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PARENTALIDADE
DEPRESSÃO PÓS-PARTO, PRÉ-NATAL PSICOLÓGICO,
AVÓSIDADE, ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL, ENTRE OUTROS
ALESSANDRA ARRAIS
Direitos Autorais
Autor
Alessandra Arrais e Colaboradores
Editor
Escola de Profissionais da Parentalidade
O mito da mãe exclusiva e seu impacto na depressão pós-parto (2006) - Azevedo, Kátia
Rosa; Arrais, Alessandra da Rocha ................................................................................ 08
Depressão pós-parto: uma revisão sobre fatores de risco e de proteção (2017) - Arrais,
Alessandra da Rocha; Araújo, Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de ........................... 09
O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes (2012) - Arrais,
Alessandra da Rocha; Brasil, Kátia Cristina Tarouquella Rodrigues; Cárdenas, Carmen
Jansén de; Lara, Luisa ................................................................................................... 13
Percepções da equipe obstétrica sobre a presença do pai durante parto e sobre a lei do
acompanhante (2009) - Teixeira, Lidiane Pereira; Sá, Raquel Souza; Arrais, Alessandra
da Rocha ....................................................................................................................... 15
Amamentar é preciso, mas não pode ser uma pressão - Reportagem (Caderno) -
Monteiro, ...................................................................................................................... 20
01
Encontro GRUPO DE PRÉ-NATAL PSICOLÓGICO
Revista de Psicologia
Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 Avaliação de programa de intervenção junto a
gestantes
ABSTRACT
1. INTRODUÇÃO
Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
Alessandra da Rocha Arrais, Daniela Silva Rodrigues Cabral, Maria Helena de Faria Martins 55
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56 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes
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Alessandra da Rocha Arrais, Daniela Silva Rodrigues Cabral, Maria Helena de Faria Martins 57
Cabe mencionar que durante esse estudo participamos de alguns cursos para
gestantes em instituições públicas e privadas de Brasília, o que nos permitiu observar que
a lei federal que permite à mulher ser acompanhada durante o parto é melhor cumprida
nos hospitais privados. Já nos hospitais públicos, a lei não é integralmente cumprida,
havendo certa resistência em permitir o acompanhante no momento do parto sob a
alegação de que, por vezes, o pai poderia atrapalhar os procedimentos - passar mal, ficar
nervoso, dar palpites, fazer cobranças etc. Em algumas situações era “sugerido” por
integrantes da equipe do hospital que a gestante escolhesse um acompanhante feminino,
visto que o ambiente hospitalar não oferecia privacidade às outras gestantes, ou então,
condicionavam a presença do pai “somente se ele participasse do curso para gestantes
junto com a esposa” (Curso para gestantes, 2008)1.
É importante lembrar que houve uma época em que os pais raramente entravam
na sala de parto, situação alterada com a publicação da Lei 11.108/2005, que garante que
às parturientes tenham o direito à presença de um acompanhante durante todo o período
de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Mas, esta nova regulamentação acabou
por criar, no limite, uma situação oposta, em que a mulher, a família ou até mesmo o
círculo social de amigos criam uma expectativa que praticamente obriga o pai a assistir ao
parto, desconsiderando sua vontade, e forçando-o a passar por uma experiência, por
vezes, constrangedora, angustiante e/ou involuntária.
1 Curso para gestantes (2 de fevereiro/2008). Comunicação oral apresentada em um hospital público, em Brasília.
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58 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes
Nessa fase também é importante orientar a mulher sobre como o bebê é sensível
à maneira como é manuseado pela mãe e que o contato físico entre eles (olhar, acariciar,
falar, nutrir), favorece a consolidação do vínculo, pois ele reage a todos os estímulos aos
quais é exposto. Assim, torna-se fundamental o trabalho do psicólogo no
acompanhamento das emoções e comportamentos da mãe no pós-parto, permitindo um
espaço de confiança no qual ela tenha liberdade de expressar como de fato está se
sentindo, e permitindo ao profissional reconhecer e diferenciar patologias que podem
surgir com frequência, tais como o baby blues, a depressão pós-parto, e a psicose
puerperal. O baby blues (um estado considerado normal após o parto) é uma forma mais
leve dos quadros de depressão, também conhecida por tristeza materna, que se
caracteriza por um estado de hipersensibilidade, sendo seus sintomas mais comuns:
insônia, choro fácil, tristeza, irritabilidade e falta de energia, que surgem logo após o parto
e duram por volta de duas semanas, desaparecendo espontaneamente sem causar
prejuízos à mãe ou à relação mãe-bebê (ARRAIS, 2005). Em relação à depressão pós-parto
(cuja duração é maior que o baby blues e pode ter os sintomas agravados ao longo do
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2 De acordo com Solis-Ponton (2004) o termo parentalidade foi idealizado pelo psiquiatra e psicanalista Paul-Claude
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60 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes
3 Pesquisa coordenada pela professora Alessandra da Rocha Arrais, entre 2007 e 2009, na Universidade Católica de Brasília -
UCB, na área de psicologia da Saúde, classificada no Sistema WebGEp na subárea: “Estado, família, comunidade e saúde”.
Disponível em: <http://www2.ucb.br/portal/visualizaInformacoesProjeto.do?id=1435>.
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[...] a subjetividade presente com seus próprios sistemas de pensamento, seus processos
cognitivos, seus sistemas de valores e de representações, suas emoções, suas
afetividades e o afloramento de seu inconsciente. (BARDIN, 1997, p. 94)
Dessa forma foi possível criar eixos temáticos de ideias, de interpretações, que
revelaram às pesquisadoras quais as imagens vinculadas à gestação, ao “ser mãe”, aos
mitos que envolvem essa fase, bem como apresentar as considerações manifestadas pelas
mulheres quanto à participação no grupo de pré-natal psicológico.
A partir do perfil gestacional, aplicado aos dois grupos durante a gestação, foi
possível a definição de três eixos temáticos, baseados nas questões do tipo “sim/não”
acerca do desejo de engravidar – verificando a existência de um desejo de ambos ou de
apenas um dos membros do casal -, do fato de ter havido um planejamento para a
gravidez, e a atividade remunerada da mulher, que poderia ser afetada pela gravidez: (1)
gravidez desejada; (2) gravidez planejada; e (3) atividade remunerada.
Após o parto, as respostas das mulheres para os itens da Escala Cox4, foram
comparados com os dados dos perfis gestacional e puerperal, nos quais se realizou uma
análise do conteúdo das respostas que se mostraram mais relevantes para o tema da
pesquisa, e que permitiram a definição de mais cinco eixos temáticos: (4) parto desejado;
(5) acompanhante no parto; (6) amamentação; (7) rede social de apoio; (8) estados
emocionais depois do parto, que são discutidos a seguir:
4
Dimensões da Escala Cox validadas por Maria Fátima S. Santos, Francisco M. C. Martins e Luis Pasquali, Depto. de
Psicologia - UnB (1999): 1. Eu tenho sido capaz de rir e achar graça das coisas; 2. Eu sinto prazer quando penso no que está
por acontecer em meu dia a dia; 3. Eu tenho me culpado sem necessidade quando as coisas saem erradas; 4. Eu tenho me
sentido ansiosa ou preocupada sem uma boa razão; 5. Eu tenho me sentido assustada ou em pânico sem um bom motivo; 6.
Eu tenho me sentido esmagada pelas tarefas e acontecimentos do meu dia a dia; 7. Eu tenho me sentido tão infeliz que tenho
tido dificuldade de dormir; 8. Eu tenho me sentido triste ou arrasada; 9. Eu tenho me sentido tão infeliz que tenho chorado;
10. A ideia de fazer mal a mim mesma passou por minha cabeça.
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gravidez na adolescência. No presente estudo não se trata dessa abordagem, uma vez que
as mulheres participantes da pesquisa tinham relacionamentos estáveis com um
companheiro ou marido. Assim, a análise do desejo de engravidar vincula-se, nesse caso,
às questões relacionadas ao compromisso do casal com a gravidez, suas expectativas, e os
possíveis impactos e conflitos advindos de um processo de rejeição que terá reflexos na
afetividade e nos vínculos mãe-pai-bebê.
Grupo NP: verificou-se que das cinco mulheres desse grupo, quatro informaram
que a gravidez foi desejada, sendo: três pelo pai e mãe e uma, somente, pela mãe. Apenas
uma das participantes informou que a gravidez não foi desejada nem pelo pai nem pela
mãe.
Grupo P: quatro mulheres informaram que a gravidez foi desejada pelo pai e
mãe, e uma informou que não foi desejada nem pelo pai nem pela mãe.
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preocupação mais abrangente acerca dos diferentes fatores – e suas articulações – que têm
impacto sobre a construção das relações advindas do nascimento do bebê.
Grupo NP: duas mulheres informaram que a gravidez foi planejada pelo pai e
mãe e três informaram que não foi planejada pelo casal.
Portanto, as respostas foram semelhantes nos dois grupos, sendo que a maioria
não planejou a gestação. Esses dados estão de acordo com alguns estudos relacionados à
saúde pública da mulher (MALDONADO, 1997), que indicam que a maioria das
gestações não é planejada. A partir desse fato é preciso ter em mente que não planejar e
não desejar a gravidez pode ser um dos fatores para possíveis transtornos psicológicos no
pós-parto, no entanto, esse fator isoladamente, não foi suficiente para motivar a
participação no grupo do pré-natal psicológico.
Grupo NP: apenas uma mulher trabalhava, as outras quatro não trabalhavam.
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Grupo P, embora a maioria trabalhasse fora, houve maior participação no grupo de pré-
natal psicológico. Portanto, a questão da disponibilidade ou não de tempo, isoladamente,
não foi um fator determinante para favorecer ou impedir a participação das mulheres no
grupo. Por isso, acreditamos que outros fatores - talvez associados a esse -, podem ser
considerados mais significativos ou motivadores para procurar o grupo de pré-natal
psicológico.
Grupo P: duas mulheres tiveram o parto que desejavam. Uma teve o parto
normal: “Rápido sem episiotomia, bem tranquilo, com ajuda do meu marido e da equipe
do hospital” (Dalva, 26 anos); e a outra teve cesárea. Três não tiveram o parto esperado,
pois desejavam normal e tiveram cesariana: “Eu esperava parto normal” (Ana, 27 anos);
“Eu queria o mais natural possível, mas não quiseram fazer o meu parto desta forma”
(Bete, 25 anos); e “Esperava que fosse natural, de preferência” (Cida, 41 anos), ou seja, não
puderam colocar em prática o “parto escolhido”, apesar de ser estimulado no pré-natal
psicológico, não há garantia de que a equipe médica atenderá a escolha dos pais.
Constata-se que a maioria das mulheres não teve o parto desejado - normal -
sendo submetidas à intervenção cirúrgica. Maldonado (1997) destaca o alto índice de
cesarianas no Brasil, que ainda hoje ocupa o primeiro lugar no mundo, sendo habitual que
a mulher seja induzida pelo médico a esse procedimento desde o início da gestação,
sugerindo a cesariana como a melhor alternativa de parto, com argumentos sobre a
segurança e controle do procedimento em caso de eventuais complicações. Dessa forma, a
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“cesárea” acaba sendo agendada pelo médico antes mesmo da mulher entrar em trabalho
de parto, desconsiderando o “parto escolhido” pela gestante, minimizando o seu
empoderamento do momento em que ela deveria ter autonomia para decidir. Cabe aqui a
consideração de que a intervenção cirúrgica deve ser realizada sempre que houver
indicação do especialista, porém não deveria tornar-se uma alternativa apenas para
acomodar interesses dos profissionais de saúde.
Com base nessa análise, observou-se que das 10 mulheres do estudo, oito foram
acompanhadas pelo marido ou familiar no momento do parto. Esse número, embora
numa amostra pequena, demonstra um aumento da participação do pai/família junto à
parturiente nesse momento, que é considerado de extrema importância para a mulher e
para o vínculo familiar.
Eixo 6 - Amamentação
No que se refere à amamentação é preciso considerar que o sucesso ou fracasso pode ser
influenciado por diferentes fatores, entre eles as opiniões de pessoas próximas e também
pela forma taxativa que as campanhas abordam o aleitamento, de modo que, caso a
mulher não consiga ou não queira amamentar, isso pode afetar a sua auto-estima de
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Apoio Emocional:
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É importante ressaltar que a mulher do Grupo NP que não contava com o apoio
emocional do marido e da família desde a gestação foi a que apresentou a maior
pontuação na Escala COX de depressão pós-parto dentre todas as participantes. A mulher
do Grupo P que não teve apoio emocional, mas teve acompanhamento psicológico não
apresentou indicativo de depressão pós-parto, com base na Escala aplicada.
A falta de apoio nos cuidados com o bebê pode sugerir uma sobrecarga na
atividade diária da mãe, podendo desencadear um sentimento de incapacidade,
insegurança, ansiedade, medo, cansaço, alteração do humor, enfim, afetar ou intensificar
negativamente os estados emocionais da mulher, contribuindo para a depressão pós-parto
(ARRAIS, 2005).
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6. CONCLUSÕES
A partir dos dados analisados é possível constatar o potencial que a abordagem do pré-
natal psicológico possui para minimizar a lacuna existente nos atendimentos realizados às
gestantes e aos casais grávidos, que geralmente são feitos de maneira breve e insuficiente
para sanar as diferentes demandas de informação das mulheres e companheiros. Ao criar
um espaço diferenciado de atenção, o pré-natal psicológico permite que a mulher vivencie
o processo de gravidez, parto e pós-parto de maneira pró-ativa, valendo-se de um
acolhimento importante para seu bem-estar, em um momento de vulnerabilidade
emocional.
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72 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes
[...] uma mulher pode desejar muito estar grávida, mas não desejar a criança que
decorrerá naturalmente dessa gravidez: são dois desejos completamente diferentes, cuja
associação não é automática, não estão preparadas para ser mãe. O sentimento, o desejo
de engravidar, atinge uma grande maioria de mulheres. (SERRURIER, 1993, p. 13)
Pode-se inferir, a partir das reflexões feitas até o momento, que no caso das
mulheres que têm uma atividade remunerada, o exercício dos diversos papéis
desempenhados (social, familiar, profissional etc.) pode ter sido uma variável positiva
para ajudar na adaptação da nova rotina de vida, mas também pode ter influenciado no
aumento do escore do Grupo P na Escala COX de depressão pós-parto: sobrecarga de
funções, conciliação da maternidade e vida profissional, culpa por ficar muito tempo
ausente da rotina da criança.
Com base nesses discursos, percebe-se que as mulheres que não tiveram o
acompanhamento psicológico não demonstraram um senso crítico apurado acerca do
mito da maternidade e sobre o que é ser mãe, além de apresentarem maior receio e
dificuldade em expressar suas insatisfações pessoais e/ou conjugais, e consequentemente
maior sofrimento emocional. É preciso considerar que a cultura ocidental idealiza a
maternidade positivamente a partir de modelos quase “infantis”, ao vê-la como um
momento singelo, mágico, especial, desejado e integralmente feliz, construindo um mito
da maternidade “cor-de-rosa”, que coloca a mulher diante de um conflito potencial: a
dificuldade em aceitar a ambivalência, que define barreiras sociais e morais que impedem
que as mulheres manifestem problemas, tristeza, sofrimento, e questionamentos nesse
período. Dessa forma, considera-se “natural” a sobrecarga de papéis, limitando o espaço
para que as mulheres possam expressar publicamente suas insatisfações e temores, que
são colocados na dimensão do “patológico” e fazem esquecer que “a maternidade não é
cor de rosa, ela é de todas as cores” (ARRAIS, 2005).
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possível, não condeno a pessoa se fizer uma loucura” (Elza, 29 anos). “A orientação do
grupo foi muito útil, aprendi a questionar e a selecionar o que as pessoas falam” (Cida, 41
anos).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora se reconheça que o presente estudo aborda apenas um dos possíveis conjuntos de
indicadores relevantes para a compreensão das questões referentes ao tema, a análise dos
resultados dos perfis das gestantes e puérperas reforçam a percepção de que o trabalho
preventivo, característica fundamental do pré-natal psicológico, pode tornar-se uma
prática capaz de evitar ou minimizar possíveis transtornos psicológicos nesse período
puerperal, além de seu potencial em favorecer as relações familiares e o desenvolvimento
da vivência maternal e parental mais acolhedora, de maneira articulada às atuais políticas
públicas de promoção da saúde da mulher, de equidade de gênero, entre outras. Nesse
sentido é importante destacar o diferencial apontado pelas participantes do grupo de pré-
natal psicológico em termos de acolhimento, exteriorizando uma dimensão afetivo-
familiar que pode ser desconsiderada/subestimada pela abordagem meramente técnica
do ponto de vista médico, que muitas vezes reveste-se de um discurso hermético e frio
que impede o afloramento de importantes dimensões emocionais. É preciso perceber a
importância da dimensão que pode emergir a partir do pré-natal psicológico, pois se trata,
no limite, de estabelecer um novo espaço de compreensão e de uma lógica que ultrapassa
os estereótipos de gênero presentes no senso comum, permitindo avançar para além da
imagem de fragilidade ou de “histeria” feminina (e sua expectativa de resolução solitária),
para uma perspectiva de compromisso e de apoio mútuo relativo à parentalidade.
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02
O pré-natal psicológico como programa
de prevenção à depressão pós-parto
The psychological prenatal program as a prevention tool
for postpartum depression
DOI 10.1590/S0104-12902014000100020 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.251-264, 2014 251
Abstract Introdução
Psychological prenatal program(PNP) is a new con- A gravidez pode ser sobrecarregada por muitos
cept in perinatal care towards greater humanization transtornos do humor, em particular pela depressão.
in the gestational process, birth and parenting. Ao contrário do esperado, a literatura e a prática com
Pioneer in Brasilia, the program aims to integrate gestantes e puérperas nos mostram que a maioria
pregnant women and family throughout the preg- das mulheres, sobretudo as de classe média e baixa,
nancy and childbirth process through thematic encontra na vivência da maternidade algum nível de
meetings in psychotherapy groups with an emphasis sofrimento psíquico, físico e social no período pré
on psychological preparation for parenthood and e pós-parto. Normalmente, nessas fases, observa-se
prevention of postpartum depression (PPD). The nas mães uma vivência relativamente contínua de
research objective was to evaluate the contribution tristeza ou de diminuição da capacidade de sentir
of PNP to prevent PPD. Action-research methodology prazer (Santos, 2001), a qual poderá ser transitória
was chosen. The instruments used were: gestational ou irá se tornar crônica caso não sejam assistidas
profile, puerperal profile, sessions and materials adequadamente. Esse conhecimento segue no
produced in the PNP, Beck Depression Inventory, sentido contrário ao de uma crença popular ampla-
Edinburgh postnatal depression scale, evaluative mente difundida de que a gravidez é um período de
questionnaire and completing phrases. The results alegria para todas as mulheres (Zinga e col., 2005;
were compared between five collaborating PNP Maushart, 2006; Arrais e Azevedo, 2006; Tostes,
participants (intervention group) and five non- 2012).
-participants (control group). It was found that the Existem três distúrbios que são característicos
in intervention group the occurrence of risk factors do período puerperal (Cantilino e col., 2010). São eles
overcame the protective factors and more than half a melancolia da maternidade (baby blues), a depres-
of this group showed gestational depression, but são pós-parto (DPP) e a psicose puerperal (Frizzo e
didn’t developed the PPD . In the control group, two Piccinini, 2005; Rosenberg, 2007). Baptista e cola-
collaborators presented the PPD. These findings boradores (2004) e Cantilino e colaboradores (2010)
suggest that the PNP associated with protective acrescentaram recentemente à trilogia do puerpério
factors present in the history of pregnant women (Santos, 2001) outros transtornos ansiosos como a
can help prevent PPD. It is argued that psychologi- ansiedade puerperal e o distúrbio de pânico pós-
cal assistance during pregnancy, through the use -parto. Apesar de não serem “reconhecidos como
of PNP, is an important psycoprophylactic tool that entidades diagnósticas específicas pelos sistemas
should be implemented as a public policy at primary classificatórios atuais, os transtornos mentais no
health care, maternity services and prenatal care. puerpério apresentam peculiaridades clínicas que
Keywords: DPP; Prenatal Are; Prophylaxis; Psychology. merecem atenção por parte de clínicos e pesquisa-
dores” (Cantilino e col., 2010, p. 278). De modo geral,
estas não são diagnosticadas nem tratadas adequa-
damente. Neste artigo focalizaremos apenas a DPP,
por ser uma experiência vivida por muitas mulheres,
por se apresentar como transtorno psíquico do ciclo
gravídico puerperal de maior incidência no puerpé-
rio (Rosenberg, 2007).
Para Frizzo e Piccinini (2005) a DPP é definida
como um episódio depressivo não psicótico que é
classificado assim sempre que iniciado nos primei-
ros doze meses após o parto. Esse tipo de depressão
apresenta uma incidência no Brasil de até 20%
dos casos após o parto (Santos, 2001; Rosenberg,
Fatores de risco e de proteção para DPP identificados Os fatores de risco encontrados foram: ser primí-
A primeira fase da pesquisa visou levantar os fatores para; rede de apoio social e familiar empobrecida;
de risco e de proteção presentes na história e vivên- relacionamento conjugal insatisfatório; idealização
cia das colaboradoras. Para melhor visualização dos da maternidade; ser mãe solteira; gravidez não plane-
dados, a tabela 1, sintetiza e apresenta a ocorrência jada; gravidez não desejada; depressão gestacional;
de cada fator para cada colaboradora do grupo- relação conflituosa com a mãe; condições socioeco-
-intervenção (P1, P2, P3, P4 e P5) e grupo-controle nômicas desfavoráveis; falta de apoio do pai do bebê;
(P6, P7, P8, P9 e P10). transtornos de humor, parto traumático e prematuri-
Com base nas respostas apresentadas nos perfil dade (Golse, 2002; Harvey, 2002; Baptista e col., 2004;
gestacional e nos relatos das duas primeiras sessões Arrais, 2005; Zinga e col., 2005; Rosenberg, 2007).
do PNP, foi possível elencar vários fatores apontados Os fatores de proteção levantados foram: ser
pela literatura da área. Conforme afirma Gomes e multípara; gravidez planejada; gravidez desejada;
colaboradores (2010), o conhecimento desses fatores suporte familiar; relacionamento conjugal satisfa-
é importante para o planejamento e execução de tório; apoio emocional do pai do bebê; bom relacio-
ações preventivas, como o favorecimento de apoio namento com a mãe; parto satisfatório e situação
emocional à família, amigos e companheiro, propor- socioeconômica favorável (Frizzo e Piccinini, 2005;
cionando segurança à puérpera. Arrais, 2005; Cruz e col., 2005; Cantilino e col., 2010).
Grupo-Intervenção Grupo-Controle
P1 P2 P3 P4 P5 Total P6 P7 P8 P9 P10 Total
Primípara X X X X X 5 X X X 3
Rede de apoio empobrecida X X 2 X 1
Rel. conjugal insatisfatória X X X 3 X 1
Idealização da maternidade X X 2 X X X 3
Mãe solteira X 1 0
Gravidez não planejada X X 2 X X 2
Fatores de Risco
Suporte familiar X X X X X 5 X X X X X 5
Rel. conjugalsatisfatória X X 2 X X X X 4
Apoio emocional do pai do bebê X X 2 X X 2
Bom relacionamento com a mãe X X X 3 X X X X 4
Parto satisfatório X X 2 X X 2
Situação socioeconômica favorável. X X X X X 5 X X X X X 5
Total 4 5 5 5 7 26 6 6 6 6 7 31
Pode-se observar, na tabela 1, que a soma dos o grupo quando já existe alguma demanda psicos-
fatores de risco no grupo-intervenção (29 ocorrên- social, no intuito de lá encontrar um acolhimento e
cias) é maior se comparado ao grupo-controle (18 apoio para suas fragilidades emocionais; ainda que
ocorrências). Por outro lado, os fatores de proteção o grupo seja aberto para todas as gestantes e não
do grupo-controle (31 ocorrências) superaram os do coloque este tipo de demanda como pré-requisito
grupo-intervenção (26 ocorrências). Analisando-se para participação, o que é destacado no convite feito
apenas estes dados, pode-se supor que as colabora- às gestantes: “Para participar do PNP, você não pre-
doras do grupo-intervenção estariam mais vulnerá- cisa estar passando por uma dificuldade emocional
veis que as do grupo-controle, portanto com maior grave, ou crise psíquica. Basta apenas querer ajuda
tendência a desenvolver a DPP. para construir o novo papel de mãe e/ou de pai ou
Este resultado sugere a presença de fatores de aprimorar estas funções”.
risco que levaram as colaboradoras do PNP a pro- Além disso, na fase da intervenção, a captação
curar o grupo e as demais não. Ou seja, elas buscam das gestantes para a participação do PNP foi um
Suj Resultado BDI Grau Depressão COX Rastreamento DPP A DPP.... (respostas ao CF)
P1 22 Moderada-severa 07 Negativo ... foi prevenida e não apareceu
Grupo-intervenção
P2 10 Leve-moderada 11 Negativo ... graças a Deus não passei por esta fase
P3 22 Moderada-severa 06 Negativo ... não fez parte do meu cotidiano
P4 18 Leve-moderada 10 Negativo ... acredito que não tive a DPP
P5 9 Ausente 11 Negativo ... passa bem perto
P6 14 Leve-moderada 04 Negativo ... não tive
Grupo-controle
Interessante observar que dentro do grupo- tinham um maior vínculo com as pesquisadoras
-intervenção apenas uma das colaboradoras não ficando mais à vontade para falar sobre suas di-
apresentou sintomas de depressão, de acordo com ficuldades e sentimentos relacionados à vivência
o Inventário Beck de Depressão (BDI) as outras do pós-parto, enquanto as colaboradoras do grupo-
quatro tiveram escore acima de 10; sendo duas -controle tinham uma tendência em não demonstrar
com nível moderado-severo de depressão na ges- seus sentimentos, pela pouca vinculação com as
tação. Enquanto no grupo-controle, apenas duas pesquisadoras. Com base nestes resultados, cabe
colaboradoras tiveram escore na Beck maior que questionar se a participação no PNP permitiu que,
10, sendo uma no nível moderado-severo e outra no de alguma forma, a depressão fosse tratada ou mi-
nível leve-moderado; porém na maioria delas não se nimizada e a depressão não emergisse no puerpério.
evidenciaram sintomas de depressão gestacional. É importante esclarecer que todas as colabora-
Importante lembrar que a presença de depressão na doras foram convidadas a participar do PNP e que
gestação é um dos grandes fatores de risco para a nenhuma delas recebeu qualquer outro tratamento
DPP (Golse, 2002; Harvey, 2002; Baptista e col., 2004; psicológico ou psiquiátrico na gestação e no pós-
Arrais, 2005; Zinga e col., 2005; Rosenberg, 2007). -parto. Mas, depois de detectados indícios de DPP,
Entretanto observamos que, no puerpério, ocor- as colaboradoras, tanto do grupo-intervenção quanto
reu o inverso, nenhuma das gestantes acompanha- controle, foram encaminhadas para esses tratamen-
das no grupo-intervenção, que participaram do PNP tos pela equipe de pesquisa, pelo compromisso ético
desenvolveu depressão após o parto, enquanto duas com elas.
das puérperas do grupo-controle, que não partici- Na última fase da pesquisa – a avaliativa: no
param do PNP, evidenciaram DPP, como pode ser encontro de follow-up, nos dados provenientes do
visualizado no quadro 2. instrumento de perfil puerperal e nos dados prove-
Além dos testes, a análise das respostas do CF nientes do questionário avaliativo, ficou evidente o
permitiu a reafirmação desses dados e reforçam a impacto do PNP para cada colaboradora do grupo
ausência de DPP no grupo intervenção. Por outro intervenção, quando elas fazem a avaliação de todo
lado, das cinco colaboradoras do grupo-controle, o trabalho desenvolvido no PNP e refletem sobre
duas delas (P7 e P9) evidenciaram escore positivo o que aprenderam, os mitos desfeitos, o apoio re-
para rastreamento de DPP, na Escala COX, mas este cebido: o grupo me deu mais segurança (P2), foi
índice poderia ser ainda maior, pois é preciso con- importante para nos sentirmos mais seguras (P3),
siderar que as colaboradoras do grupo intervenção importante para não se sentir sozinha (P1), ajudou
COX, J.; HOLDEN, J. Perinatal mental health: a MORAES, I. G. S. et al. Prevalência da depressão
guide to the Edinburgh Postnatal Depression pós-parto e fatores associados. Revista de Saúde
Scale (EPDS). London: Gaskell, 2003. Pública, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 65-70, 2006.
Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.
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Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.
propõe um olhar voltado ao potencial de cada indi- tura, má-formação fetal, óbito fetal, entre outras
víduo, ajudando a identificar e fortalecer os fatores complicações (Baptista, & Furquim, 2009).
que permitem a redução da incidência e a prevenção
de patologias secundárias a condições adversas de
vida (Oliveira, & Nakano, 2011). Transtornos psíquicos no puerpério
O puerpério é um período marcado pela saída da
placenta no momento do parto, prolongando-se até a
Pré-natal psicológico (PNP) retomada do organismo materno às condições antes
Durante a gestação, observam-se várias altera- do parto, o que envolve processos anatômicos, fisio-
ções no comportamento feminino e na vida do casal, lógicos e bioquímicos (Baptista, & Furquim, 2009). De
as quais envolvem aspectos sociais, familiares, conju- acordo com o Ministério da Saúde, esse período pode
gais, profissionais e, principalmente, pessoais. Nessa ser compreendido em três fases: o puerpério imediato
fase, é comum que o humor tenha uma característica que inicia no primeiro e vai até o décimo dia após o
instável podendo resultar no surgimento de senti- parto; em seguida, o puerpério tardio, que abrange
mentos conflitantes tanto em relação ao bebê quanto desde o décimo até o quadragésimo quinto dia, e, por
à vida da gestante (Chiattone, 2007). último, o puerpério remoto, aquele que vai além do
É de grande importância a realização do pré-natal, quadragésimo quinto dia, ou seja, termina quando a
conforme destacam Baptista e Furquim (2009) e Borto- mulher retorna a sua função reprodutiva (Brasil, 2001).
letti (2007b), visando a prevenção dos problemas gesta- Conforme complementa Higuti e Capocci (2003),
cionais e o controle de agravantes psicológicos. Durante o puerpério é marcado por um período rico e intenso
esse período ocorre ainda o preparo físico e psicoló- de vivências emocionais para a puérpera, de grande
gico para o parto e a maternidade, proporcionando risco psíquico na vida de uma mulher, nas quais trans-
um ambiente adequado a uma vivência positiva pela formações sofridas tanto no aspecto biológico quanto
gestante (Rios, & Vieira, 2007). Nesse contexto, o psicó- relacionado à adaptação das exigências características
logo com formação específica é o mais indicado para do período pós-parto acabam tornando a mulher mais
atuar em programas de psicoprofilaxia, na medida em vulnerável a desencadear um transtorno mental.
que aborda questões relativas a alterações emocionais Os transtornos mentais no pós-parto incluem:
capazes de atenuar as angustias próprias deste período transtornos de ansiedade – devido à existência de senti-
(Bortoletti, 2007a), além de considerar aspectos que mentos ambivalentes intensos na maternidade; trans-
não apenas os biológicos. torno afetivo bipolar – doença crônica e recorrente que
apresenta características do episódio depressivo maior;
transtornos psicóticos – incidindo em cerca de 1 a 2%
Gestação de alto risco das puérperas, sendo caracterizado por intensa labili-
De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, dade do humor, agitação psicomotora e ideação para-
2012), a gestação é considerada um fenômeno fisioló- nóide de base alucinatória e os transtornos depressivos
gico, devendo ser vista tanto para as gestantes quanto (Yamaguchi, Pita, & Martins, 2007).
para a equipe médica como parte de uma experiência De acordo com o Manual Técnico de Saúde da
de vida saudável que envolve mudanças físicas, sociais Mulher (Brasil, 2006), outro transtorno mental comum
e emocionais. Segundo o Manual Técnico de Gestação no período puerperal é o baby blues, que acomete de
de Alto Risco (Brasil, 2012), apesar da maioria das gesta- 50 a 70% das puérperas, sendo definido como estado
ções evoluir sem nenhuma intercorrência, há gestantes depressivo mais brando, com surgimento geralmente
que, por serem portadoras de alguma doença, apre- no terceiro dia do pós-parto. Esse período caracteriza-se
sentam maior probabilidade de evolução desfavorável, por fragilidade, hiperemotividade, alterações do humor,
as chamadas “gestantes de alto risco”. falta de confiança em si e sentimentos de incapacidade,
A gestação é considerada de alto risco quando e tem remissão espontânea em duas semanas.
há a existência de fatores que impliquem riscos tanto O presente trabalho enfatizará a DPP que, de
para a mãe quanto para o feto, a saber: trabalho acordo com Santos (2001) e Rosenberg (2007), apre-
de parto prematuro, síndromes hipertensivas da senta uma incidência de até 20% dos casos após o parto
gestação, diabetes gestacional, amniorrexe prema- no Brasil, podendo este índice sofrer um aumento
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Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.
até 30 a 40%, se considerarmos mulheres com perfil precisa enfrentar, nada mais válido do que a utilização
socioeconômico baixo e atendidas no Sistema Único de um instrumento que tente prevenir este distúrbio,
de Saúde (Lobato, Moraes, & Reichenheim, 2011). Por como o PNP. A DPP pode dificultar o estabelecimento
ser o alvo de estudo da presente pesquisa, será apre- do vínculo afetivo seguro entre mãe e bebê, podendo
sentada mais detalhadamente a seguir. interferir nas futuras relações interpessoais estabele-
cidas pela criança, quando não adequadamente diag-
nosticada e tratada (Arrais, 2012; Bortoletti, 2007b;
Depressão pós-parto Klein, & Guedes, 2008). Desse modo, considerando
O nascimento de uma criança representa o rompi- que as consultas de pré-natal auxiliam a equipe
mento do vínculo relacional entre a mãe e o bebê multidisciplinar a identificar os fatores de risco e de
intraútero. Este processo de separação pode desenca- proteção para a DPP, proporcionando às gestantes
dear vivências depressivas e psicóticas pela mãe, reati- melhores condições de enfrentamento, esse tema
vadas por conflitos e lutos mal-elaborados durante a assume grande importância clínica.
infância (Alt, & Benetti, 2008), entre outros motivos.
Segundo o DSM-IV (American Psichyatric Asso-
ciation, 2002), a DPP é um episódio de depressão Fatores de risco da depressão pós-parto
maior, que ocorre dentro das quatro primeiras Diversos fatores de risco contribuem para o
semanas após o parto, durante as quais há a presença desencadeamento da DPP: gestante solteira, conflitos
de um humor deprimido ou perda de interesse ou conjugais, histórico familiar de depressão, ante-
prazer por quase todas as atividades (anedonia). O cedente de transtornos depressivos, gravidez não
indivíduo também deve experimentar pelo menos programada, frágil suporte social e eventos de vida
quatro sintomas adicionais, extraídos de uma lista negativos na gravidez (Arrais, Mourão, & Fragalle,
que inclui alterações no apetite ou peso, do sono e da 2014; Bortoletti, 2007b Pereira, & Lovisi, 2008; Yama-
atividade psicomotora, diminuição da energia, senti- guchi, Pita, & Martins, 2007). Outros fatores de risco
mentos de desvalia ou culpa. precisam ser considerados: gestante com menos de 17
De acordo com Arrais (2005), a puérpera pode anos ou mais de 40 anos, dificuldade com crises evolu-
apresentar um profundo retraimento e isolamento tivas ou acidentais, ser usuária de drogas ou álcool,
social, principalmente se ocorrer uma quebra muito tratamento ou hospitalização psiquiátrica anterior,
grande entre aquilo que a gestante imaginava ser, histórico obstétrico de risco (aborto, prematuridade,
tanto em relação ao bebê idealizado quanto a sua placenta prévia, natimorto, más-formações), histórico
própria figura materna. Ainda podem surgir senti- familiar de doença mental e mudanças recentes no
mentos ambivalentes relacionados às dúvidas e ambiente familiar ou previstas para breve (Rosenberg,
medos inerentes a esse momento (Bortoletti, 2007b), 2007), assim como a idealização do bebê e da mater-
devido ao não suprimento das expectativas do mito nidade, em função de decepção e frustração que esta
da mãe perfeita (Azevedo, & Arrais, 2006). idealização pode acarretar (Arrais, 2005). Dessa forma,
A DPP tem importantes consequências sociais o aconselhamento e o esclarecimento adequados
e familiares, sobretudo para a tríade mãe-pai-bebê, podem ser de ajuda imediata e servir como prevenção
a saber: problemas conjugais, atraso no desenvolvi- ao aparecimento de transtornos psicológicos.
mento do bebê e grande sofrimento psíquico para a
mãe, inclusive com risco aumentado para o suicídio,
entre outros (Ramos, & Furtado, 2007). A falta de infor- Fatores de proteção da depressão
mação pode gerar expectativas e crenças sobre a sua pós-parto
nova condição, desencadeando sintomas de ansie- Os fatores de proteção, definidos por Moraes,
dade e depressão (Baptista, & Furquim, 2009), sendo Pinheiro, Silva, Horta, Sousa e Faria (2006), são condi-
que o impacto na vida dos envolvidos, requer um ções do próprio indivíduo que podem contribuir
trabalho não só remediativo, mas também preventivo, para uma melhor resposta a determinados eventos
a fim de evitar este grave transtorno. de riscos: expectativa de sucesso no futuro, senso de
Ciente dos fatores que envolvem a DPP e obser- humor, otimismo, autonomia, tolerância ao sofri-
vada a necessidade de adaptação que uma puérpera mento, assertividade, estabilidade emocional, enga-
850
Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.
jamento nas atividades, comportamento direcionado no qual pesquisadores e participantes estão envolvidos
para metas, habilidade para resolver problemas e boa (Thiollent, 1992). A pesquisa-ação é uma estratégia de
autoestima. Constituem fatores de proteção para a investigação que visa compreender e intervir proposi-
DPP: o apoio de outra mulher, detecção precoce da talmente ou intencionalmente na situação, com vista
depressão (Ruschi, Sun, Mattar, Chambô Filho, Zando- à modificá-la: “a pesquisa-ação propõe ao conjunto de
nade, Lima, 2007), suporte social, boa relação conjugal sujeitos envolvidos mudanças que levem a um apri-
e suporte emocional do companheiro (Arrais, 2005; moramento das práticas analisadas” (Severino, 2007,
Frizzo, & Piccinini, 2005), estabilidade socioeconô- p.120). O método foi dividido em três fases:
mica, sistema de apoio familiar (Rosenberg, 2007) e um Fase I: elaboração do diagnóstico da situação
trabalho de prevenção, como o PNP (Bortoletti, 2007a). (levantamento dos fatores de risco e de proteção para
O conhecimento dos fatores de risco e de a DPP);
proteção da DPP é importante para o planejamento Fase II: proposta de intervenção e implantação
e execução de ações preventivas, uma vez que, (grupo PNP);
conforme mencionam Zinga, Phillips e Born (2012), Fase III: avaliação (rastreamento da DPP e
a intervenção precoce, utilizando uma estratégia avaliação do PNP).
psicoterapêutica específica entre as gestantes, pode Esta pesquisa contemplou as três fases da
resultar em uma redução significativa na sintoma- pesquisa-ação referidas, na qual foram identificados
tologia depressiva. Dessa forma, sabendo-se que a os fatores de risco e de proteção para a DPP e avaliado
promoção da integridade biopsicossocial da gestante o material qualitativo e quantitativo colhido nas fases
pode ser assegurada por meio de um acompanha- II e III. Este recorte diz respeito à avaliação do PNP
mento cuidadoso das mães, o trabalho de equipe especificamente direcionada as gestantes de alto risco
torna-se essencial (Rosenberg, 2007). usuárias da rede pública de saúde do Distrito Federal.
O objetivo deste estudo foi avaliar a eficácia do
PNP na prevenção à DPP em gestantes de alto risco
internadas em um hospital público de referência, em Participantes
Brasília. De forma específica, buscou-se: a) descrever A pesquisa contou com a participação de 10
os fatores de risco e de proteção para a DPP em mulheres captadas em um serviço de alto risco de
gestantes de alto risco de um hospital público, em um Hospital Público em Brasília entre os meses
Brasília; b) identificar níveis de DPP destas mulheres de agosto de 2012 e maio de 2013. Todas estavam
encontrados no puerpério; c) conhecer a avaliação do gestantes e encontravam-se entre a 21ª e 35ª
PNP na perspectiva das gestantes que participaram semanas de gestação, residiam no Distrito Federal ou
do grupo do PNP; d) identificar a eficácia do pré-natal entorno e possuíam o nível de escolaridade primário
psicológico na redução dos fatores de risco ou na pelo menos (vide seção Resultados e discussão). As
proteção para o desenvolvimento da DPP. participantes foram divididas em dois grupos: Grupo
A (mulheres que participaram do PNP) e Grupo B
(mulheres que não participaram do PNP), caracteri-
Método zando a amostra por conveniência.
O presente trabalho é um recorte de um projeto Dentre os diagnósticos médicos que as levaram
de pesquisa maior intitulado “O Pré-natal psicológico para o setor de alto risco encontram-se: rotura prema-
como programa de prevenção a depressão pós-parto”. tura de membranas ovulares, diabetes gestacional,
Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da hipertensão gestacional, trabalho de parto prema-
Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal – turo, infecção urinária, hepatite, pneumonia, gestação
Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências e Saúde gemelar e oligodramnia (redução do líquido amniótico).
(FEPECS), em abril de 2012, sob o Parecer n° 085/2012
e o Projeto n° 025/12.
Para que os objetivos pudessem ser atingidos, o Instrumentos
método utilizado foi a pesquisa-ação, voltada para a Foram utilizados para a coleta de dados todos
descrição de situações concretas e intervenção ou a os instrumentos específicos para as fases I, II e II da
ação orientada para resolução de problemas coletivos, pesquisa, a saber:
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Perfil gestacional: ficha elaborada pela equipe de Escala COX: A Escala de Depressão Pós-Parto de
pesquisa contendo dados sociodemográficos, histó- Edimburgo (EPDS) (Cox, & Holden, 2003), consiste em
rico da gestação atual e/ou anterior e rede social de um instrumento bastante utilizado em estudos sobre
apoio, procurando identificar nestes dados os fatores DPP (Lobato et al., 2011) de autorregistro composto
de risco e de proteção para DPP. Aplicada nos dois por dez enunciados, cujas opções são pontuadas
grupos da pesquisa – Fase I. (0 a 3) de acordo com a presença ou a intensidade do
Inventário Beck de Depressão-BDI (Beck, & Steer, sintoma. Seus itens incluem sintomas como humor
1993): trata-se de uma escala composta por 21 itens depressivo (sensação de tristeza, autodesvalorização
com diferentes alternativas a respeito de como o e sentimento de culpa, ideias de morte ou suicídio),
sujeito tem se sentido recentemente, correspondendo perda do prazer em atividades anteriormente consi-
a diferentes níveis de gravidade da depressão: mínimo, deradas agradáveis, fadiga, diminuição da capacidade
leve, moderado ou grave (Cunha, 2001). Aplicada nos de pensar, concentrar-se ou tomar decisões, sintomas
dois grupos da pesquisa da Fase I. fisiológicos (insônia ou hipersonia) e alterações do
Inventário Beck de Ansiedade-BAI (Beck, & Steer, comportamento (crises de choro). A Escala conside-
1993): escala de autorrelato que mede a intensidade de rada de sintomatologia depressiva apresenta valor
sintomas de ansiedade. O inventário é constituído por igual ou superior a 12 (Ruschi et al, 2007). Aplicada
21 itens, que são afirmações descritivas de sintomas nos dois grupos de pesquisa entre a quarta e oitava
de ansiedade, e que devem ser avaliados pelo sujeito semana do pós-parto – Fase III.
com referência a si mesmo, numa escala Likert de
quatro pontos de “absolutamente não” a “gravemente:
dificilmente pude suportar” (Cunha, 2001). Aplicada Procedimento de coleta de dados
nos dois grupos da pesquisa da Fase I. Após a aprovação no CEP/Fepesc, iniciou-se a
Sessões do PNP: Foram realizados quatro coleta de dados. O projeto de pesquisa foi divulgado
encontros de PNP e trabalhados temas como: para as gestantes internadas no setor de alto risco
as mudanças proporcionadas pela maternidade da rede pública de saúde do Distrito Federal, bem
e paternidade; desmistificação da maternidade; como para os seus respectivos familiares presentes no
o bebê imaginário x bebê real; gestação/puerpério horário de visita e para a equipe de saúde.
x sexualidade; planos de parto; estados emocionais As gestantes foram convidadas a colaborar com
do pós-parto; cobranças sociais; vínculos mãe-bebê. a pesquisa de forma voluntária. Aquelas que acei-
Foi disponibilizado o espaço de escuta e utilizadas taram participar foram esclarecidas sobre os objetivos
técnicas como recorte e colagem, leitura de textos e metodologia do estudo por meio da assinatura do
sobre os temas abordados, vídeos, elaboração de Termo de Consentimento Livre (TCLE) e responderam
desenhos por parte das participantes, dentre outras ao perfil gestacional e à Escala Beck para a realização
técnicas projetivas. As sessões foram gravadas para da primeira fase da pesquisa-ação: o diagnóstico dos
análise posterior das falas, percepções e vivências fatores de risco e proteção para DPP.
das colaboradoras – Fase II. Após esta primeira fase, as 10 gestantes que concor-
Perfil puerperal: ficha elaborada pela equipe de daram em participar foram divididas em dois grupos:
pesquisa contendo registros sobre o parto, o bebê e o grupo A, composto pelas cinco gestantes que partici-
a amamentação, mudanças decorrentes do nasci- param das sessões do PNP, e o grupo B, formado pelas
mento do bebê, estados emocionais nesse período, cinco gestantes que não participaram das sessões de PNP.
rede social de apoio e representação de ser mãe após Posteriormente, iniciou-se a 2ª fase da pesquisa-ação:
o nascimento, a fim de identificar a percepção das a implantação do PNP, no qual foram proferidas quatro
puérperas sobre a qualidade do pós-parto. Aplicada sessões de aproximadamente 2 horas de duração cada,
nos dois grupos da pesquisa – Fase III. no período de quatro meses, sendo abordados temas
Questionário avaliativo: composto por dez ques- sobre os aspectos psicológicos do ciclo gravídico-puer-
tões abertas e uma fechada, elaborado pela equipe de peral. Todas as sessões foram gravadas.
pesquisa para verificar a percepção das participantes Por fim, foi realizada a 3ª fase da pesquisa-ação
do grupo PNP sobre os efeitos da sua participação nas (avaliativa): à medida que os bebês foram nascendo,
sessões do PNP. Aplicado apenas ao grupo A – Fase III. o perfil puerperal e a Escala COX foram aplicados
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Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.
80
70
60
50
GA
% 40
GB
30
20
10
0
Estado civil Escolaridade Ocupação Renda familiar Nº de gestações
solteira média emprego RS -1.000,00 multíparas
GA: idade: 19–35 anos (média = 27,6) GB: idade 20–38 anos (média = 27,8)
Idade gestacional: 21–33 semanas (média = 28,6) Idade gestacional: 20–34 semanas (média = 29,4)
Figura 1
Características sócio-demográficas e histórico obstétrico das colaboradoras
A primeira fase da pesquisa foi diagnóstica apoio do pai do bebê; história de depressão anterior;
visando identificar os fatores de risco e de proteção depressão gestacional; parto traumático ou insatis-
presentes na história e vivência das gestantes inter- fatório; história de aborto em gestações anteriores e
nadas no setor de alto risco. Conforme afirma intercorrência hospitalar com a mãe.
Gomes et al. (2010), o conhecimento desses fatores Já os fatores de proteção evidenciados, também
é importante para o planejamento e execução de presentes nas pesquisas de Frizzo e Piccinini (2005),
ações preventivas, como o favorecimento de apoio Arrais (2005) e Ruschi et al. (2007), foram: ser multí-
emocional à família, amigos e companheiro, propor- para; ser casada/relação estável; gravidez planejada;
cionando segurança à puérpera. gravidez desejada; situação socioeconômica favo-
rável; suporte familiar; relacionamento conjugal satis-
fatório; apoio emocional do pai do bebê; parto satisfa-
Fatores de risco e proteção para a DPP tório e detecção precoce da DPP.
Para melhor visualização dos dados, as Figuras 2 Pode-se observar nas Figuras 2 e 3 que a soma
e 3 sintetizam e apresentam a ocorrência dos fatores dos fatores de risco (46 ocorrências no grupo A e 44
de risco (Figura 2) e de proteção (Figura 3) mais no grupo B) e de proteção (18 ocorrências no primeiro
frequentes para cada colaboradora participante dos grupo e 20 no grupo B) do grupo A quando compa-
grupos A e B. rados aos do grupo B apresentam índices seme-
Os fatores de risco encontrados foram: ser lhantes. Analisando-se apenas estes dados, pode-se
primípara; ser mãe solteira; gravidez não planejada; afirmar que as colaboradoras de ambos os grupos
gravidez não desejada; saída da faculdade para o encontravam-se vulneráveis, portanto com tendência
mercado de trabalho; trabalho estressante; desem- a desenvolver a DPP.
prego; situação socioeconômica desfavorável; filhos A fim de investigar os fatores de risco mais frequentes
saindo de casa; mudança de cidade/casa; rede de em ambos os grupos, serão aqui discutidos os seguintes
apoio social e familiar empobrecida; relaciona- aspectos: escolaridade média, trabalho estressante, situ-
mento conjugal insatisfatório; conflitos familiares; ação socioeconômica desfavorável, ser solteira; gravidez
acidente de carro, moto ou ônibus; doença grave em não planejada, relacionamento conjugal insatisfatório e
parente próximo; morte de pessoa querida; falta de falta de apoio emocional do pai do bebê.
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Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.
A maioria das colaboradoras possui nível Essa amostra reflete a realidade da população
baixo de escolaridade (30% cursaram até o ensino brasileira, que em sua maioria é exposta à escassez
fundamental e 50% até o ensino médio), são multí- de recursos. Um exemplo disso é o relato de P1:
paras (80%), apresentam situação socioeconô- “Houve muita briga porque eu fiquei grávida, ele
mica desfavorável (70%) e, entre as que exercem me culpou porque estamos passando por uma
atividade laboral remunerada (60%), quatro afir- situação, por falta de dinheiro, e quase se sepa-
maram possuir um trabalho estressante (40%). ramos por causa disso”.
100
90 GA
GB
80
70
60
% 50
40
30
20
10
0
Solteira Não Trabalho Situação Relação Falta de
planejado estressante socioeconômica conjugal apoio
desfavorável insatisfatória emocional
GA: 46 ocorrências
GB: 44 ocorrências
* GA/GB: Intercorrência hospitalar
Figura 2
Fatores de risco identificados na gestação das colaboradoras
80
70
60
50
GA
% 40 GB
30 GA: 18 ocorrências
GB: 20 ocorrências
20
10
0
Mutípara Gravidez Suporte
desejada familiar
Figura 3
Fatores de proteção identificados na gestação das colaboradoras
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Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.
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50
45
40
Escores dos instrumentos
35
Resultado BAI
30 Resultado BDI
Resultado COX
25
20 GA: P1 a P5
15 GB: P6 a P10
10
5
0
P1 P2 P3 P4 P5 P6 P7 P8 P9 P10
* P1 e P7 natimorto/óbito fetal
Figura 4
Níveis de depressão gestacional e depressão pós-parto nos grupos A e B
Outra questão que merece destaque é o fato de Conteúdo semelhante ao da fala de P6 foi mencio-
que os bebês de duas participantes da pesquisa evolu- nado por autores como Cantilino, Zambaldi, Sougey
íram para óbito – uma do grupo A (P1 – natimorto) e e /rennó Junior (2010); Frizzo e Piccinini (2005), e
outra do grupo B (P7 – óbito fetal) – o que representa Konradt et al. (2011), ao afirmarem a importância do
um fator de risco para a DPP. Tendo em vista que ambas suporte social adequado como um fator protetor para
as colaboradoras apresentavam fatores de risco seme- o desenvolvimento de DPP.
lhantes na fase diagnóstica da pesquisa (gravidez não Avaliação do PNP: Na última fase da pesquisa
planejada, situação socioeconômica desfavorável e (avaliativa), os dados provenientes do perfil puerperal,
relacionamento conjugal insatisfatório) e que somente do questionário avaliativo e das sessões iniciais do PNP
a colaboradora do grupo B apresentou probabilidade demonstraram a influência positiva do PNP para cada
para DPP, segundo a escala COX, cabe questionar se a colaboradora do grupo-intervenção, na medida em que
participação de P1 no PNP permitiu que, de alguma elas fizeram a avaliação de todo o trabalho desenvolvido
forma, a depressão fosse tratada ou minimizada. e refletiram sobre o que aprenderam; os mitos desfeitos
Quanto aos fatores de proteção mais frequentes e o apoio recebido, possibilitando a revisão da máscara
em ambos os grupos, destacam-se: ser multípara da maternidade (Maushart, 2006). Essa influência posi-
(80%), gravidez desejada (50%) e suporte familiar tiva pode ser visualizada nas seguintes falas: “Aqui vocês
(60%), conforme as seguintes falas: puderam me ajudar, me aconselhar. Se não fosse vocês
eu acho que não teria dado conta só. Nos momentos
Descobrir a gravidez foi bom, eu não fiquei triste, bem difíceis da minha vida me ajudou sim, bastante
eu fiquei muito feliz, não foi planejada, mas as- mesmo” (P3); “Durante a gestação se eu tivesse passado
sim, a gente não se preveniu e sabia que qualquer aqui sozinha, sem o apoio de vocês, sem alguém pra
hora poderia acontecer. Mesmo assim, nem fica- conversar, me acalmar, me ajudar, eu não tinha conse-
mos chateados com o que aconteceu (P2). guido” (P5). De acordo com as participantes, o grupo
do PNP também proporcionou a reflexão e a discussão
O Caio foi uma surpresa pra todo mundo, mas é sobre o conceito de ser mãe: “É responsabilidade,
muito desejado. Está todo mundo ansioso pra ver compromisso, dedicação e muito amor no coração”
o rostinho dele. [...] a minha família e a dele ajuda (P1); “É maravilhoso, a gente aprende a amar no ventre
bastante, minha mãe, minha avó, minha cunha- da gente, a esquecer dos problemas. É muito bom! É um
da e minha sogra, ela é um amor de pessoa. (P6). sonho. A mais alta dádiva de Deus” (P5).
857
Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.
Observa-se nas falas acima a idealização da no grupo B, apenas uma participante teve a mesma
maternidade, na qual, de acordo com Azevedo e opinião (P9). Pode-se concluir que, apesar de o tipo de
Arrais (2006), espera-se um ideal, um modelo de mãe parto desejado pelas participantes do grupo A não ter
perfeita, uma imagem romanceada da maternidade, sido realizado, elas se sentiram mais tranquilas porque
que está alicerçada sob um rígido padrão incapaz de receberam informações no grupo PNP pertinentes
admitir qualquer vestígio de sentimentos ambiva- à temática, preparando-as para o parto e pós-parto,
lentes nas mães. Por outro lado, no decorrer dos encon- independente de suas expectativas iniciais. A tran-
tros grupais, observou-se mudanças no conceito e na quilidade sentida pelas colaboradoras em relação
maneira de lidar com a maternidade: “[...] eu como ao tipo de parto realizado foi expressa nas seguintes
mãe vou errar, mas na medida do possível vou tentar falas: “Não tive medo, foi maravilhoso!” (P2); “Eu tive
acertar e fazê-lo feliz, essa felicidade que faz todas nós cesárea por causa da saúde dela, mais eu me senti
mães se emocionar, a amar incondicionalmente, ou preparada com as informações que recebi de vocês”
seja, desabrochar para o falado amor” (P1). (P3); “Foi supertranquilo. Os médicos foram maravi-
Outras mudanças também puderam ser perce- lhosos, me atenderam super bem, e a anestesia, que
bidas em relação à melhoria da qualidade do relacio- eu tinha mais medo, foi bem tranquila, vocês me acal-
namento com o pai do bebê, ao conceito de parto e maram muito no dia anterior” (P5).
amamentação e a melhoria dos possíveis sintomas Outro aspecto que merece destaque é o fato que
da DPP: “O pai do bebê está dando mais atenção de duas puérperas do grupo A (P3 e P5) apresentaram
para ela, carinho, e eu estou tendo dificuldade para dificuldades relacionadas à amamentação, enquanto
administrar dois filhos” (P3); “O parto normal além que o mesmo não ocorreu entre as participantes do
de ser só um corte lá embaixo quando precisa, acre- grupo B. Apesar desses resultados, pode-se afirmar
dito que depois a dor passa” (P1); “A amamentação que as puérperas do grupo A receberam todas as
é importante, é fundamental para o bebê até os seis informações necessárias relacionadas à amamen-
meses de idade, porque quando a criança mama ela tação durante o grupo PNP, o que as ajudou a lidar de
não precisa de água e de nada, é algo suficiente pra maneira positiva com as dificuldades apresentadas.
ela” (P1); “Por mais difícil que a gente ache que seja Por fim, todas as participantes do grupo A que
o problema, vai ser resolvido, tudo passa. É como se apresentaram os mesmos fatores de risco para a DPP
fosse uma ferida, por mais que dói ela é curada, vai que as colaboradoras do grupo B (situação socioeco-
cicatrizar e passar” (P2). nômica desfavorável; rede de apoio social e familiar
Por fim, o grupo de PNP vai além do objetivo geral empobrecida; relacionamento conjugal insatisfatório;
deste trabalho, por ser um instrumento psicoeduca- conflitos familiares) afirmaram possuir, no pós-parto,
tivo e por abordar questões sobre o projeto de mater- o apoio emocional e financeiro, e mencionaram contar
nidade/parentalidade, questões diárias, culturais, com ajuda de seus familiares e amigos nos cuidados
geracionais, relacionadas à internação, aos medos e com o bebê, confirmando a eficácia do grupo PNP na
preocupações, propiciando o empoderamento das melhoria dos relacionamentos/rede de apoio. Dessa
participantes e o fortalecimento da rede social. forma, os resultados discutidos nesta seção sugerem
Vivência puerperal: Em relação ao puerpério, que o PNP atuou como fator de proteção para a
pode-se observar na Figura 5 que todas as puérperas prevenção da DPP nas gestantes que participaram
que preencheram o perfil puerperal (P2, P3, P4, P5, P6, do grupo de PNP, reforçando o caráter psicoprofilá-
P8, P9, P10) desejavam que seu parto fosse normal e tico deste tipo de trabalho conforme apontado por
afirmaram preferir a presença de um acompanhante, Arrais et al. (2012); Bortoletti (2007a,b); Santos (2013)
entretanto, o parto cesáreo foi realizado na maioria e Shields (2006).
das gestantes (60%), exceto em P4 e P6. Isso pode Assim sendo, pode-se concluir que o grupo de
ser explicado pelo fato de as gestantes serem consi- PNP, além da abordagem psicoterapêutica, forneceu
deradas de alto risco e apresentarem maior probabi- informações sobre os estados emocionais do
lidade de evolução desfavorável durante a gestação pós-parto, favorecendo a adaptação das puérperas
(Brasil, 2012). neste período, proporcionando o fortalecimento
Todas as puérperas do grupo A afirmaram que o do vínculo entre mãe-concepto (Falcone, Mäder,
parto ocorreu conforme o esperado, enquanto que, Nascimento, Santos, & Nóbrega, 2005).
858
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100
90 GA
GB
80
70
60
% 50
40
30
20
10
0
Desejo Parto cesáreo Parto como Apoio Apoio Apoio pai
parto normal realizado esperava emocional financeiro bebê
* P1 e P7 não responderam perfil puerperal (natimorto/óbito fetal)
Figura 5
Características pós-parto (Perfil puerperal)
859
Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.
Entretanto, estas colaboradoras foram contatadas no e bem-estar às gestantes e seus familiares, visando à
período pós-parto e algumas foram acompanhadas promoção, prevenção e assistência integral à saúde da
pelo serviço de psiquiatria, Psicologia e serviço social gestante e do recém-nascido. Dessa forma, o psicó-
do setor, até mesmo receberam enxovais doados pela logo hospitalar assume um papel fundamental nesse
equipe de pesquisa, na ocasião da visita pós-parto. contexto, pois, conforme afirmam Baptista e Furquim
Assim, a assistência psicológica na gestação por meio (2009), Iaconelli (2005), o apoio psicológico em um
da utilização do PNP é importante instrumento psico- momento de tantas mudanças externas e internas
profilático, reafirmando a concepção de Bortoletti pode contribuir com a equipe multidisciplinar na
(2007); Cabral et al. (2012), que cita o PNP como um melhor adaptação da mulher, desde a gestação até a
fator de proteção por si só, minimizando o impacto chegada do bebê.
dos fatores de risco presentes e diminuindo dessa Por fim, sabendo-se da alta incidência de DPP
forma a possibilidade da DPP. e, após as evidências do caráter preventivo do PNP
É preciso destacar também a necessidade de proposto neste trabalho, a continuidade de estudos
uma equipe interdisciplinar para auxiliar a gestante, dessa ordem é de grande importância e se faz neces-
visando à investigação de todos os fatores de risco que sária para o entendimento dos fatores interve-
podem ocasionar transtornos físicos ou psicológicos nientes na depressão puerperal, e para a compre-
ao binômio mãe x bebê, incentivando a criação de um ensão dos efeitos de risco da DPP sobre aspectos da
espaço que possibilite relações humanas mais saudá- vida do bebê.
veis entre os membros da equipe e entre a equipe e Este trabalho possibilitou enorme crescimento
o paciente. Embora a atuação do psicólogo hospitalar pessoal e profissional na área da Psicologia Hospi-
aplicada à obstetrícia possa parecer prescindível, se talar aplicada à obstetrícia, primeiramente por
comparada à equipe médica e de enfermagem, os contribuir com a ampliação do conhecimento sobre
resultados de sua atuação têm demonstrado o seu as diversas facetas que envolvem o tema da mater-
valor, diante da gama de situações vivenciadas pelas nidade e depressão pós-parto, e por realçar a impor-
usuárias em seus contextos individuais e subjetivos, tância do psicólogo no contexto do atendimento
revelando a complexidade do atendimento à gestante, pré-natal, já que a DPP é importante problema de
visando o seu bem-estar e o do bebê. saúde pública, que impacta diretamente sobre a
No centro obstétrico, a Psicologia trabalha com saúde da mãe e do bebê, e ainda subdiagnosticada,
multifatores e o seu campo de atuação não fica restrito atingindo mulheres em todas as idades, classes
à supervisão de partos e ao manejo da dor durante o sociais e níveis de escolaridade.
trabalho de parto, pois abrange aspectos biopsicos- Um estudo futuro, com um número maior de
sociais das usuárias, através de mediações entre a participantes, a aplicação da escala de autoeficácia
equipe multidisciplinar e os familiares, bem como materna no pós-parto (Uchoa, 2012) e a ampliação da
ressaltando a importância do grupo de PNP. assistência pré-natal oferecida nos serviços públicos
Os objetivos deste trabalho foram além dos esta- de saúde, também poderia ajudar a ratificar que o PNP
belecidos incialmente, por toda a estrutura do serviço atua como fator de proteção para DPP, justificando a
de referência, desenvolvidos para oferecer conforto relevância social e científica do presente estudo.
860
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Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.
Recebido 01/10/2014
Aprovado 11/11/2016
Received 10/01/2014
Approved 11/11/2016
Recibido 01/10/2014
Aceptado 11/11/2016
Como citar: Almeida, N. M. C., & Arrais, A. R. (2016). O pré-natal psicológico como programa de prevenção à
depressão pós-parto. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 847-863. doi:10.1590/1982-3703001382014
How to cite: Almeida, N. M. C., & Arrais, A. R. (2016). The psychological prenatal program as a prevention tool for
postpartum depression. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 847-863. doi:10.1590/1982-3703001382014
Cómo citar:Almeida, N. M. C., & Arrais, A. R. (2016). El programa prenatal psicológico como prevención de la
depresión posparto. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 847-863. doi:10.1590/1982-3703001382014
863
04
Pré-Natal Psicológico: perspectivas para atuação do psicólogo
em saúde materna no Brasil
RESUMO
No cenário brasileiro contemporâneo, é crucial propor e avaliar programas
destinados ao acompanhamento pré-natal de gestantes. Sendo assim, o
presente artigo relata uma modalidade de intervenção psicoeducativa realizada
no âmbito hospitalar. Denominada Pré-Natal Psicológico (PNP), trata-se de
uma prática – complementar ao pré-natal biomédico – voltada para o
atendimento psicológico das gestantes, a qual também estimula a integração
de seus familiares nos cuidados desenvolvidos ao longo do ciclo gravídico-
puerperal. Notadamente, as ações envolvem encontros grupais temáticos (por
exemplo: preparação para maternidade e prevenção da depressão pós-parto).
Inicialmente organizado na esfera pública, o PNP é um programa de baixo
custo que tem sido avaliado positivamente por usuários e profissionais.
Experiências no setor privado também vêm sendo conduzidas, as quais
revelam a amplitude desse programa. Em suma, uma descrição detalhada das
sessões do PNP visa oferecer subsídios para a atuação do profissional de
psicologia que integra uma equipe multiprofissional no campo da Saúde
Materna.
Palavras-chave: pré-natal; intervenção; saúde materna; psicologia hospitalar;
psicoeducação.
1
Psicóloga Hospitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF),
Docente do Programa de Mestrado Profissional da Escola Superior de Ciências da Saúde
(ESCS) da FEPECS/SES-DF, Pesquisadora da Fundação de Apoio à
Pesquisa do DF (FAP-
DF), Doutora pela Universidade de Brasília (UnB) e Pós-Doutoranda no Programa de
Psicologia Clínica e Cultura (UnB). E-mail: alearrais@gmail.com.
2
Professora do Departamento de Psicologia Clínica da UnB, Doutora pela Université de Paris
X - Nanterre, Pós-Doutora pela Unesco (França) e Pesquisadora do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico. E-mail:
araujotc@unb.br .
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Pré-Natal Psicológico
ABSTRACT
In the Brazilian scenario, it is crucial to propose and assess programmes aimed
at prenatal care of pregnant women. A modality of psycho-educational
intervention called Psychological Prenatal (PNP) is reported in this article. It
concerns a service – complementary to the clinical prenatal – related to the
psychological care of pregnant women, which also encourages integration of
their families into the care given throughout the pregnancy and postpartum
cycle. Actions involve thematic group meetings (e.g.: preparation for maternity
and prevention of postnatal depression). PNP is a low cost programme that has
been positively assessed by users and professionals, which was initially
organised within the public sector. Experiences within the private sector that
reveal the amplitude of the programme have also been carried out. A detailed
description of PNP sessions aims at providing elements for the performance of
the psychologist who is part of a multi-professional team in the field of Maternal
Health.
Keywords: prenatal; intervention; maternal health; health psychology;
psychoeducation.
Introdução
Na atualidade, ainda que conhecimentos biomédicos e tecnológicos
sejam usualmente empregados ao longo da experiência da maternidade, as
vivências desencadeadas – desde a concepção até os meses subsequentes ao
parto – revestem-se de intensos e contraditórios afetos sustentados por
crenças pessoais, familiares, sociais e culturais. De fato, a medicalização tende
a ser progressiva nessa etapa do ciclo vital, particularmente quando se
projetam repercussões tanto para a mulher quanto para o futuro bebê. Cabe
realçar que ameaças suscitadas por variadas causas, incluindo-se aquelas
relacionadas a condições sanitárias básicas, continuam a se perfilar, mesmo
que inúmeros danos e agravos tenham sido superados no campo da Saúde
Materna. No cenário brasileiro contemporâneo, os diferentes níveis de
governança confrontam-se com as possíveis consequências advindas da
contaminação viral na população de gestantes: investiga-se a associação do
vírus Zika com a microcefalia dos fetos e ainda não se analisaram suas
inflexões no setor da Saúde da Criança, durante a próxima década. Então, ao
desafio humano de fecundar, gerar e fazer desenvolver, se sobrepõem outros
conflitos e sofrimentos, uma vez mais naturalizados por limitações
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Pré-Natal Psicológico
1º Encontro
Temas geradores: criando laços de identificação, contrato de grupo e
parto.
Objetivos: promover contato inicial entre participantes, gerando integração
e pertencimento grupal. Propiciar acolhimento e conhecer as expectativas em
relação ao grupo. Discussão das expectativas e dos medos em relação ao
parto.
Recursos instrumentais: dinâmica de integração. Reprodução de filme.
Procedimentos:
1. Em uma roda de conversa, cada participante é convidada a se
apresentar, explicitando nome, procedência e falando de si mesma.
2. Em seguida, cada mãe faz um breve relato do desenvolvimento da
história da gravidez e da sua queixa (se houver).
3. Técnica de levantamento de dúvidas e temas: distribui-se uma folha
com a seguinte frase: “Escreva nesta folha as dúvidas que você tem ou
os temas que você gostaria que fossem falados aqui no grupo”. As
participantes devem responder por escrito e relatar oralmente.
4. Leitura e discussão sobre expectativas e temas levantados
individualmente para discussão em grupo.
5. Apresentação do contrato terapêutico (via data show) com entrega de
cópia impressa a cada participante.
6. Esclarecimentos e discussão do referido contrato.
7. O(a) coordenador(a) apresenta a proposta do grupo, enfocando seus
objetivos e a importância do PNP na gestação, parto e pós-parto.
8. Apresentação de filme sobre parto, seguida de discussão.
9. Aplicação do instrumento de identificação do perfil gestacional.
Tarefa para casa: cada participante deve trazer por escrito a história do
seu próprio parto.
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2º Encontro
Temas geradores: tipos de parto, dor e plano de parto.
Objetivos: acolhimento de novos participantes. Firmar contrato com o
grupo.
Recursos instrumentais: utilização de textos e vídeos, colchonetes, data
show.
Procedimentos:
1. Avaliar sessão anterior e discutir a tarefa de casa.
2. Conhecer episódios significativos da semana.
3. Atualizar tempo de gestação.
4. Instruir sobre vantagens e desvantagens do parto normal e cesariano.
5. Debater sobre “o parto possível”, visando “empoderamento” das
gestantes.
6. Discussão das expectativas e medos em relação à dor no parto.
7. Apresentação e discussão de um vídeo sobre parto normal/vaginal.
8. Aplicação de técnicas de visualização do parto.
9. “Planejamento” do momento do parto: como escolher e decidir;
ensinar a elaborar o plano de parto (uso de data show).
Tarefa para casa: escrever seu “Plano de Parto”.
3º Encontro
Tema gerador: a construção da maternidade e da paternidade.
Objetivos: levantar e questionar preconceitos, mitos e crenças
relacionados à maternidade e paternidade. Refletir sobre a importância da
qualificação do papel dos pais na maternidade. Fornecer esclarecimentos
adicionais sobre gestação.
Recurso instrumental: técnica de recorte e colagem.
Procedimentos:
1. Os pais são convidados a participar. Num primeiro momento,
reúnem-se pais e mães em uma sala de atendimento grupal durante
um lanche coletivo. A equipe se reapresenta.
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4º Encontro
Tema gerador: a participação das avós: a maternagem transgeracional.
Objetivos: refletir sobre as mudanças ocorridas na maternidade de uma
geração para outra. Observar a interação das gestantes com suas
mães/sogras. Esclarecer quanto à participação das avós.
Recursos instrumentais: folhas e canetas.
Procedimentos: apresentação das avós e estabelecimento dos grupos
de avós e de gestantes em ambientes distintos.
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Tarefa para casa: preencher ficha “O que nunca me contaram sobre ser
mãe” e ler o texto produzido, discutindo-o com as respectivas avós.
5º Encontro
Tema gerador: depressão Pós-Parto (ou Depressão Periparto).
Objetivos: identificar o grau de conhecimentos das mães e sua
capacidade de reconhecer sintomas. Divulgar mais informações.
Recurso instrumental: técnica de associação de ideias sobre a
maternidade e depressão.
Procedimentos:
1. As gestantes devem escrever as cinco primeiras palavras/frases que
associam com: pós-parto, recém-nascido, tristeza, depressão,
maternidade, ajuda.
2. Após essa etapa, enumeram palavras ou frases, de acordo com o
grau de representatividade crescente.
3. Repasse de informações sobre características da Depressão
Periparto, diagnósticos diferenciais (ex. psicose puerperal e blues
puerperal),
4. Orientações sobre principais orientações terapêuticas e mitos sobre
distúrbios no puerpério. Tarefa para casa: responder à Escala de
Depressão Pós-Parto de Edimburgo - EPDS (Cox & Holden, 2003) e
trazer na próxima sessão.
6º Encontro
Tema gerador: preparação para o pós-parto.
Objetivos: reforçar competências maternas para cuidados do bebê.
Orientações sobre amamentação. Esclarecer e orientar sobre sexualidade após
o parto.
Recursos instrumentais: bonecos, roupas de bebê, seios de pano e
conchas para amamentação.
Procedimentos:
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7º Encontro
Tema gerador: avaliação do trabalho e encerramento.
Objetivos: autoavaliação de cada gestante. Avaliação do programa
vivenciado. Despedida dos participantes do grupo.
Recursos instrumentais: Lanche.
Procedimentos:
1. Realização de um lanche com participação das gestantes na sua
preparação.
2. Avaliação oral do trabalho grupal.
3. Coordenador(a) repassa suas percepções e comenta sobre a
evolução do grupo.
4. Planos futuros são relatados (sobretudo no que concerne aos
cuidados de si, dos filhos e das famílias).
5. Despedidas gerais com troca de endereços e telefones entre
participantes para manutenção de vínculos (quando desejarem).
6. Encaminhamentos em casos de necessidade.
7. Agendamento de um encontro, três meses após, para follow-up e
fortalecimento dos ganhos obtidos.
Evidentemente, essa programação básica pode ser adaptada ao
público-alvo. Aliás, frente ao crescimento da demanda, algumas iniciativas já
foram empreendidas em contextos de atendimento variados, tais como:
hospitais públicos, com uma população de baixa renda e pouca escolaridade;
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Considerações finais
Referências
Afonso, L. (2003). Oficinas em dinâmica de grupo na área da saúde. Belo
Horizonte: Edições do Campo Social.
Azevedo, K. R., & Arrais, A. R. (2006). O mito da mãe exclusiva e seu impacto
na depressão pós-parto. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19(2), 269-276.
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Pré-Natal Psicológico
Cox, J., & Holden J. (2003). Perinatal mental health: A guide to the Edinburgh
Postnatal Depression Scale (EPDS). London: Royal College of Psychiatrists,
Gaskell.
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05
O Pré-Natal Psicológico como Fator de Proteção à Depressão Pós-Parto
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste capítulo, espera-se que o (a) leitor (a) seja capaz de:
Identificar os processos emocionais que emergem durante a gestação e o puerpério,
ganhando destaque: a maternidade. Isso porque o fenômeno envolve, no mínimo, dois campos
necessidades evolutivas.
1
Entretanto, para que esse trabalho se realize é preciso compreender os conceitos
nascem preparadas para serem mães. Por mais que haja um planejamento consensual quanto
inseguranças, incertezas e ansiedades quanto ao novo papel de mãe. Esse choque com a
realidade de ser mãe que se contrapõe ao ideal materno preconizado pela cultura tem
experimentados por gestantes e puérperas, o que pode comprometer sua saúde mental, bem
Brasil (Ruschi et al., 2007). Por ser uma experiência vivida por muitas mulheres após o
Segundo Iaconelli (2012), foi da necessidade de atuação junto a esse momento da gravidez e
puerpério que nasceu a psicologia perinatal, novo campo de estudo que compreende uma
hospitalar.
2
paternidade, fase favorável à instalação de sentimentos que podem dificultar a experiência
saudável do ciclo gravídico-puerperal (Bortoletti, 2007; Cabral, Martins, & Arrais, 2012), o
que pode, por consequência, reduzir os riscos de DPP. Outro objetivo do grupo é atuar em
Diante desse contexto, esta pesquisa teve como objetivo geral investigar a eficácia do
grupo de pré-natal psicológico, verificando se o mesmo atua como fator de proteção à DPP.
Para alcançar esse objetivo, a pesquisa desdobrou-se nos seguintes objetivos específicos:
participantes no período puerperal; avaliar a opinião das puérperas quanto ao papel do pré-
REVISÃO DA LITERATURA
A (des)construção da maternidade
ser mãe perante a sociedade: doação, abnegação, amabilidade em tempo integral, equilíbrio,
ternura e devoção. No entanto, essa representação idealizada, que acabou sendo difundida por
livros, novelas e filmes, não corresponde à totalidade ambivalente dessa fase vital (Arrais &
Azevedo, 2006; Maldonado & Dickstein, 2010; Maushart, 2006; Parker, 1995). Segundo
Maushart (2006), e nesse ponto é que se constitui a máscara da maternidade, que “(...)
mantém as mulheres em silêncio a respeito do que sentem, e desconfiadas do que sabem” (p.
3
27), glorificando e, ao mesmo tempo, ignorando a experiência da maternidade, como uma
“conspiração do silêncio” (p. 31), que faz o mundo e a mulher esconderem das próprias
Hoje, em pleno século XXI, sabe-se que a ambivalência materna é uma experiência
que faz parte da realidade das mulheres que desejam e que conseguem ser mães, tanto
biologicamente quanto pela adoção. Na prática, nem tudo é alegria e contentamento quando a
mulher se torna mãe. Admitir a existência não só de sentimentos positivos como de negativos,
gravídico-puerperal.
tipos: o baby blues, a psicose puerperal e a DPP (Frizzo & Piccinini, 2005). O baby blues, ou
tristeza materna, é mais reativo que o estado de depressão e atinge a maior parte das
sem explicação. Os sintomas comuns são: insônia, choro fácil, tristeza, irritabilidade e falta de
4
repúdio ao bebê pela mãe, por ela se sentir aterrorizada e ameaçada por ele. Em função desse
A DPP, de acordo com Arrais (2005, 2010), é um episódio depressivo não psicótico
ocorrido nos 12 primeiros meses após o parto e apresenta os seguintes sintomas: tristeza
associado à reação maníaca, como proceder à limpeza exagerada do ambiente. Klaus et al.
(citado por Sousa, Prado, & Piccinini, 2011) acrescentam o choro frequente, sentimentos de
desamparo, desinteresse sexual e sensação de incapacidade para lidar com novas situações,
incapacidade de cuidar do bebê e pouco apoio conjugal com relação aos cuidados com o bebê
podem contribuir para o surgimento da depressão pós-parto (Arrais, 2005; Sousa, Prado, &
Piccinini, 2011). Segundo Maldonado (1985), a DPP pode ser mais intensa quando há ruptura
elevada da expectativa em relação ao bebê, ao novo papel materno e ao tipo de vida que se
Sobre a DPP, Rosenberg (2007, p. 114) afirma que “esse tipo de depressão apresenta
uma incidência de aproximadamente 10% e pode ocorrer, segundo alguns autores, de seis
semanas a um ano após o parto”. O autor acrescenta que esse tipo de depressão pode
sentimento de culpa e o medo de não ser boa mãe. Atualmente, existem indícios nutricionais
que apontam também as deficiências em ômega 3, ferro, vitaminas B12 e D como associadas
5
Não é apenas a mãe que sente os efeitos da DPP. De acordo com Figueira et al. (2011)
contato emocional com o bebê e estabelecimento do vínculo mãe-bebê, podendo esses bebês,
Por fim, cabe mencionar o distúrbio de pânico pós-parto associado ao puerpério que,
saúde (Calvetti, Muller, & Nunes, 2007). A compreensão interativa entre pessoa e ambiente
permite identificar fatores de risco e de proteção no processo saúde-doença que são utilizados
neste trabalho.
físicos, psicológicos e sociais, que serão, neste trabalho, compreendidos como os que
Segundo Arrais (2005, 2010) e Arrais, Mourão e Fragalle (2014), podem ser incluídos
como fatores de risco a relação marital empobrecida, a vivência de algum evento de vida
6
psicológica, é também citado por Maia e Willians (2005). Golse (2002) acrescenta como
obstétricas maternas durante a gestação ou o puerpério também foram listados como fatores
respostas pessoais (Calvetti et al., 2007), no caso deste trabalho, no período da gravidez e do
puerpério.
do marido (Bowlby citado por Frizzo & Piccinini, 2005); um trabalho de prevenção, como o
pré-natal psicológico sugerido por Bortoletti (2007), Cabral, Martins e Arrais (2012), Santos
(2013) e Arrais et al. (2014); a detecção precoce da depressão (Ruschi et al., 2007), o suporte
social (O’Hara citado por Frizzo & Piccinini, 2005) e a intervenção multidisciplinar logo que
de proteção. Segundo Yunes (2003), os fatores de risco devem ser trabalhados como processo
e não como variável em si, ou seja, devem ser relativizados de acordo com a própria
subjetividade da pessoa, assim como os fatores de proteção, que devem estar em equilíbrio
com a história de vida da gestante. Não é possível fazer inferências com raciocínio linear
consequências a partir da vivência subjetiva do indivíduo. Isso quer dizer que fatores de risco
7
Nesse contexto é possível trabalhar por meio de medidas preventivas. A promoção da
Para desenvolver essas medidas com vistas à proteção da mulher, no que diz respeito
psicológico são programas que buscam atender a essas demandas. O que chamamos de
totalizar seis, sendo uma no primeiro trimestre, duas no segundo trimestre e três no terceiro
mais precocemente possível e se encerrar após o 42º dia do puerpério, quando deverá
Além das consultas, tradicionalmente, também são oferecidos os cursos para gestantes
que, de acordo com Bortoletti (2007), funcionam com um grande número de participantes
acima de 20 mulheres , com uma média de três encontros intensivos, cronograma teórico
preestabelecido, exercícios preparatórios para o parto e aulas de como cuidar do bebê, com
Saúde (Brasil, 2006), o pré-natal deve transcender o modelo biomédico vigente nesse tipo de
serviço. Deve dispor de profissionais da saúde preparados para lidar com a mulher em toda a
8
sua singularidade, valorizando sua individualidade a partir de uma escuta ativa que vá além
denominada de Pré-Natal Psicológico (PNP) por Bortoletti (2007), Cabral et al. (2012) e
Arrais et al. (2014). Esse tipo de pré-natal prioriza a exteriorização e a elaboração de conteúdo
casais grávidos exponham suas vivências, fantasias, medos, angústias, alegrias e tristezas
advindas desse processo, e para que possam trocar experiências e juntos construir a nova
Santos (2013) defende o espaço dialógico propiciado pela vivência grupal como fator
acordo com os emergentes emocionais das pessoas envolvidas. Os encontros têm por objetivo
acolher e dar voz ao casal, bem como informar, orientar e preparar cada um para que passem
por esse processo da melhor maneira possível. Para isso, diversos temas são desenvolvidos ao
necessidades. Alguns dos temas que podem ser trabalhados são: conceito de maternidade,
complementares, já que têm por finalidade primordial buscar formas para melhorar o
9
aspectos educativos e psicodinâmicos. Em outras palavras, as estruturas e as propostas de
2014).
O DESENHO DA PESQUISA-AÇÃO
Para que os objetivos da pesquisa pudessem ser atingidos, o método utilizado foi a
de propor “ao conjunto de sujeitos envolvidos mudanças que levem a um aprimoramento das
práticas analisadas” (Severino, 2007, p.120). Essa metodologia divide-se em três fases:
acima descritas, na qual foram identificados os fatores de risco e de proteção para a DPP, bem
Colaboraram para esse estudo 10 mulheres grávidas, captadas de forma voluntária por
profissionais da área obstétrica. O pré-requisito inicial era que todas estivessem realizando
DF, o que caracteriza, portanto, uma amostra de conveniência. Todas foram convidadas a
10
incluíram, ainda, orientações e esclarecimentos quanto à gestação e aos aspectos
Perfil puerperal: ficha preenchida pela puérpera contendo registros sobre o parto, o
bebê, estados emocionais nesse período, rede social de apoio e representação de ser
atuais puérperas, sobre a qualidade do pós-parto até três meses após o nascimento do
bebê. A ficha foi aplicada aos dois grupos da pesquisa durante a Fase III.
Inventário Beck de Depressão (BDI): escala composta por 21 itens com diferentes
(Cunha, 2011). O inventário foi aplicado aos dois grupos da pesquisa durante a Fase I.
Inventário Beck de Ansiedade (BAI): escala de autorrelato que mede a intensidade dos
11
descritivas sobre os sintomas de ansiedade, que devem ser avaliados pelo sujeito em
relação a si mesmo em uma escala Likert de quatro pontos que vão de “absolutamente
2003): instrumento bastante utilizado em estudos sobre DPP (Lobato et al., 2011), de
apresenta valor igual ou superior a 12 (Ruschi et al, 2007). A escala foi aplicada aos
dois grupos da pesquisa até três meses depois do pós-parto, durante a Fase III.
de respostas subjetivas das puérperas e que procurou verificar a percepção delas sobre
de proteção para a DPP para cada colaboradora, baseados em suas respostas aos instrumentos.
Para isso, foi feita uma análise documental dos perfis gestacional e puerperal, cálculo de
escores e análise dos resultados das escalas Beck e Cox. Após essa etapa, foi também
avaliado qualitativamente o caráter preventivo do pré-natal psicológico, por meio dos dados
12
provenientes das respostas dadas pelas participantes do grupo-intervenção às questões abertas
dos questionários de avaliação sobre o grupo de PNP, bem como da verificação da satisfação
A técnica de análise qualitativa adotada foi a análise de conteúdo que, segundo Bardin
RESULTADOS E DISCUSSÃO
de ambos os grupos, intervenção e controle, eram muito próximas, dos 26 aos 35 anos,
alcançando uma média de 31,5 anos. Quanto à idade gestacional, a maioria (90%) estava entre
cada fase. Todas as participantes apresentavam, ainda, relacionamentos estáveis, sendo 80%
delas casadas e 20% em união estável, o que não necessariamente constitui-se como apoio
conjugal, como será apresentado a seguir, porém oferece certa estabilidade inicial frente às
superior completo, o que pode influir diretamente em 90% da amostra (nove ocorrências), que
13
Ser primípara mostrou-se um atributo comum a 9 das 10 gestantes participantes, constituindo-
GRUPO-INTERVENÇÃO GRUPO-CONTROLE
Fatores de Risco e de Proteção
P1 P2 P3 P4 P5 Total Total (%) P6 P7 P8 P9 P10 Total Total (%)
Primípara X X X X X 5 100% X X X X 4 80%
Gravidez não planejada X X 2 40% X X X 3 60%
P Multípara 0 0% X 1 20%
Mãe casada/relação estável X X X X X 5 100% X X X X X 5 100%
R
Gravidez planejada X X X 3 60% X X 2 40%
O Gravidez desejada X X X X X 5 100% X X X X X 5 100%
14
Ao se comparar o número de ocorrências de fatores de risco entre os dois
que o total do grupo-controle, com 24 ocorrências. Esse resultado sugere que as gestantes
isso, tenham optado por participar desse tipo de trabalho preventivo (Bortoletti, 2007).
de ocorrências das participantes do grupo-controle também foi alto (36 ocorrências), o que
indica que, apesar de não terem participado do grupo interventivo, elas já possuíam
grupos apresentou número maior ou igual de fatores de proteção frente ao número de fatores
implicado diretamente em uma experiência vivencial da gravidez mais saudável e com maior
O fato de ter o seu filho pela primeira vez, ou seja, ser primípara (9 de 10 mulheres),
constitui-se em fator de risco pelo desconhecimento inicial do quão ambivalente pode ser a
descoberta da maternidade (Parker, 1995). Arrais (2010) lembra que a idealização desse
processo também pode ser um fator de risco, sendo a mãe primípara inexperiente nas alegrias
e dissabores dessa etapa. Ademais, o fato de ser constantemente cobrada por valores baseados
por exemplo, a DPP. Maushart (2006) alerta que o contato das mães de primeira viagem com
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bebês é relativamente pequeno. Não há curso que prepare por completo uma mulher para ser
libertador: “ser mãe é muita responsabilidade, fonte de prazer e desafios”, como relatou P2.
Outro fator de risco com ocorrência acentuada é o trabalho estressante na família (70%
do total dos dois grupos), que apareceu como uma tendência constante da pós-modernidade.
Embora uma aparente distância da sociedade sexista e patriarcal possa ser notada, os
estereótipos são perpetuados pela cobrança excessiva da mulher. As mulheres são exigidas
duplamente: além de trabalhar precisam ser mães perfeitas em tempo integral, a despeito das
novas regras sociais. Exemplos disso são os relatos: “eu trabalho demais, queria viver a
maternidade exclusiva ou pelo menos ter essa opção de trabalhar menos” (P7), “eu sempre
tive essa sensação por cobrar muito de mim mesma nas minhas tarefas, nas minhas
responsabilidades, no meu trabalho, enfim em tudo” (P4). Daí nasce o conflito entre o que é
cobrados pela sociedade pelas escolhas que não foram feitas (Maushart, 2006).
convulsões (P4), sangramento (P6), hematoma subcoriônico (P7) e hipertensão (P10). Todas
exigiam repouso e paralisação das atividades de rotina, como apontado por uma participante:
“me deu medo, muito medo, de não conseguir levar adiante” (P4). Essas ocorrências podem
construção do bem-estar subjetivo, fazendo com que a mulher se isole do contato social por
gravidez. Por isso, segundo Cabral et al., (2012), evidencia-se a necessidade não apenas de
16
acompanhamento rotineiro no pré-natal, observando-se o número de consultas com a
Quanto aos fatores de proteção, os que mais se sobressaíram e que estão bastante
interligados foram: mãe casada ou em relação estável, gravidez desejada, suporte familiar e
uma relação estável (100% das participantes): uma relação de apoio e confiança com o pai do
bebê (90%), na qual possam ter construído um vínculo forte, dividindo todos os sentimentos
contraditórios advindos dessa fase. Esse apoio vivenciado em uma relação sólida permite à
mulher passar por um período em que se sente frágil, insegura e dependente, no qual a vinda
do filho pode ser sentida como ameaça ao equilíbrio da relação, afinal, “o homem e a mulher
deixam de ser apenas filhos para se tornarem também pais” (Maldonado & Dickstein, 2010, p.
29). Laços de confiança mútua, dessa forma, são essenciais para uma atitude positiva diante
melhora (pouca ou muita) do seu relacionamento com o pai do bebê após o nascimento: “o
que tem me ajudado desde a gravidez até agora na criação do meu filho é o companheirismo e
Por mais que a gravidez seja desejada por 100% das mulheres, mesmo que não
planejada, como ocorreu com metade das participantes, poderá haver desafios. Tal desejo não
exime o aparecimento da ambivalência, mas pode fazer com que enfrentem melhor e juntos os
17
Outro fator de proteção que está intrinsecamente ligado à dinâmica do casal é o
suporte familiar. O estilo de “ser família” (Yunes, 2003) e os sistemas de crenças familiares
podem ajudar na forma de funcionamento da família, o que, por consequência, pode afetar de
forma direta a maneira como essa mãe irá enfrentar o momento do puerpério. É inegável
perceber o quanto uma relação sadia, por exemplo, da mãe da gestante com sua filha, pode
intensificar a experiência da nova maternidade (Parker, 1995). Nas palavras das participantes:
“Acho que as relações familiares melhoraram. Com a chegada do bebê, a família se uniu
mais” (P5), “todos da família, vovós, vovôs e titias, estão ansiosos com sua chegada e fazendo
mil planos pra quando estiver conosco” (P3), “eu sempre tive uma ligação muito forte com
meus pais e com minha irmã, é uma família pequena então a gente é fortemente ligado...”
(P4).
grupos intervenção e controle pode ser sintetizado pela Figura 30.2, que apresenta os
Fonte: As autoras.
18
Inicialmente, no grupo-intervenção, pode-se notar que apenas P1 apresenta nível de
para depressão durante a gestação, o que era um fator de risco a ser considerado para o
surgimento da DPP (Arrais, 2010; Baptista, Baptista & Oliveira, 2004; Harvey, 2002;
Rosenberg, 2007). Todavia, sendo o ponto de corte para rastreamento da DPP na escala Cox o
escore igual ou superior a 12, verifica-se que a mesma participante não apresentou a
probabilidade de desenvolver DPP (Cox & Holden, 2003). Segundo o relato de P1, os
motivação”.
DPP, o que, de acordo com Bortoletti (2007), Cabral et al. (2012) e Arrais et al. (2014), pode
Por outro lado, no grupo-controle, apesar dos escores baixos das escalas Beck (BAI e
BDI) na fase diagnóstica durante sua gestação, observa-se que uma das pacientes (P9)
escala Cox, realizada oito semanas após o nascimento do bebê. Como fator de risco bastante
relevante durante a gestação tem-se o fato de a própria mãe P9 estar passando por uma doença
grave, o que veio a ser agravado com o seu falecimento após o nascimento do bebê (Harvey,
2002): “Está difícil passar por isso tudo junto. Estar grávida e ter o bebê era pra ser um pouco
mais tranquilo, mas não está sendo. Nem por tudo que passei nem pelo que outras mães
Nesse caso, insere-se mais uma vez a pressão social por um modelo de maternidade
19
máscaras e valores imaginários que, mais uma vez, exaltam a ambivalência, a tristeza e a
resultados apontaram que cinco gestantes presentes às cinco sessões do grupo de PNP, além
dos sintomas possíveis da DPP, na maneira de lidar com a maternidade e nos conceitos de
parto e amamentação. Além disso, a “máscara da maternidade” (Maushart, 2006) caiu para
essas mulheres, que aprenderam a lidar com os desafios impostos pela maternidade, como
destacado das falas das participantes: “sempre me lembro de uma frase, fala ou de algo que
me foi apresentado no grupo” (P4), “me ajudou principalmente no que diz respeito ao diálogo
entre mim e meu marido” (P2), “com o grupo tive mais segurança” (P1), “me ajudou com as
preocupações básicas da maternidade, é bom tirar um tempo e pensar no que é ser mãe, que eu
posso ter minhas dúvidas, que eu não sou culpada por isso” (P3), “No segundo dia que fui
participar da sessão e estávamos discutindo sobre a relação entre pais e avós, até onde
cada um pode chegar. Tanto que eu falei com meu marido sobre isso e ambos falamos com
nossos pais para impor limites e respeitar o espaço da gente. Esse foi, sem dúvida, o maior
apoio e de debate, que permitiu a reflexão de aspectos referentes à maternidade que, muitas
vezes, são deixados de lado no dia a dia do casal. A participação dos maridos em uma das
sessões trouxe uma possibilidade para o diálogo, para a relação de confiança do casal e para o
20
compartilhamento de responsabilidades, além de um novo discurso de desculpabilização pela
fonte de redução da ansiedade, propiciando maior compreensão da situação que está sendo
maternidade. De acordo com as participantes do PNP: “é muito importante ter contato com
outras mães para a troca de experiências” (P1), “É um lugar bom para se conversar, colocar
para fora aquilo o que te incomoda, compartilhar experiências. Ver tudo o que engloba a
maternidade e a paternidade, que nem tudo é um mar de rosas.” (P3), “Vi que algumas
situações que pareciam extremas eram, na verdade, bem comuns, pude presenciar isso no
grupo em várias sessões. Pelo menos pra mim, tive mais segurança.” (P4), “Tive a
oportunidade de falar e expor minhas angústias e meu medo. Também foi fundamental estar
Em todas as falas, nota-se uma forte identificação grupal, a qual propiciou processos
de aprendizagem grupal através da união das participantes e de catarse por estarem discutindo
questões semelhantes que afligiam ao grupo como um todo. Ao sentir a coesão do grupo, as
participantes puderam, ainda, sentir-se acolhidas e solidárias umas às outras (Muniz; Taunay,
2000), tal como ilustra o relato de uma das participantes: “(...) uma troca positiva entre as
mães, profissionais competentes que eu adorei ter conhecido. Senti que contribuí com as
grupo possibilita “um eco de reciprocidade no exercício da técnica e prática grupal” (p. 87),
transformando interesses comuns em “interesses em comum”, o que faz com que seus
membros encontrem auxílio entre si. Ou seja, as próprias participantes foram agentes da
21
mudança. Lembre-se, entretanto, de que processos como a identificação também podem
contexto desta pesquisa, o grupo de PNP atuou como um facilitador para esse processo
grupal.
promovendo uma postura de preparação afetiva (Klein & Guedes, 2008; Maushart, 2006). O
PNP, aliado também à presença dos demais fatores de proteção e ao diagnóstico e tratamento
preventivo da depressão durante a gestação (P1), agiu como mais um fator de proteção: “não
cheguei a ter depressão, mas acredito que, se tivesse, o grupo me ajudaria emocionalmente”
(P5), “com o grupo evitei algo pior que poderia acontecer” (P1).
À luz da Psicologia Positiva, mantém-se a defesa de que o grupo pode atuar como
resiliência, que auxiliaram as gestantes, e agora mães, a não apenas não evidenciarem a DPP,
mas também a adquirirem ferramentas emocionais para lidar com as turbulências, dúvidas e
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo possui relevância social e científica na medida em que pode ser utilizado
como ponto de partida para iniciativas públicas e privadas de apoio à mulher durante seu ciclo
ferramenta de baixo custo, que pode ser implementada por equipes multidisciplinares, em
que uma proposta de saúde integral não se limita apenas à prevenção da DPP, mas permite
22
que as transformações da gestação e puerpério sejam vivenciadas de forma saudável e que,
Os conteúdos relativos à proposta de educação dos filhos, bem como a compreensão dos
aspectos evolutivos da criança, foram demandados nos momentos grupais. Embora não tenha
sido tratado de modo informativo, foi possível notar o quanto há carência desse tipo de
respeito das intenções educativas, o que, no puerpério e em fases posteriores, pode gerar
participantes e ao fato de as dez mulheres terem bom nível socioeconômico e terem sido
unidades da rede pública de saúde, de forma contínua e regular, também como alvo de
A contribuição tanto para a psicologia da saúde quanto para a psicologia perinatal faz-
saúde da mulher.
23
Defende-se, portanto, com este trabalho, não generalizar as experiências vividas de
forma extremamente subjetiva por essas mulheres, participantes da pesquisa, mas ressaltar o
bem-estar para um novo sentido de maternidade (Yunes, 2003), equilibrado por alegrias e
decepções, por angústias e reflexões. O PNP emerge como um bom caminho para começar.
24
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Manole.
Ruschi, G. E. C., Sun, S. Y., Mattar, R., Chambô Filho, A., Zadonade, E., & Lima, V. J.
