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ARTIGOS

PARENTALIDADE
DEPRESSÃO PÓS-PARTO, PRÉ-NATAL PSICOLÓGICO,
AVÓSIDADE, ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL, ENTRE OUTROS

ALESSANDRA ARRAIS
Direitos Autorais
Autor
Alessandra Arrais e Colaboradores

Editor
Escola de Profissionais da Parentalidade

copyright © 2018 Escola de Profissionais da Parentalidade


Este livro pode ser adquirido por educação, negócios, vendas ou uso
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contato@escoladaparentalidade.com.br
ÍNDICE
PARTE 1: Pré-Natal Psicológico

Grupo de Pré-natal Psicológico - Avaliação de programa de intervenção junto a


gestantes (2012) - Arrais, Alessandra da Rocha; Cabrall, Daniela Silva Rodrigues;
Martins, Maria Helena de Faria..................................................................................... 01

O pré-natal psicológico como programa de prevenção à depressão pós-parto (2014) -


Arrais, Alessandra da Rocha; Mourão, Mariana Alves; Fragalle, Bárbara ..................... 02

O pré-natal psicológico como programa de prevenção à depressão pós-parto (2016) -


Almeida, Natália Maria de Castro; Arrais, Alessandra da Rocha................................... 03

Pré-natal psicológico: perspectivas para atuação do psicólogo em saúde materna no


Brasil (2016) - Arrais, Alessandra da Rocha; Araújo, Tereza Cristina Cavalcanti
Ferreira.......................................................................................................................... 04

O Pré-Natal Psicológico como fator de proteção à Depressão Pós-Parto – Capitulo Livro


Saúde Mental – Arrais, Alessandra da Rocha; Lordello, Silvia; Cavados; Giselle .......... 05

PARTE 2: Depressão pós-parto ou perinatal

As configurações subjetivas da depressão pós-parto: para além da padronização


patologizante (2005) - Arrais, Alessandra da Rocha ..................................................... 06

Depois do parto... a depressão. O outro lado da vivência materna no pós-parto (2006) -


Arrais, Alessandra da Rocha ......................................................................................... 07

O mito da mãe exclusiva e seu impacto na depressão pós-parto (2006) - Azevedo, Kátia
Rosa; Arrais, Alessandra da Rocha ................................................................................ 08

Depressão pós-parto: uma revisão sobre fatores de risco e de proteção (2017) - Arrais,
Alessandra da Rocha; Araújo, Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de ........................... 09

As configurações subjetivas da depressão pós-parto: as contribuições das técnicas


projetivas para compreensão e despatologização desse fenômeno – Arrais, Alessandra
da Rocha ....................................................................................................................... 10

A teoria de gênero e suas contribuições para a construção da maternidade e da


depressão pós-parto – Capítulo do livro Gênero - Arrais, Alessandra da Rocha
....................................................................................................................................... 11
PARTE 3: Avosidade

Avosidade x Maternidade: a avó como suporte parental na adolescência - Pinto, Kelly


Lins Beserra; Arrais, Alessandra da Rocha; Brasil, Kática Cristina Tarouquella
Rodrigues....................................................................................................................... 12

O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes (2012) - Arrais,
Alessandra da Rocha; Brasil, Kátia Cristina Tarouquella Rodrigues; Cárdenas, Carmen
Jansén de; Lara, Luisa ................................................................................................... 13

A avó como suporte parental na adolescência: discussão clínica – Capítulo do livro


Adolescência e Violência - Arrais, Alessandra da Rocha; Brasil, Kátia Cristina
Tarouquella Rodrigues; Pinto, Kelly Lins Bezerra
....................................................................................................................................... 14

PARTE 4: O papel profissional e demais assuntos

Percepções da equipe obstétrica sobre a presença do pai durante parto e sobre a lei do
acompanhante (2009) - Teixeira, Lidiane Pereira; Sá, Raquel Souza; Arrais, Alessandra
da Rocha ....................................................................................................................... 15

Proposta de atuação do psicólogo hospitalar em maternidade e UTI neonatal baseada


em uma experiência de estágio (2013) - Arrais, Alessandra da Rocha; Mourão, Mariana
Alves.............................................................................................................................. 16

Percepção da equipe obstétrica sobre o papel do psicólogo hospitalar em um centro


obstétrico do DF (2014) - Arrais, Alessandra da Rocha; Silva, Naraiana, Oliveira da;
Lordello, Silvia Renata Magalhães ................................................................................ 17

Perfil Epidemiológico de mães de recém-nascidos admitidos em uma unidade neonatal


pública (2016) - Arrais, Alessandra da Rocha; Ferraresi, Mariana Fanstone ................ 18

Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal


(2013) - Muza, Júlia Costa; Souza, Érica Nascimento de; Arrais, Alessandra da Rocha;
Iaconelli, Vera ............................................................................................................... 19

Amamentar é preciso, mas não pode ser uma pressão - Reportagem (Caderno) -
Monteiro, ...................................................................................................................... 20
01
Encontro GRUPO DE PRÉ-NATAL PSICOLÓGICO
Revista de Psicologia
Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 Avaliação de programa de intervenção junto a
gestantes

Alessandra da Rocha Arrais RESUMO


Universidade Católica de Brasília - UCB
arrais@ucb.br Este artigo apresenta uma comparação entre pré-natal psicológico e
pré-natal tradicional, analisando as percepções de dois grupos de
mulheres grávidas: um composto pelas participantes de um grupo de
Daniela Silva Rodrigues Cabral pré-natal psicológico; o outro por mulheres não participantes.
Entrevistas estruturadas permitiram a análise do conteúdo dos relatos
Universidade Católica de Brasília - UCB
desses grupos, definindo-se eixos temáticos relacionados aos aspectos
danielacabral@pop.com.br
emocionais e à vivência das mulheres no período perinatal. Foi possível
analisar a repercussão do trabalho preventivo do psicólogo nesse
processo, bem como explicitar as demandas específicas do ciclo
Maria Helena de Faria Martins gravídico-puerperal. Como resultado, o pré-natal psicológico pode
Universidade Católica de Brasília - UCB configurar-se como um espaço importante de apoio às mulheres, para a
helena.psique@gmail.com 'escuta' e a troca de experiências, com a mediação do psicólogo da
saúde nas relações de comunicação e interação entre casal, família e
equipe médica.

Palavras-Chave: pré-natal psicológico; grupo de gestantes; puerpério.

ABSTRACT

This paper compares traditional prenatal and psychological-prenatal


care, and analyzes the differences between two groups of pregnant
women: one group composed of women participating in psychological-
prenatal care, and another one composed of non-participating women.
The present study followed a group of women who participated in a
pre-natal psychological group in a private hospital in Brasilia in 2007.
Structured interviews were conducted and the contents analyzed
according to the content analysis method, grouped by themes related to
the emotional aspects and to the women´s experience during the
perinatal period. It was also possible to analyze the impact of
psychologist work in preventive actions, as well as the specific detailed
demands of the pregnancy-puerperal cycle. Thus, the study concluded
that psychological-prenatal care represents an important support
network for women. It enables them to connect and exchange
experiences assisted by trained mediators and also support them in the
communication and interaction between couples, family and medical
team.
Anhanguera Educacional Ltda.
Correspondência/Contato
Keywords: psychological prenatal; pregnancy group; puerperium.
Alameda Maria Tereza, 4266
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181
rc.ipade@aesapar.com
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 14/10/2011
Avaliado em: 30/04/2012
Publicação: 27 de setembro de 2012 53
54 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes

1. INTRODUÇÃO

Durante a gravidez, o parto e o pós-parto a mulher passa por intensas transformações


fisiológicas, psicológicas, sociais e familiares, que representam uma das fases mais
suscetíveis e vulneráveis a crises psíquicas, configurando um momento ímpar na vida da
gestante, do pai e do bebê. Arrais (2005) esclarece que apesar das alegrias e das
expectativas em torno da maternidade e da paternidade, as tarefas podem ser mais
difíceis do que se imagina, considerando a transformação que o nascimento do bebê
provocará na vida pessoal da mulher, em seu relacionamento com o marido, com seus
pais e com familiares e consigo mesma. Frequentemente também podem ocorrer
complicações no relacionamento com seus outros filhos, além de alterações dos
sentimentos destes entre si (WINNICOTT, 2006).

Considerando essas questões, a abordagem do pré-natal psicológico se propõe a


criar um espaço para ouvir e falar sobre as mudanças emocionais e sociais, acolhendo as
demandas relacionadas a essa fase (BORTOLETTI, 2007). As informações e
esclarecimentos que um psicólogo especializado pode propiciar acerca das mudanças às
quais a gestante e o casal estarão submetidos são imprescindíveis para enfatizar os pontos
emocionais e psíquicos desse período específico. Isso representa uma importante
contribuição social, visto que interfere diretamente na qualidade da saúde física e
psicológica da mãe, na adaptação da relação conjugal e familiar, e no adequado
desenvolvimento do bebê.

Cientes de que o pré-natal tradicional se ocupa prioritariamente das questões


fisiológicas da gestação, com sua maior preocupação voltada para a saúde física da mãe e
do bebê, o pré-natal psicológico - que ainda é pouco difundido - objetiva minimizar a
lacuna existente nesse período e permitir um atendimento integral para a mãe-pai-bebê.

Assim, com o intuito de avaliar os impactos diferenciais do pré-natal psicológico


como um programa de intervenção benéfico junto a gestantes, analisou-se o estado
emocional e a vivência de mulheres que participaram de um grupo de pré-natal
psicológico durante seu ciclo gravídico-puerperal, comparando essas vivências com
aquelas mulheres que, embora também estivessem no mesmo ciclo, passaram apenas
pelos procedimentos do pré-natal tradicional.

De acordo com o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN),


no Brasil o pré-natal tradicional deve cumprir o número mínimo de seis consultas
médicas, preferencialmente, uma no primeiro trimestre, duas no segundo trimestre e três
no terceiro trimestre. As consultas visam acompanhar a mulher, no ciclo grávido-

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puerperal, e devem ser iniciadas o mais precocemente possível, encerrando-se apenas


após o 42º dia de puerpério, com atenção especial para prevenção de riscos perinatais e as
intercorrências clínico-obstétricas tais como: trabalho de parto prematuro, pré-eclâmpsia e
eclâmpsia, óbito fetal, entre outros.

Além das consultas do pré-natal tradicional, observa-se que muitas instituições


de saúde públicas e privadas oferecem cursos intensivos para as gestantes, com o seguinte
formato geral: número de encontros previamente definidos, em média de um a três dias,
ofertados em meio período, com cronograma teórico preestabelecido, no modelo de aula
expositiva e com pouca interação entre os participantes. O curso geralmente é ministrado
por enfermeiras que apresentam questões relativas aos tipos de parto, sintomas gerais do
trabalho de parto, rotina da instituição e procedimentos pediátricos no momento do parto,
UTI neonatal, amamentação, cuidados com o bebê, primeiras vacinas etc. Em alguns
cursos há presença de outros profissionais como nutricionistas, obstetras, neonatologistas,
pediatras e psicólogos, porém sem que haja uma estratégia específica de integração entre
esses profissionais, que geralmente abordam apenas os aspectos pertinentes à sua área de
atuação.

Diante dessa realidade, o pré-natal psicológico se propõe a ser uma abordagem


diferenciada de atendimento, ainda pouco encontrada em serviços de obstetrícia, de
forma a complementar os aspectos discutidos nos cursos de gestantes e no pré-natal
tradicionalmente realizado pelo médico. Trata-se de uma abordagem terapêutica e
preventiva com a finalidade de acompanhar as gestantes e casais grávidos, oferecer apoio
emocional, orientar na elaboração do plano de parto, e orientar questões mais complexas
que podem surgir no período gravídico-puerperal, as quais serão discutidas adiante.

2. A ABORDAGEM DO GRUPO DE PRÉ-NATAL PSICOLÓGICO

O atendimento em grupo de gestantes, voltado apenas para mulheres ou para casais, é o


principal instrumento do pré-natal psicológico, permitindo compartilhar uma mesma
situação de vida – a gravidez - com as inquietações também comuns entre mulheres e
casais, de forma a possibilitar a criação de um espaço de apoio mútuo. A composição do
grupo e a frequência nas sessões variam de acordo com as características do contexto em
que o grupo se realiza - instituição pública ou privada, consultório de psicologia ou de
médicos (BORTOLETTI, 2007).

Nesses grupos o número de sessões é geralmente pré-fixado, e a estrutura é


diferenciada, uma vez que a coordenação fica sob responsabilidade de um psicólogo, que

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atua como facilitador na criação de um espaço para a troca de experiências, e no qual os


participantes são encorajados a expressar e a compartilhar seus conhecimentos, angústias,
ansiedades, culpas, ambivalências, e outros assuntos que contemplam as diferenças e as
identificações entre eles (MALDONADO, 2003).

Entendido dessa forma, o pré-natal psicológico não se restringe ao atendimento


de gestantes e casais que estejam passando por crises emocionais, mas a todos que tenham
interesse em compreender ou aprimorar essa nova identidade familiar, uma vez que a
construção do vínculo entre mãe-bebê-pai demanda tempo e elaboração (ARRAIS, 2005).

As reflexões acerca dessas experiências ajudam os pais a desenvolver confiança


em sua própria percepção e sensibilidade, dando-lhes autonomia, chamando a atenção
para a importância do apoio familiar, social e profissional, e oferecendo apoio emocional e
suporte cognitivo imediato (BORTOLETTI, 2007), além de desmitificar representações
sociais da maternidade e da paternidade que estão fortemente ancorados em estereótipos
de gênero (ARRAIS, 2005).

As mulheres – e casais - que buscam um acompanhamento especializado por


meio do grupo de pré-natal psicológico são estimuladas a refletir sobre seus medos em
relação à gestação, ao parto e pós-parto, sobre os mitos em torno da maternidade, sobre as
dificuldades e exigências em aceitar o papel de mãe ou pai e a adotar uma postura mais
ativa diante das recomendações médicas, a seguir uma alimentação adequada, a praticar
atividades físicas, a conhecer os principais sinais do trabalho de parto, os tipos de parto e
seus aspectos favoráveis e desfavoráveis, e a analisar criticamente alguns procedimentos
médicos indicados (tricotomia, episiotomia, enema etc.), bem como aspectos ligados à
amamentação e ao desmame gradual, entre outros.

3. ASPECTOS AFETIVO-FAMILIARES NO GRUPO DE PRÉ-NATAL PSICOLÓGICO

Um dos temas prioritariamente estimulados no pré-natal psicológico trata da participação


do pai em todo o ciclo gravídico-puerperal, pois nas nossas sociedades – de modelo
ocidental – vivenciamos um processo no qual os homens estão cada vez mais envolvidos
com o nascimento e com a criação dos filhos, ultrapassando a imagem do pai como
apenas provedor material da família, ou muitas vezes ausente. Com isso o pai passa a ter
um importante papel em relação aos cuidados voltados ao bebê, no plano emocional e na
própria relação familiar, com um reconhecimento especial de sua participação desde a
gestação até o pós-parto.

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Cabe mencionar que durante esse estudo participamos de alguns cursos para
gestantes em instituições públicas e privadas de Brasília, o que nos permitiu observar que
a lei federal que permite à mulher ser acompanhada durante o parto é melhor cumprida
nos hospitais privados. Já nos hospitais públicos, a lei não é integralmente cumprida,
havendo certa resistência em permitir o acompanhante no momento do parto sob a
alegação de que, por vezes, o pai poderia atrapalhar os procedimentos - passar mal, ficar
nervoso, dar palpites, fazer cobranças etc. Em algumas situações era “sugerido” por
integrantes da equipe do hospital que a gestante escolhesse um acompanhante feminino,
visto que o ambiente hospitalar não oferecia privacidade às outras gestantes, ou então,
condicionavam a presença do pai “somente se ele participasse do curso para gestantes
junto com a esposa” (Curso para gestantes, 2008)1.

É importante lembrar que houve uma época em que os pais raramente entravam
na sala de parto, situação alterada com a publicação da Lei 11.108/2005, que garante que
às parturientes tenham o direito à presença de um acompanhante durante todo o período
de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Mas, esta nova regulamentação acabou
por criar, no limite, uma situação oposta, em que a mulher, a família ou até mesmo o
círculo social de amigos criam uma expectativa que praticamente obriga o pai a assistir ao
parto, desconsiderando sua vontade, e forçando-o a passar por uma experiência, por
vezes, constrangedora, angustiante e/ou involuntária.

Assim o “homem grávido” pode encontrar-se em situação tão específica quanto


àquela da mulher: carecer de apoio para poder expressar seus medos, anseios e
inseguranças (com quem poderá falar que também tem medo do parto, que às vezes
imagina coisas terríveis acontecendo com a mulher ou com o bebê? Que sente ciúmes do
filho, pois ficou em segundo plano?). Em alguns casos, o homem recorre a mecanismos de
fuga, mergulhando no trabalho ou em relações extraconjugais, com reflexos sobre a
situação fragilizada do período de gestação, parto e pós-parto. Por essas razões, muitas
vezes eles se sentem sozinhos em suas vivências, imaginando que esses pensamentos,
fantasias e temores tão estranhos não passam com mais ninguém. A reflexão sobre os
mitos, a expressão e o compartilhar de sentimentos censurados em clima de aceitação e
compreensão trazem um grande alívio a essas pessoas (MALDONADO, 2003), e o grupo
do pré-natal psicológico pode propiciar esse importante espaço para o acolhimento das
demandas.

1 Curso para gestantes (2 de fevereiro/2008). Comunicação oral apresentada em um hospital público, em Brasília.

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58 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes

Conforme a pesquisa realizada por Piccinini, Silvia, Lopes, Gonçalves e Tudge


(2004), que buscou avaliar e descrever o envolvimento paterno na gestação, a participação
do pai não se resume a acompanhar a esposa em consultas, mas exige também um
envolvimento emocional que inclui: a participação nas atividades da gestante, nos
preparativos para chegada do bebê, compartilhando as angústias, fantasias, idealizações e
dúvidas, que são dimensões significativas para um bom desenvolvimento do apego
materno ao bebê, da relação pai-bebê e da relação mãe-pai-bebê. Nos casos em que o pai
está presente nas consultas pré-natais, no momento do parto, na consulta pós-parto e nos
cuidados junto ao bebê e à própria puérpera, têm sido percebidas mudanças positivas no
envolvimento e na auto-imagem da paternidade, que é demonstrada pela maior
participação na educação dos filhos e melhora na relação familiar (BERTHERAT, 1997).

Outra importante preocupação refere-se à fase do puerpério, período relativo aos


primeiros dias após o parto, que são de intensa emoção: alívio ao ver o filho saudável,
tranquilidade em ter “sobrevivido” ao parto, desconforto em função das dores
(principalmente nos casos de intervenção cirúrgica), fragilidade (se conseguirá
amamentar ou cuidar bem do bebê – principalmente quando é o primeiro filho),
ansiedade quando não reconhece a necessidade do filho que chora sem cessar, cansaço
físico, necessidade de apoio do marido e/ou família, falta de tempo e privacidade para se
cuidar ou estar com o marido. Esta fase de adaptação exige muito da mulher/casal, sendo
que o tipo de apoio, e os recursos emocionais e psíquicos envolvidos, podem influenciar
positiva ou negativamente na adaptação.

Nessa fase também é importante orientar a mulher sobre como o bebê é sensível
à maneira como é manuseado pela mãe e que o contato físico entre eles (olhar, acariciar,
falar, nutrir), favorece a consolidação do vínculo, pois ele reage a todos os estímulos aos
quais é exposto. Assim, torna-se fundamental o trabalho do psicólogo no
acompanhamento das emoções e comportamentos da mãe no pós-parto, permitindo um
espaço de confiança no qual ela tenha liberdade de expressar como de fato está se
sentindo, e permitindo ao profissional reconhecer e diferenciar patologias que podem
surgir com frequência, tais como o baby blues, a depressão pós-parto, e a psicose
puerperal. O baby blues (um estado considerado normal após o parto) é uma forma mais
leve dos quadros de depressão, também conhecida por tristeza materna, que se
caracteriza por um estado de hipersensibilidade, sendo seus sintomas mais comuns:
insônia, choro fácil, tristeza, irritabilidade e falta de energia, que surgem logo após o parto
e duram por volta de duas semanas, desaparecendo espontaneamente sem causar
prejuízos à mãe ou à relação mãe-bebê (ARRAIS, 2005). Em relação à depressão pós-parto
(cuja duração é maior que o baby blues e pode ter os sintomas agravados ao longo do

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tempo), a intervenção psicológica visa compreender as emoções, sentimentos, fantasias e


temores decorrentes desse período de transição para aliviar as ansiedades presentes
(ARRAIS, 2005). A psicose puerperal é uma manifestação da depressão pós-parto
exacerbada, que se caracteriza pelo repúdio total ao bebê: a mãe não quer vê-lo,
aterroriza-se com ele, permanece triste, afastada, ausente, sofre de insônia, inapetência,
descuida-se da própria aparência. Muitas vezes, refere-se a alucinações auditivas, ou
exprime ideias delirantes (ARRAIS, 2005).

Entre os fatores que podem influenciar na vivência do puerpério ainda é preciso


considerar a questão concernente ao tipo de parto desejado pela mãe: para além de uma
simples tarefa de esclarecimento sobre as diferenças entre o parto normal e a cesariana, o
pré-natal psicológico valoriza a elaboração do conceito de “parto escolhido”, ou seja, a
gestante é estimulada a se colocar na posição de protagonista de sua história gestacional
até no momento do parto. Dessa forma, se supera a dimensão unicamente técnica de uma
escolha acerca do tipo de parto, e dos aspectos fisiológicos da gravidez, conferindo-se
importância ao envolvimento emocional da mãe, que passa a perceber a equipe obstétrica
– que inclui o psicólogo – de forma diferenciada, mais próxima e acolhedora.

O intercruzamento desses fatores, desde o bom exercício da paternidade, até a


definição autônoma e comprometida pelo tipo de parto, será essencial para uma eventual
necessidade de recuperação de uma mãe deprimida, além de contribuir para a redução
das chances do desenvolvimento da depressão pós-parto (ARRAIS, 2005). Nesse sentido a
construção de uma rede de apoio à mulher também no grupo do pré-natal psicológico é
um dos aspectos fundamentais para prevenir as ocorrências mórbidas que geralmente
resultam do fato de que a maioria das gestações, embora desejadas, não são planejadas, e
que muitas mulheres se sentem inseguras quanto a conseguirem ser boas mães,
gerenciarem as mudanças na rotina de sua vida pessoal e social, estabelecerem novas
prioridades, interromperem ou adiarem planos profissionais ou acadêmicos, mudarem de
papel social (sua nova identidade de mãe) etc. Ao discutir e aprofundar essas questões
junto às gestantes e aos casais grávidos, o grupo de pré-natal psicológico revela-se um
instrumento capaz de potencializar a elaboração de identidades renovadas em relação à
futura parentalidade2, favorecendo o amadurecimento emocional diante da perspectiva de
um grupo familiar ampliado, e a compreensão da situação de eventual fragilidade – física
e emocional - da mulher diante dos desafios e dificuldades desse “novo mundo” da
maternidade.

2 De acordo com Solis-Ponton (2004) o termo parentalidade foi idealizado pelo psiquiatra e psicanalista Paul-Claude

Recamier, em 1961, surgido da união dos vocábulos maternalidade e paternalidade.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
60 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes

4. METODOLOGIA DA PESQUISA: PARTICIPANTES, INSTRUMENTOS E


PROCEDIMENTOS DE COLETA

Este estudo origina-se das conclusões intermediárias da pesquisa “A parentalidade em


questão: desafios para atuação”3, aqui denominada “pesquisa-mãe”, cuja opção
metodológica enquadra-se na proposta de pesquisa-ação, que de acordo com Thiollent
pode ser definida como:
[...] um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em
estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual
os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão
envolvidos de modo cooperativo ou participativo. (THIOLLENT, 1988, p.14)

Essa definição revela um método de pesquisa social na qual o pesquisador


aborda um problema especificamente articulado com seu meio social ou profissional,
incorporando a dimensão das práticas à conceituação teórica na busca de sua
compreensão sistemática e na indicação de possíveis soluções.

Nesse sentido, a presente pesquisa buscou articular a observação do grupo de


gestantes com a participação nas atividades propostas ao longo do período de
acompanhamento, visando entender as relações estabelecidas entre esse grupo e a equipe
de profissionais de saúde, e avaliar as possibilidades de intervenção positiva nesse
processo, sendo portadora também de um objetivo emancipatório e transformador da
realidade.

Thiollen (1988) também afirma que a pesquisa-ação é uma metodologia que


apresenta três fases: primeiro elabora um diagnóstico da situação, depois propõe uma
intervenção e implantação, e finalmente avalia a intervenção realizada. É precisamente
nessa última fase que a presente pesquisa está inserida, uma vez que se propõe a avaliar o
grupo de pré-natal psicológico implantado e desenvolvido em um hospital particular de
Brasília, ao longo do ano de 2007, que contou com a colaboração de 10 mulheres (dentre as
quais nove esperavam o primeiro filho e uma esperava pelo segundo filho), com idades
entre 19 e 41 anos, sendo a idade média de 27,44 anos (dp=6,16). Todas eram casadas, se
autoclassificavam como pertencentes à classe média ou classe média-alta, e residentes no
Distrito Federal. Três delas tinham o ensino médio, três o superior incompleto e quatro o
diploma superior. Cinco delas não trabalhavam e cinco tinham atividade remunerada.
Elas se encontravam em diferentes idades gestacionais, variando de 10 a 28 semanas de
gestação (na data em que preencheram o perfil gestacional). Foram divididas em dois

3 Pesquisa coordenada pela professora Alessandra da Rocha Arrais, entre 2007 e 2009, na Universidade Católica de Brasília -

UCB, na área de psicologia da Saúde, classificada no Sistema WebGEp na subárea: “Estado, família, comunidade e saúde”.
Disponível em: <http://www2.ucb.br/portal/visualizaInformacoesProjeto.do?id=1435>.

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Alessandra da Rocha Arrais, Daniela Silva Rodrigues Cabral, Maria Helena de Faria Martins 61

grupos de cinco mulheres cada: o Grupo P - as que participaram do grupo de pré-natal


psicológico: Ana, 27 anos; Bete, 25 anos; Cida, 41 anos; Dalva, 26 anos; Elza, 29 anos e o
Grupo NP – formado por aquelas que não aderiram a este trabalho: Fernanda, 30 anos;
Glória, 20 anos; Helô, 29 anos; Íris, 19 anos; Júlia, 31 anos (nomes fictícios).

Para a coleta de dados foram realizadas entrevistas individuais, em 2007,


apoiadas em questionários estruturados contendo perguntas de múltipla escolha e
perguntas abertas, aplicado diretamente pelas equipes de pesquisadores no momento da
primeira participação das gestantes no grupo de pré-natal. O formulário gestacional
apresentava questões relativas aos dados sociodemográficos da família, o histórico da
gestação (atual e anteriores), o relacionamento com redes de saúde (intervenções etc.),
apoio à maternidade, histórico de acompanhamento de gestações, entre outros.

Além dos questionários de definição de perfil (gestacional e puerperal), ao final


do acompanhamento (após o nascimento do bebê), as 10 participantes também foram
submetidas à Escala de Depressão Pós-Parto de Edimburgo/EDPDS, desenvolvida na
Escócia e traduzida e validada por Santos (1999), com o objetivo de auxiliar o
rastreamento da depressão pós-parto. Trata-se de uma escala auto-aplicável, constando de
10 itens, divididos em quatro graduações (0 a 3), cujo objetivo é medir a presença e a
intensidade de sintomas depressivos. A somatória dos pontos perfaz escore de 30, sendo
considerado de sintomatologia depressiva o ponto de corte acima de 12 pode indicar os
casos de DPP que necessitem ser encaminhados ao profissional de saúde mental para
avaliar com maior rapidez os riscos envolvidos (SANTOS; MARTINS; PASQUALI, 1999).
Assim, os instrumentos utilizados podem ser sintetizados da seguinte maneira:

1) Perfil gestacional: dados sociodemográficos (dados pessoais, onde reside,


trabalha), história da gestação atual (tempo gestacional, alguma
intercorrência), rede social de apoio e história de gestações anteriores (tipo
de parto, aborto etc.). Elaborado e aplicado no contato inicial das gestantes
com a equipe da pesquisa-mãe.
2) Perfil puerperal: dados sobre o parto (data e local do nascimento do filho,
tipo de parto realizado, coincidência entre parto realizado e pretendido),
acompanhante no parto (se teve e quem), amamentação (se houve
dificuldades/quais e o estado de saúde do bebê), principais mudanças
decorrentes do nascimento do bebê, estados emocionais neste período,
rede social de apoio (apoio emocional, apoio financeiro, apoio nos
cuidados com o bebê, acompanhamento psicológico) e representação do
ser mãe após o nascimento do bebê. Elaborado e aplicado às mães pela
equipe da pesquisa-mãe e pelas atuais pesquisadoras.
3) Escala COX - Escala de Depressão Pós-Parto de Edimburgo/EDPDS -
Edinburgh Postnatal Depression Scale : aplicada na fase puerperal (até 60
dias após o parto) com o objetivo de analisar sintomas psíquicos como
humor depressivo (sensação de tristeza, autodesvalorização e sentimentos
de culpa, ideias de morte ou suicídio), perda do prazer em atividades

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anteriormente consideradas agradáveis, fadiga, diminuição da capacidade


de pensar, de concentrar-se ou de tomar decisões, além de sintomas
fisiológicos (insônia ou hipersonia) e alterações do comportamento (crises
de choro).
O primeiro contato com as mulheres foi realizado pela equipe de psicologia do
referido hospital particular em Brasília, durante o curso para gestantes que é oferecido
pela instituição. As gestantes eram convidadas a responder ao “perfil gestacional”, que foi
aplicado pela equipe da pesquisa-mãe.

Todas foram convidadas a participar do grupo de pré-natal psicológico, porém,


no primeiro semestre de 2007, apenas 14 gestantes aderiram a essa proposta e foram
acompanhadas semanalmente. Depois que tiveram os bebês, continuaram a ser
acompanhadas, por demanda espontânea, sendo que no primeiro encontro no pós-parto
responderam ao “perfil puerperal” e à Escala COX. Dentre essas 14 mulheres, foram
escolhidas as cinco mais assíduas para formar o Grupo P, que foi objeto de análise do
presente estudo.

Com o objetivo de propiciar um grupo de comparação, foram contactadas, na


fase inicial do puerpério, as demais gestantes que não haviam aderido ao grupo de pré-
natal psicológico, tendo sido escolhidas cinco puérperas que aceitaram participar da
pesquisa. Esses contatos foram realizados pelas pesquisadoras, por telefone, com duração
média de 20 minutos com cada participante, para responder ao “perfil puerperal” e à
Escala COX. Foi explicado às mulheres o objetivo do estudo e deixamos claro que o seu
nome não seria revelado. Cabe ressaltar que as gestantes assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, na ocasião do preenchimento do perfil gestacional,
autorizando um contato posterior da equipe. Esclarecemos também que a pesquisa-mãe
foi aprovada pelo CEP - Conselho de Ética de Psicologia da UCB.

5. ANÁLISE DE DADOS E RESULTADOS

Inicialmente foi realizada a análise documental dos perfis aplicados às gestantes do


Grupo P e às gestantes do Grupo NP, comparando também os resultados da Escala COX,
para verificar se a participação no grupo de acompanhamento agregou diferenças no que
se refere à eficácia do pré-natal psicológico.

Uma vez que os instrumentos utilizados apresentaram perguntas abertas foi


possível registrar os relatos das mulheres, submetida à técnica de análise de conteúdo,
considerando que os discursos permitem que o indivíduo expresse,

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
Alessandra da Rocha Arrais, Daniela Silva Rodrigues Cabral, Maria Helena de Faria Martins 63

[...] a subjetividade presente com seus próprios sistemas de pensamento, seus processos
cognitivos, seus sistemas de valores e de representações, suas emoções, suas
afetividades e o afloramento de seu inconsciente. (BARDIN, 1997, p. 94)

O material discursivo foi então explorado sob diferentes perspectivas, tanto no


levantamento de conceitos e ideias, quanto na análise das interpretações que revelaram os
pontos de vista, os estados emocionais e as expectativas das mulheres nesse momento
específico, que muitas vezes se mesclam com imagens pré-definidas e idealizadas. Foram
analisados os conteúdos das respostas abertas dos perfis, bem como comentários feitos
por telefone.

Dessa forma foi possível criar eixos temáticos de ideias, de interpretações, que
revelaram às pesquisadoras quais as imagens vinculadas à gestação, ao “ser mãe”, aos
mitos que envolvem essa fase, bem como apresentar as considerações manifestadas pelas
mulheres quanto à participação no grupo de pré-natal psicológico.

A partir do perfil gestacional, aplicado aos dois grupos durante a gestação, foi
possível a definição de três eixos temáticos, baseados nas questões do tipo “sim/não”
acerca do desejo de engravidar – verificando a existência de um desejo de ambos ou de
apenas um dos membros do casal -, do fato de ter havido um planejamento para a
gravidez, e a atividade remunerada da mulher, que poderia ser afetada pela gravidez: (1)
gravidez desejada; (2) gravidez planejada; e (3) atividade remunerada.

Após o parto, as respostas das mulheres para os itens da Escala Cox4, foram
comparados com os dados dos perfis gestacional e puerperal, nos quais se realizou uma
análise do conteúdo das respostas que se mostraram mais relevantes para o tema da
pesquisa, e que permitiram a definição de mais cinco eixos temáticos: (4) parto desejado;
(5) acompanhante no parto; (6) amamentação; (7) rede social de apoio; (8) estados
emocionais depois do parto, que são discutidos a seguir:

Eixo 1 - Gravidez Desejada


A discussão acerca da decisão e do desejo de uma gravidez é tema recorrente na literatura
especializada da psicologia clínica (BRAZELTON, 1988; MALDONADO, 2002;
MILBRADT, 2008; WINNICOTT, 2006), e está geralmente referida ao caráter de
“indesejado” de que essa situação pode se revestir, mais frequentemente nos casos de

4
Dimensões da Escala Cox validadas por Maria Fátima S. Santos, Francisco M. C. Martins e Luis Pasquali, Depto. de
Psicologia - UnB (1999): 1. Eu tenho sido capaz de rir e achar graça das coisas; 2. Eu sinto prazer quando penso no que está
por acontecer em meu dia a dia; 3. Eu tenho me culpado sem necessidade quando as coisas saem erradas; 4. Eu tenho me
sentido ansiosa ou preocupada sem uma boa razão; 5. Eu tenho me sentido assustada ou em pânico sem um bom motivo; 6.
Eu tenho me sentido esmagada pelas tarefas e acontecimentos do meu dia a dia; 7. Eu tenho me sentido tão infeliz que tenho
tido dificuldade de dormir; 8. Eu tenho me sentido triste ou arrasada; 9. Eu tenho me sentido tão infeliz que tenho chorado;
10. A ideia de fazer mal a mim mesma passou por minha cabeça.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
64 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes

gravidez na adolescência. No presente estudo não se trata dessa abordagem, uma vez que
as mulheres participantes da pesquisa tinham relacionamentos estáveis com um
companheiro ou marido. Assim, a análise do desejo de engravidar vincula-se, nesse caso,
às questões relacionadas ao compromisso do casal com a gravidez, suas expectativas, e os
possíveis impactos e conflitos advindos de um processo de rejeição que terá reflexos na
afetividade e nos vínculos mãe-pai-bebê.

Grupo NP: verificou-se que das cinco mulheres desse grupo, quatro informaram
que a gravidez foi desejada, sendo: três pelo pai e mãe e uma, somente, pela mãe. Apenas
uma das participantes informou que a gravidez não foi desejada nem pelo pai nem pela
mãe.

Grupo P: quatro mulheres informaram que a gravidez foi desejada pelo pai e
mãe, e uma informou que não foi desejada nem pelo pai nem pela mãe.

Houve semelhança nas respostas dadas pelos dois grupos, prevalecendo a


gravidez desejada. Importante mencionar que “gravidez desejada” e “gravidez
planejada” não são sinônimos, por esta razão, embora a maioria tenha desejado, será
constatado que não houve planejamento ideal em nenhum dos grupos.

Eixo 2 - Gravidez Planejada


A questão do planejamento de uma gravidez pode estar vinculada a pelo menos
duas importantes dimensões: a financeira, que envolve a previsão de custos para a
manutenção de uma estrutura familiar ampliada, e a dimensão sociocultural, que diz
respeito às expectativas sociais em relação à família (com ou sem filhos, quantos filhos
etc.). Trata-se, enfim, de pressões que influenciam as decisões do casal e que também
acabam tendo impacto sobre o próprio relacionamento e na afetividade, havendo estudos
que demonstram, por exemplo, como o planejamento da gravidez está relacionado à
decisão pelo próprio vínculo do casamento (LOPES; MENEZES; SANTOS; PICCININI,
2006), indicando a preocupação dos membros da família em fazer as mudanças
necessárias ao enfrentamento das situações emergentes do ciclo de vida familiar. Também
de acordo com Brazelton (1988):
A decisão de ter um bebê é um passo mais complexo, hoje, do que no passado. A
capacidade de controlar a fertilidade através da contracepção trouxe uma
responsabilidade adicional. A maioria dos casais, nos dias atuais, sente que deve limitar
o número de filhos que terão. Se planejam ter somente um ou dois filhos, a carga (de
pressão) para criar aquele um ou dois de modo ótimo é mais intensa. Em uma família de
seis a oito crianças, os irmãos mais velhos ajudavam na criação dos menores. A pressão
para criar e ser criado era diluída. (BRAZELTON, 1988, p. 19)

Ao considerar essas relações potenciais, a reflexão sobre o planejamento da


gravidez torna-se fundamental para a abordagem do pré-natal psicológico, dada sua

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preocupação mais abrangente acerca dos diferentes fatores – e suas articulações – que têm
impacto sobre a construção das relações advindas do nascimento do bebê.

Grupo NP: duas mulheres informaram que a gravidez foi planejada pelo pai e
mãe e três informaram que não foi planejada pelo casal.

Grupo P: duas mulheres informaram que planejaram a gravidez, porém uma


delas foi planejada somente pela mãe, e três não foram planejadas pelo casal.

Portanto, as respostas foram semelhantes nos dois grupos, sendo que a maioria
não planejou a gestação. Esses dados estão de acordo com alguns estudos relacionados à
saúde pública da mulher (MALDONADO, 1997), que indicam que a maioria das
gestações não é planejada. A partir desse fato é preciso ter em mente que não planejar e
não desejar a gravidez pode ser um dos fatores para possíveis transtornos psicológicos no
pós-parto, no entanto, esse fator isoladamente, não foi suficiente para motivar a
participação no grupo do pré-natal psicológico.

Eixo 3 - Atividade Remunerada


Articulando as questões anteriores a respeito do desejo e do planejamento de uma
gravidez, é preciso considerar a situação específica da mãe, como mulher, diante das
expectativas de seu grupo familiar e dos grupos sociais ampliados dos quais participa,
bem como das expectativas inerentes ao próprio relacionamento com seu companheiro, e
o tipo de papel que tem na economia do casal. Novamente concordamos com Brazelton
(1988), ao afirmar que:
A mulher independente talvez seja confrontada com o mais pesado processo de tomada
de decisão. [...] A entrada de um bebê, em seu plano de vida conquistado arduamente,
traz à tona o conflito entre o desejo de ser uma boa mãe e a vontade de estar disponível
para o progresso em sua carreira. (BRAZELTON, 1988, p.20)

Dessa forma se pretende enfatizar as questões relativas à vida profissional e


acadêmica da mulher que se torna mãe, as modificações nas possibilidades de seu
trabalho, a dificuldade de optar entre sua carreira e a dedicação ao bebê, que
frequentemente demandam a reelaboração de identidades, de objetivos de realização
pessoal, e que podem ter impacto nos vínculos de afetividade.

Grupo NP: apenas uma mulher trabalhava, as outras quatro não trabalhavam.

Grupo P: somente uma mulher não trabalhava e as outras quatro tinham


atividade remunerada.

Nesse eixo temático os grupos NP e P diferenciaram-se totalmente. No Grupo


NP, o fato da maioria das mulheres não trabalhar não favoreceu a adesão ao grupo. No

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66 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes

Grupo P, embora a maioria trabalhasse fora, houve maior participação no grupo de pré-
natal psicológico. Portanto, a questão da disponibilidade ou não de tempo, isoladamente,
não foi um fator determinante para favorecer ou impedir a participação das mulheres no
grupo. Por isso, acreditamos que outros fatores - talvez associados a esse -, podem ser
considerados mais significativos ou motivadores para procurar o grupo de pré-natal
psicológico.

No perfil puerperal, os seguintes eixos se mostraram mais relevantes para a


temática analisada:

Eixo 4 - Parto Desejado


Grupo NP: conforme os relatos, duas mulheres tiveram o parto que esperavam -
cesariano: “Foi rápido, tranquilo, sem complicações. Os médicos não se mantiveram
distantes. Um fato muito marcante e positivo foi o carinho no rosto feito pelo anestesista”
(Fernanda, 30 anos); e “...tinha uma indicação médica para cesárea e estava preparada
com leituras e filmes” (Íris, 19 anos). Três mulheres não tiveram o parto desejado, pois
queriam o parto normal e foram submetidas à cesariana, por diferentes motivos
apresentados pelos médicos: “O médico ia viajar, então eu concordei em fazer a cesárea, e
após a cirurgia ele informou que teria que ser cesárea de qualquer forma, porque a
placenta estava grudada no útero” (Glória, 20 anos); “Estava com circular de cordão e o
bebê não estava mexendo direito” (Helô, 29 anos); e “O bebê estava passando do tempo,
estava atravessado e não respirava direito” (Júlia, 31 anos).

Grupo P: duas mulheres tiveram o parto que desejavam. Uma teve o parto
normal: “Rápido sem episiotomia, bem tranquilo, com ajuda do meu marido e da equipe
do hospital” (Dalva, 26 anos); e a outra teve cesárea. Três não tiveram o parto esperado,
pois desejavam normal e tiveram cesariana: “Eu esperava parto normal” (Ana, 27 anos);
“Eu queria o mais natural possível, mas não quiseram fazer o meu parto desta forma”
(Bete, 25 anos); e “Esperava que fosse natural, de preferência” (Cida, 41 anos), ou seja, não
puderam colocar em prática o “parto escolhido”, apesar de ser estimulado no pré-natal
psicológico, não há garantia de que a equipe médica atenderá a escolha dos pais.

Constata-se que a maioria das mulheres não teve o parto desejado - normal -
sendo submetidas à intervenção cirúrgica. Maldonado (1997) destaca o alto índice de
cesarianas no Brasil, que ainda hoje ocupa o primeiro lugar no mundo, sendo habitual que
a mulher seja induzida pelo médico a esse procedimento desde o início da gestação,
sugerindo a cesariana como a melhor alternativa de parto, com argumentos sobre a
segurança e controle do procedimento em caso de eventuais complicações. Dessa forma, a

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
Alessandra da Rocha Arrais, Daniela Silva Rodrigues Cabral, Maria Helena de Faria Martins 67

“cesárea” acaba sendo agendada pelo médico antes mesmo da mulher entrar em trabalho
de parto, desconsiderando o “parto escolhido” pela gestante, minimizando o seu
empoderamento do momento em que ela deveria ter autonomia para decidir. Cabe aqui a
consideração de que a intervenção cirúrgica deve ser realizada sempre que houver
indicação do especialista, porém não deveria tornar-se uma alternativa apenas para
acomodar interesses dos profissionais de saúde.

As falas das gestantes revelaram uma grande expectativa em relação ao parto,


acompanhada de um sentimento de decepção pelo fato de não terem tido o parto
escolhido ou “idealizado”. Este pode ter sido um fator que influenciou o estado emocional
das mulheres que apresentaram indício de depressão pós-parto, conforme dados da
Escala COX, como veremos em seguida.

Eixo 5 - Acompanhante no Parto


Grupo NP: três pais acompanharam a mulher no momento do parto em hospital privado,
um pai não acompanhou, e um foi impedido de entrar na sala do parto, pois o hospital
público justificou que só poderia entrar se fosse parto normal.

Grupo P: todas as mulheres foram acompanhadas no momento do parto: quatro


pelo marido, em hospital privado e uma pela madrinha, em hospital público.

Com base nessa análise, observou-se que das 10 mulheres do estudo, oito foram
acompanhadas pelo marido ou familiar no momento do parto. Esse número, embora
numa amostra pequena, demonstra um aumento da participação do pai/família junto à
parturiente nesse momento, que é considerado de extrema importância para a mulher e
para o vínculo familiar.

É possível que esse avanço esteja vinculado às orientações que as mulheres


receberam, sobretudo no grupo de pré-natal psicológico, visto que o tema do
acompanhamento é muito trabalhado e incentivado no grupo, no qual são também
repassadas informações sobre a Lei nº 11.108/2005, que garante o direito à mulher de ter
um acompanhante no momento do parto.

Eixo 6 - Amamentação
No que se refere à amamentação é preciso considerar que o sucesso ou fracasso pode ser
influenciado por diferentes fatores, entre eles as opiniões de pessoas próximas e também
pela forma taxativa que as campanhas abordam o aleitamento, de modo que, caso a
mulher não consiga ou não queira amamentar, isso pode afetar a sua auto-estima de

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68 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes

forma negativa e levá-la a um sentimento de incapacidade, dificultando desde o início o


contato físico e o vínculo afetivo com o bebê.

Grupo NP: quatro mulheres estavam amamentando e relataram as dificuldades


vivenciadas: “No começo ele não pegou direito o peito, demorou um pouquinho, mas
depois pegou” (Helô, 29 anos); “Saí do hospital amamentando, mas depois de alguns dias
tive que complementar com um pouquinho de NAN (mamadeira), porque ele mamava os
dois seios e, às vezes, ainda chorava com fome, mas, ele não deixou o peito, à noite, só
dava o peito e ele ficava satisfeito” (Íris, 19 anos); e “Nos dois primeiros dias o seio estava
seco, mas depois ele foi pegando e ficou normal” (Júlia, 31 anos). Uma mãe não conseguiu
amamentar devido à mastoplastia realizada há dez anos: “Mesmo estimulando os seios
não consegui amamentar por muito tempo, apenas alguns dias, ainda assim meu bebê
gosta de ficar ao seio para se acalmar” (Fernanda, 30 anos).

Grupo P: quatro mulheres estavam amamentando: “Tive fissura no seio e nos


últimos dias o bebê tem chorado bastante” (Bete, 25 anos); e “Tive fissura em um seio e
tive pouco leite no início” (Dalva, 26 anos). Uma mulher não amamentou: “O leite
demorou para descer 20 dias e não foi o suficiente para o bebê. Ele nasceu prematuro com
32 semanas” (Elza, 29 anos).

Embora a maioria das mulheres estivesse amamentando, os relatos indicaram


dificuldades nessa fase. Além do incentivo no grupo, as gestantes são frequentemente
estimuladas pelas campanhas de amamentação do Ministério da Saúde e as orientações
reforçadas podem ter auxiliado na persistência para amamentar, superando os problemas
iniciais. Não foram observadas diferenças significativas entre os dois grupos do estudo
quanto à amamentação.

Eixo 7 - Rede Social de Apoio

Apoio Emocional:

Grupo NP: quatro mulheres informaram que tiveram o apoio do marido e da


família, e uma assinalou que desde a gestação, não contava com o apoio emocional do
marido nem da família.

Grupo P: quatro mulheres informaram que tiveram o apoio do marido e da


família, e uma informou que apenas “às vezes” tinha o apoio do marido, após o
nascimento do bebê.

De acordo com as respostas, os dois grupos se equipararam: oito delas disseram


contar com a rede de apoio e duas, praticamente, não contavam.

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É importante ressaltar que a mulher do Grupo NP que não contava com o apoio
emocional do marido e da família desde a gestação foi a que apresentou a maior
pontuação na Escala COX de depressão pós-parto dentre todas as participantes. A mulher
do Grupo P que não teve apoio emocional, mas teve acompanhamento psicológico não
apresentou indicativo de depressão pós-parto, com base na Escala aplicada.

Apoio nos cuidados com o bebê:

Os dois grupos apresentaram o mesmo índice de respostas: quatro mulheres


tinham a ajuda de uma babá, e seis eram as únicas responsáveis pelos cuidados com o
filho.

A falta de apoio nos cuidados com o bebê pode sugerir uma sobrecarga na
atividade diária da mãe, podendo desencadear um sentimento de incapacidade,
insegurança, ansiedade, medo, cansaço, alteração do humor, enfim, afetar ou intensificar
negativamente os estados emocionais da mulher, contribuindo para a depressão pós-parto
(ARRAIS, 2005).

Eixo 8 – Qualidade de Vida depois do Parto


De acordo com os itens assinalados (Tabela 1), as mães do Grupo NP demonstraram
maior comprometimento emocional em relação às mães do Grupo P:

Tabela 1. Qualidade de vida dos Grupos NP e P (N=10)1


Piorou após o nascimento do bebê Grupo NP Grupo P
A - Sono 5 2
B - Apetite 3 0
C - Vida sexual 4 4
D - Humor 4 2
E - Concentração 3 0
F - Relações sociais 3 0
G - Relações familiares 0 1
H - Relacionamento com o pai do bebê 1 2
I - Atividades da vida diária 4 3
Nota: Aspectos referentes à qualidade de vida no pós-parto.
Os números apresentados acima se referem ao número de mulheres que assinalaram o item.

Nota-se que o Grupo NP apresentou piora após o nascimento do filho nas


dimensões referentes ao sono, apetite, humor, concentração, relações sociais, vida sexual e
atividades da vida diária; enquanto o Grupo P relatou piora apenas nas dimensões: vida
sexual e atividade da vida diária. As dimensões referentes à vida sexual e atividades da
vida diária, assinaladas por ambos os grupos, caracterizam-se como dificuldades

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frequentemente consideradas como inerentes à fase do pós-parto. Porém, o sono, apetite,


humor, concentração, relações sociais que também são aspectos inerentes a essa fase,
foram apontados somente pelo Grupo NP. Diante desses dados pode-se apresentar a
hipótese de que as gestantes que tiveram o acompanhamento psicológico sofreram menos
impacto pelo fato de terem sido melhores preparadas para essas mudanças e terem sido
mais condescendentes consigo mesmas, diante das alterações percebidas em suas vidas.

No Grupo NP alguns aspectos negativos chamaram a atenção por terem sido


bastante pontuados, tais como: insegurança, cansaço, medo, angústia, fragilidade e
sobrecarga. Quanto aos aspectos positivos, os mais pontuados foram: felicidade, alívio,
esperança, otimismo, confiança, tranquilidade, motivação, plenitude e realização.

No Grupo P, os aspectos negativos destacados foram: insegurança, cansaço,


raiva, angústia, fragilidade e sobrecarga. E os aspectos positivos foram: felicidade,
esperança, confiança, motivação e realização.

Observa-se que as questões mais assinaladas mostraram uma mescla de


sentimentos vivenciados pelas mães, sentimentos ambivalentes e comuns nesse período.
Concordamos com Maldonado (1997) sobre ser importante admitir a existência da
ambivalência, que pode variar de pessoa para pessoa, de cultura e do momento que a
mulher está vivenciando, o que permite compreender como pode também haver um “lado
negativo da maternidade” para algumas mulheres que não foram preparadas, e que
precisa ser trabalhado pela abordagem psicológica na tentativa de superar a dificuldade
de expressão dos sentimentos das mães.

O Grupo P mostrou-se mais estável emocionalmente, pois alguns itens negativos


como desânimo, tristeza, incapacidade e decepção não foram pontuados por nenhuma
dessas mulheres. Entretanto o item raiva (pouco pontuado pelo grupo NP) foi marcado
pela maioria das mães do grupo P, talvez por se sentirem mais seguras para expressar
esse sentimento, assunto que é muito trabalhado e desmitificado no pré-natal psicológico.

Verificou-se ainda que o número das respostas negativas do Grupo NP em


relação ao P foi superior, o que é corroborado também pelo resultado encontrado no Eixo
8 - Qualidade de vida depois do parto.

Indicadores de Depressão Pós-parto - DPP (Ponto de Corte acima de 12)


Grupo NP - Escores: 5, 11, 6, 10, 19 (um caso de indício de DPP)

Grupo P - Escores: 6, 17, 13, 8, 13 (três casos de indícios de DPP)

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No Grupo NP encontramos apenas uma participante com indício de depressão


pós-parto, enquanto no Grupo P três mulheres tiveram essa indicação. Nesse caso,
podemos inferir que as mulheres que procuraram o grupo do pré-natal psicológico já
apresentavam uma demanda emocional para esse acompanhamento, resultando que a
possibilidade de um espaço para desmitificar a maternidade, de discutir o conceito de
instinto materno, (re)elaborar as dúvidas e insatisfações em relação a gravidez, a relação
conjugal ou pessoal, pode ter favorecido a expressão de suas dificuldades, medos,
ansiedades, angústias, e por isso, ter contribuído para aumentar o escore desse Grupo em
relação ao Grupo NP.

A análise dos escores da Escala COX dos grupos NP e P não corroboraram os


dados encontrados no eixo temático dos estados emocionais, porém, considerando que a
aplicação do Grupo NP foi feita por telefone, podem ter ocorrido limitações à criação de
um vínculo de confiança suficiente que favorecesse a livre expressão dos sentimentos das
mulheres, influenciando nas respostas obtidas.

6. CONCLUSÕES

A partir dos dados analisados é possível constatar o potencial que a abordagem do pré-
natal psicológico possui para minimizar a lacuna existente nos atendimentos realizados às
gestantes e aos casais grávidos, que geralmente são feitos de maneira breve e insuficiente
para sanar as diferentes demandas de informação das mulheres e companheiros. Ao criar
um espaço diferenciado de atenção, o pré-natal psicológico permite que a mulher vivencie
o processo de gravidez, parto e pós-parto de maneira pró-ativa, valendo-se de um
acolhimento importante para seu bem-estar, em um momento de vulnerabilidade
emocional.

Ao analisar os grupos de pré-natal psicológico, constatou-se que a procura e a


adesão ainda é muito pequena, visto que poucos percebem sua importância e eficácia,
principalmente nos casos em que a gestação esteja evoluindo bem. Assim, é comum que
os encaminhamentos pelos médicos aconteçam para os casos de crise psíquica ou
relacional já instalados, nos quais o trabalho preventivo se torna menos eficaz em grupo,
ainda que seja benéfico também nesses casos.

A análise dos itens referentes ao desejo e ao planejamento da gravidez permitiu


observar que sua ausência não foi um fator suficiente para que as mulheres procurassem o
grupo de pré-natal psicológico, ainda que se manifestasse o desejo pela maternidade. De
acordo com Serrurier (1993):

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
72 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes

[...] uma mulher pode desejar muito estar grávida, mas não desejar a criança que
decorrerá naturalmente dessa gravidez: são dois desejos completamente diferentes, cuja
associação não é automática, não estão preparadas para ser mãe. O sentimento, o desejo
de engravidar, atinge uma grande maioria de mulheres. (SERRURIER, 1993, p. 13)

Pode-se inferir, a partir das reflexões feitas até o momento, que no caso das
mulheres que têm uma atividade remunerada, o exercício dos diversos papéis
desempenhados (social, familiar, profissional etc.) pode ter sido uma variável positiva
para ajudar na adaptação da nova rotina de vida, mas também pode ter influenciado no
aumento do escore do Grupo P na Escala COX de depressão pós-parto: sobrecarga de
funções, conciliação da maternidade e vida profissional, culpa por ficar muito tempo
ausente da rotina da criança.

No Grupo NP constatou-se que os discursos, em sua maior parte, estavam


vinculados aos “mitos” da maternidade disseminados pelo senso comum: “É a realização
de toda mulher, uma dádiva de Deus” (Helô, 29 anos) e “Não tem como explicar, eu fico
olhando pra ele e não acredito que sou mãe” (Íris, 19 anos), enquanto no Grupo P as
declarações correspondiam mais à realidade vivenciada pelas mulheres: “É um teste
diário de paciência, dedicações, amor, realizações” (Ana, 27 anos), “É ser bastante forte,
quando se está realmente disposta a cuidar da criança, pensar mais na criança do que em
si próprio, nesse período em que ela se mostra tão indefesa, afinal ela não pediu para
nascer, nesse período ela sofre tanto quanto a mãe” (Bete, 25 anos), e “Ser mãe é uma
experiência nova, o início de uma nova jornada, cheia de obstáculos, alegrias e
realizações” (Elza, 29 anos).

Com base nesses discursos, percebe-se que as mulheres que não tiveram o
acompanhamento psicológico não demonstraram um senso crítico apurado acerca do
mito da maternidade e sobre o que é ser mãe, além de apresentarem maior receio e
dificuldade em expressar suas insatisfações pessoais e/ou conjugais, e consequentemente
maior sofrimento emocional. É preciso considerar que a cultura ocidental idealiza a
maternidade positivamente a partir de modelos quase “infantis”, ao vê-la como um
momento singelo, mágico, especial, desejado e integralmente feliz, construindo um mito
da maternidade “cor-de-rosa”, que coloca a mulher diante de um conflito potencial: a
dificuldade em aceitar a ambivalência, que define barreiras sociais e morais que impedem
que as mulheres manifestem problemas, tristeza, sofrimento, e questionamentos nesse
período. Dessa forma, considera-se “natural” a sobrecarga de papéis, limitando o espaço
para que as mulheres possam expressar publicamente suas insatisfações e temores, que
são colocados na dimensão do “patológico” e fazem esquecer que “a maternidade não é
cor de rosa, ela é de todas as cores” (ARRAIS, 2005).

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Conforme a análise do perfil sobre os estados emocionais, verificou-se que as


mulheres que tiveram o acompanhamento psicológico demonstraram maior coerência em
suas respostas e uma melhor adaptação à realidade da maternidade e às mudanças
inerentes ao pós-parto. Uma das riquezas do trabalho grupal está justamente na
possibilidade da pessoa entender-se melhor a partir da percepção das problemáticas
alheia e do (re)conhecimento de que suas vivências e angústias também são comuns a
muitas outras pessoas (MALDONADO, 2003). A existência de um espaço de aceitação e
compreensão para refletir sobre aqueles mitos, bem como a possibilidade de expressão e
compartilhamento de sentimentos anteriormente censurados, pode trazer um grande
alívio emocional a essas pessoas (MALDONADO, 2003), e o grupo do pré-natal
psicológico mostra-se um instrumento propício para a construção desse espaço de
acolhimento das demandas.

Entretanto, apesar dos aspectos positivos que as mulheres/casais podem obter


com esse trabalho preventivo, atualmente ele ainda é pouco difundido e oferecido em
poucos lugares, muitas vezes de maneira estereotipada, como consequência da imagem
do psicólogo no senso comum, frequentemente associada ao tratamento de “loucuras” ou
de “fraquezas”.

As instituições públicas e privadas geralmente oferecem cursos para gestantes


que são mais curtos e focados em questões práticas, em alguns casos, funcionam como um
atrativo para as gestantes realizarem o seu parto na instituição, não tendo a preocupação
com o cunho psicológico e social que envolve a situação específica desse período. No
entanto, de acordo com a análise feita, os fatores apresentados não foram, isoladamente,
suficientes ou determinantes para as mulheres recorrerem à ajuda de um profissional da
área da psicologia. Na prática, a falta do apoio emocional do marido/companheiro
pareceu ser o principal fator para que elas buscassem o grupo de pré-natal psicológico, o
que ficou explícito nas falas durante o encontro realizado com o grupo de puérperas: “Se
não fosse para casa da minha mãe, tinha matado o meu marido, muita cobrança, um
inferno” (Elza, 29 anos), “Eu descobri que filho não salva casamento, se não tiver bem,
acaba” (Dalva, 26 anos) e “Meu marido é um multiproblemático, se eu não tivesse
frequentado o grupo eu teria morrido” (Bete, 25 anos).

Pode-se então afirmar que o pré-natal psicológico foi percebido pelas


participantes como benéfico no momento gestacional, que se refletiu na fase puerperal,
como explicitado nas diferentes falas: “O grupo me ajudou muito, pois via que tinha
outras iguais a mim, aprendi que o amor pelo filho não é instantâneo, é uma conquista
diária” (Ana, 27 anos). “É preciso buscar ajuda e se preparar. No pós-parto tudo é

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
74 Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de intervenção junto a gestantes

possível, não condeno a pessoa se fizer uma loucura” (Elza, 29 anos). “A orientação do
grupo foi muito útil, aprendi a questionar e a selecionar o que as pessoas falam” (Cida, 41
anos).

Dessa forma os resultados demonstram que o grupo de pré-natal psicológico


parece cumprir a sua finalidade, que é oferecer às mulheres ou casais um espaço de
escuta, trocas e discussões que atuem na promoção, prevenção e manutenção da saúde da
mãe, do bebê e da qualidade da relação familiar, ampliando a preparação para a
maternidade e paternidade de uma forma mais saudável (BORTOLETTI, 2007).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora se reconheça que o presente estudo aborda apenas um dos possíveis conjuntos de
indicadores relevantes para a compreensão das questões referentes ao tema, a análise dos
resultados dos perfis das gestantes e puérperas reforçam a percepção de que o trabalho
preventivo, característica fundamental do pré-natal psicológico, pode tornar-se uma
prática capaz de evitar ou minimizar possíveis transtornos psicológicos nesse período
puerperal, além de seu potencial em favorecer as relações familiares e o desenvolvimento
da vivência maternal e parental mais acolhedora, de maneira articulada às atuais políticas
públicas de promoção da saúde da mulher, de equidade de gênero, entre outras. Nesse
sentido é importante destacar o diferencial apontado pelas participantes do grupo de pré-
natal psicológico em termos de acolhimento, exteriorizando uma dimensão afetivo-
familiar que pode ser desconsiderada/subestimada pela abordagem meramente técnica
do ponto de vista médico, que muitas vezes reveste-se de um discurso hermético e frio
que impede o afloramento de importantes dimensões emocionais. É preciso perceber a
importância da dimensão que pode emergir a partir do pré-natal psicológico, pois se trata,
no limite, de estabelecer um novo espaço de compreensão e de uma lógica que ultrapassa
os estereótipos de gênero presentes no senso comum, permitindo avançar para além da
imagem de fragilidade ou de “histeria” feminina (e sua expectativa de resolução solitária),
para uma perspectiva de compromisso e de apoio mútuo relativo à parentalidade.

A realização sistemática de estudos complementares será fundamental para a


avaliação continuada da eficácia do pré-natal psicológico (em termos de: redução da
ansiedade, adaptação pós-parto bem-sucedida, diminuição do índice de depressão pós-
parto, amamentação tranquila e positiva, participação adequada dos familiares,
vinculação familiar, planejamento familiar, promoção da auto-estima e satisfação da
mulher em todas as fases, entre outras) certamente contribuirá para despertar o interesse e
aprofundar os conhecimentos dos profissionais que atuam com esse tipo de abordagem

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
Alessandra da Rocha Arrais, Daniela Silva Rodrigues Cabral, Maria Helena de Faria Martins 75

(obstetras, psicólogos, pediatras, enfermeiros etc.), focando nas demandas específicas do


ciclo gravídico-puerperal e suas patologias, propiciando prognósticos rápidos e efetivos,
beneficiando a alta médica/hospitalar, e estabelecendo o acompanhamento psicológico
como protocolo no atendimento à mulher.

Finalmente, considerando os ganhos advindos da possibilidade de compreensão


ampliada das demandas dos envolvidos nesse processo, os resultados analisados no
presente estudo também permitem confirmar a importância dos conhecimentos
específicos do profissional de psicologia que atua na área de saúde e que trabalha em
equipe interdisciplinar, cuja habilidade em compreender as particularidades de cada
mulher, cada situação e de cada profissional envolvido, pode facilitar a comunicação e
interação com os demais profissionais e técnicos da área de saúde, auxiliando da melhor
forma as mulheres grávidas e puérperas, e oferecendo uma intervenção integral, sensível
e necessária durante esse período tão delicado.

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Alessandra da Rocha Arrais


Psicóloga Hospitalar. Doutora em Psicologia
Clínica pela Universidade de Brasília - UnB;
Professora do Curso de Psicologia da
Universidade Católica de Brasília – UCB e
Coordenadora do Curso de Especialização em
Psicologia da Saúde e Hospitalar da Pós-
Graduação da Universidade Católica de Brasília –
UCB.

Daniela Silva Rodrigues Cabral


Daniela Silva Rodrigues Cabral: Bacharel em
Psicologia. Especialista em Psicologia Aplicada em
Saúde (Psicologia Hospitalar) pela Universidade
Católica de Brasília - UCB.

Maria Helena de Faria Martins


Graduação em Psicologia pelo Centro
Universitário de Brasília (2005) e Especialização
em Psicologia Hospitalar pela Universidade
Católica de Brasília (2009), com interesse nos
seguintes temas: puerpério, pré-natal psicológico,
complexo de Édipo, cinema e psicanálise.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 15, Nº. 22, Ano 2012 • p. 53-76
02
O pré-natal psicológico como programa
de prevenção à depressão pós-parto
The psychological prenatal program as a prevention tool
for postpartum depression

Alessandra da Rocha Arrais Resumo


Doutora em Psicologia. Psicóloga Hospitalar da Secretaria de
Estado de Saúde do Distrito Federal; Docente da Universidade O pré-natal psicológico (PNP) é um novo conceito
Católica de Brasília e da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciên- em atendimento perinatal voltado para maior hu-
cias da Saúde. manização do processo gestacional e do parto e da
Endereço: Campus Avançado Asa Norte, SGAN 916, Módulo B, Av.
W5, CEP 70790-160, Brasília, DF, Brasil.
parentalidade. Pioneiro em Brasília, o programa
E-mail: arrais@ucb.br visa à integração da gestante e da família a todo o
processo gravídico-puerperal, por meio de encontros
Mariana Alves Mourão
Especialista em Psicologia Hospitalar. Psicóloga Hospitalar da
temáticos em grupo, com ênfase psicoterápica na
Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. preparação psicológica para a maternidade e pater-
Endereço: SHA conjunto 6, Chácara 18F, lote 5ª, Arniqueiras, CEP nidade e prevenção da depressão pós-parto (DPP).
71996-165, Brasília, DF, Brasil. O objetivo da pesquisa foi avaliar a contribuição do
E-mail: mariana.amourao@gmail.com PNP para prevenir a DPP. Optou-se pela metodolo-
Bárbara Fragalle gia da pesquisa-ação. Os instrumentos utilizados
Especialista em Psicologia Hospitalar e da Saúde. Psicóloga Hos- foram: perfil gestacional, perfil puerperal, sessões
pitalar da Unimed Brasília. e materiais produzidos no PNP, Inventário Beck de
Endereço: Cond. Prive I, Qd. I, Conj. K, Casa 13, Lago Norte, CEP
Depressão, Escala de depressão pós-natal de Edim-
71539-060, Brasília, DF, Brasil.
E-mail: barbarafragale@yahoo.com.br burgo questionário avaliativo e completamento de
frases. Os resultados foram comparados entre cinco
colaboradoras participantes do PNP (grupo inter-
venção) e cinco não participantes (grupo controle)
e encontrou-se que entre o grupo intervenção a
ocorrência dos fatores de risco superou a dos fatores
de proteção e mais metade desse grupo evidenciou
depressão gestacional, mas não desenvolveram a
DPP. Já no grupo controle, duas colaboradoras apre-
sentaram a DPP. Esses achados sugerem que o PNP
associado a fatores de proteção presentes na história
das grávidas pode ajudar a prevenir a DPP. Defende-
-se que a assistência psicológica na gestação, por
meio da utilização do PNP, é importante instrumen-
to psicoprofilático que deve ser implementado como
uma política pública emunidades básicas de saúde,
maternidades e serviços de pré-natal.
Palavras-chave: DPP; Atenção pré-natal; Profilaxia;
Psicologia.

DOI 10.1590/S0104-12902014000100020 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.251-264, 2014 251
Abstract Introdução
Psychological prenatal program(PNP) is a new con- A gravidez pode ser sobrecarregada por muitos
cept in perinatal care towards greater humanization transtornos do humor, em particular pela depressão.
in the gestational process, birth and parenting. Ao contrário do esperado, a literatura e a prática com
Pioneer in Brasilia, the program aims to integrate gestantes e puérperas nos mostram que a maioria
pregnant women and family throughout the preg- das mulheres, sobretudo as de classe média e baixa,
nancy and childbirth process through thematic encontra na vivência da maternidade algum nível de
meetings in psychotherapy groups with an emphasis sofrimento psíquico, físico e social no período pré
on psychological preparation for parenthood and e pós-parto. Normalmente, nessas fases, observa-se
prevention of postpartum depression (PPD). The nas mães uma vivência relativamente contínua de
research objective was to evaluate the contribution tristeza ou de diminuição da capacidade de sentir
of PNP to prevent PPD. Action-research methodology prazer (Santos, 2001), a qual poderá ser transitória
was chosen. The instruments used were: gestational ou irá se tornar crônica caso não sejam assistidas
profile, puerperal profile, sessions and materials adequadamente. Esse conhecimento segue no
produced in the PNP, Beck Depression Inventory, sentido contrário ao de uma crença popular ampla-
Edinburgh postnatal depression scale, evaluative mente difundida de que a gravidez é um período de
questionnaire and completing phrases. The results alegria para todas as mulheres (Zinga e col., 2005;
were compared between five collaborating PNP Maushart, 2006; Arrais e Azevedo, 2006; Tostes,
participants (intervention group) and five non- 2012).
-participants (control group). It was found that the Existem três distúrbios que são característicos
in intervention group the occurrence of risk factors do período puerperal (Cantilino e col., 2010). São eles
overcame the protective factors and more than half a melancolia da maternidade (baby blues), a depres-
of this group showed gestational depression, but são pós-parto (DPP) e a psicose puerperal (Frizzo e
didn’t developed the PPD . In the control group, two Piccinini, 2005; Rosenberg, 2007). Baptista e cola-
collaborators presented the PPD. These findings boradores (2004) e Cantilino e colaboradores (2010)
suggest that the PNP associated with protective acrescentaram recentemente à trilogia do puerpério
factors present in the history of pregnant women (Santos, 2001) outros transtornos ansiosos como a
can help prevent PPD. It is argued that psychologi- ansiedade puerperal e o distúrbio de pânico pós-
cal assistance during pregnancy, through the use -parto. Apesar de não serem “reconhecidos como
of PNP, is an important psycoprophylactic tool that entidades diagnósticas específicas pelos sistemas
should be implemented as a public policy at primary classificatórios atuais, os transtornos mentais no
health care, maternity services and prenatal care. puerpério apresentam peculiaridades clínicas que
Keywords: DPP; Prenatal Are; Prophylaxis; Psychology. merecem atenção por parte de clínicos e pesquisa-
dores” (Cantilino e col., 2010, p. 278). De modo geral,
estas não são diagnosticadas nem tratadas adequa-
damente. Neste artigo focalizaremos apenas a DPP,
por ser uma experiência vivida por muitas mulheres,
por se apresentar como transtorno psíquico do ciclo
gravídico puerperal de maior incidência no puerpé-
rio (Rosenberg, 2007).
Para Frizzo e Piccinini (2005) a DPP é definida
como um episódio depressivo não psicótico que é
classificado assim sempre que iniciado nos primei-
ros doze meses após o parto. Esse tipo de depressão
apresenta uma incidência no Brasil de até 20%
dos casos após o parto (Santos, 2001; Rosenberg,

252 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.251-264, 2014


2007), mas este índice aumenta para cerca de 30 ser mãe solteira (Harvey, 2002); conflitos e falta de
a 40% se considerarmos as mulheres com perfil apoio conjugal (Baptista e col., 2004; Arrais, 2005;
socioeconômico baixo e atendidas no SUS, segundo Cruz e col., 2005; Moraes e col., 2006; Rosenberg,
Lobato e colaboradores (2011). Os achados da revisão 2007), evento de vida estressante, como perda de
feita por estes autores sugerem que “a prevalência emprego ou morte de familiar (Zinga e col., 2005);
de sintomas depressivos no pós-parto no Brasil falta de apoio familiar e social (Baptista e col., 2004;
encontra-se acima da média mundial, e próxima Arrais, 2005; Rosenberg, 2007; Konradt e col., 2011);
àquela encontrada em países similares do ponto de histórico pessoal ou familiar de doença psiquiátri-
vista socioeconômico” (Lobato e col., 2011, p. 377). ca, mas principalmente a existência de episódios
A manifestação clínica da DPP é igual à das de- depressivos anteriores e durante a gravidez (Golse,
pressões em geral (Baptista e col., 2004): A pessoa 2002; Harvey, 2002; Baptista e col., 2004; Arrais,
sente uma tristeza muito grande de caráter prolon- 2005; Zinga e col., 2005; Rosenberg, 2007). Compli-
gado, com perda de autoestima, perda de motivação cações obstétricas durante a gravidez ou imediata-
para a vida, é incapacitante, requerendo na maioria mente pós-parto; parto traumático; parto múltiplo e
das vezes o uso de antidepressivos (Rosenberg, prematuro, abortos anteriores, partos de natimorto
2007). ou síndrome de morte súbita infantil (Harvey, 2002;
É sabido que a DPP acontece com mulheres de Zinga e col., 2005). Arrais (2005) acrescenta ainda
todas as idades, classes sociais e de todos os níveis como fator que aumenta o risco de DPP a idealização
escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que dese- da maternidade.
jam muito ter um filho, bem como com aquelas que Apesar das controvérsias, a maioria dos estudos
não aceitam o fato de ter engravidado (Arrais, 2005). citados é concorde quanto aos fatores acima (Can-
Pode ocasionar-se no nascimento do primeiro filho, tilino e col., 2010). Assim, se a mãe apresentou al-
do segundo, do terceiro, ou de outros. Os autores que guma dessas histórias, ela requer mais atenção dos
estudam essa temática têm posições diversas sobre familiares e profissionais de saúde desde a gestação
o aparecimento da DPP, e a literatura não é concorde (Botega e Dias, 2002), o que raramente é feito pelos
quanto a sua etiologia (Santos, 2001; Botega e Dias, obstetras que as acompanham no pré-natal.
2002; Rosenberg, 2007; Zinga e col., 2005). Já os fatores de proteção são condições associa-
Compreende-se por risco os fatores ou eventos das às influências que podem contribuir para uma
negativos que se configuram preditores, aumen- melhor resposta a determinados eventos de riscos,
tando o grau de tensão, influenciando nas respos- tendo uma visão da interatividade dos fatores e o
tas individual ou ambiental que potencializam a efeito produzido da experiência estressora ou prote-
vulnerabilidade do desenvolvimento de uma vida tora vivida pela pessoa, assim, estão associados aos
saudável do indivíduo afetando aspectos de ordem recursos individuais que reduzem o efeito do risco.
física, social e emocional (Moraes e col., 2006). Os Nesse sentido, os fatores de proteção da DPP são
fatores de risco da DPP são eventos ou situações medidas preventivas ou situações já estabelecidas
já estabelecidas que propiciam o surgimento de que funcionam como proteção contra problemas
problemas emocionais após o parto (Golse, 2002). emocionais no período da gravidez e do pós-parto
De modo geral, Schmidt e colaboradores (2005) (Golse, 2002), a saber: o apoio de outra mulher, de-
agrupam os riscos para a DPP em três categorias: a tecção precoce da depressão (Ruschi e col., 2007),
primeira relaciona-se à qualidade dos relacionamen- suporte social (Frizzo e Piccinini, 2005), intervenção
tos interpessoais da mãe, particularmente com seu multidisciplinar logo que os sintomas sejam detec-
parceiro; a segunda refere-se à gravidez e ao parto e tados (Schwengber e Piccinini, 2003) e um trabalho
à ocorrência de eventos de vida estressantes; e a ter- de prevenção, como o PNP (Bortoletti, 2007; Cabral
ceira relaciona-se às adversidades socioeconômicas. e col., 2012). Também são considerados como fatores
Portanto, podem ser incluídos como fatores de proteção o otimismo, elevada autoestima, suporte
de risco ou fatores predisponentes para DPP: ser social adequado e preparação física e psicológica
primípara (Rosenberg, 2007; Zinga e col., 2005); para as mudanças advindas com a maternidade

Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.251-264, 2014 253


(Cantilino e col., 2010), boa relação conjugal e su- visa à integração da gestante e da família a todo o
porte emocional do companheiro (Frizzo e Piccinini, processo gravídico-puerperal, por meio de encontros
2005; Arrais, 2005). O estudo de Cruz e colaborado- temáticos com ênfase na preparação psicológica
res (2005) também observou que, quanto maior o para a maternidade e paternidade.
suporte social do marido, menor a prevalência de Complementar ao pré-natal tradicional, tem cará-
DPP. Ou seja, a percepção da presença de suporte ter psicoterapêutico e oferece apoio emocional, dis-
social, sobretudo do marido funciona como um pro- cute soluções para demandas que podem surgir no
tetor sobre a presença de DPP (Konradt e col., 2011). período gravídico-puerperal, como aquelas relacio-
Vale ter em mente a promoção da integridade nadas aos mitos da maternidade, à sua idealização,
biopsicossocial da gestante; para isso, segundo à possibilidade da perda do feto ou bebê, à gestação
Rosenberg (2007), o trabalho de equipe é essencial. de risco, à malformação fetal, ao medo do parto e
Assim, visando à proteção da mulher quanto aos pro- da dor, aos transtornos psicossomáticos, aos trans-
blemas emocionais e outras questões relacionadas tornos depressivos e de ansiedade, às mudanças de
ao ciclo gravídico, são necessários programas de papéis familiares e sociais, às alterações na libido,
assistência e orientação, entre os quais são aponta- ao conflito conjugal, ao ciúme dos outros filhos, ao
dos os cursos para gestante e o PNP. planejamento familiar, além de sensibilizar a ges-
Para Tostes (2012) a assistência pré-natal tradi- tante quanto à importância do plano de parto e do
cional tem merecido destaque crescente e especial acompanhante durante o trabalho de parto e parto
na atenção à saúde materno-infantil, que permanece (Cabral e col., 2012).
como um campo de intensa preocupação na história Essa intervenção, também denominada de
da saúde pública brasileira. Acrescenta que no Bra- psicoprofilaxia por Bortoletti (2007), justifica-se
sil, a persistência de índices preocupantes como os segundo Maldonado (1986) por ser preventivo em
coeficientes de mortalidades maternas e perinatal, vários aspectos: modificações da identidade da
o crescente índice de cesarianas, têm motivado o gestante; acompanhar a gestação do vínculo pais-
surgimento de um leque de políticas públicas que -bebê; trabalhar o desenvolvimento da confiança
focalizam o ciclo gravídico-puerperal com enfoque na própria percepção e na própria sensibilidade;
multidisciplinar; atualmente diversas especialida- ampliar recursos do casal como agente de prevenção
des estão envolvidas com a assistência à gestante. com outras pessoas da família; e conscientização
A assistência ao pré-natal tradicional caracteriza-se dos pais em relação ao atendimento que recebem
pelo redirecionamento, pelo cuidado com o corpo e o e à reivindicação de suas necessidades. Além des-
acompanhamento do desenvolvimento do concepto. ses aspectos preventivos, o grupo pode colaborar
Ainda de acordo com Tostes (2012), quando a e desmistificar alguns temas importantes, como
assistência pré-natal proporciona, além do controle cuidados com amamentação, cuidados com o bebê,
biológico, continente ou base consistente para a a maternidade idealizada, conforme discutida por
mulher e sua família, constitui-se em fator de coe- Arrais (2005).
são importante, pois viabiliza o cuidado obstétrico O principal objetivo da intervenção psicológica
humanizado e integral. Torna-se assim, um eficiente neste aspecto é oferecer uma escuta qualificada e
fator de redução da morbimortalidade materna e diferenciada sobre o processo da gravidez, fornecen-
transforma a realidade vivenciada pelas mulheres do assim um espaço em que a mãe possa expressar
durante o período da gravidez. seus medos e suas ansiedades, além de favorecer a
O pré-natal psicológico – PNP, abordagem dife- troca de experiências, descobertas e informações,
renciada dos cursos de gestantes, é uma modalidade com extensão à família, em especial ao cônjuge e às
de atendimento raramente encontrada em serviços avós, visando à participação na gestação/puerpério
de obstetrícia. Trata-se de um novo conceito em aten- e compartilhamento da parentalidade.
dimento perinatal, voltado para maior humanização Para participar do PNP, a gestante não precisa,
do processo gestacional, e do parto, e de construção necessariamente, estar atravessando dificuldades
da parentalidade. Pioneiro em Brasília, o programa emocionais. Basta explicitar o interesse para cons-

254 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.251-264, 2014


truir o novo papel materno ou para aprimorar tal seu potencial psicoprofilático, a presente pesquisa
função de responsabilidade e complexidade, uma vez apresentará uma comparação entre os fatores de
que a construção do vínculo mãe-bebê-pai demanda risco e de proteção para a DPP e os níveis de DPP
tempo e elaboração. encontrados no puerpério em mulheres grávidas que
O PNP objetiva ainda proporcionar às gestantes participaram do PNP (grupo intervenção) e outras
um entrosamento com outras mulheres que co- que não participaram do PNP (grupo controle), que
munguem sentimentos e emoções presentes nessa foi oferecido pela equipe de pesquisa em um hospital
fase de suas vidas, favorecendo o mecanismo de particular em Brasília.
identificação. Os encontros do grupo têm por fina-
lidade acolher e dar voz a elas, informar, orientar
e prepará-las para que passem por esse processo
Objetivos
da melhor maneira possível. Para tanto, diversos Objetivo geral: Avaliar o potencial preventivo do
temas são desenvolvidos ao longo da existência programa de PNP para a DPP.
do grupo, levando-se em conta as características e Objetivos específicos: Avaliar a presença dos fato-
necessidades deste. res de risco e de proteção para a DPP em gestantes
Nos últimos vinte anos, houve um maior reconhe- que participaram (grupo intervenção), e as que não
cimento e identificação de fatores de risco para DPP participaram do PNP (grupo controle); comparar os
e, em consequência, observou-se na última década fatores de risco, proteção e a incidência da DPP nas
um número crescente de estudos que têm explorado mulheres dos dois grupos; avaliar a incidência de
meios de preveni-la, utilizando estratégias psicos- DPP em ambos os grupos e conhecer a avaliação das
sociais, psicofarmacológicas e hormonais, mas a mulheres do grupo intervenção sobre o PNP e sobre
influência de intervenções psicológicas no pré-natal as vivências no puerpério.
como fator preventivo ainda é pouco explorada na
literatura (Zinga e col., 2005; Cantilino e col., 2010).
Mas, a DPP pode ser prevenida? A resposta en-
Método
contrada por Zinga e colaboradores (2005), em uma Para que os objetivos pudessem ser atingidos, o mé-
consistente revisão de literatura sobre o tema, tem todo utilizado foi a pesquisa-ação, visto ser voltada
caráter negativo. Para esses autores, a DPP ainda para a descrição de situações concretas e interven-
não pode ser prevenida, pois a revisão apontou que ção ou ação orientada para resolução de problemas
a maior parte das intervenções piscoeducativas e coletivos, no qual pesquisadores e participantes
hormonais tem mostrado pouco efeito para a pre- estão envolvidos Thiollent (1992). A pesquisa-ação é
venção da DPP. Porém, estudos que se utilizaram de uma estratégia de investigação que visa compreen-
intervenções de enfoque psicoterapêutico, especial- der e intervir propositalmente ou intencionalmente
mente os realizados em grupo, mostraram alguns na situação, com vista a modificá-la: “a pesquisa-
resultados promissores nos esforços para prevenir -ação propõe ao conjunto de sujeitos envolvidos
a ocorrência de depressão no pós-parto. mudanças que levem a um aprimoramento das
Diante dos fatores que envolvem esse transtorno práticas analisadas” (Thiollent, 1992, p. 120). Esta
psíquico e observada a necessidade de adaptação metodologia divide-se em três fases: Fase I: elabo-
que uma puérpera precisa enfrentar, faz-se válida ração do diagnóstico da situação (levantamento dos
a utilização de recursos que tentem prevenir este fatores de risco e de proteção para a DPP); Fase II:
distúrbio. O PNP se propõe a ser um desses recursos Proposta de intervenção e implantação do PNP ; Fase
instrumentais (Cabral e col., 2012), visto ter como um III Avaliação: Rastreamento da DPP e avaliação do
de seus objetivos a preparação para a maternidade PNP e vivência do puerpério. A presente pesquisa
e paternidade, fase favorável à instalação de senti- contemplou as três fases da pesquisa-ação acima
mentos que podem dificultar a experiência saudável descritas.
do ciclo gravídico puerperal (Bortoletti, 2007). Foram colaboradoras da pesquisa 10 grávidas,
A fim de conhecer os benefícios do PNP e avaliar com idades entre 23 e 33 anos, captadas em um servi-

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ço de obstetrícia de um hospital privado de Brasília. planos de parto; estados emocionais do pós-parto;
Podiam participar da pesquisa todas as gestantes, cobranças sociais. Foi fornecido o espaço de escuta
que estivessem entre a 12a e a 36a semanas de ges- e utilizadas técnicas como recorte e colagem, lei-
tação, e que aceitassem participar voluntariamente tura de textos sobre os temas abordados, vídeos,
da pesquisa, independentemente da quantidade de elaboração de desenhos por parte das colaboradoras,
filhos, gestações e estado civil. Não pôde participar dentre outras técnicas projetivas. Aplicado apenas
da pesquisa, gestante analfabeta, com algum trans- no grupo-intervenção.
torno psiquiátrico ou comprometimento cognitivo ¦!Jowfouˆsjp!Cfdl!ef!EfqsfttŒp!)CEJ*;!fttf!jotusv-
grave. As colaboradoras serão melhor caracterizadas mento é um inventário composto por 21 itens com
na seção resultados e discussão deste artigo. diferentes alternativas a respeito de como o sujeito
Para a coleta de dados, foram utilizados os se- tem se sentido recentemente, os quais correspondem
guintes instrumentos: a diferentes níveis de gravidade da depressão: mí-
¦!Qfsßm!hftubdjpobm;!ßdib!fmbcpsbeb!qfmb!frvjqf!ef! nimo, leve, moderado ou grave (Beck e Steer, 1993).
pesquisa com perguntas abertas e fechadas conten- Aplicada nos dois grupos de pesquisa.
do dados sociodemográficos, história da gestação, ¦!Ftdbmb!ef!EfqsfttŒp!Q˜t.Obubm!ef!Fejncvshp!pv!
rede social de apoio e história de gestações anterio- Escala COX: consiste em um instrumento avaliativo,
res, procurando identificar nestes dados os fatores bastante utilizado em estudos sobre DPP (Lobato e
de risco e proteção para DPP. Aplicada nos dois col., 2011) de autoregistro composto de dez enuncia-
grupos de pesquisa. dos, cujas opções são pontuadas (0 a 3) de acordo
¦! Qfsßm! qvfsqfsbm;! ßdib! fmbcpsbeb! qfmb! frvjqf! ef!
com a presença ou a intensidade do sintoma. Seus
pesquisa com perguntas abertas e fechadas conten- itens cobrem sintomas como humor depressivo
do registros sobre o parto, o bebê e a amamentação, (sensação de tristeza, autodesvalorização e senti-
mudanças decorrentes do nascimento do bebê, rede mento de culpa, ideias de morte ou suicídio), perda
social de apoio e representação de ser mãe após o do prazer em atividades anteriormente considera-
nascimento, a fim de identificar a percepção das das agradáveis, fadiga, diminuição da capacidade
puérperas sobre a vivência do pós-parto. Aplicada de pensar, de concentrar-se ou de tomar decisões,
nos dois grupos da pesquisa. sintomas fisiológicos (insônia ou hipersonia) e alte-
¦!Rvftujpoˆsjp!bwbmjbujwp;!dpnqptup!qps!ef{!rvftuœft! rações do comportamento (crises de choro). A escala
abertas e uma fechada, elaborado pela equipe de tem como ponto de corte valor igual ou superior a
pesquisa, que buscou extrair a avaliação das cola- 12 para rastreamento de DPP (Cox e Holden, 2003;
boradoras sobre a maternidade, sobre o puerpério e Zaconeta e col., 2004; Ruschi, 2007). Aplicado nos
sobre a participação no PNP. Importante ressaltar dois grupos de pesquisa.
que as puérperas podiam responder livremente o ¦! Jotusvnfoup! ef! Dpnqmfubnfoup! ef! Gsbtft! )DG*-!
questionário, que procurou ser o menos tendencio- desenvolvido por González Rey (2005), consiste
so possível, pois procurou conhecer tanto os seus na apresentação de frases escritas incompletas,
aspectos positivos, quanto negativos, por meio de para que o sujeito complete-as, a partir daquilo
questões como: Você pode apontar algum malefício que primeiramente emergir em sua mente ao ler a
qspnpwjep! qfmp! hsvqp@! Rvbm@<! Wpd‘! sfdpnfoebsjb! frase em questão. No presente estudo, esse recurso
este grupo para outras mães? Por quê?. Aplicado instrumental consistiu de 50 frases incompletas, de
apenas no grupo -intervenção conteúdo amplo e aberto para estimular a expressão
¦!Tfttœft!ep!QOQ;!Gpsbn!sfbmj{bept!pjup!fodpouspt! livre das participantes. As frases se alternavam en-
de PNP coordenados pelas pesquisadoras, quando tre temas relacionados ao desejo, às preocupações,
puderam ser trabalhados temas como: as mudanças às aspirações, aos medos, ao trabalho, às relações
proporcionadas pela maternidade e paternidade; sociais, conjugais e parentais, à maternidade, à
desmistificação da maternidade; o bebê imaginá- DPP, à amamentação, entre outros. Foi aplicado nos
rio x bebê real; gestação/puerpério x sexualidade; grupos intervenção e controle.

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O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de foram sendo aplicados o perfil puerperal, a Escala
Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Católica COX e o CF para ambos os grupos (intervenção e
de Brasília – UCB, em Abr/2011, sob o no do parecer controle) em visita domiciliar, agendadas por con-
085/2011. Somente após a aprovação no CEP iniciou- tato telefônico. Estas visitas foram realizadas pelas
-se a coleta de dados. Primeiramente, o projeto de pesquisadoras. Após três meses do término do PNP,
pesquisa foi divulgado para as participantes dos cur- foi aplicado às colaboradoras do grupo intervenção
sos de gestantes oferecidos pelo referido hospital. A um questionário avaliativo, em um encontro de
captação das colaboradoras deu-se após a realização follow-up, para verificar a sua percepção sobre o
da palestra sobre os aspectos psicológicos do ciclo QOQ/!Rvboup!‰t!dpmbcpsbepsbt!ep!QOQ-!oŒp!ipvwf!
gravídico-puerperal, proferida pela coordenadora qualquer resistência em receber as pesquisadoras
da pesquisa, que também apresentou a proposta do nas visitas domiciliares após o parto. Porém, com
PNP. As gestantes foram, então, convidadas a colabo- relação às puérperas que não participaram do PNP,
rar com a pesquisa, de forma voluntária. Aquelas que não foram todas que aceitaram a visita após o par-
aceitaram colaborar com a pesquisa responderam, to quando proposta em contato telefônico, sendo
no final do curso de gestante, ao perfil gestacional, realizada a visita e a aplicação dos instrumentos
ao Inventário Beck de Depressão (BDI) e assinaram o apenas àquelas que aceitaram participar de todo
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o processo.
para realizarmos a fase 1 da pesquisa-ação: o diag- Procedimentos de análise de dados: procedeu-se
nóstico dos fatores de risco e proteção para DPP. O a uma análise mista dos resultados. Primeiramente,
preenchimento dos instrumentos foi efetuado de foi realizada uma tabulação dos perfis gestacional
forma individual ainda na sala na qual foi realizado e puerperal, com base na ausência ou presença de
o curso, na presença de todos, inclusive da coorde- fatores de risco e proteção na gestação identificados
nadora da pesquisa. Após terem sido captadas, as e na vivência do pós-parto de todas as colaboradoras
10 gestantes foram divididas em dois grupos de da pesquisa, que foram sintetizados em uma tabela
pesquisa: o grupo intervenção, composto pelas cinco (Tabela 1), para melhor visualização e discussão dos
gestantes que quiseram participar das sessões do dados. Posteriormente, procedeu-se a uma análise
PNP, e o grupo controle formado pelas cinco gestan- quantitativa da BDI e COX, conforme seus respecti-
tes que não quiseram participar das sessões. vos manuais (Beck e Steer, 1993; Cox e Holden, 2003).
Posteriormente, ocorreu a 2a fase da pesquisa- A seguir, realizou-se para cada colaboradora uma
-ação: foi implantado o PNP, que tiveram todas as análise dos aspectos emocionais e psicológicos na
suas sessões coordenadas pelas próprias pesqui- gestação e comparados aos níveis de DPP presentes
sadoras. Foram realizadas oito sessões semanais no puerpério, a partir das características positivas
de grupo de PNP, no período de três meses. As e negativas identificadas no pós-parto e na Escala
pesquisadoras tinham pré-definido alguns temas COX. Foram considerados apenas os fatores de risco
que consideramos importantes contemplar no PNP, e proteção presentes nas colaboradoras da pesquisa.
tais como amamentação, estados emocionais do Por fim, fez-se um comparativo apresentado no qua-
pós-parto, a mistificação da maternidade, dentre esp!)Rvbesp!3*-!eftubdboep!pt!“oejdft!ef!efqsfttŒp!
outros. Contudo, o grupo era livre para trazer suas antes e após o parto encontrados nos dois grupos,
demandas relacionadas às suas próprias vivências, intervenção e controle, com objetivo de avaliar o
preocupações, medos, percepções. Desta forma os caráter preventivo do PNP para a DPP.
temas do encontro seguinte eram sempre definidos Para análise qualitativa dos dados, procedeu-se à
em conjunto com as gestantes. É importante ressal- transcrição de todas as sessões do grupo de PNP, que
tar que a qualquer tempo a gestante poderia pedir foram organizadas e analisadas em seu conteúdo, as-
para sair do grupo de PNP, deixando de fazer parte sim como as questões abertas do perfil puerperal, do
então como participante da pesquisa. questionário avaliativo do PNP, do CF, com objetivo
Por fim, ocorreu a fase 3 – avaliativa – da pes- de conhecer a avaliação em relação ao atendimento
quisa-ação: à medida que os bebês foram nascendo, realizado neste tipo de pré-natal.

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Resultados e discussão boradora da pesquisa no primeiro trimestre; todas
já haviam passado pelas angústias próprias deste
Caracterização das colaboradoras trimestre.Todas residiam no Distrito Federal e en-
A síntese dos dados de caracterização da população torno. A maioria das colaboradoras dos dois grupos
estudada nos grupos intervenção e controle estão é casada ou mantém relação marital estável, e ape-
bqsftfoubebt!op!Rvbesp!2/ nas uma é solteira. Todas têm pelo menos o ensino
P!Rvbesp!2!opt!nptusb!rvf!bt!hftubouft!fodpo- médio, sugerindo bom nível de esclarecimento e
travam-se em diferentes trimestres da gestação, entendimento. Apenas duas do grupo-intervenção
que variou da 16a à 30a semana no início do PNP, ou estavam desempregadas, enquanto no grupo con-
seja, encontravam-se todas no segundo ou terceiro trole, apenas duas trabalhavam fora, sendo apenas
trimestre de gravidez, não havendo nenhuma cola- uma delas com vínculo empregatício.

Quadro 1 - Características sociodemográficas e histórico obstétrico das colaboradoras da pesquisa

Sujeito Escolaridade Estado Civil Idade Gestacional Relação Profissional


P1 Superior comp. Solteira 20 sem.
a
Empregada
Grupo Intervenção

P2 Médio Compl. Rel. estável 16 sem.


a
Desempregada
P3 Superior incomp. Casada 30a sem. Desempregada
P4 Superior comp. Casada 19a sem. Empregada
P5 Superior comp. Casada 31 sem
a
Empregada
P6 Médio comp. Casada 28 sem.
a
Desempregada
Grupo Controle

P7 Superior comp. Casada 28 sem.


a
Empregada
P8 Superior comp. Casada 21a sem. Trabalha sem vínculo
P9 Superior Comp. Casada 25 sem.
a
Desempregada
P10 Médio comp Casada 30 sem.
a
Desempregada

Fatores de risco e de proteção para DPP identificados Os fatores de risco encontrados foram: ser primí-
A primeira fase da pesquisa visou levantar os fatores para; rede de apoio social e familiar empobrecida;
de risco e de proteção presentes na história e vivên- relacionamento conjugal insatisfatório; idealização
cia das colaboradoras. Para melhor visualização dos da maternidade; ser mãe solteira; gravidez não plane-
dados, a tabela 1, sintetiza e apresenta a ocorrência jada; gravidez não desejada; depressão gestacional;
de cada fator para cada colaboradora do grupo- relação conflituosa com a mãe; condições socioeco-
-intervenção (P1, P2, P3, P4 e P5) e grupo-controle nômicas desfavoráveis; falta de apoio do pai do bebê;
(P6, P7, P8, P9 e P10). transtornos de humor, parto traumático e prematuri-
Com base nas respostas apresentadas nos perfil dade (Golse, 2002; Harvey, 2002; Baptista e col., 2004;
gestacional e nos relatos das duas primeiras sessões Arrais, 2005; Zinga e col., 2005; Rosenberg, 2007).
do PNP, foi possível elencar vários fatores apontados Os fatores de proteção levantados foram: ser
pela literatura da área. Conforme afirma Gomes e multípara; gravidez planejada; gravidez desejada;
colaboradores (2010), o conhecimento desses fatores suporte familiar; relacionamento conjugal satisfa-
é importante para o planejamento e execução de tório; apoio emocional do pai do bebê; bom relacio-
ações preventivas, como o favorecimento de apoio namento com a mãe; parto satisfatório e situação
emocional à família, amigos e companheiro, propor- socioeconômica favorável (Frizzo e Piccinini, 2005;
cionando segurança à puérpera. Arrais, 2005; Cruz e col., 2005; Cantilino e col., 2010).

