.
Eu abri a boca para protestar, mas era tarde
demais. David evaporou como fumaça e fiquei ali
parada, sozinha com meus pensamentos.

67
IV

Meu encontro com Julia fora interessante. Ela poderia


ser a última pessoa que eu imaginava estar do meu lado
agora, mas a conhecia o bastante para saber que podia
confiar nela. Só queria pôr um fim nessa história...

Uma luz ofuscante me fez fechar os olhos e eu ouvi,


junto a barulhos caóticos, pessoas falando sem parar
próximas a mim. Aquelas palavras entravam direto em
minha cabeça “Tente ficar consciente, moça!”. Eu
obedecia sem saber o porquê e lutava para manter os
olhos semiabertos. Tudo era uma confusão de sentidos
e eu não sabia o que estava acontecendo. Sentia dores
lancinantes por toda a extensão do meu corpo e minha
cabeça estava a ponto de explodir, como se estivesse
sendo pressionada contra alguma coisa sólida. Eu só
queria que aquilo acabasse. Queria ceder à dor e deixar
que ela colocasse um fim no meu sofrimento. E as

68
vozes não paravam: “Vamos lá, falta pouco!” “Não
desista! Fique com a gente!”. “Abram caminho para a
sala de emergência”.
— Da... vid — sussurrar o nome dele foi
extremamente doloroso. Mal escutei minha própria
voz, mas consegui distinguir vultos que se
aproximavam de mim tentando me ouvir e chamei
novamente.
— David? — mais dores inimagináveis me
atingiram quando tentei respirar. Meu peito doía, ardia
e eu tentava com todas as forças puxar o ar.
— Moça, por favor, tente não falar. Tudo ficará
bem.
Os vultos começaram a desaparecer e eu não
tinha quase nenhuma força restante para ao menos
manter meus olhos cerrados.
— Chame o Dr. Chevalier! Temos uma vítima de
acidente em estado grave e...
O que eu senti em seguida foi uma incrível
sensação de paz, tranquilidade e acima de tudo,
felicidade. Se eu tinha morrido, não podia dizer. Havia

69
uma densa névoa me cercando, cobrindo todo o espaço
e eu enxergava a parte de mim que estava coberta de
sangue junto aos vultos, deslocando-se próximos ao
meu ego flutuante, a minha parte extracorpórea, o meu
verdadeiro eu.
O que me parecia a eternidade de paz se dissipou
quando tudo ao meu redor escureceu e fui contida por
uma enorme sensação aterradora. Eu estava de volta à
vida.

Abri a janela do quarto e vislumbrei a calmaria daquela


manhã. Eu podia lembrar vagamente do acidente, das
horas e horas no hospital. O temor que passei na sala de
emergência foi o maior de toda a minha vida, mas nada
me doía mais que estar sozinha agora. Quando me dei
conta, estava chorando novamente.
Dois dias se passaram e não tive notícias de
Elijah. Tentei ligar para seu celular, mas não obtive
sucesso nas sucessivas tentativas. Admito que ainda
estava receosa para entrar em contato com ele depois

70
das revelações de Julia, mas eu tinha que descobrir o
que podia sobre ele e sua ligação com Byron Turner.
Saí de manhã, logo quando meu celular começou
a tocar. Tirei-o de dentro da bolsa e notei um número
desconhecido. Atendi.
— Ah... olá, Kate — eu conhecia aquela voz.
— Elijah?
— Sim. Vi suas ligações e me desculpe por
demorar tanto para retornar.
— Está tudo bem. Por que está me ligando de um
número desconhecido?
Elijah demorou alguns segundos para responder.
— É novo. Precisei trocar. Longa história. — Eu
tinha certeza de que ele estava mentindo. — Escuta,
estou com o resultado da análise das fotos e gostaria de
saber se você quer me encontrar hoje à noite.
Eu não estava com a mínima vontade de ficar
sozinha com esse homem novamente e bolei uma
desculpa esfarrapada.
— Hoje? Hum... tenho um compromisso
marcado. Você não pode deixar no meu escritório?

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Houve uma pequena pausa antes que ele
respondesse com a voz mais baixa.
— É melhor que isso fique somente entre a gente,
Katherine. — Por que tanto formalismo? Ele gostava de
dificultar as coisas — Vamos fazer o seguinte: eu te ligo
assim que chegar à cidade.
Rapidamente desligou, deixando-me com os
pensamentos acelerados. Entrei no carro e dirigi até o
trabalho. Pensei na mentira que contei para Elijah e
isso me deu uma ideia. Chegando ao escritório, peguei o
telefone e disquei.
— Sim, seria ótimo!
— Perfeito! Eu estava pensando no Liberty Grill.
A voz animada de Jenna respondeu.
— Adoro aquele lugar. Bom, a gente se encontra
lá pelas oito?
— Combinado — respondi, animada. — Nos
vemos lá. Até mais, irmãzinha.
Teria sido um dia totalmente estressante no
escritório se eu não tivesse tão ansiosa para sair

72
naquela noite. Fazia muito tempo que eu não me
divertia um pouco.
No fim da tarde pensei em ligar para Julia e
contar sobre o resultado das fotos. Agarrei o celular
novamente e liguei para o número.
— Ei Kate. Como está?
— Tudo bem — respondi. — Por onde você andou
nesses últimos dias? Está tudo bem? Teve mais notícias
sobre... aquilo?
— Ah, sim. Tudo certo. Andei seguindo Elijah,
mas não consegui nada interessante.
— Entendo — disse eu. — Preste atenção. Ele me
ligou hoje querendo se encontrar comigo e disse que
está com os resultados da análise de uma foto que
encontramos em um suposto endereço de Byron, mas
não estou muito a fim de ficar sozinha com ele.
Houve uma pausa e Julia perguntou:
— Eu posso ir atrás dele novamente e vejo se
posso descobrir algo. Se você quiser, claro.
— Julia, pode ser perigoso, você não acha?
Ela suspirou e continuou.

73
— Fique tranquila! Venho seguindo ele faz algum
tempo. Vai dar tudo certo. — Eu agora confiava nela,
mas não podia deixar de sentir certa preocupação.
— Tudo bem. Mas por favor, tenha muito
cuidado.
— Sempre — ela soava como se tivesse tudo sobre
controle. Eu esperava que sim; precisava acreditar. —
Vou ficar bem, Kate. Tome cuidado você também. Até
mais!
Terminei de arrumar alguns documentos nas
gavetas antes de ir para casa. A luz do dia começava a ir
embora para que a escuridão tomasse seu posto. Eu
dizia para mim mesma que tudo ia dar certo, pois Julia
estava se mostrando boa no que fazia e eu sabia que ela
não iria falhar dessa vez. Tranquei a porta do escritório
e caminhei até a recepção para checar se havia alguma
correspondência.
— Hoje não, Srta. Button.
— Muito obrigado, Anna. Tenha uma boa noite —
acenei brevemente quando Anna, a recepcionista,
respondeu:

74
— Para você também, Srta. Button.
Saí do escritório e caminhei até meu carro. Dirigi
tranquilamente pensando nas próximas horas.
Chegando em casa, joguei minha bolsa na cama e corri
para uma boa ducha. Depois escolhi a roupa mais
bonita para aquela noite: um vestido branco de alças,
curto um pouco acima do joelho, mas muito elegante.
Me despi do roupão revelando meu corpo para o
espelho. Mesmo com meus trinta e quatro anos eu não
estava tão mal, apesar que sentia falta dos tempos de
faculdade. Vesti a lingerie e em seguida o vestido.
Escolhi sapatos de cor nude e uma carteira dourada.
Com tudo decidido fui até o banheiro me maquiar e
arrumar os cabelos. Vou confessar que não sou do tipo
que enrola muito e por volta de uns quinze minutos eu
estava pronta. Deslumbrante, como diria David.
Ah, David. Parei na frente do espelho, me
observando...

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— Deslumbrante — David apareceu por trás de
mim, me abraçando pela cintura e beijou meu pescoço.
Eu me virei beijando sua boca, tocando seus
cabelos.
— Como tive tanta sorte de te encontrar, hein?
Ele sorriu para mim e me beijou de volta.
Segurou minhas mãos e as acariciou de um jeito que só
ele sabia. Logo em seguida disse, com muito
entusiasmo:
— Olhe no bolso esquerdo do meu paletó.
Curiosa, coloquei a mão no bolso e senti algo.
Retirei dois papéis e soltei um gritinho de alegria.
— São os convites para a Winter-Night Party.
— Sim, sim! Eu não acredito que você conseguiu!
Beijei-o com muita intensidade.
— Venha, dance comigo.
Fomos até a sala, onde David abriu uma garrafa
de vinho e eu escolhi uma música.
— Oh... All About Lovin’ You? — disse ele,
voltando com as duas taças.
— É a nossa música.

76
— Um brinde, ao nosso amor — disse David, me
entregando uma taça.
— Eu te amo.
Bebemos um gole e ele olhou em meus olhos
castanhos claros. Tudo estava perfeito.
— Aqui, me dê sua taça — coloquei as duas sobre
a mesa e me aproximei, olhando fixamente para ele.
— Me concede esta dança, senhorita? — disse ele,
estendendo a mão e imitando um jovem que acabara de
convidar a rainha do baile para a pista de dança.
Lancei-lhe um sorriso provocativo, estendi
minha mão e me deixei ser conduzida. Dançamos até o
final da música, quando David acariciou meu rosto e
me beijou...
Aquela era uma das últimas lembranças que eu tinha
dele. A festa aconteceu poucos dias depois e foi, de
certa forma, nossa despedida.
Eu ainda me sentia muito vulnerável quando
pensava em David, mas sabia que precisava ser forte e
me apegar às incríveis lembranças que tive com ele. Era

77
uma das coisas mais importantes e eu não podia deixar
de lado. Precisava mantê-lo vivo dentro de mim.
Inspirei fundo e em seguida expulsei o ar de
meus pulmões, ainda olhando para o espelho. Estava
mais confiante agora, pois hoje seria muito divertido.
Caminhei até a sala e dei uma olhada no cabideiro
próximo à entrada. Escolhi um sobretudo bege e saí.
Depois de dirigir por uns dez minutos, cheguei ao
local combinado. Ainda eram 7h42min e resolvi
esperar Jenna lá dentro.
Atravessei a rua e entrei no Grill. Fui até o balcão
e perguntei se havia alguma reserva no nome James e a
balconista disse que uma tal de Jenna James havia
ligado mais cedo e reservado uma mesa. Ela confirmou
meu nome e pediu para uma garçonete que me
acompanhasse até a mesa. O lugar estava bastante
cheio, agitado e eu gostava da energia que o lugar
exalava.
O Liberty Grill fora uma escolha perfeita para
aquela noite. Era um lugar lindo, com um tema rústico
e muito elegante. Cadeiras de madeira e luminárias

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davam ao lugar um clima misterioso, mas muito
aconchegante. Haviam pessoas de várias idades. Os
jovens se acomodavam, bebendo e se divertindo nas
mesas de canto, onde as cadeiras eram substituídas por
pequenos sofás estampados. Casais das mais variadas
idades tinham seus encontros naquela noite. Num
lugar como aquele não era possível se sentir deslocada.
Eu ainda observava o lugar quando uma
garçonete se aproximou.
— Gostaria de algo para beber, querida?
— Sim, claro — falei. — Gin, por favor. Só isso por
enquanto.
A garçonete anotou o pedido e saiu para checar
outras mesas enquanto fiquei observando a
movimentação e o pessoal jovem. Mal sabiam eles
como viviam bons tempos... Poder sair e curtir ao
máximo com os amigos de escola e faculdade. São
coisas que definitivamente vão para a memória.
Olhei para o celular e já tinha passado das oito.
Jenna estaria aqui a qualquer momento. Foi quando os

79
avistei na entrada. Acenei e Jenna veio até mim
radiante.
— Irmãzinha! — Eu adorava quando ela me
chamava assim.
— Jenna! Mark! Estava justamente pensando
onde estavam vocês! É muito bom vê-los novamente.
— Você está ótima, Katie.
Sorri para eles e nos sentamos.
— Ainda bem que me lembrei de reservar uma
mesa antes. O lugar está fervendo hoje, não? — disse
Jenna.
Balancei a cabeça, animada bem na hora que a
garçonete voltou com a minha bebida.
— Ah, chegaram agora? Gostariam de alguma
bebida também?
— Whisky puro — disse Mark.
— Eu acho que vou de gin também, obrigado —
pediu Jenna. E a garçonete saiu apressada.
— Jenna me disse que a investigação está
avançando — disse Mark a mim, sem rodeios. — Que
você encontrou algo interessante.

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— Sim, mas ainda acho que estamos longe de
desvendar esse caso por completo.
— Não diga isso, mana. Eu sei que você vai
conseguir pôr um fim nisso — Jenna segurou minha
mão e eu me senti mais segura com ela.
— É... Eu espero que sim — falei. — Mas me conte
sobre vocês dois. Esse casamento sai ou não sai?
Parece que Jenna estava esperando ansiosamente
por aquele momento e levantou sua mão direita. Não
sei como não pude reparar no enorme anel em seu
dedo, encrustado com uma maravilhosa pedra lápis-
laúzli. Emocionei-me só de ver.
— Não acredito! — Os olhos de Jenna brilhavam
assim como os meus. Eu me levantei e abracei-a com
força. Depois me adiantei para abraçar Mark também e
sussurrei em seu ouvido.
— Você acertou em cheio na pedra. Isso é mais
valioso que diamante para ela.
Ele estava radiante. Em seguida Mark parou ao
lado de Jenna e os dois me encararam, ainda com
enormes sorrisos nos rostos.

81
— O que? — questionei, com a respiração
acelerada.
— Bem... — começou Jenna. Sua voz tentava
fingir preocupação, mas eu tinha a impressão que era
só para me assustar.
Dessa vez Mark falou.
— Jenna quer que você seja a madrinha dela.
E lá se foi todas as minhas chances de tentar
conter as lágrimas. Desabei como um bebê.
— Vocês querem que eu... — os dois fizeram que
sim com a cabeça e abracei-os ao mesmo tempo
aceitando o convite. Nada poderia me deixar mais feliz
naquela noite.
Os momentos seguintes se resumiram a muita
conversa jogada fora, misturada com doses de tequila e
o insubstituível whisky de Mark. Pedimos alguns
petiscos para acompanhar.
— Eu não acredito como as pessoas são malucas
— Jenna trabalhava para o jornal local e sempre
gostava de tecer críticas aos fatos recentes.

82
— Você precisa ver a nova reportagem que Jen
está preparando — disse Mark a mim.
— Sim, sim... Vai ao ar talvez na próxima
semana. É sobre confusões, transtornos dos aeroportos
e bem... suas frescuras.
Depois de mais doses de tequila, estávamos mais
soltos, mais à vontade e eu estava gostando muito
daquele momento. Fazia tanto tempo que eu não saía
assim, sem compromisso, sem preocupação. Sair com a
única intenção de curtir, aproveitar o que a noite tinha
de melhor. E eu amava a noite e esse friozinho de
inverno me proporcionava um bem-estar enorme.
— Você já pensou que quando vamos voar, eles
sempre pedem que desliguemos os celulares... Mas
vocês acham mesmo — havia uma nota crítica na voz
de Jenna. — que a própria companhia aérea deixaria as
pessoas embarcarem livremente com os celulares se
esse perigo fosse assim tão grave? Eu sei que tem muita
coisa que pode interferir os comunicadores, mas isso é
muita baboseira.