28
06
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLÍNICA
Brasília - DF
2005
2
___________________________________________________
___________________________________________________
Profª. Dr.ª Ana Lúcia Galinkin –IP/ UNB
Membro
___________________________________________________
Profª. Dr.ª Tânia Mara Campos de Almeida – UCB
Membro
__________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Neubern - UNICEUB
Membro
___________________________________________________
Profª. Dr.ª Liana Fortunato Costa - IP/UNB
Membro
___________________________________________________________
Profª. Dr.ª Tereza Cristina Cavalcanti F. de Araujo- IP/UNB
Suplente
3
Mãe
Cora Coralina
4
AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
Existiram ainda algumas pessoas a quem devo agradecimentos especiais, pois, sem
elas, esta tese, com certeza, não seria uma realidade.
Às mães participantes do estudo e tantas outras pacientes que, através de seus
legítimos sofrimentos, têm me mostrado, dia após dia, um grande sentido para minhas
inquietações profissionais e pessoais.
Ao meu prezado orientador, Prof. Dr. Fernando Luiz González Rey, que me
acompanhou como um pai atencioso, no árduo processo de gestar uma tese de doutorado,
sempre confiando em mim, mesmo em momentos em que nem eu acreditava que mais esta
“filha” chegaria a nascer.
À minha estimada analista, Dra. Maria Fátima Silveira dos Santos, que me OUVE e
me ajuda a renascer como mulher, transformando a idéia de mãe “desnaturada” em vivência
de mãe “in natura”. A ela meu eterno agradecimento.
Às minhas prezadas “ajudantes para assuntos domésticos”, Adelcina e Márcia, que
zelaram por mim, pelas minhas filhas e pela minha casa, enquanto eu me dedicava à
construção desta tese.
A toda minha família, em especial: aos meus preciosos pais Luiz e Ivaniza, que
implantaram em mim a curiosidade e o acreditar, por terem proporcionado a minha formação
profissional, pelo suporte afetivo e apoio incondicional.
Às minhas amadas filhas, Ana Clara e Sofia, que aceitaram afetuosamente dividir sua
mãe com esta produção acadêmica, na esperança de um dia poderem sentar à sombra da
árvore que eu estou plantando agora e colher seus frutos.
Ao meu esposo Alex, meu eterno companheiro que me acompanha desde o ensino
fundamental, incitando-me, questionando e ajudando a resignificar os sentidos que minha vida
toma...
7
LISTA DE QUADROS
INDICE
INTRODUÇÃO – Por que a depressão pós-parto?................................................. 1
ANEXOS
RESUMO
RESUME
Cette thèse est le résultat d’une étude qualitative basée sur l’Epistémologie Qualitative
(Gonzalez-Rey, 2005) dont le but principal fut de comprendre les configurations subjectives
qui sont à la base de la dépression post-partum (DPP) chez les femmes ayant eu ce diagnostic.
Cet écrit analyse spécialement 4 des 13 cas suivis par le Groupe d’appui et d’orientation aux
mères en DPP développé á l’Université Catholique de Brasília, sous ma coordination. Une
diversité de recours instrumentaux fut utilisée pour la construction des informations:
l’entretien d’accueil, les séances du Groupe d’appui, le instrumente de finalisation des phrases
et les techniques de projection. Les indicateurs élaborés par l’intermédiaire de l’analyse
constructive-interprétative aboutirent à la construction de quatre zones de sens à propos de la
configuration subjective de la DPP: être mère c’est souffrir, mais pas au paradis; la mère
dénaturée ; la lute pour la maternité non exclusive;l’identité d’infirme: la naturalisation de la
DPP; et il ne suffit pas d’être père, il faut participer. Ce travail nous a fourni des éléments
révélateurs sur comment l’ idéal de maternité peut porter préjudice aux femmes dans la
mesure où historiquement il leur a été présenté comme naturel et instintife. Cet idéal, intégré
aux autres éléments subjectifs tels que les conflits conjugaux et parentaux ainsi que ceux liés à
la vie professionnelle, s’amplifie dans la configuration subjective de la maternité à travers les
symptômes de la DPP. Alors, les sens subjectives de la DPP n’est limité ni à l’espace
symbolique ni à l’espace réel du maternage en soi, mais il est intégré par des noyaux de sens
subjectifs créés dans d’autres zones de sens de la vie de la femme. Ainsi, cette investigation
nous a montré que la DPP a configurations subjectives qui se constitue d’une multiplicité de
sens hautement subjectifs de l’histoire de la personne et du contexte où elle vie et a été élevée.
Pour cette raison cette étude a servi à renforcer notre critique sur la standardisation et la
pathologisation de la dépression post-partum et a préféré considérer la mère ayant ce
diagnostic comme une femme souffrante venant d’accoucher !
ABSTRACT
This thesis is the result of a qualitative study, based on the Qualitative Epistemology
(González-Rey, 2005), whose main objective was to understand the subjectives configurations
that forms the base of postnatal depression (PND) in mothers with this diagnosis. This paper
especially focuses on 4 of the 13 cases attended in the Group of support and orientation for
mothers with PND, developed at the Catholic University of Brasilia, under my coordination.
A variety of instrumental resources for the construction of information were used: coaching
interview, group sessions, sentence-completion instrument and projective techniques. The
indicators elaborated by the constructive-interpretive analysis led to the construction of four
zones of meaning about the subjective configuration of PND: "To be a mother is to suffer, but
not in paradise"; “the unnatural mother: the fight for inclusive maternity "; “Identity of
patient: naturalization of the PND “and "It’s not enough to be a father, you must participate ".
This work gave us revealing elements to understand how harmful can be the ideal of
maternity. Such an ideal has historically been presented to the women as natural and
instinctive. This ideal when integrated to other subjective elements such as marital and
parental conflicts and within the professional life, it potentializes the subjective configuration
of maternity through the symptoms of PND. Therefore, the subjectives meanings of the PND
is not limited to the symbolic space or to the real space of maternity itself, but it is integrated
by core of subjective meanings generated in other areas of meaning in the woman’s life. Thus,
this research showed the PND has subjectives configurations that, as any other human
configuration, is constituted by a multiplicity of meanings highly subjective in the person’s
history and in the context where she lives and was raised. For this reason, this study served to
reinforce our critical view to the standardized pathology of postnatal depression, preferring to
considerate the mother with this diagnostic as a suffering woman that had just given birth
instead.
INTRODUÇÃO
PORQUE A DEPRESSÃO PÓS-PARTO?
O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o nascimento de um bebê? Como
entender que esse momento considerado tão feliz e esperado do ciclo vital familiar se
transforme em um momento depressivo? Por quê a chegada do bebê parece ter o poder de
provocar um estado depressivo na mãe?
No período pré-natal, muitas vezes, as preocupações giram apenas em torno do chá de
bebê, do quarto, do enxoval e das demais providências práticas a serem tomadas para a
chegada de um filho. É rara a discussão séria acerca das dificuldades emocionais que a grande
maioria das mães vivencia no período do parto e pós-parto, bem como sobre as tarefas
familiares que o casal tem a cumprir para ultrapassar esta etapa. Quando esses temas surgem,
geralmente ocorrem em tons de brincadeira e de forma caricata, que não provocam a reflexão
necessária.
Certamente, carregar no próprio corpo um novo ser pode ser uma oportunidade ímpar
e fascinante. Uma promessa de esperança, um potencial de luz, de continuidade e de amor.
Entretanto, a maternidade implica em alterações em diversos espaços da vida da mulher,
sejam eles pessoais, emocionais, profissionais ou sociais, que podem acarretar em mais
sofrimento do que se pode supor. especialmente, porque a maternidade é uma viagem sem
direito ao “bilhete de volta”. É um processo que tem um início, mas não tem um
fim..Portanto, trata-se de uma função que implica um caráter de extrema responsabilidade,
complexidade e longevidade (Bacca, 2005). Uma vez mãe, sempre mãe...
Ser mãe, no sentido de gerar, é uma possibilidade exclusiva da mulher. Inerente a essa
realidade, entretanto, é comum essa potencialidade originar crises, conflitos e sentimentos
contraditórios entre si. Erikson (1976) ilumina nossas idéias nessa direção, ao lembrar-nos
que cada uma das fases evolutivas do ciclo vital de uma pessoa carrega em si uma situação
potencialmente crítica, a qual pode ocasionar uma crise, sendo esta entendida como uma
ruptura do status quo psíquico que requer novas respostas adaptativas. Portanto, a crise da
depressão pode ocorrer em qualquer época da vida, inclusive durante momentos socialmente
felizes, como o parto e o nascimento de um filho (Ribeiro, 2002).
O puerpério é um desses períodos vulneráveis, constituindo-se portanto como um
período de risco psiquiátrico aumentado no ciclo de vida da mulher (Erikson, 1976). Por essa
razão, acreditamos que o pós-parto seja um momento peculiar para avaliar os recursos
subjetivos de uma mulher, período que pode nos dizer muito a respeito da configuração
subjetiva de cada uma delas e, conseqüentemente da depressão pós-parto (DPP).
Na fase pós-natal, a sociedade espera que a mãe esteja muito feliz e satisfeita com o
seu novo rebento. Todos cobram da mulher grávida estar radiante: seu companheiro, sua
família, seus amigos e até os profissionais que a assistem na gestação, e, por isso, geralmente
desconsideram seus reais sentimentos. As mesmas atitudes são vistas no pós- parto. Poucos
sabem, e ainda trata-se de um tabu na sociedade ocidental, que a maternidade é vivida, por
muitas mulheres, com mais sofrimento do que prazer (Lucena, 2004). Ao contrário do
esperado, a literatura, minha experiência como mãe e nossa prática com gestantes e puérperas
nos mostram que a maioria das mulheres, sobretudo as de classe média e alta, encontra na
vivência da maternidade algum nível de sofrimento psíquico, físico e social no período pré e
pós-parto. Normalmente, nessas fases, observa-se nas mães uma vivência relativamente
contínua de tristeza ou de diminuição da capacidade de sentir prazer (Santos, 1995), a qual
poderá ser transitória ou se cronificará caso não sejam assistidas adequadamente.
A percepção de sentimentos de tonalidades negativas e contraditórias, justamente no
momento quando só deveria existir espaço para a plenitude e a felicidade, provoca em muitas
mães uma sensação de estranhamento e inadequação. Tanto na gestação quanto no pós-parto,
16
são comuns assertivas do tipo: “ Você está com saúde, vai ser mãe, o que mais você quer?”,
“Reaja, gravidez não é doença!” “Como você pode estar triste, com um bebê tão lindo nos
braços?”. Se a mulher ousa expressar qualquer sentimento negativo, mesmo em relação à
gestação ou a uma não–aceitação temporária da gravidez, ou por estar enjoando muito, ou por
ter parado suas atividades pelas intercorrências de uma gravidez de risco, logo se diz que “ela
está rejeitando o filho”.
Esse tipo de associação é superficial, de cunho excludente e pejorativo, que acarreta
na caracterização da mãe com DPP como uma “aberração da natureza”. Assim, a mulher
nesse caso sofre duplamente: primeiramente, pelos sentimentos negativos vivenciados e,
segundo, pela culpa em senti-los. Tudo isso, pouco alivia a dor da mãe com depressão,
quando não atrapalha ou agrava o seu sofrimento, pois a isola, a culpabiliza e a impede de
pedir ajuda. Por sentirem-se na “contra-mão” do que é socialmente esperado e desejado, a
mãe quase sempre reluta em relatar seu incômodo a outros e a pedir ajuda profissional,
mesmo que sinta muitas dificuldades no desempenho de tarefas maternas e domésticas e que
consiga perceber a sua alteração no humor.
Por isso, este sofrimento psíquico é vivido isoladamente e, o que é pior, sem um
acompanhamento profissional especializado, podendo acarretar na cronificação dos sintomas
depressivos ou somáticos e num prejuízo para a relação mãe-bebê-pai. Santos (2001, p. 20)
reafirma isso ao mostrar-nos que “a depressão pós-parto é raramente trazida para o
consultório por quem a experimenta, é vivida com dolorosa perplexidade, com
questionamentos morais, mas sobretudo, em silêncio”. A autora acrescenta ainda que este é
um fato constatado em pesquisas estrangeiras e que se repete no Brasil.
Isso acaba acarretando não só em uma pobreza estatística sobre o fenômeno, como
também em um parco interesse e um número restrito de publicações científicas sobre o tema.
Esta realidade se reproduz na psicologia, haja vista a constatação de nossa revisão
bibliográfica revelar que a DPP é um tema ainda pouco explorado. Dentre os escassos
trabalhos psicológicos que abordam esse assunto, muitos o interpretam do ponto de vista do
bebê, levando em consideração apenas as conseqüências negativas da DPP para o
desenvolvimento e a constituição da personalidade deste, como nos estudos de Camorotti
(2001), Catão (2002), Ribeiro (2002), Andrade (2002) e Schwengber e Piccinini (2003). Estes
não se atentam aos profundos prejuízos que ela pode trazer também para as mães e para a
díade mãe-bebê, e até mesmo, para a tríade mãe-pai-bebê. O último relatório sobre a saúde da
mulher do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil, 2004) nos confirma essa tendência unilateral
em prol do bebê.
Particularmente, nós advogamos que a DPP e seu prolongamento pode ter
conseqüências ruins não só para o desenvolvimento emocional e cognitivo do bebê, como
também sobre o bem-estar da mulher, sua saúde física e psíquica, seus relacionamentos
conjugal, familiar e social, a qualidade de sua vivência materna, e sobretudo, para o seu
processo global de subjetivação como mulher. Por essas razões, nessa investigação, optamos
deliberadamente, assim como fizeram Badinter (1985), Serrurier (1993), Parker (1997), Forna
(1999) e Azevedo (2003), por escutar o “lado” das mães e a versão dada por elas, sobre as
suas percepções da vivência da maternidade.
Assim, focalizamos a DPP do ponto de vista da mulher/mãe sem, contudo, esquecer o
aspecto essencial do relacionamento mãe-filho, mas procurando excluir qualquer
determinismo linear do tipo causa e efeito. Para nós, existe uma diversidade tão grande de
sentidos subjetivos para as mães, para os bebês e seus familiares, que nos impede de manter
um olhar reducionista e linear sobre a maternidade e a depressão após o parto. Isso nos
impulsiona para olhar a complexidade destes fenômenos e dos sujeitos neles implicados.
É sabido que a DPP acontece com mulheres de todas as idades, classes sociais e de
todos os níveis escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que desejam muito ter um filho,
17
bem como aquelas que não aceitam o fato de ter engravidado. Pode ocasionar-se no
nascimento do primeiro filho, do segundo, do terceiro, ou de outros. Os autores que estudam
essa temática têm posições diversas sobre o aparecimento da DPP, e a literatura não é
concorde quanto a sua etiologia.
Temos percebido que o sentido subjetivo da maternidade e da DPP é diferente em cada
mãe concreta, e a visibilidade de cada configuração subjetiva será o resultado de inúmeros
desdobramentos que são sensíveis a integrações de sentido associadas a diferentes áreas da
vida da mulher, mantendo assim uma processualidade constante em diferentes formas de
organização e expressão. Isso significa que tanto os papéis de mãe, de filho, de pai e os
sintomas da DPP estão intimamente relacionados aos conceitos de configuração de sentidos
subjetivos, sujeito e subjetividade de cada um deles. Por essa razão, esses serão conceitos
“âncoras” na nossa pesquisa, a qual terá como parâmetro epistemológico e metodológico a
Teoria da Subjetividade e a Epistemologia Qualitativa desenvolvidas por González Rey
(1992, 1993, 1995, 1997, 1999, 2001, 2002, 2004, 2005a, 2005b), dentro da perspectiva
histórico-cultural.
No nosso entender, essas categoria conceituais são essenciais para o estudo
psicológico do homem e da mulher, pois expressam a rota diferenciada de produção de
sentido subjetivo para cada pessoa e, por isso, apresentam melhores recursos para acessar a
complexidade do nosso tema de estudo – a mãe com DPP. Suspeitamos que seja justamente
esta configuração multifacetada e de sentidos subjetivos que compreende e explica melhor a
razão pela qual nem todas as mulheres apresentam os sintomas da DPP, apesar de todas
sofrerem as bruscas alterações hormonais no parto, como vem sendo justificado na literatura
da área.
Assim, apesar de terem muitos sentidos que podem ser subjetivados de forma
semelhante na vivência da maternidade e do pós-parto, cada mulher terá uma vivência única e
singular, que não deve ser padronizada e nem “vendida” para as demais como o “retrato da
maternidade” e nem “enclausurada” no diagnóstico da DPP. Em outras palavras, levantamos
nesta tese o seguinte questionamento: seria a DPP uma psicopatologia, classificada no CID-
101 (1993) sob a rubrica de F53.0, ou poderíamos suspeitar tratar-se apenas de mais uma
maneira de vivenciar a maternidade? Talvez seja ela uma das formas mais sofridas, porém não
menos legítima que as demais formas mais convencionais de ser mãe. Através dos sintomas
depressivos, a mãe não estaria apenas revelando o lado obscuro da maternidade, socialmente
negado?
Isto posto, não pretendo discutir a relação da DPP a partir da perspectiva biológica,
que confere às alterações hormonais e às modificações corporais grande influência no
comportamento das mães e na a etiologia da depressão puerperal; e nem pela perspectiva
psicodinâmica, como tradicionalmente vem sendo feito sobretudo pelos estudos
psicanalíticos. Mas buscarei privilegiar o fenômeno do ponto de vista histórico-cultural e da
categoria de gênero, que aponta para os contextos e para as transformações históricas
ocorridas nos papéis sociais da mulher e dos homens e na sua integração com a vivência atual.
Assim, assumimos que a motivação para gestarmos o presente trabalho se deve
principalmente a algumas razões de ordem sócio-histórico-culturais, as quais cremos ser
fundamentais considerar quando se pensa na mãe com DPP, como, por exemplo, o fenômeno
da entrada da mulher no mercado de trabalho. Este fenômeno vem provocando
transformações tão profundas no casamento, na família e na sociedade e na saúde da mulher
(Diniz, 1999) que nos levou a acoplar a categoria de gênero ao nosso olhar, com a finalidade
1
Classificação dos Transtornos Mentais e do comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes
diagnósticas. Coord. Organização Mundial da Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas.
18
de ajudar a compreender a saúde da mulher nesse contexto. Dessa forma, não seria a DPP, da
forma como vem se apresentando hoje, também uma conseqüência desta nova realidade?
O primeiro passo para a realização desta investigação foi realizar uma revisão
bibliográfica para conhecer e aprofundar o tema da DPP. Quanto mais se conhecia sobre a
“entidade” da DPP e da maternidade, mais me convencia de que seria necessário incluir uma
contextualização antropológica e histórica da mulher, com ênfase na perspectiva da teoria de
gênero, enfatizando suas três principais dimensões: a relacional, o gênero como construção
social da diferença entre os sexos e como um campo primordial onde o poder se articula
(Scott, 1995).
Por meio dessa ótica, foi possível tecer uma retrospectiva do papel histórico-político
das mulheres no Brasil e no mundo, recuperar a trajetória e os rumos que tomaram a
organização familiar, as condições de subordinação ao homem e o movimento feminista, além
de abordar a construção histórica de mitos e estereótipos que a mulher carrega até os dias
atuais e que ainda pesam nas decisões da justiça e da sociedade. Também foi possível
compreender os papéis sexuais a partir de uma construção social, incluindo o machismo, a
submissão feminina, o sistema patriarcal e a violência.
Outro tópico que mereceu destaque foi a maternidade e a relação pais e filhos,
considerando a difícil tarefa de se tornar mãe. Foi importante conhecer a construção social do
papel feminino, as mudanças no decorrer da história e relacionar as inúmeras amarras
ideológicas no plano social e da própria representação que a mulher tem de si mesma na
família e no mundo.
No entanto, ainda que toda esta revisão teórica fosse bastante instigante, sabia desde o
início que não seria suficiente para contemplar o propósito deste estudo. Era preciso ir a
campo, era preciso “viver” as mães! Ouvir “ao vivo” seus relatos, sofrimentos, alegrias,
dúvidas, medos, conceitos, pré-conceitos, mitos sobre a maternidade e a depressão, pois havia
o desejo de se conhecer “de perto” a vivência da maternagem permeada pela DPP. Para
atender a este propósito, criamos o Grupo de apoio e orientação a mães com DPP, que foi a
nossa maior oportunidade de contato com o momento empírico.
Dessa forma, pretendemos analisar e construir informações sobre as mulheres que
participaram desta investigação, com o objetivo de compreender as configurações subjetivas
que estão na base da DPP, em mães com este diagnóstico. Buscaremos, ainda, tecer uma
análise crítica sobre o diagnóstico de DPP enquanto entidade padronizada, estimulando a sua
despatologização e o apoio psicológico precoce em maternidades. Também é nossa intenção
apresentar uma alternativa teórico-metodológica para a compreensão e estudo da DPP.
Finalmente, temos o forte propósito de trazer uma nova contribuição para iluminar a
compreensão sobre o processos de subjetivação das mães com DPP, na esperança de no futuro
ajudar os profissionais de saúde e os acadêmicos que atuam em áreas da saúde perinatal e do
desenvolvimento humano a evoluir em sua compreensão e maneira de pensar a mãe que se
apresenta depressiva no pós-parto. Esperamos que esta tese nos permita criar fissuras em
territórios tão cristalizados!
19
CAPÍTULO 1
CARACTERIZANDO O PUERPÉRIO...
O puerpério é definido como o período que sucede o parto, podendo estender-se a até
sessenta dias após o nascimento do bebê. Durante esse tempo, o organismo da mulher sofre
uma série de mudanças com o objetivo de retornar ao estado pré-gestacional. Os órgãos e
sistemas envolvidos com a gravidez sofrem um processo regenerativo, havendo também uma
grande adaptação psicológica frente à nova realidade (Corrêa & Corrêa, 1999).
Nesta fase de ajustamento psicológico, além dos sentimentos de plenitude, euforia e
felicidade, também observa-se freqüentemente sentimentos de angústia e ansiedade,
incapacidade para cuidar do outro, baixa auto-estima e a presença de sintomas somáticos,
como alterações do apetite, sono, libido e registro de fadiga, em diferentes graus de
intensidade. Esses sintomas são acompanhados de pensamentos recorrentes nas mães,
relacionados principalmente a: auto- recriminação por não estarem gostando da experiência
da maternidade e/ou do bebê como “deveriam”; o receio de cederem ao impulso agressivo e
machucarem o bebê, ou a si próprias, o que está relacionado a uma presente vontade de
morrer; a culpa, por não estarem cumprindo bem e com satisfação o papel de mãe e a
sobrecarga de trabalho que acreditam estar acarretando a seus companheiros ou a suas
famílias (Santos, 1995; Santos 2000).
Obviamente, muitos desses sintomas, sobretudo nos três primeiros meses após o
nascimento do filho, são transitórios e podem ser considerados reflexos do período de
adaptação que a nova condição de mãe impõe, pois a chegada do bebê, pelo impacto
emocional que ele gera na vida da mãe, do pai e dos demais familiares, congrega talvez a
maior sobrecarga de esforços pelo qual uma mulher pode passar em sua vida. A maternidade
implica em uma mudança radical na vida não só da mãe, mas do casal. Inaugura-se uma nova
família, marido e mulher saltam para uma nova etapa do seu desenvolvimento e avançam
uma geração. Tornam-se pais, deixam de ser cuidados pela geração mais velha para virar
cuidadores de uma geração mais jovem. Porém, nem todos vão consegui fazer esta transição
de papéis de forma tranqüila e alguns podem entrar em crise, a qual pode variar de intensidade
(Erikson, 1976). Veremos que esta variação vai caracterizar os chamados distúrbios do
puerpério (Trucharte & Knijnik, 1995).
Santos (1995) destaca que há relatos sobre distúrbios mentais no puerpério desde
Hipócrates, em 400 a.C. Em nossa pesquisa bibliográfica encontramos um dos primeiros
registros sobre esses distúrbios em 16172, referente a um comentário sobre uma mulher que,
ao dar à luz, se tornara “melancólica e louca”:
A formosa esposa de Carcinator, que trabalha junto da praça, sempre havia gozado
de ótima saúde, mas depois do parto foi logo atacada de melancolia e durante um
mês ficou como louca. Com a aplicação de remédios adjuvantes voltou à primitiva
saúde. A causa desta doença parece ser o humor melancólico, excitado no tempo de
parturição.
Santos (2001) revela que a história dos estudos sobre a DPP tem uma trajetória mais
linear que a dos distúrbios psicóticos puerperais; sendo que a presença na literatura de estudos
2
Em um relato feito por Rodrigues de Castro e documentado no livro Motherhood and Mental Health, de Ian
Brockington.
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Em torno do terceiro dia após o parto, a maioria das mulheres apresenta o que se
denomina Baby Blues. O aspecto lábil do blues é bastante conhecido pelas mães, e
caracteriza-se basicamente pelo sentimento de tristeza, crises de choro, emotividade
exacerbada, hipersensibilidade e labilidade. Podem ocorrer ansiedade, fadiga e preocupações
excessivas com a lactação e com a saúde do bebê. Pode haver ainda distúrbios cognitivos
leves, como dificuldade de concentrar-se, dificuldade de raciocinar e problemas com a
memória e o choro fácil, mas não chegam a impedir a realização das tarefas pela mãe.
Segundo os estudos clássicos, pesquisados por Rocha (1999), este quadro apresenta
prevalência entre 50 e 80% das puérperas, com média de 66,7% dos casos.
É uma condição benigna que dura de alguns dias a poucas semanas; e é considerada a
forma mais leve dos distúrbios de humor do pós-parto (Rocha, 1999; Ballone, 2001; Botega &
Dias, 2002; Andrade, 2002). É de intensidade leve, não requerendo em geral uso de
medicações, pois é auto-limitado e cede espontaneamente. Por essa razão, o “tratamento” do
pós-parto blues consiste em esclarecimento, compreensão e apoio familiar, sobretudo do
marido (Rocha, 1999). Provavelmente, devido ao seu caráter benigno, não tem sido uma
condição muito estudada (Botega & Dias, 2002).
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perda de motivação para a vida, é incapacitante, requerendo na maioria das vezes o uso de
antidepressivos (Ballone, 2001).
Conforme esclarecido anteriormente, e como qualquer outro tipo de depressão, a pós-
parto atinge mulheres de qualquer idade. Os sintomas do estado depressivo variam quanto à
maneira e intensidade com que se manifestam, pois dependem do tipo de personalidade da
puérpera, da sua própria história de vida, da sua a predisposição natural, das circunstâncias de
sua gravidez, das condições do relacionamento com o companheiro, da situação financeira,
bem como, no aspecto fisiológico, das mudanças bioquímicas que se processam logo após o
parto.
A puérpera pode apresentar-se com um profundo retraimento, necessidade de
isolamento, principalmente se há uma quebra muito grande do que se esperava, tanto em
relação ao bebê idealizado quanto a si própria enquanto figura materna. De acordo com
Botega e Dias (2002), podem existir nessas mães sentimentos ambivalentes em relação à
maternidade e às responsabilidades que a acompanham: "mães deprimidas podem acreditar
que o recém-nascido sofre de doenças ou malformações, podem se sentir culpadas por não
sentirem amor pelo bebê, por não estarem cuidando dele." (p. 291).
A mãe também pode ter uma reação maníaca, apresentar-se cheia de energia, eufórica,
falante, preocupada com seu aspecto físico e com a ordem e limpeza exagerada do ambiente.
As visitas são recebidas calorosamente e parece tão disposta, auto-suficiente, como se não
precisasse de ajuda externa. Em contrapartida, manifesta alguns transtornos do sono,
somatizações, como febre, constipação e outros sintomas físicos. Do mesmo modo, podem
surgir as ansiedades depressivas de modo ocasional ou em acessos de choro, ciúmes,
aborrecimento, tirania ou em expressões de auto-depreciação e de auto-acusação (Santos,
1995, 2001, Andrade 2002).
As mães deprimidas apresentam redução do contato afetivo e maior dificuldade para
expressar sentimentos positivos pelo bebê (Camorotti, 2001; Catão, 2002; Schwengber &
Piccinini, 2003). Elas percebem suas crianças como mais difíceis de lidar e como mais
incômodas. Por essa razão, se não adequadamente diagnosticada e tratada, a DPP pode se
tornar um fator que dificulta o estabelecimento de um vínculo afetivo seguro entre mãe e
filho, podendo interferir nas futuras relações interpessoais estabelecidas pela criança.
Estatisticamente, Santos (1995) apresenta os seguintes dados relacionados à incidência
da DPP: Europa e Estados Unidos apresentam uma freqüência do fenômeno de 10 a 20% na
população de puérperas. Em nosso continente, estudo realizado no Chile encontra freqüência
de 10% em puérperas de classe média. No estudo realizado por Santos (1995, 1999) para
verificação da validade no Brasil da Edimburgh Postnatal Depression Scale, encontrou-se
uma freqüência de 13,4% em amostra de puérperas de nível sócio-econômico elevado.
Portanto, a prevalência, desses quadros depressivos não-psicóticos no pós-parto variam de 7 a
20%, com média de 13%. Porém no recente estudo realizado por Cruz, Simões e Faisal-Cury
(2005), a prevalência de DPP encontrada para municípios do Estado de São Paulo foi de
37,1%. Os autores afirmam que o único trabalho encontrado que obteve resultado semelhante
foi realizado por Cooper e cols (2002, citado por Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005), na
África do Sul, que mostrou prevalência de 34,7%.
Parece não haver diferença entre a prevalência em outros períodos de vida. Estima-se
que o risco de desenvolver depressão, ao longo da vida, seja de 10% para os homens e de 20%
para as mulheres (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). No entanto, há indícios de aumento de
incidência de depressão nas cinco primeiras semanas após o parto (Rocha, 1999; Baptista,
Baptista & Oliveira, 2004).
A maioria dos estudos sobre as prováveis causas da DPP centram-se na causalidade
biológica. Apesar das pesquisas neste sentido não serem conclusivas, de acordo com Santos
(2001), elas partem da premissa de que vários transtornos afetivos estão associados às
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Portanto, se a mãe apresentou alguma dessas histórias, ela requer mais atenção dos
familiares e profissionais de saúde desde a gestação (Botega & Dias, 2002); o que
normalmente não é feito nem mesmo pelos obstetras que as acompanham no pré-natal.
Catão (2002) destaca que, apesar da alta incidência, a grande maioria das depressões
pós-parto têm intensidade leve e/ou moderada, por isso podem passar desapercebidas.
Normalmente, os profissionais que estão diretamente envolvidos com as puérperas, como o
ginecologista, o pediatra, profissionais de aleitamento materno, não se atentam para os
sintomas da DPP e têm muita dificuldade de fazer o diagnóstico, tratamento e
encaminhamentos adequados. Constatamos esta falta de atenção especializada em recente
estudo feito por Galvão (2003), que teve como objetivo investigar a representação dos
profissionais de saúde (ginecologistas/obstetras, pediatras, psicólogos e enfermeiros) acerca
da DPP.
Ademais, existe ainda o preconceito de muitos profissionais de saúde em relação a esta
mãe, como podemos observar no relato de uma amiga grávida, que esteve no serviço médico
do seu trabalho:
Sexta-feira eu estive com um ginecologista do serviço médico que me assustou
muito! Fui lá apenas para pegar autorização para o parto e por acaso resolvi
perguntar se ele recebia em seu consultório muitas mulheres que apresentavam
sintomas compatíveis com os da DPP e qual era o seu procedimento nesses casos.
Qual não foi a minha surpresa! Ele me disse que não recebia muito não, mas quando
recebia ele mesmo resolvia, mandava a mulher ir trabalhar, por que esse negócio de
DPP, é coisa de mulher que não tem o que fazer, fica muito
tempo sem fazer nada e por isso acha tempo para frescura. Nossa, essa resposta eu
não esperava ouvir de um profissional da área da saúde, principalmente eu estando
grávida! Daí porque muitas sofrem em silêncio, não é? (Azevedo, 2004)3.
3
Relato escrito por Kátia Rosa Azevedo, em 17/10/04, por e-mail.
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À guisa de conclusão deste capítulo, podemos afirmar que é instigante notar que, se
somarmos os índices de incidência para cada tipo de distúrbios relacionados ao puerpério,
aliadas a tantas dificuldades que podem surgir na fase do pós-parto, podemos concluir que,
quase 100% das puérperas vão apresentar algum nível de dificuldade emocional neste
período, o que não quer dizer que todas precisarão de tratamento especializado. Portanto, ao
contrário do que se “vende”, é comum e esperado na mãe recém parida a ocorrência de
tristeza, de retraimento, de labilidade, de descuido pessoal, de cansaço ou de hiperatividade,
de idéias persecutórias, sem chegar ao nível alarmante da psicose puerperal (Rocha, 1999;
Santos 2001). Se esse sofrimento é tão comum e inerente à vivência da maternagem, porque
será, então, que poucos ousam revelar este lado “feio” da maternidade?
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CAPÍTULO 2
O OLHAR SUBJETIVADO: UMA CRÍTICA AO DIAGNÓSTICO PADRONIZADO
DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO
“O doente é, todavia, mais que o portador impessoal de uma moléstia.
O estar doente inclui a vivência da doença pelo próprio paciente,
assim como sua atuação sobre a situação social.
Uma medicina restrita à descrição da doença
desconsidera amplamente a apreciação de um paciente
sobre os efeitos mutantes entre o organismo agredido,
a reação psíquica e o meio social alterado”
Engels
Existe uma tendência nas ciências da saúde, inclusive na psicologia, de considerar que
somos compostos por duas partes: de um lado, o corpo, de outro, a mente, como se uma parte
não tivesse ligação com a outra, sendo que o enfoque dirigiu-se quase que exclusivamente
para o biológico. Exclui-se, dessa forma, a influência do subjetivo e da cultura no
desenvolvimento, manutenção e cura das patologias, limitando-se, assim, à compreensão de
um grande número de enfermidades que atingem o ser humano (Okay, 1986). Essa é uma
cultura remanescente do modelo biomédico, de inspiração cartesiana, que consiste na
expressão da visão mecanicista de vida que, ainda hoje, norteia as ciências biológicas e da
saúde.
De acordo com Ramos (1994), o modelo biomédico tem como características
principais: a ênfase na doença e não no doente; a compartimentalização do corpo; a
objetividade; a concretude; a padronização; o reducionismo; o determinismo e o
universalismo. Essas premissas favoreceram uma visão fragmentada do homem, na qual o
sistema corporal foi reduzido a partes menores, tratadas de forma isolada. O foco não é o
indivíduo, mas os aspectos universais das patologias. Tanto que este modelo marca a origem
da semiologia, que é a ciência que busca e categoriza os sinais das doenças. Identificar a
doença e, conseqüentemente, enumerar-se o que é patológico, “além de ser uma tarefa crucial,
tornou-se uma tarefa insana” afirma Romano (1999, p. 38).
Com essa ênfase nos sintomas, a doença passou a ser concebida como uma entidade
separada, marcada pelo desvio de normas fixas e fisiológicas. O interesse prevaleceu apenas
sob os aspectos das doenças que pudessem ser considerados universais, padronizáveis e
generalizáveis (Okay, 1986; Ramos, 1994, Chiattone, 2000). A medicina foi cercando-se de
métodos cada vez mais sofisticados para garantir o diagnóstico, reunindo o seu saber
objetivado em revisões conceituais, manuais, guias estatísticos, entre outros.
Dessa maneira, as medidas experimentais, os testes e diagnósticos podiam ser feitos
sem que se fosse necessário considerar as características sociais, morais e psicológicas dos
pacientes; afinal, não se reconhecia nesses fatores qualquer impacto sobre o organismo
enfermo (Ramos, 1994). Esses elementos “não materiais” não eram suscetíveis de serem
medidos facilmente nos laboratórios e, assim, foram negligenciados, sendo considerados
“epifenômenos”, ou seja, à parte do tratamento de saúde, ou restritos aos casos de doenças
mentais/psiquiátricas (Okay, 1986; Ramos, 1994; Remen, 1993, Chiattone, 2000). A
influência do modelo biomédico foi tão preponderante que, ainda hoje, uma queixa de mal-
estar orgânico sem fundamento biológico é considerada “ puramente” psicológica ou “falsa”
pela medicina tradicional – portanto, de “menos valia” (Okay, 1986; Ramos, 1994; Remen,
1993, Chiatonne, 2000).
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Este trabalho é uma tentativa de seguir este caminho e contribuir para uma psicologia
menos abstrata, ahistórica e descontextualizada, que se refugia nos rótulos, para delimitar
espaços de ação, muitas vezes, em detrimento do sujeito em sofrimento.
Para nós, é importante pensar o psiquismo humano inserido em seu contexto sócio-
econômico-cultural, pois, como afirma Demo (2001, p. 24): “não há ser humano que não seja
sujeito e que não esteja contextualizado no espaço e no tempo”. O sujeito tem sido o ponto de
intersecção de uma teoria da subjetividade e uma perspectiva histórico-cultural, pois, sem o
sujeito, a subjetividade permaneceria a-sujeitada e substanciada em um plano intrapsíquico,
como ocorre em algumas tendências da psicologia, com a quais não nos identificamos.
A teoria da subjetividade de González Rey, como vem sendo recentemente
denominada por Martínez (2005), situa-se nesta perspectiva histórico-cultural, na qual seu
idealizador se inspirou para definir as categorias de subjetividade, de sujeito, de
configuração subjetiva e de sentido subjetivo. De acordo com esta autora, uma profunda
estudiosa e colaboradora da construção da Teoria da Subjetividade de González Rey, essas
categorias que configuram este corpus teórico demonstram o valor heurístico na construção
de um novo pensamento psicológico. Assim, elas legitimam uma nova representação do tema
da subjetividade, por serem categorias assumidamente e intencionalmente subversivas, ao
romperem com a representação da psiqué como um conjunto de entidades estáticas,
individuais e universais, e desnaturalizarem essa representação, sem contudo, substituí-la por
uma sociologização da psiqué, levando à compreensão do social como espaço de produção de
sentidos.
Essas categorias subvertem a ordem porque se distanciam da lógica dualista entre o
bem e o mal, o justo e o injusto, o moral e o imoral, reconhecendo e até valorizando o direito
a posições distintas, as contradições e os conflitos como parte fundamental da construção dos
sujeitos individuais (Martínez, 2005; González Rey, 2005a). Na nossa concepção, esse
pensamento subversivo é primordial para construirmos um novo olhar sobre a DPP e nos
afastarmos das perspectivas de ênfase intrapsíquica, padronizadas e patologizantes.
Passemos a ver como estas categorias são conceituadas nesta perspectiva teórica.
2.4.1 - A categoria de sentido subjetivo:
O conceito de sentido subjetivo é visto como central na definição de subjetividade de
González Rey (2005a, 2005b), pois o desenvolvimento acontece através de unidades de
sentido capazes de implicar aspectos psicológicos diferentes em um sujeito concreto. Estes
elementos não respondem a etapas universais, senão a momentos concretos da vida do
sujeito.
A produção de sentidos subjetivos e suas diferentes configurações são processos que
estão além da representação consciente do sujeito, ou seja, vão além dos significados
atribuídos pelos sujeitos às suas ações e vivências. Constituem-se num tipo de unidade auto-
organizada da subjetividade que se caracteriza por uma integração de significados e
processos simbólicos em geral e de emoções, nas quais um elemento não está determinado
pelos outros, embora tenha o poder de evocá-los (González Rey, 2004, 2005a). Representam
complexas combinações de emoções e processos simbólicos que estão associados a
diferentes esferas e momentos da vida do sujeito e que podem estar envolvidos em
configurações subjetivas distintas.
As emoções se associam a diversos registros simbólicos ao longo da história de vida
do sujeito e, dessa integração, surge um sistema psíquico qualitativamente diferente. Não
há, portanto, de acordo com González Rey (2005a), uma relação imediata entre uma emoção
e um conjunto de palavras, pois o sentido subjetivo sempre se produz num espaço simbólico,
que normalmente não está evidente aos nossos olhos. Isso significa dizer que a conjunção
simbólico mais emocional não se refere a ter apenas uma representação de algo e nem uma
emoção em relação a algo ou alguém, pois a relação com este “algo” estará perpassada pela
história do sujeito e pela cultura em que ele vive. Assim, o sentido subjetivo está relacionado
àquilo que mobiliza afetiva, simbólica e historicamente de alguma forma o sujeito. Por isso,
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nem tudo tem o mesmo sentido subjetivo para todos, apesar de poder ter um mesmo
significado, compartilhado socialmente.
Desta forma, as emoções se relacionam com as palavras num espaço de sentido, e
não em relação abstrata e fora do contexto de ação do sujeito. Os sentidos subjetivos
integram-se em torno de delimitações simbólicas produzidas pela cultura e de processos
históricos de relação. Estes, por sua vez, são acompanhados de uma emocionalidade que
sintetiza a qualidade específica de uma história singular de relacionamento. Portanto,
nenhuma demanda externa é inerente ao meio, mas é determinada pela produção de sentido
do sujeito no seu enfrentamento.
Por isso, o sentido nunca representa uma expressão psicológica pontual. Ele aparece
somente na expressão plena do sujeito, a qual sempre comunica a integridade inseparável de
processos simbólicos e emocionais que legitimam uma zona do real para ele. Usado dessa
forma, o conceito de sentido subjetivo só pode ser construído teoricamente por meio de
expressões diferenciadas dos sujeitos estudados, o que pressupõe uma atividade construtivo-
interpretativa permanente do pesquisador, a qual pretendemos implementar nesse estudo.
Assim, o estudo do sentido subjetivo da maternidade nos permite compreender a
história das mães pelo modo com que se organizam os sentidos subjetivos em suas
diferentes configurações diante da depressão após o parto.
2.4.2 – A categoria de configuração subjetiva:
Esta categoria tem um caráter sistêmico que permite compreender as diferentes
expressões do sujeito, em qualquer atividade particular, como uma manifestação da
subjetividade individual em seu conjunto. Essa manifestação, por sua vez, tomará formas
diversas em função do contexto da subjetividade social em que a sua atividade ocorre. Por
isso, Martínez (2005) afirma que essa categoria representa a articulação de diferentes
momentos e de recursos subjetivos do sujeito que funcionam organicamente, caracterizando
sua qualidade constitutiva.
As configurações subjetivas de cada sujeito, que são as formas mais complexas de
organização da subjetividade individual, filtram, selecionam, organizam, negam, enfim, dão
uma tonalidade própria para cada “coisa” que passará para “dentro”. Em outras palavras,
Demo (2001, p. 24) corrobora esta concepção: “a realidade que temos em mente é aquela
reconstruída por nós. O mundo que nos tem como sujeito é um mundo reconstruído também
subjetivamente”. Ou seja, não há uma internalização passiva do social.
As configurações de sentido integram o atual e o histórico em cada momento de ação
do sujeito nos diversos espaços de sua vida (González Rey, 2005a). Esta relação entre o atual
e o histórico na produção de sentido é um dos elementos nos quais se destaca a importância
da categoria de sujeito nessa teoria. Ela foi uma categoria elaborada para acompanhar tanto
as articulações dinâmicas da subjetividade social do sujeito, como a emergência de novas
qualidades que caracterizam a subjetividade como um sistema complexo.
As configurações subjetivas seriam as responsáveis pelas formas de organização da
subjetividade como sistema, e são relativamente estáveis por estarem associadas a uma
produção de sentidos subjetivos que antecede o momento atual da ação do sujeito e que
pressiona a produção de sentidos de qualquer nova ação em termos de reorganização do
sistema (González Rey, 2005a). Ainda que tenham este caráter mais estável, as configurações
subjetivas não representam estruturas estáticas que, de forma estável e imutável, acompanham
o sujeito definitivamente. Tampouco, formam uma estrutura, pois representam um sistema
implicado permanentemente com outras configurações, em um jogo no qual uma delas pode
se integrar como elemento de sentido de outra em decorrência do posicionamento do sujeito
nos diferentes momentos de sua vida.
Sob essa ótica, compreendemos que as configurações de sentido da personalidade, por
exemplo, não podem definir a priori, o sentido dominante da atividade do sujeito em relação à
33
Observa-se que na área da psicologia a DPP vem sendo basicamente estudada sob o
olhar psicanalítico. Este olhar oferece elementos que nos ajudam a compreender o
36
CAPÍTULO 3
4
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
39
sempre foi vista como uma figura de ambigüidade, cuja história era contada sempre por
homens. Nestes contextos, a figura feminina normalmente é descrita como a causa dos males
do gênero humano, em função da sua curiosidade imprudente e pecaminosa (Chauí,1985 e
1984; Muszkat, 1994; Roudinesco, 2003; Del Priori, 2004; Aleixo, 2005). Esta ambigüidade
se revela, sobretudo, nas imagem contraditórias de Eva e da Virgem Maria.
Essas duas figuram nos conduzem à questão da repressão sexual (Chauí, 1985 e 1984).
O paraíso perdido e o pecado original, sobretudo a perda da imortalidade, são frutos da
descoberta da sexualidade. Sexualidade esta que foi “atiçada” por Eva que tentou Adão,
recaindo sobre ela a culpa pela separação entre nós e a divindade – com a conseqüente
mortalidade.
O Paraíso significava um mundo onde havia harmonia, imortalidade, eternidade e
ausência de dores e penas. Não nascer e não morrer - infinitude. Chauí (1985 e 1984);
Muszkat (1994) e Del Priori (2004) explicam que a descoberta do sexo foi o Mal, que
condenou a humanidade à dor, à mortalidade e à finitude por culpa da mulher, já que Adão era
obediente e não tocava no fruto proibido. “Os desregramentos, o pecado e a danação
originaram-se da fragilidade moral do sexo feminino” (Del Priori, 2004, p. 25). Por isso,
desde Eva, as tentações da carne e a volúpia sexual eram predicados femininos, representando
a mulher como fraca e suscetível ao pecado, cujo o corpo corresponde ao lugar de todos os
perigos!
Por essa razão, “a mulher, eternamente condenada pelo erro de Eva, tinha que
permanecer vigiada e controlada” (Del Priori, 2004, p. 46). A Igreja e o Estado exerciam forte
pressão no controle da “maligna” sexualidade feminina, justificando através de argumentos
divinos que o homem lhe era superior, cabendo a ele autoridade sobre a mulher. O feminino
era visto como fonte de desordem que deveria ser controlado pelas leis do casamento, em
conformidade com a ordem marital (Roudinesco, 2003). Dessa forma, foi-se incorporando à
natureza feminina um estigma que predispunha à transgressão e à maldade, revelando-se de
maneira mais extrema nas práticas de bruxaria.
Durante toda a Idade Média, a imagem da mulher estava relacionada às tentações, ao
Diabo, pois ela representava o desejo sem fim e sem limites que poderia entorpecer e
perverter os homens. Assim, de feiticeira à possuída, e desta à louca, há a interiorização do
pecado, tornando-a demoníaca em sua alma (Chauí, 1985 e 1984; Muszkat, 1994; Del Priori,
2004). O controle do corpo, através de castigos físicos e disciplina, foi instituído como forma
de reeducá-lo e torná-lo dócil e apto para o trabalho e, principalmente, menos ameaçador.
Assim, de fêmea insaciável, a mulher se converte num ser quase assexuado, frígido
incapaz de viver o prazer e o orgasmo, fisicamente constituído apenas para a procriação,
desde que restrito ao casamento e sem prazer, afirma Chauí (1985). Porém, mais do que
apresentar as formas visíveis e invisíveis de repressão sexual, através da análise da mulher
medieval e suas relações com a Igreja, Chauí (1985 e 1984) mostra que a construção
contemporânea de Eva e da Virgem Maria carrega uma ambigüidade que perpassa nosso
próprio presente: a mulher é responsável pela ciência do bem e do mal - por sua imprudente
curiosidade por seu desejo sexual irrefreável. É também responsável pela semi-imortalidade e
semi–eternidade da espécie, pelo seu resgate parcial, através da procriação. Apenas sob a
figura da Mãe Virgem poderia devolver ao menos uma semi-imortalidade ao homem, ao gerar
a vida, dedicando-se à tarefa da perpetuação da espécie (Chauí, 1985 e 1984; Muszkat, 1994;
Roudinesco, 2003; Del Priori, 2004). Assim, caberia às mulheres transmitirem a vida e a
morte (Roudinesco, 2003).
Uma vez tornando-se mãe, a mulher honrada, de família e casada na igreja, afastava-se
da Eva e aproximava-se de Maria, a virgem que concebeu sem pecado. Assim, ratifica-se o
surgimento do arquétipo do modelo de Maria predominante entre as mulheres “direitas”. Para
isso, suas vidas deveriam ser restritas à família, à igreja, ter uma vida assexuada com fins
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apenas procriativos, serem fracas, submissas, passivas e sem participação na vida pública.
Ademais, eram educadas para o casamento, para cuidar da casa e dos filhos e, ainda, tolerar as
relações extraconjugais de seus maridos. Del Priori (2004) ressalta que esses valores eram
incorporados pelas mulheres por meio da imposição da Igreja, da família e por muitos
mecanismos informais e formais de coerção. Chauí (1985) complementa essa afirmativa com
a seguinte questão:
(...) poderia haver outro lugar ideológico para as mulheres senão a maternidade, isto
é a repetição da maldição? (somos mortais porque nascemos) e a promessa de
redenção (somos imortais em nossos descendentes). Autora de uma violência
irremissível – revelar aos homens sua finitude -, a mulher só poderia pagar esse ato
de violento sendo submetida a violência – as dores do parto e a submissão àqueles
que por ela são engendrados para a morte. (Chauí, 1985, p. 32)
Portanto, afirma Roudinesco (2003) que a mulher deve, acima de tudo, ser mãe, para
que a sociedade seja capaz de resistir à tirania do gozo feminino que se acredita ser capaz de
eliminar a diferença entre os sexos, e leve à decadência dos valores tradicionais da família, da
autoridade do pai e ao caos social. Tudo era pensado como se, “no exato momento em que as
mulheres despertassem do longo sono de sua sujeição, a família fosse ameaçada de ser ela
própria destruída” (Roudinesco, 2003, p. 145).
A lógica apresentada por todas essas autoras me pareceu bastante plausível para
introduzir o tema da maternidade. Este percurso histórico pareceu-me dar sentido para a
imposição – violenta e implacável - da maternidade, da qual as mulheres ainda são vítimas.
Até hoje elas estariam pagando pela maldição que impuseram à humanidade ao condená-la à
finitude, à mortalidade, à dor e ao sofrimento, através da maternidade – sua única chance de
se redimir. E para que ela pague este preço, sem resistir ou reclamar, veremos que foi
arquitetado sutilmente e ideologicamente o processo de naturalização da maternidade.
Assim, entendemos que Chauí (1985) faz uma denúncia grave e nos alerta para o fato
de que a violência mais perfeita é aquela que acontece sem que percebamos, instaurado
sutilmente, como algo natural, pré-determinado. Através de uma sutil inversão ideológica, a
violência passa a ser imputada ao “desnaturamento” desejado pelas mulheres. A violência
agora consistirá, portanto, em constranger a vontade das mulheres, fazendo-as interiorizar a
sua “natureza” - que ela consinta em ser, de jure, o que é realmente de facto. A hipótese de
Chauí é que a idéia e a imagem de uma “natureza feminina” permaneçam até hoje, ainda que
difusa e diluída, pelo fato de que o corpo feminino tenha sido o elemento fundamental para as
ideologias da feminilidade.
A Igreja, o Estado, bem como a ciência, acabaram por fortalecer a idéia de instinto
maternal, idéia típica da teoria evolucionista, que defendia a noção de que a natureza
emocional da mulher era conseqüência direta de sua fisiologia reprodutiva (Laqueur, 2001;
Aleixo, 2005). Há, portanto, um discurso sobre as mulheres e não das mulheres (Chauí,1985 e
1984; Muszkat, 1994; Del Priori, 2004; Aleixo, 2005). Isto acarreta que, neste processo
circular de naturalização-culturalização-naturalização da mulher, faltou a ela justamente
aquilo que a tornaria sujeito de fato e de direito: a autonomia do falar, do pensar, do agir, do
escolher. No processo de subjetivação da mulher, observa-se, então, que lhe foi dada
finalidades internas a partir do exterior. Entendemos, com isso, que a força do instinto
maternal se impõe na vida das mulheres há séculos, como algo natural, predestinado e sem
42
possibilidades de escolha! Como nós, mulheres, poderíamos ousar duvidar desta ordem
secular?
A obra de Laqueur (2001) intitulada Inventando o Sexo: corpo e gênero dos gregos a
Freu., foi, para mim, a primeira grande responsável por esta desconstrução do sexo “inato”.
Laqueur (2001) defende a tese de que o sexo biológico também é uma construção social, a
serviço dos interesses sociais/morais. Em suas pesquisas, ele descobriu que antigamente o
modelo de sexo era único. O corpo masculino era o modelo de perfeição e o corpo da mulher
seria apenas um corpo masculino defeituoso/inferior.
Para Aristóteles e Galeno (citados por Fávero & Mello, 1997; Laqueur, 2001;
Roudinesco, 2003; Aleixo, 2005) os órgãos femininos eram uma forma menor dos órgãos
masculinos e, conseqüentemente, a mulher era um homem menos perfeito. Nesse sentido, a
mulher opõe-se ao homem sendo “passiva”, enquanto este é ativo. Isso faz dela uma “réplica
invertida do homem”, como prova a posição de seus órgãos: o útero era o escroto; a vulva era
o prepúcio; os ovários eram os testículos e a vagina era um pênis invertido. Assim, tal qual o
significado da criação de Eva a partir de uma costela de Adão, pensa-se a humanidade como
masculina e a mulher é definida em relação ao homem, e não em relação a ela mesma (Chauí,
1985; Muszkat, 1994; Ehrhardt, 1996).
Laqueur (2001) mostra que, somente no século XVIII, os dois sexos – masculino e
feminino – foram inventados como um novo fundamento para o gênero. A partir desse novo
modelo sexual, houve um grande esforço para se descobrir as características anatômicas e
fisiológicas que distinguiam o homem da mulher. Assim a mulher ganhou um novo status: já
não era mais um “homem imperfeito”, mas era um outro ser anatomicamente diferente. Mas,
se, por um lado, esta diferenciação foi positiva no sentido de marcar um lugar próprio da
mulher, não impediu que fosse agregado a este corpo diferente um valor inferiorizado.
Destarte, a mulher não era apenas diferente do homem, mas continuava ser vista como
intelectualmente inferior, pouco racional e, portanto, toda instinto e passional.
Del Priori (2004) confirma esta concepção de mulher ao nos mostrar que para a maior
parte dos médicos do Séc. XVI, a anatomia feminina era diferente não apenas por um
conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas características
morais, sendo “o corpo da mulher destinado a procriação e assuntos divinos” (p. 78). O lugar
da mulher era definido, portanto, através desta função: “penetrada pelo homem deitado sobre
ela, a mulher ocupa o seu verdadeiro lugar” (Roudinesco, 2003, p. 24).
Autores como Badinter (1985), Chauí (1985), Muszkat (1994), Laqueur (2001) e Del
Priori (2004) afirmam que nesse contexto, onde medicina e igreja comungavam do mesmo
discurso, continuaram sendo construídos conceitos sobre o funcionamento do corpo feminino
sublinhado por sua inferioridade em relação ao corpo masculino. Para eles, a mulher tinha
sido criada por Deus para servir à reprodução da espécie, relacionando o estatuto reprodutivo
da mulher (parir e procriar) a outros de caráter metafísico, como ser mãe, submissa, frágil,
terna.
Concepções que beiram ao cômico, apresentadas por Spencer (1975, citado por
Fávero & Mello, 1997), revelam esta inferioridade e predestinação à procriação:
As energias da mulher eram canalizadas diretamente para preparação da gravidez e
da amamentação, reduzindo sua energia para o desenvolvimento de outras
qualidades. O resultado era uma parada precoce na evolução da mulher, o que
explica seu estágio de desenvolvimento inferior ao do homem.
A grande preocupação dos médicos e pesquisadores daquela época, de acordo com Del
Priori (2004), era compreender o sistema reprodutor feminino, tendo em seus estudos
destacada a função de madre, nome dado ao útero, órgão este que era descrito como uma área
nebulosa da natureza feminina (Laqueur, 2001; Del Priori, 2004). Acreditava-se, ainda, que o
43
princípio da vida existiria no sêmen masculino, tendo a mãe a função hospedeira de receber e
nutrir o feto. Assim, “dependente do homem, instrumento a serviço da hereditariedade da
espécie, este é o corpo da mulher, visto pelos médicos” (Del Priori, 2004, p. 84).
Essas idéias eram reforçadas por argumentos biológicos que consideravam os instintos
peculiares para cada sexo como sendo a fonte primária das diferenças sexuais, e o instinto
feminino definia-se pela submissão ao comando. A idéia “vendida” parece ser a de que a
mulher é toda instinto e que, portanto, foi programada para procriar e cuidar. Essa deve ser
sua aspiração e sua realização e, por isso, deverá ser sua fonte primeira de gratificações
(Chauí, 1985; Badinter, 1985; Serrurier, 1993; Trindade 1993; Muszkat, 1994; Fávero &
Mello,1997; Parker, 1997; Laqueur, 2001, Ribeiro. & Almeida, 2003 e Del Priori, 2004).
No caso das mulheres, a permanência da ideologia naturalizadora é nítida, pois seu
corpo procriativo é invocado como uma determinação natural; determinação esta que faz com
que a mulher permaneça irrevogavelmente ligada ao plano biológico (da procriação) e ao
plano da sensibilidade (na esfera do desconhecimento). Maternidade, como instinto e como
destino, e sensibilidade, numa cultura que valoriza a razão em detrimento da emoção, são
algumas construções ideológicas curiosas, que, segundo Chauí (1985), servem para manter
a idéia de “natureza feminina” como uma rocha “natural” no mundo historicizado. Assim, a
naturalização seria o procedimento privilegiado da ideologia dominante, ao qual a mulher
vem sendo submetida há séculos.
Viana5 (2004) vai além disso. Para ela, o mito do instinto e do amor materno sugerem
mais do que questões ideológicas. Eles se remetem também a questões mercantilistas e
posteriormente capitalistas, na tentativa de manter a mulher fora do mercado de trabalho. Na
opinião de Chodorow (1990), a maternação das mulheres é um dos poucos elementos
universais e duráveis da divisão do trabalho por sexos. Até agora, todos os sistemas sexo-
gênero têm tido dominação masculina, o que demonstra, na opinião dessa autora, que a
maternação das mulheres é um aspecto central e definidor da organização social do gênero, e
implica na própria construção e reprodução da dominância masculina.
Freud, de acordo com Roudinesco (2003), também considera equivocada toda esta
argumentação naturalista. Ao seu ver, não existem nem instinto materno e nem raça feminina,
pois para ela, o parâmetro não é simplesmente anatômico, mas simbólico em torno do falo. O
falicismo é pensado como uma instância neutra, portanto comum aos meninos e meninas.
Apesar da eterna atitude interrogativa acerca do “que quer uma mulher?” e de considerá-la
como um “continente negro”, Freud não encorajava as mulheres a exercerem uma profissão, a
militarem por igualdade ou a concorrerem com os homens no domínio da arte e da
sublimação. Para ela, era melhor restringi-las “à nobreza de uma arte da qual foram
iniciadoras, a textura e a tessitura” (1921, citado por Roudinesco, 2003p. 134).
O objetivo de Chauí, ao levantar dúvidas sobre a “natureza”, “o instinto materno”, a
”liberdade” e a “ vontade” feminina, era o de sugerir que a forma e o conteúdo dessas
vivências nunca foram determinadas do interior, mas sempre do exterior. Nunca pelas
próprias mulheres, a partir de sua interioridade/exterioridade vividas e refletidas. De forma
que a transformação do ser “natural” para ser “de desejo” e finalmente para um sujeito “livre”
foi feita, de acordo com Chauí (1985), sob a forma de outorga da subjetividade às mulheres.
Assim, fica clara a “armadilha social” que denunciam Chauí (1985) e Beauvoir (1980).
Ou seja, não é possível obrigarmos uma mulher a assumir a maternidade. O que se pode fazer
é cercá-la por uma realidade em que tornar-se mãe é a única saída que lhe resta: os costumes
do casamento, a proibição dos anticoncepcionais, do aborto e do divórcio foram alguns dos
5
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em Palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
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artifícios utilizados para a construção desse cerco. Dessa forma, a mulher se vê sem
alternativas, a não ser cumprir com o seu papel imposto pela sociedade: ser mãe.
Por meio das concepções de Chauí (1984 e 1985) e Del Priori (2004), que são na sua
maioria corroboradas por Badinter (1985), Serrurrier (1993) e Forna (1999), entendemos que
o estilo de maternidade que herdamos hoje foi moldado em um determinado tempo da história
por necessidade e utilidade e, portanto, não é naturalmente nem instintivamente determinado
como nos é imposto crer. Diante dessas definições, o que poderíamos pensar de uma mulher
que não quer ter filhos? Ou de uma mulher com DPP? Seriam elas, mulheres normais ou
desviantes patológicas?
Desde a mais tenra infância, as meninas treinam o papel de mãe. Elas aprendem que
devem ser mães e são ensinadas e preparadas para os cuidados maternos: são vestidas com
roupinhas cor-de-rosa, ganham bonecas e lhes são retirados os carrinhos dos irmãos.
Aprendem que ser menina não é tão bom quanto ser menino, não se permite que fiquem
sujinhas, são desestimuladas ao sucesso escolar, e, resta-lhes tornarem-se mães (Chodorow,
1990). Essa preparação se dá em função da relevância da maternidade para a mulher no
processo de construção de sua identidade (Trindade, 1993; Del Priori, 1993); porque o modelo
tradicional, socialmente estabelecido, preconiza a necessidade da maternidade para a
concretização da identidade feminina: “cuidar, vestir, enfeitar, despir, voltar a vestir, ensinar,
ralhar um pouco.... todo o futuro das mulheres está nisso. Uma menininha sem boneca é quase
tão infeliz e impossível quanto uma mulher sem filhos” (Hugo citado por Roudinesco, 2003,
p. 134).
Neste papel, ela aprende que uma mulher deve ser capaz de enormes sacrifícios, ser
amável, tranqüila, compreensiva, terna, equilibrada, acolhedora, feminina, em tempo integral.
Constrói-se ao poucos e subliminarmente um ideal, um modelo de mãe perfeita, uma imagem
romanceada da maternidade alicerçada sob um rígido padrão, uma via de mão única, incapaz
de admitir a discussão acerca dos sentimentos ambivalentes, tão presentes nas mães.
Além das famílias, a Igreja ajudou muito nesta construção, pois foi muito eficiente no
marketing do ideal materno, que tem na Virgem Maria a figura inspiradora e modelo a ser
seguido pelas mulheres de todo o mundo. Ela é o símbolo do amor ablativo e se constitui num
eterno paradigma do feminino maternal. Este marketing foi de tal intensidade que Forna
(1999) aponta que, nos últimos dois mil anos, Maria é a figura feminina de maior impacto na
história ocidental e cuja influência repercutiu no melhor da literatura, da pintura, da escultura,
da música, bem como das artes como um todo. Dessa forma, durante os últimos séculos, o
mito da maternidade veio sendo moldado em conformidade com a idéia de que as mães
devem ser perfeitas como Maria - aquela que compreende os filhos, que dá amor total, que se
entrega totalmente, que é devotada, capaz de enormes sacrifícios. Ela deve ser fértil e ter
instinto maternal, sendo a única capaz de cuidar corretamente dos filhos, devendo incorporar
todas as qualidades tradicionalmente associadas à feminilidade: acolhimento, ternura e
intimidade. Assim, a condição inexorável que a mulher possui de ser procriadora atualmente é
concebida como sinônimo de amor incondicional aos filhos, como o que Maria tinha por
Jesus.
No entanto, alerta Forna (1999), o Menino Jesus nunca foi pintado chorando ou com a
cabeça caída para trás, nem Maria com uma aparência irritada ou cansada. Ninguém a retrata
preparando a papinha com uma das mãos e equilibrando o Menino Jesus no quadril com a
outra, tampouco fingindo que não ouve enquanto Ele esperneia ao seu lado. Ninguém jamais
45
pintou Maria nas tarefas prosaicas da maternidade: dando banho, alimentando, vestindo e
correndo atrás de Jesus. “Nossa Senhora e o Menino Jesus estão congelados na eternidade de
um momento relativamente raro da mãe com o bebê” (Forna, 1999, p.18).
Por outro lado, a mãe perfeita, inspirada em Maria, tal qual conhecemos hoje, com sua
propensão natural ao sacrifício, seu amor universal e instintivo pelos filhos e sua completa
satisfação nas tarefas da maternidade, não foi sempre assim! Ao contrário disso, ela teve seu
início de carreira em 1762, a partir da publicação de Émile pelo filósofo francês Jean-Jacques
Rousseau (Badinter, 1985) que, por meio de seus escritos, passou a criticar severamente as
mães de sua época por não priorizarem seus filhos, em detrimentos de seus interesses pessoais
ou conjugais. Serrurier (1993) afirma que é desde Émile que estamos condenadas a ser “boas
mães”. Entre os fatos, Rousseau levantou a questão das mães que enviavam os filhos para as
amas-de-leite (Maldonato, 2000). Segundo Forna (1999), Rousseau recomendava, neste
consagrado livro, que as mães amamentassem e criassem os filhos e as recriminava por darem
preferência a outros interesses.
Infelizmente, as teorias naturais de Rousseau sobre a educação de meninas tiveram
uma influência considerável nos séculos posteriores. Suas idéias se disseminaram e atraíram a
atenção popular, principalmente, porque atendia interesses sexistas das classes dominantes da
época. Segundo as autoras supracitadas, os dirigentes de todas as épocas que se seguiram
basearam-se nas idéias roussorianas para fazer leis, pois elas caminhavam justamente no
sentido de endossar o desejo de natalidade, e também de hierarquia entre os homens e as
mulheres, portanto, idéias sistematizadoras da ordem social. Ou seja, era uma discurso que
visava remediar a grande perda de seres humanos, bem como fazer com que a mulher fosse
ainda mais subordinada ao marido e ao lar, consolidando a imagem da maternidade como
sacerdócio (Badinter, 1985; Muszkat, 1994; Maldonato, 2000).
De Rousseau a Alain, passando por vários legisladores, pedagogos ou moralistas,
como Napoleão, Michelet ou Paul Combes, todos os dirigentes sociais repetiram,
reforçados por provas “naturais” essa verdade primeira: a mulher nasceu para ser
mãe e para se sacrificar por seus filhos; e até bem pouco tempo atrás, não havia
outra alternativa: a vocação materna era obrigatória! (Serrurier,1993, p.71)
Badinter (1985) refere-se a essa fase como sendo o início da injunção obrigatória do
amor materno. Ela nos conta que antes disso verificávamos a indiferença ou as
recomendações de frieza e de desinteresse pelo bebê. Houve períodos na história em que as
mulheres pareciam não se importar muito com os filhos. Um sintoma direto dessa ausência
46
era o abandono regular de bebês: em 1780 apenas mil dos 21 mil bebês nascidos em Paris
foram amamentados ao seio por suas mães... A autora sustenta que o abandono de bebês era
um fenômeno que ocorria em todas as classes sociais, sendo aceito e permitido pela
sociedade. Tais atitudes eram bem toleradas e ninguém condenava a mãe, por ela não
amamentar ao seio seus rebentos, ou por mandá-los para longe dela. Antes mesmo do parto,
as amas-de-leite, já eram providenciadas, pois a mulher precisava estar “liberada” para voltar
às suas “obrigações” de esposa. Nenhuma mãe “morria de culpa” por isso, e outras mulheres,
além da mãe, estavam incluídas “naturalmente” na maternidade e se mobilizavam para cuidar
e educar a criança. Era comum, portanto, mandar o filho recém-nascido para a casa da ama-
de-leite passando a mãe pouco tempo perto das crianças ou até mesmo mandando-as para
longe. Ademais, o infanticídio era usado como uma modalidade de planejamento familiar,
complementa Parker (1997).
Forna (1999) corrobora essas constatações de que a maternidade não tinha um status,
deveres ou pressupostos especiais. A mulher dava à luz e pronto! Não se presumia que ela
fosse amar o filho, não se esperava sequer que ela cuidasse do bebê.
Além desses dados históricos, Forna (1999) nos apresenta um argumento convincente
de que nem mesmo o processo de naturalização da maternidade tem respaldo na natureza.
Para ela, quem já testemunhou a cena de uma coelha em cativeiro comendo os próprios
filhotes pede licença para discordar. Os defensores do instinto maternal também ignoram as
leoas, soberbas caçadoras, que aliam o trabalho à maternidade enquanto o leão cuida da prole.
Ignoram a hiena matriarca que, como fêmea dominante, expulsa os machos do bando e é
sucedida pela filha. Também não consideram as muitas espécies de pássaros em que macho e
fêmea cuidam juntos dos filhotes e cujos acasalamento e rituais de namoro são comparados
por muitos biólogos aos hábitos humanos. Portanto, cuidar dos filhos não é algo nem
47
instintivo da mulher e nem restrito a ela. Os machos podem participar muito além do
momento da concepção e do provimento da espécie.
Assim, acreditamos que esta insistência em defender um certo estilo de maternidade
como “natural” e instintivo leva as mulheres de diferentes culturas e camadas sociais a
questionar cada aspecto do que fazem, pensam, sentem, e a avaliar sua própria experiência
segundo um padrão rígido e impossível. Entendemos que os mitos em torno da maternidade se
tornam armadilhas sedutoras, que prendem as mães da maneira mais cruel, controlando-as e
manipulando-as. Por isso, Forna (1999) considera uma mentira palpável e sem bases
científicas o fato de que a premência de ter filhos atinge todas as mulheres em determinado
momento, sem aviso e independentemente de qualquer processo intelectual. Diferente disso, a
autora acredita que é divulgado um evangelho de modo a intimidar as mulheres, inclusive as
que têm um sentimento ambivalente sobre ter filhos, a aderirem à instituição maternidade.
Veremos no próximo capítulo que, com um número crescente de mulheres entrando no
mercado de trabalho, “elas passaram a ter outras fontes tanto de alegrias como de
preocupações e sofrimentos, o binômio sofrimento-plenitude parece não estar mais associado
exclusivamente à maternidade” (Falcke & Wagner, 2000, p.7). É sobre este conflito que vive
a mãe da era contemporânea que passaremos a tratar no capítulo que se segue.
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CAPÍTULO 4
A MÃE CONTEMPORÂNEA: NOVA HISTÓRIA, VELHAS REPRESENTAÇÕES
Nós poderíamos ser muito melhores se
não quiséssemos ser tão bons
Sigmund Freud
Nas últimas décadas, temos assistido ao fato de que valores e crenças sobre a
masculinidade e feminilidade, supostamente cristalizados, passaram a ser questionados e
desconstruídos, sobretudo pelas mulheres, na intenção de se estabelecerem relações mais
igualitárias. Segundo Almeida e Ribeiro (2003), Diniz (1999) e Castells (1999), uma das
conseqüências deste confronto é a progressiva desconstrução do modelo clássico e
hegemônico do masculino e do feminino, bem como o reconhecimento da complexidade que
envolve a construção das identidades sexuais no âmbito da relações sociais.
Para Castells (1999), três fatores são essenciais para justificar essas redefinições do
lugar do papel da mulher na sociedade, a saber: a) a entrada maciça de mulheres no mercado
de trabalho remunerado; b) a invenção e o acesso à pílula anticoncepcional, quando a mulher
passou a poder controlar a natalidade6 e c) o impacto dos movimentos feministas, que
contribuiu para as transformações nas relações de trabalho, na família e na sociedade como
um todo, propiciando redefinições nas relações entre pais e filhos, maridos e esposas, e do
próprio significado de “ser homem” e “ser mulher”.
Esses fatores aparecem como fundamentais na definição dos papéis e das identidades
sociais, entre eles os de pai e mãe. Sabe-se que o sentimento de uma mãe face à condição
materna é fortemente determinado pelas representações culturais de maternidade (Parker,
1997), pois, “a apropriação de uma prática social (como a maternagem) depende de que esta
apareça para o indivíduo como aceitável no contexto de seu sistema de valores (...) e estas
normas e valores são um dos constituintes das representações sociais” (Abric, 1994, citado
por Trindade, 1998, p. 200). Nesse sentido, buscaremos resgatar algumas concepções sócio-
históricas ao desenvolvimento da maternidade que começam a tomar corpo na luta feminista.
Os movimentos feministas contribuíram de forma significativa para a transformação
dos valores e práticas sociais nas relações de gênero. O movimento passou a ser identificado
pelo seu esforço histórico, individual e coletivo, formal e informal, de se opor à subjugação da
mulher ao homem. Nesse esforço, Scott (1990) nos mostra que as historiadoras feministas
têm-se utilizado de três posições teóricas para a análise do gênero: origens do patriarcado,
tradição marxista e as escolas de psicanálise.
As teóricas do patriarcado dão ênfase à subordinação das mulheres em função da
necessidade masculina de dominá-las. Algumas autoras elegeram a questão da reprodução
como ponto chave, enquanto para outras a resposta encontrava-se na sexualidade em si
mesma. No patriarcado, as diferenças entre homens e mulheres é questionada de diversas
maneiras importantes, mas, para Scott (1990), há reservas com relação a esta teoria.
Em primeiro lugar, para esta autora, as teorias contra o patriarcado não aprofundam
em como as desigualdades de gênero estruturam ou afetam os diversos âmbitos da vida em
sociedade. O segundo problema é que a análise limita-se à diferença física inata, o que
pressupõe a exclusão de uma construção social ou cultural do sexo e, conseqüentemente, a
não historicidade do gênero em si mesmo.
6
Roudinesco (2003) também refere-se ao controle da fecundação como um marco que abalou a dominação
ancestral do masculino sobre o feminino.
49
Já as feministas marxistas têm uma abordagem mais histórica. Scott (1990) nos
mostra que para as teóricas do marxismo a causalidade econômica torna-se prioritária e o
patriarcado está sempre se desenvolvendo e mudando em função das relações de produção.
Assim, as teóricas feministas marxistas chegaram a alguns impasses: rejeição de que as
exigências da reprodução biológica determinam a divisão sexual do trabalho sob o
capitalismo; sistemas econômicos não determinam de maneira direta as relações de gênero;
busca de uma explicação materialista que exclua as diferenças físicas naturais. A crítica de
Scott (1990) a essa abordagem é que o conceito de gênero foi tratado como um sub-produto
das estruturas econômicas, não tendo seu próprio estatuto de categoria de análise.
Na perspectiva psicanalítica, Scott (1990) destaca duas escolas: A Escola Anglo-
americana, com destaque para Nancy Chodorow, e a Escola Francesa, de Jaques Lacan.
Segundo ela, essas duas escolas consideram o processo de criação da identidade do sujeito.
Ambas centram a atenção nas primeiras etapas do desenvolvimento da criança, a fim de
encontrar indicações sobre a formação da identidade de gênero. Para Scott (1990), as
feministas foram atraídas por estas teorias na tentativa de provar e explicar suas
interpretações, mas, nenhuma delas foi inteiramente utilizável pelas historiadoras.
Em primeiro lugar, porque a teoria de relações de objeto limita o conceito de gênero à
esfera da família nuclear e ao ambiente doméstico e, para o historiador, ela não deixa meios
de ligar este conceito a outros sistemas sócio-econômico-políticos, ou de poder mais amplos.
Em segundo lugar, há ausência de problematização sobre a questão da desigualdade; há uma
associação persistente da masculinidade com o poder; há uma desconsideração aos sistemas
simbólicos e, conseqüentemente, uma desconsideração quanto aos modos como as sociedades
representam o gênero. Assim, as categorias “masculino” e “feminino” não são características
inerentes, mas construções subjetivas, o que as tornam problemáticas, pois o sujeito é um
constante processo em construção. Essa posição contribui, portanto, para perpetuar a oposição
masculino-feminino como única relação possível, mas por esta via torna-se impossível de
solucionar, pois a diferença entre homens e mulheres faz parte da condição humana.
Para Almeida e Ribeiro (2003), todo o esforço das feministas serviu para que, a partir
do material cultural disponível na época, elas construíssem uma nova identidade, capaz de
redefinir a posição da mulher na sociedade, e como conseqüência, acabaram transformando a
estrutura de toda a sociedade. Ademais, Diniz (1999) acrescenta que o movimento feminista
levantou um importante questionamento sobre a diferenciação entre sexo e gênero e suas
implicações, para compreender a inserção da mulher no mundo. Assim, abordando-se a
condição feminina com a lente de gênero, pode-se ampliar o conhecimento sobre variáveis
que afetam a saúde da mulher, especialmente a sua saúde mental.
A partir desse momento, o termo gênero passa a ser empregado para designar
comportamentos, papéis e padrões de expectativas para homens e mulheres, elementos que
são construídos dentro de um contexto cultural, e não dados naturalmente, como ainda hoje é
percebido. Essa informação é corroborada por Scott (1990), que também afirma que as
feministas referiam-se ao gênero para indicar uma rejeição ao determinismo biológico das
diferenças entre os sexos, ainda impregnado no uso do termo, como também para introduzir a
noção relacional entre homens e mulheres. Nesse sentido, esta teoria se congrega à teoria da
subjetividade de González Rey (2005a) que também rejeita a concepção naturalística do
homem.
Nos termos que propõe Scott (1990), o gênero transcende o biológico para
transformar-se numa maneira de explicar construções sociais das identidades subjetivas de
homens e de mulheres. O gênero é uma construção social que se desenvolve a partir de uma
50
mediação complexa que se estabelece entre o ser humano e a cultura na qual está inserido. A
identidade masculina e feminina concretiza-se na educação dos pais e familiares, na vida em
sociedade e por meio da institucionalização, instâncias que transmitem a noção do que é
apropriado para cada sexo em questões como temperamento, papel, interesse, caráter e valor.
Nessa perspectiva, gênero “ é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (Scott,
1990, p.7), porém não existe uma ligação direta entre sexo e papéis sexuais, pois o termo
gênero põe a ênfase sobre um sistema de relações mais amplo que pode incluir o sexo.
Foi através deste novo olhar – o da psicologia do gênero - que percebi que o
incômodo que sinto há anos, sobretudo depois da experiência da maternidade, já foi e
continua sendo alvo de discussões e questionamento de várias mulheres e homens no meio
científico-acadêmico. Essa perspectiva, na minha opinião, se mostrou uma grande “saída”
para todos os séculos de opressões e de doutrinamento da mulher. Este novo ângulo de
análise abre a possibilidade de desconstrução da universalidade das categorias homem e
mulher, associadas a construções binárias baseadas em estereótipos sobre o que é feminino e
o que é masculino, ou associam poder e dominação ao masculino e obediência e submissão ao
feminino. Sendo assim, a grande saída, a meu ver, parece ser: se foi construído, então pode ser
desconstruído e conseqüentemente transformado!
Dessa forma, é possível pensarmos na possibilidade de diferentes processos de
subjetivação e singularização vivenciados por homens e mulheres. Até mesmo, questões que
eram para mim impensáveis, como questionar o conceito de sexo biológico. Tudo isso, a
partir de um o olhar da categoria de gênero. Este conceito que apresenta a concepção de
muitos fenômenos que considerados como natural, dado, automático, na verdade foi
construído ao longo dos séculos, em função de interesses dominantes, nos quais a mulher
raramente foi consultada (Chauí, 1985).
Há algum tempo, observa-se que as mulheres de hoje não são mais criadas somente
para contrair um bom casamento e criar filhos. Ou seja, a ênfase da educação feminina não
está mais no papel materno, mas sim na preparação delas para enfrentar o mercado de
trabalho. Sobretudo nas classes sociais mais favorecidas (Durham, 1983), elas são criadas
para serem boas profissionais e terem seus próprios sustento. Essa mudança de foco
educacional fez com que as mães não mais criassem suas filhas somente para exercerem
exclusivamente o papel de mães.
Como visto no capítulo anterior, não há dúvidas de que a inserção da mulher no
mercado de trabalho, contribuindo para o declínio do sistema patriarcal e minando a
hegemonia masculina, provocou e continua a provocar muitas transformações nas relações
conjugais e familiares atuais. Roudinesco (2003) nos mostra que hoje existe uma diversidade
tão grande de tipos familiares – desconstruída, recomposta, monoparental, homoparental,
clonada, gerada artificialmente - que a família ocidental de hoje está sujeita a uma grande
desordem. Hoje, as mulheres podem dominar a procriação, os homossexuais podem
participar do processo de filiação e o pai, não é mais o pai–patriarcal. Ele está assumindo um
papel “maternalizante” (Roudinesco, 2003, p. 179), ao aumentar gradativamente o seu
envolvimento masculino nos trabalhos domésticos. A vida definitivamente mudou!
Na verdade, na visão Roudinesco (2003) assistimos a um empoderamento de uma
camada de mães que, além de serem detentoras da ordem procriadora, têm ainda o poder de
designar ou de excluir o pai de seu filho. Mesmo com a presença do pai em casa, é ela quem
continua tendo as maiores responsabilidades de controlar, educar e criar os filhos. Resta-nos
saber se este empoderamento apontado por Roudinesco (2003) tem trazido de fato mais poder,
ou mais carga de trabalho e responsabilidades para a mulher.
51
Portanto, apesar deste novo contexto, o mito social relativo ao papel feminino
demonstra-se preponderante (Falcke & Wagner, 2000). O pai continua sendo sempre
mencionado, reverenciado e merecedor dos louros da família. Ainda sobrevive a cultura de
que a última palavra é a sua (Tiba, 2002). O conceito de maternidade e as responsabilidades
desta função continuam baseados em um modelo rígido e antigo, que parece resistir
bravamente às mudanças no mundo pós-patriarcal. Dessa vez, recorremos à Rocha-Coutinho
(1994):
Ainda hoje, por trás de discursos e à margem de declarações oficiais, se ouve a
opinião de que o lar e a educação dos filhos sempre foram e devem continuar sendo
atribuições das mulheres e que, devido à sua constituição física e espiritual, as
mulheres devem ser afastadas do trabalho físico pesado, bem como das atividades
que lhes exigem muito intelectualmente" (p.42).
Nessa vertente, Trindade (1993) afirma que a manutenção dos efeitos da socialização
diferenciada entre meninos e meninas continua sustentando a divisão tradicional de papéis: a
continuidade da maternidade como condição estruturante da identidade feminina e do sucesso
profissional como uma necessidade para a construção da identidade masculina. Isso tem
contribuído significativamente para a manutenção das concepções arcaicas da maternidade e
da paternidade, apesar das transformações já visíveis na relação dos homens com a
paternidade.
O estudo de Falcke e Wagner (2000) confirma essa percepção. Neste, pôde-se
demonstrar que as mulheres, tanto mães quanto madrastas, ainda trazem um forte legado
transgeracional relacionado ao estereótipo de gênero, ainda que muitas mudanças sociais
venham ocorrendo nesses últimos tempos. Neste caso, pode-se perceber a força e o poder do
mito da maternidade perfeita como uma idéia muito presente, ao qual as mulheres respondem
de forma quase automática.
52
Neste processo, é imperioso reconhecer então que, apesar das intensas e progressivas
mudanças que vêm ocorrendo no sistema patriarcal - mudanças com relação à divisão no
trabalho, com relação à estrutura das famílias, do papel da mulher, brilhantemente comentadas
por Castells (1999), a atitude em relação às mulheres pouco mudou (Rocha-Coutinho, 1994).
A participação no trabalho remunerado não mudou o fato de que, quando estão em casa, cabe
às mulheres a responsabilidade quase total pelos filhos (Chodorow, 1990). Ou seja, flashes
capturados do cotidiano das famílias mostram que o mundo mudou, mas nem tanto assim!
Esta constatação é muito bem expressa nas palavras de Forna (1999), com a qual
somos obrigadas a concordar: “Apesar das mudanças no trabalho e na vida da família de
milhões de mulheres, apesar de falar numa era de pós- feminismo, a atitude em relação às
mães continua colada na idade das trevas”(p.78). Enfim, continuamos a viver numa sociedade
machista.
Para pensar esta contradição, podemos recorrer também a Chodorow (1994, citado por
Castells, 1999), que discorrendo sobre esta manutenção dos papéis sociais nos faz um alerta:
Mulheres, na qualidade de mães, geram filhas com capacidade maternal e o desejo
de elas próprias tornarem-se mães (...) em contrapartida, as mulheres como mães (e
os homens como não mães) geram filhos homens cuja capacidade e necessidade de
criar filhos têm sido sistematicamente reduzidas e reprimidas. Este fato prepara os
homens para sua função considerada primordial, a participação no mundo impessoal
e extra-familiar representado pelo trabalho e pela vida pública.” (p. 265)
Durham (1983) argumenta que, para responder a essas questões, é necessário analisar
em que medida as variações familiares existentes correspondem a adaptações ou extensões do
modelo hegemônico, ou até que ponto implicam em sua contestação. Para essa análise, porém,
é necessário distinguir o significado da família para as diferentes classes sociais. Segundo
interpreta esta autora, para as classes populares, o aumento de famílias matrifocais, sem
provedor masculino estável, "podem ser antes uma demonstração da impossibilidade de
organizar a existência em termos mínimos aceitáveis do que, na verdade, um modelo
alternativo de família" (Durham, 1983, p. 34). Na medida em que se preserva a tradicional
divisão sexual do trabalho - pai-provedor e mãe-doméstica - mesmo em lares onde as
mulheres contribuem para o sustento familiar, "exceções ao modelo, mesmo freqüentes, não
significam necessariamente nem sua contestação nem a emergência de modelos alternativos"
(1983, p. 35).
Ao considerar pois, que a mãe e/ou outras mulheres da família têm tido a
responsabilidade maior na educação das crianças e que, portanto, seu papel na transmissão de
princípios e valores é muito importante, verificamos que, na realidade, é a mulher quem tem
se encarregado da reprodução de representações que a inferiorizam e oprimem. Então, as
atuais avós, apesar de criarem suas filhas para o mercado de trabalho, continuam cobrando
delas a “velha” maternidade e netos. Este legado transgeracional é evidenciado por Chodorow
(1990), ao constatar que ainda hoje a maioria das mulheres continua a maternar, a se casar e a
violência contra elas não está diminuindo.
Acontece, porém, que até há alguns anos atrás, quando as famílias eram mais
numerosas, era comum a filha mais velha cuidar do irmão mais novo. Dessa forma, quando
tinham seus próprios filhos, sentiam-se mais capacitadas e seguras em assumi-los. Hoje em
dia, é mais difícil passar por esta experiência, já que em muitas famílias o número de filhos
tem diminuído consideravelmente e seus membros saem para trabalhar. Assim, à medida que
as famílias se tornam menores, os filhos não têm a oportunidade de adquirir conhecimentos
tratando dos irmãos mais novos; deste modo somente, quando se tornam pais, percebem que
desconheciam por completo o que na realidade significa ser pai e mãe.
Nos cursos pré-natais, as futuras mães dizem muitas vezes que nunca pegaram um
bebê no colo, nunca viram uma criança recém-nascida, nem tiveram oportunidade de observar
53
de perto uma mãe tratar do bebê. “Não há lição de puericultura ou aulas práticas com uma
boneca de borracha numa banheira que possam suprir esta lacuna.”, afirma categoricamente
Kitizinger (1978, p.44). Mesmo diante dessas lacunas, continuamos a cobrar das mulheres o
“velho modelo de mãe”; porém, as mulheres de hoje já não são preparadas, não sabem e nem
querem cuidar de seus bebês como suas mães faziam.
Obviamente, é importante relativizar esta afirmação, visto que não podemos
generalizá-la a todas as mulheres e de todas as culturas, camadas sociais, afiliação religiosa,
meio urbano ou rural, sobretudo porque esses fenômenos são observados prioritariamente nas
famílias burguesas, de acordo com Durham (1983). Certamente, há na diversidade do mundo
feminino muitas mulheres que ainda se encaixam neste antigo modelo.
Há ainda outro importante elemento a ser considerado na constelação que sustenta a
maternidade na era contemporânea: a supervalorização dos filhos. O controle da
natalidade,fez com que, a partir dos anos 70 do século XX, a cultura do filho único se
propagasse. Nesse contexto, um filho passou a ser considerado uma nova espécie de riqueza,
o que, por sua vez difere da situação da família que atuava como uma unidade econômica,
como acontecia no século XVIII, quando em contextos rurais, todos fossem jovens ou velhos
eram considerados mão de obra e a sobrevivência da família dependia do trabalho de todos os
seus membros (Kitzinger, 1978; Tiba, 2002). Assim, um filho era “apenas mais um” e não
tinha um lugar de destaque.
Até o século XVIII, inclusive a infância era curta e dura. A relação mãe-filho, tão
exaltada nos tempos modernos, mal existia. Em Centuries of childhood, o historiador Philippe
Ariès (citado por Forna, 1999) fala que a “idéia de infância” era alguma coisa que
simplesmente não existia, um conceito estranho à sociedade. A criança nascia e, se
sobrevivesse, recebia apenas o sustento que se julgava necessário e muito pouca atenção.
Então, “sem a existência da infância, impõe-se à razão que o estado interdependente da
maternidade também não existia” (Forna, 1999, p. 36).
Hoje, um filho tem um “valor de uma jóia rara!” (Tiba, 2002, p.48). Na nossa cultura
da América, o planejamento é para no máximo dois filhos, nas classes mais favorecidas,
afirma Tiba (2002). Kitizinger (1978) também nos fala que a educação de dois ou, quando
muito, de três filhos tornou-se a função principal da família moderna. Nasce assim, uma
riqueza instintual, idealizada para garantir a conservação da espécie, e espiritual, como
realização humana. As crianças passaram a ser supervalorizadas, tanto pelo Estado como pela
família. Há quem afirme inclusive, que estaríamos vivendo na era do Filiarcado (Grunstun, &
Grunstun, 1984).
No que tange a psicologia, vários autores, como Badinter (1985), Chodorow (1990),
Maldonato, Dickstein e Nahoum (2000), apontam que a preocupação com os problemas
emocionais das crianças é disseminada a partir das influências da teoria psicanalítica
desenvolvida por Freud. É a partir deste autor que os filhos passam a ser reconhecidos como
seres humanos dotados de desejos e necessidades emocionais; e à mãe recai a principal
responsabilidade no seu desenvolvimento equilibrado e saudável. A psicanálise argumenta
que a presença física da mãe é fator decisivo para o desenvolvimento adequado da saúde
mental dos filhos.
Na psicanálise, postula-se que a mãe é o objeto primário de amor para homens e
mulheres. A mãe é responsável pela diferenciação do filho e pela futura identificação, já que o
bebê nasce em um estado de simbiose com a figura materna. A esta figura cabe suprir o amor
e as necessidades da criança. Assim, a mulher continua sendo concebida como ser destinado a
parir e amar o filho que recebe. A maternidade continua sendo designada como uma graça
recebida de Deus.
A partir das distinções feitas por Freud autor para a superação do complexo de Édipo,
fenômeno estruturador da personalidade humana, aponta as dificuldades femininas no que diz
54
Em outras palavras, poderíamos afirmar que a mulher saiu para o mercado de trabalho
sem contudo deixar de ser mãe e nem por isso, os homens se tornaram mais pais. Só
recentemente alguns começaram a participar mais ativamente da educação dos filhos. Por
outro lado, tanto homens quanto mulheres estão enfraquecidos no exercício de suas funções.
As mulheres estão confusas, desejam ter sua independência financeira, ter sucesso
profissional, serem boas amantes, serem belas, sexualmente atraentes, e continuam tendo que
atender a expectativa do mito da mãe perfeita, exigência que implica em tempo e
disponibilidade (Catão, 2001)7.
Diante desse quadro, Maldonato (2000) também chama atenção para esta tendência em
culpar a mulher - um aspecto importante da mentalidade higiênica e na história da medicina,
sobretudo no Brasil. A mãe do século XVIII era a auxiliar dos médicos; no século XIX,
colaboradora dos religiosos e dos professores. Já no século XX, assume outra
responsabilidade – a de cuidar do inconsciente e da saúde emocional dos filhos. A mãe se vê,
atualmente, diante de uma superabundância de conselhos, freqüentemente conflitantes, para
educar seus filhos. Normalmente, os conselhos são sempre apresentados como “o melhor para
o bebê”, ficando a mãe em segundo plano. Em função das necessidades do filho, tudo deve ser
sublimado e adiado. Roudinesco (2003, p. 146) definiu esse fenômeno como “um fosso
irreversível que parece ter se cavado entre o desejo de feminilidade e o desejo de maternidade,
entre o desejo de gozar e o dever de procriar”. A conseqüência disto, diz Forna (1999), é que
as mães se transformaram em verdadeiros “trapezistas de circo”, voando sem rede de
segurança, sem poder se dar ao luxo de um único erro, sob pena de sentirem a famosa “culpa
materna”.
Frente a tudo o que foi exposto no referencial teórico deste escrito até o momento,
podemos concluir que, revendo a condição de vida das mulheres sob uma ótica histórica,
essas têm sido subalternas, inferiorizadas e pressionadas por uma sociedade que sempre
exigiu delas muitos deveres e obrigações e quase nenhum direito. Entre essas exigências,
espera-se que a mulher goze de boa saúde para procriar, seja sexualmente ativa e disponível,
gere filhos sadios e que, mesmo sem apoio para realizar as tarefas que lhes são atribuídas,
ainda amamente, cuide, proteja, alimente e eduque os filhos, sem reclamações e comportando-
se de maneira terna, compreensiva e sedutora (Nogueira, 2004). Qual seria, então, o papel da
DPP neste contexto histórico-social? Impelidos a compreender esta questão, passaremos a
apresentar os passos para a construção do seu estudo, no capítulo seguinte.
7
Comunicação pessoal no seminário: “Importância da primeira infância para a saúde mental do indivíduo no IV Encontro
Nacional sobre o Bebê”, ocorrida no dia 30 de novembro de 2001 - mesa redonda, em Brasília, DF.
56
CAPÍTULO 5
A CONSTRUÇÃO DO ESTUDO
“Científico não é o que foi verificado,
mas o que se mantém discutível”
Pedro Demo
Horizontes pós-modernos nos sinalizam que a realidade se revela cada vez mais
complexa e, por isto, não se acredita mais que a ciência possa ser dissociada nem do cientista
e nem da sociedade, tanto porque é a ciência o produto da comunidade de pesquisadores que
estão sempre inseridos em culturas determinadas e determinantes (González Rey, 2005a).
Observa-se uma rápida disseminação de pesquisas qualitativas que demonstram a
necessidade de surgimento de novas formas de aproximação do real, a partir de um novo
57
modo de conceber a realidade e a pesquisa (Lüdke & André, 1998, Alves-Mazzotti &
Geeandsznajder, 2004). Apesar da crescente popularidade dessas metodologias, ainda parece
existir muitas dúvidas sobre o que realmente caracteriza uma pesquisa qualitativa, quando é
adequado ou não utilizá-la e como se coloca a questão do rigor científico nesse tipo de
investigação (Lüdke & André, 1998; Britos & Leonardos, 2001).
É necessário esclarecer que tanto o método quantitativo quanto o método qualitativo
têm recebido críticas da comunidade científica. O primeiro, por ser considerado limitado
demais para ser utilizado em pesquisas que buscam apreender a subjetividade do sujeito. O
segundo método tem sido criticado pela sua impossibilidade de ser replicado, e seus
resultados dificilmente observáveis (Ghiglione & Richard, 1994; Alves-Mazzotti &
Geeandsznajder, 2004).
Aparentemente, os resultados obtidos através do método quantitativo são mais
objetivos, precisos e replicáveis, mas também podem ser estéreis e inoperantes, fornecendo
pouco respaldo para uma compreensão global dos processos psicológicos intervenientes.
Geralmente, seus resultados não são suficientes para explicar as percepções, emoções e
experiências das pessoas, tendo em vista que a subjetividade não pode ser reduzida às diversas
escalas psicométricas amplamente utilizadas neste método (Ghiglione & Richard, 1994;
Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004).
O método quantitativo é mais usado em pesquisas objetivas, realistas e validadas,
realizando correlações entre variáveis, cujas hipóteses são testadas experimentalmente. Já o
método qualitativo visa a exploração e o entendimento de questões que afetam a vida das
pessoas e de suas vivências. É mais flexível e adaptável. Estuda a vida humana como
acontece: “a pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o
pesquisador como seu principal instrumento” (Lüdke & André, 1998, p. 11). Para Ghiglione e
Richard (1994), este método está relacionado à descrição do sujeito na sua singularidade e
também na sua totalidade, reconhecendo as múltiplas referências, a globalidade e
complexidade do seu objeto.
Por outro lado, adeptos do método quantitativo afirmam que as pesquisas qualitativas
realizadas sob a égide dos pressupostos do método qualitativo “não passam de uma versão
mais leve e menos fidedigna da real thing da qual são feito os bons estudos quantitativos”
(Eisner & Peshkin, 1990, citado por Brito & Leonardos, 2001). González Rey (2002, 2005a)
corrobora esta idéia afirmando que muitos estudos que se dizem qualitativos, na verdade,
seguem uma metodologia quantitativa, disfarçado pelo uso de instrumentos
qualitativos/projetivos que encobrem uma maneira positivista de fazer ciência. Para este autor,
a diferença entre qualitativo e quantitativo é, portanto, epistemológica e não metodológica.
Na verdade, alguns autores como Brito e Leonardos (2001) afirmam que há um
“pseudo–embate” entre os paradigmas anteriormente citados. Observa-se uma pressa em
definir um novo paradigma que, na opinião dessas autoras, revela uma grande contradição
existente nas metodologias qualitativas. Para elas, tanto a preocupação dos pesquisadores da
linha subjetivista-construtivista-interpretativa em definir critérios de rigor e medidas de
qualidade, quanto a tendência convergente de definir rapidamente um novo paradigma para as
pesquisas qualitativas revelam que “sonho cartesiano da certeza” (p. 7) também habita a
mente destes pesquisadores pós-modernos. Isto sugere a presença de resquícios da
metodologia quantitativa (González Rey, 2002). Para alcançar uma visão complexa da
realidade, não podemos nos fechar em um paradigma, afirmam Brito e Leonardos (2001).
Demo (2001) é outro autor que enriquece este debate, demonstrando um
posicionamento mais flexível e crítico. Para ele, apesar dos abusos, não podemos negar o
quanto a ciência avançou por meio do método lógico-experimental. Sua grande vantagem
está em poder ser replicado por quem duvide ou queira refazer o mesmo percurso, o que não
se aplica com a mesma facilidade no método qualitativo. Por outro lado, Demo (2001)
58
também reconhece o que ele classifica como “os exageros da crítica pós-moderna” a este
método, sobretudo por suas próprias contradições da crítica, ao ser “muito pouco auto crítica
das meta-narrativas circulares, da fragmentação cômoda de todas as teorias e respectivo
relativismo, bem como de um posicionamento iconoclasta fácil de quem ainda tem menos a
oferecer” (Demo, 2001, p. 9). Ele também reconhece que na perspectiva científica pós-
moderna há tópicos muito coerentes que revelam uma tessitura complexa e não linear da
realidade, inclusive da realidade natural, tão necessárias à abordagem adequada do fenômeno
humano.