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Tabela 1 - Fatores de Risco e Fatores de Proteção identificados na gestação das colaboradoras da pesquisa

Grupo-Intervenção Grupo-Controle
P1 P2 P3 P4 P5 Total P6 P7 P8 P9 P10 Total
Primípara X X X X X 5 X X X 3
Rede de apoio empobrecida X X 2 X 1
Rel. conjugal insatisfatória X X X 3 X 1
Idealização da maternidade X X 2 X X X 3
Mãe solteira X 1 0
Gravidez não planejada X X 2 X X 2
Fatores de Risco

Gravidez não desejada X 1 X 1


Depressão na gestação X X X X 4 X X 2
Relação conflituosa com a mãe X 1 0
Condições socioeconômicas desfavoráveis 0 X 1
Falta de apoio do pai do bebê X X 2 X 1
Transtornos de humor X X X 3 X X 2
Parto traumático ou insatisfatório X X X 3 X 1
Total 8 5 6 7 3 29 2 5 2 7 2 18
Multípara 0 X X 2
Gravidez Planejada X X X 3 X X X 3
Gravidez Desejada X X X X 4 X X X X 4
Fatores de Proteção

Suporte familiar X X X X X 5 X X X X X 5
Rel. conjugalsatisfatória X X 2 X X X X 4
Apoio emocional do pai do bebê X X 2 X X 2
Bom relacionamento com a mãe X X X 3 X X X X 4
Parto satisfatório X X 2 X X 2
Situação socioeconômica favorável. X X X X X 5 X X X X X 5
Total 4 5 5 5 7 26 6 6 6 6 7 31

Pode-se observar, na tabela 1, que a soma dos o grupo quando já existe alguma demanda psicos-
fatores de risco no grupo-intervenção (29 ocorrên- social, no intuito de lá encontrar um acolhimento e
cias) é maior se comparado ao grupo-controle (18 apoio para suas fragilidades emocionais; ainda que
ocorrências). Por outro lado, os fatores de proteção o grupo seja aberto para todas as gestantes e não
do grupo-controle (31 ocorrências) superaram os do coloque este tipo de demanda como pré-requisito
grupo-intervenção (26 ocorrências). Analisando-se para participação, o que é destacado no convite feito
apenas estes dados, pode-se supor que as colabora- às gestantes: “Para participar do PNP, você não pre-
doras do grupo-intervenção estariam mais vulnerá- cisa estar passando por uma dificuldade emocional
veis que as do grupo-controle, portanto com maior grave, ou crise psíquica. Basta apenas querer ajuda
tendência a desenvolver a DPP. para construir o novo papel de mãe e/ou de pai ou
Este resultado sugere a presença de fatores de aprimorar estas funções”.
risco que levaram as colaboradoras do PNP a pro- Além disso, na fase da intervenção, a captação
curar o grupo e as demais não. Ou seja, elas buscam das gestantes para a participação do PNP foi um

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fator dificultador para a pesquisa. Mesmo diante cuido quando... não tenho me cuidado. Pretendo! (P9),
da divulgação, da flexibilidade no tempo por parte Sinto falta... de cuidar só de mim (P10). Estas falas
das pesquisadoras para a realização dos grupos, do corroboram com o que foi apresentado na pesquisa
fator da gratuidade, a procura pelo PNP foi pequena. de Arrais e Azevedo (2006) e no livro de Maushart
Apenas cinco gestantes se dispuseram a participar do (2006) que mostram o quanto a busca por conciliar o
começo ao fim, dos oito encontros semanais, com óti- ideal de maternidade e o bom desempenho profissio-
ma adesão. As sessões duravam cerca de duas horas nal e social contribuem para o sofrimento materno
e vários aspectos qualitativos da construção da ma- após a chegada do bebê.
ternidade destas gestantes puderam ser conhecidos. Acreditamos que a DPP esteja relacionada a essa
Estes dados reforçam a ideia, apontada por Ar- “decepção e desilusão frente ao paraíso prometido”
rais (2005) e Serrurier (1993), de que as mulheres e a (Arrais, 2005, p. 120). Isso que as deixa vulneráveis
sociedade acreditam, ainda hoje, que a maternidade e próximas a DPP, que foi o que aconteceu com duas
é instintiva, e isso implica um comportamento ine- colaboradoras do grupo controle, que apresentaram
rente, sabido e já conhecido de todas as mulheres, sinais positivos para DPP, segundo a Escala COX,
que não carece de preparação ou aprimoramento. que pode ser visualizado no quadro 2, mais adiante.
Assim, a noção de instinto garante ao mesmo tempo Portanto, em uma perspectiva naturalizada
o pressuposto de uma “natureza feminina” como da maternidade (Arrais, 2005; Maushart, 2006), a
“natureza materna” que seriam suficientes para mãe deprimida sente-se totalmente inadequada e
dar conta de uma função social tão complexa como responsável por seu aparente insucesso, pois ela
a maternidade. Para quê participar de um grupo de deveria saber ser uma boa mãe, deveria saber parir,
PNP, se quando o bebê nascer elas têm a “garantia” amamentar, dar colo, cuidar, afinal ela é uma mulher
social e histórica de que elas estarão prontas e sa- e as mulheres vêm “programadas” para isto. Como
berão o que fazer? Não é preciso se preocupar, nem ela pode não estar sabendo cuidar de seu filho? Ou
se preparar, afinal, a maternidade estaria “dada/ não estar vendo graça nenhuma na maternidade,
pronta” e não seria construída, lapidada aos poucos, ou o que é pior, não estar gostando e sentindo-se
sobretudo na interação com o filho no dia a dia. infeliz em ser mãe?
Este é para nós um grande equívoco, disseminado Infelizmente, só no puerpério, já com o filho nos
social e historicamente, que leva muitas mulheres a braços é que se darão conta de que não “nasceram”
se decepcionarem consigo mesmas como mães, com sabendo “tudo”, que a maternidade não é “dada” e
a maternidade. Como alerta Arrais (2005), “as várias nem “cor-de-rosa” e que teria sido importante se
mudanças impostas às mulheres após a maternidade preparar, desmistificar a maternidade e pedir ajuda,
têm na sua grande maioria um elemento surpresa como podemos observar no CF de P7 (grupo controle)
de caráter negativo e decepcionante” (p. 120). No que fez as reveladoras afirmações: Lamento... não ter
que diz respeito às exigências da maternidade, me cuidado; Gostaria... de voltar no tempo; É difícil...
percebemos sentimentos de isolamento do convívio administrar uma casa e ser mãe; A maternidade...
social (envolvendo lazer e trabalho) e dificuldades no é muito difícil; Frequentemente sinto... tristeza; A
autocuidado nas colaboradoras de ambos os grupos, amamentação... foi um suplício; A depressão pós-
que pode ser ilustrado nas seguintes respostas ao -parto... é uma realidade.
CF: Sinto falta... do trabalho (P8), Sinto falta... de ir
ao cinema (P7), Quando penso em minha carreira... Níveis de Depressão gestacional e puerperal:
vejo que devo ter paciência (P1), Sinto falta... dos Em função da sua grande relevância como fator
meus amigos (P4), Sempre que posso... me divirto de risco para DPP, destacaremos os resultados
um pouco (P2),Sinto falta... da minha liberdade (P3), referentes aos níveis de depressão gestacional e
Sempre que posso... faço visitas às amigas (P5), Me sbtusfbnfoup!ef!EQQ!opt!epjt!hsvqpt-!op!Rvbesp!3;

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Quadro 2 - Níveis de depressão gestacional e rastreamento de DPP nos dois grupos

Suj Resultado BDI Grau Depressão COX Rastreamento DPP A DPP.... (respostas ao CF)
P1 22 Moderada-severa 07 Negativo ... foi prevenida e não apareceu
Grupo-intervenção

P2 10 Leve-moderada 11 Negativo ... graças a Deus não passei por esta fase
P3 22 Moderada-severa 06 Negativo ... não fez parte do meu cotidiano
P4 18 Leve-moderada 10 Negativo ... acredito que não tive a DPP
P5 9 Ausente 11 Negativo ... passa bem perto
P6 14 Leve-moderada 04 Negativo ... não tive
Grupo-controle

P7 22 Moderada-severa 20 Positivo ... é uma realidade


P8 7 Ausente 06 Negativo ... graças a Deus não faz parte
P9 4 Ausente 14 Positivo ... é complicada
P10 8 Ausente 09 Negativo ... não tive

Interessante observar que dentro do grupo- tinham um maior vínculo com as pesquisadoras
-intervenção apenas uma das colaboradoras não ficando mais à vontade para falar sobre suas di-
apresentou sintomas de depressão, de acordo com ficuldades e sentimentos relacionados à vivência
o Inventário Beck de Depressão (BDI) as outras do pós-parto, enquanto as colaboradoras do grupo-
quatro tiveram escore acima de 10; sendo duas -controle tinham uma tendência em não demonstrar
com nível moderado-severo de depressão na ges- seus sentimentos, pela pouca vinculação com as
tação. Enquanto no grupo-controle, apenas duas pesquisadoras. Com base nestes resultados, cabe
colaboradoras tiveram escore na Beck maior que questionar se a participação no PNP permitiu que,
10, sendo uma no nível moderado-severo e outra no de alguma forma, a depressão fosse tratada ou mi-
nível leve-moderado; porém na maioria delas não se nimizada e a depressão não emergisse no puerpério.
evidenciaram sintomas de depressão gestacional. É importante esclarecer que todas as colabora-
Importante lembrar que a presença de depressão na doras foram convidadas a participar do PNP e que
gestação é um dos grandes fatores de risco para a nenhuma delas recebeu qualquer outro tratamento
DPP (Golse, 2002; Harvey, 2002; Baptista e col., 2004; psicológico ou psiquiátrico na gestação e no pós-
Arrais, 2005; Zinga e col., 2005; Rosenberg, 2007). -parto. Mas, depois de detectados indícios de DPP,
Entretanto observamos que, no puerpério, ocor- as colaboradoras, tanto do grupo-intervenção quanto
reu o inverso, nenhuma das gestantes acompanha- controle, foram encaminhadas para esses tratamen-
das no grupo-intervenção, que participaram do PNP tos pela equipe de pesquisa, pelo compromisso ético
desenvolveu depressão após o parto, enquanto duas com elas.
das puérperas do grupo-controle, que não partici- Na última fase da pesquisa – a avaliativa: no
param do PNP, evidenciaram DPP, como pode ser encontro de follow-up, nos dados provenientes do
visualizado no quadro 2. instrumento de perfil puerperal e nos dados prove-
Além dos testes, a análise das respostas do CF nientes do questionário avaliativo, ficou evidente o
permitiu a reafirmação desses dados e reforçam a impacto do PNP para cada colaboradora do grupo
ausência de DPP no grupo intervenção. Por outro intervenção, quando elas fazem a avaliação de todo
lado, das cinco colaboradoras do grupo-controle, o trabalho desenvolvido no PNP e refletem sobre
duas delas (P7 e P9) evidenciaram escore positivo o que aprenderam, os mitos desfeitos, o apoio re-
para rastreamento de DPP, na Escala COX, mas este cebido: o grupo me deu mais segurança (P2), foi
índice poderia ser ainda maior, pois é preciso con- importante para nos sentirmos mais seguras (P3),
siderar que as colaboradoras do grupo intervenção importante para não se sentir sozinha (P1), ajudou

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porque eu passei a me observar para ver se estava A excessiva quantidade de resultados negativos
com DPP (P4), acho que o grupo contribui para a na literatura atual demonstra que a DPP ainda
prevenção da depressão porque discutiu sobre os não pode ser facilmente prevenida, afirmam Zin-
sonhos e desilusões e nos preparou para observar ga e colaboradores (2005). Ao contrário dos seus
os sintomas depressivos e tentar evitá-los (P5). Para achados majoritariamente negativos advindos de
essas colaboradoras, observa-se que o grupo do PNP iniciativas educacionais e da melhoria da atenção
favoreceu para a desmistificação da maternidade, às mães, Zinga e colaboradores (2005) encontraram
considerado na literatura um importante fator de estudos preliminares que utilizaram intervenções
risco para a DPP (Arrais, 2005; Maushart, 2006), de enfoque psicoterapêutico específicas, sobretudo
o que pôde ir sendo aos poucos desmistificado no as realizadas em grupo, que mostraram alguns re-
grupo, não sendo oferecida a mesma oportunidade sultados promissores nos esforços para prevenir a
para as colaboradoras do grupo-controle. ocorrência de DPP. Acreditamos que nosso estudo
Destaca-se ainda que se criou um vínculo entre confirma esses achados, pois a realização deste tra-
as gestantes tão forte que elas tornaram-se amigas, balho possibilitou reafirmar o potencial preventivo
para além do grupo. Visitavam-se mutuamente, do PNP para a DPP e favorecer a promoção da saúde
quando os bebês nasciam e mesmo após o encerra- da mulher, do casal e do bebê, alcançando assim o
mento do grupo elas continuavam a se encontrar ou objetivo proposto pela pesquisa.
a se falar por telefone. Entre as colaboradoras e as A metodologia da pesquisa-ação mostrou-se muito
pesquisadoras a relação era de confiança e mesmo adequada e rica para acessarmos os resultados encon-
fora das sessões do PNP elas entravam em contato, trados e foi fundamental para percebemos a proteção
para esclarecer dúvidas ou contar novidades sobre que o PNP oferece na gestação. Obviamente, nossos
o desenvolvimento dos seus bebês e das suas ma- achados não podem ser interpretados de forma iso-
ternagens. lada de outros aspectos da vida da gestante e apenas
sugerem que o PNP associado a outros fatores de pro-
teção presentes na história das grávidas pode ajudar
Considerações finais a prevenir a DPP. Um estudo futuro, com um número
Esta pesquisa teve como objetivo geral avaliar o maior de colaboradoras, poderia ajudar a esclarecer
potencial preventivo do PNP para a DPP. Todos os como o PNP atua como fator de proteção para DPP.
resultados anteriormente discutidos sugerem que o Assim, defendemos que a assistência psicológica
PNP atuou como fator de proteção para prevenção da na gestação, por meio da utilização do PNP, é impor-
DPP nas gestantes do grupo-intervenção, reforçan- tante instrumento psicoprofilático, reafirmando a
do o caráter psicoprofilático deste tipo de trabalho concepção de Bortoletti (2007); Cabral e colaborado-
apontado por Bortoletti (2007) e Cabral e colabo- res (2012), que ele é em si um fator de proteção, que,
radores (2012). Acredita-se que os fatores de risco portanto minimiza o impacto dos fatores de risco
encontrados puderam ser minimizados por meio da presentes, e dessa forma diminui a possibilidade da
abordagem psicoterapêutica das sessões do grupo de DPP. Sabendo da alta incidência de depressão e após
PNP, favorecendo a adaptação das puérperas neste as evidências do caráter preventivo do PNP proposto
período. A participação no grupo permitiu, por exem- neste estudo, seria interessante a ampliação da as-
plo, a desmistificação da maternidade, favorecendo sistência pré-natal oferecida nos serviços de saúde,
para que não houvesse um sentimento de estranha- sendo complementada com o PNP. Esse tipo de ser-
mento, decepção após o nascimento do bebê, pois a viço pode ser oferecido nas maternidades e centros
sociedade “vende” uma maternidade idealizada, que de saúde, proposta viável por ser uma intervenção
raramente coincide com a realidade vivida por quem em grupo, abrangendo grande número de pessoas,
acaba de ter um bebê (Arrais, 2005; Maushart, 2006). podendo ser adaptado à realidade de cada comuni-
Rvboep!b!nvmifs!tf!efqbsb!dpn!fttb!sfbmjebef-!tvs- dade. É importante instrumento psicoprofilático, de
gem as dificuldades de exercer o papel de mãe, que baixo custo, que pode ser implementado como uma
é acompanhado de muitas mudanças. política pública nos serviços de pré-natal do País.

262 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.251-264, 2014


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Recebido em: 19/06/2012


Reapresentado em: 07/06/2013
Aprovado em: 24/06/2013

264 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.251-264, 2014


03
Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.
DOI: 10.1590/1982-3703001382014

O Pré-Natal Psicológico como Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto

Natália Maria de Castro Almeida  Alessandra da Rocha Arrais 


Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, Universidade de Brasília,
SP, Brasil. Brasília, DF, Brasil.

Resumo: O pré-natal psicológico (PNP) é uma prática complementar ao pré-natal tradicional,


voltado para maior humanização do processo gestacional, e se propõe a prevenir situações
adversas potencialmente decorrentes desse processo. O objetivo da pesquisa foi avaliar a eficácia
do PNP na prevenção à depressão pós-parto (DPP) em gestantes de alto risco internadas em
um hospital público, em Brasília. Optou-se pelo delineamento metodológico da pesquisa-ação.
A pesquisa foi realizada com 10 gestantes de alto risco, sendo que cinco delas participaram do
PNP (grupo A) e cinco não participaram do PNP (grupo B). Os instrumentos utilizados foram:
perfil gestacional, perfil puerperal, questionário avaliativo, sessões e materiais produzidos no
grupo de PNP, Inventário Beck de Depressão e Ansiedade (BDI, BAI) e Escala COX. Foi utilizado
como procedimento deste trabalho a análise mista dos resultados. Os resultados foram
comparados entre os dois grupos e verificou-se que ambas colaboradoras encontravam-se
vulneráveis, apresentando vários fatores de risco, portanto com tendência a desenvolver a DPP,
entretanto, somente as colaboradoras do grupo B apresentaram DPP. Esses achados sugerem
que o pré-natal psicológico associado a fatores de proteção presentes na história das grávidas
pode ajudar a prevenir a DPP. Defende-se que a assistência psicológica na gestação, por meio da
utilização do PNP, é importante instrumento psicoprofilático que deve ser implementado como
uma política pública em contextos da saúde.
Palavras-chave: Atenção Pré-Natal, DPP, Psicoprofilaxia, Gestação de Alto Risco.

The Psychological Prenatal Program as a Prevention


Tool For Postpartum Depression

Abstract: The Psychological prenatal program (PNP) is a complementary practice to traditional


prenatal toward greater humanization of the gestational process, and aims to prevent
potentially adverse situations during pregnancy and postpartum. The objective of the research
was to investigate the effectiveness of the PNP in preventing postpartum depression (PPD) in
high risk pregnant women in a public hospital in Brasilia. Action research methodology was
chosen. The survey was conducted with 10 high-risk pregnant women: 05 of them participated
in the PNP held in that maternity (group A) and 05 did not (group B). The instruments used
were: gestational profile, puerperal profile, evaluative questionnaire, sessions and materials
produced in the PNP group, Beck Depression and Anxiety Inventory (BDI, BAI) and COX Scale.
This was a multi-methodological approach. The results were compared between the two groups
and it was found that both groups of participants were vulnerable to develop PPD; however,
only those in the control group (group B)  showed PPD. These findings suggest that prenatal
psychological factors associated with protection present in the history of pregnant women may
help to prevent PPD. It is argued that psychological assistance during pregnancy, through the
use of PNP, is a psycoprophylactic important tool that should be implemented as a public policy
at health services and prenatal care.
Keywords: Psychological Prenatal, Postpartum Depression, Psychoprophylaxys, High-risk Pregnancy.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.

El Programa Prenatal Psicológico como Prevención de la Depresión Posparto

Resumen: El prenatal psicológico (PNP) es una práctica complementaria a la asistencia


prenatal tradicional, volcado a una mayor humanización del proceso de gestación, y tiene
como objetivo prevenir situaciones potencialmente adversas durante el embarazo y después
del parto. El objetivo del estudio fue investigar la efectividad de la PNP en la prevención de
la depresión posparto (PPD) en mujeres que tuvieron embarazo de alto riesgo en un hospital
público de Brasilia. Fue elegida la metodología de investigación-acción. La encuesta se llevó a
cabo con 10 mujeres que tenían embarazos de alto riesgo; 05 de ellas participaron en el PNP
durante su maternidad (grupo A) y 05 no hicieron uso o participaron en el PNP (grupo B). Los
instrumentos utilizados fueron: perfil gestacional, perfil puerperal, cuestionario de evaluación,
sesiones y materiales producidos en el grupo del PNP, Inventario Beck de Depresión y Ansiedad
(BDI, la BAI) y Escala de COX. Fue utilizado como procedimiento de este trabajo el análisis mixto
de los resultados. Los resultados de los dos grupos se compararon y se encontró que todos los
participantes eran vulnerables a desarrollar PPD; sin embargo, solo aquellos en el grupo control
(grupo B) mostraron PPD. Estos hallazgos sugieren que los factores psicológicos prenatales
asociados con la protección presente en la historia de las mujeres embarazadas pueden ayudar
a prevenir el PPD. Se argumenta que la asistencia psicológica durante el embarazo, a través del
uso del PNP, es una herramienta  importante  que debería implementarse como una política
pública en los servicios de salud y atención prenatal. 
Palabras clave: Psicología Prenatal, La Depresión Posparto, Psicoprofilaxia, Embarazo de
Alto Riesgo.

Introdução De acordo com Chiattone (2007), 10 a 16% das


Para algumas mulheres a gravidez é um evento pacientes preenchem critérios para o diagnóstico de
desejado e planejado, para outras, esse processo é rara- DPP, que merece maior atenção. Há relatos de que 50
mente planejado, nem sempre marcado por alegrias a 90% dos casos de DPP no mundo não são sequer
e realizações (Rosenberg, 2007), sendo comum nessa detectados (Brasil, 2006). Diante da gravidade deste
fase o surgimento de sentimentos conflitantes tanto transtorno psíquico e, observada a necessidade de
em relação ao bebê quanto à própria vida da gestante adaptação que uma puérpera precisa enfrentar, faz-se
(Chiattone, 2007). válida a utilização de recursos que tentem prevenir
Entre os transtornos psíquicos da puerpera- este distúrbio. O pré-natal psicológico (PNP) é um
lidade, destaca-se a depressão pós-parto (DPP). desses recursos, cuja abordagem diferencia-se dos
De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatís- cursos para gestantes. Trata-se de um novo conceito
tico de Transtornos Mentais (American Psichyatric em atendimento perinatal, voltado para uma maior
Association, 2002), a depressão pós-parto (DPP) humanização do processo gestacional, do parto e
caracteriza-se pela presença de humor deprimido de construção da parentalidade (Arrais, Cabral, &
ou perda de interesse e prazer por quase todas as Martins, 2012; Bortoletti, 2007a).
atividades (Episódio Depressivo Maior), que se Este estudo teve por objetivo avaliar a eficácia
manifesta duas semanas após o parto. A ocorrência do PNP na prevenção à DPP em gestantes de alto
de transtornos depressivos no puerpério é alta. De risco internadas em um hospital público de refe-
acordo com dados do Ministério da Saúde (Brasil, rência em Brasília. As pacientes foram distribuídas
2006), 70% das pacientes apresentam sintomas em dois grupos: grupo A (gestantes participantes do
depressivos que caracterizam o blues puerperal, PNP) e grupo B (gestantes não participantes do PNP)
estado depressivo mais brando e transitório e avaliadas quanto à presença ou ausência do diag-
marcado por fragilidade, hiperemotividade e senti- nóstico, quatro semanas após o parto. Foi utilizada
mentos de incapacidade. a Psicologia Positiva como referencial teórico que

848
Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.

propõe um olhar voltado ao potencial de cada indi- tura, má-formação fetal, óbito fetal, entre outras
víduo, ajudando a identificar e fortalecer os fatores complicações (Baptista, & Furquim, 2009).
que permitem a redução da incidência e a prevenção
de patologias secundárias a condições adversas de
vida (Oliveira, & Nakano, 2011). Transtornos psíquicos no puerpério
O puerpério é um período marcado pela saída da
placenta no momento do parto, prolongando-se até a
Pré-natal psicológico (PNP) retomada do organismo materno às condições antes
Durante a gestação, observam-se várias altera- do parto, o que envolve processos anatômicos, fisio-
ções no comportamento feminino e na vida do casal, lógicos e bioquímicos (Baptista, & Furquim, 2009). De
as quais envolvem aspectos sociais, familiares, conju- acordo com o Ministério da Saúde, esse período pode
gais, profissionais e, principalmente, pessoais. Nessa ser compreendido em três fases: o puerpério imediato
fase, é comum que o humor tenha uma característica que inicia no primeiro e vai até o décimo dia após o
instável podendo resultar no surgimento de senti- parto; em seguida, o puerpério tardio, que abrange
mentos conflitantes tanto em relação ao bebê quanto desde o décimo até o quadragésimo quinto dia, e, por
à vida da gestante (Chiattone, 2007). último, o puerpério remoto, aquele que vai além do
É de grande importância a realização do pré-natal, quadragésimo quinto dia, ou seja, termina quando a
conforme destacam Baptista e Furquim (2009) e Borto- mulher retorna a sua função reprodutiva (Brasil, 2001).
letti (2007b), visando a prevenção dos problemas gesta- Conforme complementa Higuti e Capocci (2003),
cionais e o controle de agravantes psicológicos. Durante o puerpério é marcado por um período rico e intenso
esse período ocorre ainda o preparo físico e psicoló- de vivências emocionais para a puérpera, de grande
gico para o parto e a maternidade, proporcionando risco psíquico na vida de uma mulher, nas quais trans-
um ambiente adequado a uma vivência positiva pela formações sofridas tanto no aspecto biológico quanto
gestante (Rios, & Vieira, 2007). Nesse contexto, o psicó- relacionado à adaptação das exigências características
logo com formação específica é o mais indicado para do período pós-parto acabam tornando a mulher mais
atuar em programas de psicoprofilaxia, na medida em vulnerável a desencadear um transtorno mental.
que aborda questões relativas a alterações emocionais Os transtornos mentais no pós-parto incluem:
capazes de atenuar as angustias próprias deste período transtornos de ansiedade – devido à existência de senti-
(Bortoletti, 2007a), além de considerar aspectos que mentos ambivalentes intensos na maternidade; trans-
não apenas os biológicos. torno afetivo bipolar – doença crônica e recorrente que
apresenta características do episódio depressivo maior;
transtornos psicóticos – incidindo em cerca de 1 a 2%
Gestação de alto risco das puérperas, sendo caracterizado por intensa labili-
De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, dade do humor, agitação psicomotora e ideação para-
2012), a gestação é considerada um fenômeno fisioló- nóide de base alucinatória e os transtornos depressivos
gico, devendo ser vista tanto para as gestantes quanto (Yamaguchi, Pita, & Martins, 2007).
para a equipe médica como parte de uma experiência De acordo com o Manual Técnico de Saúde da
de vida saudável que envolve mudanças físicas, sociais Mulher (Brasil, 2006), outro transtorno mental comum
e emocionais. Segundo o Manual Técnico de Gestação no período puerperal é o baby blues, que acomete de
de Alto Risco (Brasil, 2012), apesar da maioria das gesta- 50 a 70% das puérperas, sendo definido como estado
ções evoluir sem nenhuma intercorrência, há gestantes depressivo mais brando, com surgimento geralmente
que, por serem portadoras de alguma doença, apre- no terceiro dia do pós-parto. Esse período caracteriza-se
sentam maior probabilidade de evolução desfavorável, por fragilidade, hiperemotividade, alterações do humor,
as chamadas “gestantes de alto risco”. falta de confiança em si e sentimentos de incapacidade,
A gestação é considerada de alto risco quando e tem remissão espontânea em duas semanas.
há a existência de fatores que impliquem riscos tanto O presente trabalho enfatizará a DPP que, de
para a mãe quanto para o feto, a saber: trabalho acordo com Santos (2001) e Rosenberg (2007), apre-
de parto prematuro, síndromes hipertensivas da senta uma incidência de até 20% dos casos após o parto
gestação, diabetes gestacional, amniorrexe prema- no Brasil, podendo este índice sofrer um aumento

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Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.

até 30 a 40%, se considerarmos mulheres com perfil precisa enfrentar, nada mais válido do que a utilização
socioeconômico baixo e atendidas no Sistema Único de um instrumento que tente prevenir este distúrbio,
de Saúde (Lobato, Moraes, & Reichenheim, 2011). Por como o PNP. A DPP pode dificultar o estabelecimento
ser o alvo de estudo da presente pesquisa, será apre- do vínculo afetivo seguro entre mãe e bebê, podendo
sentada mais detalhadamente a seguir. interferir nas futuras relações interpessoais estabele-
cidas pela criança, quando não adequadamente diag-
nosticada e tratada (Arrais, 2012; Bortoletti, 2007b;
Depressão pós-parto Klein, & Guedes, 2008). Desse modo, considerando
O nascimento de uma criança representa o rompi- que as consultas de pré-natal auxiliam a equipe
mento do vínculo relacional entre a mãe e o bebê multidisciplinar a identificar os fatores de risco e de
intraútero. Este processo de separação pode desenca- proteção para a DPP, proporcionando às gestantes
dear vivências depressivas e psicóticas pela mãe, reati- melhores condições de enfrentamento, esse tema
vadas por conflitos e lutos mal-elaborados durante a assume grande importância clínica.
infância (Alt, & Benetti, 2008), entre outros motivos.
Segundo o DSM-IV (American Psichyatric Asso-
ciation, 2002), a DPP é um episódio de depressão Fatores de risco da depressão pós-parto
maior, que ocorre dentro das quatro primeiras Diversos fatores de risco contribuem para o
semanas após o parto, durante as quais há a presença desencadeamento da DPP: gestante solteira, conflitos
de um humor deprimido ou perda de interesse ou conjugais, histórico familiar de depressão, ante-
prazer por quase todas as atividades (anedonia). O cedente de transtornos depressivos, gravidez não
indivíduo também deve experimentar pelo menos programada, frágil suporte social e eventos de vida
quatro sintomas adicionais, extraídos de uma lista negativos na gravidez (Arrais, Mourão, & Fragalle,
que inclui alterações no apetite ou peso, do sono e da 2014; Bortoletti, 2007b Pereira, & Lovisi, 2008; Yama-
atividade psicomotora, diminuição da energia, senti- guchi, Pita, & Martins, 2007). Outros fatores de risco
mentos de desvalia ou culpa. precisam ser considerados: gestante com menos de 17
De acordo com Arrais (2005), a puérpera pode anos ou mais de 40 anos, dificuldade com crises evolu-
apresentar um profundo retraimento e isolamento tivas ou acidentais, ser usuária de drogas ou álcool,
social, principalmente se ocorrer uma quebra muito tratamento ou hospitalização psiquiátrica anterior,
grande entre aquilo que a gestante imaginava ser, histórico obstétrico de risco (aborto, prematuridade,
tanto em relação ao bebê idealizado quanto a sua placenta prévia, natimorto, más-formações), histórico
própria figura materna. Ainda podem surgir senti- familiar de doença mental e mudanças recentes no
mentos ambivalentes relacionados às dúvidas e ambiente familiar ou previstas para breve (Rosenberg,
medos inerentes a esse momento (Bortoletti, 2007b), 2007), assim como a idealização do bebê e da mater-
devido ao não suprimento das expectativas do mito nidade, em função de decepção e frustração que esta
da mãe perfeita (Azevedo, & Arrais, 2006). idealização pode acarretar (Arrais, 2005). Dessa forma,
A DPP tem importantes consequências sociais o aconselhamento e o esclarecimento adequados
e familiares, sobretudo para a tríade mãe-pai-bebê, podem ser de ajuda imediata e servir como prevenção
a saber: problemas conjugais, atraso no desenvolvi- ao aparecimento de transtornos psicológicos.
mento do bebê e grande sofrimento psíquico para a
mãe, inclusive com risco aumentado para o suicídio,
entre outros (Ramos, & Furtado, 2007). A falta de infor- Fatores de proteção da depressão
mação pode gerar expectativas e crenças sobre a sua pós-parto
nova condição, desencadeando sintomas de ansie- Os fatores de proteção, definidos por Moraes,
dade e depressão (Baptista, & Furquim, 2009), sendo Pinheiro, Silva, Horta, Sousa e Faria (2006), são condi-
que o impacto na vida dos envolvidos, requer um ções do próprio indivíduo que podem contribuir
trabalho não só remediativo, mas também preventivo, para uma melhor resposta a determinados eventos
a fim de evitar este grave transtorno. de riscos: expectativa de sucesso no futuro, senso de
Ciente dos fatores que envolvem a DPP e obser- humor, otimismo, autonomia, tolerância ao sofri-
vada a necessidade de adaptação que uma puérpera mento, assertividade, estabilidade emocional, enga-

850
Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.

jamento nas atividades, comportamento direcionado no qual pesquisadores e participantes estão envolvidos
para metas, habilidade para resolver problemas e boa (Thiollent, 1992). A pesquisa-ação é uma estratégia de
autoestima. Constituem fatores de proteção para a investigação que visa compreender e intervir proposi-
DPP: o apoio de outra mulher, detecção precoce da talmente ou intencionalmente na situação, com vista
depressão (Ruschi, Sun, Mattar, Chambô Filho, Zando- à modificá-la: “a pesquisa-ação propõe ao conjunto de
nade, Lima, 2007), suporte social, boa relação conjugal sujeitos envolvidos mudanças que levem a um apri-
e suporte emocional do companheiro (Arrais, 2005; moramento das práticas analisadas” (Severino, 2007,
Frizzo, & Piccinini, 2005), estabilidade socioeconô- p.120). O método foi dividido em três fases:
mica, sistema de apoio familiar (Rosenberg, 2007) e um Fase I: elaboração do diagnóstico da situação
trabalho de prevenção, como o PNP (Bortoletti, 2007a). (levantamento dos fatores de risco e de proteção para
O conhecimento dos fatores de risco e de a DPP);
proteção da DPP é importante para o planejamento Fase II: proposta de intervenção e implantação
e execução de ações preventivas, uma vez que, (grupo PNP);
conforme mencionam Zinga, Phillips e Born (2012), Fase III: avaliação (rastreamento da DPP e
a intervenção precoce, utilizando uma estratégia avaliação do PNP).
psicoterapêutica específica entre as gestantes, pode Esta pesquisa contemplou as três fases da
resultar em uma redução significativa na sintoma- pesquisa-ação referidas, na qual foram identificados
tologia depressiva. Dessa forma, sabendo-se que a os fatores de risco e de proteção para a DPP e avaliado
promoção da integridade biopsicossocial da gestante o material qualitativo e quantitativo colhido nas fases
pode ser assegurada por meio de um acompanha- II e III. Este recorte diz respeito à avaliação do PNP
mento cuidadoso das mães, o trabalho de equipe especificamente direcionada as gestantes de alto risco
torna-se essencial (Rosenberg, 2007). usuárias da rede pública de saúde do Distrito Federal.
O objetivo deste estudo foi avaliar a eficácia do
PNP na prevenção à DPP em gestantes de alto risco
internadas em um hospital público de referência, em Participantes
Brasília. De forma específica, buscou-se: a) descrever A pesquisa contou com a participação de 10
os fatores de risco e de proteção para a DPP em mulheres captadas em um serviço de alto risco de
gestantes de alto risco de um hospital público, em um Hospital Público em Brasília entre os meses
Brasília; b) identificar níveis de DPP destas mulheres de agosto de 2012 e maio de 2013. Todas estavam
encontrados no puerpério; c) conhecer a avaliação do gestantes e encontravam-se entre a 21ª e 35ª
PNP na perspectiva das gestantes que participaram semanas de gestação, residiam no Distrito Federal ou
do grupo do PNP; d) identificar a eficácia do pré-natal entorno e possuíam o nível de escolaridade primário
psicológico na redução dos fatores de risco ou na pelo menos (vide seção Resultados e discussão). As
proteção para o desenvolvimento da DPP. participantes foram divididas em dois grupos: Grupo
A (mulheres que participaram do PNP) e Grupo B
(mulheres que não participaram do PNP), caracteri-
Método zando a amostra por conveniência.
O presente trabalho é um recorte de um projeto Dentre os diagnósticos médicos que as levaram
de pesquisa maior intitulado “O Pré-natal psicológico para o setor de alto risco encontram-se: rotura prema-
como programa de prevenção a depressão pós-parto”. tura de membranas ovulares, diabetes gestacional,
Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da hipertensão gestacional, trabalho de parto prema-
Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal – turo, infecção urinária, hepatite, pneumonia, gestação
Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências e Saúde gemelar e oligodramnia (redução do líquido amniótico).
(FEPECS), em abril de 2012, sob o Parecer n° 085/2012
e o Projeto n° 025/12.
Para que os objetivos pudessem ser atingidos, o Instrumentos
método utilizado foi a pesquisa-ação, voltada para a Foram utilizados para a coleta de dados todos
descrição de situações concretas e intervenção ou a os instrumentos específicos para as fases I, II e II da
ação orientada para resolução de problemas coletivos, pesquisa, a saber:

851
Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.

Perfil gestacional: ficha elaborada pela equipe de Escala COX: A Escala de Depressão Pós-Parto de
pesquisa contendo dados sociodemográficos, histó- Edimburgo (EPDS) (Cox, & Holden, 2003), consiste em
rico da gestação atual e/ou anterior e rede social de um instrumento bastante utilizado em estudos sobre
apoio, procurando identificar nestes dados os fatores DPP (Lobato et al., 2011) de autorregistro composto
de risco e de proteção para DPP. Aplicada nos dois por dez enunciados, cujas opções são pontuadas
grupos da pesquisa – Fase I. (0 a 3) de acordo com a presença ou a intensidade do
Inventário Beck de Depressão-BDI (Beck, & Steer, sintoma. Seus itens incluem sintomas como humor
1993): trata-se de uma escala composta por 21 itens depressivo (sensação de tristeza, autodesvalorização
com diferentes alternativas a respeito de como o e sentimento de culpa, ideias de morte ou suicídio),
sujeito tem se sentido recentemente, correspondendo perda do prazer em atividades anteriormente consi-
a diferentes níveis de gravidade da depressão: mínimo, deradas agradáveis, fadiga, diminuição da capacidade
leve, moderado ou grave (Cunha, 2001). Aplicada nos de pensar, concentrar-se ou tomar decisões, sintomas
dois grupos da pesquisa da Fase I. fisiológicos (insônia ou hipersonia) e alterações do
Inventário Beck de Ansiedade-BAI (Beck, & Steer, comportamento (crises de choro). A Escala conside-
1993): escala de autorrelato que mede a intensidade de rada de sintomatologia depressiva apresenta valor
sintomas de ansiedade. O inventário é constituído por igual ou superior a 12 (Ruschi et al, 2007). Aplicada
21 itens, que são afirmações descritivas de sintomas nos dois grupos de pesquisa entre a quarta e oitava
de ansiedade, e que devem ser avaliados pelo sujeito semana do pós-parto – Fase III.
com referência a si mesmo, numa escala Likert de
quatro pontos de “absolutamente não” a “gravemente:
dificilmente pude suportar” (Cunha, 2001). Aplicada Procedimento de coleta de dados
nos dois grupos da pesquisa da Fase I. Após a aprovação no CEP/Fepesc, iniciou-se a
Sessões do PNP: Foram realizados quatro coleta de dados. O projeto de pesquisa foi divulgado
encontros de PNP e trabalhados temas como: para as gestantes internadas no setor de alto risco
as mudanças proporcionadas pela maternidade da rede pública de saúde do Distrito Federal, bem
e paternidade; desmistificação da maternidade; como para os seus respectivos familiares presentes no
o bebê imaginário x bebê real; gestação/puerpério horário de visita e para a equipe de saúde.
x sexualidade; planos de parto; estados emocionais As gestantes foram convidadas a colaborar com
do pós-parto; cobranças sociais; vínculos mãe-bebê. a pesquisa de forma voluntária. Aquelas que acei-
Foi disponibilizado o espaço de escuta e utilizadas taram participar foram esclarecidas sobre os objetivos
técnicas como recorte e colagem, leitura de textos e metodologia do estudo por meio da assinatura do
sobre os temas abordados, vídeos, elaboração de Termo de Consentimento Livre (TCLE) e responderam
desenhos por parte das participantes, dentre outras ao perfil gestacional e à Escala Beck para a realização
técnicas projetivas. As sessões foram gravadas para da primeira fase da pesquisa-ação: o diagnóstico dos
análise posterior das falas, percepções e vivências fatores de risco e proteção para DPP.
das colaboradoras – Fase II. Após esta primeira fase, as 10 gestantes que concor-
Perfil puerperal: ficha elaborada pela equipe de daram em participar foram divididas em dois grupos:
pesquisa contendo registros sobre o parto, o bebê e o grupo A, composto pelas cinco gestantes que partici-
a amamentação, mudanças decorrentes do nasci- param das sessões do PNP, e o grupo B, formado pelas
mento do bebê, estados emocionais nesse período, cinco gestantes que não participaram das sessões de PNP.
rede social de apoio e representação de ser mãe após Posteriormente, iniciou-se a 2ª fase da pesquisa-ação:
o nascimento, a fim de identificar a percepção das a implantação do PNP, no qual foram proferidas quatro
puérperas sobre a qualidade do pós-parto. Aplicada sessões de aproximadamente 2 horas de duração cada,
nos dois grupos da pesquisa – Fase III. no período de quatro meses, sendo abordados temas
Questionário avaliativo: composto por dez ques- sobre os aspectos psicológicos do ciclo gravídico-puer-
tões abertas e uma fechada, elaborado pela equipe de peral. Todas as sessões foram gravadas.
pesquisa para verificar a percepção das participantes Por fim, foi realizada a 3ª fase da pesquisa-ação
do grupo PNP sobre os efeitos da sua participação nas (avaliativa): à medida que os bebês foram nascendo,
sessões do PNP. Aplicado apenas ao grupo A – Fase III. o perfil puerperal e a Escala COX foram aplicados

852
Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.

para as participantes de ambos os grupos. O questio- gestantes na 1ª e 2ª fase da pesquisa, e depois


nário avaliativo foi aplicado apenas às integrantes do passaram a ser puérperas na 3ª fase do estudo.
primeiro grupo (A). A idade das colaboradoras variou entre 19 e 38 anos
A aplicação desses instrumentos ocorreu por meio (média = 27,5 anos). São apresentados, inicialmente,
de visitas domiciliares agendadas com antecedência por os dados das participantes do PNP (Grupo A). Neste
contato telefônico ou no setor de alto risco do hospital. grupo, as idades gestacionais variaram de 21 a 33
semanas (na data em que preencheram o perfil
gestacional) e a idade das gestantes incluídas variou
Procedimento para análise de dados entre 19 e 35 anos (média = 27,6 anos). Dentre essas,
Foi adotado como princípio a análise mista dos apenas duas eram casadas (40%), enquanto três eram
resultados. Primeiramente, foi realizada uma análise solteiras (60%). Somente duas puérperas possuíam
quantitativa, baseada em estatística simples dos perfis ensino superior (40%); a maioria apresentava esco-
gestacional e puerperal. Posteriormente, uma análise laridade média (60%).
quantitativa das Escalas Beck e COX, conforme seus No grupo B, as idades gestacionais variaram
respectivos manuais. Todas as sessões do grupo de PNP de 20 a 34 semanas, e a idade das gestantes variou
foram transcritas, organizadas e analisadas em seu entre 20 e 38 anos (média = 27,8 anos). Nenhuma
conteúdo, em busca de fatores que não apareceram no colaboradora era casada, duas afirmaram estar em
primeiro instrumento aplicado (Bardin, 1977), sendo união estável (40%) e três eram solteiras (60%).
também realizada uma análise qualitativa dos questio- Entre essas, duas possuíam ensino médio (40%),
nários avaliativos do PNP e dos instrumentos aplicados enquanto a maioria tinha cursado apenas o ensino
nas visitas pós-parto (perfil puerperal, questionário fundamental (60%). Esses dados estão sintetizados
avaliativo e Escala COX). Foram utilizados nomes fictí- na Figura 1.
cios para a análise e discussão de dados. A Figura 1 mostra que três mulheres do grupo A,
Depois da análise dos diversos materiais produ- que exerciam ocupação fora do lar, a maioria afirmou
zidos no desenvolvimento das fases da pesquisa possuir um trabalho estressante (40%), enquanto que,
(trechos de falas, comentários para as perguntas no grupo B, apenas uma colaboradora enquadrou-se
abertas nos perfis gestacional e puerperal e respostas nessa categoria (20%). Quanto aos indicadores sociais,
do questionário avaliativo), foram identificados os em ambos os grupos três gestantes afirmaram possuir
fatores de risco e de proteção para DPP para cada renda familiar de até R$ 1.000,00 (60%), uma possui
colaboradora. Foi feita uma análise dos aspectos renda de até R$ 540,00 (20%), e uma gestante afirmou
emocionais e psicológicos no período gestacional possuir renda de até R$ 2.000,00 (20%).
e comparados aos níveis de DPP presentes no puer- O número de gestações das puérperas do grupo A
pério, identificados pela escala COX e, a partir das variou de uma à quatro (60% eram multíparas); uma
características positivas e negativas, identificadas no afirmou a presença de depressão na gestação anterior
pós-parto. Os dados foram sistematizados e apresen- (20%) e duas na gestação atual (40%); duas afirmaram
tados em forma de tabelas e gráficos. terem tido um parto traumático/insatisfatório (40%),
Por fim, foi realizado um comparativo entre uma teve história de aborto em gestação anterior
os grupos A e B, com relação aos fatores de risco e (30%) e apenas uma afirmou ter sofrido intercorrência
de proteção durante a gestação e a incidência de hospitalar com o bebê (30%). Quanto ao grupo B, 80%
DPP, com objetivo de avaliar o caráter preventivo do das colaboradoras eram multíparas; duas afirmaram a
PNP, bem como verificar a satisfação das expecta- presença de depressão na gestação anterior e durante
tivas em relação ao atendimento realizado durante o a gestação atual (80%); duas tiveram um parto trau-
pré-natal. Analisou-se ainda a percepção da vivência mático/insatisfatório (40%) e outras duas tiveram
do pós-parto pelas colaboradoras da pesquisa. história de aborto em gestação anterior e sofreram
intercorrência hospitalar com o bebê (80%). Esses
dados podem ser confirmados na Figura 1, que apre-
Resultados e discussão senta as características sociodemográficas das cola-
Caracterização das participantes: Foram inclu- boradoras e os fatores de risco e de proteção identifi-
ídas no estudo 10 mulheres que se encontravam cados na gestação (Figura 2).

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Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.

80

70

60

50
GA
% 40
GB
30

20

10

0
Estado civil Escolaridade Ocupação Renda familiar Nº de gestações
solteira média emprego RS -1.000,00 multíparas

GA: idade: 19–35 anos (média = 27,6) GB: idade 20–38 anos (média = 27,8)
Idade gestacional: 21–33 semanas (média = 28,6) Idade gestacional: 20–34 semanas (média = 29,4)

Figura 1
Características sócio-demográficas e histórico obstétrico das colaboradoras

A primeira fase da pesquisa foi diagnóstica apoio do pai do bebê; história de depressão anterior;
visando identificar os fatores de risco e de proteção depressão gestacional; parto traumático ou insatis-
presentes na história e vivência das gestantes inter- fatório; história de aborto em gestações anteriores e
nadas no setor de alto risco. Conforme afirma intercorrência hospitalar com a mãe.
Gomes et al. (2010), o conhecimento desses fatores Já os fatores de proteção evidenciados, também
é importante para o planejamento e execução de presentes nas pesquisas de Frizzo e Piccinini (2005),
ações preventivas, como o favorecimento de apoio Arrais (2005) e Ruschi et al. (2007), foram: ser multí-
emocional à família, amigos e companheiro, propor- para; ser casada/relação estável; gravidez planejada;
cionando segurança à puérpera. gravidez desejada; situação socioeconômica favo-
rável; suporte familiar; relacionamento conjugal satis-
fatório; apoio emocional do pai do bebê; parto satisfa-
Fatores de risco e proteção para a DPP tório e detecção precoce da DPP.
Para melhor visualização dos dados, as Figuras 2 Pode-se observar nas Figuras 2 e 3 que a soma
e 3 sintetizam e apresentam a ocorrência dos fatores dos fatores de risco (46 ocorrências no grupo A e 44
de risco (Figura 2) e de proteção (Figura 3) mais no grupo B) e de proteção (18 ocorrências no primeiro
frequentes para cada colaboradora participante dos grupo e 20 no grupo B) do grupo A quando compa-
grupos A e B. rados aos do grupo B apresentam índices seme-
Os fatores de risco encontrados foram: ser lhantes. Analisando-se apenas estes dados, pode-se
primípara; ser mãe solteira; gravidez não planejada; afirmar que as colaboradoras de ambos os grupos
gravidez não desejada; saída da faculdade para o encontravam-se vulneráveis, portanto com tendência
mercado de trabalho; trabalho estressante; desem- a desenvolver a DPP.
prego; situação socioeconômica desfavorável; filhos A fim de investigar os fatores de risco mais frequentes
saindo de casa; mudança de cidade/casa; rede de em ambos os grupos, serão aqui discutidos os seguintes
apoio social e familiar empobrecida; relaciona- aspectos: escolaridade média, trabalho estressante, situ-
mento conjugal insatisfatório; conflitos familiares; ação socioeconômica desfavorável, ser solteira; gravidez
acidente de carro, moto ou ônibus; doença grave em não planejada, relacionamento conjugal insatisfatório e
parente próximo; morte de pessoa querida; falta de falta de apoio emocional do pai do bebê.

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Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.

A maioria das colaboradoras possui nível Essa amostra reflete a realidade da população
baixo de escolaridade (30% cursaram até o ensino brasileira, que em sua maioria é exposta à escassez
fundamental e 50% até o ensino médio), são multí- de recursos. Um exemplo disso é o relato de P1:
paras (80%), apresentam situação socioeconô- “Houve muita briga porque eu fiquei grávida, ele
mica desfavorável (70%) e, entre as que exercem me culpou porque estamos passando por uma
atividade laboral remunerada (60%), quatro afir- situação, por falta de dinheiro, e quase se sepa-
maram possuir um trabalho estressante (40%). ramos por causa disso”.

100
90 GA
GB
80
70
60
% 50

40
30
20
10
0
Solteira Não Trabalho Situação Relação Falta de
planejado estressante socioeconômica conjugal apoio
desfavorável insatisfatória emocional
GA: 46 ocorrências
GB: 44 ocorrências
* GA/GB: Intercorrência hospitalar
Figura 2
Fatores de risco identificados na gestação das colaboradoras

80

70

60

50
GA
% 40 GB

30 GA: 18 ocorrências
GB: 20 ocorrências
20

10

0
Mutípara Gravidez Suporte
desejada familiar
Figura 3
Fatores de proteção identificados na gestação das colaboradoras

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Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.

Em relação aos eventos estressantes, Silva “O descompasso entre as expectativas e as realidades


e Piccinini (2009) afirmam que as mulheres que da maternidade pode ser vivido como uma crise
vivenciam tais situações possuem níveis maiores pessoal, mas, em última instância, é uma tragédia
de sintomas depressivos, o que também foi relatado social” (Maushart 2006, p. 157).
pelas colaboradoras da pesquisa: “Eu trabalhava de Esses resultados sugerem que, além da presença
babá e saí de um emprego para outro pra estudar, e dos fatores de risco apresentados pelas gestantes, o
eu já estava grávida, só que eu não sabia, aí após eu fato de terem vivenciado dificuldades gestacionais
entrar no outro emprego, descobriram que eu tava relacionadas a sua saúde e/ou do bebê, determinando
grávida e eles me mandaram embora” (P2). Dessa a internação no setor de alto risco, contribui signifi-
forma, conforme afirmam Higuti e Capocci (2003), cativamente para a instalação de um possível quadro
Pereira e Lovisi (2008), e Viegas et al. (2008), a dificul- de depressão tanto durante quanto após a gestação.
dade financeira e a vivência de eventos estressantes Assim, os profissionais que trabalham com essas
pelas mulheres durante a gestação e o início do puer- gestantes deverão estar atentos às várias condições
pério poderão desencadear a DPP. de risco que estão associadas a essas mulheres, pois
Outros fatores de risco mencionados por Arrais poderão atuar de forma preventiva na diminuição dos
(2005) e identificados nos instrumentos desta pesquisa riscos gestacionais (Baptista, & Furquim, 2009).
dizem respeito ao fato de a maioria das colaboradoras Em função da relevância como fator de risco para
ser solteira, ao não planejamento da gravidez, ao rela- DPP, destacaremos os resultados referentes aos níveis
cionamento conjugal insatisfatório e à falta de apoio de depressão gestacional e rastreamento de depressão
emocional do pai do bebê. O não planejamento da pós-parto nos dois grupos (Figura 4).
gravidez pode ser visualizado na seguinte fala: É interessante observar que no grupo A apenas
duas colaboradoras (40%) apresentaram nível de
“É, não foi planejada e eu não aceitei muito no ansiedade grave (P3 e P4), sendo que do total da
início, e chorei muito quando fiquei sabendo amostra, somente uma (20%) apresentou nível de
[...] aí, assim, sabe aquele negócio de não querer depressão gestacional grave (P3), de acordo com a
mais? Sei lá se era raiva, aquela sensação ruim./ escala Beck. No grupo B, a maioria apresentou nível
[...] eu fiquei triste por causa da situação da qual de ansiedade gestacional grave (80%), sendo que
eu engravidei, sem um relacionamento concreto, duas (40%) apresentaram nível de depressão gesta-
sem uma estabilidade como falam [...] a gente cional grave (P8 e P10) e uma (20%) apresentou nível
tava só começando, foi um relacionamento que moderado (P7).
não deu certo” (P3). Importante lembrar ainda que, no grupo A, uma
colaboradora (20%) afirmou histórico de depressão
A fala anterior corrobora a afirmação de Moraes anterior (P5) e duas (40%) mencionaram a presença
et al. (2006), que cita fatores como a não aceitação de depressão na gestação (P3 e P5), enquanto que, no
da gravidez, bem como a falta de suporte ofere- grupo B, duas apresentaram histórico de depressão
cido pelo companheiro e a sobrecarga de trabalho anterior (40%) e durante a gestação (P8 e P10). Esses
(ser mãe solteira), associados à ocorrência de DPP. dados confirmam a afirmação de Arrais (2005); Pereira
Conforme menciona Maushart (2006), esses fatores e Lovisi (2008); Rosenberg (2007); Schmidt, Piccoloto e
relacionam-se à DPP, uma vez que as mães da nossa Muller (2005), e Zinga et al. (2012), na qual a presença
sociedade vivem na tentativa de reconciliar as expec- de depressão na gestação representa um dos grandes
tativas com as realidades práticas. fatores de risco para a DPP.
Em decorrência desta situação, o fato do evento De acordo com os dados obtidos, pode-se
não ter sido planejado contribui para que elas afirmar que, apesar de as colaboradoras de ambos os
assumam a total responsabilidade pelas exaustivas grupos serem vulneráveis e com tendência a desen-
tarefas diárias associadas aos cuidados domésticos volver a DPP, nenhuma das gestantes que parti-
e com os seus filhos. Dessa forma, a cobrança e a ciparam do PNP – Grupo A – desenvolveram DPP,
exigência para que a mulher consiga desempenhar enquanto que as cinco puérperas do grupo B, que
perfeitamente todas as suas atividades propiciam o não participaram do PNP, evidenciaram probabili-
surgimento do conflito entre o que é certo e errado: dade para a DPP (Figura 4).

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Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.

50
45
40
Escores dos instrumentos

35
Resultado BAI
30 Resultado BDI
Resultado COX
25
20 GA: P1 a P5
15 GB: P6 a P10

10
5
0
P1 P2 P3 P4 P5 P6 P7 P8 P9 P10
* P1 e P7 natimorto/óbito fetal
Figura 4
Níveis de depressão gestacional e depressão pós-parto nos grupos A e B

Outra questão que merece destaque é o fato de Conteúdo semelhante ao da fala de P6 foi mencio-
que os bebês de duas participantes da pesquisa evolu- nado por autores como Cantilino, Zambaldi, Sougey
íram para óbito – uma do grupo A (P1 – natimorto) e e /rennó Junior (2010); Frizzo e Piccinini (2005), e
outra do grupo B (P7 – óbito fetal) – o que representa Konradt et al. (2011), ao afirmarem a importância do
um fator de risco para a DPP. Tendo em vista que ambas suporte social adequado como um fator protetor para
as colaboradoras apresentavam fatores de risco seme- o desenvolvimento de DPP.
lhantes na fase diagnóstica da pesquisa (gravidez não Avaliação do PNP: Na última fase da pesquisa
planejada, situação socioeconômica desfavorável e (avaliativa), os dados provenientes do perfil puerperal,
relacionamento conjugal insatisfatório) e que somente do questionário avaliativo e das sessões iniciais do PNP
a colaboradora do grupo B apresentou probabilidade demonstraram a influência positiva do PNP para cada
para DPP, segundo a escala COX, cabe questionar se a colaboradora do grupo-intervenção, na medida em que
participação de P1 no PNP permitiu que, de alguma elas fizeram a avaliação de todo o trabalho desenvolvido
forma, a depressão fosse tratada ou minimizada. e refletiram sobre o que aprenderam; os mitos desfeitos
Quanto aos fatores de proteção mais frequentes e o apoio recebido, possibilitando a revisão da máscara
em ambos os grupos, destacam-se: ser multípara da maternidade (Maushart, 2006). Essa influência posi-
(80%), gravidez desejada (50%) e suporte familiar tiva pode ser visualizada nas seguintes falas: “Aqui vocês
(60%), conforme as seguintes falas: puderam me ajudar, me aconselhar. Se não fosse vocês
eu acho que não teria dado conta só. Nos momentos
Descobrir a gravidez foi bom, eu não fiquei triste, bem difíceis da minha vida me ajudou sim, bastante
eu fiquei muito feliz, não foi planejada, mas as- mesmo” (P3); “Durante a gestação se eu tivesse passado
sim, a gente não se preveniu e sabia que qualquer aqui sozinha, sem o apoio de vocês, sem alguém pra
hora poderia acontecer. Mesmo assim, nem fica- conversar, me acalmar, me ajudar, eu não tinha conse-
mos chateados com o que aconteceu (P2). guido” (P5). De acordo com as participantes, o grupo
do PNP também proporcionou a reflexão e a discussão
O Caio foi uma surpresa pra todo mundo, mas é sobre o conceito de ser mãe: “É responsabilidade,
muito desejado. Está todo mundo ansioso pra ver compromisso, dedicação e muito amor no coração”
o rostinho dele. [...] a minha família e a dele ajuda (P1); “É maravilhoso, a gente aprende a amar no ventre
bastante, minha mãe, minha avó, minha cunha- da gente, a esquecer dos problemas. É muito bom! É um
da e minha sogra, ela é um amor de pessoa. (P6). sonho. A mais alta dádiva de Deus” (P5).

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Observa-se nas falas acima a idealização da no grupo B, apenas uma participante teve a mesma
maternidade, na qual, de acordo com Azevedo e opinião (P9). Pode-se concluir que, apesar de o tipo de
Arrais (2006), espera-se um ideal, um modelo de mãe parto desejado pelas participantes do grupo A não ter
perfeita, uma imagem romanceada da maternidade, sido realizado, elas se sentiram mais tranquilas porque
que está alicerçada sob um rígido padrão incapaz de receberam informações no grupo PNP pertinentes
admitir qualquer vestígio de sentimentos ambiva- à temática, preparando-as para o parto e pós-parto,
lentes nas mães. Por outro lado, no decorrer dos encon- independente de suas expectativas iniciais. A tran-
tros grupais, observou-se mudanças no conceito e na quilidade sentida pelas colaboradoras em relação
maneira de lidar com a maternidade: “[...] eu como ao tipo de parto realizado foi expressa nas seguintes
mãe vou errar, mas na medida do possível vou tentar falas: “Não tive medo, foi maravilhoso!” (P2); “Eu tive
acertar e fazê-lo feliz, essa felicidade que faz todas nós cesárea por causa da saúde dela, mais eu me senti
mães se emocionar, a amar incondicionalmente, ou preparada com as informações que recebi de vocês”
seja, desabrochar para o falado amor” (P1). (P3); “Foi supertranquilo. Os médicos foram maravi-
Outras mudanças também puderam ser perce- lhosos, me atenderam super bem, e a anestesia, que
bidas em relação à melhoria da qualidade do relacio- eu tinha mais medo, foi bem tranquila, vocês me acal-
namento com o pai do bebê, ao conceito de parto e maram muito no dia anterior” (P5).
amamentação e a melhoria dos possíveis sintomas Outro aspecto que merece destaque é o fato que
da DPP: “O pai do bebê está dando mais atenção de duas puérperas do grupo A (P3 e P5) apresentaram
para ela, carinho, e eu estou tendo dificuldade para dificuldades relacionadas à amamentação, enquanto
administrar dois filhos” (P3); “O parto normal além que o mesmo não ocorreu entre as participantes do
de ser só um corte lá embaixo quando precisa, acre- grupo B. Apesar desses resultados, pode-se afirmar
dito que depois a dor passa” (P1); “A amamentação que as puérperas do grupo A receberam todas as
é importante, é fundamental para o bebê até os seis informações necessárias relacionadas à amamen-
meses de idade, porque quando a criança mama ela tação durante o grupo PNP, o que as ajudou a lidar de
não precisa de água e de nada, é algo suficiente pra maneira positiva com as dificuldades apresentadas.
ela” (P1); “Por mais difícil que a gente ache que seja Por fim, todas as participantes do grupo A que
o problema, vai ser resolvido, tudo passa. É como se apresentaram os mesmos fatores de risco para a DPP
fosse uma ferida, por mais que dói ela é curada, vai que as colaboradoras do grupo B (situação socioeco-
cicatrizar e passar” (P2). nômica desfavorável; rede de apoio social e familiar
Por fim, o grupo de PNP vai além do objetivo geral empobrecida; relacionamento conjugal insatisfatório;
deste trabalho, por ser um instrumento psicoeduca- conflitos familiares) afirmaram possuir, no pós-parto,
tivo e por abordar questões sobre o projeto de mater- o apoio emocional e financeiro, e mencionaram contar
nidade/parentalidade, questões diárias, culturais, com ajuda de seus familiares e amigos nos cuidados
geracionais, relacionadas à internação, aos medos e com o bebê, confirmando a eficácia do grupo PNP na
preocupações, propiciando o empoderamento das melhoria dos relacionamentos/rede de apoio. Dessa
participantes e o fortalecimento da rede social. forma, os resultados discutidos nesta seção sugerem
Vivência puerperal: Em relação ao puerpério, que o PNP atuou como fator de proteção para a
pode-se observar na Figura 5 que todas as puérperas prevenção da DPP nas gestantes que participaram
que preencheram o perfil puerperal (P2, P3, P4, P5, P6, do grupo de PNP, reforçando o caráter psicoprofilá-
P8, P9, P10) desejavam que seu parto fosse normal e tico deste tipo de trabalho conforme apontado por
afirmaram preferir a presença de um acompanhante, Arrais et al. (2012); Bortoletti (2007a,b); Santos (2013)
entretanto, o parto cesáreo foi realizado na maioria e Shields (2006).
das gestantes (60%), exceto em P4 e P6. Isso pode Assim sendo, pode-se concluir que o grupo de
ser explicado pelo fato de as gestantes serem consi- PNP, além da abordagem psicoterapêutica, forneceu
deradas de alto risco e apresentarem maior probabi- informações sobre os estados emocionais do
lidade de evolução desfavorável durante a gestação pós-parto, favorecendo a adaptação das puérperas
(Brasil, 2012). neste período, proporcionando o fortalecimento
Todas as puérperas do grupo A afirmaram que o do vínculo entre mãe-concepto (Falcone, Mäder,
parto ocorreu conforme o esperado, enquanto que, Nascimento, Santos, & Nóbrega, 2005).

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90 GA
GB
80
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60
% 50

40
30
20
10
0
Desejo Parto cesáreo Parto como Apoio Apoio Apoio pai
parto normal realizado esperava emocional financeiro bebê
* P1 e P7 não responderam perfil puerperal (natimorto/óbito fetal)
Figura 5
Características pós-parto (Perfil puerperal)

Considerações finais de proteção a mais na vida das gestantes, na medida


Considerando-se o objetivo geral desta pesquisa: em que proporciona às puérperas um espaço de
investigar a eficácia do PNP na prevenção à DPP em escuta emocional e apoio, onde o tema da DPP pode
gestantes de alto risco de um hospital público de ser adequadamente abordado, permitindo a livre
referência, em Brasília; verifica-se que a realização expressão de seus temores e ansiedades.
do PNP atuou de forma positiva na prevenção da É sob esse aspecto que mais se aprofunda o valor
DPP em gestantes de alto risco, já que as cinco cola- terapêutico do grupo, na medida em que permite o
boradoras do PNP não apresentaram probabilidade manejo de sentimentos básicos em relação à materni-
para a DPP, mesmo com a presença de fatores de dade, tais como níveis de insegurança, sentimentos de
risco durante a gestação. inferioridade e inadequação e expectativas referentes
Alguns fatores de risco citados pelas colabo- ao bebê e a si próprias como mãe. Portanto nossos
radoras da pesquisa e que contribuíram para a DPP resultados corroboram a afirmação de Campos (2000):
incluem: privação de sono, complicações na gravidez, A realização de acompanhamento psicológico
complicações no nascimento para a mãe ou para o durante a gravidez em mulheres de risco, pode
filho, apoio social inadequado, problemas matrimo- contribuir para uma vivência mais saudável desse
niais, histórico de depressão, e a ocorrência recente período maturacional, prevenindo perturbações no
de uma grande mudança de vida (divórcio, morte, um processo de desenvolvimento gravídico e conse-
novo emprego, mudança de cidade). quentes ocorrências patológicas, como complica-
A pesquisa-ação mostrou-se adequada e eficaz ções no parto e distúrbios emocionais no pós-parto,
para o objetivo proposto, tendo em vista que a ou ainda, e de forma mais negativa, o parto prema-
comparação entre os dois grupos – colaboradoras turo (Campos, 2000, p. 31).
participantes do PNP e as não participantes – foi Vale ressaltar que todas as colaboradoras da
fundamental para percebemos a proteção que o PNP pesquisa foram convidadas a ingressar no grupo
oferece durante a gestação. Embora esses achados não de PNP, porém, vários motivos impediram algumas
possam ser interpretados de forma isolada de outros delas de participar: falta de desejo/ motivação, alta
aspectos de vida da gestante, defendemos que o PNP, hospitalar, falta de recursos financeiros para retornar
associado a outros fatores de proteção presentes na ao hospital, choque de horário com outras rotinas
história das grávidas, pode ajudar a prevenir a DPP. hospitalares (exames, visitas, lanche). Desta forma,
Assim, destacamos o grupo de PNP como um fator foi possível constituir o Grupo B citado na pesquisa.

859
Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 847-863.

Entretanto, estas colaboradoras foram contatadas no e bem-estar às gestantes e seus familiares, visando à
período pós-parto e algumas foram acompanhadas promoção, prevenção e assistência integral à saúde da
pelo serviço de psiquiatria, Psicologia e serviço social gestante e do recém-nascido. Dessa forma, o psicó-
do setor, até mesmo receberam enxovais doados pela logo hospitalar assume um papel fundamental nesse
equipe de pesquisa, na ocasião da visita pós-parto. contexto, pois, conforme afirmam Baptista e Furquim
Assim, a assistência psicológica na gestação por meio (2009), Iaconelli (2005), o apoio psicológico em um
da utilização do PNP é importante instrumento psico- momento de tantas mudanças externas e internas
profilático, reafirmando a concepção de Bortoletti pode contribuir com a equipe multidisciplinar na
(2007); Cabral et al. (2012), que cita o PNP como um melhor adaptação da mulher, desde a gestação até a
fator de proteção por si só, minimizando o impacto chegada do bebê.
dos fatores de risco presentes e diminuindo dessa Por fim, sabendo-se da alta incidência de DPP
forma a possibilidade da DPP. e, após as evidências do caráter preventivo do PNP
É preciso destacar também a necessidade de proposto neste trabalho, a continuidade de estudos
uma equipe interdisciplinar para auxiliar a gestante, dessa ordem é de grande importância e se faz neces-
visando à investigação de todos os fatores de risco que sária para o entendimento dos fatores interve-
podem ocasionar transtornos físicos ou psicológicos nientes na depressão puerperal, e para a compre-
ao binômio mãe x bebê, incentivando a criação de um ensão dos efeitos de risco da DPP sobre aspectos da
espaço que possibilite relações humanas mais saudá- vida do bebê.
veis entre os membros da equipe e entre a equipe e Este trabalho possibilitou enorme crescimento
o paciente. Embora a atuação do psicólogo hospitalar pessoal e profissional na área da Psicologia Hospi-
aplicada à obstetrícia possa parecer prescindível, se talar aplicada à obstetrícia, primeiramente por
comparada à equipe médica e de enfermagem, os contribuir com a ampliação do conhecimento sobre
resultados de sua atuação têm demonstrado o seu as diversas facetas que envolvem o tema da mater-
valor, diante da gama de situações vivenciadas pelas nidade e depressão pós-parto, e por realçar a impor-
usuárias em seus contextos individuais e subjetivos, tância do psicólogo no contexto do atendimento
revelando a complexidade do atendimento à gestante, pré-natal, já que a DPP é importante problema de
visando o seu bem-estar e o do bebê. saúde pública, que impacta diretamente sobre a
No centro obstétrico, a Psicologia trabalha com saúde da mãe e do bebê, e ainda subdiagnosticada,
multifatores e o seu campo de atuação não fica restrito atingindo mulheres em todas as idades, classes
à supervisão de partos e ao manejo da dor durante o sociais e níveis de escolaridade.
trabalho de parto, pois abrange aspectos biopsicos- Um estudo futuro, com um número maior de
sociais das usuárias, através de mediações entre a participantes, a aplicação da escala de autoeficácia
equipe multidisciplinar e os familiares, bem como materna no pós-parto (Uchoa, 2012) e a ampliação da
ressaltando a importância do grupo de PNP. assistência pré-natal oferecida nos serviços públicos
Os objetivos deste trabalho foram além dos esta- de saúde, também poderia ajudar a ratificar que o PNP
belecidos incialmente, por toda a estrutura do serviço atua como fator de proteção para DPP, justificando a
de referência, desenvolvidos para oferecer conforto relevância social e científica do presente estudo.

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862
Almeida, N.M. de C.; Arrais, A. da R. (2016). Programa de Prevenção à Depressão Pós-Parto.

a Saúde da Escola Superior de Ciências da Saúde


(ESCS), Psicóloga clínica e hospitalar da Secretaria de
Estado de Saúde do Distrito Federal – SES-DF.
E-mail: alearrais@gmail.com
Endereço para envio de correspondência: SHIS – QI
16 conj 02 casa 32. Lago Sul – Brasília – DF - CEP
71.640.220.

Recebido 01/10/2014
Aprovado 11/11/2016

Received 10/01/2014
Approved 11/11/2016

Recibido 01/10/2014
Aceptado 11/11/2016

Como citar: Almeida, N. M. C., & Arrais, A. R. (2016). O pré-natal psicológico como programa de prevenção à
depressão pós-parto. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 847-863. doi:10.1590/1982-3703001382014

How to cite: Almeida, N. M. C., & Arrais, A. R. (2016). The psychological prenatal program as a prevention tool for
postpartum depression. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 847-863. doi:10.1590/1982-3703001382014

Cómo citar:Almeida, N. M. C., & Arrais, A. R. (2016). El programa prenatal psicológico como prevención de la
depresión posparto. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 847-863. doi:10.1590/1982-3703001382014

863
04
Pré-Natal Psicológico: perspectivas para atuação do psicólogo
em saúde materna no Brasil

Prenatal Psychology: perspectives for psychologist practice in


maternal health in Brazil

Alessandra da Rocha Arrais 1


Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, DF, Brasília

Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araujo 2


Universidade de Brasília, DF, Brasília

RESUMO
No cenário brasileiro contemporâneo, é crucial propor e avaliar programas
destinados ao acompanhamento pré-natal de gestantes. Sendo assim, o
presente artigo relata uma modalidade de intervenção psicoeducativa realizada
no âmbito hospitalar. Denominada Pré-Natal Psicológico (PNP), trata-se de
uma prática – complementar ao pré-natal biomédico – voltada para o
atendimento psicológico das gestantes, a qual também estimula a integração
de seus familiares nos cuidados desenvolvidos ao longo do ciclo gravídico-
puerperal. Notadamente, as ações envolvem encontros grupais temáticos (por
exemplo: preparação para maternidade e prevenção da depressão pós-parto).
Inicialmente organizado na esfera pública, o PNP é um programa de baixo
custo que tem sido avaliado positivamente por usuários e profissionais.
Experiências no setor privado também vêm sendo conduzidas, as quais
revelam a amplitude desse programa. Em suma, uma descrição detalhada das
sessões do PNP visa oferecer subsídios para a atuação do profissional de
psicologia que integra uma equipe multiprofissional no campo da Saúde
Materna.
Palavras-chave: pré-natal; intervenção; saúde materna; psicologia hospitalar;
psicoeducação.

1
Psicóloga Hospitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF),
Docente do Programa de Mestrado Profissional da Escola Superior de Ciências da Saúde
(ESCS) da FEPECS/SES-DF, Pesquisadora da Fundação de Apoio à
Pesquisa do DF (FAP-
DF), Doutora pela Universidade de Brasília (UnB) e Pós-Doutoranda no Programa de
Psicologia Clínica e Cultura (UnB). E-mail: alearrais@gmail.com.
2
Professora do Departamento de Psicologia Clínica da UnB, Doutora pela Université de Paris
X - Nanterre, Pós-Doutora pela Unesco (França) e Pesquisadora do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico. E-mail:
araujotc@unb.br .

103
Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Pré-Natal Psicológico

ABSTRACT
In the Brazilian scenario, it is crucial to propose and assess programmes aimed
at prenatal care of pregnant women. A modality of psycho-educational
intervention called Psychological Prenatal (PNP) is reported in this article. It
concerns a service – complementary to the clinical prenatal – related to the
psychological care of pregnant women, which also encourages integration of
their families into the care given throughout the pregnancy and postpartum
cycle. Actions involve thematic group meetings (e.g.: preparation for maternity
and prevention of postnatal depression). PNP is a low cost programme that has
been positively assessed by users and professionals, which was initially
organised within the public sector. Experiences within the private sector that
reveal the amplitude of the programme have also been carried out. A detailed
description of PNP sessions aims at providing elements for the performance of
the psychologist who is part of a multi-professional team in the field of Maternal
Health.
Keywords: prenatal; intervention; maternal health; health psychology;
psychoeducation.

Introdução
Na atualidade, ainda que conhecimentos biomédicos e tecnológicos
sejam usualmente empregados ao longo da experiência da maternidade, as
vivências desencadeadas – desde a concepção até os meses subsequentes ao
parto – revestem-se de intensos e contraditórios afetos sustentados por
crenças pessoais, familiares, sociais e culturais. De fato, a medicalização tende
a ser progressiva nessa etapa do ciclo vital, particularmente quando se
projetam repercussões tanto para a mulher quanto para o futuro bebê. Cabe
realçar que ameaças suscitadas por variadas causas, incluindo-se aquelas
relacionadas a condições sanitárias básicas, continuam a se perfilar, mesmo
que inúmeros danos e agravos tenham sido superados no campo da Saúde
Materna. No cenário brasileiro contemporâneo, os diferentes níveis de
governança confrontam-se com as possíveis consequências advindas da
contaminação viral na população de gestantes: investiga-se a associação do
vírus Zika com a microcefalia dos fetos e ainda não se analisaram suas
inflexões no setor da Saúde da Criança, durante a próxima década. Então, ao
desafio humano de fecundar, gerar e fazer desenvolver, se sobrepõem outros
conflitos e sofrimentos, uma vez mais naturalizados por limitações

104
Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Arrais, A. da R., & Araujo, T. C. C. F. de

psicossociais. Persiste como meta crucial da área propor e avaliar programas


destinados ao acompanhamento pré-natal de mulheres que engravidaram,
notadamente no que concerne às usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS)
e seus familiares. Assim, este artigo focalizará os programas executados,
dando ênfase às ações propostas pelo “Pré-Natal Psicológico”.

Políticas e programas em Saúde da Mulher no Brasil

No Brasil, em uma revisão sobre políticas e programas desenvolvidos


pelo Ministério da Saúde desde o Estado Novo, Cassiano, Carlucci, Gomes e
Benneman (2014) reconheceram como marco significativo a implementação,
na década de 1980, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
(PAISM), no qual se destacavam ações voltadas para os períodos do pré-natal,
parto e puerpério. Porém, em função dos seus limites, foi lançado em 2000 o
Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN) com o
propósito de oferecer um acompanhamento mais centrado nas necessidades
das gestantes. Para essas autoras, deve ser igualmente citada a Lei no.
11.108, de abril de 2005, que assegura à parturiente a presença de um
acompanhante. Chamam atenção ainda para:

• a criação do Sistema Eletrônico para Coleta de Informações sobre o


Acompanhamento das Gestantes Atendidas no SUS (Sisprenatal),
visando monitorar a assistência em cada município e nortear o
repasse de recursos; e

• o estabelecimento da Rede Cegonha, normatizada pela Portaria


no.1.459 de 24 de junho de 2011, com destaque para os direitos
humanos e reprodutivos de mulheres, homens, jovens e
adolescentes, assim como a qualificação profissional.

105
Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Pré-Natal Psicológico

Acompanhamento pré-natal: intervenções para o cuidado integral da mulher

Programas sistemáticos de acompanhamento durante a gestação e o


puerpério são essenciais para consolidação e aprimoramento das políticas de
saúde no setor. Organizadas na atenção básica ou em centros especializados,
tais intervenções precisam ser difundidas e compartilhadas no território
nacional para análise, avaliação e adaptações às exigências locais e
temporais. No Distrito Federal, oficinas socioeducativas são desenvolvidas com
mulheres residentes em um setor habitacional da Ceilândia (DF), classificado
como aglomerado subnormal em razão das precárias condições sociais e
sanitárias. Esse trabalho de acompanhamento em nível comunitário conta com
a participação de mulheres dos movimentos sociais para sensibilização e
adesão de gestantes com acesso restrito a serviços qualificados. Grupos de
orientação são organizados com o objetivo principal de garantir a participação
ativa e o “empoderamento” das mulheres grávidas (Barbosa, Araujo, &
Escalda, 2015).
Nas unidades de saúde, amplia-se a oferta de serviços em consonância
com as diretrizes atuais. Todavia, muitas ações privilegiam a dimensão
biológica, perpetuando um modelo tradicional de atendimento, em que
aspectos psicossociais não são suficientemente tratados. Diante das limitações
decorrentes dessa modalidade de pré-natal, a equipe de psicologia de uma
maternidade privada de Brasília implantou um programa de cuidado integral em
2006. Desde então, foram realizados 13 grupos de gestantes com número
diferenciado de sessões e de participantes. Progressivamente, essa proposta
foi estendida a comunidades carentes e gestantes de alto risco, sendo
executada em postos de saúde, maternidades públicas e hospitais
universitários da cidade e do entorno (Arrais, Cabral, & Martins, 2012; Arrais,
Mourão, & Fragalle, 2013; Bortoletti, 2007).
Denominado Pré-Natal Psicológico (PNP), esse acompanhamento prevê
grupos psicoeducativos sobre gestação, parto e pós-parto, os quais propiciam
suporte socioemocional, informacional e instrucional. O programa mais longo
contabilizou 21 sessões semanais e o mais breve cinco sessões quinzenais.
Uma média de seis a sete sessões mostrou-se adequada para cumprir seus

106
Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Arrais, A. da R., & Araujo, T. C. C. F. de

propósitos. A duração das sessões variou de duas a cinco horas. A frequência


de participação das gestantes oscilou de uma a 18 sessões, dependendo da
especificidade e disponibilidade de cada grupo. A seguir, serão detalhados
elementos primordiais da estruturação e do funcionamento desse programa.

Pré-Natal Psicológico: possibilidades para atuação com gestantes e seus


familiares
Trata-se de um programa aberto, ou seja, novas adesões podem ser
feitas no decorrer de uma sessão. Não se estabelece número limitado de
sessões: as gestantes podem participar durante o período que desejarem ou
até o nascimento do bebê. Cada sessão semanal dura em torno de duas horas
e focaliza temas e objetivos específicos, indicados pela equipe ou gerados pelo
grupo. No que diz respeito à fase de gestação, os grupos possuem uma
composição heterogênea. Pais e avós são convidados a participar para
conscientização acerca da importância dos familiares. Nessa ocasião,
dificuldades, dúvidas e expectativas são discutidas. Adotam-se técnicas de
dinâmica de grupo, aulas expositivas e debates. Os participantes não arcam
com gastos adicionais, pois esse atendimento está incluído na rotina de
cuidados da equipe. Para realização das sessões, são necessárias cadeiras
adequadas para gestantes. Em local apropriado, costuma-se armazenar:
folders para divulgação do programa, colchonetes, bola fisioterapêutica,
equipamentos audiovisuais, materiais educativos (ex.: cartazes, revistas, jogos,
cartilhas, livros, vídeos e DVDs) e materiais de consumo (ex.: cópias de
material impresso, papéis, lápis, cola, tesoura e lanches adequados para
gestantes). De acordo com as características dos grupos, desenvolvem-se os
temas. Para tanto, incentiva-se a participação ativa das gestantes no processo
grupal. Com base no modelo de Afonso (2003), cada sessão é ordenada a
partir dos seguintes parâmetros: tema gerador, objetivos, recurso instrumental,
procedimentos e tarefa para casa. É importante explicitar que a sequência dos
encontros apresentada neste artigo é ilustrativa, pois os grupos imprimem seu
próprio ritmo de evolução.

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Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Pré-Natal Psicológico

Sistematização e planejamento do PNP

1º Encontro
Temas geradores: criando laços de identificação, contrato de grupo e
parto.
Objetivos: promover contato inicial entre participantes, gerando integração
e pertencimento grupal. Propiciar acolhimento e conhecer as expectativas em
relação ao grupo. Discussão das expectativas e dos medos em relação ao
parto.
Recursos instrumentais: dinâmica de integração. Reprodução de filme.
Procedimentos:
1. Em uma roda de conversa, cada participante é convidada a se
apresentar, explicitando nome, procedência e falando de si mesma.
2. Em seguida, cada mãe faz um breve relato do desenvolvimento da
história da gravidez e da sua queixa (se houver).
3. Técnica de levantamento de dúvidas e temas: distribui-se uma folha
com a seguinte frase: “Escreva nesta folha as dúvidas que você tem ou
os temas que você gostaria que fossem falados aqui no grupo”. As
participantes devem responder por escrito e relatar oralmente.
4. Leitura e discussão sobre expectativas e temas levantados
individualmente para discussão em grupo.
5. Apresentação do contrato terapêutico (via data show) com entrega de
cópia impressa a cada participante.
6. Esclarecimentos e discussão do referido contrato.
7. O(a) coordenador(a) apresenta a proposta do grupo, enfocando seus
objetivos e a importância do PNP na gestação, parto e pós-parto.
8. Apresentação de filme sobre parto, seguida de discussão.
9. Aplicação do instrumento de identificação do perfil gestacional.
Tarefa para casa: cada participante deve trazer por escrito a história do
seu próprio parto.

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Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Arrais, A. da R., & Araujo, T. C. C. F. de

2º Encontro
Temas geradores: tipos de parto, dor e plano de parto.
Objetivos: acolhimento de novos participantes. Firmar contrato com o
grupo.
Recursos instrumentais: utilização de textos e vídeos, colchonetes, data
show.
Procedimentos:
1. Avaliar sessão anterior e discutir a tarefa de casa.
2. Conhecer episódios significativos da semana.
3. Atualizar tempo de gestação.
4. Instruir sobre vantagens e desvantagens do parto normal e cesariano.
5. Debater sobre “o parto possível”, visando “empoderamento” das
gestantes.
6. Discussão das expectativas e medos em relação à dor no parto.
7. Apresentação e discussão de um vídeo sobre parto normal/vaginal.
8. Aplicação de técnicas de visualização do parto.
9. “Planejamento” do momento do parto: como escolher e decidir;
ensinar a elaborar o plano de parto (uso de data show).
Tarefa para casa: escrever seu “Plano de Parto”.

3º Encontro
Tema gerador: a construção da maternidade e da paternidade.
Objetivos: levantar e questionar preconceitos, mitos e crenças
relacionados à maternidade e paternidade. Refletir sobre a importância da
qualificação do papel dos pais na maternidade. Fornecer esclarecimentos
adicionais sobre gestação.
Recurso instrumental: técnica de recorte e colagem.
Procedimentos:
1. Os pais são convidados a participar. Num primeiro momento,
reúnem-se pais e mães em uma sala de atendimento grupal durante
um lanche coletivo. A equipe se reapresenta.

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Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Pré-Natal Psicológico

2. Os pais são encaminhados para outro recinto, enquanto as mães


permanecem no local.
3. Utilizando revistas e jornais, cada mãe/pai recortará gravuras e
palavras que representem a ideia de maternidade/paternidade para
si.
4. Solicita-se, então, que cada um/a apresente seu cartaz justificando a
escolha de cada figura selecionada, iniciando-se uma discussão
sobre o material.
5. Pais e mães são reunidos em uma grande sala para mostrarem seus
cartazes. Promovem-se reflexões sobre “O que é ser mãe/pai?”,
destacando-se representações sociais e mitos da maternidade
instintiva e perfeita, modelo patriarcal e características atuais da
maternidade e paternidade.
6. Ênfase no apoio social e familiar para a parturiente: veiculação da
“Lei do Acompanhante”.
7. Mobilização quanto ao compartilhamento dos cuidados com os
filhos, valorizando-se a participação paterna ativa.
8. Fechamento com agradecimentos à presença dos pais.
Tarefa de casa: o casal deve rever o plano de parto e ajustá-lo conforme
discussão do grupo. Convidar as avós para participar do próximo encontro.

4º Encontro
Tema gerador: a participação das avós: a maternagem transgeracional.
Objetivos: refletir sobre as mudanças ocorridas na maternidade de uma
geração para outra. Observar a interação das gestantes com suas
mães/sogras. Esclarecer quanto à participação das avós.
Recursos instrumentais: folhas e canetas.
Procedimentos: apresentação das avós e estabelecimento dos grupos
de avós e de gestantes em ambientes distintos.

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Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Arrais, A. da R., & Araujo, T. C. C. F. de

Grupo das avós


1. As participantes recebem uma folha e canetas para traçar uma linha.
Em cada um dos lados e no alto da folha, devem escrever: A.M.
(Antes da Maternidade) e D.M. (Depois da Maternidade).
2. Em seguida, devem escrever frases ou palavras que representem
suas vidas antes e depois do nascimento do(s) seu(s) filho(s).
3. Estimula-se que falem sobre as mudanças percebidas em suas
vidas, comparando-se o antes e o depois da maternidade.
4. Depois disso, adotam-se as seguintes questões disparadoras para
abordagem das transformações da maternidade ao longo do tempo:
Como era ser mãe antes e como é sê-la hoje?; O que era permitido
fazer na sua época?; Havia Depressão Pós-Parto?; Quais as
facilidades e as dificuldades de ser mãe na época?; Como era a
participação dos pais?

Grupo com gestantes


1. Solicita-se que escrevam no alto de uma folha: “Minha mãe é..”; do
outro lado “Minha sogra é...” e complementem cada espaço indicando
pelo menos cinco características que representem suas mães e
sogras.
2. As gestantes devem comentar sobre as características lançadas no
papel, suas relações com mãe e sogra e sentimentos percebidos ao
falarem a respeito.
3. Breve exercício de completamento de frases sobre o tema.
Ambos os grupos são reunidos no intuito de debater acerca da evolução
da maternagem, os aspectos que resistem às mudanças e que podem ser
fonte de dificuldade para as mães da atualidade. Também são feitos
esclarecimentos sobre a necessidade de atualização das avós e sobre os
cuidados na convivência com suas filhas/noras. Pretende-se, ainda, sensibilizar
as avós no que tange à necessidade de respeito ao estilo de maternagem de
cada mãe.

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Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Pré-Natal Psicológico

Tarefa para casa: preencher ficha “O que nunca me contaram sobre ser
mãe” e ler o texto produzido, discutindo-o com as respectivas avós.

5º Encontro
Tema gerador: depressão Pós-Parto (ou Depressão Periparto).
Objetivos: identificar o grau de conhecimentos das mães e sua
capacidade de reconhecer sintomas. Divulgar mais informações.
Recurso instrumental: técnica de associação de ideias sobre a
maternidade e depressão.
Procedimentos:
1. As gestantes devem escrever as cinco primeiras palavras/frases que
associam com: pós-parto, recém-nascido, tristeza, depressão,
maternidade, ajuda.
2. Após essa etapa, enumeram palavras ou frases, de acordo com o
grau de representatividade crescente.
3. Repasse de informações sobre características da Depressão
Periparto, diagnósticos diferenciais (ex. psicose puerperal e blues
puerperal),
4. Orientações sobre principais orientações terapêuticas e mitos sobre
distúrbios no puerpério. Tarefa para casa: responder à Escala de
Depressão Pós-Parto de Edimburgo - EPDS (Cox & Holden, 2003) e
trazer na próxima sessão.

6º Encontro
Tema gerador: preparação para o pós-parto.
Objetivos: reforçar competências maternas para cuidados do bebê.
Orientações sobre amamentação. Esclarecer e orientar sobre sexualidade após
o parto.
Recursos instrumentais: bonecos, roupas de bebê, seios de pano e
conchas para amamentação.
Procedimentos:

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Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Arrais, A. da R., & Araujo, T. C. C. F. de

1. Dramatização sobre amamentação, banho do bebê, cuidados com o


umbigo, troca de fraldas.
2. Fornecer orientações ao longo da dinâmica.
3. Aula expositiva sobre sexualidade durante a gravidez, após o parto,
momento de trocas de experiências.
4. Orientação sobre planejamento familiar e direitos reprodutivos.
5. Entregar material ilustrativo sobre o período pós-parto.
Tarefa da casa: preencher o questionário de avaliação do grupo e trazer
na próxima sessão.

7º Encontro
Tema gerador: avaliação do trabalho e encerramento.
Objetivos: autoavaliação de cada gestante. Avaliação do programa
vivenciado. Despedida dos participantes do grupo.
Recursos instrumentais: Lanche.
Procedimentos:
1. Realização de um lanche com participação das gestantes na sua
preparação.
2. Avaliação oral do trabalho grupal.
3. Coordenador(a) repassa suas percepções e comenta sobre a
evolução do grupo.
4. Planos futuros são relatados (sobretudo no que concerne aos
cuidados de si, dos filhos e das famílias).
5. Despedidas gerais com troca de endereços e telefones entre
participantes para manutenção de vínculos (quando desejarem).
6. Encaminhamentos em casos de necessidade.
7. Agendamento de um encontro, três meses após, para follow-up e
fortalecimento dos ganhos obtidos.
Evidentemente, essa programação básica pode ser adaptada ao
público-alvo. Aliás, frente ao crescimento da demanda, algumas iniciativas já
foram empreendidas em contextos de atendimento variados, tais como:
hospitais públicos, com uma população de baixa renda e pouca escolaridade;

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Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Pré-Natal Psicológico

hospitais e/ou consultórios particulares; com gestantes de alto risco (por


exemplo, em casos de Doença Hipertensiva Específica da Gestação (DHEG),
diabetes, incompetência ístimo cervical e cardiopatias); com vítimas de
violência sexual e incesto; em casos de gestação de risco habitual; e com
mulheres que manifestam depressão e ansiedade gestacional.
Tendo em conta o cenário atual, entende-se que esse acompanhamento
é imprescindível para que as gestantes e os membros da sua rede social
desenvolvam estratégias destinadas ao enfrentamento dos estressores
socioambientais e emocionais. Em síntese, o suporte socioemocional,
informacional e instrucional fomentado pelo PNP pode contribuir para o bem-
estar das usuárias, além de favorecer a avaliação de sintomas de ansiedade e
de depressão. Tal como apontado na literatura especializada, ações grupais –
inclusive aquelas institucionalizadas na área de saúde – revelam-se
“continentes” para vivências paradoxais, permitindo ressignificações e
manifestação de desejos de maternidade diversos (Araujo & Negromonte,
2010; Azevedo & Arrais, 2006; Cruz, Simões, & Faisal-Cury, 2005; Klein &
Guedes, 2008).
Ao se avaliar o PNP, a partir dos relatos feitos pelas participantes dos
grupos já concluídos, verifica-se uma percepção bastante favorável. Seguem-
se alguns trechos ilustrativos (nomes fictícios são aqui empregados para
preservar o sigilo de suas identidades):
“Aqui vocês puderam me ajudar, me aconselhar. Se não fosse vocês, eu
acho que não teria dado conta só. Nos momentos bem difíceis da minha vida
me ajudou sim, bastante mesmo” (Sofia).
“Durante a gestação se eu tivesse passado aqui sozinha, sem o apoio
de vocês, sem alguém pra conversar, me acalmar, me ajudar, eu não tinha
conseguido” (Francisca).
“Sempre depois que eu conversava com vocês, eu me acalmava, eu
conseguia pensar e me centrar, e lembrar que eu estava aqui não por mim,
mas pelo meu filho. Foi ótimo eu ter vocês!” (Maria das Dores).

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Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
Arrais, A. da R., & Araujo, T. C. C. F. de

Considerações finais

O PNP é um programa de baixo custo que pode ser desenvolvido nos


setores público e privado. Associando-se às práticas biomédicas de
acompanhamento, possibilita um cuidado integral à mulher e ao seu bebê,
prevenindo doenças e promovendo saúde. Desse ponto de vista, defende-se a
qualificação contínua das equipes especializadas, notadamente em relação às
dificuldades inerentes à maternidade, além daquelas desencadeadas por
transtornos físicos ou psíquicos. Certamente, em razão da sua formação, o
profissional de psicologia tem um papel central no desenvolvimento desse
trabalho.

Referências
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Horizonte: Edições do Campo Social.

Arrais, A. R., Cabral, D. S. R., & Martins, M. H. F. (2012). Grupo de pré-natal


psicológico: Avaliação de programa de intervenção junto a gestantes.
Encontro: Revista de Psicologia, 15(22), 53-76.

Arrais, A. R., Mourão, M. A., & Fragalle, B. (2013). O pré-natal psicológico


como programa de prevenção à depressão pós-parto. Revista Saúde e
Sociedade, 22(3), 251-264.

Araujo, T. C. C. F., & Negromonte, M. R. O. (2010). Equipe de saúde:


vinculação grupal e vinculação terapêutica. In M. H. P. Franco (Ed.),
Formação e rompimento de vínculos: o dilema das perdas na atualidade (pp.
73-100). São Paulo: Summus.

Azevedo, K. R., & Arrais, A. R. (2006). O mito da mãe exclusiva e seu impacto
na depressão pós-parto. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19(2), 269-276.

Barbosa, L. M. M., Araujo, T. C. C. F., & Escalda, P. (2015). Tecnologias


sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e
infantil em Ceilândia, DF. In M. I. Gandolfo, M. I. Tafuri, & D. S. Chatelard
(Eds.). Psicologia Clínica e Cultura Contemporânea 2 (pp. 360-376). Brasília:
Technopolitik.

Bortoletti, F. F. (2007). Psicologia na prática obstétrica: abordagem


interdisciplinar. Barueri, São Paulo: Manole.

Cassiano, A. C. M., Carlucci, E. M. S., Gomes, C. F., & Benneman, R. M.


(2014). Saúde materno infantil no Brasil: evolução e programas

115
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Pré-Natal Psicológico

desenvolvidos pelo Ministério da Saúde. Revista do Serviço Público, 65(2),


227-244.

Cox, J., & Holden J. (2003). Perinatal mental health: A guide to the Edinburgh
Postnatal Depression Scale (EPDS). London: Royal College of Psychiatrists,
Gaskell.

Cruz, E. B. S., Simões, G. L., & Faisal-Cury, A. (2005). Rastreamento da


depressão pós-parto em mulheres atendidas pelo Programa de Saúde da
Família. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, 27(4), 181-188.

Klein, M. M. S., & Guedes, C. R. (2008). Intervenção psicológica a gestantes:


Contribuições do grupo de suporte para a promoção da saúde. Psicologia:
Ciência e Profissão, 28(4), 862-871.

116
Rev. SBPH vol.19 no. 1, Rio de Janeiro – Jan./Jul. – 2016
05
O Pré-Natal Psicológico como Fator de Proteção à Depressão Pós-Parto

Alessandra da Rocha Arrais

Silvia Renata Lordello

Giselle Caroline Fernandes Cavados

Objetivos de aprendizagem

Ao final deste capítulo, espera-se que o (a) leitor (a) seja capaz de:
Identificar os processos emocionais que emergem durante a gestação e o puerpério,

com destaque para a depressão pós-parto e seus fatores de risco e de proteção;

Reconhecer a importância de se proporcionar um espaço de escuta emocional para as

gestantes e puérperas em uma intervenção como o pré-natal psicológico;

Avaliar novas possibilidades de atuação, estimulando a psicoprofilaxia e a prevenção

primária na área da Obstetrícia.

Em se tratando de saúde mental e atuação preventiva, um importante tema vem

ganhando destaque: a maternidade. Isso porque o fenômeno envolve, no mínimo, dois campos

de prevenção fundamentais. O primeiro é a mulher, gestante, parturiente e mãe, que vivencia

um período de muitas inseguranças e descobertas, o que torna muito relevante a intervenção

psicológica. O segundo campo é o desenvolvimento do filho. O bebê se beneficia muito de

uma relação saudavelmente construída e de um projeto de parentalidade que compreenda suas

necessidades evolutivas.

1
Entretanto, para que esse trabalho se realize é preciso compreender os conceitos

envolvidos e desconstruir alguns mitos edificados em torno da maternidade. O ciclo

gravídico-puerperal é um período do desenvolvimento humano marcado por alterações

bioquímicas, físicas e psíquicas da mulher. Ao contrário do senso comum, as mulheres não

nascem preparadas para serem mães. Por mais que haja um planejamento consensual quanto

ao desejo de se ter um filho, a gestante e, posteriormente, a puérpera podem vivenciar

inseguranças, incertezas e ansiedades quanto ao novo papel de mãe. Esse choque com a

realidade de ser mãe que se contrapõe ao ideal materno preconizado pela cultura tem

promovido uma necessidade crescente de se investir no cuidado à gestante no que tange à

saúde mental. A crença arraigada socialmente de que o amor materno é instintivo

favorece a ocorrência de sentimentos de culpa e de outros sentimentos ambivalentes

experimentados por gestantes e puérperas, o que pode comprometer sua saúde mental, bem

como o desenvolvimento de um vínculo saudável na relação mãe-bebê.

Dentre as patologias associadas à maternidade, identifica-se a depressão pós-parto

(DPP) como a de maior frequência, sendo considerada um problema de saúde pública no

Brasil (Ruschi et al., 2007). Por ser uma experiência vivida por muitas mulheres após o

período da gravidez e do parto, e por se apresentar como um transtorno psíquico do ciclo

gravídico-puerperal (Rosenberg, 2007), a DPP necessita de acompanhamento psicológico.

Segundo Iaconelli (2012), foi da necessidade de atuação junto a esse momento da gravidez e

puerpério que nasceu a psicologia perinatal, novo campo de estudo que compreende uma

perspectiva de acompanhamento à gestante, à parturiente e à puérpera dentro da psicologia

hospitalar.

Este trabalho apresenta uma atuação psicoprofilática por meio de um grupo

interventivo complementar ao tradicional pré-natal, aqui denominado como pré-natal

psicológico (PNP), com o objetivo de auxiliar na preparação para a maternidade e a

2
paternidade, fase favorável à instalação de sentimentos que podem dificultar a experiência

saudável do ciclo gravídico-puerperal (Bortoletti, 2007; Cabral, Martins, & Arrais, 2012), o

que pode, por consequência, reduzir os riscos de DPP. Outro objetivo do grupo é atuar em

uma perspectiva desenvolvimentista, provendo o espaço dialógico para o projeto de educação

de filhos, para a proposta de parentalidade do casal grávido e para questões do

desenvolvimento psicológico dos bebês nos seus primeiros anos de vida.

Diante desse contexto, esta pesquisa teve como objetivo geral investigar a eficácia do

grupo de pré-natal psicológico, verificando se o mesmo atua como fator de proteção à DPP.

Para alcançar esse objetivo, a pesquisa desdobrou-se nos seguintes objetivos específicos:

identificar os fatores de risco e de proteção das participantes no período gestacional; comparar

os fatores de risco e de proteção apresentados na gestação com os sintomas identificados na

fase de avaliação puerperal; identificar a probabilidade ou não de desenvolver a DPP nas

participantes no período puerperal; avaliar a opinião das puérperas quanto ao papel do pré-

natal psicológico como fator de proteção à DPP.

REVISÃO DA LITERATURA

A (des)construção da maternidade

A atuação preventiva com gestantes exige uma revisão da representação social da

maternidade no contexto histórico-social. Ainda é hegemônica a ideia de esperar da mulher,

na maternidade, um papel repleto de sacrifícios e de amor, correspondendo à imagem do que é

ser mãe perante a sociedade: doação, abnegação, amabilidade em tempo integral, equilíbrio,

ternura e devoção. No entanto, essa representação idealizada, que acabou sendo difundida por

livros, novelas e filmes, não corresponde à totalidade ambivalente dessa fase vital (Arrais &

Azevedo, 2006; Maldonado & Dickstein, 2010; Maushart, 2006; Parker, 1995). Segundo

Maushart (2006), e nesse ponto é que se constitui a máscara da maternidade, que “(...)

mantém as mulheres em silêncio a respeito do que sentem, e desconfiadas do que sabem” (p.

3
27), glorificando e, ao mesmo tempo, ignorando a experiência da maternidade, como uma

“conspiração do silêncio” (p. 31), que faz o mundo e a mulher esconderem das próprias

mulheres o desencontro entre idealização e realidade.

Hoje, em pleno século XXI, sabe-se que a ambivalência materna é uma experiência

que faz parte da realidade das mulheres que desejam e que conseguem ser mães, tanto

biologicamente quanto pela adoção. Na prática, nem tudo é alegria e contentamento quando a

mulher se torna mãe. Admitir a existência não só de sentimentos positivos como de negativos,

permeados por culpa, sacrifícios e redirecionamentos na carreira profissional, significa

desconstruir o papel materno idealizado baseado na representação social e construir um novo,

alicerçado na ratificação desses sentimentos ambivalentes (Maushart, 2006; Parker, 1995).

Assumir o real sentido da maternidade inclui também a prevenção de psicopatologias que

podem surgir ao não se aceitar a multiplicidade dos sentimentos vivenciados no ciclo

gravídico-puerperal.