83
Concordei, mal ouvindo o que Jenna dizia,
enquanto Mark bebia o último gole de seu whisky.
— Mais uma rodada? — disse ele.
— Ah, pra mim não — respondi levantando as
mãos e sinalizando que tinha chegado ao meu limite. —
Vou voltar dirigindo, já bebi até demais.
— Entendo... Então não se importa se eu e Jen
pedirmos mais uma? Vamos voltar de táxi mesmo —
falou ele sorrindo.
— Vão fundo.
Tudo estava ótimo, estava perfeito. Estávamos
nos divertindo muito e após a última rodada fomos
para a parte externa do Grill, pois tínhamos sido
informados que haveria um show secreto naquela
noite. Devido a preparação do lugar pensei que só
poderia ser alguém muito famoso.
— Eu tive que pagar um pouco a mais quando fiz
a reserva. Disseram-me que tinha um motivo especial,
mas não puderam me dizer.
Dizendo isso, Jenna pegou minha mão e de Mark
e nos puxou para um lugar mais próximo ao palco. A

84
área externa já estava cheia, mas Jenna — com nossos
braços enlaçados — se esgueirava por entre as pessoas
que esperavam ansiosamente pelo show. Pouco tempo
depois as luzes se apagaram, provocando gritos de
excitação. Outra luz iluminou o centro do palco e um
homenzinho apareceu para anunciar o show.
— Olá, olá! Eu sei que vocês estão super ansiosos
e alguns de vocês devem estar se perguntando o porquê
desse mistério todo — pode apostar que sim. — Agora,
sem mais enrolação. Bon Jovi!
Uma enxurrada de gritos envolveu o lugar. Eu
gritava para Jenna de excitação para Jenna. Seria um
show acústico, mas fiquei eufórica em ouvir minhas
músicas favoritas ao vivo, tão pertinho de mim.

— Isso foi... Incrível!


Jenna estava abraçada com Mark e lançou-me
uma piscadela para que eu olhasse próximo ao bar.
Virei-me e um homem estava olhando para mim. Ele
era bonito.

85
— Tá olhando pra você. Vai até lá!
— O que? Não, não.
Jenna se aproximou de mim e sussurrou no meu
ouvido com sua pose autoritária implacável.
— Vai!
Eu estava totalmente sem jeito e envergonhada,
mas a verdade é que eu não tinha saído com ninguém
desde o acidente. Caminhei até o bar, tentando não
olhar muito para o homem e sentei em um dos
banquinhos.
— Por favor, me dê algo bem forte — disse eu ao
barman. Eu sabia que voltaria dirigindo, mas essa era
uma preocupação para outra hora. Olhei para o lado,
mas não o encontrei.
— Ótimo show, não?
Virei-me rapidamente e lá estava ele ao meu
lado, com um copo de uma bebida cor âmbar. Ele
aparentava uns quarenta e poucos anos, cabelos claros.
E aquele sotaque, era inglês com certeza. Estava com
uma bela camisa, também; não que eu tenha reparando

86
nisso, é claro... Balancei a cabeça concordando com o
que ele disse.
— Sou Mason.
— Kate. Katherine — levantei a mão para
cumprimentá-lo e ele a segurou e beijou-a. Que
cavalheiro. Minhas bochechas devem ter corado, pois
ele sorriu.
— O que te traz aqui hoje, Katherine?
— Precisava de um pouco de distração, sabe...
Passamos vários minutos conversando, se
conhecendo e ele se mostrou um cara muito legal. Era
muito inteligente, charmoso. Eu tinha acertado, ele
viera da Inglaterra e estava fazendo uma pequena
viagem pela Califórnia, visitando algumas das
pequenas cidades.
O barman tinha me trazido algo que eu não fazia
ideia do que era, apesar de ser muito bom. Eu já tinha
bebido meio copo e estava sentindo o efeito do drink
misterioso.

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— Mas diga-me... Mason — perguntei. — É
casado? Tem filhos? — Meu deus, por que eu estava
perguntando aquilo.
— Filhos? Não, não, mas fui casado. Minha
esposa faleceu há um ano — senti um aperto no peito.
— Acidente. Carro. — Eu não devia ter perguntado
aquilo. Senti que ele também sofria como eu.
Contei sobre mim, sobre o acidente e ele numa
tentativa de consolo colocou sua mão sobre a minha e
acariciou meus dedos. Senti um calor. Senti uma
angústia. Aquilo não era normal.
— Desculpe-me. Será que você me dá licença um
minuto?
Levantei-me apressadamente a caminho do
banheiro. Jenna reparou e me interceptou no meio do
caminho.
— Katie! Está tudo bem? — disse baixinho,
quando chegou ao meu lado. — Você está pálida. Parece
que viu um fantasma.

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— Jen, eu senti — ela olhava para mim, sem
entender. Continuei em direção ao banheiro e percebi
que Jenna continuava atrás.
Esbarrei em um casal e ouvi o que diziam sobre
uma mulher.
— Ela está melhorando, Julia. Os médicos
disseram que as chances dela aumentaram bastante
nos últimos dias, sabe.
Julia? Virei-me rapidamente, mas não reconheci
uma sequer pessoa.
— Katie! — Jenna continuava me chamando.
Cheguei ao banheiro e ela entrou comigo. Não
havia ninguém lá.
— Katie, fale comigo.
— Eu senti Jen. Senti o toque de David, o jeito
como ele acariciava minhas mãos.
— Irmãzinha, acalme-se. Foi uma coincidência.
Venha cá — ela me abraçou.
— Não pode ser coincidência — sussurrei. — Eu
senti.

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— Querida, nós dois sabemos que isso não é
possível — ela pôs as mãos em meu rosto. — Pensa no
que você está dizendo — eu comecei a chorar e Jenna
me abraçou novamente, sussurrando que estava tudo
bem em meu ouvido.
Quando parei de chorar, retoquei a maquiagem e
Jenna me perguntou se eu não preferia ir embora, mas
eu disse que ficaria mais um pouco. Fiquei imaginando
se o homem, Mason, ainda estaria lá fora me esperando
depois da minha estranha escapada. Jenna se despediu,
mas me disse para ligar se precisasse de qualquer coisa.
Voltei para perto do bar, mas não vi nenhum
sinal de Mason. Caminhei pelo Grill tentando encontrar
alguém conhecido, mas aquele lugar estava lotado... de
desconhecidos. Fui até a entrada e peguei meu
sobretudo. Com sorte eu conseguiria sair com o carro;
mesmo para uma cidade pequena, o trânsito estava
bastante movimentado. Caminhei pela avenida no
meio de um tumulto de pessoas e uma corrente de ar
congelante me atingiu. Onde eu estava com a cabeça
quando escolhi um vestido tão curto?

90
— Com licença. — Um sujeito de sobretudo preto
e um chapéu esbarrou em mim e vi seu rosto de
relance. Não podia ser.
— Ei você! — Chamei, mas ele não respondeu.
Continuou descendo a avenida com pressa.
Segui o sujeito e me certifiquei de que ele não
percebesse. Continuamos até que ele dobrou a esquina
e caminhou até um beco. Eu me escondi atrás de uns
carros e quando entrei no beco, usei as lixeiras como
barreiras visuais. Controlei minha respiração o
máximo que pude. Havia um homem ao final do beco,
mas não pude ver quem era.
— Eu disse para você não me ligar! — O homem
parecia muito descontente e furioso. — Sou eu quem
entra em contato com você.
— Me desculpe. Estava desesperado.
Aquela voz...
— E? — Perguntou o homem do beco.
— Acho que ela me reconheceu. Não sei, foi tudo
rápido demais.

91
O homem do beco socou uma lixeira próxima. O
baralho ecoou pelo beco deserto e sombrio.
— Como você foi tão idiota de deixar isso
acontecer?!
O homem do sobretudo estava assustado.
— Parte do acordo era que ficasse longe dela!
Seu... Seu... — o homem parecia procurar o pior
palavrão para dizer ao homem do sobretudo. Agora
massageava o ossinho do nariz com impaciência.
— Eu não tive como impedir! Não fazia ideia!
— Reze para que você não tenha estragado tudo
— o homem do sobretudo suplicava perdão. — E não
me ligue mais. Você interrompeu algo importante hoje.
Ainda bem que eu estava aqui por perto.
Não acredito. Será que ele estava me seguindo?
— Agora preciso cuidar de uma vadia que não me
deixa em paz. E você, não faça outra merda, está me
entendendo?
O homem desconhecido do beco se virou e eu
puder ver pela primeira vez seu rosto revelado por um
filete de luz que mal iluminava o lugar.

92
— Elijah! — O homem de sobretudo o chamou —
Nosso acordo continua de pé, certo?
Elijah se virou. O filete de luz ainda causando um
efeito macabro em suas feições.
— Por enquanto — e desapareceu pela escuridão.

93
V

Meus temores e dúvidas se tornaram reais. Elijah

tinha escondido muitas coisas de mim e neste


momento eu só queria o porquê.
Se o que Julia me alertada fosse verdade, e Elijah
estivesse me vigiando, então Jenna e Mark também
poderiam estar em perigo. E é claro, Julia também.
Eu continuava agachada, encolhida ao máximo
ao lado de uma lixeira, quando ouvi passos se
aproximando. Um medo tomou conta de mim e, por
instinto, tapei a boca com as duas mãos, tentando não
fazer barulho e abafar minha respiração entrecortada.
Alguém se aproximava e meu coração acelerava. Tudo
o que eu podia pensar era que seria descoberta. Por
Elijah?
Fazia um silêncio tão amedrontador que eu podia
jurar ouvir meu próprio martelando no peito. No
momento seguinte, passou pelo canto oposto do beco,

94
em frente a lixeira, desviando seu olhar para onde eu
estava e me encarou diretamente. Sozinha, naquele
lugar eu corria perigo e não gostaria de imaginar o que
viria a seguir.
Foi quando vi seu rosto. Tomado pelo desespero,
Byron Turner olhava para mim. Vivo! Levei alguns
segundos para perceber que seu olhar parecia vazio.
Ele não me enxergava encolhida no breu do beco,
pois as luzes das calçadas não alcançavam onde eu
estava. Eu só queria que ele fosse embora.
E ele foi. Soltou um longo suspiro e saiu a passos
largos. Tirei minhas mãos da boca, sentindo um alívio
por poder respirar melhor e levantei-me.
Inesperadamente, uma onda de adrenalina me
envolveu e, impulsionada a descobrir a verdade,
minhas pernas agiram por conta própria e contornei a
lixeira à procura de Elijah.
Era difícil me entender às vezes. Sozinha, num
beco escuro, indo em direção ao homem que
supostamente armava algo contra mim. Eu temia ser
pega, mas minha curiosidade era maior. Torci para que

95
Elijah já não estivesse longe e eu pudesse segui-lo de
perto.
Caminhei até uma parede e notei uma passagem
no meu lado esquerdo. Continuei me esgueirando pelas
sombras e adentrando mais ainda pelo caminho no
qual imaginei que terminaria na Rua Hope. Deparei-me
com mais uma parede. Desta vez segui pela direita e
consegui ver o fim do beco. Caminhei mais
rapidamente até que alcancei a calçada. A rua estava
movimentada. Havia tanta gente que tive certeza de
que não encontraria mais Elijah, mas estava errada. A
poucos metros à frente estava ele, andando impaciente
pela calçada, com o celular colado ao rosto, exatamente
como estivera no dia em que o flagrei em frente ao
edifício.
Eu precisava me aproximar, descobrir o que e
com quem ele estava falando. Apertei o passo,
ziguezagueando a calçada e me escondendo sempre que
possível atrás de alguns carros, impedindo que Elijah
me visse quando virava o rosto para observar a rua.

96
Eu me aproximava sorrateiramente dele, quase
ao seu alcance quando seu rosto se virou novamente e
não havia nada para me esconder. O olhar de Elijah
encontrou o meu e imediatamente uma onda de pânico
subiu pelo meu corpo. Seus olhos claros não eram nada
amigáveis e ele não se mostrou surpreso ao me ver,
mas furioso em perceber que eu o seguia de tão perto.
A adrenalina bombeava em minhas veias e meu
coração estava a mil. Elijah me encarou e eu caminhei
em sua direção. Ele me lançou um olhar ameaçador e
logo em seguida saiu correndo para um furgão preto
que estava estacionado no final da rua. Ele acenou
debochadamente para mim e entrou, arrancando pela
Rua Hope e sumindo de vista. Eu fiquei ali, parada por
alguns segundos e então comecei a correr, dando a
volta no quarteirão até meu carro. Eu estava quase
chegando, quando notei que o carro estava parado em
um ângulo esquisito. Os dois pneus esquerdos estavam
furados. Pensei em quem poderia ter feito aquilo e o
rosto de Elijah surgiu em minha mente. Não podia
acreditar que aquilo estava acontecendo.

97
Abri violentamente minha bolsa, tirei o celular lá
de dentro e disquei para o desgraçado.
— Olá Katherine — disse ele num tom suave e
sarcástico.
— O que você quer comigo?!
— Ah, claro... — respondeu, com uma nota de
indignação na voz. — Você realmente não se lembra de
mim. Tenha paciência, por que depois da sua
amiguinha eu tenho algo muito especial só para você,
querida.
— Julia?! O que você fez com ela?
— Vamos dizer que o que eu preparei para ela não
é tão... Hum, tão agradável quanto o que eu preparei
para você.
— Não ouse encostar em um fio de cabelo dela,
seu canalha!
— Katherine, acho melhor você começar a se
preocupar mais com você mesma agora — e desligou.
Julia tinha sido capturada por me ajudar e eu não
podia me sentir pior, mais culpada. Minha bolsa

98
escapou pelos meus dedos, caindo desajeitadamente
pela calçada, atraindo alguns olhares curiosos.
Pensei no que faria a seguir, mas com pneus
furados não iria a lugar nenhum. Assim, agarrei minha
bolsa e acenei para um taxi.
— Para onde?
— Me leve para o departamento de polícia — falei
apressada, fechando a porta. — Em Arlington Heights.
— Sei onde fica, dona.
— Rápido, por favor.
Não precisei dizer mais nada. O motorista pisou
fundo no acelerador e partiu o mais rápido que pôde.
Eu tentava me acalmar um pouco. O departamento de
polícia não ficava longe e eu rezava para que Julia
estivesse bem.
Minutos depois o táxi parou em frente a um
prédio. Eu sabia que não podia demorar, portanto nem
esperei pelo troco da corrida. Saltei do carro e comecei a
andar o mais rápido que pude. O vento frio que soprava
naquela noite deixava meus músculos enrijecidos, mas
me empenhei e apertei o passo. Cheguei à frente de

99
uma escadaria e corri mais ainda. Entrando no hall,
havia um guarda de vigia.
— Com licença, Arthur Simon ainda está aqui?
— E quem é você? — perguntou o guarda, me
analisando.
— Sou Katherine James-Button.
— Ah, Srta. James. Espere só um minuto.
O guarda se encaminhou até o telefone e discou.
Após um breve diálogo, ele disse:
— Ele o aguarda em sua sala, Srta. James.
— Obrigada — disse eu, entrando pela porta que
o guarda apontou para mim.
Era um longo caminho até a última sala, na qual
se encontrava Arthur Simon, chefe da polícia de
Whiteview. Ele era um antigo amigo e eu sabia que
podia recorrer a ele sempre que precisasse de um favor.
Chegando ao final, bati na porta e entrei.
— Olá, Kate — disse Arthur, levantando de sua
cadeira para me cumprimentar. — Devo me preocupar
com uma visita tão tarde?

100
— Estou com problemas, Arthur, e preciso de um
favor.
Ele olhou para mim, preocupado.
— O que você fez?
— Bem... Não é o que eu fiz e sim o que acredito
que estão prestes a fazer.
Arthur aproximou-se de mim.
— Calma. Conte-me o que aconteceu.
— Certo — fiz uma pausa tentando processar
tudo e comecei a contar. Desde quando Elijah apareceu
em meu escritório oferecendo ajuda até a poucos
minutos atrás quando tinha descoberto que Julia havia
sido capturada.
— Venha. Vamos falar com alguém que pode nos
ajudar — disse Arthur, abrindo a porta e me guiando
para fora.
Caminhamos pelo corredor e entramos na
segunda porta à direita, que levava a um novo
corredor. Este por sua vez, menor que o principal
também possuía várias portas. Arthur me conduziu
exatamente a uma porta no começo do corredor.

101
Entramos na sala e me vi diante de várias mesas e
várias pessoas trabalhando em seus computadores.
Acompanhei Arthur até uma das mesas onde
trabalhava um rapaz de óculos, magricela e de cabelos
espetados.
— Aaron. Precisamos da sua ajuda por um
momento — o rapaz se virou, sentindo-se importante.
— A Srta. James precisa que você faça algumas buscas.
— Certo — disse Aaron. — O que queremos
descobrir?
— Precisamos que você rastreie um celular —
respondeu Arthur. — Mostre a ele, Kate.
Passei as informações de Julia e seu número de
celular para Aaron e seus dedos voaram para o teclado,
começando a busca. Eu realmente estava morrendo de
medo que Elijah fizesse algo com Julia antes de eu
encontrá-la. Descobri da pior maneira como Elijah
poderia ser perigoso e temia o que ele tinha planejado
para mim.
— Beleza... Acho que temos algo.