Em função dessas contradições, Brito e Leonardos (2001) chamam atenção para a
necessidade de uma atitude cautelosa diante de tantas e tão rápidas transformações no campo
científico.As autoras apresentam uma avaliação realística e, ao nosso ver, bastante pertinente
quanto a este momento histórico da ciência, alertando para a precocidade em se afirmar um
novo paradigma para o campo das ciências sociais e humanas, que lhes parece muito mais um
embate pelo poder no meio científico e uma estratégia para silenciar um debate profícuo sobre
pressupostos e princípios de uma campo promissor e ainda em construção. O próprio Morin
(2003) reconhece que sua teoria da complexidade “permanece ainda, com certeza, uma noção
ampla, leve, que guarda a incapacidade de definir e de determinar” (p.8).
Através da sua teoria da complexidade, Morin (2003) critica o paradigma clássico, pois,
para ele, a ciência é intrínseca, histórica, sociológica e eticamente complexa. E enfrentar a
complexidade do real significa confrontar-se com os paradoxos: da ordem/desordem, da
parte/todo, do singular/geral, incorporar o acaso e particular como componentes da análise
científica. É também colocar-se diante do tempo e do fenômeno, integrando a natureza
singular e processual do mundo à sua natureza acidental e factual (Morin, 2003; Alves-
Mazzotti & Geeandsznajder, 2004).
A contribuição de Morin é particularmente importante para as ciências sociais, vistas
por muito tempo como impossibilitadas de apreender a complexidade dos fenômenos
humanos para elevar-se à dignidade das ciências naturais (Lüdke & André, 1998; Figueiredo
& Santi, 1999; Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004). Fatores não materiais que não
fossem suscetíveis de serem medidos experimentalmente nos laboratórios foram considerados
“epifenômenos” sem impacto sobre o organismo e, portanto, ficavam fora das investigações
científicas (Figueiredo & Santi, 1999). Qualquer epistemologia que transcendesse a análise
metodológica dos procedimentos científicos imposta pelo positivismo passaria a ser julgada
como extravagante e sem significado (Chiattone, 2000). Por essa razão, inicialmente, as idéias
de Morin foram severamente criticadas pela comunidade científica. Ele foi duramente
contestado, incompreendido e marginalizado por muito tempo; e, hoje, é amplamente
reconhecido no campo das ciências humanas e sociais.
Neste contexto, concordo com Brito e Leonardos (2001) que talvez ainda seja cedo e
pouco produtivo legitimarmos um novo paradigma para as ciências. A permanência neste
estado pré-paradigmático que, na realidade, é onde nos encontramos, parece ser necessário
para um amadurecimento da pesquisa qualitativa e uma oportunidade para que não
retrocedamos e tomemos o mesmo caminho clássico. Talvez fosse mais apropriado falarmos
de “transição de paradigmas”, como faz Neubern (2004) ao nos convidar a transitar entre o
incerto, o fugaz, entre o que escapa aos dedos da “mão positivista” que carregava a “certeza
racionalista” e os parâmetros claros que buscavam assegurar a verdade. A este respeito, vale
à pena retomar algumas palavras de Morin, sobre sua própria teoria:
Se a reforma do pensamento científico não chegou ainda ao núcleo paradigmático
em que Ordem, desordem e Organização constituem as noções diretrizes que deixam
de se excluir tornam dialogicamente inseparáveis (permanecendo, entretanto
antagônicas), se a noção de caos, ainda não é concebida como fonte indistinta de
ordem, de desordem e de organização, se a identidade complexa do caos e cosmo,
que indiquei no termo caosmo, ainda não foi concebida, só nos resta começar a nos
59
engajar, aqui e ali, no caminho que conduz à reforma do pensamento. (...) Trata-se,
enfim e sobretudo, de transformar o conhecimento da complexidade em pensamento
da complexidade” (Morin, 2001, p. 8).
Todo este embate científico apresentado anteriormente também teve grande impacto
nas ciências psicológicas. Na verdade, “a psicologia tornou-se possível como ciência
independente, no bojo desta crise” (Figueiredo & Santi, 1999, p. 84). Ainda hoje, a psicologia
é alvo de críticas pelo estágio pré-paradigmático em que se encontra, pois a maioria de seus
membros, não consegue estabelecer um consenso acerca de questões teóricas e
metodológicas. O conhecimento permanece especializado e cada grupo adere à sua própria
orientação teórica e metodológica (Chiattone, 2000).
A pesquisa em psicologia exige a compreensão de processos não acessíveis à
experiência objetiva, o que implica considerar o fenômeno em toda a sua complexidade de
inter-relações, afirma González Rey (1992, 1993, 1995, 1997, 1999, 2001, 2002, 2005b).
Esta tomada de consciência acerca da complexidade dos fenômenos psicológicos, da sua
multideterminação e da possibilidade de múltiplos níveis de descrição e intervenção fez com
que parte da psicologia também se apoiasse nas formas alternativas de fazer ciência. Para
algumas de suas linhas teóricas e de pesquisa, o objeto de estudo da psicologia é a experiência
subjetiva do homem, e este só pode ser tratado cientificamente se for de alguma forma
ampliado o conceito atual de ciência, superando o paradigma positivista.
Vários projetos vieram em contraposição à concepção reducionista da psicologia,
como o comportamentalismo ou o Behaviorismo Radical de Skinner, ainda que tenham
sofrido com o rótulo de “não-científico”. Entre eles, podemos citar as Psicologias humanistas
e a psicanálise, que até hoje sofrem com a estigmatização, por não atenderem aos critérios
positivistas. Apesar disso, cabe lembrar as palavras de Figueiredo e Santi (2001, p. 63) ao
lamentar que “os projetos de psicologia mais interessantes são os que mais dificuldade têm de
se afirmar plenamente em termos epistemológicos e metodológicos”.
Neste cenário de transformações no pensamento científico da psicologia, destacamos
as contribuições de González Rey através da sua construção teórica denominada inicialmente
de Epistemologia Qualitativa (1992, 1993, 1995, 1997, 1999, 2001, 2002, 2005a) e, mais
recentemente, de Teoria da Subjetividade de González Rey (2005a). Este teórico é atualmente
um dos expoentes do “grupo alternativo” (Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004, p. 129),
que se inscreve no esforço de diferentes psicólogos, tanto no Brasil quanto no exterior, de
produzir formas de conhecimento alternativas ao empirismo, que caracterizou boa parte da
produção do conhecimento em psicologia. Ele defende uma nova forma de fazer ciência
psicológica, propondo-se a “traduzir” os revolucionários princípios iniciados pela teoria da
complexidade de Morin para o campo da psicologia; assim, como também se propõe Neubern
(2004), ao inserir os desafios epistemológicos da teoria da complexidade para a prática da
psicologia clínica.
É precisamente nesta compreensão complexa do funcionamento psicológico humano e
na teoria elaborada para sua construção que vemos a Teoria da Subjetividade de González
Rey como uma forma por meio da qual o paradigma da complexidade se expressa na
60
psicologia. A apreciação de Martínez (2005) a esee respeito nos dá conta de que a teoria da
Subjetividade de González Rey constitui uma “expressão do paradigma da complexidade na
psicologia, cuja gênese se encontra no pensamento dialético, expresso no enfoque histórico-
cultural do psiquismo humano” (p. 9).
De acordo com Martínez (2005) foi o próprio processo de desenvolvimento da sua
Teoria da Subjetividade, que fez com que González Rey atentasse para a necessidade
epistemológica e metodológica de procurar novos caminhos para a produção de
conhecimentos sobre a subjetividade, sem abrir mão de considerar a complexidade de
compreensão do psicológico. Por isso, foi necessário o seu profundo mergulho na produção e
nos debates filosóficos e epsitemológicos contemporâneos, quando encontrou o paradigma da
complexidade tal como formulado na atualidade. Deste encontro, nasceu a Epistemologia
Qualitativa, sua proposta epistemológica e metodológica para compreender e estudar a
subjetividade humana.
Precisamente, com a publicação de seu livro Epistemologia Cualitativa y Subjetividad,
em 1997, González Rey discute a questão do qualitativo e da subjetividade de forma
explícita, como num marco epistemológico. Este é estreitamente associado com um
posicionamento epistemológico orientado por uma compreensão histórico-cultural da
subjetividade, desenvolvida desde uma perspectiva dialética e complexa. Nas suas várias
obras, González Rey (1992, 1993, 1995, 1997, 1999, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005a e 2005b)
enfatiza a necessidade epistemológica de haver novas formas de produção de conhecimento
perante um novo desafio nesta área:
Por esta visão complexa do homem, optei pelo referencial epistemológico qualitativo
desenvolvido por este autor para desenvolver a minha pesquisa de doutorado. Passarei então a
justificar esta escolha e a apresentá-la no tópico a seguir.
da realidade, ainda predominantes no âmbito das pesquisas acadêmicas. Ela inova ao ressaltar
a importância do resgate do sujeito e da sua subjetividade, implicando no reconhecimento da
essência única do ser humano e da importância da apreensão desta realidade subjetiva no
processo de construção e desenvolvimento de idéias.
Assim, entendemos que preceitos da epistemologia qualitativa parecem corroborar as
idéias de Scott (1990), o que reforça ainda mais a nossa escolha metodológica por este marco
teórico, pois ambos os referencias – gênero e subjetividade - nos mostram ser a melhor forma
de apreender nosso objeto de estudo – a vivência da maternidade sob o olhar das mães com
sintomas de DPP.
Pesquisando as várias obras de González Rey sobre sua teoria, tentamos sistematizar
seus principais pressupostos teóricos-metodológicos e epistemológicos que passaremos a
apresentar a seguir. Iniciaremos, detalhando os três princípios considerados como
fundamentais para a pesquisa qualitativa, tal como propõe González Rey (2002):
5.5.1- O conhecimento é uma produção construtiva-interpretativa
As constatações empíricas cedem lugar a uma construção de sentidos na qual
pesquisador e pesquisado desempenham papéis ativos. O conhecimento não representa uma
soma de fatos definidos pelas constatações imediatas do pesquisador no momento empírico e
a metodologia deixa de ser vista como o conjunto de procedimentos que definem como usar
os métodos científicos. A produção do conhecimento ocorre por meio de um processo aberto,
irregular e complexo. A pesquisa constitui-se numa relação entre pessoas e não entre
instrumentos, conforme a definição abaixo:
A pesquisa qualitativa não corresponde a uma definição instrumental, é
epistemológica e teórica, e apóia-se em processos diferentes de construção de
conhecimento, voltados para o estudo de um objeto distinto da pesquisa quantitativa
tradicional em psicologia. A pesquisa qualitativa se debruça sobre o conhecimento
de um objeto complexo: a subjetividade, cujos elementos estão implicados
simultaneamente em diferentes processos constitutivos do todo, os quais mudam em
face do contexto em que se expressa o sujeito concreto (González Rey, 2002, p.50-
51).
De acordo com esse autor, na pesquisa qualitativa não se descobre só o que se busca,
pois surgem elementos que, sem terem sido definidos pelo pesquisador, “se convertem em
opções de peso teórico, que podem ser relevantes para o processo de construção de
conhecimento” (p.87). A investigação passa a ser compreendida como processo cíclico, onde
os métodos de apreensão da realidade passam a ser considerados como momentos que se
constituem numa relação humana e dialógica entre o investigador e o investigado. Dessa
forma, esta proposta metodológica busca legitimar o aspecto processual da construção do
conhecimento, ao invés de defini-lo como uma expressão direta de instrumentos. O caráter
interpretativo do conhecimento aparece pela necessidade de dar sentido às expressões do
sujeito estudado, cuja significação para o problema de pesquisa só se dá de forma indireta e
implícita.
5.5.2 - Caráter interativo do processo de produção do conhecimento
As relações entre pesquisador e pesquisado constituem-se como o cenário principal da
pesquisa. O diálogo e a reflexão conjunta entre eles possibilita a emergência de aspectos
importantes que estão subjacentes à expressão do sujeito diante da situação estudada. Os
diálogos que se sucedem na pesquisa implicam um sujeito ativo, exigindo do pesquisador
certa habilidade na definição de indicadores relevantes, a partir dos sistemas de relações que
se desenvolvem no decorrer do próprio processo. Portanto, para González Rey assumir o
62
CAPÍTULO 6
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
“ Daquilo que sabes conhecer e medir,
é preciso que te despeças,
pelo menos por um tempo.
Somente depois de teres deixado a cidade
verás a que altura suas torres se elevam acima das casas.”
Nietzsche
Se a pesquisa será compreendida como uma construção, seu método deverá ser aberto,
sujeito a revisões a idas e vindas, adequações e mudanças no meio do percurso (Penso, 2003).
A descrição, a seguir, pretende retratar os caminhos percorridos para a construção do nosso
objeto de pesquisa. Ressaltamos que, como propõe a Epistemologia Qualitativa, os momentos
de aproximação e interpretação da realidade, resultando numa produção teórica, não são
separados, ao contrário, interagem o tempo todo, num processo recursivo. Assim, as
separações são meramente didáticas, com o objetivo de facilitar a compreensão de como esta
investigação se constituiu.
Sou graduada em psicologia pela Universidade de Brasília- UnB, no ano de 1992. Como
a maioria dos alunos em psicologia, tive uma formação generalista, mas com ênfase na
psicologia clínica, área na qual realizei meus estágios curriculares. A despeito desta ênfase, no
final da minha graduação, despertou-me o interesse a área da saúde. Desde então, os meus
estudos e minha prática em psicologia vem se concentrando nesta área. Tão logo terminei
minha graduação, realizei um estágio extra-curricular na Enfermaria de Cirurgia Pediátrica do
HUB, que consolidou minha opção por esta área. Tanto que, algum tempo depois comecei a
trabalhar como Psicóloga Hospitalar no Hospital SARAH.
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Dissertação intitulada: Sobreviver ao Câncer Infantil: uma vivência paradoxal, (Arrais, 1997), realizada sob a
orientação da professora Dra Tereza Cristina C. F. de Araújo.
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onde pude aprimorar ainda mais meus conhecimentos e minha prática profissional. Durante os
cinco anos em que trabalhei nesse renomado Centro de Reabilitação, atuei no Setor de
Paralisia Cerebral Infantil, na Enfermaria de Pediatria, no Ginásio e Ortopedia Infantil, no
Ginásio de Ortopedia Adulto e implantei o serviço de psicooncologia na enfermaria de
Oncologia. Tive, portanto, a oportunidade ímpar de vivenciar as mais diversas problemáticas
que envolviam crianças, adolescentes, adultos e suas famílias que enfrentavam a morte,
patologias crônicas, degenerativas, mutilantes, enriquecendo, sobremaneira, minha
experiência profissional e pessoal. Permito-me afirmar, inclusive, que a vivência profissional
nesta Instituição de Saúde foi tão valiosa quanto uma pós-graduação.
Após esses anos de atuação no ambiente hospitalar, resolvi seguir a carreira acadêmica e
passei a trabalhar como professora de Psicologia na Universidade Católica de Brasília. Nesta
Instituição de Ensino Superior, onde trabalho até hoje, sou professora das disciplinas de
Psicologia Hospitalar, Psicologia da Reabilitação, Intervenção em Crise, Estágio
Supervisionado em Psicologia Hospitalar e Orientação de Trabalho Final de Curso. Nesta
universidade também me envolvi em programas de Extensão Universitária, onde tive a
oportunidade de coordenar o projeto de Atenção a Portadores de LER/DORT que era
oferecido a funcionários da própria UCB e de outras empresas. Este tema me motivava
bastante, pois ficava sensibilizada com o descaso e com o sofrimento físico e psíquico aos
quais esta população era submetida. Minha motivação era tanta que decidi aprofundar-me
teoricamente e sistematizar os meus conhecimentos provenientes da minha prática, em mais
uma pós-graduação. Com essa inquietação, ingressei no Programa de Doutorado da
Universidade de Brasília, sob a orientação do Professor Dr. Fernando Luiz González Rey,
para investigar a configuração subjetiva dos portadores de LER/DORT.
O contato com este orientador me permitiu o aprofundamento em leituras sobre o
pensamento pós-moderno na ciência e os questionamentos epistemológicos implicados, assim
como me ajudou a definir qual seria a forma de compreender a realidade que eu me propunha
a estudar e, conseqüentemente, as metodologias de pesquisa que eu adotaria. Identifico-me
muito com esta nova forma complexa de fazer ciência, que vem se delineando nas últimas
décadas. Acredito que eu mesma sou fruto dessas transformações, já que minha perspectiva
metodológica também foi mudando ao longo do meu próprio desenvolvimento como
pesquisadora. Vejo uma clara distinção entre o modelo metodológico adotado para realizar
minha pesquisa de mestrado e o modelo que adotei na atual pesquisa de doutorado.
A investigação de mestrado constituiu-se de um estudo exploratório, que teve como
objetivo descrever e compreender a experiência de sobreviver ao câncer sob o ponto de vista
da criança e de seus pais, bem como identificar os significados por eles atribuídos à vivência
da doença e do tratamento e evidenciar os modos de reinserção e adaptação. Esta investigação
foi desenvolvida com base no método clínico, mas privilegiando uma metodologia
integradora que permitisse uma abordagem complementar entre as análises quantitativa e
qualitativa dos dados. Apesar de reconhecer que, naquela época, eu já valorizava a
experiência e a subjetividade do sujeito ao integrar uma perspectiva qualitativa no estudo,
num esforço para superar as reminiscências do positivismo, hoje, avalio que esta integração,
entre os métodos qualitativos e quantitativos, foi talvez, uma forma disfarçada de continuar
atendendo aos princípios positivistas, como bem alerta González Rey (2002).
Atualmente, me incluo no “modo alternativo” de construir a ciência. Na verdade,
desde minha graduação em psicologia, nunca me identifiquei com a maneira reducionista que
grande parte da psicologia tratava seu objeto de estudo e sempre procurei estudar linhas mais
humanistas e psicodinâmicas. No entanto, ainda que não me identificasse, fui formada nos
moldes cartesianos e, por isso, ainda hoje é muito difícil escapar do “fantasma do
positivismo”. Esta tese de doutorado é mais um esforço para superar o olhar positivista e
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poder compreender melhor, mais integralmente e legitimamente, o que entendo que seja o
verdadeiro objeto de estudo da psicologia - a subjetividade humana.
A idéia deste estudo tem uma data precisa de nascimento. Ela nasceu três dias após
nascimento da minha primeira filha, que está atualmente com 4 anos de idade. Foi quando
percebi a necessidade de entender o que se passava comigo naquela ocasião.
A chegada de Ana Clara trouxe tanto impacto à minha vida que recorri aos livros,
numa tentativa ingênua de me sentir menos impotente diante da “crise” em que estava imersa.
“Vivi na pele” a revolução que a maternidade provoca em todas as dimensões de nossas vidas:
profissional, conjugal, familiar, social, emocional, financeira, existencial... E percebi que as
mães estão muito sós, ou melhor, quase sempre estão acompanhadas da culpa. Passei, então, a
me dedicar e a estudar a maternidade e suas repercussões, incluindo a DPP.
Minha filha foi muito desejada e planejadíssima! Cheguei a calcular o dia mais viável
para o seu nascimento, de modo que eu pudesse aglutinar a licença maternidade com minhas
férias docentes e para ficar mais tempo dedicada exclusivamente a ela. Preparei durante anos
o “terreno” para a sua chegada. Aguardei estar com minha vida profissional e conjugal mais
estáveis, aguardei concluir minha pós-graduação, esperei ter uma idade mais madura, na
esperança de que isso garantisse a famosa maturidade emocional para ser mãe.
Engravidei na primeira tentativa para concebê-la, aos trinta anos. Desde o momento
da concepção, o qual acho que sei precisar a hora e o dia, tive certeza de que ela estava a
caminho. Sempre desejei ter uma menina e cheguei a sonhar, na noite em que ela foi
concebida, que recebia um bilhete, num papel em forma de um vestido, onde estava escrito: “
É uma menina!!!”. Três meses depois, descobri através da ultrassonografia que o bebê que eu
gestava era de fato UMA MENINA!!! Para minha alegria, do pai e dos avós. Foi uma festa!
Estava correndo tudo dentro do sonhado. Tive uma gravidez maravilhosa, não sofri
com enjôos, não adquiri muito peso, minha pressão arterial manteve-se estável, trabalhei
normalmente. Minha filha crescia saudável e eu fazia questão de acompanhar seu
desenvolvimento através das ultrassonografias (fiz umas dez durante a gravidez!). Preparamos
o seu enxoval, o quarto, os álbuns, escolhemos o seu nome. Fiz parte de um grupo de
gestantes, com encontros semanais. Fiz todo o pré-natal regularmente. No final da gravidez,
quando estava com 39 semanas de gestação, comecei a entrar em trabalho de parto. Em
poucas horas, estava dando à luz a minha filha, através de um parto vaginal, rápido e fácil.
Até aqui estava tudo correndo muito bem, todos os meus desejos e sonhos estavam se
realizando. Minha filha nasceu grande, saudável e parecia uma “linda bonequinha”!
Meu marido acompanhou o parto, se emocionou e chorou ao vê-la pela primeira vez. E
eu, que me emocionei várias vezes enquanto estava grávida, imaginando o momento do seu
nascimento, não chorei! Todos me diziam que era um momento mágico, único, de pura
emoção, e não foi assim que eu senti. Fiquei muito mais preocupada em ver se ela estava bem,
em garantir que meu marido se apaixonasse por ela e a acompanhasse nos seus primeiros
momentos. Queria mostrá-la logo para minha família que aguardava do lado de fora do centro
obstétrico. Talvez por isso, infelizmente, não fui tomada pela grande emoção, tão esperada.
Foi a primeira grande decepção! Onde estava aquele amor todo que iria tomar conta de mim
no momento em que eu colocasse os olhos em minha filhinha?
Depois, já no quarto, tentei amamentá-la ao seio. Não achei que teria maiores
dificuldades, afinal bastaria colocá-la junto a mim que ela e eu saberíamos instintivamente
como fazer. Outro engano! Minha filha apresentou dificuldades para pegar o seio, e chorava
muito. Apesar de produzir muito leite materno- até me tornei doadora para bancos de leite - a
amamentação virou um tormento. Meus seios fissuraram, a ponto de sangrarem enquanto ela
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mamava. Era uma dor enorme. Ficava arrepiada quando chegava a hora de amamentá-la.
Passava as noites acordada com medo de não ouvi-la chorar. Não conseguia compensar o
sono de dia porque sempre recebia visitas de amigos e familiares que vinham dar as boas
vindas e dar “dicas” de como eu deveria proceder. Resultado: ao final da primeira semana
após o seu nascimento, percebi-me “à beira de uma ataque de nervos”! Além do enorme
cansaço, sentia-me hipervigilante, chegando a apresentar piloereção, taquicardia e acentuada
labilidade emocional. Olhava para minha filha e a achava linda demais, e eu não merecia
tanto. Depois, chorava por achar que não conseguiria cuidar dela. Depois, sentia-me
orgulhosa por ter “recebido” tamanho “presente” de Deus. Logo após, chorava de dor nos
seios. Enfim, foram os dias mais intensos da minha vida!!!
Passei dias sem sair de casa, mal tinha tempo para tomar banho e me alimentar.
Lembro-me da primeira vez que a levamos ao pediatra. Ela estava linda, com uma roupa rosa
maravilhosa, laços nos cabelos, envolta em uma manta ricamente bordada. Era uma
verdadeira princesa! E eu parecia a “gata borralheira”. Estava horrível, trajando um vestido de
gestante, pois minhas roupas “normais” ainda não me cabiam, uma sandália baixa e o cabelo
descuidadamente amarrado. Estava horrorosa e nem havia me apercebido disso. Nessa
consulta o pediatra disse que minha filha não estava ganhando peso como deveria e que eu
não a estava amamentando suficientemente. Nossa! Senti como se tivesse recebido uma
facada no peito. Fiquei arrasada, mal contive o choro. Eu não estava sendo uma mãe
suficientemente boa...
Os dias foram passando e me percebia muito triste, cansada e estressada. Perguntava-
me onde estava aquela vida maravilhosa que um filho iria me trazer? Senti-me enganada por
todos, pela sociedade, por minha família, pelo mundo! A maternidade não estava sendo
“nada” do que haviam me dito. As outras mulheres, inclusive minha mãe e sogra, nunca
haviam me contado esta parte da maternidade, a não ser de forma caricata: “ aproveite para
dormir, enquanto o bebê não nasce, pois você nunca mais vai dormir na vida”, me diziam no
final da minha gravidez. E eu pensava: “ não deve ser tanto assim, as pessoas estão
exagerando, caso contrário, a mulheres não continuariam a ter tanta vontade de ter filhos!”.
Minha sensação de ter sido ludibriada era tanta, que desejei recorrer a algum órgão
competente para reclamar! Pensei no PROCON, mas este não atenderia a minha reclamação.
Queria a minha vida “de volta”! O pior de tudo é que não me sentia a vontade para falar desta
vivência para minhas amigas, minhas tias, e pessoas em geral. Parecia que algo estava errado
na minha história enquanto mãe e eu não sabia o que era. Sentia-me inadequada e fracassada
neste novo papel.
Foi imersa neste “caos” puerperal que passei a procurar informações que dessem
sentido a esses sentimentos e comportamentos tão estranhos à concepção que eu tinha de
maternidade. Recorri aos “livros”, já que percebia que as pessoas não conseguiam “ouvir”
minhas “queixas”. Lembro-me bem de uma colega psicóloga que foi me visitar, do momento
que eu tentei falar do que estava sentindo e ela disse: “ Imagine, você com DPP?” e riu. Neste
momento, recuei e me senti fracassada não só como mãe, mas como também psicóloga.
Como? Eu, psicóloga e mestre na área do desenvolvimento humano, não previ ou não sabia
que tudo isso poderia acontecer?
“Devorava” cada artigo, cada livro que pudesse me esclarecer sobre o que estava me
acontecendo. Passei a ler e a me interessar exclusivamente pelo tema da maternidade, e não
conseguia mais ler sobre outros temas em psicologia, inclusive o tema do meu projeto original
de doutorado. Apesar de reconhecer a importância daquela problemática, a mesma foi
sobreposta pelas inquietações que a maternidade me trouxeram.
Foi neste contexto que encontrei, ouvi e li relatos de outras mães “desesperadas” e
descobri uma rica literatura sobre a maternidade, que trazia “um ponto de vista diferente do
que era ser mãe”. Lembro-me especialmente do livro de Moreira (1993) “Ser mãe é padecer,
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mas não no paraíso. É a ditadura do peito”. Além disto, comecei a conhecer outras mães que
sofriam “sozinhas e caladas” como eu, e me dei conta de que este tema não era devidamente
abordado pelos profissionais de saúde, nem mesmo por aqueles que lidam diariamente com as
mães e seus bebês, como pediatras e ginecologistas/obstetras. Percebi, então, que esta
temática da DPP e da maternidade merecia ser melhor estudada para que as mães e seus bebês
fossem melhor diagnosticados e conseqüentemente tratados.
Foi pela vivência desta “revolução maternal” que abandonei o meu projeto inicial do
doutorado e mudei meu objeto de estudo e de interesse a ser desenvolvido no programa de
doutorado. Assim recomecei da “estaca zero”, já no meio do doutorado, e passei a me
aprofundar na literatura sobre a maternidade, relação mãe-bebê, psicopatologias do puerpério,
filhos, etc. Esses temas passaram a ser meu foco de estudo. À medida que fui penetrando
nesta área, tanto em termos teóricos como práticos, percebia o quão complexo e difícil era
constituir este novo papel – ser mãe - e também quão igualmente complexo deveria ser o
método para estudá-lo. Sentia também o quão solitária é esta nova empreitada psicossocial:
criar um filho. Esta constatação me fez refletir sobre uma grande demanda por escuta e apoio
represada que deveria existir em muitas mulheres, quando elas se deparam com a realidade
da maternidade, assim como aconteceu comigo. Percebi que nós mulheres, sobretudo aquelas
que estavam sofrendo com a depressão pós–parto, precisávamos nos ajudar a enfrentar esta
nova realidade para construir uma maternidade mais saudável.
Foi com base nessa reflexão que resolvi criar o Grupo de apoio e orientação a mães
com DPP, com o objetivo de ajudar - a mais só de todas as mães - aquela com este
diagnóstico. Foi, portanto, o “grande encontro” com a maternidade, e ver as grandes
surpresas, nem sempre agradáveis, que me motivou a fazer um trabalho, onde as mães fossem
prioridade. Obviamente escutar as mães “ao vivo” seria fundamental para a construção desta
tese. Mas, eu poderia fazer isto através de algumas entrevistas para “coleta de dados”. Eu
queria mais. Queria, de fato, proporcionar um espaço de escuta, para que elas (e também eu!)
pudessem dividir seu sofrimento, suas alegrias, expectativas e experiências com a
maternidade, sem serem alvo de julgamentos ou imposições culturais. Portanto, o grupo não
seria apenas um trabalho de campo, mas seria em primeiro lugar, um espaço terapêutico.
Ademais, quando havia começado o grupo, descobri-me grávida novamente. Eu era a
própria maternidade personificada! Acho que isso influenciou positivamente no trabalho, pois
o fato de já ser mãe e de estar grávida, pareciam dar mais respaldo aos meus questionamentos,
pois falava de um lugar sabidamente “vivido”. As participantes do grupo viam que, mesmo
sendo mãe, eu me permitia alguns questionamentos sobre a maternidade, muitas vezes
polêmicos, e percebia que aquilo as mobilizava e dava abertura no mesmo sentido. Penso que
era como se elas também pudessem se permitir questionar a maternagem que estavam
vivendo, a partir do meu discurso. De certa forma, era como se tivessem um aval, de uma
mãe, além de tudo psicóloga e professora, para também questionar.
E o questionamento é o instrumento “chave” neste trabalho de reconstrução da
identidade feminina e materna. Disponibilizei-me em proporcionar este espaço, ainda que eu
mesma também estivesse “tateando” no papel de mãe, pois mais do que construir uma tese de
doutorado, me interessava melhorar a condição da mulher na nossa sociedade, denunciando a
“farsa” da maternidade instintiva e cor-de-rosa!
Além disso, eticamente me sentiria pouco confortável em apenas “colher dados” sem
oferecer nada em troca. Sinto uma obrigação ética em devolver a “ajuda” que as participantes
do trabalho me deram, ao se exporem para mim e me contar dos seus sofrimentos. O retorno
terapêutico, através do grupo e da disponibilidades em atendê-las individualmente até hoje
quando necessitam, foi a forma que eu encontrei para recompensá-las por sua valiosa
contribuição para construir meu estudo. Posso adiantar que o trabalho com o grupo foi uma
experiência ímpar, profícua e sem dúvidas terapêutica, não só para as mães participantes, mas
70
CAPÍTULO 7
A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO
Participaram desta pesquisa 13 (treze) mulheres, com idades variando entre dezoito e
trinta e oito anos, todas procedentes do Distrito Federal e entorno. A escolaridade variou
desde o ensino fundamental à pós-graduação. Todas já eram mães de pelo menos um filho e
no momento encontravam-se no período do pós-parto, com bebês com idades variando entre 7
dias e 11meses de vida. A maioria delas (7 casos) tinha até dois filhos e as outras seis tinham
apenas 1 filho. Das 13 participantes, apenas duas eram solteiras e 4 viviam maritalmente com
seus companheiros. A maioria tinha uma profissão, mas 6 delas não trabalhavam fora de
casa, dedicando-se exclusivamente às tarefas domésticas e maternas.
Na época dos atendimentos, todas as mães trabalhadoras encontravam-se em licença-
maternidade, sendo que uma delas estava de licença-saúde, em função da DPP, e duas
estavam retornando ao trabalho. Nove mães pertenciam a famílias de classe média, e as
demais pertenciam a classe sociais menos favorecida, conforme suas rendas familiares
mensais. O quadro abaixo caracteriza sinteticamente as participantes da pesquisa:
Um dos principais recursos utilizados para facilitar a expressão das participantes foi o
Instrumento de Completamento de Frases, desenvolvido por González Rey (1997, 1998,
1999, 2002, 2005b). Trata-se de um recurso instrumental que consiste na apresentação de
frases escritas incompletas, para que o sujeito as complete a partir daquilo que primeiramente
emergir em sua mente ao lerem a frase em questão. A quantidade de frases, a ordem de
apresentação, bem como o conteúdo das mesmas, são flexíveis e mutáveis, para que possam
ser adaptados aos temas e objetivos das diferentes propostas de pesquisa. González Rey
ressalta a importância deste tipo de recurso instrumental da seguinte forma:
El instrumento de completamiento de frases nos permite la producción de
indicadores que, en su relación através de la interpretación del investigador, son
fuentes de las construcciones teóricas que permiten el desarrollo de modelos
teóricos responsables por la intelgibilidad del problema estudiado. Estos modelos
teóricos que van emergiendo y desarrollándose en la investigación no se agotan en
los marcos de una investigación concreta erigiéndose en verdaderas lineas de
investigación cuya legitimidad está en su propria procesualidad, en su continua
exstensión a nuevos problemas o a aspectos nuevos de los problemas ya
estudiados. Es esta capacidad generadora el mayor indicador de su viabilidad, que
se traduce en la producción permanente de nuevas acciones asociadas a la
investigación y a los diferentes campos de actividad profesional (González Rey,
2005, p. 139)
No presente estudo, esse recurso instrumental consistiu de 65 frases incompletas, de
conteúdo amplo e aberto para estimular a expressão livre das participantes. As frases se
alternavam entre temas relacionadas ao desejo, às preocupações, às aspirações, aos medos, ao
trabalho, às relações sociais, conjugais e parentais, à maternidade, à DPP, à amamentação,
entre outros. O objetivo, ao utilizar o completamento de frases foi o de auxiliar na produção
dos indicadores que demonstrem o sentido implícito na vivência das participantes, e assim,
permitir um diálogo interpretativo e hipotético para construção dos seus núcleos de sentido
subjetivo. O instrumento foi aplicado uma vez nas sessões iniciais. Um exemplar do
instrumento utilizado pode ser visualizado no anexo A deste trabalho.
É importante destacar que as entrevistas não tinham um roteiro a ser seguido. Havia
apenas uma grande vontade de ouvir e entender cada caso. À medida que os conteúdos iam
emergindo dos relatos, os questionamentos eram colocados. Depois tentávamos organizar os
relatos de maneira que fosse possível ter uma noção geral da queixa principal e da história da
sua evolução, assim como da sintomatologia apresentada. Támbém, investigávamos a
compreensão ou as idéias que a mãe fazia de si mesma. Para ter acesso a todas estas
informações, nem sempre uma sessão era suficiente.
Os atendimentos em grupo foram entretanto o principal recurso de pesquisa utilizado.
Por essa razão, iremos descrever o grupo em detalhes, para melhor compreensão do trabalho
realizado junto mulheres que dele participaram.
7.2.3 - Grupo de apoio e orientação a mães com DPP
Este grupo aconteceu no Centro de Formação em Psicologia Aplicada - CEFPA, uma
unidade do Curso de Psicologia da UCB, onde se realizam atividades de ensino, pesquisa e
extensão nas diversas áreas da Psicologia. Suas instalações comportam salas adequadas a
atendimentos psicológicos de adultos, crianças, grupos terapêuticos e comunitários, além de
sala de espera e salas de testagem. No CEFPA os atendimentos são gratuitos e, geralmente,
são realizados por estagiários devidamente supervisionados por professores qualificados para
realização de tal tarefa.
Em função deste contexto educacional em que está inserido, o referido grupo buscou
contemplar a tríade ensino, pesquisa e extensão, através do atendimento às distintas
demandas, a saber: - Caráter extensionista: Atender a comunidade feminina interna e
externa à universidade, que estivessem apresentando sintomatologia compatível com o quadro
de DPP; - Elaborar uma produção científica: este grupo se prestou também para fins de
pesquisa científica, sendo o principal campo para levantamento e construção de informações
para esta tese e de vários outros trabalhos de final de curso orientados por mim; -
Proporcionar atividades de ensino: O grupo serviu de campo de estágio para alunos dos
últimos semestres do curso de psicologia.
Porém, o objetivo principal do grupo foi proporcionar às puérperas um espaço de
escuta emocional e de apoio, onde o tema da DPP pudesse ser adequadamente abordado,
buscando fornecer não apenas informações, mas, principalmente, permitir que a mãe pudesse
expressar livremente seus temores e ansiedades, alegrias e realizações com a maternidade.
Considerando o objetivo acima, estipulamos conforme modelo de Afonso (2003), os
seguintes temas geradores: a vivência da DPP, a definição da DPP, o bebê imaginário X o
bebê real, a transição para a maternidade e para paternidade, os novos vínculos (mãe-bebê,
pai-bebê, mãe-pai-bebê), fatos e mitos relacionados à maternidade, o que é ser mãe/pai, a
importância da rede social de apoio, as alterações da vida do casal, a mãe da mãe, a
desconstrução do mito da mãe exclusiva, entre outros. Esses temas permitiram desdobrar a
reflexão sobre a maternidade e as dificuldades enfrentadas pela mãe com o diagnóstico de
DPP, inclusive com análise de questões mitificadas e implícitas à maternidade.
Apesar de ser dirigido por mim, psicóloga/professora da instituição em questão, e por
uma estagiária formanda do curso de psicologia, o grupo teve um caráter interativo, onde as
mães foram convidadas a falar e a se colocarem espontâneas e livremente. Era um grupo
fechado, ou seja, para facilitar o processo de ajuda mútua os participantes foram os mesmos
do início ao fim. O grupo era heterogêneo quanto a intensidade dos sintomas depressivos
percebidos e apresentados, quanto à fase de pós-parto, quanto à idade da mãe, escolaridade,
classe social, estado civil. O primeiro grupo durou cerca de três meses, com sessões
semanais, e depois foi interrompido por dificuldades que comentaremos mais adiante. O
segundo grupo constituiu-se de 14 encontros, respeitando o calendário acadêmico da
universidade, com sessões semanais de 2 horas em média. Cada um dos encontros teve os
temas-geradores propostos pelas participantes e pelas coordenadoras. Foi utilizada uma rica
74
Assumimos desde já, que a descrição dos caminhos percorridos nesta pesquisa foram
permeados pela subjetividade do pesquisador, que procurará contar como foi a experiência de
realizar esta investigação, seus passos, suas dificuldades e peculiaridades, assumindo, como
bem expressa Neubern (1999) que a estória a ser contada, não dá conta de “tudo que
aconteceu”, pois nossos relatos são sempre reducionista quanto a tentamos descrever as
nossas vivências.
Desta forma, os caminhos foram nascendo junto com a caminhada e procuramos nos
manter abertos para ir aonde eles nos levassem. Não foram delimitados rigidamente e,
procurávamos apenas seguir os seus sinais. Para atender a este propósito, construímos a
proposta de intervenção em grupo com as mães, com base em uma pesquisa feita na Internet.
Descobri que este tipo de trabalho é bastante comum nos Estados Unidos, mas não no Brasil.
Entrei no site de alguns deles, os quais serviram de inspiração para nossa proposta de grupo.
No entanto, a maior parte do trabalho baseou-se na literatura da área e em minha
experiência vivida enquanto psicóloga hospitalar, quando trabalhei no Hospital Sarah. Neste
hospital, tive a oportunidade de criar e coordenar vários grupos com pacientes de diversas
patologias, entre eles: grupos com pacientes oncológicos, grupos de apoio e orientação a
pacientes com LER/DORT, grupos com pacientes com lesão cerebral, lesados medulares,
com problemas ortopédicos. Assim, a metodologia utilizada é semelhante, sendo apenas
adequada aos pacientes e as especificidades da temática em questão. Até o momento,
desconheço outra proposta semelhante no Brasil. O grupo será apresentado mais
detalhadamente nas próximas seções deste trabalho.
Com a proposta do grupo pronta, a questão que se impôs no momento empírico foi:
como atrair as mães para participarem do atendimento e da pesquisa? Apesar de sabermos que
existe uma grande demanda para este tipo de serviço, pois há significativa incidência da DPP
(Corrêa Filho, Corrêa & França, 2002); imaginávamos que alguns obstáculos poderiam
dificultar o acesso das mães ao trabalho proposto, entre eles: resistência da mãe em pedir
ajuda, dificuldade no diagnóstico; dificuldades no encaminhamento, pois nas poucas vezes
que os profissionais fizeram o diagnóstico correto, raramente encaminharam uma mãe para
9
Foi aplicada a Escala de depressão pós-parto de Edimburgo - Edinburgh Postnatal Depression Scale (Santos, 1995; Santos,
Martins & Pasquali, 1999; Guédeney & Jeammet, 2002). Ainda que tenhamos feito toda uma crítica aos recursos
metodológicos quantitativos-positivistas nos capítulos anteriores deste trabalho, reconhecemos que os mesmos são válidos
para auxiliar no diagnóstico e portanto na triagem das mães para inclusão no grupo.
75
Como fruto deste trabalho de divulgação, aos poucos, as mães começaram a chegar ao
nosso serviço, que seguiu as mesmas regras institucionais do CEFPA, salvo quanto à rapidez
no ingresso, pois elas não aguardavam em filas de espera para serem atendidas. Procurávamos
agendar uma entrevista de acolhimento/triagem com a mãe, o mais rápido possível, em função
da situação de crise emocional em que se encontravam. Na maioria das vezes, as mães foram
atendidas no mesmo dia em que entraram em contato ou, no mais tardar, foram vistas no dia
seguinte.
As pessoas interessadas em serem atendidas dirigiam-se ao CEFPA e preenchiam na
recepção uma ficha de inscrição padrão deste centro (Anexo B), informando nome, idade,
telefone para contato e principais queixas. Geralmente, elas estavam acompanhadas do bebê e
de algum familiar. A maioria foi encaminhada por profissionais de saúde ou por
funcionários/estudantes da Universidade Católica que transitavam no campus. Mas, também
houve casos de procura espontânea das mães ou de seus familiares.
Todas, sem exceção, se encontravam em situação de crise, o que demandou uma
intervenção ágil e focal na própria entrevista de acolhimento. Sabemos que em qualquer
situação de desequilíbrio, de descontrole, de crise de uma pessoa, o que o sujeito busca é
primeiramente encontrar outra pessoa. Por essa razão, a proposta do acolhimento
psicoterápico da nossa intervenção não visava apenas levantar informações para a pesquisa. O
mais importante ali era a possibilidade da pessoa se sentir acompanhada, “sair do estar só”. O
acolhimento referia-se à escuta, a aceitação, empatia, autenticidade surgida no contato do
pesquisador com a mãe. O ser ouvido é fundamental no acolhimento, pois é naquele
momento, na relação de pessoa para pessoa, que surge a possibilidade do “eu” se tornar “eu”,
e não o seu “problema” ou a sua “doença”.
Também é importante salientar a participação dos maridos nas entrevistas de
acolhimento, nas vezes em que estavam acompanhando suas esposas. Em algumas situações,
o atendimento foi feito junto com a mãe, em outros, em separado. Ainda neste primeiro
atendimento, cada participante era esclarecida sobre o grupo e sobre a participação voluntária
10
Arrais, C. H. R. (2002). Na hora mais feliz, a depressão. Correio Braziliense, Brasília, 06 nov. 2002, Caderno
Coisas da Vida, p. 23.
11
Jornal interno da Universidade Católica de Brasília.
12
Programa Mônica Nóbrega, na TV Brasília, em setembro/2003).
13
Encontro Nacional sobre o bebê.
76
Diante dessas constatações, decidi que seria muito importante fazer um novo grupo e
“torcer” para que ele chagasse ao seu final a contento. Então, elaborei um novo planejamento
de encontros, que foi aprimorado e expandido com base no modelo apresentado por Afonso
(2003) para ser implementado em grupos na área da saúde. Cada encontro foi planejado
novamente, de maneira mais detalhada e sistematizada, procurando explicitar o tema gerador,
os objetivos, a técnica, os procedimentos e a avaliação dos mesmos. A descrição resumida de
cada encontro pode ser visualizada no anexo E deste trabalho.
No meu retorno ao trabalho, todo o processo de divulgação do grupo foi repetido.
Porém, é importante comentar que os bancos de leite se revelaram importantes focos de
divulgação, sobretudo para o segundo grupo realizado. Percebemos, após o grupo–piloto, que
muitas mães só se permitem pedir ajuda em função das dificuldades com a amamentação e,
mesmo assim, a custa de muita culpa e sofrimento. Assim, percebemos que as queixas
dirigidas ao banco de leite algumas vezes encobertam uma DPP, e era justamente esta
clientela que gostaríamos de acessar.
Não por acaso, por duas vezes aconteceu de, no momento em que estávamos
divulgando o grupo junto aos médicos responsáveis por estes bancos de leite, eles nos
encaminharam pacientes que, naquele exato momento, ou estavam no próprio local ou por
telefone, apresentando sintomas de DPP. Esta “coincidência” nos aponta para a significativa
incidência dos casos de DPP, confirmando os dados da literatura (Santos, 1995; Corrêa Filho,
Corrêa & França, 2002).
Novamente, a mães foram chegando aos poucos, e o segundo grupo teve início em
março de 2004, com cinco participantes. Desta vez, todas as sessões foram gravadas em
videocassete, mediante a autorização por meio do referido “termo de Consentimento livre e
esclarecido”(anexo D).
inicialmente uma especulação feita por parte do pesquisador. Contudo, para que não assuma
este papel, o indicador deve ser reafirmado durante os vários momentos da pesquisa,
considerando todas as informações, incluindo as provenientes dos momentos informais.
É importante esclarecer que os indicadores nunca determinam uma conclusão do
pesquisador, pois estão relacionados a um momento hipotético no processo de produção da
informação. Como podemos observar, o indicador é uma construção capaz de gerar um
significado pela relação que o pesquisador estabelece entre um conjunto de elementos que, no
contexto do sujeito estudado, permitem formular uma hipótese que não guarda relação direta
com o conteúdo explícito de nenhum dos elementos tomados em separado. Enfim, o indicador
está sempre associado a um momento interpretativo e irredutível ao dado. Nas palavras de
González Rey, um indicador é definido como:
(...) aquellos elementos que adquieren significación gracias a la interpretación del
investigador, es decir, que su significado no asequibble de forma directa a la
experiencia, ni aparece en sistemas de correlación...el indicador solo se construye
sobre la base de información implícita e indirecta.(González Rey, 1999, p.113).
Não podemos deixar de ressaltar que são os indicadores que permitirão a construção
do conhecimento, sendo que apenas um indicador não tem valor como elemento isolado, mas
como parte de um processo em que funciona a estreita inter-relação com outros indicadores.
Eles permitem ainda explicar ou dar sentido ao problema estudado, sendo que explica o que
não é possível observar explicitamente, permitindo posteriormente uma descrição.
De acordo com González Rey (2002), os indicadores formam os núcleos de sentido das
experiências do sujeito. Ou seja, o desenvolvimento de indicadores conduz necessariamente
ao desenvolvimento de conceitos e categorias novas de sentido. Os núcleos de sentido
referem-se a estas categorias ou hipóteses construídas com base nos indicadores, os quais
estão articulados com os pontos que mobilizam o sujeito, e não com aquilo que é mais
freqüente ou semelhante, como numa categoria de análise de conteúdo. Da mesma forma,
essas categorias não são estabelecidas de forma rígida ou a priori de alguma teoria. Por sua
vez, os núcleos levaram-nos à construção de zonas de sentido, que adquirem significações
dentro do processo de elaboração do conhecimento, por intermédio do pesquisador, na
tentativa de trazer uma contribuição teórica sobre o problema estudado (González Rey,
2005b). São esses núcleos de sentido que levam à construção de novas zonas de sentido,
elementos importantes na valorização sobre a legitimidade do conhecimento, pois permitem
conceituar novas áreas acerca da realidade estudada.
A criatividade e independência do pesquisador para “soltar” seu pensamento são uma
condição essencial da construção teórica. Estimulam-se os diálogos entre os sujeitos e entre
sujeitos e pesquisador, os quais se envolvem emocionalmente, desenvolvem vínculo e
compromisso com o estudo, resultando numa produção de informações significativas para a
pesquisa. Portanto, o momento empírico não representa apenas a coleta de dados, significa um
momento de produção da informação, onde as idéias, os conceitos do pesquisador, assim
como o momento histórico-social-cultural no qual este processo está ocorrendo são momentos
permanentes do processo de produção da informação. Por isto, é importante esclarecer que
nem o indicador, nem a zona de sentido tem um caráter absoluto, finalizado, estático. São
apenas peças interpretativas que se integram a um sistema de interpretação e formam um
“quebra-cabeças” que está em constante processo e construção (González Rey, 2005b).
Ainda que tenhamos consciência da maleabilidade deste processo construtivo-
interpretativo, temos que reconhecer como o próprio Ganzález Rey (2005b) afirma, que a
construção do conhecimento, a partir do levantamento de indicadores e elaboração de zonas
de sentido é o momento mais difícil desta proposta epsitemológica/metodológica. Em suas
palavras, afirma:
79
CAPÍTULO 8
culminou com a separação. Depois deste episódio e temendo uma nova crise depressiva após
o parto, procurou atendimento psicoterápico no Instituto de Saúde Mental – ISM14 por
iniciativa própria. Participou de um atendimento em grupo junto com outros pacientes com
diferentes quadros psiquiátricos que estavam em tratamento neste serviço. Participou
regularmente do grupo até próximo à data do nascimento do bebê, mas, para sua “surpresa”,
os sintomas depressivos voltaram a se manifestar. Apesar do tratamento realizado, esse não
“conseguiu” prevenir a depressão e agora ela temia estar ficando “louca”, como apareceu no
completamento de frases: “Meu maior medo... ficar louca” e “Luto... para não ficar louca”.
O medo de ficar louca foi muito presente e recorrente também nas sessões, quando associava
a loucura aos “pensamentos negativos” e ao desejo de morrer. Em uma delas afirmou: “
Tenho medo que os remédios (referindo-se aos antidepressivos) possam estar destruindo meus
neurônios, assim como a depressão destruiu meus hormônios da alegria”. Estaria “louca”
como seus “colegas” de grupo do ISM? Será que ela via na loucura uma proteção, assim como
via na gravidez? A loucura a protegeria de quê? Destacamos a identificação de Gabriela com
a depressão e a loucura, a ponto de procurar se submeter a um tratamento em grupo junto com
pacientes com diversos quadros psiquiátricos em diferentes graus de gravidade, num serviço
especializado para “loucos”.
Encaminhamento para o grupo: Gabriela foi encaminhada para nosso grupo pelo
pediatra que acompanhava seu filho, com a suspeita diagnóstica de DPP, por estar
apresentando, segundo este médico, intenção de “doar o filho”. Ela compareceu prontamente
ao CEFPA, desacompanhada, no horário marcado, mostrando-se receptiva, comunicativa,
orientada, mas apresentando semblante entristecido. Assim como aconteceu em relação ao
ISM, ressaltamos que ela não demonstrou resistência para nos procurar ou para falar de sua
“doença”. Tanto que no completamento de frase caracterizou positivamente nosso serviço,
sem ao menos conhecê-lo: “Este lugar...legal”. Quanto ao desejo de doar o filho, não nos
pareceu que este fosse de fato a sua intenção. Esta indicação médica nos lembrou a freqüente
associação superficial entre DPP e rejeição materna, a qual criticamos no referencial teórico
deste trabalho, por esta não abarcar toda a complexidade envolvida na situação, como
acontece no caso de Gabriela. Apenas em uma sessão do grupo Gabriela relatou que já pensou
em “deixá-lo na casa de sua mãe”, que mora próximo a ela, pois não tinha muita paciência
para cuidar dele e achava que “não era uma boa mãe como deveria”. Teve receio de tomar
esta decisão, pois temia que sua mãe não lhe devolveria o filho quando ela “o quisesse” de
volta. De qualquer forma, relatou que seu marido a apoiaria nesta decisão, e pareceu muito
decepcionada com a sua concordância. Pareceu-nos querer mais a sua disponibilidade em
ajudá-la a cuidar do bebê do que a sua autorização para entregá-lo a sua mãe.
Relacionamento com o cônjuge/pai do bebê: Caracteriza o relacionamento conjugal
como insatisfatório e conflituoso. Descobriu através da própria amante do marido a história de
um relacionamento extraconjugal, que durara vários meses. Recebeu telefonemas, nos quais a
mulher lhe contava em detalhes o caso que eles mantinham, e chegou a encontrá-la
pessoalmente, viu cartas e fotos bastante comprometedoras. Diante da constatação da traição
do marido, Gabriela lhe propôs a separação conjugal. Segundo ela, o marido sempre negou o
relacionamento extraconjugal, mas, mesmo assim, atendeu a seu pedido de sair de casa.
Estavam separados há algumas semanas, quando Gabriela descobriu que estava grávida. Em
função da gravidez, resolveu “perdoar” o marido e dar-lhe uma “nova chance”, reatando o
casamento. A iniciativa demonstrou uma atitude bastante ambivalente em relação ao marido.
Avalia que, após a separação, o marido mudou bastante: ficou mais carinhoso e
atencioso, dava-lhe satisfação onde ia, mas, mesmo assim, afirmava que não confiava mais
nele e que “algo se quebrou dentro de mim”. Ficava sempre desconfiada, principalmente
14
O ISM é um hospital-dia, alternativo aos manicômios, público e referência no tratamento de paciente psiquiátricos no
Distrito Federal e entorno.
84
mesmo. Destaca-se aqui, a semelhança entre o jeito de ser de seu pai e de seu marido. Qual
sentido isto tem para entendermos Gabriela?
Relação mãe- bebê: Percebe pouco prazer nas tarefas de cuidados e de educação com
os filhos, prefere passear com eles, comprar-lhes presentes e brincar. Na verdade, seus
relatos sugerem que o conflito com a maternidade não parece ser gerado pela presença dos
filhos, per si. Ao contrário, ela se referiu a ambos os filhos de forma amorosa e afetiva, como
podemos constatar nas frases: “Amo...meus filhos”; “Meu maior prazer...ver meus filhos
felizes”; “Quando penso em meu filho(a)...fico feliz”. Ademais, em nenhum momento do
completamento os associou diretamente com as frases de cunho negativo, como era de se
esperar para uma mãe que nos foi encaminhada pelo médico, com a suspeita de estar
querendo “doar” o filho. Por exemplo, não os incluiu nas respostas às frases: “ Meu
principal problema...”; “ É difícil...”; “ Me aborrece...”, “Odeio...”; “Me deprimo
quando...”. E quando, na única vez que durante a primeira sessão de atendimento em grupo,
chegou a mencionar sua idéia de “deixar” o filho com sua mãe, pareceu querer enfatizar
muito mais a sua decepção com seu marido por ele concordar com esta intenção, do que de
levá-la ao ato. Na verdade, Gabriela nos pareceu muito culpada em relação aos filhos, pois
crê ser a responsável pelos problemas de saúde apresentados por eles. O bebê, por exemplo,
foi diagnosticado como portador de Erro Inato do Metabolismo e ela acredita que “seu leite
não esteja protegendo seu filho das doenças”. Além do mais, sua mãe e seu marido estão
sempre lhe dizendo como uma boa mãe deve se comportar e a criticam com freqüência
quando ela apresenta algum comportamento que não é compatível com estes requisitos. Por
isso, avalia-se como tão inadequada no papel de mãe, que isto parece atrapalhar sua relação
com seus filhos. Assim, fica evidente que a maternagem está perpassada por tensões geradas
em outros núcleos de sentido subjetivo de sua vida, como a relação conjugal e parental.
Relacionamento familiar: Não percebe em seus irmãos uma fonte de apoio. Relata que
eles não têm a mesma dificuldade para se impor diante dos pais, como ela. Gabriela
eventualmente fala de sua irmã nas sessões, sempre se contrapondo a ela. Sua irmã é a
desobediente, a que se separou do marido, a que enfrenta seus pais, e a que não tem medo de
brigar e “só faz o que quer”; enquanto ela, ainda hoje, obedece aos pais, evita brigas, e
sobretudo, “não faz o que quer”, demonstrando uma rivalidade fraterna importante. O seu
relato em relação a sua irmã também nos dá indicativos de que talvez ela critique sua irmã,
justamente porque gostaria de ser “livre” igual a ela. Essas informações, nos fizeram pensar
em Ehrhardt (1996) quando ela nos fala das mulheres que, como Gabriela, conseguem se
colocar facilmente no lugar dos outros. Elas “nasceram para servir”, já que acreditam que
servir faz parte de sua natureza. Para tanto, se baseiam nos exemplos de suas mães, embora a
experiência lhes mostre que as mulheres insolentes, impertinentes e atrevidas progridem,
jamais as bem comportadas, as que se isentam de sua opinião e abrem mão de seus desejos e
sonhos, como faz sua irmã. Ser obediente e amável parece-lhes a única estratégia de sucesso.
Relacionamento com outras pessoas: refere que tem poucos amigos, sendo a maioria
deles colegas de trabalho, com as quais gosta de conversar. Interessante ressaltar que, apesar
das dificuldades relatadas quanto à imposição de sua opinião e idéias, não se queixa disso no
âmbito dos relacionamentos sociais, o que nos faz supor que essa dificuldade pareça restrita
ao ambiente familiar.
Relação com o trabalho/estudo: O trabalho aparece como uma das poucas fontes de
prazer e alegria na sua vida. “O trabalho...eu gosto” fez esta afirmação no completamento.
Por isso mesmo, seu trabalho como professora é bastante valorizado em seu relato e nos
pareceu ser a área na qual ela mais se realiza, tem liberdade e pode ser quem ela deseja.
Porém, ultimamente, o trabalho também estava sendo uma fonte de sofrimento, pois estava
impedida de trabalhar em função de sua depressão. Sua psiquiatra, por duas vezes, negou seu
pedido de retorno ao trabalho atribuindo sua imposibilidade de trabalhar a seu estado
86
patológico; quando nos parecia que, na realidade, trabalho poderia ser de grande ajuda, pois é
algo que lhe gratifica e lhe liberta. Por fim, ela necessitou passar por uma junta médica de seu
serviço, o que reforçou ainda mais seu sofrimento e sentimento de inadequação. Somente após
quatro meses do término da licença maternidade é que finalmente a liberaram para o retorno
ao trabalho. Todo este processo foi muito doloroso, pois cada renovação da licença-saúde e
manutenção do afastamento da sala de aula provocava-lhe uma enorme frustração e imensa
sensação de fracasso. Ficou muito preocupada com a possibilidade de não retornar ao trabalho
definitivamente, pois soube de pessoas que foram impedidas de voltar para suas funções
docentes por estarem com depressão: “eles ficam com medo de que as professoras possam
maltratar os alunos”.
Por outro lado, acreditava que o trabalho lhe faria bem, pois preencheria seu tempo, ela
estaria rodeada de pessoas e fazendo o que mais gostava: trabalhar. Mas, quando pensava em
voltar ao trabalho, se preocupava em deixar o filho com a mãe, pois sabia que isto daria ainda
mais possibilidades dela intrometer-se em sua vida e dificultar ainda mais sua relação com
ela. Por exemplo, quando ela manifesta a grande vontade de voltar a trabalhar, sua mãe logo
lhe dizia: “nem parece que gosta do filho, pois quer ficar longe dele”. E seu marido
complementa a idéia afirmando que não entende uma mulher que quer deixar o filho em casa
para voltar ao trabalho. Em função dessa críticas, entrava em conflito e sentia muita culpa,
quando expressava este desejo a focar seu interesse exclusivamente voltado para os filhos e
para casa. Esta tensão é outro aspecto que, sem dúvida, representa uma área conflitiva na
configuração subjetiva não só de Gabriela, mas de todas as mães estudadas relacionadas em
seus momentos atuais.
Em síntese, para ajudar a compreender a configuração subjetiva de Gabriela e de sua
depressão, entendemos que os principais indicadores construídos durante a técnica de
completamento de frases, e durante as sessões individuais e grupais, foram: forte presença de
conflito conjugal; a avó como modelo perfeição/opressão; conflitos com as figuras paternas;
forte conflito com o papel materno; o trabalho como uma fonte de prazer maior ou igual à
maternidade e identificação com a depressão. Esses indicadores nos permitem construir
algumas informações que emergem como núcleos de sentido subjetivos em nossa análise, a
saber:
É interessante observar que aquilo que nos pareceu ser o maior problema de Gabriela
- seu conflito conjugal - não aparece explicitamente nem no completamento de suas frases,
nem nas sessões grupais, apesar de ser tema recorrente das sessões individuais. Essa aparente
dificuldade para se colocar em relação a seu marido e casamento ficou evidente no
completamento de frases, pois não se refere a ele explicitamente, uma vez sequer, mesmo em
questões nas quais teria oportunidade para isso, como nos casos “Amo...meus filhos”; “Eu
gosto...dançar”; “Eu gosto muito...de ajudar as pessoas”. Mas, em nosso processo
interpretativo, não falar explicitamente do marido nos diz muito! Frases como essas de tanta
implicação emocional, como amar estar associado apenas aos filhos, ou em nenhuma das
frases anteriores referidas à felicidade, uma emocionalidade positiva apareceu relacionada
nem ao marido e nem ao seu casamento. Ainda que não soubéssemos de toda a crise conjugal,
a atitude de se calar em relação ao marido, por si só, já indicaria no mínimo uma área de
conflito.
Esse “ocultamento” só reforça nossa suspeita sobre a intensidade de sofrimento que
emana de seu casamento, e que não pode aparecer explicitamente pelo seu caráter
ameaçador. Essa é uma tendência muito interessante que observamos desde o início de nosso
acompanhamento, o que nos faz supor que é uma estratégia para evitar a carga emocional
87
negativa que acompanha a expressão simbólica das situações de sentido que provocam dor,
tristeza, medo ou outras emoções vivenciadas negativamente pelo sujeito. Este conflito só foi
amplamente colocado durante as sessões individuais, nas quais ela demonstrou toda sua
decepção e ressentimento em relação ao comportamento adúltero do marido e seu desejo
ambíguo de separar-se dele. Todos esses elementos nos levam a crer que o conflito com o
marido tem um lugar central na depressão e nos sentidos que sua vida tem tomado no
momento atual, o que provocou a construir o núcleo “triângulo das tensões”.
Este núcleo integra os elementos de insatisfação com seu casamento e com seu
marido, elementos estes que aparecem apenas indiretamente no completamento de frases, ou
associados a um conjunto de sentidos subjetivos muito diversos. Eles parecem fazer parte da
configuração subjetiva deste conflito, como, por exemplo: as exigências em relação à
organização da casa, de suas funções domésticas e como esposa, seu impedimento para
trabalhar e a prorrogação de seus planos de pós-graduação em função das dificuldades
surgidas e das exigências como mãe. Seu fracasso como dona de casa deve integrar algum
sentido subjetivo procedente deste espaço doméstico. Nas sessões, este indicador se reforça,
pois ficou muito clara uma postura “crítica” de seu marido e de sua mãe quanto a seu
desempenho como dona de casa e mãe.
É interessante ressaltar também na caracterização de Gabriela sobre seu pai que ele
parece ter muito em comum com o seu marido. Em ambos aparece a história de traição,
ausência, cobranças e críticas. Por outro lado, tanto ela quanto sua mãe adotaram uma atitude
condescendente, perdoaram suas “falhas” e continuaram ao lado dos respectivos maridos,
ainda que Gabriela tenha tentado se separar efetivamente. Isso traduz uma posição de gênero
como elemento de sentido do conflito atual. Para nós, esse atitude é um bom exemplo para
mostrar como o gênero perpassa todas as esferas de vida de Gabriela, tendo em vista que
essa categoria atravessa diferentes motivos que levam as mulheres a permanecerem em
situações de sofrimento. Segundo Araújo, Martins e Santos (2004) os motivos mais comuns
são: dependência emocional e econômica, valorização da família, idealização do amor e do
casamento, preocupação com os filhos, o medo da perda e do desamparo e ausência de apoio
social e familiar.
No caso de Gabriela, observamos que alguns desses motivos estavam presentes em sua
decisão de manter o casamento, sobretudo a idealização do amor. Isso foi percebido por meio
da técnica de recorte e colagem, que poderá ser visualizada no anexo F, quando solicitamos
que ela apresentasse figuras que representassem “o que é ser pai”. Foi interessante ver que
todas as figuras se referiam a casais “apaixonados”, que pareciam compartilhar a
responsabilidade sob os filhos. Eram imagens românticas que enfatizavam a aliança, a
felicidade, o amor, sendo que em algumas delas as crianças não estavam presentes. Pensamos
que ela mostrava seu desejo de que o pai de seus filhos fosse também um marido romântico,
atencioso, disponível e companheiro. Mesmo com o sofrimento conjugal, ela continuava a
apostar num casamento e num amor idealizados!
Integrado a esse núcleo, é importante destacar o caráter ambivalente que a experiência
da maternidade traz para Gabriela, que chamamos de “Não sei ser mãe como deveria”. Há
um forte conflito em relação a seu papel de mãe, e neste observamos um trânsito de valores e
emoções contraditórias, que marcam sua ambivalência em relação ao modelo de maternidade
exlusiva que ela se impõe a seguir. Nos chamou atenção sua representação sobre a
maternidade, na técnica de recorte e colagem, na qual ela deixou clara sua idealização de
maternidade, ao escolher figuras que condiziam com a representação social da maternidade:
um paraíso, algo divino e redentor. Chegou a afirmar que uma boa mãe devia ter uma
paciência incondicional, ser organizada e educar bem, no sentido de impor enfaticamente
limites aos filhos. Em nenhuma da figuras ou frases escolhidas, percebe-se qualquer aspecto
88
A nosso ver, parece que esta relação com um "passado confuso" é bastante revelador,
e nos leva a hipotetizar dificuldades em suas relações na vida infantil ou em suas
experiências nessa época. As frases “O passado...confuso” e alguns relatos sobre a ocasião
de seu nascimento dão viabilidade a abertura desta hipótese. Gabriela nos contou,
demonstrando forte ressentimento que na época do seu próprio nascimento, sua mãe teve
muitos problemas de saúde, em decorrência de seu parto. No pós-operatório do parto normal,
“rompeu” os pontos e necessitou ficar internada. Gabriela, que estava com dois dias de vida,
foi levada por seu pai para ser cuidada por uma prima, que inclusive a amamentou ao seio.
Ficou sob os cuidados desta prima por dois meses, quando então voltou para casa. Lembra-se
que sua mãe sempre se refere a este episódio “tão sofrido” para compará-lo no sentido de
desqualificá-lo, ao afirmar:“ aquilo é que foi sofrimento”.
Seus relatos sugerem que ela não se sente considerada, respeitada e amada por sua
mãe. Sente-se desqualificada por ela nos outros papéis que tenta construir para sua vida,
sobretudo no materno. Certamente, esta situação “mal resolvida/ambivalente” com sua mãe
está interferindo na forma como Gabriela tem exercido a maternagem e até a conjugalidade.
89
Em alguns momentos, essa ambivalência parece tornar sua mãe um “anti-modelo”, pois ela
relatou que procura ser diferente dela com relação à forma de tratar a sua própria filha e
percebe que isto parece ser a melhor maneira. Observa que a filha lhe fala sobre o que está
sentindo, ainda que as vezes se sinta insegura com relação as suas demandas. Sabemos que
muitas mulheres tentam não seguir o modelo de suas mães, e a própria cultura ou momento
histórico podem estimular modelos contraditórios com o modelo materno (Dias & Lopes,
2003). Mas até que ponto os valores maternos são abandonados?
Certamente, a relação ambivalente que mantém com sua mãe também seja um
elemento de sentido subjetivo que repercute, na sua grande preocupação em ser uma boa mãe,
e nas possíveis reações de culpa e desqualificação em relação ao tipo de mãe que é. É
importante destacar que acaba cultivando uma atitude subserviente em relação a sua mãe, o
que faz com que ela não consiga sair do papel de filha de sua mãe.
Também observa-se a categoria de gênero nesta postura subserviente. Acreditamos
que Gabriela segue impelida a atender ao modelo de maternidade exclusiva de sua mãe, mas,
muitas vezes, seus desejos a impedem de fazê-lo, o que provoca muitas dúvidas, culpas e
inseguranças. Chauí (1985) nos esclarece que exige-se das mulheres que sejam isto ou aquilo
para os outros, esta mesma exigência não é feita para os homens. Dessa realidade, surge a
hipótese defendida pela autora: as mulheres praticam violência sobre as outras porque
reproduzem sobre elas o mesmo padrão de subjetividade. Isto é: encaram as outras e esperam
que elas se encarem a si mesmas como seres para outrem, sobretudo através da maternidade.
Nos parece ser justamente isto o que a mãe de Gabriela faz, já que se doou a vida inteira para
o marido e a família, e agora exige que sua filha faça o mesmo. Essas informações nos
parecem suficientes para afirmarmos que o sentido subjetivo da mãe está exercendo forte
pressão no sofrimento atual e na qualidade da vivência materna de Gabriela.
Encontramos ainda outra contribuição de Chauí (1985) muito interessante para
compreendermos o sentido subjetivo da “supermãe” de Gabriela. Segundo esta autora, a
supermãe e a supermulher aparecem com uma capacidade ardilosa para manter sob sua
dependência aqueles de quem acredita depender. No espaço doméstico, esta inversão se
reflete nas relações entre mãe/filha, sogra/nora, irmã mais velha/irmã mais nova, esposa/
amante, patroa/empregada e tendem a ser convertidas em desigualdades hierárquicas, com
requintes de autoritarismo, subordinação e perversidade. Observa-se nessas díades que as
primeiras se colocam numa posição superior, onde simplesmente desejam que as segundas
sejam para elas. Isto é, que sintam, pensem e façam como as primeiras determinam, levando a
uma anulação das segundas. O pressuposto fundamental apresentado por Chauí (1985) é que
os modelos de boas mães, boas esposas, boas empregadas são estereótipos montados pelas
ideologias, ou seja, uma predeterminação normativa do ser de cada mulher que as força a ser
uma cópia da outra conforme uma finalidade externa a elas. Assim, a idéia básica é que as
“cópias conformes” sejam desprovidas de interioridade, que sejam coisas moldáveis pela
vontade e pensamento dos outros. Estaria Chauí falando da supermãe de Gabriela?
Por fim, há ainda um outro núcleo que se mostrou muito significativo para as
construções teóricas que estamos fazendo nesta tese. Algo muito interessante de se destacar
na configuração subjetiva de Gabriela é a forma como encara seu sofrimento psíquico. Ela
reduz-se a uma doença, diante da qual não pode fazer nada. Sente-se dominada pelos
sintomas da depressão: tristeza, angústia, pensamentos ruins, idéias suicidas e infanticidas.
As interpretações e hipótese que criamos para Gabriela nos levaram a construir o núcleo
denominado: “Identidade de enferma: sou uma depressão”. Observa-se o fenômeno da
“inundação”, no qual se percebe “invadida” e resumida à sua depressão/loucura e fica presa
a ela, incorporando-a em sua identidade.
Além disso, a depressão já era uma “velha conhecida” de Gabriela: ela sabia
reconhecê-la, identificá-la e até como tratá-la; tanto que ela própria buscou ajuda médica, e
90
não apresentou resistências para se consultar com psiquiatras, como geralmente acontece
com a população leiga. Suspeitamos que, assim como parece ter acontecido em relação à
condição de gestante, Gabriela também procure proteção sob a condição de “doente”, já que
apenas a sua condição de “Gabriela/mulher”, não é suficiente para assegurá-la e resguardá-
la. Relacionados a esse núcleo, aparecem os indicadores de conflito conjugal e de
desvalorização e repressão do seu “eu”, e identidade de doente, que a esta altura de nossa
construção representam juntos, na nossa opinião, elementos centrais na configuração
subjetiva de seus sintomas depressivos atuais.
Há ainda, outras frases que nos permitem continuar nesta linha de questionamento da
depressão naturalizada, como aparece nas seguintes afirmativas do completamento de frases:
“As pessoas...não entendem e não respeitam minha doença”; “Minha opinião...muitas vezes
não é respeitada”; “Penso que os outros...deveriam ter mais respeito pelo próximo”; “O
sexo... é gostoso”; “Quando estou sozinho...fico bem”. Nessas frases, mais uma vez se
integra outro indicador à hipótese em desenvolvimento: Ela aspira encontrar respeito e
comprenssão através de sua condição de enferma e não pelo que ela é. Ou seja, ela se
apropriou da doença como instrumento protetor de suas relacões sociais e conjugais e assim,
neutraliza os conflitos que ela experimenta no momento atual. Isso, nos faz pensar que ela
lança mão deste “escudo/ recurso”, justamente porque não tem sido possível, ou permitido a
ela, ser quem ela realmente gostaria, o que fica muito claro nas frases acima.
Destacamos ainda que nessas frases também aparece mais um indicador de que seu
estado emocional real não corresponde ao da depressão assumida. Considerar a prática
sexual como algo prazeroso e sentir-se bem quando está sozinha são sentimentos que um
deprimido raramente conseguiria ter. Esta é mais uma evidência de que seu mal-estar está
mais associado aos seus conflitos com os outros (seu marido, sua mãe, seu pai) do que por
uma depressão. Parece, ao mesmo tempo, que ela está utilizando a “desculpa” de estar
doente para não seguir em frente com sua vida, principalmente a conjugal e maternal. Assim,
no nível subjetivo, está se produzindo uma inversão do que lhe ocorre na realidade, ou seja, a
doença se apresenta como o problema, e o que ela evita encarar parece estar justamente na
base de sua depressão. A integração desta constatação com outros elementos expressados por
ela anteriormente nos levam a reforçar nossa impressão de que assume o diagnóstico,
reduzindo-se basicamente a ele. Isto também reforça a idéia de que há um processo de
naturalização da doença.
dessa afirmação dentre os outros casos estudados, nos permitimos supor que Larissa não se
rotula e nem se reduz ao diagnóstico de depressão, apesar de reconhecer-se em sofrimento e
em crise. Essa frase também nos permite uma idéia sobre o sentido subjetivo que a função
materna para ela tem, bem como o auto-conceito que ela expressa de si, que vamos seguir
construindo para melhor compreendê-lo.
Sintomatologia: os sintomas mencionados foram culpa, depressão, fadiga, medo,
angústia e perda de identidade. Sente-se muito alterada, insegura, culpada, chorando
facilmente, desde o nascimento de sua filha, há 10 meses. Queixa-se das mudanças na sua
vida após a maternidade: “perda” de identidade, afastamento dos amigos, “virou” dona-de-
casa, assumiu novas responsabilidades. Sente-se exagerando em sua avaliações, sentindo-se
sobrecarregada pelas novas responsabilidades da maternidade. Seu estado tem trazido mal
entendidos e dificuldades com seu esposo e com a babá da filha. Destacamos que diante da
divisão de papéis estabalecida, já podemos observar a questão do gênero como um elemento
de sentido que se produz na nova realidade.
História da gravidez/parto: Teve uma gestação saudável, mas os conflitos com a
maternidade começaram antes mesmo da gestação, quando já “fazia alguns questionamentos
sobre seu real desejo de ser mãe”, dizia ela. Segundo Larissa, durante toda sua vida foi
“convencida” por seus pais de que deveria ser mãe, mas infelizmente não teria capacidade
para sê-lo. Sempre acreditou nisso e baseada nesta “convicção” nunca se identificou com a
maternidade. No entanto, após dois anos de casamento, seu marido a “convenceu” do
contrário, e a tranqüilizou afirmando que ela tinha condições de a ser. Ademais, havia uma
enorme pressão familiar para que ela engravidasse. Diante desses apelos, resolveu engravidar.
Cabe destacar que nessas informações encontramos a forte presença de emoções
contraditórias, sugerindo que ela busca definir seu espaço simbólico em relação à
maternidade, mas encontra dificuldades de integrá-lo às concepções de figuras que a
mobilizam emocionalmente, como seus pais e marido. Esse conflito entre suas idéias sobre a
maternidade e a de seus pais e marido parecem estar muito presente na sua configuração de
sentido subjetivo de ser mãe e do sofrimento atual. Seguiremos acompanhando essa hipótese
para ver se ela se sustenta.
Larissa teve uma gestação sem complicações e continuou suas atividades
normalmente: não parou de trabalhar, não teve grandes alterações na imagem corporal, pois
não ganhou muito peso e, por isso não mudou seu vestuário. Para ela,“essas aparentes
facilidades foram amenizando sua dúvida sobre a maternidade”, pois achava que estava
“dando conta”. Porém, no parto, esta realidade começou a mudar. Foi submetida a uma
cesariana com graves intercorrências. Informa que teve uma queda súbita de pressão e ficou
desfalecida por alguns momentos logo após a retirada do bebê, necessitando de socorro
imediato. Em função de sua situação de emergência, sua filha acabou não sendo bem assistida
no pós-parto e teve uma importante perda sangüínea, pois não clampearam o cordão umbilical
corretamente, diante da tensão para salvar-lhe a mãe. Larissa diz não se lembrar do ocorrido
na sala de parto, somente depois soube que, tanto ela quanto a filha correram risco de vida,
como ela própria afirma no completamento de frases: “Meu parto...foi difícil, embora não
tivesse consciência”. Ela significou este ocorrido como um o primeiro impacto negativo da
maternidade, pois: “trouxe-lhe de volta o receio e insegurança para dar conta da nova
condição de mãe”. Essas informações nos mostram como o sentido subjetivo da maternidade
se alimenta de emoções que emergem no contexto puerperal e se integram a antigas
concepções que faz de si mesma, potencializando o conflito vivido.
História do puerpério/amamentação: Larissa percebeu-se muito alterada dias após o
nascimento da filha: “passei a não ter mais sossego mental, vivo esgotada, as vezes exagero
nas minhas idéias e emoções”. Reconhece que já passou por várias crises e momentos de
dúvidas ao longo de sua vida, mas que estas crises se intensificaram e se tornaram mais
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difíceis de lidar depois que sua filha nasceu, pois são quase diárias. Avaliando-se
retrospectivamente, Larissa afirma que a maternidade parece ter lhe deixado em situação de
crise constante há mais de um ano: sentia-se incapaz, culpada, triste, insegura com relação às
decisões mais simples. Percebia–se alterada em suas idéias, comportamentos e emoções, não
se reconhecendo mais como a mesma pessoa. Quando sentia que estava controlando uma
situação junto a filha, logo novos desafios se impunham e ela entrava em angústia novamente.
Observamos aqui um espaço de tensão, coexistindo um grande medo e uma resistência para
não sucumbir às exigências da maternidade. Isso provoca um sentimento de incapacidade, e
menos-valia e insegurança, que não nos parecem novos, mas reeditados na atual crise.
História médica/psicológica pregressa: Relata que sempre teve episódios de
ansiedade e angústia agudos, sobretudo diante de acontecimentos novos ou de uma situação
estressante. Quando criança, chegava a vomitar, parar de comer e de dormir quando tinha que
fazer provas na escola. Essas reações se repetiram em várias situações ao longo de sua vida:
no vestibular, no concurso para seu emprego, no casamento, na gravidez e no parto, mas
pioraram muito desde o nascimento de sua filha. Nunca buscou ajuda para essas “reações
depressivas”, mas agora percebe que precisa se ajudar: “para não me perder nesta nova
realidade”, pois a maternidade lhe traz desafios maiores a cada dia. Acha que suas
dificuldades emocionais estão se cronificando e agora tem uma filha para criar e “não pode
mais se dar ao luxo de ficar curtindo suas crises depressivas”. Aqui vemos expressões que
reforçam nossa hipótese anterior sobre a reedição de vivências, pois mostram que a sua
história passada se constitui numa fonte de sentidos subjetivos que possivelmente está
alimentando seu sofrimento atual.
Encaminhamento para o grupo: Larissa trabalha junto com nossa ex-estagiária, que
acompanhava o seu sofrimento e a informou do trabalho com mães com DPP. Veio por
indicação dessa amiga, mas por iniciativa própria. Ela compareceu sozinha à entrevista de
admissão, durante a qual apresentou-se muito emocionada, não contendo o choro. Demostrou
estar em pleno conflito. Pareceu ser muito reflexiva e ter boa noção dos sentimentos que tem
vivenciado. Ficou muito emocionada e incomodada com a possibilidade do diagnóstico de
DPP, sugerido pela escala Edimburgo (Santos, 1995). Chorou muito e disse sentir-se
fracassada diante desta condição. Cabe ressaltar que rejeitar o diagnóstico de DPP pode ser
um indicador de uma tentativa de não se reduzir ao seu sofrimento e a sua doença. Talvez,
por isso ela apresentava uma demanda ambígua: ao mesmo tempo dizia que gostaria que o
psicólogo a ajudasse a se conhecer melhor por perceber que suas crises “depressivas” se
repetem e fogem ao seu controle, fica muito mobilizada após as sessões e pensou em desistir
do acompanhamento.
Relação com sua mãe: parece ter um relacionamento muito ambivalente com a sua
mãe. O relacionamento já fora bastante conflituoso, sobretudo na adolescência, por grandes
divergências de opiniões entre elas. Segundo Larissa, sua mãe não aceitava e nem aceita o seu
jeito de ser, porque ela sempre renegou o papel de dona-de-casa, se afastando muito do
modelo tradicional de mulher, defendido e exercido por sua mãe. Larissa sempre fez questão
de se diferenciar deste “destino”, através das roupas (pouco femininas), da sua postura crítica
e questionadora, da rejeição da maternidade, da priorização aos estudos e a profissão, do
distanciamento das regras familiares e construindo para si o seu próprio mundo. Neste
sentido, ela nos contou: “Eles nem acreditaram quando eu disse que iria casar, já não
esperavam que isto pudesse acontecer. Eu já era um caso perdido”. Ressaltamos nesta frase,
o clima de menos-valia e enfermidade estimulado por sua família, pelo que se expressa os
dois sentidos subjetivos assumidos à família e à si mesma. Por isso, até o seu encontro com a
maternidade, sua mãe parece ter lhe servido um “anti-modelo”, ao contrário do que aconteceu
com sua irmã, que é muito parecida com a mãe. Porém, após o nascimento de Manuela houve
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pai e companheiro. Os trechos seguintes mostram este reconhecimento: “Meu marido ficou
um dia todo com a Manuela e, quando eu cheguei, ele disse: toma que ela tava morrendo de
saudade de você. Aí ele começou a me elogiar. E eu comecei a elogiá-lo, e comecei a deixar
ela mais com ele...”. Este reconhecimento foi um crescente durante as sessões e, ao final do
grupo, o casal já parecia mais sintonizado e procurando se reencontrar dentro no novo papel
parental: “O meu marido uma vez falou que a Manuela possibilitou a gente colocar as coisas
no lugar. Ele perguntou: será que se a gente só tivesse casado, sem a Manuela, a gente ainda
estaria junto? No sentido de que ela tá possibilitando dúvidas, conversas, os
questionamentos.”
Relação mãe- bebê: Questiona muito a sua real capacidade de ser mãe. Parece que esta
desconfiança se refletiu nos cuidados com o bebê, no pós-parto. Ela praticamente, não
cuidava da filha, tinha sempre alguém para fazê-lo: “ afinal ela não sabia mesmo cuidar de
uma criança”. Assim, ela mesma preferia que os outros cuidassem de sua Manuela, e a
“entregou” para os cuidados de uma babá. As dificuldades que percebia ao cuidar da filha
parece que reforçavam este auto-conceito negativo. Larissa praticamente pegava a filha no
colo apenas na hora de amamentá-la ao seio. Com exceção deste momento, sentia-se excluída
da vida de sua filha; por isso, desenvolveu um medo muito grande de que a filha não gostasse
dela e que fosse “perdê-la” para a babá. Para nós, esta atitude fez com que ela se sentisse
ainda mais incapaz, pois, por outro lado, acreditava que ela mesma deveria se incumbir de
todas as tarefas e cuidados com a filha. Fica evidente nessas informações a contradição entre
valor e sentimentos, ou seja, entre o que ela acha que deveria ser uma mãe e o que ela sente
que quer ser enquanto mãe. A insegurança percebida expressa um sentido subjetivo em
relação a si mesma enquanto sujeito ameaçado pela nova função materna.
A principal dificuldade relatada foi em referência à babá, que trabalhava tempo
integral e pernoitava na residência da família, e era extremamente dedicada ao bebê,
prestando-lhe todos os cuidados. Aos poucos, começou a nutrir um significativo sentimento
de ciúmes em relação babá, implicando com tudo que viesse dela, inclusive sua irritante voz.
Quando chegou na terapia estava no auge deste conflito. Passava sessões inteiras reclamando
ou desqualificando a babá. A convivência entre as duas estava insuportável, e o pior era que
Larissa não se sentia respaldada por ninguém em suas queixas contra a babá, pois todos só
enxergavam nela apenas uma pessoa muito dedicada, sobretudo a sua mãe e seu marido. Essa
rivalidade com a babá mereceu nosso destaque, pois além do ciúmes em relação à sua filha,
acreditamos que este também era alimentado pela sua história de rivalidade com a sua irmã
mais velha. Após muito falar, chorar, expressar, contar esta história, Larissa, optou pela
decisão de demitir a referida babá. Depois que ela foi embora de suas vidas, Larissa começou
a melhorar muito. Passou a cuidar da filha, e se surpreendeu com a sua capacidade de atendê-
la e satisfazê-la, enfim de ser mãe.
Pensamos que babá carregou um sentido simbólico da configuração subjetiva de sua
história de vida, sobretudo quando a dificuldade de relacionamento com sua mãe. A babá
parece que ocupou o lugar da irmã, nesta triangulação, tanto que uma das coisas que mais
incomodava Larissa era o fato da Babá “achar que fazia parte da sua família e demonstrar
muita intimidade com todos”. Essa análise é importante para mostrar como um sentido
subjetivo atrelado a uma determinada vivência se expande e se generaliza na complexa rede
da configuração subjetiva de um sujeito.
Após construirmos esta interpretação sobre a relação de Larissa e a babá, encontramos
o que nos diz Chauí (1985) a este respeito. Para ela, na relação entre patroa e doméstica fica
evidente que a existência de uma babá desautoriza uma mulher como mulher, pois prova a sua
incapacidade para funções que a definem em seu próprio ser. Dessa forma, se a mulher é vista
como o “braço-direito” da “cabeça” do casal, a empregada é uma prótese acrescentada para
aumentar-lhe sua eficiência, suplemento este obtido pela desigualdade das riquezas e entre as
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configurações de sentido”, nos afirma González Rey (2005b, p. 145), por isso acreditamos
que seu interesse e seu afã em conhecer possivelmente sejam elementos de sentido
amplamente estendidos em suas diversas configurações subjetivas atuais.
Entretanto, Larissa não estava estudando naquele momento, e parecia sofrer muito
com isso, pois era evidente em suas expressões a sua enorme vontade de voltar a se dedicar
aos estudos. Várias vezes afirmou que queria estudar arte-terapia para entender melhor seus
alunos. Porém, continuar a estudar lhe causava muita culpa e conflito, porque implicaria em
dividir o tempo que “deveria ser de sua filha”. Também encontramos indicadores de
conflitos nesse mesmo sentido em várias frases do completamento: “Minhas
aspirações...alcançar sabedoria no âmbito familiar/profissional”; “Minha principal
ambição...continuar a estudar”; “Meu principal problema...é dividir meu tempo, minhas
tarefas”. Por isso, sentia muita falta do trabalho quando estava de licença maternidade, mas
quando teve de retornar, sentiu-se muito dividida entre o trabalho e as demais atividades:
estudo, casa, filha, casamento. É importante ressaltar que nessas informações unem-se dois
processos de naturezas distintas em seu significado emocional: um relacionado à qualidade
de sua maternagem e outro à sua vida profissional, o que já poderia ser considerado, para ela,
um indicador indireto sobre o sentido conflituoso de ambas as esferas de sua vida. Esses são
outros elementos que alimentam a configuração subjetiva do seu sofrimento atual.
Com base nessas informações, desenvolvemos indicadores que nos autorizam a
identificar as seguintes hipóteses sobre os núcleos de sentido que apareceram em suas
expressões, a saber:
No caso de Larissa, essa tensão que se forma pela falta de identificação com o
mundo que a cerca, em especial com o da maternidade exclusiva, que se generaliza e que
aparece marcadamente em seu discurso: “Eu prefiro esquecer meus desejos que me
distanciem da minha filha”, nos fez construir um núcleo de sentido que nos pareceu bastante
relevante na sua configuração subjetiva intitulado:“ Sou uma aberração, não sou deste
mundo”.
Neste núcleo, identificamos uma mulher que afirma reiteradas vezes nas sessões e no
completamento de frases que se sente muito diferente das outras pessoas. Parece ter se
refugiado no seu mundo, o mundo das artes e dos artistas, para se resguardar. Mas,
maternidade lhe “puxou” para uma outra realidade a dos mortais: “Antes eu estava muito num
mundo das idéias, dos livros, do estudo. E a Manuela me trouxe para as coisas práticas, essa
coisa de cozinha, de pôr o sapatinho, pôr o laçinho nela, de mexer com essas coisas mais
humanas do mundo.” Vemos aqui a identidade, o sujeito tomando a posição de gênero,
querendo se aproximar do mundo “feminino”, do mundo hegemônico da mulher na nossa
cultura.
Porém, este novo mundo ainda é muito ameaçador e tem se apresentado de forma tão
dura e pouco poética que ela sente muita falta do seu mundo dos artistas. Deseja voltar para
ele através dos estudos, para poder ser quem ela é – diferente. Nas primeiras sessões se
julgava muito, tendendo a se culpar por tudo e se considerar errada e exagerando em suas
percepções. Aos poucos, começou a se permitir fazer questionamentos e parecia assustada
com as respostas que encontrava dentro de si. Algumas vezes, quis desistir do
acompanhamento, pois temia não suportar as conseqüências dos questionamentos que fazia
sobre sua condição e ser punida com abandono dos outros. Temia se diferenciar muito e se
excluir socialmente, o que fazia com que ela se sentisse uma “aberração”.
Por outro lado, este núcleo demarca um forte movimento em busca de si mesma, pois
após o nascimento de sua filha, um novo posicionamento fez-se necessário e urgente em sua
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vida. A tentativa de Larissa de encontrar caminhos que a ajudem a esclarecer o que está
obscurecido, confuso e sofrido é evidenciado num progressivo processo de transformação
pessoal, que a levou à psicoterapia. O conflito de emoções asseguradas no dever e nos papéis
sociais, e outras emoções mantidas por sentidos subjetivos diferentes, marca uma crise de
identidade. Nesse âmbito, confrontam-se o “velho” e o “novo”, onde o outro e o eu da
participante se sentem terrivelmente ameaçados. Disse ela na técnica de recorte e colagem
referindo-se às figuras do anexo H:“Tem aqui uma família que está cheia de simbolismo, de
coisas de tradição. Eu acho que a maternidade resgata muito isso. Mesmo que a gente esteja
construindo um papel muito pessoal de ser mãe, mas a gente carrega muita herança aí”. Por
outro lado não se identifica nem com a idéia romanceada de maternidade, nem com as outras
mães que a cercam, sobretudo a sua mãe e a sua irmã.
Assim, nos pareceu que fez a opção de engravidar muito insegura e desconfiada de sua
real capacidade e do seu desejo de ser mãe. Aqui observa-se claramente a tensão existente
entre os valores sociais, o ideal de mãe representado por sua mãe e seu marido e a sua
posição de sujeito. Evidencia-se o conflito entre um “dever ser” que responde ao imaginário
social e os sentidos subjetivos sentidos que ela não consegue assumir plenamente.
Acreditamos que este conflito tenha se concretizado sobretudo na relação ambivalente que
mantinha com a babá de sua filha. No processo psicoterápico individual, Larissa percebeu que
permitiu que os outros tomassem conta de sua filha, pois não se sentia apta para tanto, porque
não conseguia empregar um sentido de maternidade como o dominante socialmente. Isso fez
com que ela se distanciasse ainda mais da filha e da possibilidade de se “qualificar” para
exercer a maternidade. Por outro lado, se culpava, pois acreditava que não deveria ter que
precisar de uma babá; visto que a maternidade derivaria de um saber instintivo.
Percebe-se, assim, uma grande ameaça à sua identidade de mulher, proveniente da
tensão com a maternidade. Esta “crise de identidade” foi bem caracterizada quando ela
referiu-se à figura da técnica de recorte e colagem (Anexo H) : “Eu coloquei aqui em cima
um gato acuado e do outro lado um cachorro bravo, às vezes eu me sinto em uma dessas duas
posições. Hoje eu tô acuada hoje eu tô ameaçando. A quem ou ao quê? Às vezes eu me sinto
acuada de ter que estar ali só eu cuidando da Manuela. Enfim, de querer fazer uma coisa e
não dar conta. Hoje tem de tomar todas as decisões, isso quer dizer que algumas eu não
consigo levar em consideração. às vezes eu me sinto nas duas situações. Às vezes mais para
gato, às vezes mais para cachorro.” Esse conflito também fica muito claro quando ela tentava
definir a maternidade, na mesma técnica: “Coloquei uma mulher se olhando no espelho, o
tempo todo a gente se confronta. Será que sou eu mesma, ou é uma outra pessoa?”. Essas
frases indicam claramente que Larissa vê a vida doméstica e a maternidade como uma forte
ameaça a si enquanto sujeito desejante, e parece lutar com todas as forças para manter-se no
centro de sua vida.
Esta crise se revelou também com relação a sua sexualidade, quando ela comenta, na
técnica de recorte e colagem: “É a questão da feminilidade mesmo, essa coisa do corpo, da
nudez. Esse questionamento será apesar de ser mãe, da transformação do corpo, será que as
coisas de antes ainda vão continuar valendo, vão estar presentes...?” Em uma sessão ela
também se questionou: “Ah... eu já fui adolescente, agora é mãe e como vai ser essa questão
da identidade visual também”. Nessas frases aparece, de outra forma, seus desejos, seus
valores comprometidos com a imagem que tem de si própria. Isso lhe confere um valor
particular como elemento constitutivo de sentido subjetivo da sua identidade.
Durante todo o acompanhamento, ficou muito evidente a sua necessidade e a sua
dificuldade de se assumir. Neste sentido, em uma das sessões de grupo, apresentou o seguinte
comentário endereçado às outras participantes: “E aconteceu, no meio do caminho da terapia,
de eu achar que eu estou bem e não querer ir mais e eu tinha a sensação de que estava muito
pior. E ela (referindo-se a mim) disse: Larissa quando você estiver assim, venha, é só o
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momento... entende?. Porque você já está numa caminhada, depois você começa a andar
sozinha... Assim, a impressão que eu tenho, é como uma criança que está aprendendo a
caminhar mas ela ainda precisa de você ali. tem momentos que ela está querendo andar mais
rápido, e cai... então eu me sinto nesse sentido...eu já não tenho mais a sensação de não
querer mais vir aqui.”. Esse trecho expressa o seu caminho em busca de sua produção própria
e autêntica.
Nos parece que haver uma história de vida por trás deste temor que nos permitiu
construir a hipótese de que Larissa teme não ser aceita ao falar ou viver o que quer, pois a
“exclusão” foi o preço estipulado por sua mãe, por ela não ter se “encaixado” no papel
feminino traçado por ela. Na sessão que fizemos com as avós, a mãe de Larissa deixou clara a
sua concepção naturalizada e divina de maternidade, disse ela: “As pessoas falam que as
meninas nasceram para ser mães e as vezes eu acho que eu nasci com esse Dom, né? Eu sou
mais velha do que a minha irmã caçula nove anos e quem cuidou dela fui eu. Minha mãe,
quando ela tinha dois anos, saiu para fazer tratamento e quem dava banho, botava para
dormir era eu.”. Na mesma sessão ela disse ainda: “Eu rezava para a minha filha mais nova
ter um filho porque ela não podia ter. Mas eu disse a ela que seria ela a primeira a me dar
um neto porque tinha casado primeiro, era ela quem ia ser mãe primeiro, e não a Larissa. Eu
rezei muito e ela engravidou.”. Esta “obrigação” de ser mãe foi muito bem percebida por
Larissa. Certa vez, disse: “ Quem mais me conhece é quem mais me cobra....”. Ademais, em
outra sessão ela fez a seguinte afirmação sobre a comemoração do dia das mães: “Quando eu
penso no dia das mães, eu penso na minha mãe e não em mim.”
Neste ponto, entendemos que já temos elementos suficientes para sugerir um núcleo
de sentido de fundamental importância para Larissa, que trata da sua constante busca por uma
espaço de realização pessoal - “Pretendo dar voz ao meu desejo”. Este núcleo expressa a
tensão entre a sua capacidade para resgatar a si mesma enquanto sujeito e de manter uma
posição ativa em sua produção intelectual frente aos preconceitos dominantes e os rótulos
sobre o seu modo de ser, que, na nossa opinião, se converteu em uma importante fonte de
sentidos subjetivos em relação à maternidade e à DPP. Apesar de nos sinalizar para
prognóstico positivo para Larissa e enfraquecer ainda mais a hipótese diagnóstica de
depressão, este núcleo sintetiza o espírito de luta, mas também de mais um conflito que
caracteriza o a sua vida. Ela nos mostrou ter muita clareza sobre o que é, o que quer, e tem
muita disposição para lutar por isso, porém se recusa intencionalmente a naturalização do que
estabelecido socialmente.
Trata-se de uma jovem com uma forte orientação volitiva, que se posiciona como
sujeito em seus diversos sistemas de relação, nos quais tenta ter seu próprio espaço, incluindo
o social numa perspectiva mais ampla. Destacam-se a todo momento nos seus relatos, no
completamento de frases e nas técnicas projetivas, vários indicadores de que ela pretende dar
voz ao seu desejo, e não abrir mão do que quer, ainda que tema as suas conseqüências. Isso
nos levou a construir esse núcleo de sentido.
No entanto, ela sente muita culpa e medo de ser excluída por este movimento Por esta
razão, parece estar tentando encontrar a melhor forma de conciliar seus diversos desejos e
papéis de forma a não prejudicar ninguém, nem a si mesma e assim não correr o risco de ser
excluída e abandonada. A frase do completamento mostra muito bem esta cautela: “Tratarei
de conseguir...aos poucos, devagar e selecionando o que desejo e amo “. Observamos que
esta tensão é um dos principais conflitos vivenciados por Larissa ao longo de sua vida,
principalmente relacionado ao seu passado com sua mãe.