A depressão pós-parto (DPP)

Os transtornos emocionais que atingem as mulheres no período pós-parto são de três

tipos: o baby blues, a psicose puerperal e a DPP (Frizzo & Piccinini, 2005). O baby blues, ou

tristeza materna, é mais reativo que o estado de depressão e atinge a maior parte das

puérperas, podendo acontecer simultaneamente com as mudanças neurofisiológicas

consideradas normais no período de puerpério (Frizzo & Piccinini, 2005). Algumas

características desse período são: estado de hipersensibilidade e mudança de humor repentina

sem explicação. Os sintomas comuns são: insônia, choro fácil, tristeza, irritabilidade e falta de

energia. Pode durar por volta de duas semanas (Arrais, 2010).

A psicose puerperal, segundo Arrais (2010), é um quadro com ideação delirante,

alucinações e alterações de ordem cognitiva frequente. Tem como característica principal o

4
repúdio ao bebê pela mãe, por ela se sentir aterrorizada e ameaçada por ele. Em função desse

medo, aumenta o risco de infanticídio ou ataque direto ao bebê.

A DPP, de acordo com Arrais (2005, 2010), é um episódio depressivo não psicótico

ocorrido nos 12 primeiros meses após o parto e apresenta os seguintes sintomas: tristeza

prolongada, perda de autoestima, perda de motivação e profundo retraimento, podendo estar

associado à reação maníaca, como proceder à limpeza exagerada do ambiente. Klaus et al.

(citado por Sousa, Prado, & Piccinini, 2011) acrescentam o choro frequente, sentimentos de

desamparo, desinteresse sexual e sensação de incapacidade para lidar com novas situações,

como desencadeantes desses sintomas.

Representações negativas acerca da maternidade como, por exemplo, sentimento de

incapacidade de cuidar do bebê e pouco apoio conjugal com relação aos cuidados com o bebê

podem contribuir para o surgimento da depressão pós-parto (Arrais, 2005; Sousa, Prado, &

Piccinini, 2011). Segundo Maldonado (1985), a DPP pode ser mais intensa quando há ruptura

elevada da expectativa em relação ao bebê, ao novo papel materno e ao tipo de vida que se

estabelece com a presença do filho.

Sobre a DPP, Rosenberg (2007, p. 114) afirma que “esse tipo de depressão apresenta

uma incidência de aproximadamente 10% e pode ocorrer, segundo alguns autores, de seis

semanas a um ano após o parto”. O autor acrescenta que esse tipo de depressão pode

surpreender a mulher após um período de bem-estar e adaptação, no qual podem surgir

sintomas como perda de sono, irritabilidade, anorexia, fadiga, labilidade emocional,

sentimento de culpa e o medo de não ser boa mãe. Atualmente, existem indícios nutricionais

que apontam também as deficiências em ômega 3, ferro, vitaminas B12 e D como associadas

ao risco de desenvolvimento da DPP (Miller & La Russo, 2011), daí a importância do

acompanhamento clínico com um pré-natal de qualidade.

5
Não é apenas a mãe que sente os efeitos da DPP. De acordo com Figueira et al. (2011)

e Bydlowski (2012), a DPP tem, ainda, impacto sobre o relacionamento conjugal e,

principalmente, sobre a criança, pois limita a habilidade da mãe em cuidados, engajamento,

contato emocional com o bebê e estabelecimento do vínculo mãe-bebê, podendo esses bebês,

inclusive, apresentarem atraso no desenvolvimento emocional e cognitivo.

Por fim, cabe mencionar o distúrbio de pânico pós-parto associado ao puerpério que,

segundo Baptista, Baptista e Oliveira (2004), é constituído de manifestações de ordem

cognitiva, emocional e comportamental, tendo a reação de pânico, especialmente no período

noturno, como o principal sintoma.

Fatores de risco e de proteção da DPP

A Psicologia Positiva é um movimento que, há cerca de 25 anos, enfatiza as emoções

saudáveis e amplia a visão biopsicossocial, incluindo aspectos como bem-estar, felicidade,

resiliência, coping, espiritualidade e apoio social no desenvolvimento da atenção primária de

saúde (Calvetti, Muller, & Nunes, 2007). A compreensão interativa entre pessoa e ambiente

permite identificar fatores de risco e de proteção no processo saúde-doença que são utilizados

neste trabalho.

Fatores de risco são eventos ou situações propícias ao surgimento de problemas

físicos, psicológicos e sociais, que serão, neste trabalho, compreendidos como os que

apresentam maior intensidade no período gravídico-puerperal. De acordo com Figueira et al.

(2011), o estabelecimento de fatores de risco pode contribuir para melhor compreensão da

doença e para a elaboração de estratégias de prevenção e de diagnóstico precoce.

Segundo Arrais (2005, 2010) e Arrais, Mourão e Fragalle (2014), podem ser incluídos

como fatores de risco a relação marital empobrecida, a vivência de algum evento de vida

estressante, a falta de apoio social, o histórico psiquiátrico pessoal e/ou familiar e a

idealização da maternidade. O histórico de violência intrafamiliar, seja ela física ou

6
psicológica, é também citado por Maia e Willians (2005). Golse (2002) acrescenta como

eventos que aumentam o risco de depressão pós-parto: a existência de episódios depressivos

anteriores e a ambivalência acentuada dos futuros pais durante a gravidez. A presença de

dificuldades financeiras no pós-parto, de estresse no cuidado com o bebê e de complicações

obstétricas maternas durante a gestação ou o puerpério também foram listados como fatores

de risco (Figueira et al., 2001).

Por sua vez, os fatores de proteção são medidas preventivas ou situações já

estabelecidas que funcionam como proteção às influências que transformam ou melhoram

respostas pessoais (Calvetti et al., 2007), no caso deste trabalho, no período da gravidez e do

puerpério.

Constituem-se em fatores de proteção: o apoio de outra mulher; o suporte emocional

do marido (Bowlby citado por Frizzo & Piccinini, 2005); um trabalho de prevenção, como o

pré-natal psicológico sugerido por Bortoletti (2007), Cabral, Martins e Arrais (2012), Santos

(2013) e Arrais et al. (2014); a detecção precoce da depressão (Ruschi et al., 2007), o suporte

social (O’Hara citado por Frizzo & Piccinini, 2005) e a intervenção multidisciplinar logo que

os sintomas sejam detectados (Schwengber & Piccinini, 2003).

Todavia, é preponderante destacar o caráter dinâmico e subjetivo dos fatores de risco e

de proteção. Segundo Yunes (2003), os fatores de risco devem ser trabalhados como processo

e não como variável em si, ou seja, devem ser relativizados de acordo com a própria

subjetividade da pessoa, assim como os fatores de proteção, que devem estar em equilíbrio

com a história de vida da gestante. Não é possível fazer inferências com raciocínio linear

quando se trata de riscos psicológicos: é necessária uma identificação do risco e de suas

consequências a partir da vivência subjetiva do indivíduo. Isso quer dizer que fatores de risco

e de proteção apenas podem ser considerados se relativizados com o histórico da gestante.

7
Nesse contexto é possível trabalhar por meio de medidas preventivas. A promoção da

integridade biopsicossocial da gestante é uma delas e, para isso, o trabalho de equipe é

essencial (Rosenberg, 2007). Este autor menciona a importância do trabalho multidisciplinar

nos três níveis de prevenção: primária, secundária e terciária.

Pré-natal tradicional versus pré-natal psicológico

Para desenvolver essas medidas com vistas à proteção da mulher, no que diz respeito

aos problemas emocionais e a outras questões relacionadas ao ciclo gravídico-puerperal, são

necessários programas de assistência e orientação. O pré-natal tradicional e o pré-natal

psicológico são programas que buscam atender a essas demandas. O que chamamos de

tradicional é preconizado pelas normas ministeriais: o número de consultas médicas deve

totalizar seis, sendo uma no primeiro trimestre, duas no segundo trimestre e três no terceiro

trimestre. O acompanhamento da mulher no ciclo gravídico-puerperal deve ter seu início o

mais precocemente possível e se encerrar após o 42º dia do puerpério, quando deverá

acontecer a consulta puerperal (Cabral et al., 2012).

Além das consultas, tradicionalmente, também são oferecidos os cursos para gestantes

que, de acordo com Bortoletti (2007), funcionam com um grande número de participantes

acima de 20 mulheres , com uma média de três encontros intensivos, cronograma teórico

preestabelecido, exercícios preparatórios para o parto e aulas de como cuidar do bebê, com

pouca interlocução entre os participantes. Nesse tipo de pré-natal, a abordagem geralmente é

interdisciplinar. Obstetras, pediatras, enfermeiros e psicólogos participam do trabalho,

abordando assuntos pertinentes à sua área de atuação no formato de aulas expositivas.

No entanto, de acordo com o Manual do Puerpério, publicado pelo Ministério da

Saúde (Brasil, 2006), o pré-natal deve transcender o modelo biomédico vigente nesse tipo de

serviço. Deve dispor de profissionais da saúde preparados para lidar com a mulher em toda a

8
sua singularidade, valorizando sua individualidade a partir de uma escuta ativa que vá além

dos males físicos, reafirmada pela empatia no atendimento.

Para atender a essa recomendação, propõe-se uma segunda modalidade de assistência,

denominada de Pré-Natal Psicológico (PNP) por Bortoletti (2007), Cabral et al. (2012) e

Arrais et al. (2014). Esse tipo de pré-natal prioriza a exteriorização e a elaboração de conteúdo

psíquico. Utiliza-se de anamnese individualizada, e tem como objetivo a prevenção de

transtornos psicológicos. O PNP como intervenção grupal para gestantes insere-se no

contexto psicoprofilático, por oportunizar um espaço importante para que as gestantes ou os

casais grávidos exponham suas vivências, fantasias, medos, angústias, alegrias e tristezas

advindas desse processo, e para que possam trocar experiências e juntos construir a nova

função parental (Arrais et al., 2014).

Santos (2013) defende o espaço dialógico propiciado pela vivência grupal como fator

de proteção na construção de estratégias que potencializam os processos ocorridos na

maternidade. Considera-se, ainda, um trabalho personalizado, em que as sessões ocorrerão de

acordo com os emergentes emocionais das pessoas envolvidas. Os encontros têm por objetivo

acolher e dar voz ao casal, bem como informar, orientar e preparar cada um para que passem

por esse processo da melhor maneira possível. Para isso, diversos temas são desenvolvidos ao

longo dos encontros do grupo, levando-se em consideração suas características e

necessidades. Alguns dos temas que podem ser trabalhados são: conceito de maternidade,

mudanças na relação conjugal e familiar com a chegada do bebê, amamentação, tipos de

parto, etc. (Arrais et al., 2014).

Vê-se, portanto, que ambos os tipos de pré-natal o tradicional e o psicológico são

complementares, já que têm por finalidade primordial buscar formas para melhorar o

momento do parto e a vivência da maternidade e da paternidade, favorecendo o

desenvolvimento saudável do bebê ao oportunizar um projeto de parentalidade que inclua

9
aspectos educativos e psicodinâmicos. Em outras palavras, as estruturas e as propostas de

trabalho do pré-natal tradicional e do PNP são distintas, sendo o primeiro psicoeducativo em

sua essência, e o segundo psicodinâmico e propiciador de autoconhecimento (Arrais et al.,

2014).

O DESENHO DA PESQUISA-AÇÃO

Para que os objetivos da pesquisa pudessem ser atingidos, o método utilizado foi a

pesquisa-ação, que é uma estratégia de investigação que visa compreender e intervir

proposital ou intencionalmente na situação, com vistas à modificá-la (Thiollent, 1992), além

de propor “ao conjunto de sujeitos envolvidos mudanças que levem a um aprimoramento das

práticas analisadas” (Severino, 2007, p.120). Essa metodologia divide-se em três fases:

Fase I: elaboração do diagnóstico da situação (levantamento dos fatores de risco e de

proteção para a DPP);

Fase II: proposta de intervenção e implantação (implantação do grupo de PNP);

Fase III: avaliação (rastreamento da DPP e avaliação do PNP).

A pesquisa apresentada neste capítulo contemplou as três fases da pesquisa-ação

acima descritas, na qual foram identificados os fatores de risco e de proteção para a DPP, bem

como avaliados os dados qualitativos e quantitativos colhidos nas fases II e III.

Colaboraram para esse estudo 10 mulheres grávidas, captadas de forma voluntária por

meio de convites via rede social Facebook, de e-mails de divulgação e de indicações de

profissionais da área obstétrica. O pré-requisito inicial era que todas estivessem realizando

acompanhamento pré-natal na rede particular do Distrito Federal, sendo também residentes do

DF, o que caracteriza, portanto, uma amostra de conveniência. Todas foram convidadas a

participar do PNP, todavia, apenas cinco dessas gestantes demonstraram interesse e

constituíram o grupo-intervenção, nomeadas de P1 a P5. Esse grupo-intervenção constituiu

um espaço dialógico, contemplando conteúdos trazidos pelo próprio grupo. Os facilitadores

10
incluíram, ainda, orientações e esclarecimentos quanto à gestação e aos aspectos

desenvolvimentais do bebê, que precisavam ser compreendidos dentro do contexto de

propostas de parentalidade. As outras cinco gestantes que não participaram constituíram o

grupo-controle dessa pesquisa, para fins comparativos, e foram nomeadas de P6 a P10.

Ambos os grupos eram frequentadores de serviços da rede privada de saúde, justificando,

neste estudo, a manutenção da homogeneidade socioeconômica da amostra.

Cabe ressaltar que o estudo foi longitudinal e comparou as 10 mulheres enquanto

encontravam-se grávidas e após o parto, quando passaram a ser puérperas.

Os instrumentos utilizados em diferentes fases do trabalho foram:

Perfil gestacional: ficha preenchida pela gestante contendo dados sociodemográficos,

história da gestação, rede social de apoio e história de gestações anteriores, com o

intuito de identificar previamente os fatores de risco e de proteção para a DPP. A ficha

foi aplicada aos dois grupos da pesquisa durante a Fase I.

Perfil puerperal: ficha preenchida pela puérpera contendo registros sobre o parto, o

bebê e a amamentação, bem como sobre mudanças decorrentes do nascimento do

bebê, estados emocionais nesse período, rede social de apoio e representação de ser

mãe após o nascimento, a fim de identificar a percepção das gestantes anteriores,

atuais puérperas, sobre a qualidade do pós-parto até três meses após o nascimento do

bebê. A ficha foi aplicada aos dois grupos da pesquisa durante a Fase III.

Inventário Beck de Depressão (BDI): escala composta por 21 itens com diferentes

alternativas sobre como o sujeito tem se sentido recentemente, correspondendo a

diferentes níveis de gravidade da depressão: mínimo, leve, moderado ou grave

(Cunha, 2011). O inventário foi aplicado aos dois grupos da pesquisa durante a Fase I.

Inventário Beck de Ansiedade (BAI): escala de autorrelato que mede a intensidade dos

sintomas de ansiedade. O inventário é constituído por 21 itens com afirmações

11
descritivas sobre os sintomas de ansiedade, que devem ser avaliados pelo sujeito em

relação a si mesmo em uma escala Likert de quatro pontos que vão de “absolutamente

não” a “gravemente: dificilmente pude suportar” (Cunha, 2011). O inventário foi

aplicado aos dois grupos da pesquisa durante a Fase I.

A Escala de Depressão Pós-Parto de Edimburgo, ou Escala COX (Cox e Holden,

2003): instrumento bastante utilizado em estudos sobre DPP (Lobato et al., 2011), de

autorregistro, composto por dez enunciados cujas opções são pontuadas (0 a 3) de

acordo com a presença ou a intensidade do sintoma. Seus itens incluem sintomas

como humor depressivo (sensação de tristeza, autodesvalorização e sentimento de

culpa, ideias de morte ou suicídio), perda do prazer em atividades anteriormente

consideradas agradáveis, fadiga, diminuição da capacidade de pensar, de se concentrar

ou de tomar decisões, sintomas fisiológicos (insônia ou hipersonia) e alterações do

comportamento (crises de choro). A Escala, considerada de sintomatologia depressiva,

apresenta valor igual ou superior a 12 (Ruschi et al, 2007). A escala foi aplicada aos

dois grupos da pesquisa até três meses depois do pós-parto, durante a Fase III.

Questionário avaliativo sobre os efeitos do PNP: questionário qualitativo propiciador

de respostas subjetivas das puérperas e que procurou verificar a percepção delas sobre

os efeitos da participação no PN. O questionário foi aplicado apenas às participantes

do grupo-intervenção da pesquisa, durante a Fase III.

A análise de dados ocorreu de forma mista: quantitativa e qualitativa. Na etapa inicial,

foram elencados quantitativamente, por meio de registro de frequência, os fatores de risco e

de proteção para a DPP para cada colaboradora, baseados em suas respostas aos instrumentos.

Para isso, foi feita uma análise documental dos perfis gestacional e puerperal, cálculo de

escores e análise dos resultados das escalas Beck e Cox. Após essa etapa, foi também

avaliado qualitativamente o caráter preventivo do pré-natal psicológico, por meio dos dados

12
provenientes das respostas dadas pelas participantes do grupo-intervenção às questões abertas

dos questionários de avaliação sobre o grupo de PNP, bem como da verificação da satisfação

das expectativas em relação ao grupo, incluindo transcrição e destaque de depoimentos

relevantes, compatíveis com os objetivos da pesquisa.

A técnica de análise qualitativa adotada foi a análise de conteúdo que, segundo Bardin

(1977), constitui-se em um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza

procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. Para isso, as

falas das gestantes e, posteriormente, puérperas e os resultados quantitativos foram divididos

em categorias que contemplassem os objetivos geral e específicos deste trabalho.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Caracterização das participantes da pesquisa

Sintetizando as características da amostra, observou-se que as idades das participantes

de ambos os grupos, intervenção e controle, eram muito próximas, dos 26 aos 35 anos,

alcançando uma média de 31,5 anos. Quanto à idade gestacional, a maioria (90%) estava entre

o 2º e o 3º trimestre gestacional. Essa proximidade entre os trimestres gestacionais

possibilitou o compartilhamento de experiências entre as gestantes, não apenas por estarem

vivenciando mudanças físicas similares, mas também psicológicas e emocionais típicas de

cada fase. Todas as participantes apresentavam, ainda, relacionamentos estáveis, sendo 80%

delas casadas e 20% em união estável, o que não necessariamente constitui-se como apoio

conjugal, como será apresentado a seguir, porém oferece certa estabilidade inicial frente às

adversidades do ciclo gravídico-puerperal. Além disso, todas as gestantes possuíam ensino

superior completo, o que pode influir diretamente em 90% da amostra (nove ocorrências), que

trabalhava e era financeiramente independente do companheiro, apresentando renda familiar

superior a R$ 4.000,00 (equivalente a 20 salários-mínimos no momento da coleta de dados).

13
Ser primípara mostrou-se um atributo comum a 9 das 10 gestantes participantes, constituindo-

se como um fator de risco ao desenvolvimento da DPP, que será detalhado a seguir.

Fatores de risco e de proteção identificados na gestação das participantes da pesquisa

Os fatores de risco e de proteção foram sintetizados na Figura 30.1, a fim de visualizar

e diferenciar melhor as participantes, divididas em grupo-intervenção (participantes do PNP)

e grupo-controle (não participantes do trabalho preventivo).

GRUPO-INTERVENÇÃO GRUPO-CONTROLE
Fatores de Risco e de Proteção
P1 P2 P3 P4 P5 Total Total (%) P6 P7 P8 P9 P10 Total Total (%)
Primípara X X X X X 5 100% X X X X 4 80%
Gravidez não planejada X X 2 40% X X X 3 60%

Trabalho estressante da mãe ou do pai X X X 3 60% X X X X 4 80%

Desemprego da mãe ou da família X 1 20% 0 0%

Situação socioeconômica desfavorável X 1 20% X 1 20%

R Mudança de residência e\ou cidade X 1 20% 0 0%

I Rede de apoio empobrecida X 1 20% 0 0%

Relacionamento conjugal insatisfatório X X 2 40% 0 0%


S
Conflitos familiares X X X 3 60% X 1 20%
C
Doença grave de parente próximo X 1 20% X 1 20%
O
Morte de pessoa querida X X 2 40% X 1 20%
S
Falta de apoio do pai do bebê X 1 20% 0 0%

Depressão anterior X X X 3 60% X X 2 40%

Depressão na gestação X 1 20% 0 0%

Parto traumático ou insatisfatório na gestação atual X X 2 40% X X 2 40%

Intercorrência obstétrica-hospitalar X 1 20% X X X X X 5 100%

TOTAL FATORES DE RISCO 6 7 6 4 7 30 4 3 5 8 4 24

P Multípara 0 0% X 1 20%
Mãe casada/relação estável X X X X X 5 100% X X X X X 5 100%
R
Gravidez planejada X X X 3 60% X X 2 40%
O Gravidez desejada X X X X X 5 100% X X X X X 5 100%

T Situação socioeconômica favorável X X X X 4 80% X X X X 4 80%


Suporte familiar X X X X 4 80% X X X X X 5 100%
E
Relacionamento conjugal satisfatório X X X 3 60% X X X X X 5 100%
Ç Apoio emocional do pai do bebê X X X X 4 80% X X X X X 5 100%
Parto satisfatório X X X 3 60% X X X 3 60%
Ã
Detecção precoce da depressão X X 2 40% X 1 20%
O TOTAL FATORES DE PROTEÇÃO 7 5 7 8 6 33 7 8 5 7 9 36

Figura 30.1 Fatores de risco e de proteção.


Fonte: As autoras.

14
Ao se comparar o número de ocorrências de fatores de risco entre os dois

grupos, nota-se que no grupo-intervenção há um total de 30 ocorrências, número esse maior

que o total do grupo-controle, com 24 ocorrências. Esse resultado sugere que as gestantes

participantes do PNP apresentavam maior vulnerabilidade no período gravídico e, talvez por

isso, tenham optado por participar desse tipo de trabalho preventivo (Bortoletti, 2007).

Em contraponto, as gestantes que participaram do PNP apresentaram também maior

número de fatores de proteção (33 ocorrências no total), demonstrando estarem mais

protegidas das mudanças biopsicossociais provenientes do ciclo gravídico-puerperal. O total

de ocorrências das participantes do grupo-controle também foi alto (36 ocorrências), o que

indica que, apesar de não terem participado do grupo interventivo, elas já possuíam

ferramentas fundamentais ao não desenvolvimento da DPP.

Comparativamente, percebe-se que a maior parte das gestantes (70%) de ambos os

grupos apresentou número maior ou igual de fatores de proteção frente ao número de fatores

de risco, o que, na perspectiva da Psicologia Positiva, alinha-se com um número maior de

características positivas do que negativas diante da eminência de mudanças profundas, tendo

implicado diretamente em uma experiência vivencial da gravidez mais saudável e com maior

qualidade de vida (Yunes, 2003).

O fato de ter o seu filho pela primeira vez, ou seja, ser primípara (9 de 10 mulheres),

constitui-se em fator de risco pelo desconhecimento inicial do quão ambivalente pode ser a

descoberta da maternidade (Parker, 1995). Arrais (2010) lembra que a idealização desse

processo também pode ser um fator de risco, sendo a mãe primípara inexperiente nas alegrias

e dissabores dessa etapa. Ademais, o fato de ser constantemente cobrada por valores baseados

na representação social de uma maternidade idealizada pode gerar decepção e frustrações,

levando ao desenvolvimento de psicopatologias associadas ao período gravídico-puerperal,

por exemplo, a DPP. Maushart (2006) alerta que o contato das mães de primeira viagem com

15
bebês é relativamente pequeno. Não há curso que prepare por completo uma mulher para ser

mãe. Tornar-se mãe é um processo, e assumir a ambivalência da maternidade pode ser

libertador: “ser mãe é muita responsabilidade, fonte de prazer e desafios”, como relatou P2.

Outro fator de risco com ocorrência acentuada é o trabalho estressante na família (70%

do total dos dois grupos), que apareceu como uma tendência constante da pós-modernidade.

Embora uma aparente distância da sociedade sexista e patriarcal possa ser notada, os

estereótipos são perpetuados pela cobrança excessiva da mulher. As mulheres são exigidas

duplamente: além de trabalhar precisam ser mães perfeitas em tempo integral, a despeito das

novas regras sociais. Exemplos disso são os relatos: “eu trabalho demais, queria viver a

maternidade exclusiva ou pelo menos ter essa opção de trabalhar menos” (P7), “eu sempre

tive essa sensação por cobrar muito de mim mesma nas minhas tarefas, nas minhas

responsabilidades, no meu trabalho, enfim em tudo” (P4). Daí nasce o conflito entre o que é

certo e errado na maternidade. Independentemente da escolha, ambos pai e mãe , serão

cobrados pela sociedade pelas escolhas que não foram feitas (Maushart, 2006).

O último fator de risco a ser destacado diz respeito às intercorrências hospitalares-

obstétricas (prevalência de 60% nas participantes), que podem ocorrer na gestação ou no

puerpério, impactando, principalmente, a mãe. Algumas dessas intercorrências foram:

convulsões (P4), sangramento (P6), hematoma subcoriônico (P7) e hipertensão (P10). Todas

exigiam repouso e paralisação das atividades de rotina, como apontado por uma participante:

“me deu medo, muito medo, de não conseguir levar adiante” (P4). Essas ocorrências podem

contribuir para o estigma da “gravidez como doença” (Maushart, 2006), e atrapalham a

construção do bem-estar subjetivo, fazendo com que a mulher se isole do contato social por

dias ou até mesmo meses, aumentando o número de sentimentos negativos relativos à

gravidez. Por isso, segundo Cabral et al., (2012), evidencia-se a necessidade não apenas de

cuidados emocionais no período gravídico-puerperal, sendo também preponderante o

16
acompanhamento rotineiro no pré-natal, observando-se o número de consultas com a

finalidade de se diminuir a sensação de impotência diante de possíveis mal-estares ocorridos

na gestação, com consequências diretas para a dimensão psicológica da gestante.

Quanto aos fatores de proteção, os que mais se sobressaíram e que estão bastante

interligados foram: mãe casada ou em relação estável, gravidez desejada, suporte familiar e

apoio emocional do pai do bebê.

Observa-se, pelos fatores de proteção mais evidentes, a importância de mais do que

uma relação estável (100% das participantes): uma relação de apoio e confiança com o pai do

bebê (90%), na qual possam ter construído um vínculo forte, dividindo todos os sentimentos

contraditórios advindos dessa fase. Esse apoio vivenciado em uma relação sólida permite à

mulher passar por um período em que se sente frágil, insegura e dependente, no qual a vinda

do filho pode ser sentida como ameaça ao equilíbrio da relação, afinal, “o homem e a mulher

deixam de ser apenas filhos para se tornarem também pais” (Maldonado & Dickstein, 2010, p.

29). Laços de confiança mútua, dessa forma, são essenciais para uma atitude positiva diante

do desafio da parentalidade, pois o homem também se sente angustiado e ambivalente quanto

às questões do novo papel. Um bom indicativo desse fator de proteção manifestou-se na

avaliação pós-parto, na qual a maioria das gestantes (90%) respondeu afirmativamente à

melhora (pouca ou muita) do seu relacionamento com o pai do bebê após o nascimento: “o

que tem me ajudado desde a gravidez até agora na criação do meu filho é o companheirismo e

a ajuda do meu esposo” (P1).

Por mais que a gravidez seja desejada por 100% das mulheres, mesmo que não

planejada, como ocorreu com metade das participantes, poderá haver desafios. Tal desejo não

exime o aparecimento da ambivalência, mas pode fazer com que enfrentem melhor e juntos os

desafios de se tornarem pais (Parker, 1995).

17
Outro fator de proteção que está intrinsecamente ligado à dinâmica do casal é o

suporte familiar. O estilo de “ser família” (Yunes, 2003) e os sistemas de crenças familiares

podem ajudar na forma de funcionamento da família, o que, por consequência, pode afetar de

forma direta a maneira como essa mãe irá enfrentar o momento do puerpério. É inegável

perceber o quanto uma relação sadia, por exemplo, da mãe da gestante com sua filha, pode

intensificar a experiência da nova maternidade (Parker, 1995). Nas palavras das participantes:

“Acho que as relações familiares melhoraram. Com a chegada do bebê, a família se uniu

mais” (P5), “todos da família, vovós, vovôs e titias, estão ansiosos com sua chegada e fazendo

mil planos pra quando estiver conosco” (P3), “eu sempre tive uma ligação muito forte com

meus pais e com minha irmã, é uma família pequena então a gente é fortemente ligado...”

(P4).

Rastreamento da depressão pós-parto nos grupos intervenção e controle

Outro objetivo específico desta pesquisa o rastreamento da depressão pós-parto nos

grupos intervenção e controle pode ser sintetizado pela Figura 30.2, que apresenta os

resultados dos instrumentos aplicados.

Resultado Nível de Resultado Nível de depressão Resultado Rastreamento


Participantes BAI ansiedade BDI gestacional Cox depressão pós-parto

P1 32 Severa 23 Moderada 11 Negativo para DPP

P2 5 Mínima 10 Mínima 10 Negativo para DPP


GRUPO-
P3 19 Moderada 12 Leve 10 Negativo para DPP
INTERVENÇÃO
P4 15 Leve 7 Mínima 4 Negativo para DPP

P5 22 Moderada 17 Leve 11 Negativo para DPP

P6 9 Leve 7 Mínima 8 Negativo para DPP

P7 7 Mínima 8 Mínima 10 Negativo para DPP


GRUPO-
P8 11 Leve 10 Mínima 11 Negativo para DPP
CONTROLE
P9 14 Leve 10 Mínima 21 Probabilidade para DPP

P10 13 Leve 14 Leve 3 Negativo para DPP

Figura 30.2 Rastreamento da depressão pós-parto nos grupos intervenção e controle.

Fonte: As autoras.

18
Inicialmente, no grupo-intervenção, pode-se notar que apenas P1 apresenta nível de

ansiedade severa e de depressão moderada, tendo a paciente diagnóstico e tratamento médico

para depressão durante a gestação, o que era um fator de risco a ser considerado para o

surgimento da DPP (Arrais, 2010; Baptista, Baptista & Oliveira, 2004; Harvey, 2002;

Rosenberg, 2007). Todavia, sendo o ponto de corte para rastreamento da DPP na escala Cox o

escore igual ou superior a 12, verifica-se que a mesma participante não apresentou a

probabilidade de desenvolver DPP (Cox & Holden, 2003). Segundo o relato de P1, os

sintomas da depressão na gestação foram substituídos: “o nascimento do bebê me trouxe mais

motivação”.

Além disso, nenhuma das gestantes do grupo-intervenção, participante do PNP,

apresentou rastreamento positivo para DPP, ou seja, com probabilidade de desenvolver a

DPP, o que, de acordo com Bortoletti (2007), Cabral et al. (2012) e Arrais et al. (2014), pode

ser visto como um dos benefícios da participação no grupo.

Por outro lado, no grupo-controle, apesar dos escores baixos das escalas Beck (BAI e

BDI) na fase diagnóstica durante sua gestação, observa-se que uma das pacientes (P9)

evidenciou probabilidade de desenvolvimento da DPP, com o alto resultado de 21 pontos na

escala Cox, realizada oito semanas após o nascimento do bebê. Como fator de risco bastante

relevante durante a gestação tem-se o fato de a própria mãe P9 estar passando por uma doença

grave, o que veio a ser agravado com o seu falecimento após o nascimento do bebê (Harvey,

2002): “Está difícil passar por isso tudo junto. Estar grávida e ter o bebê era pra ser um pouco

mais tranquilo, mas não está sendo. Nem por tudo que passei nem pelo que outras mães

devem passar” (P9).

Nesse caso, insere-se mais uma vez a pressão social por um modelo de maternidade

perfeita, não importando os ocorridos e as idiossincrasias vividas durante o ciclo gravídico-

puerperal. A sociedade vê a mulher com a predisposição inata ao sacrifício, aprisionada em

19
máscaras e valores imaginários que, mais uma vez, exaltam a ambivalência, a tristeza e a

rejeição (Arrais, 2005, 2006; Maushart, 2006).

Avaliação do pré-natal psicológico

Na avaliação do PNP, outro objetivo específico contemplado neste trabalho, os

resultados apontaram que cinco gestantes presentes às cinco sessões do grupo de PNP, além

de não desenvolverem a DPP avaliaram a experiência na participação do grupo como positiva

no período gravídico e no pós-parto. Elas afirmaram que houve mudança no conceito de

maternidade, melhora na qualidade do relacionamento com o marido, pai do bebê, melhora

dos sintomas possíveis da DPP, na maneira de lidar com a maternidade e nos conceitos de

parto e amamentação. Além disso, a “máscara da maternidade” (Maushart, 2006) caiu para

essas mulheres, que aprenderam a lidar com os desafios impostos pela maternidade, como

destacado das falas das participantes: “sempre me lembro de uma frase, fala ou de algo que

me foi apresentado no grupo” (P4), “me ajudou principalmente no que diz respeito ao diálogo

entre mim e meu marido” (P2), “com o grupo tive mais segurança” (P1), “me ajudou com as

preocupações básicas da maternidade, é bom tirar um tempo e pensar no que é ser mãe, que eu

posso ter minhas dúvidas, que eu não sou culpada por isso” (P3), “No segundo dia que fui

participar da sessão e estávamos discutindo sobre a relação entre pais e avós, até onde

cada um pode chegar. Tanto que eu falei com meu marido sobre isso e ambos falamos com

nossos pais para impor limites e respeitar o espaço da gente. Esse foi, sem dúvida, o maior

aprendizado que eu tirei do grupo e deu muito certo” (P5).

Assim, o grupo de PNP foi lembrado pelas participantes como um instrumento de

apoio e de debate, que permitiu a reflexão de aspectos referentes à maternidade que, muitas

vezes, são deixados de lado no dia a dia do casal. A participação dos maridos em uma das

sessões trouxe uma possibilidade para o diálogo, para a relação de confiança do casal e para o

20
compartilhamento de responsabilidades, além de um novo discurso de desculpabilização pela

ambivalência de sentimentos vivida nessa fase (Arrais, 2006).

É essencial destacar que o trabalho em grupo possibilitou suporte social e promoveu a

coesão e o apoio mútuo entre as gestantes. Klein e Guedes (2008) ressaltam o

compartilhamento de sentimentos presente em uma intervenção grupal como fundamental

fonte de redução da ansiedade, propiciando maior compreensão da situação que está sendo

vivenciada e continente frente às experiências emocionais novas e densas da gestação e da

maternidade. De acordo com as participantes do PNP: “é muito importante ter contato com

outras mães para a troca de experiências” (P1), “É um lugar bom para se conversar, colocar

para fora aquilo o que te incomoda, compartilhar experiências. Ver tudo o que engloba a

maternidade e a paternidade, que nem tudo é um mar de rosas.” (P3), “Vi que algumas

situações que pareciam extremas eram, na verdade, bem comuns, pude presenciar isso no

grupo em várias sessões. Pelo menos pra mim, tive mais segurança.” (P4), “Tive a

oportunidade de falar e expor minhas angústias e meu medo. Também foi fundamental estar

no meio social com pessoas tão semelhantes.” (P5).

Em todas as falas, nota-se uma forte identificação grupal, a qual propiciou processos

de aprendizagem grupal através da união das participantes e de catarse por estarem discutindo

questões semelhantes que afligiam ao grupo como um todo. Ao sentir a coesão do grupo, as

participantes puderam, ainda, sentir-se acolhidas e solidárias umas às outras (Muniz; Taunay,

2000), tal como ilustra o relato de uma das participantes: “(...) uma troca positiva entre as

mães, profissionais competentes que eu adorei ter conhecido. Senti que contribuí com as

outras de alguma forma.” (P4). Segundo Zimerman (2000), o caráter autorregulatório do

grupo possibilita “um eco de reciprocidade no exercício da técnica e prática grupal” (p. 87),

transformando interesses comuns em “interesses em comum”, o que faz com que seus

membros encontrem auxílio entre si. Ou seja, as próprias participantes foram agentes da

21
mudança. Lembre-se, entretanto, de que processos como a identificação também podem

ocorrer em outros ambientes, como em blogs ou em grupos de bate-papo. Contudo, no

contexto desta pesquisa, o grupo de PNP atuou como um facilitador para esse processo

grupal.

Por fim, os resultados de não desenvolvimento da DPP, mesmo diante de tantos

fatores de risco presentes no grupo-intervenção, sugerem que a participação no grupo de PNP

promoveu prevenção primária à saúde dessas mulheres, sobrepondo-se à psicoprofilaxia,

promovendo uma postura de preparação afetiva (Klein & Guedes, 2008; Maushart, 2006). O

PNP, aliado também à presença dos demais fatores de proteção e ao diagnóstico e tratamento

preventivo da depressão durante a gestação (P1), agiu como mais um fator de proteção: “não

cheguei a ter depressão, mas acredito que, se tivesse, o grupo me ajudaria emocionalmente”

(P5), “com o grupo evitei algo pior que poderia acontecer” (P1).

À luz da Psicologia Positiva, mantém-se a defesa de que o grupo pode atuar como

fator de proteção à DPP, por meio da promoção do bem-estar subjetivo e de mecanismos de

resiliência, que auxiliaram as gestantes, e agora mães, a não apenas não evidenciarem a DPP,

mas também a adquirirem ferramentas emocionais para lidar com as turbulências, dúvidas e

incertezas do ciclo gravídico-puerperal (Bortoletti, 2007; Santos, 2013; Yunes, 2003).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo possui relevância social e científica na medida em que pode ser utilizado

como ponto de partida para iniciativas públicas e privadas de apoio à mulher durante seu ciclo

gravídico-puerperal. O PNP, atrelado ao programa de pré-natal tradicional, constitui-se em

ferramenta de baixo custo, que pode ser implementada por equipes multidisciplinares, em

hospitais públicos e privados, clínicas da mulher e outros espaços, abrigando possibilidades

de intervenção multidisciplinar. Os benefícios experimentados pelas participantes apontam

que uma proposta de saúde integral não se limita apenas à prevenção da DPP, mas permite

22
que as transformações da gestação e puerpério sejam vivenciadas de forma saudável e que,

principalmente, investimentos afetivos na vinculação com o bebê sejam contemplados.

Ao propor um trabalho interventivo e terapêutico envolvendo o casal, a pesquisa-ação

propiciou um ganho inestimável para o desenvolvimento psicológico do bebê, pouco

enfatizado nos cursos de pré-natal tradicionais: a discussão de um projeto de parentalidade.

Os conteúdos relativos à proposta de educação dos filhos, bem como a compreensão dos

aspectos evolutivos da criança, foram demandados nos momentos grupais. Embora não tenha

sido tratado de modo informativo, foi possível notar o quanto há carência desse tipo de

abordagem. O preparo afetivo da maternidade e da paternidade requer que se dialogue a

respeito das intenções educativas, o que, no puerpério e em fases posteriores, pode gerar

conflitos que atinjam a conjugalidade, daí sua adequação ao PNP.

A pesquisa, entretanto, enfrentou limitações. Cabe citar a dificuldade de reencontrar as

grávidas no período de avaliação pós-parto. A adequação de agenda e a nova rotina com o

bebê, muitas vezes, dificultaram o andamento célere da pesquisa, no entanto, não

impossibilitou sua conclusão. Outras limitações se referem ao número reduzido de

participantes e ao fato de as dez mulheres terem bom nível socioeconômico e terem sido

acompanhadas em estabelecimentos privados. Propõe-se a aplicação dessa intervenção em

unidades da rede pública de saúde, de forma contínua e regular, também como alvo de

avaliação, tal como feito no estudo descrito neste capítulo.

A contribuição tanto para a psicologia da saúde quanto para a psicologia perinatal faz-

se no sentido de promover maior conscientização da equipe multidisciplinar que atua junto às

gestantes participantes de pré-natal, a fim de que o trabalho psicoprofilático do PNP seja

divulgado e implementado nas redes pública e particular, com a visão de integralidade da

saúde da mulher.

23
Defende-se, portanto, com este trabalho, não generalizar as experiências vividas de

forma extremamente subjetiva por essas mulheres, participantes da pesquisa, mas ressaltar o

que as difere e o que as une, promovendo o fortalecimento de estratégias de resiliência e de

bem-estar para um novo sentido de maternidade (Yunes, 2003), equilibrado por alegrias e

decepções, por angústias e reflexões. O PNP emerge como um bom caminho para começar.

24
REFERÊNCIAS

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28
06
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLÍNICA

AS CONFIGURAÇÕES SUBJETIVAS DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO:


PARA ALÉM DA PADRONIZAÇÃO PATOLOGIZANTE

ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS

Tese apresentada como requisito parcial à obtenção


do título de doutor em Psicologia,
Departamento de Psicologia Clínica,
Instituto de Psicologia,
Universidade de Brasília.

Orientador: Prof.. Dr. Fernando Luiz González Rey

Brasília - DF
2005
2

Tese apresentada ao Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da


Universidade de Brasília, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Luiz González Rey.

Tese aprovada por:

___________________________________________________

Prof. Dr. Fernando Luiz González Rey – PUCAMP e IP/UNB


Presidente

___________________________________________________
Profª. Dr.ª Ana Lúcia Galinkin –IP/ UNB
Membro

___________________________________________________
Profª. Dr.ª Tânia Mara Campos de Almeida – UCB
Membro

__________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Neubern - UNICEUB
Membro

___________________________________________________
Profª. Dr.ª Liana Fortunato Costa - IP/UNB
Membro

___________________________________________________________
Profª. Dr.ª Tereza Cristina Cavalcanti F. de Araujo- IP/UNB
Suplente
3

Mãe

Renovadora e reveladora do mundo


A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?


Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.


Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.

Cora Coralina
4

Aos meus pais Luiz e Ivaniza


...a quem não tenho palavras para agradecer a vida que me deram e continuam a
dar, nas suas diárias demonstrações de cuidado, amor e apoio.
Às minhas filhas Ana Clara e Sofia
.....que mudaram minha vida para sempre, e me ensinam a ser mãe a cada dia,
abrindo novas zonas de sentido jamais pensadas antes...
5

AGRADECIMENTOS

Nenhuma história de vida pode ser escrita sem a


presença de mãos amigas que se estendem em nossa direção

Atingir um alvo é sempre um desafio. Exige mudanças, recusas, isolamento e até


mesmo sofrimento. Contudo, quando se atinge o motivo de tantas transformações, faz-se
necessário comemorar, agradecer. A todos, que participaram desta conquista, meus sinceros
agradecimentos.
Aos meus alunos do curso de graduação em psicologia da Universidade Católica de
Brasília, pois no exercício de ensiná-los, orientá-los e supervisioná-los, me ajudaram a pensar,
refletir e a construir este trabalho. Refiro-me principalmente, às minhas “alunas/filhas”:
Ludimila, Luciana, Letícia, Edna, Caroline, Kátia Rosa, Manoela, Cheila, Queila, Glauciene,
Fernanda.
Aos meus colegas docentes da Universidade Católica de Brasília, em especial às
amigas-professoras Alessandra Rocha de Albuquerque, Maria Aparecida Penso, Gleicimar
Gonçalves Cunha, Cibelle Antunes Fernandes, Claudiene Santos e Sílvia Lordello que
gentilmente dividiram comigo os seus conhecimentos e suas experiências, me apoiando e
ouvindo durante o longo percurso de construção deste estudo. Agradeço, também ao Prof.
Luciano Espírito Santo, e às secretárias Rose e Elaine, que viabilizaram o trabalho de campo
no Centro de Formação em Psicologia Aplicada – CEFPA, da UCB.
Aos professores de psicologia da UnB, pelo repasse de conhecimentos essenciais para
minha formação de docente e pesquisadora, principalmente, às professoras doutoras Gláucia
Diniz e Ana Lúcia Galinkin, que me introduziram na perspectiva da Psicologia do Gênero e à
estimada professora Albertina Mitjans Martinez, pelas valiosas orientações epistemológicas e
metodológicas da pesquisa qualitativa.
As minhas queridas amigas Regina e Conceição, pela confiança e estímulo, e em
especial as minhas comadres Ana Cláudia Miranda, pelo companheirismo, e Iracema
Malheiros, pelo incentivo e pela carinhosa apreciação desta tese.
Por último, porém o mais importante, agradeço a Deus, pois tenho clareza da Sua
presença, intervindo por mim, em todos os momentos da construção deste trabalho. Tenho
certeza de que Sua mão me segurou e guiou, sobretudo nos momentos mais angustiantes e
conflitantes desta caminhada.
6

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Existiram ainda algumas pessoas a quem devo agradecimentos especiais, pois, sem
elas, esta tese, com certeza, não seria uma realidade.
Às mães participantes do estudo e tantas outras pacientes que, através de seus
legítimos sofrimentos, têm me mostrado, dia após dia, um grande sentido para minhas
inquietações profissionais e pessoais.
Ao meu prezado orientador, Prof. Dr. Fernando Luiz González Rey, que me
acompanhou como um pai atencioso, no árduo processo de gestar uma tese de doutorado,
sempre confiando em mim, mesmo em momentos em que nem eu acreditava que mais esta
“filha” chegaria a nascer.
À minha estimada analista, Dra. Maria Fátima Silveira dos Santos, que me OUVE e
me ajuda a renascer como mulher, transformando a idéia de mãe “desnaturada” em vivência
de mãe “in natura”. A ela meu eterno agradecimento.
Às minhas prezadas “ajudantes para assuntos domésticos”, Adelcina e Márcia, que
zelaram por mim, pelas minhas filhas e pela minha casa, enquanto eu me dedicava à
construção desta tese.
A toda minha família, em especial: aos meus preciosos pais Luiz e Ivaniza, que
implantaram em mim a curiosidade e o acreditar, por terem proporcionado a minha formação
profissional, pelo suporte afetivo e apoio incondicional.
Às minhas amadas filhas, Ana Clara e Sofia, que aceitaram afetuosamente dividir sua
mãe com esta produção acadêmica, na esperança de um dia poderem sentar à sombra da
árvore que eu estou plantando agora e colher seus frutos.
Ao meu esposo Alex, meu eterno companheiro que me acompanha desde o ensino
fundamental, incitando-me, questionando e ajudando a resignificar os sentidos que minha vida
toma...
7

LISTA DE QUADROS

Quadro 1- Caracterização das participantes da pesquisa..........................................................83

Quadro 2 - Como as mães se definem antes e depois da maternidade...................................108

Quadro 3 - Definição dos maridos sobre os papeis maternos e paternos...............................125


8

INDICE
INTRODUÇÃO – Por que a depressão pós-parto?................................................. 1

PARTE I - FUNDAMENTOS TEÓRICOS............................................................ 5

CAPÍTULO 1 – Caracterizando o puerpério.......................................................... 6


1.1 – Os distúrbios do puerpério............................................................................ 6
1.1.1 – O blues puerperal........................................................................... 7
1.1.2 – A psicose puerperal ....................................................................... 8
1.1.3 - O distúrbio de pânico pós-parto..................................................... 8
1.1.4 - A depressão pós-parto.................................................................... 8

CAPÍTULO 2 - Um olhar subjetivado: uma crítica ao diagnóstico


padronizado da depressão pós-parto............................................ 14
2.1 - A cisão entre mente e corpo.......................................................................... 14
2.2 - A tendência da psicologia à fragmentação e à padronização do sujeito....... 15
2.3 - Os novos caminhos para a ciência psicológica: a valorização da
subjetividade.................................................................................................. 17
2.4 – A teoria da subjetividade de González Rey................................................. 17
2.4.1 - A categoria de sentido subjetivo.................................................... 18
2.4.2 - A categoria de configuração subjetiva........................................... 19
2.4.3 - A categoria de subjetividade.......................................................... 20
2.4.4 - A categoria de sujeito..................................................................... 22
2.5 – Crítica à perspectiva psicanalítica da depressão pós-parto....................... 22

CAPÍTULO 3 - A perspectiva sócio-histórica e suas contribuições para a


construção da maternidade e da depressão pós-parto................ 25
3.1 - A importância do olhar histórico-cultural sobre o papel da mulher
na sociedade.................................................................................................. 25
3.2 - A construção histórica da subjetividade feminina na tradição ocidental: de
Eva a Maria........................................................................................................... 25
3.3 - O processo de naturalização da maternidade................................................ 27

3.4 - O mito do amor materno e da maternidade exclusiva................................... 31

CAPÍTULO 4 – A mãe contemporânea: nova história, velhas 35


representações.........
4.1 – O declínio do patriarcalismo e o impacto dos movimentos feministas na
sociedade....................................................................................................... 35
4.2 - A perspectiva de gênero como categoria de análise...................................... 36
4.3 - A mulher e a família na atualidade............................................................... 37

PARTE II - FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS........................................... 43

CAPÍTULO 5 – A construção do estudo................................................................. 43


5.1 - O embate epistemológico da atualidade....................................................... 43
5.2 - A crise dos paradigmas................................................................................. 43
5.3 – O campo epistêmico da psicologia e seus impasses: os caminhos
9

alternativos para a ciência psicológica........................................................ 46


5.4 - A escolha metodológica................................................................................ 47
5.5 – A epistemologia qualitativa: a ciência enquanto produção humana............ 48
5.5.1 - O conhecimento é uma produção construtiva-interpretativa........... 48
5.5.2- Caráter interativo do processo de produção do conhecimento.......... 48
5.5.3 - Significação da singularidade como nível legítimo da produção do
conhecimento.................................................................................. 49
5.5.4 - O problema de pesquisa.................................................................... 49
5.5.5 - O papel da teoria na construção do conhecimento........................... 50
5.5.6 - O papel do empírico na produção de conhecimentos científicos..... 50
5.5.7 - Os instrumentos como recursos alternativos para produção de
informações...................................................................................... 50
5.5.8 - “Os dados não são dados”................................................................. 51

CAPÍTULO 6 – A construção do objeto.................................................................. 52


6.1 - O percurso de pesquisador............................................................................ 52
6.1.2 - Quem é a pesquisadora?.................................................................... 52
6.2 - Aproximação do objeto de estudo................................................................. 54
6.3 - Objetivos geral e específicos do estudo....................................................... 57

CAPÍTULO 7 – A construção do método................................................................ 58


7.1 - Apresentação das mães participantes da pesquisa........................................ 58
7.2 – Recursos instrumentais para produção de informações............................... 58
7.2.1 – Instrumento de completamento de frases....................................... 59
7.2.2 - Entrevista de acolhimento/triagem................................................... 59
7.2.3 - Grupo de apoio e orientação a mães com depressão pós-parto........ 60
7.3 - Os caminhos do momento empírico.............................................................. 61
7.3.1 - Primeiros contatos com o campo de pesquisa.................................. 62
7.3.2 - Primeiros contatos com as mães- participantes do estudo................ 62
7.4 - Procedimentos para construção das informações......................................... 64

PARTE III - RESULTADOS E DISCUSSÃO......................................................... 68

CAPÍTULO 8 – Construções a partir da vivência das participantes.................. 68


8.1 - Organização das informações sobre as participantes da pesquisa................ 69
8.2 - Apresentação e discussão dos casos.............................................................. 69
8.2.1 – Construções a partir das informações de Gabriela.......................... 69
8.2.1.1 - Núcleos de sentido de subjetivo construídos para
Gabriela............................................................................. 74
8.2.2 – Construções a partir das informações de Larissa............................ 78
8.2.2.1 - Núcleos de sentido subjetivo construídos para
Larissa................................................................................ 84
8.2.3 - Construções a partir das informações de Lúcia............................... 88
10

8.2.3.1 - Núcleos de sentido subjetivo construídos para Lúcia........ 93


8.2.4 - Construções a partir das informações de Isabela............................. 97
8.2.4.1 - Núcleos de sentido subjetivo construídos para
Isabela................................................................................. 100

CAPÍTULO 9 –.As zonas de sentido........................................................................ 103


9.1 Zona a: Ser mãe é padecer, mas não no paraíso............................................ 103
9.1.1 - A ambivalência materna: esta ilustre (des) conhecida....................... 107
9.1.2 - Retirando o manto sagrado da amamentação..................................... 110
9.2 Zona b: A mãe desnaturada: a luta pela maternidade inclusiva................... 114
9.3 Zona c: Identidade de enferma: a naturalização da depressão pós- 119
parto................................................................................................
9.4 Zona d: Não basta ser pai, tem que participar!............................................ 123
9.4.1. O novo pai.......................................................................................... 129
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 132

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 139


11

ANEXOS

Anexo A Instrumento de Completamento de Frases


Anexo B Ficha de inscrição do CEFPA
Anexo C Termo de Compromisso do CEFPA
Anexo D Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Anexo E Planejamento e realização do grupo de apoio e orientação a mães com
depressão pós-parto
Anexo F Técnica de recorte e colagem de Gabriela: “ Ser pai é...”
Anexo G Técnica de recorte e colagem de Gabriela: “ Ser mãe é...”
Anexo H Técnica de recorte e colagem de Larissa: “ Ser mãe é...”
Anexo I Técnica de recorte e colagem de Júlia: “ Ser mãe é...”
12

RESUMO

Arrais, Alessandra da Rocha (2005). As configurações subjetivas da depressão pós-parto:


para além da padronização patologizante. Tese de doutorado. Curso de Pós-Graduação em
Psicologia. Universidade de Brasília.

Esta tese é o resultado de um estudo qualitativo, baseado na Epistemologia Qualitativa


(González-Rey, 2005), cujo principal objetivo foi compreender as configurações subjetiva que
estão na base da depressão pós-parto (DPP) em mães com este diagnóstico. Este escrito trata
especialmente de 4 dos 13 casos atendidos no Grupo de apoio e orientação a mães com DPP,
desenvolvido na Universidade Católica de Brasília, sob minha coordenação. Foi utilizada uma
diversidade de recursos instrumentais para a construção de informações: a entrevista de
acolhimento, as sessões do referido grupo, o instrumento de completamento de frases e
técnicas projetivas. Os indicadores elaborados por meio da análise construtivo-interpretativa
levaram a construção de quatro zonas de sentido acerca da configuração subjetiva da DPP:
“ser mãe é padecer, mas não no paraíso”; “a mãe desnaturada: a luta pela maternidade
inclusiva”; “identidade de enferma: a naturalização da DPP” e “não basta ser pai, tem que
participar!”. Este trabalho forneceu-nos elementos reveladores sobre o quão prejudicial pode
ser o ideal de maternidade, historicamente apresentado às mulheres como natural e instintivo.
Esse ideal integrado a outros elementos subjetivos como, conflitos conjugais e parentais e
com a vida profissional, se potencializam na configuração subjetiva da maternidade, por meio
dos sintomas da DPP. Portanto, os sentidos subjetivos da DPP não estão limitados ao espaço
simbólico, nem real da maternagem em si, mas está integrado por núcleos de sentido subjetivo
gerados em outras zonas de sentido da vida da mulher. Assim, esta investigação mostrou-nos
que a DPP tem configurações subjetivas que, como qualquer outra configuração humana, se
constitue de uma multiplicidade de sentidos altamente subjetivos da história da pessoa e do
contexto em que ela vive e foi criada. Por essa razão, este estudo serviu para reforçar nossa
crítica a padronização e patologização da DPP, preferindo considerar a mãe sob este
diagnóstico como uma mulher recém-parida em sofrimento!

Palavras-chaves: Depressão pós-parto, ambivalência materna, mito da mãe exclusiva,


subjetividade.
13

RESUME

Arrais, Alessandra da Rocha (2005). Les configurations subjectives de la dépression post-


partum: au delà de la standardisation pathologique. Thèse de doctorat. Cours de Post-
Graduation en Psychologie. Université de Brasília.

Cette thèse est le résultat d’une étude qualitative basée sur l’Epistémologie Qualitative
(Gonzalez-Rey, 2005) dont le but principal fut de comprendre les configurations subjectives
qui sont à la base de la dépression post-partum (DPP) chez les femmes ayant eu ce diagnostic.
Cet écrit analyse spécialement 4 des 13 cas suivis par le Groupe d’appui et d’orientation aux
mères en DPP développé á l’Université Catholique de Brasília, sous ma coordination. Une
diversité de recours instrumentaux fut utilisée pour la construction des informations:
l’entretien d’accueil, les séances du Groupe d’appui, le instrumente de finalisation des phrases
et les techniques de projection. Les indicateurs élaborés par l’intermédiaire de l’analyse
constructive-interprétative aboutirent à la construction de quatre zones de sens à propos de la
configuration subjective de la DPP: être mère c’est souffrir, mais pas au paradis; la mère
dénaturée ; la lute pour la maternité non exclusive;l’identité d’infirme: la naturalisation de la
DPP; et il ne suffit pas d’être père, il faut participer. Ce travail nous a fourni des éléments
révélateurs sur comment l’ idéal de maternité peut porter préjudice aux femmes dans la
mesure où historiquement il leur a été présenté comme naturel et instintife. Cet idéal, intégré
aux autres éléments subjectifs tels que les conflits conjugaux et parentaux ainsi que ceux liés à
la vie professionnelle, s’amplifie dans la configuration subjective de la maternité à travers les
symptômes de la DPP. Alors, les sens subjectives de la DPP n’est limité ni à l’espace
symbolique ni à l’espace réel du maternage en soi, mais il est intégré par des noyaux de sens
subjectifs créés dans d’autres zones de sens de la vie de la femme. Ainsi, cette investigation
nous a montré que la DPP a configurations subjectives qui se constitue d’une multiplicité de
sens hautement subjectifs de l’histoire de la personne et du contexte où elle vie et a été élevée.
Pour cette raison cette étude a servi à renforcer notre critique sur la standardisation et la
pathologisation de la dépression post-partum et a préféré considérer la mère ayant ce
diagnostic comme une femme souffrante venant d’accoucher !

Mots clés: dépression post-partum, ambivalence maternelle, mythe de la mère exclusive,


subjectivité.
14

ABSTRACT

Arrais, Alessandra da Rocha (2005). The subjectives configurations of postnatal depression:


for beyond the standardizated pathology. Doctorate thesis. Postgraduate Course in Psycology.
University of Brasilia..

This thesis is the result of a qualitative study, based on the Qualitative Epistemology
(González-Rey, 2005), whose main objective was to understand the subjectives configurations
that forms the base of postnatal depression (PND) in mothers with this diagnosis. This paper
especially focuses on 4 of the 13 cases attended in the Group of support and orientation for
mothers with PND, developed at the Catholic University of Brasilia, under my coordination.
A variety of instrumental resources for the construction of information were used: coaching
interview, group sessions, sentence-completion instrument and projective techniques. The
indicators elaborated by the constructive-interpretive analysis led to the construction of four
zones of meaning about the subjective configuration of PND: "To be a mother is to suffer, but
not in paradise"; “the unnatural mother: the fight for inclusive maternity "; “Identity of
patient: naturalization of the PND “and "It’s not enough to be a father, you must participate ".
This work gave us revealing elements to understand how harmful can be the ideal of
maternity. Such an ideal has historically been presented to the women as natural and
instinctive. This ideal when integrated to other subjective elements such as marital and
parental conflicts and within the professional life, it potentializes the subjective configuration
of maternity through the symptoms of PND. Therefore, the subjectives meanings of the PND
is not limited to the symbolic space or to the real space of maternity itself, but it is integrated
by core of subjective meanings generated in other areas of meaning in the woman’s life. Thus,
this research showed the PND has subjectives configurations that, as any other human
configuration, is constituted by a multiplicity of meanings highly subjective in the person’s
history and in the context where she lives and was raised. For this reason, this study served to
reinforce our critical view to the standardized pathology of postnatal depression, preferring to
considerate the mother with this diagnostic as a suffering woman that had just given birth
instead.

Key-Words: Postnatal depression, maternal ambivalent, myth of full-time mother,


subjectivity.
15

INTRODUÇÃO
PORQUE A DEPRESSÃO PÓS-PARTO?

O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o nascimento de um bebê? Como
entender que esse momento considerado tão feliz e esperado do ciclo vital familiar se
transforme em um momento depressivo? Por quê a chegada do bebê parece ter o poder de
provocar um estado depressivo na mãe?
No período pré-natal, muitas vezes, as preocupações giram apenas em torno do chá de
bebê, do quarto, do enxoval e das demais providências práticas a serem tomadas para a
chegada de um filho. É rara a discussão séria acerca das dificuldades emocionais que a grande
maioria das mães vivencia no período do parto e pós-parto, bem como sobre as tarefas
familiares que o casal tem a cumprir para ultrapassar esta etapa. Quando esses temas surgem,
geralmente ocorrem em tons de brincadeira e de forma caricata, que não provocam a reflexão
necessária.
Certamente, carregar no próprio corpo um novo ser pode ser uma oportunidade ímpar
e fascinante. Uma promessa de esperança, um potencial de luz, de continuidade e de amor.
Entretanto, a maternidade implica em alterações em diversos espaços da vida da mulher,
sejam eles pessoais, emocionais, profissionais ou sociais, que podem acarretar em mais
sofrimento do que se pode supor. especialmente, porque a maternidade é uma viagem sem
direito ao “bilhete de volta”. É um processo que tem um início, mas não tem um
fim..Portanto, trata-se de uma função que implica um caráter de extrema responsabilidade,
complexidade e longevidade (Bacca, 2005). Uma vez mãe, sempre mãe...
Ser mãe, no sentido de gerar, é uma possibilidade exclusiva da mulher. Inerente a essa
realidade, entretanto, é comum essa potencialidade originar crises, conflitos e sentimentos
contraditórios entre si. Erikson (1976) ilumina nossas idéias nessa direção, ao lembrar-nos
que cada uma das fases evolutivas do ciclo vital de uma pessoa carrega em si uma situação
potencialmente crítica, a qual pode ocasionar uma crise, sendo esta entendida como uma
ruptura do status quo psíquico que requer novas respostas adaptativas. Portanto, a crise da
depressão pode ocorrer em qualquer época da vida, inclusive durante momentos socialmente
felizes, como o parto e o nascimento de um filho (Ribeiro, 2002).
O puerpério é um desses períodos vulneráveis, constituindo-se portanto como um
período de risco psiquiátrico aumentado no ciclo de vida da mulher (Erikson, 1976). Por essa
razão, acreditamos que o pós-parto seja um momento peculiar para avaliar os recursos
subjetivos de uma mulher, período que pode nos dizer muito a respeito da configuração
subjetiva de cada uma delas e, conseqüentemente da depressão pós-parto (DPP).
Na fase pós-natal, a sociedade espera que a mãe esteja muito feliz e satisfeita com o
seu novo rebento. Todos cobram da mulher grávida estar radiante: seu companheiro, sua
família, seus amigos e até os profissionais que a assistem na gestação, e, por isso, geralmente
desconsideram seus reais sentimentos. As mesmas atitudes são vistas no pós- parto. Poucos
sabem, e ainda trata-se de um tabu na sociedade ocidental, que a maternidade é vivida, por
muitas mulheres, com mais sofrimento do que prazer (Lucena, 2004). Ao contrário do
esperado, a literatura, minha experiência como mãe e nossa prática com gestantes e puérperas
nos mostram que a maioria das mulheres, sobretudo as de classe média e alta, encontra na
vivência da maternidade algum nível de sofrimento psíquico, físico e social no período pré e
pós-parto. Normalmente, nessas fases, observa-se nas mães uma vivência relativamente
contínua de tristeza ou de diminuição da capacidade de sentir prazer (Santos, 1995), a qual
poderá ser transitória ou se cronificará caso não sejam assistidas adequadamente.
A percepção de sentimentos de tonalidades negativas e contraditórias, justamente no
momento quando só deveria existir espaço para a plenitude e a felicidade, provoca em muitas
mães uma sensação de estranhamento e inadequação. Tanto na gestação quanto no pós-parto,
16

são comuns assertivas do tipo: “ Você está com saúde, vai ser mãe, o que mais você quer?”,
“Reaja, gravidez não é doença!” “Como você pode estar triste, com um bebê tão lindo nos
braços?”. Se a mulher ousa expressar qualquer sentimento negativo, mesmo em relação à
gestação ou a uma não–aceitação temporária da gravidez, ou por estar enjoando muito, ou por
ter parado suas atividades pelas intercorrências de uma gravidez de risco, logo se diz que “ela
está rejeitando o filho”.
Esse tipo de associação é superficial, de cunho excludente e pejorativo, que acarreta
na caracterização da mãe com DPP como uma “aberração da natureza”. Assim, a mulher
nesse caso sofre duplamente: primeiramente, pelos sentimentos negativos vivenciados e,
segundo, pela culpa em senti-los. Tudo isso, pouco alivia a dor da mãe com depressão,
quando não atrapalha ou agrava o seu sofrimento, pois a isola, a culpabiliza e a impede de
pedir ajuda. Por sentirem-se na “contra-mão” do que é socialmente esperado e desejado, a
mãe quase sempre reluta em relatar seu incômodo a outros e a pedir ajuda profissional,
mesmo que sinta muitas dificuldades no desempenho de tarefas maternas e domésticas e que
consiga perceber a sua alteração no humor.
Por isso, este sofrimento psíquico é vivido isoladamente e, o que é pior, sem um
acompanhamento profissional especializado, podendo acarretar na cronificação dos sintomas
depressivos ou somáticos e num prejuízo para a relação mãe-bebê-pai. Santos (2001, p. 20)
reafirma isso ao mostrar-nos que “a depressão pós-parto é raramente trazida para o
consultório por quem a experimenta, é vivida com dolorosa perplexidade, com
questionamentos morais, mas sobretudo, em silêncio”. A autora acrescenta ainda que este é
um fato constatado em pesquisas estrangeiras e que se repete no Brasil.
Isso acaba acarretando não só em uma pobreza estatística sobre o fenômeno, como
também em um parco interesse e um número restrito de publicações científicas sobre o tema.
Esta realidade se reproduz na psicologia, haja vista a constatação de nossa revisão
bibliográfica revelar que a DPP é um tema ainda pouco explorado. Dentre os escassos
trabalhos psicológicos que abordam esse assunto, muitos o interpretam do ponto de vista do
bebê, levando em consideração apenas as conseqüências negativas da DPP para o
desenvolvimento e a constituição da personalidade deste, como nos estudos de Camorotti
(2001), Catão (2002), Ribeiro (2002), Andrade (2002) e Schwengber e Piccinini (2003). Estes
não se atentam aos profundos prejuízos que ela pode trazer também para as mães e para a
díade mãe-bebê, e até mesmo, para a tríade mãe-pai-bebê. O último relatório sobre a saúde da
mulher do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil, 2004) nos confirma essa tendência unilateral
em prol do bebê.
Particularmente, nós advogamos que a DPP e seu prolongamento pode ter
conseqüências ruins não só para o desenvolvimento emocional e cognitivo do bebê, como
também sobre o bem-estar da mulher, sua saúde física e psíquica, seus relacionamentos
conjugal, familiar e social, a qualidade de sua vivência materna, e sobretudo, para o seu
processo global de subjetivação como mulher. Por essas razões, nessa investigação, optamos
deliberadamente, assim como fizeram Badinter (1985), Serrurier (1993), Parker (1997), Forna
(1999) e Azevedo (2003), por escutar o “lado” das mães e a versão dada por elas, sobre as
suas percepções da vivência da maternidade.
Assim, focalizamos a DPP do ponto de vista da mulher/mãe sem, contudo, esquecer o
aspecto essencial do relacionamento mãe-filho, mas procurando excluir qualquer
determinismo linear do tipo causa e efeito. Para nós, existe uma diversidade tão grande de
sentidos subjetivos para as mães, para os bebês e seus familiares, que nos impede de manter
um olhar reducionista e linear sobre a maternidade e a depressão após o parto. Isso nos
impulsiona para olhar a complexidade destes fenômenos e dos sujeitos neles implicados.
É sabido que a DPP acontece com mulheres de todas as idades, classes sociais e de
todos os níveis escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que desejam muito ter um filho,
17

bem como aquelas que não aceitam o fato de ter engravidado. Pode ocasionar-se no
nascimento do primeiro filho, do segundo, do terceiro, ou de outros. Os autores que estudam
essa temática têm posições diversas sobre o aparecimento da DPP, e a literatura não é
concorde quanto a sua etiologia.
Temos percebido que o sentido subjetivo da maternidade e da DPP é diferente em cada
mãe concreta, e a visibilidade de cada configuração subjetiva será o resultado de inúmeros
desdobramentos que são sensíveis a integrações de sentido associadas a diferentes áreas da
vida da mulher, mantendo assim uma processualidade constante em diferentes formas de
organização e expressão. Isso significa que tanto os papéis de mãe, de filho, de pai e os
sintomas da DPP estão intimamente relacionados aos conceitos de configuração de sentidos
subjetivos, sujeito e subjetividade de cada um deles. Por essa razão, esses serão conceitos
“âncoras” na nossa pesquisa, a qual terá como parâmetro epistemológico e metodológico a
Teoria da Subjetividade e a Epistemologia Qualitativa desenvolvidas por González Rey
(1992, 1993, 1995, 1997, 1999, 2001, 2002, 2004, 2005a, 2005b), dentro da perspectiva
histórico-cultural.
No nosso entender, essas categoria conceituais são essenciais para o estudo
psicológico do homem e da mulher, pois expressam a rota diferenciada de produção de
sentido subjetivo para cada pessoa e, por isso, apresentam melhores recursos para acessar a
complexidade do nosso tema de estudo – a mãe com DPP. Suspeitamos que seja justamente
esta configuração multifacetada e de sentidos subjetivos que compreende e explica melhor a
razão pela qual nem todas as mulheres apresentam os sintomas da DPP, apesar de todas
sofrerem as bruscas alterações hormonais no parto, como vem sendo justificado na literatura
da área.
Assim, apesar de terem muitos sentidos que podem ser subjetivados de forma
semelhante na vivência da maternidade e do pós-parto, cada mulher terá uma vivência única e
singular, que não deve ser padronizada e nem “vendida” para as demais como o “retrato da
maternidade” e nem “enclausurada” no diagnóstico da DPP. Em outras palavras, levantamos
nesta tese o seguinte questionamento: seria a DPP uma psicopatologia, classificada no CID-
101 (1993) sob a rubrica de F53.0, ou poderíamos suspeitar tratar-se apenas de mais uma
maneira de vivenciar a maternidade? Talvez seja ela uma das formas mais sofridas, porém não
menos legítima que as demais formas mais convencionais de ser mãe. Através dos sintomas
depressivos, a mãe não estaria apenas revelando o lado obscuro da maternidade, socialmente
negado?
Isto posto, não pretendo discutir a relação da DPP a partir da perspectiva biológica,
que confere às alterações hormonais e às modificações corporais grande influência no
comportamento das mães e na a etiologia da depressão puerperal; e nem pela perspectiva
psicodinâmica, como tradicionalmente vem sendo feito sobretudo pelos estudos
psicanalíticos. Mas buscarei privilegiar o fenômeno do ponto de vista histórico-cultural e da
categoria de gênero, que aponta para os contextos e para as transformações históricas
ocorridas nos papéis sociais da mulher e dos homens e na sua integração com a vivência atual.
Assim, assumimos que a motivação para gestarmos o presente trabalho se deve
principalmente a algumas razões de ordem sócio-histórico-culturais, as quais cremos ser
fundamentais considerar quando se pensa na mãe com DPP, como, por exemplo, o fenômeno
da entrada da mulher no mercado de trabalho. Este fenômeno vem provocando
transformações tão profundas no casamento, na família e na sociedade e na saúde da mulher
(Diniz, 1999) que nos levou a acoplar a categoria de gênero ao nosso olhar, com a finalidade

1
Classificação dos Transtornos Mentais e do comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes
diagnósticas. Coord. Organização Mundial da Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas.
18

de ajudar a compreender a saúde da mulher nesse contexto. Dessa forma, não seria a DPP, da
forma como vem se apresentando hoje, também uma conseqüência desta nova realidade?
O primeiro passo para a realização desta investigação foi realizar uma revisão
bibliográfica para conhecer e aprofundar o tema da DPP. Quanto mais se conhecia sobre a
“entidade” da DPP e da maternidade, mais me convencia de que seria necessário incluir uma
contextualização antropológica e histórica da mulher, com ênfase na perspectiva da teoria de
gênero, enfatizando suas três principais dimensões: a relacional, o gênero como construção
social da diferença entre os sexos e como um campo primordial onde o poder se articula
(Scott, 1995).
Por meio dessa ótica, foi possível tecer uma retrospectiva do papel histórico-político
das mulheres no Brasil e no mundo, recuperar a trajetória e os rumos que tomaram a
organização familiar, as condições de subordinação ao homem e o movimento feminista, além
de abordar a construção histórica de mitos e estereótipos que a mulher carrega até os dias
atuais e que ainda pesam nas decisões da justiça e da sociedade. Também foi possível
compreender os papéis sexuais a partir de uma construção social, incluindo o machismo, a
submissão feminina, o sistema patriarcal e a violência.
Outro tópico que mereceu destaque foi a maternidade e a relação pais e filhos,
considerando a difícil tarefa de se tornar mãe. Foi importante conhecer a construção social do
papel feminino, as mudanças no decorrer da história e relacionar as inúmeras amarras
ideológicas no plano social e da própria representação que a mulher tem de si mesma na
família e no mundo.
No entanto, ainda que toda esta revisão teórica fosse bastante instigante, sabia desde o
início que não seria suficiente para contemplar o propósito deste estudo. Era preciso ir a
campo, era preciso “viver” as mães! Ouvir “ao vivo” seus relatos, sofrimentos, alegrias,
dúvidas, medos, conceitos, pré-conceitos, mitos sobre a maternidade e a depressão, pois havia
o desejo de se conhecer “de perto” a vivência da maternagem permeada pela DPP. Para
atender a este propósito, criamos o Grupo de apoio e orientação a mães com DPP, que foi a
nossa maior oportunidade de contato com o momento empírico.
Dessa forma, pretendemos analisar e construir informações sobre as mulheres que
participaram desta investigação, com o objetivo de compreender as configurações subjetivas
que estão na base da DPP, em mães com este diagnóstico. Buscaremos, ainda, tecer uma
análise crítica sobre o diagnóstico de DPP enquanto entidade padronizada, estimulando a sua
despatologização e o apoio psicológico precoce em maternidades. Também é nossa intenção
apresentar uma alternativa teórico-metodológica para a compreensão e estudo da DPP.
Finalmente, temos o forte propósito de trazer uma nova contribuição para iluminar a
compreensão sobre o processos de subjetivação das mães com DPP, na esperança de no futuro
ajudar os profissionais de saúde e os acadêmicos que atuam em áreas da saúde perinatal e do
desenvolvimento humano a evoluir em sua compreensão e maneira de pensar a mãe que se
apresenta depressiva no pós-parto. Esperamos que esta tese nos permita criar fissuras em
territórios tão cristalizados!
19

CAPÍTULO 1
CARACTERIZANDO O PUERPÉRIO...

O puerpério é definido como o período que sucede o parto, podendo estender-se a até
sessenta dias após o nascimento do bebê. Durante esse tempo, o organismo da mulher sofre
uma série de mudanças com o objetivo de retornar ao estado pré-gestacional. Os órgãos e
sistemas envolvidos com a gravidez sofrem um processo regenerativo, havendo também uma
grande adaptação psicológica frente à nova realidade (Corrêa & Corrêa, 1999).
Nesta fase de ajustamento psicológico, além dos sentimentos de plenitude, euforia e
felicidade, também observa-se freqüentemente sentimentos de angústia e ansiedade,
incapacidade para cuidar do outro, baixa auto-estima e a presença de sintomas somáticos,
como alterações do apetite, sono, libido e registro de fadiga, em diferentes graus de
intensidade. Esses sintomas são acompanhados de pensamentos recorrentes nas mães,
relacionados principalmente a: auto- recriminação por não estarem gostando da experiência
da maternidade e/ou do bebê como “deveriam”; o receio de cederem ao impulso agressivo e
machucarem o bebê, ou a si próprias, o que está relacionado a uma presente vontade de
morrer; a culpa, por não estarem cumprindo bem e com satisfação o papel de mãe e a
sobrecarga de trabalho que acreditam estar acarretando a seus companheiros ou a suas
famílias (Santos, 1995; Santos 2000).
Obviamente, muitos desses sintomas, sobretudo nos três primeiros meses após o
nascimento do filho, são transitórios e podem ser considerados reflexos do período de
adaptação que a nova condição de mãe impõe, pois a chegada do bebê, pelo impacto
emocional que ele gera na vida da mãe, do pai e dos demais familiares, congrega talvez a
maior sobrecarga de esforços pelo qual uma mulher pode passar em sua vida. A maternidade
implica em uma mudança radical na vida não só da mãe, mas do casal. Inaugura-se uma nova
família, marido e mulher saltam para uma nova etapa do seu desenvolvimento e avançam
uma geração. Tornam-se pais, deixam de ser cuidados pela geração mais velha para virar
cuidadores de uma geração mais jovem. Porém, nem todos vão consegui fazer esta transição
de papéis de forma tranqüila e alguns podem entrar em crise, a qual pode variar de intensidade
(Erikson, 1976). Veremos que esta variação vai caracterizar os chamados distúrbios do
puerpério (Trucharte & Knijnik, 1995).

1.1- OS DISTÚRBIOS DO PUERPÉRIO

Santos (1995) destaca que há relatos sobre distúrbios mentais no puerpério desde
Hipócrates, em 400 a.C. Em nossa pesquisa bibliográfica encontramos um dos primeiros
registros sobre esses distúrbios em 16172, referente a um comentário sobre uma mulher que,
ao dar à luz, se tornara “melancólica e louca”:

A formosa esposa de Carcinator, que trabalha junto da praça, sempre havia gozado
de ótima saúde, mas depois do parto foi logo atacada de melancolia e durante um
mês ficou como louca. Com a aplicação de remédios adjuvantes voltou à primitiva
saúde. A causa desta doença parece ser o humor melancólico, excitado no tempo de
parturição.

Santos (2001) revela que a história dos estudos sobre a DPP tem uma trajetória mais
linear que a dos distúrbios psicóticos puerperais; sendo que a presença na literatura de estudos
2
Em um relato feito por Rodrigues de Castro e documentado no livro Motherhood and Mental Health, de Ian
Brockington.
20

incluindo quadros moderados de depressão começa apenas na década de 50. O estudo


considerado pioneiro em termos descritivos foi realizado por Pitt (1968, citado por Santos,
2001), o qual afirma que essa síndrome é uma variante branda da depressão fisiológica
freqüentemente vista em mulheres jovens ou personalidades imaturas.
Nas últimas décadas, tais fenômenos têm sido estudados em muitos países onde o
assunto já é reconhecido e tratado como problema de saúde que afeta a população feminina,
com destaque para a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e, mais recentemente, o Japão. De
acordo com Santos (1995), em termos acadêmicos, os transtornos psicológicos do puerpério
vêm recebendo atenção por parte dos pesquisadores e profissionais envolvidos com saúde
mental, culminando na criação, em 1982, da Marcé Society, entidade internacional que tem
como objetivo estimular a pesquisa e a comunicação no campo dos distúrbios mentais do
puerpério. No Brasil, a importância do assunto também já começa a ser reconhecida e,
segundo Santos (1995), foi fundado na década de 90, em São Paulo, o primeiro ambulatório
para tratamento de distúrbios mentais puerperais, no Hospital das Clínicas. Entretanto, os
estudos e publicações em português sobre o tema se restringem a pequenos capítulos no
interior de livros de medicina sobre a gravidez ou preparação para a maternidade.
Atualmente, a DPP se insere em uma trilogia de distúrbios da psiquiatria perinatal
(Santos, 2001), classicamente caracterizada por três entidades distintas: O baby blues ou
Blues Puerperal, as psicoses puerperais e as depressões pós-parto (Trucharte & Knijnik,
1995; Santos, 1995; Miranda & Miranda, 1999; Rocha, 1999; Baptista, Baptista & Oliveira,
1999; Santos, 2001; Catão, 2002). Recentemente um quarto quadro foi acrescentado por
Baptista, Baptista e Oliveira (1999), e por eles intitulado de distúrbio de pânico pós-parto.
Grosso modo, o Blues constitui-se em um distúrbio benigno que desaparece sem seqüelas, a
depressão não acontece antes da sexta semana pós-parto e se assemelha aos sintomas da
depressão em geral e a psicose apresenta sintomas como surto, delírios e alucinações
(Rocha,1999; Baptista, Baptista & Oliveira, 2004). É importantíssimo o diagnóstico
diferencial entre esses quadros, pois a confusão entre eles aumenta ainda mais o preconceito
existente em torno da DPP e inviabiliza o tratamento adequado. Por essa razão,
descreveremos a seguir, sucintamente, cada um destes quadros, mas caracterizaremos com
mais profundidade a DPP, alvo do nosso estudo.

1.1.1 - O blues puerperal

Em torno do terceiro dia após o parto, a maioria das mulheres apresenta o que se
denomina Baby Blues. O aspecto lábil do blues é bastante conhecido pelas mães, e
caracteriza-se basicamente pelo sentimento de tristeza, crises de choro, emotividade
exacerbada, hipersensibilidade e labilidade. Podem ocorrer ansiedade, fadiga e preocupações
excessivas com a lactação e com a saúde do bebê. Pode haver ainda distúrbios cognitivos
leves, como dificuldade de concentrar-se, dificuldade de raciocinar e problemas com a
memória e o choro fácil, mas não chegam a impedir a realização das tarefas pela mãe.
Segundo os estudos clássicos, pesquisados por Rocha (1999), este quadro apresenta
prevalência entre 50 e 80% das puérperas, com média de 66,7% dos casos.
É uma condição benigna que dura de alguns dias a poucas semanas; e é considerada a
forma mais leve dos distúrbios de humor do pós-parto (Rocha, 1999; Ballone, 2001; Botega &
Dias, 2002; Andrade, 2002). É de intensidade leve, não requerendo em geral uso de
medicações, pois é auto-limitado e cede espontaneamente. Por essa razão, o “tratamento” do
pós-parto blues consiste em esclarecimento, compreensão e apoio familiar, sobretudo do
marido (Rocha, 1999). Provavelmente, devido ao seu caráter benigno, não tem sido uma
condição muito estudada (Botega & Dias, 2002).
21

É fundamental esclarecer que a possibilidade de um Blues puerperal evoluir para um


quadro de DPP propriamente, num escalonamento de gravidade, é tido como remota. Um caso
típico de DPP já se instala com características mais severas e intensas, apesar de comumente
estes quadros serem confundidos no início de suas manifestações, sendo distinguidos
posteriormente, pela manutenção e intensidade dos sintomas, para além das duas semanas
preconizadas para o blues puerperal (Ballone, 2001; Botega & Dias, 2002).

1.1.2 - A psicose puerperal

Dentro da fundamentação teórica intitulada conseqüências de um “Mau Puerpério”


(Trucharte & Knijnik, 1995, p. 77), encontramos também a psicose puerperal. Rocha (1999)
esclarece que os distúrbios psicóticos puerperais são perturbações graves, que têm seu início
de forma brusca até três meses após o parto. A puérpera com este distúrbio experimenta
alterações no humor e no teste de realidade.
Trata-se de um quadro com ideação delirante, alucinações e, com freqüência,
alterações de ordem cognitiva. Tem como característica principal a rejeição ao bebê, quando a
mãe sente-se completamente aterrorizada e ameaçada por ele, como se fosse um inimigo em
potencial. Disso decorre o risco aumentado de infanticídio ou de ataque direto ao bebê. Há
também as tentativas de suicídio, mas, em geral, antes de chegar à ação de fato, a puérpera
comunica suas intenções, pedindo ajuda, mas o problema é que raramente são escutadas e
compreendidas (Santos, 1995). Em muitos casos, a internação psiquiátrica e o afastamento
físico do bebê são recomendados para proteção de ambos (Botega & Dias, 2002).
Felizmente, os quadros psicóticos puerperais são muito menos comuns que os de DPP,
apresentando uma incidência de um a dois casos por mil partos realizados. No entanto, a
chance de desenvolvimento de psicose nos três primeiros meses pós-parto é 16 vezes maior
que em qualquer outro período de vida de uma mulher (Rocha, 1999), confirmando a
potencialidade crítica deste período. Para as mulheres que já apresentaram surtos psicóticos
anteriores à gravidez, o risco de recorrência está entre 30%e 50%. (APA, 1994 conforme
citado por Baptista, Baptista & Oliveira, 2004).
Atualmente, se observa no CID.10 (Classificação Internacional de Doenças) uma
tendência a considerá-la, juntamente com a DPP, como um tipo de Transtorno do Humor,
iniciada ou precipitada pelo puerpério. Talvez, por isso, freqüentemente os quadros de psicose
são erroneamente divulgados como DPP, temática de repercussão na mídia.

1.1.3 - O distúrbio de pânico pós-parto

Baptista, Baptista e Oliveira (2004) acrescentaram um outro distúrbio associado ao


puerpério, que ainda não havia sido classificado, até o momento, nas diversas referências que
lemos sobre este tema. O distúrbio de pânico pós-parto é constituído por manifestações de
ordem cognitiva, emocional e comportamental. São eles: palpitações, taquicardia, sudorese,
tremores, pensamentos obsessivos relacionados à morte, perda de controle e sensação de
enlouquecimento e de sufocamento, entre outros. Não encontramos dados sobre a prevalência
deste distúrbio.

1.1.4 - A depressão pós-parto

A depressão pós-parto (DPP) é um episódio depressivo não psicótico. É classificada


assim sempre que iniciado nos primeiros doze meses após o parto. Sua manifestação clínica é
igual a das depressões em geral (Rocha, 1999; Baptista, Baptista & Oliveira, 2004). Ou seja,
a pessoa sente uma tristeza muito grande de caráter prolongado, com perda de auto-estima,
22

perda de motivação para a vida, é incapacitante, requerendo na maioria das vezes o uso de
antidepressivos (Ballone, 2001).
Conforme esclarecido anteriormente, e como qualquer outro tipo de depressão, a pós-
parto atinge mulheres de qualquer idade. Os sintomas do estado depressivo variam quanto à
maneira e intensidade com que se manifestam, pois dependem do tipo de personalidade da
puérpera, da sua própria história de vida, da sua a predisposição natural, das circunstâncias de
sua gravidez, das condições do relacionamento com o companheiro, da situação financeira,
bem como, no aspecto fisiológico, das mudanças bioquímicas que se processam logo após o
parto.
A puérpera pode apresentar-se com um profundo retraimento, necessidade de
isolamento, principalmente se há uma quebra muito grande do que se esperava, tanto em
relação ao bebê idealizado quanto a si própria enquanto figura materna. De acordo com
Botega e Dias (2002), podem existir nessas mães sentimentos ambivalentes em relação à
maternidade e às responsabilidades que a acompanham: "mães deprimidas podem acreditar
que o recém-nascido sofre de doenças ou malformações, podem se sentir culpadas por não
sentirem amor pelo bebê, por não estarem cuidando dele." (p. 291).
A mãe também pode ter uma reação maníaca, apresentar-se cheia de energia, eufórica,
falante, preocupada com seu aspecto físico e com a ordem e limpeza exagerada do ambiente.
As visitas são recebidas calorosamente e parece tão disposta, auto-suficiente, como se não
precisasse de ajuda externa. Em contrapartida, manifesta alguns transtornos do sono,
somatizações, como febre, constipação e outros sintomas físicos. Do mesmo modo, podem
surgir as ansiedades depressivas de modo ocasional ou em acessos de choro, ciúmes,
aborrecimento, tirania ou em expressões de auto-depreciação e de auto-acusação (Santos,
1995, 2001, Andrade 2002).
As mães deprimidas apresentam redução do contato afetivo e maior dificuldade para
expressar sentimentos positivos pelo bebê (Camorotti, 2001; Catão, 2002; Schwengber &
Piccinini, 2003). Elas percebem suas crianças como mais difíceis de lidar e como mais
incômodas. Por essa razão, se não adequadamente diagnosticada e tratada, a DPP pode se
tornar um fator que dificulta o estabelecimento de um vínculo afetivo seguro entre mãe e
filho, podendo interferir nas futuras relações interpessoais estabelecidas pela criança.
Estatisticamente, Santos (1995) apresenta os seguintes dados relacionados à incidência
da DPP: Europa e Estados Unidos apresentam uma freqüência do fenômeno de 10 a 20% na
população de puérperas. Em nosso continente, estudo realizado no Chile encontra freqüência
de 10% em puérperas de classe média. No estudo realizado por Santos (1995, 1999) para
verificação da validade no Brasil da Edimburgh Postnatal Depression Scale, encontrou-se
uma freqüência de 13,4% em amostra de puérperas de nível sócio-econômico elevado.
Portanto, a prevalência, desses quadros depressivos não-psicóticos no pós-parto variam de 7 a
20%, com média de 13%. Porém no recente estudo realizado por Cruz, Simões e Faisal-Cury
(2005), a prevalência de DPP encontrada para municípios do Estado de São Paulo foi de
37,1%. Os autores afirmam que o único trabalho encontrado que obteve resultado semelhante
foi realizado por Cooper e cols (2002, citado por Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005), na
África do Sul, que mostrou prevalência de 34,7%.
Parece não haver diferença entre a prevalência em outros períodos de vida. Estima-se
que o risco de desenvolver depressão, ao longo da vida, seja de 10% para os homens e de 20%
para as mulheres (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). No entanto, há indícios de aumento de
incidência de depressão nas cinco primeiras semanas após o parto (Rocha, 1999; Baptista,
Baptista & Oliveira, 2004).
A maioria dos estudos sobre as prováveis causas da DPP centram-se na causalidade
biológica. Apesar das pesquisas neste sentido não serem conclusivas, de acordo com Santos
(2001), elas partem da premissa de que vários transtornos afetivos estão associados às
23

mudanças hormonais que ocorrem no puerpério, no ciclo menstrual, e na menopausa. Na


gestação, o corpo feminino produz muito mais progesterona do que no seu estado normal, e
parte dela fica concentrada na placenta. Na ocasião do parto, quando a placenta também é
retirada, há uma queda abissal nos níveis hormonais em questão de horas, e esta queda é
apontada como causa determinante para a instalação do quadro de depressão. Assim, sob o
ponto de vista médico, a depressão é resultante da grande variação nos níveis de hormônios
sexuais circulantes (estrogênio e progesterona) e de uma alteração no metabolismo das
catecolaminas (Santos 2001; Botega & Dias, 2002).
Baseados nessa hipótese com ênfase hormonal, se estabelece que, no ciclo vital da
mulher, há três períodos críticos de transição, biologicamente determinados: a adolescência, a
gravidez e o climatério. Essas seriam fases, demarcadas hormonalmente, com acentuada
repercussão comportamental e humoral. Ainda que essas alterações de fato ocorram, não
podemos desconsiderar que, da menarca à menopausa existam rituais, tabus, mitos e
estereótipos que permeiam as relações sociais e que geram transtornos emocionais em
mulheres, especialmente nestes períodos críticos - adolescência, gravidez, menopausa- que
nos levam a crer que as funções reprodutivas constituem um fator de risco para a saúde
mental das mulheres (Diniz, 1999; Ribeiro, 2002). As grandes perspectivas de mudanças
envolvidas nessas fases podem resultar em estados temporários de desequilíbrio, devido a
conflitos de ajustamento aos aspectos sociais esperados e também em reajustamentos
interpessoais e intrapsíquicos e, na identidade da mulher, em função da necessidade de novas
adaptações (Diniz, 1999; Maldonado, Dickstein, & Nahoum, 2000; Botega & Dias, 2002).
Por essas necessidades de ajustamento, para nós esta explicação biológica, por si só,
não tem sido suficiente para justificar o acometimento da DPP. Se considerarmos que todas
as mulheres apresentam essas alterações hormonais, tanto na gravidez quanto no parto, mas
apenas cerca de 20% delas vão apresentar os sintomas depressivos após o parto, podemos
pensar que outros fatores estão envolvidos nesta problemática, e que eles vêm sendo
negligenciados na literatura médica da área. Portanto, apesar de reconhecermos que existe
uma “subjetividade biológica”, relacionada, por exemplo, às diferentes respostas que os
organismos dão ao mesmo medicamento, não estamos convencidos de que um fenômeno tão
complexo, como é uma mulher recém-parida deprimida, possa ser reduzido a uma única
explicação de cunho fisiológico, e de inspiração biomédica! Enfim, concordamos com
Chodorow (1990, p.40) quando ela afirma: “seja qual for a dose hormonal para o
comportamento materno, está claro que tais hormônios não são necessários nem suficientes
para determiná-los”. Na opinião dessa autora, a maternação é marcantemente uma função de
base psicológica, que consiste na experiência pessoal e psicológica do eu materno em relação
ao filho.
Na revisão feita por Baptista, Baptista e Oliveira (2004), os preditores para a DPP
variam segundo diferentes estudiosos. Apesar das controvérsias, a maioria dos estudos por
eles citados, é concorde quanto à relação marital empobrecida, eventos de vida estressantes,
falta de apoio social e história psiquiátrica pessoal e/ou familiar, como fatores mais
freqüentemente mencionados como possíveis causas da DPP. Miranda e Miranda (1999)
acrescentam ainda alguns eventos que aumentam o risco de DPP, a saber: história de
depressão não puerperal (+ 24% de risco), história de depressão gravídica (+35% de risco),
história de DPP prévia (+50% de risco). Outros fatores estão relacionados às condições do
parto e à situação social e familiar da mulher (Ribeiro, 2002). Por outro lado, no estudo de
Cruz, Simões & Faisal-Cury (2005), não se observou associação entre risco de DPP e
características obstétricas, tais como: gestações prévias, abortamento, prematuridade e risco
obstétrico. Mas foi observada que, quanto maior o suporte social do marido, menor a
prevalência de DPP. Ou seja, a presença de suporte social do marido funciona como um
protetor sobre a presença de DPP.
24

Portanto, se a mãe apresentou alguma dessas histórias, ela requer mais atenção dos
familiares e profissionais de saúde desde a gestação (Botega & Dias, 2002); o que
normalmente não é feito nem mesmo pelos obstetras que as acompanham no pré-natal.
Catão (2002) destaca que, apesar da alta incidência, a grande maioria das depressões
pós-parto têm intensidade leve e/ou moderada, por isso podem passar desapercebidas.
Normalmente, os profissionais que estão diretamente envolvidos com as puérperas, como o
ginecologista, o pediatra, profissionais de aleitamento materno, não se atentam para os
sintomas da DPP e têm muita dificuldade de fazer o diagnóstico, tratamento e
encaminhamentos adequados. Constatamos esta falta de atenção especializada em recente
estudo feito por Galvão (2003), que teve como objetivo investigar a representação dos
profissionais de saúde (ginecologistas/obstetras, pediatras, psicólogos e enfermeiros) acerca
da DPP.
Ademais, existe ainda o preconceito de muitos profissionais de saúde em relação a esta
mãe, como podemos observar no relato de uma amiga grávida, que esteve no serviço médico
do seu trabalho:
Sexta-feira eu estive com um ginecologista do serviço médico que me assustou
muito! Fui lá apenas para pegar autorização para o parto e por acaso resolvi
perguntar se ele recebia em seu consultório muitas mulheres que apresentavam
sintomas compatíveis com os da DPP e qual era o seu procedimento nesses casos.
Qual não foi a minha surpresa! Ele me disse que não recebia muito não, mas quando
recebia ele mesmo resolvia, mandava a mulher ir trabalhar, por que esse negócio de
DPP, é coisa de mulher que não tem o que fazer, fica muito
tempo sem fazer nada e por isso acha tempo para frescura. Nossa, essa resposta eu
não esperava ouvir de um profissional da área da saúde, principalmente eu estando
grávida! Daí porque muitas sofrem em silêncio, não é? (Azevedo, 2004)3.

A dificuldade é que a disponibilidade, ou não, de recursos, ainda na gravidez, ou até


mesmo antes dela, não está clara, até porque não se sabe de que recursos a mulher terá que
dispor para enfrentar esta nova condição. Portanto, não se trabalha preventivamente antes da
concepção ou do nascimento. Quando muito, a mulher se prepara para uma maternagem ideal,
mas após o parto ela se depara com uma maternidade real, dura, sem todo o glamour
esperado.
Ainda neste capítulo, achamos importante abordar um tema normalmente associado ao
quadro de DPP e que se generalizou entre o senso-comum e até entre profissionais da saúde e
educação: atrelar a DPP à rejeição e ao infanticídio do filho. Particularmente, fico bastante
incomodada com este tipo de associação, sobretudo quando me deparo com explicações
lineares do tipo causa-e-efeito, como, atribuir a falta de desejo de engravidar como
justificativa para desenvolvimento da DPP, a qual teria como conseqüência a rejeição e até o
infanticídio do filho. É mister esclarecer que tanto a rejeição do bebê quanto o infanticídio
não são preponderantes, nem a principal característica dos quadros de depressão. Muito
menos são presença obrigatória em todos os casos diagnosticados.
Inclusive, cabe ressaltar que há, sim, a presença de impulsos suicidas em mães com o
diagnóstico de DPP (Botega & Dias, 2002). O relatório sobre a saúde da mulher do Ministério
da Saúde, apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida por Laurenti (2002, citado por
Brasil, 2004, p. 46), que levantou um “total de 97 mortes por suicídio associado à depressão
no pós-parto”. Portanto, é o risco de suicídio, assim como em qualquer depressão maior, que
está aumentado, e não o de infanticídio. Como exposto anteriormente, o infanticídio é mais
comum nos quadros de psicose puerperal, apesar de não poder ser descartado para a DPP
como numa situação em que a mãe se suicida junto com o bebê; ou quando ela quer poupar o
filho da mãe incapaz que ela julga ser.