102
Aproximei-me da tela do computador quando
uma mensagem apareceu.

NENHUM RESULTADO
ENCONTRADO

— Merda! Algo deve ter cortado o sinal antes que


eu pudesse localizar a fonte.
— Você conseguiu pelo menos identificar de qual
área da cidade o sinal estava vindo? — perguntou
Arthur.
Aaron checou os resultados e respondeu o que eu
não queria ouvir.
— Infelizmente o sinal foi cortado antes que o
computador pudesse traçar uma rota precisa.
Passei a mão pela testa, puxando meus cabelos
para trás e fechei os olhos, tentando pensar em algum
plano alternativo. Julia podia estar sem tempo e eu
precisava ser rápida. Então a solução brotou em minha
mente.
— Podemos tentar o celular de Elijah — falei. —
Ele estava a caminho para se encontrar com ela.
103
Aaron olhou para mim e concordou.
— Certo. O número é esse.
Mais uma vez os dedos do rapaz estavam a toda
velocidade, trabalhando, e eu esperei, aflita, que
alguma informação aparecesse desta vez.
— Estou quase lá — disse ele, apontando para
algo na tela. — Consegue ver isto? Ele está se
movimentando, bem aqui. West Harbor.
Fui acompanhando o pontinho se
movimentando no mapa e eu soube exatamente para
onde ele estava indo.
— Arthur, eu sei para onde ele está indo e tenho
um forte palpite sobre a localização de Julia também.
Quando eu contei sobre a casa que fui investigar... Bem,
ela fica na Avenida Norton...
— Que fica em West Harbor... — completou
Aaron, curioso.
— Preciso ir para lá agora! — Arthur concordou e
pegou o celular.
— Mandarei uma viatura junto com você.

104
— Certo. Muito obrigada, Arthur. A você
também, Aaron — o rapaz sorriu e Arthur e eu nos
dirigimos à entrada do prédio, onde uma viatura já
estava me esperando.
— Kate, eu gostaria de acompanhá-la. Sei como
isso é importante para você, mas preciso resolver uns
assuntos por aqui.
— Não se preocupe com isso. Pedir para que você
me acompanhasse seria um abuso da sua generosidade,
Arthur. Não sei nem como agradecer por tudo que você
já fez por mim e David.
Apertei a mão de Arthur e entrei na viatura.
— Pronta? — falou um dos dois policiais que
estavam no banco da frente.
— Sim, vamos.
Arthur apareceu pela porta da frente quando
ouvi o ronco do motor.
— É uma casa, fica na Avenida Norton, em West
Harbor — falou para os dois. — A Srta. James guiará
melhor vocês.
— Entendido, senhor.

105
— Boa sorte — despediu-se Arthur. Sussurrei um
obrigado e partimos a toda velocidade.
— O meu nome é Borges, a propósito. Ted Borges
— disse o policial que estava dirigindo, olhando para
mim pelo retrovisor. — Este é o oficial Greg Mitchel.
— Sou Katherine James-Button.

Tivemos que atravessar vários congestionamentos. A


cidade estava um tumulto. Muitos carros, muitas
pessoas de um lado para o outro curtindo a noite, sem
nada com o que se preocupar. E eu ali, correndo contra
o tempo para impedir que um louco fizesse algo terrível
contra uma jovem moça. Eu só queria que esse pesadelo
terminasse. Eu queria David aqui.
— Estamos em West Harbor, Srta. James — falou
o oficial Mitchel. — A Avenida Norton fica a uns cinco
minutos.
— Certo.
Vou falar uma coisa... Andar de carro a essa hora
e num sábado não é uma sábia decisão. A não ser que

106
você tenha paciência para encarar a grande multidão
que dominava as ruas e calçadas, principalmente numa
das áreas mais movimentadas de Whiteview. Paramos
em um cruzamento e fomos forçados a esperar o
grande fluxo de carros.
Olhei pela janela a procura de um pouco de
distração enquanto o trânsito não era liberado e
observei um grupo de pessoas que estavam paradas na
calçada. Vi um homem de costas e senti um calafrio. Eu
estava reconhecendo-o, mas não sabia de onde. Parecia
alguém muito próximo de mim. O grupo de pessoas
estava parado em frente a uma loja toda envidraçada.
Fiquei intrigada. Dei uma olhadela no ainda constante
fluxo de carros que parecia interminável. O oficial
Borges parecia irritado por não poder continuar. Minha
aflição aumentava. Estávamos em uma situação onde
não podíamos brincar com o tempo.
Olhei novamente para onde o homem estava e
agora havia menos pessoas e consegui enxergar seu
rosto pelo reflexo na porta da loja. Eu estava
enxergando o reflexo de David. Eu sei que tinha bebido

107
um pouquinho a mais hoje, mas não tanto para causar
alucinações. Mas se não fosse, o que era? Por um
momento me desliguei de tudo e só prestei atenção no
homem. Senti-me impulsionada a saltar do carro,
correr até lá e provar minha sanidade. Parecia uma boa
ideia. Minha mão se encaminhava lentamente à
maçaneta, mas parei subitamente, interrompida por
um escandaloso som. O oficial Borges tinha chegado ao
seu limite e tinha ligado a sirene. Em questão de
segundos o caminho fora liberado e Borges afundou o
pé no acelerador, cantando os pneus. Uma enorme
quantidade de pessoas se virou, olhando curiosas para
nós. Passamos por outra área congestionada, mas dessa
vez Borges não foi tão paciente, cruzando o caminho
buzinando de leve até que conseguimos atravessar sem
problemas.
A viatura fez uma curva brusca e saímos dos
congestionamentos, entrando na Rua Gardner e logo
em seguida, com uma curva mais suave, estávamos na
Avenida Norton.
— Qual é o número, Srta. James?

108
— Hum... é 387.
— Não estamos longe, então.
Borges diminuiu a velocidade e começamos a
olhar os números nas casas.
— 373... 375 — a rua estava deserta. — 379
— Ali! — apontei logo à frente onde um furgão
preto se encontrava estacionado. — Onde está aquele
furgão.
A viatura continuou descendo pela rua e parou
atrás de um carro, a duas casas de distância do furgão.
— Certo — disse Borges. — Nós vamos entrar
primeiro para checar o lugar.
— Não. Acho melhor eu entrar. Vocês podem se
posicionar e me darem cobertura — respondi, com um
tom autoritário.
— E vai entrar lá de peito aberto? — agora foi a
voz do oficial Mitchel se manifestar. — Não podemos
permitir isso.
— Tenho medo que ele faça alguma coisa com
Julia se ver dois policiais entrando na casa — e era
verdade. Eu tinha certeza que Elijah não esperava

109
minha presença e muito menos de dois policiais
naquela noite. — Preciso de uma arma.
Os dois oficiais me olharam com indignação.
— Pelo menos terei algo com que me proteger.
Não acredito que ele fará algo de imediato contra mim
— mas Borges não estava convencido e muito menos
Mitchel. — Tá bom... Eu sei que é perigoso, mas eu
preciso fazer isso. Não vou deixar que esse louco faça
qualquer coisa com aquela moça.
Borges acabou concordando e, com muita
relutância, foi até a viatura, abriu o porta-luvas e me
entregou uma pistola.
— É uma 9 mm, semiautomática. Por favor, me
diga que sabe usar — falou Borges, não muito
confiante.
— Confiem em mim. Posso estar meio sem jeito,
mas sei atirar.
— Certo, vamos.
Ainda bem que eu estava com meu sobretudo e
pude esconder a arma em um dos bolsos. Se Elijah me
visse com uma pistola não ia ser nada bom. Borges fez

110
um sinal para Mitchel ir pelo outro lado da rua e cobrir
a entrada da casa à distância. Eu continuei pela calçada,
me aproximando do furgão e Borges vinha logo atrás de
mim, com a arma em mãos.
Eu dei sinal para cercarmos o furgão e Borges
pulou para o meio da rua, com a pistola mirando o
chão. Ele parou na lateral do veículo e eu fui pelo outro
lado. Sincronizamos o tempo exato e saltamos para a
frente, apontando as pistolas. Estava vazio.
— Certo, eu assumo daqui — sussurrei para ele,
que concordou com a cabeça, me entregando uma
lanterna.
Escondi a pistola em um dos bolsos laterais do
sobretudo e subi a pequena escada que havia na
entrada da casa. Parei na soleira e vi que a porta estava
entreaberta. Empurrei-a com a mão e peguei a
lanterna. Ao contrário do dia em que vim aqui
investigar a casa com Elijah, agora de noite não havia
nenhuma fresta de luz, portanto acendi a lanterna e vi
a casa exatamente como estava. Os quadros, as cadeiras
e até o sofá onde eu encontrei a foto. Apontei a lanterna

111
para todos os cantos, a procura de alguma pista,
quando vi que algo brilhava à luz, próximo ao sofá.
Aproximei-me e agachei para ver o que era. Passei o
dedo e senti um frio na espinha.
Era vermelho... Era sangue.
— Julia — sussurrei para mim mesma e meus
olhos quiseram chorar.
Eu não estava preparada para uma situação
daquelas, mas Julia veio até mim, arriscou-se indo atrás
de Elijah e agora ele a possuía. Eu tinha que ajudá-la.
Devia isso a ela.
Então reparei que o sangue que eu achava ser de
Julia não estava em um só canto. Ele formava um
rastro, manchando o taco. Acompanhei com a lanterna
o caminho de sangue que passava pela sala de jantar,
com uma mesa e suas cadeiras em perfeito estado.
Eram as únicas coisas da casa que não estavam
destruídas. Continuei seguindo o rastro e entrei em um
novo cômodo. Iluminei o meu redor e vi o que sobrara
da cozinha. Senti repulsa ao olhar para aquele lugar
naquele estado. Panelas e talheres espalhados pelo

112
chão, a mesa de madeira tombada por não ter a quarta
perna e um cheiro de comida podre impregnava o ar.
Aproximei-me, cobrindo o nariz o máximo que pude
para adentrar no campo de podridão e encostei minha
mão da lanterna na pia. No momento do toque senti
uma sensação estranha. Um calafrio subiu pelo meu
corpo e sem querer tirei a mão do nariz, permitindo que
aquele cheiro entrasse pelas minhas narinas, quase me
sufocando. Não tive escolha a não ser correr dali antes
que não pudesse mais segurar a ânsia inevitável.
Logo eu estava de volta ao cômodo com o rastro
de sangue. Apontei novamente a lanterna para baixo e
reparei que o rastro seguia para além de uma porta
fechada. Girei a maçaneta, mas estava emperrada.
Encostei meu ombro na porta, empurrando novamente
com mais força e ela se abriu, rangendo.
Apontei a lanterna para frente e tudo o que vi foi
concreto. Não podia ser uma porta falsa. Foi então que
percebi que não era um lugar vazio. Mirando a lanterna
um pouco mais para baixo revelei uma escadaria que
levava à escuridão. Era um porão bem fundo. Se Julia

113
estivesse ali, talvez fosse por isso que o sinal do celular
dela não pôde ser detectado, ao contrário do de Elijah,
que ainda estava a caminho da casa.
Escutei sons distantes vindos de longe e corri
rapidamente para a porta da frente. Avisei Borges e ele
chamou Mitchel. Fiz sinal para que um deles esperasse
no topo da escadaria enquanto outro ia comigo.
Borges disse para Mitchel ficar. Greg Mitchel era
novo na polícia e seu parceiro Ted Borges era quem
liderava.
Juntos, Borges e eu descemos a escadaria. Era
muito íngreme e acenei para que ele tomasse cuidado
com os degraus. Depois de alguns segundos descendo,
chegamos a um ponto que havia uma porta de madeira
bloqueando o resto da escadaria. Borges adiantou-se e
chutou a madeira. Quando chegamos ao final, iluminei
um caminho estreito e vi uma porta entreaberta. Uma
fonte de luz muito fraca irradiava lá de dentro. Fiz sinal
para que Borges esperasse ali no escuro com a lanterna
enquanto eu entrava no porão.

114
Com a mão esquerda empurrei a porta e deixei
minha mão direita próxima ao bolso onde estava a
pistola. Vi uma fraca fonte de luz em um canto. Era
uma lamparina solitária. Eu podia sentir a presença de
alguém, mas os sons agora cessaram. Caminhei até a
lamparina e peguei-a. Dei meia volta e fui aos poucos
revelando o lugar. O lugar estava pior que a sala de
estar, mas não tinha o cheiro ruim da cozinha. O porão
cheirava a mofo.
Era um lugar grande e caminhei por entre as
vigas de sustentação, mas não encontrei nada.
Adentrei tanto que agora eu estava perdida no meio
daquela escuridão sem saber quando o inimigo
atacaria. Caminhei sem rumo e aos poucos ouvi uma
respiração muito fraca. Fui me aproximando cada vez
mais e comecei a ouvir alguns gemidos e finalmente a
avistei.
Julia.
Era ela. Não pude acreditar quando a fraca luz da
lamparina iluminou seu rosto, que uma vez fora lindo e
agora apresentava vários sinais de luta e agressão. Sua

115
cabeça estava sangrando e ela estava com um profundo
corte no rosto. Seus braços estavam amarrados em uma
das vigas.
— Julia! — falei, com a voz falhando e
desmoronei, chorando ao vê-la naquele estado.
Ela, que gemia baixinho de dor, arregalou os
olhos quando me viu e tentou dizer algo,
desesperadamente, mas a mordaça que machucava sua
boca a impedia.
Rapidamente livrei sua boca e dessa vez minha
voz saiu mais clara.
— Julia! Vou te tirar daqui.
— Elijah! — gaguejou ela, engasgando.
Virei-me com a lamparina e o rosto se revelou.
Não fui rápida o suficiente para agir, pois quando abri a
boca, apavorada, tudo escureceu.

116
VI

Senti-me sem esperanças e totalmente perdida. Minha


cabeça doía, latejava e eu estava tão desnorteada que
mal conseguia manter os olhos abertos. Eu podia ouvir
passos impacientes e quando finalmente consegui
manter meus olhos cerrados, notei que estava em um
lugar muito escuro. Duas lamparinas iluminavam o
homem que andava impaciente.
Tudo então começou a voltar na minha mente. O
sequestro de Julia, a casa, o porão. Elijah. Ele se
encontrava próximo a Julia, agora desacordada, e
quando tentei correr até ele, senti uma dor percorrendo
meus braços. Eu estava presa em uma das vigas
também.
— Se já não era hora — falou Elijah, segurando
minha pistola. — Achei que não fosse mais acordar.
Olhei de Elijah para Julia e o desespero tomou
conta de mim.

117
— O que você fez com ela? Ela não está...
— Morta? Ah, não... Pelo menos ainda não —
respondeu Elijah, parecendo empolgado com a posição
que se encontrava agora.
Ele se aproximou de Julia e deslizou o cano da
arma pelo seu rosto. Senti-me impotente por estar
presa e não poder fazer nada, mesmo sabendo que eu
não tinha a mínima chance contra aquele monstro.
Agora a pistola se emaranhava por entre as mechas
douradas de Julia e o rosto de Elijah se aproximou,
quase encostando seus lábios nas bochechas pálidas
dela.
— Você me causou muitas complicações,
mocinha — falou, olhando para Julia, ainda
desacordada. — Sinto muito, mas não posso deixar
você sair livre de tudo isso.
— Não!
O monstro virou seu rosto, me encarando com
um semblante amedrontador.
O que eu fiz para atrair esse pesadelo para a minha
vida?