A forma com que sua mãe participa da configuração da maternidade de Larissa, e o
sentido subjetivo da mãe, já aparecem em sua história de vida na luta para ser reconhecida
como sujeito, por reivindicar uma posição ativa e singular frente ao socialmente e
familiarmente estabelecido. Em uma das sessões de grupo, ela relatou que durante a sua
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adolescência deixou de comparecer a várias festas, pois queria ir vestida de uma forma que
desagradava muito a sua mãe; então, para não magoá-la e nem se forçar a ir com um estilo de
roupa com qual não se identificava, preferia deixar de ir a festa. Este é um bom exemplo de
que ela evita o confronto diante da sua necessidade de se assumir, chegando a algumas vezes
a renunciar temporariamente ao que deseja. Entendemos que o sentido subjetivo de sua mãe é
um elemento relevante da configuração subjetiva do sofrimento atual, que se expressa em
sintomas da DPP.
A tentativa de conciliação também fica evidente na seguinte reflexão de Larissa:
“Acho que a gente passa por vários graus, da privação para negociação.” A evidência deste
conflito entre o que eu quero e o que posso querer, nos sugere, que o conflito atual não se
instalou agora, mas que ele já é “um velho conhecido” de Larissa e que ela desenvolveu
estratégias como esta para lidar com ele. Portanto, percebe-se em seu discurso que ela quer e
luta para conciliar seus múltiplos desejos e resiste em se reduzir ao papel de mãe e dona de
casa. Parece ter prazer em ser mãe, mas sente um incomodo/culpa quando acha que, para
exercer bem esta função, tem que abrir mão de seus outros desejos. O seguinte trecho nos
mostra que ela passou a conotar positivamente a chegada da filha: “ a Manuela me permitiu
ser mais completa.... Eu me sinto mais a vontade para procurar mais coisas, mais
experiência, então quando coloco a coisa do sapato (referindo-se a figura do anexo H), seria
a coisa de se cuidar mais, de reelaborar mais isso”.
Porém, o conflito emerge quando ela percebe que deseja continuar estudando,
aprimorando sua vida profissional, exercendo sua sexualidade, sendo uma boa esposa, mãe e
filha. Não quer abandonar os seus sonhos e desejos, os quais após a maternidade estão lhe
parecendo inconciliáveis, por isso sofre e se reprime e teme ser preterida, como revela o
trecho a seguir: “E eu ficava pensando como vai ser quando eu começar a trabalhar... será
que a Manuela vai gostar de alguém. E o pior eu achava que se ela gostasse de outra pessoa,
ela não ia gostar de mim... e eu poderia ficar com raiva de outra pessoa... e ela sabe
distinguir isso. Se tiver uma outra possibilidade, uma outra pessoa para também tem carinho
ela vai ganhar. Ela vai ter você, vai ter o pai e vai ter a irmã”. Nessas expressões Larissa nos
mostra que está trabalhando arduamente para reorganizar uma posição frente a vida.
Mas não seria mesmo querer demais, subverter o seu destino, exercendo a maternidade
a seu modo, já que ela não se identificava com a maternidade preconizada social e
culturalmente? É fazendo frente a essas imposições sociais que ela tem expressado a sua
capacidade para significar a nova crise vital pela qual está passando e para se reencontrar
nela como pessoa que elaboramos um indicador central para lhe definir como sujeito da
doença. Ou seja, apesar do sofrimento, diante da doença, ela não se subordina, tomando uma
posição ativa que marca o sentido subjetivo da DPP.
Nesse caso, vemos claramente um sujeito em tensão com as figuras simbólicas
produzidas e nas suas relações afetivas mais primitivas e nos discursos sociais dominantes, os
quais estão presentes em quase todos os espaços sociais, institucionalizados ou não. O sentido
subjetivo autêntico de uma maternidade não se constitui apenas por uma representação
externa que foi passivamente internalizada pelo sujeito, mas ganha sentido subjetivo por estar
perpassado pelo afeto em relação às figuras centrais da vida, como mãe e marido de Larissa, o
que gera uma tensão muito forte que nutre o sofrimento vivido no presente.
Vemos neste caso que esse sujeito complexo por nós defendido, se revela também por
meio de sintomas diagnosticados como DPP, embora constituído dentro dos espaços
simbólicos dominantes, representa uma alternativa individual frente à maternidade imposta e
exclusiva e apóia-se na capacidade singular geradora de sentidos subjetivos do sujeito social.
O caso de Larissa nos mostra como a configuração singular de um “rótulo padronizado” nos
permite compreender, não apenas o estático da pessoa e como ela se configura, mas como ela
se movimenta na realidade atual e seu impacto nessa organização subjetiva.
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Hospital psiquiátrico São Vicente de Paula, que é referência para este tipo de tratamento no DF.
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Na crise atual, ela se apresenta muito instável emocionalmente: “Sinto uma tristeza,
uma angustia. Não tenho vontade de falar nada com ninguém... fico rezando a Deus que
ninguém chegue na minha casa. Ás vezes eu quero que chegue alguém. Às vezes eu quero
escuro, às vezes eu quero claridade, às vezes eu quero musica, as vezes eu quero quebrar as
coisas.” Afirma que esses sintomas não são muito diferentes das outras crises depressivas que
teve. O que é diferente é a intensidade e a falta de apoio. Assim, atualmente, se percebe ainda
mais doente, pois nas outras crises depressivas sua mãe lhe cuidava e ela “podia se livrar
daquelas coisas que estavam acontecendo com ela, eu era nova, sem filhos, sem
responsabilidades e agora tenho que cuidar do Gustavo e do Edgar”, e, portanto, não tem o
direito nem de expressar o que está sentindo. Lúcia expressa-se como se fosse incapaz de
mudar sua própria vida. A perda da auto-estima e autoconfiança está relacionada
principalmente com a imagem de doente e incapaz que faz de si mesma. Lúcia nos parece
uma mulher que não teve espaço para ser e existir como pessoa, apenas no papel de filha. E o
que é pior, no de doente.
Relação mãe- bebê: a relação com o filho parecia bastante prejudicada, por causa das
dificuldades com a amamentação. O choro dele a deixava desesperada. Na entrevista de
acolhimento ela afirmou: “Quando eu tive alta, eles levaram o bebê para bem longe porque
eu não suportava nem ver o menino e, quando eu ouvia o chorinho, eu queria correr, eu
queria estar boa para levantar da cama e sair correndo porque eu queria ele bem distante de
mim porque eu não podia amamentar. Era como se eu quisesse me livrar dele.. eu não queria
saber dele.” Ao relatar isso, olhava para seu bebê em seu colo e chorava lamentando seus
sentimentos: “Eu não sei fazer nada e o pai também não sabe fazer nada, a gente não sabe
fazer nada” desesperava-se ela nas primeiras sessões, mostrando toda a sua impotência diante
da difícil realidade e que o filho era uma fonte de frustração. Sentia-se, por isso, muito
culpada, impotente e desanimada.
Depois do acompanhamento no banco de leite, conseguiu amamentar, e seus
sentimentos se modificaram: - Alessandra: “O que você acha que aconteceu para isso
mudar?” - Lúcia: “A cura do meu peito.. não totalmente. Mas isso fez com que eu me
apegasse a ele.” (...) Agora eu tô conseguindo conciliar a Lúcia com o Gustavo. Sabe eu tô
conseguindo ter uma ligação”; demonstrando-se mais aliviada por achar que estaria
conseguindo cumprir o seu papel de mãe.
É importante destacar que, aos poucos, o sentimento de rejeição foi se modificando e
deu lugar a um enorme sentimento de culpa e atitudes de superproteção: “Às vezes eu acho
que ele chora por minha causa e eu acho que eu tô passando stress para ele...eu não sei
porque ele chora a noite toda”. Apesar de sentir-se exaurida pelas demandas do filho, ela
passou a se dedicar integralmente a ele e aos cuidados com a casa. O filho passou a ser o
centro de sua vida. Até mesmo o marido que era uma forte referência foi deixado em segundo
plano: “Meu maior tempo dedico... neste momento, ao meu filho”; “Sempre que posso...me
dedico ao Edgar”. Então, se antes ela queria “se livrar” do filho, agora não consegue se
separar dele: passava o dia com o ele no colo, não saía de casa, não permitia que ninguém a
ajudasse, não se permitia descansar, pois achava que o bebê poderia não sobreviver à sua
falta: “Não sei acho que ele vai querer mamar, vai chorar...que a pessoa não vai cuidar tão
bem quanto eu acho que ele vai precisar de mim”.
Nos parece que Lúcia sente hoje que tem obrigação de reparar o mal cometido por tê-
lo rejeitado, e este sentimento a leva para o caminho da superproteção e da dedicação
exclusiva ao filho. Este contexto corrobora a concepção de Parker (1997), ao afirmar que em
alguns casos a mãe, consciente de sua ambivalência, decide compensar a aversão pelo filho
com um amor apaixonado.
Apenas em momento de desespero se permitiu deixá-lo com uma vizinha: “Essa
semana que passou eu não agüentei...Eu não gosto de fazer isso, mas eu fui lá na vizinha e
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disse: pelo amor de Deus, fica pelo menos 15minutos com o Gustavo para eu poder me
organizar porque eu tô assim doidinha, já nem sei o que eu tô fazendo”. Apesar de todo o
sofrimento vivenciado, o filho lhe trouxe um novo sentido para viver, já que andava muito
infeliz com sua vida. Agora ela se sente útil e com uma missão a cumprir: criar o seu filho.
Tanto que, no completamento, afirma: “A vida...é importante, principalmente agora”. No
completamento de frases, o sentido subjetivo que o filho tem para ela fica evidente nas várias
frases em que se refere explicitamente a ele, tais como: “A preocupação principal... não saber
lidar com meu filho”; “Gostaria...muito que meu filho me amasse como eu o amo”; “Meu
maior desejo....é saber cuidar do meu filho”.
Mas, a despeito desta melhora no vínculo com o filho, a tristeza, a angústia e o
desânimo continuaram a incomodá-la a atrapalhá-la em suas atividades diárias. Isso nos faz
pensar que as dificuldades na amamentação foram apenas mais uma barreira que serviu de
“pretexto” para justificar a sua depressão. Ou seja, a crise de depressão atual foi apenas
aparentemente desencadeada pelas dificuldades de amamentação do bebê e pelas dificuldades
de cuidar dele no dia-a-dia. Mas, de fato, a sua depressão não parece estar relacionada
exclusivamente às vivências do pós-parto, ainda que elas tenham sido negativas em alguns
aspectos. Nos parece que a depressão assume um lugar muito mais amplo, antigo e
significativo na configuração subjetiva de Lúcia e, por isso acreditamos que ela vá muito além
de uma DPP. Qual será o sentido subjetivo que a depressão assume para Lúcia?
Relacionamento conjugal/pai do bebê: Lúcia foi casada por cinco anos com seu
primeiro marido. Descreveu esse antigo relacionamento como muito ruim e distante, por isso
começou a beber e a levar uma vida desregrada: “Bebia todos os dias, saía com as amigas
para bares, passava a noite fora e as vezes, levava dois a três dias para voltar para casa”.
Essa situação acabou culminando na separação conjugal. Foi nesta época que conheceu o seu
atual companheiro Edgar. Ele era muito diferente de seu ex-marido: “era carinhoso,
atencioso e me ajudou a deixar a bebida e ainda me deu um filho”. Seu amor e gratidão pelo
atual marido ficam evidentes na frase: “ quando começamos a namorar eu estava ruim
mesmo, ele me salvou”; “Meu marido...neste momento está sendo tudo para mim”; ” Quando
estou sozinho... nem sei, acho que penso no Edgar”; “Meu maior medo...ficar sem meu
marido”.
Para ela, a gravidez veio completar a felicidade que estava sentindo ao lado do seu
novo companheiro. Ela afirma que o casal estava feliz com a chegada do bebê. O marido
parece ser uma figura central em sua vida, é citado várias vezes no completamento, sempre
acompanhado de uma forte mobilização emocional: “Eu gosto... do meu filho, do Edgar e da
minha família”; “Amo...meu filho, meu pai, meus irmãos e o Edgar”; “Eu gosto muito... de
sair com o Edgar”. Porém, por mais que faça, sente-se em dívida por não estar conseguindo
ser a esposa que ela acha que seu marido gostaria: “Lamento... não poder ser a esposa que o
Edgar merece”; “Fracasso... sou um fracasso de mãe e esposa”; “Me esforço
diariamente...para ser mãe e para ser esposa”. Essas expressões também são indicadores de
que está existindo um forte conflito em ambas as áreas: a maternidade e a conjugalidade,
havendo muita dificuldade de se integrar em sua configuração subjetiva. Resta-nos entender
como esse conflito está participando da configuração da depressão após o parto.
As informações acima sugerem que sua convivência com o companheiro era boa, no
entanto, após o nascimento do bebê, os conflitos com o companheiro começaram. Percebe que
o marido fica muito nervoso com o choro do bebê, o que a deixa mais angustiada: “Ele já
chega tão estressado em casa (...) por isso que eu privo ele dessas coisas por isso eu evito que
ele ouça o choro à noite...” Às vezes, tranca-se no banheiro junto com o bebê para chorar,
para não incomodar o marido, pois teme que ele não suporte a situação e a abandone junto
com o filho: “Eu me tranco dentro do banheiro á noite com o bebê chorando, para não
acordar ele, para não incomodar”. Por essa razão, tem evitado falar com seu marido dos seus
104
sentimentos tristes e do seu desânimo: “Eu tenho tanto medo disso...eu gosto muito do Edgar
e eu sei que ele gosta muito de mim também. E eu tenho medo desse meu problema fazer com
que ele se afaste de mim, que ele canse da minha tristeza”. Esses relatos nos sugerem que
Lúcia não se sente no direito de incomodar o marido com seus problemas, já que ele a ajudou
a sair da pior fase de sua vida, sugerindo ter uma “dívida” para com ele, afinal ele lhe salvou
e lhe deu uma nova vida e um filho!
Relação com sua mãe: a mãe de Lúcia faleceu há um ano atrás,. Pelo seu relato e pelas
respostas no completamento de frases, parece que ainda hoje encontra-se enlutada: “Sofro...
com a morte da minha mãe”; “A morte...prefiro nem falar nisto, me causa dor”. Sempre se
refere a ela de uma forma positiva e saudosa. Lúcia afirma que tinha uma boa relação com a
mesma, que era a única que lhe ajudava e, por, isso tem boas lembranças dela. Assim, sua dor
atual é acentuada pela falta de apoio e pela busca de uma modelo onde se espelhar: “Sinto...a
falta da minha mãe”; “Eu freqüentemente reflito...sobre o meu relacionamento com a minha
mãe”. A dor da perda da mãe pode estar sendo revivida neste momento do pós-parto, pois
representa a perda de um apoio importante neste momento crítico de sua vida. Será que busca
nela respostas para as dúvidas e as decepções que a maternidade tem lhe trazido?
Relação com o pai: Seu pai é outra figura bastante idealizada: Meu pai...É TUDO
PARA MIM, amo demais”, escreveu ela com letras maiúsculas no completamento de frases.
Ele é compreensivo e a ajuda, inclusive com o bebê, sendo para ela uma fonte de apoio. No
entanto, sente-se incomodada com o fato dele ser alcoólatra. Por isso, ela, naquele momento,
diz estar um pouco afastada dele, já que ela já se tratou da dependência deste mesmo “vício”.
Mesmo assim, continua preservando uma imagem positiva do pai. inclusive faz questão de
cuidá-lo, como afirmou no completamento: “Me esforço...para cuidar do meu pai”
Relacionamento familiar: O casamento dos pais era bom. A relação do seu pai com
os filhos era muito boa, pois ele era muito “brincalhão”; já a mãe era mais “severa” e
brigava mais. Dessa união, foram gerados sete filhos. Lúcia é a quarta filha do casal, a mais
nova das mulheres e “a que foi criada com mais dengo”. Lúcia lembra-se de muita coisa da
infância, que, segundo ela, foi muito boa. Já da adolescência, quase não se recorda. Seu afeto
por sua família fica evidente em algumas frases do completamento: “Amo...meu filho, meu
pai, meus irmãos e o Edgar”. Porém, na prática, conta apenas com a sua irmã mais velha
para auxiliá-la nos cuidados com o filho; e com quem pode dividir suas dúvidas e tristezas.
Relação com o trabalho/estudo: Lúcia exercia a função de faxineira em uma empresa
de serviços gerais, mas parecia não gostar do seu emprego. No completamento de frases ela
fala a respeito disto: “O trabalho...me causa tristeza, porque eu não lido bem com as
pessoas”. Porém, valoriza seu emprego porque através dele pode comprar as suas
“coisinhas”, e ser mais independente do marido: “ eu tô muito estressada porque ter que
voltar a trabalhar eu sempre fui acostumada a ter o meu dinheiro e eu não quero pedir nada
para o Edgar. Porque se eu precisar de qualquer coisa eu vou ter que pedir para ele, e não é
só para mim não é, para ele (Gustavo) também.”. Ademais, quando ainda encontrava-se de
licença-maternidade, já sofria porque teria que voltar a trabalhar em breve e não tinha com
quem deixar seu filho. Estava tão insegura em deixá-lo, que confessou que gostaria que seu
marido assumisse sozinho o sustento da família, ainda que isso lhe custasse a sua
“independência”: “Eu tava uma pilha por causa dessa estória de voltar a trabalhar, eu tava
tão estressada parecia que eu ia morrer(...) Eu queria que o Edgar falasse que eu podia lagar
o emprego e que ele ia segurar as pontas, mas ele não falava nada”.
Ela acabou voltando ao trabalho, mas ficou por pouco tempo, pois achava que o seu
salário não estava compensando o sofrimento de ficar longe do filho: “eu não tenho
condições de pagar alguém para ficar lá em casa com o bebê. Aí, depois de trabalhar o dia
inteiro, cansada, eu ia ter que chegar em casa, cuidar dele, cuidar da casa. Eu pensei bem e
achei melhor ficar em casa”. Foi então que tomou coragem e conversou com o marido a
105
respeito: “Aí ele se manifestou... Ele disse: - Lúcia, eu há muito tempo queria te falar isso.
Eu, por mim, você já tinha parado de trabalhar porque eu tenho condições de segurar as
pontas. - E eu: “Ai meu Deus porque ele não falou antes”. Depois que parou de trabalhar,
parecia mais tranqüila, mas acabava se sobrecarregando com os cuidados com o bebê, os
quais tinha muita dificuldade de dividir com alguém. Também parecia que sua “dívida” para
com o marido aumentara ainda mais, já que agora ele lhe sustentava, portanto sentia-se cada
vez menos no direito de se queixar dele, do filho, da vida.
Vemos aqui, a forte presença da categoria de gênero, na qual o sofrimento que a
maternidade impôs para Lúcia é aceito com naturalidade, pois ela apresenta um modelo
feminino e de maternidade que reforça a atribuição “natural” da mulher no ambiente privado,
não manifestando conscientemente o desejo de mudar valores estabelecidos, apesar do grande
sofrimento experimentado.
Relacionamento social: Lúcia afirma não ter muitos amigos. Sua rede de apoio é
pobre. Suas amigas eram aquelas dos “tempos de bebida” e hoje já não pode contar com elas.
Porém, ela mesma reconhece que resiste em pedir ajuda, principalmente quanto ao cuidados
para com o filho, porque tem dificuldades de se relacionar fora do âmbito familiar. No
completamento de frases, apresentou expressões onde ela afirma ter dificuldades de
relacionamento social: “Meu maior problema.... é lidar com as pessoas difíceis”; “O
trabalho...me causa tristeza, porque eu não lido bem com as pessoas”; “Penso que os
outros...são todos falsos comigo”; “Me aborrece... quando sei que falam mal de mim”; “As
pessoas...algumas eu gosto outras não”; “Meus amigos... não tenho muitos”.
É importante ressaltar que essa dificuldade de relacionamento não foi observada
durante o grupo, pois ela interagiu muito bem com as outras mães. Essa aparente contradição
nos sugere que, ou esse é um “rótulo” que ela se impõe: “sou uma pessoa difícil”, o que aliás
é um auto-conceito comum entre aqueles que sofrem de depressão; ou o fato de estar entre
outras mães que também estavam passando por dificuldades semelhantes e que dialogavam
sem julgamentos, tenha favorecido a expressão e a abertura para relacionar-se melhor.
Frente aos diversos indicadores construídos para Lúcia, a partir da sua história e das
suas reflexões, foi possível elaborar seus núcleos de sentido subjetivo, a saber:
Lúcia é uma mulher jovem, uma mãe do final do século XX. Sendo assim, é uma
mulher e mãe que transita pelas concepções da família nuclear burguesa e pelos princípios da
família patriarcal, ainda arraigados em nossa sociedade. Lúcia aprendeu a ser devota ao filho,
devido à crença no amor instintivo, biológico, natural e incondicional. Como nos diz Muszkat
(1994), somos mulheres educadas por mulheres. Ser uma boa mãe para ela é uma obrigação,
assim como a crença de que os filhos são o maior valor de uma mulher. Da mesma forma, a
passividade, os sentimentos de desvalorização, insegurança e o conseqüente desejo de ajudar
são características femininas construídas ao longo dos séculos, persistindo na maioria das
mulheres e podendo ser observados em Lúcia, mesmo que de forma inconsciente.
A maternidade tem sido vivenciada por ela como uma grande decepção: “ Tudo que eu
queria era ter meu filhinho, eu nunca imaginei que iria sofrer tanto assim”. Está muito
confusa em relação seus sentimentos ambivalentes: “Meu nenenzinho chega e eu só sinto
tristeza... me sinto a pior pessoa do mundo”(...) “ eu não queria rejeitar ele”. E ela enquanto
sujeito se manifesta de forma singular nesse momento de ruptura de expectativas com a
maternidade. A vivência da maternidade tem sido tão ambivalente, permeada de sentimentos
de incapacidade, culpa, insegurança, raiva, amor e medo, que nos levou a construir o primeiro
núcleo de sentido para Lúcia: “ Ser mãe é padecer, mas não no paraíso”, que foi inspirado
no livro de Moreira (1993) que leva este título.
106
Em primeiro lugar, este núcleo se integra ao sentido subjetivo que sua mãe tem para
ela. Sua mãe é uma referência central e positiva, mas também pode ser um modelo
inatingível.... Se compararmos as frases seguintes, esta hipótese nos parece plausível: “Minha
mãe...era uma mulher fantástica”; “Fracasso... sou um fracasso de mãe e esposa”; “É
difícil....ser mãe”; “Tratarei de conseguir...ser a melhor mãe do mundo”. Diante dessas
expressões, acreditamos que seu conflito atual com a maternidade está permeado pela
discrepância entre o seu modelo materno e a sua realidade vivida enquanto mãe, pois não se
considera uma boa mãe porque acha que não sabe cuidar de seu filho, como sua mãe o faria:
“Você se sente a pior mãe do mundo, não sei dar banho, não sei trocar, não sei acalmar ele”.
Dessa forma, acreditamos que sua mãe representa o ideal de maternidade “vendido”
socialmente, que fica ainda mais “imaculado” pelo fato dela já estar morta, uma vez que em
nossa cultura há uma forte tendência a “idolatrarmos” os mortos, principalmente quando estes
nos são caros. Assim, o estado de enlutamento, no qual ainda se encontra, dificulta ainda mais
uma visão mais crítica e realista da maternidade exercida por sua mãe para poder relativizá-la
e aceitar melhor a sua própria maneira de maternar. Por isso, está confusa e perdida no novo
papel de mãe. Assim, Lúcia parece ter construído para si um ideal de mãe perfeita, incapaz de
admitir a coexistência de sentimentos ambivalentes pelo filho e, por essa razão, está insegura
quanto a sua capacidade para cuidá-lo e ser uma boa mãe. Sofre com um enorme sentimento
de culpa que dá sustentação a atitudes de superproteção e comportamentos que beiram a
simbiose com o filho.
Observamos também que ela apresenta grande preocupação em assumir bem os papéis
de mãe e esposa, mas idealiza ambos os papéis. Talvez, por isso, ache que, para exercê-los
satisfatoriamente, deve seguir a recomendação da sociedade mais tradicional: se sacrificar, se
dedicar integralmente aos filhos e ao esposo e, principalmente, não se queixar jamais. Sob
esta visão, é fácil entender que o seu prazer é agradá-los e servi-los e seu fracasso é quando
percebe que não cumpriu bem este papel, como podemos observar nas frases do
completamento: “Meu maior prazer...dormir bem, ver meu filho e o Edgar bem”; “Me
deprimo quando...vejo meu filhinho chorando”; “Lamento... não poder ser a esposa que o
Edgar merece”; “Fracasso... sou um fracasso de mãe e esposa”; “Me esforço
diariamente...para ser mãe e para ser esposa”. Acontece, porém, que com todas as
dificuldades enfrentadas no período puerperal, Lúcia passou a ficar muito nervosa, chorosa,
triste e infeliz.
Ela cuida sozinha da casa e do bebê. Seu marido trabalha o dia todo e, quando chega,
espera que o jantar esteja pronto e que ela e o bebê estejam calmos. Quanto a essa rotina
pesada, ela disse: “É isso que eu acho que me deixa estressada também: é ter que lavar,
passar e quando o menino dorme, que era para eu dormir também, eu não durmo. Vou
cuidar de casa. E à noite eu fico como menino balançando, para o marido não acordar,
porque ele tem que acordar cedo. Desde que ele nasceu eu não durmo direito”. Essas
expressões nos fizeram lembrar das muitas mães que, numa tentativa de expiar sua culpa,
gerada pela ambivalência materna, assumem a condição de mater dolorosa, gemendo sob a
“cruz” que a maternidade pode se transformar e afirmando-se felizes nessa condição.
A forma de maternar de Lúcia nos levou a pensar sobre o “famoso” masoquismo
feminino, do qual nos fala Deutsch (citado por Parker, 1997). Para Parker (1997), é possível
ver as estruturas masoquistas como uma tentativa de lidar com a culpa evocada pelo ódio
materno. As mães podem empregar com os filhos maneiras excessivamente generosas, hiper
altruístas, numa tentativa de obter uma absolvição desses impulsos que as enchem de culpa e,
nesse sentido, o masoquismo materno associa-se à ambivalência materna; o que nos parece
evidente no caso de Lúcia.
De acordo com a teoria psicanalítica, a tríade passividade, masoquismo e narcisismo é
o que caracteriza a mulher “normal” ou “feminina”. A partir dessa tríade, a “boa mãe” é
107
das filhas. Sente-se abandonada e desamparada por ele, que, além de não participar da criação
das filhas, não as ajuda financeiramente. Percebe-se esse ressentimento no completamento,
tanto por meio das muitas frases, nas quais teria oportunidade para se referir ao ex-
companheiro e, ela não o faz; como nas que ela o faz mais explicitamente: “Me aborrece...o
pai das minhas filhas”; “A paternidade... ser pai não é ser tudo”. Esses trechos sugerem que
a paternidade não é apenas participar da concepção do filho, mas se responsabilizar e cuidar
dele. Fez questão de nos contar que sabe onde o ex-companheiro mora, mas não o procura e
evita conversar com ele, para que ele não pense que ela irá apenas lhe pedir dinheiro. Por ter
ficado muito magoada com sua atitude, diz que pretende, de fato, colocá-lo na justiça para
receber a pensão alimentícia das filhas. Vemos aqui, que as dificuldades de relacionamento e
o sentido subjetivo que o seu ex-companheiro tem para ela, devem estar alimentando a relação
com o seu bebê, assim como o sofrimento atual, na fase do puerpério.
Isabela fala de alguém que existe pelo outro, evidenciando a sua não existência como
sujeito ou indivíduo. Suas atitudes estão direcionadas a uma necessidade constante de adaptar-
se às necessidades e exigências dos outros (filhas, namorado), tendo dificuldade de se
identificar, como se tivesse perdido o contato consigo mesma, com seus desejos ou a própria
identidade: “Minha opinião...difícil de responder”; “O sexo... eu nem penso mais nisso”;
Além de negar a si própria um lugar de sujeito no mundo, Isabela culpa-se pelos fracassos,
reforçando a idéia de que ela é o problema. Cabe destacar como esses sentidos de tristeza
estão associados a uma configuração que, para justificar, se rotulam como uma “patologia”,
eliminando o sujeito que se expressa em sua riqueza e se desenvolve.
Relação com sua mãe e com seu pai: Praticamente não se referiu à sua mãe durante os
atendimentos individuais e em grupo, mas, quando o fez, nos passou a impressão de que a
16
Hospital psiquiátrico São Vicente de Paula, que é referência para este tipo de tratamento no DF e entorno.
111
mãe é uma referência positiva na sua vida. No completamento, esta positividade aparece na
frase: “Minha mãe...eu amo minha mãe”. Da mesma forma, não se referiu ao seu pai, mas
escreveu no completamento: “Meu pai....eu amo meu pai”. Parece que ela tenta preservar a
imagem positiva dos pais, apesar de todas as dificuldades que tem passado na vida.
Relacionamento familiar: É proveniente de uma família muito pobre e diz ter passado
por muitas necessidades na vida: “ já passei até fome”, afirmou ela. Não conseguimos acessar
maiores detalhes de seu passado, pois ela se negava a falar neste assunto, inclusive por escrito
por meio das frases do completamento: “Eu prefiro...não falar do passado”; “O
passado...não gosto de falar do passado”. Não se referiu aos familiares. E parece que não tem
rede de apoio familiar. Conta apenas consigo mesma para sustar-se e às suas filhas. Apesar de
ter amigos que a ajudam no dia-a-dia, por isso, tem que dar conta sozinha da casa/das filhas e
ainda é a única provedora do lar.
Relação mãe-bebê/filhos: Apesar da grande tristeza e da indisposição inicial para
cuidar da filha, sempre se refere à bebê de forma carinhosa, enfatizando o grande amor que
sente por ela. No entanto, a sobrecarga de trabalho, seu cansaço e desânimo era tão intensos
que, certo dia, quando estava indo de ônibus para o trabalho, quase deixou o bebê cair
escorregando por suas pernas tamanha privação de sono. Ela chorou ao relatar este episódio,
demonstrando-se muito culpada pelo seu “descuido”. É importante salientar que, apesar deste
ocorrido, me chamou atenção a forma adequada e aconchegante que ela “montava” o colo
para amamentar a filha. Sempre fixava seu olhar nela e conversava com a criança durante as
mamadas. Ela nos deu a impressão de sentir-se muito à vontade e de extrair muito prazer
desses momentos, sugerindo que a relação com o bebê não era um problema e nem trazia
insatisfação, muito pelo contrário. Mas, então, porque estava tão entristecida no pós-parto?
Qual seria o sentido subjetivo de sua filha, neste contexto?
Entendemos que, para ela, a filha era um “presente de Deus”! Ela a levava para o seu
trabalho, pois não tinha com quem deixá-la. Lá, procurava confortá-la e agasalhá-la; quando
ela estava com sono, por exemplo, improvisava um berço embaixo da banca, e colocava a
filha lá. Ela levava a criança para poder amamentá-la ao seio; função esta que ela adorava,
como pode ser constatado na frase do completamento: “Penso que amamentar...é muito
bom”. Recebia ajuda das suas colegas de feira, que se revezavam nos cuidados com o bebê, e
olhando a banca quando ela precisava sair. Mesmo assim, entristecia-se pois “sabe que ela
(bebê) fica cansada da rotina pesada”, lamentando não poder dar uma vida melhor para as
filhas. Por outro lado, nunca reclamou de cuidar do bebê durante as sessões, e tampouco se
queixava de ser mãe.
Também falava com muita admiração da filha mais velha. Cuidava muito para que
nada lhe faltasse (dinheiro para a passagem, lanche, livros) ou atrapalhasse seus estudos. A
filha mais velha estudava o dia todo e ajudava pouco a mãe nas tarefas domésticas. Isabela
não reclamava, pois prezava muito pelos estudos da filha para que ela tenha uma vida melhor
do que a sua. O completamento está repleto de frases indicadoras que as filhas são a principal
fonte de investimento afetivo de sua vida atual. No completamento, sempre que teve
oportunidade fez questão de deixar isso bem claro, como nas frases: “Amo...minhas filhas”;
“Eu gosto muito...das minhas filhas”; “Meu maior prazer...cuidar de minhas filhas”;
“Quando penso em meu filho(a)...eu só penso o melhor”. As filhas são referências de
prazer, provocam uma mobilização emocional em Isabela, que aponta para o sentido
subjetivo que a maternidade tem para ela – satisfação e razão para viver. Por outro lado, as
filhas também trazem preocupação, medo e sobrecarga. Vejamos algumas frases, neste
sentido: “Eu gosto...de minhas filhas”; “O tempo mais feliz...quando estou com minhas
filhas”; “Lamento...quando estou longe de minhas filhas”; “Meu maior medo... não dá
conta de cuidar delas”; “Sofro...quando fico longe de minhas filhas”; “A preocupação
112
principal...é não ter o necessário para elas”. Nessa expressões evidencia-se mobilização
emocional que as filhas trazem para sua vida.
Relacionamento social: Isabela não tem familiares em Brasília. Conta apenas com a
ajuda de alguns bons amigos, que a visitam e que cuidam da banca dela, quando ela precisa
sair, ou não pode trabalhar. “Meus amigos...foram tudo para mim, foram o único apoio”.
Valoriza muito suas amizades, elas parecem ser a sua própria família.
Relação com o trabalho/estudo: Diz gostar muito do seu trabalho, “O trabalho...me
faz bem”; “Me esforço diariamente...no meu trabalho”; “Meu maior tempo dedico...meu
trabalho”; mas tem tido dificuldades para trabalhar após o nascimento da filha, pois costuma
levá-la para a banca todos os dias, o que acarreta em mais tarefas. Às vezes, não abre seu
comércio porque está se sentindo tão mal, desanimada e cansada que prefere ficar em casa.
Além de trabalhar no seu negócio próprio, ela cuida da casa e das filhas sozinha. Enfrenta
muitas dificuldades financeiras. Atualmente, reclama que o “comércio está fraco” e que as
vendas estão caindo muito.
Como é autônoma e não recolhia a contribuição do INSS17, não tem direito a licença-
maternidade, e portanto apesar de ter parido há pouco mais de um mês, teve que voltar a
trabalhar: “se eu não trabalhar, não ganho”, afirmou pesarosa. Mais uma vez chamamos
atenção como os sentidos da sua “dura história de vida” se fazem presentes no sentido
subjetivo do presente. Essas frases integradas à falta de rede de apoio conjugal e social,
indicam que o pós-parto acentuou a sobrecarga de trabalho, que já era uma realidade, pois
sempre cuidou sozinha da filha mais velha, que também é fruto deste relacionamento
conflituoso. É importante ressaltar como o contexto de uma vida muito dura e permeada de
sofrimentos favorecem um terreno fértil para o sentido que a maternidade e as filhas tem para
Isabela.
Em síntese, para ajudar a compreender a configuração subjetiva de Isabela e de sua
depressão, entendemos que os principais indicadores construídos foram: o trabalho como uma
fonte de sobrevivência, a maternidade dá sentido à sua vida; forte presença de desamparo
conjugal; não existe conflito com o papel materno. Esses indicadores nos permitem construir
algumas informações que emergem como núcleos de sentido subjetivo em nossa análise, a
saber:
suas falas, como nas frases: “Eu freqüentemente reflito... minhas dificuldades financeiras”;
“Necessito...de tanta coisa”; “Fracasso...minha vida tem sido um fracasso”; “Meu
futuro...nunca tive um futuro legal”; “Meu maior problema...é não ter onde morar”. Por
isso, o trabalho também é uma fonte de investimento além das filhas, pois é dele que tira seu
sustento. Mas, infelizmente, apesar de trabalhar muito, não consegue acabar com suas
dificuldades financeiras e ter a sua própria casa. Essa é uma realidade cruel típica de países
subdesenvolvidos como o Brasil. Em nosso país, os projetos governamentais normalmente
são de caráter assistencialista, pouco efetivos e não promovem uma redistribuição de renda
efetiva, porque implicaria no desprivilegiamento dos privilegiados. Assim, infelizmente, é
muito fácil encontrarmos histórias de sofrimento e privação como as de Isabela. Pessoas que
trabalham uma vida inteira e mal conseguem sobreviver, não podem ter acesso aos frutos do
próprio trabalho.
De fato, Isabela se vê impedida, impotente e, se sentindo paralisada diante do seu
parco destino. Estes sentimentos ficaram evidentes nas frases do completamento: “Não
posso...nada no momento”; “Considero que posso...eu não posso nada”; “Luto...luto muito
e não consigo nada”; “Minha principal ambição...eu não tenho ambição”. Vemos aqui que
Isabela se expressa como se fosse incapaz de mudar sua própria vida. A perda da auto-estima
e da autoconfiança está relacionada principalmente com a imagem de doente e incapaz que
faz de si mesma. Isabela é uma mulher que não teve muito espaço para ser e existir como
pessoa diante de tantas dificuldades concretas, diante da impotência frente ao seu destino
infeliz e da impossibilidade para mudá-lo.
Apesar de parecer ter mais a vivência do sofrimento do que a consciência de que o
gera e o mantém, Isabela não está acomodada na sua infelicidade, aspirando mudanças:
“Tratarei de conseguir...minha casa”, “Desejo...ter um lugar para morar”; “Meu maior
desejo...é ter meu próprio lar”; “Minhas aspirações...possuir a casa”. Porém, mais do que
um teto para morar, Isabela anseia por um lar, por uma família, por estabilidade e proteção.
As filhas, mais do que seu ex-companheiro, promovem a viabilidade desse sonho. É nesse
momento que evidenciamos o sentido subjetivo que ser mãe tem para ela: a maternidade
constitui-se na maior possibilidade que tem de mudar sua vida, já que suas ambições,
opiniões, seus desejos parecem ser renunciados em favor do outro. Assim, tenta concentrar
todas as suas forças, na luta pela sobrevivência de sua família.
Observamos que Isabela apresenta um núcleo de sentido subjetivo forte em relação à
maternidade, em cuja configuração se constitui profundos afetos tanto em relação a seus pais,
mas sobretudo em relação às suas filhas. Pela importância subjetiva que tem para ela,
resolvemos denominar este núcleo utilizando uma expressão sua: “ser mãe é tudo”. De fato,
nos poucos contatos que tivemos com Isabela e, nos recursos utilizados para acessar a sua
subjetividade, a maternidade se constitui um grande núcleo que dá sustentação a ela. Esse
sentido, aparece sintetizado na seguinte frase do completamento: “Para mim a
maternidade...ser mãe é tudo”..
Ela parece muito satisfeita em ser mãe, pois foi por meio da maternidade que ela
conseguiu o seu “bem mais precioso” – suas filhas. Elas são tudo o que ela tem na vida! Por
isso, investe maciçamente em ambas, sobretudo na mais velha, que procura poupar e zelar
para que possa trazer algum futuro para a família. Provavelmente por isso, as filhas são
referências de emocionalidade positiva para Isabela. Elas são uma das únicas fontes de prazer
e investimento que tem na vida. Elas tem um sentido subjetivo tão fundamental que também
constituem outro núcleo de sentido, intimamente articulado com o da maternidade, o qual
denominamos: “Minhas filhas, meu tesouro”.
Suas filhas são o seu verdadeiro tesouro, pois além de serem a único “bem” que
possui, elas deram sentido a uma vida que tem sido só de sofrimento e privações. Em uma
114
aparente inversão de papéis, são as filhas que lhe protegem, que lhe dão vida e esperança. É
por elas que ela luta, trabalha e suporta uma rotina exaustiva. Elas lhe trazem esperança e fé
num futuro melhor e resgatam o sujeito desejante que ela é, mas tem muita dificuldade de
assumir. Provavelmente por isso, apesar de todo o sofrimento expresso em todo o
completamento de frases, ela o finaliza com as seguintes afirmações: “A vida...apesar dos
obstáculos é muito bom”; “A morte... deve ser a pior coisa”.
Portanto, assim como em outros casos por nós estudados, observamos que o sentido
subjetivo da maternidade para Isabela não está limitado ao espaço simbólico, nem real da
maternagem em si, mas está integrado por núcleos de sentido subjetivos gerados em outras
zonas de sentido de sua vida. Por isso, apesar do sofrimento emocional apresentado, ela tem
uma percepção muito positiva da maternidade que a faz resistir às adversidade da vida e até à
própria morte.
Essa felicidade em relação à maternagem só é sobreposta à sobrecarga de trabalho e
responsabilidades que têm que assumir por não ter um companheiro e nem uma rede de
apoio consistente para dividir o seu fardo. Na sua quádrupla jornada de trabalho, sente-se
exausta, sozinha e desamparada: “É difícil...trabalhar e cuidar da casa”, “Meu principal
problema...é não ter tempo para cuidar das crianças”. Assim, as filhas apesar de serem o
prazer da sua vida, acabam pesando ainda mais neste fardo, pois se sente em conflito e
dividida para conciliar todas as responsabilidades.
Essa interpretação concretiza hipóteses que nos sugerem que a sua infelicidade e
depressão atual esteja muito mais configurada pelos sentidos associados à sua luta diária que
pela sobrevivência, às suas privações financeiras, às dificuldades de acesso às necessidades
básicas (alimentação, moradia, saúde), aos conflitos com ex-companheiro, bem como a
sobrecarga emocional de ser a única provedora e cuidadora da família, do que relacionada a
sua bebê, a maternidade e às possíveis alterações hormonais que certamente passou após o
parto.
Obviamente, acreditamos que o período puerperal pode ter favorecido a eclosão de
mais uma crise, porque, além da eminência da situação de morte vivenciada no parto, a nova
filha acarretou numa sobrecarga emocional ainda maior. Afinal, ela é mais uma pessoa que
ela tem para cuidar e sustentar, sem ter com quem compartilhar. Assim, podemos pensar que
o nascimento da última filha tenha acentuado ainda mais a sua vivência de sobrecarga e
desamparo, pois mais uma vez constatou que teria que dar conta sozinha da sua vida e de
suas filhas. Mas, ao mesmo tempo, trouxe um novo sopro de vida e de esperança.
O caso de Isabela é um bom exemplo para nos mostrar que, apesar da discussão que
tecemos no referencial teórico sobre o que denominamos de “lado obscuro da maternidade”,
muitos ainda, por opção ou não, sem ambivalências ou culpas, desejam e valorizam
ardentemente a maternidade; sobretudo, quando existem outros lados da vida que são ainda
mais negros. E por que não?
115
CAPÍTULO 9
AS ZONAS DE SENTIDO
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
Coelho Neto
Esta zona de sentido refere-se à grande contradição existente entre a visão romanceada
e idealizada da maternidade e a sua vivência no real. Observamos que esta disparidade entre a
realidade esperada e a vivida na maternidade acarreta em muitas mulheres uma profunda
decepção e a sensação de incapacidade para ocupar o lugar de mãe. Para nós, as
conseqüências dessa oposição podem transformar-se em terrenos férteis para a integração de
diferentes elementos de sentido subjetivo, que emergem em forma de sofrimento e depressão
no pós-parto.
Szejer e Stewart (1997) entendem que para a mulher o pós-parto não é, de forma
alguma, o radioso paraíso com o qual a lenda anuncia a chegada do bebê. Na realidade, o
116
bebê é um ser exigente e a mãe é pressionada todo o tempo por suas exigências, que não são
poucas: amamentação, choro, doenças típicas da fase, troca de fraldas, banho e noites mal
dormidas. Idealiza-se sempre o perfil sublime, realizado e feliz das mães, como as imagens da
Virgem Maria com Jesus em seus braços, ou como as fotos dos cartazes de veiculação de
campanhas de amamentação realizadas pelo Ministério da Saúde de nosso país.
Mesmo diante das dificuldades da maternidade, espera-se que as mães sejam sempre
ternas, acolhedoras, férteis e disponíveis. Em contrapartida, elas não deverão demonstrar
sentimentos de tristeza, afinal, tudo isso está ligado ao milagre da vida que presume um
instinto materno, uma predisposição inata para o sacrifício.
Na verdade, ser mãe não é um “mar de rosas” e um bebê não é todo “rosa-bombom!”
(Golse, 2003, p.23). Os filhos não são apenas uma bênção: custam caro em trabalho, dinheiro,
esforço paciência e tempo. Quando a mulher descobre isso, na grande maioria das vezes, já
está com seu bebê em seus braços, emerge a sensação de “não era isso que eu esperava” e a
impressão de ser incapaz de enfrentar a nova situação, persiste na decepção consigo mesma,
na desilusão e no fracasso (Maldonado, Dickstein, & Nahoum, 2000; Santos, 2001). Há
portanto uma ruptura de expectativas. Essa significação pode trazer grandes dificuldades na
transição para o papel de mãe, diante do qual muitas mães se sentem freqüentemente
assustadas e confusas com o peso da responsabilidade dos cuidados maternos.
Da mesma forma como os filhos podem trazer alegria de viver, amor, esperança, força,
“os filhos às vezes contribuem para finais não-felizes” afirma Montgomery (1998, p. 64).
Dentre essas dificuldades, destacamos a DPP, que se revela por uma quebra dessa expectativa
em relação ao bebê, a si mesma como mãe e ao tipo de vida que se estabelece com a presença
do filho, geralmente acompanhada de desapontamento, desânimo e tristeza.
É justamente esta desilusão, que acreditamos ter irrompido nas mães por nós
estudadas, em especial no caso de no caso de Lúcia. Ela que tanto queria ter um filho, estava
muito decepcionada com a realidade estafante que encontrou no mundo materno: “ Gostaria
de saber, mesmo que eu tenha realizado o meu sonho de ser mãe, mesmo tendo a pessoa
amada do meu lado, por que eu continuo tendo essas angústias e tristezas? Será que sou
mesmo esse fracasso de mãe e esposa como penso?”. Esse questionamento indica que a
vivência da maternidade parece ter acarretado em mais desprazer e insegurança, que a
deixaram em pleno conflito com a função materna: “Para mim a maternidade...até agora não
sei o que dizer”. Estes sentimentos também foram observados nos outros casos estudados e
que não foram apresentados neste escrito, mas que julgamos ser pertinente resgatá-los nesta
discussão.
Marta18, apresentava um discurso semelhante ao de Lúcia. Ter um filho sempre foi o
seu grande sonho. Mesmo considerando que a sua filha é “uma grande conquista” que se
consumou após alguns anos de tratamento de reprodução assistida e, de três episódios de
abortos espontâneos, Marta significa o período de gestação e do pós-parto como “longe de ser
o radioso paraíso sonhado”. Qual não foi sua surpresa, a maternidade a fez mergulhar em um
mar de ambivalências, frustrações, culpas, ansiedades, medos, conforme expressa na frase:
“para mim a maternidade... não foi o que sonhei”.
Na sessões do grupo, ela sempre enfatizava os momentos difíceis que a maternidade
lhe propiciava: a impossibilidade de dormir normalmente, a ansiedade contínua, a insegurança
com relação aos cuidados com o bebê, a falta de energia e de alegria, a dificuldade em lidar
com as transformações do corpo e da vida sexual, bem como com os problemas relacionados
a amamentação, a culpa avassaladora, a irritabilidade com o bebê. O caso de Marta nos
mostrou que por mais desejado que seja um filho, ou por mais cheias de amor, as mães,
18
A análise completa do caso de Marta não foi apresentada nesta tese, mas pode ser vista em nosso recente
artigo, intitulado “O mito da mãe exclusiva e seu impacto na depressão pós-parto” (Azevedo & Arrais, 2006,).
117
Ehrhardt (1996) nos apresenta bons exemplos desse movimento: a mãe irritada com o
seu bebê se esforça em ser particularmente diligente, já que uma boa mãe não deve se zangar.
Ela atormenta-se com sentimentos de culpa, e não ousa falar da sua irritação contra um ser tão
indefeso. Em conseqüência, suas agressões dirigem-se para dentro de si, sendo um rico
alimento para a depressão ou, então, um mau humor acumulado irrompe, de repente, em outro
lugar. Assim, quando a raiva materna “ousa” exteriorizar-se, geralmente isto se dá de forma
muito indireta e sutil, ou irrompe de forma avassaladora. As mulheres sofrem mais
freqüentemente de enxaqueca e de depressões que os homens. Sentem-se indolentes, cansadas
e, de algum modo, desanimadas. Justamente por trás desses padecimentos, oculta-se, em
geral, uma montanha de agressividade (Ehrhardt, 1996). Talvez o pós-parto e todas as
dificuldades e desgastes inerentes a este período favoreçam esta irrupção, que pode se
manifestar em forma de depressão, de culpa ou de rejeição.
Para Parker (1997), a dificuldade em enfrentar tais sentimentos tão complexos e
contraditórios, próprios da ambivalência materna, pode redundar na culpa que as mães se
habituaram a carregar. Porém, alerta esta autora, é na angústia provocada pela ambivalência
materna que reside uma relação frutífera para mães e filhos, pois este sentimento, quando
reconhecido e aceito, promove a reflexão sobre o bebê. Permite que a mulher pense sobre a
maternidade e sobre seu bebê e se distancie dele, promovendo seu desenvolvimento
independente e autônomo. Vejamos suas palavras:
A percepção do ódio que nela coexiste com o amor pela criança pode promover um
sentido de preocupação e de responsabilidade em relação ao bebê, e de diferenciação
do eu em relação ao bebê. A ambivalência materna significa a capacidade da mãe
para conhecer a si mesma e para tolerar em si mesma a presença de traços que talvez
considere como estando longe de serem admiráveis – e para sustentar uma imagem
mais completa de seu bebê. (...) Para uma mãe é agudamente dolorosa a admissão de
que seu ódio se encontra no mesmo ponto onde se encontra seu amor (Parker, 1997,
p. 37).
22
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
120
feminina e valorizada. Esses elementos se relacionam muito mais com questões da própria
mulher, do que com o desejo de ter um filho e de ser mãe. O inverso também é verdadeiro. A
mulher pode desejar muito ter um filho, mas odiar estar grávida. Com também pode acontecer
dos dois desejos serem simultâneos e a mulher tanto gostar de estar grávida, como querer ter
um filho, como vimos nos casos de Marta e Lúcia citados anteriormente.
Uma coisa não implica na outra: quando um filho nasce, também vai ajudar a mãe a
ser mãe. É preciso que o filho seja ativo o suficiente para fazer daquela mulher mãe
dele. Não é um instinto, não tem nada de natural nisso. É, na verdade, a construção
de uma relação (Rohenkohl, 2005, p. 45).
Fica evidente nesta comparação entre antes e depois que as várias mudanças impostas
a essas mulheres após a maternidade têm na sua grande maioria um “elemento surpresa” de
caráter negativo e decepcionante. Acreditamos que a DPP esteja relacionada a essa decepção
e desilusão frente ao paraíso prometido.
Dentro da visão, de mãe ideal, a qual define as qualidades maternais como naturais, a
mãe deprimida sente-se totalmente inadequada e responsável por seu aparente insucesso,
pois, ela deveria saber ser uma boa mãe, deveria saber parir, amamentar, dar colo, cuidar,
afinal ela é uma mulher e as mulheres vêm “programadas” para isto. Como ela pode não estar
sabendo cuidar de seu filho? Ou não estar vendo graça nenhuma na maternidade, ou o que é
pior, não estar gostando e sentindo-se infeliz em ser mãe? Este foi um questionamento
recorrente na fala de todas as mães que acompanhamos, especialmente nas de Lúcia, Paula,
Kátia, Clarisse e Marta.
Quando interessa à sociedade, somos cobradas a agir instintivamente, e temos que
“sacar” de toda nossa herança ancestral a “fórmula sagrada” de como se deve cuidar de um
filho. Assim, não é apenas a mãe com DPP que se sente culpada, ela é de fato julgada dessa
121
forma pela a sociedade, por profissionais e, inclusive por seus maridos e próprios filhos. Ela é
acusada de ser a única responsável por seu fracasso como mãe!
Portanto, além de questões de ordem intrapsíquica e inconsciente como as que os
psicanalistas vêm apontando, acreditamos que, em grande parte, este não reconhecimento do
que está por vir, acontece por uma falta de informação social a respeito da maternidade. Ou
melhor, não há só uma falta, mas uma distorção ideológica, uma ocultação do que é de fato a
maternidade, ainda que seja sugerida uma carga de padecimento na famosa frase “Ser mãe é
padecer no paraíso”.
Vende-se a idéia de que o sacrifício será prontamente compensado por ter o filho em
seus braços. As mães sacrificam-se, achando que algum dia serão recompensadas, e assim,
seus sacrifícios não serão em vão. Porém, normalmente, a recompensa não vem. Mesmo o seu
lindo e amado bebê um dia “irá se tornar autônomo, mordendo a mão que o alimentou”
(Winnicott, 1971/2002, p. 3).
Dessa forma, o possível sofrimento é encoberto e ofuscado pelo paraíso esperado, e é
desconsiderado, negado, não sendo prevenido durante a gravidez, como bem denuncia a
participante Júlia na seguinte expressão: “Ninguém faz propaganda da mãe cansada, sem
tempo para ela. É sempre a mãe disponível, linda. Não passa uma mãe gorda com o cabelo
ruim. É sempre uma mãe linda, loira, com cabelo esvoaçante, com aqueles bebês
maravilhosos, sem doença.(...)”.
Advogamos que a escassez de literatura e discussões pré-natais sobre as reais e
profundas alterações que, sobretudo, a mãe terá que enfrentar, me parece uma atitude coletiva
e proposital para amenizar o “lado obscuro” da maternidade e assim fazer com que as
mulheres caiam mais facilmente na “armadilha da maternidade”, numa espécie de “pacto de
silêncio”! Vimos ao longo deste trabalho que esta desconfiança e essas assertivas apresentam
muitos fundamentos na história da humanidade. Sabemos que o amor, a abnegação, o
sacrifício, a generosidade, o cuidado, a disponibilidade incondicional são construídos como
qualidades do “feminino” e, estas decorrem da posição originária das mulheres como seres
para outrem. Nessa perspectiva defendida por Chauí (1985), a possibilidade da mulher ser um
sujeito está estruturalmente definida da seguinte forma: “o que são, o são pelos outros (que
definiram seus atributos) e para os outros (aos quais estes atributos são endereçados)”
(Chauí, 1985, p.48).
Defendemos, portanto, que a maternidade seja uma escolha, ou pelo menos, uma
possibilidade consciente pela maternidade, e não uma imposição ou uma “armadilha social”,
como vem acontecendo nos últimos séculos. Tais questionamentos são até hoje incompatíveis
para muitas mulheres, impregnadas pelo conceito tradicional do que é ser mulher. Ou seja,
essas mulheres não chegam a sequer questionar o seu desejo, pois, afinal, é natural ter filhos!
Contudo, a História avança. A condição humana evolui. De acordo com Serrurier (1993), é
preciso sim que a mulher tome consciência de seu desejo por filhos e de sua capacidade para
acolhê-los. Afinal, como diz esta autora, nem todas as mulheres foram feitas para criar filhos.
Vivendo no ano de 2005 é possível sim valorizar o potencial da maternidade. Contudo, este
potencial não deve ser vivido como uma obrigação a ser cumprida (Dix, 1992).
Entretanto, sabemos que admitir para si a possibilidade de negar o seu papel “natural”
e “instintivo” de mulher tem um preço alto, que poucas mulheres estão dispostas a pagar, já
que “opor-se a essa visão romanceada da maternidade é, para algumas mulheres, opor-se à
feminilidade” (Forna, 1999, p. 53). Especialmente, porque sabemos que este tipo de atitude
“subversiva” poderia até comprometer a perpetuação da espécie humana, pois como afirma
Serrurier (1993) “o mito da boa-mãe é indispensável à sobrevivência do grupo” (p. 63),
sobretudo ao grupo que vive na tradição ocidental.
Obviamente, retirar o “manto sagrado” da maternidade e manchá-la com tintas
“escuras” acarreta em conseqüências diversas, pois abre a possibilidade da mulher optar por
122
ser uma mãe diferente do modelo tradicional. Ou, o que é pior para a sociedade, fazer a opção
por não ser mãe, já que, se em toda consciência coletiva reinasse a idéia de que nem todas as
mulheres são feitas para serem mães, talvez houvesse menos nascimentos, sobretudo porque
somos, atualmente, capazes de controlar a concepção.
Todas essas considerações nos levaram a acreditar que a maternidade como vem sendo
concebida até nossos dias tem influência direta no aparecimento da depressão no pós-parto.
Nossa hipótese é de que a maternidade e, dentro dela, temas como a feminilidade, as
transformações culturais no papel da mulher, o mito de mãe perfeita e a ambivalência do
papel de mãe, guardam estreita relação com o que chamaremos de solo fértil para o
desenvolvimento da mãe com depressão após o parto.
Arrisco-me inclusive a afirmar que a DPP poderia ser uma forma de reação da mãe
diante de todas as imposições que a maternidade traz. Em outras palavras, seria um tipo de
“depressão reativa”, sobretudo nas mães de “primeira viagem”, frente ao papel de mãe, que se
impõe com todas as idealizações, cobranças e posturas inatingíveis, e não uma reação aversiva
exclusivamente direcionada ao bebê. Desta forma a DPP passa de entidade patológica para se
tornar um lócus de resistência23 ao modelo de maternidade dominante.
É muito raro nos depararmos com a realidade “nua e crua”, como nestes
questionamentos elaborados por Rohenkohl:
Quem nunca se sentiu a pior das mães ao morrer de raiva do filho quando ele não
pára de chorar ou bate no irmãozinho, mal você lhe vira as costas? Atire a primeira
fralda aquela que não se sentiu culpada por não conseguir ou não querer amamentar,
ou mesmo por se identificar mais com o mais velho ou com o mais novo dos filhos
(Rohenkohl, 2005, p. 45).
23
Termo sugerido pela Profª Drª Tânia Mara Campos de Almeida, na ocasião de defesa da tese, em 13.12.2005.
24
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
123
claro que o sentido subjetivo da amamentação para ela está longe do glamour preconizado
pelas campanhas de aleitamento: “Penso que amamentar... é muito sofrido”. Havia por tras
de suas falas um grande conflito, que veremos mais adiante, ser sustentado por um discurso
dominante nos profissionais de saúde. Relatava que, apesar de saber ser importante para o
bebê, gostaria de parar de amamentá-lo ao seio e demonstrava-se muito culpada por isso e em
pleno conflito. Parecia decepcionada consigo mesma e sem compreender o que estava lhe
acontecendo: “Quando eu procurei a Alessandra, eu também estava em desespero total.
Queria me jogar da janela, não queria fazer nada, não queria cuidar... Ficava o dia todo
jogada no sofá, minha mãe era quem cuidava, dava banho...”. Após expressar seu dilema
sobre a continuidade da amamentação, na nossa primeira sessão, ela decidiu-se pela troca da
amamentação ao seio pela amamentação artificial, e voltou ao grupo bem mais aliviada.
Relatou o seguinte sobre esta mudança: “Quando eu resolvi dar a mamadeira, melhorou um
pouco, porque agora o sofrimento é parcial, porque eu não durmo. Então, de vez em quando,
eu ainda fico irritada...”.
De fato, sobretudo na última década, os sentimentos ambivalentes e a culpa estão
muito presentes na vivência da amamentação, pois se observa uma forte campanha mundial
para estimular o aleitamento materno baseada na recomendação da Organização Mundial da
Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (UNICEF).
Essas preconizam que todas as mulheres devem praticar o aleitamento exclusivo, e todos os
bebês devem ser amamentados apenas com leite materno, desde o nascimento até os seis
meses de vida. Após esse período, eles devem continuar sendo amamentadas ao seio,
juntamente com alimentos complementares, até os dois anos ou mais.
Contudo, apesar de todo o esforço desprendido, observa-se que o desdobramento
prático das campanhas não atinge o caráter universal implícito em suas premissas teóricas.
Existe um número expressivo de mulheres que tentam cumprir na íntegra as recomendações,
objetivando o êxito em amamentação, no cumprimento adequado do papel materno, à custa de
muito sacrifício. Paralelamente, há também um número considerável de mães que não
consegue, não pode ou até mesmo não quer atingir a meta estabelecida – amamentação
exclusiva até o 6º mês do bebê.
Ramos e Almeida (2003) se questionaram o porquê deste “desmame precoce”, apesar
das campanhas e do suposto caráter instintivo da amamentação. No seu estudo, encontraram
dados reveladores da ambivalência que cerca este “ato”, tido como instintivo! A análise dos
relatos das mães entrevistadas por eles, mostrou que a tomada de decisões que leva as
mulheres ao desmame decorre de maneira complexa e carregada de culpa, sentimento que, por
sua vez, se origina, na opinião dos autores, com a qual concordo plenamente, no modelo
assistencial em amamentação em vigor.
Isto porque as práticas assistenciais buscam moldar o comportamento da mulher em
favor da amamentação, responsabilizando-as, unicamente, pela saúde de seus filhos. Essa
tendência, de raízes higienistas, mais do que responsabilizar, culpabiliza a mulher pelo
fracasso, ou seja, pelo desmame precoce, ao mesmo tempo em que é incapaz de compreender
as necessidades e promover o apoio, ou no mínimo ouvir as mães.
Ramos e Almeida (2003) concluíram que a solidão/isolamento da mulher-mãe e a
necessidade de obter apoio para a consecução dessa prática, não só por parte do serviço de
saúde como também dos familiares e dos outros segmentos da sociedade, se fizeram presentes
de forma uniforme nos relatos das mães entrevistadas por elas. Assim, isentam-se desta
cobrança as funções educativas e preparatórias dos obstetras e dos pediatras e até da família.
Nesse movimento de revalorização da amamentação natural, a cobrança recai apenas sobre o
elo mais frágil - a mãe.
Assim como Serrurieur (1993), as autoras deste estudo também entendem que a
insensibilidade do profissional de saúde e da família frente ao sofrimento da mãe se
125
25
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
126
filho deixe de se desenvolver bem. Ou, ainda, a mãe pode ser bem sucedida na amamentação
de outros filhos.
O que nos parece fato é que permanecer nesta busca em satisfazer o mito da mãe
completamente boa é, como diz Serrurier (1993, p. 32), “ um pico inacessível e no qual só
conseguimos nos esfolar”. Não é possível mantermos esta insistência “insana” de nos
“encaixarmos” em modelos de maternidade de séculos passados, e continuarmos pagando o
preço altíssimo de nossa liberdade, da culpa eterna, da saúde física e emocional e da qualidade
de vida.
Mas, veremos a seguir, que este tipo de questionamento, não é bem vindo e é até mal
interpretado, soando como uma resistência à renúncia necessária para se ocupar o lugar de
mãe. Desde já, advogamos que, se há algo a que devemos renunciar, é exatamente à perfeição
e à idealização, como afirma Dix (1992).
Lucena (2004), que utilizou-se da teoria de Erikson (1976) para estudar mães com
DPP, também acredita que as mães resistentes às mudanças que têm que implementar com a
chegada do filho, demonstram estar na crise da idade adulta, onde há o conflito entre a
generatividade versus a estagnação. Segundo Erikson (1976) esta crise consiste no conflito
entre o desejo de permanecer na estagnação, valorizando as necessidades pessoais e a posição
de ser cuidado, e a necessidade de ir para generatividade. Esta, por sua vez, implica na
disponibilidade de cuidar e orientar a geração seguinte. Para Lucena, esta crise se concretiza
nas demandas impostas pelo bebê, às quais as mães com depressão não estariam dispostas a
atender.
Santos (2001) também preconiza que a identificação típica da gravidez passa a
implicar uma perda de si mesma em favor do recém-nascido, e que tal processo caminha para
uma identificação não conflitiva com o bebê. Quando isso não ocorre, temos a depressão pós-
parto, pois a mãe com este diagnóstico tem dificuldades de aceitação quanto as urgências
instintivas que o bebê torna presente de forma intransigente, logo após seu nascimento. Dessa
maneira, afirma Santos (2001), a depressão após o parto seria uma cristalização da etapa
conflitiva que se instaura logo após o nascimento do bebê.
Como exemplo dessas hipóteses, Badinter (1985) explora as teorias de Helène
Deutsch, que destacam a psicologia da mulher e da mãe, retratando-a como um ser passivo,
masoquista e narcisista. Segundo essa Deutsch (citado por Parker, 1997; Serrurieur, 1993),
esse conceito se diferencia do masoquismo pervertido, pelo fato desse último envolver a
recepção de dor e crueldade, enquanto o masoquismo feminino emprega a culpa auto-
destrutiva. Por isso, sobre a maternidade, pressupõe-se um masoquismo “normal” e necessário
no qual as forças narcisistas da auto-preservação e a função masoquista da maternidade
devem estabelecer uma concordância harmoniosa. Nesse contexto, ele é comparável a um
desejo materno de sacrificar-se pelo outro.
Além desse referencial, Badinter (1985) também critica as idéias de Winnicott, por ele
consagrar as condições para a maternagem adequadas, desde que a mãe se adapte inteiramente
às necessidades do filho. Nesse sentido, vejamos, o que nos diz o próprio Winnicott
(1947/2000b) sobre a renúncia ao falar da mãe recém–parida e da DPP.
Ele foi um dos primeiros estudiosos que notaram uma mudança particular na psiqué
das mulheres no pós-parto e nos deu uma importante contribuição para entender a mãe recém-
parida, ao conceituar a “preocupação materna primária”. Esta consiste num “estado” pelo qual
todas as mães necessariamente vão passar, e que se inicia no final da gravidez e perdura até
algumas semanas após o parto. Nesse, a mãe se encontra num estado mental que, se vivido
por qualquer outra pessoa em outra fase da sua vida, seria considerado no limite da
psicotização.
A mãe parece louca, pois está sempre observando a respiração do bebê; acorda de um
sono pesado, mal ele começa a chorar; está centrada no filho e em suas necessidades nas 24
horas do dia. Nesse estado, as mães tornam-se capazes de se colocarem no “lugar do bebê”,
tamanha a identificação com ele: “ela é o bebê e o bebê é ela!” (Winnicott, 1971/2002, p. 36).
A mãe torna-se excessivamente preocupada e monotemática porque só consegue pensar, falar
e viver o seu bebê, renunciando de bom grado a si mesma em nome da criança. Esse autor
preconizava que essa renúncia e essa “preocupação psicótica”, que implicam em sofrimento
materno, são absolutamente necessárias para a constituição do que ele denominou de “mãe
suficientemente boa” (Winnicott, 1947/2000b).
Winnicott (1971/2002), acredita que as mães entram em depressão por se recusarem a
vivenciar esta renúncia temporária de si que a maternidade impõe (grifo meu!), talvez porque
esta renúncia lhes pareça eterna, ou porque relutam em entrar em contato com a maternidade
real. Dessa forma, acabariam por prolongar ou eternizar este período breve de “loucura
materna primária”, por meio da DPP. Portanto, este estado de loucura materna pode ocorrer
128
26
O caso de Kátia não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte de nosso trabalho de campo.
130
A mãe passará então a definir-se nas tensões da ruptura e da criação, as quais são parte
permanente de seu envolvimento com a maternagem. Esta a conduzirá a um posicionamento
intencional na elaboração das posições depressivas, ou não, em que se situa. A primeira
posição se dará pela ausência do sujeito como referente de si mesmo, que leva a pessoa a
posicionar-se de forma passiva, orientada ao cumprimento de regras sociais, e não de forma
criativa e prazerosa no que faz. Já a segunda posição implica num respeito pelo próprio
pensamento e desejos. Porém, infelizmente, a produção de sentidos associada à produção de
novas idéias e posições é algo que ainda estimula ou é possível para uma quantidade restrita
de mulheres.
Nos casos estudados, observamos que as mães lutam, não por uma maternidade
exclusiva, mas por uma maternidade “inclusiva”, sobretudo nos casos de Larissa e Júlia,que
nos pareceram mulheres bem estruturadas intelectualmente, e apresentaram respostas bem
diferentes das outras mães. Elas mantém um discurso singular e são zelosas na defesa de seus
espaços próprios, apesar dos muitos valores que as movem pertencerem a esse espaço
simbólico, em relação ao qual elas se posicionam, gerando a tensão necessária que as preserva
enquanto sujeitos de suas próprias vidas. Elas parecem estar passando por todos os
questionamentos normais que fazemos quando nos deparamos com a maternidade e todos os
seus conflitos com esse novo papel. Como ser mãe, mulher, amante, profissional tudo ao
mesmo tempo?
Essa é a grande questão tanto para Larissa quanto para Júlia. Elas estão sofrendo, mas
têm coragem de buscar saídas! Elas têm questionamentos bem sólidos e bem estruturados. No
entanto, sentem-se inseguras neste novo papel e estão se vendo obrigadas a se posicionarem,
como fica claro na seguinte expressão de Júlia: Acho que tem uma mudança cultural em
relação à maternidade. Eu acho que mudou a minha vida, mas eu me sinto mais feia, sinto
muita culpa. Você tem que estar lutando contra as coisas”. Suas histórias são relatos de uma
luta! Lutam contra uma espécie de ofuscamento de si próprias, que o contato inicial com o
bebê acarreta (Santos, 2001). Lutam para serem ouvidas, para poder ser quem são!
Na verdade, o estudo de Dias e Lopes (2003) já nos mostra que esta é a grande
diferença entre as jovens mães da atualidade e as de outrora. Elas, muito mais dos que suas
próprias mães, expressam a necessidade de uma preservação do espaço pessoal diferenciado
do papel de mãe, referenciando normalmente o estudo e o trabalho fora de casa. Acreditamos
ser possível buscar alternativas, tentar negociar, conciliar novas tarefas após a maternidade,
sem abdicar impositivamente de sua identidade, de seus desejos, de seu espaço. Diga-se de
passagem, um espaço tão arduamente conquistado nas últimas décadas, principalmente por
meio dos movimentos feministas, e que agora lhe cobram “abrir-mão”, “renunciar”, se quiser
ser uma “mãe suficientemente boa”. Seria esta uma luta legítima, ou seria a resistência
cristalizada e patológica? Ou seria possível pensarmos numa maior liberdade para exercer a
maternidade, mais adequada aos nossos tempos? Uma maternidade “inclusiva”?
Também em relação aos outros casos estudados, fica evidente como o contexto
imediato aparece como elemento diferente em cada uma delas. De todas as mães estudadas,
Isabela nos pareceu estar tencionada mais diretamente pelo fator social. Enquanto em outros
casos, a tensão se estabelecia pelas pressões exercidas pelas figuras parentais, pelo cônjuge e
pelo ideal de maternidade construído socialmente, neste, não são esses fatores que parecem
estar em primeiro plano. Aqui, vemos uma pressão direta e concreta da luta pela
sobrevivência, da privação das necessidades básicas, da pobreza da falta de perspectiva futura,
lamentavelmente tão comuns no nosso país. Quantos milhões de Isabelas, com filhos nos
braços, passando necessidades de todas as ordens existem no nosso país? O caso de Isabela se
destaca entre os demais, porque, de todas, ela nos pareceu a mais desamparada. Mas o
interessante é que isto só nos mostra o poder de resistência de nossas mulheres, que não
131
sucumbem diante das dificuldades. Talvez Isabela seja a maior lutadora de todas as mães que
participaram do estudo, se é que cabe este tipo de comparação.
Sua situação de vida é tão complexa, que no seu caso nos parece ainda mais abusivo
reduzi-la ao diagnóstico de DPP. Assim, como as outras mães, ela continua lutando, apesar de
ter menos recursos para a batalha. Mesmo nos momentos de intensa tristeza e paralisia, não se
deixou abater e segue lutando por sua vida e pela vida de suas filhas. É verdade que ela tem
conseguido, mas o melhor seria se ela pudesse contar com o apoios sociais, que tornasse a sua
caminhada mais leve.
A sociedade exige que a mulher cumpra bem todas essas funções e lhe culpa se o
resultado não for satisfatório. Sabemos que as cobranças sobre as mulheres nunca foram
poucas: não basta ser mãe, devemos ser mães incondicionais; não basta ser esposa, devemos
ser esposas exemplares; não basta ter uma profissão e um trabalho: devemos ser profissionais
bem sucedidas; não basta ter um corpo saudável: temos que ter um corpo de modelo. Diante
desta hipótese, nos perguntamos se esta idealização não seria exatamente uma tentativa de
parar ou impedir esta crescente mobilidade da mulher, por meio da culpabilização e do
excesso de atribuições? Não seria a perpetuação da ideologia patriarcal que continua a
influenciar nosso modo de ver o mundo?
Estaríamos, nós da psicologia, de fato preocupados com este tipo de clientela, quando
atribuímos um diagnóstico de uma psicopatologia? O problema aqui não é instrumental, trata-
se de recuperar a mulher/mãe enquanto sujeito, na sua dimensão de produção de sentido
subjetivo, profundamente singular para a maternidade que está vivenciando. Mas veremos na
próxima zona de sentido que este não tem sido o caminho trilhado nem pela medicina, e nem
pela psicologia, onde a busca pela padronização e a ênfase na patologização dos fenômenos
humanos são muito presentes.
A identidade de enferma se constitui, para nós, em uma zona de sentido subjetivo que
aborda o sujeito tendencioso a naturalizar seu estado depressivo e evitar o enfrentamento de
um conflito que não pode ser evidenciado. Essa hipótese tem interesse não apenas para o
conhecimento da subjetividade individual dos casos analisados, como também para o estudo
dos procesos de subjetivação dos diferentes conceitos usados para construção social das
mulheres com DPP.
Santos (2001) nos informa que o fenômeno da DPP é atualmente muito estudado em
psiquiatria, e se contitui de elementos preferencialmente observáveis privilegiados na
modernidade psicopatológica. Sob essa ótica, há uma clara tentativa de encontrar suas causas
sem se deter em considerações sobre o processo subjetivo subjacente. Os estudos
compartilham do ideário descritivo ao construir quadros estáveis, e apresentam estratégias
experimentais para dar suporte a uma generalização. Essa mesma autora afirma que na
literatura psicanalítica também se encontram estudos com a mesma preocupação em
estabelecer um recorte psicopatológico da DPP. Sobretudo nos estudos pioneiros, procurava-
se estabelecer a estrutura de personalidade subjacente à depressão, apresentando resultados,
tais como: “os estudos terapêuticos de pacientes com distúrbio puerperal sugerem que
mulheres com um tipo particular de distúrbio de caráter estão em perigo de doença mental
durante o puerpério” (Lomas, 1960 citados por Santos, 2001, p. 27).
Felizmente, essa forma de abordagem do dano psíquico, em sua correlação com as
fragilidades subjetivas e com os fatores de risco, tem recebido muitas críticas, o que abriu o
campo para reformulação de teorias psicológicas (Sterian, 2001, Guidano, 1994, González
Rey, 2002). González Rey (2004) tem sido um forte crítico deste tipo de prática tanto na
psicologia quanto na medicina. Para ele, “as categorias universais, como esquizofrenia, déficit
132
temos que construir uma nova “verdade” (Sterian, 2001). Ou, como afirma Guidano (1994, p.
137), “ (...) cada persona es un experimento único de la Naturaleza, y tiene por lo tanto un
modo absolutamente singular de articular su dimensión de significado y los processos de
reordenamienta que tienen lugar en ella”.
Para Sterian (2001), isso significa que fazer uma pessoa pensar em si mesma, não
apenas como um diagnóstico, é oferecer-lhe a chance de reinserir-se em sua própria história
de vida, de assumir-se enquanto sujeito de seus próprios desejos, necessidades e
possibilidades. Significa não permitir que ela transforme a doença em sua própria identidade
pois, só assim, ela poderá suportar e elaborar as limitações ou frustrações que sua existência
for lhe reservando. É por essa razão que González Rey afirma que, se o impacto subjetivo do
diagnóstico não for considerado, o paciente perde sua condição de sujeito, e ele próprio passa
a reforçar a sua “condição” de doente, amplamente respaldada no discurso biomédico. Essa
condição de doente, “ao ser definida em todos os seus sistemas de relação, chega a definir a
identidade do sujeito”. (González Rey, 2002, p. 105).
Nesse sentido, chamou a nossa atenção que Gabriela acreditava estar muito doente:
sentia-se estranha, “enlouquecendo”, “tomada” pelos sintomas e já não se reconhecia como
ela mesma. Intrigou-nos que ela se referia a sua depressão, como se o seu problema atual se
resumisse a esta problemática, com a qual não estaria diretamente implicada. Vejamos este
sentido em suas expressões:“Meu maior problema...é estar com esta doença”; “Sinto uma
forte pressão no peito e uma constante sensação de angústia, não tenho vontade de comer,
não consigo dormir e tenho muitos pensamentos negativos....tenho medo de machucar o
bebê e tenho medo de estar ficando louca...sempre acho que tudo vai dar errado”. Observa-
se aqui a legitimidade de seu sofrimento, mas também chama nossa atenção a intensidade
com que ela assume seu diagnóstico!
Partindo dessa hipótese, podemos pensar que tanto sua depressão, como a loucura a
que se refere, representam mais uma apropriação como crença pessoal de uma construção
social, atribuindo-lhe uma configuração de sentido subjetivo central no seu sofrimento atual,
do que a uma depressão propriamente dita. Parece-nos mais uma reação por achar que não
está cumprindo bem seu papel de mãe/esposa, com base nos parâmentros sociais que foram
internalizados por ela, do que uma avaliação de sua atuação nestas funções, com base em seus
próprios parâmetros e desejos. Para estar bem de saúde, Gabriela terá que enfrentar a situação
em que está e assumir uma posição frente a ela, o que parece que ela evita por todas as vias
possíveis, utilizando-se do sentido subjetivo que aparece em sua posição em relação à
naturalização de sua enfermidade.
Infelizmente, este é um recurso bastante utilizado na história das mulheres. Para
poderem ser ou fazer o que realmente queriam, ou “se tornavam” loucas ou bruxas. “Adoecer
“ ou “enlouquecer” era a única saída para expressão da subjetividade das mulheres desde a
Idade Média e, infelizmente, se perpetua até nossos dias (Chauí, 1984; Serrurieur, 1993).
Assim como no caso da participante Gabriela, percebemos que Lúcia também se
identifica com a doença da depressão e assume esse diagnóstico. É interessante que mesmo
sem ter–lhe sido formalmente dado o diagnóstico de DPP, ela se identificava com os sintomas
que achava caracterizar essa doença e se atribuía este diagnóstico: “Eu acho que eu tenho
DPP por causa de tudo o que eu passei, mesmo sem saber o que era.” Alessandra: “Mas o
que você acha que tem de deprimida?” - Lúcia: “Assim, nos meus momentos de angústia, de
desespero, eu não queria vê-lo (o filho), queria matá-lo. Eu acho que tudo isso fez com que
eu pensasse mais ainda que era depressão”. Suas referências feitas à rejeição, ao infanticídio,
ao sofrimento e limitações são atributos que expressam sua subordinação ao rótulo
socialmente estabelecido da DPP. A integração desta constatação e outros elementos
expressados por ela anteriormente, nos leva a reforçar a impressão de que ela sê vê muito
134
doente e se reduz basicamente a isso. Essa concepção é um forte indicador de que, assim
como no caso de Gabriela, há um processo de naturalização da doença.
Este mesmo processo também foi observado no caso de Kátia. Suas reiteradas palavras
e ações referentes à depressão nos sugeriram uma forte identificação com esta entidade
diagnóstica. A presença da depressão está tão forte em seus relatos e em seu modo de se ver e
no seu dia-a-dia, que isso nos sugere que a depressão é vista como uma condição “natural” de
sua vida: “Mas será que é depressão mesmo que eu tenho?” (...) “Não sei. Às vezes eu sinto
que é o meu jeito mesmo”. Com isso, sente-se presa e impotente diante da “doença/depressão”
que, paradoxalmente, lhe traz um certo alívio, pois a desculpabiliza diante da família e da
sociedade. Nesta perspectiva, a depressão transforma-se em garantia de proteção e afeto,
ganhos secundários que vão na contramão do que realmente a faz sofrer, ou seja, a ameaça de
ser abandonada, o medo e a insegurança de não poder acreditar em si, e principalmente a
incapacidade de refletir e escolher sobre o que é bom ou ruim para a sua vida.
Para nós, todas as considerações tecidas ao longo das análises dos casos só reforçam a
concepção de que a DPP não deveria ser considerada apenas como uma entidade
psicopatológica isolada de quem a tem. A mulher que apresenta os sintomas compatíveis com
os da DPP é um ser concreto, histórico, social, a partir de quem impomos as seguintes
questões: poderíamos suspeitar que a DPP se trata apenas de mais uma maneira de vivenciar a
maternidade? Seria uma das formas mais sofridas, porém não menos legítima e natural, que as
mais convencionais de maternar? Será que estas mães precisam se “esconder/proteger” sob o
diagnóstico da depressão pós-parto, ou da loucura, para poderem imprimir sua marca singular
na função materna?
As mães estudadas não devem ser reduzidas nem padronizadas pelo diagnóstico de
depressão, pois na depressão o sujeito sucumbe às imposições sociais externas ou
internalizadas, pára de produzir sentidos e aceita indiferentemente o seu “destino”. A vida
perde o sentido, e eles são engolidos pelas circunstâncias e passam apenas a sobreviver aos
dias que lhes restam. Desistiram da fé na própria força e na utilidade vital. Aguardam a ajuda
dos outros ou do destino e, por isso, se vêem diante da única solução possível: são obrigadas a
adaptarem-se ao desejo dos outros, às custas de seus próprios desejos e da alegria de viver.
Elas param de lutar e vivem para o próprio sofrimento. Nas mães que acompanhamos, não é
esse o movimento observado. Muito pelo contrário, elas nos parecem extremamente vivas!
Apesar de inicialmente parecerem derrotadas e “engolidas” pelas imposições, que
provocam os sentimentos de tristeza, menos-valia, incapacidade, fracasso, elas continuam
lutando para se manterem íntegras enquanto sujeitos de fato e de direito! Estão juntando todas
as forças para se preservarem, apesar de todos os apelos sociais, e até científicos, para que
renunciem a si mesmas, se quiserem ser boas mães. O que diferencia a tristeza da depressão é
exatamente o posicionamento ativo do sujeito perante a vida em busca de alternativas e a
manutenção da produção de sentidos subjetivos. A subjetividade social e o sujeito travam uma
luta na busca de alternativas, no qual ele possa sobreviver apesar da padronização e da
patologização sociais. Para nós, as mães estudadas não pararam de lutar, por isto não estão
loucas nem doentes.
Estão em plena luta, cada uma no seu ritmo e dentro de suas possibilidades, em busca
de alternativas para a nova realidade que se impõe com a maternidade. A tristeza, a
insegurança, a angústia e o desamparo sentidos no pós-parto nos parecem fazer parte do
momento de transição e tensão em que se encontram difusamente pressionadas pelas
demandas sociais, afetivas e culturais que se integram com grande força na tentativa de
“encaixá-las” no modelo tradicional de mãe. Essa cobrança, que a sociedade e que elas
mesmas se impõem, só lhes traz um sentimento cada vez maior de culpa, inadequação,
tornando-se um fardo eterno.
135
Assim, elas sofrem porque ainda não dominam o papel de mãe e estão tentando
integrá-lo a seus modos de ser, e não o que a sociedade espera delas, já que ainda hoje “a
maternagem é vista como o ideal feminino mais nobre e dignificante” (Trindade, 1993, p.
538). Esse ideal social estimulado por muitas vias diferentes entra em contradição com outros
sentidos subjetivos que fazem parte de suas vidas e com o sujeito que são, o qual nunca será
perfeito, mas pode ser autêntico, legítimo. Um bom exemplo disso, encontramos nos casos de
Larissa e Jùlia que se posicionam diante das múltiplas demandas impostas: elas lutam pela
manutenção do seu status quo. Representam a idéia da depressão pós-parto enquanto lócus de
resistência27, e não enquanto doença.
Especialmente no caso de Lúcia, observamos apenas uma tentativa fugaz de luta. Ela
vive e continua dolorosamente aquilo que Larissa já pode descrever como passado recente.
Ela nos parece a que está tendo mais dificuldades para lutar. Parece ter adotado a renúncia a si
mesma como estratégia de proteção, e se limita a achar que, mesmo com todo o sofrimento
experenciado, ela se impõe a atender e se reduzir ao papel tradicional de mãe, com o qual
tenta se contentar esperando o “paraíso” prometido: “A felicidade...é ter meu filhinho”. De
acordo com Ehrhardt (1996) mulheres desamparadas, como Lúcia, colocam em dúvida a
capacidade em agir eficazmente. Assim, baseada na valorização de suas experiências
negativas, e na desqualificação de suas experiências positivas, elas têm uma profunda
convicção na sua incapacidade e não confiam mais em si mesmas. A reação lógica é, então,
lutar pela aceitação do outro. No caso de Lúcia, este movimento nos pareceu muito evidente
em relação a seu marido e ao meio.
Certamente, essa luta nutre o sofrimento que lhe trás tristeza, culpa, insegurança e
dúvidas, mas não lhes paralisa. Para nós, Larissa, Gabriela, Júlia, Lúcia, Isabela e as outras
mães que fizeram parte deste estudo sofrem porque estão tentando “desesperadamente” lidar
com muitos vetores que as tencionam em diferentes direções. Assim, se estabelece a tensão
entre o sujeito, que se reafirma em seu espaço, e a subjetividade social, que a pressiona em
um tipo de modelo e de posição com relação a si mesma, que uma entidade semiológica como
DPP, certamente, não consegue abarcar. Entendemos, então, que o sentido subjetivo da
maternidade não está limitado ao espaço simbólico e nem real da maternagem, e sim que está
integrado por sentidos subjetivos gerados em outros núcleos de sentido da vida de cada uma
das mulheres estudadas, os quais se revelam ou se potencializam nas configurações subjetivas
da maternidade, através dos sintomas da DPP.
“Nossas mães” nos mostram que a depressão tem um sujeito concreto, situado
histórica e contextualmente, condições estas fortemente geradoras de sentidos subjetivos para
cada mãe, nas diferentes experiências cotidianas com seus filhos e familiares, que também
estão atravessados por esse espaço histórico-contextual. Portanto, a maternidade é uma s
subjetiva que, como qualquer outra, se constitue de uma multiplicidade de sentidos subjetivos
da história da mulher e do contexto em que ela vive e foi criada (González Rey, 2005b).
Assim, os casos estudados, juntamente com esta posição teórica, serviu para reforçar nossa
crítica ao diagnóstico de DPP padronizado, preferindo falar de uma mulher recém parida em
sofrimento!
Esta zona nasceu inspirada na frase de Isabela: ”ser pai não é ser tudo”, e pretende
chamar atenção para a responsabilidade compartilhada frente aos filhos e à família, como uma
das “alternativas” para o conflito e o sofrimento que a mulher contemporânea geralmente
encontra diante da maternidade. Ao levantarmos essa hipótese no âmbito da depressão após
27
Termo sugerido pela Profª Drª Tânia Mara Campos de Almeida, na ocasião de defesa da tese, em 13.12.2005.
136
um parto, deparamo-nos com uma rede múltipla de fatores causais e sentidos subjetivos que
se sobrepõem e se integram na configuração subjetiva da depressão, na qual destacamos o
papel do pai.
Defendemos que o bom exercício da paternidade seja uma das “saídas” para a mãe
deprimida no pós-parto, juntamente com a renúncia à perfeição e a idealização do papel
materno (Dix, 1992), tendo em vista que acreditamos que um dos fatores mantenedores dessa
realidade é a falta de apoio social, sobretudo da falta de apoio e participação do pai do bebê.
Quando a mãe pode contar efetivamente com seu companheiro no pós-parto, dividindo os
cuidados com o bebê e recebendo dele a atenção adequada, as possibilidade dela desenvolver
uma DPP caem drasticamente. Essa correlação foi recentemente contatada no estudo de Cruz,
Simões e Faisal-Cury (2005), que encontrou entre seus resultados que quanto maior a
percepção de suporte social do marido, menor a prevalência de DPP.
Certamente, o nascimento de um filho propicia uma reconfiguração subjetiva não só
da mulher, mas do marido, dos familiares e do meio que os cercam. Algumas atividades e
conceitos que pareciam estáveis se desestabilizam ao entrar em contato com novas
configurações que surgem, ou com a descoberta de outras que já existiam, mas estavam
adormecidas ou se pensavam resolvidas. No entanto, de modo geral, as maiores e mais
significativas alterações ocorrem na vida das mulheres. É delas que se cobra a renúncia, a
responsabilidade, a abdicação, o amor incondicional e disponibilidade total aos filhos. É
principalmente na vida delas que uma revolução se instala após o nascimento do filho. O
mesmo movimento não se observa nem na mesma intensidade, nem na mesma qualidade, na
vida da imensa maioria dos homens.
Na zona de sentido “b”, discutida anteriormente, atentamos para o fato de que nenhum
dos autores consultados fala das renúncias que o pai também deveria implementar em sua
vida, para se tornar um “pai suficientemente bom”. Intriga-nos também constatar que o pai
que não renuncia a si mesmo não é alvo de maiores críticas, nem pelo senso comum e nem
pela ciência, como as mulheres o são. Ao contrário do que pode ocorrer a uma mulher, não
existem maiores sanções sociais para o homem quando se nega a ter filhos ou a cuidar bem
deles, salvo quando ele pode ser preso por não ter pago a pensão alimentícia. Provavelmente,
por isso, o Brasil é, ainda hoje, campeão da paternidade irresponsável!
Isabela é um caso que nos mostra muito bem esta impunidade paterna e a sobrecarga
materna. Ela sente-se crucificada com as atividades diárias que lhes são atribuídas no papel de
dona da casa, mãe e arrimo da família. Sua queixa principal não está direcionada nem às
filhas e nem à maternidade, mas ao desamparo em que se encontra, sobretudo neste momento
do pós-parto, pela ausência do apoio paterno. Isso sugere um indicador de insatisfação pessoal
e opressão pelos múltiplos papéis que lhe foram impostos socialmente, para que ela e suas
filhas tenham chances de sobreviver, evidenciando uma rotina de sacrifício no desempenho
desses papéis, e a falta de participação do pai nestas árduas tarefas. Seria este o lugar da
mulher na pós-modernidade, assumir sozinha seus filhos, sobretudo nas classes sociais mais
baixas, nas quais o fenômeno das família monoparentais, dirigidas pelas mulheres, é ainda
mais forte?
Observamos, no discurso dos companheiros das mulheres por nós estudadas, que eles
também carregam o velho modelo de gênero de séculos atrás. Solicitamos que eles definisse o
que “é ser mãe” e o que “é ser pai”, por meio de associação livre de palavras, e obtivemos as
respostas apresentadas no quadro abaixo:
Nome marido Ser mãe é... Ser pai é.....
Gustavo (marido Larissa) Amor, carinho, troca, doação, Amor, carinho, troca, descoberta,
dificuldade brincadeira
Edgar (marido Lúcia) Amor máximo, companheira, Amigo, companheiro, colega,
paixão, vida, amiga responsabilidade, tudo
Heitor (marido Júlia) Amor, cuidado, carinho, paciência, Apoio, amor, carinho, segurança,
137
compreensão força
Quadro 3: Definição dos maridos sobre os papais maternos e paternos
É interessante notar que à palavra mãe foi primeiramente associada a palavra amor, em
todos os casos, seguidas de carinho, cuidado, paciência, doação, compreensão, demonstrando
uma representação de mãe compatível com o estereótipo idealizado para a maternidade.
Resultado semelhante foi encontrado no estudo de Dias e Lopes (2003) sobre a representação
da maternidade em mães jovens e suas mães. Já quanto ao termo pai, essas mesmas palavras
já não aparecem, ainda que amor e carinho estejam presentes. A função paterna não é
associada à doação, paciência e disponibilidade. Ao contrário, a paternidade aparece mais
associada ao lúdico, a amizade, à troca e ao apoio.
Não há como negar nessas associações a influência dos princípios da família nuclear
burguesa na sua forma de pensar o ser humano e sua estruturação psicológica, extremamente
dependente do amor materno (Durham, 1983), onde se concretiza a posição de gênero, que
temos criticado nesta tese.
Essas constatações nos levam a concluir uma decorrência natural dos modelos
tradicionais de gênero, o homem continua tendo o privilégio do exercício da paternidade
voluntária, enquanto a mulher se submete à maternidade obrigatória, já que elas são definidas
instintivamente como esposa, mãe e filha – ao contrário dos homens, para os quais ser marido,
pai e filho é algo opcional, que apenas acontece em suas vidas. As mulheres são definidas
como seres para os outros, e não seres como os outros, como ocorre com os homens (Chauí,
1894). Diante dessas afirmações é fácil concluir que, se ser mãe é padecer no paraíso, ser pai
é viver no paraíso!
Diante de realidades como as de Isabela e das demais mães de nosso estudo, temos que
concordar com Diniz (1999), quando afirma que a condição feminina é um fator de risco para
sua saúde mental, já que o estresse decorrente dessas inúmeras cobranças e pressões pode
resultar em depressões e outros transtornos. Por isto, não podemos deixar de considerar a
variável gênero em nosso estudo que, de modo geral, é ainda ignorada na pesquisa
psicológica. Na verdade, os autores de pesquisas em gênero e saúde ressaltam a necessidade
de se buscar uma compreensão da interação complexa entre gênero, papéis sexuais e saúde
mental, e destacam a importância do trabalho de pesquisa sobre a relação entre depressão e
fatores como características psicológicas, questões relacionadas com a função reprodutiva,
papéis sociais e circunstâncias de vida das mulheres. (Diniz, 1999).
Nesse sentido, pareceu-nos significativa a frase na qual Gabriela compara a
paternidade à maternidade: “A paternidade... eu acho que deve ser melhor do que a
maternidade”, além da assertiva de Clarisse28em que afirma: “A paternidade... é mais
simples”. Ou seja, a maternidade não é sentida e vivida como algo tão bom quando se
compara com o outro, em especial o pai, provavelmente porque a este não sejam impostas
tantas renúncias quanto à mulher. Todos os outros casos por nós estudados, evidenciam a
parca participação dos pais nos cuidados com seus filhos. Queixas neste sentido, perpassavam
as sessões individuais e de grupo, como pode ser observado no relato de Clarisse: “Depois
que o Henrique nasceu, ele (marido) já não dorme mais no nosso quarto, ele não agüenta o
choro do guri e precisa dormir bem para acordar cedo no outro dia (...) parece que o guri
nem é filho dele”. Em outro momento, ela se queixou: “ele acha que os filhos não dão tanto
trabalho assim...não sabe o que é que eu faço o dia todo. Ele não entende que eu não durmo
direito à noite e que passo o dia todo cuidando do Henrique”.
Infelizmente, temos que admitir que a psicologia não tem contribuído para melhorar
este quadro. A psicologia penalizou demais as mães no passado e isentou os pais. Ela colocou
um papel preponderante na relação mãe e filho. Muitas pesquisas em psicologia reforçam a
idéia de uma responsabilidade exclusiva da relação mãe-bebê para o desenvolvimento
28
O caso de Clarisse não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte de nosso trabalho de campo
138
psicológico da criança. Tudo o que acontecesse, especialmente nos primeiros meses de vida,
era culpa da mãe. Ou seja, ela não podia errar.
O interessante é notar que essas pesquisas possuem a característica comum de
corroborar idéias que a classe dominante deseja difundir para a sociedade. A exemplo disso,
cito um estudo de Kude (1994) que ressalta como as pesquisas em psicologia reforçam a idéia
de uma responsabilidade exclusiva da relação mãe-bebê para o desenvolvimento psicológico
da criança. Segundo esta autora, “o sexismo tem permeado consistentemente a pesquisa e as
teorias psicológicas que abordam o desenvolvimento humano” (p.129). Como conseqüência,
muitos teóricos da psicologia acabam tendo uma atitude acusatória e culpógena em relação à
mulher, acentuando-se a imagem de devoção e de sacrifício que caracterizaria a “boa mãe”,
que se torna, desse modo, o personagem central da família, e eximindo o pai de maiores
responsabilidades.
Este foi, como afirma Trindade (1998), “mais desserviço da psicologia, emprestando
validade científica à culpa feminina.” (p.193). Portanto, não podemos analisar os estudos
feitos, por mais científicos e neutros, que possam parecer, sem analisar o contexto no qual ele
está inserido.
No século XX, sob a influência da psicanálise, também reforçou-se essa imagem
culpógena da mãe ao constatar que a figura materna é essencial para o desenvolvimento dos
filhos e para a construção da personalidade. Mas, do pai não se cobrou igual papel, ressalta
Maldonato (2004, citado por Crescer, 2004 a). Pesquisadores psicanalistas argumentam que
todas as pessoas – homens e mulheres - têm uma base relacional para cuidar de crianças, se
elas mesmas foram cuidadas, por sua capacidade de regredir a sua relação com sua própria
mãe, e se esta teve uma boa qualidade. Contudo, salienta Chodorow (1990), apesar disto, as
mulheres – e não os homens – continuam a ser as maiores responsáveis pelos cuidados para
com os filhos. O que acontece com as capacidades potenciais dos homens de cuidar de uma
criança? Não se observa registro na teoria freudiana e lacaniana, de acordo com Zalcberg
(2003), sobre a necessidade, hoje já reconhecida na literatura sobre psicologia perinatal, de o
pai ser um aliado fundamental para que mãe e bebê concretizem a maternagem; como também
questionamentos sobre a única possibilidade de entrada paterna a partir da mãe.
Badinter (1985) também critica o discurso psicanalítico por colocar a mãe como
personagem central na vida dos filhos e por reforçar a tendência de responsabilizar a mãe
pelas dificuldades e problemas que surgem neles: “ Da responsabilidade à culpa foi apenas
um passo, rapidamente dado ao aparecimento da menor dificuldade infantil” (Badinter, 1985,
p.238). Embora na teoria psicanalítica não haja afirmação de que a mãe é a única responsável
pelo inconsciente do filho, não deixa de ser verdade que ela é considerada causa quase que
imediata, senão primeira, do equilíbrio psíquico da criança e de seu futuro subjetivo. A
máxima “A culpa é da mãe...”, nascida principalmente deste olhar psicanalítico se
disseminou. Em casos de comprometimentos emocionais da criança, apressa-se logo em
levantar hipóteses sobre esta mãe, tida, ao mesmo tempo, como “malvada”, “desnaturada” e
“doente” (Badinter, 1985).
Concluímos, então, que a psicanálise deixou uma marca real e pesada no inconsciente
da mulher, pois reforçou a idéia de que pesa unicamente sobre a mãe/a mulher a culpa em
casos inclusive, em que há ineficiência paterna. Ou seja, a psicanálise tem contribuído
fortemente para repassar a ideologia dominante da maternidade exclusivamente feminina
(Chodorow, 1990). Por essa razão, nos utilizamos das palavras de Montgomery (1998) para
expressar nosso posicionamento sobre estas teorizações: “como grande parte dos psicanalistas
interpreta a psicanálise com referenciais profundamente machistas, não aceito esta última
hipótese como verdadeira” (p. 60), referindo-se a teoria da inveja do pênis.
139
29
O caso de Kátia não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte do nosso trabalho de campo
30
O caso de Kátia não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte do nosso trabalho de campo.