3
Relato escrito por Kátia Rosa Azevedo, em 17/10/04, por e-mail.
25

Cabe ainda esclarecer que considerando isoladamente esta variável “desejo de


engravidar”, podemos incorrer em um erro básico, na avaliação do quadro depressivo e
puerperal. Na opinião de Rohenkohl (2005), a pergunta mais tola e inadequada que se pode
fazer a uma mãe é questioná-la se a sua gravidez e ou se eu filho foram desejados. Essa
autora alerta para o fato de que uma realidade é desejar, outra é querer e outra, ainda, são as
condições físicas, emocionais, conjugais e sociais da mulher naquele momento. A mãe pode
estar vivendo uma situação de perda, de luto, de tristeza, ou de abandono pelo parceiro ou por
sua família e esses sentimentos podem estar misturados aos demais que nutre pelo filho,
fazendo com que pense que rejeita o filho que carrega em seu ventre nos alerta Bacca (2005).
É preciso, antes de mais nada, ajudá-la a separar os sentimentos, sugere Rohenkohl (2005).
Pode-se pensar que o mesmo tipo de mistura de sentimentos acontece no pós-parto.
Baptista, Baptista e Oliveira (2004) alertam para a importância de se considerar que as
puérperas podem associar as sensações do blues e da depressão puerperal com um sentimento
negativo em relação a maternidade e ao bebê. Ele concorda com Rohenkohl (2005) sobre o
fato de que se faz necessário distinguir se os sentimentos conflituosos da mulher se
relacionam a si mesma no papel de mãe, ao bebê, ao companheiro ou a si mesma, como filha
de sua própria mãe.
Trucharte e Knijnik (1995) falam de um outro aspecto importante. Muitas vezes a
mulher consegue amar o filho enquanto está dentro dela, e amar uma imagem idealizada do
bebê, mas não a realidade do recém-nascido. As mulheres tendem a acreditar que seu bebê
será diferente, tranqüilo, chorando pouco, dormindo à noite desde o início, negando
antecipadamente a realidade de um bebê nas primeiras semanas de vida. Assim, Maldonato
(2000) chama atenção, para a realidade de que a mãe pode ter reações variadas ao ver o seu
bebê pela primeira vez, diferentemente do esperado momento, impactante, único e emotivo.
Algumas vezes, é possível que haja apenas uma curiosidade, ou simples alívio, porque o filho
nasceu bem, ou, pelo contrário, tristeza e apreensão por sentir uma grande responsabilidade ao
notar que precisa cuidar de alguém por muitos anos. E até mesmo uma decepção pelo filho
não ser o bebê dos seus sonhos e possuir alguma malformação. Portanto, após o parto, a
mulher se dá conta de que o bebê é outra pessoa: torna-se então necessário elaborar a perda
do bebê da fantasia, para entrar em contato com o bebê real.
A condição da gestação também é um fator a ser avaliado. Uma gestação em que
houve problemas mais sérios nos níveis pessoal e conjugal pode provocar uma associação do
problema ao bebê. Pode também estar passando por dificuldades conjugais pelo impacto que a
chegada do bebê geralmente causa no casal e na família. Ou ainda pode estar sozinha, porque
seu parceiro ou sua família a abandonou ainda na gravidez. Tais fatores também podem
desencadear um quadro depressivo, caso a mãe acredite que a gravidez foi um mal, ressalta
Bacca (2005). Principalmente, porque estudos apontam que a aceitação do bebê pelo
companheiro é um fator significativo para o desenvolvimento do apego materno ao filho.
(Piccini, Silvia, Lopes, Gonçalves & Tudge, 2004); e, por isso, o suporte emocional do
companheiro à gestante e a puérpera é uma importante função atribuída recentemente ao pai.
Toda essa miscelânea de sentimentos e conflitos não significa que ela esteja rejeitando
o filho, mas toda a complexidade da situação, para a qual talvez não estivesse preparada
(Bacca, 2005). Assim, Serrurier (1993), Maldonato (2000), Rohenkohl (2005) e Bacca (2005)
alertam para o fato de que muitas mulheres acabam por rejeitar não o bebê em si, mas a
maternidade como instituição e muito do que isso acarreta, como por exemplo a mudança de
vida, os sacrifícios e as obrigações. Associar estados de humor entristecido ou quadros de
DPP com rejeição ao filho, como comumente é feito não só pelos familiares e pelo senso-
comum, mas também por muitos profissionais de saúde, e da educação, é um grande e
preconceituoso equívoco, que acentua ainda mais o sofrimento e isolamento materno e deve
ser terminantemente combatido.
26

À guisa de conclusão deste capítulo, podemos afirmar que é instigante notar que, se
somarmos os índices de incidência para cada tipo de distúrbios relacionados ao puerpério,
aliadas a tantas dificuldades que podem surgir na fase do pós-parto, podemos concluir que,
quase 100% das puérperas vão apresentar algum nível de dificuldade emocional neste
período, o que não quer dizer que todas precisarão de tratamento especializado. Portanto, ao
contrário do que se “vende”, é comum e esperado na mãe recém parida a ocorrência de
tristeza, de retraimento, de labilidade, de descuido pessoal, de cansaço ou de hiperatividade,
de idéias persecutórias, sem chegar ao nível alarmante da psicose puerperal (Rocha, 1999;
Santos 2001). Se esse sofrimento é tão comum e inerente à vivência da maternagem, porque
será, então, que poucos ousam revelar este lado “feio” da maternidade?
27

CAPÍTULO 2
O OLHAR SUBJETIVADO: UMA CRÍTICA AO DIAGNÓSTICO PADRONIZADO
DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO
“O doente é, todavia, mais que o portador impessoal de uma moléstia.
O estar doente inclui a vivência da doença pelo próprio paciente,
assim como sua atuação sobre a situação social.
Uma medicina restrita à descrição da doença
desconsidera amplamente a apreciação de um paciente
sobre os efeitos mutantes entre o organismo agredido,
a reação psíquica e o meio social alterado”
Engels

2.1 – A CISÃO ENTRE MENTE E CORPO

Existe uma tendência nas ciências da saúde, inclusive na psicologia, de considerar que
somos compostos por duas partes: de um lado, o corpo, de outro, a mente, como se uma parte
não tivesse ligação com a outra, sendo que o enfoque dirigiu-se quase que exclusivamente
para o biológico. Exclui-se, dessa forma, a influência do subjetivo e da cultura no
desenvolvimento, manutenção e cura das patologias, limitando-se, assim, à compreensão de
um grande número de enfermidades que atingem o ser humano (Okay, 1986). Essa é uma
cultura remanescente do modelo biomédico, de inspiração cartesiana, que consiste na
expressão da visão mecanicista de vida que, ainda hoje, norteia as ciências biológicas e da
saúde.
De acordo com Ramos (1994), o modelo biomédico tem como características
principais: a ênfase na doença e não no doente; a compartimentalização do corpo; a
objetividade; a concretude; a padronização; o reducionismo; o determinismo e o
universalismo. Essas premissas favoreceram uma visão fragmentada do homem, na qual o
sistema corporal foi reduzido a partes menores, tratadas de forma isolada. O foco não é o
indivíduo, mas os aspectos universais das patologias. Tanto que este modelo marca a origem
da semiologia, que é a ciência que busca e categoriza os sinais das doenças. Identificar a
doença e, conseqüentemente, enumerar-se o que é patológico, “além de ser uma tarefa crucial,
tornou-se uma tarefa insana” afirma Romano (1999, p. 38).
Com essa ênfase nos sintomas, a doença passou a ser concebida como uma entidade
separada, marcada pelo desvio de normas fixas e fisiológicas. O interesse prevaleceu apenas
sob os aspectos das doenças que pudessem ser considerados universais, padronizáveis e
generalizáveis (Okay, 1986; Ramos, 1994, Chiattone, 2000). A medicina foi cercando-se de
métodos cada vez mais sofisticados para garantir o diagnóstico, reunindo o seu saber
objetivado em revisões conceituais, manuais, guias estatísticos, entre outros.
Dessa maneira, as medidas experimentais, os testes e diagnósticos podiam ser feitos
sem que se fosse necessário considerar as características sociais, morais e psicológicas dos
pacientes; afinal, não se reconhecia nesses fatores qualquer impacto sobre o organismo
enfermo (Ramos, 1994). Esses elementos “não materiais” não eram suscetíveis de serem
medidos facilmente nos laboratórios e, assim, foram negligenciados, sendo considerados
“epifenômenos”, ou seja, à parte do tratamento de saúde, ou restritos aos casos de doenças
mentais/psiquiátricas (Okay, 1986; Ramos, 1994; Remen, 1993, Chiattone, 2000). A
influência do modelo biomédico foi tão preponderante que, ainda hoje, uma queixa de mal-
estar orgânico sem fundamento biológico é considerada “ puramente” psicológica ou “falsa”
pela medicina tradicional – portanto, de “menos valia” (Okay, 1986; Ramos, 1994; Remen,
1993, Chiatonne, 2000).
28

O mais lamentável é constatar que este mesmo movimento dualista e excludente se


deu (e ainda se dá!) dentro da própria psicologia, pois tudo aquilo que fazia parte da
experiência subjetiva deixou de ter lugar na ciência psicológica nos seus primórdios. Os
precursores da psicologia que pretendiam reservar a esta “nova ciência” um território próprio
e independente buscaram elevá-la ao status científico da época, rompendo com as suas bases
filosóficas e “obscuras”, tentando enquadrá-la nas exigências do positivismo (Figueiredo &
Santi, 1999). Assim, a psicologia situou-se, nesta perspectiva, totalmente subordinada ao
campo das ciências naturais, ao custo de uma redução de alcance, de interesse e de eliminação
do sujeito e dos contextos histórico e cultural na construção do objeto psicológico. Figueiredo
e Santi (1999) e González Rey (2002) chamam atenção para o fato de que este fenômeno
reducionista, infelizmente, se repetiu muitas vezes na história da psicologia.

2.2 - A TENDÊNCIA DA PSICOLOGIA À FRAGMENTAÇÃO E À PADRONIZAÇÃO


DO SUJEITO

De fato, a psicologia sofreu grande influência do modelo biomédico em expansão no


início do século XX e isso levou-a ao desenvolvimento de visões naturalistas e médicas sobre
os fenômenos sociais. Assim, a patologia passou a ser o foco de estudo da psicologia, dando
origem aos grandes manuais de psicopatologia. O “anormal” passou a dominar tão
profundamente o pensamento psicológico, que localizou esta anormalidade no sujeito
(González-Rey, 2004).
Sob um olhar epistemológico, o ideal comportamentalista do behaviorismo radical de
Skinner enfatizou a padronização, a medição e a universalidade dos problemas estudados,
para tentar estabelecer leis de caráter dedutivo que influenciaram toda a psicologia
(Figueiredo & Santi, 1999). Atualmente, este movimento se revela muito claramente numa
prática que vem sendo tradicional e indiscriminadamente realizada na psicologia – o ato de
classificar um sujeito em uma entidade semiológica, “enclausurando-o” num psicodiagnóstico
estático e imutável.
A partir desta ênfase no sujeito patológico, desenvolveu-se um tipo de psicologia
descritiva e descontextualizada, fortemente baseada nos testes e na padronização do sujeito, à
imagem e semelhança da semiologia cultuada pela medicina. Nesta, o homem deixa de ser um
indivíduo e passa a ser um insignificante leito ou uma “CID- qualquer”, ou ainda, um “F-
alguma coisa”! De acordo com Guidano (1994), isso inevitavelmente acontece quando se
adota uma descrição nosográfica como a dos DSM´s (Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais) ou das CID´s (Classificação Internacional de doenças), ou quando se
empregam listas de critérios “supostamente” específicos da angústia, da depressão e das
fobias. Vejamos, a título de ilustração, como vem sendo definida a DPP de acordo com estes
manuais internacionais de classificação de doenças:
Na CID-10 (1993), a DPP encontra-se classificada sob a rubrica de F.53, que significa:
transtornos mentais e comportamentais leves, associados ao puerpério, não classificados em
outra parte. Neste, recomenda-se que a classificação englobe apenas os transtornos mentais
associados ao puerpério que apareçam durante as seis primeiras semanas após o parto e que
não satisfazem os critérios diagnósticos de um outro transtorno classificado em outra parte no
capítulo intitulado: “Outras doenças da mãe, classificadas em outra parte, mas que complicam
a gravidez, o parto e o puerpério”.
De acordo com a CID-10 (1993), a depressão pós-parto faz parte dos transtornos
mentais associados ao puerpério, no entanto esta categorização parece paradoxal, na medida
em que leva a recomendação de que deve ser usada apenas quando inevitável. Sua inclusão
consiste em um reconhecimento dos problemas práticos em muitos países em
29

desenvolvimento, que tornam o agrupamento de detalhes acerca de doenças puerperais


virtualmente impossíveis.
A inclusão dessa categoria não deve ser tomada como implicação de que uma parcela
significativa dos casos de doenças mentais pós-parto não possam ser enquadradas em outras
categorias (CID-10, 1993)
Segundo os critérios diagnósticos previstos pelo DSM IV (2002) o especificador Com
Início no Pós-Parto pode ser aplicado ao Episódio Depressivo Maior, Episódio Maníaco ou
Episódio Misto atual (ou mais recente) do Transtorno Depressivo Maior, Transtorno Bipolar I
ou Transtorno Bipolar II ou ao Transtorno Psicótico Breve, se o início ocorre no período de
quatro semanas após o parto.
Atualmente, predomina a concepção, nos meios biomédicos, que os quadros de
depressão e DPP, no que concerne à sintomatologia, têm características muito semelhante
àquelas dos distúrbios depressivos não puerperais (Rocha, 1999; Baptista, Baptista &
Oliveira, 2004).
Para Guidano (1994), Romano (1999) e González Rey (2005b), com os quais
concordo plenamente, as enfermidades não deveriam ser classificadas e consideradas desta
forma, como uma entidade constituída por conteúdos específicos originários de
conhecimentos, suscetíveis de se definirem de uma única vez e para sempre! Isso significa
“aprisionar” o sujeito desde o início em uma classificação, aplicando-lhe um “rótulo”, estático
e definitivo. É rotulando, ou seja, classificando em categorias sociais quem nos cerca, que
processamos psicologicamente as informações. Assim, as pessoas fazem com os outros e
consigo mesmas. Por isso, os rótulos nos controlam, orientam o pensamento e determinam o
comportamento dos médicos frente a seus pacientes, afirmam Botega, Fortes e Brasil (2002).
Esses autores alertam para a finalidade de controle social e subjaz aos rótulos, principalmente
nas grande cidades, onde “os diagnósticos e tratamentos psiquiátricos podem ser consignados
a um sem número de problemas de natureza social e econômica” (Botega, Fortes & Brasil,
2002, p. 271).
Também compartilhamos desta crítica às entidades nosológicas e concordamos com
González Rey (2002) quando afirma que: “a psicologia já tem condições para deixar de lado
as práticas de rotular, que caracterizaram por um longo tempo o diagnóstico (...), e este não
deveria significar dissolver o sujeito nas categorias utilizadas para diagnosticá-lo” (p. 105).
Mesmo os médicos, se atendessem a uma possibilidade de resignificação dos sintomas e dos
rótulos, ampliariam suas visões sobre seus pacientes e seus problemas de saúde, apostam
Botega, Fortes e Brasil (2002).
Acreditamos que a psicologia deveria estar preocupada em conhecer o ser humano e
em se interessar, principalmente, em “escutar” o seu sofrimento visando o seu bem estar como
pessoas em sua singularidade e complexidade. Pretendemos caminhar cada vez mais para uma
percepção biopsicossocial do ser humano, buscando compreendê-lo em sua totalidade, não só
visando aspectos orgânicos ou só psíquicos ou sociais, mas em sua forma inteira de estar no
mundo. González Rey, em quase toda sua obra (1995, 1999, 2001, 2002, 2004 e 2005a),
propõe esta forma de trabalho. Sua proposição não é procurar falhas, doenças, defeitos ou
disfunções por si. Não ir atrás do que está errado e sim do que está certo de acordo com o que
aquela pessoa mostra-lhe desde o início, o que implica em ouvi-la e respeitá-la em sua
subjetividade e individualidade. Nesta direção é pertinente lembrar Sterian (2001, p. 18/19)
quando este afirma:
Não cabe mais, em nossos dias, pensar a subjetividade humana desvinculada do seu
contexto. Esses novos marcos referenciais para a compreensão do psiquismo
impõem-se às atuais propostas terapêuticas.(...) a doença, assim como o indivíduo,
carregam a marca da cultura. Essa marca deixa sua estampa no aparelho psíquico e,
por isto, as psicoterapias têm que levar em consideração esta realidade.
30

Este trabalho é uma tentativa de seguir este caminho e contribuir para uma psicologia
menos abstrata, ahistórica e descontextualizada, que se refugia nos rótulos, para delimitar
espaços de ação, muitas vezes, em detrimento do sujeito em sofrimento.

2.3 - OS NOVOS CAMINHOS PARA A CIÊNCIA PSICOLÓGICA: A VALORIZAÇÃO


DA SUBJETIVIDADE

Vimos anteriormente que cultura positivista e centrada no comportamento que tem


hegemonizado a psicologia não deixou espaço para a representação da pessoa como sujeito. O
caráter individualista da psicologia tradicional nos apresenta um indivíduo basicamente
reativo, respondente a estímulos imediatos do ambiente através de traços que atuavam como
pré-disposições fixas para determinados tipos de comportamento e psicopatologias. Essa
posição excluía todo o posicionamento criativo, proativo e responsável da pessoa, onde ela
não tinha nenhuma possibilidade de produção de opções na sua trajetória, sendo seu
comportamento apenas a expressão de traços ou tendências já formadas que atuavam como
causas desse comportamento.
Acontece, porém, que a subjetividade não deixa de existir porque é classificada,
rotulada ou mesmo negada (Figueiredo & Santi, 1999). Desde 1970, observamos a retomada
da questão da subjetividade na ciência, por tanto tempo abandonada, durante os anos de 1935
à 1970 (Brito & Leonardos, 2001). Cada pessoa é única e deve ser vista na sua singularidade.
As totalidades são dinâmicas, evolucionárias e criativas. Não podem ser compreendidas pelo
estudo de suas partes (Ramos, 1994). “O sujeito é profundamente singular e rompe com a
tendência da psicologia de produzir indivíduos em série” (González Rey, 2004, p. 21). Assim,
retorna às cenas médicas e psicológicas, a subjetividade humana!
O sujeito é uma pessoa viva, ativa, criativa, pensante, que se posiciona, que sente e
também reage, mas, acima de tudo, é aquele que dá sentido subjetivo ao próprio curso da
atividade em que está inserido. Por isto, nos alerta González Rey (2004), não existe nenhuma
organização ou elemento que a priori determine a expressão do sujeito numa situação
concreta. O curso que toma uma situação vivida pelo sujeito representa uma configuração
complexa de processos e elementos em que o resultado se definirá dentro do mesmo processo.
Felizmente, muitos outros psicólogos/pesquisadores têm atribuído o aumento de
danos à saúde mental não apenas a fatores individuais e intrapsíquicos (Sterian, 2001).
Incluíram-se concepções sociológicas, antropológicas e políticas. Nessa linha, surgiram
estudos sobre a interação entre os fatores “externos” e “internos”, a constituição psíquica na
formação da subjetividade, de sintomas e de doenças. No cenário atual, o caminho parece ser
convergente, no sentido de unir o objetivo ao subjetivo, o racional ao intuitivo, a síntese em si,
sem que as ciências humanas percam seu status de legitimidade para o modelo positivista
(Chiattone, 2000). Como reforça González Rey (2004, p. 123), “é importante considerar o
impacto subjetivo da doença, para designar, entender e descobrir os processos de subjetivação
do doente em relação à sua doença e a si mesmo”.
Ao tomarmos contato com a literatura psicológica sobre a DPP, vemos que este fato se
repete, pois os estudos sobre este fenômeno privilegiam o mundo interno ou a psiqué
individual de cada mãe, sem relacioná-lo à cultura e ao momento histórico em que a mãe e o
bebê estão inseridos. Foi contrária à essa concepção, que adotamos como referencial teórico-
epistemológico a teoria da subjetividade de González Rey (2005a), que passaremos a
apresentar no tópico, a seguir.

2.4 - A TEORIA DA SUBJETIVIDADE DE GONZÁLEZ REY


31

Para nós, é importante pensar o psiquismo humano inserido em seu contexto sócio-
econômico-cultural, pois, como afirma Demo (2001, p. 24): “não há ser humano que não seja
sujeito e que não esteja contextualizado no espaço e no tempo”. O sujeito tem sido o ponto de
intersecção de uma teoria da subjetividade e uma perspectiva histórico-cultural, pois, sem o
sujeito, a subjetividade permaneceria a-sujeitada e substanciada em um plano intrapsíquico,
como ocorre em algumas tendências da psicologia, com a quais não nos identificamos.
A teoria da subjetividade de González Rey, como vem sendo recentemente
denominada por Martínez (2005), situa-se nesta perspectiva histórico-cultural, na qual seu
idealizador se inspirou para definir as categorias de subjetividade, de sujeito, de
configuração subjetiva e de sentido subjetivo. De acordo com esta autora, uma profunda
estudiosa e colaboradora da construção da Teoria da Subjetividade de González Rey, essas
categorias que configuram este corpus teórico demonstram o valor heurístico na construção
de um novo pensamento psicológico. Assim, elas legitimam uma nova representação do tema
da subjetividade, por serem categorias assumidamente e intencionalmente subversivas, ao
romperem com a representação da psiqué como um conjunto de entidades estáticas,
individuais e universais, e desnaturalizarem essa representação, sem contudo, substituí-la por
uma sociologização da psiqué, levando à compreensão do social como espaço de produção de
sentidos.
Essas categorias subvertem a ordem porque se distanciam da lógica dualista entre o
bem e o mal, o justo e o injusto, o moral e o imoral, reconhecendo e até valorizando o direito
a posições distintas, as contradições e os conflitos como parte fundamental da construção dos
sujeitos individuais (Martínez, 2005; González Rey, 2005a). Na nossa concepção, esse
pensamento subversivo é primordial para construirmos um novo olhar sobre a DPP e nos
afastarmos das perspectivas de ênfase intrapsíquica, padronizadas e patologizantes.
Passemos a ver como estas categorias são conceituadas nesta perspectiva teórica.
2.4.1 - A categoria de sentido subjetivo:
O conceito de sentido subjetivo é visto como central na definição de subjetividade de
González Rey (2005a, 2005b), pois o desenvolvimento acontece através de unidades de
sentido capazes de implicar aspectos psicológicos diferentes em um sujeito concreto. Estes
elementos não respondem a etapas universais, senão a momentos concretos da vida do
sujeito.
A produção de sentidos subjetivos e suas diferentes configurações são processos que
estão além da representação consciente do sujeito, ou seja, vão além dos significados
atribuídos pelos sujeitos às suas ações e vivências. Constituem-se num tipo de unidade auto-
organizada da subjetividade que se caracteriza por uma integração de significados e
processos simbólicos em geral e de emoções, nas quais um elemento não está determinado
pelos outros, embora tenha o poder de evocá-los (González Rey, 2004, 2005a). Representam
complexas combinações de emoções e processos simbólicos que estão associados a
diferentes esferas e momentos da vida do sujeito e que podem estar envolvidos em
configurações subjetivas distintas.
As emoções se associam a diversos registros simbólicos ao longo da história de vida
do sujeito e, dessa integração, surge um sistema psíquico qualitativamente diferente. Não
há, portanto, de acordo com González Rey (2005a), uma relação imediata entre uma emoção
e um conjunto de palavras, pois o sentido subjetivo sempre se produz num espaço simbólico,
que normalmente não está evidente aos nossos olhos. Isso significa dizer que a conjunção
simbólico mais emocional não se refere a ter apenas uma representação de algo e nem uma
emoção em relação a algo ou alguém, pois a relação com este “algo” estará perpassada pela
história do sujeito e pela cultura em que ele vive. Assim, o sentido subjetivo está relacionado
àquilo que mobiliza afetiva, simbólica e historicamente de alguma forma o sujeito. Por isso,
32

nem tudo tem o mesmo sentido subjetivo para todos, apesar de poder ter um mesmo
significado, compartilhado socialmente.
Desta forma, as emoções se relacionam com as palavras num espaço de sentido, e
não em relação abstrata e fora do contexto de ação do sujeito. Os sentidos subjetivos
integram-se em torno de delimitações simbólicas produzidas pela cultura e de processos
históricos de relação. Estes, por sua vez, são acompanhados de uma emocionalidade que
sintetiza a qualidade específica de uma história singular de relacionamento. Portanto,
nenhuma demanda externa é inerente ao meio, mas é determinada pela produção de sentido
do sujeito no seu enfrentamento.
Por isso, o sentido nunca representa uma expressão psicológica pontual. Ele aparece
somente na expressão plena do sujeito, a qual sempre comunica a integridade inseparável de
processos simbólicos e emocionais que legitimam uma zona do real para ele. Usado dessa
forma, o conceito de sentido subjetivo só pode ser construído teoricamente por meio de
expressões diferenciadas dos sujeitos estudados, o que pressupõe uma atividade construtivo-
interpretativa permanente do pesquisador, a qual pretendemos implementar nesse estudo.
Assim, o estudo do sentido subjetivo da maternidade nos permite compreender a
história das mães pelo modo com que se organizam os sentidos subjetivos em suas
diferentes configurações diante da depressão após o parto.
2.4.2 – A categoria de configuração subjetiva:
Esta categoria tem um caráter sistêmico que permite compreender as diferentes
expressões do sujeito, em qualquer atividade particular, como uma manifestação da
subjetividade individual em seu conjunto. Essa manifestação, por sua vez, tomará formas
diversas em função do contexto da subjetividade social em que a sua atividade ocorre. Por
isso, Martínez (2005) afirma que essa categoria representa a articulação de diferentes
momentos e de recursos subjetivos do sujeito que funcionam organicamente, caracterizando
sua qualidade constitutiva.
As configurações subjetivas de cada sujeito, que são as formas mais complexas de
organização da subjetividade individual, filtram, selecionam, organizam, negam, enfim, dão
uma tonalidade própria para cada “coisa” que passará para “dentro”. Em outras palavras,
Demo (2001, p. 24) corrobora esta concepção: “a realidade que temos em mente é aquela
reconstruída por nós. O mundo que nos tem como sujeito é um mundo reconstruído também
subjetivamente”. Ou seja, não há uma internalização passiva do social.
As configurações de sentido integram o atual e o histórico em cada momento de ação
do sujeito nos diversos espaços de sua vida (González Rey, 2005a). Esta relação entre o atual
e o histórico na produção de sentido é um dos elementos nos quais se destaca a importância
da categoria de sujeito nessa teoria. Ela foi uma categoria elaborada para acompanhar tanto
as articulações dinâmicas da subjetividade social do sujeito, como a emergência de novas
qualidades que caracterizam a subjetividade como um sistema complexo.
As configurações subjetivas seriam as responsáveis pelas formas de organização da
subjetividade como sistema, e são relativamente estáveis por estarem associadas a uma
produção de sentidos subjetivos que antecede o momento atual da ação do sujeito e que
pressiona a produção de sentidos de qualquer nova ação em termos de reorganização do
sistema (González Rey, 2005a). Ainda que tenham este caráter mais estável, as configurações
subjetivas não representam estruturas estáticas que, de forma estável e imutável, acompanham
o sujeito definitivamente. Tampouco, formam uma estrutura, pois representam um sistema
implicado permanentemente com outras configurações, em um jogo no qual uma delas pode
se integrar como elemento de sentido de outra em decorrência do posicionamento do sujeito
nos diferentes momentos de sua vida.
Sob essa ótica, compreendemos que as configurações de sentido da personalidade, por
exemplo, não podem definir a priori, o sentido dominante da atividade do sujeito em relação à
33

DPP ou à maternidade, como vem sendo aplicado por representantes da psicanálise, ao


compreender as mães com este diagnóstico como portadoras de personalidades imaturas.
Na nossa concepção, a personalidade é apenas mais uma das peças constituintes do
complexo “quebra-cabeças” da configuração subjetiva das mães, a qual se encontra em
constante processo por meio de posicionamentos ativos do sujeito-mãe, os quais se alternam
no curso de suas diversas ações e atividades ao maternar.

2.4.3 - A categoria de subjetividade:


A categoria de subjetividade, sob este marco teórico, além de merecer destaque,
merece uma distinção do que vem sendo definido como subjetividade tanto pelo senso
comum, como por várias conceitualizações teóricas que o utilizam nas várias áreas do
conhecimento, como na filosofia e na psicologia. Martínez (2005a) nos alerta para o fato de
que, geralmente, a subjetividade é concebida como uma construção individual, passiva,
relacionada aos processos psicológicos e intrapsíquicos do indivíduo, ainda que se reconheça
uma interdependência com o ambiente em que está inserido e uma relação com o outro social.
Nesta teoria, veremos que a sua definição é de outra ordem.
Na literatura psicológica, o outro tem sido predominantemente conceituado como “a
fonte de produção da pessoa” (González Rey, 2004, p. 3), através da qual se estabelece uma
relação linear entre os comportamentos do outro dirigidos ao sujeito e a maneira como este
passa a se reconhecer e se assumir enquanto tal. González Rey (2004), assim como outros
autores contemporâneos, tem sido crítico desta visão linear do outro em relação à construção
do sujeito, ao afirmar que essa visão desconhece a complexidade da relação com o outro no
processo de sua constituição psicológica, utilizando-se de vários argumentos, a saber:
- Primeiro, porque as relações humanas se organizam, desde a criança recém–nascida,
como sistema em que as expressões emocionais têm um papel muito importante, onde o outro
aparece como um momento de produção emocional da pessoa que não decorre simplesmente
de uma reação simbólica, cognitiva ou comportamental às expressões daquele que está se
relacionando com ele.
- Segundo, porque o homem responde a sistemas de significação que têm um valor
apenas dentro de determinados marcos da cultura onde está atuando. A capacidade emocional
humana alcança formas de complexidade maiores que as de qualquer outra espécie animal,
pois “consegue integrar condição biológica dentro de um corpus cultural que modifica
definitivamente a representação sobre o funcionamento da psiqué e do corpo” (González Rey,
2004, p.5). Então, o sujeito é uma pessoa viva, ativa, criativa, pensante, que se posiciona, que
sente e também reage, mas, acima de tudo, é aquele que dá sentido subjetivo ao próprio curso
da atividade em que está inserido, independente dos significados socialmente estabelecidos.
Por essa razão, González Rey (2004) critica o conceito de interiorização amplamente
utilizado na psicologia, pois esta comunica a idéia de uma importação mecânica de fora para
dentro, do exterior para o interior, sem considerar que o sujeito tem maiores participações
neste processo. Nessa concepção, o “mundo” se interiorizaria sem especificar nem o que ele
significa para a pessoa nem qual o sentido subjetivo que ele confere a cada um. Assim,
percebe-se que o núcleo desta crítica se dá justamente por este caráter dessubjetivado e pela
omissão do sujeito do conceito de interiorização, pois o sentido subjetivo não é algo que se
produz e pronto, passando a formar uma estrutura psíquica interna que orienta o
comportamento, o qual se aplicará a todos os campos de ação do sujeito e em épocas
distintas de sua vida.
Com admirável intenção de superar as dicotomias entre dentro-fora, individual-social,
objetivo-subjetivo, existentes até então na concepção de subjetividade, González Rey (2005a)
propõe o conceito de subjetividade social, onde marca a sua diferença com a concepção
34

disseminada na Filosofia e na Psicologia, comentadas anteriormente por Martínez (2005). Na


sua perspectiva, a subjetividade não se reduz aos indivíduos, nem aos diferentes espaços
sociais onde ele circula. De acordo com este teórico, a subjetividade se relaciona aos
diferentes espaços sociais onde as pessoas atuam, pois estes “estão carregados de uma
subjetividade social que tem existência supra-individual e se perpetua nas produções
simbólicas compartilhadas sobre as quais se organizam as relações do indivíduo dentro destes
espaços” (González Rey, 2005a, p. VII). Por sua vez, essas produções simbólicas se
alimentam de sentidos subjetivos configurados no percurso de diferentes vivências dos
sujeitos que vivem em tais espaços.
Entende-se, então, que toda a subjetividade está socialmente comprometida em sua
gênese (González Rey, 2004). O outro não existe apenas como ocorrência comportamental,
mas ele carrega consigo uma seqüência histórica de uma relação que vai se transformando
em um sistema de sentido, a partir do qual este outro passa a ter uma significação no
desenvolvimento psíquico do sujeito, tanto pela produção simbólica delimitada neste
espaço da relação, como pela produção de sentido que a acompanha. O outro está constituído
dos sentidos subjetivos da história de relacionamento do sujeito com ele, e é precisamente
esta condição que privilegia a influência sobre o sujeito por uns, e não sobre todos os outros,
que configuram seu espaço cotidiano. Nessa perspectiva, o outro é significativo para o
desenvolvimento ao converter-se em uma fonte de produção de sentido (González Rey,
2004, 2005a).
Nesse sentido, a subjetividade é um sistema complexo permanentemente submetido à
tensão da ruptura, sendo por esta razão imprevisível quanto às suas formas de expressão
individual, pois não existe entre comportamento e configuração subjetiva relação linear e
nem isomórfica (González Rey, 2005a). Assim, a subjetividade social perpassa de forma
continuada a individualidade do sujeito. É em função disso que a subjetividade individual
pode gerar novos sentidos subjetivos, segundo o espaço social em que a ação do sujeito
acontece e vai se modificando num processo dialético e continuado.
Neubern (2004) esclarece que a subjetividade defendida por González Rey (2005a)
consiste em um processo sutil que possui relações com as dimensões biológicas, sociais e
culturais. Contudo, a complexidade da subjetividade não permite que ela possa ser explicada
ou esgotada por uma dessas dimensões. Neubern (2004) relata ainda que a riqueza heurística
deste conceito permite compreender o homem como um ser em desenvolvimento contínuo,
que pode modificar-se constantemente diante dos diversos cenários sociais de que faz parte.
Diante dessa nova forma de conceber a subjetividade, não é difícil perceber que uma
patologia, por exemplo, não aparece mais identificada como uma organização semiológica
universal, mas passa a ser compreendida pelas particularidades que definem o caráter
patológico de uma configuração. O olhar biomédico clássico enfatiza uma tendência de
rotular e padronizar as patologias, o que, de fato, leva a sua não subjetivação por meio da
padronização. Sob este novo enfoque teórico proposto por González Rey (2005a), cada
configuração tida como patológica é a expressão de uma combinação singular de sentidos,
que poderá ser conhecida apenas por meio do estudo do construtivo-interpretativo do sujeito
concreto.
Assim, por exemplo, quando se usa o termo DPP na forma pela qual historicamente
este tem sido utilizado pela psicologia e pela medicina – como um conjunto de sintomas que
caracterizariam uma psicopatologia específica e que acontece de forma padronizada com
todas as mulheres nesta condição - perde-se, desta forma, a articulação necessária entre a
produção de sentidos em relação a si mesma e uma produção de sentidos subjetivos
diversificada e desenvolvida por meio de processos de vida muito sutis nos diferentes
espaços de vida em que a mãe transita, como o seu casamento, o seu trabalho, sua família
extensa, entre outros.
35

Questionamos, então, se o fato de pensar a DPP associada apenas às experiências


diretas da mãe em relação ao bebê e ao seu desempenho no papel materno, por exemplo, não
tem conduzido à individualização do conceito que reconhece a gênese da DPP reduzida a uma
dimensão individual intrapsíquica, onde contam somente as experiências individuais que a
mulher/mãe tem vivido em uma dimensão relacional imediata com os outros, ao longo de sua
vida
Essas experiências individuais, que se identificam como precursoras da DPP, são
denominadas de preditores ou fatores de risco. Entre outras, referem-se: ao desajuste conjugal,
à falta de apoio social, aos eventos de vida estressante; a desajuste na história psicológica
pessoal e/ ou familiar, e, ainda, à história de depressão não puerperal, à história de depressão
gravídica, à história de DPP prévia (Miranda & Miranda, 1999; Baptista et al, 2004). Muitas
dessas variáveis, que vão expressar-se em cadeias infinitas de pesquisas, podem resultar
significativas, ou não, em relação a comportamentos associados à depressão no pós-parto,
sem que isso nos permita acessar um nível de compreensão diferente sobre este conceito, que
foi a nossa intenção na presente pesquisa.
2.4.4 - A categoria de sujeito
O sujeito é um elemento da subjetividade, assim como a personalidade. Ele é a forma
como a subjetividade aparece concretamente. É a parte conjuntural e atual da subjetividade
que representa a sua possibilidade de interagir. É o sujeito concreto, portador de uma
personalidade, que vivencia, interage e toma decisões conscientes e intencionalmente, sendo
portanto o elemento ativo da subjetividade e a sua interface com o mundo.
O sujeito existe na tensão da ruptura e na criação que supõe a produção de novos
sentidos subjetivos nos espaços já constituídos subjetivamente, os quais se integram como
elementos de sentido das representações atuais dominantes do sujeito. É, por isso, uma
categoria central no estudo da subjetividade, pois, de acordo com González Rey (2005a), as
configurações subjetivas implicam numa maneira ímpar de produzir sentidos singulares para
cada sujeito específico, dentro de seus diversos campos de atividade. Isso significa que não
existem formas universais de subjetivação de uma atividade concreta, mas é sempre
necessário descobrir, construir e especificar o sentido subjetivo de cada atividade para cada
sujeito, buscando compreender como se articulam nas suas diferentes atividades, sua história
pregressa e atual, com a emocionalidade e significados atribuídos à vivência atual.
Assim, falar de DPP e de maternidade implica em reconhecer uma natureza
semelhante entre elas, pois a depressão terá um tipo de configuração subjetiva singular para
cada mãe, a qual estará na base da produção de sentidos subjetivos comprometidos com a
ação na atividade concreta da maternagem de cada mãe singular. Dessa forma, a depressão,
assim como a maternidade, define-se no sujeito-mãe e pelo sujeito-mãe, e não pelo tipo de
atividade–desempenho ao maternar. Pensar na DPP enquanto entidade patológica e
padronizada para a atividade de maternar é uma reminiscência de uma psicologia sem sujeito,
da qual procuramos nos afastar na nossa postura clínica e de pesquisador nesta investigação.
Observamos portanto que tanto as categorias de sentido subjetivo, quanto a de
configuração subjetiva conduziram González Rey a transcender a representação da psiqué
apoiada em categorias universais e invariáveis situadas no intrapsíquico e a rejeitar a redução
da psiqué ao comportamento no nível fenomênico, amplamente defendido no behaviorismo,
ou no nível intrapsíquico como a psicanálise. Em decorrência disso, este arcabouço teórico
nos permite fazer uma crítica a perspectiva psicanalítica da DPP.

2.5 – CRÍTICA À PERSPECTIVA PSICANALÍTICA DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO

Observa-se que na área da psicologia a DPP vem sendo basicamente estudada sob o
olhar psicanalítico. Este olhar oferece elementos que nos ajudam a compreender o
36

funcionamento feminino, suas vivências emocionais e as angústias que as acometem no


período de gestação e no pós-parto. É fato, e temos que admitir que a perspectiva
psicodinâmica, de base psicanalítica, traz, sem dúvidas, grandes contribuições para a
compreensão da DPP.
Foi Freud quem nos introduziu numa representação das complexidades da vida
psíquica do homem que transcendem as representações comportamentais reducionistas do ser
humano, às quais nos referimos anteriormente. A psicanálise de Freud nos coloca diante de
uma concepção dinâmica da mente que possui processos próprios e complexos, que estão
além da consciência, que aparecem de forma indireta no comportamento e que carregam uma
grande carga de ambivalência, afirma González Rey (2004). Ainda assim, ao meu ver, suas
teorias e explicações não são suficientes para serem parâmetros hegemônicos da compreensão
de um fenômeno tão complexo como a mulher com DPP, pois a psicanálise freudiana nos
apresenta a psiqué através de um modelo bioenergético, no qual os processos se apresentam
como entidades metafísicas de caráter universal e invariável.
De acordo com González Rey (2004), Freud não diferenciou adequadamente a
natureza dos processos subjetivos, flexíveis e independentes com relação a sua suposta
“natureza humana universal”. Assim, percebe-se que a dimensão social fica em segundo plano
e não é integrada na definição de qualidade da psique, haja vista essas invariantes universais
do pensamento freudiano. Em sua obra, o social aparece através de sua influência direta sobre
a psiqué, basicamente restrito ao sistema familiar nuclear, sobretudo tomando forma diante
da expressão e tendências pulsionais da criança com relação à sua mãe.
Nessa perspectiva, de acordo com González Rey (2004), o social adquire importância
psíquica a partir de um processo básico de manifestação libidinosa. O outro, no caso a mãe,
surge como objeto de pulsão, enquanto que a figura paterna aparece enquanto agente
responsável pelo corte, pelo limite e pela repressão desta pulsão. Assim, as relações com os
pais, definidas principalmente a partir da triangulação edipiana, não definem um espaço social
macro, qualitativamente diferenciado de acordo com a cultura e a época em que cada família
está imersa. Ao contrário disso, elas enfatizam o nível micro e representam um padrão
universal definido a priori pela natureza pulsional da criança, critica González Rey (2004).
Assim, a psicanálise mantém uma representação pulsional do homem de caráter universal e,
dessa forma, Freud tende a psicologizar mais o social do que a compreender o caráter social
dos processos psíquicos, ainda que no final de sua obra tenha desenvolvido importantes
estudos sobre a religião e outros fenômenos sociais.
Também tem sido crescente e significativa a tendência atual apresentada por muitos
autores psicanalistas, como Bleger, Pichon Rivier, Le Poulichet (citados por González Rey,
2004) em se envolverem com temas de significação social de natureza histórico-cultural
claramente definidas, como, por exemplo, o tema das toxicomanias, que os fizeram
transcender com as liturgias da instituição psicanalítica. Esta é uma psicanálise que, a nosso
ver, é crítica, de ruptura, que busca um conhecimento capaz de envolver novas formas de
subjetivação e que leva à superação do esquema pulsional que ainda domina o pensamento
psicanalítico e que infelizmente mantém a dicotomia entre social e psiqué, entre interno e
externo, na medida em que a psiqué é considerada como atributo relevante do individual cujas
unidades para compreendê-la estão baseadas em aspectos bioenergéticos e psicodinâmicos
dos indivíduos.
É em função dessas limitações que acredito devermos compreender os fenômenos
psíquicos, entre eles a DPP, para além da psicodinâmica do fenômeno. Sobretudo, àquela
psicodinâmica que se baseia numa leitura psicanalítica clássica do tema, a qual parece dar
ênfase a uma mulher a-histórica e abstrata, descontextualizada de seu meio cultural e social,
centrando sua atenção apenas no mundo intrapsíquico, sem correlacioná-lo a outros sistemas
37

sócio-econômico-políticos constituintes da subjetividade da mulher e, conseqüentemente, da


DPP.
Nesse sentido, concordamos com a visão de Scott (1990), Chodorow (1990) e de
Aleixo (2005), quando apontam que na abordagem psicodinâmica psicanalítica há falta de
questionamento sobre o problema da desigualdade; há uma associação persistente da
masculinidade com o poder, através de teorias sobre a primazia do falo ou da inveja do pênis,
e há falta de reflexão sobre os sistemas simbólicos que representam o modo como a sociedade
concebe o gênero. O falo é o significante central do processo de construção da identidade
sexual, e este acontece de forma distinta nos meninos e nas meninas (Scott, 1990; Aleixo,
2005). Assim, para Scott (1990), as categorias “feminino” e “masculino” tornam-se
construções estáveis e previsíveis, reforçando o antagonismo subjetivamente produzido entre
homens e mulheres. Por fim, na avaliação de Chodorow (1990), os psicanalistas continuam a
definir uma base biológica e instintual para a divisão do trabalho por sexos, personalidades de
gênero e heterosexualidade.
Para Scott (1990), assim como para Demo (2001), González-Rey (2004) e Neubern
(2004), a subjetividade tem que ser pensada dentro dos contextos sociais e históricos, pois a
realidade social não se situa à parte do sujeito. Scott (1990) nos mostra que as concepções
mais recentes, complexas e historicizadas refutam o caráter fixo e permanente da oposição
binária entre os sexos, assim como rejeita a construção hierárquica como sendo da “natureza”
das coisas, como parece propor a psicanálise clássica.
Comungamos totalmente da visão desses autores e, por esta razão, entendemos que
seria fundamental estudar a mãe com DPP sob a perspectiva histórico-cultural, por
acreditarmos que nem a perspectiva biológica/hormonal, nem a psicodinâmica/psicanalítica,
isoladas, são suficientes para contemplar esse complexo fenômeno. Apostamos ser
imprescindível acoplar um olhar histórico, antropológico e psicossocial a esta problemática,
para melhor compreendê-la e tratá-la, sem contudo ter a pretensão de compreendê-lo e
explicá-lo na sua totalidade.
Nossa intenção é a de dar apenas mais uma contribuição para a compreensão desta
mulher que sofre diante da maternidade. Nessa direção, também é pertinente lembrar
Martínez:
“(...) resulta contraditório na psicologia, falar de complexidade e, simultaneamente,
continuar utilizando, de forma acrítica, categorias que mesmo sendo úteis no
processo de construção do conhecimento psicológico, respondem a uma paradigma
que, implicitamente, nega a complexidade - e que tem sido construído sobre a base
da simplificação do psicológico, como, por exemplo a necessidade, de realização, as
barreiras a criatividade, a DPP e auto–estima. (2005, p. 6-7)

Para superar a fragmentação anteriormente referida, portanto não basta apenas


desenvolver uma consciência crítica ou ter boas intenções, mas é imperiosa a necessidade de
uma construção teórica que suporte e permita superar uma dicotomia, a qual, implícita ou
explicitamente, continua exercendo muita força na psicologia atual, a saber, a dicotomia entre
individual–social (González Rey, 2005a). Nesse sentido, a teoria da subjetividade de
González Rey e a teoria de gênero revelaram-se bastante adequadas aos nossos propósitos,
pois, a partir de uma abordagem sócio–histórica em que estão inseridas, estimamos que as
concepções de feminilidade/masculinidade partilhadas em nossa sociedade, além de
orientarem práticas sociais que regulam as relações de gênero, participam da construção das
identidades da maternidade/paternidade e, conseqüentemente, da DPP.
38

CAPÍTULO 3

A PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A


CONSTRUÇÃO DA MATERNIDADE E DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO
“Sou o intervalo entre o que eu gostaria de ser
e o que as pessoas me fizeram.”
Fernando Pessoa

3.1 - A IMPORTÂNCIA DO OLHAR HISTÓRICO-CULTURAL SOBRE O PAPEL DA


MULHER NA SOCIEDADE

Compreender a maternidade como fenômeno cultural, e não natural e biológico, é o


primeiro passo para podermos conhecer as implicações deste conceito na constituição
subjetiva da mulher enquanto ser imerso em um momento histórico e social. Para Serrurier
(1993), não podemos marginalizar o quadro sociológico que, na sua opinião, com a qual
concordamos inteiramente, é responsável, em grande parte, pelas dificuldades que as
mulheres experimentam para serem boas mães. Desde já, cabe lembrar as palavras de
Beauvoir (1980), neste sentido: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (p. 9). Da mesma
forma, acreditamos que nenhuma mulher nasce mãe, mas torna-se mãe.
Sendo assim, o objetivo deste capítulo é compreender como o exercício da
maternidade é articulado com os discursos ideológicos dominantes, ligados à ciência, à Igreja
e à economia social, fazendo com que seja percebido como um fenômeno instintivo, arraigado
na estrutura biológica feminina, independente das circunstâncias de tempo e espaço que o
determinam. De Scott (1995), vamos tomar o conceito de gênero, que o historiciza e propõe
seu uso como, categoria analítica e instrumento metodológico para entender como ao longo da
história, se produziram e legitimaram as construções de saber/poder a partir da diferença
sexual. Ao fazê-lo, esta autora abre uma nova perspectiva teórica para a “desconstrução” das
hierarquias e desigualdades de gênero baseadas na diferença biológica, como se fossem
verdades universais. A partir de diversas representações da feminilidade, foram deduzidas as
posições de poder, submissão, complementaridade ou exclusão das mulheres no seio da
sociedade (Aleixo, 2005). Nos próximos tópicos, veremos que quaisquer que tenham sido as
variações ligadas à primazia atribuída ao sexo ou ao gênero, percebemos sempre o traço das
modificações sofridas pelas mulheres e pelas famílias ao longo dos séculos.
Na verdade, os estudos antropológicos não falam de uma permanência histórico e
cultural da maternidade tal como é concebida nos dias de hoje (Viana, 2004)4. A mulher
reprodutora, parideira, obviamente sempre existiu, mas o conceito da mulher materna-divina,
que faz a maternagem exclusiva dos filhos, data de poucos séculos atrás. Por isso, a
maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é um constructo social e
cultural que decide não só como criar os filhos, mas, também, quem é responsável por eles
(Forna,1999).

3.2 - A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA SUBJETIVIDADE FEMININA NA TRADIÇÃO


OCIDENTAL: DE EVA A MARIA

Ao retomarmos a história da humanidade no ocidente, remontando às mulheres de


Atenas, às mulheres de Roma, às mulheres na cultura judáico-cristã, veremos que a mulher

4
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
39

sempre foi vista como uma figura de ambigüidade, cuja história era contada sempre por
homens. Nestes contextos, a figura feminina normalmente é descrita como a causa dos males
do gênero humano, em função da sua curiosidade imprudente e pecaminosa (Chauí,1985 e
1984; Muszkat, 1994; Roudinesco, 2003; Del Priori, 2004; Aleixo, 2005). Esta ambigüidade
se revela, sobretudo, nas imagem contraditórias de Eva e da Virgem Maria.
Essas duas figuram nos conduzem à questão da repressão sexual (Chauí, 1985 e 1984).
O paraíso perdido e o pecado original, sobretudo a perda da imortalidade, são frutos da
descoberta da sexualidade. Sexualidade esta que foi “atiçada” por Eva que tentou Adão,
recaindo sobre ela a culpa pela separação entre nós e a divindade – com a conseqüente
mortalidade.
O Paraíso significava um mundo onde havia harmonia, imortalidade, eternidade e
ausência de dores e penas. Não nascer e não morrer - infinitude. Chauí (1985 e 1984);
Muszkat (1994) e Del Priori (2004) explicam que a descoberta do sexo foi o Mal, que
condenou a humanidade à dor, à mortalidade e à finitude por culpa da mulher, já que Adão era
obediente e não tocava no fruto proibido. “Os desregramentos, o pecado e a danação
originaram-se da fragilidade moral do sexo feminino” (Del Priori, 2004, p. 25). Por isso,
desde Eva, as tentações da carne e a volúpia sexual eram predicados femininos, representando
a mulher como fraca e suscetível ao pecado, cujo o corpo corresponde ao lugar de todos os
perigos!
Por essa razão, “a mulher, eternamente condenada pelo erro de Eva, tinha que
permanecer vigiada e controlada” (Del Priori, 2004, p. 46). A Igreja e o Estado exerciam forte
pressão no controle da “maligna” sexualidade feminina, justificando através de argumentos
divinos que o homem lhe era superior, cabendo a ele autoridade sobre a mulher. O feminino
era visto como fonte de desordem que deveria ser controlado pelas leis do casamento, em
conformidade com a ordem marital (Roudinesco, 2003). Dessa forma, foi-se incorporando à
natureza feminina um estigma que predispunha à transgressão e à maldade, revelando-se de
maneira mais extrema nas práticas de bruxaria.
Durante toda a Idade Média, a imagem da mulher estava relacionada às tentações, ao
Diabo, pois ela representava o desejo sem fim e sem limites que poderia entorpecer e
perverter os homens. Assim, de feiticeira à possuída, e desta à louca, há a interiorização do
pecado, tornando-a demoníaca em sua alma (Chauí, 1985 e 1984; Muszkat, 1994; Del Priori,
2004). O controle do corpo, através de castigos físicos e disciplina, foi instituído como forma
de reeducá-lo e torná-lo dócil e apto para o trabalho e, principalmente, menos ameaçador.
Assim, de fêmea insaciável, a mulher se converte num ser quase assexuado, frígido
incapaz de viver o prazer e o orgasmo, fisicamente constituído apenas para a procriação,
desde que restrito ao casamento e sem prazer, afirma Chauí (1985). Porém, mais do que
apresentar as formas visíveis e invisíveis de repressão sexual, através da análise da mulher
medieval e suas relações com a Igreja, Chauí (1985 e 1984) mostra que a construção
contemporânea de Eva e da Virgem Maria carrega uma ambigüidade que perpassa nosso
próprio presente: a mulher é responsável pela ciência do bem e do mal - por sua imprudente
curiosidade por seu desejo sexual irrefreável. É também responsável pela semi-imortalidade e
semi–eternidade da espécie, pelo seu resgate parcial, através da procriação. Apenas sob a
figura da Mãe Virgem poderia devolver ao menos uma semi-imortalidade ao homem, ao gerar
a vida, dedicando-se à tarefa da perpetuação da espécie (Chauí, 1985 e 1984; Muszkat, 1994;
Roudinesco, 2003; Del Priori, 2004). Assim, caberia às mulheres transmitirem a vida e a
morte (Roudinesco, 2003).
Uma vez tornando-se mãe, a mulher honrada, de família e casada na igreja, afastava-se
da Eva e aproximava-se de Maria, a virgem que concebeu sem pecado. Assim, ratifica-se o
surgimento do arquétipo do modelo de Maria predominante entre as mulheres “direitas”. Para
isso, suas vidas deveriam ser restritas à família, à igreja, ter uma vida assexuada com fins
40

apenas procriativos, serem fracas, submissas, passivas e sem participação na vida pública.
Ademais, eram educadas para o casamento, para cuidar da casa e dos filhos e, ainda, tolerar as
relações extraconjugais de seus maridos. Del Priori (2004) ressalta que esses valores eram
incorporados pelas mulheres por meio da imposição da Igreja, da família e por muitos
mecanismos informais e formais de coerção. Chauí (1985) complementa essa afirmativa com
a seguinte questão:

(...) poderia haver outro lugar ideológico para as mulheres senão a maternidade, isto
é a repetição da maldição? (somos mortais porque nascemos) e a promessa de
redenção (somos imortais em nossos descendentes). Autora de uma violência
irremissível – revelar aos homens sua finitude -, a mulher só poderia pagar esse ato
de violento sendo submetida a violência – as dores do parto e a submissão àqueles
que por ela são engendrados para a morte. (Chauí, 1985, p. 32)

Portanto, afirma Roudinesco (2003) que a mulher deve, acima de tudo, ser mãe, para
que a sociedade seja capaz de resistir à tirania do gozo feminino que se acredita ser capaz de
eliminar a diferença entre os sexos, e leve à decadência dos valores tradicionais da família, da
autoridade do pai e ao caos social. Tudo era pensado como se, “no exato momento em que as
mulheres despertassem do longo sono de sua sujeição, a família fosse ameaçada de ser ela
própria destruída” (Roudinesco, 2003, p. 145).
A lógica apresentada por todas essas autoras me pareceu bastante plausível para
introduzir o tema da maternidade. Este percurso histórico pareceu-me dar sentido para a
imposição – violenta e implacável - da maternidade, da qual as mulheres ainda são vítimas.
Até hoje elas estariam pagando pela maldição que impuseram à humanidade ao condená-la à
finitude, à mortalidade, à dor e ao sofrimento, através da maternidade – sua única chance de
se redimir. E para que ela pague este preço, sem resistir ou reclamar, veremos que foi
arquitetado sutilmente e ideologicamente o processo de naturalização da maternidade.

3.3 - O PROCESSO DE NATURALIZAÇÃO DA MATERNIDADE


“Não está escrito que tudo que germina nascerá”
Gambini
Em primeiro lugar, é fundamental diferenciar a capacidade reprodutiva da mulher de
maternidade. Procriar é um potencial biológico natural. É, para a mulher, uma condição
inexorável, quando assim desejado. Porém, assumir a criança e tornar-se mãe é um fenômeno
que se constitui social e culturalmente, sendo impregnado pelos ideais e ideologias
predominantes nos diversos períodos históricos.
Segundo Chauí (1985), o corpo feminino recebe um conjunto de atributos derivados
de seu atributo mais imediato: a maternidade. Esta é apreendida como instinto materno, e
isso implica num comportamento preestabelecido e predeterminado quanto à forma e ao
conteúdo da maternidade. Assim, a noção de instinto garante ao mesmo tempo o pressuposto
de uma “natureza feminina” como “natureza materna” e a redução da experiência possível da
maternidade a um comportamento inerente, sabido e já conhecido de todas as mulheres;
porque a experiência possível da maternidade é reduzida ao comportamento materno e este é
“deduzido” do instinto e das observações de “casos”.
Desde esta perspectiva, o fato de ser mãe aparece socialmente considerado como uma
questão central na vida das mulheres. É a idéia de instinto maternal que está presente na
poesia e nos filmes, é a visão romanceada da maternidade que Forna (1999) ilustra com
grande propriedade. Assim, a maternidade tem sido representada há séculos.
O próprio Dicionário Larrousse (2002) define o instinto materno como “uma
tendência primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade e que uma
vez satisfeito, incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos”. No Novo
41

Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986), também encontramos uma


definição semelhante para instinto maternal, a saber:“ (...) força biológica que atua, em geral,
de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e independentemente de qualquer
aprendizado (...) Tendência natural; aptidão inata” (p. 953).
Torna-se possível, desta forma, duplicar a ideologia do instinto. Instinto materno é
definido como um comportamento gerador, mantenedor e protetor da vida, e,
conseqüentemente, a qualidade derivada deste instinto é o amor materno. Vistas sob a ótica
do amor materno, fica fácil considerar as mulheres como “instintivamente” mais sensíveis do
que os homens, e esta sensibilidade compensaria a exclusão do mundo racional, conforme
ressalta Chauí (1985).
O instinto materno, ao mesmo tempo que mantém as mulheres num suposto mundo
natural, as transforma em produtoras desta mesma ideologia do “amor materno e da
sensibilidade”. Além do naturalismo, algo mais está presente no corpo feminino: o instinto e
amor materno são formas de controlar e reprimir a sexualidade feminina. A natureza feminina
permite apenas uma sexualidade procriadora.
Mas ser mãe é, de fato, algo da natureza da mulher? Será o amor materno um
fenômeno inato? O instinto materno de fato existe? Ou será um fenômeno construído
socialmente? Certamente, estas são questões que não povoam as mentes das mulheres em
geral, pois, ainda hoje, a maternidade é percebida com algo da ordem do inquestionável! É
próprio ao senso comum conceber instituições estáveis da sociedade antes como formas
‘naturais’ de organização da vida coletiva, que como produtos mutáveis da atividade social.
No caso da família, entretanto, a naturalização é extremamente reforçada pelo fato de se tratar
de uma instituição que diz respeito, privilegiadamente, “à regulamentação social de atividades
de base nitidamente biológica: o sexo e a reprodução” (Durham, 1983, p.15).
O processo de naturalização dos fenômenos é o procedimento privilegiado da
ideologia dominante, sobretudo a patriarcal:
Sendo “por natureza” mães e criaturas sensíveis, as próprias mulheres se farão
agentes de violência quando agirem contrariando sua “natureza”, por exemplo,
reivindicando que a maternidade seja reconhecida como um direito que pode ou não
exercer, em lugar de tomá-la como instinto, ou reivindicando o direito de agirem
como seres pensantes.(Chauí, 1985, p.38).

Assim, entendemos que Chauí (1985) faz uma denúncia grave e nos alerta para o fato
de que a violência mais perfeita é aquela que acontece sem que percebamos, instaurado
sutilmente, como algo natural, pré-determinado. Através de uma sutil inversão ideológica, a
violência passa a ser imputada ao “desnaturamento” desejado pelas mulheres. A violência
agora consistirá, portanto, em constranger a vontade das mulheres, fazendo-as interiorizar a
sua “natureza” - que ela consinta em ser, de jure, o que é realmente de facto. A hipótese de
Chauí é que a idéia e a imagem de uma “natureza feminina” permaneçam até hoje, ainda que
difusa e diluída, pelo fato de que o corpo feminino tenha sido o elemento fundamental para as
ideologias da feminilidade.
A Igreja, o Estado, bem como a ciência, acabaram por fortalecer a idéia de instinto
maternal, idéia típica da teoria evolucionista, que defendia a noção de que a natureza
emocional da mulher era conseqüência direta de sua fisiologia reprodutiva (Laqueur, 2001;
Aleixo, 2005). Há, portanto, um discurso sobre as mulheres e não das mulheres (Chauí,1985 e
1984; Muszkat, 1994; Del Priori, 2004; Aleixo, 2005). Isto acarreta que, neste processo
circular de naturalização-culturalização-naturalização da mulher, faltou a ela justamente
aquilo que a tornaria sujeito de fato e de direito: a autonomia do falar, do pensar, do agir, do
escolher. No processo de subjetivação da mulher, observa-se, então, que lhe foi dada
finalidades internas a partir do exterior. Entendemos, com isso, que a força do instinto
maternal se impõe na vida das mulheres há séculos, como algo natural, predestinado e sem
42

possibilidades de escolha! Como nós, mulheres, poderíamos ousar duvidar desta ordem
secular?
A obra de Laqueur (2001) intitulada Inventando o Sexo: corpo e gênero dos gregos a
Freu., foi, para mim, a primeira grande responsável por esta desconstrução do sexo “inato”.
Laqueur (2001) defende a tese de que o sexo biológico também é uma construção social, a
serviço dos interesses sociais/morais. Em suas pesquisas, ele descobriu que antigamente o
modelo de sexo era único. O corpo masculino era o modelo de perfeição e o corpo da mulher
seria apenas um corpo masculino defeituoso/inferior.
Para Aristóteles e Galeno (citados por Fávero & Mello, 1997; Laqueur, 2001;
Roudinesco, 2003; Aleixo, 2005) os órgãos femininos eram uma forma menor dos órgãos
masculinos e, conseqüentemente, a mulher era um homem menos perfeito. Nesse sentido, a
mulher opõe-se ao homem sendo “passiva”, enquanto este é ativo. Isso faz dela uma “réplica
invertida do homem”, como prova a posição de seus órgãos: o útero era o escroto; a vulva era
o prepúcio; os ovários eram os testículos e a vagina era um pênis invertido. Assim, tal qual o
significado da criação de Eva a partir de uma costela de Adão, pensa-se a humanidade como
masculina e a mulher é definida em relação ao homem, e não em relação a ela mesma (Chauí,
1985; Muszkat, 1994; Ehrhardt, 1996).
Laqueur (2001) mostra que, somente no século XVIII, os dois sexos – masculino e
feminino – foram inventados como um novo fundamento para o gênero. A partir desse novo
modelo sexual, houve um grande esforço para se descobrir as características anatômicas e
fisiológicas que distinguiam o homem da mulher. Assim a mulher ganhou um novo status: já
não era mais um “homem imperfeito”, mas era um outro ser anatomicamente diferente. Mas,
se, por um lado, esta diferenciação foi positiva no sentido de marcar um lugar próprio da
mulher, não impediu que fosse agregado a este corpo diferente um valor inferiorizado.
Destarte, a mulher não era apenas diferente do homem, mas continuava ser vista como
intelectualmente inferior, pouco racional e, portanto, toda instinto e passional.
Del Priori (2004) confirma esta concepção de mulher ao nos mostrar que para a maior
parte dos médicos do Séc. XVI, a anatomia feminina era diferente não apenas por um
conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas características
morais, sendo “o corpo da mulher destinado a procriação e assuntos divinos” (p. 78). O lugar
da mulher era definido, portanto, através desta função: “penetrada pelo homem deitado sobre
ela, a mulher ocupa o seu verdadeiro lugar” (Roudinesco, 2003, p. 24).
Autores como Badinter (1985), Chauí (1985), Muszkat (1994), Laqueur (2001) e Del
Priori (2004) afirmam que nesse contexto, onde medicina e igreja comungavam do mesmo
discurso, continuaram sendo construídos conceitos sobre o funcionamento do corpo feminino
sublinhado por sua inferioridade em relação ao corpo masculino. Para eles, a mulher tinha
sido criada por Deus para servir à reprodução da espécie, relacionando o estatuto reprodutivo
da mulher (parir e procriar) a outros de caráter metafísico, como ser mãe, submissa, frágil,
terna.
Concepções que beiram ao cômico, apresentadas por Spencer (1975, citado por
Fávero & Mello, 1997), revelam esta inferioridade e predestinação à procriação:
As energias da mulher eram canalizadas diretamente para preparação da gravidez e
da amamentação, reduzindo sua energia para o desenvolvimento de outras
qualidades. O resultado era uma parada precoce na evolução da mulher, o que
explica seu estágio de desenvolvimento inferior ao do homem.

A grande preocupação dos médicos e pesquisadores daquela época, de acordo com Del
Priori (2004), era compreender o sistema reprodutor feminino, tendo em seus estudos
destacada a função de madre, nome dado ao útero, órgão este que era descrito como uma área
nebulosa da natureza feminina (Laqueur, 2001; Del Priori, 2004). Acreditava-se, ainda, que o
43

princípio da vida existiria no sêmen masculino, tendo a mãe a função hospedeira de receber e
nutrir o feto. Assim, “dependente do homem, instrumento a serviço da hereditariedade da
espécie, este é o corpo da mulher, visto pelos médicos” (Del Priori, 2004, p. 84).
Essas idéias eram reforçadas por argumentos biológicos que consideravam os instintos
peculiares para cada sexo como sendo a fonte primária das diferenças sexuais, e o instinto
feminino definia-se pela submissão ao comando. A idéia “vendida” parece ser a de que a
mulher é toda instinto e que, portanto, foi programada para procriar e cuidar. Essa deve ser
sua aspiração e sua realização e, por isso, deverá ser sua fonte primeira de gratificações
(Chauí, 1985; Badinter, 1985; Serrurier, 1993; Trindade 1993; Muszkat, 1994; Fávero &
Mello,1997; Parker, 1997; Laqueur, 2001, Ribeiro. & Almeida, 2003 e Del Priori, 2004).
No caso das mulheres, a permanência da ideologia naturalizadora é nítida, pois seu
corpo procriativo é invocado como uma determinação natural; determinação esta que faz com
que a mulher permaneça irrevogavelmente ligada ao plano biológico (da procriação) e ao
plano da sensibilidade (na esfera do desconhecimento). Maternidade, como instinto e como
destino, e sensibilidade, numa cultura que valoriza a razão em detrimento da emoção, são
algumas construções ideológicas curiosas, que, segundo Chauí (1985), servem para manter
a idéia de “natureza feminina” como uma rocha “natural” no mundo historicizado. Assim, a
naturalização seria o procedimento privilegiado da ideologia dominante, ao qual a mulher
vem sendo submetida há séculos.
Viana5 (2004) vai além disso. Para ela, o mito do instinto e do amor materno sugerem
mais do que questões ideológicas. Eles se remetem também a questões mercantilistas e
posteriormente capitalistas, na tentativa de manter a mulher fora do mercado de trabalho. Na
opinião de Chodorow (1990), a maternação das mulheres é um dos poucos elementos
universais e duráveis da divisão do trabalho por sexos. Até agora, todos os sistemas sexo-
gênero têm tido dominação masculina, o que demonstra, na opinião dessa autora, que a
maternação das mulheres é um aspecto central e definidor da organização social do gênero, e
implica na própria construção e reprodução da dominância masculina.
Freud, de acordo com Roudinesco (2003), também considera equivocada toda esta
argumentação naturalista. Ao seu ver, não existem nem instinto materno e nem raça feminina,
pois para ela, o parâmetro não é simplesmente anatômico, mas simbólico em torno do falo. O
falicismo é pensado como uma instância neutra, portanto comum aos meninos e meninas.
Apesar da eterna atitude interrogativa acerca do “que quer uma mulher?” e de considerá-la
como um “continente negro”, Freud não encorajava as mulheres a exercerem uma profissão, a
militarem por igualdade ou a concorrerem com os homens no domínio da arte e da
sublimação. Para ela, era melhor restringi-las “à nobreza de uma arte da qual foram
iniciadoras, a textura e a tessitura” (1921, citado por Roudinesco, 2003p. 134).
O objetivo de Chauí, ao levantar dúvidas sobre a “natureza”, “o instinto materno”, a
”liberdade” e a “ vontade” feminina, era o de sugerir que a forma e o conteúdo dessas
vivências nunca foram determinadas do interior, mas sempre do exterior. Nunca pelas
próprias mulheres, a partir de sua interioridade/exterioridade vividas e refletidas. De forma
que a transformação do ser “natural” para ser “de desejo” e finalmente para um sujeito “livre”
foi feita, de acordo com Chauí (1985), sob a forma de outorga da subjetividade às mulheres.
Assim, fica clara a “armadilha social” que denunciam Chauí (1985) e Beauvoir (1980).
Ou seja, não é possível obrigarmos uma mulher a assumir a maternidade. O que se pode fazer
é cercá-la por uma realidade em que tornar-se mãe é a única saída que lhe resta: os costumes
do casamento, a proibição dos anticoncepcionais, do aborto e do divórcio foram alguns dos

5
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em Palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
44

artifícios utilizados para a construção desse cerco. Dessa forma, a mulher se vê sem
alternativas, a não ser cumprir com o seu papel imposto pela sociedade: ser mãe.
Por meio das concepções de Chauí (1984 e 1985) e Del Priori (2004), que são na sua
maioria corroboradas por Badinter (1985), Serrurrier (1993) e Forna (1999), entendemos que
o estilo de maternidade que herdamos hoje foi moldado em um determinado tempo da história
por necessidade e utilidade e, portanto, não é naturalmente nem instintivamente determinado
como nos é imposto crer. Diante dessas definições, o que poderíamos pensar de uma mulher
que não quer ter filhos? Ou de uma mulher com DPP? Seriam elas, mulheres normais ou
desviantes patológicas?

3.4 - O MITO DO AMOR MATERNO E DA MATERNIDADE EXCLUSIVA


O amor materno não é inerente ás mulheres. É adicional.
Badinter

Desde a mais tenra infância, as meninas treinam o papel de mãe. Elas aprendem que
devem ser mães e são ensinadas e preparadas para os cuidados maternos: são vestidas com
roupinhas cor-de-rosa, ganham bonecas e lhes são retirados os carrinhos dos irmãos.
Aprendem que ser menina não é tão bom quanto ser menino, não se permite que fiquem
sujinhas, são desestimuladas ao sucesso escolar, e, resta-lhes tornarem-se mães (Chodorow,
1990). Essa preparação se dá em função da relevância da maternidade para a mulher no
processo de construção de sua identidade (Trindade, 1993; Del Priori, 1993); porque o modelo
tradicional, socialmente estabelecido, preconiza a necessidade da maternidade para a
concretização da identidade feminina: “cuidar, vestir, enfeitar, despir, voltar a vestir, ensinar,
ralhar um pouco.... todo o futuro das mulheres está nisso. Uma menininha sem boneca é quase
tão infeliz e impossível quanto uma mulher sem filhos” (Hugo citado por Roudinesco, 2003,
p. 134).
Neste papel, ela aprende que uma mulher deve ser capaz de enormes sacrifícios, ser
amável, tranqüila, compreensiva, terna, equilibrada, acolhedora, feminina, em tempo integral.
Constrói-se ao poucos e subliminarmente um ideal, um modelo de mãe perfeita, uma imagem
romanceada da maternidade alicerçada sob um rígido padrão, uma via de mão única, incapaz
de admitir a discussão acerca dos sentimentos ambivalentes, tão presentes nas mães.
Além das famílias, a Igreja ajudou muito nesta construção, pois foi muito eficiente no
marketing do ideal materno, que tem na Virgem Maria a figura inspiradora e modelo a ser
seguido pelas mulheres de todo o mundo. Ela é o símbolo do amor ablativo e se constitui num
eterno paradigma do feminino maternal. Este marketing foi de tal intensidade que Forna
(1999) aponta que, nos últimos dois mil anos, Maria é a figura feminina de maior impacto na
história ocidental e cuja influência repercutiu no melhor da literatura, da pintura, da escultura,
da música, bem como das artes como um todo. Dessa forma, durante os últimos séculos, o
mito da maternidade veio sendo moldado em conformidade com a idéia de que as mães
devem ser perfeitas como Maria - aquela que compreende os filhos, que dá amor total, que se
entrega totalmente, que é devotada, capaz de enormes sacrifícios. Ela deve ser fértil e ter
instinto maternal, sendo a única capaz de cuidar corretamente dos filhos, devendo incorporar
todas as qualidades tradicionalmente associadas à feminilidade: acolhimento, ternura e
intimidade. Assim, a condição inexorável que a mulher possui de ser procriadora atualmente é
concebida como sinônimo de amor incondicional aos filhos, como o que Maria tinha por
Jesus.
No entanto, alerta Forna (1999), o Menino Jesus nunca foi pintado chorando ou com a
cabeça caída para trás, nem Maria com uma aparência irritada ou cansada. Ninguém a retrata
preparando a papinha com uma das mãos e equilibrando o Menino Jesus no quadril com a
outra, tampouco fingindo que não ouve enquanto Ele esperneia ao seu lado. Ninguém jamais
45

pintou Maria nas tarefas prosaicas da maternidade: dando banho, alimentando, vestindo e
correndo atrás de Jesus. “Nossa Senhora e o Menino Jesus estão congelados na eternidade de
um momento relativamente raro da mãe com o bebê” (Forna, 1999, p.18).
Por outro lado, a mãe perfeita, inspirada em Maria, tal qual conhecemos hoje, com sua
propensão natural ao sacrifício, seu amor universal e instintivo pelos filhos e sua completa
satisfação nas tarefas da maternidade, não foi sempre assim! Ao contrário disso, ela teve seu
início de carreira em 1762, a partir da publicação de Émile pelo filósofo francês Jean-Jacques
Rousseau (Badinter, 1985) que, por meio de seus escritos, passou a criticar severamente as
mães de sua época por não priorizarem seus filhos, em detrimentos de seus interesses pessoais
ou conjugais. Serrurier (1993) afirma que é desde Émile que estamos condenadas a ser “boas
mães”. Entre os fatos, Rousseau levantou a questão das mães que enviavam os filhos para as
amas-de-leite (Maldonato, 2000). Segundo Forna (1999), Rousseau recomendava, neste
consagrado livro, que as mães amamentassem e criassem os filhos e as recriminava por darem
preferência a outros interesses.
Infelizmente, as teorias naturais de Rousseau sobre a educação de meninas tiveram
uma influência considerável nos séculos posteriores. Suas idéias se disseminaram e atraíram a
atenção popular, principalmente, porque atendia interesses sexistas das classes dominantes da
época. Segundo as autoras supracitadas, os dirigentes de todas as épocas que se seguiram
basearam-se nas idéias roussorianas para fazer leis, pois elas caminhavam justamente no
sentido de endossar o desejo de natalidade, e também de hierarquia entre os homens e as
mulheres, portanto, idéias sistematizadoras da ordem social. Ou seja, era uma discurso que
visava remediar a grande perda de seres humanos, bem como fazer com que a mulher fosse
ainda mais subordinada ao marido e ao lar, consolidando a imagem da maternidade como
sacerdócio (Badinter, 1985; Muszkat, 1994; Maldonato, 2000).
De Rousseau a Alain, passando por vários legisladores, pedagogos ou moralistas,
como Napoleão, Michelet ou Paul Combes, todos os dirigentes sociais repetiram,
reforçados por provas “naturais” essa verdade primeira: a mulher nasceu para ser
mãe e para se sacrificar por seus filhos; e até bem pouco tempo atrás, não havia
outra alternativa: a vocação materna era obrigatória! (Serrurier,1993, p.71)

Em conseqüência da adoção desses pressupostos, o bebê e a criança passaram a ser


objetos privilegiados da atenção materna, e a mulher passou a sacrificar-se para que seu filho
vivesse junto dela. A partir do século XIX, então, surgiram testemunhos de progresso no
aleitamento materno e de uma maior dedicação e atenção da mãe para com o filho, sendo que
aquela passou a aceitar restringir, cada vez mais, a própria liberdade em favor da liberdade do
filho. Os carinhos maternos, a liberdade do corpo e as roupas adequadas e bem-feitas são as
provas de um novo amor pelo bebê. A nova mãe passou a ter mais tempo para o filho e,
segundo Badinter (1985), é o fator "tempo" que melhor marca a distância entre a geração
dessas mulheres e a de suas mães, assim como hoje.
Sob este prisma, podemos entender o ideal maternal de hoje como o produto de um
determinado tempo e espaço. A história nos permite entender que o papel designado às
mulheres grávidas, bem como às mães, foi vivido de maneira diferenciada segundo as épocas.
A esse respeito, Serrurier (1993) nos lembra que:
Em todos os tempos, ainda que as mulheres tenham aderido a diferentes ideologias,
foram os homens que decretaram e legislaram sobre a maternidade e sobre o papel
social das mães. E isso pela simples razão de as funções dirigentes serem sempre
ocupadas por homens: padres, moralistas, filósofos, políticos. (p.70)

Badinter (1985) refere-se a essa fase como sendo o início da injunção obrigatória do
amor materno. Ela nos conta que antes disso verificávamos a indiferença ou as
recomendações de frieza e de desinteresse pelo bebê. Houve períodos na história em que as
mulheres pareciam não se importar muito com os filhos. Um sintoma direto dessa ausência
46

era o abandono regular de bebês: em 1780 apenas mil dos 21 mil bebês nascidos em Paris
foram amamentados ao seio por suas mães... A autora sustenta que o abandono de bebês era
um fenômeno que ocorria em todas as classes sociais, sendo aceito e permitido pela
sociedade. Tais atitudes eram bem toleradas e ninguém condenava a mãe, por ela não
amamentar ao seio seus rebentos, ou por mandá-los para longe dela. Antes mesmo do parto,
as amas-de-leite, já eram providenciadas, pois a mulher precisava estar “liberada” para voltar
às suas “obrigações” de esposa. Nenhuma mãe “morria de culpa” por isso, e outras mulheres,
além da mãe, estavam incluídas “naturalmente” na maternidade e se mobilizavam para cuidar
e educar a criança. Era comum, portanto, mandar o filho recém-nascido para a casa da ama-
de-leite passando a mãe pouco tempo perto das crianças ou até mesmo mandando-as para
longe. Ademais, o infanticídio era usado como uma modalidade de planejamento familiar,
complementa Parker (1997).
Forna (1999) corrobora essas constatações de que a maternidade não tinha um status,
deveres ou pressupostos especiais. A mulher dava à luz e pronto! Não se presumia que ela
fosse amar o filho, não se esperava sequer que ela cuidasse do bebê.

Na verdade, em caso de divórcio na Inglaterra, França e América do Norte,


geralmente era o pai quem tinha custódia dos filhos. Eram os pais e não as mães que
se encarregavam dos filhos em questões de disciplina e retidão moral. E eram eles
também quem levantavam à noite para acalentar a criança que chorava (Forna, 1999,
p.44-45).

Portanto, é possível verificar na história que idéias de amor instintivo e maternidade-


divina têm poucas centenas de anos. Badinter (1985), ao delinear a história da maternidade na
França ao longo dos quatro últimos séculos, destaca as grandes variações do comportamento
materno, da qualidade do amor sentido e expressado, além de registrar longos períodos de
silêncio em torno dos sentimentos maternos. Por meio de um resgate histórico, Forna (1999)
descreve este estilo de maternidade caracterizado pelo não cuidado às crianças, sendo estas
localizadas em último lugar na hierarquia domiciliar e na ordem da prioridade. Antes delas,
estavam as tarefas domésticas, os deveres com o marido, o trabalho e outras atividades. Essas
“verdades” históricas revelam que a posição de amor materno exclusivo e instintivo, como
uma aquisição recente e artificial (Forna,1999; Parker, 1997). Badinter (1985), ao apropriar-se
dessa história, conclui que o amor materno é um mito, visto que deve ser considerado como
todo sentimento humano: incerto, frágil e imperfeito. Vejamos as suas palavras:
Ao percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção de que o instinto
materno é um mito. Não encontramos nenhuma conduta universal e necessária da
mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos,
segundo sua cultura, ambições e frustrações. Como então, não chegar a conclusão,
mesmo que ela pareça cruel, de que o amor materno é apenas um sentimento e,
como tal, essencialmente contingente?(Badinter,1985, p. 367).

Além desses dados históricos, Forna (1999) nos apresenta um argumento convincente
de que nem mesmo o processo de naturalização da maternidade tem respaldo na natureza.
Para ela, quem já testemunhou a cena de uma coelha em cativeiro comendo os próprios
filhotes pede licença para discordar. Os defensores do instinto maternal também ignoram as
leoas, soberbas caçadoras, que aliam o trabalho à maternidade enquanto o leão cuida da prole.
Ignoram a hiena matriarca que, como fêmea dominante, expulsa os machos do bando e é
sucedida pela filha. Também não consideram as muitas espécies de pássaros em que macho e
fêmea cuidam juntos dos filhotes e cujos acasalamento e rituais de namoro são comparados
por muitos biólogos aos hábitos humanos. Portanto, cuidar dos filhos não é algo nem
47

instintivo da mulher e nem restrito a ela. Os machos podem participar muito além do
momento da concepção e do provimento da espécie.
Assim, acreditamos que esta insistência em defender um certo estilo de maternidade
como “natural” e instintivo leva as mulheres de diferentes culturas e camadas sociais a
questionar cada aspecto do que fazem, pensam, sentem, e a avaliar sua própria experiência
segundo um padrão rígido e impossível. Entendemos que os mitos em torno da maternidade se
tornam armadilhas sedutoras, que prendem as mães da maneira mais cruel, controlando-as e
manipulando-as. Por isso, Forna (1999) considera uma mentira palpável e sem bases
científicas o fato de que a premência de ter filhos atinge todas as mulheres em determinado
momento, sem aviso e independentemente de qualquer processo intelectual. Diferente disso, a
autora acredita que é divulgado um evangelho de modo a intimidar as mulheres, inclusive as
que têm um sentimento ambivalente sobre ter filhos, a aderirem à instituição maternidade.
Veremos no próximo capítulo que, com um número crescente de mulheres entrando no
mercado de trabalho, “elas passaram a ter outras fontes tanto de alegrias como de
preocupações e sofrimentos, o binômio sofrimento-plenitude parece não estar mais associado
exclusivamente à maternidade” (Falcke & Wagner, 2000, p.7). É sobre este conflito que vive
a mãe da era contemporânea que passaremos a tratar no capítulo que se segue.
48

CAPÍTULO 4
A MÃE CONTEMPORÂNEA: NOVA HISTÓRIA, VELHAS REPRESENTAÇÕES
Nós poderíamos ser muito melhores se
não quiséssemos ser tão bons
Sigmund Freud

4.1- O DECLÍNIO DO PATRIARCALISMO E O IMPACTO DOS MOVIMENTOS


FEMINISTAS NA SOCIEDADE

Nas últimas décadas, temos assistido ao fato de que valores e crenças sobre a
masculinidade e feminilidade, supostamente cristalizados, passaram a ser questionados e
desconstruídos, sobretudo pelas mulheres, na intenção de se estabelecerem relações mais
igualitárias. Segundo Almeida e Ribeiro (2003), Diniz (1999) e Castells (1999), uma das
conseqüências deste confronto é a progressiva desconstrução do modelo clássico e
hegemônico do masculino e do feminino, bem como o reconhecimento da complexidade que
envolve a construção das identidades sexuais no âmbito da relações sociais.
Para Castells (1999), três fatores são essenciais para justificar essas redefinições do
lugar do papel da mulher na sociedade, a saber: a) a entrada maciça de mulheres no mercado
de trabalho remunerado; b) a invenção e o acesso à pílula anticoncepcional, quando a mulher
passou a poder controlar a natalidade6 e c) o impacto dos movimentos feministas, que
contribuiu para as transformações nas relações de trabalho, na família e na sociedade como
um todo, propiciando redefinições nas relações entre pais e filhos, maridos e esposas, e do
próprio significado de “ser homem” e “ser mulher”.
Esses fatores aparecem como fundamentais na definição dos papéis e das identidades
sociais, entre eles os de pai e mãe. Sabe-se que o sentimento de uma mãe face à condição
materna é fortemente determinado pelas representações culturais de maternidade (Parker,
1997), pois, “a apropriação de uma prática social (como a maternagem) depende de que esta
apareça para o indivíduo como aceitável no contexto de seu sistema de valores (...) e estas
normas e valores são um dos constituintes das representações sociais” (Abric, 1994, citado
por Trindade, 1998, p. 200). Nesse sentido, buscaremos resgatar algumas concepções sócio-
históricas ao desenvolvimento da maternidade que começam a tomar corpo na luta feminista.
Os movimentos feministas contribuíram de forma significativa para a transformação
dos valores e práticas sociais nas relações de gênero. O movimento passou a ser identificado
pelo seu esforço histórico, individual e coletivo, formal e informal, de se opor à subjugação da
mulher ao homem. Nesse esforço, Scott (1990) nos mostra que as historiadoras feministas
têm-se utilizado de três posições teóricas para a análise do gênero: origens do patriarcado,
tradição marxista e as escolas de psicanálise.
As teóricas do patriarcado dão ênfase à subordinação das mulheres em função da
necessidade masculina de dominá-las. Algumas autoras elegeram a questão da reprodução
como ponto chave, enquanto para outras a resposta encontrava-se na sexualidade em si
mesma. No patriarcado, as diferenças entre homens e mulheres é questionada de diversas
maneiras importantes, mas, para Scott (1990), há reservas com relação a esta teoria.
Em primeiro lugar, para esta autora, as teorias contra o patriarcado não aprofundam
em como as desigualdades de gênero estruturam ou afetam os diversos âmbitos da vida em
sociedade. O segundo problema é que a análise limita-se à diferença física inata, o que
pressupõe a exclusão de uma construção social ou cultural do sexo e, conseqüentemente, a
não historicidade do gênero em si mesmo.

6
Roudinesco (2003) também refere-se ao controle da fecundação como um marco que abalou a dominação
ancestral do masculino sobre o feminino.
49

Já as feministas marxistas têm uma abordagem mais histórica. Scott (1990) nos
mostra que para as teóricas do marxismo a causalidade econômica torna-se prioritária e o
patriarcado está sempre se desenvolvendo e mudando em função das relações de produção.
Assim, as teóricas feministas marxistas chegaram a alguns impasses: rejeição de que as
exigências da reprodução biológica determinam a divisão sexual do trabalho sob o
capitalismo; sistemas econômicos não determinam de maneira direta as relações de gênero;
busca de uma explicação materialista que exclua as diferenças físicas naturais. A crítica de
Scott (1990) a essa abordagem é que o conceito de gênero foi tratado como um sub-produto
das estruturas econômicas, não tendo seu próprio estatuto de categoria de análise.
Na perspectiva psicanalítica, Scott (1990) destaca duas escolas: A Escola Anglo-
americana, com destaque para Nancy Chodorow, e a Escola Francesa, de Jaques Lacan.
Segundo ela, essas duas escolas consideram o processo de criação da identidade do sujeito.
Ambas centram a atenção nas primeiras etapas do desenvolvimento da criança, a fim de
encontrar indicações sobre a formação da identidade de gênero. Para Scott (1990), as
feministas foram atraídas por estas teorias na tentativa de provar e explicar suas
interpretações, mas, nenhuma delas foi inteiramente utilizável pelas historiadoras.
Em primeiro lugar, porque a teoria de relações de objeto limita o conceito de gênero à
esfera da família nuclear e ao ambiente doméstico e, para o historiador, ela não deixa meios
de ligar este conceito a outros sistemas sócio-econômico-políticos, ou de poder mais amplos.
Em segundo lugar, há ausência de problematização sobre a questão da desigualdade; há uma
associação persistente da masculinidade com o poder; há uma desconsideração aos sistemas
simbólicos e, conseqüentemente, uma desconsideração quanto aos modos como as sociedades
representam o gênero. Assim, as categorias “masculino” e “feminino” não são características
inerentes, mas construções subjetivas, o que as tornam problemáticas, pois o sujeito é um
constante processo em construção. Essa posição contribui, portanto, para perpetuar a oposição
masculino-feminino como única relação possível, mas por esta via torna-se impossível de
solucionar, pois a diferença entre homens e mulheres faz parte da condição humana.
Para Almeida e Ribeiro (2003), todo o esforço das feministas serviu para que, a partir
do material cultural disponível na época, elas construíssem uma nova identidade, capaz de
redefinir a posição da mulher na sociedade, e como conseqüência, acabaram transformando a
estrutura de toda a sociedade. Ademais, Diniz (1999) acrescenta que o movimento feminista
levantou um importante questionamento sobre a diferenciação entre sexo e gênero e suas
implicações, para compreender a inserção da mulher no mundo. Assim, abordando-se a
condição feminina com a lente de gênero, pode-se ampliar o conhecimento sobre variáveis
que afetam a saúde da mulher, especialmente a sua saúde mental.

4.2 - A PERSPECTIVA DE GÊNERO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE

A partir desse momento, o termo gênero passa a ser empregado para designar
comportamentos, papéis e padrões de expectativas para homens e mulheres, elementos que
são construídos dentro de um contexto cultural, e não dados naturalmente, como ainda hoje é
percebido. Essa informação é corroborada por Scott (1990), que também afirma que as
feministas referiam-se ao gênero para indicar uma rejeição ao determinismo biológico das
diferenças entre os sexos, ainda impregnado no uso do termo, como também para introduzir a
noção relacional entre homens e mulheres. Nesse sentido, esta teoria se congrega à teoria da
subjetividade de González Rey (2005a) que também rejeita a concepção naturalística do
homem.
Nos termos que propõe Scott (1990), o gênero transcende o biológico para
transformar-se numa maneira de explicar construções sociais das identidades subjetivas de
homens e de mulheres. O gênero é uma construção social que se desenvolve a partir de uma
50

mediação complexa que se estabelece entre o ser humano e a cultura na qual está inserido. A
identidade masculina e feminina concretiza-se na educação dos pais e familiares, na vida em
sociedade e por meio da institucionalização, instâncias que transmitem a noção do que é
apropriado para cada sexo em questões como temperamento, papel, interesse, caráter e valor.
Nessa perspectiva, gênero “ é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (Scott,
1990, p.7), porém não existe uma ligação direta entre sexo e papéis sexuais, pois o termo
gênero põe a ênfase sobre um sistema de relações mais amplo que pode incluir o sexo.
Foi através deste novo olhar – o da psicologia do gênero - que percebi que o
incômodo que sinto há anos, sobretudo depois da experiência da maternidade, já foi e
continua sendo alvo de discussões e questionamento de várias mulheres e homens no meio
científico-acadêmico. Essa perspectiva, na minha opinião, se mostrou uma grande “saída”
para todos os séculos de opressões e de doutrinamento da mulher. Este novo ângulo de
análise abre a possibilidade de desconstrução da universalidade das categorias homem e
mulher, associadas a construções binárias baseadas em estereótipos sobre o que é feminino e
o que é masculino, ou associam poder e dominação ao masculino e obediência e submissão ao
feminino. Sendo assim, a grande saída, a meu ver, parece ser: se foi construído, então pode ser
desconstruído e conseqüentemente transformado!
Dessa forma, é possível pensarmos na possibilidade de diferentes processos de
subjetivação e singularização vivenciados por homens e mulheres. Até mesmo, questões que
eram para mim impensáveis, como questionar o conceito de sexo biológico. Tudo isso, a
partir de um o olhar da categoria de gênero. Este conceito que apresenta a concepção de
muitos fenômenos que considerados como natural, dado, automático, na verdade foi
construído ao longo dos séculos, em função de interesses dominantes, nos quais a mulher
raramente foi consultada (Chauí, 1985).

4.3 - A MULHER A FAMÍLIA NA ATUALIDADE

Há algum tempo, observa-se que as mulheres de hoje não são mais criadas somente
para contrair um bom casamento e criar filhos. Ou seja, a ênfase da educação feminina não
está mais no papel materno, mas sim na preparação delas para enfrentar o mercado de
trabalho. Sobretudo nas classes sociais mais favorecidas (Durham, 1983), elas são criadas
para serem boas profissionais e terem seus próprios sustento. Essa mudança de foco
educacional fez com que as mães não mais criassem suas filhas somente para exercerem
exclusivamente o papel de mães.
Como visto no capítulo anterior, não há dúvidas de que a inserção da mulher no
mercado de trabalho, contribuindo para o declínio do sistema patriarcal e minando a
hegemonia masculina, provocou e continua a provocar muitas transformações nas relações
conjugais e familiares atuais. Roudinesco (2003) nos mostra que hoje existe uma diversidade
tão grande de tipos familiares – desconstruída, recomposta, monoparental, homoparental,
clonada, gerada artificialmente - que a família ocidental de hoje está sujeita a uma grande
desordem. Hoje, as mulheres podem dominar a procriação, os homossexuais podem
participar do processo de filiação e o pai, não é mais o pai–patriarcal. Ele está assumindo um
papel “maternalizante” (Roudinesco, 2003, p. 179), ao aumentar gradativamente o seu
envolvimento masculino nos trabalhos domésticos. A vida definitivamente mudou!
Na verdade, na visão Roudinesco (2003) assistimos a um empoderamento de uma
camada de mães que, além de serem detentoras da ordem procriadora, têm ainda o poder de
designar ou de excluir o pai de seu filho. Mesmo com a presença do pai em casa, é ela quem
continua tendo as maiores responsabilidades de controlar, educar e criar os filhos. Resta-nos
saber se este empoderamento apontado por Roudinesco (2003) tem trazido de fato mais poder,
ou mais carga de trabalho e responsabilidades para a mulher.
51

Em uma análise macrossistêmica, ficam claras as transformações da posição da mulher


no contexto social, que cada vez mais vem ocupando seu espaço no mercado de trabalho e
ampliando sua representatividade na sociedade. Porém, no âmbito familiar, observa-se que ela
vem abarcando maiores responsabilidades e, agora, integra tanto as funções de cuidado,
nutrição, afeto, entre outras que já lhe cabiam, como também, o papel principal de
disciplinadora, além de ser uma participante ativa na divisão das despesas domésticas, quando
não de arrimo de família.
Assim, o fato da mulher gerar vida, fato que poderia representar o seu poder
equivalente ao falo, como afirma a teoria psicanalítica, cai por terra, pois, ao se submeter à
maternidade, passa a ser “engolida” pelo papel de mãe e esse poder é posto a serviço da
humanidade. Tal realidade coloca a mulher num lugar de subordinação, fazendo prevalecer as
funções maternas em detrimento das outras manifestações possíveis do feminino (Beauvoir,
1980). Por isso, apesar de existirem muitos casais experimentando novos arranjos familiares,
ainda se observa hegemonicamente que a velha divisão de papéis insiste em se manter. O pai
trabalha fora e, por isso, está “liberado” de participar ativamente da educação das crianças; e a
mãe, mesmo que trabalhe fora e contribua para o sustento da família, ainda resiste em
abandonar o que fez durante tanto tempo – responsabilizar-se “sozinha” pelos cuidados para
com a sua prole:
Para o homem, a casa é o “repouso do guerreiro”. Para a mulher que trabalha fora, é
o seu segundo turno, muitas vezes até mais desgastante que o primeiro, porque lhe
sobra pouco tempo para dar conta de todas as tarefas que se impõe: ver se os filhos
estão machucados ou doentes, se fizeram as tarefas escolares, se a casa está
arrumada, se não falta mantimentos na despensa e ainda preparar o jantar para
receber o guerreiro cansado (Tiba, 2002, p.36).

Portanto, apesar deste novo contexto, o mito social relativo ao papel feminino
demonstra-se preponderante (Falcke & Wagner, 2000). O pai continua sendo sempre
mencionado, reverenciado e merecedor dos louros da família. Ainda sobrevive a cultura de
que a última palavra é a sua (Tiba, 2002). O conceito de maternidade e as responsabilidades
desta função continuam baseados em um modelo rígido e antigo, que parece resistir
bravamente às mudanças no mundo pós-patriarcal. Dessa vez, recorremos à Rocha-Coutinho
(1994):
Ainda hoje, por trás de discursos e à margem de declarações oficiais, se ouve a
opinião de que o lar e a educação dos filhos sempre foram e devem continuar sendo
atribuições das mulheres e que, devido à sua constituição física e espiritual, as
mulheres devem ser afastadas do trabalho físico pesado, bem como das atividades
que lhes exigem muito intelectualmente" (p.42).