118
— Quer dizer algo? — Ele veio andando até mim.
Não consegui reunir palavras. Era tanta coisa que eu
não entendia. Tanta coisa que eu precisava saber.
Abri minha boca e palavras não saíram. Elijah me
olhou com deboche e se afastou adentrando nas
sombras. Só pude ouvir seus passos ecoando no silêncio
daquele lugar. Minha respiração se acelerou em pensar
no que aconteceria em seguida. Elijah caminhava
lentamente e acendia alguns lampiões que se
encontravam presos nas vigas. Agora pude finalmente
enxergar melhor. Julia estava descalça, vestia uma
calça jeans com manchas de sangue e uma blusa branca
tão suja que já nem parecia a mesma. Um corte em sua
barriga fazia seu sangue escorrer e pingar no chão. Ela
morreria se não parasse de sangrar.
— Por favor — disse eu, com dificuldade. — Ela
está perdendo muito sangue. Por favor, Elijah!
— Fica quietinha por um momento, querida —
Elijah terminou de acender o último lampião,
revelando uma mesinha de canto com uma ampulheta
de cristal em cima. Não entendi o que aquilo

119
significava, mas senti que estava prestes a descobrir.
Elijah olhou para mim com uma expressão fria e,
virando a ampulheta, falou.
— Vamos conversar.
A areia começou a cair e foi quando entendi o
proposito daquilo. Elijah caminhou até Julia e passou a
mão em seu pescoço.
— Ela ainda está viva, mas não por muito tempo
— e apontou a arma para a ampulheta.
Fiquei aterrorizada. Juntei um pouco de força que
me restava e com uma tentativa fracassada tentei me
soltar. Elijah olhava para mim balançando a cabeça.
— Me solte, por favor — implorei. As lágrimas
caíam de meu rosto e pude ver a olhar de satisfação do
monstro. — Preciso ajudá-la.
— Kate, Kate, Kate. Você não pode ajudar
ninguém agora — falou ele, puxando uma cadeira que
estava próxima a mesinha de canto e sentando entre
mim e Julia. — Eu me lembro de ter te avisado para se
preocupar mais com você mesma. Confie em mim...

120
— Confiar em você? Você não pode estar falando
sério! — Falei, com perplexidade. — Julia...
— Julia é inútil! — Interrompeu bruscamente
com um sussurro que me gelou a espinha.
Elijah levantou e prendeu minha arma em sua
cintura. Foi até a mesinha, retirou da gaveta uma faca
reluzente e se encaminhou até Julia. Me apavorei,
puxando meus braços, mas não conseguia me mover.
— Você não vai sair daí — ele riu. — E agora...
Acho que eu podia tirar o sofrimento dessa pobre
coitada, não acha?
— Um sofrimento que você próprio causou!
— Correto... Mas se ela não tivesse se intrometido
nisso tudo, nada disso precisaria acontecer.
— Você é doente!
— Não, querida. Só estou apaixonado — seu olhar
fixou-se no meu.
O que?!
— Você queria saber meus motivos... Você
poderia ter ficado comigo! — falou ele, agora com um
ar de tristeza. — Mas não! Esperou até pegar aquele

121
estúpido caso e acabar se enroscando com aquele idiota
do David!
— Do que é que você está falando? — Eu estava
aterrorizada e minha voz falhava enquanto ouvia
aquilo.
Neste momento Julia despertou, mas não estava
totalmente lúcida.
— Olha só quem acordou! Pena que o tempo dela
está acabando — Elijah apontou com a faca para a
ampulheta e percebi que realmente não havia mais
tempo. A areia estava quase toda do outro lado.
— Não faça isso, Elijah — pedi a ele.
— Agora é tarde demais, querida — ele começou
a se aproximar de mim, girando a faca entre os dedos.
— Não!
Ele sorriu e parou na minha frente, com seu
corpo quase encostado no meu. O monstro deslizou sua
mão livre pela minha coxa e foi subindo até minha
cintura. Aproximou seu rosto do meu pescoço e
suspirou, passando a faca levemente em meu rosto.
— Pare com isso — supliquei, às lagrimas.

122
Ele fungou e segurou meu queixo, apertando-o e
senti seus lábios perversos nos meus. Instintivamente
cravei meus dentes e senti o gosto do seu sangue em
minha boca. Cuspi em seu rosto. Ele ficou possesso e
me socou no estômago. Uma dor enorme tomou conta
de mim e comecei a respirar com dificuldade, mas essa
era uma das coisas que eu menos devia me preocupar,
pois momentos depois senti uma queimação em meu
braço. Algo estava cortando minha carne. Gritei
alucinadamente.
— Não devia ter feito aquilo — senti meu sangue
escorrer por todo meu braço. Elijah parou em minha
frente com a faca na altura dos olhos. A lâmina reluzia
com o líquido rubro à luz fraca.
— Seu desgraçado!
O monstro apertou meu queixo novamente, com
força.
— A mamãe não te ensinou os bons modos?
Tentei cuspir novamente. Era o único jeito de eu
atingi-lo, mesmo que fosse inofensivo. Mas dessa vez

123
ele foi mais rápido e tampou minha boca com sua mão
e eu tentei gritar.
— É uma pena você estar agindo tão mal. Se
continuar assim nem vai chegar a ver a sua surpresa...
Elijah lentamente tirou a mão da minha boca e
sinalizou com a faca para que eu não gritasse. Foi até a
pequena mesinha onde a ampulheta estava e limpou a
faca na roupa. Ela estava nos seus últimos minutos.
— Mas que momento maravilhoso nós temos
aqui. Minhas duas garotas exatamente onde eu quero.
Olhei para Julia e vi suas pálpebras lutando para
se manterem abertas e notei também que seu peito se
movia com dificuldade.
— Kate — tentou sussurrar ela.
— Guarde suas forças, Julia. Vai ficar tudo bem...
Elijah andava em direção a Julia com a faca ainda
em mãos.
— Promessas vazias, Katherine. Pelo tempo que
está aqui, sua amiga já perdeu uma boa quantidade de
sangue. Seus batimentos estão acelerados, sua pele está

124
fria. A hora dela está chegando — e apontou
novamente para a ampulheta. Faltava segundos.
— Quer dizer suas últimas palavras? — falou
para Julia.
— Eu... Eu.
— Que pena, não tenho tanto tempo para
desperdiçar.
O último grão de areia caiu. O tempo havia
chegado ao fim e eu não consegui salvá-la. O monstro
olhou para mim e falou.
— Diga adeus a Julia Davis — a faca assassina
elevou-se ao ar e gritei o mais alto que pude.
— Não!
O momento seguinte resumiu-se a um estrondo
vindo de um canto do porão e Elijah paralisou com a
faca no ar quando, das sombras, Ted Borges se
materializou, com sua arma apontada para o peito do
monstro.
— Jogue essa faca longe! Agora! — Borges se
aproximava cada vez mais e pude ver o pavor em seu
rosto. Mas não era só ele. Elijah também estava tão

125
assustado quando o oficial. Pude notar que ele não
esperava por aquilo.
Elijah olhou para mim com um olhar de decepção
e eu retribuí com um olhar de triunfo, vitória.
— Jogue a faca! — Elijah não obedeceu e
continuou a se aproximar cada vez mais de Julia. —
Afaste-se dela!
Por um breve momento pude jurar que seria o
fim de Julia, mas quando a faca estava muito próxima
dela Borges atirou. O monstro foi atingido no braço
esquerdo e urrou de dor. A faca voou de sua mão e ele
caiu no chão.
Borges, ainda com a arma apontada para o
monstro veio até mim e passou a mão por trás da viga
para sentir o nó que me prendia.
— Salve Julia antes, por favor.
— Acalme-se, Srta. James. Vamos todos ficar bem
agora — Borges passou sua faca pelo nó e as cordas
cederam.
— Corra e avise Mitchel para entrar em contato
com a central — e apontou para a direção na escuridão

126
onde se encontrava a saída. — Vou ajudar Julia. Faça
pressão nesse ferimento. Agora vá!
Sussurrei um obrigado e andei em direção à
escuridão. Não imaginei que esse pesadelo teria um
fim.
Caminhei até a saída, com dificuldade. Eu
pressionava o corte com a mão e apoiava meu braço
contra minha barriga. Sentia-me um pouco zonza e
com calafrios. Tudo estava para terminar. Este terrível
pesadelo estava chegando ao fim.
Eu estava próxima a porta quando um barulho
ecoou por todos os lados. Instintivamente e
impulsionada pelo tremendo susto, virei-me e me
deparei com a figura de Borges parada de frente para
mim. Seu olhar trazia dor, sofrimento. Durou pouco,
pois logo esse mesmo olhar transformou-se em um
vazio profundo; uma imensidão na escuridão. Ted
Borges cambaleou e despencou no chão.
Elijah segurava minha arma que havia prendido
na cintura e agora apontava diretamente para mim.
Senti a adrenalina tomar conta do meu corpo. Minha

127
respiração se acelerou e eu corri. Corri o máximo que
pude para dentro da escuridão. Outro estrondo. Não me
acertara. Consegui chegar ao pé da escada, ofegante, e
comecei a subir desesperadamente. Uma vez lá em
cima agarrei meu celular e tentei usar a luz do visor
para me guiar.
— Mitchel! — gritei seu nome.
O jovem oficial apareceu correndo vindo da sala
de estar, alarmado com os disparos. Foi então que me
viu sozinha.
— Onde está Ted?
Eu comecei a chorar e quase desabei no chão,
mas Mitchel me segurou em seus braços. Ele parou ali,
junto comigo sem acreditar.
— Não, não pode ser — disse, por fim.
Senti-me um pouco zonza. Mitchel viu aquele
sangue todo escorrendo do meu braço.
— Ah, meu Deus. O que foi que aconteceu?
Contei que Elijah me cortara e Mitchel me
acompanhou apressadamente até a viatura,

128
apanhando um Kit de Primeiros-Socorros para enfaixar
meu braço.
— Não é grande coisa, mas vai ajudar.
— Obrigada — agradeci, ainda aterrorizada. —
Olha, precisamos voltar. Julia ainda está lá e...
— Srta. James... Você ainda acredita que ela está
viva?
Eu captei sua preocupação. Olhei em seus olhos e
respondi:
— Preciso acreditar.
Mitchel protestou algo sobre ser muito perigoso,
mas no fim acabou aceitando voltar para o porão.
Retirou a pistola do coldre e tomou a frente num ato de
coragem. Acendeu a lanterna e descemos
cuidadosamente para não fazer muito barulho. Mitchel
passou pela porta de madeira destruída e desligou sua
lanterna.
— Certo, fique bem atrás de mim — sussurrou.
Mitchel parou à porta e vi que o lugar estava um
breu novamente. Elijah havia apagado todos os
lampiões e isso não era um bom sinal. O oficial

129
levantou a mão sinalizando para que eu esperasse um
pouco. Quando ele finalmente adentrou ao interior do
porão eu o segui. Por alguns momentos o silêncio e a
escuridão predominavam, mas isso mudou quando
uma luz surgiu de um canto. Elijah tinha acendido um
dos lampiões e agora revelava Julia solta das vigas, mas
presa pelos seus braços, que se encontrava atrás dela
com a faca pressionada contra seu pescoço. Eu
paralisei.
— Solte-a! — ordenou Mitchel.
Elijah lançou um sorriso provocativo e balançou
a cabeça. Seu olhar agora era psicótico. O ferimento à
bala em seu braço manchava cada vez mais sua camisa.
— Largue a arma ou ela morre — falou,
sussurrando. — Jogue-a aqui para mim.
Mitchel se retesou por alguns segundos,
incapacitado, e não teve outra opção senão obedecê-lo.
Descarregou a pistola, colocou no chão e empurrou até
os pés de Elijah. Ele chutou-a para um canto sem luz.

130
O monstro agora caminhava em direção à porta,
contornando Mitchel e eu. Ele arrastava Julia, que mal
conseguia andar.
— Vocês me seguem e ela morre — alertou.
Eu não parava de chorar.
Elijah passou pela porta e pude ouvir o click da
fechadura sendo trancada. Mitchel rapidamente
acendeu a lanterna e me deparei com seu olhar
desesperado. Ele correu até Ted Borges, que jazia no
chão.
— Ele está vivo! Ted!
— Droga. Desculpe-me, Greg.
Greg Mitchel estava provavelmente passando
pelo seu pior momento desde quando entrou na polícia.
— Fica com a gente, cara. Por favor, eu não posso
dar conta disso tudo!
— Você consegue. Eu acredito em você.
Com um último suspiro, Ted Borges deixou este
mundo.
Mitchel começou a chorar, com o corpo do seu
amigo em seus braços. Com um movimento, fechou

131
seus olhos. O oficial levantou-se, furioso. Seu peito se
movia com uma velocidade impressionante. Ele
apontou a lanterna para os cantos a procura da arma e
avistou-a. Pegou-a, foi até a porta e descontou toda sua
raiva nela, chutando-a e arrancando-a das dobradiças.
— Vamos pegar esse desgraçado.
Ele correu na frente e eu, ainda meio zonza segui-
o, pressionando o curativo em meu braço. Escutei sons
vindos de longe. Roncos.
— Não! — berrou Mitchel.
Atravessamos a sala e paramos junto à soleira e
vimos Elijah já dentro do furgão e seu motor rugindo.
— Adeus!
O furgão arrancou ferozmente pela Avenida
Norton e Mitchel correu pela rua apontando com a
arma para o veículo, mas era tarde demais. Elijah
escapara.

132
VII

Meu mundo havia desmoronado. Uma reviravolta

sem precedentes. A pobre e inocente Julia agora estava


em maiores problemas e minhas esperanças se esvaíam
como fumaça. As palavras de Elijah ainda ecoavam em
minha cabeça: Vocês me seguem e ela morre.
Como se isso não bastasse, Borges ainda jazia no
porão, sem vida e o monstro escapara novamente.
Mitchel guardou a arma no coldre e correu até mim, me
abraçando. O oficial tentava, com todas suas forças, me
acalmar. Eu estava desesperada; estava com medo e
precisava de cuidados médicos... Meu braço latejava e
eu me sentia fraca e zonza. Mitchel queria chorar, mas
tentava se manter firme. Ligou para a emergência e deu
o endereço da casa.
— Precisamos continuar... Aquele homem não
pode escapar.

133
Concordei e decidi não falar mais nada sobre
Borges, pois eu estava tão abalada quanto Mitchel.
Os motores roncaram e no momento seguinte
estávamos a toda velocidade pelas avenidas de
Whiteview. Mitchel ligou as escandalosas sirenes,
fazendo com que os carros e pedestres nem ousassem
cruzar seu caminho.
Mitchel ligou para a central e pediu informações
de rastreamento sobre Elijah. Uma voz, rasgada pelo
som do alto-falante, saiu do painel da viatura.
— O suspeito está se movendo a toda velocidade.
Vamos mais rápido.
— Segure-se — e a viatura derrapou em um
cruzamento e adentrara na Avenida Lakeview.
Continuamos por mais algumas ruas e avenidas
até que o painel emitiu um bipe. Mitchel agarrou o
comunicador rapidamente e atendeu ao chamado.
— Pode falar.
— O suspeito parou, Greg. Vocês estão a alguns
minutos.

134
— Certo — Mitchel pisou na embreagem e passou
para a quarta marcha — Está tudo bem com seu braço,
Srta. James?
— Sim... Eu acho que sim — na verdade eu sentia
que estava piorando, mas não queria revelar, pois não
queria que dissessem que eu precisava ir ao hospital
novamente. Eu me sentia fraca. O corte doía demais,
mas o sangramento havia amenizado.
Estávamos percorrendo uma região deserta da
cidade. Toda uma concentração de pessoas havia saído
para aproveitar o sábado e eu, ao contrário, estava
vivendo um pesadelo.
Eu só queria que isso terminasse.
A viatura diminuiu a velocidade e continuamos
discretamente. O lugar estava próximo. Fomos
informados pelo comunicador que o furgão estava
próximo a uma praça.
Finalmente chegamos ao local decisivo. Avistei o
furgão parado adiante, mas não havia sinal algum de
Julia ou mesmo do monstro. Tudo estava escuro. Mal
havia iluminação naquela área e por um breve

135
momento tive a sensação de que Elijah havia planejado
estar ali, a fim de dar sua última cartada, fazer o seu
movimento final neste terrível jogo doentio. Julia era
seu trunfo contra mim e ele sabia me atingir das piores
formas: primeiro com David e agora com Julia.
Desci do carro, acompanhada por Mitchel e
caminhei para dentro do local. Havia muitas árvores e
arbustos, mas nada de Elijah e Julia.

Tudo estava no mais completo silêncio. Não fazia


sentido. Este era o local... Precisava ser, pois eu sentia
que era minha última chance de salvar uma das
pessoas que, ultimamente, eu tinha passado a me
importar mais do que poderia imaginar. Eu julguei mal
Julia. Agora eu entendo o quanto ela sofreu, pois
também amava David, mas não merecia tudo o que
estava acontecendo esta noite. Este é o meu pesadelo.
Julia era somente uma inocente no meio de tudo isso.
— Fique atrás de mim — pediu Mitchel,
empunhando sua arma, à procura do monstro.