141
este novo tipo de homem a seu lado. Mesmo assim, continuamos apostando que aos poucos, a
à medida que os papéis/funções tradicionais sejam questionados e desmistificados, uma
maternidade inclusiva possa se viável, pois por outro lado, é interessante notar que foi
justamente pelo grande envolvimento das mulheres no campo profissional e o novo papel
social do trabalho feminino, dentre outros fatores socio-econômicos, que vêm se abrindo
novos espaços para a participação dos pais no cuidado para com seus filhos (Nolasco, 1985).
Assim, os homens vêm sendo instigados a ter uma participação mais efetiva, muitas vezes
chegando a optar por cuidar dos filhos enquanto a mulher está no trabalho (Época, 2003).
Dessa forma, os pais estariam mais ativos e exercendo influência direta sobre o
desenvolvimento de seus filhos (Piccini, Silvia, Lopes, Gonçalves & Tudge, 2004).
Tudge, 2004). Pode também apresentar depressões pós-parto ou pós-parto blues (Lamour e
Barraco, 1998 citado por Andrade, 2002).
Muitos maridos-pais, sobretudo aqueles de classes mais favorecidas, participam das
consultas pré-natais, assistem aos cursos preparatórios, recebem instruções relativos ao parto e
à lactação, e acompanham suas esposas durante o parto (Montgomery, 1998). Essas mudanças
atitudinais também foram constatadas por Batista e Leite (2004). Eles realizaram um estudo
que investigou a importância do pai participar do momento parto para a construção da
parentalidade. Os resultados demonstraram que o vínculo entre pais e filho(a) fica mais forte e
isso termina por influenciar positivamente a relação do casal, fortalecendo assim os laços
familiares.
A título de ilustração, deste movimento participativo, retomamos o caso de Larissa,
que em uma das sessões chegou com a seguinte reflexão: “Uma coisa que eu gosto, que é
legal, é que a maternidade desperta a paternidade também (...) é muito legal ver ele (marido)
nesse papel também de estar com ela de cuidar dela (da filha). E eu acho assim que a
paternidade responsável é também a minha maternidade”. Aos poucos, Larissa foi se
posicionando e foi mais ouvida por seu marido, que passou a apoiá-la em seu desejo de
continuar seus estudos e sua carreira.
Na penúltima sessão do grupo, ela nos contou: “Minha vontade era de estudar.... eu
não sei porque, mas eu preciso estar estudando no meio de professores e eu conversei isso
como meu marido. Aí agora surgiu uma oportunidade de ter um horário, de negociar com ele
um horário. E dele sentir mais segurança, de ficar com a Manuela (bebê)... A primeira aula
foi semana passada. Aí chegou uma hora que ela percebeu que eu ia sair, e ela começou a
chorar e ele pediu para eu ficar mais um pouquinho e dar a comida para ela. E eu respondi
que ele sabia que eu tinha que sair e disse que qualquer coisa ele me ligava.. Ele segurou as
pontas... No intervalo, eu liguei e ficou tudo bem, mas isso é tudo depois de um tempo, né?
Agora dá para negociar”. Em função de estórias como estas, entendemos que a paternidade e
maternidade são processos complementares que se desenvolvem na estrutura familiar para
resguardar o desenvolvimento físico e afetivo da criança. O interessante é que esta postura
participativa independe do pai ser separado ou não (Época, 2003).
Devemos reconhecer que o pai tem um papel fundamental na educação dos filhos. O
vigor e a segurança desse papel criam a imagem paterna, que se converte num elo permanente
para o desenvolvimento da criança. A atitude emocional do pai na tríade familiar é
significativa desde o momento da concepção, afirmam Montgomery (1998) e Batista e Leite
(2004). Para estes autores, as manifestações das boas identificações da genuína qualidade
parental podem se iniciar no momento do parto, por meio da troca de olhares entre o pai e o
recém-nascido, com o primeiro sorriso que o pai dirige para o seu bebê, ao embalá-lo com
segurança e amor, ao dar-lhe banho ou mamadeira, estabelecendo desde cedo laços afetivos.
Concluímos que, apesar do crescente questionamento sobre o amor materno
incondicional e inato, a visão da mãe ideal, responsável pelo bem-estar psicológico e
emocional da família, ainda é bastante presente na literatura e no senso comum (Badinter,
1985; Serrurier, 1993; Forna, 1999; Falke & Wagner, 2000). Porém, as famílias mudaram e
estão transformando a tradicional figura paterna, e os pais podem e devem assumir lugares
mais prazerosos junto aos filhos e à família. Os mais recentes estudos (Montgomery,1998;
Batista & Leite, 2004; Piccini, Silvia, Lopes, Gonçalves & Tudge, 2004), ressaltam que a
presença física, emocional e espiritual dos pais, assim como das mães, é fundamental para
estruturar a afetividade da criança e prover um bom desenvolvimento dos filhos. Os homens
são perfeitamente capazes de cuidar de seus filhos, de casa, de sua esposa, precisamos
acreditar nesse potencial masculino!
Não obstante, é necessário esclarecer que as mudanças na categoria de gênero
precisam ser amplamente implementadas, para que este “novo” pai possa “aparecer” e “se
143
estabelecer”, para o bem de todos: mães, pais e bebês. Mas, para que isso aconteça de fato,
defendemos que se faz imperiosa uma ação preventiva junto às gestantes e puérperas e casais,
desconstruindo a idéia de maternidade natural e instintiva ao enfatizar o caráter processual e
constitutivo da maternidade, no sentido de alertá-las que a maternagem deve ser aprendida e
construída na história da mulher, do casal e na sua relação com seu filho. Afinal, a
paternidade, assim como a maternidade, são construídas socialmente!
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo não é chegar a uma verdade final,
mas sim produzir conhecimento e levantar indagações
sobre o assunto estudado.
González Rey
membro de uma determinada época histórica e de uma sociedade específica que irão se
refletir na sua investigação. Não há portanto, como estabelecer uma separação asséptica entre
o pesquisador, seu objeto de estudo e as construções que ele vai elaborar. Estou certa de que
foi graças a essa concepção, foi viável a minha participação nesta investigação no papel de
pesquisadora.
Quanto mais eu lia e ouvia sobre a maternidade, mais tinha certeza de que “algo”
estava muito “errado” na forma de vivenciá-la e compreendê-la. Aos poucos fui descobrindo
que esse “algo” estaria mais relacionado a questões culturais, históricas, antropológicas,
sociais do que restrito a questões psicodinâmicas da mulher. Percebi ao longo desta pesquisa
que o mundo interno da mulher, sua estrutura emocional e sua personalidade, acabam sendo
muito mais influenciados pelo mundo externo do que nós mulheres supomos. Por fim, entendi
que a organização e a processualidade do sistema feminino e materno tencionam-se
reciprocamente, sendo cada um desses parte da qualidade do outro, tendo como cenário a
cultura e o momento histórico em que se dão.
Por isso, o encontro com as teorias do gênero e da subjetividade foram o respaldo de
que eu precisava para abrir novos caminhos e construir novas hipóteses ao longo do
desenvolvimento desta investigação. Essa descoberta, também contribuiu para
compreendermos que existe uma falsa universalidade do argumento psicanalítico de que o
tipo de cuidado seja exclusivamente da mãe, dispensando a sua atribuição e contribuição em
desenvolver outros papéis dentro da sociedade.
Tendo vivido recentemente o grande encontro com a maternidade, minha escolha
metodológica e epistemológica só poderia ser pela Epistemologia Qualitativa. Somente este
parâmetro, não só permitiria, mas até incentivaria, “usar” livremente a minha experiência
subjetiva maternal para construir um estudo científico. Seria impossível me abster de toda
essa vivência para poder conhecer e estudar as mães com DPP, como seria recomendado
numa postura mais clássica. Aliás, como fiz questão de expor neste trabalho, foi justamente
por causa desta experiência tão marcante na minha vida, que nasceu o interesse de realizar um
estudo sobre essa temática.
Por essa razão, sinto-me muito confortável e segura com minha escolha metodológica,
pois a epistemologia qualitativa defende que o caminho percorrido pelo pesquisador, na esfera
pessoal e profissional, abre espaço para a sua aproximação com a realidade, pois esse, como
ser de história única e detentor de uma subjetividade, constitui-se como sujeito ímpar na
redefinição de proposições e na visão de novas possibilidades a serem construídas e
transformadas. Assim, assumo meu lugar de sujeito da emoção junto às mães estudadas, não
só durante o acompanhamento do processo terapêutico, mas também no próprio relato desta
investigação, aqui materializada em primeira pessoa.
Encontrava-me, e confesso que ainda me encontro, absolutamente absorta pelo tema
da maternidade. Tinha basicamente as mesmas questões das mães que eu atendia no grupo.
Por isso, tenho consciência de que muitas das discussões realizadas ao longo deste trabalho
foram iniciadas ou inflamadas por uma motivação pessoal, que em muitas vezes, teve
respaldo e eco nos relatos das participantes. A identificação não acontecia apenas entre elas,
mas também entre mim e elas.
A abordagem da epistemologia qualitativa permite a eclosão de uma grande
diversidade de entidades e ocorrências psicológicas que facilitam o desenvolvimento da
pesquisa por enfatizar os processos de construção sobre os de respostas, os quais se
transformam em informações valiosas na construção de um conhecimento mais rico e
complexo. Assim, a escolha por este marco epistemológico para o delineamento da minha
pesquisa apoiou-se na possibilidade de construir novas “zonas de sentido” para o
conhecimento sobre a mãe com DPP, o qual perderia a riqueza de significações se
desenvolvido pelas vias tradicionais de pesquisa. Ademais, o desenvolvimento de formas
146
(1995), homens e mulheres reais não cumprem sempre, nem literalmente, as prescrições de
sua sociedade ou de suas categorias analíticas.
Sob esta ótica, é tão importante examinar e compreender as formas pelas quais as
identidades generificadas são construídas e relacionar seus elementos com toda uma série de
sentidos subjetivos que se sobrepõem e se entrelaçam nas atividades, nas organizações e
representações sociais historicamente específicas. Foi justamente o que procuramos fazer
nesta pesquisa.
Por isso, apostamos na qualidade do processo de construção teórica por nós
desenvolvido, na esperança de que possam auxiliar futuras investigações e intervenções.
Especialmente porque, consideramos que os objetivos propostos para esta investigação foram
atingidos uma vez que, os recursos para acessar a subjetividade foram realizados e analisados
sob uma ótica complexa e abrangente, no que se refere aos aspectos construídos na vivência
da dor, do sofrimento e da depressão no pós-parto. Ademais, eles nos permitiram observar a
necessidade “política” e científica de trabalhar a desmitificação da maternidade inata e
exclusiva, para melhor qualidade de vida das mães, pais e seus bebês. Neste sentido, nos
identificamos totalmente com Rubem Alves, quando ele afirma: “todo ato de pesquisa é um
ato político” (1984, citado por Lüdke & André, 1986, p. 5).
Para o estudo de um tema tão polêmico, de implicações políticas e que necessita de um
posicionamento explícito do pesquisador, essa metodologia não só é benéfica como
necessária. Isso porque, diferente de outros métodos, a epistemologia qualitativa permite esse
posicionamento, além de incluir em suas análises as percepções e história de vida do
pesquisador. Entendo que desconsiderar que essa pesquisadora é uma mulher e mãe
pesquisando sobre a própria mulher e maternidade seria desconsiderar as implicações pessoais
subjacentes que afetam nas interpretações e no estudo da maternidade; empobrecendo assim, a
pesquisa.
Afirmo meu contentamento em poder registrar este momento histórico e por meio
desta investigação tendo a oportunidade de ampliar meus horizontes teóricos, epistemológicos
e metodológicos, e transcender a lógica dualista que oculta os interesses políticos e
dominantes, os quais reduzem, aprisionam e sufocam homens e mulheres. Hoje compreendo
que o amor é um sentimento que se constrói. E a construção acontece a cada dia. A cada
contato. Não deve ser vivido como uma obrigação, nem mesmo por aquela pessoa de quem se
fala que deve haver “amor incondicional”. Mais ainda, acredito que este amor se fortaleça
principalmente ancorado na espontaneidade.
Vale ressaltar, como nos diz Serrurier (1993) e Rohenkohl (2005), que nunca é tarde
para que uma mulher se questione: por que eu quis filhos? É preciso que as mulheres saibam
até onde podem ir, conheçam o seu desejo por filhos, distinto da demanda criada socialmente,
para que possam construir com eles uma relação sincera, ancorada na verdade de seus
sentimentos. De acordo com Serrurier (1993), a mulher deve reconhecer os seus limites como
mãe, além de considerar que seus desejos também podem ser outros, que não os filhos.
É certo que quebrar paradigmas é um trabalho árduo e muito longo, mas acredito que
nós, mulheres, através do conhecimento, podemos realizar essa mudança. É por esse
conhecimento ter um papel central na desmistificação de conceitos aparentemente ‘naturais’ e
ser capaz de produzir mudanças na esfera cultural e social que o presente estudo se faz
importante. Por intermédio do esclarecimento, seja ele feito através de educação formal ou de
conversas informais, a mulher se sente capaz de construir sua maneira singular de viver,
podendo, assim, ser construtora de sua própria realidade e subjetividade, sem se exigir viver
de acordo com os padrões tradicionalmente estipulados. Assim, a mulher pode finalmente
sentir a liberdade para, de fato, sentir prazer em viver e em exercer a sua maternagem.
Assumindo esta posição, advogamos ser imprescindível a “desculpabilização” das
mães e incentivar o compartilhamento de responsabilidades entre mães, pais, familiares e toda
149
preciso, desde a gestação, evitar encorajar apenas a expressão dos sentimentos positivos, pois
isso criaria uma imagem muito incompleta da totalidade das vivências maternas. Ao contrário,
deve-se estimular também a expressão dos sentimentos negativos, de hostilidade e rejeição,
das ansiedades, temores e dúvidas, a fim de que, através da elaboração, se faça emergir mais
plenamente os sentimentos de amor e ternura e, sobretudo, ajude a entender as dimensões
polivalentes que compõem cada relação humana.
Apesar de nossa ênfase “amarga” e da afirmação de Serrurier (1993) de que “ não é
bom ser mãe nos dias de hoje” (p.9), queremos afirmar que continuamos a valorizar a
maternidade. É difícil, sim. Cansa, sim. Dá trabalho, sim. Mas existem vários motivos
(altamente subjetivos e singulares!) para acreditar que compensa ser uma mãe na atualidade.
Dentre esses motivos, gostaria de finalizar esta tese destacando alguns preciosos que me
fazem avaliar positivamente a experiência da maternidade: para ver meu corpo mudar de
forma e gerar outras pessoas, para descobrir que a minha capacidade de amar/odiar é muito
maior do que eu imaginava; para entender melhor a minha mãe e meu pai; para ouvir alguém
me chamar de mãe; para ver de perto uma criança crescendo; para ver meu casamento passar
por uma “prova de fogo” e se manter; para reconhecer o homem que está ao meu lado; para
integrar prioridades; para lutar pelas mães, para escrever uma tese de doutorado, para abrir
linhas de pesquisa sobre a maternidade/paternidade e para conhecer as pessoas mais lindas
que eu já vi no mundo - Ana Clara e Sofia!
151
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Resumo
profissionais da saúde, têm auxiliado as mães e as famílias que estão sofrendo no pós-
assistencial ora vigente, no sentido de considerar a maternagem como uma tarefa que
precisa ser aprendida pela mulher e protegida pela sociedade. Em termos práticos,
onde os médicos devessem se preocupar com a mãe e com o pai, tanto em termos
temos o forte propósito de trazer uma nova contribuição para iluminar a compreensão
sobre o processos de subjetivação das mães com DPP, na esperança de no futuro ajudar
se apresenta depressiva no pós-parto. Esperamos que este artigo nos permita criar
O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o nascimento de um bebê?
Como entender que esse momento considerado tão feliz e esperado do ciclo vital
chá de bebê, do quarto, do enxoval e das demais providências práticas a serem tomadas
para a chegada de um filho. É rara a discussão séria acerca das dificuldades emocionais
que a grande maioria das mães vivencia no período do parto e pós-parto, bem como
sobre as tarefas familiares que o casal tem a cumprir para ultrapassar esta etapa. Quando
Certamente, carregar no próprio corpo um novo ser pode ser uma oportunidade
maternidade é uma viagem sem direito ao “bilhete de volta”. É um processo que tem um
início, mas não tem um fim. Portanto, trata-se de uma função que implica um caráter de
2
extrema responsabilidade, complexidade e longevidade (Bacca, 2005)I. Uma vez mãe,
sempre mãe...
sentimentos contraditórios entre si. Erikson (1976)II ilumina nossas idéias nessa direção,
ao lembrar-nos que cada uma das fases evolutivas do ciclo vital de uma pessoa carrega
em si uma situação potencialmente crítica, a qual pode ocasionar uma crise, sendo esta
entendida como uma ruptura do status quo psíquico que requer novas respostas
1976)². Na fase pós-natal, a sociedade espera que a mãe esteja muito feliz e satisfeita
com o seu novo rebento. Todos cobram da mulher grávida estar radiante: seu
companheiro, sua família, seus amigos e até os profissionais que a assistem na gestação,
e, por isso, geralmente desconsideram seus reais sentimentos. As mesmas atitudes são
maternidade é vivida, por muitas mulheres, com mais sofrimento do que prazer
nossa prática com gestantes e puérperas2 nos mostram que a maioria das mulheres,
1 O puerpério é definido como o período que sucede o parto, podendo estender-se a até sessenta dias após
o nascimento do bebê (Corrêa & Corrêa, 1999).
2
A autora realiza grupos de atenção psicológica ás mães com DPP, desde 2001, na UCB.
3
sofrimento psíquico, físico e social no período pré e pós-parto. Normalmente, nessas
diminuição da capacidade de sentir prazer (Santos, 1995)V, a qual poderá ser transitória
classificada assim sempre que iniciado nos primeiros doze meses após o parto. Sua
Baptista & Oliveira, 2004VII). Ou seja, a pessoa sente uma tristeza muito grande de
2001)VIII.
É sabido que a DPP acontece com mulheres de todas as idades, classes sociais e
de todos os níveis escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que desejam muito ter um
filho, bem como aquelas que não aceitam o fato de ter engravidado. Pode ocasionar-se
estudam essa temática têm posições diversas sobre o aparecimento da DPP, e a literatura
não é concorde quanto a sua etiologia (Santos 2001IX; Botega & Dias, 2002X). Mas, se a
mãe apresentou alguma história de depressão na sua vida, ela requer mais atenção dos
familiares e profissionais de saúde desde a gestação (Botega & Dias, 2002)X; o que
normalmente não é feito nem mesmo pelos obstetras que as acompanham no pré-natal.
Tanto na gestação quanto no pós-parto, são comuns assertivas do tipo: “Como você
pode estar triste, com um bebê tão lindo nos braços?”. Se a mulher ousa expressar
4
qualquer sentimento negativo, mesmo em relação à gestação ou a uma não–aceitação
temporária da gravidez, ou por estar enjoando muito, ou por ter parado suas atividades
pelas intercorrências de uma gravidez de risco, logo se diz que “ela está rejeitando o
filho”.
acarreta na caracterização da mãe com DPP como uma “aberração da natureza”. Toda
significa que ela esteja rejeitando o filho, mas toda a complexidade da situação, para a
qual talvez não estivesse preparada (Bacca, 2005)I. Assim, Serrurier (1993)XI,
Maldonato (2000)XII, Rohenkohl (2005)XIII e Bacca (2005)I alertam para o fato de que
muitas mulheres acabam por rejeitar não o bebê em si, mas a maternidade como
instituição e muito do que isso acarreta, como por exemplo a mudança de vida, os
com rejeição ao filho, como comumente é feito não só pelos familiares e pelo senso-
negativos vivenciados e, segundo, pela culpa em senti-los. Tudo isso, pouco alivia a dor
da mãe com depressão, quando não atrapalha ou agrava o seu sofrimento, pois a isola, a
socialmente esperado e desejado, a mãe quase sempre reluta em relatar seu incômodo a
outros e a pedir ajuda profissional, mesmo que sinta muitas dificuldades no desempenho
5
Por isso, este sofrimento psíquico é vivido isoladamente e, o que é pior, sem um
trazida para o consultório por quem a experimenta, é vivida com dolorosa perplexidade,
sobre o tema. Esta realidade se reproduz na psicologia, haja vista a constatação de nossa
revisão bibliográfica revelar que a DPP é um tema ainda pouco explorado (Arrais,
2005)XIV. Dentre os escassos trabalhos psicológicos que abordam esse assunto, muitos o
personalidade deste, como nos estudos de Camorotti (2001)XV, Catão (2002)XVI, Ribeiro
aos profundos prejuízos que ela pode trazer também para as mães e para a díade mãe-
bebê, e até mesmo, para a tríade mãe-pai-bebê. O último relatório sobre a saúde da
mulher do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil, 2004)XIX nos confirma essa tendência
como também sobre o bem-estar da mulher, sua saúde física e psíquica, seus
6
Assim, focalizamos a DPP do ponto de vista da mulher/mãe sem, contudo,
qualquer determinismo linear do tipo causa e efeito. Para nós, existe uma diversidade
tão grande de sentidos subjetivos para as mães, para os bebês e seus familiares, que nos
o parto. Isso nos impulsiona para olhar a complexidade destes fenômenos e dos sujeitos
neles implicados.
Assim, apesar de terem muitos sentidos que podem ser subjetivados de forma
única e singular, que não deve ser padronizada e nem “vendida” para as demais como o
suspeitar tratar-se apenas de mais uma maneira de vivenciar a maternidade? Talvez seja
ela uma das formas mais sofridas, porém não menos legítima que as demais formas
mais convencionais de ser mãe. Através dos sintomas depressivos, a mãe não estaria
fundamentais considerar quando se pensa na mãe com DPP, como, por exemplo, o
saúde da mulher (Diniz, 1999)XXI que nos levou a acoplar a categoria de gênero ao
7
contexto. Dessa forma, não seria a DPP, da forma como vem se apresentando hoje,
A pressão social sobre a mãe, sobretudo nos dias atuais, em que a mulher
acumula várias outras funções, faz com que esta não se sinta autêntica e sinta-se
incapaz, “defeituosa” e incompetente para ser mãe; levando-a muitas vezes à depressão.
“clichês sociais” que têm acompanhado as mulheres nos últimos séculos, como: “ser
mãe é padecer no paraíso”, “toda mulher nasceu para ser mãe”, “toda mãe tem uma
maternidade na atualidade. Essa é uma questão significativa para ser refletida, pois caso
social.
familiares e toda a sociedade, assim como a conseqüente divisão de tarefas nos cuidados
8
e a responsabilidade de zelar pela educação física, emocional, cognitiva e social dos
especial, o pai que deve compartilhar a criação dos filhos, e não apenas se restringir a
sofrimento físico e emocional que poderia ser evitado com medidas preventivas ou
vigor, não são capazes de responder de forma singular às necessidades das pacientes, tal
tradicionais consultas puerperais deveriam ter seu foco ampliados para as questões
acompanhamento das mães e pais, nos moldes dos que realizamos na UCB, deveriam
melhorar a qualidade de vida não só das mães, de seus bebês, pais e familiares. Mas
chamamos atenção que, para a efetivação dessas abordagens tanto no pré quanto no pós-
natal, é preciso trabalhar em equipe, integrando a esta o psicólogo hospitalar, com vistas
problemas com a mamãe e o bebê, também serve como prevenção de uma depressão no
9
pós-parto e para a vinculação afetiva da tríade mãe-pai-bebê e a posterior parentalidade
compartilhada.
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10
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11
08
Disponível em www.scielo.br/prc
Resumo
Este artigo é resultado de um estudo qualitativo, baseado na Epistemologia Qualitativa, que visou promover
reflexões acerca da depressão pós-parto, enfatizando os fatores psicossociais envolvidos. Trata-se de um estudo
de caso sobre uma das participantes do grupo de apoio e orientação a mães com depressão pós-parto,
desenvolvido na Universidade Católica de Brasília. Este grupo visou proporcionar um espaço de escuta emo-
cional e apoio às puérperas, e foi campo para coleta de dados. Utilizou-se da técnica de completamento de
frases, de técnicas projetivas, e de relatos apresentados nas sessões individuais e grupais para levantamento e
construção de indicadores sobre a vivência da maternagem e da depressão pós-parto. O estudo deste caso
forneceu-nos elementos para compreendermos o quão prejudicial pode ser o ideal de maternidade apresentado
como natural e instintivo para mulheres que buscam satisfação absoluta na maternidade, configurando-se
como um dos responsáveis pela instalação e manutenção da depressão pós-parto.
Palavras-chave: Depressão pós-parto; maternidade; ambivalência.
Abstract
This article is the result of a qualitative study, based on Qualitative Epistemology, aimed to promote reflec-
tions on postnatal depression, emphasizing the psychological and social factors involved. This is a case study
about one of the participants of a support group for mothers with postnatal depression, developed at the
Universidade Católica de Brasília. The aim of this group was to provide a space of emotional listening and
support, and it was a field for collecting data. The technique of completing phrases, projective techniques, and
accounts presented in individual and group sessions were used for the survey and construction of indicators
about the experience of maternity and postnatal depression. The study of this case gave us elements to
understand how an ideal of maternity presented as natural and instinctive can be harmful for women that try
to obtain absolute satisfaction in their experience of maternity, configuring this ideal as one of the respon-
sible elements for the installation and maintenance of postnatal depression.
Keywords: Postnatal depression; maternity; ambivalence.
O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o de enormes sacrifícios, entre eles ser amável, tranqüila,
nascimento de um bebê? Como entender que este momen- compreensiva, terna, equilibrada, acolhedora, feminina em
to considerado normal e tão comum ao ciclo vital de qual- tempo integral! Espera-se um ideal, um modelo de mãe
quer ser humano se transforme em um momento depres- perfeita, uma imagem romanceada da maternidade cons-
sivo, quando a mãe sente-se angustiada, insegura, sensível truída ao longo dos últimos séculos, que está alicerçada
demais, entristecida e chorando desesperadamente? sob um rígido padrão incapaz de admitir qualquer vestí-
No ciclo vital da mulher há três períodos críticos: a ado- gio de sentimentos ambivalentes nas mães.
lescência, a gravidez e o climatério, são períodos de tran- Acontece, porém, que na ocasião do nascimento de um
sição que constituem fases do desenvolvimento da perso- filho, a maioria das mulheres experimentam sentimentos
nalidade e que possuem vários pontos em comum (Diniz, contraditórios e inconciliáveis com a imagem idealizada
1999). São fases biologicamente determinadas, caracteri- de maternidade ditada pela cultura. Desta forma, estabe-
zadas por mudanças metabólicas e hormonais complexas; lece-se um conflito entre o ideal e o vivido e instaura-se
por reajustamentos interpessoais e intrapsíquicos, mas um sofrimento psíquico que pode se configurar como uma
também por alterações interpessoais e interpsíquicas. Tan- base para a depressão após o parto.
tas mudanças podem resultar em estados temporários de
desequilíbrio, e em significativas alterações na identidade A Natureza Feminina: O Mito da Mãe Perfeita
da mulher devido às grandes expectativas quanto ao pa- De maneira geral, as crenças sobre a maternidade são
pel social esperado (Maldonado, Dickstein, & Nahoum, divulgadas como se fossem tradicionais e naturais, e por
2000). serem concebidas assim, essas crenças se tornam inata-
Entendemos que desde a infância as meninas treinam o cáveis. Contudo, é possível verificar na história da huma-
papel de boa mãe, segundo o qual a mulher deve ser capaz nidade que essas idéias têm poucas centenas de anos. A
boa mãe, tal qual conhecemos hoje, com sua propensão
*
natural ao sacrifício, seu amor universal e automático
Endereço para correspondência: Centro Clínico do Guará,
QE 01 - Área Especial F, sala 208, Guara I, Brasília - DF. pelos filhos e sua completa satisfação nas tarefas da ma-
CEP 71020-061. E-mail: kati.rosa@yahoo.com.br ternidade, não foi sempre assim.
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Ao contrário disso, Forna (1999) nos conta que esse es- e aos filhos, quem controla e cria os filhos e quem lhes dá
tilo de maternagem teve seu início em 1762, a partir da uma imagem do mundo.
publicação de Émile, por Rousseau, quando este criticou Assim, entendemos que há uma nova mulher, mas que
as mães que enviavam os filhos para as amas-de-leite, o vive sob o manto das velhas representações, pois conti-
que era bastante comum até esta época. Ele recomendava, nuamos cobrando delas o velho modelo de mãe idealiza-
enfaticamente, que as próprias mães amamentassem e da. O problema, porém, é que as mulheres de hoje, já não
criassem seus filhos e as recriminava por darem preferên- são preparadas, não sabem e nem querem cuidar dos seus
cia a outros interesses. Segundo Badinter (1985) dá-se aí, filhos como suas mães faziam. Elas têm outros interesses,
o início à injunção obrigatória do amor materno. Serrurier desejos, informações, expectativas e, sobretudo outras
(1993) também afirma que é deste Émile, que estamos con- alternativas para se realizarem como mulher, que não
denadas a ser mães e a ser boas mães. Não há alternativa estão mais restritas à maternidade. Novamente, observa-
para a mulher: a vocação materna é natural, instintiva e se um conflito na vivência do papel moderno de mãe, que
obrigatória! acarreta mais dúvidas, angústias e, sobretudo em culpa,
Contrária às idéias de que a maternidade só comporta o que se revelam através da (des)conhecida ambivalência
amor irrestrito e apoiando a perspectiva das teorias do materna.
gênero, segundo a qual a maternidade é construída e não Parker (1997) nos diz que a ambivalência materna é a
instintiva, a maternidade e a maternagem, segundo os an- experiência compartilhada de forma geral por todas as
tropólogos e sociólogos, é um constructo social e cultural mães, na qual coexistem lado a lado, em relação ao filho,
que decide não só como criar os filhos, mas também, quem sentimentos de amor e de ódio. Para esta autora, a difi-
é responsável por eles (Forna, 1999). culdade em enfrentar tais sentimentos tão complexos e
Culturalmente, as representações sociais da materni- contraditórios próprios da ambivalência materna pode
dade estão fortemente calcadas no mito de mãe perfeita. redundar em uma eterna culpa, que implica em muito
Esta concepção assume proporções insustentáveis, segun- sofrimento, mas com a qual as mães se habituam a viver.
do as quais acredita-se que a maternidade é inata à mu- Atualmente, culpa e maternidade são quase sinônimos.
lher. É a idéia de que a maternidade é parte inerente ao Todas estas considerações nos levaram a acreditar que
ciclo evolutivo vital feminino. Neste sentido, supõe-se que a maternidade como vem sendo concebida até nossos dias,
a mulher, por ser quem gera os filhos, desenvolve um amor tem influência direta no aparecimento da depressão no pós-
inato pelas crianças e fica sendo a pessoa melhor capacita- parto. Nossa hipótese é de que essas pressões culturais
da para cuidar delas (Falcke & Wagner, 2000). sob as quais as mulheres invariavelmente exercem a ma-
Concluímos, portanto, que, apesar do crescente ternidade, associadas ao sentimento de incapacidade em
questionamento sobre o amor materno incondicional e adequar-se a uma visão romanceada desse estado, acabam
inato, a visão da mãe ideal, responsável pelo bem-estar por deixá-las ansiosas e culpadas, suscitando dessa manei-
psicológico e emocional da família, ainda é bastante pre- ra conflitos que predisporiam a depressão pós-parto.
sente na literatura e no senso comum (Badinter, 1985). Acreditamos que a mulher com depressão pós-parto
Acreditamos que esta insistência em que um certo estilo estaria apenas expressando seu choque e desapontamento
de maternidade é “natural”, entra em choque com a vivência em não sentir toda a emoção e felicidade, normalmente
da maternagem, o que leva ao sentimento de “mãe mostrada nos filmes, nos livros, na igreja, nas brincadei-
desnaturada” e há muito sofrimento. Mas também, tem ras de infância, nas propagandas de fraldas e de aleitamen-
levado muitas mulheres, na atualidade, a questionarem cada to materno e nas histórias das suas vizinhas e amigas. Por
aspecto do que fazem, pensam, sentem, e a avaliar suas esta razão, entendemos que temas como a feminilidade, as
próprias experiências, buscando flexibilizar o padrão rígi- transformações culturais no papel da mulher, o mito de
do e determinista cultuado socialmente. mãe perfeita e a ambivalência do papel de mãe, guardam
estreita relação com o que chamaremos possíveis causas
A Mãe Moderna: Nova História, Velhas Representações da depressão após o parto.
Não há dúvidas que a inserção da mulher no mercado
de trabalho tem trazido muitas transformações nas rela- A Construção do Método
ções conjugais, que contribuíram para o declínio do siste-
ma patriarcal e da hegemonia masculina, que pode ser Faz-se importante, antes de mencionarmos as bases em
observada, por exemplo, em um gradativo aumento do que foi pensado e construído este trabalho, ressaltarmos o
envolvimento masculino nos trabalhos domésticos. Toda- embate metodológico pelo qual as ciências humanas e
via, dados atuais têm mostrado o descompasso entre os sociais têm passado nas últimas décadas. É uma batalha
dois fenômenos, apontando crescimento acelerado de mu- entre paradigmas, por um lado o paradigma hegemônico
lheres no mercado de trabalho, enquanto a participação empírico/positivista e do outro, alternativo a este, o que
masculina nos trabalhos domésticos vem crescendo lenta se convencionou chamar de paradigma subjetivista/cons-
e gradualmente. Portanto, na família moderna ainda que o trutivista/interpretativo (Brito & Leonardos, 2001).
pai esteja mais presente em casa, a mãe continua sendo o Na prática, este embate é apresentado pelas pesquisas
maior parâmetro para os filhos pequenos. É ela quem con- que seguem o método quantitativo, representando o pri-
tinua com a maior parte das responsabilidades junto a casa meiro paradigma e as pesquisas que adotam o método
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Azevedo, K.R., & Arrais, A.R. (2006). O Mito da Mãe Exclusiva e seu Impacto na Depressão Pós-Parto.
qualitativo, representando o segundo paradigma. Ao lon- As constatações empíricas cedem lugar a uma constru-
go das últimas décadas, ambos métodos foram julgados, ção de sentidos na qual pesquisador e pesquisado desem-
comparados e criticados e chegou-se a conclusão de que penham papéis ativos. O pesquisador enfatiza os vários
os dois têm seus aspectos favoráveis e desfavoráveis de- indicadores obtidos como elementos interligados e signi-
pendendo da investigação que se quer realizar. ficativos, passíveis de interpretação subjetiva. Trabalha-
No entanto, em função das peculiaridades do objeto de se com todas as formas de expressão do sujeito, com me-
estudo da psicologia – a subjetividade humana – acredita- táforas, expressões de diferentes tipos, e representações.
mos que o método qualitativo é mais adequado ao seu es- Segundo González Rey (1999) o indicador se refere a aque-
tudo, pois os afetos como angústia, tristeza, desamparo, les elementos que adquirem significação graças à inter-
alegria, esperança, entre outros, fazem parte de uma gama pretação do pesquisador e só tem valor dentro dos limites
de tonalidades diferentes de sentimentos, com os quais as do processo. Ele representa um momento hipotético no
pessoas vão experenciar e significar o seu ambiente físico, momento de produção da informação, se constrói a partir
emocional, social, histórico e cultural, que não são pas- das informações que vão sendo geradas da inter-relação
síveis de serem mensurados conforme os crivo positivista- do pesquisador com o participante da pesquisa. Está sem-
cartesiano. Assim, podemos afirmar que, nas últimas pre associado a um momento interpretativo.
décadas observa-se um grande esforço na área da psicolo- Por isto, o instrumento a ser utilizado, tem sentido, na
gia para produzir formas de conhecimento alternativas ao medida que se relaciona especificamente com o sujeito
empirismo. estudado. O objetivo não é criar categorias como nos tes-
Um dos expoentes desta forma alternativa ao paradigma tes de personalidade, mas sim preservar a singularidade
positivista de fazer ciência é representado por González dos sujeitos pesquisados e abrir novas zonas de sentido.
Rey através da sua construção teórica denominada de Os instrumentos não devem oferecer restrições à parti-
Epistemologia Qualitativa (González Rey, 1997, 1999, cipação espontânea dos indivíduos. É o meio utilizado
2001, 2002). González Rey se inscreve neste esforço de para a produção dos indicadores que por sua vez ganha-
diferentes psicólogos, tanto no Brasil quanto no exterior, rão sentido dentro do marco teórico e das reflexões do
pois questiona as formas tradicionais de produção do co- pesquisador.
nhecimento em psicologia, ainda predominantes no âmbi- O momento empírico, portanto, não representa apenas
to das pesquisas acadêmicas. a coleta de dados, significa uma etapa de produção da in-
González Rey enfatiza a necessidade epistemológica de formação, onde as idéias, os conceitos do pesquisador, o
haver novas formas de produção de conhecimento perante contexto histórico-socio-cultural constituem fases do pro-
um novo desafio nesta área. Para ele a pesquisa em psico- cesso de produção da informação. Por isso que se trabalha
logia exige uma compreensão de processos que não são com indicadores e não com “dados”, os dados existem, se
acessíveis à experiência objetiva, o que implica considerar consideram, se integram ao processo, mas não são consi-
o fenômeno em toda a sua complexidade de inter-relações. derados como fontes definitivas das conclusões. Já os in-
Ele ressalta a importância do resgate da subjetividade, o que dicadores permitem essa possibilidade de ter um processo
pressupõe uma evolução nas pesquisas em psicologia, im- ativo em constante movimento.
plicando o reconhecimento da essência única do ser huma- Assim, dentro dessa abordagem metodológica, o pro-
no e da importância da apreensão desta realidade subjetiva blema não aparece como entidade estática, mas como um
no processo de construção e desenvolvimento de idéias, ele- momento de reflexão do pesquisador, no sentido de levan-
mentos imprescindíveis para o progresso da ciência. tar questionamento sem pretensão de se chegar a respos-
tas finais. Também, não há exigência de levantar hipóte-
A Escolha Metodológica ses formais sobre o problema, pois não tem objetivo de
provar ou verificar o fenômeno, mas de descrevê-lo da
São por estas concepções que optamos pela Epistemo- melhor maneira possível, no sentido de construir um co-
logia Qualitativa, como constructo metodológico da nos- nhecimento.
sa investigação, pois, os princípios desenvolvidos por esta A Epistemologia Qualitativa favorece ainda, a consciên-
metodologia favorecem o acesso ao sistema de sentidos cia da impossibilidade de existência de uma causa única
elaborados pelas participantes, sendo este o objetivo cen- para qualquer fenômeno, o que nos possibilita realizar
tral desta pesquisa: possibilitar a compreensão da produ- ricas reflexões sobre vivência da maternidade diante da
ção de sentido das mães diante das experiências evocadas depressão pós-parto.
pela depressão pós-parto.
Os principais elementos do referencial Epistemológico Objetivo geral
qualitativo são, de acordo com González Rey (1997): o Compreender os sentimentos e vivências pelos quais
conhecimento é construído num processo construtivo- passam as puérperas que experimentam a depressão,
interpretativo; o pesquisador também é “sujeito” deste pro- valorizando/reconhecendo os fatores psicossociais en-
cesso, participa dele ativamente; o conhecimento não é volvidos, tanto em suas repercussões na vida psíquica da
resultado apenas de uma coleta de dados, é constituído a mulher, quanto em sua vida relacional, sobretudo com
partir de um processo sócio-histórico-cultural, acessado seu bebê.
através de recursos instrumentais alternativos.
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Azevedo, K.R., & Arrais, A.R. (2006). O Mito da Mãe Exclusiva e seu Impacto na Depressão Pós-Parto.
Atualmente, Vanuza não se refere a muitos amigos, e diz pessoas para ajudar; ser mãe é dedicação exclusiva”. Vanuza
estar tendo dificuldades com colegas de trabalho. Seu faz uma breve lista de renúncias, de abnegação, quase uma
envolvimento com grupos sociais parece ter diminuído punição, compatíveis com a postura socialmente esperada
após o nascimento da filha, pois se diz isolada, partici- das boas mães, que devem padecer no paraíso e se sacrifi-
pando pouco de atividades sociais. car por sua prole.
Sente muita dificuldade em cuidar da filha, tem muito A atitude passiva por si só não representa um indicador
medo de perdê-la e ao mesmo tempo sente vontade de su- de conflito com a maternidade, mas se analisada juntamente
mir. É muito preocupada com a saúde da filha. Vanuza fala com outros aspectos da configuração subjetiva revelada
constantemente sobre problemas relacionados à dificul- em Vanuza, podem indicar uma tendência masoquista co-
dade de dormir. Seu sono é, segundo ela, péssimo. Acorda mum às mães que se propõem a atender rigidamente aos
várias vezes para dar o peito ou cuidar da filha. Vanuza critérios da mãe idealizada. Serrurier (1993) nos fala que
apresenta apetite rebaixado, emagreceu 8 kg depois do uma das conseqüências dessa atitude passiva é o maso-
parto e está abatida fisicamente. O relacionamento conju- quismo materno. Sobre esse aspecto, Parker (1997) clari-
gal está muito ruim, questiona-se inclusive sobre uma fica que é possível ver as estruturas masoquistas como
possível separação, sobretudo por que sente-se desesti- uma tentativa de lidar com, e de se defender da culpa
mulada e pouco disponível para o ato sexual e esta tem evocada pelo ódio materno. As mães podem empregar com
sido uma das áreas de conflito atual com o marido. os filhos maneiras excessivamente generosas, hiper-
altruístas, numa tentativa de obter uma absolvição desses
Resultados e Discussão impulsos que as enchem de culpa. Nesse sentido, o maso-
quismo materno tem a ver com a ambivalência materna.
Vanuza é uma mulher que escolheu ter filhos mais tar- Esta ambivalência também aparece na Escala Edimbur-
de, depois de cuidar da carreira profissional, passando a go. Além de ter confirmado o diagnóstico de depressão
imagem de mulher dinâmica, auto-suficiente e ativa. Em pós-parto, o conteúdo de algumas respostas foram
contrapartida, desde a infância treina em sua família de reveladores: “Eu tenho me culpado sem necessidade quan-
origem o papel de boa mãe, segundo o qual a mulher deve do as coisas saem erradas: sim, na maioria das vezes”, “A
ser capaz de enormes sacrifícios em tempo integral e sen- idéia de fazer mal a mim mesma passou por minha cabeça:
tir-se com isso plenamente realizada. Vanuza nos diz que Algumas vezes nos últimos dias”. Essas respostas ilustram
sempre gostou muito de criança e por isso acreditava que mais uma vez a culpa e a ambivalência sentidas por Vanuza.
seria uma boa mãe (com toda ambivalência que este termo Estes sentimentos ilustram bem o pensamento de Parker
pode suscitar em nossa cultura). Sua filha é fruto de uma (1997) segundo o qual, amor e ódio são sensações experi-
longa e angustiante espera, um bebê muito desejado e mentadas pela maior parte das mães. A culpa, segundo a
amado desde a idéia de engravidar. Acontece que, segun- autora, provocada por esses impulsos conflitantes, dificil-
do relatos da paciente, o nascimento de Carol a fez ficar mente é assumida e inconscientemente acaba por levá-las
muito nervosa, cansada, irritada, e ansiosa, levando-a a uma a dirigirem esta hostilidade para si próprias. É nesse sen-
grande decepção e à depressão. Observa-se, neste caso, tido que as respostas de Vanuza à escala de Edimburgo
indicadores de conflito entre o esperado e o vivido, com confirmam uma estreita relação entre a ambivalência ma-
reflexos no desempenho do papel materno. terna, sentimento de culpa e masoquismo materno.
Na técnica de completamento de frases utilizada, ob- Um outro aspecto bastante ressaltado por Vanuza, du-
servamos vários indicadores deste conflito com a mater- rante o grupo de apoio, diz respeito à sua rede de apoio
nidade vivido por Vanuza: “Eu amo... minha filha; sempre social. Ela significa como agravante de sua insegurança e
quis... ter uma filha; minhas aspirações... ser boa mãe, e uma ansiedade quando dos cuidados com a filha o fato de sua
boa profissional; algumas vezes... tenho vontade de sumir; so- mãe e família estarem morando em outra cidade. Relata
fro... pois não sou a pessoa que desejava ser; o fracasso... está que vai quase que semanalmente para Goiânia buscar o
sempre presente; meu maior medo... perder a minha filha; me apoio da mãe e fala diariamente com a mesma por telefone.
esforço... para ser uma boa mãe; as contradições... são cons- “Minha mãe... é meu suporte”, afirma ela no completamento.
tantes; para mim a maternidade... não foi o que sonhei; eu Dentro de uma perspectiva histórica, Kitzinger (1978)
freqüentemente reflito...que estou muito deprimida”. ajuda-nos a pensar a situação da rede de apoio restrita
O discurso apresentado por Vanuza durante as sessões com que contou Vanuza e com que contam, invariavel-
de grupo, também denota sentimentos de fracasso e mente, as mães da modernidade. Até alguns anos atrás,
inadequação por ter comportamentos incompatíveis com quando as famílias eram mais numerosas, era comum a
a representação da maternidade que associa feminilidade a filha mais velha cuidar do irmão mais novo. Desta forma,
atitudes passivas. Desenvolvendo uma técnica projetiva de quando tinham seus próprios filhos, sentiam-se mais ca-
colagem, pedimos às mães que produzissem um cartaz com pacitadas e seguras em assumi-los. Hoje em dia, é mais
o que elas entendiam que era ser mãe e ser pai. Entre difícil passar por esta experiência, já que todos na família
outros conteúdos, Vanuza comunicou que ser mãe é: “não saem para trabalhar e pouco se ajudam. Vanuza parece
ir ao shopping; ser mãe é não ter tempo para conversar que não teve a oportunidade de treinar o papel materno
com as amigas; ser mãe é não ter tempo para si mesma; o antes e ficou ainda mais dependente de sua mãe após o
difícil é ser várias coisas e ser mãe quando se tem poucas nascimento da filha.
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Outro tema recorrente nas falas de Vanuza que aparece nante quanto aos papéis parentais. Historicamente, a con-
nas sessões em grupo, no completamento de frases, e na cepção da mulher como um ser inferior ao homem pode
Escala de Edimburgo, está relacionado à privação de sono. ter contribuído para a difusão e manutenção da ideologia
Vejamos algumas de suas respostas a esse respeito: “Eu do instinto materno e do sacrifício entre as mulheres. Tal-
tenho me sentido tão infeliz que eu tenho tido dificuldade vez as mulheres tenham assimilado tão prontamente este
de dormir: sim, algumas vezes”, “Estou muito cansada, não papel porque, aparentemente, lhes conferia um espaço, o
consigo dormir, porque acordo várias vezes durante a noite único, no qual eram consideradas superiores aos homens.
para amamentar a Carol. Ela mama 5 minutinhos e volta a Soma-se aos fatores anteriormente citados, o fato da
dormir, em uma hora acorda novamente, e quer mamar”. gravidez de Vanuza ter vindo após alguns anos de trata-
Dix (1992) diz que a privação do sono causa irrita- mento de reprodução assistida e de três episódios de abor-
bilidade, pensamentos paranóicos, alucinações visuais e tos espontâneos. A evolução da gravidez contou com uma
explosões de cólera, coisas conhecidas por muitas de nós ameaça de perda do feto e de perigo para vida de Vanuza.
que temos que levantar toda noite com um ou mais filhos. Entendemos que esses eventos pessoais, subjetivos, de
As interrupções dos ciclos de sono, complementa a auto- valor potencialmente traumático tiveram grande impacto
ra, afetam a nossa capacidade para reter informação, rela- na vida de Vanuza. Em alguns relatos ela apresenta um
xar os nervos e processar as emoções. Por isto, lhe parece pequeno recorte do quão doloroso foi para ela sua histó-
estranho que não exista um estudo sério sobre os efeitos ria de tentativas de engravidar e o próprio período
da privação do sono nas mães, sobre as interrupções dos gestacional.
ciclos do que constituem um elemento intrínseco do pe- A partir da técnica de colagem, Vanuza relata que “Ser
ríodo pós-parto. Interessante notar que apesar dos pre- mãe é pisar em uma casquinha de ovo, e os dois podem quebrar”
juízos que esta privação de sono lhe traz, Vanuza resiste Esse discurso nos remete ao sentimento de fragilidade em
em dividir tarefas com seu esposo e com a sua empregada, que Vanuza se encontrava. É a fragilidade de uma mãe
confiando a filha apenas a sua mãe que está há quilôme- diante da fragilidade de um filho, é o desespero de quem
tros de distância. se vê responsável por alguém no momento em que se sen-
Esta resistência aponta para relação entre culpa mater- te terrivelmente fragilizada. A casquinha de ovo sugere a
na e estilo de maternidade veiculado ao longo das gera- fragilidade de um útero que facilmente se quebra, o que
ções, ou seja: o homem adquire o privilégio do exercício aponta para a situação dos seus abortos recorrentes. Sim-
da paternidade voluntária, enquanto a mulher se submete bolicamente, Vanuza expressa o quanto ela se percebe frá-
à maternidade obrigatória. Não existem sanções sociais gil, uma vez que não conseguiu sustentar e manter até o
para o homem quando se nega a ter filhos ou a cuidar bem final suas gestações anteriores. É um sentimento de fra-
deles, para mulher, entretanto, não é bem assim que fun- gilidade com relação ao seu próprio corpo. Um corpo sen-
ciona. No entanto, Vanuza parece se submeter a esta re- tido como fraco, um corpo sentido como doente. Daí por-
gra social a um alto custo emocional, indicando que faz que a gravidez ficou longe de ser um momento prazeroso,
questão de ser a supermulher. Inclusive é extremamente de plenitude. Na verdade, a gravidez foi um período mar-
difícil para ela reconhecer-se deprimida. Várias vezes ela cado por incertezas, dúvidas, ansiedade e medo da perda,
afirmou que estaria passando apenas por uma fase sentimentos incompatíveis com ideal de maternidade
estressante e que seu problema resume-se à dificuldade de interiorizado por ela. Sugerimos, portanto, que esse lon-
dormir um sono satisfatório. go período de tratamento, os abortos recorrentes, bem
Paradoxalmente, durante várias sessões Vanuza recla- como o risco de vida durante a gravidez são co-fatores
mava da sobrecarga da dupla jornada de trabalho e da que aliados aos fatores sociais anteriormente citados, con-
obrigatoriedade de duplo êxito. Seu discurso dava voltas tribuíram, também, para o aparecimento da depressão
na desesperança e sensação de que com ela tudo era mais pós-parto em Vanuza.
difícil, como cuidar da filha, da casa, do marido e ter su- Um outro desdobramento da infertilidade com reper-
cesso profissional: No completamento ela escreve: “Mi- cussão na vida sexual de Vanuza pode ser clarificado pelo
nhas aspirações: ser boa mãe e uma boa profissional; Meu pensamento de Maldonado (2002). Segundo essa autora,
principal problema... é dividir meu tempo, minhas tarefas; Me desde muitos séculos, a fertilidade é tida como bênção di-
esforço... para ser uma boa mãe; É difícil... ter que satisfazer o vina, ao passo que a infertilidade é tida como castigo. Par-
esposo”. Mais uma vez a supermulher entra em cena! Esta tindo dessa concepção, percebemos que Vanuza embarcou
configuração subjetiva de Vanuza nos faz lembrar de Forna na maternidade com uma culpa antecipada devido ao fato
(1999) quando ela diz que, o que a princípio podia parecer da infertilidade representar um castigo, e tem vivenciado
ascensão da mulher para um status superior com a sua sua função de mãe com grande ansiedade, acreditando que
entrada no mercado de trabalho, mostra, na verdade, a cumpriria com todos os mandamentos da lei materna, acre-
onerosa sobrecarga do duplo papel, congregando tanto o ditando que iria fazer tudo certo, decidida a não errar.
papel de provedora como o de responsável pelos cuidados Trindade (1993) nos lembra que o modelo tradicional
domésticos, além de ser também a mantenedora dos vín- da maternidade apresenta a mulher como uma figura fe-
culos afetivos familiares. minina responsável pela manutenção do vínculo familiar e
Nesse sentido, Forna (1999) nos diz que é importante que esta tarefa deve ter prioridade sobre suas necessida-
ressaltar que as mulheres têm interiorizado a ótica domi- des pessoais, visto que é através da maternidade que se
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Azevedo, K.R., & Arrais, A.R. (2006). O Mito da Mãe Exclusiva e seu Impacto na Depressão Pós-Parto.
concretizará sua identidade como mulher. A maternagem está ligado ao milagre da vida que presume um instinto
é vista, então, como o ideal feminino mais nobre e digni- materno, uma predisposição inata para o sacrifício. Opor-
ficante, o qual Vanuza quer alcançar a todo custo. se a essa visão romanceada da maternidade é, para algu-
É válido, portanto, lembrar que gestar e criar filhos mas mulheres, opor-se à feminilidade.
são dimensões humanas que têm se transformado histo- Não é por acaso que ser mãe na modernidade suscita
ricamente, mas que apesar disso a representação social sentimentos de culpa e frustração e conflitos de identida-
acerca da maternidade ainda busca corresponder a um de, afinal as mães estão habituadas a uma cultura que proí-
ideal de mãe infalível em tempo integral. Essa obriga- be a discussão plena da ambivalência materna, da coexis-
toriedade em obter satisfação absoluta exclusivamente tência de sentimentos ambivalentes natural em todas as
a partir da maternidade pode ter desdobramentos pre- mães. O natural passa a ser o sacrifício e o amor irrestrito.
judiciais, principalmente, em uma sociedade em que a E o que dizer das mães que tentam associar essa “mater-
mulher normalmente trabalha fora, também é respon- nidade cinco estrelas” a uma carreira profissional bem
sável pelo orçamento familiar e cultiva interesses diver- sucedida? O estudo de caso nos faz concluir que essa é
sos. Estes elementos aparecem muito bem representa- uma tarefa muito ambivalente. A maneira de exercer a
dos no caso de Vanuza. maternidade tem se tornado cada dia mais idealizada, e em
contrapartida, aumentam as atribuições na vida das mu-
Considerações Finais lheres no que se refere à assunção de novos papéis sociais
exigidos pela cultura moderna.
A produção de uma conclusão é comum a todos os es- No grupo, trabalhamos a idéia de que o amor materno
critos, mas no nosso caso, não temos a pretensão de colo- não é puro instinto, mas é um sentimento construído pau-
car um marco definitivo no trânsito sobre o problema da latinamente, na vivência diária da maternagem e por isso
depressão pós-parto. . Ao contrário, revendo o que foi es- está sujeito a imperfeições, oscilações e modificações, o
crito, é possível notar que há ainda várias lacunas de pon- que trouxe para as mães, de forma geral, grande alívio. A
tos que devem ser mais explorados e nosso trabalho pre- livre expressão dos sentimentos e sua maior exploração
tende ser apenas mais uma contribuição ao estudo desta são encorajadas e estimuladas através do clima de permissi-
problemática. vidade que se estrutura no grupo e da técnica de reflexão
O estudo de caso nos permitiu levantar indicadores que de sentimentos. É nesse aspecto que mais se aprofunda o
podem ter contribuído para o aparecimento da depressão valor terapêutico do grupo, pois permite manejar senti-
pós-parto em Vanuza. Quais sejam: mentos básicos em relação à maternidade, tais como ní-
Entendemos que a impossibilidade de corresponder a veis de insegurança, sentimentos de inferioridade e ina-
altos ideais ligados a maternidade (a mãe perfeita, o filho dequação e expectativas referentes ao bebê e a si própria
ideal, a satisfação absoluta com o papel de mãe, etc) aca- como mãe.
bou por suscitar em Vanuza sentimentos de desaponta- É nesse sentido que Maldonado (2002) desenvolve a hi-
mento, de vergonha, de desilusão, de fracasso, de fragili- pótese de que o grupo de discussão permite compartilhar
dade em relação a ela mesma. as vivências basicamente comuns em relação à maternida-
Vanuza não pôde contar com a rede social de apoio tra- de e às modificações conseqüentes. A ênfase, diz Maldonado
dicional, principalmente com aquela pessoa em quem ela (2002), deve ser dada ao manejo da ambivalência afetiva
realmente confiava (a mãe), representante da rede social em suas várias manifestações, com a finalidade principal
comum em gerações anteriores. Em contrapartida, ela sen- de aliviar os sentimentos de culpa e a crença na própria
tiu-se cada vez mais pressionada com relação ao fato de maldade interna e na própria capacidade de destruição.
ser boa mãe o que incluía, diferentemente do que aconte- Concordamos com Maldonado (2002), que é preciso
cia com mulheres das gerações anteriores, responsabili- evitar encorajar apenas a expressão dos sentimentos posi-
dade pelo desenvolvimento das aptidões físicas e emocio- tivos, o que criaria uma imagem muito incompleta da to-
nais da filha. talidade das vivências maternas, ao contrário, deve-se es-
Para Vanuza, a impossibilidade de uma discussão plena timular também a expressão dos sentimentos negativos,
acerca das ambivalências comuns na maternidade acabou de hostilidade e rejeição, das ansiedades, temores e dúvi-
por suscitar conflitos e sentimentos de inadequação que das a fim de que, através da elaboração, faça-se emergir
favoreceram o surgimento da depressão pós-parto. Vanuza mais plenamente os sentimentos de amor e ternura e, so-
sentiu-se marginalizada, uma vez que não se adequava ao bretudo, ajude a entender as dimensões polivalentes que
estereotipo de instinto maternal, segundo o qual a mater- compõem cada relação humana. Acreditamos que foi essa
nidade ocupa o lugar de complemento de um ser faltante. elaboração que foi possível tornar a maternagem menos
Dessa forma, pensamos que o humor deprimido em Vanuza angustiante para Vanuza e os sentimentos depressivos
expressa o sofrimento pela perda de imagens idealizadas menos presentes, no final do processo terapêutico.
com relação ao bebê, a si mesma como mãe e ao tipo de
vida que se estabeleceu com a presença do filho.
Espera-se que as mães sejam sempre ternas, acolhedo-
ras, férteis e disponíveis, em contrapartida, elas não deve-
rão demonstrar sentimentos de tristeza, afinal, tudo isso
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Referências
Recebido: 30/11/2004
1ª revisão: 17/05/2005
Aceite final: 16/09/2005
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PSICOLOGIA, SAÚDE & DOENÇAS, 2017, 18(3), 828-845
ISSN - 2182-8407
Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde - SPPS - www.sp-ps.pt
DOI: http://dx.doi.org/10.15309/17psd180316
Alessandra da Rocha Arrais (alearrais@gmail.com)1 & Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araujo
(araujotc@unb.br)2
1
Escola Superior de Ciências da Saúde, Brasília, DF, Brasil. 2Universidade de Brasília, Departamento de Psicologia Clínica,
Brasília, DF, Brasil.
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RESUMO: O objetivo deste estudo foi investigar os fatores de risco e de proteção para
depressão pós-parto (DPP). Foi realizada uma revisão nas bases Pubmed, Scielo e Lilacs.
Descritores: postpartum depression, risk factors, protection factors. Critérios de inclusão:
artigos publicados no período de 2010-2015, nas línguas inglesa, portuguesa e espanhola,
cujos conteúdos abordassem explicitamente fatores de risco e/ou de proteção para a DPP.
Foram selecionados 60 artigos e encontrados 53 fatores de risco e 11 fatores de proteção. Os
fatores de risco mais frequentemente citados, pertenciam à categoria de fatores psicossociais
(n= 43 ou 71% da amostra). Os resultados evidenciam uma grande variedade de métodos e
instrumentos utilizados, o interesse mundial pelo tema da DPP e um elevado número de
fatores considerados de risco para DPP (n = 53) em detrimento do baixo número de fatores de
proteção (n = 11) investigados na literatura que abrange o período de 2010 a 2015. Esta
revisão da literatura mostrou que, ter tido depressão na vida, a presença de estresse e
ansiedade e depressão durante a gestação, baixo suporte social e familiar, falta de apoio do
parceiro e falta de apoio social no puerpério, são fatores que aumentam o risco de ter DPP.
Em contrapartida, ter participado de algum programa de pré-natal com base numa abordagem
psicológica, ter uma relação saudável com suas próprias mães, ter suporte social na gestação e
no puerpério e manter relações sociais positivas podem proteger a gestante contra a DPP e
minimizar o impacto dos fatores de risco causariam no puerpério.
Palavras-chave: depressão pós-parto, fatores de risco, fatores de proteção, revisão, puerpério
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ABSTRACT: The aim of this study was to investigate risk and protective factors associated
to postpartum depression (PPD). A review of the literature was conducted on the databases
Pubmed, Scielo and Lilacs. Keywords: risk, protection, depression and postpartum. Inclusion
criteria: articles published in the 2010-2015 period, the English, Portuguese and Spanish
languages, the contents explicitly treat risk factors and / or protection for the PPD. We
selected 60 articles and found 53 risk factors and 11 protective factors for PPD. Risk factors
cited most often belong to the category of psychosocial factors (n = 43 or 71% of the sample).
The results show a wide variety of methods and tools used, the worldwide interest in the DPP
theme and a large number of the risk factors for PPD (n = 53) over the low number of
protective factors (n = 11) investigated in the literature covering the period 2010 to 2015. This
review of the literature showed that, having had depression life, the presence of stress and
SHIS QI 16 - Conjunto 2 - Casa 32, 71640-220, Brasília, DF, Brasil.Telf.: 55 061 3244-6947 e 55 061 99987-
7346. e-mail: alearrais@gmail.com
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A.R. Arrais & T.C.C. F. de Araujo
anxiety and depression during pregnancy, low social and family support, lack of partner
support and lack of social support in the postpartum period are factors that increase the risk of
having DPP. In contrast, have participated in some prenatal program based on a psychological
approach, have a healthy relationship with their mothers, have social support during
pregnancy and postpartum period and maintaining positive social relationships may protect
the mother against the DPP and minimize the impact of risk factors cause the puerperium.
Keywords: postpartum depression, risk factors, protective factors, review, puerperium
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Recebido em 07 de Agosto de 2016 / 10 de Outubro de 2017
A inclusão na literatura de estudos sobre quadros de Depressão Pós-Parto (DPP) começa com um
estudo pioneiro, realizado por Pitt, em 1968, que afirmava que essa síndrome é uma variante branda da
depressão fisiológica, frequentemente vista em mulheres jovens ou personalidades imaturas (Santos,
2001). Nas últimas décadas, tal fenômeno tem sido investigado em muitos países, com destaque para a
Grã-Bretanha, os Estados Unidos e, mais recentemente, o Japão. A DPP vem recebendo atenção por parte
dos pesquisadores e profissionais envolvidos com saúde mental, culminando na criação, em 1982, da
Marcé Society, entidade internacional que tem como meta estimular a pesquisa e a comunicação no
campo dos distúrbios mentais do puerpério (Santos, 2001).
No Brasil, a importância do assunto começou a ser reconhecida e na década de 1990, com a abertura
do primeiro ambulatório para tratamento de distúrbios mentais puerperais, no Hospital das Clínicas, em
São Paulo. Entretanto, os estudos e publicações em português sobre o tema se restringiam a pequenos
capítulos no interior de livros de medicina sobre a gravidez ou preparação para a maternidade (Santos,
2001).
O puerpério é um período de alterações biológicas, psicológicas e sociais. Essa é considerada a época
mais vulnerável para a ocorrência de transtornos psiquiátricos (Zambaldi, Cantillino, Sougey, & Rennó Jr,
2010). A DPP se insere em uma trilogia de distúrbios da psiquiatria perinatal, classicamente caracterizada
por três entidades distintas: O blues puerperal, as psicoses puerperais e as depressões pós-parto (Santos,
2001).
A DPP é definida como um episódio de depressão maior que é temporalmente associado com o
nascimento de um bebê (APA, 1994), mas no DSM-V (APA, 2014), essa terminologia foi alterada para
periparto depressão. Estipulou-se que o início dessa perturbação do humor ocorre ainda durante a
gravidez, no seu último mês até cinco meses após o parto, pois, cerca de 50% dos casos de depressão
maior no pós-parto começam antes do nascimento. No entanto, no presente será adotado o termo
Depressão Pós-Parto, pois o novo termo ainda não era amplamente utilizado nos artigos que farão parte
dessa revisão e dessa forma a busca nos portais poderia ficar prejudicada.
No Brasil, em média, 25% das mães apresenta sintomas de depressão no período de 6 a 18 meses após
o nascimento do bebê (Theme Filha, Ayers, Gama, & Leal, 2016). A prevalência global de DPP
encontrada, é de 26,3%, mais alta que a estimada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para países
de baixa renda, que é de 19,8%. Porém, é mais alta que os 13,4%, encontrados por Santos (2001) em uma
amostra de puérperas de nível socioeconômico elevado. A etiologia da DPP ainda não é totalmente
conhecida e nem concorde na literatura. Primeiramente, são apontados os fatores hormonais e
fisiológicos, seguidos dos fatores sociodemográficos, e posteriormente os fatores psicossociais. Baseava-
se na premissa que na gestação, o corpo feminino produz muito mais progesterona do que no seu estado
normal, e parte dela fica concentrada na placenta, e na ocasião do parto, quando a placenta também é
retirada, há uma queda abissal nos níveis hormonais em questão de horas, e esta queda é apontada como
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DEPRESSION POSTPARTUM: A REVIEW ABOUT RISK FACTORS AND
PROTECTION
causa determinante para a instalação do quadro de depressão. Assim, sob o ponto de vista médico, a
depressão é resultante da grande variação nos níveis de hormônios sexuais circulantes (estrogênio e
progesterona) e de uma alteração no metabolismo das catecolaminas (Santos, 2001), além de fatores
genético-hereditários, obstétricos e de saúde da gestante e do bebê (Aliane, Mamede, & Furtado, 2011;
Zinga, Phillips, & Born, 2005).
A DPP tem importantes consequências sociais e familiares, sobretudo para a díade mãe-bebê, mas
também para a tríade mãe-pai-bebê, a saber: problemas conjugais, atraso no desenvolvimento do bebê e
grande sofrimento psíquico para a mãe, inclusive com risco aumentado para o suicídio (Bortoletti, 2007;
Pereira & Lovisi, 2008; Rojas et al., 2010; Santos, 2001). Há, portanto, evidências de efeitos adversos ao
desenvolvimento do bebê, como pode ocorrer nos casos de mães com DPP, quando não adequadamente
diagnosticadas e tratadas (Arrais, Mourão, & Fragalle, 2014; Bortoletti, 2007; Faisal-Cury & Menezes,
2012; Greinert & Milani, 2015; Ramos, & Furtado, 2007; Sousa, Prado, & Piccinini, 2011; Theme Filha
et al., 2016; Zambaldi et al., 2010). Desse modo, esse tema assume grande importância clínica, com
repercussões para a saúde pública, em especial quando se considera sua repercussão mental e social para a
mãe e desenvolvimental para o bebê (Costa, 2012; Medeiros, 2012; Pedreira & Leal, 2015).
Fatores de risco são eventos ou situações já estabelecidas propícias ao surgimento de problemas
físicos, psicológicos e sociais, que serão neste trabalho convencionados em apresentar maior intensidade
no período gravídico-puerperal. De acordo com Figueira, Gomes, Diniz e Silva Filho (2011) o
estabelecimento de fatores de risco pode contribuir para melhor compreensão da doença e para a
elaboração de estratégias de prevenção e de diagnóstico precoce. Pesquisas apontam diversos fatores de
risco para o desencadeamento da DPP, como: Gestante solteira, conflitos conjugais, falta de apoio do pai
do bebê, histórico familiar de depressão, depressão e ansiedade gestacional, gravidez não desejada,
suporte social fraco, eventos estressantes e adversos a gravidez, idealização da maternidade, histórico de
violência intrafamiliar, presença de dificuldades financeiras no pós-parto, de estresse no cuidado com o
bebê e complicações obstétricas maternas durante a gestação ou no puerpério (Arrais et al., 2014; Arrais,
Lordello, & Cavados, 2015; Brito Alves, Ludermir, & Araújo 2015; Faisal-Cury & Menezes, 2012;
Figueira et al., 2011; Greinert & Milani, 2015; Pereira & Lovisi, 2008; Puccia & Mamede, 2012; Sousa et
al., 2011; Zambaldi et al., 2010).
Já os fatores de proteção são condições do próprio indivíduo que podem contribuir para um melhor
enfrentamento de determinados eventos de riscos, e são medidas preventivas, ou situações já
estabelecidas que funcionem como proteção às influências que transformam ou melhoram respostas
pessoais (Calvetti, Muller, & Nunes, 2007). Constituem fatores de proteção para a DPP: Apoio de outra
mulher, detecção precoce da depressão, suporte social, boa relação conjugal e suporte emocional do
companheiro, estabilidade socioeconômica, sistema de apoio familiar, intervenção multidisciplinar, logo
que os sintomas sejam detectados e o pré-natal psicológico (Arrais et al., 2014; Arrais et al., 2015;
Bortoletti, 2007; Santos, 2014; Sousa, Prado, & Piccinini, 2011).
Todavia, é preponderante destacar o caráter dinâmico e subjetivo de fatores de risco, que devem ser
trabalhados como processo e não como variável em si, que devem ser relativizados de acordo com a
própria subjetividade da pessoa, assim também como os fatores de proteção, que devem estar em
equilíbrio com a história de vida da gestante (Calvetti et al., 2007).
Diante do exposto, o presente artigo teve como objetivo analisar criticamente a literatura científica
produzida sobre os fatores de risco e de proteção para a DPP indicando os níveis de evidência nas
pesquisas realizadas nos anos de 2010 a 2015.
MÉTODO
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Trata-se de uma revisão que reúne literatura empírica, como estudos observacionais ou
intervencionais, com a finalidade de promover maior compreensão e entendimento sobre um fenômeno
particular ou questões em saúde (Galvão & Pereira, 2014). Como guia metodológico, essa revisão deve
ser caracterizada por seis etapas: identificação do tema ou questionamento de revisão determinada por
questão norteadora; amostragem ou busca na literatura que abarca os critérios de inclusão e exclusão e
seleção dos estudos que irão compor a amostra; categorização dos estudos que define as informações a
serem extraídas do estudo, bem como sua organização e sumarização; avaliação por meio de análises
críticas dos estudos incluídos; interpretação dos resultados; síntese do conhecimento apresentado e
conclusões (Galvão & Pereira, 2014). Seguindo essas etapas, a pergunta norteadora do estudo foi definida
como “Quais são os fatores de risco e de proteção para a DPP identificados na literatura científica, no
período de 2010 a 2015? ”.
Utilizaram-se as bases de dados Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde
(Lilacs), Scientific Electronic Library Online (Scielo) e Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados
Unidos (Pubmed), no período de janeiro de 2010 a dezembro de 2015. Foram incluídos no estudo os
artigos publicados nas línguas inglesa, portuguesa e espanhola, cujos conteúdos abordassem o tema
investigado com textos completos disponíveis. Esses estudos deveriam abordar explicitamente fatores de
risco e/ou de proteção para a DPP.
Para a seleção da amostra procedeu-se a leitura minuciosa dos títulos e resumos dos artigos, atentando
para sua relação com a questão norteadora e os critérios adotados. Os critérios de inclusão foram: (a)
amostra deveria incluir gestantes ou puérperas; (b) Artigos relacionados aos fatores de risco para DPP; (c)
Artigos relacionados aos fatores de proteção para DPP; (d) Artigos relacionados aos fatores de risco e
fatores de proteção para DPP; (e) Artigos baseados em pesquisas empíricas e/ou ensaios clínicos. Os
critérios de exclusão foram os seguintes: artigos repetidos em mais de uma base de dados, artigos de
opinião, reflexão crítica, artigos teóricos e de revisão, monografias, dissertações, teses, livros e artigos
fora do período investigado. Utilizaram-se os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), com auxílio do
operador booleano AND para combinação dos mesmos e termos utilizados para rastreamento das
publicações, nas três bases de dados, conforme Quadros 1, 2 e 3 a seguir:
Quadro 1.
Estratégias de busca dos artigos na base Lilacs
Descritores Combinações Artigos
3 descritores Risco AND Depressão AND Pós-parto 43
3 descritores Proteção AND Depressão AND Pós-parto 4
4 descritores Risco AND Proteção DPP 3
Total 50
Quadro 2.
Estratégias de busca dos artigos na base Pubmed
Descritores Combinações Artigos
2 descritores Risk AND Postpartum AND 637
Depression
3 descritores Protection AND Postpartum AND 8
Depression
4 descritores Risk AND Protection AND Postpartum 6
Depression
Total 651
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PROTECTION
Quadro 3.
Estratégias de busca dos artigos na base Scielo
Descritores Combinações Artigos
2 descritores Risk AND Postpartum AND 34
Depression
3 descritores Protection AND Postpartum AND 1
Depression
4 descritores Risk AND Protection AND Postpartum 1
Depression
Total 36
Como resultado dessa primeira fase da busca, encontrou-se 737 publicações nos portais, sendo 50 no
Lilacs, 651 no Pubmed e 36 no Scielo, potencialmente elegíveis para inclusão nesta revisão. Após
avaliação dos títulos dos 737 artigos, verificou-se que 677 não atendiam aos critérios de inclusão. Foram
consideradas elegíveis para a segunda fase desta revisão, 60 publicações que atenderam aos critérios de
inclusão, sendo 20 encontrados no Lilacs, 34 no Pubmed e seis no Scielo, conforme Figura 1:
. LILACS
LILACS PUBMED SciEL
IBECS
O
Encontrados Encontrados
Encontradoe Encontrados
D
s
50 651 36
16
16 229
16
Figura 1.
Distribuição do número de artigos encontrados e selecionados nas bases de dados Lilacs, Pubmed e Scielo
A busca, seleção e análise dos estudos foram realizadas por dois revisores de forma independente, para
conferir maior rigor à busca e aplicação dos critérios de inclusão e exclusão. Por fim, agruparam-se os
fatores de risco e proteção listados pelos artigos em três categorias de análise: a) fatores de risco e
proteção psicossociais, b) fatores de risco e proteção físicos, c) fatores de risco e proteção
sociodemográficos/contextual.
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RESULTADOS
Dentre a amostra dos 60 artigos, foram encontrados 53 fatores de risco e 11 fatores de proteção para
DPP. Os fatores de mais frequentemente citados pertenciam à categoria de fatores de risco e proteção
psicossociais, com um total de 43 artigos ou 71% da amostra. Fatores sociodemográficos aparecem em
segundo lugar, com 23 artigos ou 38% dos estudos, seguidos dos fatores físicos com 21 artigos, ou 35%
das publicações. Um mesmo artigo pode ter explorado mais de um desses fatores.
Cabe esclarecer que, por representar a maioria dos fatores encontrados, no presente artigo serão
apresentados e discutidos apenas os resultados referentes aos fatores de risco e proteção psicossocial que
representaram 71% da amostra.
O Quadro 4, a seguir, sintetiza os dados da categoria fatores de risco e proteção psicossociais.
Quadro 4.
Síntese dos artigos selecionados sobre fatores de risco e proteção psicossociais
Autores Ano País Base Tipo Instrumentos Fator
EPDS
Cantilino et al. 2010 Brasil Scielo Quanti long Int Axis I Risco
DSM-IV
Rojas et al. 2010 Chile Scielo Quanti trans Quest Risco
sociodemogr
áficos
Rodríguez et al. 2013 Venezu Lilacs Quanti descritivo EPDS Risco
ela
Martín-Santos et al. 2012 Espanh Pubmed Quanti trans EPQ-RS, Risco
a EPDS
Rohitkumar et al. 2014 EUA Pubmed Quanti trans EPDS Risco
Al Hinai & Al Hinai 2014 Oman Pubmed Quanti prospectivo EPDS Risco
Figueira et al. 2011 Brasil Lilacs/ Quanti trans Mini Plus Risco
Scielo
Faisal-Cury& Menezes 2012 Brasil Lilacs Coorte Prospectivo SQR-20 Risco
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Miranda et al. 2012 Brasil Scielo Quanti trans PBI, CES-D, Risco/
EPDS Proteção
Bhandari et al. 2012 EUA Pubmed Misto randomizado Entrevista Risco/
proteção
Kozinszky et al. 2012 Hungri Pubmed Quantirandomizado Levrton Risco/
a Quest, grupo Proteção
Le et al. 2011 EUA Pubmed Quanti long BDI-II, Proteção
Mood
Screener,
grupo
*qualitativo; **quantitativo; ***transversal; ****longitudinal
O Quadro 4 revela que a maior concentração de publicações sobre o tema deu-se no ano de 2014, com
10 artigos ou 23%, seguido do ano de 2012 com nove publicações ou 20%, dos anos de 2011 e 2015 com
oito artigos ou 18% cada e por último os anos de 2010 e 2013 com apenas quatro manuscritos cada ou 9%.
Não se observa, portanto, um crescimento linear e sim alternado, ao longo do tempo, quanto à quantidade
de publicações sobre fatores de risco e proteção psicossociais para DPP ao longo dos últimos anos.
Com relação ao país de origem dos estudos com foco nos fatores psicossociais, encontraram-se 13
publicações do Brasil, 10 dos Estados Unidos, três do Canadá, dois da China, dois do México, dois da
Venezuela, dois da Espanha, e um estudo da Hungria, França, Líbano, África do Sul, Itália, Portugal,
Oman, Chile, Tunísia, Turquia cada. Esse resultado mostra que o interesse por estudar fatores de risco e
de proteção para a DPP, ultrapassa fronteiras e tem se disseminado pelos continentes, pois se encontrou
pelo menos um estudo em vários países sobre o tema, além das pesquisas pioneiras realizadas na Grã-
Bretanha, nos Estados Unidos e Japão, como mostrou Santos em 2001.
Quanto às bases de dados, dos 43 artigos foram identificados, a sua maioria, 27 ou 62% foi na base
Pubmed, seguido 27 ou 12% na base Lilacs e 16% ou sete na base Scielo. Um mesmo artigo pode ter sido
encontrado em mais de uma base ao mesmo tempo, porém só foi contabilizado uma vez na amostra. Cabe
ressaltar que a base Lilacs utilizada, privilegia os estudos realizados na América Latina e Caribe e por
essa razão as publicações de países provenientes desses locais, como: Brasil, Venezuela e Chile, tenha
sido representativa com 41% dos artigos da presente revisão. O Brasil e os Estados Unidos foram os
países responsáveis pela maior parte das publicações, com 30% e 23%, respectivamente.
Quanto aos métodos das pesquisas, se verifica majoritariamente o delineamento quantitativo, com 39
deles ou 90% das publicações selecionadas. Destes, 19 ou 44% têm delineamento transversal, 14 ou 32%
longitudinal, sete ou 16 de coorte, três ou 6% prospectivos, um ou 2% descritivo, um ou 2% survey. Os
estudos qualitativos e mistos somam apenas dois ou 4% cada. Esse resultado mostra que o método
quantitativo ainda é hegemônico nas pesquisas na área da saúde. Os estudos mistos e qualitativos
aparecem com tímida representatividade na amostra, totalizando apenas 9% dos métodos escolhidos pelos
pesquisadores.
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PROTECTION
O tipo de delineamento mais utilizado foi o transversal, o que vai de encontro com os resultados da
revisão sobre os fatores de risco associados à DPP de Aliane et al. (2011), na qual os estudos
longitudinais foram os mais frequentes. Há de se considerar a importância dos delineamentos
longitudinais para o estudo de fatores de risco, uma vez que existe a influência do tempo sobre o
fenômeno estudado. Neste sentido, alguns fatores de risco podem se associar à DPP em estudos
transversais, porém avaliações prospectivas não manteriam essa associação. Desta forma, se verifica a
importância deste tipo de delineamento, bem como a contribuição de vários momentos de avaliação a fim
de identificar quais variáveis mantêm-se associadas ao fenômeno estudado (Aliane et al., 2011; Galvão et
al., 2015).
Quanto aos instrumentos utilizados para rastrear a DPP, destaca-se a maior prevalência de escolha pela
Escala de Depressão pós-parto de Edinburgh Scale (EPDS) que foi utilizada em 26 ou 58% dos estudos
analisados. Esse é um instrumento de triagem e rastreamento que averigua possíveis índices de depressão
no puerpério. É auto avaliativa e autoaplicável, constituída por dez itens, de fácil aplicação por
profissionais de saúde. Consiste em um instrumento bastante utilizado em estudos sobre DPP (Lobato,
Moraes, & Reichenheim, 2011). As revisões s feitas por Aliane et al. (2011), por Galvão et al. (2015) e
Schardosim e Heldt (2011) e também encontraram que a escala EPDS foi a mais utilizada pelos
pesquisadores.
Outras escalas também foram utilizadas para medir sintomas de cunho psicossocial, a saber: o Beck
Depression Inventory II (BDI- II), a Structured Clinical Interview for Axis I Disorders DSM-IV, Mini
International Neuropsychiatric Interview (MINI-Plus), Escala de Apoio Social de MOS (EAS), Center
for Epidemiologic Studies-Depression Scale (CES-D), Postpartum Depression Screening Scale (PDSS),
Inventário de Sintomas de Stress de Lipp (ISSL), Escala estados de humor, Pittsburgh Sleep Quality
Index, Parenting Stress Index-Short, Escala de apoio social à maternidade (MSSS), a Escala Azrin, The
Patient Health Questionnaire (PHQ-9), Eysenck Personality Questionnaire Revised Short Scale (EPQ-
RS), Self Report Questionnaire (SRQ-20), Depression Self-Rating Scale (DSRS), Scale of Personality
(SSP), Hopkins Symptomb Check List 90 (SCL-90) e escala de apoio Apgar social (SSA), Mood Screener.
Além de questionários epidemiológicos e entrevistas diagnósticas semiestruturadas, grupos focais para
coleta dos dados sociodemográficos e clínicos, geralmente elaborados pelos próprios pesquisadores.
A grande maioria das pesquisas selecionadas (n = 35 ou 81%) focou no estudo dos fatores de risco
para DPP, apenas quatro ou 9% focaram nos fatores de proteção e outras quatro ou 9% em ambos os
fatores. Cabe ressaltar que, os estudos não usam com frequência o termo fatores de proteção
explicitamente, utilizam majoritariamente o termo fatores de risco
Por fim, os fatores que foram agrupados na categoria fatores de risco e proteção de caráter
psicossocial estavam relacionados a aspectos psicológicos, de personalidade, de tratamento psicológico,
de histórico psiquiátrico, de rede de apoio social, familiar e conjugal. Esses foram reagrupados em quatro
subcategorias, a saber: fatores de risco e fatores de proteção psicológico/psiquiátrico e fatores de risco e
fatores de proteção suporte social/relações interpessoais, que podem ser visualizados no Quadro 5 que
sintetiza, a seguir:
Quadro 5.
Subcategorização dos Fatores de risco e proteção psicossociais para DPP
Sub Fator Publicações Quantidade
catego
ria
Histórico de Castro et al., 2015; Darvey et al., 2011; El-
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Não ter o apoio de Guedes et al., 2011; Lara et al., 2010; Silva et 5 ou 8%
seu parceiro al., 2012; Rodríguez et al., 2013; Urdaneta et
al., 2011;
Falta de apoio Figueira et al., 2011; Kim et al., 2014; 3 ou 5%
social no puerpério McMahon et al., 2015
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DISCUSSÃO
Os estudos revisados indicam que, em primeiro lugar, os fatores de risco psicossociais representam a
maioria dos artigos encontrados, o que sugere que a investigação sobre fatores de risco e proteção para
DPP tem privilegiado o estudo dos fatores psicossociais, ao invés de fatores físicos/ hormonais, como
acontecia há alguns anos atrás, quando a maioria dos estudos sobre as prováveis causas da DPP centram-
se na causalidade biológica (Aliane, et al., 2011; Santos, 2001; Zinga et al., 2005). Se todas as mulheres
apresentam essas alterações hormonais, tanto na gravidez quanto no parto, mas apenas cerca de 20% delas
vão apresentar os sintomas depressivos no puerpério, se pode supor que outros fatores estão envolvidos
nesta problemática, e que eles vinham até o ano 2.000 negligenciado na literatura médica da área (Santos
2001).
A ênfase nos fatores de risco e proteção psicossociais, resultado que também foi encontrado na revisão
sobre o mesmo tema, realizada por Aliane et al. (2011), sugerem uma evolução e ampliação do olhar
sobre a mulher com DPP, que vai ao encontro da do estudo de Arrais et al. (2015) de que seja qual for a
dose hormonal para o comportamento materno, está claro que tais hormônios não são necessários nem
suficientes para determiná-los. A maternagem é marcantemente uma função de base psicológica, que
consiste na experiência pessoal e psicológica do eu materno em relação ao filho, marcada por estereótipos
de gênero que permeiam as relações sociais e que geram transtornos emocionais em mulheres,
especialmente neste período crítico da gravidez e puerpério.
Destaca-se nessa revisão que, felizmente, o Brasil também foi incluído no rol de países que tem
reconhecido e tratado a DPP como problema de saúde que afeta a população feminina, com uma produção
científica crescente e expressiva, encontrada tanto na presente revisão, quanto na realizada por Aliane et
al. (2011), Galvão, Silva Júnior, Lima e Monteiro (2015) que chegaram à mesma conclusão. Com base
nesses resultados, se pode afirmar que os estudos e publicações brasileiras não se restringem mais a
pequenos capítulos no interior de livros de medicina sobre a gravidez ou preparação para a maternidade,
como acontecia na década de 1990 (Santos, 2001).
Destarte tal resultado, nota-se, que apesar de o estudo da DPP ser um tema presente na discussão de
ordem mundial, como discutido anteriormente, estes têm uma predominância de pesquisas com
abordagem quantitativa, evidenciando uma possível lacuna no enfoque qualitativo sobre o tema, como
alertam Arrais et al. (2014) e Collado, Favrod, e Hatem (2014).
Quanto aos instrumentos utilizados nos estudos, essa revisão mostrou que, assim como Aliane et al.
(2011), Lobato et al. (2011), Schardosim, e Heldt (2011), e Galvão et al. (2015) as escalas são comumente
utilizadas nas pesquisas, por serem uma ferramenta facilitadora para rastreamento e identificação de DPP
na assistência às puérperas. Dessa forma, a utilização de escalas validadas, pode contribuir para a
produção de novas evidências acerca da relação entre fatores de risco e principalmente de proteção para a
DPP. Essas evidências podem ser importantes para subsidiar o profissional de saúde, em especial do
psicólogo da saúde, na aplicação preventiva de uma abordagem adequada ao enfrentamento do problema.
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Encontrou-se na presente revisão que, a maioria das pesquisas priorizou os fatores de risco para DPP,
em detrimento dos fatores de proteção. Chama atenção, o foco da literatura científica da área sobre o viés
da doença, do risco e não da saúde, da proteção, como nos alerta a teoria da psicologia positiva. Essa
teoria surgiu há pouco mais de 25 anos, para levantar importantes questões não apenas relativas às
emoções negativas, com frequência enfatizada por várias abordagens teóricas, mas principalmente, que
vem focar seu estudo nas emoções positivas, nas potencialidades humanas e na sua busca por superação.
A intenção desta abordagem é suplementar ao que se tem de conhecimento sobre as fraquezas e
patologias humanas, explorando o que há de positivo na vida (Arrais et al., 2015).
Em síntese, pode-se afirmar que esses resultados da presente revisão revelam a grande variedade de
métodos e instrumentos utilizados, o interesse crescente e mundial pelo tema da DPP, bem como um
elevado número de fatores considerados de risco para DPP (n = 53) e o baixo número de fatores de
proteção (n = 11) que têm sido investigados na literatura que abrange o período de 2010 a 2015.
Esta revisão da literatura mostrou que, ter tido depressão na vida, a presença de estresse e ansiedade e
depressão durante a gestação, baixo suporte social e familiar, falta de apoio do parceiro e falta de apoio
social no puerpério, são fatores que aumentam o risco de ter DPP.
Em contrapartida, ter participado de algum programa de pré-natal com base numa abordagem
psicológica, ter uma relação saudável com suas próprias mães e ter suporte social na gestação e no
puerpério e manter relações sociais positivas podem proteger a gestante contra a DPP, e podem minimizar
o impacto que os fatores de risco podem causar o que confirma vários estudos da área (Arrais et al.,
2015).
Os estudos evidenciam que a DPP é um problema latente e um campo aberto e amplo a ser explorado,
sendo uma realidade cada vez mais constante no cotidiano de trabalho dos profissionais da Atenção
Básica, onde médicos e, particularmente, os psicólogos da saúde, situam-se em uma posição favorável
para detectar precocemente e intervir, evitando o agravamento do processo da DPP.
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10
A TEORIA DE GÊNERO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO
DA MATERNIDADE E DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO
O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o nascimento de um bebê?
Como entender que esse momento considerado tão feliz e esperado do ciclo vital
familiar se transforme em um momento depressivo? Por quê a chegada do bebê parece
ter o poder de provocar um estado depressivo na mãe?
No período pré-natal, muitas vezes, as preocupações giram apenas em torno do
chá de bebê, do quarto, do enxoval e das demais providências práticas a serem tomadas
para a chegada de um filho. É rara a discussão séria acerca das dificuldades emocionais
que a grande maioria das mães vivencia no período do parto e pós-parto, bem como
sobre as tarefas familiares que o casal tem a cumprir para ultrapassar esta etapa. Quando
esses temas surgem, geralmente ocorrem em tons de brincadeira e de forma caricata,
que não provocam a reflexão necessária.
Certamente, carregar no próprio corpo um novo ser pode ser uma oportunidade
ímpar e fascinante. Uma promessa de esperança, um potencial de luz, de continuidade e
de amor. Entretanto, a maternidade implica em alterações em diversos espaços da vida
da mulher, sejam eles pessoais, emocionais, profissionais ou sociais, que podem
acarretar em mais sofrimento do que se pode supor.
Ser mãe, no sentido de gerar é uma possibilidade exclusiva da mulher. Inerente a
essa realidade, entretanto, é comum essa potencialidade originar crises, conflitos e
sentimentos contraditórios entre si. Erikson (1976) ilumina nossas idéias nessa direção,
ao lembrar-nos que cada uma das fases evolutivas do ciclo vital de uma pessoa carrega
em si uma situação potencialmente crítica, a qual pode ocasionar uma crise, sendo esta
entendida como uma ruptura do status quo psíquico que requer novas respostas
adaptativas. Portanto, a crise da depressão pode ocorrer em qualquer época da vida,
inclusive durante momentos socialmente felizes, como o parto e o nascimento de um
filho (Ribeiro, 2002).
O puerpério2 é um desses períodos vulneráveis, constituindo-se, portanto como
um período de risco psiquiátrico aumentado no ciclo de vida da mulher (Erikson, 1976).
Na fase pós-natal, a sociedade espera que a mãe esteja muito feliz e satisfeita com o seu
novo rebento. Todos cobram da mulher grávida estar radiante: seu companheiro, sua
família, seus amigos e até os profissionais que a assistem na gestação, e, por isso,
geralmente desconsideram seus reais sentimentos. As mesmas atitudes são vistas no
pós- parto.
Poucos sabem, e ainda trata-se de um tabu na sociedade ocidental, que a
maternidade é vivida, por muitas mulheres, com mais sofrimento do que prazer
1
Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Brasília; profª do curso de graduação em psicologia
e mestrado em gerontologia da Universidade Católica de Brasília. Coordenadora do curso de
especialização em psicologia hospitalar da mesma universidade. Trabalha com gestantes e puérperas
desde 2001.
2
O puerpério é definido como o período que sucede o parto, podendo estender-se a até sessenta dias após
o nascimento do bebê (Corrêa & Corrêa, 1999).
(Lucena, 2004). Ao contrário do esperado, a literatura, minha experiência como mãe e
nossa prática com gestantes e puérperas3 nos mostram que a maioria das mulheres,
sobretudo as de classe média e alta, encontra na vivência da maternidade algum nível de
sofrimento psíquico, físico e social no período pré e pós-parto. Normalmente, nessas
fases, observa-se nas mães uma vivência relativamente contínua de tristeza ou de
diminuição da capacidade de sentir prazer (Santos, 1995), a qual poderá ser transitória
ou se cronificará caso não sejam assistidas adequadamente.
Para Frizzo e Piccinini (2005) os transtornos emocionais que atingem as
mulheres no período pós-parto são de três tipos: o baby blues (melancolia da
maternidade), a psicose puerperal e a depressão pós-parto (DPP), sendo esta definida
como é um episódio depressivo não psicótico. Uma depressão é classificada assim
sempre que iniciado nos primeiros doze meses após o parto. Sua manifestação clínica é
igual a das depressões em geral (Rocha, 1999; Baptista, Baptista & Oliveira, 2004). Ou
seja, a pessoa sente uma tristeza muito grande de caráter prolongado, com perda de
auto-estima, perda de motivação para a vida, é incapacitante, requerendo na maioria das
vezes o uso de antidepressivos (Ballone, 2001; Rosenberg, 2007). Sobre a depressão
pós-parto Rosenberg (2007) afirma que esse tipo de depressão apresenta uma incidência
no Brasil de aproximadamente 10% mas pode chegar até 20% das dos casos após o
parto.
É sabido que a DPP acontece com mulheres de todas as idades, classes sociais e
de todos os níveis escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que desejam muito ter um
filho, bem como aquelas que não aceitam o fato de ter engravidado. Pode ocasionar-se
no nascimento do primeiro filho, do segundo, do terceiro, ou de outros. Os autores que
estudam essa temática têm posições diversas sobre o aparecimento da DPP, e a literatura
não é concorde quanto a sua etiologia (Santos 2001; Botega & Dias, 2002; Rosenberg,
2007). Mas, se a mãe apresentou alguma história de depressão na sua vida, ela requer
mais atenção dos familiares e profissionais de saúde desde a gestação (Botega & Dias,
2002); o que normalmente não é feito nem mesmo pelos obstetras que as acompanham
no pré-natal.
A percepção de sentimentos de tonalidades negativas e contraditórias,
justamente no momento quando só deveria existir espaço para a plenitude e a felicidade,
provoca em muitas mães e profissionais uma sensação de estranhamento e inadequação.
Tanto na gestação quanto no pós-parto, são comuns assertivas do tipo: “Como você
pode estar triste, com um bebê tão lindo nos braços?”. Se a mulher ousa expressar
qualquer sentimento negativo, mesmo em relação à gestação ou a uma não–aceitação
temporária da gravidez, ou por estar enjoando muito, ou por ter parado suas atividades
pelas intercorrências de uma gravidez de risco, logo se diz que “ela está rejeitando o
filho”.
Esse tipo de associação é superficial, de cunho excludente e pejorativo, que
acarreta na caracterização da mãe com DPP como uma “aberração da natureza”. Toda
essa miscelânea de sentimentos e conflitos que a gestante geralmente vivencia não
significa que ela esteja rejeitando o filho, mas toda a complexidade da situação, para a
qual talvez não estivesse preparada (Bacca, 2005). Assim, Serrurier (1993), Maldonato
(2000), Rohenkohl (2005), Bacca (2005) e Arrais (2005) alertam para o fato de que
muitas mulheres acabam por rejeitar não o bebê em si, mas a maternidade como
instituição e muito do que isso acarreta, como por exemplo, a mudança de vida, os
sacrifícios e as obrigações. Associar estados de humor entristecido ou quadros de DPP
com rejeição ao filho, como comumente é feito não só pelos familiares e pelo senso-
comum, mas também por muitos profissionais de saúde, e da educação, é um grande e
3
A autora realiza grupos de atenção psicológica ás mães com DPP, desde 2001, na UCB.
2
preconceituoso equívoco, que acentua ainda mais o sofrimento e isolamento materno e
deve ser terminantemente combatido.
Assim, a mulher nesse caso sofre duplamente: primeiramente, pelos sentimentos
negativos vivenciados e, segundo, pela culpa em senti-los. Tudo isso, pouco alivia a dor
da mãe com depressão, quando não atrapalha ou agrava o seu sofrimento, pois a isola, a
culpabiliza e a impede de pedir ajuda. Por sentirem-se na “contra-mão” do que é
socialmente esperado e desejado, a mãe quase sempre reluta em relatar seu incômodo a
outros e a pedir ajuda profissional, mesmo que sinta muitas dificuldades no desempenho
de tarefas maternas e domésticas e que consiga perceber a sua alteração no humor
(Rosenberg, 2007).
Por isso, este sofrimento psíquico é vivido isoladamente e, o que é pior, sem um
acompanhamento profissional especializado, podendo acarretar na cronificação dos
sintomas depressivos ou somáticos e num prejuízo para a relação mãe-bebê-pai. Santos
(2001, p. 20) reafirma isso ao mostrar-nos que “a depressão pós-parto é raramente
trazida para o consultório por quem a experimenta, é vivida com dolorosa perplexidade,
com questionamentos morais, mas, sobretudo, em silêncio”. A autora acrescenta ainda
que este é um fato constatado em pesquisas estrangeiras e que se repete no Brasil.
Isso acaba acarretando não só em uma pobreza estatística sobre o fenômeno,
como também em um parco interesse e um número restrito de publicações científicas
sobre o tema. Esta realidade se reproduz na psicologia, haja vista a constatação de nossa
revisão bibliográfica revelar que a DPP é um tema ainda pouco explorado (Arrais,
2005). Dentre os escassos trabalhos psicológicos que abordam esse assunto, muitos o
interpretam do ponto de vista do bebê, levando em consideração apenas as
conseqüências negativas da DPP para o desenvolvimento e a constituição da
personalidade deste, como nos estudos de Camorotti (2001), Catão (2002), Ribeiro
(2002), Andrade (2002), Schwengber e Piccinini (2003), Frizzo, e Piccinini (2005) e
Rosenberg (2007). Estes não se atentam aos profundos prejuízos que ela pode trazer
também para as mães e para a díade mãe-bebê, e até mesmo, para a tríade mãe-pai-bebê.
Os últimos relatórios sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil,
2004) nos confirmam essa tendência unilateral em prol do bebê.
Particularmente, nós advogamos que a DPP e seu prolongamento pode ter
conseqüências ruins não só para o desenvolvimento emocional e cognitivo do bebê,
como também sobre o bem-estar da mulher, sua saúde física e psíquica, seus
relacionamentos conjugal, familiar e social, a qualidade de sua vivência materna, e
sobretudo, para o seu processo global de subjetivação como mulher.
Focalizamos a DPP do ponto de vista da mulher/mãe sem, contudo, esquecer o
aspecto essencial do relacionamento mãe-filho, mas procurando excluir qualquer
determinismo linear do tipo causa e efeito. Para nós, existe uma diversidade tão grande
de sentidos subjetivos para as mães, para os bebês e seus familiares, que nos impede de
manter um olhar reducionista e linear sobre a maternidade e a depressão após o parto.
Isso nos impulsiona para olhar a complexidade destes fenômenos e dos sujeitos neles
implicados.