Nessa vertente, Trindade (1993) afirma que a manutenção dos efeitos da socialização
diferenciada entre meninos e meninas continua sustentando a divisão tradicional de papéis: a
continuidade da maternidade como condição estruturante da identidade feminina e do sucesso
profissional como uma necessidade para a construção da identidade masculina. Isso tem
contribuído significativamente para a manutenção das concepções arcaicas da maternidade e
da paternidade, apesar das transformações já visíveis na relação dos homens com a
paternidade.
O estudo de Falcke e Wagner (2000) confirma essa percepção. Neste, pôde-se
demonstrar que as mulheres, tanto mães quanto madrastas, ainda trazem um forte legado
transgeracional relacionado ao estereótipo de gênero, ainda que muitas mudanças sociais
venham ocorrendo nesses últimos tempos. Neste caso, pode-se perceber a força e o poder do
mito da maternidade perfeita como uma idéia muito presente, ao qual as mulheres respondem
de forma quase automática.
52

Neste processo, é imperioso reconhecer então que, apesar das intensas e progressivas
mudanças que vêm ocorrendo no sistema patriarcal - mudanças com relação à divisão no
trabalho, com relação à estrutura das famílias, do papel da mulher, brilhantemente comentadas
por Castells (1999), a atitude em relação às mulheres pouco mudou (Rocha-Coutinho, 1994).
A participação no trabalho remunerado não mudou o fato de que, quando estão em casa, cabe
às mulheres a responsabilidade quase total pelos filhos (Chodorow, 1990). Ou seja, flashes
capturados do cotidiano das famílias mostram que o mundo mudou, mas nem tanto assim!
Esta constatação é muito bem expressa nas palavras de Forna (1999), com a qual
somos obrigadas a concordar: “Apesar das mudanças no trabalho e na vida da família de
milhões de mulheres, apesar de falar numa era de pós- feminismo, a atitude em relação às
mães continua colada na idade das trevas”(p.78). Enfim, continuamos a viver numa sociedade
machista.
Para pensar esta contradição, podemos recorrer também a Chodorow (1994, citado por
Castells, 1999), que discorrendo sobre esta manutenção dos papéis sociais nos faz um alerta:
Mulheres, na qualidade de mães, geram filhas com capacidade maternal e o desejo
de elas próprias tornarem-se mães (...) em contrapartida, as mulheres como mães (e
os homens como não mães) geram filhos homens cuja capacidade e necessidade de
criar filhos têm sido sistematicamente reduzidas e reprimidas. Este fato prepara os
homens para sua função considerada primordial, a participação no mundo impessoal
e extra-familiar representado pelo trabalho e pela vida pública.” (p. 265)

Durham (1983) argumenta que, para responder a essas questões, é necessário analisar
em que medida as variações familiares existentes correspondem a adaptações ou extensões do
modelo hegemônico, ou até que ponto implicam em sua contestação. Para essa análise, porém,
é necessário distinguir o significado da família para as diferentes classes sociais. Segundo
interpreta esta autora, para as classes populares, o aumento de famílias matrifocais, sem
provedor masculino estável, "podem ser antes uma demonstração da impossibilidade de
organizar a existência em termos mínimos aceitáveis do que, na verdade, um modelo
alternativo de família" (Durham, 1983, p. 34). Na medida em que se preserva a tradicional
divisão sexual do trabalho - pai-provedor e mãe-doméstica - mesmo em lares onde as
mulheres contribuem para o sustento familiar, "exceções ao modelo, mesmo freqüentes, não
significam necessariamente nem sua contestação nem a emergência de modelos alternativos"
(1983, p. 35).
Ao considerar pois, que a mãe e/ou outras mulheres da família têm tido a
responsabilidade maior na educação das crianças e que, portanto, seu papel na transmissão de
princípios e valores é muito importante, verificamos que, na realidade, é a mulher quem tem
se encarregado da reprodução de representações que a inferiorizam e oprimem. Então, as
atuais avós, apesar de criarem suas filhas para o mercado de trabalho, continuam cobrando
delas a “velha” maternidade e netos. Este legado transgeracional é evidenciado por Chodorow
(1990), ao constatar que ainda hoje a maioria das mulheres continua a maternar, a se casar e a
violência contra elas não está diminuindo.
Acontece, porém, que até há alguns anos atrás, quando as famílias eram mais
numerosas, era comum a filha mais velha cuidar do irmão mais novo. Dessa forma, quando
tinham seus próprios filhos, sentiam-se mais capacitadas e seguras em assumi-los. Hoje em
dia, é mais difícil passar por esta experiência, já que em muitas famílias o número de filhos
tem diminuído consideravelmente e seus membros saem para trabalhar. Assim, à medida que
as famílias se tornam menores, os filhos não têm a oportunidade de adquirir conhecimentos
tratando dos irmãos mais novos; deste modo somente, quando se tornam pais, percebem que
desconheciam por completo o que na realidade significa ser pai e mãe.
Nos cursos pré-natais, as futuras mães dizem muitas vezes que nunca pegaram um
bebê no colo, nunca viram uma criança recém-nascida, nem tiveram oportunidade de observar
53

de perto uma mãe tratar do bebê. “Não há lição de puericultura ou aulas práticas com uma
boneca de borracha numa banheira que possam suprir esta lacuna.”, afirma categoricamente
Kitizinger (1978, p.44). Mesmo diante dessas lacunas, continuamos a cobrar das mulheres o
“velho modelo de mãe”; porém, as mulheres de hoje já não são preparadas, não sabem e nem
querem cuidar de seus bebês como suas mães faziam.
Obviamente, é importante relativizar esta afirmação, visto que não podemos
generalizá-la a todas as mulheres e de todas as culturas, camadas sociais, afiliação religiosa,
meio urbano ou rural, sobretudo porque esses fenômenos são observados prioritariamente nas
famílias burguesas, de acordo com Durham (1983). Certamente, há na diversidade do mundo
feminino muitas mulheres que ainda se encaixam neste antigo modelo.
Há ainda outro importante elemento a ser considerado na constelação que sustenta a
maternidade na era contemporânea: a supervalorização dos filhos. O controle da
natalidade,fez com que, a partir dos anos 70 do século XX, a cultura do filho único se
propagasse. Nesse contexto, um filho passou a ser considerado uma nova espécie de riqueza,
o que, por sua vez difere da situação da família que atuava como uma unidade econômica,
como acontecia no século XVIII, quando em contextos rurais, todos fossem jovens ou velhos
eram considerados mão de obra e a sobrevivência da família dependia do trabalho de todos os
seus membros (Kitzinger, 1978; Tiba, 2002). Assim, um filho era “apenas mais um” e não
tinha um lugar de destaque.
Até o século XVIII, inclusive a infância era curta e dura. A relação mãe-filho, tão
exaltada nos tempos modernos, mal existia. Em Centuries of childhood, o historiador Philippe
Ariès (citado por Forna, 1999) fala que a “idéia de infância” era alguma coisa que
simplesmente não existia, um conceito estranho à sociedade. A criança nascia e, se
sobrevivesse, recebia apenas o sustento que se julgava necessário e muito pouca atenção.
Então, “sem a existência da infância, impõe-se à razão que o estado interdependente da
maternidade também não existia” (Forna, 1999, p. 36).
Hoje, um filho tem um “valor de uma jóia rara!” (Tiba, 2002, p.48). Na nossa cultura
da América, o planejamento é para no máximo dois filhos, nas classes mais favorecidas,
afirma Tiba (2002). Kitizinger (1978) também nos fala que a educação de dois ou, quando
muito, de três filhos tornou-se a função principal da família moderna. Nasce assim, uma
riqueza instintual, idealizada para garantir a conservação da espécie, e espiritual, como
realização humana. As crianças passaram a ser supervalorizadas, tanto pelo Estado como pela
família. Há quem afirme inclusive, que estaríamos vivendo na era do Filiarcado (Grunstun, &
Grunstun, 1984).
No que tange a psicologia, vários autores, como Badinter (1985), Chodorow (1990),
Maldonato, Dickstein e Nahoum (2000), apontam que a preocupação com os problemas
emocionais das crianças é disseminada a partir das influências da teoria psicanalítica
desenvolvida por Freud. É a partir deste autor que os filhos passam a ser reconhecidos como
seres humanos dotados de desejos e necessidades emocionais; e à mãe recai a principal
responsabilidade no seu desenvolvimento equilibrado e saudável. A psicanálise argumenta
que a presença física da mãe é fator decisivo para o desenvolvimento adequado da saúde
mental dos filhos.
Na psicanálise, postula-se que a mãe é o objeto primário de amor para homens e
mulheres. A mãe é responsável pela diferenciação do filho e pela futura identificação, já que o
bebê nasce em um estado de simbiose com a figura materna. A esta figura cabe suprir o amor
e as necessidades da criança. Assim, a mulher continua sendo concebida como ser destinado a
parir e amar o filho que recebe. A maternidade continua sendo designada como uma graça
recebida de Deus.
A partir das distinções feitas por Freud autor para a superação do complexo de Édipo,
fenômeno estruturador da personalidade humana, aponta as dificuldades femininas no que diz
54

respeito à conquista de sua identidade. E esta identidade feminina é vinculada à capacidade de


ser mãe e gerar uma nova vida. No Édipo, a menina constrói a fantasia de que é um ser
incompleto, devido à falta do pênis. Pela “inveja do pênis”, ter um filho, é a única forma que
lhe permite sua completude como mulher. Infelizmente, apesar de serem amplamente
combatidas pelas feministas atuais, como destaca Aleixo (2005) em seu trabalho de tese, essas
teorias ainda são bastante difundidas e tomadas como verdades inabaláveis nos meios
psicanalíticos.
Percebemos que a teoria freudiana é amplamente fundamentada pela concepção
familiar existente na época em que o autor pensava e escrevia. Assim, podemos supor que não
foi por coincidência que as teorias de Freud e sua filha Anna, sobre a importância da presença
e atenção maternas como determinantes para o bom desenvolvimento psicoafetivo da criança,
acabaram por corroborar e apoiar cientificamente as tendências dos anos 50: mandar as
mulheres de volta para casa!
Em uma sociedade em que a mulher normalmente trabalha fora, também é responsável
pelo orçamento familiar e cultiva interesses diversos, o fato de ter esse filho precioso acarreta
conseqüências diversas. Passados mais de trinta anos do início do movimento feminista, ainda
estamos nos debatendo sobre os efeitos das creches nos filhos de mães que trabalham fora e
culpando-as, assim como as mães solteiras ou divorciadas, pelos problemas dos filhos (Forna,
1999).
Portanto, o que pode parecer apenas a ascensão da mulher para um status “superior”,
fruto dos movimentos feministas, mostra, também, a honerosa sobrecarga do quádruplo papel.
Hoje, nos lembra Castells (1999), resta à mulher congregar tanto o papel de provedora como o
de responsável pelos cuidados domésticos, responsável pela criação dos filhos, além de ser
também a zeladora dos vínculos afetivos familiares e conjugais e preferencialmente, sem se
queixar.
Dados do último relatório sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde (Brasil,
2004) confirmam este fenômeno. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) (citado por Brasil, 2004, p.21) “mulheres representam 50,77% da
população brasileira, mas, apesar de serem maioria, são tratadas como cidadãs de segunda
classe”. Sofrem discriminações nas relações sociais, principalmente nas relações de trabalho e
na sobrecarga do trabalho doméstico. Apontam que essas condições são reforçadas pelas
desigualdade de gênero, visivelmente arraigada na sociedade brasileira.
Este relatório demonstra ainda que 71,3% das mulheres empregadas ganham até dois
salários mínimos, contra 55,1% dos homens. Aquelas que ganham mais de cinco salários
representam apenas 9,2% da população feminina economicamente ativa, contra 15,5% dos
homens. As mulheres, além de ganharem menos, estão concentradas em profissões mais
desvalorizadas, têm menos acesso a espaços de decisão no mundo político e econômico,
sofrem mais violência (doméstica, física, sexual e emocional), vivem a tripla jornada de
trabalho, dentre outros problemas citados que comprometem o seu desenvolvimento e saúde
mental. Esses dados revelam que ainda há muito o que se fazer para distanciar
satisfatoriamente a qualidade de vida das mulheres de hoje das de “Atenas”!
Nesse novo estilo de vida familiar, os vários fatores que interagem de forma complexa
têm um papel tanto enriquecedor como deletério para a saúde da mulher. A realização
profissional, por exemplo, proporciona, simultaneamente, benefícios na auto-estima e
acúmulo de papéis. Esta realidade atual implica numa redistribuição dos papéis de homens e
mulheres que têm resultado em sobrecarga para elas. Mas o que se observa é que esta
redistribuição caminha de forma desigual. Há um crescimento acelerado com índices cada vez
mais altos de mulheres saindo de casa e adentranto o mercado de trabalho, enquanto a
participação masculina nos trabalhos domésticos vem crescendo lenta e gradualmente
(Trindade, 1998; Chodorow, 1990; Chodorow, 1978 citado por Castells, 1999).
55

Em outras palavras, poderíamos afirmar que a mulher saiu para o mercado de trabalho
sem contudo deixar de ser mãe e nem por isso, os homens se tornaram mais pais. Só
recentemente alguns começaram a participar mais ativamente da educação dos filhos. Por
outro lado, tanto homens quanto mulheres estão enfraquecidos no exercício de suas funções.
As mulheres estão confusas, desejam ter sua independência financeira, ter sucesso
profissional, serem boas amantes, serem belas, sexualmente atraentes, e continuam tendo que
atender a expectativa do mito da mãe perfeita, exigência que implica em tempo e
disponibilidade (Catão, 2001)7.
Diante desse quadro, Maldonato (2000) também chama atenção para esta tendência em
culpar a mulher - um aspecto importante da mentalidade higiênica e na história da medicina,
sobretudo no Brasil. A mãe do século XVIII era a auxiliar dos médicos; no século XIX,
colaboradora dos religiosos e dos professores. Já no século XX, assume outra
responsabilidade – a de cuidar do inconsciente e da saúde emocional dos filhos. A mãe se vê,
atualmente, diante de uma superabundância de conselhos, freqüentemente conflitantes, para
educar seus filhos. Normalmente, os conselhos são sempre apresentados como “o melhor para
o bebê”, ficando a mãe em segundo plano. Em função das necessidades do filho, tudo deve ser
sublimado e adiado. Roudinesco (2003, p. 146) definiu esse fenômeno como “um fosso
irreversível que parece ter se cavado entre o desejo de feminilidade e o desejo de maternidade,
entre o desejo de gozar e o dever de procriar”. A conseqüência disto, diz Forna (1999), é que
as mães se transformaram em verdadeiros “trapezistas de circo”, voando sem rede de
segurança, sem poder se dar ao luxo de um único erro, sob pena de sentirem a famosa “culpa
materna”.
Frente a tudo o que foi exposto no referencial teórico deste escrito até o momento,
podemos concluir que, revendo a condição de vida das mulheres sob uma ótica histórica,
essas têm sido subalternas, inferiorizadas e pressionadas por uma sociedade que sempre
exigiu delas muitos deveres e obrigações e quase nenhum direito. Entre essas exigências,
espera-se que a mulher goze de boa saúde para procriar, seja sexualmente ativa e disponível,
gere filhos sadios e que, mesmo sem apoio para realizar as tarefas que lhes são atribuídas,
ainda amamente, cuide, proteja, alimente e eduque os filhos, sem reclamações e comportando-
se de maneira terna, compreensiva e sedutora (Nogueira, 2004). Qual seria, então, o papel da
DPP neste contexto histórico-social? Impelidos a compreender esta questão, passaremos a
apresentar os passos para a construção do seu estudo, no capítulo seguinte.

7
Comunicação pessoal no seminário: “Importância da primeira infância para a saúde mental do indivíduo no IV Encontro
Nacional sobre o Bebê”, ocorrida no dia 30 de novembro de 2001 - mesa redonda, em Brasília, DF.
56

CAPÍTULO 5
A CONSTRUÇÃO DO ESTUDO
“Científico não é o que foi verificado,
mas o que se mantém discutível”
Pedro Demo

5.1 – O EMBATE EPISTEMOLÓGICO DA ATUALIDADE

Nas últimas décadas do século XX, começamos a assistir à queda da hegemonia do


modelo positivista no modo se de fazer ciência (Lüdke & André, 1998; Demo, 2001; Morin,
2003; Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004, Martínez, 2005, González Rey, 2002, 2005a).
A obsessão pela objetividade da realidade e pela neutralidade do pesquisador e do sujeito, que
sempre foi marca ostensiva no paradigma modernista da ciência, correspondendo menos ao
que seria a realidade, do que às expectativas do método de análise, foram colocadas em xeque
pela ciência pós-moderna (Demo, 2001; Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004). Assim, o
paradigma clássico que se fundava na suposição de que a complexidade do mundo dos
fenômenos podia e devia resolver-se a partir de princípios simples e lei gerais começou a ruir.
Os princípios positivistas, como o universalismo, o determinismo e o reducionismo, que
se revelaram fecundos para o progresso das ciências naturais, como a física newtoniana, já
não eram suficientes para dar conta das novas questões que se apresentavam no final do
século passado (Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004): a cura das doenças crônico-
degenerativas, a complexidade da partícula subatômica, a microfísica, a termodinâmica, entre
outras tantas.
Essas questões complexas têm imposto questionamentos aos cientistas que se vêem
confrontados com novas verdades e com inúmeras incertezas sobre algumas “verdades”
estabelecidas há muito tempo pela ciência (Castro, 2003, citado por Morin, 2003; Alves-
Mazzotti & Geeandsznajder, 2004). A concepção de realidade da ciência modernista, que é
uma “simplificação grosseira, a reboque da obsessão metodológica, a ponto de considerar real
apenas o que o método consegue captar e formalizar” (Demo, 2001, p. 9), já não é consenso
entre os cientistas atuais.
Esta “crise” do positivismo impôs a necessidade de estabelecimento de um novo
paradigma que rompesse com os limites do determinismo e da simplificação, e incorporasse o
acaso, o obscuro, o imaterial, a probabilidade e a incerteza como parâmetros necessários à
compreensão da realidade atual, constata Morin (2003).
Assim, o momento atual é caracterizado por um embate no campo da ciência. De um
lado, encontra-se o paradigma hegemônico empírico-positivista e, do outro, o que se
convencionou chamar de paradigma subjetivista-construtivista-interpretativo (Brito &
Leonardos, 2001). Grosso modo, este embate é apresentado pelas pesquisas que seguem o
método quantitativo, representando o primeiro paradigma, e as pesquisas que adotam o
método qualitativo, representando o segundo paradigma.

5.2 - A CRISE DOS PARADIGMAS

Horizontes pós-modernos nos sinalizam que a realidade se revela cada vez mais
complexa e, por isto, não se acredita mais que a ciência possa ser dissociada nem do cientista
e nem da sociedade, tanto porque é a ciência o produto da comunidade de pesquisadores que
estão sempre inseridos em culturas determinadas e determinantes (González Rey, 2005a).
Observa-se uma rápida disseminação de pesquisas qualitativas que demonstram a
necessidade de surgimento de novas formas de aproximação do real, a partir de um novo
57

modo de conceber a realidade e a pesquisa (Lüdke & André, 1998, Alves-Mazzotti &
Geeandsznajder, 2004). Apesar da crescente popularidade dessas metodologias, ainda parece
existir muitas dúvidas sobre o que realmente caracteriza uma pesquisa qualitativa, quando é
adequado ou não utilizá-la e como se coloca a questão do rigor científico nesse tipo de
investigação (Lüdke & André, 1998; Britos & Leonardos, 2001).
É necessário esclarecer que tanto o método quantitativo quanto o método qualitativo
têm recebido críticas da comunidade científica. O primeiro, por ser considerado limitado
demais para ser utilizado em pesquisas que buscam apreender a subjetividade do sujeito. O
segundo método tem sido criticado pela sua impossibilidade de ser replicado, e seus
resultados dificilmente observáveis (Ghiglione & Richard, 1994; Alves-Mazzotti &
Geeandsznajder, 2004).
Aparentemente, os resultados obtidos através do método quantitativo são mais
objetivos, precisos e replicáveis, mas também podem ser estéreis e inoperantes, fornecendo
pouco respaldo para uma compreensão global dos processos psicológicos intervenientes.
Geralmente, seus resultados não são suficientes para explicar as percepções, emoções e
experiências das pessoas, tendo em vista que a subjetividade não pode ser reduzida às diversas
escalas psicométricas amplamente utilizadas neste método (Ghiglione & Richard, 1994;
Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004).
O método quantitativo é mais usado em pesquisas objetivas, realistas e validadas,
realizando correlações entre variáveis, cujas hipóteses são testadas experimentalmente. Já o
método qualitativo visa a exploração e o entendimento de questões que afetam a vida das
pessoas e de suas vivências. É mais flexível e adaptável. Estuda a vida humana como
acontece: “a pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o
pesquisador como seu principal instrumento” (Lüdke & André, 1998, p. 11). Para Ghiglione e
Richard (1994), este método está relacionado à descrição do sujeito na sua singularidade e
também na sua totalidade, reconhecendo as múltiplas referências, a globalidade e
complexidade do seu objeto.
Por outro lado, adeptos do método quantitativo afirmam que as pesquisas qualitativas
realizadas sob a égide dos pressupostos do método qualitativo “não passam de uma versão
mais leve e menos fidedigna da real thing da qual são feito os bons estudos quantitativos”
(Eisner & Peshkin, 1990, citado por Brito & Leonardos, 2001). González Rey (2002, 2005a)
corrobora esta idéia afirmando que muitos estudos que se dizem qualitativos, na verdade,
seguem uma metodologia quantitativa, disfarçado pelo uso de instrumentos
qualitativos/projetivos que encobrem uma maneira positivista de fazer ciência. Para este autor,
a diferença entre qualitativo e quantitativo é, portanto, epistemológica e não metodológica.
Na verdade, alguns autores como Brito e Leonardos (2001) afirmam que há um
“pseudo–embate” entre os paradigmas anteriormente citados. Observa-se uma pressa em
definir um novo paradigma que, na opinião dessas autoras, revela uma grande contradição
existente nas metodologias qualitativas. Para elas, tanto a preocupação dos pesquisadores da
linha subjetivista-construtivista-interpretativa em definir critérios de rigor e medidas de
qualidade, quanto a tendência convergente de definir rapidamente um novo paradigma para as
pesquisas qualitativas revelam que “sonho cartesiano da certeza” (p. 7) também habita a
mente destes pesquisadores pós-modernos. Isto sugere a presença de resquícios da
metodologia quantitativa (González Rey, 2002). Para alcançar uma visão complexa da
realidade, não podemos nos fechar em um paradigma, afirmam Brito e Leonardos (2001).
Demo (2001) é outro autor que enriquece este debate, demonstrando um
posicionamento mais flexível e crítico. Para ele, apesar dos abusos, não podemos negar o
quanto a ciência avançou por meio do método lógico-experimental. Sua grande vantagem
está em poder ser replicado por quem duvide ou queira refazer o mesmo percurso, o que não
se aplica com a mesma facilidade no método qualitativo. Por outro lado, Demo (2001)
58

também reconhece o que ele classifica como “os exageros da crítica pós-moderna” a este
método, sobretudo por suas próprias contradições da crítica, ao ser “muito pouco auto crítica
das meta-narrativas circulares, da fragmentação cômoda de todas as teorias e respectivo
relativismo, bem como de um posicionamento iconoclasta fácil de quem ainda tem menos a
oferecer” (Demo, 2001, p. 9). Ele também reconhece que na perspectiva científica pós-
moderna há tópicos muito coerentes que revelam uma tessitura complexa e não linear da
realidade, inclusive da realidade natural, tão necessárias à abordagem adequada do fenômeno
humano.
Em função dessas contradições, Brito e Leonardos (2001) chamam atenção para a
necessidade de uma atitude cautelosa diante de tantas e tão rápidas transformações no campo
científico.As autoras apresentam uma avaliação realística e, ao nosso ver, bastante pertinente
quanto a este momento histórico da ciência, alertando para a precocidade em se afirmar um
novo paradigma para o campo das ciências sociais e humanas, que lhes parece muito mais um
embate pelo poder no meio científico e uma estratégia para silenciar um debate profícuo sobre
pressupostos e princípios de uma campo promissor e ainda em construção. O próprio Morin
(2003) reconhece que sua teoria da complexidade “permanece ainda, com certeza, uma noção
ampla, leve, que guarda a incapacidade de definir e de determinar” (p.8).
Através da sua teoria da complexidade, Morin (2003) critica o paradigma clássico, pois,
para ele, a ciência é intrínseca, histórica, sociológica e eticamente complexa. E enfrentar a
complexidade do real significa confrontar-se com os paradoxos: da ordem/desordem, da
parte/todo, do singular/geral, incorporar o acaso e particular como componentes da análise
científica. É também colocar-se diante do tempo e do fenômeno, integrando a natureza
singular e processual do mundo à sua natureza acidental e factual (Morin, 2003; Alves-
Mazzotti & Geeandsznajder, 2004).
A contribuição de Morin é particularmente importante para as ciências sociais, vistas
por muito tempo como impossibilitadas de apreender a complexidade dos fenômenos
humanos para elevar-se à dignidade das ciências naturais (Lüdke & André, 1998; Figueiredo
& Santi, 1999; Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004). Fatores não materiais que não
fossem suscetíveis de serem medidos experimentalmente nos laboratórios foram considerados
“epifenômenos” sem impacto sobre o organismo e, portanto, ficavam fora das investigações
científicas (Figueiredo & Santi, 1999). Qualquer epistemologia que transcendesse a análise
metodológica dos procedimentos científicos imposta pelo positivismo passaria a ser julgada
como extravagante e sem significado (Chiattone, 2000). Por essa razão, inicialmente, as idéias
de Morin foram severamente criticadas pela comunidade científica. Ele foi duramente
contestado, incompreendido e marginalizado por muito tempo; e, hoje, é amplamente
reconhecido no campo das ciências humanas e sociais.
Neste contexto, concordo com Brito e Leonardos (2001) que talvez ainda seja cedo e
pouco produtivo legitimarmos um novo paradigma para as ciências. A permanência neste
estado pré-paradigmático que, na realidade, é onde nos encontramos, parece ser necessário
para um amadurecimento da pesquisa qualitativa e uma oportunidade para que não
retrocedamos e tomemos o mesmo caminho clássico. Talvez fosse mais apropriado falarmos
de “transição de paradigmas”, como faz Neubern (2004) ao nos convidar a transitar entre o
incerto, o fugaz, entre o que escapa aos dedos da “mão positivista” que carregava a “certeza
racionalista” e os parâmetros claros que buscavam assegurar a verdade. A este respeito, vale
à pena retomar algumas palavras de Morin, sobre sua própria teoria:
Se a reforma do pensamento científico não chegou ainda ao núcleo paradigmático
em que Ordem, desordem e Organização constituem as noções diretrizes que deixam
de se excluir tornam dialogicamente inseparáveis (permanecendo, entretanto
antagônicas), se a noção de caos, ainda não é concebida como fonte indistinta de
ordem, de desordem e de organização, se a identidade complexa do caos e cosmo,
que indiquei no termo caosmo, ainda não foi concebida, só nos resta começar a nos
59

engajar, aqui e ali, no caminho que conduz à reforma do pensamento. (...) Trata-se,
enfim e sobretudo, de transformar o conhecimento da complexidade em pensamento
da complexidade” (Morin, 2001, p. 8).

Neubern (2004) sugere que esta transformação se dê através da mudança de olhar


sobre a realidade, que deve ser observada sob uma ótica inacabada, incerta, ligada à
subjetividade daquele que procura, e que não vai encontrar respostas prontas e únicas, e nem
objetos sólidos, mas que corre o risco de se perder por uma teia de articulações que não
terminam.

5.3 - O CAMPO EPISTÊMICO DA PSICOLOGIA E SEUS IMPASSES: OS CAMINHOS


ALTERNATIVOS PARA A CIÊNCIA PSICOLÓGICA....

Todo este embate científico apresentado anteriormente também teve grande impacto
nas ciências psicológicas. Na verdade, “a psicologia tornou-se possível como ciência
independente, no bojo desta crise” (Figueiredo & Santi, 1999, p. 84). Ainda hoje, a psicologia
é alvo de críticas pelo estágio pré-paradigmático em que se encontra, pois a maioria de seus
membros, não consegue estabelecer um consenso acerca de questões teóricas e
metodológicas. O conhecimento permanece especializado e cada grupo adere à sua própria
orientação teórica e metodológica (Chiattone, 2000).
A pesquisa em psicologia exige a compreensão de processos não acessíveis à
experiência objetiva, o que implica considerar o fenômeno em toda a sua complexidade de
inter-relações, afirma González Rey (1992, 1993, 1995, 1997, 1999, 2001, 2002, 2005b).
Esta tomada de consciência acerca da complexidade dos fenômenos psicológicos, da sua
multideterminação e da possibilidade de múltiplos níveis de descrição e intervenção fez com
que parte da psicologia também se apoiasse nas formas alternativas de fazer ciência. Para
algumas de suas linhas teóricas e de pesquisa, o objeto de estudo da psicologia é a experiência
subjetiva do homem, e este só pode ser tratado cientificamente se for de alguma forma
ampliado o conceito atual de ciência, superando o paradigma positivista.
Vários projetos vieram em contraposição à concepção reducionista da psicologia,
como o comportamentalismo ou o Behaviorismo Radical de Skinner, ainda que tenham
sofrido com o rótulo de “não-científico”. Entre eles, podemos citar as Psicologias humanistas
e a psicanálise, que até hoje sofrem com a estigmatização, por não atenderem aos critérios
positivistas. Apesar disso, cabe lembrar as palavras de Figueiredo e Santi (2001, p. 63) ao
lamentar que “os projetos de psicologia mais interessantes são os que mais dificuldade têm de
se afirmar plenamente em termos epistemológicos e metodológicos”.
Neste cenário de transformações no pensamento científico da psicologia, destacamos
as contribuições de González Rey através da sua construção teórica denominada inicialmente
de Epistemologia Qualitativa (1992, 1993, 1995, 1997, 1999, 2001, 2002, 2005a) e, mais
recentemente, de Teoria da Subjetividade de González Rey (2005a). Este teórico é atualmente
um dos expoentes do “grupo alternativo” (Alves-Mazzotti & Geeandsznajder, 2004, p. 129),
que se inscreve no esforço de diferentes psicólogos, tanto no Brasil quanto no exterior, de
produzir formas de conhecimento alternativas ao empirismo, que caracterizou boa parte da
produção do conhecimento em psicologia. Ele defende uma nova forma de fazer ciência
psicológica, propondo-se a “traduzir” os revolucionários princípios iniciados pela teoria da
complexidade de Morin para o campo da psicologia; assim, como também se propõe Neubern
(2004), ao inserir os desafios epistemológicos da teoria da complexidade para a prática da
psicologia clínica.
É precisamente nesta compreensão complexa do funcionamento psicológico humano e
na teoria elaborada para sua construção que vemos a Teoria da Subjetividade de González
Rey como uma forma por meio da qual o paradigma da complexidade se expressa na
60

psicologia. A apreciação de Martínez (2005) a esee respeito nos dá conta de que a teoria da
Subjetividade de González Rey constitui uma “expressão do paradigma da complexidade na
psicologia, cuja gênese se encontra no pensamento dialético, expresso no enfoque histórico-
cultural do psiquismo humano” (p. 9).
De acordo com Martínez (2005) foi o próprio processo de desenvolvimento da sua
Teoria da Subjetividade, que fez com que González Rey atentasse para a necessidade
epistemológica e metodológica de procurar novos caminhos para a produção de
conhecimentos sobre a subjetividade, sem abrir mão de considerar a complexidade de
compreensão do psicológico. Por isso, foi necessário o seu profundo mergulho na produção e
nos debates filosóficos e epsitemológicos contemporâneos, quando encontrou o paradigma da
complexidade tal como formulado na atualidade. Deste encontro, nasceu a Epistemologia
Qualitativa, sua proposta epistemológica e metodológica para compreender e estudar a
subjetividade humana.
Precisamente, com a publicação de seu livro Epistemologia Cualitativa y Subjetividad,
em 1997, González Rey discute a questão do qualitativo e da subjetividade de forma
explícita, como num marco epistemológico. Este é estreitamente associado com um
posicionamento epistemológico orientado por uma compreensão histórico-cultural da
subjetividade, desenvolvida desde uma perspectiva dialética e complexa. Nas suas várias
obras, González Rey (1992, 1993, 1995, 1997, 1999, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005a e 2005b)
enfatiza a necessidade epistemológica de haver novas formas de produção de conhecimento
perante um novo desafio nesta área:

O estudo da subjetividade a partir de uma perspectiva dialética complexa e histórico-


cultural voltada para a superação das dicotomias tradicionais que proliferaram na
história do pensamento psicológico – social x individual, consciente x inconsciente,
cognitivo x afetivo, intrapsíquico x interativo -, as quais, ainda que sejam
consideradas superadas em muitos contextos, no momento da produção do
conhecimento voltam a aparecer, de forma sutil e, com freqüência, desapercebida
(González Rey, 2002, p. xii).

Por esta visão complexa do homem, optei pelo referencial epistemológico qualitativo
desenvolvido por este autor para desenvolver a minha pesquisa de doutorado. Passarei então a
justificar esta escolha e a apresentá-la no tópico a seguir.

5.4 - A ESCOLHA METODOLÓGICA

A escolha de um método diz respeito à escolha de um caminho a ser seguido. Dessa


forma, deve considerar não apenas os instrumentos a serem utilizados, mas principalmente a
concepção de natureza humana e de mundo à qual o pesquisador confia e acredita. Assim, a
Epistemologia Qualitativa impõe maneiras de pensar o mundo e o ser humano implicado nele,
maneiras estas congruentes e que se adequam à minha subjetividade.
A meu ver, a apreensão da subjetividade feminina, que é o nosso objeto de estudo,
perderia seu brilho e riqueza de significações se construída pelas vias tradicionais de pesquisa,
como bem nos alerta Scott (1990). Segundo esta renomada teórica do gênero, para emergir o
sentido é imprescindível tratar o sujeito individual, seu contexto, e articular a natureza de sua
inter-relação. Ela destaca que, para isso, devemos mudar alguns de nossos hábitos de
pesquisa, como examinar melhor métodos de análise, conceber processos complexos e
explicações significativas e, não, origens únicas, causas gerais e universais.
A epistemologia qualitativa propõe exatamente isso. Ela questiona as formas
tradicionais de produção do conhecimento em psicologia, envolve a compreensão dos
complexos processos que constituem a subjetividade, e não a predição, a descrição e controle
61

da realidade, ainda predominantes no âmbito das pesquisas acadêmicas. Ela inova ao ressaltar
a importância do resgate do sujeito e da sua subjetividade, implicando no reconhecimento da
essência única do ser humano e da importância da apreensão desta realidade subjetiva no
processo de construção e desenvolvimento de idéias.
Assim, entendemos que preceitos da epistemologia qualitativa parecem corroborar as
idéias de Scott (1990), o que reforça ainda mais a nossa escolha metodológica por este marco
teórico, pois ambos os referencias – gênero e subjetividade - nos mostram ser a melhor forma
de apreender nosso objeto de estudo – a vivência da maternidade sob o olhar das mães com
sintomas de DPP.

5.5 - A EPISTEMOLOGIA QUALITATIVA: A CIÊNCIA ENQUANTO PRODUÇÃO


HUMANA

Pesquisando as várias obras de González Rey sobre sua teoria, tentamos sistematizar
seus principais pressupostos teóricos-metodológicos e epistemológicos que passaremos a
apresentar a seguir. Iniciaremos, detalhando os três princípios considerados como
fundamentais para a pesquisa qualitativa, tal como propõe González Rey (2002):
5.5.1- O conhecimento é uma produção construtiva-interpretativa
As constatações empíricas cedem lugar a uma construção de sentidos na qual
pesquisador e pesquisado desempenham papéis ativos. O conhecimento não representa uma
soma de fatos definidos pelas constatações imediatas do pesquisador no momento empírico e
a metodologia deixa de ser vista como o conjunto de procedimentos que definem como usar
os métodos científicos. A produção do conhecimento ocorre por meio de um processo aberto,
irregular e complexo. A pesquisa constitui-se numa relação entre pessoas e não entre
instrumentos, conforme a definição abaixo:
A pesquisa qualitativa não corresponde a uma definição instrumental, é
epistemológica e teórica, e apóia-se em processos diferentes de construção de
conhecimento, voltados para o estudo de um objeto distinto da pesquisa quantitativa
tradicional em psicologia. A pesquisa qualitativa se debruça sobre o conhecimento
de um objeto complexo: a subjetividade, cujos elementos estão implicados
simultaneamente em diferentes processos constitutivos do todo, os quais mudam em
face do contexto em que se expressa o sujeito concreto (González Rey, 2002, p.50-
51).

De acordo com esse autor, na pesquisa qualitativa não se descobre só o que se busca,
pois surgem elementos que, sem terem sido definidos pelo pesquisador, “se convertem em
opções de peso teórico, que podem ser relevantes para o processo de construção de
conhecimento” (p.87). A investigação passa a ser compreendida como processo cíclico, onde
os métodos de apreensão da realidade passam a ser considerados como momentos que se
constituem numa relação humana e dialógica entre o investigador e o investigado. Dessa
forma, esta proposta metodológica busca legitimar o aspecto processual da construção do
conhecimento, ao invés de defini-lo como uma expressão direta de instrumentos. O caráter
interpretativo do conhecimento aparece pela necessidade de dar sentido às expressões do
sujeito estudado, cuja significação para o problema de pesquisa só se dá de forma indireta e
implícita.
5.5.2 - Caráter interativo do processo de produção do conhecimento
As relações entre pesquisador e pesquisado constituem-se como o cenário principal da
pesquisa. O diálogo e a reflexão conjunta entre eles possibilita a emergência de aspectos
importantes que estão subjacentes à expressão do sujeito diante da situação estudada. Os
diálogos que se sucedem na pesquisa implicam um sujeito ativo, exigindo do pesquisador
certa habilidade na definição de indicadores relevantes, a partir dos sistemas de relações que
se desenvolvem no decorrer do próprio processo. Portanto, para González Rey assumir o
62

diálogo no processo de investigação implica que “investigador e investigado entrem em um


processo conjunto de reflexão, no qual cada um vai saindo gradualmente de suas respectivas
trincheiras para entrar em uma relação mais aberta, autêntica e franca, o que não é só
relevante para a qualidade de informação produzida, mas para a própria ética da investigação”
(González Rey, 2002, p. 269).
Para González Rey (2002), a qualidade e a complexidade da informação produzida
pelos sujeitos pesquisados são condições essenciais para a construção do conhecimento sobre
a subjetividade, e “só são alcançadas pela implicação daqueles nas redes de comunicação
desenvolvidas pela pesquisa” (p.56). Nesse processo, o pesquisador e suas relações com o
sujeito pesquisado representam elementos primordiais para a pesquisa. O envolvimento de
ambas as partes facilita o surgimento de indicadores significativos, uma vez que surgem
naturalmente através do interesse comum e da motivação para a reflexão conjunta. Essas
concepções também são encontradas nas idéias de Demo (2001), nas quais defende que a
informação qualitativa deve ser ostensivamente interpretada ao lidar com um “sujeito-
objeto”, e não um mero objeto de análise. Ele reforça a concepção de González Rey, quando
afirma que não conseguimos nos comunicar sem sermos parte do processo comunicativo, e
que essa comunicação se faz mais pelo que há de implícito do que pelo que é dito
explicitamente. Assim, a informação qualitativa não busca ser neutra ou objetiva, mas
permeável à argumentação consensual crítica, dentro de meio termo sempre difícil exarar.
5.5.3 - A singularidade como nível legítimo da produção do conhecimento
A singularidade é legitimada por constituir-se como realidade diferenciada a partir da
subjetividade de cada sujeito. O singular representa um momento crucial para a produção da
informação porque a produção do conhecimento psicológico se dá no âmbito individual. Cada
caso fornece uma diversidade de informações que logo são incorporados na pesquisa como
um todo. Assim, do ponto de vista qualitativo, não importa o número de sujeitos, e sim a
qualidade de sua expressão. Dá-se importância ao estudo de casos como procedimento geral
da pesquisa qualitativa, fato este que adquire seu valor para a generalização pelo que é capaz
de apostar na qualidade do processo de construção teórica.
Portanto, a epistemologia qualitativa, ressalta González Rey (2002), se diferencia da
quantitativa por reconhecer na dimensão da teoria a produção de idéias e pensamentos, e não
a de pressupostos e categorias gerais que simplificam e limitam a produção deste. Então,
como afirmam Booth, Colomb & Willians (2000), o valor do conhecimento não está no
quanto ele pode ser generalizado, mas na capacidade de construção sobre o estudado e na sua
capacidade de ajudar os outros a evoluir na compreensão e na maneira de pensar o tema
pesquisado
Ressalta-se também o caráter singular do pesquisador, que a cada momento contribui
com elementos inéditos e desafiadores para a pesquisa, questão desconsiderada na pesquisa
quantitativa clássica: “a produção de conhecimento resulta de uma complexa combinação de
processos de produção teórica e empírica que convergem no pesquisador, que, como sujeito
da pesquisa, não segue de forma rígida e linear nenhuma das duas vias” (González Rey 2002,
p.68). González Rey resgata sujeito-pesquisador como o centro da investigação, e a
subjetividade reaparece no contexto científico após ter sido preterida por muito tempo pela
objetividade e neutralidade do positivismo, no qual tanto o pesquisador e o pesquisado
perguntam e respondem secamente, evitando envolvimentos; tanto o pesquisador tenta não
influenciar o pesquisado, quanto este deve apenas respondê-lo da forma mais objetiva
possível (Demo, 2001).
Esses três princípios básicos dão suporte a outros fundamentos que norteiam o
processo da pesquisa, na perspectiva da epistemologia de González Rey que, em termos
práticos, estão interligados. Vejamos alguns deles:
5.5.4 - O problema de pesquisa
63

A definição do problema de pesquisa nesta abordagem qualitativa, contrariamente à


pesquisa positivista tradicional, não aparece como entidade estática, mas como um momento
de reflexão do pesquisador no sentido de levantar questionamentos, sem pretensão de se
chegar a respostas finais: “Ao conceber a pesquisa orientada para a produção de
conhecimento, e não de dados, essas idéias começam seu complexo e contraditório curso no
momento da definição do problema” (González Rey 2002, p.73).
5.5.5 - O papel da teoria na construção do conhecimento:
A teoria ocupa um lugar de destaque na produção do conhecimento, pois constitui-se
num processo que vai além da relação sujeito-objeto: “nenhuma teoria pode ser considerada
resultado final, capaz de dar conta em termos absolutos do estudado” (González Rey, 2002,
p.60). A elaboração teórica é um processo gradativo que cresce por meio de sua própria
história, na qual os “dados-indicadores” são ressignificados em diferentes momentos
qualitativos. A elaboração teórica se desenvolve em dois níveis relativamente independentes
entre si: o nível de produção teórica, que acompanha o curso da pesquisa empírica, e o nível
de produção teórica, que caracteriza o desenvolvimento de uma teoria geral, a qual mantém
relação ainda mais imediata e indireta com o empírico. Dessa forma, momento empírico e
teórico caminham juntos, representando o último, um instrumento a ser investigado,
contestado, o que conduz a novas descobertas e a mudança.
Para a epistemologia qualitativa, não existe uma separação rígida entre a teoria e o
momento empírico, inclusive as especulações e contradições formuladas são bem vindas. O
pesquisador está exposto permanentemente a se defrontar com o novo, motivo pelo qual se vê
obrigado a desenvolver conceitos e explicações que dêem sentido às novas experiências, para
incluí-las no processo de construção de conhecimento. Por essa razão, não há exigência de
levantar hipóteses formais sobre o problema, pois não se tem objetivo de provar ou verificar o
fenômeno, mas de descrevê-lo da melhor maneira possível, no sentido de construir um
conhecimento a seu respeito (González Rey, 1997)
5.5.6 - O papel do empírico na produção de conhecimentos científicos
Nesse tipo de metodologia, contempla-se a dialética dos fenômenos que constituem o
processo de conhecimento. As constatações empíricas cedem lugar a uma construção de
sentidos na qual pesquisador e pesquisado desempenham papéis ativos. O pesquisador
enfatiza os vários indicadores obtidos como elementos interligados e significativos, passíveis
de interpretação subjetiva. O objetivo é levantar indagações, e não apresentar um resultado
acabado e fechado em si mesmo, diferentemente da postura mais clássica da pesquisa
qualitativa, na qual o momento empírico sempre foi reconhecido como a coleta de dados que
logo seriam interpretados pelo investigador.
5.5.7 - Os instrumentos para produção de informações
A construção do conhecimento é um processo que acontece durante todo o
desenvolvimento do estudo, e não apenas no momento de aplicação de instrumentos e busca
de informações ou resultados. A definição dos instrumentos de pesquisa responde à
necessidade gerada no decorrer do processo (González Rey, 1992, 1993, 1995, 1997, 1999,
2001, 2002, 2005b).
Vistos dessa maneira, os instrumentos utilizados para a produção de informações
fazem parte da estratégia interativa planejada para o desenvolvimento da pesquisa. Por isso,
devem facilitar ao máximo a expressão subjetiva do sujeito. Essa metodologia se propõe a
utilizar instrumentos abertos e variados por facilitar a construção de indicadores relevantes da
constituição subjetiva do sujeito. Enfim, entende-se que os instrumentos para a epistemologia
qualitativa é uma ferramenta interativa, não uma via objetiva geradora de resultados capazes
de refletir diretamente a natureza do estudado independentemente do pesquisador. Ademais,
uma multiplicidade de recursos instrumentais pode ser usada no processo investigativo, pois
não se limitam às primeiras expressões do sujeito diante deles
64

5.5.8 - “Os dados não são dados”


A coleta de dados, característica das pesquisas positivistas, é substituída na
epistemologia qualitativa pela construção contínua e a valorização de todos os momentos que
se referem à pesquisa. Faz-se a crítica à idéia de que os dados falam por si só, pois, na
verdade, a realidade não é “dada”, mas construída! Ou, como afirmam Lüdke e André (1986,
p. 4): “Os fatos, os dados não se revelam gratuita e diretamente aos olhos do pesquisador.
Nem este os enfrenta desarmado de todos os seus princípios e pressuposições”. Assim, o
momento empírico não representa apenas a “coleta de dados”, mas significa um momento de
produção da informação, onde as idéias e os conceitos do pesquisador, assim como o
momento histórico-social-cultural no qual este processo está ocorrendo, são momentos
permanentes da produção da informação. Por isso, trabalha-se com indicadores, e não com
“dados”. Os dados existem e se integram ao processo, mas não são considerados como fontes
definitivas/absolutas das conclusões.
Assim, considera-se a realidade como um real subjetivado, e não como uma dimensão
externa à subjetividade, que permite ao homem chegar a novos territórios do real, inacessíveis
em termos de “dados” objetivos imediatos, possibilitando ainda, que o pesquisador seja em si
mesmo o instrumento. A realidade entra na teoria não só como expressão da intencionalidade
do pesquisador, mas por sua função constitutiva no pensamento humano. Não existe o
objetivo de “enquadrar” ou “classificar” o sujeito estudado, como na postura mais clássica,
mas, sim, enfatizar o sentido subjetivo de sua experiência. O sentido é adquirido por meio da
construção e da interpretação do pesquisador, que legitima o “dado” pela sua capacidade de
diálogo. Dessa forma, a pesquisa qualitativa não se destina a provar ou verificar nenhuma
hipótese, mas sim construir conhecimento a partir da valorização da subjetividade humana.
Demo (2001) comunga desta postura científica de obter “dados” pela via da
interpretação ostensiva, para além dos dados comumente buscados na pesquisa empírica
estatisticamente controlada, pois chama atenção para o fato de que mesmo neste tipo de
pesquisa o dado também é submetido ao efeito interpretativo, porque ele por si só, já é o
resultado teórico e naturalmente exposto ao apelo ideológico e ao olhar subjetivo do
pesquisador. Portanto, em vez da informação pretensamente “objetiva”, da qual não se
poderia duvidar, vou privilegiar nesta pesquisa a informação interpretativa, da qual é
necessário sempre duvidar e que precisa ser refeita. Este tipo de “dado” é portanto sempre
construído, não simplesmente colhido.
65

CAPÍTULO 6
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
“ Daquilo que sabes conhecer e medir,
é preciso que te despeças,
pelo menos por um tempo.
Somente depois de teres deixado a cidade
verás a que altura suas torres se elevam acima das casas.”
Nietzsche

Se a pesquisa será compreendida como uma construção, seu método deverá ser aberto,
sujeito a revisões a idas e vindas, adequações e mudanças no meio do percurso (Penso, 2003).
A descrição, a seguir, pretende retratar os caminhos percorridos para a construção do nosso
objeto de pesquisa. Ressaltamos que, como propõe a Epistemologia Qualitativa, os momentos
de aproximação e interpretação da realidade, resultando numa produção teórica, não são
separados, ao contrário, interagem o tempo todo, num processo recursivo. Assim, as
separações são meramente didáticas, com o objetivo de facilitar a compreensão de como esta
investigação se constituiu.

6.1 - O PERCURSO DE PESQUISADOR

Como vimos anteriormente, a forma de conhecimento exigida hoje em grande parte


das ciências humanas, é o de um saber compreensivo e íntimo, que não separe o pesquisador,
mas que o permita fazer parte do conteúdo que ele o mesmo estuda. Nesse sentido, essa
metodologia adotada reconhece que as nossas trajetórias de vida pessoal e coletiva, os valores,
as crenças e preconceitos estão de forma bastante presente no nosso discurso científico e na
nossa forma de produzir conhecimento. Assim, o caminho percorrido pelo pesquisador, na
esfera pessoal e profissional, abre espaço para a sua aproximação com a realidade, pois esse,
como ser de história única e detentor de uma subjetividade, constitui-se como sujeito ímpar na
redefinição de proposições e na visão de novas possibilidades a serem construídas e
transformadas.
Baseada nesta premissa, descreverei, a seguir, meu percurso enquanto mulher no
mundo, vivências, sofrimentos, percepções e superações, elementos constitutivos na definição
da minha subjetividade, os quais viabilizaram a construção do meu “objeto” de pesquisa,
como também permeiam o processo de construção e discussão desta elaboração investigativa.
6.1.2 - Quem é a pesquisadora?

Sou graduada em psicologia pela Universidade de Brasília- UnB, no ano de 1992. Como
a maioria dos alunos em psicologia, tive uma formação generalista, mas com ênfase na
psicologia clínica, área na qual realizei meus estágios curriculares. A despeito desta ênfase, no
final da minha graduação, despertou-me o interesse a área da saúde. Desde então, os meus
estudos e minha prática em psicologia vem se concentrando nesta área. Tão logo terminei
minha graduação, realizei um estágio extra-curricular na Enfermaria de Cirurgia Pediátrica do
HUB, que consolidou minha opção por esta área. Tanto que, algum tempo depois comecei a
trabalhar como Psicóloga Hospitalar no Hospital SARAH.

Paralelo a minha admissão neste hospital, retornei à Universidade de Brasília para


ingressar no Mestrado em Psicologia, pretendendo estudar as implicações psicológicas de
curar-se e sobreviver ao câncer na infância. O resultado dessa investigação foi a produção de
minha Dissertação de Mestrado8, concluída em 1997. Continuei trabalhando no SARAH,

8
Dissertação intitulada: Sobreviver ao Câncer Infantil: uma vivência paradoxal, (Arrais, 1997), realizada sob a
orientação da professora Dra Tereza Cristina C. F. de Araújo.
66

onde pude aprimorar ainda mais meus conhecimentos e minha prática profissional. Durante os
cinco anos em que trabalhei nesse renomado Centro de Reabilitação, atuei no Setor de
Paralisia Cerebral Infantil, na Enfermaria de Pediatria, no Ginásio e Ortopedia Infantil, no
Ginásio de Ortopedia Adulto e implantei o serviço de psicooncologia na enfermaria de
Oncologia. Tive, portanto, a oportunidade ímpar de vivenciar as mais diversas problemáticas
que envolviam crianças, adolescentes, adultos e suas famílias que enfrentavam a morte,
patologias crônicas, degenerativas, mutilantes, enriquecendo, sobremaneira, minha
experiência profissional e pessoal. Permito-me afirmar, inclusive, que a vivência profissional
nesta Instituição de Saúde foi tão valiosa quanto uma pós-graduação.
Após esses anos de atuação no ambiente hospitalar, resolvi seguir a carreira acadêmica e
passei a trabalhar como professora de Psicologia na Universidade Católica de Brasília. Nesta
Instituição de Ensino Superior, onde trabalho até hoje, sou professora das disciplinas de
Psicologia Hospitalar, Psicologia da Reabilitação, Intervenção em Crise, Estágio
Supervisionado em Psicologia Hospitalar e Orientação de Trabalho Final de Curso. Nesta
universidade também me envolvi em programas de Extensão Universitária, onde tive a
oportunidade de coordenar o projeto de Atenção a Portadores de LER/DORT que era
oferecido a funcionários da própria UCB e de outras empresas. Este tema me motivava
bastante, pois ficava sensibilizada com o descaso e com o sofrimento físico e psíquico aos
quais esta população era submetida. Minha motivação era tanta que decidi aprofundar-me
teoricamente e sistematizar os meus conhecimentos provenientes da minha prática, em mais
uma pós-graduação. Com essa inquietação, ingressei no Programa de Doutorado da
Universidade de Brasília, sob a orientação do Professor Dr. Fernando Luiz González Rey,
para investigar a configuração subjetiva dos portadores de LER/DORT.
O contato com este orientador me permitiu o aprofundamento em leituras sobre o
pensamento pós-moderno na ciência e os questionamentos epistemológicos implicados, assim
como me ajudou a definir qual seria a forma de compreender a realidade que eu me propunha
a estudar e, conseqüentemente, as metodologias de pesquisa que eu adotaria. Identifico-me
muito com esta nova forma complexa de fazer ciência, que vem se delineando nas últimas
décadas. Acredito que eu mesma sou fruto dessas transformações, já que minha perspectiva
metodológica também foi mudando ao longo do meu próprio desenvolvimento como
pesquisadora. Vejo uma clara distinção entre o modelo metodológico adotado para realizar
minha pesquisa de mestrado e o modelo que adotei na atual pesquisa de doutorado.
A investigação de mestrado constituiu-se de um estudo exploratório, que teve como
objetivo descrever e compreender a experiência de sobreviver ao câncer sob o ponto de vista
da criança e de seus pais, bem como identificar os significados por eles atribuídos à vivência
da doença e do tratamento e evidenciar os modos de reinserção e adaptação. Esta investigação
foi desenvolvida com base no método clínico, mas privilegiando uma metodologia
integradora que permitisse uma abordagem complementar entre as análises quantitativa e
qualitativa dos dados. Apesar de reconhecer que, naquela época, eu já valorizava a
experiência e a subjetividade do sujeito ao integrar uma perspectiva qualitativa no estudo,
num esforço para superar as reminiscências do positivismo, hoje, avalio que esta integração,
entre os métodos qualitativos e quantitativos, foi talvez, uma forma disfarçada de continuar
atendendo aos princípios positivistas, como bem alerta González Rey (2002).
Atualmente, me incluo no “modo alternativo” de construir a ciência. Na verdade,
desde minha graduação em psicologia, nunca me identifiquei com a maneira reducionista que
grande parte da psicologia tratava seu objeto de estudo e sempre procurei estudar linhas mais
humanistas e psicodinâmicas. No entanto, ainda que não me identificasse, fui formada nos
moldes cartesianos e, por isso, ainda hoje é muito difícil escapar do “fantasma do
positivismo”. Esta tese de doutorado é mais um esforço para superar o olhar positivista e
67

poder compreender melhor, mais integralmente e legitimamente, o que entendo que seja o
verdadeiro objeto de estudo da psicologia - a subjetividade humana.

6.2 - APROXIMAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO

A idéia deste estudo tem uma data precisa de nascimento. Ela nasceu três dias após
nascimento da minha primeira filha, que está atualmente com 4 anos de idade. Foi quando
percebi a necessidade de entender o que se passava comigo naquela ocasião.
A chegada de Ana Clara trouxe tanto impacto à minha vida que recorri aos livros,
numa tentativa ingênua de me sentir menos impotente diante da “crise” em que estava imersa.
“Vivi na pele” a revolução que a maternidade provoca em todas as dimensões de nossas vidas:
profissional, conjugal, familiar, social, emocional, financeira, existencial... E percebi que as
mães estão muito sós, ou melhor, quase sempre estão acompanhadas da culpa. Passei, então, a
me dedicar e a estudar a maternidade e suas repercussões, incluindo a DPP.
Minha filha foi muito desejada e planejadíssima! Cheguei a calcular o dia mais viável
para o seu nascimento, de modo que eu pudesse aglutinar a licença maternidade com minhas
férias docentes e para ficar mais tempo dedicada exclusivamente a ela. Preparei durante anos
o “terreno” para a sua chegada. Aguardei estar com minha vida profissional e conjugal mais
estáveis, aguardei concluir minha pós-graduação, esperei ter uma idade mais madura, na
esperança de que isso garantisse a famosa maturidade emocional para ser mãe.
Engravidei na primeira tentativa para concebê-la, aos trinta anos. Desde o momento
da concepção, o qual acho que sei precisar a hora e o dia, tive certeza de que ela estava a
caminho. Sempre desejei ter uma menina e cheguei a sonhar, na noite em que ela foi
concebida, que recebia um bilhete, num papel em forma de um vestido, onde estava escrito: “
É uma menina!!!”. Três meses depois, descobri através da ultrassonografia que o bebê que eu
gestava era de fato UMA MENINA!!! Para minha alegria, do pai e dos avós. Foi uma festa!
Estava correndo tudo dentro do sonhado. Tive uma gravidez maravilhosa, não sofri
com enjôos, não adquiri muito peso, minha pressão arterial manteve-se estável, trabalhei
normalmente. Minha filha crescia saudável e eu fazia questão de acompanhar seu
desenvolvimento através das ultrassonografias (fiz umas dez durante a gravidez!). Preparamos
o seu enxoval, o quarto, os álbuns, escolhemos o seu nome. Fiz parte de um grupo de
gestantes, com encontros semanais. Fiz todo o pré-natal regularmente. No final da gravidez,
quando estava com 39 semanas de gestação, comecei a entrar em trabalho de parto. Em
poucas horas, estava dando à luz a minha filha, através de um parto vaginal, rápido e fácil.
Até aqui estava tudo correndo muito bem, todos os meus desejos e sonhos estavam se
realizando. Minha filha nasceu grande, saudável e parecia uma “linda bonequinha”!
Meu marido acompanhou o parto, se emocionou e chorou ao vê-la pela primeira vez. E
eu, que me emocionei várias vezes enquanto estava grávida, imaginando o momento do seu
nascimento, não chorei! Todos me diziam que era um momento mágico, único, de pura
emoção, e não foi assim que eu senti. Fiquei muito mais preocupada em ver se ela estava bem,
em garantir que meu marido se apaixonasse por ela e a acompanhasse nos seus primeiros
momentos. Queria mostrá-la logo para minha família que aguardava do lado de fora do centro
obstétrico. Talvez por isso, infelizmente, não fui tomada pela grande emoção, tão esperada.
Foi a primeira grande decepção! Onde estava aquele amor todo que iria tomar conta de mim
no momento em que eu colocasse os olhos em minha filhinha?
Depois, já no quarto, tentei amamentá-la ao seio. Não achei que teria maiores
dificuldades, afinal bastaria colocá-la junto a mim que ela e eu saberíamos instintivamente
como fazer. Outro engano! Minha filha apresentou dificuldades para pegar o seio, e chorava
muito. Apesar de produzir muito leite materno- até me tornei doadora para bancos de leite - a
amamentação virou um tormento. Meus seios fissuraram, a ponto de sangrarem enquanto ela
68

mamava. Era uma dor enorme. Ficava arrepiada quando chegava a hora de amamentá-la.
Passava as noites acordada com medo de não ouvi-la chorar. Não conseguia compensar o
sono de dia porque sempre recebia visitas de amigos e familiares que vinham dar as boas
vindas e dar “dicas” de como eu deveria proceder. Resultado: ao final da primeira semana
após o seu nascimento, percebi-me “à beira de uma ataque de nervos”! Além do enorme
cansaço, sentia-me hipervigilante, chegando a apresentar piloereção, taquicardia e acentuada
labilidade emocional. Olhava para minha filha e a achava linda demais, e eu não merecia
tanto. Depois, chorava por achar que não conseguiria cuidar dela. Depois, sentia-me
orgulhosa por ter “recebido” tamanho “presente” de Deus. Logo após, chorava de dor nos
seios. Enfim, foram os dias mais intensos da minha vida!!!
Passei dias sem sair de casa, mal tinha tempo para tomar banho e me alimentar.
Lembro-me da primeira vez que a levamos ao pediatra. Ela estava linda, com uma roupa rosa
maravilhosa, laços nos cabelos, envolta em uma manta ricamente bordada. Era uma
verdadeira princesa! E eu parecia a “gata borralheira”. Estava horrível, trajando um vestido de
gestante, pois minhas roupas “normais” ainda não me cabiam, uma sandália baixa e o cabelo
descuidadamente amarrado. Estava horrorosa e nem havia me apercebido disso. Nessa
consulta o pediatra disse que minha filha não estava ganhando peso como deveria e que eu
não a estava amamentando suficientemente. Nossa! Senti como se tivesse recebido uma
facada no peito. Fiquei arrasada, mal contive o choro. Eu não estava sendo uma mãe
suficientemente boa...
Os dias foram passando e me percebia muito triste, cansada e estressada. Perguntava-
me onde estava aquela vida maravilhosa que um filho iria me trazer? Senti-me enganada por
todos, pela sociedade, por minha família, pelo mundo! A maternidade não estava sendo
“nada” do que haviam me dito. As outras mulheres, inclusive minha mãe e sogra, nunca
haviam me contado esta parte da maternidade, a não ser de forma caricata: “ aproveite para
dormir, enquanto o bebê não nasce, pois você nunca mais vai dormir na vida”, me diziam no
final da minha gravidez. E eu pensava: “ não deve ser tanto assim, as pessoas estão
exagerando, caso contrário, a mulheres não continuariam a ter tanta vontade de ter filhos!”.
Minha sensação de ter sido ludibriada era tanta, que desejei recorrer a algum órgão
competente para reclamar! Pensei no PROCON, mas este não atenderia a minha reclamação.
Queria a minha vida “de volta”! O pior de tudo é que não me sentia a vontade para falar desta
vivência para minhas amigas, minhas tias, e pessoas em geral. Parecia que algo estava errado
na minha história enquanto mãe e eu não sabia o que era. Sentia-me inadequada e fracassada
neste novo papel.
Foi imersa neste “caos” puerperal que passei a procurar informações que dessem
sentido a esses sentimentos e comportamentos tão estranhos à concepção que eu tinha de
maternidade. Recorri aos “livros”, já que percebia que as pessoas não conseguiam “ouvir”
minhas “queixas”. Lembro-me bem de uma colega psicóloga que foi me visitar, do momento
que eu tentei falar do que estava sentindo e ela disse: “ Imagine, você com DPP?” e riu. Neste
momento, recuei e me senti fracassada não só como mãe, mas como também psicóloga.
Como? Eu, psicóloga e mestre na área do desenvolvimento humano, não previ ou não sabia
que tudo isso poderia acontecer?
“Devorava” cada artigo, cada livro que pudesse me esclarecer sobre o que estava me
acontecendo. Passei a ler e a me interessar exclusivamente pelo tema da maternidade, e não
conseguia mais ler sobre outros temas em psicologia, inclusive o tema do meu projeto original
de doutorado. Apesar de reconhecer a importância daquela problemática, a mesma foi
sobreposta pelas inquietações que a maternidade me trouxeram.
Foi neste contexto que encontrei, ouvi e li relatos de outras mães “desesperadas” e
descobri uma rica literatura sobre a maternidade, que trazia “um ponto de vista diferente do
que era ser mãe”. Lembro-me especialmente do livro de Moreira (1993) “Ser mãe é padecer,
69

mas não no paraíso. É a ditadura do peito”. Além disto, comecei a conhecer outras mães que
sofriam “sozinhas e caladas” como eu, e me dei conta de que este tema não era devidamente
abordado pelos profissionais de saúde, nem mesmo por aqueles que lidam diariamente com as
mães e seus bebês, como pediatras e ginecologistas/obstetras. Percebi, então, que esta
temática da DPP e da maternidade merecia ser melhor estudada para que as mães e seus bebês
fossem melhor diagnosticados e conseqüentemente tratados.
Foi pela vivência desta “revolução maternal” que abandonei o meu projeto inicial do
doutorado e mudei meu objeto de estudo e de interesse a ser desenvolvido no programa de
doutorado. Assim recomecei da “estaca zero”, já no meio do doutorado, e passei a me
aprofundar na literatura sobre a maternidade, relação mãe-bebê, psicopatologias do puerpério,
filhos, etc. Esses temas passaram a ser meu foco de estudo. À medida que fui penetrando
nesta área, tanto em termos teóricos como práticos, percebia o quão complexo e difícil era
constituir este novo papel – ser mãe - e também quão igualmente complexo deveria ser o
método para estudá-lo. Sentia também o quão solitária é esta nova empreitada psicossocial:
criar um filho. Esta constatação me fez refletir sobre uma grande demanda por escuta e apoio
represada que deveria existir em muitas mulheres, quando elas se deparam com a realidade
da maternidade, assim como aconteceu comigo. Percebi que nós mulheres, sobretudo aquelas
que estavam sofrendo com a depressão pós–parto, precisávamos nos ajudar a enfrentar esta
nova realidade para construir uma maternidade mais saudável.
Foi com base nessa reflexão que resolvi criar o Grupo de apoio e orientação a mães
com DPP, com o objetivo de ajudar - a mais só de todas as mães - aquela com este
diagnóstico. Foi, portanto, o “grande encontro” com a maternidade, e ver as grandes
surpresas, nem sempre agradáveis, que me motivou a fazer um trabalho, onde as mães fossem
prioridade. Obviamente escutar as mães “ao vivo” seria fundamental para a construção desta
tese. Mas, eu poderia fazer isto através de algumas entrevistas para “coleta de dados”. Eu
queria mais. Queria, de fato, proporcionar um espaço de escuta, para que elas (e também eu!)
pudessem dividir seu sofrimento, suas alegrias, expectativas e experiências com a
maternidade, sem serem alvo de julgamentos ou imposições culturais. Portanto, o grupo não
seria apenas um trabalho de campo, mas seria em primeiro lugar, um espaço terapêutico.
Ademais, quando havia começado o grupo, descobri-me grávida novamente. Eu era a
própria maternidade personificada! Acho que isso influenciou positivamente no trabalho, pois
o fato de já ser mãe e de estar grávida, pareciam dar mais respaldo aos meus questionamentos,
pois falava de um lugar sabidamente “vivido”. As participantes do grupo viam que, mesmo
sendo mãe, eu me permitia alguns questionamentos sobre a maternidade, muitas vezes
polêmicos, e percebia que aquilo as mobilizava e dava abertura no mesmo sentido. Penso que
era como se elas também pudessem se permitir questionar a maternagem que estavam
vivendo, a partir do meu discurso. De certa forma, era como se tivessem um aval, de uma
mãe, além de tudo psicóloga e professora, para também questionar.
E o questionamento é o instrumento “chave” neste trabalho de reconstrução da
identidade feminina e materna. Disponibilizei-me em proporcionar este espaço, ainda que eu
mesma também estivesse “tateando” no papel de mãe, pois mais do que construir uma tese de
doutorado, me interessava melhorar a condição da mulher na nossa sociedade, denunciando a
“farsa” da maternidade instintiva e cor-de-rosa!
Além disso, eticamente me sentiria pouco confortável em apenas “colher dados” sem
oferecer nada em troca. Sinto uma obrigação ética em devolver a “ajuda” que as participantes
do trabalho me deram, ao se exporem para mim e me contar dos seus sofrimentos. O retorno
terapêutico, através do grupo e da disponibilidades em atendê-las individualmente até hoje
quando necessitam, foi a forma que eu encontrei para recompensá-las por sua valiosa
contribuição para construir meu estudo. Posso adiantar que o trabalho com o grupo foi uma
experiência ímpar, profícua e sem dúvidas terapêutica, não só para as mães participantes, mas
70

também para mim, mãe-pesquisadora, que pretendo relatar em artigos científicos e em


congressos, no futuro.

6.3 - OBJETIVOS GERAL E ESPECÍFICOS DO ESTUDO

Pretende-se com esta investigação compreender as configurações subjetivas que estão na


base da depressão pós-parto em mães com este diagnóstico. Para tanto, nosso objetivo geral se
decompõe nos seguintes objetivos específicos:
- Compreender os sentidos subjetivos da DPP, que se organizam nas diferentes configurações
subjetivas apresentadas nas mães estudadas;
- Tecer uma análise crítica do diagnóstico de DPP enquanto entidade padronizada,
estimulando a sua despatologização.
- Apresentar uma alternativa teórico-metodológica para a compreensão e o estudo da DPP;
- Contribuir para a desmitificação da maternidade exclusiva, e da DPP, demonstrando e
valorizando a diversidade subjetiva de maternagem nas mulheres estudadas.
71

CAPÍTULO 7
A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO

7.1 - APRESENTAÇÃO DAS MÃES PARTICIPANTES DA PESQUISA

Participaram desta pesquisa 13 (treze) mulheres, com idades variando entre dezoito e
trinta e oito anos, todas procedentes do Distrito Federal e entorno. A escolaridade variou
desde o ensino fundamental à pós-graduação. Todas já eram mães de pelo menos um filho e
no momento encontravam-se no período do pós-parto, com bebês com idades variando entre 7
dias e 11meses de vida. A maioria delas (7 casos) tinha até dois filhos e as outras seis tinham
apenas 1 filho. Das 13 participantes, apenas duas eram solteiras e 4 viviam maritalmente com
seus companheiros. A maioria tinha uma profissão, mas 6 delas não trabalhavam fora de
casa, dedicando-se exclusivamente às tarefas domésticas e maternas.
Na época dos atendimentos, todas as mães trabalhadoras encontravam-se em licença-
maternidade, sendo que uma delas estava de licença-saúde, em função da DPP, e duas
estavam retornando ao trabalho. Nove mães pertenciam a famílias de classe média, e as
demais pertenciam a classe sociais menos favorecida, conforme suas rendas familiares
mensais. O quadro abaixo caracteriza sinteticamente as participantes da pesquisa:

Nome Idade Estado Natural N.º/ Escolaridade Ocupação Classe social


Fictício civil filhos
Gabriela 33 anos Casada Gama - DF 02 Graduação Professora Classe média
Kátia 20 anos Casada Taguatinga- DF 02 Ensino médio Do lar Classe baixa
Larissa 31 anos Casada Gama - DF 01 Pós-graduação Professora Classe média
Marta 37 anos Casada Goiânia- GO 01 Graduação Assistente social Classe média
Lúcia 27 anos Vive Ceilândia - DF 01 Ensino médio Auxiliar de Classe baixa
marital incompleto limpeza
mente
Clarissa 36 anos Casada Porto Alegre 02 Ensino médio Do lar Classe média
RS
Cristina 26 anos Casada Ibicaraí (BA) 02 Ensino médio Secretária Classe média
Isabela 38 anos Solteira Ipuerias (CE) 02 Ensino Vendedora Classe baixa
fundamental ambulante
Júlia 28 anos Vive Brasília (DF) 01 Graduação Funcionária Classe média
marital administrativa
mente
Carol 18 anos Solteira Brasília (DF) 01 Ensino médio Desempregada Classe baixa
Paula 22 anos Casada Ipameri (GO) 01 Ensino Médio Desempregada Classe média
Rita 31 anos Vive Miracema do 03 Magistério Do lar Classe baixa
marital Norte (TO)
mente
Vanessa 23 anos Vive Paracatu (MG) 02 Ensino Do lar Classe média
marital fundamental
mente incompleto
Quadro 1- Caracterização das participantes da pesquisa

7.2 – RECURSOS INSTRUMENTAIS PARA PRODUÇÃO DE INFORMAÇÕES


Congruente com nossa opção metodológica, vários foram os recursos utilizados para
produção de informações sobre a vivências das mães que participaram do estudo.
Privilegiamos as sessões de atendimento psicoterápico em grupo para o levantamento de
informações sobre a experiência vivida, mas também, utilizamos outros recursos
complementares. Antes de apresentá-los, gostaríamos de lembrar algumas palavras de
González Rey, quando refere-se aos instrumentos de pesquisa:
Los intrumentos son verdaderos "trechos vivos" de información, cuando
conseguimos convertir nuestra relación con los sujetos estudiados en un espacio
72

productor de sentidos subjetivos, donde su expresión con y ante el investigador,


cobra un sentido particular para el sujeto. El sujeto aparece ante estos instrumentos
en su complejidad real. Los sentidos son imposibles de reconocer en expresiones
puntuales y directas ante preguntas del investigador, el sentido subjetivo aparece en
la medida en que el sujeto consigue expresarse de forma libre, creativa y
personalizada en un espacio y sobre un tema que facilita la producción de sentido.
(González Rey, 2005b, p. 49).

Isto posto, apresentaremos, a seguir, a diversidade dos recursos instrumentais


utilizados na investigação.

7.2.1 – Instrumento de Completamento de Frases

Um dos principais recursos utilizados para facilitar a expressão das participantes foi o
Instrumento de Completamento de Frases, desenvolvido por González Rey (1997, 1998,
1999, 2002, 2005b). Trata-se de um recurso instrumental que consiste na apresentação de
frases escritas incompletas, para que o sujeito as complete a partir daquilo que primeiramente
emergir em sua mente ao lerem a frase em questão. A quantidade de frases, a ordem de
apresentação, bem como o conteúdo das mesmas, são flexíveis e mutáveis, para que possam
ser adaptados aos temas e objetivos das diferentes propostas de pesquisa. González Rey
ressalta a importância deste tipo de recurso instrumental da seguinte forma:
El instrumento de completamiento de frases nos permite la producción de
indicadores que, en su relación através de la interpretación del investigador, son
fuentes de las construcciones teóricas que permiten el desarrollo de modelos
teóricos responsables por la intelgibilidad del problema estudiado. Estos modelos
teóricos que van emergiendo y desarrollándose en la investigación no se agotan en
los marcos de una investigación concreta erigiéndose en verdaderas lineas de
investigación cuya legitimidad está en su propria procesualidad, en su continua
exstensión a nuevos problemas o a aspectos nuevos de los problemas ya
estudiados. Es esta capacidad generadora el mayor indicador de su viabilidad, que
se traduce en la producción permanente de nuevas acciones asociadas a la
investigación y a los diferentes campos de actividad profesional (González Rey,
2005, p. 139)
No presente estudo, esse recurso instrumental consistiu de 65 frases incompletas, de
conteúdo amplo e aberto para estimular a expressão livre das participantes. As frases se
alternavam entre temas relacionadas ao desejo, às preocupações, às aspirações, aos medos, ao
trabalho, às relações sociais, conjugais e parentais, à maternidade, à DPP, à amamentação,
entre outros. O objetivo, ao utilizar o completamento de frases foi o de auxiliar na produção
dos indicadores que demonstrem o sentido implícito na vivência das participantes, e assim,
permitir um diálogo interpretativo e hipotético para construção dos seus núcleos de sentido
subjetivo. O instrumento foi aplicado uma vez nas sessões iniciais. Um exemplar do
instrumento utilizado pode ser visualizado no anexo A deste trabalho.

7.2.2 - Entrevista de acolhimento/triagem

Também foram realizadas entrevistas de acolhimento/triagem. O acolhimento


psicológico visou oferecer uma escuta especializada às mães que procuraram nosso serviço,
no sentido de ouvir, acolher e encaminhar adequadamente suas demandas. O acolhimento
psicológico é um tipo de intervenção psicológica que acolhe a pessoa no exato momento de
sua necessidade, ajudando-a a lidar melhor com seus recursos e limites, na medida em que se
coloca disponível a acolher a experiência do cliente em determinada situação, ao invés de
enfocar o seu problema. O acolhimento refere-se á escuta, à aceitação, empatia e
autenticidade surgida no contato do cliente com o profissional e não se limitava a uma única
sessão.
73

É importante destacar que as entrevistas não tinham um roteiro a ser seguido. Havia
apenas uma grande vontade de ouvir e entender cada caso. À medida que os conteúdos iam
emergindo dos relatos, os questionamentos eram colocados. Depois tentávamos organizar os
relatos de maneira que fosse possível ter uma noção geral da queixa principal e da história da
sua evolução, assim como da sintomatologia apresentada. Támbém, investigávamos a
compreensão ou as idéias que a mãe fazia de si mesma. Para ter acesso a todas estas
informações, nem sempre uma sessão era suficiente.
Os atendimentos em grupo foram entretanto o principal recurso de pesquisa utilizado.
Por essa razão, iremos descrever o grupo em detalhes, para melhor compreensão do trabalho
realizado junto mulheres que dele participaram.
7.2.3 - Grupo de apoio e orientação a mães com DPP
Este grupo aconteceu no Centro de Formação em Psicologia Aplicada - CEFPA, uma
unidade do Curso de Psicologia da UCB, onde se realizam atividades de ensino, pesquisa e
extensão nas diversas áreas da Psicologia. Suas instalações comportam salas adequadas a
atendimentos psicológicos de adultos, crianças, grupos terapêuticos e comunitários, além de
sala de espera e salas de testagem. No CEFPA os atendimentos são gratuitos e, geralmente,
são realizados por estagiários devidamente supervisionados por professores qualificados para
realização de tal tarefa.
Em função deste contexto educacional em que está inserido, o referido grupo buscou
contemplar a tríade ensino, pesquisa e extensão, através do atendimento às distintas
demandas, a saber: - Caráter extensionista: Atender a comunidade feminina interna e
externa à universidade, que estivessem apresentando sintomatologia compatível com o quadro
de DPP; - Elaborar uma produção científica: este grupo se prestou também para fins de
pesquisa científica, sendo o principal campo para levantamento e construção de informações
para esta tese e de vários outros trabalhos de final de curso orientados por mim; -
Proporcionar atividades de ensino: O grupo serviu de campo de estágio para alunos dos
últimos semestres do curso de psicologia.
Porém, o objetivo principal do grupo foi proporcionar às puérperas um espaço de
escuta emocional e de apoio, onde o tema da DPP pudesse ser adequadamente abordado,
buscando fornecer não apenas informações, mas, principalmente, permitir que a mãe pudesse
expressar livremente seus temores e ansiedades, alegrias e realizações com a maternidade.
Considerando o objetivo acima, estipulamos conforme modelo de Afonso (2003), os
seguintes temas geradores: a vivência da DPP, a definição da DPP, o bebê imaginário X o
bebê real, a transição para a maternidade e para paternidade, os novos vínculos (mãe-bebê,
pai-bebê, mãe-pai-bebê), fatos e mitos relacionados à maternidade, o que é ser mãe/pai, a
importância da rede social de apoio, as alterações da vida do casal, a mãe da mãe, a
desconstrução do mito da mãe exclusiva, entre outros. Esses temas permitiram desdobrar a
reflexão sobre a maternidade e as dificuldades enfrentadas pela mãe com o diagnóstico de
DPP, inclusive com análise de questões mitificadas e implícitas à maternidade.
Apesar de ser dirigido por mim, psicóloga/professora da instituição em questão, e por
uma estagiária formanda do curso de psicologia, o grupo teve um caráter interativo, onde as
mães foram convidadas a falar e a se colocarem espontâneas e livremente. Era um grupo
fechado, ou seja, para facilitar o processo de ajuda mútua os participantes foram os mesmos
do início ao fim. O grupo era heterogêneo quanto a intensidade dos sintomas depressivos
percebidos e apresentados, quanto à fase de pós-parto, quanto à idade da mãe, escolaridade,
classe social, estado civil. O primeiro grupo durou cerca de três meses, com sessões
semanais, e depois foi interrompido por dificuldades que comentaremos mais adiante. O
segundo grupo constituiu-se de 14 encontros, respeitando o calendário acadêmico da
universidade, com sessões semanais de 2 horas em média. Cada um dos encontros teve os
temas-geradores propostos pelas participantes e pelas coordenadoras. Foi utilizada uma rica
74

diversidade instrumental como técnicas projetivas, de dinâmica de grupo, além de


apresentação de documentários, aulas expositivas e debates. O relato sucinto do segundo
grupo encontra-se no anexo E, desta tese.
Os critérios para participação no grupo foram: a) estar apresentando sintomas
compatíveis com o diagnóstico de DPP (DPP) avaliado pela escala de Edimburgo9; b) estar
em condições físicas e mentais de participar do grupo; c) mãe deveria estar dentro do período
de um ano após o parto, quando ainda se diagnostica a DPP.

7.3 - OS CAMINHOS DO MOMENTO EMPÍRICO

Assumimos desde já, que a descrição dos caminhos percorridos nesta pesquisa foram
permeados pela subjetividade do pesquisador, que procurará contar como foi a experiência de
realizar esta investigação, seus passos, suas dificuldades e peculiaridades, assumindo, como
bem expressa Neubern (1999) que a estória a ser contada, não dá conta de “tudo que
aconteceu”, pois nossos relatos são sempre reducionista quanto a tentamos descrever as
nossas vivências.

Contar a história do que vivemos, no processo de aproximação de uma realidade, é


selecionar para os outros e para nós mesmos alguns aspectos que julgamos mais
relevantes. É apenas uma tentativa de tornar linear no tempo uma realidade não
linear e complexa. Assim, o relato de uma pesquisa é uma construção possível sobre
a experiência, limitada no tempo, sem a pretensão de ser uma descrição fidedigna do
que aconteceu” (Neubern, 1999, conforme citado por Penso, 2003, p.66).

Desta forma, os caminhos foram nascendo junto com a caminhada e procuramos nos
manter abertos para ir aonde eles nos levassem. Não foram delimitados rigidamente e,
procurávamos apenas seguir os seus sinais. Para atender a este propósito, construímos a
proposta de intervenção em grupo com as mães, com base em uma pesquisa feita na Internet.
Descobri que este tipo de trabalho é bastante comum nos Estados Unidos, mas não no Brasil.
Entrei no site de alguns deles, os quais serviram de inspiração para nossa proposta de grupo.
No entanto, a maior parte do trabalho baseou-se na literatura da área e em minha
experiência vivida enquanto psicóloga hospitalar, quando trabalhei no Hospital Sarah. Neste
hospital, tive a oportunidade de criar e coordenar vários grupos com pacientes de diversas
patologias, entre eles: grupos com pacientes oncológicos, grupos de apoio e orientação a
pacientes com LER/DORT, grupos com pacientes com lesão cerebral, lesados medulares,
com problemas ortopédicos. Assim, a metodologia utilizada é semelhante, sendo apenas
adequada aos pacientes e as especificidades da temática em questão. Até o momento,
desconheço outra proposta semelhante no Brasil. O grupo será apresentado mais
detalhadamente nas próximas seções deste trabalho.
Com a proposta do grupo pronta, a questão que se impôs no momento empírico foi:
como atrair as mães para participarem do atendimento e da pesquisa? Apesar de sabermos que
existe uma grande demanda para este tipo de serviço, pois há significativa incidência da DPP
(Corrêa Filho, Corrêa & França, 2002); imaginávamos que alguns obstáculos poderiam
dificultar o acesso das mães ao trabalho proposto, entre eles: resistência da mãe em pedir
ajuda, dificuldade no diagnóstico; dificuldades no encaminhamento, pois nas poucas vezes
que os profissionais fizeram o diagnóstico correto, raramente encaminharam uma mãe para

9
Foi aplicada a Escala de depressão pós-parto de Edimburgo - Edinburgh Postnatal Depression Scale (Santos, 1995; Santos,
Martins & Pasquali, 1999; Guédeney & Jeammet, 2002). Ainda que tenhamos feito toda uma crítica aos recursos
metodológicos quantitativos-positivistas nos capítulos anteriores deste trabalho, reconhecemos que os mesmos são válidos
para auxiliar no diagnóstico e portanto na triagem das mães para inclusão no grupo.
75

um trabalho psicoterápico; dificuldades de comunicação, relacionada ao desconhecimento de


um serviço especializado em acompanhamento no período pós natal, como o nosso. Diante
destas dificuldades, passamos a divulgar a proposta de trabalho, para que as mulheres
interessadas pudessem se inscrever para o atendimento. Foi então que estabelecemos os
primeiros contatos com nosso campo de pesquisa.

7.3.1 - Primeiros contatos com o campo de pesquisa

Na tentativa de transpor as dificuldades anteriormente comentadas, divulgamos o


nosso grupo de atendimento na mídia escrita e falada. Foram elaboradas matérias sobre a DPP
em jornais de grande circulação10, e de pequena circulação11. Participamos de um programa
de debate sobre depressão numa estação de televisão local12. Distribuímos folderes e cartazes
em Congressos13, em Bancos de Leite, como os do HRT e HRAN, no Hospital de Base, no
campus da Universidade Católica de Brasília, e distribuímos este material junto a alguns
pediatras e ginecologistas de Brasília.

7.3.2 - Primeiros contatos com as mães- participantes do estudo

Como fruto deste trabalho de divulgação, aos poucos, as mães começaram a chegar ao
nosso serviço, que seguiu as mesmas regras institucionais do CEFPA, salvo quanto à rapidez
no ingresso, pois elas não aguardavam em filas de espera para serem atendidas. Procurávamos
agendar uma entrevista de acolhimento/triagem com a mãe, o mais rápido possível, em função
da situação de crise emocional em que se encontravam. Na maioria das vezes, as mães foram
atendidas no mesmo dia em que entraram em contato ou, no mais tardar, foram vistas no dia
seguinte.
As pessoas interessadas em serem atendidas dirigiam-se ao CEFPA e preenchiam na
recepção uma ficha de inscrição padrão deste centro (Anexo B), informando nome, idade,
telefone para contato e principais queixas. Geralmente, elas estavam acompanhadas do bebê e
de algum familiar. A maioria foi encaminhada por profissionais de saúde ou por
funcionários/estudantes da Universidade Católica que transitavam no campus. Mas, também
houve casos de procura espontânea das mães ou de seus familiares.
Todas, sem exceção, se encontravam em situação de crise, o que demandou uma
intervenção ágil e focal na própria entrevista de acolhimento. Sabemos que em qualquer
situação de desequilíbrio, de descontrole, de crise de uma pessoa, o que o sujeito busca é
primeiramente encontrar outra pessoa. Por essa razão, a proposta do acolhimento
psicoterápico da nossa intervenção não visava apenas levantar informações para a pesquisa. O
mais importante ali era a possibilidade da pessoa se sentir acompanhada, “sair do estar só”. O
acolhimento referia-se à escuta, a aceitação, empatia, autenticidade surgida no contato do
pesquisador com a mãe. O ser ouvido é fundamental no acolhimento, pois é naquele
momento, na relação de pessoa para pessoa, que surge a possibilidade do “eu” se tornar “eu”,
e não o seu “problema” ou a sua “doença”.
Também é importante salientar a participação dos maridos nas entrevistas de
acolhimento, nas vezes em que estavam acompanhando suas esposas. Em algumas situações,
o atendimento foi feito junto com a mãe, em outros, em separado. Ainda neste primeiro
atendimento, cada participante era esclarecida sobre o grupo e sobre a participação voluntária

10
Arrais, C. H. R. (2002). Na hora mais feliz, a depressão. Correio Braziliense, Brasília, 06 nov. 2002, Caderno
Coisas da Vida, p. 23.
11
Jornal interno da Universidade Católica de Brasília.
12
Programa Mônica Nóbrega, na TV Brasília, em setembro/2003).
13
Encontro Nacional sobre o bebê.
76

na pesquisa, garantindo-lhes que a não autorização, não implicaria em qualquer restrição em


termos de atendimento no CEFPA. Neste mesmo encontro, solicitávamos que a paciente
assinasse um “termo de compromisso”, um documento padrão do CEFPA, (Anexo C) onde se
esclarecia o caráter de clínica escola deste centro de formação acadêmica; e o “termo de
consentimento livre e esclarecido”, que detalhava a pesquisa e informava sobre o registro dos
mesmos em áudio/videocassete para posterior análise com fins de pesquisa (Anexo D).
Num segundo encontro, solicitávamos que a participante respondesse a escala de
Edimburgo (Santos 1995, 1999) para confirmação diagnóstica da DPP, com fins de triagem
para ingresso no grupo. Também solicitava-se que ela preenchesse o instrumento de
completamento de frases, para só então procedermos à seleção dos integrantes do grupo,
conforme os critérios apresentados anteriormente.
Foram realizados dois grupos, um ocorreu de novembro de 2002 a abril de 2003, e o
outro foi realizado de março de 2004 a julho de 2004. Cabe esclarecer que os grupos só
começaram efetivamente quando conseguíamos aglutinar um número mínimo de 5
participantes. Assim, no primeiro grupo, a primeira mãe chegou ao nosso serviço em agosto
de 2002, e ficou em acompanhamento individual exclusivamente até novembro de 2002,
quando o grupo efetivamente teve início. Obviamente, muitos conteúdos já eram trabalhados
nos atendimentos individuais “de espera”.
As primeiras sessões grupais tiveram seu percurso traçado pelas participantes do
grupo, pois não foram predeterminados os temas a serem discutidos. Na primeira parte do
processo em grupo, os esforços foram dirigidos no sentido de instalar um clima acolhedor,
dando às mães a sensação de que não mais estavam “sozinhas no mundo”, e que naquele
espaço seriam compreendidas e aceitas com seus defeitos e qualidades, favorecendo, assim, o
sentimento de pertencimento e a integração dos participantes.
Dessa forma, elas poderiam falar e ouvir sobre questões relacionadas à maternidade
nunca antes expressas por elas. Estimulou-se a cooperação mútua, a participação de todas, a
troca de experiências e compartilhamento de dificuldades e alegrias, contribuindo para a
construção de uma nova identidade materna. As técnicas coletivas de dinâmica de grupo, por
meio de objetos intermediários, colagem e abordagem informativa constituíram-se em
ferramentas privilegiadas para o trabalho com as mães. Num segundo momento, foi criado um
espaço de reelaboração das questões acerca da maternidade, a partir do questionamento do
mito da maternidade exclusiva e dos papéis sociais atuais. Visava-se um duplo investimento,
de grupalização e individuação, pois, através desses questionamento em conjunto, se chegaria
à construção da condição de mãe de cada uma.
É importante esclarecer que o primeiro grupo cumpriu apenas parcialmente a
programação inicial, pois foi interrompido por motivo de doença da coordenadora. Quando o
grupo tinha cerca de 2 meses de funcionamento, eu, enquanto coordenadora, tive que me
ausentar por problemas de saúde apresentados durante a minha segunda gravidez. Evoluí com
uma gravidez de risco que requereu repouso absoluto. Por mais um mês, o grupo continuou
sendo muito bem coordenado por minha estagiária-voluntária, a qual era supervisionada
semanalmente por mim, via telefone. Mas, a freqüência começou a cair muito, a despeito da
qualidade da coordenação. Em decorrência, o grupo não se sustentou e se dissolveu. Apenas
duas mães continuaram em atendimento individual com uma professora substituta.
Enquanto estava de licença, avaliei a experiência com o primeiro grupo e percebi que a
brusca interrupção do mesmo havia prejudicado não só o tratamento, mas o levantamento de
informações sobre a vivência das mães. As informações que eu tinha ainda não eram
suficientes para dar corpo a uma construção teórica que eu pretendia realizar nesta tese.
Ademais, por questões de ordem prática, cometi uma falha metodológica importante, pois não
gravei em vídeo as sessões do primeiro grupo. Assim a sua análise ficou ainda mais
comprometida.
77

Diante dessas constatações, decidi que seria muito importante fazer um novo grupo e
“torcer” para que ele chagasse ao seu final a contento. Então, elaborei um novo planejamento
de encontros, que foi aprimorado e expandido com base no modelo apresentado por Afonso
(2003) para ser implementado em grupos na área da saúde. Cada encontro foi planejado
novamente, de maneira mais detalhada e sistematizada, procurando explicitar o tema gerador,
os objetivos, a técnica, os procedimentos e a avaliação dos mesmos. A descrição resumida de
cada encontro pode ser visualizada no anexo E deste trabalho.
No meu retorno ao trabalho, todo o processo de divulgação do grupo foi repetido.
Porém, é importante comentar que os bancos de leite se revelaram importantes focos de
divulgação, sobretudo para o segundo grupo realizado. Percebemos, após o grupo–piloto, que
muitas mães só se permitem pedir ajuda em função das dificuldades com a amamentação e,
mesmo assim, a custa de muita culpa e sofrimento. Assim, percebemos que as queixas
dirigidas ao banco de leite algumas vezes encobertam uma DPP, e era justamente esta
clientela que gostaríamos de acessar.
Não por acaso, por duas vezes aconteceu de, no momento em que estávamos
divulgando o grupo junto aos médicos responsáveis por estes bancos de leite, eles nos
encaminharam pacientes que, naquele exato momento, ou estavam no próprio local ou por
telefone, apresentando sintomas de DPP. Esta “coincidência” nos aponta para a significativa
incidência dos casos de DPP, confirmando os dados da literatura (Santos, 1995; Corrêa Filho,
Corrêa & França, 2002).
Novamente, a mães foram chegando aos poucos, e o segundo grupo teve início em
março de 2004, com cinco participantes. Desta vez, todas as sessões foram gravadas em
videocassete, mediante a autorização por meio do referido “termo de Consentimento livre e
esclarecido”(anexo D).

7.4 - PROCEDIMENTOS PARA CONSTRUÇÃO DAS INFORMAÇÕES

Em consonância com a metodologia construtivo-interpretativa, na qual se insere nossa


pesquisa, a interpretação dos relatos, da técnica de completamento de frases e das técnicas
projetivas foi realizada visando a construção de indicadores relevantes para constituição
subjetiva do sujeito e da depressão. Para tanto, as sessões de grupo e algumas individuais
foram transcritas na íntegra. Depois de uma leitura flutuante para levantamento de trechos
relevantes dos relatos que sugeriam a presença de indicadores, agregou-se análise das técnicas
projetivas e de completamento de frases, bem como de momentos informais da pesquisa.
Assim, somente na fase de análise das informações é que foi possível “montar o quebra-
cabeça” de cada caso, de forma mais sistematizada em eixos-temáticos, para indicadores
elaborados. Trabalhou-se com todas as formas de expressão do sujeito, com metáforas,
expressões de diferentes tipos, e representações.
Os indicadores permitem essa possibilidade de ter um processo ativo em constante
movimento. Segundo González Rey (1999), o indicador se refere a aqueles elementos que
adquirem significação graças à interpretação do pesquisador e só tem valor dentro dos limites
do processo. Eles representam um momento hipotético no processo de produção da
informação, e se constrói a partir das informações que vão sendo geradas da inter-relação do
pesquisador com os participantes da pesquisa. Ou seja, os indicadores são elementos
subjetivos e objetivos que sinalizam a subjetividade dos participantes do estudo.
Os indicadores são elementos relacionados àquilo que mobiliza o sujeito acerca do tema
estudado, sendo expressos sempre por via indireta e implícita. Assim, a interpretação é
sempre realizada em relação ao objeto de estudo, e o indicador só tem sentido quando se
refere ao processo de pesquisa, ainda que sua relevância não esteja clara num primeiro
momento interpretativo. Tais indicadores nascem do diálogo interpretativo, parecendo
78

inicialmente uma especulação feita por parte do pesquisador. Contudo, para que não assuma
este papel, o indicador deve ser reafirmado durante os vários momentos da pesquisa,
considerando todas as informações, incluindo as provenientes dos momentos informais.
É importante esclarecer que os indicadores nunca determinam uma conclusão do
pesquisador, pois estão relacionados a um momento hipotético no processo de produção da
informação. Como podemos observar, o indicador é uma construção capaz de gerar um
significado pela relação que o pesquisador estabelece entre um conjunto de elementos que, no
contexto do sujeito estudado, permitem formular uma hipótese que não guarda relação direta
com o conteúdo explícito de nenhum dos elementos tomados em separado. Enfim, o indicador
está sempre associado a um momento interpretativo e irredutível ao dado. Nas palavras de
González Rey, um indicador é definido como:
(...) aquellos elementos que adquieren significación gracias a la interpretación del
investigador, es decir, que su significado no asequibble de forma directa a la
experiencia, ni aparece en sistemas de correlación...el indicador solo se construye
sobre la base de información implícita e indirecta.(González Rey, 1999, p.113).

Não podemos deixar de ressaltar que são os indicadores que permitirão a construção
do conhecimento, sendo que apenas um indicador não tem valor como elemento isolado, mas
como parte de um processo em que funciona a estreita inter-relação com outros indicadores.
Eles permitem ainda explicar ou dar sentido ao problema estudado, sendo que explica o que
não é possível observar explicitamente, permitindo posteriormente uma descrição.
De acordo com González Rey (2002), os indicadores formam os núcleos de sentido das
experiências do sujeito. Ou seja, o desenvolvimento de indicadores conduz necessariamente
ao desenvolvimento de conceitos e categorias novas de sentido. Os núcleos de sentido
referem-se a estas categorias ou hipóteses construídas com base nos indicadores, os quais
estão articulados com os pontos que mobilizam o sujeito, e não com aquilo que é mais
freqüente ou semelhante, como numa categoria de análise de conteúdo. Da mesma forma,
essas categorias não são estabelecidas de forma rígida ou a priori de alguma teoria. Por sua
vez, os núcleos levaram-nos à construção de zonas de sentido, que adquirem significações
dentro do processo de elaboração do conhecimento, por intermédio do pesquisador, na
tentativa de trazer uma contribuição teórica sobre o problema estudado (González Rey,
2005b). São esses núcleos de sentido que levam à construção de novas zonas de sentido,
elementos importantes na valorização sobre a legitimidade do conhecimento, pois permitem
conceituar novas áreas acerca da realidade estudada.
A criatividade e independência do pesquisador para “soltar” seu pensamento são uma
condição essencial da construção teórica. Estimulam-se os diálogos entre os sujeitos e entre
sujeitos e pesquisador, os quais se envolvem emocionalmente, desenvolvem vínculo e
compromisso com o estudo, resultando numa produção de informações significativas para a
pesquisa. Portanto, o momento empírico não representa apenas a coleta de dados, significa um
momento de produção da informação, onde as idéias, os conceitos do pesquisador, assim
como o momento histórico-social-cultural no qual este processo está ocorrendo são momentos
permanentes do processo de produção da informação. Por isto, é importante esclarecer que
nem o indicador, nem a zona de sentido tem um caráter absoluto, finalizado, estático. São
apenas peças interpretativas que se integram a um sistema de interpretação e formam um
“quebra-cabeças” que está em constante processo e construção (González Rey, 2005b).
Ainda que tenhamos consciência da maleabilidade deste processo construtivo-
interpretativo, temos que reconhecer como o próprio Ganzález Rey (2005b) afirma, que a
construção do conhecimento, a partir do levantamento de indicadores e elaboração de zonas
de sentido é o momento mais difícil desta proposta epsitemológica/metodológica. Em suas
palavras, afirma:
79

El proceso de construcción de la información en la investigación cualitativa


representa el momento más difícil en la realización de este tipo de investigación.
Vemos como muchos investigadores que han comprendido bien los principios y
características generales de nuestra propuesta sobre el carácter constructivo -
interpretativo de la investigación cualitativa, cuando llega el momento de
construcción de la información tratan el material empírico como si este fuera
portador de una verdad única a la cual debe llegar el análisis, e intentan buscar en
los datos esa verdad, con lo cual inconscientemente comienzan a seguir un camino
totalmente descriptivo (González Rey, 2005b, p.1).

Devemos lembrar que, na concepção de González Rey, da qual compartilhamos, o


conhecimento científico tem sempre um caráter hipotético e, portanto, provisório! Cabe
esclarecer desde já, que as zonas de sentido que pretendemos construir ao final do estudo,
serão, portanto, apenas mais uma contribuição para a compreensão e tratamento das
mulheres com DPP. Passar então para tecer as construções sobre a vivência da mãe com
DPP, é o grande desafio que nos propomos a realizar no próximo capítulo.
80

CAPÍTULO 8

CONSTRUÇÕES A PARTIR DA VIVÊNCIA DAS PARTICIPANTES


O que importa o esforço de descobrir "certezas",
"verdades", quando a grande certeza e verdade está nos
olhos de quem vê e no coração de quem sente?

Em primeiro lugar, gostaríamos de esclarecer que, apesar de termos analisado e


estudado cada um dos 13 casos que participaram do nosso grupo para esta tese, decidimos
apresentar ao leitor apenas quarto deles. Esta difícil decisão de selecionar alguns casos, no
conjunto de tantos outros igualmente interessantes e significativos para a construção do nosso
estudo, se deu única e exclusivamente pela necessidade de controlar a extensão do presente
capítulo, tendo em vista que a análise construtivo-interpretativa completa de cada caso
produziu,em média, 15 páginas escritas.
Priorizamos apresentar, por completo, os 4 casos que nos permitiram criar mais
construções teóricas relacionadas ao tema da DPP. Porém, como os demais casos também nos
ajudaram a produzir hipóteses teóricas sobre nosso problema de pesquisa, serão citados nas
discussões para construção das zonas de sentido, que encontram-se no capitulo seguinte. De
qualquer forma, além das análises de todos os casos estarem à disposição da banca e do
público para serem consultados, já os estamos divulgando através de artigos publicados em
revistas científicas da área (Azevedo & Arrais, 2006).

8.1 - ORGANIZAÇÃO DAS INFORMAÇÕES SOBRE AS PARTICIPANTES

Como primeiro momento do processo interpretativo, procedemos à apresentação de


cada um dos quatro casos selecionados, visando favorecer uma melhor organização das
informações e esclarecimento das “peças”, para depois facilitar o processo “montagem do
quebra-cabeças” de cada caso, visando a construção de indicadores e elaboração de núcleos
de sentido para a compreensão da configurações subjetivas de cada mulher/mãe estudada.
Para tanto, dividimos as apresentações dos casos em eixos-temáticos, a saber, não
necessariamente apresentados nesta ordem: identificação e contexto sócio-familiar da mãe-
participante; queixa principal, sintomatologia apresentada; história da gravidez/parto; história
do puerpério/amamentação; história médica/psicológica pregressa; encaminhamento para o
grupo; relacionamento com o cônjuge/pai do bebê; relação mãe-bebê; relação com sua mãe;
relação com seu pai; relacionamento familiar; relacionamento social; relação com o
trabalho/estudo.
Temos consciência de que a colocação das informações nesses temas-eixos
corresponde a um recorte da história contada pelas próprias mães e, cabe lembrar, como bem
faz Penso (2003), que todo recorte é arbitrário e privilegia algumas informações que nos
parecem mais importantes para o conhecimento e contextualização de cada uma das mães
participantes. A respeito disso, buscamos respaldo em González Rey, que afirma: “Los
diferentes cortes y alternativas de análisis quedan abiertas a las capacidades, posibilidades y
preferencias de los investigadores, siempre que se mantenga el carácter constructivo -
interpretativo de la producción de información” (González Rey, 2005b, p. 19). Assim, estes
eixos foram escolhidos por terem, a nosso ver, e embasados na literatura consultada, uma
íntima relação com a história da maternagem e da DPP pela qual as mães participantes
estavam passando.
Apresentaremos, a seguir, nossas construções elaboradas a partir das respostas dadas no
completamento de frases, integrando-as com os relatos das mães feitos durante as sessões
individuais e grupais, na tentativa de realizar um “diálogo interpretativo” entre o pesquisador
81

e as informações apresentadas pelos sujeitos, objetivando a construção de indicadores e


hipóteses. Ao final de cada caso, apresentaremos os núcleos de sentido subjetivo construídos
para cada sujeito integrando-os às configurações subjetivas da DPP que será discutida nas
zonas de sentido construídas, no próximo capítulo.
Vale ressaltar ainda que todos os nomes foram trocados por nomes fictícios, com intuito
de preservar a identidade das mulheres e familiares participantes da pesquisa.