136
Caminhamos mais e mais para dentro do lugar.
De repente um ruído irrompeu o silêncio que somente
o vento dominava.
Havia alguém ali.
Outro ruído.
Havia definitivamente alguém ali!
Mitchel acenou para que eu parasse e levou seu
dedo à boca, pedindo silêncio, mas eu sabia que se
Elijah estivesse ali, ele estaria nos vendo. Não tínhamos
para onde ir. Estávamos, agora, no perfeito ângulo para
que qualquer um que estivesse escondido pudesse nos
atingir. Era algo arriscado, mas precisava ser assim... A
situação era extremamente delicada e não podíamos
jogar pesado, pois Julia corria o perigo maior.
Quando menos esperávamos, algo se moveu
atrás de nós e Mitchel virou-se no mesmo instante em
que um ser sombrio saiu do meio dos arbustos. No
momento seguinte Mitchel estava caído no chão.
— Não... — não consegui gritar, não consegui
correr. Meus músculos se enrijeceram e eu permaneci
lá, paralisada pelo choque do momento.

137
— Olá, querida — falou o monstro, saindo do
meio dos arbustos e se revelando para mim. Ele não
estava sozinho. Uma jovem loura pendia em seu braço
esquerdo, e se encontrava imobilizada por uma
apertada gravata. Em sua mão direita estava minha
arma. A culpada por matar Borges e agora Mitchel.
— Não diga que eu não avisei... Você sabia que
haveria consequências e tenho que confessar — ele
parou — Você adora tomar decisões estúpidas, não é?
Você estava livre, mas insistiu em se arriscar mais
ainda por essa inútil — e apontou a arma para Julia.
— Ao contrário de você, eu me importo com ela e
não vou deixar que você cause mais dor a ninguém.
Ele me olhou com ânimo.
— Bom, será que você está disposta a se sacrificar
por essa pobre coitada?
Não respondi. Esse não era o plano e a ideia de
perder a vida era muito mais amedrontadora quando
você estava próximo a ela.

138
— Sim? — Riu — Não? Vamos lá, querida. Estou
te dando a chance de você escolher. Sinta-se honrada!
— caçoou.
Eu simplesmente não sabia mais o que fazer. Só
queria entender como uma maravilhosa noite com
Jenna e Mark podia ter terminado assim.
Sim... Era assim que eu pensava; era isso o que eu
sentia: tudo havia chegado, de uma vez por todas, no
fim para mim.
— E então? — O monstro estava impaciente —
Vou ter que tomar esta decisão por você?
Depois de um longo tempo sem dizer nada eu
finalmente movi meus lábios quase congelados pelo
forte frio e simplesmente falei. Era a pergunta que
estava presa em minha garganta há muito tempo.
— Por quê?
Ele olhou para mim e depois de uma pausa, me
observando, soltou um grande suspiro.
— É, Katherine. Você não sabe a dor que me
causou quando casou com aquele idiota.

139
— David! O nome dele... — gritei, me
enfurecendo — É David!
— Tá, tá... David — havia uma nota de desprezo
em sua voz — Não lembra mesmo de mim? Tem
certeza?
Aquilo não fazia o menor sentido. Tudo bem que
eu não tenho uma memória tão boa, mas aquilo já era
loucura.
— Logo quando você entrou para o
departamento eu já estava lá. Mudei um pouco, mas
ainda sou eu.
Tentei buscar em minha memória de vários anos
atrás. Alex? Não pode ser. Olhei para o monstro e
analisei suas feições. Aquilo não podia ser verdade...
Tudo aconteceu quando eu ainda era a novata no
Departamento de Justiça de Los Angeles. Eu tinha
acabado de me formar e tudo era novo para mim, tudo
muito excitante. Um mundo totalmente novo. Lá
estava eu... No mundo real, onde as coisas aconteciam
para valer.

140
Muito rapidamente fui conhecendo o pessoal e
fazendo muitos contatos. Minha popularidade estava
no auge e eu, que sempre fui uma moça bem reservada,
adentrava em uma nova realidade, às sombras de meu
pai.
Mas com a popularidade e excitação de ser
alguém importante logo de cara vinham também as
responsabilidades. Confesso que nunca tive uma carga
de trabalho tão grande igual àquela. Eram quantidades
enormes de reuniões, relatórios e compromissos, mas
eu trabalhei duro.
Foi quando conheci Elijah Price, ou na época,
Alexander Price. Foi quem me guiou no início e era
muito gentil. Tudo corria muito bem, mas depois de
certo tempo Alexander começou a se aproximar muito
de mim e percebi que eu não queria aquilo.
Não foi minha intenção, mas senti que, na época,
o tinha magoado profundamente, pois depois de uma
calorosa briga — em que eu conheci o seu lado
explosivo — perdemos contato e desde aquela época eu
não o via.

141
Agora, depois de anos... Alexander voltara, mas
como um fantasma pronto para me assombrar. O
adorável e gentil Alexander se transformara no
monstro Elijah.
— Alex? — Minha voz falhava e agora soava
rouca pelo silêncio da noite — Não pode ser. Você está
mentindo! Alex nunca seria capaz de fazer o que você
fez. Eu sei que ele tinha um lado perigoso, explosivo,
mas... Ele nunca seria capaz!
—Katherine, sou eu — sussurrava ele e eu não
conseguia acreditar em suas palavras — Como você
acha que eu consegui me infiltrar no seu escritório tão
fácil? Passei anos dentro no Departamento de Justiça.
Conheço como funciona esse mundo, conheço as
brechas e simplesmente usei-as a meu favor.
— Mas... Seu rosto — Eu estava aterrorizada com
aquela revelação — O que aconteceu com você? — Senti
um aperto no peito quando me lembrei da época em
que o monstro era Alexander Price. Ele não era uma má
pessoa. Não podia ser.
— Ah claro... Os milagres da cirurgia plástica.

142
— Não pode ser...
— É claro que pode... Você não se lembra do dia
em que te ajudei naquele caso do cara que matou a
própria filha? Você precisou de mim! Não teria
conseguido sozinha!
Meu Deus. Era ele.
Eu me lembro... Agora eu não tinha dúvida. Alex
foi quem me deu suporte para continuar e eu tinha
certeza que ninguém sabia disso. Este acontecimento
ficou reservado somente entre nós dois.
Eu estava chorando novamente, mas minha
pergunta continuava a mesma:
— Por quê? — Eu estava sentindo novamente o
braço latejar. Olhei para Julia e ela ainda estava
desacordada, presa nos braços de Alex — Por que você
fez tudo isso...
— Sabe... Você realmente me magoou com aquela
briga, Katherine. Eu te amava e você mutilou meu
coração.

143
— Alex... — eu ainda sentia pena dele. Não de
Elijah, mas de Alexander. Minhas lágrimas não se
continham — Eu sinto muito.
— Não! Você não tem ideia do que eu passei! A
dor que tive de enfrentar... Tudo por sua causa!
— Não, não... Por favor. Eu não sabia, na época —
ele agora fazia careta como se não se importasse.
— Ah, é claro que não. Como você poderia saber?
Como você poderia saber que eu faria tudo isso, não é?
— Ele balançava a arma loucamente.
— Alex, eu não entendo. — Mas lentamente
várias coisas surgiram em minha mente. Alex em meu
escritório. Documentos sobre o acidente. O
ressurgimento de Byron. — O acidente... Você teve
alguma coisa a ver com isso, não teve? Você matou
David?!
— Eu não suportei vê-lo com você, Katherine! Se
você acha, querida, que isso tudo é por causa da briga,
está enganada. Você não sabe a dor que eu senti quando
soube que você tinha se enrolado com... David —
sempre que o monstro pronunciava o nome de David

144
havia um desprezo em sua voz — Foi então que eu tive
que tomar uma atitude. Mandei que Byron vigiasse
você e David. Quando vocês saíram da festa ele tratou
de segui-los. Eu queria você para mim!
— Isso não justifica matar alguém! — Minha
fúria agora voltara. Eu odiava Alex e agora eu queria
que ele pagasse por tudo o que fez. Queria que ele
sentisse a dor que eu senti.
— Não... — a mente de Alex agora parecia estar a
mil. — Admito que Byron não foi um bom empregado.
Ele saiu um pouco do papel... Mas afinal, o resultado foi
melhor do que eu esperava. Arrisco-me a dizer que até
foi necessário.
Necessário?!
Ele definitivamente perdera a cabeça.
— Tudo o que fiz — continuou, implorando para
que eu entendesse seus motivos, mas eu não ia cair em
seu jogo — foi por você. Por você, Katherine! Eu planejei
tudo. Era o plano perfeito... David até não precisava ter
morrido, mas...

145
— Você não pode estar falando sério! — gritei,
interrompendo-o.
— Agora sem David em meu caminho,
poderemos finalmente ficar juntos!
— Eu ainda não entendo. Como você pode pensar
que algo insano como isso poderia dar certo?
Ele me olhou, intrigado.
— Oh, acho que você não entendeu o papel de
Byron na história, não é?
— Ele é tão louco quanto você!
— Não, não, não. Sabe, é aí que você se engana.
Byron é um coitado. Aceitou fazer o serviço depois que
eu ofereci uma quantia significativa — ele soltou uma
gargalhada, que me assustou. — É um tolo. Acho que
nem ele sabia o quão longe isso iria. Eu só pedi para que
ele fizesse um serviço e ele fez! Todas as provas levam a
ele!
— O túmulo...
— Tudo forjado! — Ele estava em êxtase com o
próprio plano. Era doentio. — Logo após eu descobrir
sobre você e David, eu surtei. Mudei meu nome, mudei

146
meu rosto. Conheci Byron um tempo depois e planejei
tudo. Ele não resistiu à tentação do dinheiro. Entregou-
se abertamente ao plano.
— Você o usou.
— Eu precisava de alguém, O.K. — retrucou,
aborrecido — Ele era perfeito e estava correndo tudo
bem até que ultimamente ele passou a te perseguir e
isso foi um problema para mim. Se ele continuasse com
a nova identidade e não complicasse a situação estaria
tudo bem! Eu nunca seria acusado de nada e poderia,
junto com você, colocar em prática a última parte do
plano.
— E posso saber qual é? Matar Julia? Me matar?
— Não! Julia nunca foi parte do plano e matar
você menos ainda, mas agora Julia se envolveu demais
e não posso deixar que escape. Tente compreender!
Podemos ficar juntos, Katherine!
Minha raiva tomou conta de mim e não me
segurei quando uma resposta veio à tona.

147
— Eu nunca... Nunca, nem aqui e nem no inferno
chegaria próximo de você novamente — e cuspi a frase
final. — Seu monstro!
Aquilo foi como se uma faca atravessasse o peito
de Alex e ele paralisou, estarrecido, não acreditando no
que tinha acabado de ouvir.
— Katherine... – havia terror, indignação,
espanto em sua voz e ela estava fraca agora — Depois
de tudo o que fiz por nós.
— Sim! Você fez muito para mim! – Meu peito
agora arfava e eu tentava controlar minha respiração e
ignorar as dores no braço, que cada vez mais se
intensificavam. — Causou muita dor e sofrimento.
Você não passa de um monstro para mim!
Depois de dizer aquilo, percebi que tinha sido um
erro, pois foi a gota d'água para Alex.
— Estou decepcionado com você, Katherine. Nós
poderíamos ficar juntos sim, mas agora você estragou
tudo.
Eu estraguei tudo?!

148
— Não sobrou mais nada para mim e esta é a
segunda vez que você parte meu coração. Não me resta
opção se não terminar com tudo isso.
Senti que algo de ruim estava para acontecer e
um frio na barriga me fez começar a andar em direção
ao monstro quando ele se dirigia a um canto da
pequena praça. Era tarde demais. Ele estava adiantado
e agora arrastava Julia. Não fui rápida o suficiente. Eu
não me importei que ele pudesse atirar em mim. Não
me importei com mais nada.
Foi então que ouvi o barulho do corpo de Julia
caindo na lagoa.
O monstro apontou a arma para mim e eu
paralisei. Mais um movimento e eu morreria.
— Você não vai fazer nada estúpido — falou,
olhando para a arma.
Dizendo isso, ele foi se afastando, caminhando
em direção aos arbustos e eu não pude fazer nada até
que ele havia desaparecido por completo e tudo ficou
no mais profundo silêncio.
Olhei para a lagoa e minha respiração parou.

149
— Julia!
Tentei correr até lá, mas comecei a me sentir
mais fraca. Não conseguiria salvá-la.
Então um milagre aconteceu.
Senti uma movimentação atrás de mim e me
virei no mesmo instante. Mitchel passou correndo por
mim e com um mergulho perfeito, estava dentro da
lagoa. Nadou rapidamente até Julia e a apoiou em seus
ombros. Eu corri até a margem e me agachei, esperando
para realmente ajudar Julia pela primeira vez naquela
noite.
Mitchel estava quase na margem quando gritou:
— Ligue para o 911!
Eu automaticamente agarrei meu BlackBerry de
dentro do casaco e disquei os três números. Informei
da situação e corri para a margem. Eu ainda chorava,
mas um sentimento de felicidade me envolveu e eu
sabia...
Agora tudo ia ficar bem.

150
VIII

Finalmente. Senti um grande peso sendo tirado de

cima de minhas costas e eu pude, pela primeira vez


depois de muito tempo, levantar a cabeça e ver que
nada mais podia me fazer mal. O que poderia ser um
terrível desfecho agora se encaminhava para um final o
qual eu diria improvável a alguns minutos atrás.
Mitchel e Julia estavam bem.
Ele vinha saindo da lagoa carregando-a, que
estava desacordada, e a colocou gentilmente no chão de
pedra. Eu ainda não conseguia acreditar que tudo tinha
terminado e precisei ser despertada daquele transe pelo
grito de Mitchel, agora mais próximo de mim.
— Katherine! — ele parecia preocupado. Mas por
quê? Não havia mais motivos para se preocupar. —
Kate, ela não está nem um pouco bem.
— Ela vai sobreviver, não vai?

151
O oficial não respondeu e eu senti uma agonia,
um desespero crescendo em meu peito novamente.
Corri ao encontro de Julia e me abaixei do seu lado. As
lágrimas estavam querendo cair novamente e não pude
me conter. Mitchel se abaixou junto a mim e verificou
novamente os sinais vitais de Julia. Ela ainda estava
viva.
— Você ligou para a emergência? — Acenei
afirmativamente, não tirando os olhos de Julia. — Eu
não vou arriscar tocar nela novamente até que os
médicos cheguem.
Concordei, agora com as lágrimas caindo pelo
meu rosto amedrontado.
Vamos lá! Onde está a ambulância?!
— Kate, me ajude aqui com...
Escuridão.
O que aconteceu? Num minuto eu estava ali
junto de Mitchel e Julia e agora estava perdida em meus
pensamentos, presa dentro de minha mente e ninguém
podia me ouvir. Me ajudem!

152
De repente fui atingida por uma avalanche de
sensações. Aquilo tomou conta de mim e tentei me
mover; tentei abrir os olhos e ver o que estava
acontecendo. Minhas pálpebras se moveram
lentamente e uma brilhante luz me cegou. Era uma luz
forte, bonita. Será que estou delirando? Estou no céu?
Minha pergunta foi respondida rapidamente
quando levantei meus braços para proteger meus olhos
e vi vários curativos e meu braço esquerdo totalmente
enfaixado. Nossa... Não imaginei que o ferimento tinha
sido tão sério assim. Devo ter desmaiado e Mitchel me
levou de ambulância ao hospital. E Julia? Precisava
saber se ela estava bem.
Mas ao tentar me levantar da cama uma dor
aguda invadiu meu peito. Foi demais e desabei na
cama.

Eu estava parada em um longo corredor. Podia ver


pessoas indo de um lado para o outro. Umas pareciam
estar com extrema pressa, já outras simplesmente

153
caminhavam. Foi então que distingui os jalecos, os
uniformes no meio daquela multidão. Eu estava no
hospital.
Olhei para mim mesma e me vi vestida em um
lindo e longo vestido branco. Meu braço não estava
mais enfaixado. Eu não sentia mais dor; estava muito
bem, na verdade.
Eu não sabia como havia chegado ali. Não me
lembrava de absolutamente nada recente e então
comecei a andar na direção de um médico que estava
parado, checando algo próximo à recepção.
— Com licença, será que pode me dizer... — Mas
ele não me ouvia — Olá? Senhor? — Nada.
Mas que droga está acontecendo?
Caminhei de um lado para o outro, tentando
chamar a atenção de alguém, mas não obtive sucesso.
Eu falava, acenava em frente de várias pessoas e
ninguém me via, nem mesmo ouvia. Minha respiração
acelerou. Eu precisava saber o que acontecera comigo, o
que acontecera com Julia.
Julia.