Assim, apesar de terem muitos sentidos que podem ser subjetivados de forma
semelhante na vivência da maternidade e do pós-parto, cada mulher terá uma vivência
única e singular, que não deve ser padronizada e nem “vendida” para as demais como o
“retrato da maternidade” e nem “enclausurada” no diagnóstico da DPP. Em outras
palavras, levantamos nesta reflexão o seguinte questionamento: seria a DPP uma
psicopatologia, classificada no CID-10 (1993) sob a rubrica de F53.0, ou poderíamos
suspeitar tratar-se apenas de mais uma maneira de vivenciar a maternidade? Talvez seja
ela uma das formas mais sofridas, porém não menos legítima que as demais formas
3
mais convencionais de ser mãe. Através dos sintomas depressivos, a mãe não estaria
apenas revelando o lado obscuro da maternidade, socialmente negado?
Assumimos que a motivação para gestarmos o presente trabalho se deve
principalmente a algumas razões de ordem sócio-histórico-culturais, as quais cremos ser
fundamentais considerar quando se pensa na mãe com DPP, como, por exemplo, o
fenômeno da entrada da mulher no mercado de trabalho. Este fenômeno vem
provocando transformações tão profundas no casamento, na família e na sociedade e na
saúde da mulher (Diniz, 1999) que nos levou a acoplar a categoria de gênero ao nosso
olhar, com a finalidade de ajudar a compreender a saúde da mulher nesse contexto.
Dessa forma, não seria a DPP, da forma como vem se apresentando hoje, também uma
conseqüência desta nova realidade?
A pressão social sobre a mãe, sobretudo nos dias atuais, em que a mulher
acumula várias outras funções, faz com que esta não se sinta autêntica e sinta-se
incapaz, “defeituosa” e incompetente para ser mãe; levando-a muitas vezes à depressão.
Esses elementos apareceram como atributos relacionados à subjetividade social
dominante sobre a mulher e a maternidade e, em vários casos, estavam associados a
“clichês sociais” que têm acompanhado as mulheres nos últimos séculos, como: “ser
mãe é padecer no paraíso”, “toda mulher nasceu para ser mãe”, “toda mãe tem uma
predisposição inata ao sacrifício”. Esses sentidos, em um imaginário de valores,
“aprisionam” as mulheres em uma posição volitiva em serem “as mães perfeitas”.
De maneira geral, as crenças sobre a maternidade são divulgadas como se
fossem tradicionais e naturais, e por serem concebidas assim, essas crenças se tornam
inatacáveis. Contudo, é possível verificar na história da humanidade que essas idéias
têm poucas centenas de anos. A boa mãe, tal qual conhecemos hoje, com sua propensão
natural ao sacrifício, seu amor universal e automático pelos filhos e sua completa
satisfação nas tarefas da maternidade, não foi sempre assim.
Ao contrário disso, Forna (1999) nos conta que esse estilo de maternagem teve
seu início em 1762 a partir da publicação de Émile, por Rousseau, quando este criticou
as mães que enviavam os filhos para as amas-de-leite, o que era bastante comum até
esta época. Ele recomendava, enfaticamente que as próprias mães amamentassem e
criassem seus filhos e as recriminava por darem preferência a outros interesses.
Segundo Badinter (1985) dá-se aí, o início à injunção obrigatória do amor materno.
Serrurier (1993) também afirma que é deste Émile, que estamos condenadas a ser mães
e a ser boas mães. Não há alternativa para a mulher: a vocação materna é natural,
instintiva e obrigatória!
Contrária às idéias de que a maternidade só comporta o amor irrestrito e
apoiando a perspectiva das teorias do gênero, segundo a qual a maternidade é construída
e não instintiva, a maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é
um constructo social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas também,
quem é responsável por eles (Forna, 1999). Culturalmente, as representações sociais da
maternidade estão fortemente calcadas no mito de mãe perfeita. Esta concepção assume
proporções insustentáveis, segundo as quais acredita-se que a maternidade é inata à
mulher. É a idéia de que a maternidade é parte inerente ao ciclo evolutivo vital
feminino. Neste sentido, supõe-se que a mulher, por ser quem gera os filhos, desenvolve
um amor inato pelas crianças e fica sendo a pessoa melhor capacitada para cuidar delas.
(Falcke & Wagner, 2000).
4
Compreender a maternidade como fenômeno cultural, e não natural e biológico,
é o primeiro passo para podermos conhecer as implicações deste conceito na
constituição subjetiva da mulher enquanto ser imerso em um momento histórico e
social. Para Serrurier (1993), não podemos marginalizar o quadro sociológico que, na
sua opinião, com a qual concordamos inteiramente, é responsável, em grande parte,
pelas dificuldades que as mulheres experimentam para serem boas mães. Desde já, cabe
lembrar as palavras de Beauvoir (1980), neste sentido: “ninguém nasce mulher: torna-se
mulher” (p. 9). Da mesma forma, acreditamos que nenhuma mulher nasce mãe, mas
torna-se mãe.
Sendo assim, é mister considerar que o exercício da maternidade é articulado
com os discursos ideológicos dominantes, ligados à ciência, à Igreja e à economia
social, fazendo com que seja percebido como um fenômeno instintivo, arraigado na
estrutura biológica feminina, independente das circunstâncias de tempo e espaço que o
determinam. De Scott (1995), vamos tomar o conceito de gênero, que o historiciza e
propõe seu uso como, categoria analítica e instrumento metodológico para entender
como ao longo da história, se produziram e legitimaram as construções de saber/poder a
partir da diferença sexual. Ao fazê-lo, esta autora abre uma nova perspectiva teórica
para a “desconstrução” das hierarquias e desigualdades de gênero baseadas na diferença
biológica, como se fossem verdades universais. A partir de diversas representações da
feminilidade, foram deduzidas as posições de poder, submissão, complementaridade ou
exclusão das mulheres no seio da sociedade (Aleixo, 2005). Nos próximos tópicos,
veremos que quaisquer que tenham sido as variações ligadas à primazia atribuída ao
sexo ou ao gênero percebemos sempre o traço das modificações sofridas pelas mulheres
e pelas famílias ao longo dos séculos.
Na verdade, os estudos antropológicos não falam de uma permanência histórica
e cultural da maternidade tal como é concebida nos dias de hoje (Viana, 2004) 4. A
mulher reprodutora, parideira, obviamente sempre existiu, mas o conceito da mulher
materna-divina, que faz a maternagem exclusiva dos filhos, data de poucos séculos
atrás. Por isso, a maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é
um constructo social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas, também,
quem é responsável por eles (Forna,1999).
4
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em
outubro/2004, no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
5
tentou Adão, recaindo sobre ela a culpa pela separação entre nós e a divindade – com a
conseqüente mortalidade.
O Paraíso significava um mundo onde havia harmonia, imortalidade, eternidade
e ausência de dores e penas. Não nascer e não morrer - infinitude. Chauí (1985 e 1984);
Muszkat (1994) e Del Priori (2004) explicam que a descoberta do sexo foi o Mal, que
condenou a humanidade à dor, à mortalidade e a finitude por culpa da mulher, já que
Adão era obediente e não tocava no fruto proibido. “Os desregramentos, o pecado e a
danação originaram-se da fragilidade moral do sexo feminino” (Del Priori, 2004, p. 25).
Por isso, desde Eva, as tentações da carne e a volúpia sexual eram predicados
femininos, representando a mulher como fraca e suscetível ao pecado, cujo o corpo
corresponde ao lugar de todos os perigos!
Por essa razão, “a mulher, eternamente condenada pelo erro de Eva, tinha que
permanecer vigiada e controlada” (Del Priori, 2004, p. 46). A Igreja e o Estado
exerciam forte pressão no controle da “maligna” sexualidade feminina, justificando
através de argumentos divinos que o homem lhe era superior, cabendo a ele autoridade
sobre a mulher. O feminino era visto como fonte de desordem que deveria ser
controlado pelas leis do casamento, em conformidade com a ordem marital
(Roudinesco, 2003). Dessa forma, foi-se incorporando à natureza feminina um estigma
que predispunha à transgressão e à maldade, revelando-se de maneira mais extrema nas
práticas de bruxaria.
Durante toda a Idade Média, a imagem da mulher estava relacionada às
tentações, ao Diabo, pois ela representava o desejo sem fim e sem limites que poderia
entorpecer e perverter os homens. Assim, de feiticeira à possuída, e desta à louca, há a
interiorização do pecado, tornando-a demoníaca em sua alma (Chauí, 1984 e 1985;
Muszkat, 1994; Del Priori, 2004). O controle do corpo, através de castigos físicos e
disciplina, foi instituído como forma de reeducá-lo e torná-lo dócil e apto para o
trabalho e, principalmente, menos ameaçador.
Assim, de fêmea insaciável, a mulher se converte num ser quase assexuado,
frígido incapaz de viver o prazer e o orgasmo, fisicamente constituído apenas para a
procriação, desde que restrito ao casamento e sem prazer, afirma Chauí (1985). Porém,
mais do que apresentar as formas visíveis e invisíveis de repressão sexual, através da
análise da mulher medieval e suas relações com a Igreja, Chauí (1984 e 1985) mostra
que a construção contemporânea de Eva e da Virgem Maria carrega uma ambigüidade
que perpassa nosso próprio presente: a mulher é responsável pela ciência do bem e do
mal - por sua imprudente curiosidade por seu desejo sexual irrefreável. É também
responsável pela semi-imortalidade e semi–eternidade da espécie, pelo seu resgate
parcial, através da procriação. Apenas sob a figura da Mãe Virgem poderia devolver ao
menos uma semi-imortalidade ao homem, ao gerar a vida, dedicando-se à tarefa da
perpetuação da espécie (Chauí, 1984 e 1985; Muszkat, 1994; Roudinesco, 2003; Del
Priori, 2004). Assim, caberia às mulheres transmitirem a vida e a morte (Roudinesco,
2003).
Uma vez tornando-se mãe, a mulher honrada, de família e casada na igreja,
afastava-se da Eva e aproximava-se de Maria, a virgem que concebeu sem pecado.
Assim, ratifica-se o surgimento do arquétipo do modelo de Maria predominante entre as
mulheres “direitas”. Para isso, suas vidas deveriam ser restritas à família, à igreja, ter
uma vida assexuada com fins apenas procriativos, serem fracas, submissas, passivas e
sem participação na vida pública. Ademais, eram educadas para o casamento, para
cuidar da casa e dos filhos e, ainda, tolerar as relações extraconjugais de seus maridos.
Del Priori (2004) ressalta que esses valores eram incorporados pelas mulheres por meio
6
da imposição da Igreja, da família e por muitos mecanismos informais e formais de
coerção. Chauí (1985) complementa essa afirmativa com a seguinte questão:
Portanto, afirma Roudinesco (2003) que a mulher deve, acima de tudo, ser mãe,
para que a sociedade seja capaz de resistir à tirania do gozo feminino que se acredita ser
capaz de eliminar a diferença entre os sexos, e leve à decadência dos valores
tradicionais da família, da autoridade do pai e ao caos social. Tudo era pensado como
se, “no exato momento em que as mulheres despertassem do longo sono de sua sujeição,
a família fosse ameaçada de ser ela própria destruída” (Roudinesco, 2003, p. 145).
A lógica apresentada por todas essas autoras me pareceu bastante plausível para
introduzir o tema da maternidade. Este percurso histórico pareceu-me dar sentido para a
imposição – violenta e implacável - da maternidade, da qual as mulheres ainda são
vítimas. Até hoje elas estariam pagando pela maldição que impuseram à humanidade ao
condená-la a finitude, à mortalidade, à dor e ao sofrimento, através da maternidade –
sua única chance de se redimir. E para que ela pague este preço, sem resistir ou
reclamar, veremos que foi arquitetado sutilmente e ideologicamente o processo de
naturalização da maternidade.
7
atua, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e
independentemente de qualquer aprendizado (...) Tendência natural; aptidão inata” (p.
953).
Torna-se possível, desta forma, duplicar a ideologia do instinto. Instinto
materno é definido como um comportamento gerador, mantenedor e protetor da vida, e,
conseqüentemente, a qualidade derivada deste instinto é o amor materno. Vistas sob a
ótica do amor materno, fica fácil considerar as mulheres como “instintivamente” mais
sensíveis do que os homens, e esta sensibilidade compensaria a exclusão do mundo
racional, conforme ressalta Chauí (1985).
O instinto materno, ao mesmo tempo que mantém as mulheres num suposto
mundo natural, as transforma em produtoras desta mesma ideologia do “amor materno e
da sensibilidade”. Além do naturalismo, algo mais está presente no corpo feminino: o
instinto e amor materno são formas de controlar e reprimir a sexualidade feminina. A
natureza feminina permite apenas uma sexualidade procriadora.
Mas ser mãe é, de fato, algo da natureza da mulher? Será o amor materno um
fenômeno inato? O instinto materno de fato existe? Ou será um fenômeno construído
socialmente? Certamente, estas são questões que não povoam as mentes das mulheres
em geral, pois, ainda hoje, a maternidade é percebida com algo da ordem do
inquestionável! É próprio ao senso comum conceber instituições estáveis da sociedade
antes como formas ‘naturais’ de organização da vida coletiva, que como produtos
mutáveis da atividade social. No caso da família, entretanto, a naturalização é
extremamente reforçada pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito,
privilegiadamente, “à regulamentação social de atividades de base nitidamente
biológica: o sexo e a reprodução” (Durham, 1983, p.15).
O processo de naturalização dos fenômenos é o procedimento privilegiado da
ideologia dominante, sobretudo a patriarcal:
Sendo “por natureza” mães e criaturas sensíveis, as próprias mulheres se
farão agentes de violência quando agirem contrariando sua “natureza”, por
exemplo, reivindicando que a maternidade seja reconhecida como um direito
que pode ou não exercer, em lugar de tomá-la como instinto, ou
reivindicando o direito de agirem como seres pensantes.(Chauí, 1985, p.38).
Assim, entendemos que Chauí (1985) faz uma denúncia grave e nos alerta para o
fato de que a violência mais perfeita é aquela que acontece sem que percebamos,
instaurado sutilmente, como algo natural, pré-determinado. Através de uma sutil
inversão ideológica, a violência passa a ser imputada ao “desnaturamento” desejado
pelas mulheres. A violência agora consistirá, portanto, em constranger a vontade das
mulheres, fazendo-as interiorizar a sua “natureza” - que ela consinta em ser, de jure, o
que é realmente de facto. A hipótese de Chauí é que a idéia e a imagem de uma
“natureza feminina” permaneçam até hoje, ainda que difusa e diluída, pelo fato de que o
corpo feminino tenha sido o elemento fundamental para as ideologias da feminilidade.
A Igreja, o Estado, bem como a ciência, acabaram por fortalecer a idéia de
instinto maternal, idéia típica da teoria evolucionista, que defendia a noção de que a
natureza emocional da mulher era conseqüência direta de sua fisiologia reprodutiva
(Laqueur, 2001; Aleixo, 2005). Há, portanto, um discurso sobre as mulheres e não das
mulheres (Chauí,1985 e 1984; Muszkat, 1994; Del Priori, 2004; Aleixo, 2005). Isto
acarreta que, neste processo circular de naturalização-culturalização-naturalização da
mulher, faltou a ela justamente aquilo que a tornaria sujeito de fato e de direito: a
autonomia do falar, do pensar, do agir, do escolher. No processo de subjetivação da
mulher, observa-se, então, que lhe foi dada finalidades internas a partir do exterior.
Entendemos, com isso, que a força do instinto maternal se impõe na vida das mulheres
8
há séculos, como algo natural, predestinado e sem possibilidades de escolha! Como nós,
mulheres, poderíamos ousar duvidar desta ordem secular?
A obra de Laqueur (2001) intitulada Inventando o Sexo: corpo e gênero dos
gregos a Freu., foi, para mim, a primeira grande responsável por esta desconstrução do
sexo “inato”. Laqueur (2001) defende a tese de que o sexo biológico também é uma
construção social, a serviço dos interesses sociais/morais. Em suas pesquisas, ele
descobriu que antigamente o modelo de sexo era único. O corpo masculino era o
modelo de perfeição e o corpo da mulher seria apenas um corpo masculino
defeituoso/inferior.
Para Aristóteles e Galeno (citados por Fávero & Mello, 1997; Laqueur, 2001;
Roudinesco, 2003; Aleixo, 2005) os órgãos femininos eram uma forma menor dos
órgãos masculinos e, conseqüentemente, a mulher era um homem menos perfeito. Nesse
sentido, a mulher opõe-se ao homem sendo “passiva”, enquanto este é ativo. Isso faz
dela uma “réplica invertida do homem”, como prova a posição de seus órgãos: o útero
era o escroto; a vulva era o prepúcio; os ovários eram os testículos e a vagina era um
pênis invertido. Assim, tal qual o significado da criação de Eva a partir de uma costela
de Adão, pensa-se a humanidade como masculina e a mulher é definida em relação ao
homem, e não em relação a ela mesma (Chauí, 1985; Muszkat, 1994; Ehrhardt, 1996).
Laqueur (2001) mostra que, somente no século XVIII, os dois sexos –
masculino e feminino – foram inventados como um novo fundamento para o gênero. A
partir desse novo modelo sexual, houve um grande esforço para se descobrir as
características anatômicas e fisiológicas que distinguiam o homem da mulher. Assim a
mulher ganhou um novo status: já não era mais um “homem imperfeito”, mas era um
outro ser anatomicamente diferente. Mas, se, por um lado, esta diferenciação foi
positiva no sentido de marcar um lugar próprio da mulher, não impediu que fosse
agregado a este corpo diferente um valor inferiorizado. Destarte, a mulher não era
apenas diferente do homem, mas continuava ser vista como intelectualmente inferior
pouco racional e, portanto, toda instinto e passional.
Del Priori (2004) confirma esta concepção de mulher ao nos mostrar que para a
maior parte dos médicos do Séc. XVI, a anatomia feminina era diferente não apenas por
um conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas
características morais, sendo “o corpo da mulher destinado a procriação e assuntos
divinos” (p. 78). O lugar da mulher era definido, portanto, através desta função:
“penetrada pelo homem deitado sobre ela, a mulher ocupa o seu verdadeiro lugar”
(Roudinesco, 2003, p. 24).
Autores como Badinter (1985), Chauí (1985), Muszkat (1994), Laqueur (2001) e
Del Priori (2004) afirmam que nesse contexto, onde medicina e igreja comungavam do
mesmo discurso, continuaram sendo construídos conceitos sobre o funcionamento do
corpo feminino sublinhado por sua inferioridade em relação ao corpo masculino. Para
eles, a mulher tinha sido criada por Deus para servir à reprodução da espécie,
relacionando o estatuto reprodutivo da mulher (parir e procriar) a outros de caráter
metafísico, como ser mãe, submissa, frágil, terna.
Concepções que beiram ao cômico, apresentadas por Spencer (1975, citado por
Fávero & Mello, 1997), revelam esta inferioridade e predestinação à procriação:
As energias da mulher eram canalizadas diretamente para preparação da
gravidez e da amamentação, reduzindo sua energia para o desenvolvimento
de outras qualidades. O resultado era uma parada precoce na evolução da
mulher, o que explica seu estágio de desenvolvimento inferior ao do homem.
9
A grande preocupação dos médicos e pesquisadores daquela época, de acordo
com Del Priori (2004), era compreender o sistema reprodutor feminino, tendo em seus
estudos destacada a função de madre, nome dado ao útero, órgão este que era descrito
como uma área nebulosa da natureza feminina (Laqueur, 2001; Del Priori, 2004).
Acreditava-se, ainda, que o princípio da vida existiria no sêmen masculino, tendo a mãe
a função hospedeira de receber e nutrir o feto. Assim, “dependente do homem,
instrumento a serviço da hereditariedade da espécie, este é o corpo da mulher, visto
pelos médicos” (Del Priori, 2004, p. 84).
Essas idéias eram reforçadas por argumentos biológicos que consideravam os
instintos peculiares para cada sexo como sendo a fonte primária das diferenças sexuais,
e o instinto feminino definia-se pela submissão ao comando. A idéia “vendida” parece
ser a de que a mulher é toda instinto e que, portanto, foi programada para procriar e
cuidar. Essa deve ser sua aspiração e sua realização e, por isso, deverá ser sua fonte
primeira de gratificações (Chauí, 1985; Badinter, 1985; Serrurier, 1993; Trindade 1993;
Muszkat, 1994; Fávero & Mello,1997; Parker, 1997; Laqueur, 2001, Ribeiro. &
Almeida, 2003 e Del Priori, 2004).
No caso das mulheres, a permanência da ideologia naturalizadora é nítida, pois
seu corpo procriativo é invocado como uma determinação natural; determinação esta
que faz com que a mulher permaneça irrevogavelmente ligada ao plano biológico (da
procriação) e ao plano da sensibilidade (na esfera do desconhecimento). Maternidade,
como instinto e como destino, e sensibilidade, numa cultura que valoriza a razão em
detrimento da emoção, são algumas construções ideológicas curiosas, que, segundo
Chauí (1985), servem para manter a idéia de “natureza feminina” como uma rocha
“natural” no mundo historicizado. Assim, a naturalização seria o procedimento
privilegiado da ideologia dominante, ao qual a mulher vem sendo submetida há séculos.
Viana5 (2004) vai além disso. Para ela, o mito do instinto e do amor materno
sugerem mais do que questões ideológicas. Eles se remetem também a questões
mercantilistas e posteriormente capitalistas, na tentativa de manter a mulher fora do
mercado de trabalho. Na opinião de Chodorow (1990), a maternação das mulheres é um
dos poucos elementos universais e duráveis da divisão do trabalho por sexos. Até agora,
todos os sistemas sexo-gênero têm tido dominação masculina, o que demonstra, na
opinião dessa autora, que a maternação das mulheres é um aspecto central e definidor da
organização social do gênero, e implica na própria construção e reprodução da
dominância masculina.
Freud, de acordo com Roudinesco (2003), também considera equivocada toda
esta argumentação naturalista. Ao seu ver, não existem nem instinto materno e nem raça
feminina, pois para ela, o parâmetro não é simplesmente anatômico, mas simbólico em
torno do falo. O falicismo é pensado como uma instância neutra, portanto comum aos
meninos e meninas. Apesar da eterna atitude interrogativa acerca do “que quer uma
mulher?” e de considerá-la como um “continente negro”, Freud não encorajava as
mulheres a exercerem uma profissão, a militarem por igualdade ou a concorrerem com
os homens no domínio da arte e da sublimação. Para ela, era melhor restringi-las “à
nobreza de uma arte da qual foram iniciadoras, a textura e a tessitura” (1921, citado
por Roudinesco, 2003p. 134).
O objetivo de Chauí, ao levantar dúvidas sobre a “natureza”, “o instinto
materno”, a ”liberdade” e a “vontade” feminina, era o de sugerir que a forma e o
conteúdo dessas vivências nunca foram determinados do interior, mas sempre do
5
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em Palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em
outubro/2004, no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
10
exterior. Nunca pelas próprias mulheres, a partir de sua interioridade/exterioridade
vividas e refletidas. De forma que a transformação do ser “natural” para ser “de desejo”
e finalmente para um sujeito “livre” foi feita, de acordo com Chauí (1985), sob a forma
de outorga da subjetividade às mulheres.
Assim, fica clara a “armadilha social” que denunciam Chauí (1985) e Beauvoir
(1980). Ou seja, não é possível obrigarmos uma mulher a assumir a maternidade. O que
se pode fazer é cercá-la por uma realidade em que se tornar mãe é a única saída que lhe
resta: os costumes do casamento, a proibição dos anticoncepcionais, do aborto e do
divórcio foram alguns dos artifícios utilizados para a construção desse cerco. Dessa
forma, a mulher se vê sem alternativas, a não ser cumprir com o seu papel imposto pela
sociedade: ser mãe.
Por meio das concepções de Chauí (1984 e 1985) e Del Priori (2004), que são na
sua maioria corroboradas por Badinter (1985), Serrurrier (1993) e Forna (1999),
entendemos que o estilo de maternidade que herdamos hoje foi moldado em um
determinado tempo da história por necessidade e utilidade e, portanto, não é
naturalmente nem instintivamente determinado como nos é imposto crer. Diante dessas
definições, o que poderíamos pensar de uma mulher que não quer ter filhos? Ou de uma
mulher com DPP? Seriam elas, mulheres normais ou desviantes patológicas?
Portanto, apesar do crescente questionamento sobre o amor materno
incondicional e inato, a visão da mãe ideal, responsável pelo bem-estar psicológico e
emocional da família, ainda é bastante presente na literatura e no senso comum
(Badinter, 1985). Acreditamos que esta insistência em que um certo estilo de
maternidade é “natural”, entra em choque com a vivência da maternagem, o que leva ao
sentimento de “mãe desnaturada” e há muito sofrimento. Mas também, tem levado
muitas mulheres, na atualidade, a questionarem cada aspecto do que fazem, pensam,
sentem, e a avaliar suas próprias experiências, buscando flexibilizar o padrão rígido e
determinista cultuado socialmente.
Há algum tempo, observa-se que as mulheres de hoje não são mais criadas
somente para contrair um bom casamento e criar filhos. Ou seja, a ênfase da educação
feminina não está mais no papel materno, mas sim na preparação delas para enfrentar o
mercado de trabalho. Sobretudo nas classes sociais mais favorecidas (Durham, 1983),
elas são criadas para serem boas profissionais e terem seus próprios sustentos. Essa
mudança de foco educacional fez com que as mães não mais criassem suas filhas
somente para exercerem exclusivamente o papel de mães.
Não há dúvidas de que a inserção da mulher no mercado de trabalho,
contribuindo para o declínio do sistema patriarcal e minando a hegemonia masculina,
provocou e continua a provocar muitas transformações nas relações conjugais e
familiares atuais. Roudinesco (2003) nos mostra que hoje existe uma diversidade tão
grande de tipos familiares – desconstruída, recomposta, monoparental, homoparental,
clonada, gerada artificialmente - que a família ocidental de hoje está sujeita a uma
grande desordem. Hoje, as mulheres podem dominar a procriação, os homossexuais
podem participar do processo de filiação e o pai, não é mais o pai–patriarcal. Ele está
assumindo um papel “maternalizante” (Roudinesco, 2003, p. 179), ao aumentar
gradativamente o seu envolvimento masculino nos trabalhos domésticos. A vida
definitivamente mudou!
Na verdade, na visão Roudinesco (2003) assistimos a um empoderamento de
uma camada de mães que, além de serem detentoras da ordem procriadora, têm ainda o
11
poder de designar ou de excluir o pai de seu filho. Mesmo com a presença do pai em
casa, é ela quem continua tendo as maiores responsabilidades de controlar, educar e
criar os filhos. Resta-nos saber se este empoderamento apontado por Roudinesco (2003)
tem trazido de fato mais poder, ou mais carga de trabalho e responsabilidades para a
mulher.
Em uma análise macrossistêmica, ficam claras as transformações da posição da
mulher no contexto social, que cada vez mais vem ocupando seu espaço no mercado de
trabalho e ampliando sua representatividade na sociedade. Porém, no âmbito familiar,
observa-se que ela vem abarcando maiores responsabilidades e, agora, integra tanto as
funções de cuidado, nutrição, afeto, entre outras que já lhe cabiam, como também, o
papel principal de disciplinadora, além de ser uma participante ativa na divisão das
despesas domésticas, quando não de arrimo de família.
Assim, o fato da mulher gerar vida, fato que poderia representar o seu poder
equivalente ao falo, como afirma a teoria psicanalítica, cai por terra, pois, ao se
submeter à maternidade, passa a ser “engolida” pelo papel de mãe e esse poder é posto a
serviço da humanidade. Tal realidade coloca a mulher num lugar de subordinação,
fazendo prevalecer as funções maternas em detrimento das outras manifestações
possíveis do feminino (Beauvoir, 1980). Por isso, apesar de existirem muitos casais
experimentando novos arranjos familiares, ainda se observa hegemonicamente que a
velha divisão de papéis insiste em se manter. O pai trabalha fora e, por isso, está
“liberado” de participar ativamente da educação das crianças; e a mãe, mesmo que
trabalhe fora e contribua para o sustento da família, ainda resiste em abandonar o que
fez durante tanto tempo – responsabilizar-se “sozinha” pelos cuidados para com a sua
prole:
Para o homem, a casa é o “repouso do guerreiro”. Para a mulher que trabalha
fora, é o seu segundo turno, muitas vezes até mais desgastante que o
primeiro, porque lhe sobra pouco tempo para dar conta de todas as tarefas
que se impõe: ver se os filhos estão machucados ou doentes, se fizeram as
tarefas escolares, se a casa está arrumada, se não falta mantimentos na
despensa e ainda preparar o jantar para receber o guerreiro cansado (Tiba,
2002, p.36).
Portanto, apesar deste novo contexto, o mito social relativo ao papel feminino
demonstra-se preponderante (Falcke & Wagner, 2000). O pai continua sendo sempre
mencionado, reverenciado e merecedor dos louros da família. Ainda sobrevive a cultura
de que a última palavra é a sua (Tiba, 2002). O conceito de maternidade e as
responsabilidades desta função continuam baseados em um modelo rígido e antigo, que
parece resistir bravamente às mudanças no mundo pós-patriarcal. Dessa vez, recorremos
à Rocha-Coutinho (1994):
Ainda hoje, por trás de discursos e à margem de declarações oficiais, se ouve
a opinião de que o lar e a educação dos filhos sempre foram e devem
continuar sendo atribuições das mulheres e que, devido à sua constituição
física e espiritual, as mulheres devem ser afastadas do trabalho físico pesado,
bem como das atividades que lhes exigem muito intelectualmente" (p.42).
12
O estudo de Falcke e Wagner (2000) confirma essa percepção. Neste, pôde-se
demonstrar que as mulheres, tanto mães quanto madrastas, ainda trazem um forte legado
transgeracional relacionado ao estereótipo de gênero, ainda que muitas mudanças
sociais venham ocorrendo nesses últimos tempos. Neste caso, pode-se perceber a força e
o poder do mito da maternidade perfeita como uma idéia muito presente, ao qual as
mulheres respondem de forma quase automática.
Neste processo, é imperioso reconhecer então que, apesar das intensas e
progressivas mudanças que vêm ocorrendo no sistema patriarcal - mudanças com
relação à divisão no trabalho, com relação à estrutura das famílias, do papel da mulher,
brilhantemente comentadas por Castells (1999), a atitude em relação às mulheres pouco
mudou (Rocha-Coutinho, 1994). A participação no trabalho remunerado não mudou o
fato de que, quando estão em casa, cabe às mulheres a responsabilidade quase total
pelos filhos (Chodorow, 1990). Ou seja, flashes capturados do cotidiano das famílias
mostram que o mundo mudou, mas nem tanto assim!
Esta constatação é muito bem expressa nas palavras de Forna (1999), com a qual
somos obrigadas a concordar: “Apesar das mudanças no trabalho e na vida da família de
milhões de mulheres, apesar de falar numa era de pós- feminismo, a atitude em relação
às mães continua colada na idade das trevas”(p.78).
Para pensar esta contradição, podemos recorrer também a Chodorow (1994,
citado por Castells, 1999), que discorrendo sobre esta manutenção dos papéis sociais
nos faz um alerta:
Mulheres, na qualidade de mães, geram filhas com capacidade maternal e o
desejo de elas próprias tornarem-se mães (...) em contrapartida, as mulheres
como mães (e os homens como não mães) geram filhos homens cuja
capacidade e necessidade de criar filhos têm sido sistematicamente reduzidas
e reprimidas. Este fato prepara os homens para sua função considerada
primordial, a participação no mundo impessoal e extra-familiar representado
pelo trabalho e pela vida pública.” (p. 265)
13
Acontece, porém, que até há alguns anos atrás, quando as famílias eram mais
numerosas, era comum a filha mais velha cuidar do irmão mais novo. Dessa forma,
quando tinham seus próprios filhos, sentiam-se mais capacitadas e seguras em assumi-
los. Hoje em dia, é mais difícil passar por esta experiência, já que em muitas famílias o
número de filhos tem diminuído consideravelmente e seus membros saem para
trabalhar. Assim, à medida que as famílias se tornam menores, os filhos não têm a
oportunidade de adquirir conhecimentos tratando dos irmãos mais novos; deste modo
somente, quando se tornam pais, percebem que desconheciam por completo o que na
realidade significa ser pai e mãe.
Nos cursos pré-natais, as futuras mães dizem muitas vezes que nunca pegaram
um bebê no colo, nunca viram uma criança recém-nascida, nem tiveram oportunidade
de observar de perto uma mãe tratar do bebê. “Não há lição de puericultura ou aulas
práticas com uma boneca de borracha numa banheira que possam suprir esta lacuna.”,
afirma categoricamente Kitizinger (1978, p.44). Mesmo diante dessas lacunas,
continuamos a cobrar das mulheres o “velho modelo de mãe”; porém, as mulheres de
hoje já não são preparadas, não sabem e nem querem cuidar de seus bebês como suas
mães faziam.
Obviamente, é importante relativizar esta afirmação, visto que não podemos
generalizá-la a todas as mulheres e de todas as culturas, camadas sociais, afiliação
religiosa, meio urbano ou rural, sobretudo porque esses fenômenos são observados
prioritariamente nas famílias burguesas, de acordo com Durham (1983). Certamente, há
na diversidade do mundo feminino muitas mulheres que ainda se encaixam neste antigo
modelo.
Há ainda outro importante elemento a ser considerado na constelação que
sustenta a maternidade na era contemporânea: a supervalorização dos filhos. O controle
da natalidade,fez com que, a partir dos anos 70 do século XX, a cultura do filho único se
propagasse. Nesse contexto, um filho passou a ser considerado uma nova espécie de
riqueza, o que, por sua vez difere da situação da família que atuava como uma unidade
econômica, como acontecia no século XVIII, quando em contextos rurais, todos fossem
jovens ou velhos eram considerados mão de obra e a sobrevivência da família dependia
do trabalho de todos os seus membros (Kitzinger, 1978; Tiba, 2002). Assim, um filho
era “apenas mais um” e não tinha um lugar de destaque.
Até o século XVIII, inclusive a infância era curta e dura. A relação mãe-filho,
tão exaltada nos tempos modernos, mal existia. Em Centuries of childhood, o
historiador Philippe Ariès (citado por Forna, 1999) fala que a “idéia de infância” era
alguma coisa que simplesmente não existia, um conceito estranho à sociedade. A
criança nascia e, se sobrevivesse, recebia apenas o sustento que se julgava necessário e
muito pouca atenção. Então, “sem a existência da infância, impõe-se à razão que o
estado interdependente da maternidade também não existia” (Forna, 1999, p. 36).
Hoje, um filho tem um “valor de uma jóia rara!” (Tiba, 2002, p.48). Na nossa
cultura da América, o planejamento é para no máximo dois filhos, nas classes mais
favorecidas, afirma Tiba (2002). Kitizinger (1978) também nos fala que a educação de
dois ou, quando muito, de três filhos tornou-se a função principal da família moderna.
Nasce assim, uma riqueza instintual, idealizada para garantir a conservação da espécie,
e espiritual, como realização humana. As crianças passaram a ser supervalorizadas,
tanto pelo Estado como pela família. Há quem afirme inclusive, que estaríamos vivendo
na era do Filiarcado (Grunstun, & Grunstun, 1984).
No que tange a psicologia, vários autores, como Badinter (1985), Chodorow
(1990), Maldonato, Dickstein e Nahoum (2000), apontam que a preocupação com os
problemas emocionais das crianças é disseminada a partir das influências da teoria
14
psicanalítica desenvolvida por Freud. É a partir deste autor que os filhos passam a ser
reconhecidos como seres humanos dotados de desejos e necessidades emocionais; e à
mãe recai a principal responsabilidade no seu desenvolvimento equilibrado e saudável.
A psicanálise argumenta que a presença física da mãe é fator decisivo para o
desenvolvimento adequado da saúde mental dos filhos.
Na psicanálise, postula-se que a mãe é o objeto primário de amor para homens e
mulheres. A mãe é responsável pela diferenciação do filho e pela futura identificação, já
que o bebê nasce em um estado de simbiose com a figura materna. A esta figura cabe
suprir o amor e as necessidades da criança. Assim, a mulher continua sendo concebida
como ser destinado a parir e amar o filho que recebe. A maternidade continua sendo
designada como uma graça recebida de Deus.
A partir das distinções feitas por Freud autor para a superação do complexo de
Édipo, fenômeno estruturador da personalidade humana, aponta as dificuldades
femininas no que diz respeito à conquista de sua identidade. E esta identidade feminina
é vinculada à capacidade de ser mãe e gerar uma nova vida. No Édipo, a menina
constrói a fantasia de que é um ser incompleto, devido à falta do pênis. Pela “inveja do
pênis”, ter um filho, é a única forma que lhe permite sua completude como mulher.
Infelizmente, apesar de serem amplamente combatidas pelas feministas atuais, como
destaca Aleixo (2005) em seu trabalho de tese, essas teorias ainda são bastante
difundidas e tomadas como verdades inabaláveis nos meios psicanalíticos.
Percebemos que a teoria freudiana é amplamente fundamentada pela concepção
familiar existente na época em que o autor pensava e escrevia. Assim, podemos supor
que não foi por coincidência que as teorias de Freud e sua filha Anna, sobre a
importância da presença e atenção maternas como determinantes para o bom
desenvolvimento psicoafetivo da criança, acabaram por corroborar e apoiar
cientificamente as tendências dos anos 50: mandar as mulheres de volta para casa!
Em uma sociedade em que a mulher normalmente trabalha fora, também é
responsável pelo orçamento familiar e cultiva interesses diversos, o fato de ter esse filho
precioso acarreta conseqüências diversas. Passados mais de trinta anos do início do
movimento feminista, ainda estamos nos debatendo sobre os efeitos das creches nos
filhos de mães que trabalham fora e culpando-as, assim como as mães solteiras ou
divorciadas, pelos problemas dos filhos (Forna, 1999).
Portanto, o que pode parecer apenas a ascensão da mulher para um status
“superior”, fruto dos movimentos feministas, mostra, também, a honerosa sobrecarga
do quádruplo papel. Hoje, nos lembra Castells (1999), resta à mulher congregar tanto o
papel de provedora como o de responsável pelos cuidados domésticos, responsável pela
criação dos filhos, além de ser também a zeladora dos vínculos afetivos familiares e
conjugais e preferencialmente, sem se queixar.
Dados do último relatório sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde
(Brasil, 2004) confirmam este fenômeno. De acordo com o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) (citado por Brasil, 2004, p.21) “mulheres representam
50,77% da população brasileira, mas, apesar de serem maioria, são tratadas como
cidadãs de segunda classe”. Sofrem discriminações nas relações sociais, principalmente
nas relações de trabalho e na sobrecarga do trabalho doméstico. Apontam que essas
condições são reforçadas pelas desigualdade de gênero, visivelmente arraigada na
sociedade brasileira.
Este relatório demonstra ainda que 71,3% das mulheres empregadas ganham até
dois salários mínimos, contra 55,1% dos homens. Aquelas que ganham mais de cinco
salários representam apenas 9,2% da população feminina economicamente ativa, contra
15,5% dos homens. As mulheres, além de ganharem menos, estão concentradas em
15
profissões mais desvalorizadas, têm menos acesso a espaços de decisão no mundo
político e econômico, sofrem mais violência (doméstica, física, sexual e emocional),
vivem a tripla jornada de trabalho, dentre outros problemas citados que comprometem o
seu desenvolvimento e saúde mental. Esses dados revelam que ainda há muito o que se
fazer para distanciar satisfatoriamente a qualidade de vida das mulheres de hoje das de
“Atenas”!
Nesse novo estilo de vida familiar, os vários fatores que interagem de forma
complexa têm um papel tanto enriquecedor como deletério para a saúde da mulher. A
realização profissional, por exemplo, proporciona, simultaneamente, benefícios na auto-
estima e acúmulo de papéis. Esta realidade atual implica numa redistribuição dos papéis
de homens e mulheres que têm resultado em sobrecarga para elas. Mas o que se observa
é que esta redistribuição caminha de forma desigual. Há um crescimento acelerado com
índices cada vez mais altos de mulheres saindo de casa e adentrando o mercado de
trabalho, enquanto a participação masculina nos trabalhos domésticos vem crescendo
lenta e gradualmente (Trindade, 1998; Chodorow, 1990; Chodorow, 1978 citado por
Castells, 1999).
Em outras palavras, poderíamos afirmar que a mulher saiu para o mercado de
trabalho sem contudo deixar de ser mãe e nem por isso, os homens se tornaram mais
pais. Só recentemente alguns começaram a participar mais ativamente da educação dos
filhos. Por outro lado, tanto homens quanto mulheres estão enfraquecidos no exercício
de suas funções. As mulheres estão confusas, desejam ter sua independência financeira,
ter sucesso profissional, serem boas amantes, serem belas, sexualmente atraentes, e
continuam tendo que atender a expectativa do mito da mãe perfeita, exigência que
implica em tempo e disponibilidade (Catão, 2001).
Diante desse quadro, Maldonato (2000) também chama atenção para esta
tendência em culpar a mulher - um aspecto importante da mentalidade higiênica e na
história da medicina, sobretudo no Brasil. A mãe do século XVIII era a auxiliar dos
médicos; no século XIX, colaboradora dos religiosos e dos professores. Já no século
XX, assume outra responsabilidade – a de cuidar do inconsciente e da saúde emocional
dos filhos. A mãe se vê, atualmente, diante de uma superabundância de conselhos,
freqüentemente conflitantes, para educar seus filhos. Normalmente, os conselhos são
sempre apresentados como “o melhor para o bebê”, ficando a mãe em segundo plano.
Em função das necessidades do filho, tudo deve ser sublimado e adiado. Roudinesco
(2003, p. 146) definiu esse fenômeno como “um fosso irreversível que parece ter se
cavado entre o desejo de feminilidade e o desejo de maternidade, entre o desejo de
gozar e o dever de procriar”. A conseqüência disto, diz Forna (1999), é que as mães se
transformaram em verdadeiros “trapezistas de circo”, voando sem rede de segurança,
sem poder se dar ao luxo de um único erro, sob pena de sentirem a famosa “culpa
materna”.
Frente a tudo o que foi exposto até o momento, podemos concluir que, revendo a
condição de vida das mulheres sob uma ótica histórica, essas têm sido subalternas,
inferiorizadas e pressionadas por uma sociedade que sempre exigiu delas muitos
deveres e obrigações e quase nenhum direito. Entre essas exigências, espera-se que a
mulher goze de boa saúde para procriar, seja sexualmente ativa e disponível, gere filhos
sadios e que, mesmo sem apoio para realizar as tarefas que lhes são atribuídas, ainda
amamente, cuide, proteja, alimente e eduque os filhos, sem reclamações e comportando-
se de maneira terna, compreensiva e sedutora (Nogueira, 2004). Qual seria, então, o
papel da DPP neste contexto histórico-social?
16
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todas estas considerações nos levaram a acreditar que a maternidade como vem
sendo concebida até nossos dias, tem influência direta no aparecimento da depressão no
pós-parto. Nossa hipótese é de que essas pressões culturais sob as quais as mulheres
invariavelmente exercem a maternidade, associadas ao sentimento de incapacidade em
adequar-se a uma visão romanceada desse estado, acabam por deixá-las ansiosas e
culpadas, suscitando dessa maneira conflitos que predisporiam a depressão pós-parto.
Isto posto, não pretendo discutir a relação da DPP a partir da perspectiva
biológica, que confere às alterações hormonais e às modificações corporais grande
influência no comportamento das mães e na a etiologia da depressão puerperal; e nem
pela perspectiva psicodinâmica, como tradicionalmente vem sendo feito sobretudo pelos
estudos psicanalíticos. Mas buscarei privilegiar o fenômeno do ponto de vista histórico-
cultural e da categoria de gênero, que aponta para os contextos e para as transformações
históricas ocorridas nos papéis sociais da mulher e dos homens e na sua integração com
a vivência atual.
Assumindo esta posição, advogamos ser imprescindível a “desculpabilização”
das mães e incentivar o compartilhamento de responsabilidades entre mães, pais,
familiares e toda a sociedade, assim como a conseqüente divisão de tarefas nos cuidados
e a responsabilidade de zelar pela educação física, emocional, cognitiva e social dos
filhos. Ou seja, todos devem se responsabilizar pela criação de um novo ser, em
especial, o pai que deve compartilhar a criação dos filhos, e não apenas se restringir a
dimensão da ajuda opcional e esporádica.
É valioso sensibilizar o profissional de saúde para a importância do fenômeno
da depressão após um parto. A falta de orientação e de apoio determina na mulher um
sofrimento físico e emocional que poderia ser evitado com medidas preventivas ou
curativas (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). Há de se considerar, com a devida
importância, que as ações assistenciais contempladas pelas normas e rotinas, ora em
vigor, não são capazes de responder de forma singular às necessidades das pacientes, tal
qual se supõe; devendo ser, portanto, revistas, dando ênfase às necessidades
diferenciadas que se alicerçam na dimensão subjetiva da mulher.
Esta mesma atitude deve ser adotada no pós-natal, período no qual as
tradicionais consultas puerperais deveriam ter seu foco ampliados para as questões
emocionais, culturais e sociais envolvidas na maternidade e na paternidade. Grupos de
acompanhamento das mães e pais, nos moldes dos que realizamos na UCB, deveriam
ser implantados junto a maternidades e bancos de leite, com o objetivo de proporcionar
às puérperas e seus companheiros um espaço de escuta emocional e apoio onde o tema
da maternidade, da paternidade e da DPP pudessem ser adequadamente abordados para
melhorar a qualidade de vida não só das mães, de seus bebês, pais e familiares. Mas
chamamos atenção que, para a efetivação dessas abordagens tanto no pré quanto no pós-
natal, é preciso trabalhar em equipe, integrando a esta o psicólogo hospitalar, com vistas
a promover também o bem estar psicológico e social das gestantes e puérperas.
Acreditamos que um pré-natal psicológico, conforme defende Bortoletti et al. (2007),
além de prevenir uma série de doenças e problemas com a mamãe e o bebê, também
serve como prevenção de uma depressão no pós-parto e para a vinculação afetiva da
tríade mãe-pai-bebê e a posterior parentalidade compartilhada.
Por fim, defendemos a necessidade de avaliar e qualificar a forma como
profissionais da saúde, têm auxiliado as mães e as famílias que estão sofrendo no pós-
17
parto. Nessa perspectiva, vale atentar para a necessidade de reformulações do modelo
assistencial ora vigente, no sentido de considerar a maternagem como uma tarefa que
precisa ser aprendida pela mulher e protegida pela sociedade. Em termos práticos,
sugerimos a implantação de um “pré-natal psicológico” que incluísse a figura paterna,
os avós, onde os médicos devessem se preocupar com a mãe e com o pai, tanto em
termos orgânicos como psicológicos. Buscamos, ainda, alertar para a necessidade de
uma análise crítica sobre o diagnóstico de DPP enquanto entidade padronizada,
estimulando a sua despatologização e o apoio psicológico precoce em maternidades.
Finalmente, esperamos ter trazido uma nova contribuição para iluminar a compreensão
sobre o processos de subjetivação das mães com DPP, na esperança de no futuro ajudar
os profissionais de saúde e os acadêmicos que atuam em áreas da saúde perinatal e do
desenvolvimento humano a evoluir em sua compreensão e maneira de pensar a mãe que
se apresenta depressiva no pós-parto. Esperamos que estas reflexões tenham nos
permitido criar fissuras em territórios tão cristalizados!
Referências bibliográficas
18
6. Rocha, F. L. (1999). Depressão puerperal – Revisão e atualização. Jornal Brasileiro
de Psiquiatria. 48 (3), 105-114.
11. Serrurier, C. (1993). Elogio às mães más. São Paulo: Summus Editorial.
12. Maldonado, M. T.; Dickstein, J. & Nahoum, J. C. (2000). Nós Estamos Grávidos.
São Paulo: Editora Saraiva.
16. Catão, I. (2002). A tristeza das mães e seu risco para o bebê. Em Corrêa Filho, L.;
Corrêa, M. E. G. & França, P. S.(Orgs.), Novos olhares sobre a gestação e a criança até
os 3 anos (pp. 221-231). Brasília: L.G.E. Editora.
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diretrizes/ Ministério da Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.
Brasília: Ministério da Saúde.
19
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CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Coord. Organização Mundial da
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Paz, M. G. T., & Tamayo, A. (Orgs.), Escola, saúde e trabalho: estudos psicológicos.
(pp.179-198). Brasília: Editora da UnB.
20
11
A TEORIA DE GÊNERO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO
DA MATERNIDADE E DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO
O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o nascimento de um bebê?
Como entender que esse momento considerado tão feliz e esperado do ciclo vital
familiar se transforme em um momento depressivo? Por quê a chegada do bebê parece
ter o poder de provocar um estado depressivo na mãe?
No período pré-natal, muitas vezes, as preocupações giram apenas em torno do
chá de bebê, do quarto, do enxoval e das demais providências práticas a serem tomadas
para a chegada de um filho. É rara a discussão séria acerca das dificuldades emocionais
que a grande maioria das mães vivencia no período do parto e pós-parto, bem como
sobre as tarefas familiares que o casal tem a cumprir para ultrapassar esta etapa. Quando
esses temas surgem, geralmente ocorrem em tons de brincadeira e de forma caricata,
que não provocam a reflexão necessária.
Certamente, carregar no próprio corpo um novo ser pode ser uma oportunidade
ímpar e fascinante. Uma promessa de esperança, um potencial de luz, de continuidade e
de amor. Entretanto, a maternidade implica em alterações em diversos espaços da vida
da mulher, sejam eles pessoais, emocionais, profissionais ou sociais, que podem
acarretar em mais sofrimento do que se pode supor.
Ser mãe, no sentido de gerar é uma possibilidade exclusiva da mulher. Inerente a
essa realidade, entretanto, é comum essa potencialidade originar crises, conflitos e
sentimentos contraditórios entre si. Erikson (1976) ilumina nossas idéias nessa direção,
ao lembrar-nos que cada uma das fases evolutivas do ciclo vital de uma pessoa carrega
em si uma situação potencialmente crítica, a qual pode ocasionar uma crise, sendo esta
entendida como uma ruptura do status quo psíquico que requer novas respostas
adaptativas. Portanto, a crise da depressão pode ocorrer em qualquer época da vida,
inclusive durante momentos socialmente felizes, como o parto e o nascimento de um
filho (Ribeiro, 2002).
O puerpério2 é um desses períodos vulneráveis, constituindo-se, portanto como
um período de risco psiquiátrico aumentado no ciclo de vida da mulher (Erikson, 1976).
Na fase pós-natal, a sociedade espera que a mãe esteja muito feliz e satisfeita com o seu
novo rebento. Todos cobram da mulher grávida estar radiante: seu companheiro, sua
família, seus amigos e até os profissionais que a assistem na gestação, e, por isso,
geralmente desconsideram seus reais sentimentos. As mesmas atitudes são vistas no
pós- parto.
Poucos sabem, e ainda trata-se de um tabu na sociedade ocidental, que a
maternidade é vivida, por muitas mulheres, com mais sofrimento do que prazer
1
Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Brasília; profª do curso de graduação em psicologia
e mestrado em gerontologia da Universidade Católica de Brasília. Coordenadora do curso de
especialização em psicologia hospitalar da mesma universidade. Trabalha com gestantes e puérperas
desde 2001.
2
O puerpério é definido como o período que sucede o parto, podendo estender-se a até sessenta dias após
o nascimento do bebê (Corrêa & Corrêa, 1999).
(Lucena, 2004). Ao contrário do esperado, a literatura, minha experiência como mãe e
nossa prática com gestantes e puérperas3 nos mostram que a maioria das mulheres,
sobretudo as de classe média e alta, encontra na vivência da maternidade algum nível de
sofrimento psíquico, físico e social no período pré e pós-parto. Normalmente, nessas
fases, observa-se nas mães uma vivência relativamente contínua de tristeza ou de
diminuição da capacidade de sentir prazer (Santos, 1995), a qual poderá ser transitória
ou se cronificará caso não sejam assistidas adequadamente.
Para Frizzo e Piccinini (2005) os transtornos emocionais que atingem as
mulheres no período pós-parto são de três tipos: o baby blues (melancolia da
maternidade), a psicose puerperal e a depressão pós-parto (DPP), sendo esta definida
como é um episódio depressivo não psicótico. Uma depressão é classificada assim
sempre que iniciado nos primeiros doze meses após o parto. Sua manifestação clínica é
igual a das depressões em geral (Rocha, 1999; Baptista, Baptista & Oliveira, 2004). Ou
seja, a pessoa sente uma tristeza muito grande de caráter prolongado, com perda de
auto-estima, perda de motivação para a vida, é incapacitante, requerendo na maioria das
vezes o uso de antidepressivos (Ballone, 2001; Rosenberg, 2007). Sobre a depressão
pós-parto Rosenberg (2007) afirma que esse tipo de depressão apresenta uma incidência
no Brasil de aproximadamente 10% mas pode chegar até 20% das dos casos após o
parto.
É sabido que a DPP acontece com mulheres de todas as idades, classes sociais e
de todos os níveis escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que desejam muito ter um
filho, bem como aquelas que não aceitam o fato de ter engravidado. Pode ocasionar-se
no nascimento do primeiro filho, do segundo, do terceiro, ou de outros. Os autores que
estudam essa temática têm posições diversas sobre o aparecimento da DPP, e a literatura
não é concorde quanto a sua etiologia (Santos 2001; Botega & Dias, 2002; Rosenberg,
2007). Mas, se a mãe apresentou alguma história de depressão na sua vida, ela requer
mais atenção dos familiares e profissionais de saúde desde a gestação (Botega & Dias,
2002); o que normalmente não é feito nem mesmo pelos obstetras que as acompanham
no pré-natal.
A percepção de sentimentos de tonalidades negativas e contraditórias,
justamente no momento quando só deveria existir espaço para a plenitude e a felicidade,
provoca em muitas mães e profissionais uma sensação de estranhamento e inadequação.
Tanto na gestação quanto no pós-parto, são comuns assertivas do tipo: “Como você
pode estar triste, com um bebê tão lindo nos braços?”. Se a mulher ousa expressar
qualquer sentimento negativo, mesmo em relação à gestação ou a uma não–aceitação
temporária da gravidez, ou por estar enjoando muito, ou por ter parado suas atividades
pelas intercorrências de uma gravidez de risco, logo se diz que “ela está rejeitando o
filho”.
Esse tipo de associação é superficial, de cunho excludente e pejorativo, que
acarreta na caracterização da mãe com DPP como uma “aberração da natureza”. Toda
essa miscelânea de sentimentos e conflitos que a gestante geralmente vivencia não
significa que ela esteja rejeitando o filho, mas toda a complexidade da situação, para a
qual talvez não estivesse preparada (Bacca, 2005). Assim, Serrurier (1993), Maldonato
(2000), Rohenkohl (2005), Bacca (2005) e Arrais (2005) alertam para o fato de que
muitas mulheres acabam por rejeitar não o bebê em si, mas a maternidade como
instituição e muito do que isso acarreta, como por exemplo, a mudança de vida, os
sacrifícios e as obrigações. Associar estados de humor entristecido ou quadros de DPP
com rejeição ao filho, como comumente é feito não só pelos familiares e pelo senso-
comum, mas também por muitos profissionais de saúde, e da educação, é um grande e
3
A autora realiza grupos de atenção psicológica ás mães com DPP, desde 2001, na UCB.
2
preconceituoso equívoco, que acentua ainda mais o sofrimento e isolamento materno e
deve ser terminantemente combatido.
Assim, a mulher nesse caso sofre duplamente: primeiramente, pelos sentimentos
negativos vivenciados e, segundo, pela culpa em senti-los. Tudo isso, pouco alivia a dor
da mãe com depressão, quando não atrapalha ou agrava o seu sofrimento, pois a isola, a
culpabiliza e a impede de pedir ajuda. Por sentirem-se na “contra-mão” do que é
socialmente esperado e desejado, a mãe quase sempre reluta em relatar seu incômodo a
outros e a pedir ajuda profissional, mesmo que sinta muitas dificuldades no desempenho
de tarefas maternas e domésticas e que consiga perceber a sua alteração no humor
(Rosenberg, 2007).
Por isso, este sofrimento psíquico é vivido isoladamente e, o que é pior, sem um
acompanhamento profissional especializado, podendo acarretar na cronificação dos
sintomas depressivos ou somáticos e num prejuízo para a relação mãe-bebê-pai. Santos
(2001, p. 20) reafirma isso ao mostrar-nos que “a depressão pós-parto é raramente
trazida para o consultório por quem a experimenta, é vivida com dolorosa perplexidade,
com questionamentos morais, mas, sobretudo, em silêncio”. A autora acrescenta ainda
que este é um fato constatado em pesquisas estrangeiras e que se repete no Brasil.
Isso acaba acarretando não só em uma pobreza estatística sobre o fenômeno,
como também em um parco interesse e um número restrito de publicações científicas
sobre o tema. Esta realidade se reproduz na psicologia, haja vista a constatação de nossa
revisão bibliográfica revelar que a DPP é um tema ainda pouco explorado (Arrais,
2005). Dentre os escassos trabalhos psicológicos que abordam esse assunto, muitos o
interpretam do ponto de vista do bebê, levando em consideração apenas as
conseqüências negativas da DPP para o desenvolvimento e a constituição da
personalidade deste, como nos estudos de Camorotti (2001), Catão (2002), Ribeiro
(2002), Andrade (2002), Schwengber e Piccinini (2003), Frizzo, e Piccinini (2005) e
Rosenberg (2007). Estes não se atentam aos profundos prejuízos que ela pode trazer
também para as mães e para a díade mãe-bebê, e até mesmo, para a tríade mãe-pai-bebê.
Os últimos relatórios sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil,
2004) nos confirmam essa tendência unilateral em prol do bebê.
Particularmente, nós advogamos que a DPP e seu prolongamento pode ter
conseqüências ruins não só para o desenvolvimento emocional e cognitivo do bebê,
como também sobre o bem-estar da mulher, sua saúde física e psíquica, seus
relacionamentos conjugal, familiar e social, a qualidade de sua vivência materna, e
sobretudo, para o seu processo global de subjetivação como mulher.
Focalizamos a DPP do ponto de vista da mulher/mãe sem, contudo, esquecer o
aspecto essencial do relacionamento mãe-filho, mas procurando excluir qualquer
determinismo linear do tipo causa e efeito. Para nós, existe uma diversidade tão grande
de sentidos subjetivos para as mães, para os bebês e seus familiares, que nos impede de
manter um olhar reducionista e linear sobre a maternidade e a depressão após o parto.
Isso nos impulsiona para olhar a complexidade destes fenômenos e dos sujeitos neles
implicados.
Assim, apesar de terem muitos sentidos que podem ser subjetivados de forma
semelhante na vivência da maternidade e do pós-parto, cada mulher terá uma vivência
única e singular, que não deve ser padronizada e nem “vendida” para as demais como o
“retrato da maternidade” e nem “enclausurada” no diagnóstico da DPP. Em outras
palavras, levantamos nesta reflexão o seguinte questionamento: seria a DPP uma
psicopatologia, classificada no CID-10 (1993) sob a rubrica de F53.0, ou poderíamos
suspeitar tratar-se apenas de mais uma maneira de vivenciar a maternidade? Talvez seja
ela uma das formas mais sofridas, porém não menos legítima que as demais formas
3
mais convencionais de ser mãe. Através dos sintomas depressivos, a mãe não estaria
apenas revelando o lado obscuro da maternidade, socialmente negado?
Assumimos que a motivação para gestarmos o presente trabalho se deve
principalmente a algumas razões de ordem sócio-histórico-culturais, as quais cremos ser
fundamentais considerar quando se pensa na mãe com DPP, como, por exemplo, o
fenômeno da entrada da mulher no mercado de trabalho. Este fenômeno vem
provocando transformações tão profundas no casamento, na família e na sociedade e na
saúde da mulher (Diniz, 1999) que nos levou a acoplar a categoria de gênero ao nosso
olhar, com a finalidade de ajudar a compreender a saúde da mulher nesse contexto.
Dessa forma, não seria a DPP, da forma como vem se apresentando hoje, também uma
conseqüência desta nova realidade?
A pressão social sobre a mãe, sobretudo nos dias atuais, em que a mulher
acumula várias outras funções, faz com que esta não se sinta autêntica e sinta-se
incapaz, “defeituosa” e incompetente para ser mãe; levando-a muitas vezes à depressão.
Esses elementos apareceram como atributos relacionados à subjetividade social
dominante sobre a mulher e a maternidade e, em vários casos, estavam associados a
“clichês sociais” que têm acompanhado as mulheres nos últimos séculos, como: “ser
mãe é padecer no paraíso”, “toda mulher nasceu para ser mãe”, “toda mãe tem uma
predisposição inata ao sacrifício”. Esses sentidos, em um imaginário de valores,
“aprisionam” as mulheres em uma posição volitiva em serem “as mães perfeitas”.
De maneira geral, as crenças sobre a maternidade são divulgadas como se
fossem tradicionais e naturais, e por serem concebidas assim, essas crenças se tornam
inatacáveis. Contudo, é possível verificar na história da humanidade que essas idéias
têm poucas centenas de anos. A boa mãe, tal qual conhecemos hoje, com sua propensão
natural ao sacrifício, seu amor universal e automático pelos filhos e sua completa
satisfação nas tarefas da maternidade, não foi sempre assim.
Ao contrário disso, Forna (1999) nos conta que esse estilo de maternagem teve
seu início em 1762 a partir da publicação de Émile, por Rousseau, quando este criticou
as mães que enviavam os filhos para as amas-de-leite, o que era bastante comum até
esta época. Ele recomendava, enfaticamente que as próprias mães amamentassem e
criassem seus filhos e as recriminava por darem preferência a outros interesses.
Segundo Badinter (1985) dá-se aí, o início à injunção obrigatória do amor materno.
Serrurier (1993) também afirma que é deste Émile, que estamos condenadas a ser mães
e a ser boas mães. Não há alternativa para a mulher: a vocação materna é natural,
instintiva e obrigatória!
Contrária às idéias de que a maternidade só comporta o amor irrestrito e
apoiando a perspectiva das teorias do gênero, segundo a qual a maternidade é construída
e não instintiva, a maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é
um constructo social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas também,
quem é responsável por eles (Forna, 1999). Culturalmente, as representações sociais da
maternidade estão fortemente calcadas no mito de mãe perfeita. Esta concepção assume
proporções insustentáveis, segundo as quais acredita-se que a maternidade é inata à
mulher. É a idéia de que a maternidade é parte inerente ao ciclo evolutivo vital
feminino. Neste sentido, supõe-se que a mulher, por ser quem gera os filhos, desenvolve
um amor inato pelas crianças e fica sendo a pessoa melhor capacitada para cuidar delas.
(Falcke & Wagner, 2000).
4
Compreender a maternidade como fenômeno cultural, e não natural e biológico,
é o primeiro passo para podermos conhecer as implicações deste conceito na
constituição subjetiva da mulher enquanto ser imerso em um momento histórico e
social. Para Serrurier (1993), não podemos marginalizar o quadro sociológico que, na
sua opinião, com a qual concordamos inteiramente, é responsável, em grande parte,
pelas dificuldades que as mulheres experimentam para serem boas mães. Desde já, cabe
lembrar as palavras de Beauvoir (1980), neste sentido: “ninguém nasce mulher: torna-se
mulher” (p. 9). Da mesma forma, acreditamos que nenhuma mulher nasce mãe, mas
torna-se mãe.
Sendo assim, é mister considerar que o exercício da maternidade é articulado
com os discursos ideológicos dominantes, ligados à ciência, à Igreja e à economia
social, fazendo com que seja percebido como um fenômeno instintivo, arraigado na
estrutura biológica feminina, independente das circunstâncias de tempo e espaço que o
determinam. De Scott (1995), vamos tomar o conceito de gênero, que o historiciza e
propõe seu uso como, categoria analítica e instrumento metodológico para entender
como ao longo da história, se produziram e legitimaram as construções de saber/poder a
partir da diferença sexual. Ao fazê-lo, esta autora abre uma nova perspectiva teórica
para a “desconstrução” das hierarquias e desigualdades de gênero baseadas na diferença
biológica, como se fossem verdades universais. A partir de diversas representações da
feminilidade, foram deduzidas as posições de poder, submissão, complementaridade ou
exclusão das mulheres no seio da sociedade (Aleixo, 2005). Nos próximos tópicos,
veremos que quaisquer que tenham sido as variações ligadas à primazia atribuída ao
sexo ou ao gênero percebemos sempre o traço das modificações sofridas pelas mulheres
e pelas famílias ao longo dos séculos.
Na verdade, os estudos antropológicos não falam de uma permanência histórica
e cultural da maternidade tal como é concebida nos dias de hoje (Viana, 2004) 4. A
mulher reprodutora, parideira, obviamente sempre existiu, mas o conceito da mulher
materna-divina, que faz a maternagem exclusiva dos filhos, data de poucos séculos
atrás. Por isso, a maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é
um constructo social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas, também,
quem é responsável por eles (Forna,1999).
4
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em
outubro/2004, no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
5
tentou Adão, recaindo sobre ela a culpa pela separação entre nós e a divindade – com a
conseqüente mortalidade.
O Paraíso significava um mundo onde havia harmonia, imortalidade, eternidade
e ausência de dores e penas. Não nascer e não morrer - infinitude. Chauí (1985 e 1984);
Muszkat (1994) e Del Priori (2004) explicam que a descoberta do sexo foi o Mal, que
condenou a humanidade à dor, à mortalidade e a finitude por culpa da mulher, já que
Adão era obediente e não tocava no fruto proibido. “Os desregramentos, o pecado e a
danação originaram-se da fragilidade moral do sexo feminino” (Del Priori, 2004, p. 25).
Por isso, desde Eva, as tentações da carne e a volúpia sexual eram predicados
femininos, representando a mulher como fraca e suscetível ao pecado, cujo o corpo
corresponde ao lugar de todos os perigos!
Por essa razão, “a mulher, eternamente condenada pelo erro de Eva, tinha que
permanecer vigiada e controlada” (Del Priori, 2004, p. 46). A Igreja e o Estado
exerciam forte pressão no controle da “maligna” sexualidade feminina, justificando
através de argumentos divinos que o homem lhe era superior, cabendo a ele autoridade
sobre a mulher. O feminino era visto como fonte de desordem que deveria ser
controlado pelas leis do casamento, em conformidade com a ordem marital
(Roudinesco, 2003). Dessa forma, foi-se incorporando à natureza feminina um estigma
que predispunha à transgressão e à maldade, revelando-se de maneira mais extrema nas
práticas de bruxaria.
Durante toda a Idade Média, a imagem da mulher estava relacionada às
tentações, ao Diabo, pois ela representava o desejo sem fim e sem limites que poderia
entorpecer e perverter os homens. Assim, de feiticeira à possuída, e desta à louca, há a
interiorização do pecado, tornando-a demoníaca em sua alma (Chauí, 1984 e 1985;
Muszkat, 1994; Del Priori, 2004). O controle do corpo, através de castigos físicos e
disciplina, foi instituído como forma de reeducá-lo e torná-lo dócil e apto para o
trabalho e, principalmente, menos ameaçador.
Assim, de fêmea insaciável, a mulher se converte num ser quase assexuado,
frígido incapaz de viver o prazer e o orgasmo, fisicamente constituído apenas para a
procriação, desde que restrito ao casamento e sem prazer, afirma Chauí (1985). Porém,
mais do que apresentar as formas visíveis e invisíveis de repressão sexual, através da
análise da mulher medieval e suas relações com a Igreja, Chauí (1984 e 1985) mostra
que a construção contemporânea de Eva e da Virgem Maria carrega uma ambigüidade
que perpassa nosso próprio presente: a mulher é responsável pela ciência do bem e do
mal - por sua imprudente curiosidade por seu desejo sexual irrefreável. É também
responsável pela semi-imortalidade e semi–eternidade da espécie, pelo seu resgate
parcial, através da procriação. Apenas sob a figura da Mãe Virgem poderia devolver ao
menos uma semi-imortalidade ao homem, ao gerar a vida, dedicando-se à tarefa da
perpetuação da espécie (Chauí, 1984 e 1985; Muszkat, 1994; Roudinesco, 2003; Del
Priori, 2004). Assim, caberia às mulheres transmitirem a vida e a morte (Roudinesco,
2003).
Uma vez tornando-se mãe, a mulher honrada, de família e casada na igreja,
afastava-se da Eva e aproximava-se de Maria, a virgem que concebeu sem pecado.
Assim, ratifica-se o surgimento do arquétipo do modelo de Maria predominante entre as
mulheres “direitas”. Para isso, suas vidas deveriam ser restritas à família, à igreja, ter
uma vida assexuada com fins apenas procriativos, serem fracas, submissas, passivas e
sem participação na vida pública. Ademais, eram educadas para o casamento, para
cuidar da casa e dos filhos e, ainda, tolerar as relações extraconjugais de seus maridos.
Del Priori (2004) ressalta que esses valores eram incorporados pelas mulheres por meio
6
da imposição da Igreja, da família e por muitos mecanismos informais e formais de
coerção. Chauí (1985) complementa essa afirmativa com a seguinte questão:
Portanto, afirma Roudinesco (2003) que a mulher deve, acima de tudo, ser mãe,
para que a sociedade seja capaz de resistir à tirania do gozo feminino que se acredita ser
capaz de eliminar a diferença entre os sexos, e leve à decadência dos valores
tradicionais da família, da autoridade do pai e ao caos social. Tudo era pensado como
se, “no exato momento em que as mulheres despertassem do longo sono de sua sujeição,
a família fosse ameaçada de ser ela própria destruída” (Roudinesco, 2003, p. 145).
A lógica apresentada por todas essas autoras me pareceu bastante plausível para
introduzir o tema da maternidade. Este percurso histórico pareceu-me dar sentido para a
imposição – violenta e implacável - da maternidade, da qual as mulheres ainda são
vítimas. Até hoje elas estariam pagando pela maldição que impuseram à humanidade ao
condená-la a finitude, à mortalidade, à dor e ao sofrimento, através da maternidade –
sua única chance de se redimir. E para que ela pague este preço, sem resistir ou
reclamar, veremos que foi arquitetado sutilmente e ideologicamente o processo de
naturalização da maternidade.
7
atua, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e
independentemente de qualquer aprendizado (...) Tendência natural; aptidão inata” (p.
953).
Torna-se possível, desta forma, duplicar a ideologia do instinto. Instinto
materno é definido como um comportamento gerador, mantenedor e protetor da vida, e,
conseqüentemente, a qualidade derivada deste instinto é o amor materno. Vistas sob a
ótica do amor materno, fica fácil considerar as mulheres como “instintivamente” mais
sensíveis do que os homens, e esta sensibilidade compensaria a exclusão do mundo
racional, conforme ressalta Chauí (1985).
O instinto materno, ao mesmo tempo que mantém as mulheres num suposto
mundo natural, as transforma em produtoras desta mesma ideologia do “amor materno e
da sensibilidade”. Além do naturalismo, algo mais está presente no corpo feminino: o
instinto e amor materno são formas de controlar e reprimir a sexualidade feminina. A
natureza feminina permite apenas uma sexualidade procriadora.
Mas ser mãe é, de fato, algo da natureza da mulher? Será o amor materno um
fenômeno inato? O instinto materno de fato existe? Ou será um fenômeno construído
socialmente? Certamente, estas são questões que não povoam as mentes das mulheres
em geral, pois, ainda hoje, a maternidade é percebida com algo da ordem do
inquestionável! É próprio ao senso comum conceber instituições estáveis da sociedade
antes como formas ‘naturais’ de organização da vida coletiva, que como produtos
mutáveis da atividade social. No caso da família, entretanto, a naturalização é
extremamente reforçada pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito,
privilegiadamente, “à regulamentação social de atividades de base nitidamente
biológica: o sexo e a reprodução” (Durham, 1983, p.15).
O processo de naturalização dos fenômenos é o procedimento privilegiado da
ideologia dominante, sobretudo a patriarcal:
Sendo “por natureza” mães e criaturas sensíveis, as próprias mulheres se
farão agentes de violência quando agirem contrariando sua “natureza”, por
exemplo, reivindicando que a maternidade seja reconhecida como um direito
que pode ou não exercer, em lugar de tomá-la como instinto, ou
reivindicando o direito de agirem como seres pensantes.(Chauí, 1985, p.38).
Assim, entendemos que Chauí (1985) faz uma denúncia grave e nos alerta para o
fato de que a violência mais perfeita é aquela que acontece sem que percebamos,
instaurado sutilmente, como algo natural, pré-determinado. Através de uma sutil
inversão ideológica, a violência passa a ser imputada ao “desnaturamento” desejado
pelas mulheres. A violência agora consistirá, portanto, em constranger a vontade das
mulheres, fazendo-as interiorizar a sua “natureza” - que ela consinta em ser, de jure, o
que é realmente de facto. A hipótese de Chauí é que a idéia e a imagem de uma
“natureza feminina” permaneçam até hoje, ainda que difusa e diluída, pelo fato de que o
corpo feminino tenha sido o elemento fundamental para as ideologias da feminilidade.
A Igreja, o Estado, bem como a ciência, acabaram por fortalecer a idéia de
instinto maternal, idéia típica da teoria evolucionista, que defendia a noção de que a
natureza emocional da mulher era conseqüência direta de sua fisiologia reprodutiva
(Laqueur, 2001; Aleixo, 2005). Há, portanto, um discurso sobre as mulheres e não das
mulheres (Chauí,1985 e 1984; Muszkat, 1994; Del Priori, 2004; Aleixo, 2005). Isto
acarreta que, neste processo circular de naturalização-culturalização-naturalização da
mulher, faltou a ela justamente aquilo que a tornaria sujeito de fato e de direito: a
autonomia do falar, do pensar, do agir, do escolher. No processo de subjetivação da
mulher, observa-se, então, que lhe foi dada finalidades internas a partir do exterior.
Entendemos, com isso, que a força do instinto maternal se impõe na vida das mulheres
8
há séculos, como algo natural, predestinado e sem possibilidades de escolha! Como nós,
mulheres, poderíamos ousar duvidar desta ordem secular?
A obra de Laqueur (2001) intitulada Inventando o Sexo: corpo e gênero dos
gregos a Freu., foi, para mim, a primeira grande responsável por esta desconstrução do
sexo “inato”. Laqueur (2001) defende a tese de que o sexo biológico também é uma
construção social, a serviço dos interesses sociais/morais. Em suas pesquisas, ele
descobriu que antigamente o modelo de sexo era único. O corpo masculino era o
modelo de perfeição e o corpo da mulher seria apenas um corpo masculino
defeituoso/inferior.
Para Aristóteles e Galeno (citados por Fávero & Mello, 1997; Laqueur, 2001;
Roudinesco, 2003; Aleixo, 2005) os órgãos femininos eram uma forma menor dos
órgãos masculinos e, conseqüentemente, a mulher era um homem menos perfeito. Nesse
sentido, a mulher opõe-se ao homem sendo “passiva”, enquanto este é ativo. Isso faz
dela uma “réplica invertida do homem”, como prova a posição de seus órgãos: o útero
era o escroto; a vulva era o prepúcio; os ovários eram os testículos e a vagina era um
pênis invertido. Assim, tal qual o significado da criação de Eva a partir de uma costela
de Adão, pensa-se a humanidade como masculina e a mulher é definida em relação ao
homem, e não em relação a ela mesma (Chauí, 1985; Muszkat, 1994; Ehrhardt, 1996).
Laqueur (2001) mostra que, somente no século XVIII, os dois sexos –
masculino e feminino – foram inventados como um novo fundamento para o gênero. A
partir desse novo modelo sexual, houve um grande esforço para se descobrir as
características anatômicas e fisiológicas que distinguiam o homem da mulher. Assim a
mulher ganhou um novo status: já não era mais um “homem imperfeito”, mas era um
outro ser anatomicamente diferente. Mas, se, por um lado, esta diferenciação foi
positiva no sentido de marcar um lugar próprio da mulher, não impediu que fosse
agregado a este corpo diferente um valor inferiorizado. Destarte, a mulher não era
apenas diferente do homem, mas continuava ser vista como intelectualmente inferior
pouco racional e, portanto, toda instinto e passional.
Del Priori (2004) confirma esta concepção de mulher ao nos mostrar que para a
maior parte dos médicos do Séc. XVI, a anatomia feminina era diferente não apenas por
um conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas
características morais, sendo “o corpo da mulher destinado a procriação e assuntos
divinos” (p. 78). O lugar da mulher era definido, portanto, através desta função:
“penetrada pelo homem deitado sobre ela, a mulher ocupa o seu verdadeiro lugar”
(Roudinesco, 2003, p. 24).
Autores como Badinter (1985), Chauí (1985), Muszkat (1994), Laqueur (2001) e
Del Priori (2004) afirmam que nesse contexto, onde medicina e igreja comungavam do
mesmo discurso, continuaram sendo construídos conceitos sobre o funcionamento do
corpo feminino sublinhado por sua inferioridade em relação ao corpo masculino. Para
eles, a mulher tinha sido criada por Deus para servir à reprodução da espécie,
relacionando o estatuto reprodutivo da mulher (parir e procriar) a outros de caráter
metafísico, como ser mãe, submissa, frágil, terna.
Concepções que beiram ao cômico, apresentadas por Spencer (1975, citado por
Fávero & Mello, 1997), revelam esta inferioridade e predestinação à procriação:
As energias da mulher eram canalizadas diretamente para preparação da
gravidez e da amamentação, reduzindo sua energia para o desenvolvimento
de outras qualidades. O resultado era uma parada precoce na evolução da
mulher, o que explica seu estágio de desenvolvimento inferior ao do homem.
9
A grande preocupação dos médicos e pesquisadores daquela época, de acordo
com Del Priori (2004), era compreender o sistema reprodutor feminino, tendo em seus
estudos destacada a função de madre, nome dado ao útero, órgão este que era descrito
como uma área nebulosa da natureza feminina (Laqueur, 2001; Del Priori, 2004).
Acreditava-se, ainda, que o princípio da vida existiria no sêmen masculino, tendo a mãe
a função hospedeira de receber e nutrir o feto. Assim, “dependente do homem,
instrumento a serviço da hereditariedade da espécie, este é o corpo da mulher, visto
pelos médicos” (Del Priori, 2004, p. 84).
Essas idéias eram reforçadas por argumentos biológicos que consideravam os
instintos peculiares para cada sexo como sendo a fonte primária das diferenças sexuais,
e o instinto feminino definia-se pela submissão ao comando. A idéia “vendida” parece
ser a de que a mulher é toda instinto e que, portanto, foi programada para procriar e
cuidar. Essa deve ser sua aspiração e sua realização e, por isso, deverá ser sua fonte
primeira de gratificações (Chauí, 1985; Badinter, 1985; Serrurier, 1993; Trindade 1993;
Muszkat, 1994; Fávero & Mello,1997; Parker, 1997; Laqueur, 2001, Ribeiro. &
Almeida, 2003 e Del Priori, 2004).
No caso das mulheres, a permanência da ideologia naturalizadora é nítida, pois
seu corpo procriativo é invocado como uma determinação natural; determinação esta
que faz com que a mulher permaneça irrevogavelmente ligada ao plano biológico (da
procriação) e ao plano da sensibilidade (na esfera do desconhecimento). Maternidade,
como instinto e como destino, e sensibilidade, numa cultura que valoriza a razão em
detrimento da emoção, são algumas construções ideológicas curiosas, que, segundo
Chauí (1985), servem para manter a idéia de “natureza feminina” como uma rocha
“natural” no mundo historicizado. Assim, a naturalização seria o procedimento
privilegiado da ideologia dominante, ao qual a mulher vem sendo submetida há séculos.
Viana5 (2004) vai além disso. Para ela, o mito do instinto e do amor materno
sugerem mais do que questões ideológicas. Eles se remetem também a questões
mercantilistas e posteriormente capitalistas, na tentativa de manter a mulher fora do
mercado de trabalho. Na opinião de Chodorow (1990), a maternação das mulheres é um
dos poucos elementos universais e duráveis da divisão do trabalho por sexos. Até agora,
todos os sistemas sexo-gênero têm tido dominação masculina, o que demonstra, na
opinião dessa autora, que a maternação das mulheres é um aspecto central e definidor da
organização social do gênero, e implica na própria construção e reprodução da
dominância masculina.
Freud, de acordo com Roudinesco (2003), também considera equivocada toda
esta argumentação naturalista. Ao seu ver, não existem nem instinto materno e nem raça
feminina, pois para ela, o parâmetro não é simplesmente anatômico, mas simbólico em
torno do falo. O falicismo é pensado como uma instância neutra, portanto comum aos
meninos e meninas. Apesar da eterna atitude interrogativa acerca do “que quer uma
mulher?” e de considerá-la como um “continente negro”, Freud não encorajava as
mulheres a exercerem uma profissão, a militarem por igualdade ou a concorrerem com
os homens no domínio da arte e da sublimação. Para ela, era melhor restringi-las “à
nobreza de uma arte da qual foram iniciadoras, a textura e a tessitura” (1921, citado
por Roudinesco, 2003p. 134).
O objetivo de Chauí, ao levantar dúvidas sobre a “natureza”, “o instinto
materno”, a ”liberdade” e a “vontade” feminina, era o de sugerir que a forma e o
conteúdo dessas vivências nunca foram determinados do interior, mas sempre do
5
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em Palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em
outubro/2004, no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
10
exterior. Nunca pelas próprias mulheres, a partir de sua interioridade/exterioridade
vividas e refletidas. De forma que a transformação do ser “natural” para ser “de desejo”
e finalmente para um sujeito “livre” foi feita, de acordo com Chauí (1985), sob a forma
de outorga da subjetividade às mulheres.
Assim, fica clara a “armadilha social” que denunciam Chauí (1985) e Beauvoir
(1980). Ou seja, não é possível obrigarmos uma mulher a assumir a maternidade. O que
se pode fazer é cercá-la por uma realidade em que se tornar mãe é a única saída que lhe
resta: os costumes do casamento, a proibição dos anticoncepcionais, do aborto e do
divórcio foram alguns dos artifícios utilizados para a construção desse cerco. Dessa
forma, a mulher se vê sem alternativas, a não ser cumprir com o seu papel imposto pela
sociedade: ser mãe.
Por meio das concepções de Chauí (1984 e 1985) e Del Priori (2004), que são na
sua maioria corroboradas por Badinter (1985), Serrurrier (1993) e Forna (1999),
entendemos que o estilo de maternidade que herdamos hoje foi moldado em um
determinado tempo da história por necessidade e utilidade e, portanto, não é
naturalmente nem instintivamente determinado como nos é imposto crer. Diante dessas
definições, o que poderíamos pensar de uma mulher que não quer ter filhos? Ou de uma
mulher com DPP? Seriam elas, mulheres normais ou desviantes patológicas?
Portanto, apesar do crescente questionamento sobre o amor materno
incondicional e inato, a visão da mãe ideal, responsável pelo bem-estar psicológico e
emocional da família, ainda é bastante presente na literatura e no senso comum
(Badinter, 1985). Acreditamos que esta insistência em que um certo estilo de
maternidade é “natural”, entra em choque com a vivência da maternagem, o que leva ao
sentimento de “mãe desnaturada” e há muito sofrimento. Mas também, tem levado
muitas mulheres, na atualidade, a questionarem cada aspecto do que fazem, pensam,
sentem, e a avaliar suas próprias experiências, buscando flexibilizar o padrão rígido e
determinista cultuado socialmente.
Há algum tempo, observa-se que as mulheres de hoje não são mais criadas
somente para contrair um bom casamento e criar filhos. Ou seja, a ênfase da educação
feminina não está mais no papel materno, mas sim na preparação delas para enfrentar o
mercado de trabalho. Sobretudo nas classes sociais mais favorecidas (Durham, 1983),
elas são criadas para serem boas profissionais e terem seus próprios sustentos. Essa
mudança de foco educacional fez com que as mães não mais criassem suas filhas
somente para exercerem exclusivamente o papel de mães.
Não há dúvidas de que a inserção da mulher no mercado de trabalho,
contribuindo para o declínio do sistema patriarcal e minando a hegemonia masculina,
provocou e continua a provocar muitas transformações nas relações conjugais e
familiares atuais. Roudinesco (2003) nos mostra que hoje existe uma diversidade tão
grande de tipos familiares – desconstruída, recomposta, monoparental, homoparental,
clonada, gerada artificialmente - que a família ocidental de hoje está sujeita a uma
grande desordem. Hoje, as mulheres podem dominar a procriação, os homossexuais
podem participar do processo de filiação e o pai, não é mais o pai–patriarcal. Ele está
assumindo um papel “maternalizante” (Roudinesco, 2003, p. 179), ao aumentar
gradativamente o seu envolvimento masculino nos trabalhos domésticos. A vida
definitivamente mudou!
Na verdade, na visão Roudinesco (2003) assistimos a um empoderamento de
uma camada de mães que, além de serem detentoras da ordem procriadora, têm ainda o
11
poder de designar ou de excluir o pai de seu filho. Mesmo com a presença do pai em
casa, é ela quem continua tendo as maiores responsabilidades de controlar, educar e
criar os filhos. Resta-nos saber se este empoderamento apontado por Roudinesco (2003)
tem trazido de fato mais poder, ou mais carga de trabalho e responsabilidades para a
mulher.
Em uma análise macrossistêmica, ficam claras as transformações da posição da
mulher no contexto social, que cada vez mais vem ocupando seu espaço no mercado de
trabalho e ampliando sua representatividade na sociedade. Porém, no âmbito familiar,
observa-se que ela vem abarcando maiores responsabilidades e, agora, integra tanto as
funções de cuidado, nutrição, afeto, entre outras que já lhe cabiam, como também, o
papel principal de disciplinadora, além de ser uma participante ativa na divisão das
despesas domésticas, quando não de arrimo de família.
Assim, o fato da mulher gerar vida, fato que poderia representar o seu poder
equivalente ao falo, como afirma a teoria psicanalítica, cai por terra, pois, ao se
submeter à maternidade, passa a ser “engolida” pelo papel de mãe e esse poder é posto a
serviço da humanidade. Tal realidade coloca a mulher num lugar de subordinação,
fazendo prevalecer as funções maternas em detrimento das outras manifestações
possíveis do feminino (Beauvoir, 1980). Por isso, apesar de existirem muitos casais
experimentando novos arranjos familiares, ainda se observa hegemonicamente que a
velha divisão de papéis insiste em se manter. O pai trabalha fora e, por isso, está
“liberado” de participar ativamente da educação das crianças; e a mãe, mesmo que
trabalhe fora e contribua para o sustento da família, ainda resiste em abandonar o que
fez durante tanto tempo – responsabilizar-se “sozinha” pelos cuidados para com a sua
prole:
Para o homem, a casa é o “repouso do guerreiro”. Para a mulher que trabalha
fora, é o seu segundo turno, muitas vezes até mais desgastante que o
primeiro, porque lhe sobra pouco tempo para dar conta de todas as tarefas
que se impõe: ver se os filhos estão machucados ou doentes, se fizeram as
tarefas escolares, se a casa está arrumada, se não falta mantimentos na
despensa e ainda preparar o jantar para receber o guerreiro cansado (Tiba,
2002, p.36).
Portanto, apesar deste novo contexto, o mito social relativo ao papel feminino
demonstra-se preponderante (Falcke & Wagner, 2000). O pai continua sendo sempre
mencionado, reverenciado e merecedor dos louros da família. Ainda sobrevive a cultura
de que a última palavra é a sua (Tiba, 2002). O conceito de maternidade e as
responsabilidades desta função continuam baseados em um modelo rígido e antigo, que
parece resistir bravamente às mudanças no mundo pós-patriarcal. Dessa vez, recorremos
à Rocha-Coutinho (1994):
Ainda hoje, por trás de discursos e à margem de declarações oficiais, se ouve
a opinião de que o lar e a educação dos filhos sempre foram e devem
continuar sendo atribuições das mulheres e que, devido à sua constituição
física e espiritual, as mulheres devem ser afastadas do trabalho físico pesado,
bem como das atividades que lhes exigem muito intelectualmente" (p.42).
12
O estudo de Falcke e Wagner (2000) confirma essa percepção. Neste, pôde-se
demonstrar que as mulheres, tanto mães quanto madrastas, ainda trazem um forte legado
transgeracional relacionado ao estereótipo de gênero, ainda que muitas mudanças
sociais venham ocorrendo nesses últimos tempos. Neste caso, pode-se perceber a força e
o poder do mito da maternidade perfeita como uma idéia muito presente, ao qual as
mulheres respondem de forma quase automática.
Neste processo, é imperioso reconhecer então que, apesar das intensas e
progressivas mudanças que vêm ocorrendo no sistema patriarcal - mudanças com
relação à divisão no trabalho, com relação à estrutura das famílias, do papel da mulher,
brilhantemente comentadas por Castells (1999), a atitude em relação às mulheres pouco
mudou (Rocha-Coutinho, 1994). A participação no trabalho remunerado não mudou o
fato de que, quando estão em casa, cabe às mulheres a responsabilidade quase total
pelos filhos (Chodorow, 1990). Ou seja, flashes capturados do cotidiano das famílias
mostram que o mundo mudou, mas nem tanto assim!
Esta constatação é muito bem expressa nas palavras de Forna (1999), com a qual
somos obrigadas a concordar: “Apesar das mudanças no trabalho e na vida da família de
milhões de mulheres, apesar de falar numa era de pós- feminismo, a atitude em relação
às mães continua colada na idade das trevas”(p.78).
Para pensar esta contradição, podemos recorrer também a Chodorow (1994,
citado por Castells, 1999), que discorrendo sobre esta manutenção dos papéis sociais
nos faz um alerta:
Mulheres, na qualidade de mães, geram filhas com capacidade maternal e o
desejo de elas próprias tornarem-se mães (...) em contrapartida, as mulheres
como mães (e os homens como não mães) geram filhos homens cuja
capacidade e necessidade de criar filhos têm sido sistematicamente reduzidas
e reprimidas. Este fato prepara os homens para sua função considerada
primordial, a participação no mundo impessoal e extra-familiar representado
pelo trabalho e pela vida pública.” (p. 265)
13
Acontece, porém, que até há alguns anos atrás, quando as famílias eram mais
numerosas, era comum a filha mais velha cuidar do irmão mais novo. Dessa forma,
quando tinham seus próprios filhos, sentiam-se mais capacitadas e seguras em assumi-
los. Hoje em dia, é mais difícil passar por esta experiência, já que em muitas famílias o
número de filhos tem diminuído consideravelmente e seus membros saem para
trabalhar. Assim, à medida que as famílias se tornam menores, os filhos não têm a
oportunidade de adquirir conhecimentos tratando dos irmãos mais novos; deste modo
somente, quando se tornam pais, percebem que desconheciam por completo o que na
realidade significa ser pai e mãe.
Nos cursos pré-natais, as futuras mães dizem muitas vezes que nunca pegaram
um bebê no colo, nunca viram uma criança recém-nascida, nem tiveram oportunidade
de observar de perto uma mãe tratar do bebê. “Não há lição de puericultura ou aulas
práticas com uma boneca de borracha numa banheira que possam suprir esta lacuna.”,
afirma categoricamente Kitizinger (1978, p.44). Mesmo diante dessas lacunas,
continuamos a cobrar das mulheres o “velho modelo de mãe”; porém, as mulheres de
hoje já não são preparadas, não sabem e nem querem cuidar de seus bebês como suas
mães faziam.
Obviamente, é importante relativizar esta afirmação, visto que não podemos
generalizá-la a todas as mulheres e de todas as culturas, camadas sociais, afiliação
religiosa, meio urbano ou rural, sobretudo porque esses fenômenos são observados
prioritariamente nas famílias burguesas, de acordo com Durham (1983). Certamente, há
na diversidade do mundo feminino muitas mulheres que ainda se encaixam neste antigo
modelo.
Há ainda outro importante elemento a ser considerado na constelação que
sustenta a maternidade na era contemporânea: a supervalorização dos filhos. O controle
da natalidade,fez com que, a partir dos anos 70 do século XX, a cultura do filho único se
propagasse. Nesse contexto, um filho passou a ser considerado uma nova espécie de
riqueza, o que, por sua vez difere da situação da família que atuava como uma unidade
econômica, como acontecia no século XVIII, quando em contextos rurais, todos fossem
jovens ou velhos eram considerados mão de obra e a sobrevivência da família dependia
do trabalho de todos os seus membros (Kitzinger, 1978; Tiba, 2002). Assim, um filho
era “apenas mais um” e não tinha um lugar de destaque.
Até o século XVIII, inclusive a infância era curta e dura. A relação mãe-filho,
tão exaltada nos tempos modernos, mal existia. Em Centuries of childhood, o
historiador Philippe Ariès (citado por Forna, 1999) fala que a “idéia de infância” era
alguma coisa que simplesmente não existia, um conceito estranho à sociedade. A
criança nascia e, se sobrevivesse, recebia apenas o sustento que se julgava necessário e
muito pouca atenção. Então, “sem a existência da infância, impõe-se à razão que o
estado interdependente da maternidade também não existia” (Forna, 1999, p. 36).
Hoje, um filho tem um “valor de uma jóia rara!” (Tiba, 2002, p.48). Na nossa
cultura da América, o planejamento é para no máximo dois filhos, nas classes mais
favorecidas, afirma Tiba (2002). Kitizinger (1978) também nos fala que a educação de
dois ou, quando muito, de três filhos tornou-se a função principal da família moderna.
Nasce assim, uma riqueza instintual, idealizada para garantir a conservação da espécie,
e espiritual, como realização humana. As crianças passaram a ser supervalorizadas,
tanto pelo Estado como pela família. Há quem afirme inclusive, que estaríamos vivendo
na era do Filiarcado (Grunstun, & Grunstun, 1984).
No que tange a psicologia, vários autores, como Badinter (1985), Chodorow
(1990), Maldonato, Dickstein e Nahoum (2000), apontam que a preocupação com os
problemas emocionais das crianças é disseminada a partir das influências da teoria
14
psicanalítica desenvolvida por Freud. É a partir deste autor que os filhos passam a ser
reconhecidos como seres humanos dotados de desejos e necessidades emocionais; e à
mãe recai a principal responsabilidade no seu desenvolvimento equilibrado e saudável.
A psicanálise argumenta que a presença física da mãe é fator decisivo para o
desenvolvimento adequado da saúde mental dos filhos.
Na psicanálise, postula-se que a mãe é o objeto primário de amor para homens e
mulheres. A mãe é responsável pela diferenciação do filho e pela futura identificação, já
que o bebê nasce em um estado de simbiose com a figura materna. A esta figura cabe
suprir o amor e as necessidades da criança. Assim, a mulher continua sendo concebida
como ser destinado a parir e amar o filho que recebe. A maternidade continua sendo
designada como uma graça recebida de Deus.
A partir das distinções feitas por Freud autor para a superação do complexo de
Édipo, fenômeno estruturador da personalidade humana, aponta as dificuldades
femininas no que diz respeito à conquista de sua identidade. E esta identidade feminina
é vinculada à capacidade de ser mãe e gerar uma nova vida. No Édipo, a menina
constrói a fantasia de que é um ser incompleto, devido à falta do pênis. Pela “inveja do
pênis”, ter um filho, é a única forma que lhe permite sua completude como mulher.
Infelizmente, apesar de serem amplamente combatidas pelas feministas atuais, como
destaca Aleixo (2005) em seu trabalho de tese, essas teorias ainda são bastante
difundidas e tomadas como verdades inabaláveis nos meios psicanalíticos.
Percebemos que a teoria freudiana é amplamente fundamentada pela concepção
familiar existente na época em que o autor pensava e escrevia. Assim, podemos supor
que não foi por coincidência que as teorias de Freud e sua filha Anna, sobre a
importância da presença e atenção maternas como determinantes para o bom
desenvolvimento psicoafetivo da criança, acabaram por corroborar e apoiar
cientificamente as tendências dos anos 50: mandar as mulheres de volta para casa!
Em uma sociedade em que a mulher normalmente trabalha fora, também é
responsável pelo orçamento familiar e cultiva interesses diversos, o fato de ter esse filho
precioso acarreta conseqüências diversas. Passados mais de trinta anos do início do
movimento feminista, ainda estamos nos debatendo sobre os efeitos das creches nos
filhos de mães que trabalham fora e culpando-as, assim como as mães solteiras ou
divorciadas, pelos problemas dos filhos (Forna, 1999).
Portanto, o que pode parecer apenas a ascensão da mulher para um status
“superior”, fruto dos movimentos feministas, mostra, também, a honerosa sobrecarga
do quádruplo papel. Hoje, nos lembra Castells (1999), resta à mulher congregar tanto o
papel de provedora como o de responsável pelos cuidados domésticos, responsável pela
criação dos filhos, além de ser também a zeladora dos vínculos afetivos familiares e
conjugais e preferencialmente, sem se queixar.
Dados do último relatório sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde
(Brasil, 2004) confirmam este fenômeno. De acordo com o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) (citado por Brasil, 2004, p.21) “mulheres representam
50,77% da população brasileira, mas, apesar de serem maioria, são tratadas como
cidadãs de segunda classe”. Sofrem discriminações nas relações sociais, principalmente
nas relações de trabalho e na sobrecarga do trabalho doméstico. Apontam que essas
condições são reforçadas pelas desigualdade de gênero, visivelmente arraigada na
sociedade brasileira.
Este relatório demonstra ainda que 71,3% das mulheres empregadas ganham até
dois salários mínimos, contra 55,1% dos homens. Aquelas que ganham mais de cinco
salários representam apenas 9,2% da população feminina economicamente ativa, contra
15,5% dos homens. As mulheres, além de ganharem menos, estão concentradas em
15
profissões mais desvalorizadas, têm menos acesso a espaços de decisão no mundo
político e econômico, sofrem mais violência (doméstica, física, sexual e emocional),
vivem a tripla jornada de trabalho, dentre outros problemas citados que comprometem o
seu desenvolvimento e saúde mental. Esses dados revelam que ainda há muito o que se
fazer para distanciar satisfatoriamente a qualidade de vida das mulheres de hoje das de
“Atenas”!
Nesse novo estilo de vida familiar, os vários fatores que interagem de forma
complexa têm um papel tanto enriquecedor como deletério para a saúde da mulher. A
realização profissional, por exemplo, proporciona, simultaneamente, benefícios na auto-
estima e acúmulo de papéis. Esta realidade atual implica numa redistribuição dos papéis
de homens e mulheres que têm resultado em sobrecarga para elas. Mas o que se observa
é que esta redistribuição caminha de forma desigual. Há um crescimento acelerado com
índices cada vez mais altos de mulheres saindo de casa e adentrando o mercado de
trabalho, enquanto a participação masculina nos trabalhos domésticos vem crescendo
lenta e gradualmente (Trindade, 1998; Chodorow, 1990; Chodorow, 1978 citado por
Castells, 1999).