8.2 - APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS CASOS

8.2.1 – Construções a partir das informações de Gabriela

Identificação e contexto sócio-familiar: Gabriela tem 33 anos, é casada, natural de


Brasília, formada em pedagogia e trabalha como professora primária. Mora com o marido e
dois filhos (um menino de 3 meses e uma menina de 7 anos), em casa própria no entorno de
Brasília. Seu esposo é funcionário público. Família de classe média, com renda de R$
3.900,00 mensais.
Queixa principal: o motivo da procura pelo nosso serviço descrito na ficha de
inscrição foi: “Tratamento para a cura de DPP”. Essa informação inicial já nos diz algo
sobre Gabriela. Chama atenção o fato dela se atribuir o diagnóstico de DPP, e buscar a cura
para sua doença, e não uma ajuda para si, ou para seu sofrimento. Na sessão de acolhimento,
seu diagnóstico lhe parecia muito claro e em nenhum momento duvidou do mesmo, ou
demostrou-se desapontada em função deste, como aconteceu com algumas outras pacientes
atendidas por nós. Essas impressões dão margem para suspeitarmos que ela parece
identificada com a sua doença, para a qual busca uma “cura”.
Sintomatologia: na época, Gabriela estava apresentando sintomas depressivos acerca
de três meses, observados desde o nascimento de seu filho mais novo. Sentia-se indisposta,
chorando com facilidade, desanimada e triste. Nos momentos de maior desespero, sentia-se
muito mal e fora de controle, pois era “tomada” por pensamentos negativos, relacionados
inclusive a idéias suicidas. Em uma das sessões, chegou a afirmar espontaneamente, que não
tinha mais tanto medo da morte, pois chegara à conclusão de que: “nada deveria ser pior do
que a depressão, nem mesmo a morte.”
Seu sofrimento era tanto que, apesar de religiosa, chegou a questionar: “Acho que
DEUS me abandonou”; denunciando um momento de tensão e ruptura de valores, até então
estáveis. Ainda não podemos precisar por qual(is) motivo(s) na sua constelação subjetiva este
desejo de morrer se faz presente e nem se ele a acompanha há muito tempo em sua vida. Mas
não resta dúvida de que é um forte indicador de insatisfação com sua vida atual. Nossa
impressão é que Gabriela se sentia muito alterada, não se reconhecendo e questionando
valores anteriormente sólidos, por estar vivenciando uma crise de identidade. Assim,
suspeitamos que outros elementos, além da maternidade, devem ter se integrado na fase do
puerpério, configurando a crise atual de depressão.
História da gravidez/parto: o início de sua gravidez foi muito conturbado, em função
de uma crise conjugal que estava enfrentando. Depois, passou a sentir-se protegida pela
gravidez. Recebia atenção dos outros, inclusive do marido, e era poupada o tempo todo. No
completamento de frases, esse sentido aparece: “Quando estava grávida...estava protegida”.
Ela também se refere a esta proteção na entrevista de acolhimento e em algumas sessões
psicoterápicas. Seus relatos demonstram que ela apresentava forte convicção de que durante a
gravidez os pensamentos negativos e as sensações de tristeza que sentia no pós-parto não
estavam presentes, porque “meu bebê dentro da minha barriga me protegia”, e logo depois
do parto ficou “desprotegida e sozinha”.
82

De fato, a experiência do parto que aconteceu em 27/05/2002 foi bastante negativa,


pois, além de ter sido um parto vaginal, muito demorado e difícil: “fiquei horas em trabalho
de parto e senti muita dor”, “Meu parto...horrível”, suspeitamos que a dor não tenha sido
apenas física, mas também a dor de estar perdendo algo muito especial. A instalação
“imediata” dos sintomas depressivos em Gabriela no faz pensar que, de fato, o nascimento do
filho, e consequentemente esvaziamento da barriga de grávida, foi vivido como uma grande
perda e forte sensação de desamparo. Essas sensações foram prontamente reconhecidas
algumas horas após o parto.
História do puerpério/amamentação: Horas depois que seu filho nasceu, começou a se
perceber alterada. Já na primeira noite não conseguiu dormir. Passou a madrugada andando
pela maternidade e ajudando outras mães com seus bebês. Também não conseguia se
alimentar, sentia forte angústia no peito e tinha “pensamentos negativos”. Esses sintomas
foram imediatamente reconhecidos por ela, pois já havia tido DPP, diagnosticada no
nascimento de sua primeira filha. Percebeu então que os sintomas depressivos estavam se
instalando e pediu ajuda médico-psiquiátrica, ainda na maternidade do hospital. Passaram-se
três dias para que uma psiquiatra do hospital viesse avaliá-la. Enquanto isso, Gabriela relatou,
ressentida, que a enfermagem providenciou um guarda para vigiá-la em seu quarto, pois
temiam que ela pudesse matar seu filho. Quando foi finalmente atendida, a psiquiatra lhe
prescreveu antidepressivos (Rivotril e Meleril), dos quais continuou fazendo uso
regularmente, por vários meses. Apesar das dificuldades, conseguiu amamentar o filho ao
seio. Reconhecia a importância deste ato, mas reclamava que isso a deixava presa em casa,
pois tinha que estar sempre disponível para amamentar o bebê. Além disto, ele acordava
várias vezes para mamar durante a noite, sem que seu marido sequer se dispusesse a ajudá-la.
Talvez, por isso, o significado que ela atribuía à amamentação, evidenciado na frase do
completamento: “Penso que amamentar...é bom, e ao mesmo tempo cansativo”.
Quanto à fase do pós-parto imediato, chamou nossa atenção que o desamparo vivido
foi de tal intensidade que Gabriela ficou “vagando” pela maternidade, em vigília e alerta total,
parecendo se resguardar de algum perigo. Mas que “perigo” seria esse? O que ela temia?
Seria machucar o filho? Seria machucar a si mesma? Seria machucar o marido? A gravidez
apresenta-se com um sentido protetor e até reparador, afinal foi o motivo alegado para que o
casal retomasse o casamento, traumaticamente interrompido. Também fez com que se sentisse
uma pessoa merecedora de cuidados e afeto do marido. Quando o bebê nasce, ela deixa de ter
importância, passa a ficar desprotegida e volta a ficar exposta às adversidades e ao
desamparo. Assim, a maternidade é associada a um caráter ameaçador e a uma vivência
provida de cobranças, desqualificações e desprazer.
Esses sentimentos tiveram sua máxima expressão depois do parto, o qual culminou
com “depressão”, pois, pela significação emocional que o marido tem para ela, sem dúvida, a
proteção que sentiu durante a gravidez foi uma expressão da má qualidade de sua relação
conjugal e de sua condição inferior de mulher que pode ser temporariamente invertida, em
função da gravidez. Sem a gravidez, ficou desamparada! Será que a perda da
condição/proteção da grávida a fez se deparar consigo mesma e com toda a raiva e
ressentimentos que a crise conjugal havia provocado? Será que a única saída para suportar
esses sentimentos seria projetá-los numa doença, numa “loucura”, que só um médico
psiquiatra poderia sanar? Portanto, esse sentido subjetivo da gravidez e do parto (e não
necessariamente o filho!), parecem muito presentes no sentido subjetivo da maternidade e da
depressão no período puerperal.
História médica/psicológica pregressa: além da DPP na ocasião do nascimento da
primeira filha, a paciente relata história de episódios depressivos desde sua adolescência;
porém enfatizou a grande crise depressiva no início desta última gravidez. Esta se deu em
conseqüência a uma grave crise conjugal, pela descoberta de adultério do marido, que
83

culminou com a separação. Depois deste episódio e temendo uma nova crise depressiva após
o parto, procurou atendimento psicoterápico no Instituto de Saúde Mental – ISM14 por
iniciativa própria. Participou de um atendimento em grupo junto com outros pacientes com
diferentes quadros psiquiátricos que estavam em tratamento neste serviço. Participou
regularmente do grupo até próximo à data do nascimento do bebê, mas, para sua “surpresa”,
os sintomas depressivos voltaram a se manifestar. Apesar do tratamento realizado, esse não
“conseguiu” prevenir a depressão e agora ela temia estar ficando “louca”, como apareceu no
completamento de frases: “Meu maior medo... ficar louca” e “Luto... para não ficar louca”.
O medo de ficar louca foi muito presente e recorrente também nas sessões, quando associava
a loucura aos “pensamentos negativos” e ao desejo de morrer. Em uma delas afirmou: “
Tenho medo que os remédios (referindo-se aos antidepressivos) possam estar destruindo meus
neurônios, assim como a depressão destruiu meus hormônios da alegria”. Estaria “louca”
como seus “colegas” de grupo do ISM? Será que ela via na loucura uma proteção, assim como
via na gravidez? A loucura a protegeria de quê? Destacamos a identificação de Gabriela com
a depressão e a loucura, a ponto de procurar se submeter a um tratamento em grupo junto com
pacientes com diversos quadros psiquiátricos em diferentes graus de gravidade, num serviço
especializado para “loucos”.
Encaminhamento para o grupo: Gabriela foi encaminhada para nosso grupo pelo
pediatra que acompanhava seu filho, com a suspeita diagnóstica de DPP, por estar
apresentando, segundo este médico, intenção de “doar o filho”. Ela compareceu prontamente
ao CEFPA, desacompanhada, no horário marcado, mostrando-se receptiva, comunicativa,
orientada, mas apresentando semblante entristecido. Assim como aconteceu em relação ao
ISM, ressaltamos que ela não demonstrou resistência para nos procurar ou para falar de sua
“doença”. Tanto que no completamento de frase caracterizou positivamente nosso serviço,
sem ao menos conhecê-lo: “Este lugar...legal”. Quanto ao desejo de doar o filho, não nos
pareceu que este fosse de fato a sua intenção. Esta indicação médica nos lembrou a freqüente
associação superficial entre DPP e rejeição materna, a qual criticamos no referencial teórico
deste trabalho, por esta não abarcar toda a complexidade envolvida na situação, como
acontece no caso de Gabriela. Apenas em uma sessão do grupo Gabriela relatou que já pensou
em “deixá-lo na casa de sua mãe”, que mora próximo a ela, pois não tinha muita paciência
para cuidar dele e achava que “não era uma boa mãe como deveria”. Teve receio de tomar
esta decisão, pois temia que sua mãe não lhe devolveria o filho quando ela “o quisesse” de
volta. De qualquer forma, relatou que seu marido a apoiaria nesta decisão, e pareceu muito
decepcionada com a sua concordância. Pareceu-nos querer mais a sua disponibilidade em
ajudá-la a cuidar do bebê do que a sua autorização para entregá-lo a sua mãe.
Relacionamento com o cônjuge/pai do bebê: Caracteriza o relacionamento conjugal
como insatisfatório e conflituoso. Descobriu através da própria amante do marido a história de
um relacionamento extraconjugal, que durara vários meses. Recebeu telefonemas, nos quais a
mulher lhe contava em detalhes o caso que eles mantinham, e chegou a encontrá-la
pessoalmente, viu cartas e fotos bastante comprometedoras. Diante da constatação da traição
do marido, Gabriela lhe propôs a separação conjugal. Segundo ela, o marido sempre negou o
relacionamento extraconjugal, mas, mesmo assim, atendeu a seu pedido de sair de casa.
Estavam separados há algumas semanas, quando Gabriela descobriu que estava grávida. Em
função da gravidez, resolveu “perdoar” o marido e dar-lhe uma “nova chance”, reatando o
casamento. A iniciativa demonstrou uma atitude bastante ambivalente em relação ao marido.
Avalia que, após a separação, o marido mudou bastante: ficou mais carinhoso e
atencioso, dava-lhe satisfação onde ia, mas, mesmo assim, afirmava que não confiava mais
nele e que “algo se quebrou dentro de mim”. Ficava sempre desconfiada, principalmente

14
O ISM é um hospital-dia, alternativo aos manicômios, público e referência no tratamento de paciente psiquiátricos no
Distrito Federal e entorno.
84

porque a amante continuava a ligar e a incomodá-los. Inclusive, Gabriela passou a responder


um processo na justiça impetrado pela amante, sendo acusada de calúnia e difamação.
Além do adultério, ela queixou-se várias vezes que seu marido era muito crítico,
sobretudo quanto aos seus cuidados com a casa e à sua forma “liberal de educar a filha”.
Esta queixa e a sua atitude de crítica e desqualificação por parte do marido, sobretudo com
relação ao seu papel de dona de casa, também apareceu em algumas frases do
completamento: “Fracasso...como dona de casa”; “Sempre quis...ser uma boa esposa e
uma boa mãe”; “É difícil...manter minha casa organizada”. Essas informações mostram
haver um clima de cobrança entre eles e sugerem a permanência de uma forte tensão
conjugal, mesmo após a reconciliação do casal. Além dessas frases, encontramos outra, a
nosso ver, bastante significativa: “Eu prefiro...ficar na rua do que em casa”. Esta frase,
considerando a análise anterior, mostra que nossa hipótese vem evoluindo a partir de uma
multiplicidade de indicadores diferentes, o que já nos permite afirmar que o conflito com o
marido parece forte e significativo. Portanto, nos arriscamos a afirmar que a sua relação
conjugal é uma área de bastante conflito na sua configuração subjetiva, diante da qual ela
adota um movimento de aproximação e distanciamento, provavelmente para se proteger da
intensa dor que essa área emana. Esse conflito deve estar alimentando o sentido subjetivo da
depressão apresentada por Gabriela no pós-parto.
Relação com sua mãe: O relacionamento com a mãe também caracteriza-se como
muito conflituoso e ambivalente. Sente-se muito incomodada com suas cobranças e
interferências, mas não consegue expressar esses sentimentos, pois, quando tenta falar sobre o
quer ou pensa sobre ela, sua mãe ou chora, fazendo-se de vítima, ou fica agressiva. Refere-se
à forma de educar de seus pais como muito repressora. Lembra-se que nas poucas
oportunidades que tentou se colocar foi fisicamente repreendida (sua mãe lhe batia na boca e
seu pai no rosto). Relata que sua mãe está sempre lhe dizendo como fazer e também critica a
sua forma de cuidar da casa e dos filhos. Ao falar de sua mãe, ela nos parece ficar bastante
mobilizada emocionalmente. Ora demostra ressentimento, ora medo, ora raiva, ora admiração,
ora amor. Sua relação parece ser muito ambivalente e só não chega a provocar maiores
conflitos, pois Gabriela optou por agüentar calada as imposições da mãe “para não piorar as
coisas”. Apesar desse esforço, sua percepção da mãe parece negativizada: “Minha mãe...é
uma chata”.
Por outro lado, ao mesmo tempo que “reclama” da mãe, demonstra admiração e
gratidão por ter, praticamente sozinha, cuidado dela e de seus dois irmão, já que seu pai
estava sempre ausente e “na farra”. Enfatiza que ela nunca trabalhou fora e sempre se
dedicou exclusivamente às tarefas domésticas, aos filhos, e ao casamento. Por isso, a
considera um exemplo de “supermãe”. Essas afirmativas revelam um forte sentimento
ambivalente em relação a sua mãe, o qual favorece o conflito entre este modelo de mãe
exclusiva, por ela se interessar por outras coisas além da maternidade e do casamento, como
veremos mais a seguir. Essas informações nos levam a considerar um novo sentido subjetivo
na configuração de seu conflito atual, o qual se converte em mais um indicador: suas relações
parentais e suas conseqüências para seu mundo afetivo na vida adulta.
Relação com seu pai: para Gabriela, seu pai, militar, tem um modelo muito rígido de
educar os filhos, o que aparece explicitamente no completamento, quando ela é categórica ao
afirmar: “Meu pai...é radical demais”. Segundo ela, “ele vê maldade em tudo, não pode ver
um grupo de jovens conversando que já acha que eles estão fazendo alguma coisa errada”.
Ele também é caracterizado como muito crítico, ausente e como um “mulherengo”. Ela relata
que ele sempre teve “casos” com outras mulheres, saía muito, passava noites fora e bebia.
Mas, recentemente se transformou após uma forte crise depressiva, quando virou “crente”:
“Agora ele só vai para a igreja”, disse ela, e passou a lhe cobrar a mesma atitude, pois acha
que “curou-se” da depressão indo para a igreja evangélica e acha que a filha deveria fazer o
85

mesmo. Destaca-se aqui, a semelhança entre o jeito de ser de seu pai e de seu marido. Qual
sentido isto tem para entendermos Gabriela?
Relação mãe- bebê: Percebe pouco prazer nas tarefas de cuidados e de educação com
os filhos, prefere passear com eles, comprar-lhes presentes e brincar. Na verdade, seus
relatos sugerem que o conflito com a maternidade não parece ser gerado pela presença dos
filhos, per si. Ao contrário, ela se referiu a ambos os filhos de forma amorosa e afetiva, como
podemos constatar nas frases: “Amo...meus filhos”; “Meu maior prazer...ver meus filhos
felizes”; “Quando penso em meu filho(a)...fico feliz”. Ademais, em nenhum momento do
completamento os associou diretamente com as frases de cunho negativo, como era de se
esperar para uma mãe que nos foi encaminhada pelo médico, com a suspeita de estar
querendo “doar” o filho. Por exemplo, não os incluiu nas respostas às frases: “ Meu
principal problema...”; “ É difícil...”; “ Me aborrece...”, “Odeio...”; “Me deprimo
quando...”. E quando, na única vez que durante a primeira sessão de atendimento em grupo,
chegou a mencionar sua idéia de “deixar” o filho com sua mãe, pareceu querer enfatizar
muito mais a sua decepção com seu marido por ele concordar com esta intenção, do que de
levá-la ao ato. Na verdade, Gabriela nos pareceu muito culpada em relação aos filhos, pois
crê ser a responsável pelos problemas de saúde apresentados por eles. O bebê, por exemplo,
foi diagnosticado como portador de Erro Inato do Metabolismo e ela acredita que “seu leite
não esteja protegendo seu filho das doenças”. Além do mais, sua mãe e seu marido estão
sempre lhe dizendo como uma boa mãe deve se comportar e a criticam com freqüência
quando ela apresenta algum comportamento que não é compatível com estes requisitos. Por
isso, avalia-se como tão inadequada no papel de mãe, que isto parece atrapalhar sua relação
com seus filhos. Assim, fica evidente que a maternagem está perpassada por tensões geradas
em outros núcleos de sentido subjetivo de sua vida, como a relação conjugal e parental.
Relacionamento familiar: Não percebe em seus irmãos uma fonte de apoio. Relata que
eles não têm a mesma dificuldade para se impor diante dos pais, como ela. Gabriela
eventualmente fala de sua irmã nas sessões, sempre se contrapondo a ela. Sua irmã é a
desobediente, a que se separou do marido, a que enfrenta seus pais, e a que não tem medo de
brigar e “só faz o que quer”; enquanto ela, ainda hoje, obedece aos pais, evita brigas, e
sobretudo, “não faz o que quer”, demonstrando uma rivalidade fraterna importante. O seu
relato em relação a sua irmã também nos dá indicativos de que talvez ela critique sua irmã,
justamente porque gostaria de ser “livre” igual a ela. Essas informações, nos fizeram pensar
em Ehrhardt (1996) quando ela nos fala das mulheres que, como Gabriela, conseguem se
colocar facilmente no lugar dos outros. Elas “nasceram para servir”, já que acreditam que
servir faz parte de sua natureza. Para tanto, se baseiam nos exemplos de suas mães, embora a
experiência lhes mostre que as mulheres insolentes, impertinentes e atrevidas progridem,
jamais as bem comportadas, as que se isentam de sua opinião e abrem mão de seus desejos e
sonhos, como faz sua irmã. Ser obediente e amável parece-lhes a única estratégia de sucesso.
Relacionamento com outras pessoas: refere que tem poucos amigos, sendo a maioria
deles colegas de trabalho, com as quais gosta de conversar. Interessante ressaltar que, apesar
das dificuldades relatadas quanto à imposição de sua opinião e idéias, não se queixa disso no
âmbito dos relacionamentos sociais, o que nos faz supor que essa dificuldade pareça restrita
ao ambiente familiar.
Relação com o trabalho/estudo: O trabalho aparece como uma das poucas fontes de
prazer e alegria na sua vida. “O trabalho...eu gosto” fez esta afirmação no completamento.
Por isso mesmo, seu trabalho como professora é bastante valorizado em seu relato e nos
pareceu ser a área na qual ela mais se realiza, tem liberdade e pode ser quem ela deseja.
Porém, ultimamente, o trabalho também estava sendo uma fonte de sofrimento, pois estava
impedida de trabalhar em função de sua depressão. Sua psiquiatra, por duas vezes, negou seu
pedido de retorno ao trabalho atribuindo sua imposibilidade de trabalhar a seu estado
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patológico; quando nos parecia que, na realidade, trabalho poderia ser de grande ajuda, pois é
algo que lhe gratifica e lhe liberta. Por fim, ela necessitou passar por uma junta médica de seu
serviço, o que reforçou ainda mais seu sofrimento e sentimento de inadequação. Somente após
quatro meses do término da licença maternidade é que finalmente a liberaram para o retorno
ao trabalho. Todo este processo foi muito doloroso, pois cada renovação da licença-saúde e
manutenção do afastamento da sala de aula provocava-lhe uma enorme frustração e imensa
sensação de fracasso. Ficou muito preocupada com a possibilidade de não retornar ao trabalho
definitivamente, pois soube de pessoas que foram impedidas de voltar para suas funções
docentes por estarem com depressão: “eles ficam com medo de que as professoras possam
maltratar os alunos”.
Por outro lado, acreditava que o trabalho lhe faria bem, pois preencheria seu tempo, ela
estaria rodeada de pessoas e fazendo o que mais gostava: trabalhar. Mas, quando pensava em
voltar ao trabalho, se preocupava em deixar o filho com a mãe, pois sabia que isto daria ainda
mais possibilidades dela intrometer-se em sua vida e dificultar ainda mais sua relação com
ela. Por exemplo, quando ela manifesta a grande vontade de voltar a trabalhar, sua mãe logo
lhe dizia: “nem parece que gosta do filho, pois quer ficar longe dele”. E seu marido
complementa a idéia afirmando que não entende uma mulher que quer deixar o filho em casa
para voltar ao trabalho. Em função dessa críticas, entrava em conflito e sentia muita culpa,
quando expressava este desejo a focar seu interesse exclusivamente voltado para os filhos e
para casa. Esta tensão é outro aspecto que, sem dúvida, representa uma área conflitiva na
configuração subjetiva não só de Gabriela, mas de todas as mães estudadas relacionadas em
seus momentos atuais.
Em síntese, para ajudar a compreender a configuração subjetiva de Gabriela e de sua
depressão, entendemos que os principais indicadores construídos durante a técnica de
completamento de frases, e durante as sessões individuais e grupais, foram: forte presença de
conflito conjugal; a avó como modelo perfeição/opressão; conflitos com as figuras paternas;
forte conflito com o papel materno; o trabalho como uma fonte de prazer maior ou igual à
maternidade e identificação com a depressão. Esses indicadores nos permitem construir
algumas informações que emergem como núcleos de sentido subjetivos em nossa análise, a
saber:

8.2.1.1 - Núcleos de sentido subjetivo construídos para Gabriela:

É interessante observar que aquilo que nos pareceu ser o maior problema de Gabriela
- seu conflito conjugal - não aparece explicitamente nem no completamento de suas frases,
nem nas sessões grupais, apesar de ser tema recorrente das sessões individuais. Essa aparente
dificuldade para se colocar em relação a seu marido e casamento ficou evidente no
completamento de frases, pois não se refere a ele explicitamente, uma vez sequer, mesmo em
questões nas quais teria oportunidade para isso, como nos casos “Amo...meus filhos”; “Eu
gosto...dançar”; “Eu gosto muito...de ajudar as pessoas”. Mas, em nosso processo
interpretativo, não falar explicitamente do marido nos diz muito! Frases como essas de tanta
implicação emocional, como amar estar associado apenas aos filhos, ou em nenhuma das
frases anteriores referidas à felicidade, uma emocionalidade positiva apareceu relacionada
nem ao marido e nem ao seu casamento. Ainda que não soubéssemos de toda a crise conjugal,
a atitude de se calar em relação ao marido, por si só, já indicaria no mínimo uma área de
conflito.
Esse “ocultamento” só reforça nossa suspeita sobre a intensidade de sofrimento que
emana de seu casamento, e que não pode aparecer explicitamente pelo seu caráter
ameaçador. Essa é uma tendência muito interessante que observamos desde o início de nosso
acompanhamento, o que nos faz supor que é uma estratégia para evitar a carga emocional
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negativa que acompanha a expressão simbólica das situações de sentido que provocam dor,
tristeza, medo ou outras emoções vivenciadas negativamente pelo sujeito. Este conflito só foi
amplamente colocado durante as sessões individuais, nas quais ela demonstrou toda sua
decepção e ressentimento em relação ao comportamento adúltero do marido e seu desejo
ambíguo de separar-se dele. Todos esses elementos nos levam a crer que o conflito com o
marido tem um lugar central na depressão e nos sentidos que sua vida tem tomado no
momento atual, o que provocou a construir o núcleo “triângulo das tensões”.
Este núcleo integra os elementos de insatisfação com seu casamento e com seu
marido, elementos estes que aparecem apenas indiretamente no completamento de frases, ou
associados a um conjunto de sentidos subjetivos muito diversos. Eles parecem fazer parte da
configuração subjetiva deste conflito, como, por exemplo: as exigências em relação à
organização da casa, de suas funções domésticas e como esposa, seu impedimento para
trabalhar e a prorrogação de seus planos de pós-graduação em função das dificuldades
surgidas e das exigências como mãe. Seu fracasso como dona de casa deve integrar algum
sentido subjetivo procedente deste espaço doméstico. Nas sessões, este indicador se reforça,
pois ficou muito clara uma postura “crítica” de seu marido e de sua mãe quanto a seu
desempenho como dona de casa e mãe.
É interessante ressaltar também na caracterização de Gabriela sobre seu pai que ele
parece ter muito em comum com o seu marido. Em ambos aparece a história de traição,
ausência, cobranças e críticas. Por outro lado, tanto ela quanto sua mãe adotaram uma atitude
condescendente, perdoaram suas “falhas” e continuaram ao lado dos respectivos maridos,
ainda que Gabriela tenha tentado se separar efetivamente. Isso traduz uma posição de gênero
como elemento de sentido do conflito atual. Para nós, esse atitude é um bom exemplo para
mostrar como o gênero perpassa todas as esferas de vida de Gabriela, tendo em vista que
essa categoria atravessa diferentes motivos que levam as mulheres a permanecerem em
situações de sofrimento. Segundo Araújo, Martins e Santos (2004) os motivos mais comuns
são: dependência emocional e econômica, valorização da família, idealização do amor e do
casamento, preocupação com os filhos, o medo da perda e do desamparo e ausência de apoio
social e familiar.
No caso de Gabriela, observamos que alguns desses motivos estavam presentes em sua
decisão de manter o casamento, sobretudo a idealização do amor. Isso foi percebido por meio
da técnica de recorte e colagem, que poderá ser visualizada no anexo F, quando solicitamos
que ela apresentasse figuras que representassem “o que é ser pai”. Foi interessante ver que
todas as figuras se referiam a casais “apaixonados”, que pareciam compartilhar a
responsabilidade sob os filhos. Eram imagens românticas que enfatizavam a aliança, a
felicidade, o amor, sendo que em algumas delas as crianças não estavam presentes. Pensamos
que ela mostrava seu desejo de que o pai de seus filhos fosse também um marido romântico,
atencioso, disponível e companheiro. Mesmo com o sofrimento conjugal, ela continuava a
apostar num casamento e num amor idealizados!
Integrado a esse núcleo, é importante destacar o caráter ambivalente que a experiência
da maternidade traz para Gabriela, que chamamos de “Não sei ser mãe como deveria”. Há
um forte conflito em relação a seu papel de mãe, e neste observamos um trânsito de valores e
emoções contraditórias, que marcam sua ambivalência em relação ao modelo de maternidade
exlusiva que ela se impõe a seguir. Nos chamou atenção sua representação sobre a
maternidade, na técnica de recorte e colagem, na qual ela deixou clara sua idealização de
maternidade, ao escolher figuras que condiziam com a representação social da maternidade:
um paraíso, algo divino e redentor. Chegou a afirmar que uma boa mãe devia ter uma
paciência incondicional, ser organizada e educar bem, no sentido de impor enfaticamente
limites aos filhos. Em nenhuma da figuras ou frases escolhidas, percebe-se qualquer aspecto
88

negativo ou de dificuldade da maternidade, sugerindo que tem muito bem internalizado o


ideal de mãe “cinco estrelas” e ressente-se e cobra-se por não conseguir atendê-lo.
Para nós, essa percepção idealizada na maternidade se integra perfeitamente ao
sentido subjetivo que sua mãe tem para ela. Por isso, o conflito com a maternidade a mobiliza
tanto, já que não considera que se encaixe nestes critérios, porque não é organizada com sua
casa, odeia tarefas domésticas, não tem muita paciência com os filhos e tem dificuldades para
colocar-lhes limites rígidos. Acha que sente muita dificuldade para cuidar do filho mais novo
“como deveria”, pois ele ainda requer muitos cuidados para os quais não tem muita paciência,
e com a filha é muito “liberal”. Percebe-se uma tendência à depreciação e desvalorização de
suas atitudes enquanto mãe. Assim, concentra grande esforço na tentativa de se aproximar
deste ideal, como pode ser visto nas frases do completamento: “Me esforço diariamente...para
ser uma boa mãe”; “Sempre quis...ser uma boa esposa e uma boa mãe”. Acontece que
permanecer nesta busca em satisfazer o mito da mãe infinitamente boa é, como diz Serrurier
(1993, p. 32) “ um pico inacessível e no qual só conseguimos nos esfolar”.
O fato de estar “querendo” voltar às suas atividades normais, sobretudo ao trabalho,
que aparece como uma importante fonte de prazer, onde ela se sente competente e capaz; a
sensação de frustração por não continuar seus estudos; as cobranças das tarefas domésticas,
que são sentidas como um fardo, pois não parece sentir prazer em cuidar da casa/dos filhos/
preferindo trabalhar fora; e as cobranças de sua mãe, todos são elementos que se integram em
uma configuração de sentido que, unidos ao conflito com o marido, sem dúvida, participam
dos sentidos subjetivos que recaem sobre a percepção da “má qualidade” de sua maternagem,
que se expressam na constante tensão entre amor, culpa, esforço e desejos a realizar. Vemos
aqui que o sentido subjetivo do marido juntamente como de sua mãe e com do ideal de
materno construído socialmente tencionam o sujeito Gabriela, provocando muito sofrimento
e culpa. Suspeitamos que esse triângulo de tensões sobre Gabriela é um dos núcleos de
sentido que estão fortemente presentes nas configurações subjetivas da depressão
apresentada após o parto.
Outro núcleo de sentido construído para Gabriela foi: “Minha supermãe: meu porto-
(in)seguro”: A relação ambivalente que mantém com sua mãe nos remete a uma afirmativa
de González Rey (2005b), quanto diz:
(...) recuerdos de hechos del pasado no expresan apenas una relación específica con
una experiencia concreta, sino que son expresión del sentido subjetivo de ese
pasado, configurado por los elementos de sentido subjetivo implicados en los
diferentes sistemas de relaciones y experiencias del sujeto en esa etapa de la vida
(p. 61)..

A nosso ver, parece que esta relação com um "passado confuso" é bastante revelador,
e nos leva a hipotetizar dificuldades em suas relações na vida infantil ou em suas
experiências nessa época. As frases “O passado...confuso” e alguns relatos sobre a ocasião
de seu nascimento dão viabilidade a abertura desta hipótese. Gabriela nos contou,
demonstrando forte ressentimento que na época do seu próprio nascimento, sua mãe teve
muitos problemas de saúde, em decorrência de seu parto. No pós-operatório do parto normal,
“rompeu” os pontos e necessitou ficar internada. Gabriela, que estava com dois dias de vida,
foi levada por seu pai para ser cuidada por uma prima, que inclusive a amamentou ao seio.
Ficou sob os cuidados desta prima por dois meses, quando então voltou para casa. Lembra-se
que sua mãe sempre se refere a este episódio “tão sofrido” para compará-lo no sentido de
desqualificá-lo, ao afirmar:“ aquilo é que foi sofrimento”.
Seus relatos sugerem que ela não se sente considerada, respeitada e amada por sua
mãe. Sente-se desqualificada por ela nos outros papéis que tenta construir para sua vida,
sobretudo no materno. Certamente, esta situação “mal resolvida/ambivalente” com sua mãe
está interferindo na forma como Gabriela tem exercido a maternagem e até a conjugalidade.
89

Em alguns momentos, essa ambivalência parece tornar sua mãe um “anti-modelo”, pois ela
relatou que procura ser diferente dela com relação à forma de tratar a sua própria filha e
percebe que isto parece ser a melhor maneira. Observa que a filha lhe fala sobre o que está
sentindo, ainda que as vezes se sinta insegura com relação as suas demandas. Sabemos que
muitas mulheres tentam não seguir o modelo de suas mães, e a própria cultura ou momento
histórico podem estimular modelos contraditórios com o modelo materno (Dias & Lopes,
2003). Mas até que ponto os valores maternos são abandonados?
Certamente, a relação ambivalente que mantém com sua mãe também seja um
elemento de sentido subjetivo que repercute, na sua grande preocupação em ser uma boa mãe,
e nas possíveis reações de culpa e desqualificação em relação ao tipo de mãe que é. É
importante destacar que acaba cultivando uma atitude subserviente em relação a sua mãe, o
que faz com que ela não consiga sair do papel de filha de sua mãe.
Também observa-se a categoria de gênero nesta postura subserviente. Acreditamos
que Gabriela segue impelida a atender ao modelo de maternidade exclusiva de sua mãe, mas,
muitas vezes, seus desejos a impedem de fazê-lo, o que provoca muitas dúvidas, culpas e
inseguranças. Chauí (1985) nos esclarece que exige-se das mulheres que sejam isto ou aquilo
para os outros, esta mesma exigência não é feita para os homens. Dessa realidade, surge a
hipótese defendida pela autora: as mulheres praticam violência sobre as outras porque
reproduzem sobre elas o mesmo padrão de subjetividade. Isto é: encaram as outras e esperam
que elas se encarem a si mesmas como seres para outrem, sobretudo através da maternidade.
Nos parece ser justamente isto o que a mãe de Gabriela faz, já que se doou a vida inteira para
o marido e a família, e agora exige que sua filha faça o mesmo. Essas informações nos
parecem suficientes para afirmarmos que o sentido subjetivo da mãe está exercendo forte
pressão no sofrimento atual e na qualidade da vivência materna de Gabriela.
Encontramos ainda outra contribuição de Chauí (1985) muito interessante para
compreendermos o sentido subjetivo da “supermãe” de Gabriela. Segundo esta autora, a
supermãe e a supermulher aparecem com uma capacidade ardilosa para manter sob sua
dependência aqueles de quem acredita depender. No espaço doméstico, esta inversão se
reflete nas relações entre mãe/filha, sogra/nora, irmã mais velha/irmã mais nova, esposa/
amante, patroa/empregada e tendem a ser convertidas em desigualdades hierárquicas, com
requintes de autoritarismo, subordinação e perversidade. Observa-se nessas díades que as
primeiras se colocam numa posição superior, onde simplesmente desejam que as segundas
sejam para elas. Isto é, que sintam, pensem e façam como as primeiras determinam, levando a
uma anulação das segundas. O pressuposto fundamental apresentado por Chauí (1985) é que
os modelos de boas mães, boas esposas, boas empregadas são estereótipos montados pelas
ideologias, ou seja, uma predeterminação normativa do ser de cada mulher que as força a ser
uma cópia da outra conforme uma finalidade externa a elas. Assim, a idéia básica é que as
“cópias conformes” sejam desprovidas de interioridade, que sejam coisas moldáveis pela
vontade e pensamento dos outros. Estaria Chauí falando da supermãe de Gabriela?
Por fim, há ainda um outro núcleo que se mostrou muito significativo para as
construções teóricas que estamos fazendo nesta tese. Algo muito interessante de se destacar
na configuração subjetiva de Gabriela é a forma como encara seu sofrimento psíquico. Ela
reduz-se a uma doença, diante da qual não pode fazer nada. Sente-se dominada pelos
sintomas da depressão: tristeza, angústia, pensamentos ruins, idéias suicidas e infanticidas.
As interpretações e hipótese que criamos para Gabriela nos levaram a construir o núcleo
denominado: “Identidade de enferma: sou uma depressão”. Observa-se o fenômeno da
“inundação”, no qual se percebe “invadida” e resumida à sua depressão/loucura e fica presa
a ela, incorporando-a em sua identidade.
Além disso, a depressão já era uma “velha conhecida” de Gabriela: ela sabia
reconhecê-la, identificá-la e até como tratá-la; tanto que ela própria buscou ajuda médica, e
90

não apresentou resistências para se consultar com psiquiatras, como geralmente acontece
com a população leiga. Suspeitamos que, assim como parece ter acontecido em relação à
condição de gestante, Gabriela também procure proteção sob a condição de “doente”, já que
apenas a sua condição de “Gabriela/mulher”, não é suficiente para assegurá-la e resguardá-
la. Relacionados a esse núcleo, aparecem os indicadores de conflito conjugal e de
desvalorização e repressão do seu “eu”, e identidade de doente, que a esta altura de nossa
construção representam juntos, na nossa opinião, elementos centrais na configuração
subjetiva de seus sintomas depressivos atuais.
Há ainda, outras frases que nos permitem continuar nesta linha de questionamento da
depressão naturalizada, como aparece nas seguintes afirmativas do completamento de frases:
“As pessoas...não entendem e não respeitam minha doença”; “Minha opinião...muitas vezes
não é respeitada”; “Penso que os outros...deveriam ter mais respeito pelo próximo”; “O
sexo... é gostoso”; “Quando estou sozinho...fico bem”. Nessas frases, mais uma vez se
integra outro indicador à hipótese em desenvolvimento: Ela aspira encontrar respeito e
comprenssão através de sua condição de enferma e não pelo que ela é. Ou seja, ela se
apropriou da doença como instrumento protetor de suas relacões sociais e conjugais e assim,
neutraliza os conflitos que ela experimenta no momento atual. Isso, nos faz pensar que ela
lança mão deste “escudo/ recurso”, justamente porque não tem sido possível, ou permitido a
ela, ser quem ela realmente gostaria, o que fica muito claro nas frases acima.
Destacamos ainda que nessas frases também aparece mais um indicador de que seu
estado emocional real não corresponde ao da depressão assumida. Considerar a prática
sexual como algo prazeroso e sentir-se bem quando está sozinha são sentimentos que um
deprimido raramente conseguiria ter. Esta é mais uma evidência de que seu mal-estar está
mais associado aos seus conflitos com os outros (seu marido, sua mãe, seu pai) do que por
uma depressão. Parece, ao mesmo tempo, que ela está utilizando a “desculpa” de estar
doente para não seguir em frente com sua vida, principalmente a conjugal e maternal. Assim,
no nível subjetivo, está se produzindo uma inversão do que lhe ocorre na realidade, ou seja, a
doença se apresenta como o problema, e o que ela evita encarar parece estar justamente na
base de sua depressão. A integração desta constatação com outros elementos expressados por
ela anteriormente nos levam a reforçar nossa impressão de que assume o diagnóstico,
reduzindo-se basicamente a ele. Isto também reforça a idéia de que há um processo de
naturalização da doença.

8.2.2 – Construções a partir das informações de Larissa

Identificação e contexto sócio-familiar: Larissa tem 31 anos, é casada, natural do


Gama e procedente de Taguatinga-DF. É formada em pedagogia com pós-graduação em
artes. Atua nesta área no ensino médio em uma escola pública. É mãe de Manuela, que está
com 10 meses. É casada com Gustavo, que tem 31 anos, graduado e mestrando em História
pela UnB, professor. Moram em casa própria, nas adjacências de Taguatinga. Família de
classe média com renda mensal de R$ 3.000,00.
Queixa principal: o motivo da procura por nosso serviço descrito por Larissa na ficha
de inscrição foi: “Após o nascimento da filha passei a constantemente refletir e a rever
certas idéias sobre minha real capacidade, ou não, de administrar essa nova realidade: a de
ser mãe”. Diferentemente das outras mães estudadas, chamou a nossa atenção o fato de
Larissa não se referir, nem explícita, nem implicitamente, à DPP na sua ficha de inscrição,
como a maioria fez. Ao invés disto, ela prefere uma reflexão crítica-descritiva sobre o conflito
que estava vivenciando naquele momento diante da maternidade. Essa colocação inicial foi
suficiente para abertura de hipóteses que passaremos a destacar, desde já. Pela singularidade
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dessa afirmação dentre os outros casos estudados, nos permitimos supor que Larissa não se
rotula e nem se reduz ao diagnóstico de depressão, apesar de reconhecer-se em sofrimento e
em crise. Essa frase também nos permite uma idéia sobre o sentido subjetivo que a função
materna para ela tem, bem como o auto-conceito que ela expressa de si, que vamos seguir
construindo para melhor compreendê-lo.
Sintomatologia: os sintomas mencionados foram culpa, depressão, fadiga, medo,
angústia e perda de identidade. Sente-se muito alterada, insegura, culpada, chorando
facilmente, desde o nascimento de sua filha, há 10 meses. Queixa-se das mudanças na sua
vida após a maternidade: “perda” de identidade, afastamento dos amigos, “virou” dona-de-
casa, assumiu novas responsabilidades. Sente-se exagerando em sua avaliações, sentindo-se
sobrecarregada pelas novas responsabilidades da maternidade. Seu estado tem trazido mal
entendidos e dificuldades com seu esposo e com a babá da filha. Destacamos que diante da
divisão de papéis estabalecida, já podemos observar a questão do gênero como um elemento
de sentido que se produz na nova realidade.
História da gravidez/parto: Teve uma gestação saudável, mas os conflitos com a
maternidade começaram antes mesmo da gestação, quando já “fazia alguns questionamentos
sobre seu real desejo de ser mãe”, dizia ela. Segundo Larissa, durante toda sua vida foi
“convencida” por seus pais de que deveria ser mãe, mas infelizmente não teria capacidade
para sê-lo. Sempre acreditou nisso e baseada nesta “convicção” nunca se identificou com a
maternidade. No entanto, após dois anos de casamento, seu marido a “convenceu” do
contrário, e a tranqüilizou afirmando que ela tinha condições de a ser. Ademais, havia uma
enorme pressão familiar para que ela engravidasse. Diante desses apelos, resolveu engravidar.
Cabe destacar que nessas informações encontramos a forte presença de emoções
contraditórias, sugerindo que ela busca definir seu espaço simbólico em relação à
maternidade, mas encontra dificuldades de integrá-lo às concepções de figuras que a
mobilizam emocionalmente, como seus pais e marido. Esse conflito entre suas idéias sobre a
maternidade e a de seus pais e marido parecem estar muito presente na sua configuração de
sentido subjetivo de ser mãe e do sofrimento atual. Seguiremos acompanhando essa hipótese
para ver se ela se sustenta.
Larissa teve uma gestação sem complicações e continuou suas atividades
normalmente: não parou de trabalhar, não teve grandes alterações na imagem corporal, pois
não ganhou muito peso e, por isso não mudou seu vestuário. Para ela,“essas aparentes
facilidades foram amenizando sua dúvida sobre a maternidade”, pois achava que estava
“dando conta”. Porém, no parto, esta realidade começou a mudar. Foi submetida a uma
cesariana com graves intercorrências. Informa que teve uma queda súbita de pressão e ficou
desfalecida por alguns momentos logo após a retirada do bebê, necessitando de socorro
imediato. Em função de sua situação de emergência, sua filha acabou não sendo bem assistida
no pós-parto e teve uma importante perda sangüínea, pois não clampearam o cordão umbilical
corretamente, diante da tensão para salvar-lhe a mãe. Larissa diz não se lembrar do ocorrido
na sala de parto, somente depois soube que, tanto ela quanto a filha correram risco de vida,
como ela própria afirma no completamento de frases: “Meu parto...foi difícil, embora não
tivesse consciência”. Ela significou este ocorrido como um o primeiro impacto negativo da
maternidade, pois: “trouxe-lhe de volta o receio e insegurança para dar conta da nova
condição de mãe”. Essas informações nos mostram como o sentido subjetivo da maternidade
se alimenta de emoções que emergem no contexto puerperal e se integram a antigas
concepções que faz de si mesma, potencializando o conflito vivido.
História do puerpério/amamentação: Larissa percebeu-se muito alterada dias após o
nascimento da filha: “passei a não ter mais sossego mental, vivo esgotada, as vezes exagero
nas minhas idéias e emoções”. Reconhece que já passou por várias crises e momentos de
dúvidas ao longo de sua vida, mas que estas crises se intensificaram e se tornaram mais
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difíceis de lidar depois que sua filha nasceu, pois são quase diárias. Avaliando-se
retrospectivamente, Larissa afirma que a maternidade parece ter lhe deixado em situação de
crise constante há mais de um ano: sentia-se incapaz, culpada, triste, insegura com relação às
decisões mais simples. Percebia–se alterada em suas idéias, comportamentos e emoções, não
se reconhecendo mais como a mesma pessoa. Quando sentia que estava controlando uma
situação junto a filha, logo novos desafios se impunham e ela entrava em angústia novamente.
Observamos aqui um espaço de tensão, coexistindo um grande medo e uma resistência para
não sucumbir às exigências da maternidade. Isso provoca um sentimento de incapacidade, e
menos-valia e insegurança, que não nos parecem novos, mas reeditados na atual crise.
História médica/psicológica pregressa: Relata que sempre teve episódios de
ansiedade e angústia agudos, sobretudo diante de acontecimentos novos ou de uma situação
estressante. Quando criança, chegava a vomitar, parar de comer e de dormir quando tinha que
fazer provas na escola. Essas reações se repetiram em várias situações ao longo de sua vida:
no vestibular, no concurso para seu emprego, no casamento, na gravidez e no parto, mas
pioraram muito desde o nascimento de sua filha. Nunca buscou ajuda para essas “reações
depressivas”, mas agora percebe que precisa se ajudar: “para não me perder nesta nova
realidade”, pois a maternidade lhe traz desafios maiores a cada dia. Acha que suas
dificuldades emocionais estão se cronificando e agora tem uma filha para criar e “não pode
mais se dar ao luxo de ficar curtindo suas crises depressivas”. Aqui vemos expressões que
reforçam nossa hipótese anterior sobre a reedição de vivências, pois mostram que a sua
história passada se constitui numa fonte de sentidos subjetivos que possivelmente está
alimentando seu sofrimento atual.
Encaminhamento para o grupo: Larissa trabalha junto com nossa ex-estagiária, que
acompanhava o seu sofrimento e a informou do trabalho com mães com DPP. Veio por
indicação dessa amiga, mas por iniciativa própria. Ela compareceu sozinha à entrevista de
admissão, durante a qual apresentou-se muito emocionada, não contendo o choro. Demostrou
estar em pleno conflito. Pareceu ser muito reflexiva e ter boa noção dos sentimentos que tem
vivenciado. Ficou muito emocionada e incomodada com a possibilidade do diagnóstico de
DPP, sugerido pela escala Edimburgo (Santos, 1995). Chorou muito e disse sentir-se
fracassada diante desta condição. Cabe ressaltar que rejeitar o diagnóstico de DPP pode ser
um indicador de uma tentativa de não se reduzir ao seu sofrimento e a sua doença. Talvez,
por isso ela apresentava uma demanda ambígua: ao mesmo tempo dizia que gostaria que o
psicólogo a ajudasse a se conhecer melhor por perceber que suas crises “depressivas” se
repetem e fogem ao seu controle, fica muito mobilizada após as sessões e pensou em desistir
do acompanhamento.
Relação com sua mãe: parece ter um relacionamento muito ambivalente com a sua
mãe. O relacionamento já fora bastante conflituoso, sobretudo na adolescência, por grandes
divergências de opiniões entre elas. Segundo Larissa, sua mãe não aceitava e nem aceita o seu
jeito de ser, porque ela sempre renegou o papel de dona-de-casa, se afastando muito do
modelo tradicional de mulher, defendido e exercido por sua mãe. Larissa sempre fez questão
de se diferenciar deste “destino”, através das roupas (pouco femininas), da sua postura crítica
e questionadora, da rejeição da maternidade, da priorização aos estudos e a profissão, do
distanciamento das regras familiares e construindo para si o seu próprio mundo. Neste
sentido, ela nos contou: “Eles nem acreditaram quando eu disse que iria casar, já não
esperavam que isto pudesse acontecer. Eu já era um caso perdido”. Ressaltamos nesta frase,
o clima de menos-valia e enfermidade estimulado por sua família, pelo que se expressa os
dois sentidos subjetivos assumidos à família e à si mesma. Por isso, até o seu encontro com a
maternidade, sua mãe parece ter lhe servido um “anti-modelo”, ao contrário do que aconteceu
com sua irmã, que é muito parecida com a mãe. Porém, após o nascimento de Manuela houve
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uma aproximação, em função da troca de experiências sobre a maternidade, a ponto dela


passar a se queixar de sentir “falta do colo materno”.
Relação com seu pai: demonstra ter vínculo mais forte com seu pai, com quem diz
tem mais contato e mais diálogo. Ele parece ser-lhe uma referência positiva. Este sentimento
ficou evidenciado no completamento de frases, quando ela afirmou: “Meu pai...é meu
exemplo de serenidade, integridade e solidariedade” e “ A paternidade... é a possibilidade do
homem exercer junto a mulher o ato mágico da criação”. Entretanto, pouco se referiu a seu
pai durante as sessões individuais e em grupo
Relacionamento familiar: Fala de uma forte relação com sua irmã, que teve uma filha
nove meses antes da sua. Esta irmã parece ser uma boa fonte de apoio, no entanto, ela
percebe que elas possuem concepções diferentes da vida e da maternidade, pois Larissa não
acredita que sua irmã tenha as mesmas dúvidas que ela em relação a esta função. Afirma que
sua mãe e esta irmã são muito parecidas e por isto se relacionam muito bem, o que parece
fazê-la sentir-se excluída e um tanto enciumada. Por várias vezes, tanto nos atendimentos
individuais quanto em grupo, Larissa contou que cresceu ouvindo de todos, sobretudo de sua
mãe, que ela não “dava” para ser mãe, que não sabia lidar com crianças, que não tinha jeito
para constituir família. Este papel era reconhecido na sua irmã que era tida como “uma mãe
nata”. Vemos aqui, o papel de mãe instintivo na configuração de sentido subjetivo do
sofrimento atual.
Relacionamento com o cônjuge/pai do bebê: esse relacionamento tornou-se muito
conflitante depois do nascimento da filha. Eles passaram a discutir mais, como ela
demonstrou claramente na técnica de recorte e colagem, que visualiza-se no anexo H “Porque
nesse jogo de gato e rato, ou melhor de gato e cachorro, chega nesse momento aqui. E é
complicado porque enquanto era só eu e ele era mais fácil, mas agora tem a Manuela e tem
os embates.” (...)Tem sim, tem essa coisa dos três, do confronto de forças, de sexos, de
cultura”.
Larissa queixa-se que teve de assumir novos papéis que não estavam claros para ela,
sobretudo em relação à maternidade e cuidados com a casa. Relata que o marido decidiu
dividir as tarefas: ele ficando responsável pela parte “fora de casa” e ela com a parte de
“dentro de casa”. A paciente deixa a entender que nunca havia se imaginado cuidando de
tarefas domésticas, pois não se interessava ou se dedicava a elas. Sempre se interessou pelos
estudos e não ajudava sua mãe que sempre foi dona-de-casa, quando residia com ela. Porém,
após o casamento, mas principalmente após o nascimento da filha, abraçou sua “nova função”
e se diz extremamente irritada com o marido quando ele interferia em questões domésticas.
Nessas informações aparece um sentido subjetivo fortemente associado à construção
de gênero, ainda hoje tem reflexos em nossa cultura: as mulheres ficam mais restritas ao
espaço privado e os homens ao espaço público (Chauí, 1985 e 1984; Muszkat, 1994, Del
Priori, 2004). Nesta altura de nossa construção sobre Larissa, destacamos que é importante
observar que vão se produzindo sentidos subjetivos no modo de uma representação complexa
de seus diferentes espaços de vida e papéis sociais.
Larissa sempre reclamava que seu marido não conseguia entender seu sofrimento e
dizia que ela exagerava em suas colocações: “O Gustavo achava que era exagero porque ele
não via dessa maneira. Mas quando você recebe muito assim, - pôxa você tá exagerando, Às
vezes, eu via que eu estava exagerando...” Esta qualificação- exagerada- acompanhou os
discursos e pensamentos de Larissa por muitas sessões. Esta era uma dúvida constante: não
estaria mesmo exagerando? Não estaria sendo imatura? Poderia ela falar sobre o que estava
sentindo? Eram legítimos os seus sentimentos? Ou eram um exagero, conforme seu marido
dissera?
Por outro lado, o processo terapêutico apesar de muito ameaçador para seu
relacionamento conjugal, estimulou Larissa a valorizar as iniciativas de seu marido enquanto
94

pai e companheiro. Os trechos seguintes mostram este reconhecimento: “Meu marido ficou
um dia todo com a Manuela e, quando eu cheguei, ele disse: toma que ela tava morrendo de
saudade de você. Aí ele começou a me elogiar. E eu comecei a elogiá-lo, e comecei a deixar
ela mais com ele...”. Este reconhecimento foi um crescente durante as sessões e, ao final do
grupo, o casal já parecia mais sintonizado e procurando se reencontrar dentro no novo papel
parental: “O meu marido uma vez falou que a Manuela possibilitou a gente colocar as coisas
no lugar. Ele perguntou: será que se a gente só tivesse casado, sem a Manuela, a gente ainda
estaria junto? No sentido de que ela tá possibilitando dúvidas, conversas, os
questionamentos.”
Relação mãe- bebê: Questiona muito a sua real capacidade de ser mãe. Parece que esta
desconfiança se refletiu nos cuidados com o bebê, no pós-parto. Ela praticamente, não
cuidava da filha, tinha sempre alguém para fazê-lo: “ afinal ela não sabia mesmo cuidar de
uma criança”. Assim, ela mesma preferia que os outros cuidassem de sua Manuela, e a
“entregou” para os cuidados de uma babá. As dificuldades que percebia ao cuidar da filha
parece que reforçavam este auto-conceito negativo. Larissa praticamente pegava a filha no
colo apenas na hora de amamentá-la ao seio. Com exceção deste momento, sentia-se excluída
da vida de sua filha; por isso, desenvolveu um medo muito grande de que a filha não gostasse
dela e que fosse “perdê-la” para a babá. Para nós, esta atitude fez com que ela se sentisse
ainda mais incapaz, pois, por outro lado, acreditava que ela mesma deveria se incumbir de
todas as tarefas e cuidados com a filha. Fica evidente nessas informações a contradição entre
valor e sentimentos, ou seja, entre o que ela acha que deveria ser uma mãe e o que ela sente
que quer ser enquanto mãe. A insegurança percebida expressa um sentido subjetivo em
relação a si mesma enquanto sujeito ameaçado pela nova função materna.
A principal dificuldade relatada foi em referência à babá, que trabalhava tempo
integral e pernoitava na residência da família, e era extremamente dedicada ao bebê,
prestando-lhe todos os cuidados. Aos poucos, começou a nutrir um significativo sentimento
de ciúmes em relação babá, implicando com tudo que viesse dela, inclusive sua irritante voz.
Quando chegou na terapia estava no auge deste conflito. Passava sessões inteiras reclamando
ou desqualificando a babá. A convivência entre as duas estava insuportável, e o pior era que
Larissa não se sentia respaldada por ninguém em suas queixas contra a babá, pois todos só
enxergavam nela apenas uma pessoa muito dedicada, sobretudo a sua mãe e seu marido. Essa
rivalidade com a babá mereceu nosso destaque, pois além do ciúmes em relação à sua filha,
acreditamos que este também era alimentado pela sua história de rivalidade com a sua irmã
mais velha. Após muito falar, chorar, expressar, contar esta história, Larissa, optou pela
decisão de demitir a referida babá. Depois que ela foi embora de suas vidas, Larissa começou
a melhorar muito. Passou a cuidar da filha, e se surpreendeu com a sua capacidade de atendê-
la e satisfazê-la, enfim de ser mãe.
Pensamos que babá carregou um sentido simbólico da configuração subjetiva de sua
história de vida, sobretudo quando a dificuldade de relacionamento com sua mãe. A babá
parece que ocupou o lugar da irmã, nesta triangulação, tanto que uma das coisas que mais
incomodava Larissa era o fato da Babá “achar que fazia parte da sua família e demonstrar
muita intimidade com todos”. Essa análise é importante para mostrar como um sentido
subjetivo atrelado a uma determinada vivência se expande e se generaliza na complexa rede
da configuração subjetiva de um sujeito.
Após construirmos esta interpretação sobre a relação de Larissa e a babá, encontramos
o que nos diz Chauí (1985) a este respeito. Para ela, na relação entre patroa e doméstica fica
evidente que a existência de uma babá desautoriza uma mulher como mulher, pois prova a sua
incapacidade para funções que a definem em seu próprio ser. Dessa forma, se a mulher é vista
como o “braço-direito” da “cabeça” do casal, a empregada é uma prótese acrescentada para
aumentar-lhe sua eficiência, suplemento este obtido pela desigualdade das riquezas e entre as
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classes sociais. “A natureza servil do trabalho doméstico faz a relação patroa-empregada


violenta e ambígua, ou melhor, ambígua porque violenta” (Chauí, 1985, p.55). Daí podemos
compreender melhor o conflito relacional de Larissa com a babá.
É importante destacar que a emocionalidade expressa nessas informações denotam
claramente um movimento ambivalente de aproximação e de afastamento em relação à filha e
à maternidade. Essa ambivalência constitui-se num forte indicador de conflitos com a nova
função materna, a qual está atrelada a um sentido subjetivo da DPP que a desqualifica, lhe
traz o sentimento de impotência e menos valia e que pinta a maternidade de uma tonalidade
obscura. Há assim o reforço à sua antiga concepção sobre a sua incapacidade para ser mãe,
que a desestabiliza e a “joga” numa nova crise.
Relacionamento com outras pessoas: sentia-se isolada, participando pouco de
atividades sociais. Afirma que seus amigos se afastaram depois que ela virou mãe e está
tendo dificuldades com alguns colegas de trabalho. Às vezes, tem dificuldades de se colocar
em relação a eles, por ter opiniões e atitudes diferentes quanto a sua forma de lidar com os
alunos e com relação as suas idéias sobre a maternidade. Não se sente bem entre seus colegas
e sente-se melhor entre seus alunos, que “possuem opiniões menos tradicionais sobre a
vida”. Ou seja, está em pleno conflito, é bastante questionadora, mas parece temer assumir
suas posições e idéias, sobretudo com relação à maternidade, e ser punida socialmente com a
estigmatização e a exclusão. Vemos aqui outro sentido subjetivo sobre si mesma que
certamente está alimentando a configuração do conflito atual. Ela percebe que existe uma
forte tensão entre as suas concepções e a maior parte das concepções sociais. Isso a faz se
sentir excluída e isolada socialmente, por isso, busca aceitação em pessoas mais
questionadoras, parecidas consigo e menos tradicionais.
Relação com o trabalho/estudo: Demonstrava e afirmava gostar muito do seu
trabalho e de lidar com seus alunos adolescentes. Inclusive, chamou nossa atenção o estilo
mais despojado/alternativo de se vestir, mais condizente com uma moda jovem apropriada
para adolescentes. Isso nos pareceu um indicador de algo que não sabíamos ainda definir,
num primeiro momento. Até que, em uma das sessões, ela se referiu à sua forma de vestir e
reforçou nossa impressão, dizendo que se identificava mais com as idéias “livres” dos
adolescentes do que das pessoas de sua idade e por isso procurava se aproximar desse
“mundo” também por meio de suas vestimentas. Por isso, o trabalho com adolescentes lhe
trazia jovialidade e espaço de realização pessoal. No completamento, há uma frase que
confirma esse sentido subjetivo que o trabalho tem para Larissa: “O trabalho...é minha
diversão e minha forma de expressão”.
Existem ainda outras frases nesse instrumento que, atreladas à atividade profissional,
expressam o sentido subjetivo do estudo para Larissa, a saber: “Eu gosto...de ler”; “O tempo
mais feliz...estava na universidade”; “Gostaria de saber...sobre arte-terapia, mais sobre
como lidar com crianças”; “Não posso...estudar inglês, por enquanto”; “Meu
futuro...educar minha filha e voltar a estudar”; “Sempre quis...estudar, viajar, ensinar,
aprender, amar”; “Sempre que posso...me afasto para ler, estudar ou sair”; “Me esforço
diariamente...para ser boa mãe, esposa e professora”. Todas essas são expressões repletas
de emocionalidade positiva referentes atividade intelectual e profissional. Aqui cabe ressaltar
ainda que o sentido subjetivo do trabalho e estudo e da atividade intelectual são tão fortes
para Larissa que eles aparecem frente a indutores tão diferentes como as frases acima, o que
nos informa que são indicadores de sentido subjetivo que integram o estudo, a satisfação e a
profissão. Essa mobilização emocional nos permite a idéia sobre o sentido subjetivo que o
conhecimento para ela tem, bem como os interesses que ela expressa. Também nos informa
sobre a felicidade de sua vida passada, atrelando-a ao tempo da universidade, reforçando o
conhecimento e a atividade intelectual como indicadores sobre o sentido subjetivo que o
trabalho e o estudo têm para ela. “Por trás de significações tão fortes sempre há
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configurações de sentido”, nos afirma González Rey (2005b, p. 145), por isso acreditamos
que seu interesse e seu afã em conhecer possivelmente sejam elementos de sentido
amplamente estendidos em suas diversas configurações subjetivas atuais.
Entretanto, Larissa não estava estudando naquele momento, e parecia sofrer muito
com isso, pois era evidente em suas expressões a sua enorme vontade de voltar a se dedicar
aos estudos. Várias vezes afirmou que queria estudar arte-terapia para entender melhor seus
alunos. Porém, continuar a estudar lhe causava muita culpa e conflito, porque implicaria em
dividir o tempo que “deveria ser de sua filha”. Também encontramos indicadores de
conflitos nesse mesmo sentido em várias frases do completamento: “Minhas
aspirações...alcançar sabedoria no âmbito familiar/profissional”; “Minha principal
ambição...continuar a estudar”; “Meu principal problema...é dividir meu tempo, minhas
tarefas”. Por isso, sentia muita falta do trabalho quando estava de licença maternidade, mas
quando teve de retornar, sentiu-se muito dividida entre o trabalho e as demais atividades:
estudo, casa, filha, casamento. É importante ressaltar que nessas informações unem-se dois
processos de naturezas distintas em seu significado emocional: um relacionado à qualidade
de sua maternagem e outro à sua vida profissional, o que já poderia ser considerado, para ela,
um indicador indireto sobre o sentido conflituoso de ambas as esferas de sua vida. Esses são
outros elementos que alimentam a configuração subjetiva do seu sofrimento atual.
Com base nessas informações, desenvolvemos indicadores que nos autorizam a
identificar as seguintes hipóteses sobre os núcleos de sentido que apareceram em suas
expressões, a saber:

8.2.2.1 - Núcleos de sentido subjetivo construídos para Larissa

No caso de Larissa, essa tensão que se forma pela falta de identificação com o
mundo que a cerca, em especial com o da maternidade exclusiva, que se generaliza e que
aparece marcadamente em seu discurso: “Eu prefiro esquecer meus desejos que me
distanciem da minha filha”, nos fez construir um núcleo de sentido que nos pareceu bastante
relevante na sua configuração subjetiva intitulado:“ Sou uma aberração, não sou deste
mundo”.
Neste núcleo, identificamos uma mulher que afirma reiteradas vezes nas sessões e no
completamento de frases que se sente muito diferente das outras pessoas. Parece ter se
refugiado no seu mundo, o mundo das artes e dos artistas, para se resguardar. Mas,
maternidade lhe “puxou” para uma outra realidade a dos mortais: “Antes eu estava muito num
mundo das idéias, dos livros, do estudo. E a Manuela me trouxe para as coisas práticas, essa
coisa de cozinha, de pôr o sapatinho, pôr o laçinho nela, de mexer com essas coisas mais
humanas do mundo.” Vemos aqui a identidade, o sujeito tomando a posição de gênero,
querendo se aproximar do mundo “feminino”, do mundo hegemônico da mulher na nossa
cultura.
Porém, este novo mundo ainda é muito ameaçador e tem se apresentado de forma tão
dura e pouco poética que ela sente muita falta do seu mundo dos artistas. Deseja voltar para
ele através dos estudos, para poder ser quem ela é – diferente. Nas primeiras sessões se
julgava muito, tendendo a se culpar por tudo e se considerar errada e exagerando em suas
percepções. Aos poucos, começou a se permitir fazer questionamentos e parecia assustada
com as respostas que encontrava dentro de si. Algumas vezes, quis desistir do
acompanhamento, pois temia não suportar as conseqüências dos questionamentos que fazia
sobre sua condição e ser punida com abandono dos outros. Temia se diferenciar muito e se
excluir socialmente, o que fazia com que ela se sentisse uma “aberração”.
Por outro lado, este núcleo demarca um forte movimento em busca de si mesma, pois
após o nascimento de sua filha, um novo posicionamento fez-se necessário e urgente em sua
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vida. A tentativa de Larissa de encontrar caminhos que a ajudem a esclarecer o que está
obscurecido, confuso e sofrido é evidenciado num progressivo processo de transformação
pessoal, que a levou à psicoterapia. O conflito de emoções asseguradas no dever e nos papéis
sociais, e outras emoções mantidas por sentidos subjetivos diferentes, marca uma crise de
identidade. Nesse âmbito, confrontam-se o “velho” e o “novo”, onde o outro e o eu da
participante se sentem terrivelmente ameaçados. Disse ela na técnica de recorte e colagem
referindo-se às figuras do anexo H:“Tem aqui uma família que está cheia de simbolismo, de
coisas de tradição. Eu acho que a maternidade resgata muito isso. Mesmo que a gente esteja
construindo um papel muito pessoal de ser mãe, mas a gente carrega muita herança aí”. Por
outro lado não se identifica nem com a idéia romanceada de maternidade, nem com as outras
mães que a cercam, sobretudo a sua mãe e a sua irmã.
Assim, nos pareceu que fez a opção de engravidar muito insegura e desconfiada de sua
real capacidade e do seu desejo de ser mãe. Aqui observa-se claramente a tensão existente
entre os valores sociais, o ideal de mãe representado por sua mãe e seu marido e a sua
posição de sujeito. Evidencia-se o conflito entre um “dever ser” que responde ao imaginário
social e os sentidos subjetivos sentidos que ela não consegue assumir plenamente.
Acreditamos que este conflito tenha se concretizado sobretudo na relação ambivalente que
mantinha com a babá de sua filha. No processo psicoterápico individual, Larissa percebeu que
permitiu que os outros tomassem conta de sua filha, pois não se sentia apta para tanto, porque
não conseguia empregar um sentido de maternidade como o dominante socialmente. Isso fez
com que ela se distanciasse ainda mais da filha e da possibilidade de se “qualificar” para
exercer a maternidade. Por outro lado, se culpava, pois acreditava que não deveria ter que
precisar de uma babá; visto que a maternidade derivaria de um saber instintivo.
Percebe-se, assim, uma grande ameaça à sua identidade de mulher, proveniente da
tensão com a maternidade. Esta “crise de identidade” foi bem caracterizada quando ela
referiu-se à figura da técnica de recorte e colagem (Anexo H) : “Eu coloquei aqui em cima
um gato acuado e do outro lado um cachorro bravo, às vezes eu me sinto em uma dessas duas
posições. Hoje eu tô acuada hoje eu tô ameaçando. A quem ou ao quê? Às vezes eu me sinto
acuada de ter que estar ali só eu cuidando da Manuela. Enfim, de querer fazer uma coisa e
não dar conta. Hoje tem de tomar todas as decisões, isso quer dizer que algumas eu não
consigo levar em consideração. às vezes eu me sinto nas duas situações. Às vezes mais para
gato, às vezes mais para cachorro.” Esse conflito também fica muito claro quando ela tentava
definir a maternidade, na mesma técnica: “Coloquei uma mulher se olhando no espelho, o
tempo todo a gente se confronta. Será que sou eu mesma, ou é uma outra pessoa?”. Essas
frases indicam claramente que Larissa vê a vida doméstica e a maternidade como uma forte
ameaça a si enquanto sujeito desejante, e parece lutar com todas as forças para manter-se no
centro de sua vida.
Esta crise se revelou também com relação a sua sexualidade, quando ela comenta, na
técnica de recorte e colagem: “É a questão da feminilidade mesmo, essa coisa do corpo, da
nudez. Esse questionamento será apesar de ser mãe, da transformação do corpo, será que as
coisas de antes ainda vão continuar valendo, vão estar presentes...?” Em uma sessão ela
também se questionou: “Ah... eu já fui adolescente, agora é mãe e como vai ser essa questão
da identidade visual também”. Nessas frases aparece, de outra forma, seus desejos, seus
valores comprometidos com a imagem que tem de si própria. Isso lhe confere um valor
particular como elemento constitutivo de sentido subjetivo da sua identidade.
Durante todo o acompanhamento, ficou muito evidente a sua necessidade e a sua
dificuldade de se assumir. Neste sentido, em uma das sessões de grupo, apresentou o seguinte
comentário endereçado às outras participantes: “E aconteceu, no meio do caminho da terapia,
de eu achar que eu estou bem e não querer ir mais e eu tinha a sensação de que estava muito
pior. E ela (referindo-se a mim) disse: Larissa quando você estiver assim, venha, é só o
98

momento... entende?. Porque você já está numa caminhada, depois você começa a andar
sozinha... Assim, a impressão que eu tenho, é como uma criança que está aprendendo a
caminhar mas ela ainda precisa de você ali. tem momentos que ela está querendo andar mais
rápido, e cai... então eu me sinto nesse sentido...eu já não tenho mais a sensação de não
querer mais vir aqui.”. Esse trecho expressa o seu caminho em busca de sua produção própria
e autêntica.
Nos parece que haver uma história de vida por trás deste temor que nos permitiu
construir a hipótese de que Larissa teme não ser aceita ao falar ou viver o que quer, pois a
“exclusão” foi o preço estipulado por sua mãe, por ela não ter se “encaixado” no papel
feminino traçado por ela. Na sessão que fizemos com as avós, a mãe de Larissa deixou clara a
sua concepção naturalizada e divina de maternidade, disse ela: “As pessoas falam que as
meninas nasceram para ser mães e as vezes eu acho que eu nasci com esse Dom, né? Eu sou
mais velha do que a minha irmã caçula nove anos e quem cuidou dela fui eu. Minha mãe,
quando ela tinha dois anos, saiu para fazer tratamento e quem dava banho, botava para
dormir era eu.”. Na mesma sessão ela disse ainda: “Eu rezava para a minha filha mais nova
ter um filho porque ela não podia ter. Mas eu disse a ela que seria ela a primeira a me dar
um neto porque tinha casado primeiro, era ela quem ia ser mãe primeiro, e não a Larissa. Eu
rezei muito e ela engravidou.”. Esta “obrigação” de ser mãe foi muito bem percebida por
Larissa. Certa vez, disse: “ Quem mais me conhece é quem mais me cobra....”. Ademais, em
outra sessão ela fez a seguinte afirmação sobre a comemoração do dia das mães: “Quando eu
penso no dia das mães, eu penso na minha mãe e não em mim.”
Neste ponto, entendemos que já temos elementos suficientes para sugerir um núcleo
de sentido de fundamental importância para Larissa, que trata da sua constante busca por uma
espaço de realização pessoal - “Pretendo dar voz ao meu desejo”. Este núcleo expressa a
tensão entre a sua capacidade para resgatar a si mesma enquanto sujeito e de manter uma
posição ativa em sua produção intelectual frente aos preconceitos dominantes e os rótulos
sobre o seu modo de ser, que, na nossa opinião, se converteu em uma importante fonte de
sentidos subjetivos em relação à maternidade e à DPP. Apesar de nos sinalizar para
prognóstico positivo para Larissa e enfraquecer ainda mais a hipótese diagnóstica de
depressão, este núcleo sintetiza o espírito de luta, mas também de mais um conflito que
caracteriza o a sua vida. Ela nos mostrou ter muita clareza sobre o que é, o que quer, e tem
muita disposição para lutar por isso, porém se recusa intencionalmente a naturalização do que
estabelecido socialmente.
Trata-se de uma jovem com uma forte orientação volitiva, que se posiciona como
sujeito em seus diversos sistemas de relação, nos quais tenta ter seu próprio espaço, incluindo
o social numa perspectiva mais ampla. Destacam-se a todo momento nos seus relatos, no
completamento de frases e nas técnicas projetivas, vários indicadores de que ela pretende dar
voz ao seu desejo, e não abrir mão do que quer, ainda que tema as suas conseqüências. Isso
nos levou a construir esse núcleo de sentido.
No entanto, ela sente muita culpa e medo de ser excluída por este movimento Por esta
razão, parece estar tentando encontrar a melhor forma de conciliar seus diversos desejos e
papéis de forma a não prejudicar ninguém, nem a si mesma e assim não correr o risco de ser
excluída e abandonada. A frase do completamento mostra muito bem esta cautela: “Tratarei
de conseguir...aos poucos, devagar e selecionando o que desejo e amo “. Observamos que
esta tensão é um dos principais conflitos vivenciados por Larissa ao longo de sua vida,
principalmente relacionado ao seu passado com sua mãe.
A forma com que sua mãe participa da configuração da maternidade de Larissa, e o
sentido subjetivo da mãe, já aparecem em sua história de vida na luta para ser reconhecida
como sujeito, por reivindicar uma posição ativa e singular frente ao socialmente e
familiarmente estabelecido. Em uma das sessões de grupo, ela relatou que durante a sua
99

adolescência deixou de comparecer a várias festas, pois queria ir vestida de uma forma que
desagradava muito a sua mãe; então, para não magoá-la e nem se forçar a ir com um estilo de
roupa com qual não se identificava, preferia deixar de ir a festa. Este é um bom exemplo de
que ela evita o confronto diante da sua necessidade de se assumir, chegando a algumas vezes
a renunciar temporariamente ao que deseja. Entendemos que o sentido subjetivo de sua mãe é
um elemento relevante da configuração subjetiva do sofrimento atual, que se expressa em
sintomas da DPP.
A tentativa de conciliação também fica evidente na seguinte reflexão de Larissa:
“Acho que a gente passa por vários graus, da privação para negociação.” A evidência deste
conflito entre o que eu quero e o que posso querer, nos sugere, que o conflito atual não se
instalou agora, mas que ele já é “um velho conhecido” de Larissa e que ela desenvolveu
estratégias como esta para lidar com ele. Portanto, percebe-se em seu discurso que ela quer e
luta para conciliar seus múltiplos desejos e resiste em se reduzir ao papel de mãe e dona de
casa. Parece ter prazer em ser mãe, mas sente um incomodo/culpa quando acha que, para
exercer bem esta função, tem que abrir mão de seus outros desejos. O seguinte trecho nos
mostra que ela passou a conotar positivamente a chegada da filha: “ a Manuela me permitiu
ser mais completa.... Eu me sinto mais a vontade para procurar mais coisas, mais
experiência, então quando coloco a coisa do sapato (referindo-se a figura do anexo H), seria
a coisa de se cuidar mais, de reelaborar mais isso”.
Porém, o conflito emerge quando ela percebe que deseja continuar estudando,
aprimorando sua vida profissional, exercendo sua sexualidade, sendo uma boa esposa, mãe e
filha. Não quer abandonar os seus sonhos e desejos, os quais após a maternidade estão lhe
parecendo inconciliáveis, por isso sofre e se reprime e teme ser preterida, como revela o
trecho a seguir: “E eu ficava pensando como vai ser quando eu começar a trabalhar... será
que a Manuela vai gostar de alguém. E o pior eu achava que se ela gostasse de outra pessoa,
ela não ia gostar de mim... e eu poderia ficar com raiva de outra pessoa... e ela sabe
distinguir isso. Se tiver uma outra possibilidade, uma outra pessoa para também tem carinho
ela vai ganhar. Ela vai ter você, vai ter o pai e vai ter a irmã”. Nessas expressões Larissa nos
mostra que está trabalhando arduamente para reorganizar uma posição frente a vida.
Mas não seria mesmo querer demais, subverter o seu destino, exercendo a maternidade
a seu modo, já que ela não se identificava com a maternidade preconizada social e
culturalmente? É fazendo frente a essas imposições sociais que ela tem expressado a sua
capacidade para significar a nova crise vital pela qual está passando e para se reencontrar
nela como pessoa que elaboramos um indicador central para lhe definir como sujeito da
doença. Ou seja, apesar do sofrimento, diante da doença, ela não se subordina, tomando uma
posição ativa que marca o sentido subjetivo da DPP.
Nesse caso, vemos claramente um sujeito em tensão com as figuras simbólicas
produzidas e nas suas relações afetivas mais primitivas e nos discursos sociais dominantes, os
quais estão presentes em quase todos os espaços sociais, institucionalizados ou não. O sentido
subjetivo autêntico de uma maternidade não se constitui apenas por uma representação
externa que foi passivamente internalizada pelo sujeito, mas ganha sentido subjetivo por estar
perpassado pelo afeto em relação às figuras centrais da vida, como mãe e marido de Larissa, o
que gera uma tensão muito forte que nutre o sofrimento vivido no presente.
Vemos neste caso que esse sujeito complexo por nós defendido, se revela também por
meio de sintomas diagnosticados como DPP, embora constituído dentro dos espaços
simbólicos dominantes, representa uma alternativa individual frente à maternidade imposta e
exclusiva e apóia-se na capacidade singular geradora de sentidos subjetivos do sujeito social.
O caso de Larissa nos mostra como a configuração singular de um “rótulo padronizado” nos
permite compreender, não apenas o estático da pessoa e como ela se configura, mas como ela
se movimenta na realidade atual e seu impacto nessa organização subjetiva.
100

8.2.3 – Construções a partir das informações de Lúcia

Identificação e contexto sócio-familiar: Lúcia tem 27 anos, é casada, residente em


Ceilândia, DF. Possui ensino médio incompleto, trabalha como faxineira. Vive maritalmente
com Edgar, que é o pai de seu único filho, Gustavo, que estava com 12 dias quando nos
procurou. Edgar tem 30 anos, trabalha como porteiro. Moram em um pequeno barraco de
madeira nos fundos da casa de seu pai. Trata-se de uma família de classe baixa. Renda
familiar: 3 salários mínimos mensais.
Queixa principal: escreveu na ficha de inscrição: “Depressão pós-parto”. Chama
atenção que Lúcia não apresenta como queixa principal o seu sofrimento, ela limita-se a
nomeá-lo por meio do diagnóstico de DPP. Na entrevista de acolhimento enfatizou as
dificuldades que estava tendo em relação a amamentação: “ comecei a rejeitar o meu filho, eu
queria gostar dele, mas quando ele chega perto de mim eu quero sair correndo, quero ele
longe!”. Provavelmente, foi esse sentimento de rejeição que a fez se atribuir o diagnóstico,
já que sabemos que é essa a associação normalmente feita pelo senso-comum. Porém, mais do
que a rejeição, nos deu a impressão de que Lúcia se sentia muito doente e impotente diante
dos seus sintomas.
Sintomatologia: Passava a madrugada e o dia amamentando, mal se deitava e ficava
praticamente sentada com medo de adormecer e não ouvir o choro do bebê. Estava exausta,
nervosa e muito triste e com muita dificuldade de amamentar, e achava que por isso, começou
a rejeitar o filho. Desde o nascimento do filho, ela afirmou não ter ânimo para nada, não
conseguia dormir, não sentia vontade de comer, por isso ela está nove quilos abaixo do peso e
tem dificuldades para vislumbrar o futuro: “Eu penso se eu nunca mais vou me sentir melhor,
sinto vontade de morrer e não agüento mais, não quero comer. Eu fico com esses
pensamentos, mas logo penso no Gustavo... é muito difícil”, sugerindo com esta frase todo o
impacto negativo que a maternidade tem acarretado em sua vida.
História da gravidez/parto: a gravidez de Lúcia não foi planejada, mas foi recebida
como uma grata surpresa, porque ela achava que não poderia engravidar. Descobriu, após
cinco anos de tentativas para engravidar, no seu primeiro casamento, que tinha um útero
retrovertido e ovário policístico. Um médico lhe explicou que seria muito difícil que ela
engravidasse pelos métodos naturais. No entanto, após quatro meses de relacionamento com
Edgar, ela engravidou: “Para mim foi uma benção saber que eu estava grávida porque eu
achei que não podia ter filhos.”. A gravidez foi então muito bem recebida: “com a gravidez
minha vida mudou para melhor, fiquei muito feliz (...) tudo que eu queria era um filho”. A
gestação transcorreu sem complicações e Lúcia foi preparada durante todo o pré-natal para
dar a luz por meio de um parto normal. No entanto, como não teve dilatação e a gestação já
estava com 40 semanas e 5 dias, foi submetida a uma cesariana no dia 26/02/2004, no HMIB,
sem intercorrências.
Demostrou certa frustração em relação ao tipo de parto: “ Meu parto....não entendi
porque foi cesárea (...) pensei que ele ainda estava na barriga, e quando vi colocaram ele
no meu peito, mas ele não quis”. Observa-se nesta frase também o início do desapontamento
com a amamentação, sugerindo também que ela se sentiu rejeitada pelo filho. Maldonato
(1985) nos informa que se a mulher idealiza muito o parto, e se decepciona quando o mesmo
acontece de modo muito diferente do esperado, as mães tendem a se culparem: “diante do
inesperado, há mulheres que não apenas se sentem frustradas, como também fracassadas,
como se tivessem falhado ou feito tudo errado”. Nos parece que este discurso se aplica à
Lúcia. Por outro lado, essas expressões, juntamente com a frase do completamento sobre a
gravidez: “Quando estava grávida... me sentia feia, mas feliz” já começam a apontar para um
101

sentimento de ambivalência em relação à maternidade, o qual vamos seguir integrando a


outros aspectos da história de Lúcia para ver se esta idéia se sustenta.
História do puerpério/amamentação: As dificuldades com a maternidade começaram
no mesmo dia do parto. Lúcia nos conta que não foi orientada quanto a amamentação e, logo
no primeiro dia, percebeu uma fissura no bico do seio que piorou muito nos dias seguintes.
Sentia muita dor ao amamentar e apesar de ter se queixado à equipe de enfermagem continuou
sem orientação e recebeu alta. Em casa, as dificuldades só aumentaram e a “sonhada”
amamentação se transformou num grande pesadelo. O seio ficou cada vez mais fissurado e
sangrava durante e após as mamadas, as quais se intensificaram e ocorriam a toda hora. Ainda
assim, o bebê chorava muito, parecendo não estar saciado e, apesar da grande dor, Lúcia
continuava a lhe oferecer o seio: “eu apertava ele no peito, mas não adiantava muito”,
lamentava-se ela. Essa vivência negativa em relação a amamentação fica explicita em vários
relatos durante as sessões e nas frases do completamento: “Penso que amamentar... é a pior
coisa do mundo”;” Gostaria de saber... como amamentar sem sentir dor”.
Diante deste quadro e da insistência das pessoas a sua volta: “todo mundo dizendo: dá
o peito, dá o peito”, cada vez que tinha que amamentá-lo entrava em desespero: várias vezes
chorou junto com o bebê nessas ocasiões e sentia-se péssima, porque não conseguia acalmá-
lo: “Parece que meu colo tem espinho, ele se acalma com os outros, mas quando eu pego ele
começa a berrar”, afirmava parecendo ressentida. As pessoas lhe diziam que “ela era mãe e
não precisava de ninguém para aprender a cuidar do filho”, dissuandindo-a de buscar ajuda
especializada, como era de sua vontade. Em um momento de maior desespero, chegou a
chutar a porta do armário, chegando a danificá-lo e em outro para tentar controlar a dor
durante a amamentação, cerrou tanto os dentes que chegou a quebrar a metade de um deles.
Não suportando mais tamanho sofrimento, depois de nove dias após o parto, pediu
ajuda ao Corpo de Bombeiros, que a encaminharam para o banco de Leite do HRT. Lá,
começou a receber orientação e apoio, mas também passou a se comparar com outras mães:
“quando eu chegava no consultório e via aquelas mães amamentado tudo bonitinho, eles
dormindo... me dava uma agonia.. Tudo certinho e eu chegava lá com os peitos tudo duro e
ferido.” Essas expressões demonstram que as dificuldades com a amamentação provocaram
um enorme sentimento de fracasso e uma enorme dúvida em Lúcia quanto a sua real
capacidade de ser mãe. Isso aponta para os prejuízos que a pressão que o modelo da
maternidade instintiva podem trazer.
Encaminhamento para o grupo: Lúcia estava sendo atendida no Banco de Leite,
quando divulgávamos o nosso trabalho do grupo. Imediatamente, ela foi encaminhada para o
nosso serviço, e nos procurou no mesmo dia, para iniciamos o acompanhamento. Pela rapidez
com que se deu o processo de encaminhamento, suspeitamos tratar-se de um caso grave de
depressão pós- parto. Ela compareceu ao CEFPA acompanhada do bebê e de sua irmã mais
velha. De fato, estava muito abatida, chorando muito, mal vestida, com dente quebrado,
despenteada e com dificuldade para caminhar, pois ainda se recuperava da cirurgia cesariana.
História médica/psicológica pregressa: Lúcia tem história de depressão de longa data:
“Já tive depressão antes, desde os meus 15 anos eu trato com psicólogos e psiquiatras e eu
sempre parava no meio do caminho porque achava que eu estava bem.” Desde então, afirma
sentir “ muita tristeza e uma angústia dentro de mim”. Há alguns anos atrás, passou a beber
muito e tornou-se alcoolista. Tem sido acompanhada por psiquiatras e chegou a ficar
internada por dezenove dias no HPAP15, há dois anos atrás. Avaliou esta fase como uma
experiência horrível e, em função disso, parou de beber. No episódio atual de depressão, não
quis procurar seu psiquiatra, temendo ficar internada novamente, por isso, está tomando a
medicação que seu médico costumava lhe prescrever (amitripitilina) por conta própria.

15
Hospital psiquiátrico São Vicente de Paula, que é referência para este tipo de tratamento no DF.
102

Na crise atual, ela se apresenta muito instável emocionalmente: “Sinto uma tristeza,
uma angustia. Não tenho vontade de falar nada com ninguém... fico rezando a Deus que
ninguém chegue na minha casa. Ás vezes eu quero que chegue alguém. Às vezes eu quero
escuro, às vezes eu quero claridade, às vezes eu quero musica, as vezes eu quero quebrar as
coisas.” Afirma que esses sintomas não são muito diferentes das outras crises depressivas que
teve. O que é diferente é a intensidade e a falta de apoio. Assim, atualmente, se percebe ainda
mais doente, pois nas outras crises depressivas sua mãe lhe cuidava e ela “podia se livrar
daquelas coisas que estavam acontecendo com ela, eu era nova, sem filhos, sem
responsabilidades e agora tenho que cuidar do Gustavo e do Edgar”, e, portanto, não tem o
direito nem de expressar o que está sentindo. Lúcia expressa-se como se fosse incapaz de
mudar sua própria vida. A perda da auto-estima e autoconfiança está relacionada
principalmente com a imagem de doente e incapaz que faz de si mesma. Lúcia nos parece
uma mulher que não teve espaço para ser e existir como pessoa, apenas no papel de filha. E o
que é pior, no de doente.
Relação mãe- bebê: a relação com o filho parecia bastante prejudicada, por causa das
dificuldades com a amamentação. O choro dele a deixava desesperada. Na entrevista de
acolhimento ela afirmou: “Quando eu tive alta, eles levaram o bebê para bem longe porque
eu não suportava nem ver o menino e, quando eu ouvia o chorinho, eu queria correr, eu
queria estar boa para levantar da cama e sair correndo porque eu queria ele bem distante de
mim porque eu não podia amamentar. Era como se eu quisesse me livrar dele.. eu não queria
saber dele.” Ao relatar isso, olhava para seu bebê em seu colo e chorava lamentando seus
sentimentos: “Eu não sei fazer nada e o pai também não sabe fazer nada, a gente não sabe
fazer nada” desesperava-se ela nas primeiras sessões, mostrando toda a sua impotência diante
da difícil realidade e que o filho era uma fonte de frustração. Sentia-se, por isso, muito
culpada, impotente e desanimada.
Depois do acompanhamento no banco de leite, conseguiu amamentar, e seus
sentimentos se modificaram: - Alessandra: “O que você acha que aconteceu para isso
mudar?” - Lúcia: “A cura do meu peito.. não totalmente. Mas isso fez com que eu me
apegasse a ele.” (...) Agora eu tô conseguindo conciliar a Lúcia com o Gustavo. Sabe eu tô
conseguindo ter uma ligação”; demonstrando-se mais aliviada por achar que estaria
conseguindo cumprir o seu papel de mãe.
É importante destacar que, aos poucos, o sentimento de rejeição foi se modificando e
deu lugar a um enorme sentimento de culpa e atitudes de superproteção: “Às vezes eu acho
que ele chora por minha causa e eu acho que eu tô passando stress para ele...eu não sei
porque ele chora a noite toda”. Apesar de sentir-se exaurida pelas demandas do filho, ela
passou a se dedicar integralmente a ele e aos cuidados com a casa. O filho passou a ser o
centro de sua vida. Até mesmo o marido que era uma forte referência foi deixado em segundo
plano: “Meu maior tempo dedico... neste momento, ao meu filho”; “Sempre que posso...me
dedico ao Edgar”. Então, se antes ela queria “se livrar” do filho, agora não consegue se
separar dele: passava o dia com o ele no colo, não saía de casa, não permitia que ninguém a
ajudasse, não se permitia descansar, pois achava que o bebê poderia não sobreviver à sua
falta: “Não sei acho que ele vai querer mamar, vai chorar...que a pessoa não vai cuidar tão
bem quanto eu acho que ele vai precisar de mim”.
Nos parece que Lúcia sente hoje que tem obrigação de reparar o mal cometido por tê-
lo rejeitado, e este sentimento a leva para o caminho da superproteção e da dedicação
exclusiva ao filho. Este contexto corrobora a concepção de Parker (1997), ao afirmar que em
alguns casos a mãe, consciente de sua ambivalência, decide compensar a aversão pelo filho
com um amor apaixonado.
Apenas em momento de desespero se permitiu deixá-lo com uma vizinha: “Essa
semana que passou eu não agüentei...Eu não gosto de fazer isso, mas eu fui lá na vizinha e
103

disse: pelo amor de Deus, fica pelo menos 15minutos com o Gustavo para eu poder me
organizar porque eu tô assim doidinha, já nem sei o que eu tô fazendo”. Apesar de todo o
sofrimento vivenciado, o filho lhe trouxe um novo sentido para viver, já que andava muito
infeliz com sua vida. Agora ela se sente útil e com uma missão a cumprir: criar o seu filho.
Tanto que, no completamento, afirma: “A vida...é importante, principalmente agora”. No
completamento de frases, o sentido subjetivo que o filho tem para ela fica evidente nas várias
frases em que se refere explicitamente a ele, tais como: “A preocupação principal... não saber
lidar com meu filho”; “Gostaria...muito que meu filho me amasse como eu o amo”; “Meu
maior desejo....é saber cuidar do meu filho”.
Mas, a despeito desta melhora no vínculo com o filho, a tristeza, a angústia e o
desânimo continuaram a incomodá-la a atrapalhá-la em suas atividades diárias. Isso nos faz
pensar que as dificuldades na amamentação foram apenas mais uma barreira que serviu de
“pretexto” para justificar a sua depressão. Ou seja, a crise de depressão atual foi apenas
aparentemente desencadeada pelas dificuldades de amamentação do bebê e pelas dificuldades
de cuidar dele no dia-a-dia. Mas, de fato, a sua depressão não parece estar relacionada
exclusivamente às vivências do pós-parto, ainda que elas tenham sido negativas em alguns
aspectos. Nos parece que a depressão assume um lugar muito mais amplo, antigo e
significativo na configuração subjetiva de Lúcia e, por isso acreditamos que ela vá muito além
de uma DPP. Qual será o sentido subjetivo que a depressão assume para Lúcia?
Relacionamento conjugal/pai do bebê: Lúcia foi casada por cinco anos com seu
primeiro marido. Descreveu esse antigo relacionamento como muito ruim e distante, por isso
começou a beber e a levar uma vida desregrada: “Bebia todos os dias, saía com as amigas
para bares, passava a noite fora e as vezes, levava dois a três dias para voltar para casa”.
Essa situação acabou culminando na separação conjugal. Foi nesta época que conheceu o seu
atual companheiro Edgar. Ele era muito diferente de seu ex-marido: “era carinhoso,
atencioso e me ajudou a deixar a bebida e ainda me deu um filho”. Seu amor e gratidão pelo
atual marido ficam evidentes na frase: “ quando começamos a namorar eu estava ruim
mesmo, ele me salvou”; “Meu marido...neste momento está sendo tudo para mim”; ” Quando
estou sozinho... nem sei, acho que penso no Edgar”; “Meu maior medo...ficar sem meu
marido”.
Para ela, a gravidez veio completar a felicidade que estava sentindo ao lado do seu
novo companheiro. Ela afirma que o casal estava feliz com a chegada do bebê. O marido
parece ser uma figura central em sua vida, é citado várias vezes no completamento, sempre
acompanhado de uma forte mobilização emocional: “Eu gosto... do meu filho, do Edgar e da
minha família”; “Amo...meu filho, meu pai, meus irmãos e o Edgar”; “Eu gosto muito... de
sair com o Edgar”. Porém, por mais que faça, sente-se em dívida por não estar conseguindo
ser a esposa que ela acha que seu marido gostaria: “Lamento... não poder ser a esposa que o
Edgar merece”; “Fracasso... sou um fracasso de mãe e esposa”; “Me esforço
diariamente...para ser mãe e para ser esposa”. Essas expressões também são indicadores de
que está existindo um forte conflito em ambas as áreas: a maternidade e a conjugalidade,
havendo muita dificuldade de se integrar em sua configuração subjetiva. Resta-nos entender
como esse conflito está participando da configuração da depressão após o parto.
As informações acima sugerem que sua convivência com o companheiro era boa, no
entanto, após o nascimento do bebê, os conflitos com o companheiro começaram. Percebe que
o marido fica muito nervoso com o choro do bebê, o que a deixa mais angustiada: “Ele já
chega tão estressado em casa (...) por isso que eu privo ele dessas coisas por isso eu evito que
ele ouça o choro à noite...” Às vezes, tranca-se no banheiro junto com o bebê para chorar,
para não incomodar o marido, pois teme que ele não suporte a situação e a abandone junto
com o filho: “Eu me tranco dentro do banheiro á noite com o bebê chorando, para não
acordar ele, para não incomodar”. Por essa razão, tem evitado falar com seu marido dos seus
104

sentimentos tristes e do seu desânimo: “Eu tenho tanto medo disso...eu gosto muito do Edgar
e eu sei que ele gosta muito de mim também. E eu tenho medo desse meu problema fazer com
que ele se afaste de mim, que ele canse da minha tristeza”. Esses relatos nos sugerem que
Lúcia não se sente no direito de incomodar o marido com seus problemas, já que ele a ajudou
a sair da pior fase de sua vida, sugerindo ter uma “dívida” para com ele, afinal ele lhe salvou
e lhe deu uma nova vida e um filho!
Relação com sua mãe: a mãe de Lúcia faleceu há um ano atrás,. Pelo seu relato e pelas
respostas no completamento de frases, parece que ainda hoje encontra-se enlutada: “Sofro...
com a morte da minha mãe”; “A morte...prefiro nem falar nisto, me causa dor”. Sempre se
refere a ela de uma forma positiva e saudosa. Lúcia afirma que tinha uma boa relação com a
mesma, que era a única que lhe ajudava e, por, isso tem boas lembranças dela. Assim, sua dor
atual é acentuada pela falta de apoio e pela busca de uma modelo onde se espelhar: “Sinto...a
falta da minha mãe”; “Eu freqüentemente reflito...sobre o meu relacionamento com a minha
mãe”. A dor da perda da mãe pode estar sendo revivida neste momento do pós-parto, pois
representa a perda de um apoio importante neste momento crítico de sua vida. Será que busca
nela respostas para as dúvidas e as decepções que a maternidade tem lhe trazido?
Relação com o pai: Seu pai é outra figura bastante idealizada: Meu pai...É TUDO
PARA MIM, amo demais”, escreveu ela com letras maiúsculas no completamento de frases.
Ele é compreensivo e a ajuda, inclusive com o bebê, sendo para ela uma fonte de apoio. No
entanto, sente-se incomodada com o fato dele ser alcoólatra. Por isso, ela, naquele momento,
diz estar um pouco afastada dele, já que ela já se tratou da dependência deste mesmo “vício”.
Mesmo assim, continua preservando uma imagem positiva do pai. inclusive faz questão de
cuidá-lo, como afirmou no completamento: “Me esforço...para cuidar do meu pai”
Relacionamento familiar: O casamento dos pais era bom. A relação do seu pai com
os filhos era muito boa, pois ele era muito “brincalhão”; já a mãe era mais “severa” e
brigava mais. Dessa união, foram gerados sete filhos. Lúcia é a quarta filha do casal, a mais
nova das mulheres e “a que foi criada com mais dengo”. Lúcia lembra-se de muita coisa da
infância, que, segundo ela, foi muito boa. Já da adolescência, quase não se recorda. Seu afeto
por sua família fica evidente em algumas frases do completamento: “Amo...meu filho, meu
pai, meus irmãos e o Edgar”. Porém, na prática, conta apenas com a sua irmã mais velha
para auxiliá-la nos cuidados com o filho; e com quem pode dividir suas dúvidas e tristezas.
Relação com o trabalho/estudo: Lúcia exercia a função de faxineira em uma empresa
de serviços gerais, mas parecia não gostar do seu emprego. No completamento de frases ela
fala a respeito disto: “O trabalho...me causa tristeza, porque eu não lido bem com as
pessoas”. Porém, valoriza seu emprego porque através dele pode comprar as suas
“coisinhas”, e ser mais independente do marido: “ eu tô muito estressada porque ter que
voltar a trabalhar eu sempre fui acostumada a ter o meu dinheiro e eu não quero pedir nada
para o Edgar. Porque se eu precisar de qualquer coisa eu vou ter que pedir para ele, e não é
só para mim não é, para ele (Gustavo) também.”. Ademais, quando ainda encontrava-se de
licença-maternidade, já sofria porque teria que voltar a trabalhar em breve e não tinha com
quem deixar seu filho. Estava tão insegura em deixá-lo, que confessou que gostaria que seu
marido assumisse sozinho o sustento da família, ainda que isso lhe custasse a sua
“independência”: “Eu tava uma pilha por causa dessa estória de voltar a trabalhar, eu tava
tão estressada parecia que eu ia morrer(...) Eu queria que o Edgar falasse que eu podia lagar
o emprego e que ele ia segurar as pontas, mas ele não falava nada”.
Ela acabou voltando ao trabalho, mas ficou por pouco tempo, pois achava que o seu
salário não estava compensando o sofrimento de ficar longe do filho: “eu não tenho
condições de pagar alguém para ficar lá em casa com o bebê. Aí, depois de trabalhar o dia
inteiro, cansada, eu ia ter que chegar em casa, cuidar dele, cuidar da casa. Eu pensei bem e
achei melhor ficar em casa”. Foi então que tomou coragem e conversou com o marido a
105

respeito: “Aí ele se manifestou... Ele disse: - Lúcia, eu há muito tempo queria te falar isso.
Eu, por mim, você já tinha parado de trabalhar porque eu tenho condições de segurar as
pontas. - E eu: “Ai meu Deus porque ele não falou antes”. Depois que parou de trabalhar,
parecia mais tranqüila, mas acabava se sobrecarregando com os cuidados com o bebê, os
quais tinha muita dificuldade de dividir com alguém. Também parecia que sua “dívida” para
com o marido aumentara ainda mais, já que agora ele lhe sustentava, portanto sentia-se cada
vez menos no direito de se queixar dele, do filho, da vida.
Vemos aqui, a forte presença da categoria de gênero, na qual o sofrimento que a
maternidade impôs para Lúcia é aceito com naturalidade, pois ela apresenta um modelo
feminino e de maternidade que reforça a atribuição “natural” da mulher no ambiente privado,
não manifestando conscientemente o desejo de mudar valores estabelecidos, apesar do grande
sofrimento experimentado.
Relacionamento social: Lúcia afirma não ter muitos amigos. Sua rede de apoio é
pobre. Suas amigas eram aquelas dos “tempos de bebida” e hoje já não pode contar com elas.
Porém, ela mesma reconhece que resiste em pedir ajuda, principalmente quanto ao cuidados
para com o filho, porque tem dificuldades de se relacionar fora do âmbito familiar. No
completamento de frases, apresentou expressões onde ela afirma ter dificuldades de
relacionamento social: “Meu maior problema.... é lidar com as pessoas difíceis”; “O
trabalho...me causa tristeza, porque eu não lido bem com as pessoas”; “Penso que os
outros...são todos falsos comigo”; “Me aborrece... quando sei que falam mal de mim”; “As
pessoas...algumas eu gosto outras não”; “Meus amigos... não tenho muitos”.
É importante ressaltar que essa dificuldade de relacionamento não foi observada
durante o grupo, pois ela interagiu muito bem com as outras mães. Essa aparente contradição
nos sugere que, ou esse é um “rótulo” que ela se impõe: “sou uma pessoa difícil”, o que aliás
é um auto-conceito comum entre aqueles que sofrem de depressão; ou o fato de estar entre
outras mães que também estavam passando por dificuldades semelhantes e que dialogavam
sem julgamentos, tenha favorecido a expressão e a abertura para relacionar-se melhor.
Frente aos diversos indicadores construídos para Lúcia, a partir da sua história e das
suas reflexões, foi possível elaborar seus núcleos de sentido subjetivo, a saber:

8.2.3.1 - Núcleos de sentido subjetivo construídos para Lúcia:

Lúcia é uma mulher jovem, uma mãe do final do século XX. Sendo assim, é uma
mulher e mãe que transita pelas concepções da família nuclear burguesa e pelos princípios da
família patriarcal, ainda arraigados em nossa sociedade. Lúcia aprendeu a ser devota ao filho,
devido à crença no amor instintivo, biológico, natural e incondicional. Como nos diz Muszkat
(1994), somos mulheres educadas por mulheres. Ser uma boa mãe para ela é uma obrigação,
assim como a crença de que os filhos são o maior valor de uma mulher. Da mesma forma, a
passividade, os sentimentos de desvalorização, insegurança e o conseqüente desejo de ajudar
são características femininas construídas ao longo dos séculos, persistindo na maioria das
mulheres e podendo ser observados em Lúcia, mesmo que de forma inconsciente.
A maternidade tem sido vivenciada por ela como uma grande decepção: “ Tudo que eu
queria era ter meu filhinho, eu nunca imaginei que iria sofrer tanto assim”. Está muito
confusa em relação seus sentimentos ambivalentes: “Meu nenenzinho chega e eu só sinto
tristeza... me sinto a pior pessoa do mundo”(...) “ eu não queria rejeitar ele”. E ela enquanto
sujeito se manifesta de forma singular nesse momento de ruptura de expectativas com a
maternidade. A vivência da maternidade tem sido tão ambivalente, permeada de sentimentos
de incapacidade, culpa, insegurança, raiva, amor e medo, que nos levou a construir o primeiro
núcleo de sentido para Lúcia: “ Ser mãe é padecer, mas não no paraíso”, que foi inspirado
no livro de Moreira (1993) que leva este título.
106

Em primeiro lugar, este núcleo se integra ao sentido subjetivo que sua mãe tem para
ela. Sua mãe é uma referência central e positiva, mas também pode ser um modelo
inatingível.... Se compararmos as frases seguintes, esta hipótese nos parece plausível: “Minha
mãe...era uma mulher fantástica”; “Fracasso... sou um fracasso de mãe e esposa”; “É
difícil....ser mãe”; “Tratarei de conseguir...ser a melhor mãe do mundo”. Diante dessas
expressões, acreditamos que seu conflito atual com a maternidade está permeado pela
discrepância entre o seu modelo materno e a sua realidade vivida enquanto mãe, pois não se
considera uma boa mãe porque acha que não sabe cuidar de seu filho, como sua mãe o faria:
“Você se sente a pior mãe do mundo, não sei dar banho, não sei trocar, não sei acalmar ele”.
Dessa forma, acreditamos que sua mãe representa o ideal de maternidade “vendido”
socialmente, que fica ainda mais “imaculado” pelo fato dela já estar morta, uma vez que em
nossa cultura há uma forte tendência a “idolatrarmos” os mortos, principalmente quando estes
nos são caros. Assim, o estado de enlutamento, no qual ainda se encontra, dificulta ainda mais
uma visão mais crítica e realista da maternidade exercida por sua mãe para poder relativizá-la
e aceitar melhor a sua própria maneira de maternar. Por isso, está confusa e perdida no novo
papel de mãe. Assim, Lúcia parece ter construído para si um ideal de mãe perfeita, incapaz de
admitir a coexistência de sentimentos ambivalentes pelo filho e, por essa razão, está insegura
quanto a sua capacidade para cuidá-lo e ser uma boa mãe. Sofre com um enorme sentimento
de culpa que dá sustentação a atitudes de superproteção e comportamentos que beiram a
simbiose com o filho.
Observamos também que ela apresenta grande preocupação em assumir bem os papéis
de mãe e esposa, mas idealiza ambos os papéis. Talvez, por isso, ache que, para exercê-los
satisfatoriamente, deve seguir a recomendação da sociedade mais tradicional: se sacrificar, se
dedicar integralmente aos filhos e ao esposo e, principalmente, não se queixar jamais. Sob
esta visão, é fácil entender que o seu prazer é agradá-los e servi-los e seu fracasso é quando
percebe que não cumpriu bem este papel, como podemos observar nas frases do
completamento: “Meu maior prazer...dormir bem, ver meu filho e o Edgar bem”; “Me
deprimo quando...vejo meu filhinho chorando”; “Lamento... não poder ser a esposa que o
Edgar merece”; “Fracasso... sou um fracasso de mãe e esposa”; “Me esforço
diariamente...para ser mãe e para ser esposa”. Acontece, porém, que com todas as
dificuldades enfrentadas no período puerperal, Lúcia passou a ficar muito nervosa, chorosa,
triste e infeliz.
Ela cuida sozinha da casa e do bebê. Seu marido trabalha o dia todo e, quando chega,
espera que o jantar esteja pronto e que ela e o bebê estejam calmos. Quanto a essa rotina
pesada, ela disse: “É isso que eu acho que me deixa estressada também: é ter que lavar,
passar e quando o menino dorme, que era para eu dormir também, eu não durmo. Vou
cuidar de casa. E à noite eu fico como menino balançando, para o marido não acordar,
porque ele tem que acordar cedo. Desde que ele nasceu eu não durmo direito”. Essas
expressões nos fizeram lembrar das muitas mães que, numa tentativa de expiar sua culpa,
gerada pela ambivalência materna, assumem a condição de mater dolorosa, gemendo sob a
“cruz” que a maternidade pode se transformar e afirmando-se felizes nessa condição.
A forma de maternar de Lúcia nos levou a pensar sobre o “famoso” masoquismo
feminino, do qual nos fala Deutsch (citado por Parker, 1997). Para Parker (1997), é possível
ver as estruturas masoquistas como uma tentativa de lidar com a culpa evocada pelo ódio
materno. As mães podem empregar com os filhos maneiras excessivamente generosas, hiper
altruístas, numa tentativa de obter uma absolvição desses impulsos que as enchem de culpa e,
nesse sentido, o masoquismo materno associa-se à ambivalência materna; o que nos parece
evidente no caso de Lúcia.
De acordo com a teoria psicanalítica, a tríade passividade, masoquismo e narcisismo é
o que caracteriza a mulher “normal” ou “feminina”. A partir dessa tríade, a “boa mãe” é
107

constituída pela integração harmoniosa das tendências narcísicas e aptidão masoquista de


suportar o sofrimento, que seria compensado pelas “alegrias da maternidade”, que se referiam
as suas tendências masoquistas espontâneas: a aptidão da mãe ao sacrifício de si, na sua
resignação ao sofrimento para o bem de seu filho. Dessa forma, só podemos concluir que, se a
mulher é naturalmente “feita” para sofrer e gosta deste sofrimento, não há porque existir
constrangimento a esse respeito e mudar esta situação, já que “é pelo esquecimento de si
mesma que algumas mulheres se dão importância” (Forna, 1999, p. 43). Essa última assertiva,
nos remete mais uma vez à análise do caso Lúcia
Sua sobrecarga e sacrifício também se refletem em seu casamento e na esfera sexual.
As dificuldades têm se acentuado pelas cobranças do marido, principalmente porque afirma
não ser muito “ligada nisso”, como também expressa no completamento de frases: “O sexo...
não faço questão”. Ademais, percebe-se muito alterada, fracassada, sentindo-se feia, sem
qualquer atrativo sexual: “Eu... me acho feia neste momento”. Mesmo assim, tenta “cumprir”
a sua obrigação de esposa, mas sente-se muito dividida entre o filho e o marido: “Às vezes, eu
até tenho vontade de ficar com ele, mas eu não consigo, não dou conta. No final da noite eu
tô um caco”(...) “ eu quero deitar e descansar e ele acha que não, que eu tenho; que tenho
que dar o peito para o menino, botar o menino para dormir e dar atenção para ele. Quando
ele chega tarde e a gente não tem momento nenhum comigo.(...) aí ele quer que eu tenha um
momento para ele e eu não to dando conta, nem tendo condições nem de ficar em pé, e não
posso falar que eu tô deprimida, que eu tô mal.” Os conflitos entre o casal aumentam. A Eva,
punida, dá lugar a Maria. E, como nos mostra Serrurier (1993, p. 89):“Para a maior parte das
mulheres, uma maternidade significa deformação, feiúra, envelhecimento [...]”.
Apesar do marido e o filho terem dado sentido a sua vida vazia, já que o trabalho é
fonte de tristeza e ela não gosta de estudar, como deixa claro no completamento:
“Odeio...estudar”, supomos que ela, como não se sente realizada em outras áreas, tenta ser a
mãe e a esposa perfeita. O filho que tanto queria não foi capaz de salvá-la da depressão, nem
da angústia e do sofrimento experimentados há muito tempo. Tanto que no completamento de
frases apresenta expressões que demonstram que continua a experimentá-los: “Algumas
vezes... me sinto sozinha e vazia”; “Eu prefiro...guardar minhas tristezas só para mim”;
“Freqüentemente sinto...uma angústia dentro de mim”; “Necessito... de paz”.
Encontramos em Serrurieur (1993) informações que nos ajudam a compreender os
sentidos subjetivos presentes nas expressões acima e que se integram à configuração subjetiva
da depressão atual. De acordo com esta autora, muitos comportamentos cotidianos da mãe
têm um significado suicida ou auto-destrutivo, quais sejam: privar-se em proveito da criança,
deixar-se sobrecarregar pelas tarefas domésticas, recusar todo prazer em proveito do filho,
não brincar, não fazer amor com o marido, não trabalhar fora, não fazer nenhum programa
que a obrigaria a abandonar a criança. Dessa maneira, é pelo devotamento, pelo esquecimento
de si mesma que a mulher se dá importância. Nos parece que é este o sentido que a depressão
de Lúcia expressa: o abandono de si mesma e a renúncia irrestrita. Este sacrifício nos remete a
uma socialização delimitada por atribuições bem definidas para o papel de mulher, sob a ótica
da categoria de gênero. A opção que lhe resta é procurar agradar aos outros, colocando-se no
lugar que é delegado a ela, o de mulher, isto é, restrito ao espaço doméstico, cuidando do
marido, do filho e do pai.
O indicador de opressão e falta de espaço pessoal foi freqüentemente observado
durante as sessões no grupo e no completamento de frases. Não apresenta uma fala
consistente que se relacione apenas ao que ela quer para ela mesma, se realizará por meio do
filho. O que ela deseja para si mesma? No fundo, parece-nos não querem apenas cuidar, mas
também ser cuidada, ouvida e considerada. Em algumas sessões, se permitiu esta demanda
para si: “Eu queria uma pessoa para me fazer companhia, alguém para ficar conversando
108

comigo, me ouvindo”. “Eu só penso que ninguém me entende, se ele me compreendesse


melhor... minha cabeça está confusa, não consigo nem pensar direito”.
Após fazer esta análise, encontramos na literatura um livro que nos fez lembrar muito
o caso Lúcia. Trata-se de “ Meninas boazinhas vão para o céu, as más vão à luta!” de Ute
Ehrhardt (1996). Nesta obra, descobrimos que mulheres como Lúcia não são raras. Mesmo
nos tempos pós-modernos muitas continuam amordaçadas pelo seu jeito bem-comportado,
recusando caladas uma vida mais prazerosa. Raramente conseguem o que desejam de fato. As
causas dessas desistências de si mesmas são múltiplas e remotas, ou seja, remontam a história
de desenvolvimento de cada uma e a história secular de todas elas. Nesse sentido, Ehrhardt
(1996) apresenta o conceito de desamparo adquirido, segundo o qual danos morais e
emocionais, como depressões ou estados de angústia, também podem ser explicados como
sendo reações de desamparo.
Vemos assim que existe em Lúcia muito medo de perder o afeto das pessoas queridas,
e a sua atitude “inadequada” pode levá-la a ser abandonada. Até o seu sofrimento e o fato de
ser um pouco estressada ela tenta “esconder” dos outros: “Eu secretamente... sou um pouco
estressada”. Contou que várias vezes chegou a se trancar no banheiro para chorar, com o
bebê nos braços, para que seu marido não percebesse sua tristeza e desespero: “Quando eu
estou nessas crises de choro eu entro no banheiro para ninguém ver que eu to chorando
porque eu sei que ele vai perguntar o que eu tô sentindo e eu não sei explicar”. Temia que
seu marido não suportasse a sua tristeza/lamentação e a abandonasse juntamente com seu
filho. Por isso, queixou-se várias vezes de que não tem nem o direito de reclamar ou de
demonstrar a sua tristeza. Segundo ela, quando tenta fazê-lo, seu marido lhe diz: “pare de
dizer que você está deprimida, você não tem isto não, pare de reclamar!”.
Diante dessas informações, cabe ressaltar que seu marido, apesar das tentativas de não
rotulá-la, acaba por reduzi-la a seu diagnóstico, pois quando a vê triste, ou quieta, não se
preocupa em escutá-la, mas atribuir imediatamente essas “expressões” aos sintomas da
depressão, como podemos ver no relato a seguir: “No dia em que eu estou mal, chorando,
principalmente, aí ele diz: Ah não, não acredito que você já está com isso de novo agora.
Pronto, não vou trabalhar mais, não vou fazer mais nada porque eu fico lá preocupado em no
que você pode estar fazendo aqui com você e com o bebê. Então a preocupação dele é essa.
Aí eu já não posso baixar a cabeça, ficar muito tempo assim pensando, parada, que ele já
pergunta: você tá pensando no que? O que é? Já vai começar de novo? Tudo dele é isso, é: já
vai começar de novo?”. Assim, percebemos um processo de naturalização da depressão, no
qual não só ela se vê como doente, mas todo o contexto acaba por reforçar este rótulo.
Devemos nos lembrar também que Lúcia já fez vários tratamentos, principalmente
medicamentosos, e até já foi internada em uma das crises num hospital psiquiátrico.
Conhecendo nosso sistema de saúde que é hegemonicamente regido pelo modelo biomédico,
Lúcia, provavelmente, não foi vista como uma pessoa, mas como uma doença e tratada como
tal. Essa forma reducionista de vê-la, certamente, reforçou o “rótulo” que ela mesma se
impõe. Assim, a emergência de mais um núcleo de sentido fica evidente: “a identidade de
enferma”. Esse núcleo refere-se ao processo de naturalização, no qual a depressão passa a
fazer parte da sua identidade, o que a leva a se assumir como doente em suas diferentes
relações e espaços cotidianos, utilizando-a como referência de sua pessoa: ”Tá tudo bem e eu
invento para ficar tudo mal. Ele entende dessa forma. Mas como é que eu vou falar para ele
que amanhã eu vou estar mal? Eu não sei, às vezes acontece de eu não acordar bem”. Com
isso, sente-se presa e impotente diante da “doença/depressão”, que, paradoxalmente, lhe traz
um certo alívio, pois, a desculpabiliza diante da família e da sociedade. Nessa perspectiva, a
depressão transforma-se em garantia de proteção e afeto, ganhos secundários que vão na
contramão do que realmente a faz sofrer, ou seja, a ameaça de ser abandonada, o medo e a
109

insegurança de não poder acreditar em si, e principalmente a incapacidade de refletir e


escolher sobre o que é bom ou ruim para a sua vida.
Portanto, existem indícios que nos levam a perceber que o pedido de socorro de Lúcia
representa uma busca de algo para si própria, como pessoa de desejo e, não, como uma mãe
que ameaça a integridade do filho ou uma paciente psiquiátrica. Mais do que um quadro
psicopatológico, seus relatos reforçam o indicador de necessidade de um espaço pessoal,
evidenciando um conflito entre o seu desejo e o do outro, assim como vimos nos casos de
Gabriela e Larissa.