154
Veio-me como uma pancada na cabeça e me
lembrei que Julia corria perigo.
Corri desenfreada pelo corredor parando a cada
quarto, sem notar um rosto conhecido. Eu não ia
desistir, não agora, e continuei procurando.
Até que parei à porta de um quarto no final do
corredor e algo fez meu corpo congelar; eu não
consegui me mover. Movi meus lábios e um suspiro
escapou.
Havia um homem de costas, sentado em uma
cadeira em frente ao leito. Não conseguia ver quem
estava deitado, mas identifiquei vários equipamentos e
máquinas ligados àquela pessoa.
O homem então percebeu que eu estava parada
ali, virou-se e olhou para mim e por um segundo achei
que ia desabar no chão, mas minhas pernas
continuaram firmes como pedra. O homem sorriu e se
levantou, vindo ao meu encontro. Meus olhos fixaram-
se nos dele e eu não consegui dizer uma palavra. O
homem segurou meu rosto e no momento seguinte me
abraçou, levantando-me no ar.

155
— Fiquei pensando quanto tempo você levaria
para vir vê-la — falou ele e eu sabia que estava se
referindo à mulher no leito. Pensei em Julia logo de
cara, mas não pude ver quem era, pois ele estava bem
em minha frente. Então, com um gentil gesto,
envolveu minhas costas em seus braços e me guiou
para o corredor.
— David... O que está acontecendo? Como você
pode estar aqui? — minha voz saiu esganiçada. Ele não
me respondeu, só sorriu. Foi o suficiente para uma
onda de calor me envolver.
— Venha. Vamos conversar.
Segurei em sua mão e juntos nós caminhamos
pelo corredor. Percebi que as pessoas que lá estavam
também não viam David e fui impulsionada a
perguntar.
— Porque ninguém pode nos ver?
Ele olhou para mim e sorriu.
— Acho que você já sabe a resposta, meu amor.
Eu não queria acreditar naquilo.
— Eu morri?

156
David agora parou e me fitou intrigado.
— Quer dizer que ainda não sabe o que
aconteceu?
Eu olhei para ele confusa. Minha pergunta era
simples. Porque tanto mistério? Balancei a cabeça como
quem não fizesse a menor ideia do que estivesse
acontecendo.
— Ah, bom... Você vai entender tudo. Logo. É
para isso que estou aqui também.
— Como assim? — Até agora nada fazia sentido
para mim e eu só queria respostas.
— Venha. Não imaginei que você chegaria aqui
sem saber o que aconteceu — havia algo em sua voz que
me acalmava —, mas fique calma, você vai entender
tudo, Anjo.
Eu o acompanhava pelo corredor até que
chegamos à recepção e ele me pediu para olhar em
volta. Olhei, sem saber muito bem o que era para eu
ver. Quando achei que tudo estava normal do jeito que
deveria estar — exceto pelo fato de ninguém notava
nossa presença — minha atenção se voltou para um

157
televisor que transmitia notícias do canto alto de uma
parede. A notícia, que poderia não ser nada demais para
quem estava ali era, para mim, algo que me prendeu a
atenção. Enquanto eu acompanhava o que a
apresentadora falava, David foi até um canto da
recepção onde se encontrava uma pilha de jornais. Ele
olhava para mim com uma expressão de quem já sabia
o que ia acontecer. Fui ao seu encontro e ele me
apontou um jornal. Eu chequei a data.
— Isso não pode estar certo. São jornais velhos. —
David balançava a cabeça, negando — Mas então como?
Encaminhei-me até um senhor que estava lendo
seu jornal, sentado no sofá e chequei a data novamente.
Aquilo devia ser com certeza um tremendo mal-
entendido.
— Estes jornais são todos de 2010, mas estamos
em 2012, não estamos? — Eu olhava para David,
estupefata.
— Não, Anjo — David veio até mim com um olhar
triste e uma calmaria na voz — O ano é... 2010.

158
Olhei para ele com discórdia e andei de um lado
para o outro no saguão da recepção.
— Isto não está certo. Primeiro ninguém está nos
vendo e agora o ano está errado?
De repente uma onda de lembranças começou a
voltar e eu continuei.
— Espera aí! Nós nos casamos em 2010. Houve o
acidente poucos meses depois. — David concordava
com a cabeça. — E você... Meu amor — não segurei as
lágrimas. — Você não resistiu. Eu perdi você. Você se
foi! — As lágrimas vinham numa torrente contínua. Eu
esperava que David concordasse novamente, mas ao
invés disso ele balançou a cabeça discordando.
— Eu nunca te deixei. Nunca parti, Anjo. — De
alguma forma eu sabia que ele estava dizendo a
verdade, mas como era possível? — Estive com você
esse tempo todo.
— Você quer dizer em minha memória, não é?
Como agora, que estou sonhando. Porque eu me lembro
de receber a notícia de que você não resistiu e sofro
desde então. Tentei investigar a causa do acidente, mas

159
não cheguei a lugar algum. Até que evidências
começaram a surgir misteriosamente — mas no fundo
eu sabia que era Elijah que estava por trás de tudo isso
— e comecei a investigar.
David estava prestes a dizer algo quando um
barulho interrompeu nosso momento. Um alarme
ecoava pelos corredores do hospital e em questão de
segundos vários médicos e enfermeiros estavam
correndo em direção a um dos quartos. Olhei
preocupada para David e ele, com um olhar triste,
falou:
— Vamos lá — agarrei sua mão e juntos voamos
pelos corredores.
Por um momento achei que os médicos se
dirigiam para o quarto onde eu tinha encontrado
David, mas dobraram à direita e continuaram por
outro corredor até que chegaram ao destino. Um
médico estava parado, esperando, e quando todos
entraram a porta foi fechada antes que eu e David
pudéssemos entrar.

160
— Droga! — exclamei — Porque viemos até aqui?
Quem está aí?
— Tente abrir a porta.
Novamente uma pergunta sem resposta, mas por
algum motivo me senti tentada a obedecê-lo. Adiantei-
me até a maçaneta e tentei tocá-la, mas minha mão
simplesmente atravessou o metal. Olhei para David,
perplexa, e ele respondeu:
— Use a cabeça.
O que? Quer que eu use a cabeça na porta?
— Use-a para pensar... Hum, quem sabe na porta
se abrindo.
Afastei-me da porta e olhei para ele novamente,
que concordou com a cabeça.
Abra.
A maçaneta se moveu ao toque de uma mão
invisível e a porta começou a se abrir. O que? Consegui
abrir a porta com a mente? Não... É claro que não. Um
médico saiu logo depois com um semblante arrasado.
Claro que tinha sido ele quem abriu a porta, e não eu.

161
David e eu entramos rapidamente e eu tentei
arranjar um lugar no meio de todos aqueles médicos.
Então eu a vi.
Um choque. Seguido de um aperto no coração,
um sentimento de culpa tomava conta de mim.
Julia estava deitada. Morta.
— Fizemos tudo o que pudemos. Infelizmente a
perdemos — falou um dos médicos. Eu o reconheci. Na
sala de emergência fora ele que esteve me socorrendo
logo depois do acidente. Dr. Chevalier — Hora da
morte, 11h27min — falou e uma enfermeira anotou.
Virei-me para David, não podendo acreditar no
que acabara de ver e ele me envolveu em um apertado
abraço. Eu não podia acreditar que ela se fora. David e
Julia. A dor era demais.
Enfermeiros logo apareceram para levar o corpo
sem vida de Julia. Eu não conseguia parar de chorar e
David precisou me acalmar.
— Vamos, Anjo. Não há nada que você pudesse
ter feito.

162
Uma vez lá fora uma coisa me passou pela
cabeça.
— Espere... Foi você quem me trouxe para cá.
Você sabia que isso ia acontecer? — David assentiu e
logo falou.
— Me desculpe se estou te deixando confusa,
Anjo...
— O que está acontecendo? Por favor, me diga —
interrompi-o, inquieta.
— Venha comigo e vou te mostrar tudo. Tudo o
que aconteceu com você e o que está acontecendo
agora.
David me guiou de volta para o corredor
principal, de onde viemos, e agora eu sabia para onde
estávamos indo. Chegamos a frente a um quarto; o
quarto onde eu havia encontrado David. A porta agora
estava entreaberta.
— Você primeiro, Anjo — e estendeu o braço.
Ele ficou parado do lado de fora enquanto eu
entrava, com medo do que encontraria lá. Mas meu
medo se esvaiu quando olhei em direção ao leito e vi

163
novamente David sentado de costas, do jeito em que o
havia encontrado antes.
Olhei para trás e ele não estava mais lá.
Sussurrei, mas desta vez ele não me ouviu. Eu ainda
tinha lágrimas nos olhos e tentei me conter quando
entrei no quarto e caminhei lentamente, contornando
a cadeira onde David estava para olhar a pessoa que
jazia deitada.
Quando finalmente meu olhar alcançou o rosto
da mulher, um calafrio me atingiu sem piedade. Eu
estava vendo-a, mas não era ela. Era eu.
Katherine James-Button.

164
IX

Saímos de lá muito tarde da noite... ou será que era


muito cedo da manhã? Seja como for, estávamos
exaustos.
Tivemos que caminhar por alguns minutos até
encontrar nosso carro, que estava longe até demais.
David cambaleava um pouco e sorria abobalhado para
mim.
Como sabíamos que alguém teria que dirigir na
volta, me segurei... talvez mais do que gostaria.
Ano que vem chamaremos um táxi!
Eu trazia um dos braços de David sob meu ombro
e não conseguia segurar o riso quando ele beijava
minha bochecha.
— Você não se cansa nunca, não é? — Caçoei,
estendendo minha mão a ele. — As chaves. Serei sua
motorista esta noite, o que acha?

165
— Ooooh, eu gosto disso... Minha motorista. —
respondeu, lançando-me um olhar provocador.
Ele tirou as chaves do bolso e quase tropeçou
numa pedra que não conseguiu ver. O lugar era muito
mal iluminado, mas consegui pegá-lo no último
segundo, quando David apontou para um carro prata
que se destacava num mar de outras cores. Ao
pararmos ao lado do carro ele me agarrou subitamente,
me deixando sem fôlego com um beijo intenso. Quando
finalmente pude respirar, o abracei com força.
— Eu te amo — deixei essas três palavrinhas
soarem livremente à medida que os lábios de David se
arqueavam num sorriso perfeito. Um sorriso que me
dizia tudo que eu precisava saber.
Em poucos minutos estávamos na rodovia.
— Essa noite valeu a pena, não?
— Com certeza! — respondi, sorrindo.
Dirigi por mais alguns quilômetros e à medida
que íamos prosseguindo, a quantidade de postes de
iluminação diminuía.

166
— Mas que droga. Podiam melhorar a iluminação
daqui — resmungou David — É quase impossível de se
ver o caminho.
— Concordo. O lugar pode não ser muito bom,
mas em compensação a festa foi incrível.
Continuamos até que peguei um anexo à rodovia
e infelizmente fomos parar em uma área pior à
anterior. Agora a única fonte de luz vinha do farol do
carro.
— Tem certeza de que estamos no caminho
certo? — Perguntou David, desconfiado — Não estou
me lembrando deste trecho.
— Eu também não... Será que peguei o caminho
errado?
— Vamos ver — ele abriu o porta-luvas e retirou
um mapa. — É sempre bom ter um em mãos.
Ele abriu o mapa e eu reduzi a velocidade para
tentar localizar alguma placa pela estrada. David
avistou uma que mostrava o quilômetro onde nós
estávamos.

167
— Aqui. Estamos bem aqui e acho que pegamos o
caminho errado mesmo — informou, desapontado. —
Vire na próxima esquerda para fazermos o retorno.
— Certo.
Dobrei a esquerda e deparamo-nos com uma
estrada de terra.
— Continue, acho que é logo à frente.
Eu pude ver adiante que a estrada de terra estava
acabando, dando lugar para um asfalto bem gasto.
Continuei até que avistei uma área que parecia ter o
mínimo de iluminação logo à frente. Reduzi a
velocidade. O lugar estava, assim como o resto da
rodovia, um breu, mas de repente uma luz foi surgindo
do meio da escuridão e eu fiquei imaginando o que
poderia ser. Rapidamente minha atenção se voltou ao
mapa e David, por fim, mencionou:
— Não estamos totalmente perdidos. Certo, de
acordo com o mapa devemos ir para a esquerda.
— Eu acho que estamos perdidos, sim. Não acha
melhor ligar para... — não tive a chance de terminar o
que pretendia dizer, pois minha atenção foi atraída

168
completamente para o barulho crescente que David
ouvira anteriormente. Ele agora parecia mais próximo
e avistamos uma luz ofuscante se aproximando a uma
velocidade altíssima.
A luz nos atingira tão rapidamente que não tive
tempo para pensar. Tudo o que eu lembrava depois da
ofuscante luz era ter visto David inconsciente no banco
do carro, agora destruído.
Eu ainda podia sentir, podia ouvir, mas não podia
compreender o que estava acontecendo. Tudo a minha
volta transformou-se em um turbilhão de imagens e
sons que tentavam, às pressas, devolver minha
consciência, minha racionalidade para que eu pudesse
retomar o controle de mim mesma. Eu podia ouvir
vozes desconhecidas: "Aqui! Ajudem-me, depressa.
Traga a...", "Abram espaço!". Eu podia não ter controle
do meu corpo, mas podia, com muito esforço,
raciocinar a dor que me envolvia e tentar combatê-la
com todas as forças.
Em algum ponto da minha consciência eu sabia
que ainda estava presa à minha parte terrena: meu

169
corpo. Por conta de uma incrível e bela ofuscante luz,
fui forçada a fechar meus olhos e podia ouvir, junto a
barulhos que ecoavam em minha mente, alguém
dizendo coisas, próximo a mim.
Aquelas palavras penetravam minha mente e eu
queria obedecê-las, mesmo tentando ao máximo
combater o que intentava me levar para longe, pois
uma confusão de sentidos me atingia de todos os lados
e passei a sentir dores lancinantes por toda extensão de
meu corpo.
Eu sabia que não poderia aguentar por muito
tempo e cada vez mais tudo em minha volta
novamente transformou-se em um turbilhão de
emoções e sensações e aquilo era mais forte que eu. Era
mais poderoso e eu teria de ceder. Mas ceder à que? À
morte? Por um momento foi algo viável e eu, sabendo
que não mais podia lutar, agora queria me entregar.
Meu pedido estava para ser atendido, pois eu podia
sentir sensações de tranquilidade de paz e acima de
tudo um enorme conforto. Aos poucos meus sentidos
tornaram-se aguçados e intensos. Eu não tinha mais

170
noção de tempo, de espaço... Tudo para mim estava em
um plano elevado, transcendental. Mas não era
imaginário... Era real. À medida que aquilo prosseguia,
eu me sentia mais leve e minha mente começou a
reviver cada intenso momento de minha vida. Jenna,
Mark, Julia... David. Eu lutei novamente.
— Da... vid — sussurrar seu nome foi
extremamente doloroso e difícil. Mal escutei minha
própria voz, mas consegui distinguir vultos que se
aproximavam de mim, tentando me ouvir. Uma dor
absurda atingiu do meu pescoço até o tórax. Eu tentava
respirar, mas meu peito doía.
Os vultos começaram a desaparecer quando eu
não tinha quase nenhuma força restante para
simplesmente manter meus olhos cerrados.
— Emergência! Chame o Dr. Chevalier! Temos
uma vítima de acidente em estado grave e...
O que eu senti após isso foi novamente uma
incrível sensação de paz e tranquilidade e, acima de
tudo, felicidade. Será que desta vez chegara o fim?
Havia uma densa névoa cobrindo todo o espaço eu só

171
podia enxergar a parte de mim que estava coberta de
sangue junto aos vultos, deslocando-se próximos ao
meu ego flutuante, minha parte extracorpórea, o meu
verdadeiro eu.
O que me parecia a eternidade de paz se dissipou
quando toda aquela névoa se escureceu fazendo com
que meu eu fosse envolvida por ela e fui contida por
uma enorme sensação aterradora.
Vida.
— Kate, querida. Sou eu, David. — Eu podia ouvir
sua voz distante, mas não sabia de onde vinha. Não
sabia onde eu estava também; estava tudo escuro. —
Você não sabe o quanto é difícil para eu ficar aqui
parado olhando para você assim sem poder fazer nada.
Não sei se você pode me ouvir... Bom, os médicos
disseram que talvez você pudesse e eu não consigo
mais ficar de braços cruzados esperando que um
milagre aconteça. Eu preciso de você aqui, agora.
Eu também meu amor! Ajude-me, não sei onde
estou.