Em outras palavras, poderíamos afirmar que a mulher saiu para o mercado de
trabalho sem contudo deixar de ser mãe e nem por isso, os homens se tornaram mais
pais. Só recentemente alguns começaram a participar mais ativamente da educação dos
filhos. Por outro lado, tanto homens quanto mulheres estão enfraquecidos no exercício
de suas funções. As mulheres estão confusas, desejam ter sua independência financeira,
ter sucesso profissional, serem boas amantes, serem belas, sexualmente atraentes, e
continuam tendo que atender a expectativa do mito da mãe perfeita, exigência que
implica em tempo e disponibilidade (Catão, 2001).
Diante desse quadro, Maldonato (2000) também chama atenção para esta
tendência em culpar a mulher - um aspecto importante da mentalidade higiênica e na
história da medicina, sobretudo no Brasil. A mãe do século XVIII era a auxiliar dos
médicos; no século XIX, colaboradora dos religiosos e dos professores. Já no século
XX, assume outra responsabilidade – a de cuidar do inconsciente e da saúde emocional
dos filhos. A mãe se vê, atualmente, diante de uma superabundância de conselhos,
freqüentemente conflitantes, para educar seus filhos. Normalmente, os conselhos são
sempre apresentados como “o melhor para o bebê”, ficando a mãe em segundo plano.
Em função das necessidades do filho, tudo deve ser sublimado e adiado. Roudinesco
(2003, p. 146) definiu esse fenômeno como “um fosso irreversível que parece ter se
cavado entre o desejo de feminilidade e o desejo de maternidade, entre o desejo de
gozar e o dever de procriar”. A conseqüência disto, diz Forna (1999), é que as mães se
transformaram em verdadeiros “trapezistas de circo”, voando sem rede de segurança,
sem poder se dar ao luxo de um único erro, sob pena de sentirem a famosa “culpa
materna”.
Frente a tudo o que foi exposto até o momento, podemos concluir que, revendo a
condição de vida das mulheres sob uma ótica histórica, essas têm sido subalternas,
inferiorizadas e pressionadas por uma sociedade que sempre exigiu delas muitos
deveres e obrigações e quase nenhum direito. Entre essas exigências, espera-se que a
mulher goze de boa saúde para procriar, seja sexualmente ativa e disponível, gere filhos
sadios e que, mesmo sem apoio para realizar as tarefas que lhes são atribuídas, ainda
amamente, cuide, proteja, alimente e eduque os filhos, sem reclamações e comportando-
se de maneira terna, compreensiva e sedutora (Nogueira, 2004). Qual seria, então, o
papel da DPP neste contexto histórico-social?
16
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todas estas considerações nos levaram a acreditar que a maternidade como vem
sendo concebida até nossos dias, tem influência direta no aparecimento da depressão no
pós-parto. Nossa hipótese é de que essas pressões culturais sob as quais as mulheres
invariavelmente exercem a maternidade, associadas ao sentimento de incapacidade em
adequar-se a uma visão romanceada desse estado, acabam por deixá-las ansiosas e
culpadas, suscitando dessa maneira conflitos que predisporiam a depressão pós-parto.
Isto posto, não pretendo discutir a relação da DPP a partir da perspectiva
biológica, que confere às alterações hormonais e às modificações corporais grande
influência no comportamento das mães e na a etiologia da depressão puerperal; e nem
pela perspectiva psicodinâmica, como tradicionalmente vem sendo feito sobretudo pelos
estudos psicanalíticos. Mas buscarei privilegiar o fenômeno do ponto de vista histórico-
cultural e da categoria de gênero, que aponta para os contextos e para as transformações
históricas ocorridas nos papéis sociais da mulher e dos homens e na sua integração com
a vivência atual.
Assumindo esta posição, advogamos ser imprescindível a “desculpabilização”
das mães e incentivar o compartilhamento de responsabilidades entre mães, pais,
familiares e toda a sociedade, assim como a conseqüente divisão de tarefas nos cuidados
e a responsabilidade de zelar pela educação física, emocional, cognitiva e social dos
filhos. Ou seja, todos devem se responsabilizar pela criação de um novo ser, em
especial, o pai que deve compartilhar a criação dos filhos, e não apenas se restringir a
dimensão da ajuda opcional e esporádica.
É valioso sensibilizar o profissional de saúde para a importância do fenômeno
da depressão após um parto. A falta de orientação e de apoio determina na mulher um
sofrimento físico e emocional que poderia ser evitado com medidas preventivas ou
curativas (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). Há de se considerar, com a devida
importância, que as ações assistenciais contempladas pelas normas e rotinas, ora em
vigor, não são capazes de responder de forma singular às necessidades das pacientes, tal
qual se supõe; devendo ser, portanto, revistas, dando ênfase às necessidades
diferenciadas que se alicerçam na dimensão subjetiva da mulher.
Esta mesma atitude deve ser adotada no pós-natal, período no qual as
tradicionais consultas puerperais deveriam ter seu foco ampliados para as questões
emocionais, culturais e sociais envolvidas na maternidade e na paternidade. Grupos de
acompanhamento das mães e pais, nos moldes dos que realizamos na UCB, deveriam
ser implantados junto a maternidades e bancos de leite, com o objetivo de proporcionar
às puérperas e seus companheiros um espaço de escuta emocional e apoio onde o tema
da maternidade, da paternidade e da DPP pudessem ser adequadamente abordados para
melhorar a qualidade de vida não só das mães, de seus bebês, pais e familiares. Mas
chamamos atenção que, para a efetivação dessas abordagens tanto no pré quanto no pós-
natal, é preciso trabalhar em equipe, integrando a esta o psicólogo hospitalar, com vistas
a promover também o bem estar psicológico e social das gestantes e puérperas.
Acreditamos que um pré-natal psicológico, conforme defende Bortoletti et al. (2007),
além de prevenir uma série de doenças e problemas com a mamãe e o bebê, também
serve como prevenção de uma depressão no pós-parto e para a vinculação afetiva da
tríade mãe-pai-bebê e a posterior parentalidade compartilhada.
Por fim, defendemos a necessidade de avaliar e qualificar a forma como
profissionais da saúde, têm auxiliado as mães e as famílias que estão sofrendo no pós-
17
parto. Nessa perspectiva, vale atentar para a necessidade de reformulações do modelo
assistencial ora vigente, no sentido de considerar a maternagem como uma tarefa que
precisa ser aprendida pela mulher e protegida pela sociedade. Em termos práticos,
sugerimos a implantação de um “pré-natal psicológico” que incluísse a figura paterna,
os avós, onde os médicos devessem se preocupar com a mãe e com o pai, tanto em
termos orgânicos como psicológicos. Buscamos, ainda, alertar para a necessidade de
uma análise crítica sobre o diagnóstico de DPP enquanto entidade padronizada,
estimulando a sua despatologização e o apoio psicológico precoce em maternidades.
Finalmente, esperamos ter trazido uma nova contribuição para iluminar a compreensão
sobre o processos de subjetivação das mães com DPP, na esperança de no futuro ajudar
os profissionais de saúde e os acadêmicos que atuam em áreas da saúde perinatal e do
desenvolvimento humano a evoluir em sua compreensão e maneira de pensar a mãe que
se apresenta depressiva no pós-parto. Esperamos que estas reflexões tenham nos
permitido criar fissuras em territórios tão cristalizados!
Referências bibliográficas
18
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Corrêa, M. E. G. & França, P. S.(Orgs.), Novos olhares sobre a gestação e a criança até
os 3 anos (pp. 221-231). Brasília: L.G.E. Editora.
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diretrizes/ Ministério da Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.
Brasília: Ministério da Saúde.
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CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Coord. Organização Mundial da
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Paz, M. G. T., & Tamayo, A. (Orgs.), Escola, saúde e trabalho: estudos psicológicos.
(pp.179-198). Brasília: Editora da UnB.
20
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Psico-USF, Bragança Paulista, v. 19, n. 1, p. 37-47, jan./abril 2014 37
Resumo
Trata-se de um estudo de caso cujo objetivo foi identificar e discutir o lugar da avó como apoio parental para uma paciente
adolescente de 15 anos. Baseou-se nos relatos das sessões de psicoterapia, que revelaram o desamparo da adolescente diante da
falta de uma rede de proteção social e institucional e apontou a fragilidade materna em resistir a destrutividade que os atos da
adolescente lhe impunha. Constatou-se que a avó ocupou um lugar de suporte afetivo para essa adolescente já que sua mãe tinha
dificuldades em exercer seu papel parental. A adolescente na psicoterapia pôde perlaborar os desafios relacionais com sua mãe e
com a avó. Hipotetiza-se se as transgressões desta adolescente são de significação consciente ou inconsciente que se relacionam
à busca de limites e de reconhecimento direcionados a essas duas figuras femininas. O processo psicoterápico permitiu que a
adolescente experimentasse seus desafios pulsionais, sem se sentir ameaçada ou invadida por eles.
Palavras-chave: Adolescência, Avós, Apoio parental.
Abstract
This is a case study aimed to identify and discuss the place of the grandmother as parental support for a 15-year-old patient.
It was based on reports of their psychotherapy sessions, which showed the helplessness of the adolescents regarding the lack
of a social safety net and institutional and pointed the mother’s fragility to resist the acts of destructiveness imposed by her
teenager. It was found that the grandmother occupied a place of emotional support for this teen as her mother had difficulties
in exercising her parental role. The adolescent in psychotherapy could work challenges related to her mother and grandmother.
It is hypothesized that adolescent transgression relates to conscious or unconscious signification that searches limits and direc-
ted the recognition of these two female figures. The psychotherapeutic process allowed this teen to experience her instinctual
challenges, without feeling threatened or invaded by them.
Keywords: Adolescence, Grandparents, Parental support.
Resumen
Se trata de un estudio de caso que tuvo como objetivo identificar y discutir el lugar de la abuela como apoyo de los padres de una
paciente de 15 años. Se basa en los informes de las sesiones de psicoterapia, que revelan el desamparo de la adolescente frente a
la falta de una red de protección social e institucional y apunta la fragilidad materna para resistir a la destructividad que los actos
de la adolescente le imponían. Se encontró que la abuela ocupaba un lugar de soporte emocional para esa adolescente puesto que
su madre tenía dificultades para ejercer su rol parental. La adolescente pudo tener la perbaboración de los problemas relacionales
con su madre y su abuela en la psicoterapia. Se hipotetiza si las transgresiones de esa adolescente son de significado consciente
o inconsciente y se relacionan con la búsqueda de límites y de reconocimiento dirigidos a esas dos figuras femeninas. El proceso
psicoterápico permitió que la adolescente experimentase sus desafíos instintivos sin sentirse amenazada o invadida por ellos.
Palabras clave: Adolescencia, Abuelos, Apoyo parental.
Reconhecendo os novos laços que se constituem para fornecer ao sujeito uma solidificação narcísica no
entre os adolescentes e seus pais e avós, este estudo momento da adolescência, as falhas narcísicas serão
buscou identificar e discutir o modo de relação estabe- incontornáveis (Savietto & Cardoso, 2006).
lecido entre uma adolescente e sua avó, tendo em vista a Assim, no contexto da adolescência os adultos
fragilização da função parental, pela ausência materna e serão particularmente solicitados, pois terão que aju-
paterna. Embora existam pesquisas sobre a importância dar os adolescentes a enfrentarem no real do corpo as
dos avós na infância, poucos estudos abordam a função visíveis modificações, bem como exercerem a função
destes e sua relevância na adolescência dos netos. de paraexcitação, de continente, daquilo que no sujeito
adolescente esteja transbordante, afirma Marty (2006b).
Adolescência e o apoio narcísico parental Contudo, os adolescentes podem não encon-
Segundo Pereira (2005), a palavra adolescência trar a sua volta um apoio parental que possa sustentar
deriva do latim adollacentia, e significa processo de cres- a posição de suporte e de continente para o desafio
cimento em direção à maturidade. Marty (2006a) teoriza pubertário, pelo contrário, alguns adolescentes enfren-
que esse movimento maturacional acontece com o início tarão sozinhos esse período, e essa situação poderá
do pubertário, momento do redespertar dos conflitos complexar sobremaneira esse momento da vida.
edipianos da primeira infância. Freud (1905/2001), um O apoio narcísico parental se refere à sustentação
dos pioneiros no estudo da adolescência, destaca que, advinda dos adultos no momento em que o adolescente
nesse momento, o sujeito redireciona a libido, afrou- se encontra em situação de fragilidade narcísica ou se
xando os laços com a família, que foram decisivos na percebe desamparado. Nesse período de crise, o apoio
infância. Há um amadurecimento do aparelho genital parental oferece ao sujeito bases para que no momento
com desenvolvimento da função reprodutora e o sujeito da reorganização identificatória, na adolescência, ele
se percebe capaz de gerar outros indivíduos, aspectos escolha novos objetos para investir e dar continuidade
que podem parecer ameaçadores aos privilégios da ao desenvolvimento de forma criativa a serviço da vida
infância, bem como sedutores diante da possibilidade (Marty, 2006b).
de usufruir, sem responsabilidades, do gozo genital. De modo que a ausência do apoio narcísico paren-
Nesse processo de transição, Marty e Cardoso tal leva os adolescentes a recorrer aos acting outs ou atos
(2008) ressaltam que o adolescer não se limita ao direcionados a si mesmo ou ao outro. No entanto, os
movimento de extensão da infância, que tornará o adultos podem sentir-se desamparados ante o desafio
sujeito homem ou mulher; na verdade, ao reviver a de enfrentar a violência do pubertário. Assim, alguns
problemática edipiana infantil, ele se depara com as pais, segundo Marty (2006a), desconhecem as formas
transformações corporais e a necessidade de integrá-las de proteger os próprios filhos da violência contra si
sem se perder em meio à crise “mudar e permanecer o mesmos ou não conseguem resistir a destrutividade
mesmo” (Marty & Cardoso, 2008, p. 11). do filho, de modo que a fragilidade dos adultos não
Nesse trânsito crítico o jovem repudia as identifi- contribui para que os adolescentes encontrem o apoio
cações da infância tentando se diferenciar dos valores narcísico parental para enfrentar algo de si mesmo que
estabelecidos pelos pais e pela cultura em um movi- lhe escapa.
mento de separação/ individuação. Todavia, também
reconhece sua forte ligação com os objetos internos, ou Avosidade x parentalidade
seja, seu pertencimento, pela compreensão daquilo que A literatura aponta (Berger, 2003; Goldfarb &
apreendeu sobre si na relação com seu meio familiar e Lopes, 2006) que a modificação no papel dos idosos no
sociocultural, nos explica Pereira (2005). contexto familiar e social provocou uma crise de identi-
Nesse contexto, as mudanças psíquicas produzidas dade na avosidade. A definição desse termo difundiu-se
com a entrada na puberdade confrontam o adolescente com os estudos de Paulina Redler, no ano de 1977, sobre
exigindo a reorganização e reestruturação da sua iden- psicogerontologia. Estes sugeriam ampliação da visão
tidade. O medo das mudanças individuais, culturais e biológica para além da idade cronológica ao realçar os
sociais, e a angústia de ter que se assegurar no mundo laços de parentesco que exigem do idoso a reestrutura-
externo caminham juntos no processo de adolescer ção psíquica ao ocupar um novo status pessoal, psíquico,
(Savietto & Cardoso, 2006). Esse processo sinaliza que familiar e social: ser avô/avó (Pedrosa 2006).
o jovem precisará de sólidas bases narcísicas, portanto, Contudo, para Goldfarb e Lopes (2006), o que
se as relações objetais primárias forem insuficientes definirá a avosidade não será a idade cronológica ou o
papel social, mas a possibilidade de transmitir as fun- sociais e econômicos que as famílias contemporâneas
ções materna e paterna para as próximas gerações. enfrentam.
Tornar-se avô requer uma elaboração do próprio papel Contudo, para Lopes, Nery e Park (2005), o idoso
como filho e pai, pois o nascimento de um neto exige pode passar pela experiência de ser avô sem se com-
uma reorganização psíquica. Agora, ele ocupará um prometer com obrigações maternas e paternas. Pode
novo lugar, será preciso demarcar os limites entre ser desenvolver novos vínculos com seus netos, permi-
avô e pai para passar pelo processo de individuação na tindo que identificações sejam estabelecidas sem haver
estrutura familiar. sobrecarga ou estresse. Nesse sentido, Vitale (2008)
A chegada de um neto para a mulher de meia- aponta que a maioria dos avós se dispõe voluntaria-
-idade pode oferecer uma nova oportunidade para mente a cuidar dos netos. Porém, isso não quer dizer
viver a experiência da maternidade, em forma de autor- que o tornar-se avô ofereça apenas vivências praze-
realização emocional, mas também pode provocar rosas. Enquanto alguns prestam cuidados quando são
desconforto e desapontamento colocando-a em con- solicitados, outros se sentem obrigados a praticar essas
fronto com a realidade, forçando-a a pensar na idade e ações por depender financeiramente dos filhos ou para
na proximidade da morte (Dias, 1994). Apesar disso, ser cumprir um papel social esperado.
avó na contemporaneidade aponta para novas posições Sob esses aspectos, quando há ausência do pai e da
nas relações na família e no contexto social. Rodrigues mãe, os avós tendem a desempenhar as funções paren-
e Justo (2009) chamam atenção para os novos papéis tais como pais substitutos. De acordo com Oliveira
desempenhados pelas avós, que podem ser ao mesmo (2011), é notório o aumento do estilo de pais substi-
tempo mães e avós zelosas, mas também mulheres tutos em todo o mundo. Com seus papéis expandidos,
maduras, sedutoras e ativas. podem encontrar satisfação ao oferecer benefícios aos
Oliveira (2011) apresenta ainda a classificação atual netos, ou também, ônus com o estresse físico e emocio-
sobre o estilo dos avós de Gauthier: o “encarregado”, nal. Apesar dos efeitos negativos, Oliveira (2011) alerta
que são os avós que cuidam dos netos, substituindo em que dificilmente os avós recusam a tarefa de cuidar dos
vários momentos os pais da criança; o “especialista”, netos, pois o compromisso que percebem ter com sua
que são os avós que dispõem de menos tempo e parti- descendência faz com que eles se responsabilizem pela
cipam de apenas algumas esferas na vida dos netos e se prole de seus filhos, ainda que haja alguma perda para
especializam nelas e os avós “passivos” que são aqueles suas próprias vidas cotidianas.
que convivem pouco com os netos, que são os quase- Nota-se que a literatura deixa evidente que a
-ausentes, por residirem em outra cidade, por exemplo, entrada na avosidade estaria relacionada a uma prepara-
e os realmente ausentes, quando a relação com os netos ção e elaboração dos estágios anteriores para o exercício
nem existe. No Brasil, Debert e Simões (2006) obser- desse papel. No entanto, o levantamento teórico denun-
varam dois tipos específicos de arranjos familiares com cia uma marca cristalizada na qual os autores percebem
a presença de idosos: as famílias de idosos e as famílias os avós como cuidadores ou figuras de apoio idealizado
com idosos. A primeira considera a posição do idoso durante a infância dos netos, desconsiderando a pos-
como chefe de família, sendo provedor financeiro na sibilidade de emergirem outros sentimentos humanos,
criação dos netos; enquanto na segunda, famílias com durante essa fase, nas relações entre avós e netos.
idosos, em especial as de baixa renda, seu papel é de Deposita-se a expectativa do exercício de uma
suporte afetivo nos cuidados com as crianças, pois avosidade desprovida de ambivalência e realizada por
depende financeiramente dos filhos ou netos. pessoas perfeitas e em condições ideais, aspectos que
Nesse sentido, ocupar o lugar de avós exige des- distanciam a possibilidade de existirem sentimentos
tes o consentimento para que os seus filhos sejam pais conflituosos na condição de tornar-se avô. Molinier
para desempenhar o papel educativo e afetivo, cabendo (2004), ao contrário da maioria dos estudos, discute a
aos pais, na posição de avós, permitirem que seus filhos ambivalência e a flutuação de sentimentos contidos no
assumam as funções parentais, ficando na posição de cuidado com o outro. A autora destaca que o cuidado
elo entre as gerações, sem, no entanto, se ausentar do ou a preocupação com outro implica trabalho, o qual
seu lugar: ser avô/avó (Goldfarb & Lopes, 2006). Os pode mobilizar sentimentos duvidosos de amor e ódio.
autores acrescentam, ainda, que o lugar e a função dos O envelhecimento, apesar dos ganhos da moderni-
avós podem se confundir com dos verdadeiros deposi- dade, carrega também as contradições de uma sociedade
tários desses papéis, os pais, tendo em vista os desafios que mantém os adultos em posições infantilizadas e
com grandes dificuldades em assumir seus lugares de exercer a função materna, comportando-se como uma
pais. Nesse cenário, os avós podem assumir o lugar “irmã mais velha” do filho, delegando a função materna
parental quando os pais falham nessa função. Nessa à avó. Esses avós, segundo Goldfarb e Lopes (2006),
perspectiva, este trabalho pretende identificar a vivên- permitem que a criança e o adolescente vivam seu
cia de uma adolescente cuja mãe falha em assumir seu lugar filial em um tempo provisório; no entanto, esse
lugar parental, cabendo à avó o lugar de apoio narcísico funcionamento cria um dilema para a criança sobre os
parental. verdadeiros depositários desses papéis.
O caso que será apresentado nos oferece duas rela- Como visto anteriormente, as próprias condi-
ções de mãe-filha, a relação da adolescente Clara e sua ções internas e externas vividas durante a adolescência
mãe e a relação da mãe de Clara com sua avó. A relação impulsionam o adolescente a solicitar dos adultos a
mãe e filha recebe uma atenção particular na psicaná- continência, orientação, controle e limites diante da vio-
lise, quando Freud (1925/1976; 1931/1974) assinala a lência do próprio período. Marty (2006a, 2013) ressalta
mãe como primeiro objeto de amor para a menina e que diante da ausência ou falha parental, referida neste
ressalta a intensidade desse vínculo primário, vínculo trabalho como falta de apoio afetivo dos cuidadores,
este que se fragiliza pelo impacto da castração. O com- nas novas configurações familiares, os avós podem ser
plexo de castração revela para a menina, por meio da as novas figuras parentais que oferecem aos adoles-
percepção das diferenças anatômicas entre meninos e centes o apoio narcísico parental para resistirem e não
meninas, um sentimento de inferioridade e de injustiça. sucumbirem aos impulsos destrutivos que emergem no
Posteriormente, na adolescência, segundo Emmanuelli período pubertário (Goldfarb & Lopes, 2006; Marty,
(2011), a questão que é colocada se refere ao trabalho 2006a, 2013).
psíquico da elaboração do Édipo, do narcisismo e da As falhas parentais se constituirão quando os pais
problemática da separação e da identificação entre mãe não conseguem realizar a operação simbólica das fun-
e filha, que serão tratados neste trabalho. ções paterna e materna para que a criança estabeleça as
Assim, a questão que não se pode deixar de dis- identificações primárias que asseguram a continuidade
cutir se refere ao lugar da relação entre mãe e filha, que do ser, esclarecem Lopes e Goldfarb (2006). Entre-
atravessa duas gerações, ou seja, a primeira geração que tanto, com as mudanças nos laços familiares, a figura
se refere à mãe da adolescente e sua própria mãe, a avó dos avós ganha destaque na contemporaneidade, pois
de Clara, e a outra geração, que se refere à adolescente estabelecem relações afetivas com os netos ante a insta-
Clara e sua mãe, relação esta intermediada pela avó. A bilidade psicossocial e econômica que atinge as famílias
relação entre mãe e filha de duas gerações pode ser uma (Oliveira, 2011).
devastação para essas mulheres, pois é uma relação que Assim, os avós participam ativamente e desempe-
se apresenta pela (im)possibilidade desse amor (Lacan, nham outros papéis na relação afetiva com os netos.
1973/2003). Os desafios da maternidade, segundo Mar- Eles se dispõem a cuidar dos netos, conciliando ou
cos (2011), passa pelo registro fálico, pela compreensão, sobrepondo as responsabilidades de mulher/homem,
na menina, de que a mãe é aquela que tem o falo; essa mãe/pai e avó/avô no exercício de suporte à família
situação marca a ambivalência que funda essa relação, (Vitale, 2008). Para alguns, o lugar de avós não está bem
que é caracterizada pelo lugar da mãe como primeiro delimitado, porque não conseguem se separar e trans-
Outro íntimo e estrangeiro do qual é preciso se sepa- formar a relação com o filho, agora pai, integrando o
rar, movimento que demanda um importante trabalho novo membro, o neto, à família no status de neto e não
psíquico para as meninas no processo de construção de de filho. Na atualidade, diante da nova ordem familiar
sua feminilidade a partir da relação com sua mãe. que se estrutura, tal dimensão traz o questionamento
sobre qual lugar os avós estariam ocupando nas famí-
O lugar dos avós diante da falha parental lias. Estariam estes vivendo o tempo de serem pais ou
De acordo com Sarti (2008), para a família manter verdadeiramente avós dos netos?
seu equilíbrio, ela se desdobra em relações complexas
para atender às demandas que vão surgindo. Pode ocor- Objetivo geral
rer do status atual de um membro não corresponder
ao seu papel convencional, divergindo da função que Compreender as peculiaridades e dificuldades
deveria ser exercida. Por exemplo, há casos em que a vivenciadas por uma adolescente que, em busca do
mãe permanece presa ao papel de filha e não consegue apoio narcísico parental, solicita dos avós o amparo
afetivo para suportar as mudanças que o processo da de convivência, com a mãe e os avós, para compreensão
adolescência lhe impõe. do modo de se relacionar da jovem. Inspirando-se no
método adotado por Conti (2004), optou-se por limitar
Método o material registrado nas sessões clínicas a dois blocos
de informações: 1) o caso Clara: contexto clínico e
Este artigo trata-se de um estudo de caso qua- familiar; 2) análise interpretativa do caso.
litativo que se desenvolveu a partir do atendimento
psicoterápico breve com orientação psicanalítica de Resultados e Discussão
uma adolescente, 15 anos, do sexo feminino, estudante
do ensino médio de uma escola pública do Distrito 1 O caso Clara: contexto clínico e familiar
Federal. Na Psicanálise, o estudo de caso é uma estraté- Clara chegou à terapia acompanhada da avó
gia metodológica na clínica. Esse método é entendido materna, com quem morava e a qual assumia o papel de
como resultado de uma experiência vivida na clínica psi- adulto responsável na ausência da mãe, que trabalhava
canalítica e que, ao dialogar com a teoria, torna-se um em tempo integral. Clara apresentou-se bem tímida no
caso construído e comunicado (Moura & Nikos, 2000). primeiro dia, talvez porque estivesse diante de sua avó,
Será a partir do analista-pesquisador que se escolherá uma figura que lhe impunha autoridade e respeito. O
um fragmento do tratamento para análise e teorização. jeito de se vestir da adolescente era calça jeans, mochila
O trabalho seguiu rigorosamente os procedimentos e All Star, usava um lenço de caveira e uma blusa de
éticos e legais recomendados pelas resoluções vigen- banda de rock. Durante a primeira entrevista, Clara
tes referentes às Clínicas-Escola, onde o paciente, ao limitou-se a ser monossilábica, dizendo não se sentir à
ingressar no tratamento, autoriza por escrito, em termo vontade para falar de suas intimidades diante da avó.
de compromisso, que as informações provenientes dos A sós com a adolescente, ela justificou o porquê
atendimentos podem ser utilizadas para fins de ensino e dos comportamentos ousados e transgressivos. Foram
pesquisa, assegurados o sigilo profissional, a não identi- estes, segundo a jovem, motivados por um amor erótico
ficação do usuário e seu bem estar e privacidade. quase obsessivo por uma professora, que a levaram a
A adolescente que protagoniza o caso clínico, a ser encaminhada ao Conselho Tutelar. Além do ressen-
qual chamaremos de Clara (nome fictício), foi encami- timento em relação à professora, por não corresponder
nhada para o atendimento psicoterápico em nossa clínica às suas investidas amorosas, Clara também se queixou
escola pelo Conselho Tutelar de sua cidade. Foi atendida da falta de compreensão da escola e da família quanto
individualmente, em sessões semanais, com duração de a sua necessidade de estar ao lado dessa professora,
50 minutos cada, entre o primeiro semestre de 2009 e expressos nas seguintes falas: “é mais forte do que eu... fico
o segundo semestre de 2010, totalizando 20 sessões, atrás das pilastras... pulei o muro só para ficar olhando para ela”
que foram todas relatadas por escrito, no prontuário No espaço psicoterápico, Clara teve posições
da paciente. A terapeuta, que é a primeira autora deste regredidas em relação á psicoterapeuta e atuadas de
artigo, era na época estagiária do último ano de psicolo- modo a transgredir o setting psicoterápico, como um
gia e foi supervisionada pela 2ª autora. Utilizou os relatos modo de ataque ao enquadre. O movimento transferen-
das sessões clínicas e as autoras procuraram analisar e cial de Clara no processo psicoterápico indicava que ela
interpretar os aspectos psicodinâmicos da adolescente tinha dúvidas se a psicoterapeuta seria capaz de conter
e a dinâmica relacional dessa adolescente com sua mãe e resistir a sua destrutividade adolescente.
e com sua avó. Abordaram-se tanto os elementos que Contudo, os desafios da adolescência puderam ser
emergiram das sessões quanto aqueles que emergiram trabalhados nas sessões e Clara pôde abordar a dor de
das entrevistas com a mãe e a avó de Clara, pois ambas ter que abandonar os privilégios da infância e respon-
foram ouvidas durante o acompanhamento psicoterá- sabilizar-se pelas próprias ações, agora que caminhava
pico de Clara. A análise do material das entrevistas e das rumo à vida adulta. Certa vez, quando falava dessa
sessões psicoterápicas de Clara se apoiou na abordagem angústia, relatou: “falar em ser adulto é como se esti-
clínico-qualitativa, tendo como embasamento teórico vesse enfiando agulhas em mim... Tenho vontade de
a Psicanálise e a Psicogerontologia, que possibilitou a gritar”. No completamento de frases, colocou: “adoles-
organização e interpretação do material clínico. cência é a pior coisa que Deus me presenteou”.
Consideraram-se os aspectos conscientes e incons- Clara residia com a mãe (37 anos), caixa de super-
cientes que regem o processo da adolescência no círculo mercado; a avó materna (60 anos), dona de casa; e a
irmã (11 anos), estudante. O avô materno (62), fun- amor endereçada a sua mãe, Clara espera receber dela a
cionário público aposentado, de quem recebia auxílio substância do seu ser.
financeiro, morava em outra cidade. Clara é criada em uma casa onde imperou a ordem
Ao construir o desenho da linha da vida, Clara e autoridade feminina, em especial da avó materna,
trouxe alguns elementos da sua história familiar e o uma vez que a mãe assume o lugar de irmã mais velha
modo como ela nasceu. Ela relatou que o encontro delegando a sua mãe a encargo de criar Clara. É impor-
dos pais e seu nascimento foram resultado do encontro tante considerar também que, provavelmente, a mãe
sexual de seus pais de apenas uma noite. Clara parecia de Clara não podia assumir sua maternidade, em razão
lamentar esse fato e sobre isso ela falou: “gostaria de ter da sua posição subjetiva em relação à sua própria mãe,
uma família tradicional”, e com sofrimento destacou o uma vez que é a avó de Clara que a substitui na função
distanciamento do pai durante a gravidez de sua mãe, materna. Ou seja, o fato da mãe de Clara não poder
representado no desenho por uma figura masculina que assumir seu lugar de mãe perante a filha parece denun-
corria da mãe, a qual sinalizava com os braços para que ciar a impossibilidade dessa mulher sair do seu lugar
este voltasse. de filha em relação à sua mãe, agora na posição de avó.
A ausência do pai foi descrita como dolorosa pela Essa posição de poder da avó, aceita na prática pela
jovem, que conviveu com a imagem de um homem que mãe da paciente por esta leva a questionar a relação de
fugira da mãe e, consequentemente, dela. Verbalizou poder transgeracional entre elas. O suporte indicado
sentir falta de uma figura paterna. Quando criança, os na discussão do caso pode também ser lido, portanto,
colegas de turma perguntavam sobre seu pai, e ela dizia como devastação entre mãe e filha, da qual nos fala
não saber deste. A entrevista clínica com a mãe confir- Lacan (1973/2003). Essa situação sugere que a avó de
mou a ausência paterna e a dificuldade de Clara em lidar Clara não deixou espaço para que sua filha assumisse
com essa falta, e ela mencionou que a filha se isolava na a maternidade da neta. Diante desse contexto familiar,
escola quando outras crianças a questionavam sobre a cabe questionar qual seria a força e o poder que essa
ausência do pai. a avó possui nessa família. Não estariam eles relacio-
A mãe de Clara, uma jovem franzina, aparentando nados também à ausência/falha do marido/pai nessa
ter menos de 30 anos e que parecia uma irmã mais velha constituição familiar? Será que mais uma vez a história
de Clara, mostrou-se preocupada com as ações trans- se repete, ou seja, tanto a Clara, como sua mãe, não
gressivas que a filha vinha tomando, que acarretaram tiveram o lugar paterno assegurado na dinâmica fami-
no afastamento da escola. Abordou também sobre suas liar. Clara nos dá pistas sobre a ausência de seu pai e
dificuldades em conversar com Clara. Sua fala refletia de seu avô na vida familiar ao afirmar que sua casa é
o estranhamento dessa mãe frente à adolescência de a casa das mulheres. A afirmação da adolescente mostra
uma filha que, na infância, havia sido estudiosa e inte- que o tipo de organização e de autoridade nessa família
ressada na escola, e sobre isto relatou: “de uns tempos é exercido pelas mulheres e no caso dessa família, a avó
para cá as coisas pioraram”. A mãe de Clara, que investe é colocada no lugar de matriarca, situação que eviden-
atualmente em um relacionamento amoroso, encontra cia a exclusão da figura masculina nesse meio familiar.
resistência de Clara, que relata que a mãe fica mais afas- Assim, ter a avó como apoio narcísico parental poderá
tada dela, pois dorme na casa do namorado nos finais permitir à Clara uma identificação feminina constitu-
de semana. Sobre o afastamento da mãe, Clara disse: tiva para sua subjetividade, de modo que futuramente
“eu só queria que minha mãe ficasse mais em casa”. ela possa vir a ser mãe, e não delegar a sua própria
Clara faz uma demanda de amor à sua mãe, que mãe essa função quanto tiver seus filhos e, assim, tenha
desvia seu olhar de Clara e o deposita em um outro chance de não repetir a história transgeracional (Gold-
objeto de amor, o novo companheiro. Essa demanda farb & Lopes, 2006).
de amor de Clara seria uma busca infinita de subs-
tância, sem limite e que aproxima amor e devastação 2 Análise interpretativa do caso: Iniciar-se-á o processo interpre-
(Marcos, 2011). Segundo Lacan (1973/2003,) há uma tativo apresentando-se e discutindo-se o papel da avó diante da
expectativa da menina em relação à sua mãe que não falha parental
se situaria somente sob o significante do falo e que ele
nomeia como ravage, traduzido por devastação. Marcos 2.1 Avosidade: tempo de ser mãe e não avó!
(2011) lembra que, para a mulher, o amor se inscreve Em entrevista com a avó, esta mencionou que
no imperativo de que o Outro a ame e assim diga do criou a neta desde bebê. Ressaltou que sempre foi
significante do seu ser, de modo que, na demanda de uma menina ótima, “mas de uns tempos para cá,
Psico-USF, Bragança Paulista, v. 19, n. 1, p. 37-47, jan./abril 2014
Pinto, K. L. B. & cols. Suporte parental na adolescência 43
enlouqueceram a neta e a filha”. A avó reclamou da também pelos cuidadores dos adolescentes ao se
falta de apoio da filha no cuidado com a neta. Ela foi depararem com a própria incapacidade de suportar a
à escola da jovem verificar se esta estaria estudando e, impulsividade e agressividade que seus filhos ou netos
para sua surpresa, a menina apresentava um alto índice passam nesse período.
de faltas. Comentou que o diretor da escola solicitou a Observou-se que essa avó assume o lugar que
presença da mãe da adolescente, mas, segundo a avó, Sarti (2008) nomeou de chefe de casa, pois cuida da
esta não se preocupava com a filha desde que começou casa e das netas, enquanto a filha trabalha fora. Aspecto
a se relacionar com um novo namorado. A ausência da referido nas seguintes falas da avó materna “eu luto
mãe, na primeira entrevista reforçou a impressão de que com estas meninas desde bebê, quem criou fui eu... Elas
a avó estaria exercendo a função materna na vida da sempre tiveram hora para tudo, comer, tomar banho...
jovem. Elas me obedeciam... Hoje é tudo liberado para faze-
A convivência intensa com essa avó, parceira da rem o que quiserem”, atribuindo a causa da dificuldade
mãe na criação da neta, deu a essa figura um novo lugar, em manter a autoridade com as netas à ausência da mãe.
com exigências afetivas diferentes daquelas encontra- Enfatizou a sua dificuldade em oferecer limites à neta
das nos avós tradicionais. A avó, que na infância das sem contrarreagir “a menina é sem limite, ela não tem
netas exercia a função materna e paterna, agora não hora para nada, ela está solta no mundo”.
conseguia lidar com as mudanças no ciclo familiar: pois Nota-se que a avó se preocupa afetivamente com
a neta criança a quem um dia ofereceu seus cuidados a neta, desempenhando a função parental como mãe
maternos, agora era uma adolescente.Observou-se substituta, em busca de manter o equilíbrio familiar.
que perante a ausência parental, Clara buscou na avó No entanto, não consegue exercer a função referida na
o apoio para suportar a violência do pubertário, como dimensão simbólica, oferecendo continência e limites,
destacou Marty (2006b). como trazem Sudbrack e cols., (2003) e Marty (2006a).
A situação clínica descrita acima evidencia a fun- Outro aspecto pontuado por autores como Ber-
ção subjetiva dos lugares de filiação nessa família e ger (2003), Goldfarb e Lopes (2006), e reconhecido no
aponta para o modo como essa função se transmite caso Clara, é que as mudanças do processo de adolescer
de modo repetido entre as gerações nessa família de da neta provocam a reavaliação das questões subjetivas
mulheres (Gomes & Zanetti, 2009). Assim, quando a da avó. Essa mulher também se depara com a própria
avó disse que Clara e sua mãe enlouqueceram, ela faz realidade, diante das mudanças no ciclo familiar, pois a
uma alusão à relação identificatória entre Clara e sua neta agora é uma adolescente e ela está envelhecendo.
mãe pela transmissão psíquica entre as gerações de fun- A manifestação dos conflitos da neta, em plena adoles-
ções impossíveis de serem assumidas. Portanto, diante cência, aciona as questões emocionais e subjetivas da
da complexidade dos elementos inconscientes que cir- avó, fazendo com que esta entre em contato com suas
culam entre essas mulheres, Clara, por meio do suporte necessidades internas, percebidas nas seguintes falas:
de sua avó poderia construir uma identidade que lhe “hoje eu também quero sair, ficar na casa das minhas
permitisse assumir a função materna no futuro? Nos amigas e descansar... Mas tenho medo de dormir e
parece que a avó não conseguiu proporcionar a sua acordar morta... Se não for eu na vida dessas meninas,
filha, mãe de Clara, um lugar que lhe assegurasse assu- eu não sei o que pode acontecer com elas”. Pelas falas
mir a função de ser mãe, e há certamente o risco de que e comportamentos da avó de Clara, nota-se que esta se
ela faça o mesmo com Clara. encontra em meio à crise ou conflito de ter que assumir
Outro aspecto que evidenciou a ausência de alguém um lugar de avó substituta materna, para cumprir um
que fosse referência de função paterna para impor limi- papel que lhe foi imposto socialmente, e o de ter que
tes e exercer o controle educativo junto à adolescente, lidar com a dualidade pulsional e os desejos de viver a
como traz a autora Sudbrack e cols., (2003), foi o fato própria maturidade e enfrentar a chegada da morte sem
de a avó ter comunicado ao Conselho Tutelar, sem o maiores preocupações.
conhecimento da mãe, para que este exigisse dessa a As reações da avó, ao exercer os cuidados como
responsabilização pelos atos da adolescente. Segundo mãe substituta, trazem um sofrimento psíquico com o
a avó, sua ação foi uma maneira de tentar resolver a sobrecarga da função de cuidar, visto que a filha, agora
situação da neta, pois não sabia mais a quem recorrer. mãe, se recusa ou não tem condições psíquicas de ocu-
A mesma situação também exemplifica o que par a função materna no período da adolescência de
Marty (2006b) apontou como desamparo vivido Clara. O estado ambivalente vivido pela avó nos fala de
um desgaste emocional e físico, provocando a emersão a ser percorrido pela jovem do desenho terminaria no
do conflito sobre sua condição atual, e de sentimen- mar. Para Clara, o mar significava a morte, pois ela não
tos dúbios contidos no cuidar do outro, como apontou sabia nadar.
Molinier (2004). Essa mulher idosa se defronta com a Observou-se que Clara trouxe no desenho o
flutuação dos próprios sentimentos, pois o prazer que impacto que um adolescente sofre, ao ser empurrado
teve ao cuidar da neta enquanto criança, reeditando sua pelo próprio processo de crescimento biológico para
maternagem ao ter uma “segunda chance” (Oliveira, um lugar que lhe exige a redefinição da própria imagem,
2011, p. 24), não lhe é permitido com a mesma, agora diante da perda do corpo infantil e aquisição de outras
na fase da adolescência. Esta não lhe oferece mais o características corporais adultas. Clara se encontrava
prazer do cuidado corporal, mas lhe exige o apoio afe- na condição de ter que continuar caminhando, ou seja,
tivo e suportivo. consciência da continuidade, de crescimento. Nesse
Por outro lado, Lachmann (2011) nos mostra que a processo de amadurecimento mental e fisiológico, Clara
chegada de um neto para a mulher de meia-idade, pode também se deparou com o medo de se desfazer no meio
oferecer uma nova oportunidade para experienciar a desse caminho em busca de uma identidade, simboli-
maternidade, em forma de autorrealização emocional, e zado no desenho com a perda dos pés e finalmente a
até aumentar a sua longevidade. No entanto, essa opor- morte no mar. Na análise do desenho se encontram ele-
tunidade de “reviver” a maternidade pode fazer com mentos discutidos por Marty (2006a) e Marty e Cardoso
que a avó impeça ou boicote as iniciativas dos próprios (2008), como a ambivalência e descontroles vividos por
filhos em assumir a função paterna/materna, pois teme Clara ao enfrentar as modificações e transformações
reconhecer o seu crescimento e amadurecimento sub- corporais e psíquicas que lhe impõe a condição de ter
jetivo, que implicariam um processo de diferenciação, que se separar dos laços estabelecidos na infância para
de distanciamento sentido como a “perda” do filho. reinvestir em novos objetos de identificação e desenvol-
Por essa razão, seria desejável que, com a chegada dos ver sua autonomia. Clara se encontra em uma situação
netos, as avós se colocassem apenas como elo entre pais fronteiriça, pois parece caminhar da vida infantil para
e filhos e não os substituindo. Assim, no desempenho vida adulta. Ao experimentar a perda da continuidade
da sua função, o avô cederia ao filho o lugar para repro- de si mesmo, percebe-se um movimento em busca de
dução da função paterna/ materna (Goldfarb & Lopes, sua identidade, a jovem continuará andando de joelhos ou de
2006). quatro,...Até chegar ao mar.
Esse mesmo conflito para se reconhecer como
adolescente foi expresso em outro momento de aten-
2.2 Sou um adolescente, mas não quero crescer!
dimento clínico. A jovem utilizou uma metáfora dos
Outro conflito psíquico central nas vivências da
parques de diversões, observada na seguinte fala:
adolescência de Clara era o seu medo de crescer. O
temor de entrar para o mundo adulto refletia uma iden-
Antes eu estava em um parque de diversões... Mas acabaram
tificação com a mãe, que, resistindo assumir seu lugar os ingressos e ele faliu. Estou no meio... No outro teriam
como mãe, delegava a sua própria mãe a função que lhe amigos, brincadeiras e festas, mas estou do lado de fora...
era falha. Não quero perder meu lado criança, brinco sempre com meu
Certa vez fez um desenho de uma menina de cabe- namorado como se fosse sua filha, com minha mãe e avó como
los curtos, roupa de adolescente e uma lata de cerveja se fosse uma criança. (Clara)
em uma das mãos, que Clara afirmou ser ela, e ressaltou
a ausência dos pés da menina ao atravessar um caminho Clara, ao se perceber “no meio” de dois parques
cheio de espinhos. A menina continuaria andando nesse de diversões, parece vivenciar um “entre lugares”, não
caminho de joelho, depois de quatro, sei lá, e ainda que lhe conseguindo formar um senso de identidade pessoal.
implantassem pés ou colocassem sapatos, ela continua- Observa-se que a jovem se encontra em um
ria machucando os pés com os espinhos e durante esse período confuso, de contradições e ambivalente, que
percurso ela enfrentou “tempestades” intensas e novos traz impresso o que Marty e Cardoso (2008) chamam
períodos turbulentos ainda viriam. Segundo Clara, de conflito entre a necessidade de manter o investi-
a jovem perdeu os sapatos aos nove anos de idade, mento narcísico, as heranças da infância, e a obrigação
período marcado pelo início de um amor transferencial de abandoná-los sem perder a continuidade de si e os
por uma professora, o qual foi nomeado por ela como privilégios do mundo infantil. A mesma reflexão cabe
sentimento materno misturado com atração física. O caminho para as seguintes fala de Clara em uma das sessões:
Psico-USF, Bragança Paulista, v. 19, n. 1, p. 37-47, jan./abril 2014
Pinto, K. L. B. & cols. Suporte parental na adolescência 45
“não gosto nem de pensar em ser adulta... Falar sobre pior coisa que Deus me presenteou, e freqüentemente
ser adolescente parece que está enfiando um monte sinto confusão na minha mente”. Vivência típica do
de agulhas em mim, tenho vontade de sair correndo, momento em que o jovem busca por identificação para
dói no peito.” Nesses dados existem elementos que a construção da identidade.
expressavam a intensidade das transformações psíqui- Por fim, desenhou uma jovem e um rapaz de
cas advindas com a eclosão do pubertário, movimento mãos dadas dentro de um coração, representando ela e
este que exigiu de Clara grande esforço psíquico para o “namorido”, que, segundo a descrição da jovem, era
conciliar suas exigências pulsionais internas diante do seu atual namorado e futuro marido. Indagou-se qual
ultimato do meio familiar e social: cresça! o significado desse desenho, respondeu: “aqui é o meu
recomeço”. Ressaltou que seu momento era diferente
2.3 Uma adolescente em busca de apoio narcísico parental daquele desenhado para a mãe, no início da linha. No
Em um das sessões clínicas, solicitou-se a Clara entanto, não era perceptível a diferença entre as jovens
que desenhasse em uma linha um esboço do seu desen- desenhadas. Seria esse um movimento de afastamento
volvimento. Durante a infância, referiu aos momentos do objeto amoroso da infância, a mãe, para reinvestir
felizes. Destacou seu aniversario, o nascimento da irmã em novos objetos amorosos e sexuais, por exemplo, a
e o parquinho da escola infantil, enfatizando ter sido professora ou o “namorido”? As falas de Clara trazem a
este um dos momentos mais felizes da sua vida. marca de alguém que buscou apoio ou referência em um
Na fase da latência, por volta de 9-10 anos, des- outro (professora, Conselho Tutelar e, posteriormente,
creveu que começou a sua decadência. Fez um traço com terapia), utilizando a linguagem dos atos no início da
o giz de cera preta dividindo a infância da entrada no adolescência, movimento este que ilustra a busca de
período pubertário. Clara já havia dito que iniciou sua apoio narcísico parental apontada por Marty (2006b).
vida sexual aos 10 anos de idade. Percebeu-se que a Baseando-se em Marty (2006b), foi possível
jovem deveria voltar seus interesses para a vida social e compreender que Clara ao enfrentar seu estado de
intelectual, sublimando os impulsos sexuais eminentes desamparo adolescente, defrontou-se com a ausência
do pré-pubertário. Todavia, não encontrou adultos de da mãe e do pai. Como não conseguiu interiorizar a
referência que lhe oferecessem limites e acolhimento função materna de proteção e continência, desenvol-
sem contrarreagirem às suas solicitações pela via corpo- veu comportamentos transgressores para encontrar a
ral, como apontou Marty (2006a). Em seguida relatou: reparação para aquilo que não recebeu destes. Assim,
“agora começa a parte negra da minha vida”, dese- recorreu a outras figuras de referência para tentar suprir
nhou uma boneca correndo atrás de outra. Disse ter uma carência do início da vida no nível dos processos
sido nessa época em que se apaixonou pela professora. de simbolização que, segundo Marty (2006a), justificam
Observou-se que seu movimento em busca de apoio os atos dos adolescentes para reparar o traumatismo
para conter a agressividade ameaçadora que o período por carência. A falta de uma figura continente, de auto-
pubertário trouxera apareceu logo após o período de ridade e lei, também ressalta a falha na internalização da
latência, por meio de acting outs, como aponta Levisky função parental.
(1998). Clara solicitou da professora, da escola e depois
das namoradas algum sufrágio que a ajudasse a resistir a Considerações Finais
destrutividade da violência adolescente.
No segundo momento, fez o esboço de outra O estudo demonstrou que Clara, enquanto sobre-
jovem com um cigarro nas mãos, apontando ter 12 vivia à violência de ser empurrada para um lugar,
anos nessa época. Referiu-se a esse período como seu reagindo à ruptura com o mundo infantil, buscou na
declínio. Em seguida desenhou uma sequência de qua- figura da avó um apoio ou suporte que lhe oferecesse
tro meninas. A primeira parecia uma garotinha triste, a acolhimento e contenção da própria impulsividade que
segunda tinha um dos olhos danificado, a terceira tinha emergia com a eclosão da puberdade, suporte esse que
os olhos e a boca ressaltados, e a quarta apareceu com a sua mãe não conseguia oferecer.
um ponto de interrogação sobre a cabeça. Apontou Uma análise mais detida sobre a função subjetiva
que, nesse momento, não sabia mais definir as coisas, e a transmissão transgeracional do lugar materno nessa
era seu momento de dúvida. Na sessão em que reali- família nos convocou a refletir sobre como foi transmi-
zou o completamento de frases citou: “tempo mais feliz tida a função materna entre as mulheres dessa família.
era minha eterna, expressiva infância, adolescência é a Pareceu-nos que Clara encontra-se identificada com sua
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gia, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.
Sobre as autoras:
Kelly Lins Beserra Pinto é graduada em psicologia pela UCB e atua como psicóloga organizacional no Hospital
Santa Luzia-Brasília
Alessandra da Rocha Arrais é doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília, psicóloga clínica, psicóloga hos-
pitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), docente do curso de Psicologia, do mestrado
em gerontologia da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do mestrado profissionalizante em Saúde da Mulher e
do Idoso da FEPECS.
Katia Cristina Tarouquella Rodrigues Brasil é doutora em psicologia pela Universidade de Brasília; psicóloga clí-
nica, docente do curso de psicologia e do Programa de Doutorado e Mestrado em Educação da Universidade Católica
de Brasília (UCB).
Psico-USF, Bragança Paulista, v. 19, n. 1, p. 37-47, jan./abril 2014
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& Luisa Lara
Introdução
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O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 161
compromisso. Seria essa a realidade dos avós dos adolescentes brasileiros? Ou como
nos pergunta Aratangy e Posternak (2005: 11): “Será que os brasileiros nascem com
toda a sabedoria necessária para exercer essa função?”, referindo-se à função de avô.
Assim, nasceu o interesse em desenvolver um estudo que buscasse identificar e
compreender o lugar dos avós na configuração familiar dos netos-adolescentes, que
residem em Brasília (DF).
1
A palavra avosidade corresponde em língua inglesa a grandparenthood. Paulina Redler difundiu o termo
abuelidad em 1977, em seus estudos de psicogerontologia. Trouxe uma visão para além da idade
cronológica, ao realçar os laços de parentesco que exigirão do idoso a reestruturação psíquica ao ocupar
um novo status pessoal, familiar e social: ser avô/avó (Redler, 1986, como citado em Pedrosa, 2006).
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A crise da adolescência
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O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 165
Método
Amostra
A amostra foi constituída por dois grupos: um com 31 adolescentes que residem
com os avós (que chamaremos apenas de “residentes”) e outro com 56 adolescentes que
não residem com os avós (que chamaremos apenas de “não residentes”). Todos os
sujeitos tinham entre 14 e 19 anos e estudavam no ensino médio, em duas escolas
públicas das regiões de menor IDH em Brasília (DF).
Instrumentos
Foi utilizado o mesmo questionário elaborado para a pesquisa maior da qual este
estudo se originou. O questionário contemplou questões fechadas (dicotômicas, de
múltipla resposta e escala Likert) e questões abertas. O mesmo foi dividido em quatro
partes: a primeira ficou composta de 111 itens que diziam respeito à saúde desses
jovens, bem como as variáveis que poderiam influenciar a mesma. A segunda, por sua
vez, foi composta de 22 itens que correspondiam ao aspecto referente à família desses
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adolescentes. A parte três referente ao bem-estar desses jovens foi composta por 27
itens e, finalmente, a quarta parte, constituiu-se de questões referentes aos dados
sociodemográficos, nomeadas no questionário como “condições de vida”. Nessa última
parte, havia o item aberto com a pergunta: “Com quem você mora?” de onde foram
retiradas as respostas para realizar a separação dos grupos e compor a amostra do
presente estudo. Nas perguntas que compõem o questionário, foi utilizada a escala
Likert de 1 a 4 pontos na parte 1 e no primeiro item da parte 2, e utilizada a escala de 1
a 5 pontos a partir do segundo item da parte 2, até o final da parte 3 do questionário,
sendo que a parte 4 é relativo ao preenchimento sociodemográfico.
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Resultados e Discussão
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netos (Jaskowski & Dellasega, 1993 como citado em Araújo & Dias, 2002). Além disso,
a estabilidade financeira, emocional, entre outras, desses idosos são alguns dos motivos
do recebimento dos próprios filhos em casa e, consequentemente, dos filhos desses
filhos, os netos, tornando o papel desse idoso fundamental na família (Gladstone, 1988
como citado em Araújo & Dias, 2002).
Com os novos arranjos familiares, como os encontrados na amostra, os limites e
as fronteiras tornaram-se expandidos e difusos, levando os avós a assumir ou sobrepor
papéis diante da ausência parental da geração do meio (Goldfarb & Lopes, 2006). No
entanto, ocupar o lugar de avós exige desses avós o consentimento para que seus filhos
assumam-se como pais, desempenhando o papel educativo e afetivo. Cabe aos pais, na
posição de avós, permitirem que seus filhos assumam as funções parentais. Permanecer
enquanto elo entre as gerações é ser avô/avó, sem que seu lugar fique vazio (Penso,
2003; Goldfarb & Lopes, 2006). Seria ideal, portanto, que, com a chegada da
adolescência dos netos, os avós se colocassem como elo entre pais e filhos. Assim, no
desempenho da sua função, o avô cederia ao filho o lugar para reprodução da função
paterna/ materna.
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Comparando os dois grupos, verifica-se uma influência que esses avós têm sobre
os jovens que moram com eles, no que se refere à ideia de saúde mental, considerando
inclusive o fato de estarem na mesma residência e com uma convivência diária.
Contudo, sabe-se que a influência da geração anterior para a atual, de maneira geral, é
mais difícil, sendo esses novos modelos peculiares, pelo maior acesso a informações,
avanço da tecnologia, por parte da geração dos adolescentes. Isso também pode ser
percebido nas respostas “Concordam em parte”, isto é, essa influência dos avós revela
ser pouca na concepção de saúde mental.
Foi questionado: “Alguns jovens procuram pessoas quando têm um problema
mental/emocional. Quando eu tenho um problema mental/emocional eu procuro...”.
Dentre as respostas, houve as opções: “a minha mãe; o meu pai; os meus irmãos; a
minha avó; o meu avô; os meus amigos/as; o meu professor; uma pessoa do contexto
religioso, por ex., padre, guia espiritual; o médico de família ou o pediatra; uma pessoa
da medicina alternativa, natural; um psicólogo/psiquiatra; um outro especialista, por ex.,
neurologista; uma clínica ou hospital”, em uma escala Likert de 4 pontos. Obteve-se
como resultado: quando os jovens residentes estão com algum problema de saúde
mental/emocional procuram as suas avós (gênero feminino) (concordam em parte –
média 2,07) com significância de 0,021. Já os que são não residentes (significância de
0,048) não procuram essas avós (gênero feminino), quando estão com problemas (não
concordam – média 1,53). Nota-se que não foi significativa para nenhum dos dois
grupos a procura aos avôs (gênero masculino).
Como já foi mencionado, percebe-se, a partir desses resultados, que há uma
maior influência por parte das avós sobre seus netos-jovens. Dias (1994) pontua que a
vivência da avosidade é influenciada pelo gênero, idade e nível socioeconômico na
cultura ocidental. O autor destaca que a chegada de um neto, para a mulher de meia-
idade, pode oferecer-lhe uma nova oportunidade para experienciar a maternidade, em
forma de auto-realização emocional, e até aumentar a sua longevidade (Lachmann,
2011) e assim elas parecem se aproximar mais dos netos, podendo ser inclusive uma
referência importante para eles, como se observa neste estudo.
Diz a literatura (Dias, Hora & Aguiar, 2010; Peixoto & Luz, 2007) que é
comum, quando há um conflito conjugal, que os netos e filhos se apoiem na figura
materna e geralmente na mãe da mãe. Afirma ainda Marcondes (2009: 12) que, em sua
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pesquisa, percebeu “uma total ausência da figura do avô nos relatos; revelam-se tanto
nas falas femininas quanto masculinas, como as dinâmicas familiares, nesse grupo de
entrevistados, são essencialmente articuladas pelas e em torno das mulheres”. A autora
ainda diz que a condição de avó aparece cercada de autoridade e prestígio, mostrando-se
acolhedora, mas sem excluir as cobranças inerentes ao papel de mãe, acabando por
assumir o papel de disciplinar seus netos quando as mães destes não o fazem. Isso
contrasta com a figura branda e menos exigente que se tem de uma avó, e que, em sendo
assim, a avó exerce grande influência sobre os netos (Marcondes, 2009). Observa-se,
então, uma maior atuação do papel feminino, não do masculino, que é representado na
figura do avô.
c) Sobre como os jovens dos dois grupos se descrevem e descrevem sua mãe, pai
e avós: foi realizada no questionário a pergunta: “Tente com a lista de características
abaixo descrever a si e a sua família”. Com o item: “Por favor, descreva como você é na
sua opinião:..”. Foi utilizada a escala Likert de 5 pontos. Teve-se como resultado a não
significância no cruzamento dos dados, o que pode inferir que a maneira como esses
adolescentes se veem não é significativo pelo fato de residirem ou não com os avós.
Sendo não significativo o fato de morar ou não com os avós com relação a como
eles se veem, percebe-se que os avós não influenciam a maneira como esses
adolescentes se veem, sendo diferentes as gerações, e o impacto de uma sobre a outra.
Isto é, a geração atual se redefine, se vê de forma diferente, e é autônoma, a ponto de
esses jovens não serem influenciados pelos idosos. Além disso, conforme alguns autores
(Aberastury, 1988; Pereira, 2005), nessa fase da vida, a construção da identidade é feita
mais pelos pares e pelo mundo externo do que na base familiar. Os adolescentes se
percebem no outro, no grupo de amigos, estão em fase de exploração para além da
própria residência, não desprezando a influência da base familiar, mas agregando outros
fatores, de se perceberem e se construírem. Diferentemente de quando estão na infância
em que a referência é mais sua família.
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materna, quando muitas vezes a avó exerce a função parental para com esses netos
(Goldfarb & Lopes, 2006). Devido a diversos fatores, dentre estes, a estabilidade nesse
período de vida, a não significância na comparação entre os dois grupos pode ser
tributária ao fato de esses jovens que moram com suas avós perceberam-nas como
mães. Isso porque muitas vezes são as próprias idosas que provêm o sustento financeiro,
emocional e afetivo, bem como são as que chefiam a casa quando seus filhos saem para
trabalhar, sendo de sua responsabilidade a criação diária dos netos (Aratangy &
Posternak, 2005; Oliveira, 2009).
e) No que concerne à descrição dos pais por esses jovens, entre as opções:
satisfeito, tranquilo, medroso, animado, comunicativo, “de lua”, seguro de si,
independente, nervoso, compreensivo, atencioso e simpático: observou-se, dentre os
adolescentes que residem com os avós, que eles veem seu pai como “medroso”
(significância de 0,028 e corresponde pouco – média 2,07). Os jovens que não residem
com os avós não concordam com o pai ser “medroso” (significância de 0,057 e não
corresponde – média 1,50). Aqui, pode-se verificar que o resultado de que os jovens
residentes com os avós verem o pai como medroso pode estar relacionado com o fato de
o terem como alguém que não teve coragem de assumir a família, que fugiu do
enfrentamento da situação paterna, acarretando a separação da família; embora ainda
depositassem no pai a esperança de este assumir a família; entretanto, devido ao não
cumprimento do seu papel de pais, estes passam a ser avaliados negativamente por seus
filhos.
f) No que diz respeito a como eles descrevem esses avós: ao serem questionados
“A sua avó ou seu avô é: satisfeito/a, tranquilo/a, medroso/a, animado/a, comunicativo”,
“de lua”, seguro/a de si, independente, nervoso/a, compreensivo/a, atencioso/a,
simpático/a”, teve como resultado significativo a resposta “nervoso/a”, sendo que quem
mora com os avós (significância de 0,005) veem mais como nervoso/a (corresponde em
parte – média 3,19) do que quem não mora com os avós (significância de 0,006 e
corresponde pouco – média 2,26).
Ao analisar esses dados, é interessante notar que, em comparação com os que
não moram com os avós, os adolescentes que residem percebem esses avós como
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nervosos, já que pelo fato de estarem ali morando com eles, de estar no dia a dia,
enfrentando os conflitos de gerações, essa visão dos avós como pessoas nervosas fica
em evidência diante do papel de avós vistos como “a vovó e o vovô doce, que passa a
mão na cabeça”. Além do que os avós considerados somente em seu papel na avosidade
são vistos por seus netos como a “mãe/pai com açúcar”. Uma vez que desempenham a
função de mãe/pai ou junto com a filha/filho por estarem morando todos juntos, acaba-
se o “açúcar” devido à tarefa da função parental mais presente. Há, portanto, diante das
novas configurações familiares, o risco de se constituírem laços afetivos disfuncionais
entre avós e netos adolescentes.
Cabe ressaltar que, segundo Goldfarb e Lopes (2006), ainda que os avós
desempenhem o papel parental, os filhos, agora pais, não deixarão de ser pais/mães
porque a função foi transferida. Contudo, o lugar e a função dos avós podem se
confundir ao dos verdadeiros depositários destes papéis, tendo em vista os desafios
sociais e econômicos que a família enfrenta na contemporaneidade. Neste mesmo
contexto, Goodman e Silverstein (2002 como citado em Lopes, Nery & Park, 2005)
consideram que, quando há ausência do pai e da mãe, os avós tendem a desempenhar as
funções parentais como pais substitutos.
Com seus papéis expandidos, podem encontrar satisfação ao oferecer benefícios
aos netos, e também ônus, em função do estresse físico e emocional (Lachmann, 2011).
Por outro lado, para Lopes, Nery e Park (2005), o idoso pode passar por este processo
de viver a experiência de ser avô, sem comprometer-se com obrigações maternas e
paternas. Pode desenvolver novos vínculos com seus netos, permitindo que
identificações sejam estabelecidas sem que haja sobrecarga ou estresse.
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a função de “mãe sem açúcar”. O dado aqui representado corrobora a literatura (Dias,
1994; Oliveira, 2009) em que geralmente é a mãe da mãe que ocupa essa função.
Considerações Finais
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Recebido em 02/02/2012
Aceito em 20/02/2012
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Revista Kairós Gerontologia, 15(2). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, março 2012: 159-176.
176 Alessandra da Rocha Arrais; Katia Cristina Tarouquella R. Brasil; Carmen Jansen de Cárdenas
& Luisa Lara
Revista Kairós Gerontologia, 15(2). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, março 2012: 159-176.
14
Capítulo 7
A AVÓ COMO SUPORTE PARENTAL NA ADOLESCÊNCIA: DISCUSSÃO
CLÍNICA
ADOLESCÊNCIA
A palavra adolescência deriva do latim adollacentia e significa processo de
crescimento em direção à maturidade (Pereira, 2005). Contudo, esse momento da vida do
sujeito nem sempre teve um lugar de reconhecimento social confortável. Segundo Marty
(2006b), no inicio do século XX a adolescência estava associada à noção de periculosidade
e mesmo de criminalidade. Grossman (2010) chama atenção para o fato de que no século
XX a ideia da adolescência como uma etapa da vida dotada de características próprias é
consolidada e assume um estatuto legal e social acompanhado pela ideia de ser uma fase
potencialmente de risco.
1
A Psicanálise, por sua vez, no início do século XX abordou a puberdade e a
adolescência revelando algumas particularidades sobre esse período da vida. Primeiramente,
ela destaca que na adolescência há uma reedição da sexualidade infantil e que sua dimensão
incestuosa é reativada e dá a ela um caráter conflituoso e fantasmático. Savietto e Cardoso
(2006) destacam que a experiência subjetiva de ruptura com a vida infantil rumo ao mundo
adulto, reedita os conflitos edipianos que na adolescência se fazem mais ameaçadores, tendo
em vista a maturidade sexual, de modo que o sujeito se depara com as transformações
corporais e a necessidade de integrá-las sem se perder em meio ao paradoxo de “mudar e
permanecer o mesmo” (Marty & Cardoso, 2008, P. 11).
Segundo Pereira (2005), nesse período particularmente crítico, o jovem abandona as
identificações da infância tentando se diferenciar dos valores estabelecidos pelos pais e pela
cultura em um movimento de afastamento em relação às vivências infantis e aos pais da
infâncias. Todavia, ele é habitado, mesmo que de modo inconsciente, pelo casal parental,
que integra a vida psíquica dos adolescentes, tanto como objetos sedutores como
perseguidores (Marty, 1977).
Nesse contexto, as mudanças corporais e psíquicas produzidas com a entrada na
puberdade, exigem um suporte parental para que o sujeito pubertário não se sinta devastado
narcisicamente pelas transformações que o atingem. Esse processo sinaliza que o
adolescente precisará de sólidas bases narcísicas, no entanto, se as relações objetais
primárias forem insuficientes para essa função, as falhas narcísicas poderão ser
incontornáveis (Savietto e Cardoso, 2006). As primeiras relações objetais são fundamentais
para a consolidação narcísica do adolescente, contudo, desvincular-se e desinvestir dos
primeiros objetos é, segundo as autoras, um “mal necessário”, pois é preciso destituir as
identificações primárias do lugar de onipotência e estabelecer novas identificações
secundárias.
Nessa perspectiva, contar com um apoio narcísico consistente é um recurso que
permite ao adolescente suportar o turbilhão de emoções que emergem com as mudanças
corporais e psíquicas iniciadas na puberdade. Esse apoio se refere à sustentação advinda dos
adultos no momento em que o adolescente se encontra com sentimentos de desamparo que
o fragilizam narcisicamente. De modo que o apoio parental poderá fornecer ao sujeito as
bases para que no momento da reorganização identificatória na adolescência, ele possa
dirigir seu investimento a novos objetos.
Assim, no contexto da adolescência os adultos serão particularmente solicitados,
pois terão que ajudar os adolescentes a enfrentarem no real do corpo as visíveis
2
modificações pubertárias, bem como, deverão exercer a função de para-excitação e de
continente, daquilo que neles esteja transbordante. A tão anunciada crise da adolescência se
refere a esta falta de controle das pulsões que ameaçam o eu. O risco dessa situação é que os
adolescentes podem não encontrar a sua volta um apoio parental que possa sustentar a
posição de suporte e de continente para o desafio pubertário, pelo contrário, alguns
adolescentes enfrentarão sozinhos este período e, essa situação poderá complexar
sobremaneira este momento da vida (MARTY, 2006a).
Savietto e Cardoso (2006) lembram que o termo “apoio narcísico parental”
introduzido por Gutton e desenvolvido por Marty (1999), se relaciona ao processo de
elaboração da violência pubertária que necessita de uma confiabilidade dos pais no processo
da adolescência. No entanto, vale à pena destacar que os adultos podem sentir-se
desamparados frente ao desafio de enfrentar a violência destrutiva do pubertário. Assim,
alguns pais, segundo Marty (2006), desconhecem as formas de proteger seus filhos da
violência contra si mesmos ou não conseguem resistir a destrutividade adolescente, de modo
que a fragilidade dos adultos não contribui para que os adolescentes encontrem o apoio
narcísico parental para enfrentarem algo de si mesmo que os escapa.
Segundo Goldfarb e Lopes (2006), foi a partir do século XIX que a configuração
familiar ganhou status de núcleo de segurança e amor, onde a mãe desempenhava as funções
de apoio afetivo e emocional e ao pai cabiam as funções estruturais, associadas à autoridade
e a responsabilidade moral. O impacto produzido desde a revolução industrial, incidindo
diretamente nas relações familiares, separou os contextos do trabalho, do lazer e do convívio
com a família.
De acordo com Penso (2003) e Sarti (2008), para a família manter seu equilíbrio, ela
se desdobra em relações complexas para atender às demandas que vão surgindo. Contudo,
algum membro da família pode não corresponder ao papel que lhe é atribuído na dinâmica
familiar, por exemplo, há casos em que a mãe permanece vinculada ao papel de filha e não
consegue exercer a função materna, assumindo um modo de relação fraterna e simétrica
com seu filho ou filha, delegando a função materna aos avós. Os avós, segundo Goldfarb e
Lopes (2006), permitem que a criança e o adolescente vivam seu lugar filial em um tempo
provisório, no entanto, esse funcionamento cria um dilema para a criança ou para o
adolescente sobre os verdadeiros depositários desses papéis.
3
Segundo Lopes e Goldfarb (2006), as falhas parentais ocorrem quando, os pais, não
conseguem realizar a operação simbólica das funções paterna e materna para que a criança
estabeleça as identificações primárias que asseguram a estabilidade do eu. Contudo,
Monteiro e Lage (2007), destacam que os pais não são os salvadores do desamparo
adolescente, pois sempre haverá uma falha, de modo que a experiência da falha parental
convocará o sujeito a um trabalho de elaboração.
Entretanto, com as mudanças nos laços familiares, caso os pais fiquem
impossibilitados de assumirem suas funções parentais, os avós podem ser chamados a
assumirem esse lugar de modo que possam assegurar um apoio parental para seus netos
pubertários e adolescentes. Portanto, nas novas configurações familiares, os avós podem ser
convocados a assumirem o lugar das figuras parentais, pois oferecerão o apoio narcísico
necessário para que seus netos adolescentes resistam e não sucumbam aos impulsos
destrutivos que emergem nesse período. Assim, ao assumirem essa função, os avós irão
sobrepor as responsabilidades de mãe/pai e avó/avô no exercício de suporte à família.
4
contradições da sociedade se refletem em um modo de relação familiar em que adultos se
mantém em posições infantilizadas e com grandes dificuldades em assumir seus lugares de
pais. Nesse cenário, os avós podem assumir o lugar parental quando os pais falham nessa
função.
METODO
Trata-se de um estudo de caso qualitativo que se desenvolveu a partir do
atendimento psicoterápico. Participou deste estudo uma adolescente, com 15 anos de idade,
do sexo feminino, estudante do ensino médio de uma escola pública do Distrito Federal. A
adolescente foi encaminhada para o atendimento psicoterápico em uma clínica escola
universitária pelo Conselho Tutelar de sua cidade, o qual determinava o cumprimento da
medida protetiva prevista no artigo 101, inciso V (acompanhamento psicológico), do
Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
As questões éticas envolvendo seres humanos foram incorporadas a este estudo
respeitando as diretrizes e normas que regulam as pesquisas com os seres humanos. O
estudo garante sigilo e proteção à adolescente evitando expô-la a situações que
potencializem seus riscos.
A adolescente que protagonizou o caso clínico, a qual será chamada de Ana1. Ana
foi atendida individualmente em psicoterapia de orientação psicanalítica. Os atendimentos
Psicoterápicos ocorreram uma vez por semana, com duração de 50 minutos e as sessões
foram relatadas por escrito e arquivadas em um prontuário clínico. O estudo de caso em
psicanálise, segundo Guimarães e Bento (2008), busca a construção do sentido no contexto
da clínica psicoterápica seguindo a constituição páthica dos pacientes.
Esse estudo se apoiou na abordagem clínico-qualitativa, tendo como embasamento
teórico a Psicanálise, que possibilitou a organização e interpretação do material clínico,
considerado os aspectos conscientes e inconscientes que regem o processo de Ana no
círculo de convivência, com sua mãe e sua avó.
Inspirando-se no método adotado por Conti (2004), optou-se por limitar o material
registrado nas sessões clínicas a dois blocos de informações: 1) Descrição e
contextualização do caso: contexto clínico e familiar; 2) Análise interpretativa.
1
Nome fictício utilizado para preservar o sigilo das informações e da identidade real do sujeito.
5
RESULTADOS E DISCUSSÃO
6
funcionavam como uma defesa para que Ana não se fragmentasse diante de narcisismo
frágil.
Ana expôs também seu sentimento de insatisfação pelo afastamento de sua mãe e
que esse distanciamento estaria ainda maior, tendo em vista um recente relacionamento
amoroso de sua mãe. Sobre esse afastamento, Ana disse: “eu só queria que minha mãe
ficasse mais em casa“. Ana parecia não ter clareza sobre o lugar que ocupava na vida de sua
mãe, uma vez que ela era fruto de uma breve relação sexual com pouco envolvimento
afetivo.
A casa de Ana era preenchida pela presença e pela autoridade feminina, em especial
da avó materna, uma vez que a mãe diante das dificuldades em assumir o lugar parental
adotava o lugar de irmã mais velha de Ana, delegando à sua mãe a encargo de suporte
parental dentro dessa família marcadamente feminina, Ana nomeava sua casa como “a casa
das mulheres”, pois além dela, sua avó se ocupava também de sua irmã mais nova.
No desenho a baixo, Ana ilustrou suas angústias da passagem da puberdade para a
adolescência.
Neste desenho Ana esboçou alguns elementos da sua história familiar e as fantasias a
ela associadas. Ao falar do seu desenho, Ana relatou que seu nascimento foi o resultado do
encontro sexual de apenas uma noite entre seus pais. Ana lamentava este fato e falou:
“gostaria de ter uma família tradicional” e expressando pesar, destacou o distanciamento do
pai durante a gravidez de sua mãe.
7
Ana divide seu desenho em dois, na primeira parte retrata sua infância, onde aparece
seu nascimento e a entrada na escola, descrita e ilustrada como um período de alegria e de
serenidade. Na segunda parte do desenho, Ana ilustra sua puberdade, indicada com a
inscrição da palavra “decadência”, escrita na parte superior da linha logo após a idade de 10
anos, período pubertário. Nesse período as interrogações sobre o afastamento do mundo
infantil e a entrada no mundo adolescente se fazem presentes e a escola que para Ana na
infância é retratada como um lugar de sol e de ludicidade, na adolescência passa a ser
ilustrada no desenho como uma caixa quadrada acima da qual ela escreveu a palavra
“chatice”.
8
obrigação de abandoná-las sem perder a continuidade de si e os privilégios do mundo
infantil.
Na fala de Ana, o segundo parque de diversões representa simbolicamente sua
vivência da adolescência que se evidencia como um período de possibilidade para encontrar
novos objetos de investimentos e de identificações secundárias, como o namorado e os
amigos, que estão no parque a sua espera. Ana consegue identificar esses bons objetos no
segundo parque, mas ele ainda possui características ameaçadoras, tal como sua
adolescência e sua sexualidade. Essas ameaças podem ser identificadas na fala a seguir:
“(...) ando muito angustiada, me sinto diferente das pessoas. Às vezes acho que
estou delirando, mas sei que não é um delírio, é uma sensação estranha, me sinto diferente
das pessoas, é algo que fica dentro da minha cabeça (...) gostaria de gritar e colocar tudo
para fora”. Ana expressa o estranhamento de si mesma e a intensidade das angústias
advindas com a eclosão da adolescência. Transformações que exigiram de Ana um grande
esforço psíquico para conciliar as exigências pulsionais e as demandas do meio social.
9
A manifestação dos conflitos com a neta, em plena adolescência, aciona suas
questões emocionais e subjetivas, fazendo com que ela entre em contato com suas
dificuldades em colocar os limites de que Ana precisa para se organizar internamente. A avó
expressou também o desejo em delegar essa função a sua filha, mãe de Ana, e poder ela
nessa altura da vida ter mais liberdade sem as obrigações de se ocupar de suas netas. Sobre
esse desejo seguem as seguintes falas: “hoje eu também quero sair, ficar na casa das minhas
amigas e descansar... mas tenho medo de dormir e acordar morta... se não for eu na vida
dessas meninas, eu não sei o que pode acontecer com elas”. Pelas falas da avó de Ana, nota-
se que esta se encontra em meio ao conflito de ter que assumir um lugar de substituta
materna, para cumprir um papel que lhe foi imposto pela impossibilidade de sua filha em
assumir essa função.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
10
A psicoterapia proporcionou um espaço de elaboração para os conflitos dessa
adolescente que vivenciava suas transformações como um ataque à estabilidade da sua
identidade. Assim, os ataques ao outro possuíam as marca desse conflito e se caracterizavam
como um modo de defesa para Ana.
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15
Revista Eletrônica de Psicologia e Políticas Públicas Vol.1 N°1, 2009 Acesso através do site do CRP-09 www.crp09.org.br
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Resumo
O presente estudo teve como objetivo analisar as percepções da equipe de saúde do centro
obstétrico do hospital HRAS sobre a participação do pai no momento do parto e nascimento e
sobre a lei do acompanhante. Trata-se de pesquisa mista qualitativa/quantitativa, que utilizou
questionário com perguntas abertas e fechadas, e a observação dos participantes para coleta de
dados. Através da análise de conteúdo, foi feita a categorização dos resultados. Entre os
sujeitos deste estudo estavam médicos, enfermeiras, técnicos de enfermagem e agentes
administrativos, totalizando 25 profissionais. Os resultados mostraram que as enfermeiras e as
agentes administrativas são favoráveis à presença do pai na sala de parto, enquanto médicos e
técnicos de enfermagem não, justificando desacordo entre: Lei do Acompanhante; estrutura
física hospitalar e privacidade das pacientes. Faz-se necessária a intervenção psicológica junto
à equipe, transmitindo seus conhecimentos e percepções do paciente, a fim de que estes possam
ter uma visão integral do processo, definindo seus objetivos e funções, facilitando a
comunicação entre pai e equipe. A sensibilização, a educação permanente dos profissionais
envolvidos e a fiscalização das autoridades institucionais favoreceriam o cumprimento e a
implementação da Lei na rede hospitalar pública, contribuindo assim para humanização do
nascimento em hospitais públicos.
Palavras-chave: Parto, Lei do acompanhante, pai, equipe obstétrica.
1
Psicóloga clínica, em finalização de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde (Psicologia Hospitalar) pela
Universidade Católica de Brasília (UCB) / Funiversa.
2
Psicóloga clínica, em finalização de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde (Psicologia Hospitalar) pela
Universidade Católica de Brasília (UCB) / Funiversa.
3
Psicóloga clínica e hospitalar. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB); Professora do
Curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB) e Coordenadora do Curso de Especialização em
Psicologia aplicada à Saúde (Psicologia Hospitalar) da Pós-Graduação da UCB e da Funiversa. Orientadora da 1ª e
2ª autoras. E-mail: arrais@ucb.br
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Abstract
This paper aims to analyze the perceptions of the health team of the obstetric center of HRAS
hospital on the participation of the father at the moment of the childbirth and of the Law of the
Companion. It is a quantitative / qualitative mixed research, using a questionnaire with open
and closed questions, and the comment of the participants for data collection. Through the
content analysis, the results categorization was made. Among the subjects of this study there
were doctors, nurses, nursing technicians and public agents, totalizing 25 professionals. The
results showed that the nurses and the public agents agree with the presence of the father in the
childbirth room, while doctors and nursing technicians do not, justifying disagreement
between: Law of the Companion; the physical structure of the hospital and the privacy of the
patients. The physiological intervention along with the team becomes necessary, transmitting
its knowledge and perceptions of the patient, so that these can have an integral vision of the
process, defining its objectives and functions, facilitating the communication between father
and team. The sensitization, the permanent education of the involved professionals and the
fiscalization of the institutional authorities would favor the fulfillment and the implementation
of the Law in the public hospital sector, thus contributing for humanization of the birth in
public hospitals.
Keywords: Birth, Law of the Companion, Father, Obstetric Team
Introdução
O parto envolve aspectos biológicos, psicológicos e sociais, aliados às transformações
físicas e emocionais que ocorrem com a futura mãe. É um momento de transição, no qual há a
necessidade de apoio e compreensão para que a parturiente possa enfrentá-lo e assumir sua
função ativa. A presença de um acompanhante vem assumindo um papel de suporte
psicoafetivo e social, favorecendo o conforto e encorajamento nos períodos pré e pós-parto e no
parto (Davim & Menezes, 2001).
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funcionamento dos mecanismos biológicos, faz com que os médicos se concentrem na máquina
corporal, negligenciando os aspectos psicológicos, sociais e ambientais da doença. Na
obstetrícia, a percepção da gestante não se afasta desta, onde se percebe o foco no corpo
gravídico ou na “barriga” da mãe (Caprara & Franco, 1999).
Segundo Martins (2002, citado por Dias & Deslandes, 2006), o acelerado processo de
incorporação tecnológica traz a negação dos aspectos subjetivos, fato que prejudica a relação
médico-parturiente. De acordo com Condernonsi e Stalba (2007), tais recursos tecnológicos
estão assumindo um papel de destaque na questão do diagnóstico e da assistência, porém,
usados como finalidade principal, fazendo com que a relação médico-paciente seja fator
secundário na intervenção.
O parto não é só mais uma função biológica do organismo, mas sim uma reestruturação
biológica, psicológica e social de todas as partes envolvidas no processo: mãe, pai, bebê, sendo
a equipe obstétrica grande colaboradora ou não para o sucesso dessa transição (Caprara &
Franco, 1999).
Relação Médico-Paciente
Maldonado e Canella (2003) afirmam que o profissional da área de saúde não deveria
utilizar apenas seu lado técnico, fato que impossibilita a utilização de sua dimensão humana,
parte do seu potencial terapêutico, o qual faz com que o profissional seja uma pessoa que trata
de pessoas. Em relação ao obstetra, este está diante de aspectos emocionais específicos do
período da gestação, parto e puerpério.
para o homem. Essas grandes mudanças levam a perdas e ganhos, o que justifica a coexistência
de sentimentos ambivalentes. Desse modo, o conhecimento dessas mudanças psicológicas trará
ao obstetra mais elementos para a compreensão do comportamento da gestante ou do casal
(Condernonsi & Stalba, 2007).
Segundo Tedesco (1997, citado por Condernonsi & Stalba, 2007), o obstetra possui dois
pacientes: a grávida e o feto, os quais devem ser considerados como seres inteligentes e dotados
de vida emocional. Esse profissional está presente na vida de um casal em um momento de
mudança em seus ciclos vitais, encontrando-se mais vulneráveis, sendo suas atitudes de
extrema importância para o bom andamento do ato terapêutico.
Contudo, a vigência da lei não assegura sua total implementação, já que ocorre um
processo de reorganização de protocolos nos serviços de saúde e uma reestruturação de
logística e dos profissionais que estarão inseridos nesse contexto. De acordo com Domingues
(2000), a parturiente percebe a presença do acompanhante como apoio emocional e conforto
físico, ocasionando mudanças comportamentais, não somente para a parturiente, mas também
para a equipe de saúde, já que o mesmo possui uma função importante no momento do parto,
que deverá ser respeitado pela equipe e respeitar as funções da equipe assistencial.
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Diante de tal contexto, nasceu o interesse em realizar uma pesquisa para compreender a
percepção e conhecimento da equipe de saúde a lei do acompanhante e sobre a presença do pai
na sala de parto. Portanto, este trabalho tem por objetivo, verificar a percepção da equipe no
Centro Obstétrico sobre a presença do pai no trabalho de parto e parto hospitalar, buscando
visualizar as influências de tal percepção na forma como a assistência é prestada e se a lei tem
sido cumprida no hospital pesquisado.
Método
Escolha Metodológica
De acordo com Duffy (1987, citado por Neves 1996), combinar os métodos
qualitativo/quantitativo fortalece a pesquisa. As diferenças entre os dois métodos devem ser
empregadas em benefício do estudo, combinando os métodos no enriquecimento da análise. No
caso do presente estudo, verificou-se que ambos os métodos permitem obter dados mais
completos acerca da compreensão da percepção da equipe de saúde frente à participação do pai
no trabalho de parto e parto.
Sujeitos
dos entrevistados variou entre 19 e 63 anos e nas categorias profissionais, responderam aos
questionários: oito médicos, oito enfermeiros, sete técnicos em enfermagem e dois vigilantes de
portaria, que se dispuseram a colaborar com a pesquisa. Com o intuito de obter a cooperação
dos sujeitos, estes foram informados desde o começo sobre os objetivos da pesquisa, assinaram
um termo de consentimento livre e esclarecido e tiveram suas identidades preservadas com
utilização de nomes fictícios.
Instrumentos
Procedimento de coleta
A pesquisa foi realizada no Hospital Regional da Asa Sul de Brasília – HRAS (antigo
HMIB), responsável por 517 partos/mês, sendo o terceiro hospital com maior número de partos
no Distrito Federal. Pioneiro, desde 2002, na implementação do Programa de Humanização no
Pré-Natal e Nascimento (PHPN) do Ministério da Saúde, com incentivo da Secretaria de Estado
de Saúde do DF. Também implantou o “Projeto Maternidade Segura” e “Hospital Iniciativa
Amigo da Criança”, através de cursos de sensibilização dos profissionais de saúde do referido
hospital, promovidos e ministrados pelo então chefe da Unidade da Ginecologia e Obstetrícia,
Doutor Avelar de Holanda e pela enfermagem do Centro Obstétrico e Maternidade.
leitos, seis leitos de observação, quatro salas de cirurgia e uma sala de recuperação. O objetivo
deste Bloco materno é atender à população de baixa e média renda do Distrito Federal e
entorno.
Após a aplicação dos questionários, foram realizadas visitas para observação da equipe
atuando em sua rotina de funções. A observação participante permitiu um contato direto,
principalmente, com as enfermeiras, durante a execução dos cuidados com os recém-nascidos,
nas duas primeiras visitas de observação. Nas observações seguintes, foi possível presenciar
dois partos com o pai como acompanhante, não sendo verificada a presença de médico-
obstetra, somente de enfermeiras e técnicos de enfermagem.
Procedimento de Análise
Para o tratamento dos dados, foi utilizada a análise de conteúdo segundo Bardin (1977),
definida como: “Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por
procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores
(quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens” (Bardin, 1977, p. 42). De acordo
com a autora, a análise de conteúdo tem função heurística, na qual a análise enriquece a
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Resultados e Discussão
As respostas das questões fechadas do questionário foram agrupadas, para que fosse
possível uma comparação entre os dados colhidos e a realidade da Instituição, juntamente com
uma análise das respostas das questões discursivas. Por meio de uma análise quantitativa, a
freqüência das respostas fechadas foram compiladas.
A partir dos questionários e das observações, foram coletados dados que, após sua
compilação, deram origem a seis categorias: Procedimento tomado no centro obstétrico,
Protocolo utilizado na Instituição, Lei 11.108 – direito da parturiente, Alteração do
comportamento da parturiente na presença do pai, Alteração do comportamento da equipe na
presença do pai, Vantagens e desvantagens da presença do pai.
Nessa categoria, em relação à presença do pai, percebe-se que a resposta mais freqüente
foi referente à obrigatoriedade da participação no curso de gestantes, oferecido pelo Hospital, e
a apresentação do certificado do mesmo, estando presente em 80% dos questionários. Contudo,
em uma de nossas visitas de observação, ocorreu um parto com a presença do pai, sendo este
estrangeiro (francês) e não tendo participado do curso, trazendo somente a alegação de ter
experiência por já ter participado de outro parto.
Neste mesmo dia, podemos observar também que um pai não pôde presenciar o
nascimento de seu filho por não ter o certificado do curso mencionado acima. Então, surge a
pergunta: Qual a diferença entre esses dois pais?
Outro fator interessante nesta categoria, foi que as respostas dos médicos, quando
questionados sobre a Lei, enfatizavam possíveis problemas de implementação, como por
exemplo, “falta de material”, “falta de privacidade para as outras parturientes” e apenas um dos
médicos que respondeu que a Lei “está ligada ao direito da parturiente de escolha de um
acompanhante”. Este colaborador foi o mesmo que em uma questão final indagou: “Por que o
Hospital tem que ser o primeiro a implementar tal lei?”. Pode-se perceber uma resistência por
parte dos médicos na implementação de novos protocolos, sobretudo em hospitais públicos em
que se observa uma cultura onde a postura é: ”estamos prestando um favor” ao atender o
paciente no que diz respeito a dar mais direitos aos pacientes.
Segundo Porto (1994, citado por Koifman, 2001), a incorporação tecnológica passou a
produzir, em vários níveis, efeitos colaterais, como a interferência na relação médico-paciente.
Essa racionalidade anatômica, que enumera e classifica doenças, mostrou-se insuficiente, já que
exclui aspectos importantes do adoecimento do indivíduo. Koifman (2001) afirma que a
onipotência e o autoritarismo são tentativas de negar a morte, afastando subjetividades do
paciente e do médico. Essas tentativas de negação da morte afastam os médicos da consciência
de fragilidade da natureza humana, que os mantêm onipotentes na relação médico-paciente.
Esta mesma postura se observa na obstetrícia ainda que, neste caso, não se trate apenas de
doença, mas de um momento que requer cuidados especiais.
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pai no momento do parto. A segurança foi indicada como fator relevante. Uma técnica de
enfermagem acredita que a presença do pai “dá mais segurança à mãe, acalmando-a”. Uma
enfermeira concorda com: “a mãe se sente mais segura com a presença do parceiro num
momento importante e difícil em sua vida”. Um médico também se mostrou favorável quando
diz que acredita “que seria mais vantajoso para a parturiente por permitir maior segurança
emocional”.
Segundo Nakano e Mamede (1994), a presença do pai na sala de parto não pode ser
resolvida com uma receita apenas, mas sabe-se que essa presença pode desempenhar um papel
importante na relação mãe-filho-pai. É importante obter essa relação com o obstetra, já que o
pai é parte atuante, aumentando a naturalidade e trazendo segurança para a parturiente neste
momento que mescla felicidade e medo. A presença do pai gera mudanças benéficas na
assistência fornecida pela equipe de saúde, fortalecendo as ações de humanização na
instituição. Este tipo de apoio não acarreta ônus para instituição ou para mulher, sendo que a
condição socioeconômica não é um fator limitante para sua efetivação, principalmente na rede
pública (Bruggemann, Parpinelli & Osis, 2002, citados por Kitahara, Rossi & Grazziotin,
2006).
Segundo Boaretto (2003), a presença do pai representa um dos itens de maior facilidade
de implementação em termos de custos e de adequação da área física, contudo, o livre acesso
dos pais aos serviços enfrenta, muitas vezes, restrições dos profissionais de saúde, como
pudemos observar nessa pesquisa. A política de saúde na atenção ao parto ocupa um importante
espaço na agenda sanitária na maioria dos países. O momento do parto é de grande intensidade
emocional, afetando profundamente as mulheres, os bebês, as famílias, com efeitos persistentes
sobre a sociedade. O aumento da autonomia e do poder de decisão das mulheres está associado
à valorização do parto e nascimento humanizado (Boaretto, 2003).
Pode-se supor um choque cultural nesta tentativa de implementação da Lei do
Acompanhante, entre o modelo seguido pelos médicos e o modelo de humanização do parto, já
que neste último, a mulher teria seu lado ativo no parto restaurado, pois, segundo o MS (2001,
citado por Boaretto, 2003), a mulher parturiente está totalmente insegura, submetendo-se as
todas as ordens e orientações, cada vez mais distante da sua condição ativa no parto.
A presença do pai pode reduzir a necessidade de medicações para aliviar a dor, para
reduzir o tempo de trabalho de parto, o número de cesáreas e de casos de depressão pós-parto
(Domingues, 2002). Segundo Lowndermilk et al. (2002, citados por Kitahara, Rossi &
Grazziotin, 2006), o desconhecimento da linguagem técnica dos profissionais, o ambiente
estranho pode provocar insegurança na gestante, fato que leva à tensão, medo e aumento de dor
e com isso, a presença de uma pessoa de confiança (o pai) transmite mais segurança.
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O momento do parto introduz mudanças muito intensas para o casal, pois é uma
situação próxima e irreversível, afirmam Maldonado, Dickstein e Nahoum (2000).
Montgomery (1992) afirma que a união entre o casal amenizará as sensações que estão por vir,
promovendo a solidariedade e o vínculo mãe, pai e bebê e, não apenas, o parto como evento
exclusivamente feminino.
Verificou-se que 76% dos entrevistados responderam: “o homem fica nervoso por não
entender o que está acontecendo e fica agressivo”, “despreparo do pai”, “constrangimento para
as outras parturientes” e “receio de desentendimento entre esposo e médico”.
Pinto (2001, citado por Bruggemann et al., 2007), também verificou em seus estudos
que os profissionais julgam a presença do acompanhante fator prejudicial ao atendimento,
devido à falta de preparo deste para enfrentar a situação. Segundo Brüggemann et al. (2007),
outros estudos sobre o tema percepções de profissionais e acompanhantes escolhidos pelas
parturientes demonstraram que os profissionais de saúde apresentaram rejeição inicial,
preconceito, medo de suposta violência dos acompanhantes (pais) e dos possíveis
questionamentos sobre a conduta profissional. Carvalho (2003) cita o preconceito de classes, já
que os homens pobres são vistos como descontrolados na sexualidade e na agressividade.
Contudo, um dos médicos entrevistados relatou: “tive que ser mais enérgico mantendo a
ética com a paciente, pois existe a tendência ao apoio do esposo em detrimento da orientação
médica”. Magalhães e Glina (2006) apontam a complexidade do relacionamento entre médicos
e pacientes e entre médicos e instituições públicas, que aumentam a cada dia, devido ao caráter
estressante inerente à tarefa do médico aliada às condições precárias de trabalho nos serviços da
rede pública.
Conclusão
As percepções em relação à presença do pai no parto foram diversas para cada categoria
profissional aqui estudada. Os médicos mostraram-se incomodados com a presença do pai,
demonstrando a não-aceitação de um “estranho” em seu campo de atuação. As enfermeiras,
provavelmente, pela formação acadêmica mais voltada para as questões sociais, afetivas e
humanitárias estão mais de acordo com a presença do pai durante o parto. Os técnicos de
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enfermagem têm formação mais técnica, com pouca informação acerca da legislação, ética e
cidadania. Por outro lado, as agentes de portaria, mesmo com menor escolaridade e nenhuma
formação na área da saúde, mostraram-se a favor. A proximidade desta categoria com família e
suas angústias, na porta do hospital, parece ter influência relevante na aplicação da Lei do
Acompanhante. Porém, a permissão da entrada do pai fica a mercê da caridade, dependendo da
sensibilidade de cada uma destas profissionais.
Espera-se que a pesquisa tenha contribuído para o aprimoramento das políticas públicas
no Brasil e para o processo de humanização no parto, mostrando a necessidade de maior
conhecimento da lei e consenso quanto a sua aceitação por parte da equipe de saúde. O presente
estudo pode contribuir para estimular e subsidiar a implementação da legislação em vigor,
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possibilitando para que as parturientes possam saber dos seus direitos tendo o apoio do
acompanhante.
Referências Bibliográficas
BRASIL (2005). Lei nº 11.108, Altera a lei 8,080 de 19/09/1990: para garantir às parturientes
o direito à presença do acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato no
Sistema Único de SAÚDE – SUS. Diário Oficial da União. Brasília/DF.
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parto e parto. Disponível em: http://www.uniandrade.edu.br/links/menu3/publicacoes/
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Jimenez, B. M., Herrer, M. G., & Hernandez, E. G. (2007). Burnout: Sofrimento psíquico dos
profissionais que atuam em obstetrícia. Psicologia na prática obstétrica: abordagem
interdisciplinar (pp. 123-130). Barueri, SP: Manole.
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Revista Eletrônica de Psicologia e Políticas Públicas Vol.1 N°1, 2009 Acesso através do site do CRP-09 www.crp09.org.br
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Maldonado, M. T.; Dickstein, J., & Nahoum, J. C. (2000). Nós estamos grávidos. 11 ed, São
Paulo: Saraiva.
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Revista Psicologia e Saúde 152
Resumo
Atualmente, já é possível encontrar muitos escritos a respeito da atuação de psicólogos em hospitais, principalmente
em relação a seu papel, que geralmente está associado a ajudar pacientes e acompanhantes a lidarem com suas
doenças e hospitalização. Porém, encontra-se pouco na literatura a respeito da atuação do psicólogo hospitalar
aplicada à obstetrícia. Há muitos livros e artigos que tratam a respeito da relação mãe/bebê, dos sentimentos
e emoções de casais que passam pela gestação, parto e pós-parto. Porém, não há uma sistematização de como
podemos usar este conhecimento na prática dos psicólogos nas maternidades e UTIs Neonatais. Pretendemos
com este trabalho compartilhar com os psicólogos hospitalares nossa experiência em uma maternidade e na UTI
Neonatal de um hospital privado, sugerindo uma proposta que construímos para estruturar e facilitar a atuação de
psicólogos nesta área. O mesmo é resultado de um estágio acadêmico de pós- graduação na Universidade Católica
de Brasília-UCB, realizado em uma maternidade particular de Brasília.
Palavras-chave: Psicólogo hospitalar; Maternidade; UTI Neonatal.
Abstract
Currently, it is possible to find many writings about the role of psychologists in hospitals, especially in relation to
their role, which is usually associated with help patients and caregivers cope with their illness and hospitalization.
However, there is little in the literature about the performance of hospital psychologists applied to obstetrics. There
are many books and articles dealing with the relationship mother / baby, the feelings and emotions of couples
who go through pregnancy, childbirth and postpartum. However, there is a systematization of how we can use
this knowledge in practice of psychologists in hospitals and NICUs. We intend to share this work with health
psychologists our experience in maternity and neonatal ICU of a private hospital, suggesting that a proposal to build
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS
structure and facilitate the activities of psychologists in this area. The same is the result of an academic internship
graduate from the Catholic University of Brasilia-UCB, held in a private maternity hospital in Brasilia.