8.2.4 – Construções a partir das informações de Isabela

Identificação e contexto sócio-familiar: Isabela tem 38 anos, é solteira, tem o ensino


fundamental, é natural de Ipuerias (CE). É mãe de duas meninas, uma de 14 anos e outra de 1
mês e 25 dias. Moram em um barraco de um cômodo, alugado, nos fundos de um lote em
Samambaia-DF. Trabalha como camelô numa banca no Centro de Brasília. Sustenta sozinha
sua família, com a renda de R$ 350,00 mensais, que lucra com as vendas. Família de classe
baixa.
Queixa principal: O motivo da procura descrito na ficha de inscrição foi: “Depressão
pós-parto”. Apesar dessa afirmação, posteriormente soubemos que Isabela não havia sido
formalmente diagnosticada por uma especialista. Ficamos nos perguntando, o que a fez pensar
que estaria com DPP?
Sintomatologia: Relata que está se sentindo muito triste, desanimada, chorando
facilmente e com medo de ficar sozinha em casa desde que sua filha nasceu. Sente-se
desanimada, sem vontade de arrumar a casa e de cuidar do bebê, mas não tem outra opção a
não ser “se virar” sozinha. O desânimo é maior pela manhã e a tristeza se arrasta durante todo
o dia. Sente-se pior se fica dentro de casa. Reclama muito das dificuldades financeiras e da
falta de apoio do pai das crianças, com o qual não vive maritalmente, nem recebe ajuda
financeira.
História da gravidez/parto: Sua gestação foi muito tumultuada, pois passou por um
rompimento conjugal, em função da constatação da gravidez. Isabela nos contou que ficou
arrasada com o abandono do seu companheiro e, por isso, teve uma crise depressiva logo no
início da gestação. Na sua avaliação, conseguiu sair da crise com a ajuda dos amigos e de sua
filha mais velha, pois tinha que “continuar lutando por ela”. Sobre esta época, afirmou no
completamento de frase: “Quando estava grávida...eu sofri muito na minha gravidez”. Foi
submetida a uma cesárea, em hospital público, com grave intercorrência. Seu parto foi de
alto risco, pois teve uma parada cardio-respiratória e necessitou de manobras de
ressuscitação. Felizmente, foi socorrida a tempo e seu bebê nasceu bem. Significa a
experiência do nascimento de forma negativa, como podemos observar nas frases do
completamento: “Meu parto...foi de alto risco, tive parada cardíaca”; “Nascer...deve ser
bom”; como se duvidasse dessa possibilidade, em função da vivência negativa em relação a
seu próprio nascimento, já que veremos mais adiante, que sua vida não tem sido nada fácil.
História do puerpério/amamentação: Apesar da grave intercorrência do parto, Isabela
ficou internada, sem direito a acompanhamento e ainda teve que cuidar de seu bebê. Após
receber alta, contou com a ajuda das amigas que passaram a se revezar para cuidar delas. Em
casa, Isabela começou a se sentir estranha: chorava “por qualquer coisa”, sentia um aperto no
peito, estava muito cansada e desanimada. Chegava a passar o dia deitada na cama com sua
filha ao lado, tendo que fazer um grande esforço para cuidar dela. Mesmo com essas
dificuldades, conseguiu amamentar a filha ao seio com sucesso e continuou cuidando da filha
mais velha. Reparou que se sentia mais entristecida quando ficava dentro de casa, “me sentia
presa na minha casa”, preferindo ficar na rua. Essa afirmação nos fez pensar que a casa
110

concretizava a sua solidão e o sentimento de desamparo, pois lá na havia ninguém para


cuidar-lhe. Por essa razão, e porque não tinha direito à licença maternidade, teve que voltar ao
trabalho com menos de um mês após o parto. Ademais, tinha que trabalhar para sustentar a si
e a suas filhas, já que era a única provedora da família.
História médica/psicológica pregressa: Paciente relata que sempre sentiu uma grande
tristeza, pois sua vida tem sido muito difícil e sofrida. Tem uma vizinha que “sofre de
depressão” e trata-se no HPAP16. Ao ver os sintomas dela, especulou-se de que talvez tivesse
depressão e que já teve várias crises depressivas na vida. Nunca foi formalmente
diagnosticada, e até hoje nunca havia procurado ajuda especializada, temendo também ser
internada no hospital psiquiátrico.
Encaminhamento para o grupo: Ela chegou ao grupo encaminhada por uma amiga,
que trabalha no serviço de limpeza da Universidade Católica de Brasília e viu nosso cartaz de
divulgação. Ao perceber a tristeza que a amiga se encontrava, recomendou-lhe o grupo.
Compareceu à entrevista de acolhimento com seu bebê e acompanhada desta amiga,
demonstrando-se muito entristecida.
Relacionamento com o cônjuge/pai do bebê: Isabela mantinha um relacionamento
afetivo com o pai de suas filhas há 20 anos. Porém, nunca haviam morado juntos, pois ele era
casado com outra mulher. Apesar dessa condição, Isabela sempre acreditou que formariam
uma família, e seguiu investindo neste relacionamento, por todos esses anos. Até a três anos
atrás, após a separação conjugal do pai de suas filhas, eles resolveram viver juntos. A
experiência durou apenas alguns meses, mas o suficiente para Isabela engravidar. Diante da
confirmação da gravidez o companheiro rompeu o relacionamento e saiu de casa,
abandonando-a. Nunca mais voltou a procurá-la e tampouco fez questão de conhecer sua nova
filha.
Quando relata essa história, Isabela demonstra grande ressentimento em relação ao pai

das filhas. Sente-se abandonada e desamparada por ele, que, além de não participar da criação
das filhas, não as ajuda financeiramente. Percebe-se esse ressentimento no completamento,
tanto por meio das muitas frases, nas quais teria oportunidade para se referir ao ex-
companheiro e, ela não o faz; como nas que ela o faz mais explicitamente: “Me aborrece...o
pai das minhas filhas”; “A paternidade... ser pai não é ser tudo”. Esses trechos sugerem que
a paternidade não é apenas participar da concepção do filho, mas se responsabilizar e cuidar
dele. Fez questão de nos contar que sabe onde o ex-companheiro mora, mas não o procura e
evita conversar com ele, para que ele não pense que ela irá apenas lhe pedir dinheiro. Por ter
ficado muito magoada com sua atitude, diz que pretende, de fato, colocá-lo na justiça para
receber a pensão alimentícia das filhas. Vemos aqui, que as dificuldades de relacionamento e
o sentido subjetivo que o seu ex-companheiro tem para ela, devem estar alimentando a relação
com o seu bebê, assim como o sofrimento atual, na fase do puerpério.
Isabela fala de alguém que existe pelo outro, evidenciando a sua não existência como
sujeito ou indivíduo. Suas atitudes estão direcionadas a uma necessidade constante de adaptar-
se às necessidades e exigências dos outros (filhas, namorado), tendo dificuldade de se
identificar, como se tivesse perdido o contato consigo mesma, com seus desejos ou a própria
identidade: “Minha opinião...difícil de responder”; “O sexo... eu nem penso mais nisso”;
Além de negar a si própria um lugar de sujeito no mundo, Isabela culpa-se pelos fracassos,
reforçando a idéia de que ela é o problema. Cabe destacar como esses sentidos de tristeza
estão associados a uma configuração que, para justificar, se rotulam como uma “patologia”,
eliminando o sujeito que se expressa em sua riqueza e se desenvolve.
Relação com sua mãe e com seu pai: Praticamente não se referiu à sua mãe durante os
atendimentos individuais e em grupo, mas, quando o fez, nos passou a impressão de que a
16
Hospital psiquiátrico São Vicente de Paula, que é referência para este tipo de tratamento no DF e entorno.
111

mãe é uma referência positiva na sua vida. No completamento, esta positividade aparece na
frase: “Minha mãe...eu amo minha mãe”. Da mesma forma, não se referiu ao seu pai, mas
escreveu no completamento: “Meu pai....eu amo meu pai”. Parece que ela tenta preservar a
imagem positiva dos pais, apesar de todas as dificuldades que tem passado na vida.
Relacionamento familiar: É proveniente de uma família muito pobre e diz ter passado
por muitas necessidades na vida: “ já passei até fome”, afirmou ela. Não conseguimos acessar
maiores detalhes de seu passado, pois ela se negava a falar neste assunto, inclusive por escrito
por meio das frases do completamento: “Eu prefiro...não falar do passado”; “O
passado...não gosto de falar do passado”. Não se referiu aos familiares. E parece que não tem
rede de apoio familiar. Conta apenas consigo mesma para sustar-se e às suas filhas. Apesar de
ter amigos que a ajudam no dia-a-dia, por isso, tem que dar conta sozinha da casa/das filhas e
ainda é a única provedora do lar.
Relação mãe-bebê/filhos: Apesar da grande tristeza e da indisposição inicial para
cuidar da filha, sempre se refere à bebê de forma carinhosa, enfatizando o grande amor que
sente por ela. No entanto, a sobrecarga de trabalho, seu cansaço e desânimo era tão intensos
que, certo dia, quando estava indo de ônibus para o trabalho, quase deixou o bebê cair
escorregando por suas pernas tamanha privação de sono. Ela chorou ao relatar este episódio,
demonstrando-se muito culpada pelo seu “descuido”. É importante salientar que, apesar deste
ocorrido, me chamou atenção a forma adequada e aconchegante que ela “montava” o colo
para amamentar a filha. Sempre fixava seu olhar nela e conversava com a criança durante as
mamadas. Ela nos deu a impressão de sentir-se muito à vontade e de extrair muito prazer
desses momentos, sugerindo que a relação com o bebê não era um problema e nem trazia
insatisfação, muito pelo contrário. Mas, então, porque estava tão entristecida no pós-parto?
Qual seria o sentido subjetivo de sua filha, neste contexto?
Entendemos que, para ela, a filha era um “presente de Deus”! Ela a levava para o seu
trabalho, pois não tinha com quem deixá-la. Lá, procurava confortá-la e agasalhá-la; quando
ela estava com sono, por exemplo, improvisava um berço embaixo da banca, e colocava a
filha lá. Ela levava a criança para poder amamentá-la ao seio; função esta que ela adorava,
como pode ser constatado na frase do completamento: “Penso que amamentar...é muito
bom”. Recebia ajuda das suas colegas de feira, que se revezavam nos cuidados com o bebê, e
olhando a banca quando ela precisava sair. Mesmo assim, entristecia-se pois “sabe que ela
(bebê) fica cansada da rotina pesada”, lamentando não poder dar uma vida melhor para as
filhas. Por outro lado, nunca reclamou de cuidar do bebê durante as sessões, e tampouco se
queixava de ser mãe.
Também falava com muita admiração da filha mais velha. Cuidava muito para que
nada lhe faltasse (dinheiro para a passagem, lanche, livros) ou atrapalhasse seus estudos. A
filha mais velha estudava o dia todo e ajudava pouco a mãe nas tarefas domésticas. Isabela
não reclamava, pois prezava muito pelos estudos da filha para que ela tenha uma vida melhor
do que a sua. O completamento está repleto de frases indicadoras que as filhas são a principal
fonte de investimento afetivo de sua vida atual. No completamento, sempre que teve
oportunidade fez questão de deixar isso bem claro, como nas frases: “Amo...minhas filhas”;
“Eu gosto muito...das minhas filhas”; “Meu maior prazer...cuidar de minhas filhas”;
“Quando penso em meu filho(a)...eu só penso o melhor”. As filhas são referências de
prazer, provocam uma mobilização emocional em Isabela, que aponta para o sentido
subjetivo que a maternidade tem para ela – satisfação e razão para viver. Por outro lado, as
filhas também trazem preocupação, medo e sobrecarga. Vejamos algumas frases, neste
sentido: “Eu gosto...de minhas filhas”; “O tempo mais feliz...quando estou com minhas
filhas”; “Lamento...quando estou longe de minhas filhas”; “Meu maior medo... não dá
conta de cuidar delas”; “Sofro...quando fico longe de minhas filhas”; “A preocupação
112

principal...é não ter o necessário para elas”. Nessa expressões evidencia-se mobilização
emocional que as filhas trazem para sua vida.
Relacionamento social: Isabela não tem familiares em Brasília. Conta apenas com a
ajuda de alguns bons amigos, que a visitam e que cuidam da banca dela, quando ela precisa
sair, ou não pode trabalhar. “Meus amigos...foram tudo para mim, foram o único apoio”.
Valoriza muito suas amizades, elas parecem ser a sua própria família.
Relação com o trabalho/estudo: Diz gostar muito do seu trabalho, “O trabalho...me
faz bem”; “Me esforço diariamente...no meu trabalho”; “Meu maior tempo dedico...meu
trabalho”; mas tem tido dificuldades para trabalhar após o nascimento da filha, pois costuma
levá-la para a banca todos os dias, o que acarreta em mais tarefas. Às vezes, não abre seu
comércio porque está se sentindo tão mal, desanimada e cansada que prefere ficar em casa.
Além de trabalhar no seu negócio próprio, ela cuida da casa e das filhas sozinha. Enfrenta
muitas dificuldades financeiras. Atualmente, reclama que o “comércio está fraco” e que as
vendas estão caindo muito.
Como é autônoma e não recolhia a contribuição do INSS17, não tem direito a licença-
maternidade, e portanto apesar de ter parido há pouco mais de um mês, teve que voltar a
trabalhar: “se eu não trabalhar, não ganho”, afirmou pesarosa. Mais uma vez chamamos
atenção como os sentidos da sua “dura história de vida” se fazem presentes no sentido
subjetivo do presente. Essas frases integradas à falta de rede de apoio conjugal e social,
indicam que o pós-parto acentuou a sobrecarga de trabalho, que já era uma realidade, pois
sempre cuidou sozinha da filha mais velha, que também é fruto deste relacionamento
conflituoso. É importante ressaltar como o contexto de uma vida muito dura e permeada de
sofrimentos favorecem um terreno fértil para o sentido que a maternidade e as filhas tem para
Isabela.
Em síntese, para ajudar a compreender a configuração subjetiva de Isabela e de sua
depressão, entendemos que os principais indicadores construídos foram: o trabalho como uma
fonte de sobrevivência, a maternidade dá sentido à sua vida; forte presença de desamparo
conjugal; não existe conflito com o papel materno. Esses indicadores nos permitem construir
algumas informações que emergem como núcleos de sentido subjetivo em nossa análise, a
saber:

8.2.4.1 - Núcleos de sentido subjetivo construídos para Isabela

Analisando o caso de Isabela, chegamos à conclusão de que ela apresenta uma


legítima vivência de infelicidade que alimenta os sentidos subjetivos, os quais configuram o
seu sofrimento atual. Esse sofrido histórico aparece, de diferentes maneiras, desde suas falas
na entrevista de acolhimento, como no completamento de frases e sua participação no grupo,
tais como: “Algumas vezes...penso que nunca vou ser feliz”; “Eu...não sou feliz”;
“Gostaria...de um dia ser feliz”; “A felicidade...deve ser muito bom ser feliz”; “Penso que
os outros...não passam pelos mesmos problemas que os meus”; “Sinto... tristeza”; “Me
deprimo quando...o dia inteiro eu me sinto deprimida”; “Freqüentemente sinto...solidão”.
Uma passada rápida por essas frases nos permite abrir uma hipótese, de que nos
remete a sentidos subjetivos que marcam o caráter conflitivo do momento atual de sua vida,
o qual não pode ser alheio ao sentido subjetivo da maternidade e da depressão após o parto.
Acreditamos que sua tristeza atual vem de uma longa história de sofrimento e privações.
Essa é a configuração subjetiva que se faz presente de diferentes formas neste momento da
sua vida, mas mesmo assim as filhas são um sentido de luta, de vida.
Ela apresentou vários indicadores que nos levaram a esta hipótese. As dificuldades
financeiras, por exemplo, são uma constante que perpassa todo o completamento e todas as
17
Instituto Nacional de Seguridade Social : órgão responsável pela previdência pública do Brasil.
113

suas falas, como nas frases: “Eu freqüentemente reflito... minhas dificuldades financeiras”;
“Necessito...de tanta coisa”; “Fracasso...minha vida tem sido um fracasso”; “Meu
futuro...nunca tive um futuro legal”; “Meu maior problema...é não ter onde morar”. Por
isso, o trabalho também é uma fonte de investimento além das filhas, pois é dele que tira seu
sustento. Mas, infelizmente, apesar de trabalhar muito, não consegue acabar com suas
dificuldades financeiras e ter a sua própria casa. Essa é uma realidade cruel típica de países
subdesenvolvidos como o Brasil. Em nosso país, os projetos governamentais normalmente
são de caráter assistencialista, pouco efetivos e não promovem uma redistribuição de renda
efetiva, porque implicaria no desprivilegiamento dos privilegiados. Assim, infelizmente, é
muito fácil encontrarmos histórias de sofrimento e privação como as de Isabela. Pessoas que

trabalham uma vida inteira e mal conseguem sobreviver, não podem ter acesso aos frutos do
próprio trabalho.
De fato, Isabela se vê impedida, impotente e, se sentindo paralisada diante do seu
parco destino. Estes sentimentos ficaram evidentes nas frases do completamento: “Não
posso...nada no momento”; “Considero que posso...eu não posso nada”; “Luto...luto muito
e não consigo nada”; “Minha principal ambição...eu não tenho ambição”. Vemos aqui que
Isabela se expressa como se fosse incapaz de mudar sua própria vida. A perda da auto-estima
e da autoconfiança está relacionada principalmente com a imagem de doente e incapaz que
faz de si mesma. Isabela é uma mulher que não teve muito espaço para ser e existir como
pessoa diante de tantas dificuldades concretas, diante da impotência frente ao seu destino
infeliz e da impossibilidade para mudá-lo.
Apesar de parecer ter mais a vivência do sofrimento do que a consciência de que o
gera e o mantém, Isabela não está acomodada na sua infelicidade, aspirando mudanças:
“Tratarei de conseguir...minha casa”, “Desejo...ter um lugar para morar”; “Meu maior
desejo...é ter meu próprio lar”; “Minhas aspirações...possuir a casa”. Porém, mais do que
um teto para morar, Isabela anseia por um lar, por uma família, por estabilidade e proteção.
As filhas, mais do que seu ex-companheiro, promovem a viabilidade desse sonho. É nesse
momento que evidenciamos o sentido subjetivo que ser mãe tem para ela: a maternidade
constitui-se na maior possibilidade que tem de mudar sua vida, já que suas ambições,
opiniões, seus desejos parecem ser renunciados em favor do outro. Assim, tenta concentrar
todas as suas forças, na luta pela sobrevivência de sua família.
Observamos que Isabela apresenta um núcleo de sentido subjetivo forte em relação à
maternidade, em cuja configuração se constitui profundos afetos tanto em relação a seus pais,
mas sobretudo em relação às suas filhas. Pela importância subjetiva que tem para ela,
resolvemos denominar este núcleo utilizando uma expressão sua: “ser mãe é tudo”. De fato,
nos poucos contatos que tivemos com Isabela e, nos recursos utilizados para acessar a sua
subjetividade, a maternidade se constitui um grande núcleo que dá sustentação a ela. Esse
sentido, aparece sintetizado na seguinte frase do completamento: “Para mim a
maternidade...ser mãe é tudo”..
Ela parece muito satisfeita em ser mãe, pois foi por meio da maternidade que ela
conseguiu o seu “bem mais precioso” – suas filhas. Elas são tudo o que ela tem na vida! Por
isso, investe maciçamente em ambas, sobretudo na mais velha, que procura poupar e zelar
para que possa trazer algum futuro para a família. Provavelmente por isso, as filhas são
referências de emocionalidade positiva para Isabela. Elas são uma das únicas fontes de prazer
e investimento que tem na vida. Elas tem um sentido subjetivo tão fundamental que também
constituem outro núcleo de sentido, intimamente articulado com o da maternidade, o qual
denominamos: “Minhas filhas, meu tesouro”.
Suas filhas são o seu verdadeiro tesouro, pois além de serem a único “bem” que
possui, elas deram sentido a uma vida que tem sido só de sofrimento e privações. Em uma
114

aparente inversão de papéis, são as filhas que lhe protegem, que lhe dão vida e esperança. É
por elas que ela luta, trabalha e suporta uma rotina exaustiva. Elas lhe trazem esperança e fé
num futuro melhor e resgatam o sujeito desejante que ela é, mas tem muita dificuldade de
assumir. Provavelmente por isso, apesar de todo o sofrimento expresso em todo o
completamento de frases, ela o finaliza com as seguintes afirmações: “A vida...apesar dos
obstáculos é muito bom”; “A morte... deve ser a pior coisa”.
Portanto, assim como em outros casos por nós estudados, observamos que o sentido
subjetivo da maternidade para Isabela não está limitado ao espaço simbólico, nem real da
maternagem em si, mas está integrado por núcleos de sentido subjetivos gerados em outras
zonas de sentido de sua vida. Por isso, apesar do sofrimento emocional apresentado, ela tem
uma percepção muito positiva da maternidade que a faz resistir às adversidade da vida e até à
própria morte.
Essa felicidade em relação à maternagem só é sobreposta à sobrecarga de trabalho e
responsabilidades que têm que assumir por não ter um companheiro e nem uma rede de
apoio consistente para dividir o seu fardo. Na sua quádrupla jornada de trabalho, sente-se
exausta, sozinha e desamparada: “É difícil...trabalhar e cuidar da casa”, “Meu principal
problema...é não ter tempo para cuidar das crianças”. Assim, as filhas apesar de serem o
prazer da sua vida, acabam pesando ainda mais neste fardo, pois se sente em conflito e
dividida para conciliar todas as responsabilidades.
Essa interpretação concretiza hipóteses que nos sugerem que a sua infelicidade e
depressão atual esteja muito mais configurada pelos sentidos associados à sua luta diária que
pela sobrevivência, às suas privações financeiras, às dificuldades de acesso às necessidades
básicas (alimentação, moradia, saúde), aos conflitos com ex-companheiro, bem como a
sobrecarga emocional de ser a única provedora e cuidadora da família, do que relacionada a
sua bebê, a maternidade e às possíveis alterações hormonais que certamente passou após o
parto.
Obviamente, acreditamos que o período puerperal pode ter favorecido a eclosão de
mais uma crise, porque, além da eminência da situação de morte vivenciada no parto, a nova
filha acarretou numa sobrecarga emocional ainda maior. Afinal, ela é mais uma pessoa que
ela tem para cuidar e sustentar, sem ter com quem compartilhar. Assim, podemos pensar que
o nascimento da última filha tenha acentuado ainda mais a sua vivência de sobrecarga e
desamparo, pois mais uma vez constatou que teria que dar conta sozinha da sua vida e de
suas filhas. Mas, ao mesmo tempo, trouxe um novo sopro de vida e de esperança.
O caso de Isabela é um bom exemplo para nos mostrar que, apesar da discussão que
tecemos no referencial teórico sobre o que denominamos de “lado obscuro da maternidade”,
muitos ainda, por opção ou não, sem ambivalências ou culpas, desejam e valorizam
ardentemente a maternidade; sobretudo, quando existem outros lados da vida que são ainda
mais negros. E por que não?
115

CAPÍTULO 9
AS ZONAS DE SENTIDO
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
Coelho Neto

Para finalizar o processo construtivo–interpretativo das informações, passaremos à


apresentação das 04 (quatro) zonas de sentido, construídas com base nos núcleos de sentido
subjetivo elaborados para os casos analisados. Lembramos que González Rey (2002)
denomina “zonas de sentido” os complexos processos que constituem a subjetividade
humana, envolvendo uma diversidade de idéias e pensamentos que, possuidores de uma
linguagem própria, transformam-se numa construção abrangente e complexa da realidade
estudada.
As zonas de sentido constituem-se em amplos sistemas de interações, compreendendo
um conjunto de vários indicadores da dimensão psíquica dos sujeitos estudados, que foram
integrados nos núcleos de sentido subjetivo. Neste processo, vão se desenvolvendo hipóteses
que, através da reflexão e da construção do pesquisador, se convertem progressivamente em
modelos teóricos de inteligibilidade sobre o problema estudado (González Rey, 2005b).
Assim, as zonas de sentido devem ser entendidas como uma construção que “diz” algo a
respeito do problema estudado: “Representam uma forma de inteligibilidade sobre a realidade
e não uma correspondência com a realidade” (González Rey, 2005b, p. 32). Trata-se de um
espaço de significação, mas que não tem a intenção de se configurar na “verdade” sobre o
objeto de estudo.
Ao pensar que, culturalmente, as representações sociais da maternidade estão
fortemente calcadas no mito do amor materno e da mãe exclusiva, e que essa concepção
assume proporções, segundo as quais acredita-se que a maternidade é inata à mulher, fomos
construindo as zonas de sentido, estreitamente relacionadas entre si em suas diferentes
configuracões subjetivas, que nos pareceram constituir o centro do conflito e do sofrimento
das mães com DPP. São elas: a) ser mãe é padecer, mas não no paraíso; b) a mãe
desnaturada: a luta pela maternidade inclusiva; c) identidade de enferma: a
naturalização e a padronização da DPP; e d) não basta ser pai, tem que participar!
Devemos lembrar que, na concepção de González Rey, da qual compartilhamos, o
conhecimento científico tem sempre um caráter hipotético e, portanto, provisório! Sob este
prisma, os conteúdos apresentados nas zonas de sentido trarão contribuições relevantes para o
estudo e compreensão da mãe com depressão após um parto; mas não se pretendem porta-
vozes de uma verdade absoluta e imutável.
Vejamos do que trata e qual a contribuição de cada uma das zonas de sentido:

9.1 ZONA A: SER MÃE É PADECER, MAS NÃO NO PARAÍSO

Esta zona de sentido refere-se à grande contradição existente entre a visão romanceada
e idealizada da maternidade e a sua vivência no real. Observamos que esta disparidade entre a
realidade esperada e a vivida na maternidade acarreta em muitas mulheres uma profunda
decepção e a sensação de incapacidade para ocupar o lugar de mãe. Para nós, as
conseqüências dessa oposição podem transformar-se em terrenos férteis para a integração de
diferentes elementos de sentido subjetivo, que emergem em forma de sofrimento e depressão
no pós-parto.
Szejer e Stewart (1997) entendem que para a mulher o pós-parto não é, de forma
alguma, o radioso paraíso com o qual a lenda anuncia a chegada do bebê. Na realidade, o
116

bebê é um ser exigente e a mãe é pressionada todo o tempo por suas exigências, que não são
poucas: amamentação, choro, doenças típicas da fase, troca de fraldas, banho e noites mal
dormidas. Idealiza-se sempre o perfil sublime, realizado e feliz das mães, como as imagens da
Virgem Maria com Jesus em seus braços, ou como as fotos dos cartazes de veiculação de
campanhas de amamentação realizadas pelo Ministério da Saúde de nosso país.
Mesmo diante das dificuldades da maternidade, espera-se que as mães sejam sempre
ternas, acolhedoras, férteis e disponíveis. Em contrapartida, elas não deverão demonstrar
sentimentos de tristeza, afinal, tudo isso está ligado ao milagre da vida que presume um
instinto materno, uma predisposição inata para o sacrifício.
Na verdade, ser mãe não é um “mar de rosas” e um bebê não é todo “rosa-bombom!”
(Golse, 2003, p.23). Os filhos não são apenas uma bênção: custam caro em trabalho, dinheiro,
esforço paciência e tempo. Quando a mulher descobre isso, na grande maioria das vezes, já
está com seu bebê em seus braços, emerge a sensação de “não era isso que eu esperava” e a
impressão de ser incapaz de enfrentar a nova situação, persiste na decepção consigo mesma,
na desilusão e no fracasso (Maldonado, Dickstein, & Nahoum, 2000; Santos, 2001). Há
portanto uma ruptura de expectativas. Essa significação pode trazer grandes dificuldades na
transição para o papel de mãe, diante do qual muitas mães se sentem freqüentemente
assustadas e confusas com o peso da responsabilidade dos cuidados maternos.
Da mesma forma como os filhos podem trazer alegria de viver, amor, esperança, força,
“os filhos às vezes contribuem para finais não-felizes” afirma Montgomery (1998, p. 64).
Dentre essas dificuldades, destacamos a DPP, que se revela por uma quebra dessa expectativa
em relação ao bebê, a si mesma como mãe e ao tipo de vida que se estabelece com a presença
do filho, geralmente acompanhada de desapontamento, desânimo e tristeza.
É justamente esta desilusão, que acreditamos ter irrompido nas mães por nós
estudadas, em especial no caso de no caso de Lúcia. Ela que tanto queria ter um filho, estava
muito decepcionada com a realidade estafante que encontrou no mundo materno: “ Gostaria
de saber, mesmo que eu tenha realizado o meu sonho de ser mãe, mesmo tendo a pessoa
amada do meu lado, por que eu continuo tendo essas angústias e tristezas? Será que sou
mesmo esse fracasso de mãe e esposa como penso?”. Esse questionamento indica que a
vivência da maternidade parece ter acarretado em mais desprazer e insegurança, que a
deixaram em pleno conflito com a função materna: “Para mim a maternidade...até agora não
sei o que dizer”. Estes sentimentos também foram observados nos outros casos estudados e
que não foram apresentados neste escrito, mas que julgamos ser pertinente resgatá-los nesta
discussão.
Marta18, apresentava um discurso semelhante ao de Lúcia. Ter um filho sempre foi o
seu grande sonho. Mesmo considerando que a sua filha é “uma grande conquista” que se
consumou após alguns anos de tratamento de reprodução assistida e, de três episódios de
abortos espontâneos, Marta significa o período de gestação e do pós-parto como “longe de ser
o radioso paraíso sonhado”. Qual não foi sua surpresa, a maternidade a fez mergulhar em um
mar de ambivalências, frustrações, culpas, ansiedades, medos, conforme expressa na frase:
“para mim a maternidade... não foi o que sonhei”.
Na sessões do grupo, ela sempre enfatizava os momentos difíceis que a maternidade
lhe propiciava: a impossibilidade de dormir normalmente, a ansiedade contínua, a insegurança
com relação aos cuidados com o bebê, a falta de energia e de alegria, a dificuldade em lidar
com as transformações do corpo e da vida sexual, bem como com os problemas relacionados
a amamentação, a culpa avassaladora, a irritabilidade com o bebê. O caso de Marta nos
mostrou que por mais desejado que seja um filho, ou por mais cheias de amor, as mães,

18
A análise completa do caso de Marta não foi apresentada nesta tese, mas pode ser vista em nosso recente
artigo, intitulado “O mito da mãe exclusiva e seu impacto na depressão pós-parto” (Azevedo & Arrais, 2006,).
117

sobretudo as iniciantes, sentem-se sobrecarregadas, exaustas e, extremamente irritadas, o que


nos remete a desconstrução da maternidade “cor-de-rosa”.
Também observamos a decepção fortemente marcada no discurso de Júlia19:“ para
mim está sendo um desafio. Para mim foi mesmo uma ilusão... aquele negócio de que ser mãe
é lindo. Eu tenho momentos de agonia e de medo. Eu tenho que transpor valores que para
mim são difíceis...”. Outra fala que nos chamou muito atenção, foi de Paula20, que nos
afirmou que a maternidade não tem sido o que ela esperava: “É só isto? É uma rotina, sei que
vou acordar, dar banho no Gustavo, trocar-lhe as fraldas, dar-lhe mamadeira e fazê-lo
dormir. Todo dia é a mesma coisa! Não estou vendo graça nisto”. Para nós, essas expressões
mostram que há um terrível equívoco na imagem que é difundida sobre ser mãe na realidade;
e nos perguntamos por que será que este “equívoco” ainda resiste em se manter?
Winnicott (1947/2000b), idealizador do conceito da “mãe suficientemente boa”21,
reconhece as enormes demandas dirigidas às mães e com as quais elas têm que fazer um
enorme esforço para lidar. Sobre este tema, este renomado teórico elaborou uma lista de
motivos pelos quais a mãe poderia odiar (grifo meu!) o seu bebê “ainda que este seja um
menino”, que achamos digna de ser apresentada na sua íntegra:
O bebê não é uma concepção (mental) sua.
O bebê não é aquele das brincadeiras de infância, um filho do papai, ou do irmão...
O bebê não é produzido magicamente
O bebê é um perigo para o seu corpo durante a gestação e o parto
O bebê interfere com sua vida privada, é um obstáculo para sua ocupação anterior.
Mais ou menos intensamente, a mãe sente que o bebê é algo que a sua própria mãe deseja, e ela
produz para aplacá-la.
O bebê machuca o seus mamilos quando ele suga, o que inicialmente implica em mastigação.
Ele é impiedoso, trata-a como um lixo, uma serva sem pagamento, uma escrava.
Ela tem que amá-lo, com suas excreções e tudo o mais, pelo menos no início, até que ele venha a ter
dúvidas sobre si próprio.
Ele tenta machucá-la, volta e meia a morde, e tudo por amor
Ele se decepciona com ela.
Seu amor excitado é um ”amor de tigela”, significando “amor interesseiro”, de modo que ao conseguir
o que queria ele a joga fora como uma casca de laranja.
No início o bebê dita a lei, é preciso protegê-lo de coincidências, a vida deve fluir no ritmo dele, e tudo
isto exige da mãe um contínuo e detalhado estudo. Por exemplo, ela não deve ficar ansiosa quando o
segura, etc.
No início ele não faz idéia alguma do quanto ela faz por ele, do quanto ela se sacrifica por ele. É
impossível para ele suportar o seu ódio.
Ele é desconfiado, recusa a comida tão boa que ela preparou e faz com que ela duvide de si mesma,
mas com a tia ele come tudo.
Depois de uma manhã horrível, ela sai com ele e ele sorri para um estranho, que diz: “ não é uma
gracinha?”
Se ela falha com ele no início, sabe que ele se vingará para sempre.
Ele a excita mas a frusta – ela não pode devorá-lo e nem fazer sexo com ele.
(Winnicott, 1947/2000a, p. 285-286):
Golse (2003) nos diz o seguinte sobre esta lista: “Winnicott escreveu um artigo sobre
as vinte e três razões que uma mãe tem para odiar o seu bebê. É um artigo muito otimista,
porque há muito mais de vinte e três!” (p.23). As mulheres, de modo geral, tendem a negar o
ódio e a agressividade que carregam dentro de si, pois temem julgamentos, prejuízos e
principalmente criar conflitos e perderem o afeto dos seus próximos. Normalmente, os
sentimentos agressivos que brotam são imediatamente desviados para a própria pessoa ou
para áreas de ação.
19
A análise do caso de Júlia não foi apresentada nesta tese, mas ela fez parte do nosso trabalho de campo,
quando foi atendida no 2º grupo
20
A análise do caso de Paula não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte do nosso trabalho de campo,
quando foi atendida individualmente.
21
Ver definição deste conceito nas páginas seguintes.
118

Ehrhardt (1996) nos apresenta bons exemplos desse movimento: a mãe irritada com o
seu bebê se esforça em ser particularmente diligente, já que uma boa mãe não deve se zangar.
Ela atormenta-se com sentimentos de culpa, e não ousa falar da sua irritação contra um ser tão
indefeso. Em conseqüência, suas agressões dirigem-se para dentro de si, sendo um rico
alimento para a depressão ou, então, um mau humor acumulado irrompe, de repente, em outro
lugar. Assim, quando a raiva materna “ousa” exteriorizar-se, geralmente isto se dá de forma
muito indireta e sutil, ou irrompe de forma avassaladora. As mulheres sofrem mais
freqüentemente de enxaqueca e de depressões que os homens. Sentem-se indolentes, cansadas
e, de algum modo, desanimadas. Justamente por trás desses padecimentos, oculta-se, em
geral, uma montanha de agressividade (Ehrhardt, 1996). Talvez o pós-parto e todas as
dificuldades e desgastes inerentes a este período favoreçam esta irrupção, que pode se
manifestar em forma de depressão, de culpa ou de rejeição.
Para Parker (1997), a dificuldade em enfrentar tais sentimentos tão complexos e
contraditórios, próprios da ambivalência materna, pode redundar na culpa que as mães se
habituaram a carregar. Porém, alerta esta autora, é na angústia provocada pela ambivalência
materna que reside uma relação frutífera para mães e filhos, pois este sentimento, quando
reconhecido e aceito, promove a reflexão sobre o bebê. Permite que a mulher pense sobre a
maternidade e sobre seu bebê e se distancie dele, promovendo seu desenvolvimento
independente e autônomo. Vejamos suas palavras:
A percepção do ódio que nela coexiste com o amor pela criança pode promover um
sentido de preocupação e de responsabilidade em relação ao bebê, e de diferenciação
do eu em relação ao bebê. A ambivalência materna significa a capacidade da mãe
para conhecer a si mesma e para tolerar em si mesma a presença de traços que talvez
considere como estando longe de serem admiráveis – e para sustentar uma imagem
mais completa de seu bebê. (...) Para uma mãe é agudamente dolorosa a admissão de
que seu ódio se encontra no mesmo ponto onde se encontra seu amor (Parker, 1997,
p. 37).

Na verdade, pouco se fala sobre os sentimentos de hostilidade e irritabilidade que se


pode nutrir por uma criança. Pouco se fala sobre os dissabores da maternidade. É raro ouvir
mães se queixarem de seus filhos, da maternidade, de arrependimento, principalmente em
público. Como bem destaca Parker (1997, p.17) “a cultura em que vivemos desempenha um
papel na produção da dificuldade, praticamente proibindo o tipo de discussão plena e de
análise que revelariam a contribuição oculta que a ambivalência materna pode dar ao
exercício criativo da maternidade”, por meio da qual, a mãe procuraria ser mais espontânea e
construir o seu próprio estilo singular de maternar.
Essa singularidade foi ricamente demostrada por Moreira (1998), em seu livro
intitulado Maternidade que delícia, que sufoco, no qual ela apresenta mais de 30
depoimentos de mães sobre a maternidade, nos quais se percebe os diferentes sentidos
subjetivos que a maternagem tem para cada uma delas.
É curioso notar que duas mães raramente conversam sobre suas reais dificuldades na
vivência da maternidade. No máximo, queixam-se de noites mal dormidas, do cansaço e das
malcriações que seus filhos lhe fazem. Mas não falam do mal-estar que a maternidade pode
trazer! Na verdade, Parker (1997) nos diz que duas mães não conversam, elas competem, para
ver qual delas é a melhor e qual está mais feliz neste papel. Dessa forma, elas pouco se
expõem e conseqüentemente pouco se ajudam.
A esse respeito, esta estudiosa da ambivalência materna nos mostra que, às vezes, as
mães usam outras mães como espelhos. Cada uma examina a outra, em busca de um reflexo
de sua própria maternação. Elas procuram diferenças e também semelhanças, em relação a seu
próprio estilo de exercer a maternidade. Mas, acima de tudo, buscam uma confirmação do
próprio acerto, diante do medo que sentem de se equivocarem irrevogavelmente. Assim, para
quem observa de fora, principalmente se não tiver filhos, o diálogo entre as mães parece estar
119

sendo travado numa linguagem de mensurações e comparações invejosas, mas o resultado


almejado é, antes, uma busca de reassegurarem-se da vitória de uma sobre a outra.
Durante as sessões de grupo, pudemos observar várias vezes este tipo de comparação
entre as mães, ainda que tentássemos não estimular este tipo de atitude. Muito pelo contrário,
acreditamos que poder reclamar, se queixar e assumir a sua raiva, seu ódio e desapontamento,
sem correr o risco de ser julgada ou taxada de mãe desnaturada, é um grande passo para que a
mãe não caia na depressão, pois quando você suporta que pode odiar o seu bebê, de vez em
quando, também suporta que seu filho possa lhe odiar de vez em quando. “É assim mesmo,
tem horas que a gente ama e tem horas que a gente odeia..., tudo isso faz parte da arte de
amar” (Rohenkohl, 2005, p. 47).
Portanto, trata-se de uma verdadeira falácia difundir que as mães não têm impulsos
agressivos em relação aos filhos e vice-versa; ou que agressividade também não está presente
na relação mãe-bebê. Nos intriga o ocultamento desta “verdade”! É como se as mulheres, de
certa forma, não pudessem “saber” das reais mudanças que acontecerão em suas vidas,
sobretudo em relação à decepção, à ambivalência, à sobrecarga, à renúncia, ao sofrimento, à
culpa que se sobrepõem na maternagem, e que nenhum paraíso prometido será capaz de
anular. Nesse contexto, nos parece plausível supor que há uma espécie de pacto de silêncio
social, em que é “vendida” a idéia de maternidade “cor-de-rosa”, onde só há lugar para o belo,
para a alegria, para o gozo, para a felicidade plena, cujo objetivo é o de manter a ideologia
dominante que tem regido o gênero humano há séculos.
Por isso, contrária às idéias de que a maternidade só comporta o amor irrestrito e
apoiado na perspectiva da psicologia do gênero, segundo a qual a maternidade é construída e
não instintiva, concordamos com Golse (2003) ao afirmar que é impossível se ocupar de um
bebê sem a presença do sentimento de ambivalência, a qual passaremos a abordar mais
detalhadamente no tópico a seguir.

9.1.1. - A ambivalência materna: esta ilustre (des) conhecida


O bebê induz simultaneamente tanto um grande desejo de cuidarmos dele, quanto um
medo do nos ocuparmos dele, afirma Golse (2003). Ao mesmo tempo que temos um
movimento em direção a ele, também temos um movimento de retração e defesa, afinal,
conclui Golse: “Não há amor sem ambivalência” (p.23). Na sua opinião, denegar este
sentimento pode ser muito mais prejudicial tanto para os cuidadores, quanto para o bebê.
Por outro lado, o próprio Freud confirma o amor puro e incondicional proveniente das
mães, pois, segundo Serrurier (1993), ele nega a ambivalência materna ao sugerir que o amor
de uma mãe para seu filho é a “única exceção” à mescla de hostilidade que coexiste em todo
amor. “O amor de uma mãe por seu primeiro filho é, de todas as relações humanas, a mais
positiva e a menos ambivalente”, nos diz Bettelheim (citado por Serrurier, 1993, p. 23),
contrariando nossas vivências maternas e observações das mães estudadas. Também,
contradizendo essa afirmativa freudiana, Parker (1997) defende a premissa de que a
ambivalência materna é uma experiência compartilhada de forma geral por todas as mães
(grifo meu!), na qual coexistem, lado a lado, em relação ao filho, sentimentos de amor e de
ódio. Portanto, esses sentimentos ambivalentes não são exclusivos das mulheres que
apresentam sintomas depressivos após um parto.
Por isso, a ambivalência afetiva em relação ao filho aparece mesmo quando esse foi
muito desejado, e já começa a aparecer desde o momento do resultado positivo de gravidez,
afirma Viana (2004)22, pois “gravidez é uma coisa, ter filho é outra!” (Rohenkohl, 2005, p.
45). A mulher pode ter um desejo de estar grávida para se sentir completa, amada, mais

22
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
120

feminina e valorizada. Esses elementos se relacionam muito mais com questões da própria
mulher, do que com o desejo de ter um filho e de ser mãe. O inverso também é verdadeiro. A
mulher pode desejar muito ter um filho, mas odiar estar grávida. Com também pode acontecer
dos dois desejos serem simultâneos e a mulher tanto gostar de estar grávida, como querer ter
um filho, como vimos nos casos de Marta e Lúcia citados anteriormente.
Uma coisa não implica na outra: quando um filho nasce, também vai ajudar a mãe a
ser mãe. É preciso que o filho seja ativo o suficiente para fazer daquela mulher mãe
dele. Não é um instinto, não tem nada de natural nisso. É, na verdade, a construção
de uma relação (Rohenkohl, 2005, p. 45).

Após tomar conhecimento desses sentimentos ambivalentes, sobretudo daqueles


listados por Winnicott, fiquei me perguntando se uma mulher que tivesse consciência deles
ainda iria querer ser mãe? Por isso, divago se a lista de Winnicott não deveria estar exposta,
nas maternidades e nas pediatrias, pois ela fala de forma “nua e crua” do que tenho
denominado nesta tese do “lado obscuro” da maternidade, mas, que tem essa tonalidade
apenas para se contrapor ao seu “lado cor-de-rosa”, porém é parte integrande da viagem pela
maternagem e que poucos têm conhecimento e poucos o reconhecem legitimamente antes de
passar por ele.
Essa vivência obscura pode ser identificada nas expressões das participantes, em
especial, quando solicitamos que elas se definissem antes e depois da maternidade. As
seguintes associações foram apresentadas frente a esse disparador temático:

Nome Antes da maternidade Depois da maternidade


Gabriela Corpo bonito, vida mais livre, menos Dois quilos mais gorda, não tenho tempo para fazer
preocupada, menos tensa, mais tempo nada, mais intromissões, vivo tensa
para sair, menos raiva.
Larissa Eu; rua; idéias; introspectiva; magra; mais Nós, o outro, casa; ações; explosiva; gordura mal
egocêntrica; calma; estudo teoria do que é localizada; egocêntrica, mais humanizada, mais
conhecido; tudo mais ou menos resolvido, estressada; descoberta do que nunca foi dito; não sei
segurança mais de nada
Lúcia Saía todo final de semana; não ficava tão Não saio mais de casa, a não ser quando é muito
estressada; dormia cedo; me arrumava; necessário; todo dia é estresse total; não durmo
me dedicava ao Edgar; eu queria ser mãe mais; não tenho ânimo para me arrumar; hoje eu sou
mãe
Júlia Liberdade; descanso; em forma; grande Dependência, cansaço; barriguda; baixa auto-estima;
auto-estima; lazer dever.
Quadro2: Como as mães se definem antes e depois da maternidade.

Fica evidente nesta comparação entre antes e depois que as várias mudanças impostas
a essas mulheres após a maternidade têm na sua grande maioria um “elemento surpresa” de
caráter negativo e decepcionante. Acreditamos que a DPP esteja relacionada a essa decepção
e desilusão frente ao paraíso prometido.
Dentro da visão, de mãe ideal, a qual define as qualidades maternais como naturais, a
mãe deprimida sente-se totalmente inadequada e responsável por seu aparente insucesso,
pois, ela deveria saber ser uma boa mãe, deveria saber parir, amamentar, dar colo, cuidar,
afinal ela é uma mulher e as mulheres vêm “programadas” para isto. Como ela pode não estar
sabendo cuidar de seu filho? Ou não estar vendo graça nenhuma na maternidade, ou o que é
pior, não estar gostando e sentindo-se infeliz em ser mãe? Este foi um questionamento
recorrente na fala de todas as mães que acompanhamos, especialmente nas de Lúcia, Paula,
Kátia, Clarisse e Marta.
Quando interessa à sociedade, somos cobradas a agir instintivamente, e temos que
“sacar” de toda nossa herança ancestral a “fórmula sagrada” de como se deve cuidar de um
filho. Assim, não é apenas a mãe com DPP que se sente culpada, ela é de fato julgada dessa
121

forma pela a sociedade, por profissionais e, inclusive por seus maridos e próprios filhos. Ela é
acusada de ser a única responsável por seu fracasso como mãe!
Portanto, além de questões de ordem intrapsíquica e inconsciente como as que os
psicanalistas vêm apontando, acreditamos que, em grande parte, este não reconhecimento do
que está por vir, acontece por uma falta de informação social a respeito da maternidade. Ou
melhor, não há só uma falta, mas uma distorção ideológica, uma ocultação do que é de fato a
maternidade, ainda que seja sugerida uma carga de padecimento na famosa frase “Ser mãe é
padecer no paraíso”.
Vende-se a idéia de que o sacrifício será prontamente compensado por ter o filho em
seus braços. As mães sacrificam-se, achando que algum dia serão recompensadas, e assim,
seus sacrifícios não serão em vão. Porém, normalmente, a recompensa não vem. Mesmo o seu
lindo e amado bebê um dia “irá se tornar autônomo, mordendo a mão que o alimentou”
(Winnicott, 1971/2002, p. 3).
Dessa forma, o possível sofrimento é encoberto e ofuscado pelo paraíso esperado, e é
desconsiderado, negado, não sendo prevenido durante a gravidez, como bem denuncia a
participante Júlia na seguinte expressão: “Ninguém faz propaganda da mãe cansada, sem
tempo para ela. É sempre a mãe disponível, linda. Não passa uma mãe gorda com o cabelo
ruim. É sempre uma mãe linda, loira, com cabelo esvoaçante, com aqueles bebês
maravilhosos, sem doença.(...)”.
Advogamos que a escassez de literatura e discussões pré-natais sobre as reais e
profundas alterações que, sobretudo, a mãe terá que enfrentar, me parece uma atitude coletiva
e proposital para amenizar o “lado obscuro” da maternidade e assim fazer com que as
mulheres caiam mais facilmente na “armadilha da maternidade”, numa espécie de “pacto de
silêncio”! Vimos ao longo deste trabalho que esta desconfiança e essas assertivas apresentam
muitos fundamentos na história da humanidade. Sabemos que o amor, a abnegação, o
sacrifício, a generosidade, o cuidado, a disponibilidade incondicional são construídos como
qualidades do “feminino” e, estas decorrem da posição originária das mulheres como seres
para outrem. Nessa perspectiva defendida por Chauí (1985), a possibilidade da mulher ser um
sujeito está estruturalmente definida da seguinte forma: “o que são, o são pelos outros (que
definiram seus atributos) e para os outros (aos quais estes atributos são endereçados)”
(Chauí, 1985, p.48).
Defendemos, portanto, que a maternidade seja uma escolha, ou pelo menos, uma
possibilidade consciente pela maternidade, e não uma imposição ou uma “armadilha social”,
como vem acontecendo nos últimos séculos. Tais questionamentos são até hoje incompatíveis
para muitas mulheres, impregnadas pelo conceito tradicional do que é ser mulher. Ou seja,
essas mulheres não chegam a sequer questionar o seu desejo, pois, afinal, é natural ter filhos!
Contudo, a História avança. A condição humana evolui. De acordo com Serrurier (1993), é
preciso sim que a mulher tome consciência de seu desejo por filhos e de sua capacidade para
acolhê-los. Afinal, como diz esta autora, nem todas as mulheres foram feitas para criar filhos.
Vivendo no ano de 2005 é possível sim valorizar o potencial da maternidade. Contudo, este
potencial não deve ser vivido como uma obrigação a ser cumprida (Dix, 1992).
Entretanto, sabemos que admitir para si a possibilidade de negar o seu papel “natural”
e “instintivo” de mulher tem um preço alto, que poucas mulheres estão dispostas a pagar, já
que “opor-se a essa visão romanceada da maternidade é, para algumas mulheres, opor-se à
feminilidade” (Forna, 1999, p. 53). Especialmente, porque sabemos que este tipo de atitude
“subversiva” poderia até comprometer a perpetuação da espécie humana, pois como afirma
Serrurier (1993) “o mito da boa-mãe é indispensável à sobrevivência do grupo” (p. 63),
sobretudo ao grupo que vive na tradição ocidental.
Obviamente, retirar o “manto sagrado” da maternidade e manchá-la com tintas
“escuras” acarreta em conseqüências diversas, pois abre a possibilidade da mulher optar por
122

ser uma mãe diferente do modelo tradicional. Ou, o que é pior para a sociedade, fazer a opção
por não ser mãe, já que, se em toda consciência coletiva reinasse a idéia de que nem todas as
mulheres são feitas para serem mães, talvez houvesse menos nascimentos, sobretudo porque
somos, atualmente, capazes de controlar a concepção.
Todas essas considerações nos levaram a acreditar que a maternidade como vem sendo
concebida até nossos dias tem influência direta no aparecimento da depressão no pós-parto.
Nossa hipótese é de que a maternidade e, dentro dela, temas como a feminilidade, as
transformações culturais no papel da mulher, o mito de mãe perfeita e a ambivalência do
papel de mãe, guardam estreita relação com o que chamaremos de solo fértil para o
desenvolvimento da mãe com depressão após o parto.
Arrisco-me inclusive a afirmar que a DPP poderia ser uma forma de reação da mãe
diante de todas as imposições que a maternidade traz. Em outras palavras, seria um tipo de
“depressão reativa”, sobretudo nas mães de “primeira viagem”, frente ao papel de mãe, que se
impõe com todas as idealizações, cobranças e posturas inatingíveis, e não uma reação aversiva
exclusivamente direcionada ao bebê. Desta forma a DPP passa de entidade patológica para se
tornar um lócus de resistência23 ao modelo de maternidade dominante.
É muito raro nos depararmos com a realidade “nua e crua”, como nestes
questionamentos elaborados por Rohenkohl:
Quem nunca se sentiu a pior das mães ao morrer de raiva do filho quando ele não
pára de chorar ou bate no irmãozinho, mal você lhe vira as costas? Atire a primeira
fralda aquela que não se sentiu culpada por não conseguir ou não querer amamentar,
ou mesmo por se identificar mais com o mais velho ou com o mais novo dos filhos
(Rohenkohl, 2005, p. 45).

A culpa que perpassa essas “questões-afirmações” normalmente não são expressões


participantes da maternidade comum a todas aquelas que se deparam com ela. Geralmente
elas ficam “excluídas” da maternidade “normal” e são reconhecidas apenas como sentimentos
atribuídos a mães com distúrbios emocionais, ou “insuficientemente boas”, como aquelas que
apresentam DPP.
Viana (2004)24 corrobora esta opinião, pois também acredita que a mulher com DPP
estaria apenas expressando seu choque e desapontamento em não sentir toda a emoção e
felicidade, normalmente mostrada nos filmes, nos livros, na igreja, nas brincadeiras de
infância, nas histórias das suas vizinhas e amigas. e nas propagandas de fraldas e de
aleitamento materno.
A propósito, o choque frente o fracasso na amamentação, se mostrou nesta
investigação, como um dos principais momentos de tensão que levaram a significativas
rupturas na configuração subjetivas das mães no pós-parto. As dificuldades em relação ao
aleitamento foram tão presentes, que nos indicaram ser merecedoras de destaque na discussão
da zona de sentido em curso.

9.1.2 - Retirando o manto sagrado da amamentação

Atualmente, a amamentação é “vendida” como o melhor exemplo da “natureza


feminina”. É a “prova cabal” de que o amor materno existe. Geralmente, aquelas mães que
não conseguem ter êxito nesta “prova”, por uma série de motivos, são categoricamente
reprovadas e sentem-se anormais, “desnaturadas”, desqualificadas enquanto mãe e mulher.

23
Termo sugerido pela Profª Drª Tânia Mara Campos de Almeida, na ocasião de defesa da tese, em 13.12.2005.
24
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
123

Contudo, ao contrário do que se preconiza historicamente, amamentar é um ato muito


mais complexo, dolorido e ambivalente, que requer mais aprendizado e treinamento do que
uma “mãe de primeira viagem” possa imaginar! Para nossa surpresa, não basta levar o filho
ao seio para que a amamentação seja um sucesso. Achar que a natureza, por si só, se
encarregará de fazê-lo, pois o bebê, através de seus reflexos saberá, como mamar, e a mãe,
através de seu instinto e amor materno, saberá como e quando oferecer o seio ao filho, é um
grande engano.
Amamentar requer técnica, disponibilidade, desejo, orientação, informação, ajuda,
condição, paciência e, sem dúvida, muito amor. Nas palavras de Winnicott (1971/2002):
“palavra seio e a idéia de amamentação abrangem toda uma técnica de ser mãe de um bebê”
(p.21). E tudo isso não se revela magicamente na mãe, a partir do nascimento do filho! Tem
que ser construído e aprendido, dia-a-dia, na convivência e na relação com o bebê. Ambos
vão aprendendo e se entendendo, a medida que mãe se sente “livre” para tal, e vai
encontrando a melhor maneira de funcionar para os dois.
Por isso, observa-se que o exercício da maternidade, em especial no que tange a
amamentação, não se revela como uma prática que sempre foi significada de forma
exclusivamente positiva, pois pode despertar na mulher sentimentos ambíguos e
contraditórios, além de ser muitas vezes vivido como um fardo em conseqüência dos
múltiplos papéis desempenhados pela mulher-mãe. Esta ambigüidade é muito bem
representada nas palavras de Ramos e Almeida (2003, p.8): “A amamentação é um fardo
obrigatório e um desejo prazeroso, podendo esses sentimentos se darem de forma simultânea
ou alternada”.
Também, encontramos esta mesma tonalidade em Moreira (1993), que dedicou todo
um livro para denunciar essa problemática envolvendo a amamentação. A autora esclarece a
sua experiência pessoal com a DPP, enfatizando as grande dificuldades que teve na
amamentação, relacionado-a à depressão vivenciada, atribuindo principalmente a imposição à
amamentação ao seio como uma das grandes responsáveis pelo sentimento de fracasso,
decepção e tristeza na maternidade.
Mas foi nos relatos das mães estudadas que encontramos a tonalidade mais ácida desta
prática. Quase todas as participantes tiveram dificuldades significativas em relação ao
aleitamento materno. Algumas delas chegaram ao desespero, como vimos no caso de Lúcia.
Além da dor, sentia-se a pior das mães ainda por não estar conseguindo exercer a maternidade
como achava que seria o “normal” para todas as mulheres: “Todo mundo amamenta seu filho,
menos eu”. Lúcia, assim como milhares de mulheres, achava que a amamentação era
tranqüila e que bastaria oferecer o seio ao filho que ambos iriam saber instintivamente o que
fazer.
Júlia foi outra mãe que apresentou como motivo da procura por nosso serviço, as
dificuldades na amamentação: “Não consigo amamentar meu filho, estou me sentindo uma
fracassada”. Estava divulgando pessoalmente o trabalho do grupo no Banco de Leite do
HMIB para a médica responsável, e ela logo se lembrou de Júlia, por causa da intensidade dos
sintomas emocionais apresentados. Coincidentemente, no momento em que me falava de
Júlia, ela ligou para a médica, muito chorosa, desesperada, afirmando que não tinha dormido a
noite inteira e que não agüentava mais a situação. Quando nos procurou Júlia não estava
conseguindo amamentar seu filho de 15 dias, pois seu seio encontrava-se com fissuras e
sangrante, o que lhe provocava muita dor. Estava perplexa e exausta diante da dedicação
exclusiva que a maternidade lhe demandava, e que culminaram as dificuldades de
amamentação.
Vejamos a fala de Júlia a esse respeito, em uma das sessões do grupo: “ Quando eu
pensava em amamentar, eu só vinculava o bebê ao meu sofrimento. Ele chorava e eu chorava
junto porque eu já pensava no sofrimento.” No completamento de frases, também deixou
124

claro que o sentido subjetivo da amamentação para ela está longe do glamour preconizado
pelas campanhas de aleitamento: “Penso que amamentar... é muito sofrido”. Havia por tras
de suas falas um grande conflito, que veremos mais adiante, ser sustentado por um discurso
dominante nos profissionais de saúde. Relatava que, apesar de saber ser importante para o
bebê, gostaria de parar de amamentá-lo ao seio e demonstrava-se muito culpada por isso e em
pleno conflito. Parecia decepcionada consigo mesma e sem compreender o que estava lhe
acontecendo: “Quando eu procurei a Alessandra, eu também estava em desespero total.
Queria me jogar da janela, não queria fazer nada, não queria cuidar... Ficava o dia todo
jogada no sofá, minha mãe era quem cuidava, dava banho...”. Após expressar seu dilema
sobre a continuidade da amamentação, na nossa primeira sessão, ela decidiu-se pela troca da
amamentação ao seio pela amamentação artificial, e voltou ao grupo bem mais aliviada.
Relatou o seguinte sobre esta mudança: “Quando eu resolvi dar a mamadeira, melhorou um
pouco, porque agora o sofrimento é parcial, porque eu não durmo. Então, de vez em quando,
eu ainda fico irritada...”.
De fato, sobretudo na última década, os sentimentos ambivalentes e a culpa estão
muito presentes na vivência da amamentação, pois se observa uma forte campanha mundial
para estimular o aleitamento materno baseada na recomendação da Organização Mundial da
Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (UNICEF).
Essas preconizam que todas as mulheres devem praticar o aleitamento exclusivo, e todos os
bebês devem ser amamentados apenas com leite materno, desde o nascimento até os seis
meses de vida. Após esse período, eles devem continuar sendo amamentadas ao seio,
juntamente com alimentos complementares, até os dois anos ou mais.
Contudo, apesar de todo o esforço desprendido, observa-se que o desdobramento
prático das campanhas não atinge o caráter universal implícito em suas premissas teóricas.
Existe um número expressivo de mulheres que tentam cumprir na íntegra as recomendações,
objetivando o êxito em amamentação, no cumprimento adequado do papel materno, à custa de
muito sacrifício. Paralelamente, há também um número considerável de mães que não
consegue, não pode ou até mesmo não quer atingir a meta estabelecida – amamentação
exclusiva até o 6º mês do bebê.
Ramos e Almeida (2003) se questionaram o porquê deste “desmame precoce”, apesar
das campanhas e do suposto caráter instintivo da amamentação. No seu estudo, encontraram
dados reveladores da ambivalência que cerca este “ato”, tido como instintivo! A análise dos
relatos das mães entrevistadas por eles, mostrou que a tomada de decisões que leva as
mulheres ao desmame decorre de maneira complexa e carregada de culpa, sentimento que, por
sua vez, se origina, na opinião dos autores, com a qual concordo plenamente, no modelo
assistencial em amamentação em vigor.
Isto porque as práticas assistenciais buscam moldar o comportamento da mulher em
favor da amamentação, responsabilizando-as, unicamente, pela saúde de seus filhos. Essa
tendência, de raízes higienistas, mais do que responsabilizar, culpabiliza a mulher pelo
fracasso, ou seja, pelo desmame precoce, ao mesmo tempo em que é incapaz de compreender
as necessidades e promover o apoio, ou no mínimo ouvir as mães.
Ramos e Almeida (2003) concluíram que a solidão/isolamento da mulher-mãe e a
necessidade de obter apoio para a consecução dessa prática, não só por parte do serviço de
saúde como também dos familiares e dos outros segmentos da sociedade, se fizeram presentes
de forma uniforme nos relatos das mães entrevistadas por elas. Assim, isentam-se desta
cobrança as funções educativas e preparatórias dos obstetras e dos pediatras e até da família.
Nesse movimento de revalorização da amamentação natural, a cobrança recai apenas sobre o
elo mais frágil - a mãe.
Assim como Serrurieur (1993), as autoras deste estudo também entendem que a
insensibilidade do profissional de saúde e da família frente ao sofrimento da mãe se
125

consubstancia em função da sacralização da maternidade como um ato de doação da mulher


em troca do amor do filho e do reconhecimento da sociedade. Essa postura impermeável e
verticalizada, tipicamente higienista, não possibilita o apoio necessário à mulher e se
configurou num dos fatores de desmame detectados, por este estudo, pois, se ouvissem o
desejo e os medos das mães, considerariam o que bem afirma Viana25 (2004) “mais vale uma
mamadeira com amor do que um peito com terror!”.
Temos que admitir que a psicologia também contribuiu para este quadro culpógeno da
mãe que não quer/pode amamentar. Os psicanalistas responsáveis pela teoria do
desenvolvimento emocional do indivíduo que foram amplamente difundida não só na área da
psicologia, mas também pediatria e da pedagogia,“foram responsáveis, até certo ponto, pelo
relativo exagero com que o seio foi posto em evidência” (Winnicott, 1971/2002, p. 21) As
teorias sobre o “seio bom“ e o “seio mau” acabaram sendo associadas a maternidade boa e
má, enquanto a evidência dos cuidados prestados ao bebê, a prontidão em atendê-lo, a
maneira de manipulá-lo, de olhá-lo e de respeitá-lo são muito mais importantes, em termos
vitais, do que a amamentação em si. O fato de a mãe e o bebê se olharem nos olhos é algo que
absolutamente independe do uso verdadeiro do seio, afirma Winnicott (1971/2002).
Não estamos querendo com isso desqualificar a importância da amamentação, ou
fazendo uma apologia ao uso da mamadeira ou do leite artificial. Temos ciência de que a
amamentação é um momento privilegiado de proximidade da mãe com o bebê, sobretudo que
favorece o contato físico entre eles, mas não significa que esta proximidade não possa
acontecer através do uso da mamadeira ou em outros momentos do cuidado prestado pela
mãe. Quero apenas me distanciar daqueles que tentam obrigar as mães à amamentarem seus
bebês.
Defendemos que é muito importante que a mãe não seja obrigada a amamentar,
porque, quando há esta obrigatoriedade, esta proximidade, na verdade, não acontece. E a
imposição de familiares e profissionais de saúde nesse sentido pode levar a resultados
catastróficos. Especialmente nos casos em que a mãe tem dificuldade de amamentar, “será um
erro tentar forçar uma situação que deve, até certo ponto, fracassar, podendo até mesmo se
transformar num desastre” (Winnicott, 1971/2002, p. 23).
Tanto a mãe quanto o bebê sofrem com esta imposição. Os bebês passam por
vivências muito sofridas na luta para que o peito desempenhe suas funções. Algo que pode se
tornar muito difícil, pois a mãe é incapaz de amamentar por um esforço deliberado, uma vez
que seu desejo escapa ao controle consciente. A mãe precisa aguardar as suas próprias reações
e respeitá-las, mas também precisa esperar pelas reações do bebê. É preciso tempo e liberdade
para que mãe e bebê entrem nesta sintonia. Portanto, ter uma noção preconcebida daquilo que
deve ser feito pela mãe no que diz respeito à amamentação é uma postura que, ao meu ver.
deve ser evitada pelos familiares e profissionais que a acompanham, sobretudo aquela que
está enfrentando dificuldades para amamentar.
Por isso, concordamos tanto com Viana (2004) quanto com Rohenkohl (2005), quando
chamam atenção para o fato de que, quando uma mulher não quer amamentar, temos que
escutá-la, ou, quando a mãe não quer fazer alguma coisa, como dar banho, ou dar comida, ou
simplesmente ficar próxima do filho, temos que respeitar! Segundo Rohenkohl (2005), neste
momento, ela pode estar protegendo o filho de algum tipo de pulsão mais agressiva que ela
possa ter: “nessa hora ela está protegendo o filho, e é a hora em que ela está sendo mais mãe
do que nunca” (p. 47). Até mesmo porque é muito comum que uma mãe esteja sofrendo tanto
que desista rapidamente de amamentar, e tanto mãe quanto bebê experimentam grande alívio
quando, finalmente, passa-se a fazer a alimentação via mamadeira, sem que por isto o seu

25
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em outubro/2004,
no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.
126

filho deixe de se desenvolver bem. Ou, ainda, a mãe pode ser bem sucedida na amamentação
de outros filhos.
O que nos parece fato é que permanecer nesta busca em satisfazer o mito da mãe
completamente boa é, como diz Serrurier (1993, p. 32), “ um pico inacessível e no qual só
conseguimos nos esfolar”. Não é possível mantermos esta insistência “insana” de nos
“encaixarmos” em modelos de maternidade de séculos passados, e continuarmos pagando o
preço altíssimo de nossa liberdade, da culpa eterna, da saúde física e emocional e da qualidade
de vida.
Mas, veremos a seguir, que este tipo de questionamento, não é bem vindo e é até mal
interpretado, soando como uma resistência à renúncia necessária para se ocupar o lugar de
mãe. Desde já, advogamos que, se há algo a que devemos renunciar, é exatamente à perfeição
e à idealização, como afirma Dix (1992).

9.2 - ZONA B: A MÃE DESNATURADA: A LUTA PELA MATERNIDADE INCLUSIVA

Nesta zona de sentido, estreitamente relacionada à anterior, pretendemos destacar


como o modelo tradicional de mãe tem acarretado em muito sofrimento, culpa, depressão e
prejuízos em todas as esferas da vida de grande parte das mulheres da cultura ocidental, na
atualidade, . Vimos ao longo desta tese que a ideologia que acompanha o mito de mãe perfeita
só pode conceber uma maneira de ser mãe: doação total, exclusividade para o filho, dedicação
em tempo integral (Falcke & Wagner, 2000).
Este modelo está baseado na predisposição inata para o sacrifício e preconiza que a
maternidade deve ter prioridade sobre as necessidades pessoais da mulher. O ideal de amor
materno concebe a mãe como um ser irreal dotado de poderes divinos, e que obterá prazer
unicamente a partir da dedicação total aos filhos e dos grandes sacrifícios em função deles. Na
técnica de recorte e colagem, Júlia exemplifica muito bem este conceito: “O que as pessoas
falam para a gente, que você deve ser a estrela Dalva, o rumo dos seus filhos você ser
abençoada, você ser a dama de ferro realmente. Que para realmente proteger você tem que
estar grudado com o seu bebê o tempo todo. Você tem que ser alegre e feliz o tempo todo, ser
brilhante, tranqüila, bonita. Que não é realmente o que eu sinto.” ( Anexo I)
Sob essa ótica, concebe-se que a renúncia, a doação, a exclusividade são imperativos
da condição materna. Àquelas mulheres que têm outras escolhas e interesses além do filho, e
resistem a ocupar este lugar de “abrir–mão” de si para cuidar do outro, são vistas como mães
desnaturadas, egoístas, imaturas e doentes. Esta concepção aparece em vários discursos na
literatura que consultamos para elaboração desta tese, já que um bom exemplo deste tipo
‘defeituoso” de mãe é aquela que se apresenta com os sintomas da DPP.
Além do senso-comum, muitos teóricos da psicologia e da pediatria continuam
concentrando o seu foco neste discurso e, assim, reforçam a estigmatização da mãe deprimida
e o mito da maternidade exclusiva, conforme defendem os autores a seguir.
Pitt (1968,citado por Santos, 2001) afirmou que a DPP é freqüentemente vista em
mulheres jovens ou com personalidades imaturas, porque elas sentem-se carentes e mais
dependentes de proteção, como se estivessem competindo com o seu bebê pelas atenções dos
outros. A sensação predominante é de sentirem-se apenas a serviço do bebê, como se nunca
mais fossem recuperar sua vida pessoal. Essa visão é corroborada por Szejer e Stewart (1997)
ao explicarem que desejar ter um filho supõe não apenas renúncia a um lugar somente de filha
para aceitar ser mãe, mas implica outras renúncias: a renúncia a um corpo de menina, depois
ao seu corpo de mulher grávida. Por isso, para esta autora, algumas mães não vão conseguir
entrar neste papel, como aquelas que apresentam a DPP, pois seriam tão regredidas que só
consegiriam ser filhas de suas mães.
127

Lucena (2004), que utilizou-se da teoria de Erikson (1976) para estudar mães com
DPP, também acredita que as mães resistentes às mudanças que têm que implementar com a
chegada do filho, demonstram estar na crise da idade adulta, onde há o conflito entre a
generatividade versus a estagnação. Segundo Erikson (1976) esta crise consiste no conflito
entre o desejo de permanecer na estagnação, valorizando as necessidades pessoais e a posição
de ser cuidado, e a necessidade de ir para generatividade. Esta, por sua vez, implica na
disponibilidade de cuidar e orientar a geração seguinte. Para Lucena, esta crise se concretiza
nas demandas impostas pelo bebê, às quais as mães com depressão não estariam dispostas a
atender.
Santos (2001) também preconiza que a identificação típica da gravidez passa a
implicar uma perda de si mesma em favor do recém-nascido, e que tal processo caminha para
uma identificação não conflitiva com o bebê. Quando isso não ocorre, temos a depressão pós-
parto, pois a mãe com este diagnóstico tem dificuldades de aceitação quanto as urgências
instintivas que o bebê torna presente de forma intransigente, logo após seu nascimento. Dessa
maneira, afirma Santos (2001), a depressão após o parto seria uma cristalização da etapa
conflitiva que se instaura logo após o nascimento do bebê.
Como exemplo dessas hipóteses, Badinter (1985) explora as teorias de Helène
Deutsch, que destacam a psicologia da mulher e da mãe, retratando-a como um ser passivo,
masoquista e narcisista. Segundo essa Deutsch (citado por Parker, 1997; Serrurieur, 1993),
esse conceito se diferencia do masoquismo pervertido, pelo fato desse último envolver a
recepção de dor e crueldade, enquanto o masoquismo feminino emprega a culpa auto-
destrutiva. Por isso, sobre a maternidade, pressupõe-se um masoquismo “normal” e necessário
no qual as forças narcisistas da auto-preservação e a função masoquista da maternidade
devem estabelecer uma concordância harmoniosa. Nesse contexto, ele é comparável a um
desejo materno de sacrificar-se pelo outro.
Além desse referencial, Badinter (1985) também critica as idéias de Winnicott, por ele
consagrar as condições para a maternagem adequadas, desde que a mãe se adapte inteiramente
às necessidades do filho. Nesse sentido, vejamos, o que nos diz o próprio Winnicott
(1947/2000b) sobre a renúncia ao falar da mãe recém–parida e da DPP.
Ele foi um dos primeiros estudiosos que notaram uma mudança particular na psiqué
das mulheres no pós-parto e nos deu uma importante contribuição para entender a mãe recém-
parida, ao conceituar a “preocupação materna primária”. Esta consiste num “estado” pelo qual
todas as mães necessariamente vão passar, e que se inicia no final da gravidez e perdura até
algumas semanas após o parto. Nesse, a mãe se encontra num estado mental que, se vivido
por qualquer outra pessoa em outra fase da sua vida, seria considerado no limite da
psicotização.
A mãe parece louca, pois está sempre observando a respiração do bebê; acorda de um
sono pesado, mal ele começa a chorar; está centrada no filho e em suas necessidades nas 24
horas do dia. Nesse estado, as mães tornam-se capazes de se colocarem no “lugar do bebê”,
tamanha a identificação com ele: “ela é o bebê e o bebê é ela!” (Winnicott, 1971/2002, p. 36).
A mãe torna-se excessivamente preocupada e monotemática porque só consegue pensar, falar
e viver o seu bebê, renunciando de bom grado a si mesma em nome da criança. Esse autor
preconizava que essa renúncia e essa “preocupação psicótica”, que implicam em sofrimento
materno, são absolutamente necessárias para a constituição do que ele denominou de “mãe
suficientemente boa” (Winnicott, 1947/2000b).
Winnicott (1971/2002), acredita que as mães entram em depressão por se recusarem a
vivenciar esta renúncia temporária de si que a maternidade impõe (grifo meu!), talvez porque
esta renúncia lhes pareça eterna, ou porque relutam em entrar em contato com a maternidade
real. Dessa forma, acabariam por prolongar ou eternizar este período breve de “loucura
materna primária”, por meio da DPP. Portanto, este estado de loucura materna pode ocorrer
128

de modo insatisfatório, ou realmente patológico, comprometendo o exercício da maternidade


e trazendo graves conseqüências para o desenvolvimento do bebê.
Questiono-me, partindo da afirmação winicottiana, e de todos os demais teóricos que
defendem a renúncia como condição para a maternidade feliz, se a mãe com DPP seria então a
“mãe completamente má” ou a “mãe insuficientemente boa”? Ou, em outras palavras, seria
ela a mãe mais incapaz de cuidar de seu filho, a pior das mães, por ter se “recusado” a
renunciar a si própria, ainda que temporariamente, em nome de seu bebê? Ou, ao contrário,
ela é “tão suficientemente boa” que foi capaz de se entregar ao sofrimento, ao masoquismo
materno e à culpa eterna, através da tristeza e da depressão, porque acha que não está
conseguindo ser a mãe ideal, para seu filho? Em qual das duas categorias será que ela se
encaixaria? Será que ela não entra em depressão porque já vem se renunciando ao longo de
sua vida, como vimos em todos os casos por nós analisados e, logo agora, no momento em
que ela esperaria “ganhar” algo – seu filho -, mais uma vez é chamada a renunciar, a “perder”
algo de si, por isso reage fortemente ou depressivamente a esta demanda/imposição?
Na mulher atual esta situação se perpetua através de conflitos cotidianos entre
dependência e auto-realização, em ter o direito de lutar por seus desejos sem sofrer o peso da
culpa. Ainda é difícil acreditarem que podem ser livres sem prejudicar seus relacionamentos,
seus filhos e amizades. Talvez, o mais saudável e sensato fosse permitir ou consentir,
socialmente e internamente, que a mãe vivenciasse esta “loucura” da qual nos fala Winnicott
nas primeiras semanas, para depois sair dela da forma como quisesse ou conseguisse,
preferencialmente contanto com apoios externos; e, não, cobrar a felicidade plena e/ou a
renúncia irrestrita pela chegada do filho. Mas, para isso, seria necessário que estas mães ao
menos soubessem da existência e da normalidade do lado que chamo de “obscuro” da
maternidade. Quem sabe assim, se pudessem assumir este lado sofrido e “enlouquecedor” da
maternagem, sem serem classificadas como “insuficientes”, o “rótulo” de DPP sequer
existisse.
Entendemos que esta forma de conceber a mãe com DPP só contribui para sua
culpabilização e para sua patologização. A nosso ver, por traz de todas essas teorias, ainda
existe o forte propósito de reforçar as idéias de “instinto maternal”, “ amor materno”, “boa
mãe”, “boa filha”, entre outras clássicas sobre a mulher, ideologicamente construídas para
mantê-la restrita a “seu devido lugar” – dentro de casa, cuidando dos filhos e do marido.
Essas são concepções que reforçam portanto a maternidade exclusiva, e afastam a
possibilidade da maternidade inclusiva, por nós defendida, como aquela em que a mãe possa
incluir os filhos na sua vida e não tenha que renunciar a si mesma, mas que possa se preservar
diante das intermináveis demandas dos filhos, como bem colocou a participante Larissa na
sua ficha de inscrição: “para não me perder nesta nova realidade”. Não haveria espaço para
os dois – mãe e bebê? Portanto, mesmo a “nova” mulher encerraria muitas contradições. Ela
se impõe mais, tem mais espaço, mas, em geral, com a consciência pesada, com o fardo da
culpa, do qual ainda não conseguiu se livrar.
Para nós, não é por acaso que ser mãe na modernidade suscita sentimentos de culpa,
frustração e conflitos de identidade; afinal, as mães estão habituadas a uma cultura que proíbe
a discussão da coexistência de sentimentos ambivalentes e naturais em todas as mães, e o
compartilhamento efetivo de responsabilidades. O natural passa a ser o sacrifício e o amor
irrestrito. Esses elementos se fazem freqüentemente presentes nos relatos das mães estudadas,
repletos de exemplos de cobranças e tensões aos quais as mulheres são constantemente
submetidas.
Por exemplo, no caso de Gabriela, vimos a forte presença da concepção de gênero
dominante em nossa sociedade, onde a mulher só é “mulher de verdade” se for mãe, e só é
uma “boa mãe” se deixar tudo para se dedicar exclusivamente aos filhos. Isso lhe é
marcadamente exigido por todos aqueles que a cercam, sobretudo sua mãe e seu marido. Ela
129

sentia-se bastante dividida em relação a continuar a trabalhar ou cuidar do filho, pois


argumentava que, sem trabalhar, poderia ficar mais tempo com o bebê. Além do mais: “as
pessoas poderiam achar que eu sou uma mãe desnaturada, por preferir trabalhar a ficar em
casa com meus filhos”; sugerindo com essa frase que estava mais preocupada com o
julgamento dos outros, do que com o receio de prejudicar o filho com seu afastamento.
Assim, pelas mais diversas vias da subjetividade social, as renúncias que deve fazer no papel
de mãe, o conflito com seus pais, sobretudo com sua mãe, o conflito com a vida profissional,
são fatores que, para nós, têm delineado uma configuração subjetiva tanto da maternidade,
quanto de sua sintomatologia depressiva.
O conflito de Larissa também se revela na grande culpa vivida, por ter outros
interesses além da maternidade. Sente-se limitada, sobretudo em relação à vida profissional. A
princípio, os percebe como dois “mundos” incompatíveis, o que tem respaldo na sociedade e
em casa, por parte de seu marido e sua mãe. Ou seja, esta demanda pela maternidade
exclusiva, além de ser de interesse social, ideologicamente arquitetado ao longo da história da
humanidade (Chauí, 1985; Badinter, 1985; Serrurier, 1993; Trindade 1993; Muszkat, 1994 e
Del Priori, 2004), é potencializado por se alimentar do sentido subjetivo de pessoas que a
mobilizam afetivamente, como sua mãe e seu marido. Nessa perspectiva, sua vivência parece
chegar a um paradoxo entre o “desejo” de dedicar-se apenas à maternidade, a sua casa e
marido, contrapondo-se ao desejo de manter um espaço de crescimento pessoal e profissional.
Fica evidente também, no caso de Júlia, a enorme pressão ideológica para que a mãe
se mantenha restrita aos prazeres que só a maternidade poderia lhe proporcionar (Chauí,
1984), a partir de onde entendemos que a crise de depressão atual foi desencadeada apenas
aparentemente pelas dificuldades de amamentação do bebê e pelas dificuldades de cuidar dele
no dia-a-dia. Sentia-se dividida entre o filho e o marido, como se ela necessitasse manter o
foco no casamento para salvá-lo, por meio da sexualidade, e não pudesse investir em seu bebê
naquele momento. Assim, parece ter recaído sobre o filho parte da frustração pelo insucesso
da relação conjugal e, talvez por isso, ela reagisse agressivamente e impacientemente com o
filho. Sabemos que essa obrigatoriedade em obter satisfação absoluta exclusivamente a partir
da maternidade pode ter desdobramentos prejudiciais, principalmente em uma sociedade onde
a mulher normalmente trabalha fora, também é responsável pelo orçamento familiar e cultiva
interesses diversos (Serrurier, 1993). Nos questionamos se essas informações representariam,
então, um indicador de conflito com a função materna ou com as renúncias sociais impostas à
mãe?
Isso significa que Júlia, assim como muitas mães com o diagnóstico de DPP, acabam
por rejeitar não o bebê em si, mas a maternidade como instituição e muito do que isso
acarreta, como podemos observar claramente no relato de Kátia26: “Eu não sabia que a
maternidade ia mudar tanto a minha vida, me privar de tantas coisas. Acho que é por isso
que eu tô muito doente, porque eu quero fazer muita coisa e não posso fazer nada. Eu quero
trabalhar, mas não tenho com quem deixar ela, quero passear e não posso, mas como que eu
vou levar duas meninas (...)Ser mãe é não se sentir mais sexy e nem querer se olhar no
espelho. Ser mãe foi experiência inexplicável na minha vida”. Existe portanto um conflito
com o ideal da maternidade exclusiva, e não com a maternagem per si, ou se ela pudesse ser
inclusiva. Como bem nos alerta Marbeau-Cleirens (citado por Serrurier, 1993), com o qual
concordamos em gênero e grau, a mulher não se recusa a ter filhos, a cuidar deles ou a amá-
los. Muitas vezes, ela se recusa à situação familiar e social, na qual fica alienada quando tem
um filho.

26
O caso de Kátia não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte de nosso trabalho de campo.
130

A mãe passará então a definir-se nas tensões da ruptura e da criação, as quais são parte
permanente de seu envolvimento com a maternagem. Esta a conduzirá a um posicionamento
intencional na elaboração das posições depressivas, ou não, em que se situa. A primeira
posição se dará pela ausência do sujeito como referente de si mesmo, que leva a pessoa a
posicionar-se de forma passiva, orientada ao cumprimento de regras sociais, e não de forma
criativa e prazerosa no que faz. Já a segunda posição implica num respeito pelo próprio
pensamento e desejos. Porém, infelizmente, a produção de sentidos associada à produção de
novas idéias e posições é algo que ainda estimula ou é possível para uma quantidade restrita
de mulheres.
Nos casos estudados, observamos que as mães lutam, não por uma maternidade
exclusiva, mas por uma maternidade “inclusiva”, sobretudo nos casos de Larissa e Júlia,que
nos pareceram mulheres bem estruturadas intelectualmente, e apresentaram respostas bem
diferentes das outras mães. Elas mantém um discurso singular e são zelosas na defesa de seus
espaços próprios, apesar dos muitos valores que as movem pertencerem a esse espaço
simbólico, em relação ao qual elas se posicionam, gerando a tensão necessária que as preserva
enquanto sujeitos de suas próprias vidas. Elas parecem estar passando por todos os
questionamentos normais que fazemos quando nos deparamos com a maternidade e todos os
seus conflitos com esse novo papel. Como ser mãe, mulher, amante, profissional tudo ao
mesmo tempo?
Essa é a grande questão tanto para Larissa quanto para Júlia. Elas estão sofrendo, mas
têm coragem de buscar saídas! Elas têm questionamentos bem sólidos e bem estruturados. No
entanto, sentem-se inseguras neste novo papel e estão se vendo obrigadas a se posicionarem,
como fica claro na seguinte expressão de Júlia: Acho que tem uma mudança cultural em
relação à maternidade. Eu acho que mudou a minha vida, mas eu me sinto mais feia, sinto
muita culpa. Você tem que estar lutando contra as coisas”. Suas histórias são relatos de uma
luta! Lutam contra uma espécie de ofuscamento de si próprias, que o contato inicial com o
bebê acarreta (Santos, 2001). Lutam para serem ouvidas, para poder ser quem são!
Na verdade, o estudo de Dias e Lopes (2003) já nos mostra que esta é a grande
diferença entre as jovens mães da atualidade e as de outrora. Elas, muito mais dos que suas
próprias mães, expressam a necessidade de uma preservação do espaço pessoal diferenciado
do papel de mãe, referenciando normalmente o estudo e o trabalho fora de casa. Acreditamos
ser possível buscar alternativas, tentar negociar, conciliar novas tarefas após a maternidade,
sem abdicar impositivamente de sua identidade, de seus desejos, de seu espaço. Diga-se de
passagem, um espaço tão arduamente conquistado nas últimas décadas, principalmente por
meio dos movimentos feministas, e que agora lhe cobram “abrir-mão”, “renunciar”, se quiser
ser uma “mãe suficientemente boa”. Seria esta uma luta legítima, ou seria a resistência
cristalizada e patológica? Ou seria possível pensarmos numa maior liberdade para exercer a
maternidade, mais adequada aos nossos tempos? Uma maternidade “inclusiva”?
Também em relação aos outros casos estudados, fica evidente como o contexto
imediato aparece como elemento diferente em cada uma delas. De todas as mães estudadas,
Isabela nos pareceu estar tencionada mais diretamente pelo fator social. Enquanto em outros
casos, a tensão se estabelecia pelas pressões exercidas pelas figuras parentais, pelo cônjuge e
pelo ideal de maternidade construído socialmente, neste, não são esses fatores que parecem
estar em primeiro plano. Aqui, vemos uma pressão direta e concreta da luta pela
sobrevivência, da privação das necessidades básicas, da pobreza da falta de perspectiva futura,
lamentavelmente tão comuns no nosso país. Quantos milhões de Isabelas, com filhos nos
braços, passando necessidades de todas as ordens existem no nosso país? O caso de Isabela se
destaca entre os demais, porque, de todas, ela nos pareceu a mais desamparada. Mas o
interessante é que isto só nos mostra o poder de resistência de nossas mulheres, que não
131

sucumbem diante das dificuldades. Talvez Isabela seja a maior lutadora de todas as mães que
participaram do estudo, se é que cabe este tipo de comparação.
Sua situação de vida é tão complexa, que no seu caso nos parece ainda mais abusivo
reduzi-la ao diagnóstico de DPP. Assim, como as outras mães, ela continua lutando, apesar de
ter menos recursos para a batalha. Mesmo nos momentos de intensa tristeza e paralisia, não se
deixou abater e segue lutando por sua vida e pela vida de suas filhas. É verdade que ela tem
conseguido, mas o melhor seria se ela pudesse contar com o apoios sociais, que tornasse a sua
caminhada mais leve.
A sociedade exige que a mulher cumpra bem todas essas funções e lhe culpa se o
resultado não for satisfatório. Sabemos que as cobranças sobre as mulheres nunca foram
poucas: não basta ser mãe, devemos ser mães incondicionais; não basta ser esposa, devemos
ser esposas exemplares; não basta ter uma profissão e um trabalho: devemos ser profissionais
bem sucedidas; não basta ter um corpo saudável: temos que ter um corpo de modelo. Diante
desta hipótese, nos perguntamos se esta idealização não seria exatamente uma tentativa de
parar ou impedir esta crescente mobilidade da mulher, por meio da culpabilização e do
excesso de atribuições? Não seria a perpetuação da ideologia patriarcal que continua a
influenciar nosso modo de ver o mundo?
Estaríamos, nós da psicologia, de fato preocupados com este tipo de clientela, quando
atribuímos um diagnóstico de uma psicopatologia? O problema aqui não é instrumental, trata-
se de recuperar a mulher/mãe enquanto sujeito, na sua dimensão de produção de sentido
subjetivo, profundamente singular para a maternidade que está vivenciando. Mas veremos na
próxima zona de sentido que este não tem sido o caminho trilhado nem pela medicina, e nem
pela psicologia, onde a busca pela padronização e a ênfase na patologização dos fenômenos
humanos são muito presentes.