172
— Eu sabia, não foi uma boa ideia ter ido àquela
festa... Mas tudo estava indo tão bem.
Não. Não foi uma má ideia, não mesmo! Eu me
diverti muito... Nós nos divertimos muito!
— Dói muito, Anjo. Uma dor que percorre todo
meu peito, bem aqui — eu podia sentir sua mão, seu
toque. Uma sensação acolhedora e em seguida as
batidas desesperadas de seu coração.
Estou aqui, posso te sentir!
— David? — Uma voz agora ecoava pelo
ambiente. Uma voz feminina.
— Ah, pode entrar. Venha até aqui — respondeu
David.
Eu pude ouvir passos.
— Como ela está?
— Ela está melhorando, Julia. Os médicos
disseram que as chances dela aumentaram bastante
nos últimos dias, sabe.
O que Julia está fazendo aqui?! David, por favor,
mande-a embora!

173
— Ela vai sair dessa, não desista; não pare de
acreditar.
Eu agora não entendia o que estava acontecendo.
Pelo que sei Julia não poderia estar ali e ela não deveria
estar ali!
Fui atingida por uma onda de luzes e cores e no
momento seguinte fui puxada para dentro de um
túnel... Um maravilhoso túnel que brilhava e não
possuía fim. Eu sentia que estava pronta para seguir
em frente, mas não sabia de onde essa sensação vinha.
Então tudo se dissolveu e minhas memórias
começaram a passar diante de meus olhos. Todos os
bons e melhores momentos estavam sendo
relembrados de uma maneira intensamente vívida. Eu
permanecia parada e podia ver tudo como se tivesse lá,
mas aos poucos percebi que não funcionava desse jeito.
Eu podia ver, podia sentir exatamente o que senti na
época, mas eu sabia que estava em um plano superior.
Um sentimento de nostalgia me atingiu com força e
não pude conter as emoções que só cresciam enquanto
as memórias passavam.

174
Eu sentia que precisava me desprender de tudo
aquilo: das lembranças, da vida passada, mesmo não
sabendo de onde vinha essa ideia.
Foi então que as lembranças da infância
acabaram e me vi parada em um belo salão decorado
majestosamente: O Baile de Formatura. Comecei a
chorar e aquilo me fez bem.
Tudo se dissolveu novamente e lá estava eu, num
belo vestido branco no dia de meu casamento. Esperei,
sabendo exatamente o que ia acontecer em seguida. As
portas se abriram e eu entrei. David estava parado no
altar e vê-lo daquela maneira, tão bonito, tão cheio de
vida só me fez chorar mais e mais. Eu queria gritar,
queria que ele soubesse que eu estava ali, mas isso
nunca seria possível. Era só uma lembrança. E de certa
forma eu já estava lá, prestes a me casar.
Quanto mais as lembranças passavam, mais eu
sentia saudade de todos que amava e desejava do fundo
do coração estar novamente com todos eles.
E tudo mudou. Agora eu estava junto a David,
curtindo ao máximo a fatídica festa. A princípio tudo

175
estava correndo incrivelmente bem, mas eu me
lembrei, então, que aquela foi a noite do acidente. O
acidente que me fez passar pelos piores momentos de
minha vida.
Eu e David agora estávamos caminhando pelo
estacionamento e eu não sabia até onde esta lembrança
se prolongaria. Um medo cresceu em meu peito e gritei
com todas as forças.
— Já chega, por favor!
Quando pensei que não adiantara em nada, senti
uma presença se aproximando de mim. Ela surgiu
como uma intensa luz junto ao plano em que eu me
encontrava. Tentei me comunicar, mas era somente
uma luz e por incrível que pareça, ela me acalmava.
E ela falou em minha mente.
Não cabe a mim nem ninguém neste universo
decidir seu destino, Katherine. É por isso que estou te
dando a chance de fazer sua própria escolha, para que
você possa continuar a traçar seu caminho. Somente você
poderá dar o próximo passo.

176
— Eu não estou pronta para deixar tudo e todos.
Há tantos que amo e há muitos de quem sinto falta.
Preciso voltar! — Respondi, não sabendo exatamente o
que aconteceria.
Se esta for sua decisão final, você poderá voltar,
mas lembre-se: terá de aproveitar ao máximo sua segunda
chance, pois você se distanciou de muitas pessoas durante
certa fase de sua vida.
Eu balancei a cabeça e o ser luminoso pareceu
entender meu pedido: meu desesperado desejo de
voltar ao meu corpo e poder ter uma segunda chance de
viver ao lado daqueles que me faziam bem. Era tudo o
que eu queria.
Fui então envolvida novamente pelo brilhante
túnel de luz magnífica e lá estava eu, agora
acompanhada pelo belo ser luminoso de volta a casa
que eu e David compramos depois do casamento. Era
outra lembrança e avistei David acompanhado por
mim mesma chegando à casa. Enquanto eu fui à
cozinha preparar um pouco de café, David escutava os
recados da caixa postal. Pude escutar um pouco e

177
pensei ter ouvido uma voz que eu gostaria que ficasse
guardada somente no gravador.
No momento seguinte David entrou na cozinha.
— Era quem estou pensando? — Perguntei.
— Anjo. Acho que você devia ligar para ela —
respondeu David, pegando uma xícara de café e
segurando minha mão num gesto carinhoso — Jenna é
sua irmã e vocês deveriam se ajudar. Não vale a pena
ficarem assim.
— Eu sei, mas é que...
— Nada de mais — falou ele tocando meus lábios
com seu indicador. — Ligue para ela. Sei que no fundo
vocês se amam... Sei que vão se acertar. — E me
entregou o telefone.
Eu acompanhava aquela cena como se estivesse
vivendo-a novamente.
E tudo se dissolveu.
Eu estava agora em um lugar aberto. Muitas
flores enchiam o local e uma lápide fazia com que todos
se reunissem à sua volta. Esta lembrança acontecera
muito tempo antes que a anterior.

178
— Por que me trouxe aqui? — Perguntei, a ponto
de chorar, ao ser luminoso.
Há coisas que você precisa saber.
— Aqui? No funeral da minha mãe?
O ser não respondeu, mas eu senti dentro de mim
que era isso o que ele queria. Vi-me chegando. Toda de
preto e sozinha. Ainda não tinha conhecido David.
A Katherine da lembrança estava se
aproximando de todos os presentes e dentre eles
estavam Mark e Jenna. Acenei levemente com a cabeça
para Mark, que retribuiu o cumprimento. Quando
Jenna me viu, virei-me, friamente. Coloquei meus
óculos escuros e me postei longe deles.
Eu podia sentir a tensão do momento mesmo
estando em outro plano. Jenna e eu tivemos uma
calorosa briga há um tempo e fez com que a gente se
distanciasse muito.
Quando vi que o ser luminoso se movia, fui atrás.
Ele se aproximava de Jenna e Mark. Pude ver Jenna
chorando e imaginei que fosse por causa do funeral,
pois eu também me sentia devastada. Só que havia algo

179
mais e tentei chegar mais perto. Eu sabia que aquilo
não fazia parte da minha lembrança do funeral, mas já
que eu estava ali, imaginei que poderia saber o que
acontecera em outros locais próximos.
À medida que eu me aproximava pude ouvir
Jenna explicando algo a Mark e ele tentando acalmá-la,
sem sucesso.
— Não posso sequer abraçar minha própria irmã
no dia do enterro da nossa mãe.
Ela estava chorando por mim? Não fazia sentido.
— Ela vai entender quando souber o que você
tem a dizer. Ela é sua irmã e te ama! Ela não pode te
ignorar assim para sempre.
— Eu sei — respondeu, enxugando as lágrimas —
Só queria que ela me ouvisse dessa vez.
Senti um aperto no peito. Então era assim que ela
se sentia? Aquilo me atingiu e me afetou
profundamente. Como pude fazer isso com Jenna?
Agora eu só queria correr até eu mesma e mandar que
falasse com Jenna, mas era tarde demais. O cemitério

180
foi dissolvido por uma forte luz e de repente eu estava
no hospital.
Estava confusa.
— Qual lembrança é esta? — perguntei à luz.
Não é exatamente uma lembrança, mas você saberá
o que fazer.
Aos poucos o ambiente me pareceu familiar.
Comecei a me lembrar de poucas coisas e por algum
motivo me lembrei de Julia. E então aquilo me acertou
em cheio.
— Eu me lembro deste lugar. Julia... Ela se foi. Eu
estava com David e não pude fazer nada.
O que você viu pode ter acontecido em sua mente.
Lembre-se que ainda está em um plano superior e algumas
coisas aqui podem ser um pouco confusas, mas não se
esqueça de uma coisa. O propósito de eu estar aqui com
você é para guiá-la para o melhor caminho, Katherine. Se
voltar é sua decisão, você precisa fazer o que é certo e
tenho certeza de que você saberá. Agora é com você.
— Espere. Diga-me ao menos quem você é.

181
Sou quem sempre estará com você. Sou seu anjo da
guarda.
E o ser luminoso transformou-se em David.
— Mas como? David?
Agora sua voz não estava mais em minha mente.
— Posso assumir a forma de qualquer pessoa que
você ame muito. Assim posso guiá-la e protegê-la
sempre que for preciso.
— Nos meus sonhos... Era você — ele confirmou.
— E quando eu mais precisar, como saberei onde
encontrá-lo?
— Não precisará, pois sempre vou olhar por você.
Agora vá, Katherine. Siga seu caminho. Você ainda é
muito amada e poderá fazer grandes coisas.
E se foi.
Fiquei ali parada em um deserto corredor de
hospital sem saber para onde ir. Foi então que me vi
saindo de um quarto às lágrimas com David ao meu
lado. Eu estava com um longo e belo vestido branco.
Então entendi tudo. Eu me lembrava daquele
momento, mas como David poderia estar lá, eu nunca

182
tinha me perguntado. Quando eu pensava nas
possibilidades, algo fez sentido todo sentido. Pouco
antes de desaparecer, o anjo se transformara em David.
Agora só uma coisa me passou pela cabeça. Não
fora David que esteve ali comigo anteriormente. Fora
meu anjo.
Segui a mim mesma e ao anjo e aos poucos
percebi que não me lembrava do que viria a seguir.
Tudo era um imenso vazio.
Continuei, sem opção, e foi quando ouvi:
— O que está acontecendo? Por favor, me diga —
dizia a Katherine de vestido branco, inquieta.
— Venha comigo e vou te mostrar tudo. Tudo o
que aconteceu com você e o que está acontecendo
agora.
O Anjo me guiou de volta para o corredor
principal de onde viemos e aquele caminho me pareceu
muito familiar. Chegamos a frente a um quarto e a
porta estava entreaberta.
— Você primeiro, Anjo — e estendeu o braço,
indicando a porta.

183
Ele ficou parado do lado de fora quando eu
entrei. Confesso que estava um pouco receosa, com
medo do que encontraria lá, mas meu medo se esvaiu
quando olhei em direção ao leito e vi o verdadeiro
David sentado de costas.
Olhei rapidamente para trás e já não havia mais
ninguém do lado de fora do quarto. Sussurrei, mas
David não ouviu. A Katherine de vestido ainda tinha
lágrimas nos olhos e ela tentou se conter quando
adentrou mais no quarto e caminhou lentamente
contornando a cadeira onde David estava para olhar a
pessoa que estava lá deitada. Eu a segui, logo atrás.
Quando finalmente nossos olhares alcançaram o
rosto da mulher que estava lá deitada, senti um calafrio
subindo por meu corpo.
Eu estava vendo-a, mas não era ela. Era eu.
Katherine James-Button deitada, inconsciente no
leito do hospital.
No momento que me vi ali deitada, senti que
havia me desprendido do plano superior onde eu me

184
encontrava. Senti-me livre, leve. Cheguei ao fim e agora
teria minha segunda chance.
Eu estava novamente ao túnel luminoso, mas
agora eu podia ver um final; podia ver David. Seu rosto
se destacava pelo medo; medo de me perder. Mas eu
não iria a lugar algum. Poderíamos ficar juntos de
novo.
Percorri o túnel e quanto mais próximo do fim,
mais eu sentia a presença de David, mais eu sentia a
vida.
E tudo escureceu.
Como uma onda de sensações e emoções, tudo
voltou a mim e eu agora estava de volta ao meu corpo e
podia ouvir os sons do ambiente começando a invadir
meus ouvidos. Movimentei meus lábios moldando um
sorriso. Eu estava pronta para dar o último passo.
Com muita vontade e um esforço satisfatório,
abri meus olhos, precisando mantê-los cerrados por
conta da luminosidade que os fazia arder.
Era uma dor boa; uma dor que dizia que eu estava
de volta.

185
Meu corpo ainda estava fraco e imaginei por
quanto tempo estive ali. Olhei em volta e avistei quem
eu mais desejava ali junto comigo. David estava
sentado em uma cadeira ao lado da cama, com suas
mãos sobre a minha e a cabeça próxima a mim. Ele
tirava um leve cochilo. Meu coração disparou e eu não
pude acreditar que estava novamente ali, tão próximo
dele. Então o chamei:
— David — minha voz saiu num silvo esganiçado
e forçado.

186
EPÍLOGO

Era maravilhoso estar de volta e eu me sentia mais

viva do que nunca. Aos poucos minha visão melhorava


e eu pude ver com mais nitidez. Eu me sentia como um
bebê que acabara de nascer, com o corpo muito frágil e
os sentidos pedindo treinamento. Tudo era tão
excitante.
Quando percebi que minha voz estava fraca
demais para acordar David, tentei fazer com que ele
sentisse meu toque. Foi difícil, mas consegui
movimentar meus dedos e pressionar os seus.
E ele despertou.
Devagar David levantou a cabeça, ainda
sonolento, e pude ver que ainda possuía vários
ferimentos no rosto, causados pelo acidente. Ele estava
com uma aparência muito cansada, esgotado e tentei
imaginar quando tinha sido a última vez que ele
dormira bem.

187
Eu tinha tantas perguntas, mas isso teria que
esperar. Quando finalmente o olhar de David se elevou
o bastante e se deparou com os meus olhos abertos,
tudo deixou de existir. Naquele momento era somente
eu e ele.
Lancei meu sorriso e ele tentava dizer algo, mas
seus olhos tomaram a frente quando todo seu cansaço
sumiu dando lugar a um magnífico sorriso e seus olhos
transbordaram em lágrimas.
Ele se adiantou e me abraçou. Agora eu também
não conseguia controlar minhas emoções e meus olhos
foram inundados por um oceano de felicidade.
Ninguém disse uma palavra e aquele momento se
prolongou por vários minutos até que David olhou no
fundo dos meus olhos e me disse as três melhores
palavras do mundo:
— Eu amo você.

15 de Março de 2010, Segunda-Feira


Algumas horas depois

188
Eu estava mergulhada em um profundo sono. Era a
primeira vez desde que voltei à vida, há dois dias, que
consegui, finalmente, dormir tranquilamente.
Tempos depois acordei. Minha cabeça ainda doía
um pouco e David me contou que levei uma forte
pancada. Eu até brincava com ele dizendo que esse era
o motivo de eu estar tão confusa. A pancada
embaralhou meu cérebro. Era sempre bom rir um
pouco, mas no fundo eu sabia que os sete dias que
permaneci desacordada, em um estado grave de coma
foram responsáveis por tudo de estranho que estava
acontecendo comigo. Eram os sintomas para o que eu
chamava de "Sem Uso": muito tempo sem se mover,
sem usar meu corpo.
Enquanto tudo ainda entrava em foco vi David
em pé, próximo à porta, conversando com alguém.
Quando finalmente consegui ver a pessoa, um
sentimento inexplicável me consumiu e me senti

189
impulsionada a fazer algo que eu, na verdade, não
entendi muito bem. Chamei:
— Julia! — Ela se espantou ao ouvir o tom da
minha fraca voz. Eu ainda não compreendia o motivo
pelo qual eu me sentia feliz por ela estar ali.
Ela fez menção de se desculpar pela presença,
mas eu logo pedi para que se aproximasse e David se
adiantou e tentou explicar a situação.
— Anjo, está tudo bem. Ela veio aqui nos visitar
logo que soube do acidente — eu sorria e David parecia
perdido.
— Eu já estava de saída. Não quero incomodar —
disse ela e se apressou para alcançar a porta.
— Por favor, fique. — Pedi, rapidamente. Julia
paralisou por alguns segundos, de costas para mim,
sem reação. — Não vá embora.
Ela se virou lentamente, processando o que
acabara de ouvir. David agora estava mais perdido que
antes.
— Katherine... — começou ela.