Key-words: Hospital psychologist; Maternity; NICU.
Resumen
En la actualidad, es posible encontrar muchos escritos sobre el papel de los psicólogos en los hospitales,
especialmente en relación con su papel, que generalmente se asocia con ayudar a los pacientes y cuidadores hacer
frente a su enfermedad y hospitalización. Sin embargo, hay muy poco en la literatura sobre el desempeño de los
psicólogos del hospital se aplican a la obstetricia. Hay muchos libros y artículos que tratan de la relación madre
/ hijo, los sentimientos y las emociones de las parejas que pasan por el embarazo, el parto y el posparto. Sin
embargo, existe una sistematización de cómo podemos utilizar este conocimiento en la práctica de los psicólogos
en los hospitales y las UCIN. Tenemos la intención de compartir este trabajo con psicólogos de la salud de nuestra
experiencia en la maternidad y la unidad de cuidados intensivos neonatal de un hospital privado, lo que sugiere que
la propuesta de construir la estructura y facilitar las actividades de los psicólogos en este ámbito. El mismo es el
resultado de una pasantía de postgrado académico de la Universidad Católica de Brasilia-UCB, que tuvo lugar en
una maternidad privada en Brasilia.
Palabras-clave: Psicóloga del hospital; Maternidad; UCIN.
psicologia hospitalar, apresentaremos uma proposta Baltazar; Gomes e Cardoso (2010) que afirmam que a
de atuação para psicólogos que atuam ou pretendem construção de rotinas e protocolos em UTINs permite
atuar na área da obstetrícia, que foi construído que os próprios psicólogos possam eleger as famílias
por nós, durante o referido estágio curricular, que e bebês que demandam acompanhamento regular,
facilitou para estruturamos a nossa atuação nesta área colocando-se disponível a eles para as questões que
específica. surgem durante a internação. Assim, defendemos
É importante ressaltar que a demanda para a que a inserção do psicólogo em maternidades e
atuação do psicólogo nesta instituição partiu da UTINs implica na organização de uma proposta de
diretoria que nos deu total liberdade para atuarmos rotina e participação quotidiana nos acontecimentos
em todos os setores do hospital. A maternidade e a do serviço, numa proposta que não se restrinja a
UTIN, setores pelos quais eu estive como responsável, pareceres psicológicos, mas na abordagem regular
especificamente não tinham demandas formadas, foi das famílias e seus bebês. O psicólogo inserido
preciso que nós trabalhássemos esta demanda. neste contexto obstétrico, a partir de um enfoque da
Na maternidade é mais trabalhoso construir a psicologia hospitalar, irá acolher os pais e auxiliá-
demanda e fazer com que as pessoas percebam que los na vinculação entre si e com o bebê internado
ela existe a partir de cada paciente, principalmente (Terreno, 2012). A escuta destes pais e a compreensão
porque a maioria das pacientes atendidas neste setor de seus conteúdos internos é fundamental para o
“não está doente, apenas grávida”, e as pessoas não entendimento da parentalidade e de como isso está
costumam considerar que haja sofrimento no ciclo implicado diretamente com as manifestações do bebê.
gravídico-puerperal, afinal este seria um processo
natural e instintivo e “a chegada de um bebê só pode PROPOSTA DE ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO
trazer alegrias” (Arrais, 2005, p. 30). NA OBSTETRÍCIA
Há poucos casos para os quais a equipe de O quadro 1 a seguir apresenta a síntese de todas
psicologia é solicitada a acompanhar, geralmente as atividades que consideramos que o psicólogo
para os casos em que os bebês têm alguma má hospitalar pode e deve realizar em uma maternidade
formação, alguma deficiência, ou quando há alguma e na UTIN. Esta proposta de atuação baseou-se
intercorrência decorrente dos partos, ou ainda em na nossa prática construída ao longo de alguns
casos de aborto e óbitos, pois o sofrimento das mães anos de experiência na área da obstetrícia, que foi
fica mais evidente nestas situações. Raramente somos sistematizada na situação de estágio curricular, no ano
chamadas para intervir de forma a proporcionar a de 2011, e que se mostraram viáveis e eficazes para a
psicoprofilaxia das gestantes e puérperas. clientela atendida; bem como na literatura disponível
No entanto, ao longo do trabalho desenvolvido sobre a atuação do psicólogo nesta área específica. A
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS
nestes setores, foi ficando claro ser de grande sistematização das atividades que o psicólogo pode
relevância a atuação do psicólogo na obstetrícia. e deve realizar em uma maternidade e na UTIN, foi
Porém, nos deparamos com pouco respaldo teórico o principal objetivo deste artigo, onde buscar-se-á
para nossa atuação. Observamos uma lacuna teórica para cada atividade proposta, o respaldo teórico,
existente na literatura disponível na área da psicologia dialogando com os estudos e propostas realizadas
aplicada à obstetrícia, quanto à sistematização de nesta, nos últimos anos.
protocolos de atuação do psicólogo neste serviço. Em
nossa busca bibliográfica, não encontramos sequer DISCUSSÃO DA PROPOSTA DE ATUAÇÃO
um artigo que abordasse o papel do psicólogo, num 1. Ronda: A atividade de ronda refere-se a uma
centro obstétrico, durante o trabalho de parto e parto, caminhada junto a gestante pelos corredores do
a maioria deles se concentra na atuação no pré-natal hospital, entrada em enfermarias, UTIN e sala de
ou no aleitamento. Pouco também se fala sobre o parto (Camacho, 2006). Nesse momento o psicólogo
atendimento à morte na maternidade. O óbito perinatal pode utilizar-se da escuta terapêutica e de técnicas
aparece basicamente em artigos sobre a atuação nas para controle da ansiedade e dor.
UTIs Neonataia (UTINs). Com a ronda o psicólogo hospitalar possibilita
Os poucos artigos encontrados como o de Baltazar; às gestantes, puérperas e pais de UTIN, a expressão
Gomes e Cardoso (2010), reforçam a importância de uma demanda, ele reconhece a possibilidade de
de sistematizar rotinas e criar protocolos para uma haver um sofrimento, mesmo que a gravidez tenha
prática do o psicólogo em UTIN. Portanto, este sido planejada, aceita e que tudo tenha corrido bem
cenário lacunar, nos motivou a escrever uma proposta durante a gestação, parto e pós-parto. Buscamos
de atuação do psicólogo em maternidades e UTINs, sempre mostrar às gestantes e as puérperas que
na esperança de que a mesma possa inspirar e auxiliar elas têm o direito de sentirem-se tristes, mesmo ao
psicólogos interessados nesta área, contribuindo com realizarem o sonho de quase toda mulher “o sonho
a evolução da psicologia hospitalar como um todo. de ser mãe”. Procuramos então fazê-las falar sobre
Para justificar a relevância deste artigo, trazemos este sofrimento. O que fazemos é desmistificar
esta idéia, sinalizar que pode haver sofrimento, as
Quadro 1
Proposta do protocolo de atuação do psicólogo na maternidade e UTIN
Atividades Definição/ Objetivos Operacionalização
Esclarecer dúvidas e auxiliar na ambientação do Visita realizada aos os apartamentos/
paciente ao hospital, aos procedimentos que estão enfermarias nas quais os (as) pacientes
sendo feitos e ao tratamento; estão internados (as) bem como em
Fornecer orientações sobre a gestação, parto, pós- todos os leitos da UTIN.
parto e UTIN; É realizada diariamente e visa acolher
Triagem de demandas: identificar possíveis o (a) paciente e detectar possíveis
1. Ronda
pacientes para admissão na psicologia; demandas para a psicologia.
Desmistificar o mito da “mãe perfeita”;
Realizar uma breve avaliação psicológica do (a)
paciente e breve exame do estado psíquico do (a)
mesmo (a)
Proporcionar uma escuta atenta à paciente que Atividade que proporciona atendimento
passa por um momento delicado de mudanças individual às parturientes, puérperas
intensas; que por algum motivo estejam passando
Quando necessário desenvolver avaliação por alguma dificuldade, devido ao
2 . psicológica, por meio de testes específicos. (por processo de internação, gestação, parto,
Atendimento exemplo, nos casos dos transtornos emocionais do dificuldades com a amamentação, entre
de Apoio pós-parto); outros.
Individual às Realizar os encaminhamentos para outros Verificamos as necessidades das
gestantes e profissionais parturientes e puérperas e trabalhamos
puérperas Resgatar sua auto-estima e autoconceito; suas dificuldades;
Assegurar a parturientes/puérpera a possibilidade
de manutenção de uma boa qualidade de vida, em
vista das mudanças.
fazendo sentir menos a sensação de estranhamento puérperas tem lidado com a gestação, com a chegada
e inadequação, e abrimos então o espaço para a do parto e do bebê, bem como com a internação do
escuta deste sofrimento. Se a mulher ousa expressar bebê. De acordo com esta primeira conversa, temos
qualquer sentimento negativo, tanto com a gestação uma visão panorâmica da pessoa de cada pessoa
quanto com a chegada do bebê, logo se diz que ela atendida nos setores em questão e podemos fazer uma
está “rejeitando o filho”.Esse tipo associação, que é triagem das gestantes e/ou puérperas que merecem
muito recorrente, é superficial, de cunho excludente uma maior atenção da psicologia, identificando as que
e pejorativo. Essas mulheres acabam se sentido uma precisam de um atendimento individual e indicando
“aberração da natureza” favorecendo ainda mais para para os atendimentos de grupo.
o aumento do sofrimento (Arrais, 2005). 2. Atendimento de Apoio Individual às gestantes e
Desta forma, fica mais fácil que as pacientes e puérperas: Os atendimentos individuais são realizados
seus acompanhantes falem de suas dificuldades e de em uma perspectiva breve, durante o período em que
seus sofrimentos e de entender como as gestantes ou as gestantes e puérperas permanecerem internados
o confronto do bebê real com o imaginário, dentre para entender o que se passa com ela. O psicólogo
outros. Atendemos individualmente também àquelas poderá utilizar técnicas de relaxamento e visualização
gestantes e puérperas que perderam seus bebês ou tanto durante o trabalho de parto, quanto durante a
durantes a gestação ou após o parto. espera para a cesárea para aliviar a dor e controlar a
3. Atendimento de Familiares e Acompanhantes: ansiedade.
Realizamos atendimentos aos familiares e Além disto, a Política Nacional de Humanização
acompanhantes por considerarmos que a família (Brasil, 2007) fala da importância da mulher ter um
sofre com o impacto da internação e hospitalização acompanhante no momento do parto, sendo este um
da gestante, parturiente ou puérpera. Este sofrimento direito seu. Defende que o parto envolve o fisiológico,
pode estar relacionado com o impacto da notícia de social, cultural, afetivo da mulher e da comunidade,
uma gestação e/ou com o nascimento de um novo ser logo não há motivo para que a mulher permaneça sem
na família, tanto no que diz respeito ao parto quanto a acompanhante neste momento devemos incentivar
chegado do bebê. Eles, assim como os pacientes, têm principalmente, a participação do pai do bebê, se
temores, receios, dúvidas, inseguranças, ansiedade, esta for da vontade da parturiente. Esta participação
fantasias que causam seus sofrimentos, necessitando é benéfica tanto para a parturiente, quanto para o pai
de apoio tanto no momento da gestação quanto do e para o bebê, afirmam estudos como os de Carvalho
pós-parto para superarem essas dificuldades. Os (2003) e Perdomini e Bonilha (2011). A mulher se
acompanhantes e familiares de gestante e puérperas, sente mais amparada quando seu companheiro está
também precisarão delimitar um novo espaço para presente, ele poderá mencionar palavras de incentivo.
o bebê e pensar sobre os papéis de cada um, cada Para este, a sua presença pode estar carregada se
membro deverá se recolocar com a chegada de um sentido positivo o que favorece para que ele não se
novo membro (Szjer, 1999). O psicólogo hospitalar sinta excluído de um momento tão importante de sua
deverá ajudar neste processo de delimitação do espaço vida que a chegada de seu filho. Ele pode se sentir
e papéis, ajudar os pais, avós e filhos mais velhos a se deslocado, ou o sofrimento de sua companheira pode
adaptarem com a novidade de um novo membro na lhe causar grande desconforto, neste caso, a atuação do
família favorecendo para um funcionamento saudável psicólogo hospitalar será apoiar este pai. A presença
do pai no momento do parto é de grande importância contato e de fugir do contato quando não suportam o
também para a construção do vínculo entre ele e o excesso de dor, de estimulação ou de estresse (Brasil,
bebê. O bebê já conhece a voz de seu pai que foi 2002). É preciso estar atento a esta comunicação do
ouvida durante toda a gestação, sendo para o bebê um bebê.
conforto ouvir esta voz durante o seu nascimento. Fala-se muito sobre os efeitos negativos da
De acordo com Fighera e Viero (2005), a ansiedade hiperestimulação, mas frequentemente esquecemo-
provocada pela possibilidade de uma intervenção nos que a hipoestimulação também pode ter efeitos
cirúrgica pode afetar o paciente se este sentimento negativos sobre o desenvolvimento do bebê. O
não for expresso e conscientizado. Os momentos importante é que o bebê possa receber atenção
que antecedem a cirurgia são vivenciados pelo (a) em equilíbrio, que levem em consideração suas
paciente de uma forma dramática e assustadora. necessidades psicoativas (Andrade, 2002).
O medo do desconhecido é a principal causa da Ao pensarmos no bebê internado na UTIN,
insegurança e da ansiedade do paciente pré-cirúrgico. devemos lembrar que ele, assim como o bebê que
Ele teme a morte, a anestesia, o procedimento em si, a nasceu saudável, precisa ter seu desenvolvimento
recuperação (Fighera & Viero, 2005). Segundo Szejer afetivo preservado e, para que isso ocorra, será
(1999), as parturientes submetidas à cesárea tendem preciso da presença dos pais (Brasil, 2002; Baltazar;
a vivenciar a mesma apenas como uma cirurgia, Gomes & Cardoso, 2010). Cunha (2002; 2012)
diminuindo a importância deste momento. Diante mostra que o bebê prematuro, mesmo doente, tem
dessas características quanto à cesárea, consideramos sua capacidade de sedução muito desenvolvida para
de grande importância à assistência do psicólogo para conquistar o cuidador. Devemos então ajudar os pais
a preparação para a cesárea, bem como durante a a serem conquistados por seu bebê. O psicólogo
mesma, ajudando-as a lidar com os medos da cirurgia, poderá apresentar o bebê aos pais, mostrar a eles as
podendo assim vivencia um momento único em suas competências já existentes no seu bebê tais como se
vidas, o no nascimento de seus filhos. virar na direção de suas vozes; mostrar a diferença
5. Atendimento aos bebês na UTIN: Vários nos valores de saturação e oxigênio na presença deles,
estudos têm mostrado a importância tanto da vida a sensibilidade ao toque.
intra-uterina quanto dos primeiros dias de vida do É importante observar ainda a mudança do
recém-nascido no desenvolvimento psiconeuromotor ambiente intra-uterino para o ambiente fora do útero
do mesmo (Corrêa, 2002, 2102, Cunha, 2102). As e o impacto dessa mudança no bebê. Ainda no útero,
rotinas das UTIN tradicionais impedem, de certa Andrade (2002) destaca que ele já realiza atividades e
forma, que o bebê receba os cuidados que o bebê a brincadeiras, tais como: tocar na placenta, se agarrar
termo e saudável tem, determinando superestimulação no cordão umbilical, empurrar a parede amniótica
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS
sensorial, dor, estresse e principalmente alteração com os pés, leva a mãe à boca, dentre outras. Sta
dos ritmos comportamentais: estados de sonolência mesma autora também aponta para um interesse do
interrompidos, choro não consolado, posição supina, bebê em tocar os limites da incubadora com os pés,
manuseio rotineiro e excessivo, ruído ambiental mãos e cabeça como uma forma de sentir-se seguro,
inadequado, pouca oportunidade de sucção e absoluta bem como o interesse em segurar objetos (a sonda,
falta de interação com o olhar, do toque contingente por exemplo). Desta forma, pode-se colocar um
e da linguagem articulada que nomeia o mundo. Esta tecido sobre o corpo do bebê (quando possível) e
vivência poderá influenciar nos desenvolvimento do possibilitar-lhe um ponto de apoio, segurar algo. Estes
bebê. Porém, por meio de mudanças nos cuidados recursos podem significar para ele uma continuidade
na UTIN, pode ser possível a obtenção de melhorias importante para a organização da vida psíquica no ser
de diversos aspectos do desenvolvimento do bebê humano.
internado (Cunha, 2002; Silva, 2002, Cunha 2012). Como apresentado no quadro acima, a atuação do
O principal instrumento que deve ser utilizado psicólogo na UTIN deverá favorecer a humanização do
para minimizar o impacto negativo da internação atendimento ao bebê internado, isto significa intervir
são as pistas ou os sinais do bebê, reconhecer estas tanto no ambiente físico quanto no ambiente humano
pistas e sinais, tornando-o um parceiro competente na que cerca o bebê (Baltazar; Gomes & Cardoso, 2010).
interação, sendo papel do psicólogo ajudar a equipe O Manual de Atenção Humanizada ao recém-nascido
a reconhecer estas pistas (Silva, 2002, Cunha 2012). de baixo peso (Brasil, 2002) dos apresenta algumas
É importante lembrar que mesmo sendo bebê, este sugestões que podem ser utilizadas pelos psicólogos
deve ser considerado como sujeito dotado e emoções, para favorecer a humanização na UTIN, tais como:
que sente dor e possui sua própria individualidade conversar com o bebê, explicar-lhe por que está na
que deve ser respeitada. Como psicólogos, devemos UTI; oferecer conforto através do toque; friccionar as
ajudar a equipe e a família na busca da segurança mãos para aquecê-las antes de tocar o bebê; chamá-
psíquica do bebê, minimizando ao máximo este lo pelo nome, orientando a equipe a fazer o mesmo;
sofrimento (Baltazar; Gomes & Cardoso, 2010). Os orientar a equipe a também conversar com o bebê
bebês são capazes de manifestar prazer, dor, de buscar e avisar sempre que for fazer algum procedimento.
Lembrando de estar atento para os sinais de estresse qualidades e capacidades de seus bebês; orientá-los
do bebê. e favorecer na participação dos cuidados com o bebê,
6. Atendimento e acompanhamento das famílias para se aproximarem da função de pai e mãe; ajudar a
com bebês na UTIN: Na UTIN fundamentamos comunicação pais/equipe, entendendo que a equipe é
a nossa atuação em uma pesquisa que abordou o alvo de projeção dos pais.
sofrimento das mães na UTIN, na qual as mães desta Estes autores acrescentam ainda que o psicólogo
instituição foram as participantes entrevistadas. Nesta deverá ajudar os irmãos dos bebês de UTIN a lidarem
pesquisa pudemos perceber quais eram os principais com esta nova situação. A chegada de um bebê saudável
motivos de sofrimento nos permitindo atuar junto já provoca mudanças que podem trazer sofrimento
às mesmas, tais como: se deparar com o bebê real, para os filhos mais velhos do casal, a internação do
que é diferente do bebê imaginário; o contato com bebê poderá agravar este sofrimento, pois certamente
um ambiente estranho; o medo da perda do filho; irá levar a uma separação maior com os pais (Morsch.
a insegurança de lidar com um “bebê problema”; o & Delamonica, 2005). Torna-se difícil também para
sentimento de culpa e fracasso; o relacionamento com os pais se dividirem entre os filhos que estão em casa
outros profissionais; a falta de informação sobre o o que se encontra na UTIN. O psicólogo poderá atuar
estado de saúde do filho e tratamento, dentre outros então favorecendo visitas dos irmãos mais velhos,
(Mourão, 2006). Consideramos, e temos observado, incentivando na participação dessa experiência
que os pais e os avós também sofrem com a internação junto com a família; ajudar na compreensão do que
do bebê e também necessitam de apoio. ocorre com o bebê; auxiliar para reforçar seu lugar
Além dos sentimentos citados acima, todas as na família (Valansi & Morsch, 2004). Lembrando que
referências sobre maternagem, paternagem e cuidados na intervenção junto aos irmãos, deve-se levar em
com o bebê apresentadas pela família, parecem não consideração a idade do irmão orientando de forma
fazer sentido, pois ele encontra-se internado, sob o que sua estrutura cognitiva permita a compreensão da
cuidado da equipe de saúde. Quando o bebê nasce situação (Morsch. & Delamonica, 2005).
prematuro, o casal não pôde viver psiquicamente no A principal função desse trabalho com a família
final da gestação as questões próprias deste período na UTIN é proporcionar a psicoprofilaxia ao
para a preparação da chegada do bebê (Valansi & desenvolvimento das relações desse grupo familiar,
Morsch, 2004), desta forma, será preciso então integrar além de minimizar o sofrimento daqueles que têm um
a realidade a vivencia da família. O psicólogo deverá bebê internado (Brasil, 2002), incluindo seus irmãos.
então ajudá-los a fazer esta integração, possibilitando- 7. Pré-natal psicológico: O pré-natal psicológico
os falar sobre essa vivencia, a falarem sobre este é complementar ao pré-natal tradicional realizado
nascimento e internação, que provavelmente não era pelo médico, tem caráter psicoterapêutico e oferece
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esperado, ajudá-los a abrir espaço para o bebê real e apoio emocional, discute soluções para demandas que
fazer o luto do bebê imaginário. podem surgir no período gravídico-puerperal, como
Para isso é de fundamental importância à presença aquelas relacionadas aos mitos da maternidade, sua
dos pais no ambiente da UTIN, a presença deles neste idealização, à possibilidade da perda do feto ou bebê,
ambiente é tão importante para o bebê quanto para eles gestação de risco, malformação fetal, medo do parto,
próprios. Segundo Andrade (2002), quando os pais da dor, transtornos psicossomáticos, transtornos
são privados de ver seu bebê logo após o nascimento, depressivos e de ansiedade, mudanças de papeis
eles podem apresentar dificuldades em demonstrar um familiares e sociais, alterações na libido, conflito
sentimento caloroso e espontâneo em relação ao bebê. conjugal, ciúme de outros filhos, planejamento
Afinal de contas, quando o bebê nasce prematuro, os familiar, além de sensibilizar quanto à importância do
pais também se encontram prematuros na aquisição plano de parto e do acompanhante durante o trabalho
de suas funções de pai e mãe, e o contato com o filho de parto e parto (Cabral; Martins; Arrais, 2012).
era favorecer para a construção desses papéis. Porém, Essa intervenção, também denominada
deverão receber o apoio necessário ao freqüentarem de psicoprofilaxia por Bortoletti (2007), justifica-
ao UTIN, será preciso criar um ambiente propício se segundo Maldonato (1982) por ser preventivo
à formação e ao fortalecimento dos laços afetivos em vários aspectos: modificações da identidade da
(Baltazar; Gomes & Cardoso, 2010). gestante; acompanhar a gestação do vínculo pais-
Procuramos também seguir as sugestões trazidas bebê; trabalhar o desenvolvimento da confiança
por Valansi e Morsch (2004) e Morsch e Delamonica na própria percepção e na própria sensibilidade;
(2005). Eles nos apresentam algumas atividades que ampliar recursos do casal como agente de prevenção
podem ser realizadas na UTIN junto aos familiares, (Wendland, 2012b) com outras pessoas da família; e
tais como: colocar-se como referência na equipe, conscientização dos pais em relação ao atendimento
pois há uma grande rotatividade de profissionais; que recebem e à reivindicação de suas necessidades.
ajudar os pais a olhar este bebê como um outro, Além desses aspectos preventivos o grupo pode
para que possam investi-lo como sujeito; ajudar colaborar e desmistificar alguns temas importantes,
na comunicação pais/bebês, mostrando aos pais as como cuidados com amamentação, cuidados com o
bebê, a maternidade idealizada. pessoa pode ajudar a elaborar sua própria vivência.
Para participar do pré-natal psicológico, a gestante 9. Atendimento Psicológico em domicílio: Em
não precisa, necessariamente, estar atravessando alguns casos o contato é estendido para atendimento
dificuldades emocionais. Basta explicitar o interesse domiciliar ou por telefonemas aos pacientes, quando
para construir o novo papel materno ou para aprimorar consideramos o caso grave ou numa tentativa de
tal função de responsabilidade e complexidade, assegurar que as gestantes e pais se sintam mais
uma vez que a construção do vínculo mãe-bebê-pai seguros e amparados. São casos como, por exemplo,
demanda tempo e elaboração (Terreno, 2012). óbito de algum bebê da UTIN, em que a equipe da
O pré-natal psicológico objetiva, ainda, psicologia não estava presente, cujos pais vinham
proporcionar as gestantes um entrosamento com sendo acompanhados por nós, ou quando verificamos
outras mulheres que comunguem sentimentos a necessidade, ou seja, percebemos que na alta algo
e emoções presentes nessa fase de suas vidas, não estava bem.
favorecendo o mecanismo de identificação. Os Nos casos de óbito, este contato é feito por nós,
encontros do grupo têm por finalidade acolher e dar na maioria das vezes, com o intuito de favorecer a
voz a elas, informar, orientar e prepará-las para que elaboração do luto, pois, o que se observa, tanto nestes
passem por esse processo da melhor maneira possível. casos quanto em casos de aborto, é que as pessoas que
Para tanto, diversos temas são desenvolvidos ao estão em volta negam o sofrimento destes pais.
longo da existência do grupo, levando-se em conta as Os contatos são estendidos também a puérperas
características e necessidades deste homem no ciclo que nos procuram, já que no momento da ronda
gravídico-puerperal e as mudanças que ocorrem neste citamos este atendimento domiciliar aos pacientes,
período. pois entendemos que as maiores dificuldades irão
8. Atendimento psicológico de apoio a grupos aparecer quando elas voltarem para suas casas. Tendo
tais como: pais de UTIN; pais de bebês de 0 a 1 ano; em vista que neste hospital os cuidados do bebê são
gestantes, puérperas em sofrimento psíquico: Assim realizados em grande pela auxiliar de enfermagem, em
como Delfino (2004), entendemos que o contexto casa ela deverá assumir estes cuidados (acrescentar –
grupal desenvolve naturalmente um espaço para a diferença do bebê real x imaginário, o conhecimento
o movimento da promoção da saúde através de um do bebê). Não pretendemos com os atendimentos
processo de ensinar-aprender. As ações educativas em domiciliares seja um acompanhamento contínuo e
saúde mediante atividades grupais com indivíduos prolongado, são intervenções pontuais. Caso seja
em situação de vida comum, podem se constituir num verificada uma necessidade de um acompanhamento
método privilegiado de investigação-intervenção. Os prolongado, fazemos o encaminhamento necessário.
grupos que aqui propomos - pais de UTIN, pais de 10. Interconsulta: Como dito anteriormente, nós
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bebês de 0 a 1 ano, gestantes, puérperas em sofrimento realizamos a Ronda com o intuito de abranger todas
psíquico – são de apoio psicológico, sabemos que as mulheres atendidas no hospital, onde iremos
todas essas situações podem produzir conflitos, abrir espaço para a demanda. Porém, podemos ser
mudanças, sofrimento, enfim, problemáticas comuns solicitados a avaliar e atender um paciente. Trata-se da
a cada grupo, propomos então a união dessas pessoas interconsulta, na qual o psicólogo é chamado a tratar
com a finalidade de discutir, refletir e tentar encontrar de questões psicológicas que o paciente apresenta no
solução para essas problemáticas. decorrer do atendimento médico.
Cada grupo, além de ser informativo, ainda abre Segundo Marinho e Caballo (2001) o profissional
espaço para expressão de vivências, de fantasias que faz o pedido da interconsulta atendia o paciente
irracionais, ilógicas, de sentimento que podem surgir antes e continuará atendendo após a interconsulta. O
em todo o processo do ciclo gravídico-puerperal, sobre interconsultor é sempre um especialista de outra área,
os quais nunca ou quase nunca se fala fora do contexto chamado a esclarecer, diagnosticar ou dar solução a
terapêutico de grupo. Segundo Maldonado (1982) o uma problemática de saúde, que o paciente tenha e
que faz mal é o “não-falado”, o sufocado, vivido com que fuja da competência do profissional ou da equipe
culpa e vergonha. Como vimos anteriormente, estes responsável. O essencial da ação do psicólogo é ser
dois sentimentos estão muito presentes na gestação e capaz de fazer uma rápida análise da situação para
no pós-parto, sendo preciso expressá-los e perceber identificar a origem do problema. Procurar envolver
que outras pessoas também os sentem. os outros profissionais da saúde, identificar ações que
Para que este clima de comunicação e expressão possam surtir efeitos imediatos como, incentivar o
seja possível, o coordenador precisa ter como qualidade médico a esclarecer o problema do paciente, solicitar
básica à capacidade de elaborar o medo de expressão o serviço social quando necessário (Marinho &
de sentimentos, legitimando a comunicação sem Cabalho, 2001). Consideramos esta uma atividade
tentar cerceá-la com excesso de informação ou com que pode ser realizada na maternidade, bem como na
mensagens apressadas de tranqüilizarão (Maldonado, UTIN, principalmente para identificar nas gestantes e
1982). Em todos os grupos incentivamos a troca de puérperas uma depressão, ou algum outro transtorno
experiência, pois consideramos que a vivência de uma próprio destes momentos.
11. Atendimento ao óbito perinatal: É nosso papel Muza; Souza e Iaconelli (2012), o papel do psicólogo
como psicólogos hospitalares favorecer para que nesse contexto é então o de “prevenir” possíveis
este luto possa ser elaborado. Primeiramente abrindo psicopatologias relacionadas à vida ou morte do
espaço para que se fale deste filho que as pessoas bebê, além do esclarecimento e atenção às fantasias
tendem a desconsiderar; verificar se há um desejo dos dos pacientes. A elaboração do luto do bebê precisa
pais de realizarem algum procedimento ritualístico ocorrer de forma a devolver a saúde mental e a
e favorecer para que o mesmo possa ser realizado; reestruturação psíquica a todos os que sofreram com
proporcionar algum teste de realidade, verificando essa perda.
se os pais viram o corpo do bebê no caso de recém- Para finalizar, corroboramos os desafios apontados
nascidos, ou sabem o que seria feito do feto em caso por Baltazar; Gomes e Cardoso (2010), que também
de aborto; explicando-lhes que este luto pode levar nortearam o nosso quotidiano como psicólogos
tempo ao contrário do que as pessoas costumam em maternidades e UTINs e que certamente serão
considerar. Estes procedimentos devem levar em encontrados pelos psicólogos interessados nesta área
consideração as diferenças entre os pais, não devendo de atuação:
ser algo padronizado. • Sensibilizar a equipe para a dimensão subjetiva
Iaconelli (2007), Arrais; Muza; Sousa e Iaconelli que cada mãe, família e bebê traz consigo, para além
(2012), Chatelard e Freire (2012) apontam para de sua dimensão física e história clínica.
uma falta de reconhecimento social da dor dos pais • Facilitar a comunicação efetiva da equipe
na morte de um feto ou recém-nascido. As pessoas obstétrica com os pais, principalmente quando estes
não entendem esta perda como a perda de um filho não correspondem às exigências que lhes são feitas,
cujos pais vinham investindo psiquicamente. Usam ou quando estão diante de más formações do bebê,
frases como “você é jovem, poderá ter outros filhos”, prognósticos fechados e óbitos perinatais.
como se outro pudesse substituir o lugar do filho • Dividir com a equipe as expectativas e angústias
que perderam. Desta forma, as condições mínimas produzidas pelo trabalho com gestantes de alto risco,
para a elaboração do luto nestes casos, tendem a ser trabalhos de parto complicados e os bebês prematuros.
negligenciadas. • Propiciar um espaço para que pai, mãe e bebê
Carvalho e Meyer (2007) confirmam que tenham uma vida afetiva em comum, participando dos
um dos principais papéis da psicologia diante de cuidados dispensados ao seu bebê.
intercorrências como o luto perinatal é desafiar a
mentalidade da morte como tema interdito, buscando CONSIDERAÇÕES FINAIS
identificar as vulnerabilidades e alto risco dos pais que
perderam seus filhos. Cabe a psicologia ajudar com Quando tratamos do serviço psicológico no
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que os pais e familiares se apropriem da situação que contexto hospitalar, primeiro é percebida a diferença
estão vivendo, para posteriormente conseguirem falar de setting em relação à atuação clássica do profissional
e aos poucos assimilar, e bem posteriormente aceitar. de psicologia. O atendimento com as pacientes é feito
Arrais; Muza; Sousa e Iaconelli (2012), trazem que em geral junto ao leito, contudo a questão de setting
os rituais fúnebres ajudam no processo de luto, pois como Simonetti (2004, p, 156) aponta em seu livro
a recuperação é centrada na aceitação, e o velório sobre a psicologia hospitalar, que “nesse ambiente em
permite que as pessoas se despeçam e que o enlutado geral a capacidade de escuta é mais importante do que
seja considerado como tal. Abordagens terapêuticas um setting pré-determinado, pois a sua construção é
que possibilitam ajudar os pais no processo de perda dada em grande parte de forma psicológica”.
do filho, bem como torná-la mais real consistem Em consonância com esta premissa, quando
em permitir que os pais visitem o recém-nascido, considerando a pratica no Hospital Planalto, que foi o
toquem-no, caso queiram, e que recolham lembranças campo de experimentação do estágio, esse quesito se
possíveis (Bartilotti, 2007). Essas são estratégias que expressa, o atendimento por vezes é conduzido além
favorecem a saúde psíquica de muitos casais e de seus do leito, nos corredores, na sala de espera, de parto,
futuros bebês, que é objetivo primordial da psicologia junto à equipe médica, sendo em alguns casos feita a
hospitalar. intervenção com o acompanhante das pacientes.O que
De acordo com Carvalho (2010) e Chatelard e fizemos acima de tudo como psicólogos hospitalares,
Freire (2012), o processo de luto envolve um trabalho foi abrirmos espaço para a subjetividade das gestantes,
pessoal de adaptação à perda. É através do luto que parturientes e puérperas, seus familiares e seus bebês;
aprendemos a lidar com a morte, com as perdas e sendo este um trabalho específico do psicólogo, pois,
com o sofrimento causado por estas. Este período além dele, nenhum outro profissional da área da saúde
de adaptação caracterizado pela dor e sofrimento foi treinado a fazer (Simonetti, 2004).
deve ser encarado como normal e necessário, sendo Não obstante esta especificidade do profissional da
fundamental sua elaboração, para que a perda seja psicologia, o atendimento deve sempre ser realizado
enfrentada de forma saudável, não evoluindo de dentro de um parâmetro interdisciplinar, pois este
maneira patológica (Bortoletti, 2007). Para Arrais; e continente e inspira maior segurança e tem maior
probabilidade de êxito nos seus resultados, pois há Angerami-Camon, V. A. (2000). Psicologia da Saúde - Um
uma gama de conhecimentos técnicos e científicos Novo Significado para a Prática Clínica. São Paulo: Pioneira
Thomson Learning.
que se complementam entre si visando um objetivo Arrais, A. R (2005). As Configurações Subjetivas da Depressão
comum. Assim, o psicólogo hospitalar deve procurar Pós-Parto: Para Além da Padronização Patologizante. 2005. 158 f.
se inserir na equipe fazendo parte da mesma somando Dissertação (Doutorado em Psicologia) – Universidade de Brasília,
com o seu saber, procurando fazer um trabalho DF.
Arrais, A.R; Muza, J. C.; Sousa, E. M. & Iaconelli, V.
interdisciplinar (Moretto, 1999). (2012). Quando a morte visita a maternidade: papel do Psicólogo
Percebemos que não existia um trabalho em equipe Hospitalar no atendimento ao luto perinatal. Revista Psicologia
estabelecido na maternidade e UTIN do Hospital Teoria e Prática. No prelo.
Planalto, cada profissional faz o que lhe cabe sem Baltazar, D. V. S.; Gomes, R. F. S.; Cardoso, T. B. D. (2010).
Atuação do psicólogo em unidade neonatal: rotinas e protocolos
que os casos sejam discutidos entre os profissionais para uma prática humanizada1. Rev. SBPH, 13(1): 02-18.
da saúde. O padrão é a comunicação apenas pelo o Brasil (2002). Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de
prontuário, o médico deixa as prescrições as quais Saúde. Área de Saúde da Criança. Atenção humanizada ao recém-
são executadas pelos enfermeiros e auxiliares. Os nascido de baixo peso: método mãe-canguru: manual do curso.
Brasília: Ministério da Saúde.
outros membros, fisioterapeutas, nutricionistas, Brasil. (2007). Ministério Da Saúde. Humaniza SUS: Visita
fonoaudiólogos e psicólogos, também deixam seus aberta e direito a acompanhante. Brasília. Ministério da Saúde.
registros nos prontuários sem uma discussão ou Bortoletti, F. F. (2007). Psicoprofilaxia no Ciclo Gravídico
comunicação verbal com os outros membros, o que Puerperal. In: Bortoletti, F. F. et al., Psicologia na prática obstétrica:
abordagem interdisciplinar. Barueri: Manole, p. 37-46.
muitas vezes, dificultou o nosso trabalho e pode Cabral, D. S. R., Martins, M. H. F., & Arrais, A.R. (2012).
ser um verdadeiro entrave a atuação do psicólogo. Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de
Mas, reconhecemos, assim como Baltazar; Gomes e intervenção junto a gestantes. Encontro: Revista de Psicologia. No
Cardoso (2010), que muitos encaminhamentos feitos prelo.
Camacho, R. S. et al. (2006) Transtornos psiquiátricos na
pela equipe traduzem suas dificuldades em lidar gestação e no puerpério: classificação, diagnóstico e tratamento.
com as repercussões emocionais da internação em Rev. Psiquiatr. Clín., 33 (2), 92-102.
neonatologia, o que demanda trabalho interdisciplinar Carvalho, M. L. M. (2003). Participação dos pais no nascimento
justificando a presença de psicólogos nas equipes. em maternidade pública: dificuldades institucionais e motivações
dos casais. Cad. Saúde Pública, 19 (2), 389-398.
Cabe ressaltar ainda que, de modo geral, a prática Carvalho, C. et al. (2010). Luto por morte perinatal emoções
dentro do Hospital Planalto, reflete os trabalhos feitos em saúde contributos. Corrente Dinâmica. Pág 170 < http: //www.
por outros pesquisadores e profissionais da psicologia, correntedinamica.com/pubfatout.pdf> Acesso 1 Junho 2012.
citados ao longo deste artigo, contudo devemos Carvalho, F. T. & Meyer, L. (2007). Perda gestacional tardia:
aspectos a serem enfrentados por
sempre nos atentar na diversidade de realidades que mulheres e conduta profissional frente a essas situações.
se apresentam no ambiente hospitalar, muitas vezes Boletim de Psicologia, 57 (126), 33-48.
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS
nossas ações são restringidas pela instituição, em Chatelard, D. S & Freire, T. C. (2012). Natimorto Invisível In:
outros momentos facilitados em comparação a outros Wendland, J.; Correia Filho, L.; Lucena, L. H. & Barr, M. ª (orgs).
Primeira infância: idéias e intervenções oportunas. p. 108-113.
contextos. A experiência certamente mostra que Brasília: Editora Senado.
existem alguns fatores que são chave na atuação do Correia Filho, L.; et al (orgs). (2002). Novos Olhares Sobre
psicólogo da saúde, determinação, uma postura ativa, a Gestação e a Criança até os 3 anos: Saúde Perinatal, Educação e
disponibilidade, flexibilidade e criatividade, pois Desenvolvimento do Bebê. Brasília: L.G.E.
Cunha, I. Neurobiologia do Vínculo (2002). In: Correia Filho,
muitas vezes é necessário lançar mão de instrumentos L.; et al (orgs). Novos Olhares Sobre a Gestação e a Criança até os
e técnicas ou mesmo de settings que não são 3 anos: Saúde Perinatal, Educação e Desenvolvimento do Bebê. p.
tradicionais, contudo o suporte pode ser feito, e este 353-387 Brasília: L.G.E.
atendimento faz diferença no trabalho na obstetrícia. Cunha, I. (2012). A comunicação mãe-bebê: o crescimento
do cérebro em desenvolvimento e a gênese dos processos mentais
Consideramos que o papel e tarefas do psicólogo no início da vida In: Wendland, J.; Correia Filho, L.; Lucena, L.
hospitalar ainda encontram-se em construção. H. & Barr, M. ª (orgs). Primeira infância: idéias e intervenções
Destacamos no nosso artigo, a proposta de algumas oportunas. p. 67-71 Brasília: Editora Senado.
“novidades” ainda pouco realizadas na prática desta Delfino, M. R. R.(2004). O processo de cuidar participante
com grupo de gestantes: repercussão na saúde integral individual
área como o pré-natal psicológico e o atendimento coletiva. Ciência e Saúde Coletiva, 9 (4), 33-38.
ao óbito perinatal. Assim, esperamos que o presente Duarte, T. (2010). Luto por perda fetal. emoções em saúde
trabalho possa inspirar psicólogos e que esta proposta contributos. Corrente Dinâmica. Pág 162. < http: //www.
de atuação possa acrescentar na prática dos psicólogos correntedinamica.com/pubfatout.pdf> > Acesso em: 1 Junho 2012.
Fighera, J.; Viero, E. V. (2005). Vivências do paciente com
hospitalares de maternidades e UTIN. relação ao procedimento cirúrgico: fantasias e sentimentos mais
presentes. Rev. SBPH, 8 (2), 51-63.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Iaconelli, V. (2007). Luto Insólito, desmentido e trauma:
clínica psicanalítica com mães de bebês. Revista Latino Americana
de Psicopatologia Fundamental, 10 (4), 614-623.
Andrade, M A. G. (2002). Considerações Sobre o Maldonado, M. T. (1982). Maternidade e Paternidade:
Desenvolvimento Psicoafetivo do Bebê Pré-termo. In: CORREIA preparação com técnicas de grupo. Rio de Janeiro, Livraria
FILHO, L.; et al (orgs). Novos Olhares Sobre a Gestação e a Criança Atheneu.
até os 3 anos: Saúde Perinatal, Educação e Desenvolvimento do Marinho, M. L. & Cabalho, V. E. (org). (2001). A Prática da
Bebê. (1ª ed, pp. 438-457). Brasília: L.G.E.
Recebido: 23/07/2012
Última revisão: 13/09/2013
Aceite final: 20/09/2013
Sobre os autores:
Alessandra da Rocha Arrais - Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília; psicóloga clínica;
psicóloga Hospitalar Psicóloga Hospitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF);
Docente do Curso de graduação em Psicologia e do Mestrado em Gerontologia da Universidade Católica de
Brasília (UCB) e do Mestrado Profissionalizante em Saúde da Mulher e dos Idoso da FEPECS.
E-mail: arrais@ucdb.br
Mariana Alves Mourão - Graduada em psicologia pela UCB; especialista em Psicologia Hospitalar e da
Saúde pela UCB e Psicóloga Hospitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF).
E-mail: mariana.amourao@gmail.com
DF
RESUMO: Este estudo teve como objetivo conhecer a percepção da equipe de saúde
obstétrica sobre o trabalho desenvolvido pelo psicólogo hospitalar no centro obstétrico – CO,
além de verificar se a equipe reconhece as potencialidades e limites da equipe de psicologia e
avaliar a inserção desse profissional na equipe. Trata-se de uma pesquisa quantitativa,
exploratória, transversal realizada em um hospital público do Distrito Federal, cujos sujeitos
foram trinta e um profissionais de saúde, entre eles: enfermeiros, enfermeiros obstetras,
técnico de enfermagem, residente de enfermagem, auxiliar de enfermagem, médicos obstetras
e pediatras, residente de medicina, nutricionistas, técnico de nutrição, técnico administrativo e
estagiários de diversas áreas da saúde. Os dados foram coletados através de questionário
semi-estruturado, auto-aplicativo e utilizado para a análise de estatística simples. Concluiu-se
que os profissionais de saúde têm conhecimento sobre a atuação do psicólogo hospitalar num
centro obstétrico, reconhecem a relevância para os aspectos subjetivos das pacientes e
identificam sua importância no processo de trabalho de parto e parto. Entretanto, a solicitação
do auxílio do psicólogo é restrito aos momentos que desafiamos limites profissionais da
equipe, quando se percebem impotentes, como nos casos de anomalias fetais, óbito fetal,
morte materna, entre outras intercorrências. Destaca-se ainda, a relevância da continuação da
pesquisa nessa área, para enfatizar o sentido da atuação psicológica num centro obstétrico e na
consolidação de sua inserção na equipe de saúde.
Palavras-chaves: Psicólogo Hospitalar. Psicologia Obstétrica. Centro Obstétrico. Trabalho
de Parto. Parto.
ABSTRACT: This study aimed to understand the perception of obstetric health care
team about the work of the psychologist in a hospital obstetric unit - CO, and verify that
the staff recognizes the potential and limits of psychology team and evaluate the
insertion of a trader in team. This is a quantitative cross-sectional, exploratory study,
1
Psicóloga. Doutora em psicologia, Especialista em Psicologia da Saúde e Intervenção Terapêutica, Psicóloga da
Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal, Professora da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS),
Brasília, DF. Autora responsável para correspondência: alearrais@gmail.com
2
Psicóloga. Graduada pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Brasília, DF.
3
Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica e Cultura, Psicóloga da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito
Federal, Professora da Universidade Católica de Brasília (UCB), Brasília, DF.
conducted in a public hospital of the Federal District, whose subjects were thirty-one
health professionals, including: nurses, midwives, nurse technician, resident of nursing,
nursing assistant, obstetricians and pediatricians, medical resident, nutritionists,
nutrition technician, administrative and technical trainees from different areas of health.
Data were collected through semi-structured, self-application and used for statistical
analysis of simple questionnaire. It was concluded that health professionals have known
about the role of the psychologist in a hospital obstetric unit, acknowledge the relevance
to the subjective aspects of patients and identify their importance in the labor and
delivery process. However, the request for aid the psychologist is restricted to moments
that challenge professional boundaries of the team when they perceive themselves
powerless, as in cases of fetal anomalies, fetal death, maternal death, among other
complications. Moreover, we highlight the importance of continued research in this
area, to emphasize the sense of psychological performance in an obstetric unit and the
consolidation of its inclusion in the health team.
Keywords: Psychologist Hospital. Obstetric Psychology. Obstetric Center. Labor.
Delivery.
1 INTRODUÇÃO
ou ainda em casos de aborto e óbitos, pois o sofrimento das mães e da própria equipe fica
mais evidente nestas situações. Raramente somos chamadas para intervir de forma a
proporcionar a psicoprofilaxia das gestantes e puérperas. No entanto, ao longo do trabalho
desenvolvido neste setor, foi ficando claro ser de grande relevância a atuação do psicólogo na
obstetrícia, pois o psicólogo hospitalar em um CO. deve trabalhar com os aspectos
biopsicossociais, realizando atendimentos psicoterápicos diversos, discussão de casos,
orientações terapêuticas, supervisão de parto e manejo da dor, protocolo de luto e
encaminhamentos. Porém, nos deparamos com pouco respaldo teórico para nossa atuação.
2.1 Acompanhamento psicológico durante o trabalho de parto e parto para alívio não
farmacológico da dor
O parto, por mais que seja um momento crítico na vida da mulher, pode ser uma
experiência única. Mas para ter satisfação no parto, é fundamental a gestante fazer sua escolha
fundamentada em suas crenças e seus valores, sendo esclarecida sobre os procedimentos que
irá enfrentar.
O alívio da dor não é o único fator que deve ser levado em conta ao considerar o
cuidado e o conforto no trabalho de parto. Dessa forma, o psicólogo verifica o nível
ansiogênico positivo e negativo da parturiente, mediante avaliações e orientações terapêuticas
no trabalho de parto e com foco no parto. Sua atuação tem por objetivo realizar uma
contenção do estado psíquico da parturiente, que propicie uma ressignificação de suas dores.
Assim, a intervenção contribui para a redução da ansiedade e para seu empoderamento
(SIMONETTI, 2004).
Para Lopes (2004), o psicólogo deverá facilitar os contatos iniciais dos pais com o
seu bebê, oferecendo informações sobre a sua saúde, os cuidados que irá receber e o direito
que lhes assiste de estar junto ao seu filho, bem como seus familiares, estimulando a
vinculação afetiva ou preparando para possíveis sequelas e/ou até o óbito.
A organização Mundical da Saúde (OMS) define óbito fetal a morte que ocorre “[...]
em qualquer momento da gravidez, independentemente de sua localização, incluindo abortos
e gestações extrauterinas [...]”(BRASIL, 2012, p.101). Natimorto, portanto, é esse feto que
morre antes ou durante seu nascimento.
No caso de óbito fetal, o papel do psicólogo segundo Arrais, Muza, Sousa e Iaconelli
(2013), é o de prevenir possíveis psicopatologias relacionadas à vida ou morte do bebê, além
do esclarecimento e atenção às fantasias dos pacientes. Assim como, auxiliar esses pais,
incentivando os rituais fúnebres, quando possível, e visita ao natimorto, para que possam
tornar suas lembranças as mais reais possíveis, a fim de que se despeçam daquele que
reconhecidamente é seu filho. Ou seja, o trabalho do psicólogo é tornar os natimortos visíveis
para que a dor dos pais possa assim, ser reconhecida.
Este trabalho, nomeado como protocolo de luto é descrito por Iaconelli (2007) e
Arrais, Muza, Sousa e Iaconelli (2013) como procedimentos que permitem a desconstrução do
investimento subjetivo feito no bebê, tendo os pais a oportunidade de reconhecer o lugar do
bebê falecido, independente do seu número de semanas e formação, facilitando, por fim, a
elaboração desta perda e o surgimento do luto patológico.
gestante hipertensa no CO., na medida em que esse possibilita a criação de estratégias para
lidar com experiências que causam ansiedade, ajudando no enfrentamento da situação da
melhor forma possível e prevenindo o parto prematuro e o temor do óbito perinatal ou mesmo
da morte materna.
3 MÉTODO
O questionário foi composto por oito questões fechadas e quatro abertas, sobre os
temas: papel do psicólogo no CO, atividades desenvolvidas pelo psicólogo hospitalar no CO,
setting, quem deve anunciar o óbito, a clientela da psicologia no CO, aspectos positivos e
negativos em relação a presença do psicólogo no CO.
4 RESULTADOS
12,90% deles mencionaram as parturientes, seis (19,35%) responderam que o foco seria a
equipe de enfermagem ou equipe médica, e apenas um (3,23%) mencionou ser os recém
nascidos.
Dentre as atividades que os participantes acreditam que o psicólogo não possa fazer,
três receberam um percentual com maior elevação (≥41,94%), sendo: I - Orientar a parturiente
e seu acompanhante quanto ao procedimento do parto cesáreo (13 - 41,94%); II- esclarecer a
parturiente e seu acompanhante quando os mesmos tiverem dúvidas em relação às
intercorrências que estejam vivenciando (diabetes gestacional, síndrome hipertensiva
gestacional, hiperêmese gravídica, malformação fetal) (14 - 45,16%); III - Instruir a
parturiente e seu acompanhante sobre a rotina hospitalar (14 - 45,16%).
desconforto, muita ansiedade, medo e receio por parte da parturiente e seu acompanhante,
nesse momento o psicólogo poderá orientar os usuários sobre os procedimentos que serão
adotados pela equipe no momento do trabalho de parto e parto, auxiliando assim no trabalho
da equipe.
A presença do psicólogo no CO. não foi dispensada por nenhum profissional e dois
(6,45%) mencionaram que a presença do psicólogo é razoável por considerarem que o
psicólogo atrapalha a rotina do CO., ressaltando que seria importante contar com um
psicólogo no hospital em outro setor, para que quando sua intervenção fosse realmente
necessária, ele fosse chamado.
Por meio das perguntas abertas, constatamos que 93,55% equivalente a vinte nove
servidores, declararam que o psicólogo ajuda a equipe do CO.: proporcionando apoio
emocional à parturiente e acompanhante no trabalho de parto, parto e pós-parto; orientando os
usuários sobre o trabalho de parto e rotina hospitalar; atendendo casos de óbito fetal,
anomalias fetais e morte materna, e amenizando o nível de ansiedade dos mesmos e da
própria equipe. A ajuda também é percebida quando o psicólogo auxilia no relacionamento
entre equipe de saúde, pacientes e familiares, evitando assim conflitos desnecessários entre
ambos e até mesmo entre a própria equipe, por seu apoio prestado aos servidores e por seu
trabalho de humanização.
Verificamos que além dos relatos positivos sobre o trabalho do psicólogo, ele
também é percebido como um profissional que não contribui ou prejudica o trabalho da
equipe. Identificou-se que doze servidores ou 38,71% da amostra avaliaram que o psicólogo
pode atrapalhar a equipe de saúde, especialmente durante o parto, devido o espaço físico ser
insuficiente para toda equipe; caso esteja atendendo em um momento cuja necessidade é de
atuação médica; se realizar atendimento sem discutir previamente com a equipe; pelo grande
número de profissionais pode deixar a parturiente nervosa e se a equipe tiver dificuldade de
reconhecer a importância do trabalho multiprofissional.
equipe.
Aqueles que não declararam sua perspectiva (3- 10%) referiram que é fundamental
que a parturiente e seus familiares tenham suporte psicológico devido o trabalho de parto e
parto serem um processo abrupto na vida e para prevenir as depressões pós-parto,
mencionando que seria importante o acompanhamento psicológico durante um mês após o
nascimento.
5 DISCUSSÃO
No entanto, não identificam demanda para a atuação psicologica, quando não há esse
contexto de intercorrência. O profissional de psicologia não é requisitado pelos servidores de
saúde quando as pacientes passam pelo trabalho de parto e parto sem intercorrências. Nesses
casos, a equipe alega que o psicólogo pode atrapalhar a equipe devido ao espaço físico ser
insuficiente para toda equipe, e por ser um momento de necessidade da atuação médica.
Portanto, não percebem o papel preventivo e de ajuda que o psicólogo pode ter no momento
do parto, mencionando que grande número de profissionais pode deixar a parturiente nervosa.
Ou seja, não percebem o trabalho preventivo do psicólogo. Essa colocação é demonstrada
também no estudo de Arrais, Mourão (2013), quando pontua que raramente os psicólogos são
chamados para intervir de forma proporcionar a psicoprofilaxia das gestantes e puérperas.
Assim, é necessário o psicólogo ter uma postura ativa no processo, para realizar
profilaxia, pois, de acordo com a demanda da equipe, o psicólogo irá intervir apenas em
situações de crise. Cabe a esse profissional mostrar que também pode contribuir para que o
trabalho de parto e parto, seja menos traumático, mais humanizado, e bem sucedido, tanto em
casos de risco habitual como em casos de alto risco que enfrentem alguma intercorrância,
como afirma Bortoletti (2007).
Remetem também que os conflitos entre equipe e paciente são evitados quando o
psicólogo auxilia o relacionamento entre ambos. Esse papel de mediador da relação entre os
profissionais e os pacientes é confirmado por Souza, Delevati (2013), que argumenta que
independentemente da instituição onde atua, o psicólogo da saúde pode desempenhar essa
função, que facilita a compreensão dos procedimentos recomendados, assim como pode
ajudar estes profissionais na comunicação mais clara com os pacientes.
mente estiver boa o corpo irá refletir”(sic). Essa colocação está de acordo com Lazzaretti
(2007), quando pontua que a assistência física é insuficiente para abarcar o ser humano em
todos os seus âmbitos, e oferecer um tratamento que lhe proporcione a qualidade de vida em
sua totalidade.
Quase a metade dos servidores mencionou que o psicólogo não deve orientar os
usuários em relação ao procedimento do parto cesáreo, esclarecer as dúvidas em relação às
intercorrências e instruir os mesmos sobre a rotina hospitalar.Estas afirmações se opõem à
visão de Arrais, Mourão (2013) quando relatam que o psicólogo deve esclarecer os pacientes
sobre os procedimentos que estarão sendo feitos no período de internação, orientá-los e sanar
suas dúvidas em relação as intercorrências que estiverem vivenciando e preparar
psicologicamente a paciente para enfrentar o parto natural quanto cesáreo.
Essa pesquisa contou com a participação mais efetiva dos servidores que declararam
trabalhar com o modelo biopsicossocial, que pode ter influenciado os resultados encontrados,
pois de acordo com Tonetto e Gomes (2007), o trabalho da equipe de psicologia é mais bem
compreendido em instituições com predomínio do modelo biopsicossocial, no entanto, não é
viável colocar os profissionais que declararam trabalhar com o modelo biomédico como
obstáculo ao trabalho, já que os resultados obtidos pela parte participante não foi discrepante
com aqueles encontrados no modelo biopsicossocial.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atuação do psicólogo hospitalar num CO. é recente e rara, pois esse profissional
frequentemente não está presente em CO., sejam públicos ou privados. Sugere-se a
continuação da pesquisa na área, para renovar e atualizar sua atuação. As pesquisas que
poderiam auxiliar o trabalho do psicólogo hospitalar num CO. seriam: I – Pesquisa junto à
equipe sobre suas maiores fragilidades frente ao trabalho de parto e parto; II – Pesquisa junto
à pacientes e acompanhantes sobre suas maiores necessidades no momento parturitivo; III –
Padronização da atuação do psicólogo hospitalar num CO.
Por fim, além dos conteúdos expostos nesse trabalho, ainda há muito a ser realizado.
Além do conhecimento que a pesquisa proporcionou, sugere-se que o psicólogo deva sempre
refletir sobre sua atuação, buscando aperfeiçoar para contribuir com os pesquisadores da área
da psicologia da saúde, no trabalho com a equipe de saúde, como também para atender as
demandas dos pacientes.
REFERÊNCIAS
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81232005000500023&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 03 mar. 2013.
SUN, Sue Yazaki. Hiperêmese Gravídica. In: BORTOLETTI, Fátima Ferreira.; et al.
(Org.). Psicologia na prática obstétrica: abordagem interdisciplinar. São Paulo: Manole,
2007.
Objetivo: identificar o perfil epidemiológico de mães de recém-nascidos internados em uma unidade neonatal
pública. Métodos: estudo descritivo e transversal, realizado com 57 mães e 58 bebês que ficaram internados
na unidade neonatal. Resultados: observou-se que a maioria das mulheres tinha condições sociodemográficas
desfavoráveis, apresentou intercorrências na gestação e, apesar da maior parte ter realizado o número
preconizado de consultas de pré-natal, o internamento do recém-nascido em Unidade especializada leva ao
questionamento da qualidade dessa assistência. Conclusão: identificou-se perfil de risco para admissão de
recém-nascidos em Unidade especializada, pois a maioria das mulheres tinha condições sociodemográficas
desfavoráveis e apresentou intercorrências na gestação.
Descritores: Unidades de Terapia Intensiva Neonatal; Saúde Materno-Infantil; Perfil de Saúde.
Objective: to identify the epidemiological profile newborns´ mothers hospitalized in a public neonatal unit.
Methods: this is a descriptive and cross-sectional study of 57 mothers and 58 infants who were admitted to the
neonatal unit. Results: it was observed that most of the women had unfavorable sociodemographic conditions,
had intercurrences during pregnancy and although most of them had performed the recommended number of
prenatal consultations, the hospitalization of the newborn in a specialized unit leads to questioning the quality
of this care. Conclusion: a risk profile for admission of newborns in a specialized unit was identified, since most
of the women had unfavorable sociodemographic conditions and presented intercurrences during pregnancy.
Descriptors: Intensive Care Units, Neonatal; Maternal and Child Health; Health Profile.
*Extraído da dissertação “Avaliação da assistência multiprofissional em uma unidade neonatal pública do Distrito Federal na perspectiva das
mães”, Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde, 2016.
Submetido: 06/04/2016; Aceito: 18/10/2016. Rev Rene. 2016 nov-dez; 17(6):733-40. 733
Ferraresi MF, Arrais AR
Segundo os relatos das mães, a gravidez foi in- nos de 37 semanas. Estes podem ainda serem classifi-
desejada em 38,6% e não foi planejada em cerca de cados conforme o peso ao nascer, sendo considerados
43,0%. Os resultados também demonstraram que baixo peso aqueles nascidos com menos de 2.500g.
47,0% estavam na primeira gestação, 86,0% nunca
haviam sofrido um aborto, 89,5% nunca tinham tido Tabela 2 - Caracterização das intercorrências gesta-
um filho internado em uma unidade neonatal ante- cionais das mães de recém-nascidos internados em
riormente e 10,5% das mães não sabiam o motivo unidade neonatal pública
pelo qual o filho estava internado. Em 59,6% dos ca- Intercorrências gestacional n (%) IC 95%*
sos, as mães realizaram seis ou mais consultas duran- Sem intercorrências 18 (31,5) 20,27 – 45,38
mães tiveram parto cesáreo. Doença hipertensiva específica da 15 (26,3) 15,94 – 39,91
gestação
A Tabela 2 informa as intercorrências gestacio- Infecção do trato urinário 13 (22,8) 13,16 – 36,16
nais mais comuns. A maioria das mães (68,5%) teve Descolamento prematuro de placenta 2 (3,5) 0,61 – 13,16
alguma intercorrência, sendo as mais prevalentes a Crescimento intrauterino restrito 2 (3,5) 0,61 – 13,16
Doença Hipertensiva Específica da Gestação que ocor- Vaginose 1 (1,7) 0,09 – 10,63
reu em 26,3% dos casos, seguida de Infecção do trato Eclâmpsia 1 (1,7) 0,09 – 10,63
urinário, em 22,8%. Descolamento prematuro da pla- Doença inflamatória pélvica 1 (1,7) 0,09 – 10,63
Sífilis 1 (1,7) 0,09 – 10,63
centa e crescimento intrauterino ocorreram em 3,5%
Placenta prévia 1 (1,7) 0,09 – 10,63
das mães. As demais intercorrências que apareceram
Edema agudo de pulmão 1 (1,7) 0,09 – 10,63
uma única vez foram: vaginose, bolsa rota (12 dias),
Furunculose 1 (1,7) 0,09 – 10,63
eclampsia, doença inflamatória pélvica, sífilis, placen-
Monolíase vaginal 1 (1,7) 0,09 – 10,63
ta prévia, diabetes gestacional, edema agudo de pul- *Intervalo de Confiança
mão, furunculose e monolíase vaginal. O percentual
não totalizou 100,0% (n=57), visto que mais de uma Na Tabela 3, observa-se que 82,4% dos recém-
intercorrência pode ser relatada para uma única mãe. nascidos eram prematuros e 77,5% nasceram com
Vale destacar que 15,0% das mulheres que tiveram baixo peso. Os prematuros também foram classifica-
parto cesariana, nesta pesquisa, não apresentaram dos conforme grau de prematuridade. Os resultados
intercorrência de acordo com registros nos prontuá- desse estudo demonstraram que 12,1% eram prema-
rios e que 66,6% dos bebês dessas mulheres nasce- turos extremos (idade gestacional <que 28 semanas),
ram prematuros. 36,2% muito prematuros (28 a 32 semanas) e 34,5%
Quanto aos recém-nascidos, a amostra totali- prematuros moderados a prematuros tardios (32 a
zou 58, devido à presença de gêmeos. De acordo com 37 semanas). Em relação aos recém-nascidos de bai-
a Organização Mundial de Saúde, os recém-nascidos xo peso, destaca-se que 15,6% eram de extremo bai-
podem ser classificados pela idade gestacional, sendo- xo peso (<1.000g) e 29,3% muito baixo peso (1.000-
considerados prematuros os bebês nascidos com me 1.500g).
possuem esse perfil(11). Com relação ao mercado de maturidade, podendo gerar grandes impactos para o
trabalho, os resultados deste estudo vão ao encontro binômio mãe-filho(16).
dos achados de outra pesquisa realizada em um hos- Apesar da maioria das mulheres ter tido in-
pital escola localizado na Turquia, em que 87,0% das tercorrências gestacionais, tal fato não justifica o alto
mães dos bebês internados na Unidade de Terapia In- percentual de cesarianas observado neste estudo
tensiva não trabalhavam(12). (71,9%), pois este resultado aproxima-se de outros
De acordo com os resultados da presente in- estudos também realizados em Unidades Neonatais,
vestigação, houve número significativo de gravidezes os quais demonstraram percentual de cesarianas em
indesejadas e não planejadas. Uma gravidez não pla- torno de 55 a 60,0%(8,17).
nejada/indesejada pode estar relacionada a inúmeros O alto índice de prematuridade, observado em
agravos ligados à saúde reprodutiva materna e bebês nascidos de parto cesariana, cujas mães não
perinatal, gerando grande impacto na vida da mulher. apresentaram intercorrência gestacional, pode estar
A ocorrência desses fenômenos também faz com que interligado ao aumento de cesarianas eletivas, geran-
essas mulheres sejam mais vulneráveis a fatores de do, também, como consequência, o aumento da pre-
riscos gestacionais. Estudo realizado no extremo Sul maturidade(18). Esse procedimento cirúrgico, quando
do Brasil demonstrou que cor da pele negra/parda, realizado sem indicação adequada, pode gerar com-
adolescência e não ter companheiro mostraram as- plicações graves que podem levar a necessidade de
sociação com gravidez não planejada. Gravidez inde- tratamento intensivo do recém-nascido em unidade
sejada foi mais frequente em mulheres que fumavam especializada. O Brasil vive uma epidemia de opera-
regularmente e mulheres com mais filhos(13) . ções cesarianas, sendo que nos últimos anos o aumen-
É importante destacar que o desconhecimento to do índice de cesarianas tem aumentado progressi-
de algumas mães sobre o motivo pelo qual o filho es- vamente, tornando-se um grande problema de saúde
tava internado pode estar interligado com a falha na pública(8,18).
comunicação de alguns dos profissionais de saúde da A assistência pré-natal é de extrema importân-
Unidade. Esse estudo também demonstra que para a cia na gestação e pode contribuir para o diagnóstico
maioria das mães a experiência de ter um filho inter- e tratamento oportuno de afecções, além de diminuir
nado em uma unidade neonatal era nova, o que pode complicações neonatais e maternas. Apesar da litera-
gerar ainda mais insegurança devido ao ambiente es- tura demonstrar que o aumento do número de consul-
tranho, estressante e confuso inerente à unidade neo- tas no pré-natal pode ser um indicador de qualidade e
natal, acarretando ainda mais consequências negati- se correlacionar com desfechos mais favoráveis, este
vas na relação mãe/filho(14). estudo apresentou dados contraditórios, pois apesar
Os resultados deste estudo em relação às in- da maioria das mulheres ter realizado o número de
tercorrências gestacionais vão ao encontro de outra consultas preconizado (seis ou mais), a maioria dos
pesquisa(15) realizada no estado de São Paulo, Bra- bebês teve desfechos desfavoráveis, como prematu-
sil. Na pesquisa, foi demonstrado que a maioria das ridade e baixo peso, dois fatores importantes do alto
mães teve intercorrências gestacionais, com a Doen- percentual na morbimortalidade neonatal, o que pode
ça Hipertensiva Específica da Gestação e a Infecção gerar uma indagação se o pré-natal está sendo realiza-
do Trato Urinário como as mais prevalentes. Essas do com a qualidade que deveria(3,19).
intercorrências podem gerar diversas repercussões Salienta-se que a maioria dos bebês deste estu-
clínicas e estão relacionadas com altas taxas de morbi- do era do sexo masculino, assim como se observou em
mortalidade materna e neonatal(5). A infecção do trato estudos realizados em outras unidades neonatais(8,15).
urinário também se destaca por estar associada à pre- Quanto aos diagnósticos/indicações de internação
do recém-nascido na unidade neonatal, os resultados 5. Rolim KMC, Costa RD, Thé RF, Abreu FRH. Agravos
deste estudo vão ao encontro de outra pesquisa reali- à saúde do recém-nascido relacionados à doença
hipertensiva da gravidez: conhecimento da
zada em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal
enfermeira. Rev Enferm Atenção Saúde. 2014;
do Sul do Brasil, a qual também demonstrou que os 3(2):19-28.
principais motivos de internação dos recém-nascidos
6. Patias ND, Gabriel MR, Weber BT, Dias ACG.
foram prematuridade, baixo peso e desconforto respi- Considerações sobre a gestação e a maternidade
ratório(7). na adolescência. Mudanças Psicol Saúde. 2011;
19(1-2):19-26.
Conclusão 7. Arrué AM, Neves ET, Silveira A, Pieszak GM.
Caracterização da morbimortalidade de recém-
Os resultados apontaram que o perfil das mães nascidos internados em Unidade de Terapia
Intensiva Neonatal. Rev Enferm UFSM. 2013;
encontrado neste estudo era de risco para admissão
3(1):86-92.
de recém-nascidos em unidade especializada, pois se
observou que a maioria das mulheres tinha condições 8. Lages CDR, Sousa JCO, Cunha KJB, Silva NC, Santos
TMMG. Predictive factors for the admission of
sociodemográficas desfavoráveis e apresentou inter- a newborn in an intensive care unit. Rev Rene.
corrências na gestação. 2014; 15(1):3-11.
9. Martins EF, Rezende EM, Almeida MCM, Lana FCF.
Colaborações Perinatal mortality and socio-spatial inequalities.
Rev Latino-Am Enfermagem. 2013; 21(5):1062-
Ferraresi MF e Arrais AR contribuíram na con- 70.
cepção, no planejamento, análise e interpretação dos 10. Gryschek ALFPL, Nichiata LYI, Fracolli LA, Oliveira
dados, revisão crítica relevante do conteúdo e aprova- MAF, Pinho PH. Tecendo a rede de atenção à saúde
da mulher em direção à construção da linha de
ção da versão final a ser publicada.
cuidado da gestante e puérpera, no Colegiado
de Gestão Regional do Alto Capivari – São Paulo.
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from:http://bmcpediatr.biomedcentral.com/
articles/10.1186/1471-2431-14-230
Abstract: This study was based on qualitative methodology in order to know the
meaning of perinatal loss to the bereaved families and assess the psychological inter-
vention in situations of perinatal grief. Five families participated in this study who ex-
perienced perinatal deaths, a maternity of Brasilia. The psychological record of the
psychology of maternity and post-assessment interview death were used as instru-
ments. From the analysis of Bardin (1977), which emerged five categories, namely:
history of pregnancy, parents before her son’s death, desire to repair, to bid farewell
to the baby, and evaluation of the psychology service in the situation of mourning. The
results showed that intensive psychological work of mourning suffered by families still
receives little support from social institutions, and health psychology can play a key
role along with these families in order to prevent future trauma, to avoid pathological
mourning and remedial pregnancies.
1
Endereço para correspondência: Júlia Costa Muza, Hospital São Mateus, Serviço de Psicologia Hospitalar,
SRES, Quadra 02, área especial A, lote 01, Cruzeiro Velho, Brasília – DF – Brasil. CEP: 70648-145. E-mail: juliamuza@
gmail.com.
34
Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal
Resumen: Este estudio se basó en una metodología cualitativa con el objetivo de co-
nocer el significado de la pérdida perinatal para familias en luto y evaluar la intervención
psicológica en situaciones de luto perinatal. Participaron del estudio cinco familias que
experimentaron las muertes perinatales en una maternidad Brasília. Se utilizaron como
instrumentos el registro psicológico de la psicología de la maternidad y una entrevista
de evaluación después de ocurrir el óbito. Del análisis de Bardin (1977), surgieron cinco
categorías, a saber: la historia del embarazo, padres antes de la muerte de su hijo, el
deseo de reparar, adiós bebé y la evaluación del servicio de la psicología de la situación
de duelo. Los resultados demostraron que el trabajo psicológico intensivo de luto sufri-
do por las familias todavía recibe poco apoyo de las instituciones sociales y la psicología
de la salud, no obstante es un trabajo que puede desempeñar un papel clave a lo largo
de estas familias con el fin de prevenir el trauma futuro, para evitar el duelo patológico
y los embarazos correctivas.
Revista Psicologia: Teoria e Prática, 15(3), 34-48. São Paulo, SP, set.-dez. 2013. 35
ISSN 1516-3687 (impresso), ISSN 1980-6906 (on-line).
Júlia Costa Muza, Erica Nascimento de Sousa, Alessandra da Rocha Arrais, Vera Iaconelli
36 Revista Psicologia: Teoria e Prática, 15(3), 34-48. São Paulo, SP, set.-dez. 2013.
ISSN 1516-3687 (impresso), ISSN 1980-6906 (on-line).
Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal
Revista Psicologia: Teoria e Prática, 15(3), 34-48. São Paulo, SP, set.-dez. 2013. 37
ISSN 1516-3687 (impresso), ISSN 1980-6906 (on-line).
Júlia Costa Muza, Erica Nascimento de Sousa, Alessandra da Rocha Arrais, Vera Iaconelli
Método
Este trabalho pautou-se pelo método qualitativo, que procura estudar fenômenos
nos termos das significações que as pessoas trazem para estes, como afirmam Lüdke e
André (1986). Segundo Turato (2003), os métodos qualitativos caracterizam-se pela bus-
ca dos significados dos fenômenos humanos, tendo o ambiente natural do sujeito como
campo de observação e o pesquisador como parte do próprio instrumento de pesquisa.
Participantes
Participaram desta pesquisa cinco famílias que vivenciaram o óbito perinatal em
uma maternidade particular de Brasília. Para assegurar a privacidade e garantir o sigi-
lo dos participantes, utilizou-se nome fictício para os bebês e suas famílias. No caso da
38 Revista Psicologia: Teoria e Prática, 15(3), 34-48. São Paulo, SP, set.-dez. 2013.
ISSN 1516-3687 (impresso), ISSN 1980-6906 (on-line).
Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal
família Lopes, que constatou o óbito com 32 semanas de gestação, o pai, a mãe, as
avós paterna e materna, os tios e primos do bebê, aqui chamado de Pedro, receberam
atendimento. Na família Silva, que perdeu o bebê com 23 semanas de gestação, foram
atendidos o pai e a irmã da criança, Paulo. Na família Machado, que perdeu o bebê
com 31 semanas de gestação, apenas o pai do bebê Maria foi atendido pela psicolo-
gia. Na família Sinval, óbito com 30 semanas de gestação, receberam atendimento a
mãe, o pai, as avós paterna e materna e as tias do bebê Luzia. No caso da família Pe-
reira, que perdeu o bebê com 34 semanas de gestação, atenderam-se os pais, as avós
materna e paterna e os tios do recém-nascido André.
Instrumentos
A fonte dos dados teve como base dois instrumentos: o prontuário psicológico e
uma entrevista semiestruturada. O prontuário psicológico é um documento no qual
se anotam a queixa principal, a descrição do caso, o parecer e a conduta do psicólogo
em todos os atendimentos sistemáticos realizados pelo serviço de psicologia da ma-
ternidade. A entrevista semiestruturada foi realizada pós-óbito com cinco questões
abertas, com o objetivo de avaliar o processo de luto e o trabalho da psicologia na
ocasião do óbito.
Revista Psicologia: Teoria e Prática, 15(3), 34-48. São Paulo, SP, set.-dez. 2013. 39
ISSN 1516-3687 (impresso), ISSN 1980-6906 (on-line).
Júlia Costa Muza, Erica Nascimento de Sousa, Alessandra da Rocha Arrais, Vera Iaconelli
fins de pesquisa. A partir da leitura exaustiva dos prontuários e do conteúdo das en-
trevistas, identificaram-se cinco categorias, a saber: história da gestação: planejamen-
to e risco da perda, os pais diante da morte do filho, desejo de reparação, despedida
do bebê e avaliação do atendimento da psicologia na situação do luto.
Resultados e discussão
História da gestação: planejamento e risco da perda
Na população estudada, apenas uma das famílias participantes relatou que a ges-
tação não foi planejada. As demais afirmaram que as gestações foram desejadas e
idealizadas em algum momento da vida. Em todos os casos, houve acompanhamento
médico pré-natal.
Todas as mulheres foram submetidas a cesáreas, e a gravidez foi interrompida
quanto estavam entre a 23ª e 32ª semana de gestação. Natimorto é quando a morte
do bebê ocorre dentro do útero e neomorto quando a morte ocorre até o sétimo dia
do nascimento. Portanto, podem-se classificar, nesta amostra, dois natimortos e três
bebês neomortos. Vale salientar que, desde o momento em que o diagnóstico de óbi-
to perinatal é comunicado à família, profundas alterações ocorrem em todos os âm-
bitos das pessoas envolvidas, como mostra o seguinte relato:
Nós já estávamos pensando em ter filhos, mas não esperávamos que fosse tão sofrido e que ela teria
problemas. Se a gente imaginasse, nós teríamos adiado, até ela e eu ter um pouco mais de estrutura
emocional, porque a gente quando casa pensa em ter filhos. São sonhos (pai – família Machado).
Nos relatos apresentados a seguir, percebeu-se que, para a maioria das famílias, o
risco de perda na gestação esteve presente:
[...] eu já sabia que ele teria poucas chances de sobreviver [...] desde o início já estava complicado, era
muito arriscado, eu não imaginava que ela também corria risco [...] (pai – família Silva).
[...] nós já estávamos nos preparando, pois ela vem sofrendo muito, sempre com ameaça de aborto,
fica de repouso o tempo todo e mesmo assim [...] (pai – família Machado).
Apenas uma das famílias não vivenciou intercorrência durante toda a gravidez: “fomos extremamente
felizes nessas 32 semanas. Tudo ia correndo bem, sem dores. Ela nunca teve náuseas, dores [...] nada,
era só felicidade” (pai – família Lopes).
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Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal
golpe para a autoestima da mulher, para a sua capacidade maternal e para sua femi-
nilidade (Soifer, 1992).
A constatação de um óbito perinatal traz consigo significativas repercussões emo-
cionais, que são agravadas por uma sobreposição de perdas: “criança morta” é tam-
bém “mãe morta” (Bartilotti, 2002). A edificação do papel de mãe e a identidade ma-
terna que vinham se desenvolvendo lentamente são interrompidas de forma abrupta
(Maldonado, 1986), e constata-se que, com a frustração materna, há o sentimento de
impotência e falha do pai, como podemos observar nos relatos apresentados a seguir:
Quando a minha filha nasceu viva, eu fiquei cheio de esperança [...] então, estou bobo [após consta-
tação do óbito] [...] procurando entender (pai – família Machado).
Do que adiantou tanta preparação [...] não consegui salvar o meu filho (mãe – família Lopes).
Vários sentimentos podem surgir diante dessa situação, desde culpa, tristeza até
raiva e hostilidade. É importante destacar que o intenso sofrimento psíquico diante da
perda do bebê (real ou imaginário) pode abrir caminhos para estados depressivos,
caracterizados pelo desejo de morrer, como meio de unir-se ao objeto do amor perdi-
do (Bartilotti, 2002).
Já quanto à implicação dessa perda no papel paterno, não foram encontrados rela-
tos sobre o tema na literatura pesquisada, o que não deixa de chamar a atenção, pois
isso evidencia o descaso em relação ao sofrimento do homem perante a perda sofrida:
Eu sempre quis ter um filho, seja homem ou mulher, acho que com ele eu vou saber o trabalho que dei
aos meus pais. Já estava me programando para ficar acordado (pai – família Machado).
Desejei tanto te dar [referindo-se ao bebê] ao meu marido. Ele te desejou ardentemente. Sei que você
seria melhor filho do que eu [...] (mãe – família Pereira).
Durante a gestação, ou seja, ainda na fase pré-natal, os pais podem ter três imagens
do seu filho: o bebê imaginário, o bebê real e o bebê fantasmático. O bebê imaginário
é aquele idealizado, uma combinação de impressões e desejos derivados da própria
experiência da mãe (Irvin, 1978). O bebê real é aquele que nasce (ou que morre). Nas
falas dos pais, pode-se observar a transição do bebê idealizado para o bebê real, que
nasceu morto, e consequentemente surge a imagem do bebê fantasmático.
O luto já começa logo depois que o bebê é expelido. Nesse momento, há o encon-
tro com a dura realidade. Dessa forma, faz-se necessário o desvencilhamento do bebê
ideal para o real, o que, de fato, pode ser potencializado com o encontro do corpo do
bebê e, posteriormente, com o reconhecimento social, ou seja, no caso de algumas
famílias, o enterro, ritual de despedida: “Não posso aceitar isso [morte do bebê], ja-
mais aceitarei [...]” (pai – família Sinval).
Quando se trata da perda perinatal, é muito comum a negação do sofrimento dos
pais, favorecendo o desmentido da perda e obstruindo a possibilidade de representação
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Não sei o que eu sinto, se é só dor, se é raiva, se é revolta [...] não sei [...] (pai – família Lopes).
Se ele nasceu e estava bem, como isso pode ter acontecido? (pai – família Pereira).
Meu filho você é algo que está difícil digerir! (pai – família Silva).
Desejo de reparação
Nos depoimentos apresentados anteriormente, contatou-se o desejo de reparação
perante o passado que os pais tiveram, quando estavam no papel de filhos, dando ao
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Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal
Esperei por isso durante tanto tempo, agora que eu ia curtir o meu neto, já havia feito altos planos,
uma vez que, quando tive meus filhos, trabalhava muito [...] (avô – família Lopes).
Maria Luiza era a primeira neta mulher por parte das duas famílias. Só existe menino homem. Imagina
o quanto a minha filha estava sendo esperada [...] (pai – família Sinval).
Todos nós queríamos que ele viesse e fosse um grande homem, ele deveria estudar e ser um grande
homem, servo de Deus. Nossa família tem muita gente certa, mas tem muitos errados, e eu orava todos
os dias para que ele fosse uma pessoa do bem [...] (pai – família Silva).
Nesses trechos, é possível identificar o que Melanie Klein (1996) chama de repara-
ção, uma vez que entende que o sujeito procura reparar os efeitos produzidos no seu
objeto de amor, nesse caso os bebês, por suas fantasias destruidoras que fazem parte
do imaginário materno. laconelli (2007) reforça que o narcisismo materno engloba
o objeto para depois, com a chegada do bebê, fazer o luto da fantasia, ou seja, todo o
investimento, as idealizações e reparações são realizados ou desconstruídos com o nas-
cimento da criança, e, se ela não faz mais parte da realidade dessa família, abre-se uma
lacuna que precisa ser preenchida com o decorrer do processo de luto.
Despedida do bebê
O momento de despedir-se do bebê é muito importante para o reconhecimento
da perda do filho (Bartilotti, 2007). As outras formas de reconhecer esse bebê que
faleceu e valorizar o sofrimento das pessoas que o perderam consistem na nomeação
da criança, na decisão de ter ou não contato com ela, mesmo que morta, no reco-
lhimento de lembranças possíveis, entre outros (laconelli, 2007). No relato dos par-
ticipantes da pesquisa, percebe-se que as famílias que tiveram a oportunidade de
despedir-se do bebê experimentaram uma gratificação e um reconhecimento do que
viveram, o que possivelmente fará muita diferença em seu processo de luto:
Amor, você deveria ver o seu filho [...] o quão lindo era ele [...] estava perfeito, você deveria vê-lo. A
doutora me explicou e me ajudou a vê-lo; se você quiser ela, também te ajuda, mas você é livre [...]
Amor [...] vai ser melhor para nós [...] eu já me sinto aliviado (pai – família Lopes).
Só posso te acariciar, meu filho [...] afinal agradeço a Deus a oportunidade que Ele me deu de ter você,
mesmo que por pouco tempo [...] (pai – família Pereira).
No caso dos pais que não tiveram a mesma oportunidade, percebe-se uma lacuna
que possivelmente irá trazer dificuldade no processo de elaboração da perda:
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Não vi o meu filho; se eu tivesse visto meu filho, ainda que morto, eu ia gostar, ainda que deficiente,
ele era o meu filho. Deus que me deu [...] mas, como não foi possível, só escuto o que o meu marido
fala sobre ele [...]. Mas é que eu sinto muita tristeza e às vezes raiva. Se eu tivesse visto ele ao menos,
acho que teria sido melhor (mãe – família Silva).
É preciso ver para acreditar no que está acontecendo (pai – família Machado).
Eu queria que ele, o Lucas, fosse enterrado em um caixão bem bonitinho e com aquela roupa que foi
comprada nos Estados Unidos. Meu Deus, leva ele logo daqui, já que não vou poder amamentar [...] o
que adiantou tanta preparação [...] não consegui salvar o meu filho (mãe – família Lopes).
Não tive tempo de conversar com ele, pois eu queria tanto, tanto esse filho, que tudo o que as pessoas
diziam para eu fazer eu fazia, conversava com ele, mesmo sem ter o nome definido, nós já íamos esco-
lher o nome para eu conversar melhor, mas nem isso eu pude fazer [...] (mãe – família Silva).
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Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal
Me ajuda, doutota [refere-se à psicóloga], entender tudo isso, me ajuda [...] (mãe – família Lopes).
Obrigado por acolherem a minha raiva [fala direcionada para a psicóloga], estou para ter um infarto
[...] (pai – família Sinval).
Hoje eu posso dizer que, se não fosse vocês [refere-se à psicologia], pegar [o bebê] nos braços e tudo
aquilo seria muito pior (mãe – família Sinval).
Obrigada por oportunizar que eu segure o meu filho nos braços [...] só tenho a agradecer por esta
despedida, mesmo sendo de uma forma que nós nunca imaginávamos [...] a gente fica louca, nem
sabe o que diz, eu queria sair correndo, nem pensava em segurar [...] e Deus manda vocês (mãe – fa-
mília Pereira).
Não sei o que dizer, mas muito obrigado porque pude segurá-lo ainda que morto [...] (pai – famí-
lia Lopes).
Nos relatos referentes aos atendimentos imediatos ao óbito dos bebês, não foi
possível perceber diferenças de gênero no que diz respeito à forma de lidar com o
sofrimento. O que se mostrou mais significativo foi o quanto o atendimento imediato
aos familiares influenciará na forma como vão vivenciar o luto a partir de então. Aju-
dar os pais e familiares a se apropriar da situação que estão vivendo promove um es-
paço de expressão da dor, de modo que eles possam, aos poucos, assimilar a perda e,
enfim, aceitá-la (Carvalho & Meyer, 2007).
Diante dessa realidade, é possível identificar a necessidade de uma rede social de
apoio no sentindo de ajudar essas famílias a superar a experiência vivida com tanto
sofrimento. Iaconelli (2007, p. 622) afirma que grupo de pais pode ser um tratamento
muito eficaz para evitar um luto patológico, pois “compartilhar a dor com outros pais
enlutados tem sido uma forma de encontrar escuta do vivido e construir representações
que deem conta da perda”. Embora se trate de cuidados de longo prazo, precisam ser
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[As avós abraçam o casal Sinval, que agradece a presença delas] Vocês são para a nós o nosso grande
alicerce! (pai – família Sinval).
Sei que o meu sobrinho cumpriu a sua missão. Ele veio para nos mostrar o quanto somos uma família
unida, e, mais uma vez, reforça o que nos foi passado por nossos pais que a família é o grande porto
seguro. Por isso que nos estamos aqui (irmã – família Lopes).
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Referências
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Júlia Costa Muza, Erica Nascimento de Sousa, Alessandra da Rocha Arrais, Vera Iaconelli
Submissão: 06.03.2012
Aceitação: 09.08.2013
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20
Saúde
Amamentar que atender as demandas do bebê. E aquela
imagem que ela tinha, da maternidade cor-
de-rosa, não corresponde à realidade”, afirma.
Onde procurar ajuda
desenvolvimento do bebê. “O vínculo afetivo
é muito importante para o desenvolvimento
psíquico da criança e para a compreensão dele
PESQUISA
pressão
“A mulher se cobra muito. Esse ideal acaba pele com a mãe. Ele consegue visualizar de perto mento de um sujeito seguro, independente”, es-
HRPA (Paranoá) – 3369-9980
exercendo muita pressão sobre ela”, esclarece. o rosto dela. Sente o cheiro. Tudo isso contribui clarece Shyrlene Brandão.
HRS (Sobradinho) – 3387-3993
Pressão ‒ Além disso, a imagem para essa formação”, afirma. “Além disso, o Segundo Miriam Santos, coordenadora
HRSM (Santa Maria) – 3392-6287
da amamentação passada como ideal de bebê que mama em livre demanda, aprende a dos BLHs do DF, isto também ocorre pelo fato
HRT (Taguatinga) – 3352-6900
maternidade contribui para essa cobrança. demonstrar quando ele está com fome, quando de o leite materno conter proteínas específicas
HUB (Universitário de Brasília) – 3448-5391
“Existe pressão tanto da mulher quanto da está saciado. Contribui para que o sujeito para o desenvolvimento cerebral humano. “O
Posto de Coleta São Sebastião – 3339-1125
A história de Nilza alerta: culpa e cobranças familiares sociedade. E a mulher que não consegue Posto de Coleta HRSAM (Samambaia) – aprenda a manifestar seus desejos”, completa. cérebro do ser humano continua se desenvol-
amamentar se sente uma fracassada”, diz Afeto ‒ No entanto, Shyrlene diz vendo após o nascimento até por volta do se-
e sociais podem agravar estado depressivo Alessandra. “É preciso que essas mulheres
3458-9811
que o essencial é o cuidado e o carinho com gundo ano de vida, ao contrário de outras es-
saibam que amamentar não é a única forma a criança. “Qualquer criança que receba pécies. Recebendo as proteínas específicas do
que a mãe tem de fortalecer o vínculo cuidados, que receba carinho, seja da mãe leite materno, esse desenvolvimento é mais fa-
“
afetivo com o filho”, ressalta a psicóloga. ou de outra pessoa, vai se desenvolver bem. vorecido”, explica.
» ESTELA MONTEIRO
O apoio da família nesses casos é O importante é que haja afeto”, esclarece. “A
A depressão pós-parto é uma doença fundamental. “Muitas sentem vergonha de criança, do ponto de vista psicológico, vai se
Levei meu filho expor a tristeza para alguém. Porque no mesmo construir na relação com o cuidador primário Amanhã
que atinge entre 10% e 15% das mulheres que
dão à luz. Diferente do Baby Blues, uma tristeza a três pediatras diferentes. momento são julgadas. As pessoas cobram que dela, que geralmente é a mãe, mas pode ser Na última reportagem da série,
ela esteja feliz pela chegada do bebê”, afirma. Bom para o bebê, ótimo para a também o pai, a avó”, completa a psicóloga. leia mais sobre como o abalo emocional
fisiológica que atinge quase 80% das puérperas Todos me maltrataram.
e acaba em torno da segunda semana após o Ilustração: Nillo Samyr Por isso, a psicóloga explica que a depressão mãe O ideal é que tanto a mãe como o filho se influencia na produção de leite; o que
parto, a depressão não passa espontaneamente
Insinuavam que não dava pós-parto é de difícil diagnóstico. “É preciso sintam bem nessa relação. “Não adianta o bebê fazer depois do sexto mês do bebê; e as
e pode durar anos se não for tratada. de mamar porque eu não que a família esteja atenta, seja acolhedora e A psicóloga Shyrlene Nunes Brandão, estar bem nutrido e a mãe estar triste. Ele também diferenças entre leite natural e artificial.
Segundo a psicóloga do Centro deu seu depoimento ao Fantástico sobre o tudo pelo o que ele tinha passado neste um evite pressionar demais essa mãe”, diz. “Uma do Banco de Leite Humano (BLH) do precisa que a mãe esteja bem para ele”, ressalta Veja também porque evitar mamadeira; e
queria. Colocavam a culpa quadro depressivo que enfrentava após o ano”, diz Nilza. “Quando, no dia da festa, eu quando é preciso complemento.
Obstétrico (CO) do Hospital Materno-Infantil mãe também precisa ser maternada, cuidada. Hospital Regional de Taguatinga (HRT), diz Shyrlene. “O importante é apoiar a mulher
de Brasília (HMIB), Alessandra da Rocha Arrais, do insucesso em mim” parto. “Ela falava que se estivesse em uma vi tudo o que o Wandery tinha vivido, vi que Ela também é uma mãe recém-nascida”, ressalta que a amamentação traz benefícios para o na trajetória dela, sem cobranças”, completa.
a amamentação tem um papel importante multidão e houvesse outros bebês no local, eu tinha participado também. E um pouco Arrais.
Nilza Kotvent, pedagoga
neste quadro. “A amamentação é um dos segurava os filhos com força. Com medo daquela culpa foi embora”, afirma a pedagoga.
grandes ideais da maternidade. A mulher que deles se misturarem e ela não reconhecê- Só depois do primeiro ano do filho,
não consegue desempenhar este papel, muitas los mais”, diz. A pedagoga conta que sentia Nilza começou o tratamento psiquiátrico.
vezes, se sente terrivelmente culpada”, diz. a mesma sensação com relação ao filho. “Os médicos não queriam que eu tomasse
Por outro lado, se a mulher não está medicamentos por causa da amamentação,
Os problemas com a amamentação foram
bem emocionalmente, a amamentação fica Cuidar de quem cuida diziam que ia fazer mal para o bebê”, conta.
determinantes para que Nilza desenvolvesse a
prejudicada. “É como um ciclo que não acaba. Um A maneira como as outras pessoas Nilza lutou contra a doença durante cinco
depressão. Por conta de uma cirurgia plástica
interfere no outro e vice-versa. Nisto, a vida da tratavam Nilza neste período também foi anos. Neste período, ficou sem trabalhar,
nos seios, o bebê não conseguia mamar. “Meu
mãe já está muito abalada”, comenta a psicóloga. determinante para que o quadro depressivo tinha síndrome do pânico e desenvolveu
peito ficava muito duro, tanto pela plástica
Foi o caso de Nilza Mendes Gomes se agravasse. “Levei meu filho a três pediatras fibromialgia – doença que a fazia sentir
como pelo leite. Ele não pegava bem. Eu
Kotvent, 44, pedagoga. Ela é mãe de Wandery diferentes. Todos me maltrataram. Insinuavam muita dor e um dos sintomas da depressão.
também não conseguia ordenhar muito leite.
(pronuncia-se Uânderi), 14, um menino forte e que não dava de mamar porque eu não queria. Nilza não teve outros filhos. “Mesmo
Às vezes, em um dia inteiro, eu conseguia
inteligente com quem tem uma relação muito Colocavam a culpa do insucesso em mim”, depois que me curei, eu tinha medo de passar
tirar 80 ml. O leite não saía”, relembra.
próxima. Mas nem sempre foi assim. Apesar relata. O marido de Nilza também não a por tudo aquilo novamente”, afirma. Quando
de amar imensamente o bebê que acabara de apoiava. “Ele achava que era frescura minha, a conta sua história, ela não consegue conter
Incompetência ‒ O fato de não conseguir
chegar, Nilza sentia uma tristeza profunda. A tristeza. Ele só mudou de postura depois que as lágrimas. “Até hoje isso mexe comigo.
amamentar o filho fez com que Nilza se
pedagoga teve diagnóstico de depressão pós- meu obstetra deu uma chamada nele”, diz. O fato de não ter amamentado o Wandery
sentisse incompetente na tarefa de ser
parto quase um ano depois do nascimento do filho. Foi o obstetra de Nilza que percebeu como eu queria me entristece muito”, relata.
mãe. Outras pessoas que davam de mamar
que ela não estava bem emocionalmente.
“
na mesma época chegaram a amamentar
Culpa e tristeza “Na consulta pós-parto, com 40 dias,
Wandery. “Minha irmã dava de mamar para
A gravidez de Nilza havia sido tranquila, ele notou que eu estava muito abalada e
ele e ainda falava: está vendo como ele gosta
apesar da pressão alta. Ela conta que não teve de mim? Aquilo me deixava muito mal”, conta.
decidiu conversar com meu marido”, afirma. A mulher se
Festa ‒ O marido passou a apoiar Nilza.
enjoos e nem muitos desconfortos. “Tinha “Eu comecei a achar que ele não mamava cobra muito. Esse ideal
muitos desejos, mas foram todos saciados”, “Ele propôs que começássemos a planejar
porque não gostava de mim”, relembra.
a festa de um ano do bebê. E nem de festa (da maternidade) acaba
relembra. Era uma gravidez planejada e Nilza amamentou o filho até o sexto mês
desejada pelo casal, juntos há 15 anos. com muita dificuldade. “Ele tinha que tomar leite
ele gosta. Isso me deu um pouco de ânimo”, exercendo muita pressão
Por conta da pressão alterada, o obstetra conta. “Eu decidi que a festa se chamaria
em pó. A quantidade que ele tirava do peito era
Como é bom ser bebê. Usei vários objetos,
sobre ela”
resolveu antecipar o parto em 15 dias por meio muito pequena. Mesmo tendo muito leite, ele Alessandra da Rocha Arrais, psicóloga
de uma cirurgia cesariana. “No vídeo do parto, roupinhas, fotos, vídeos. Queria mostrar
não conseguia tirar por causa da plástica”, diz.
já dá para notar a diferença no meu semblante a Apesar da depressão, Nilza sempre
partir do momento em que o bebê foi retirado. foi muito apegada à criança. “Eu amava
Mudou completamente”, ‒ afirma Nilza. A demais, amo até hoje. Mas não sentia que Medicamentos Maternidade idealizada
pedagoga conta que a tristeza começou ali. A amamentação pode ser conciliada A psicóloga do CO do HMIB,
eu era uma boa mãe. Por mais que eu fizesse
Nos três dias que se seguiram, ainda com os medicamentos para a depressão sem Alessandra da Rocha Arrais, explica que o
tudo por ele, eu achava que não fazia nada”,
no hospital, ela diz que mal conseguia ficar riscos para o bebê. Atualmente, existem período puerperal é o mais vulnerável na
relembra. “Sentia-me incapaz de cuidar
acordada. “Lembro que acordava, tomava uma medicamentos seguros no mercado. Além vida da mulher. Nesta época, ela tem 25 vezes
dele. Questionava-me muito: como uma
colher de sopa e voltava a dormir”, afirma. disso, é preciso avaliar os benefícios do mais chances de ter um surto emocional
pedagoga, que já trabalhou em berçário,
Nilza diz que também não conseguia dar de tratamento já que a depressão pode ser mais do que em qualquer outra fase da vida.
não consegue cuidar do próprio filho?”, diz.
mamar para o filho. “Eu não conseguia nem nociva ao bebê do que os medicamentos Ela esclarece que, além da variação
Na época em que Nilza passava pelo
me alimentar, quanto mais amamentar. E o problema, a atriz Luíza Tomé, que acabara em si. Neste contexto, a mãe fica menos hormonal pela qual a mulher passa nesta fase,
hospital não dava outro leite para ele. Toda de dar à luz um casal de gêmeos e chegou a responsiva às necessidades da criança. existe um contexto emocional muito delicado.
hora ele ficava com hipoglicemia”, conta. estrelar uma campanha pró-amamentação, “A rotina da mulher muda completamente.
Existe estresse, privação de sono. Ela tem