190
— Eu quero me desculpar, Julia — falei,
interrompendo-a. — Não quero mais que as coisas
continuem como estão. Eu... Entendo você.
— Anjo? — perguntou David, boquiaberto. Os
olhos de Julia começavam a ficar vermelhos.
— Está tudo bem, meu amor — e me voltei à
Julia. — Eu não quero mais conflitos. Quero olhar para
você, Julia, e pensar que podemos começar de novo. Ter
uma segunda chance para nós.
— Eu achei... Achei que me odiasse.
— Não começamos bem. — Ri sutilmente e ela
ainda não estava convencida. — O que me diz de
esquecermos os problemas e nos conhecermos melhor?
— Eu não sei o que dizer.
— Só diga que sim.
Por um momento eu não consegui imaginar o
que ela estaria pensando, mas logo um grande sorriso
se abriu e aquilo já foi suficiente para mim.
Quase uma hora depois, após uma longa e boa
conversa, Julia se despediu de mim e David. Ele correu

191
para fechar a porta do quarto quando Julia saiu e veio
ao meu encontro.
— O que acabou de acontecer aqui? — Perguntou,
intrigado.
— Eu não sei, mas foi ótimo. Estou muito feliz
que resolvemos nossos problemas com ela.
— Eu ainda não entendo. De onde veio essa
desesperada vontade de ficar de bem com Julia?
Também achava que você a odiava.
— Prometo que será o primeiro a saber quando
eu desembaralhar meu cérebro! — E soltei uma
gargalhada.
David acariciou meu rosto e me beijou. Eu podia
sentir a felicidade nele também.
— O que exatamente aconteceu naquela estrada?
— Perguntei. Eu precisava saber com detalhes como
viera parar naquela cama de hospital.
David refletiu por um momento e eu estava certa
que ele se perguntava se me contava o ocorrido ou não.
Felizmente, decidiu que sim.

192
— Bem, não sei se você se lembra de tudo.
Estávamos voltando da Winter-Night Party, entramos
em uma estrada errada e nos perdemos. Você estava
dirigindo e continuou seguindo a estrada de terra, até
que um caminhão de carga nos atingiu. Ele estava
saindo de uma estrada anexa no meio das plantações. O
caminhão atingiu o seu lado do carro e o motorista
chamou imediatamente a emergência, que conseguiu
te trazer a tempo aqui para o hospital. — David fez uma
pausa e eu percebi que ele relutava para continuar. —
E... Eles disseram que suas chances não eram nada
boas. Mas eu acreditava que você não estava pronta
para me deixar ainda.
— Eu nunca vou te deixar! — E ele se permitiu
um sorriso. — Não enquanto você for tudo o que eu
preciso nesta vida.

Três dias depois

— Tudo bem, eu direi a ela — falava David ao


celular. — Até logo.

193
Ele desligou e veio até mim.
— Como você está, Anjo?
— Ah... Estou melhorando, sabe. Tem uma
pessoa muito especial cuidando de mim!
— Você não pode imaginar como estou feliz em
ter você de volta. Fiquei com tanto medo de te perder.
Olhei para ele, levantei meu braço bom e toquei
seu rosto carinhosamente. Não foram necessárias
palavras para dizer o quanto eu também estava feliz
por estar ali. Aposto que ele podia enxergar isso em
meus olhos. David me beijou e em seguida falou:
— Eu estava falando com uma pessoa agora no
celular que quer muitíssimo ver você. Ela está voltando
de uma viagem e gostaria de nos encontrar lá em casa,
mais tarde. — Eu percebi que David dizia aquilo
tomando o maior cuidado em escolher as palavras
certas e me mostrei curiosa em saber quem era essa
pessoa. Ele percebeu minha curiosidade e acrescentou.
— É Jenna.
Um calafrio subiu pelo meu corpo. Ouvir o nome
dela me fez despertar algumas coisas em minha mente;

194
algumas memórias, alguns acontecimentos. Fiquei em
silêncio por alguns segundos para processar tudo que
surgia na minha mente. Era tanta coisa, mas neste
momento eu só conseguia me concentrar em uma
coisa: Eu precisava me desculpar com Jenna.
David me olhava, preocupado.
— Anjo, está tudo bem? Espero que não tenha
problema, pois eu aceitei que ela nos encontrasse lá.
Eu então me virei para ele e falei, ainda distraída
com tudo aquilo na cabeça.
— Não, não... Na verdade isso é exatamente o que
eu queria. — David parecia não entender. — Eu...
Preciso conversar com ela.
— Espera um pouco, é você mesmo? — Brincou.
— Pelo que me lembro você não queria nem ouvir o
nome dela.
Tal afirmação me deixou um pouco
constrangida. Bateu-me um enorme arrependimento.
— É que... — E então tive uma estranha sensação.
Como se eu tivesse vivido outra vida recentemente. —
Muitas coisas aconteceram.

195
— Mas... Você estava... — dizia ele, confuso,
indicando a cama.
— Sim, mas se eu te dissesse que tive o sonho
mais real e maluco de todos, você acreditaria? — Agora
estava tudo muito claro na minha mente — No sonho...
Eu perdi você e estava no meio de alguma investigação,
mas não era qualquer uma de costume. Não me lembro
de como o sonho começou e nem se até onde eu lembro
foi realmente o final, mas era tão real.
David ouvia, interessado.
— E todos estavam lá: Jenna, Mark, Alex, o cara
da promotoria. E fica mais estranho, pois minha
relação com Jenna era tão perfeita. Só agora percebi
como ela me faz falta. Depois que nossa mãe se foi eu
me senti tão sozinha e perdi a única pessoa que me
entendia completamente, mas no sonho Jenna era essa
pessoa. Eu podia recorrer a ela sempre que precisasse.
E... Julia estava lá também e ela passou a me ajudar na
tal investigação e... — Congelei, refletindo sobre um
acontecimento recente.
— O que foi Anjo?

196
— Acho que acabei de descobrir o motivo do meu
sentimento de felicidade por Julia.
— Tem a ver com o sonho, não é?
— Sim, mas foi só um sonho, não? — David
balançou afirmativamente a cabeça. — E mesmo assim
não entendo por que aquele sentimento foi tão forte.
Senti que não podia mais continuar do jeito que estava
com Julia. Ela não merecia aquilo.
— Isso é bom. Eu acredito que ela tenha mudado
e talvez seja bom dar uma segunda chance a ela. Agora,
voltando ao sonho, você estava dizendo alguma coisa
sobre uma investigação e que Julia a ajudou.
— Sim, a investigação... A única coisa que eu
consigo me lembrar é que corríamos perigo. Havia
alguém que nos capturou, o lugar era um tanto familiar
e Julia estava muito ferida. — Tentei buscar mais
alguma informação, mas nada me veio à mente e
conclui: — É basicamente tudo o que me lembro.
David estava pensativo e eu daria qualquer coisa
pelos pensamentos dele.
— O que você está pensando?

197
— Você acha que esse sonho tem algum
significado? — Respondeu ele, ainda pensativo e cada
vez mais interessado. — Não que eu acredite muito
nessas coisas, mas vai saber...
Foi então que juntei o estranho sonho com meu
encontro com o Anjo e aquilo não me pareceu uma
mera coincidência. O encontro ainda estava muito
claro em minha mente e tudo agora fazia sentido. Eu
realmente não tinha pensado nos dois acontecimentos
juntos, mas tive a estranha impressão que o sonho
poderia me ajudar a compreender os conselhos do anjo.
Se essa era minha segunda chance, eu estava disposta a
seguir o que me foi dito e não queria cometer os
mesmos erros novamente.
— Eu ainda não tinha tido a chance de pensar
muito nisso, mas estou começando a acreditar que não
foi tudo em vão.
Nisso ouvimos uma batida na porta e um médico
entrou. Eu o reconheci do sonho e das lembranças na
sala de cirurgia. Dr. Chevalier.

198
Ele me informou que eu passaria por uma
pequena e rápida série de exames e, se tudo corresse
bem, eu seria liberada já naquela tarde. Eu torcia com
todas as minhas forças para que eu pudesse ir embora
logo.
Horas depois eu estava finalmente saindo do
hospital. Era, de certa forma, uma libertação. Eu sentia
a brisa em meu rosto. O sol, o céu, tão lindo, marcava
uma nova fase da minha vida. Uma fase que eu
esperava ser tão boa quanto à anterior, mas com
algumas mudanças positivas, é claro.
Eu ainda não estava completamente recuperada,
mas me deixaram voltar para casa desde que eu levasse
a vida com muita calma nos próximos dias. Concordei,
mas não pude deixar de pensar no quanto eu estava
motivada a fazer coisas, grandes coisas, como o Anjo
dissera. Eu sentia que era capaz de tudo e me sentia
também mais viva do que nunca.
David me guiava em uma cadeira de rodas e de
repente paramos a frente de um belo Audi prata.

199
Demorei um pouco para entender. David notou minha
surpresa.
— Gostou?
— É... Lindo! — Fiquei sem palavras. Eu amava
esse carro e é claro que David sabia exatamente como
me agradar, mas por uma surpresa dessa eu não
esperava. — Não sabia que você estava pensando em
comprá-lo.
— Bem... Nosso outro carro ficou bem, como
posso dizer... Inutilizável. — E deu uma risada — E... Tá,
eu admito. Quando soube que precisaríamos de outro
carro, não pude perder a chance e fiz questão de te fazer
essa surpresa. — Meus olhos brilhavam e David se
abaixou para me beijar.
Ele me ajudou a entrar e me senti embriagada
pelo cheiro do carro novo. Ainda bem que não pegamos
um horário de trânsito ruim, de modo que eu pude,
depois de muito tempo, apreciar a vista da maravilhosa
cidade. David colocou um dos indispensáveis CDs do
Bon Jovi e começamos a cantar junto.

200
David entrou pela Green Boulevard e eu olhava
pra todos os lados, encantada por estar ali novamente.
Seguimos em direção ao Shire Country Club e David fez
o contorno para entrar na Avenida Rossmore e
continuou até virarmos à esquerda, entrando na Rua
Edgell. Havia tantos lugares que eu queria visitar
novamente. Seguimos por um bom tempo pela Edgell
até que chegamos ao cruzamento onde se encontrava a
Falls High School e David comentou sobre a época que
ele estudou lá.
— Foram bons tempos — Disse ele, radiante. —
Sinto falta do time de futebol. Talvez eu deveria fazer
igual você e tentar entrar em contato com o pessoal.
— Não tem de quê, meu amor — e David riu. — Já
eu, estudar em Nova York foi uma experiência
diferente. Mas interessante mesmo foi meu tempo como
líder de torcida.
— Eu gostaria muito de ver você naquelas
roupas. — falou David, com um sorriso malicioso.
— Mas é claro que gostaria! — Ri por alguns
segundos, me lembrando daquela época. — Faz tanto

201
tempo... Tenho certeza que posso me dar mal se tentar
alguns passos. Mas quem sabe não procuro meu antigo
uniforme, só para você.
E nós rimos.
Esse momento com David mais parecia um
sonho. Não como o que eu tive quando estive no
hospital. Este momento em particular era milhões de
vezes melhor. Nada me fazia mais feliz do que estar
junto de quem eu amava.
David entrou numa pista dupla que dava até a
Avenida Falls e estávamos próximo ao nosso destino.
Continuamos até chegarmos ao dobramento da
Avenida Norton. Como fazia pouco tempo que
havíamos nos mudado, eu fiquei procurando pela casa
até que avistei a número 387 e senti um conforto
quando paramos à frente. Estava em casa.
Depois de mais de uma semana no hospital,
finalmente estava de volta ao lar. O número 387 da
Avenida Norton tinha sido a casa de uma antiga família
que pareceu muito feliz em se livrar dela. No começo
David e eu até achamos que havia algo de errado com a

202
casa, mas ela provou ser tão perfeita quanto
imaginávamos. David planejou secretamente comprá-
la pouco antes do nosso casamento e foi o presente
perfeito. Não havia nenhum outro lugar no mundo em
que eu gostaria de estar agora.
David estacionou o carro e eu anunciei que
queria entrar em casa andando, pois significaria um
novo começo para mim. Além disso, eu não gostava
nem um pouco da cadeira de rodas. Ele me ajudou a
levantar, passei meu braço em volta de seu pescoço e
tentei me estabilizar.
— Pode me soltar. — Falei, confiante. — Acho que
consigo sozinha.
David fez o que pedi e segurou só minhas mãos.
Ele olhou para mim e eu assenti. Ele soltou e foi mais
difícil do que eu imaginei; meu corpo ainda estava
muito fraco. Eu me sentia como se tivesse tomado uma
anestesia geral, mas permaneci firme. Dei o primeiro
passo e David me acompanhou de perto.
— Está indo muito bem, Anjo. — E eu sorri de
satisfação.

203
David se adiantou, abriu a porta e eu cruzei a
soleira, parando no hall de entrada. Eu mal me
lembrava da última vez que vira o interior da casa e
agora parecia que estava adentrando-a pela primeira
vez.
— Preciso pegar algumas coisas no carro. —
Falou David. — Tem certeza que não precisa de ajuda?
— Não, não... — Respondi, um pouco distraída. —
Estou começando a me sentir melhor.
Comecei a andar em direção a sala de estar,
olhando fascinada por tudo a minha volta. David
voltou trazendo uma pequena mala e eu o acompanhei
até nosso quarto.
Tiramos a tarde toda para não fazer nada. Afinal,
eu não podia fazer muitas coisas devido ao repouso
necessário e não havia coisa melhor do que ficar só eu e
David, juntinhos.
Já estava quase anoitecendo e Jenna ainda não
tinha aparecido. Me perguntei se ela viria mesmo e
David disse que ela estava parecia ansiosa para me
encontrar.

204
Fiquei pensando no que ela estaria pensando de
mim, já que nossa última conversa pelo telefone não
acabara muito bem. Subitamente, meu pensamento foi
interrompido pelo som da campainha que ecoou pela
casa.
— Deve ser ela. Quer que eu peça para ela te
encontrar aqui?
— Acho que vou esperar na sala. Ajude-me a
levantar, por favor.
Assim que me pôs de pé, David correu para
atender à porta e eu me encaminhei para a sala. Ouvi a
voz de Jenna e no momento seguinte ela irrompeu pela
porta da frente, correndo em minha direção. Eu não
imaginava um reencontro como esse e mal tive tempo
de dizer alguma coisa quando ela desabou em meus
braços, às lágrimas. Mark vinha logo atrás,
aparentando satisfeito pelo reencontro.
— Oh, Katie! — E fiz o que sentia saudade há
muito tempo: abracei-a com todas as minhas forças.
— Me desculpe...

205
— Não, está tudo bem agora. — Ela continuava
me abraçando e eu não fazia questão em soltá-la. —
Você está aqui, nada mais importa.
— Jen... — Eu precisava me desculpar. — Você é
minha família e me sinto tão mal pelo modo como
tratei você. Sinto muito mesmo.
Ela olhou no fundo dos meus olhos.
— Irmãzinha, eu só não a perdoaria se você nos
deixasse para sempre. Não suportaria ver você partir
também.
— Eu amo você, Jen. — Não conseguia mais
segurar as emoções. Eu chorava como uma criança. —
Não vou mais a lugar algum.
Eu estava tão feliz por aquele momento que disse
para todos irem na frente. Sozinha na sala fechei meus
olhos e agradeci ao universo por me dar uma nova vida.
Eu sentia que quando tudo estava perdido,
poderia haver, em algum lugar, uma saída no meio de
tanta escuridão. Bastava acreditar... Acreditar que era
possível.

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