9.3 - ZONA C: IDENTIDADE DE ENFERMA: A NATURALIZAÇÃO DA DPP

A identidade de enferma se constitui, para nós, em uma zona de sentido subjetivo que
aborda o sujeito tendencioso a naturalizar seu estado depressivo e evitar o enfrentamento de
um conflito que não pode ser evidenciado. Essa hipótese tem interesse não apenas para o
conhecimento da subjetividade individual dos casos analisados, como também para o estudo
dos procesos de subjetivação dos diferentes conceitos usados para construção social das
mulheres com DPP.
Santos (2001) nos informa que o fenômeno da DPP é atualmente muito estudado em
psiquiatria, e se contitui de elementos preferencialmente observáveis privilegiados na
modernidade psicopatológica. Sob essa ótica, há uma clara tentativa de encontrar suas causas
sem se deter em considerações sobre o processo subjetivo subjacente. Os estudos
compartilham do ideário descritivo ao construir quadros estáveis, e apresentam estratégias
experimentais para dar suporte a uma generalização. Essa mesma autora afirma que na
literatura psicanalítica também se encontram estudos com a mesma preocupação em
estabelecer um recorte psicopatológico da DPP. Sobretudo nos estudos pioneiros, procurava-
se estabelecer a estrutura de personalidade subjacente à depressão, apresentando resultados,
tais como: “os estudos terapêuticos de pacientes com distúrbio puerperal sugerem que
mulheres com um tipo particular de distúrbio de caráter estão em perigo de doença mental
durante o puerpério” (Lomas, 1960 citados por Santos, 2001, p. 27).
Felizmente, essa forma de abordagem do dano psíquico, em sua correlação com as
fragilidades subjetivas e com os fatores de risco, tem recebido muitas críticas, o que abriu o
campo para reformulação de teorias psicológicas (Sterian, 2001, Guidano, 1994, González
Rey, 2002). González Rey (2004) tem sido um forte crítico deste tipo de prática tanto na
psicologia quanto na medicina. Para ele, “as categorias universais, como esquizofrenia, déficit
132

de atenção, neurose devem representar só um marco relativo para a definição do problema a


estudar” (2004, p. 125/126). Segundo este autor o problema não é classificar, caracterizar e
fechar diagnósticos. O problema é o poder hegemônico desta prática indiscriminada em
nossos serviços de saúde, em detrimento de outros tipos de avaliações que zelam pela
subjetividade e pelo sentido que o paciente dá ao “mal” que está lhe acometendo. Só assim é
possível nos informar sobre a natureza diferenciada desses processos nos sujeitos concretos,
que não podem ser substituídos pelas entidades usadas para definir sua condição. Foi
justamente esta postura investigativa que procuramos adotar nesta tese.
Na concepção defendida por González Rey (2004), o sujeito existe sempre na tensão
da ruptura ou da criação, momentos que se caracterizam por uma processualidade que desafia
o instituído, tanto no nível da própria subjetividade individual, como em termos do social. Os
afetos como angústia, tristeza, desamparo, alegria, esperança, entre outros, fazem parte de
uma gama de tonalidades diferentes de sentimentos com os quais as pessoas vão experenciar e
significar o seu ambiente físico, emocional, social, histórico e cultural. Por esta razão,
Guidano (1994) alerta para o fato de que, mesmo aqueles sentimentos que aparentemente tem
uma mesma tonalidade, como a angústia, podem ser experimentados de maneiras muito
distintas. A angústia pode estar relacionada a uma perda real ou simbólica, a um perigo, a uma
sensação de insegurança, instabilidade, ou pode fazer parte de um padrão de significados
coerentes como depressivo, fóbico, obsessivo.
Segundo a teoria de González Rey (2005a), esses elementos são sutilmente
subjetivados pelo sujeito, expressam-se por meio de uma produção singular que abarca. Entre
suas conseqüências, os sentidos explicitados pelo sujeito em relação a si mesmo - por
exemplo, o que a mãe sente e pensa em relação a si mesma, processos estes estreitamente
implicados, como a imagem que fazem de si próprias enquanto mães/mulher - e não pode ser
previamente definido em uma categoria semiológica.
Tais questionamentos nos fazem refletir sobre os desdobramentos deste modo de
pensar a maternidade; sobretudo questionando as enfermidades psicológicas do puerpério.
Quando são percebidos estados depressivos no pós-parto, além de um diagnóstico correto, se
demanda uma sensibilidade por parte dos profissionais de saúde em reconhecer os sentidos
subjetivos que a mãe atribui ao que está vivenciando, o que via de regra, é freqüentemente
desconsiderado e desqualificado. O último relatório sobre a saúde da mulher do Ministério da
Saúde do Brasil (Brasil, 2004) não só confirma esta postura, como avalia a assistência
materna à mulher brasileira como precária!
O contexto em que a maternidade é vivida na sociedade brasileira é caracterizada por
partos e nascimentos marcados por muita medicalização, intervenções desnecessárias e
potencialmente iatrogênicas, especialmente pelo abuso da prática cesariana. O quadro é ainda
mais preocupante, afirma o relatório, porque existe uma cultura que desqualifica a opinião da
parturiente (grifo meu!) sobre a adoção de procedimentos no parto e pós-parto. Não respeitam
a sua autonomia e privacidade e muitas vezes a reduzem a uma “hospedeira” que tem apenas
a função de parir e amamentar. Este documento destaca ainda que: “as histórias das mulheres
na busca pelos serviços de saúde expressam discriminação, frustrações e violações dos
direitos e aparecem como fonte de tensão e mal-estar psíquico-físico” (Brasil, 2004, p. 59).
Este mesmo relatório mostra que esses fatores influenciam no aumento do índice dos riscos
maternos peri e pós-natais, entre eles a DPP.
Obviamente, as teorias da constituição psíquica do ser humano, inclusive as de ênfase
diagnósticas, as psicodinâmicas e as comportamentais são necessárias como referências que
nos parametrizam para uma possível compreensão da situação que se apresenta ao indivíduo.
Mas, devemos lembrar que muitas são construções genéricas, fundadas em hipóteses e
observações sobre um determinado número de pessoas, e que não inclui, necessariamente,
aquele indivíduo que estamos abordando. Isso implica que a cada indivíduo, a cada paciente,
133

temos que construir uma nova “verdade” (Sterian, 2001). Ou, como afirma Guidano (1994, p.
137), “ (...) cada persona es un experimento único de la Naturaleza, y tiene por lo tanto un
modo absolutamente singular de articular su dimensión de significado y los processos de
reordenamienta que tienen lugar en ella”.
Para Sterian (2001), isso significa que fazer uma pessoa pensar em si mesma, não
apenas como um diagnóstico, é oferecer-lhe a chance de reinserir-se em sua própria história
de vida, de assumir-se enquanto sujeito de seus próprios desejos, necessidades e
possibilidades. Significa não permitir que ela transforme a doença em sua própria identidade
pois, só assim, ela poderá suportar e elaborar as limitações ou frustrações que sua existência
for lhe reservando. É por essa razão que González Rey afirma que, se o impacto subjetivo do
diagnóstico não for considerado, o paciente perde sua condição de sujeito, e ele próprio passa
a reforçar a sua “condição” de doente, amplamente respaldada no discurso biomédico. Essa
condição de doente, “ao ser definida em todos os seus sistemas de relação, chega a definir a
identidade do sujeito”. (González Rey, 2002, p. 105).
Nesse sentido, chamou a nossa atenção que Gabriela acreditava estar muito doente:
sentia-se estranha, “enlouquecendo”, “tomada” pelos sintomas e já não se reconhecia como
ela mesma. Intrigou-nos que ela se referia a sua depressão, como se o seu problema atual se
resumisse a esta problemática, com a qual não estaria diretamente implicada. Vejamos este
sentido em suas expressões:“Meu maior problema...é estar com esta doença”; “Sinto uma
forte pressão no peito e uma constante sensação de angústia, não tenho vontade de comer,
não consigo dormir e tenho muitos pensamentos negativos....tenho medo de machucar o
bebê e tenho medo de estar ficando louca...sempre acho que tudo vai dar errado”. Observa-
se aqui a legitimidade de seu sofrimento, mas também chama nossa atenção a intensidade
com que ela assume seu diagnóstico!
Partindo dessa hipótese, podemos pensar que tanto sua depressão, como a loucura a
que se refere, representam mais uma apropriação como crença pessoal de uma construção
social, atribuindo-lhe uma configuração de sentido subjetivo central no seu sofrimento atual,
do que a uma depressão propriamente dita. Parece-nos mais uma reação por achar que não
está cumprindo bem seu papel de mãe/esposa, com base nos parâmentros sociais que foram
internalizados por ela, do que uma avaliação de sua atuação nestas funções, com base em seus
próprios parâmetros e desejos. Para estar bem de saúde, Gabriela terá que enfrentar a situação
em que está e assumir uma posição frente a ela, o que parece que ela evita por todas as vias
possíveis, utilizando-se do sentido subjetivo que aparece em sua posição em relação à
naturalização de sua enfermidade.
Infelizmente, este é um recurso bastante utilizado na história das mulheres. Para
poderem ser ou fazer o que realmente queriam, ou “se tornavam” loucas ou bruxas. “Adoecer
“ ou “enlouquecer” era a única saída para expressão da subjetividade das mulheres desde a
Idade Média e, infelizmente, se perpetua até nossos dias (Chauí, 1984; Serrurieur, 1993).
Assim como no caso da participante Gabriela, percebemos que Lúcia também se
identifica com a doença da depressão e assume esse diagnóstico. É interessante que mesmo
sem ter–lhe sido formalmente dado o diagnóstico de DPP, ela se identificava com os sintomas
que achava caracterizar essa doença e se atribuía este diagnóstico: “Eu acho que eu tenho
DPP por causa de tudo o que eu passei, mesmo sem saber o que era.” Alessandra: “Mas o
que você acha que tem de deprimida?” - Lúcia: “Assim, nos meus momentos de angústia, de
desespero, eu não queria vê-lo (o filho), queria matá-lo. Eu acho que tudo isso fez com que
eu pensasse mais ainda que era depressão”. Suas referências feitas à rejeição, ao infanticídio,
ao sofrimento e limitações são atributos que expressam sua subordinação ao rótulo
socialmente estabelecido da DPP. A integração desta constatação e outros elementos
expressados por ela anteriormente, nos leva a reforçar a impressão de que ela sê vê muito
134

doente e se reduz basicamente a isso. Essa concepção é um forte indicador de que, assim
como no caso de Gabriela, há um processo de naturalização da doença.
Este mesmo processo também foi observado no caso de Kátia. Suas reiteradas palavras
e ações referentes à depressão nos sugeriram uma forte identificação com esta entidade
diagnóstica. A presença da depressão está tão forte em seus relatos e em seu modo de se ver e
no seu dia-a-dia, que isso nos sugere que a depressão é vista como uma condição “natural” de
sua vida: “Mas será que é depressão mesmo que eu tenho?” (...) “Não sei. Às vezes eu sinto
que é o meu jeito mesmo”. Com isso, sente-se presa e impotente diante da “doença/depressão”
que, paradoxalmente, lhe traz um certo alívio, pois a desculpabiliza diante da família e da
sociedade. Nesta perspectiva, a depressão transforma-se em garantia de proteção e afeto,
ganhos secundários que vão na contramão do que realmente a faz sofrer, ou seja, a ameaça de
ser abandonada, o medo e a insegurança de não poder acreditar em si, e principalmente a
incapacidade de refletir e escolher sobre o que é bom ou ruim para a sua vida.
Para nós, todas as considerações tecidas ao longo das análises dos casos só reforçam a
concepção de que a DPP não deveria ser considerada apenas como uma entidade
psicopatológica isolada de quem a tem. A mulher que apresenta os sintomas compatíveis com
os da DPP é um ser concreto, histórico, social, a partir de quem impomos as seguintes
questões: poderíamos suspeitar que a DPP se trata apenas de mais uma maneira de vivenciar a
maternidade? Seria uma das formas mais sofridas, porém não menos legítima e natural, que as
mais convencionais de maternar? Será que estas mães precisam se “esconder/proteger” sob o
diagnóstico da depressão pós-parto, ou da loucura, para poderem imprimir sua marca singular
na função materna?
As mães estudadas não devem ser reduzidas nem padronizadas pelo diagnóstico de
depressão, pois na depressão o sujeito sucumbe às imposições sociais externas ou
internalizadas, pára de produzir sentidos e aceita indiferentemente o seu “destino”. A vida
perde o sentido, e eles são engolidos pelas circunstâncias e passam apenas a sobreviver aos
dias que lhes restam. Desistiram da fé na própria força e na utilidade vital. Aguardam a ajuda
dos outros ou do destino e, por isso, se vêem diante da única solução possível: são obrigadas a
adaptarem-se ao desejo dos outros, às custas de seus próprios desejos e da alegria de viver.
Elas param de lutar e vivem para o próprio sofrimento. Nas mães que acompanhamos, não é
esse o movimento observado. Muito pelo contrário, elas nos parecem extremamente vivas!
Apesar de inicialmente parecerem derrotadas e “engolidas” pelas imposições, que
provocam os sentimentos de tristeza, menos-valia, incapacidade, fracasso, elas continuam
lutando para se manterem íntegras enquanto sujeitos de fato e de direito! Estão juntando todas
as forças para se preservarem, apesar de todos os apelos sociais, e até científicos, para que
renunciem a si mesmas, se quiserem ser boas mães. O que diferencia a tristeza da depressão é
exatamente o posicionamento ativo do sujeito perante a vida em busca de alternativas e a
manutenção da produção de sentidos subjetivos. A subjetividade social e o sujeito travam uma
luta na busca de alternativas, no qual ele possa sobreviver apesar da padronização e da
patologização sociais. Para nós, as mães estudadas não pararam de lutar, por isto não estão
loucas nem doentes.
Estão em plena luta, cada uma no seu ritmo e dentro de suas possibilidades, em busca
de alternativas para a nova realidade que se impõe com a maternidade. A tristeza, a
insegurança, a angústia e o desamparo sentidos no pós-parto nos parecem fazer parte do
momento de transição e tensão em que se encontram difusamente pressionadas pelas
demandas sociais, afetivas e culturais que se integram com grande força na tentativa de
“encaixá-las” no modelo tradicional de mãe. Essa cobrança, que a sociedade e que elas
mesmas se impõem, só lhes traz um sentimento cada vez maior de culpa, inadequação,
tornando-se um fardo eterno.
135

Assim, elas sofrem porque ainda não dominam o papel de mãe e estão tentando
integrá-lo a seus modos de ser, e não o que a sociedade espera delas, já que ainda hoje “a
maternagem é vista como o ideal feminino mais nobre e dignificante” (Trindade, 1993, p.
538). Esse ideal social estimulado por muitas vias diferentes entra em contradição com outros
sentidos subjetivos que fazem parte de suas vidas e com o sujeito que são, o qual nunca será
perfeito, mas pode ser autêntico, legítimo. Um bom exemplo disso, encontramos nos casos de
Larissa e Jùlia que se posicionam diante das múltiplas demandas impostas: elas lutam pela
manutenção do seu status quo. Representam a idéia da depressão pós-parto enquanto lócus de
resistência27, e não enquanto doença.
Especialmente no caso de Lúcia, observamos apenas uma tentativa fugaz de luta. Ela
vive e continua dolorosamente aquilo que Larissa já pode descrever como passado recente.
Ela nos parece a que está tendo mais dificuldades para lutar. Parece ter adotado a renúncia a si
mesma como estratégia de proteção, e se limita a achar que, mesmo com todo o sofrimento
experenciado, ela se impõe a atender e se reduzir ao papel tradicional de mãe, com o qual
tenta se contentar esperando o “paraíso” prometido: “A felicidade...é ter meu filhinho”. De
acordo com Ehrhardt (1996) mulheres desamparadas, como Lúcia, colocam em dúvida a
capacidade em agir eficazmente. Assim, baseada na valorização de suas experiências
negativas, e na desqualificação de suas experiências positivas, elas têm uma profunda
convicção na sua incapacidade e não confiam mais em si mesmas. A reação lógica é, então,
lutar pela aceitação do outro. No caso de Lúcia, este movimento nos pareceu muito evidente
em relação a seu marido e ao meio.
Certamente, essa luta nutre o sofrimento que lhe trás tristeza, culpa, insegurança e
dúvidas, mas não lhes paralisa. Para nós, Larissa, Gabriela, Júlia, Lúcia, Isabela e as outras
mães que fizeram parte deste estudo sofrem porque estão tentando “desesperadamente” lidar
com muitos vetores que as tencionam em diferentes direções. Assim, se estabelece a tensão
entre o sujeito, que se reafirma em seu espaço, e a subjetividade social, que a pressiona em
um tipo de modelo e de posição com relação a si mesma, que uma entidade semiológica como
DPP, certamente, não consegue abarcar. Entendemos, então, que o sentido subjetivo da
maternidade não está limitado ao espaço simbólico e nem real da maternagem, e sim que está
integrado por sentidos subjetivos gerados em outros núcleos de sentido da vida de cada uma
das mulheres estudadas, os quais se revelam ou se potencializam nas configurações subjetivas
da maternidade, através dos sintomas da DPP.
“Nossas mães” nos mostram que a depressão tem um sujeito concreto, situado
histórica e contextualmente, condições estas fortemente geradoras de sentidos subjetivos para
cada mãe, nas diferentes experiências cotidianas com seus filhos e familiares, que também
estão atravessados por esse espaço histórico-contextual. Portanto, a maternidade é uma s
subjetiva que, como qualquer outra, se constitue de uma multiplicidade de sentidos subjetivos
da história da mulher e do contexto em que ela vive e foi criada (González Rey, 2005b).
Assim, os casos estudados, juntamente com esta posição teórica, serviu para reforçar nossa
crítica ao diagnóstico de DPP padronizado, preferindo falar de uma mulher recém parida em
sofrimento!

9.4. - ZONA D: NÃO BASTA SER PAI, TEM QUE PARTICIPAR!

Esta zona nasceu inspirada na frase de Isabela: ”ser pai não é ser tudo”, e pretende
chamar atenção para a responsabilidade compartilhada frente aos filhos e à família, como uma
das “alternativas” para o conflito e o sofrimento que a mulher contemporânea geralmente
encontra diante da maternidade. Ao levantarmos essa hipótese no âmbito da depressão após
27
Termo sugerido pela Profª Drª Tânia Mara Campos de Almeida, na ocasião de defesa da tese, em 13.12.2005.
136

um parto, deparamo-nos com uma rede múltipla de fatores causais e sentidos subjetivos que
se sobrepõem e se integram na configuração subjetiva da depressão, na qual destacamos o
papel do pai.
Defendemos que o bom exercício da paternidade seja uma das “saídas” para a mãe
deprimida no pós-parto, juntamente com a renúncia à perfeição e a idealização do papel
materno (Dix, 1992), tendo em vista que acreditamos que um dos fatores mantenedores dessa
realidade é a falta de apoio social, sobretudo da falta de apoio e participação do pai do bebê.
Quando a mãe pode contar efetivamente com seu companheiro no pós-parto, dividindo os
cuidados com o bebê e recebendo dele a atenção adequada, as possibilidade dela desenvolver
uma DPP caem drasticamente. Essa correlação foi recentemente contatada no estudo de Cruz,
Simões e Faisal-Cury (2005), que encontrou entre seus resultados que quanto maior a
percepção de suporte social do marido, menor a prevalência de DPP.
Certamente, o nascimento de um filho propicia uma reconfiguração subjetiva não só
da mulher, mas do marido, dos familiares e do meio que os cercam. Algumas atividades e
conceitos que pareciam estáveis se desestabilizam ao entrar em contato com novas
configurações que surgem, ou com a descoberta de outras que já existiam, mas estavam
adormecidas ou se pensavam resolvidas. No entanto, de modo geral, as maiores e mais
significativas alterações ocorrem na vida das mulheres. É delas que se cobra a renúncia, a
responsabilidade, a abdicação, o amor incondicional e disponibilidade total aos filhos. É
principalmente na vida delas que uma revolução se instala após o nascimento do filho. O
mesmo movimento não se observa nem na mesma intensidade, nem na mesma qualidade, na
vida da imensa maioria dos homens.
Na zona de sentido “b”, discutida anteriormente, atentamos para o fato de que nenhum
dos autores consultados fala das renúncias que o pai também deveria implementar em sua
vida, para se tornar um “pai suficientemente bom”. Intriga-nos também constatar que o pai
que não renuncia a si mesmo não é alvo de maiores críticas, nem pelo senso comum e nem
pela ciência, como as mulheres o são. Ao contrário do que pode ocorrer a uma mulher, não
existem maiores sanções sociais para o homem quando se nega a ter filhos ou a cuidar bem
deles, salvo quando ele pode ser preso por não ter pago a pensão alimentícia. Provavelmente,
por isso, o Brasil é, ainda hoje, campeão da paternidade irresponsável!
Isabela é um caso que nos mostra muito bem esta impunidade paterna e a sobrecarga
materna. Ela sente-se crucificada com as atividades diárias que lhes são atribuídas no papel de
dona da casa, mãe e arrimo da família. Sua queixa principal não está direcionada nem às
filhas e nem à maternidade, mas ao desamparo em que se encontra, sobretudo neste momento
do pós-parto, pela ausência do apoio paterno. Isso sugere um indicador de insatisfação pessoal
e opressão pelos múltiplos papéis que lhe foram impostos socialmente, para que ela e suas
filhas tenham chances de sobreviver, evidenciando uma rotina de sacrifício no desempenho
desses papéis, e a falta de participação do pai nestas árduas tarefas. Seria este o lugar da
mulher na pós-modernidade, assumir sozinha seus filhos, sobretudo nas classes sociais mais
baixas, nas quais o fenômeno das família monoparentais, dirigidas pelas mulheres, é ainda
mais forte?
Observamos, no discurso dos companheiros das mulheres por nós estudadas, que eles
também carregam o velho modelo de gênero de séculos atrás. Solicitamos que eles definisse o
que “é ser mãe” e o que “é ser pai”, por meio de associação livre de palavras, e obtivemos as
respostas apresentadas no quadro abaixo:
Nome marido Ser mãe é... Ser pai é.....
Gustavo (marido Larissa) Amor, carinho, troca, doação, Amor, carinho, troca, descoberta,
dificuldade brincadeira
Edgar (marido Lúcia) Amor máximo, companheira, Amigo, companheiro, colega,
paixão, vida, amiga responsabilidade, tudo
Heitor (marido Júlia) Amor, cuidado, carinho, paciência, Apoio, amor, carinho, segurança,
137

compreensão força
Quadro 3: Definição dos maridos sobre os papais maternos e paternos
É interessante notar que à palavra mãe foi primeiramente associada a palavra amor, em
todos os casos, seguidas de carinho, cuidado, paciência, doação, compreensão, demonstrando
uma representação de mãe compatível com o estereótipo idealizado para a maternidade.
Resultado semelhante foi encontrado no estudo de Dias e Lopes (2003) sobre a representação
da maternidade em mães jovens e suas mães. Já quanto ao termo pai, essas mesmas palavras
já não aparecem, ainda que amor e carinho estejam presentes. A função paterna não é
associada à doação, paciência e disponibilidade. Ao contrário, a paternidade aparece mais
associada ao lúdico, a amizade, à troca e ao apoio.
Não há como negar nessas associações a influência dos princípios da família nuclear
burguesa na sua forma de pensar o ser humano e sua estruturação psicológica, extremamente
dependente do amor materno (Durham, 1983), onde se concretiza a posição de gênero, que
temos criticado nesta tese.
Essas constatações nos levam a concluir uma decorrência natural dos modelos
tradicionais de gênero, o homem continua tendo o privilégio do exercício da paternidade
voluntária, enquanto a mulher se submete à maternidade obrigatória, já que elas são definidas
instintivamente como esposa, mãe e filha – ao contrário dos homens, para os quais ser marido,
pai e filho é algo opcional, que apenas acontece em suas vidas. As mulheres são definidas
como seres para os outros, e não seres como os outros, como ocorre com os homens (Chauí,
1894). Diante dessas afirmações é fácil concluir que, se ser mãe é padecer no paraíso, ser pai
é viver no paraíso!
Diante de realidades como as de Isabela e das demais mães de nosso estudo, temos que
concordar com Diniz (1999), quando afirma que a condição feminina é um fator de risco para
sua saúde mental, já que o estresse decorrente dessas inúmeras cobranças e pressões pode
resultar em depressões e outros transtornos. Por isto, não podemos deixar de considerar a
variável gênero em nosso estudo que, de modo geral, é ainda ignorada na pesquisa
psicológica. Na verdade, os autores de pesquisas em gênero e saúde ressaltam a necessidade
de se buscar uma compreensão da interação complexa entre gênero, papéis sexuais e saúde
mental, e destacam a importância do trabalho de pesquisa sobre a relação entre depressão e
fatores como características psicológicas, questões relacionadas com a função reprodutiva,
papéis sociais e circunstâncias de vida das mulheres. (Diniz, 1999).
Nesse sentido, pareceu-nos significativa a frase na qual Gabriela compara a
paternidade à maternidade: “A paternidade... eu acho que deve ser melhor do que a
maternidade”, além da assertiva de Clarisse28em que afirma: “A paternidade... é mais
simples”. Ou seja, a maternidade não é sentida e vivida como algo tão bom quando se
compara com o outro, em especial o pai, provavelmente porque a este não sejam impostas
tantas renúncias quanto à mulher. Todos os outros casos por nós estudados, evidenciam a
parca participação dos pais nos cuidados com seus filhos. Queixas neste sentido, perpassavam
as sessões individuais e de grupo, como pode ser observado no relato de Clarisse: “Depois
que o Henrique nasceu, ele (marido) já não dorme mais no nosso quarto, ele não agüenta o
choro do guri e precisa dormir bem para acordar cedo no outro dia (...) parece que o guri
nem é filho dele”. Em outro momento, ela se queixou: “ele acha que os filhos não dão tanto
trabalho assim...não sabe o que é que eu faço o dia todo. Ele não entende que eu não durmo
direito à noite e que passo o dia todo cuidando do Henrique”.
Infelizmente, temos que admitir que a psicologia não tem contribuído para melhorar
este quadro. A psicologia penalizou demais as mães no passado e isentou os pais. Ela colocou
um papel preponderante na relação mãe e filho. Muitas pesquisas em psicologia reforçam a
idéia de uma responsabilidade exclusiva da relação mãe-bebê para o desenvolvimento
28
O caso de Clarisse não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte de nosso trabalho de campo
138

psicológico da criança. Tudo o que acontecesse, especialmente nos primeiros meses de vida,
era culpa da mãe. Ou seja, ela não podia errar.
O interessante é notar que essas pesquisas possuem a característica comum de
corroborar idéias que a classe dominante deseja difundir para a sociedade. A exemplo disso,
cito um estudo de Kude (1994) que ressalta como as pesquisas em psicologia reforçam a idéia
de uma responsabilidade exclusiva da relação mãe-bebê para o desenvolvimento psicológico
da criança. Segundo esta autora, “o sexismo tem permeado consistentemente a pesquisa e as
teorias psicológicas que abordam o desenvolvimento humano” (p.129). Como conseqüência,
muitos teóricos da psicologia acabam tendo uma atitude acusatória e culpógena em relação à
mulher, acentuando-se a imagem de devoção e de sacrifício que caracterizaria a “boa mãe”,
que se torna, desse modo, o personagem central da família, e eximindo o pai de maiores
responsabilidades.
Este foi, como afirma Trindade (1998), “mais desserviço da psicologia, emprestando
validade científica à culpa feminina.” (p.193). Portanto, não podemos analisar os estudos
feitos, por mais científicos e neutros, que possam parecer, sem analisar o contexto no qual ele
está inserido.
No século XX, sob a influência da psicanálise, também reforçou-se essa imagem
culpógena da mãe ao constatar que a figura materna é essencial para o desenvolvimento dos
filhos e para a construção da personalidade. Mas, do pai não se cobrou igual papel, ressalta
Maldonato (2004, citado por Crescer, 2004 a). Pesquisadores psicanalistas argumentam que
todas as pessoas – homens e mulheres - têm uma base relacional para cuidar de crianças, se
elas mesmas foram cuidadas, por sua capacidade de regredir a sua relação com sua própria
mãe, e se esta teve uma boa qualidade. Contudo, salienta Chodorow (1990), apesar disto, as
mulheres – e não os homens – continuam a ser as maiores responsáveis pelos cuidados para
com os filhos. O que acontece com as capacidades potenciais dos homens de cuidar de uma

criança? Não se observa registro na teoria freudiana e lacaniana, de acordo com Zalcberg
(2003), sobre a necessidade, hoje já reconhecida na literatura sobre psicologia perinatal, de o
pai ser um aliado fundamental para que mãe e bebê concretizem a maternagem; como também
questionamentos sobre a única possibilidade de entrada paterna a partir da mãe.
Badinter (1985) também critica o discurso psicanalítico por colocar a mãe como
personagem central na vida dos filhos e por reforçar a tendência de responsabilizar a mãe
pelas dificuldades e problemas que surgem neles: “ Da responsabilidade à culpa foi apenas
um passo, rapidamente dado ao aparecimento da menor dificuldade infantil” (Badinter, 1985,
p.238). Embora na teoria psicanalítica não haja afirmação de que a mãe é a única responsável
pelo inconsciente do filho, não deixa de ser verdade que ela é considerada causa quase que
imediata, senão primeira, do equilíbrio psíquico da criança e de seu futuro subjetivo. A
máxima “A culpa é da mãe...”, nascida principalmente deste olhar psicanalítico se
disseminou. Em casos de comprometimentos emocionais da criança, apressa-se logo em
levantar hipóteses sobre esta mãe, tida, ao mesmo tempo, como “malvada”, “desnaturada” e
“doente” (Badinter, 1985).
Concluímos, então, que a psicanálise deixou uma marca real e pesada no inconsciente
da mulher, pois reforçou a idéia de que pesa unicamente sobre a mãe/a mulher a culpa em
casos inclusive, em que há ineficiência paterna. Ou seja, a psicanálise tem contribuído
fortemente para repassar a ideologia dominante da maternidade exclusivamente feminina
(Chodorow, 1990). Por essa razão, nos utilizamos das palavras de Montgomery (1998) para
expressar nosso posicionamento sobre estas teorizações: “como grande parte dos psicanalistas
interpreta a psicanálise com referenciais profundamente machistas, não aceito esta última
hipótese como verdadeira” (p. 60), referindo-se a teoria da inveja do pênis.
139

Este quadro começou a mudar quando Winnicott e outros da psicologia genética


disseram que a mãe tem que ser só “suficientemente boa” e não “completamente boa”. Isso
significa acolher a criança, proteger e estimular o seu crescimento – mas sem precisar ser
perfeita. Ainda que alguns autores psicanalistas como Winnicott (1971/2002) façam questão
de relativizar a idéia de culpa em sua obra, ao afirmar: “ É necessário que sejamos capazes de
dizer: houve aqui, uma falha do fator “mãe dedicada comum”, e fazê-lo sem culpar quem quer
que seja. De minha parte, não tenho qualquer interesse em distribuir a culpa.” (p.6), percebe-
se que essa mudança aconteceu apenas do ponto de vista teórico. Na pratica, continuamos a
observar psicólogos e psicanalistas que mantém um discursos e uma postura de penalizar as
mães até os dias de hoje.
Nesse contexto, é importante verificar a posição do cônjuge, afinal, diz Parker (1997),
não obstante o parceiro compartilhar ou não as tarefas práticas de cuidar das crianças, a
atitude que ele mantém face à maternidade de uma mulher a afeta poderosamente. Sendo
assim, nos casos estudados, fica evidente que a maternidade e o sofrimento expresso pela
depressão são permeados pelo modelo de mãe tradicional e romanceado e pelas cobranças
inerentes a ele, bem como pelo modelo clássico de pai exclusivamente provedor. Por isso,
acredito que seria importante repensar esses modelos inatos e exclusivos, e abrir espaço para
pensá-los enquanto algo que se constrói a partir da história da mulher, do homem e da relação
mãe-pai-bebê.
Forna (1999) propõe, e concordamos absolutamente com ela, que maternagem não seja
exclusiva da mãe, mas inclua outras pessoas, sobretudo o pai, pois, somente assim, a mulher
pode se envolver em todos os seus papéis, sem colocar suas necessidades e interesses em
conflito com a função parental. Nesse sentido, destacamos o relato de Marta, ao se referir à
difícil arte de conciliar a maternidade e as outras atividades: “Difícil é ter que ser uma boa
mãe e ter que fazer todas as outras coisas quando não se pode contar com outras pessoas”.
Felizmente, Castells (1999) alerta que essa demanda pela relativização do ideal
materno e pela inclusão do pai se transformou numa necessidade proeminente: o mundo pós-
patriarcal demanda por personalidades mais flexíveis. Castells (1999) defende que a
possibilidade de se reconstruírem famílias heterossexuais viáveis no futuro está na subversão
do gênero pela revolução da paternidade. Ou seja, as novas gerações devem ser socializadas
fora do padrão tradicional da família patriarcal e expostas, já na infância, a novos papéis
exercidos pelos adultos. Assim, tanto meninas como meninos vão observando a necessidade
de renegociação do contrato da família moderna, o qual implica em compartilhar o trabalho
doméstico, parceria econômica e sexual e acima de tudo responsabilidade pelos filhos
totalmente compartilhada.
Forna (1999) ressalta que em certos lugares do mundo a maternidade foi construída
deste modo diferente. Há lugares onde a mãe não é a única responsável pelos filhos e ninguém
espera que ela seja; onde o homem se envolve muito com a vida dos filhos, onde para mulher
não há conflito entre ter filhos e trabalhar, onde a mãe não é levada a se sentir culpada por
suas escolhas pessoais. Isso sim, me parece um paraíso!
Acontece, porém, que infelizmente na nossa sociedade este modelo compartilhado é
uma realidade ainda distante, não somente por causa dos homens, mas também por causa das
mulheres, visto que a grande maioria delas ainda cai nas “ciladas de raciocínio”, descritas por
Ehrhardt (1996), como a que rege que um bom comportamento a longo prazo compensa um
benefício imediato. Por exemplo, acreditam que deixando de se queixar ao marido para evitar
uma discussão, e assim correr o risco de serem abandonadas, compensa aceitar a falta de
disposição do companheiro para dividir os cuidados com os filhos, como fazem a maioria das
mães que participaram de nosso estudo, ainda que em graus diferenciados. Acreditam que
não devem incomodar seus maridos com suas tristezas, nem com as inúmeras demandas de
seus filhos para manterem seus casamentos. Há um terrível medo de “comprar” conflitos,
140

afinal, mulheres “mal-comportadas” não só terão que assumir sozinhas a responsabilidade de


seus atos, como também podem ser mal-amadas, malquistas e por fim, abandonadas.
Além dos casos de Lúcia e Gabriela, temos um ótimo exemplo dessa zona de sentido
também no caso de Kátia29. Ela faz questão de mostrar que os conflitos conjugais são de sua
responsabilidade, pois esta não se comporta bem, não trabalha e ainda faz cobranças ao
marido: “Todo santo dia a gente brigava. Aí eu percebia que tinha alguma coisa errada
comigo porque eu brigava, brigava com ele e depois me arrependia.”. O que mais lhe
importava era poupá-lo para não perdê-lo, não importando o “preço” que devia pagar por isto,
como fica evidente no seguinte diálogo: “Kátia: “Eu não consigo chatear ele.” Alessandra:
“E poupa ele?” Kátia: “E poupo.” Alessandra: “Quem é que poupa você?” Kátia:
(silencio)”. Por temer que o marido a abandone por causa de sua tristeza, costumava chorar
escondida e não falar do que estava sentindo para ele. Assim, como Lúcia, contou que
algumas vezes chegou a se trancar no banheiro para chorar, com o bebê nos braços, para que
seu marido não percebesse sua tristeza e desespero, temendo que ele não suportasse a sua
lamentação e a abandonasse juntamente com suas filhas: “Eu tenho medo de envolver ele por
causa da reação dele, de como ele vai se comportar, se ele ainda vai gostar de mim, apesar
de tudo o que eu tô sentindo.” (...): “Eu tenho tanto medo de perder ele... que eu nem
comento”.
Por isso, não devemos estranhar que as mães precisem de um apoio afetivo e de serem
elas mesmas "maternadas" pelos outros, sem que por isso sejam acusadas de imaturas e
incompetentes. Um companheiro presente e uma família e amigos que lhe ofereçam um bom
suporte permite que a mãe exerça suas funções de forma mais prazerosa e tranqüila para com
seu bebê, evitando assim a ocorrência dos agentes mais complicadores e prejudiciais à relação
mãe-bebê, como a DPP.
Um bom exemplo disso, foi encontrado pela psicóloga Fátima Bortoletti. Ela
constatou que após incluir a participação das avós no trabalho de pré-natal psicológico, que
desenvolve há mais de 10 anos em São Paulo, reduziu em até 80% o número de pacientes com
depressão pós–parto (Crescer, 2003). A pesquisa de Cruz, Simões e Faisal-Cury (2005),
também confirma a importância da rede de apoio familiar pois, seus resultados revelaram que
quanto maior a percepção de suporte social do marido, menor a prevalência de DPP. Nossas
mães-participantes nos alertaram neste sentido, pois algumas delas, como Kátia30, tem essa
noção, e não atribuem aos filhos a causa de seu sofrimento atual, mas a falta de apoio ou a
pressão social e familiar: “Eu acho que a culpa não é dos bebê a culpa é dos outros. Eu acho
que é os maridos, avós, sobrinhos, tios e não os bebês”.
Temos que reconhecer, porém, que às dificuldades dos pais saírem de seu papel
tradicional de provedor, somam-se muitas vezes a resistência das mulheres à participação dos
companheiros nos cuidados com o bebê. Acreditamos que essa resistência feminina se dá,
pelo fato das mulheres ainda temerem perder o domínio do espaço doméstico, para o qual
foram secularmente designadas e por onde transitam com mais propriedade - ainda que a
custas de muita opressão. Muitas mulheres chegam a rivalizar ferozmente com aqueles
homens que ousam invadir o “universo feminino”, desqualificam suas iniciativas de cozinhar,
cuidar dos filhos e da casa, ou sentem-se desqualificadas se seus homens exercem essas
atividades tão bem ou melhor que elas. Entende-se com isso que a maternidade exclusiva
também dá poder à mulher. Muitas mulheres não querem abrir mão desse lugar de controle.
Assim, a maternidade exclusiva e tradicional colabora para a manutenção da
marginalização do pai: “em nossa cultura o pai é um excluído” reclama Montgomery (1998,
p.77). Infelizmente, ainda são raras as mulheres que se sentem à vontade ou sabem apreciar

29
O caso de Kátia não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte do nosso trabalho de campo
30
O caso de Kátia não foi apresentado nesta tese, mas ela fez parte do nosso trabalho de campo.
141

este novo tipo de homem a seu lado. Mesmo assim, continuamos apostando que aos poucos, a
à medida que os papéis/funções tradicionais sejam questionados e desmistificados, uma
maternidade inclusiva possa se viável, pois por outro lado, é interessante notar que foi
justamente pelo grande envolvimento das mulheres no campo profissional e o novo papel
social do trabalho feminino, dentre outros fatores socio-econômicos, que vêm se abrindo
novos espaços para a participação dos pais no cuidado para com seus filhos (Nolasco, 1985).
Assim, os homens vêm sendo instigados a ter uma participação mais efetiva, muitas vezes
chegando a optar por cuidar dos filhos enquanto a mulher está no trabalho (Época, 2003).
Dessa forma, os pais estariam mais ativos e exercendo influência direta sobre o
desenvolvimento de seus filhos (Piccini, Silvia, Lopes, Gonçalves & Tudge, 2004).

9.4.1. O novo pai


A visão de pai somente como provedor vem mudando com o passar dos anos, ainda
que lentamente. Há indícios de que essa imagem em transformação por convergência de
vários e importantes fatores culturais, explica Montgomery (1998). Entre eles, destacamos: a
aceitação de estudos, inclusive psicanalíticos, sobre o reconhecimento da importância
emocional da paternidade na formação dos filhos; as mudanças da estrutura familiar em curso
na sociedade e as mudanças na definição cultural da masculinidade, muito bem discutidos por
Nolasco (1985) e Montgomery (1998). Segundo esses autores, os homens estão querendo
cada vez mais participar do nascimento e criação dos filhos e afastar o fantasma do pai
ausente. Este é um desafio que muitos homens estão assumindo com muito prazer, pelo
simples fato de poderem acompanhar de perto o crescimentos de seus filhos, realidade
impensável há três décadas atrás (Época, 2003).
De fato, o estereótipo do pai como incompetente e desinteressado em relação aos
cuidados com o bebê não vem sendo confirmado por estudos recentes. Chodorow (1990)
apresenta dados de um estudo que mostra que tanto homens como mulheres podem ocupar-se
em proporcionar cuidados paternos e maternos. Esta autora buscou questionar por que
somente as mulheres devem maternar. Para ela a base biológica para explicar esta dominância
dos cuidados maternos não se sustenta. Nesta perspectiva, Ehrhardt (1996) afirma que o
máximo que podemos concluir é que, entre os mamíferos, em geral, a mãe biológica é “mais
atenta” à sua prole.
Outros estudos, como os de Lamour e Barraco (1998 citado por Andrade, 2002)
enfatizam as profundas transformações pelas quais os pais têm passado. Sabe-se que o pai
pode vivenciar emoções de extrema importância parecidas com as da mãe, desde a gravidez,
como os primeiros movimentos do bebê, pois a partir desse instante que ele começa a sentir
que seu filho está vivo e é real. A pesquisa de Piccini, Silvia, Lopes, Gonçalves e Tudge
(2004), que investigou o envolvimento paterno durante a gestação, também apontou para
mudanças significativas na paternidade, ao indicar que a maioria dos pais estudados
mostraram-se emocionalmente conectados à gestante e ao bebê e estiveram envolvidos de
diversas maneiras com a gestação de suas companheiras. Apesar de alguns pais ainda
apresentarem-se com uma baixa ligação emocional com o filho e com a gestação, o estudo
concluiu que há uma modificação quanto a paternidade já no período da gestação, a qual se
encontra cada vez menos restrita ao universo feminino.
Atualmente, sabe-se que o pai tem um importante papel em relação aos cuidados
dispensados ao bebê, assim como no plano emocional e de relação. Dia-a-dia, a participação
paterna em todo este processo gestacional vai ganhando especial reconhecimento. O pai pode
chegar a desenvolver a síndrome de couvade, apresentando sintomas físicos e psicológicos
semelhantes e concomitantes aos da mulher gestante: crises de vômito, náuseas, aumento de
peso, palpitações, dentre outros durante a gestação (Piccini, Silvia, Lopes, Gonçalves &
142

Tudge, 2004). Pode também apresentar depressões pós-parto ou pós-parto blues (Lamour e
Barraco, 1998 citado por Andrade, 2002).
Muitos maridos-pais, sobretudo aqueles de classes mais favorecidas, participam das
consultas pré-natais, assistem aos cursos preparatórios, recebem instruções relativos ao parto e
à lactação, e acompanham suas esposas durante o parto (Montgomery, 1998). Essas mudanças
atitudinais também foram constatadas por Batista e Leite (2004). Eles realizaram um estudo
que investigou a importância do pai participar do momento parto para a construção da
parentalidade. Os resultados demonstraram que o vínculo entre pais e filho(a) fica mais forte e
isso termina por influenciar positivamente a relação do casal, fortalecendo assim os laços
familiares.
A título de ilustração, deste movimento participativo, retomamos o caso de Larissa,
que em uma das sessões chegou com a seguinte reflexão: “Uma coisa que eu gosto, que é
legal, é que a maternidade desperta a paternidade também (...) é muito legal ver ele (marido)
nesse papel também de estar com ela de cuidar dela (da filha). E eu acho assim que a
paternidade responsável é também a minha maternidade”. Aos poucos, Larissa foi se
posicionando e foi mais ouvida por seu marido, que passou a apoiá-la em seu desejo de
continuar seus estudos e sua carreira.
Na penúltima sessão do grupo, ela nos contou: “Minha vontade era de estudar.... eu
não sei porque, mas eu preciso estar estudando no meio de professores e eu conversei isso
como meu marido. Aí agora surgiu uma oportunidade de ter um horário, de negociar com ele
um horário. E dele sentir mais segurança, de ficar com a Manuela (bebê)... A primeira aula
foi semana passada. Aí chegou uma hora que ela percebeu que eu ia sair, e ela começou a
chorar e ele pediu para eu ficar mais um pouquinho e dar a comida para ela. E eu respondi
que ele sabia que eu tinha que sair e disse que qualquer coisa ele me ligava.. Ele segurou as
pontas... No intervalo, eu liguei e ficou tudo bem, mas isso é tudo depois de um tempo, né?
Agora dá para negociar”. Em função de estórias como estas, entendemos que a paternidade e
maternidade são processos complementares que se desenvolvem na estrutura familiar para
resguardar o desenvolvimento físico e afetivo da criança. O interessante é que esta postura
participativa independe do pai ser separado ou não (Época, 2003).
Devemos reconhecer que o pai tem um papel fundamental na educação dos filhos. O
vigor e a segurança desse papel criam a imagem paterna, que se converte num elo permanente
para o desenvolvimento da criança. A atitude emocional do pai na tríade familiar é
significativa desde o momento da concepção, afirmam Montgomery (1998) e Batista e Leite
(2004). Para estes autores, as manifestações das boas identificações da genuína qualidade
parental podem se iniciar no momento do parto, por meio da troca de olhares entre o pai e o
recém-nascido, com o primeiro sorriso que o pai dirige para o seu bebê, ao embalá-lo com
segurança e amor, ao dar-lhe banho ou mamadeira, estabelecendo desde cedo laços afetivos.
Concluímos que, apesar do crescente questionamento sobre o amor materno
incondicional e inato, a visão da mãe ideal, responsável pelo bem-estar psicológico e
emocional da família, ainda é bastante presente na literatura e no senso comum (Badinter,
1985; Serrurier, 1993; Forna, 1999; Falke & Wagner, 2000). Porém, as famílias mudaram e
estão transformando a tradicional figura paterna, e os pais podem e devem assumir lugares
mais prazerosos junto aos filhos e à família. Os mais recentes estudos (Montgomery,1998;
Batista & Leite, 2004; Piccini, Silvia, Lopes, Gonçalves & Tudge, 2004), ressaltam que a
presença física, emocional e espiritual dos pais, assim como das mães, é fundamental para
estruturar a afetividade da criança e prover um bom desenvolvimento dos filhos. Os homens
são perfeitamente capazes de cuidar de seus filhos, de casa, de sua esposa, precisamos
acreditar nesse potencial masculino!
Não obstante, é necessário esclarecer que as mudanças na categoria de gênero
precisam ser amplamente implementadas, para que este “novo” pai possa “aparecer” e “se
143

estabelecer”, para o bem de todos: mães, pais e bebês. Mas, para que isso aconteça de fato,
defendemos que se faz imperiosa uma ação preventiva junto às gestantes e puérperas e casais,
desconstruindo a idéia de maternidade natural e instintiva ao enfatizar o caráter processual e
constitutivo da maternidade, no sentido de alertá-las que a maternagem deve ser aprendida e
construída na história da mulher, do casal e na sua relação com seu filho. Afinal, a
paternidade, assim como a maternidade, são construídas socialmente!
144

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo não é chegar a uma verdade final,
mas sim produzir conhecimento e levantar indagações
sobre o assunto estudado.
González Rey

A produção de uma conclusão é comum à finalização de todos os escritos, mas no


nosso caso, esta seção não tem por objetivo colocar um marco definitivo no trânsito sobre o
problema estudado. Ao contrário disso, reconhecemos que há ainda muitas lacunas e pontos a
serem explorados e compreendidos nesta temática tão complexa, que nos permite apenas
apontar hipóteses, dúvidas e questionamentos a respeito da maternidade e da mãe com DPP, e
não apresentar soluções para esta problemática.
Os casos estudados no presente trabalho nos permitiram tecer um conjunto de
reflexões em relação às configurações subjetivas da DPP. Essas reflexões resultam do
emprego da teoria da subjetividade, da espistemologia qualitativa e da teoria de gênero, nas
construções sobre o momento empírico, a partir dos recursos de acesso à subjetividade das
mães-participantes. Estamos cientes de que a construção de uma tese sobre a maternidade e a
DPP, sob estas perspectivas, necessita de certa dose de ousadia, mas também de humildade.
Em primeiro lugar, porque a DPP se apresenta como fenômeno plural,
multideterminado e que dificilmente permitirá captar-se na sua totalidade. Em segundo lugar,
porque demanda uma profunda revisão de valores e parâmetros socialmente e cientificamente
estabelecidos, há muito tempo. Para realizar este trabalho, foi necessária uma revolução
paradigmática em meus conceitos, valores e “certezas”, que implicaram na mudança radical
dos paradigmas da simplicidade e da linearidade para o da complexidade; do paradigma da
naturalização para a categoria de gênero construída sócio-históricamente. Isso demandou uma
luta interna e externa e muita determinação de minha parte e apoio de meu orientador.
A Teoria da Subjetividade de González Rey (2005) é reconhecida por seus mais
profundos estudiosos, como Martínez (2005), como uma teoria de difícil compreensão e
utilização., porque implica num esforço adicional para acompanhar a sua postura subversiva
em relação ao paradigma da ciência clássica. É imperiosa toda uma reavaliação e
redimensionamento epistemológico e metodológico, para não dizer uma ruptura com as
formas tradicionais de se fazer ciência em psicologia, que pressupõe um massiço trabalho
cognitivo e emocional, na tentativa de nos livrarmos dos fantasmas do positivismo, do
reducionismo e da simplificação.
Foi um grande desafio propor-me a trabalhar com a Epistemologia Qualitativa de
González Rey, pois é preciso aprender a lidar com o caráter processual do conhecimento que
implica em voltas, reviravoltas num constante caminhar “indo e vindo’, por uma estrada onde
há buracos inerentes, muitos caminhos e possibilidades de atalhos. É necessário inspirar-se no
seu idealizador, buscando a mesma postura criativa, questionadora, persistente, aberta e de
confrontação. Enfim, são muitas habilidades que em um projeto de doutorado, após toda uma
formação clássica, apenas tem condições de serem apontadas. Muitos anos de estudo e
pesquisa ainda serão necessários para a sua devida apropriação. Portanto, não tenho a
pretensão de afirmar que consegui chegar a este nível, mas não me faltou perseverança neste
sentido.
González Rey (2002) coloca o pesquisador no meio da cena investigada, participando
dela e tomando partido na trama da peça. Propõe que a produção do conhecimento na
pesquisa qualitativa envolva o pesquisador com seus ideais, preferências e estilo pessoal. Este
posicionamento do pesquisador está de acordo com Lüdke e André (1986), ao nos lembrar
que, sendo uma atividade humana e social, a pesquisa traz consigo, inevitavelmente, a carga
de valores e preferências, interesses e princípios que orientam o pesquisador. E esse é
145

membro de uma determinada época histórica e de uma sociedade específica que irão se
refletir na sua investigação. Não há portanto, como estabelecer uma separação asséptica entre
o pesquisador, seu objeto de estudo e as construções que ele vai elaborar. Estou certa de que
foi graças a essa concepção, foi viável a minha participação nesta investigação no papel de
pesquisadora.
Quanto mais eu lia e ouvia sobre a maternidade, mais tinha certeza de que “algo”
estava muito “errado” na forma de vivenciá-la e compreendê-la. Aos poucos fui descobrindo
que esse “algo” estaria mais relacionado a questões culturais, históricas, antropológicas,
sociais do que restrito a questões psicodinâmicas da mulher. Percebi ao longo desta pesquisa
que o mundo interno da mulher, sua estrutura emocional e sua personalidade, acabam sendo
muito mais influenciados pelo mundo externo do que nós mulheres supomos. Por fim, entendi
que a organização e a processualidade do sistema feminino e materno tencionam-se
reciprocamente, sendo cada um desses parte da qualidade do outro, tendo como cenário a
cultura e o momento histórico em que se dão.
Por isso, o encontro com as teorias do gênero e da subjetividade foram o respaldo de
que eu precisava para abrir novos caminhos e construir novas hipóteses ao longo do
desenvolvimento desta investigação. Essa descoberta, também contribuiu para
compreendermos que existe uma falsa universalidade do argumento psicanalítico de que o
tipo de cuidado seja exclusivamente da mãe, dispensando a sua atribuição e contribuição em
desenvolver outros papéis dentro da sociedade.
Tendo vivido recentemente o grande encontro com a maternidade, minha escolha
metodológica e epistemológica só poderia ser pela Epistemologia Qualitativa. Somente este
parâmetro, não só permitiria, mas até incentivaria, “usar” livremente a minha experiência
subjetiva maternal para construir um estudo científico. Seria impossível me abster de toda
essa vivência para poder conhecer e estudar as mães com DPP, como seria recomendado
numa postura mais clássica. Aliás, como fiz questão de expor neste trabalho, foi justamente
por causa desta experiência tão marcante na minha vida, que nasceu o interesse de realizar um
estudo sobre essa temática.
Por essa razão, sinto-me muito confortável e segura com minha escolha metodológica,
pois a epistemologia qualitativa defende que o caminho percorrido pelo pesquisador, na esfera
pessoal e profissional, abre espaço para a sua aproximação com a realidade, pois esse, como
ser de história única e detentor de uma subjetividade, constitui-se como sujeito ímpar na
redefinição de proposições e na visão de novas possibilidades a serem construídas e
transformadas. Assim, assumo meu lugar de sujeito da emoção junto às mães estudadas, não
só durante o acompanhamento do processo terapêutico, mas também no próprio relato desta
investigação, aqui materializada em primeira pessoa.
Encontrava-me, e confesso que ainda me encontro, absolutamente absorta pelo tema
da maternidade. Tinha basicamente as mesmas questões das mães que eu atendia no grupo.
Por isso, tenho consciência de que muitas das discussões realizadas ao longo deste trabalho
foram iniciadas ou inflamadas por uma motivação pessoal, que em muitas vezes, teve
respaldo e eco nos relatos das participantes. A identificação não acontecia apenas entre elas,
mas também entre mim e elas.
A abordagem da epistemologia qualitativa permite a eclosão de uma grande
diversidade de entidades e ocorrências psicológicas que facilitam o desenvolvimento da
pesquisa por enfatizar os processos de construção sobre os de respostas, os quais se
transformam em informações valiosas na construção de um conhecimento mais rico e
complexo. Assim, a escolha por este marco epistemológico para o delineamento da minha
pesquisa apoiou-se na possibilidade de construir novas “zonas de sentido” para o
conhecimento sobre a mãe com DPP, o qual perderia a riqueza de significações se
desenvolvido pelas vias tradicionais de pesquisa. Ademais, o desenvolvimento de formas
146

alternativas de produzir conhecimento representa um avanço na constituição da Psicologia


como ciência, que era um dos nossos objetivos específicos: apresentar uma alternativa
teórico-metodológica para a compreensão e estudo da DPP; o qual acreditamos ter sido
satisfatoriamente atendido.
Com base nos preceitos teóricos de González Rey, pensamos que o impacto de uma
conjuntura - o período do pós-parto - ou de um acontecimento concreto - como o nascimento
de um filho - sobre a psiqué da mãe é inseparável tanto do contexto da subjetividade social
em que tal acontecimento se produz - que é perpassado pelo mito da maternidade instintiva e
exclusiva - quanto dos recursos subjetivos que a mãe possui para se relacionar com ele, que
depende de sua configuração subjetiva singular. Uma constelação nuclear de diversas forças
dinâmicas ocorrendo em uma combinação particular se apresenta nas configurações
subjetivas da DPP. Assim, o modelo conceitual que organizamos a partir do estudo dos casos
aqui analisados nos permite representar a DPP como configurações de sentidos subjetivos
muito diversos, que estão associados à história de vida da mulher, do contexto atual que a
cerca e da cultura dentro da qual se desenvolve, o que satisfez o nosso objetivo geral de
compreender as configurações subjetivas que estão na base da DPP em mães com este
diagnóstico.
Observando a história pregressa e atual das mães participantes deste estudo, é fácil
encontrar em suas configurações de sentido subjetivo indicadores de sentimentos de menos-
valia, dificuldade de relacionamento com seus genitores, problemas conjugais, opressão,
isolamento social, desesperança, tristeza, culpa, conflitos para conciliar a vida profissional,
falta de apoio social e, principalmente, a ruptura de expectativas e a idealização da
maternidade. Esses elementos, que vão se integrando à história da mãe, à sua identidade e
subjetividade, tendem a convergir com toda a força neste momento tão complexo que é o
nascimento de um filho. Parece que nenhum outro evento é capaz de requisitar a eficiência de
tantos recursos, internos e externos, ao mesmo tempo, de uma só pessoa.
A pressão social sobre a mãe, sobretudo nos dias atuais, em que a mulher acumula
várias outras funções, faz com que esta não se sinta autêntica e sinta-se incapaz, “defeituosa”
e incompetente para ser mãe; levando-a muitas vezes à depressão. Esses elementos
apareceram como atributos relacionados à subjetividade social dominante sobre a mulher e a
maternidade e, em vários casos, estavam associados a “clichês sociais” que têm acompanhado
as mulheres nos últimos séculos, como: “ser mãe é padecer no paraíso”, “toda mulher nasceu
para ser mãe”, “toda mãe tem uma predisposição inata ao sacrifício”. Esses sentidos, em um
imaginário de valores, “aprisiona” as mulheres em uma posição volitiva em serem “as mães
perfeitas”.
Isto posto, procuramos levantar uma discussão sobre os fatores socioculturais,
históricos, bem como sobre os eventos pessoais, subjetivos, de valor potencialmente crítico
que se integram como indicadores que contribuíram para o aparecimento e manutenção da
DPP em todos os casos por nós estudados. Nesta investigação, analisamos casos nos quais as
configurações subjetivas seriam impossíveis de serem compreendidas a partir de cada um de
seus elementos integrantes. Por exemplo, para algumas de nossas mães-participantes, como
nos caso de Larissa, a profissão/trabalho constituía uma configuração subjetiva relevante, a
ponto de poder ser considerada uma tendência orientadora da sua personalidade. Nesta
configuração, articulavam-se também o modelo que a sua mãe representa para ela, o vínculo
afetivo com ela, o modelo de conjugalidade, o vínculo com seu marido, necessidades diversas
de realização, de independência, de identidade, elementos da subjetividade social
característica do espaço social e da época em que se desenvolveu – a qual valoriza a profissão
da mulher – vivências emocionais de sucesso obtidas a partir da sua ação profissional bem–
sucedida, entre outros muitos elementos.
147

Ou seja, se tivéssemos nos mantidos restritos apenas a verificar a qualidade da relação


mãe-bebê, ou aos embates entre o bebê imaginário e o bebê real, como é comum aos estudos
psicológicos da área (Sales, 2000; Camarotti, 2001; Catão, 2002; Ribeiro, 2002; Andrade
2002), certamente não teríamos chegado às configurações subjetivas da DPP. E, o que é pior,
talvez tivéssemos reforçado a concepção patológica e padronizada do fenômeno.
Ao contrário disso, por meio desta investigação foi possível compreender que as
configurações subjetivas da DPP não estão limitadas aos espaços simbólicos e reais da
maternidade per si, mas está alimentada por outros núcleos de sentido subjetivos da vida da
mulher. Ou seja, a DPP tem configurações subjetivas que, como qualquer outra configuração
humana, se constitue de uma multiplicidade de sentidos altamente subjetivos da história do
sujeito e do contexto em que se desenvolveu. Por essa razão, este estudo serviu para reforçar
nossa crítica a padronização e patologização da DPP, e desta forma, contribuir para a
compreensão dessa mulher que sofre diante da maternidade.
Outro importante aspecto desse estudo foi o fato de ele ter dado voz às mulheres. Ele
permitiu construirmos um conhecimento a partir do que elas mesmas pensam e sentem.
Acredito que esse é um dos principais fatores para que a situação da mulher seja vista como
ela realmente é; e para que possamos mudar essa realidade. Notamos nas mães estudadas uma
confrontação não explícita e implícita com os valores sociais dominantes. Esse confronto se
expressa na falência de referências associadas aos clichês sobre a maternidade, sobre o papel
de esposa e sobre a imagem da mulher, gerando rupturas simbólicas que alimentam o
sofrimento atual apresentado por elas. Então, ao nosso ver, a DPP é um tipo de luta frente à
imposição que o mito da maternidade exclusiva ainda hoje impõe.
Baseado nessa premissa nosso estudo, procurou alertar para o paradoxo em que
maternidade atual é vivida: as mães que estão parindo na contemporaneidade vivem a luta de
tentar encaixar a maternidade em suas vidas, e não o inverso. Nossos interesses são variados e
não se resumem mais aos filhos. Somos de uma geração que não quer perder conquistas. Ter
um filho deveria ser algo que não nos reduz, mas, sim, nos completa, nos acrescenta.
Tentamos mostrar uma nova mãe, fora do estereótipo da perfeita, que aliás não existe.
Tentamos ressaltar que, antes de tudo, nós mães somos seres humanos que têm sono, raiva,
desejos e dúvidas.
É necessário esclarecer que, embora coexista a ambivalência materna, materializada
pela rejeição, pelos impulsos agressivos e pela tristeza, fenômenos amplamente observados
nos discursos femininos da pós-modernidade, não se pode universalizar estas configurações a
ponto de considerá-la como sinônimo de maternidade na atualidade. Essa é uma questão
significativa para ser refletida, pois caso contrário, corremos o risco de abordar a maternidade
de maneira semelhante a que tanto criticamos – aquela onde se nega a ambivalência, a tristeza
e a rejeição. Assim, incorreríamos na mesma falha: criar uma padronização e uma
generalização que se aplicariam a todas as mulheres - a experiência obscura da maternidade,
impondo dessa forma, um único tipo de discurso e o atribuindo a todas as mulheres de um
conjunto social.
Portanto, as considerações que temos feito ao longo desta tese não são passíveis de
generalizações (nem era essa a nossa intenção!) para todo o universo feminino. Estamos
falando sobretudo da mulher proveniente da família burguesa caracterizada pela ênfase na
privacidade, no mito do amor materno e na super valorização da criança (Durham, 1983).
Não obstante, tal concepção se estendeu aos diferentes agrupamentos sociais, tendo um lugar
no imaginário social; por isso, é importante reconhecer que existem diferenças significativas
na forma como as relações humanas se constróem e se estabelecem nos diversos grupos
sociais, por isso os casos de Isabela e Lúcia se tornaram muito valiosos, pois nos permitiram
ampliar as nossas hipóteses e construções sobre nossa temática. Afinal, como nos diz Scott
148

(1995), homens e mulheres reais não cumprem sempre, nem literalmente, as prescrições de
sua sociedade ou de suas categorias analíticas.
Sob esta ótica, é tão importante examinar e compreender as formas pelas quais as
identidades generificadas são construídas e relacionar seus elementos com toda uma série de
sentidos subjetivos que se sobrepõem e se entrelaçam nas atividades, nas organizações e
representações sociais historicamente específicas. Foi justamente o que procuramos fazer
nesta pesquisa.
Por isso, apostamos na qualidade do processo de construção teórica por nós
desenvolvido, na esperança de que possam auxiliar futuras investigações e intervenções.
Especialmente porque, consideramos que os objetivos propostos para esta investigação foram
atingidos uma vez que, os recursos para acessar a subjetividade foram realizados e analisados
sob uma ótica complexa e abrangente, no que se refere aos aspectos construídos na vivência
da dor, do sofrimento e da depressão no pós-parto. Ademais, eles nos permitiram observar a
necessidade “política” e científica de trabalhar a desmitificação da maternidade inata e
exclusiva, para melhor qualidade de vida das mães, pais e seus bebês. Neste sentido, nos
identificamos totalmente com Rubem Alves, quando ele afirma: “todo ato de pesquisa é um
ato político” (1984, citado por Lüdke & André, 1986, p. 5).
Para o estudo de um tema tão polêmico, de implicações políticas e que necessita de um
posicionamento explícito do pesquisador, essa metodologia não só é benéfica como
necessária. Isso porque, diferente de outros métodos, a epistemologia qualitativa permite esse
posicionamento, além de incluir em suas análises as percepções e história de vida do
pesquisador. Entendo que desconsiderar que essa pesquisadora é uma mulher e mãe
pesquisando sobre a própria mulher e maternidade seria desconsiderar as implicações pessoais
subjacentes que afetam nas interpretações e no estudo da maternidade; empobrecendo assim, a
pesquisa.
Afirmo meu contentamento em poder registrar este momento histórico e por meio
desta investigação tendo a oportunidade de ampliar meus horizontes teóricos, epistemológicos
e metodológicos, e transcender a lógica dualista que oculta os interesses políticos e
dominantes, os quais reduzem, aprisionam e sufocam homens e mulheres. Hoje compreendo
que o amor é um sentimento que se constrói. E a construção acontece a cada dia. A cada
contato. Não deve ser vivido como uma obrigação, nem mesmo por aquela pessoa de quem se
fala que deve haver “amor incondicional”. Mais ainda, acredito que este amor se fortaleça
principalmente ancorado na espontaneidade.
Vale ressaltar, como nos diz Serrurier (1993) e Rohenkohl (2005), que nunca é tarde
para que uma mulher se questione: por que eu quis filhos? É preciso que as mulheres saibam
até onde podem ir, conheçam o seu desejo por filhos, distinto da demanda criada socialmente,
para que possam construir com eles uma relação sincera, ancorada na verdade de seus
sentimentos. De acordo com Serrurier (1993), a mulher deve reconhecer os seus limites como
mãe, além de considerar que seus desejos também podem ser outros, que não os filhos.
É certo que quebrar paradigmas é um trabalho árduo e muito longo, mas acredito que
nós, mulheres, através do conhecimento, podemos realizar essa mudança. É por esse
conhecimento ter um papel central na desmistificação de conceitos aparentemente ‘naturais’ e
ser capaz de produzir mudanças na esfera cultural e social que o presente estudo se faz
importante. Por intermédio do esclarecimento, seja ele feito através de educação formal ou de
conversas informais, a mulher se sente capaz de construir sua maneira singular de viver,
podendo, assim, ser construtora de sua própria realidade e subjetividade, sem se exigir viver
de acordo com os padrões tradicionalmente estipulados. Assim, a mulher pode finalmente
sentir a liberdade para, de fato, sentir prazer em viver e em exercer a sua maternagem.
Assumindo esta posição, advogamos ser imprescindível a “desculpabilização” das
mães e incentivar o compartilhamento de responsabilidades entre mães, pais, familiares e toda
149

a sociedade, assim como a conseqüente divisão de tarefas nos cuidados e a responsabilidade


de zelar pela educação física, emocional, cognitiva e social dos filhos. Ou seja, todos devem
se responsabilizar pela criação de um novo ser, em especial, o pai que deve compartilhar a
criação dos filhos, e não apenas se restringir a dimensão da ajuda opcional e esporádica.
Temos a importante missão de pontuar que este é um pequeno passo rumo à
compreensão das possíveis implicações da DPP para a mulher/mãe, bebê e sua família, na
esperança de que este fomente interesses no estudo desse amplo fenômeno. Sugerimos a
realização de outras pesquisas qualitativas que especifiquem a participação paterna/marital
nas configurações subjetivas da DPP. Também seriam bem-vindos estudos que investigassem
este fenômeno em mães adotivas, pois estas não passariam pelas alterações hormonais
alegadas pela literatura médica como causa primeira da DPP, mas, por outro, lado estariam
submetidas à mesma cultura da maternidade exclusiva e instintiva das mães biológicas.
Defendemos, ainda, que se faz imperiosa a necessidade de avaliar e qualificar a forma
como profissionais da saúde, sobretudo obstetras e pediatras, têm auxiliado as mães e as
famílias que estão sofrendo no pós-parto. Em primeiro lugar, é valioso sensibilizar o
profissional de saúde para a importância do fenômeno da depressão após um parto. A falta de
orientação e de apoio determinam na mulher um sofrimento físico e emocional que poderia
ser evitado com medidas preventivas ou curativas (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). Há de
se considerar, com a devida importância, que as ações assistenciais contempladas pelas
normas e rotinas, ora em vigor, não são capazes de responder de forma singular às
necessidades das pacientes, tal qual se supõe; devendo ser, portanto, revistas, dando ênfase às
necessidades diferenciadas que se alicerçam na dimensão subjetiva da mulher. Nessa
perspectiva, vale atentar para a necessidade de reformulações do modelo assistencial ora
vigente, no sentido de considerar a maternagem como uma tarefa que precisa ser aprendida
pela mulher e protegida pela sociedade.
Em termos práticos, sugerimos a implantação de um “pré-natal psicológico” que
incluísse a figura paterna, onde os médicos devessem se preocupar com a mãe e com o pai,
tanto em termos orgânicos como psicológicos. Acreditamos que um pré-natal deste tipo, além
de prevenir uma série de doenças e problemas com a mamãe e o bebê, também serve como
prevenção de uma depressão no pós-parto e para a vinculação afetiva da tríade mãe-pai-bebê e
a posterior parentalidade compartilhada.
Esta mesma atitude deve ser adotada no pós-natal, período no qual as tradicionais
consultas puerperais deveriam ter seu foco ampliados para as questões emocionais, culturais e
sociais envolvidas na maternidade e na paternidade. Grupos de acompanhamento das mães e
pais, nos moldes dos que realizamos no trabalho de campo desta investigação, deveriam ser
implantados junto a maternidades e bancos de leite, com o objetivo de proporcionar às
puérperas e seus companheiros um espaço de escuta emocional e apoio onde o tema da
maternidade, da paternidade e da DPP pudessem ser adequadamente abordados para melhorar
a qualidade de vida não só das mães, de seus bebês, pais e familiares. Mas chamamos atenção
que, para a efetivação dessas abordagens tanto no pré quanto no pós-natal, é preciso trabalhar
em equipe, integrando a esta o psicólogo hospitalar, com vistas a promover também o bem
estar psicológico e social das gestantes e puérperas. Quem sabe, assim, a maternidade
chegasse mais próxima das glamourosas fotos das campanhas nos cartazes dos Bancos de
Leite!
Por fim, gostaríamos de afirmar que temos consciência de que, na tentativa, talvez
exagerada, de marcar o lado “obscuro” da maternidade, tenhamos imprimido uma tonalidade
ácida ao nosso trabalho. Buscamos, com isso, alertar para a necessidade de incluirmos este
outro lado da “mesma moeda” nos nossos “sonhos” maternos, para que eles possam se
aproximar mais da realidade e da maternidade satisfatória para todos. Não estamos sozinhos
nesta concepção, pois encontramos respaldo em Maldonato (1985) quando ela afirma ser
150

preciso, desde a gestação, evitar encorajar apenas a expressão dos sentimentos positivos, pois
isso criaria uma imagem muito incompleta da totalidade das vivências maternas. Ao contrário,
deve-se estimular também a expressão dos sentimentos negativos, de hostilidade e rejeição,
das ansiedades, temores e dúvidas, a fim de que, através da elaboração, se faça emergir mais
plenamente os sentimentos de amor e ternura e, sobretudo, ajude a entender as dimensões
polivalentes que compõem cada relação humana.
Apesar de nossa ênfase “amarga” e da afirmação de Serrurier (1993) de que “ não é
bom ser mãe nos dias de hoje” (p.9), queremos afirmar que continuamos a valorizar a
maternidade. É difícil, sim. Cansa, sim. Dá trabalho, sim. Mas existem vários motivos
(altamente subjetivos e singulares!) para acreditar que compensa ser uma mãe na atualidade.
Dentre esses motivos, gostaria de finalizar esta tese destacando alguns preciosos que me
fazem avaliar positivamente a experiência da maternidade: para ver meu corpo mudar de
forma e gerar outras pessoas, para descobrir que a minha capacidade de amar/odiar é muito
maior do que eu imaginava; para entender melhor a minha mãe e meu pai; para ouvir alguém
me chamar de mãe; para ver de perto uma criança crescendo; para ver meu casamento passar
por uma “prova de fogo” e se manter; para reconhecer o homem que está ao meu lado; para
integrar prioridades; para lutar pelas mães, para escrever uma tese de doutorado, para abrir
linhas de pesquisa sobre a maternidade/paternidade e para conhecer as pessoas mais lindas
que eu já vi no mundo - Ana Clara e Sofia!
151

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07
Depois do parto...a depressão. O outro lado da vivência materna no pós-parto

ARRAIS, Alessandra da Rocha. Depois do parto...a depressão. O outro lado da vivência


materna no pós-parto. Revista Ciência e Saúde. , v.01, p.31 - 35, 2006.

Resumo

Neste trabalho, defendemos a necessidade de avaliar e qualificar a forma como

profissionais da saúde, têm auxiliado as mães e as famílias que estão sofrendo no pós-

parto. Nessa perspectiva, vale atentar para a necessidade de reformulações do modelo

assistencial ora vigente, no sentido de considerar a maternagem como uma tarefa que

precisa ser aprendida pela mulher e protegida pela sociedade. Em termos práticos,

sugerimos a implantação de um “pré-natal psicológico” que incluísse a figura paterna,

onde os médicos devessem se preocupar com a mãe e com o pai, tanto em termos

orgânicos como psicológicos. Buscamos, ainda, alertar para a necessidade de uma

análise crítica sobre o diagnóstico de DPP enquanto entidade padronizada, estimulando

a sua despatologização e o apoio psicológico precoce em maternidades. Finalmente,

temos o forte propósito de trazer uma nova contribuição para iluminar a compreensão

sobre o processos de subjetivação das mães com DPP, na esperança de no futuro ajudar

os profissionais de saúde e os acadêmicos que atuam em áreas da saúde perinatal e do

desenvolvimento humano a evoluir em sua compreensão e maneira de pensar a mãe que

se apresenta depressiva no pós-parto. Esperamos que este artigo nos permita criar

alguma fissura em territórios tão cristalizados!


DEPOIS DO PARTO...A DEPRESSÃO.
O outro lado da vivência materna no pós-parto

O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o nascimento de um bebê?

Como entender que esse momento considerado tão feliz e esperado do ciclo vital

familiar se transforme em um momento depressivo? Por quê a chegada do bebê parece

ter o poder de provocar um estado depressivo na mãe?

No período pré-natal, muitas vezes, as preocupações giram apenas em torno do

chá de bebê, do quarto, do enxoval e das demais providências práticas a serem tomadas

para a chegada de um filho. É rara a discussão séria acerca das dificuldades emocionais

que a grande maioria das mães vivencia no período do parto e pós-parto, bem como

sobre as tarefas familiares que o casal tem a cumprir para ultrapassar esta etapa. Quando

esses temas surgem, geralmente ocorrem em tons de brincadeira e de forma caricata,

que não provocam a reflexão necessária.

Certamente, carregar no próprio corpo um novo ser pode ser uma oportunidade

ímpar e fascinante. Uma promessa de esperança, um potencial de luz, de continuidade e

de amor. Entretanto, a maternidade implica em alterações em diversos espaços da vida

da mulher, sejam eles pessoais, emocionais, profissionais ou sociais, que podem

acarretar em mais sofrimento do que se pode supor. especialmente, porque a

maternidade é uma viagem sem direito ao “bilhete de volta”. É um processo que tem um

início, mas não tem um fim. Portanto, trata-se de uma função que implica um caráter de

2
extrema responsabilidade, complexidade e longevidade (Bacca, 2005)I. Uma vez mãe,

sempre mãe...

Ser mãe, no sentido de gerar, é uma possibilidade exclusiva da mulher. Inerente

a essa realidade, entretanto, é comum essa potencialidade originar crises, conflitos e

sentimentos contraditórios entre si. Erikson (1976)II ilumina nossas idéias nessa direção,

ao lembrar-nos que cada uma das fases evolutivas do ciclo vital de uma pessoa carrega

em si uma situação potencialmente crítica, a qual pode ocasionar uma crise, sendo esta

entendida como uma ruptura do status quo psíquico que requer novas respostas

adaptativas. Portanto, a crise da depressão pode ocorrer em qualquer época da vida,

inclusive durante momentos socialmente felizes, como o parto e o nascimento de um

filho (Ribeiro, 2002)III.

O puerpério1 é um desses períodos vulneráveis, constituindo-se portanto como

um período de risco psiquiátrico aumentado no ciclo de vida da mulher (Erikson,

1976)². Na fase pós-natal, a sociedade espera que a mãe esteja muito feliz e satisfeita

com o seu novo rebento. Todos cobram da mulher grávida estar radiante: seu

companheiro, sua família, seus amigos e até os profissionais que a assistem na gestação,

e, por isso, geralmente desconsideram seus reais sentimentos. As mesmas atitudes são

vistas no pós- parto.

Poucos sabem, e ainda trata-se de um tabu na sociedade ocidental, que a

maternidade é vivida, por muitas mulheres, com mais sofrimento do que prazer

(Lucena, 2004)IV. Ao contrário do esperado, a literatura, minha experiência como mãe e

nossa prática com gestantes e puérperas2 nos mostram que a maioria das mulheres,

sobretudo as de classe média e alta, encontra na vivência da maternidade algum nível de

1 O puerpério é definido como o período que sucede o parto, podendo estender-se a até sessenta dias após
o nascimento do bebê (Corrêa & Corrêa, 1999).
2
A autora realiza grupos de atenção psicológica ás mães com DPP, desde 2001, na UCB.

3
sofrimento psíquico, físico e social no período pré e pós-parto. Normalmente, nessas

fases, observa-se nas mães uma vivência relativamente contínua de tristeza ou de

diminuição da capacidade de sentir prazer (Santos, 1995)V, a qual poderá ser transitória

ou se cronificará caso não sejam assistidas adequadamente.

A depressão pós-parto (DPP) é um episódio depressivo não psicótico. É

classificada assim sempre que iniciado nos primeiros doze meses após o parto. Sua

manifestação clínica é igual a das depressões em geral (Rocha, 1999VI; Baptista,

Baptista & Oliveira, 2004VII). Ou seja, a pessoa sente uma tristeza muito grande de

caráter prolongado, com perda de auto-estima, perda de motivação para a vida, é

incapacitante, requerendo na maioria das vezes o uso de antidepressivos (Ballone,

2001)VIII.

É sabido que a DPP acontece com mulheres de todas as idades, classes sociais e

de todos os níveis escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que desejam muito ter um

filho, bem como aquelas que não aceitam o fato de ter engravidado. Pode ocasionar-se

no nascimento do primeiro filho, do segundo, do terceiro, ou de outros. Os autores que

estudam essa temática têm posições diversas sobre o aparecimento da DPP, e a literatura

não é concorde quanto a sua etiologia (Santos 2001IX; Botega & Dias, 2002X). Mas, se a

mãe apresentou alguma história de depressão na sua vida, ela requer mais atenção dos

familiares e profissionais de saúde desde a gestação (Botega & Dias, 2002)X; o que

normalmente não é feito nem mesmo pelos obstetras que as acompanham no pré-natal.

A percepção de sentimentos de tonalidades negativas e contraditórias,

justamente no momento quando só deveria existir espaço para a plenitude e a felicidade,

provoca em muitas mães e profissionais uma sensação de estranhamento e inadequação.

Tanto na gestação quanto no pós-parto, são comuns assertivas do tipo: “Como você

pode estar triste, com um bebê tão lindo nos braços?”. Se a mulher ousa expressar

4
qualquer sentimento negativo, mesmo em relação à gestação ou a uma não–aceitação

temporária da gravidez, ou por estar enjoando muito, ou por ter parado suas atividades

pelas intercorrências de uma gravidez de risco, logo se diz que “ela está rejeitando o

filho”.

Esse tipo de associação é superficial, de cunho excludente e pejorativo, que

acarreta na caracterização da mãe com DPP como uma “aberração da natureza”. Toda

essa miscelânea de sentimentos e conflitos que a gestante geralmente vivencia não

significa que ela esteja rejeitando o filho, mas toda a complexidade da situação, para a

qual talvez não estivesse preparada (Bacca, 2005)I. Assim, Serrurier (1993)XI,

Maldonato (2000)XII, Rohenkohl (2005)XIII e Bacca (2005)I alertam para o fato de que

muitas mulheres acabam por rejeitar não o bebê em si, mas a maternidade como

instituição e muito do que isso acarreta, como por exemplo a mudança de vida, os

sacrifícios e as obrigações. Associar estados de humor entristecido ou quadros de DPP

com rejeição ao filho, como comumente é feito não só pelos familiares e pelo senso-

comum, mas também por muitos profissionais de saúde, e da educação, é um grande e

preconceituoso equívoco, que acentua ainda mais o sofrimento e isolamento materno e

deve ser terminantemente combatido.

Assim, a mulher nesse caso sofre duplamente: primeiramente, pelos sentimentos

negativos vivenciados e, segundo, pela culpa em senti-los. Tudo isso, pouco alivia a dor

da mãe com depressão, quando não atrapalha ou agrava o seu sofrimento, pois a isola, a

culpabiliza e a impede de pedir ajuda. Por sentirem-se na “contra-mão” do que é

socialmente esperado e desejado, a mãe quase sempre reluta em relatar seu incômodo a

outros e a pedir ajuda profissional, mesmo que sinta muitas dificuldades no desempenho

de tarefas maternas e domésticas e que consiga perceber a sua alteração no humor.

5
Por isso, este sofrimento psíquico é vivido isoladamente e, o que é pior, sem um

acompanhamento profissional especializado, podendo acarretar na cronificação dos

sintomas depressivos ou somáticos e num prejuízo para a relação mãe-bebê-pai. Santos

(2001, p. 20)XI reafirma isso ao mostrar-nos que “a depressão pós-parto é raramente

trazida para o consultório por quem a experimenta, é vivida com dolorosa perplexidade,

com questionamentos morais, mas sobretudo, em silêncio”. A autora acrescenta ainda

que este é um fato constatado em pesquisas estrangeiras e que se repete no Brasil.

Isso acaba acarretando não só em uma pobreza estatística sobre o fenômeno,

como também em um parco interesse e um número restrito de publicações científicas

sobre o tema. Esta realidade se reproduz na psicologia, haja vista a constatação de nossa

revisão bibliográfica revelar que a DPP é um tema ainda pouco explorado (Arrais,

2005)XIV. Dentre os escassos trabalhos psicológicos que abordam esse assunto, muitos o

interpretam do ponto de vista do bebê, levando em consideração apenas as

conseqüências negativas da DPP para o desenvolvimento e a constituição da

personalidade deste, como nos estudos de Camorotti (2001)XV, Catão (2002)XVI, Ribeiro

(2002), Andrade (2002)XVII e Schwengber e Piccinini (2003)XVIII. Estes não se atentam

aos profundos prejuízos que ela pode trazer também para as mães e para a díade mãe-

bebê, e até mesmo, para a tríade mãe-pai-bebê. O último relatório sobre a saúde da

mulher do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil, 2004)XIX nos confirma essa tendência

unilateral em prol do bebê.

Particularmente, nós advogamos que a DPP e seu prolongamento pode ter

conseqüências ruins não só para o desenvolvimento emocional e cognitivo do bebê,

como também sobre o bem-estar da mulher, sua saúde física e psíquica, seus

relacionamentos conjugal, familiar e social, a qualidade de sua vivência materna, e

sobretudo, para o seu processo global de subjetivação como mulher.

6
Assim, focalizamos a DPP do ponto de vista da mulher/mãe sem, contudo,

esquecer o aspecto essencial do relacionamento mãe-filho, mas procurando excluir

qualquer determinismo linear do tipo causa e efeito. Para nós, existe uma diversidade

tão grande de sentidos subjetivos para as mães, para os bebês e seus familiares, que nos

impede de manter um olhar reducionista e linear sobre a maternidade e a depressão após

o parto. Isso nos impulsiona para olhar a complexidade destes fenômenos e dos sujeitos

neles implicados.

Assim, apesar de terem muitos sentidos que podem ser subjetivados de forma

semelhante na vivência da maternidade e do pós-parto, cada mulher terá uma vivência

única e singular, que não deve ser padronizada e nem “vendida” para as demais como o

“retrato da maternidade” e nem “enclausurada” no diagnóstico da DPP. Em outras

palavras, levantamos neste ensaio o seguinte questionamento: seria a DPP uma

psicopatologia, classificada no CID-10 (1993)XX sob a rubrica de F53.0, ou poderíamos

suspeitar tratar-se apenas de mais uma maneira de vivenciar a maternidade? Talvez seja

ela uma das formas mais sofridas, porém não menos legítima que as demais formas

mais convencionais de ser mãe. Através dos sintomas depressivos, a mãe não estaria

apenas revelando o lado obscuro da maternidade, socialmente negado?

Assim, assumimos que a motivação para gestarmos o presente trabalho se deve

principalmente a algumas razões de ordem sócio-histórico-culturais, as quais cremos ser

fundamentais considerar quando se pensa na mãe com DPP, como, por exemplo, o

fenômeno da entrada da mulher no mercado de trabalho. Este fenômeno vem

provocando transformações tão profundas no casamento, na família e na sociedade e na

saúde da mulher (Diniz, 1999)XXI que nos levou a acoplar a categoria de gênero ao

nosso olhar, com a finalidade de ajudar a compreender a saúde da mulher nesse

7
contexto. Dessa forma, não seria a DPP, da forma como vem se apresentando hoje,

também uma conseqüência desta nova realidade?

A pressão social sobre a mãe, sobretudo nos dias atuais, em que a mulher

acumula várias outras funções, faz com que esta não se sinta autêntica e sinta-se

incapaz, “defeituosa” e incompetente para ser mãe; levando-a muitas vezes à depressão.

Esses elementos apareceram como atributos relacionados à subjetividade social

dominante sobre a mulher e a maternidade e, em vários casos, estavam associados a

“clichês sociais” que têm acompanhado as mulheres nos últimos séculos, como: “ser

mãe é padecer no paraíso”, “toda mulher nasceu para ser mãe”, “toda mãe tem uma

predisposição inata ao sacrifício”. Esses sentidos, em um imaginário de valores,

“aprisiona” as mulheres em uma posição volitiva em serem “as mães perfeitas”.

É necessário esclarecer que, embora coexista a ambivalência materna,

materializada pela rejeição, pelos impulsos agressivos e pela tristeza, fenômenos

amplamente observados nos discursos femininos da pós-modernidade, não se pode

universalizar estas configurações a ponto de considerá-la como sinônimo de

maternidade na atualidade. Essa é uma questão significativa para ser refletida, pois caso

contrário, corremos o risco de abordar a maternidade de maneira semelhante a que tanto

criticamos – aquela onde se nega a ambivalência, a tristeza e a rejeição. Assim,

incorreríamos na mesma falha: criar uma padronização e uma generalização que se

aplicariam a todas as mulheres - a experiência obscura da maternidade, impondo dessa

forma, um único tipo de discurso e o atribuindo a todas as mulheres de um conjunto

social.

Assumindo esta posição, advogamos ser imprescindível a “desculpabilização”

das mães e incentivar o compartilhamento de responsabilidades entre mães, pais,

familiares e toda a sociedade, assim como a conseqüente divisão de tarefas nos cuidados

8
e a responsabilidade de zelar pela educação física, emocional, cognitiva e social dos

filhos. Ou seja, todos devem se responsabilizar pela criação de um novo ser, em

especial, o pai que deve compartilhar a criação dos filhos, e não apenas se restringir a

dimensão da ajuda opcional e esporádica.

É valioso sensibilizar o profissional de saúde para a importância do fenômeno

da depressão após um parto. A falta de orientação e de apoio determinam na mulher um

sofrimento físico e emocional que poderia ser evitado com medidas preventivas ou

curativas (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005)XXII. Há de se considerar, com a devida

importância, que as ações assistenciais contempladas pelas normas e rotinas, ora em

vigor, não são capazes de responder de forma singular às necessidades das pacientes, tal

qual se supõe; devendo ser, portanto, revistas, dando ênfase às necessidades

diferenciadas que se alicerçam na dimensão subjetiva da mulher.

Esta mesma atitude deve ser adotada no pós-natal, período no qual as

tradicionais consultas puerperais deveriam ter seu foco ampliados para as questões

emocionais, culturais e sociais envolvidas na maternidade e na paternidade. Grupos de

acompanhamento das mães e pais, nos moldes dos que realizamos na UCB, deveriam

ser implantados junto a maternidades e bancos de leite, com o objetivo de proporcionar

às puérperas e seus companheiros um espaço de escuta emocional e apoio onde o tema

da maternidade, da paternidade e da DPP pudessem ser adequadamente abordados para

melhorar a qualidade de vida não só das mães, de seus bebês, pais e familiares. Mas

chamamos atenção que, para a efetivação dessas abordagens tanto no pré quanto no pós-

natal, é preciso trabalhar em equipe, integrando a esta o psicólogo hospitalar, com vistas

a promover também o bem estar psicológico e social das gestantes e puérperas.

Acreditamos que um “pré-natal psicólógico”, além de prevenir uma série de doenças e

problemas com a mamãe e o bebê, também serve como prevenção de uma depressão no

9
pós-parto e para a vinculação afetiva da tríade mãe-pai-bebê e a posterior parentalidade

compartilhada.

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08
Disponível em www.scielo.br/prc

O Mito da Mãe Exclusiva e seu Impacto na Depressão Pós-Parto


The Myth of the Exclusive Mother and its Impact on Postnatal Depression

Kátia Rosa Azevedo* & Alessandra da Rocha Arrais


Universidade Católica de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo
Este artigo é resultado de um estudo qualitativo, baseado na Epistemologia Qualitativa, que visou promover
reflexões acerca da depressão pós-parto, enfatizando os fatores psicossociais envolvidos. Trata-se de um estudo
de caso sobre uma das participantes do grupo de apoio e orientação a mães com depressão pós-parto,
desenvolvido na Universidade Católica de Brasília. Este grupo visou proporcionar um espaço de escuta emo-
cional e apoio às puérperas, e foi campo para coleta de dados. Utilizou-se da técnica de completamento de
frases, de técnicas projetivas, e de relatos apresentados nas sessões individuais e grupais para levantamento e
construção de indicadores sobre a vivência da maternagem e da depressão pós-parto. O estudo deste caso
forneceu-nos elementos para compreendermos o quão prejudicial pode ser o ideal de maternidade apresentado
como natural e instintivo para mulheres que buscam satisfação absoluta na maternidade, configurando-se
como um dos responsáveis pela instalação e manutenção da depressão pós-parto.
Palavras-chave: Depressão pós-parto; maternidade; ambivalência.

Abstract
This article is the result of a qualitative study, based on Qualitative Epistemology, aimed to promote reflec-
tions on postnatal depression, emphasizing the psychological and social factors involved. This is a case study
about one of the participants of a support group for mothers with postnatal depression, developed at the
Universidade Católica de Brasília. The aim of this group was to provide a space of emotional listening and
support, and it was a field for collecting data. The technique of completing phrases, projective techniques, and
accounts presented in individual and group sessions were used for the survey and construction of indicators
about the experience of maternity and postnatal depression. The study of this case gave us elements to
understand how an ideal of maternity presented as natural and instinctive can be harmful for women that try
to obtain absolute satisfaction in their experience of maternity, configuring this ideal as one of the respon-
sible elements for the installation and maintenance of postnatal depression.
Keywords: Postnatal depression; maternity; ambivalence.

O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o de enormes sacrifícios, entre eles ser amável, tranqüila,
nascimento de um bebê? Como entender que este momen- compreensiva, terna, equilibrada, acolhedora, feminina em
to considerado normal e tão comum ao ciclo vital de qual- tempo integral! Espera-se um ideal, um modelo de mãe
quer ser humano se transforme em um momento depres- perfeita, uma imagem romanceada da maternidade cons-
sivo, quando a mãe sente-se angustiada, insegura, sensível truída ao longo dos últimos séculos, que está alicerçada
demais, entristecida e chorando desesperadamente? sob um rígido padrão incapaz de admitir qualquer vestí-
No ciclo vital da mulher há três períodos críticos: a ado- gio de sentimentos ambivalentes nas mães.
lescência, a gravidez e o climatério, são períodos de tran- Acontece, porém, que na ocasião do nascimento de um
sição que constituem fases do desenvolvimento da perso- filho, a maioria das mulheres experimentam sentimentos
nalidade e que possuem vários pontos em comum (Diniz, contraditórios e inconciliáveis com a imagem idealizada
1999). São fases biologicamente determinadas, caracteri- de maternidade ditada pela cultura. Desta forma, estabe-
zadas por mudanças metabólicas e hormonais complexas; lece-se um conflito entre o ideal e o vivido e instaura-se
por reajustamentos interpessoais e intrapsíquicos, mas um sofrimento psíquico que pode se configurar como uma
também por alterações interpessoais e interpsíquicas. Tan- base para a depressão após o parto.
tas mudanças podem resultar em estados temporários de
desequilíbrio, e em significativas alterações na identidade A Natureza Feminina: O Mito da Mãe Perfeita
da mulher devido às grandes expectativas quanto ao pa- De maneira geral, as crenças sobre a maternidade são
pel social esperado (Maldonado, Dickstein, & Nahoum, divulgadas como se fossem tradicionais e naturais, e por
2000). serem concebidas assim, essas crenças se tornam inata-
Entendemos que desde a infância as meninas treinam o cáveis. Contudo, é possível verificar na história da huma-
papel de boa mãe, segundo o qual a mulher deve ser capaz nidade que essas idéias têm poucas centenas de anos. A
boa mãe, tal qual conhecemos hoje, com sua propensão
*
natural ao sacrifício, seu amor universal e automático
Endereço para correspondência: Centro Clínico do Guará,
QE 01 - Área Especial F, sala 208, Guara I, Brasília - DF. pelos filhos e sua completa satisfação nas tarefas da ma-
CEP 71020-061. E-mail: kati.rosa@yahoo.com.br ternidade, não foi sempre assim.
269
Psicologia: Reflexão e Crítica, 19 (2), 269-276.

Ao contrário disso, Forna (1999) nos conta que esse es- e aos filhos, quem controla e cria os filhos e quem lhes dá
tilo de maternagem teve seu início em 1762, a partir da uma imagem do mundo.
publicação de Émile, por Rousseau, quando este criticou Assim, entendemos que há uma nova mulher, mas que
as mães que enviavam os filhos para as amas-de-leite, o vive sob o manto das velhas representações, pois conti-
que era bastante comum até esta época. Ele recomendava, nuamos cobrando delas o velho modelo de mãe idealiza-
enfaticamente, que as próprias mães amamentassem e da. O problema, porém, é que as mulheres de hoje, já não
criassem seus filhos e as recriminava por darem preferên- são preparadas, não sabem e nem querem cuidar dos seus
cia a outros interesses. Segundo Badinter (1985) dá-se aí, filhos como suas mães faziam. Elas têm outros interesses,
o início à injunção obrigatória do amor materno. Serrurier desejos, informações, expectativas e, sobretudo outras
(1993) também afirma que é deste Émile, que estamos con- alternativas para se realizarem como mulher, que não
denadas a ser mães e a ser boas mães. Não há alternativa estão mais restritas à maternidade. Novamente, observa-
para a mulher: a vocação materna é natural, instintiva e se um conflito na vivência do papel moderno de mãe, que
obrigatória! acarreta mais dúvidas, angústias e, sobretudo em culpa,
Contrária às idéias de que a maternidade só comporta o que se revelam através da (des)conhecida ambivalência
amor irrestrito e apoiando a perspectiva das teorias do materna.
gênero, segundo a qual a maternidade é construída e não Parker (1997) nos diz que a ambivalência materna é a
instintiva, a maternidade e a maternagem, segundo os an- experiência compartilhada de forma geral por todas as
tropólogos e sociólogos, é um constructo social e cultural mães, na qual coexistem lado a lado, em relação ao filho,
que decide não só como criar os filhos, mas também, quem sentimentos de amor e de ódio. Para esta autora, a difi-
é responsável por eles (Forna, 1999). culdade em enfrentar tais sentimentos tão complexos e
Culturalmente, as representações sociais da materni- contraditórios próprios da ambivalência materna pode
dade estão fortemente calcadas no mito de mãe perfeita. redundar em uma eterna culpa, que implica em muito
Esta concepção assume proporções insustentáveis, segun- sofrimento, mas com a qual as mães se habituam a viver.
do as quais acredita-se que a maternidade é inata à mu- Atualmente, culpa e maternidade são quase sinônimos.
lher. É a idéia de que a maternidade é parte inerente ao Todas estas considerações nos levaram a acreditar que
ciclo evolutivo vital feminino. Neste sentido, supõe-se que a maternidade como vem sendo concebida até nossos dias,
a mulher, por ser quem gera os filhos, desenvolve um amor tem influência direta no aparecimento da depressão no pós-
inato pelas crianças e fica sendo a pessoa melhor capacita- parto. Nossa hipótese é de que essas pressões culturais
da para cuidar delas (Falcke & Wagner, 2000). sob as quais as mulheres invariavelmente exercem a ma-
Concluímos, portanto, que, apesar do crescente ternidade, associadas ao sentimento de incapacidade em
questionamento sobre o amor materno incondicional e adequar-se a uma visão romanceada desse estado, acabam
inato, a visão da mãe ideal, responsável pelo bem-estar por deixá-las ansiosas e culpadas, suscitando dessa manei-
psicológico e emocional da família, ainda é bastante pre- ra conflitos que predisporiam a depressão pós-parto.
sente na literatura e no senso comum (Badinter, 1985). Acreditamos que a mulher com depressão pós-parto
Acreditamos que esta insistência em que um certo estilo estaria apenas expressando seu choque e desapontamento
de maternidade é “natural”, entra em choque com a vivência em não sentir toda a emoção e felicidade, normalmente
da maternagem, o que leva ao sentimento de “mãe mostrada nos filmes, nos livros, na igreja, nas brincadei-
desnaturada” e há muito sofrimento. Mas também, tem ras de infância, nas propagandas de fraldas e de aleitamen-
levado muitas mulheres, na atualidade, a questionarem cada to materno e nas histórias das suas vizinhas e amigas. Por
aspecto do que fazem, pensam, sentem, e a avaliar suas esta razão, entendemos que temas como a feminilidade, as
próprias experiências, buscando flexibilizar o padrão rígi- transformações culturais no papel da mulher, o mito de
do e determinista cultuado socialmente. mãe perfeita e a ambivalência do papel de mãe, guardam
estreita relação com o que chamaremos possíveis causas
A Mãe Moderna: Nova História, Velhas Representações da depressão após o parto.
Não há dúvidas que a inserção da mulher no mercado
de trabalho tem trazido muitas transformações nas rela- A Construção do Método
ções conjugais, que contribuíram para o declínio do siste-
ma patriarcal e da hegemonia masculina, que pode ser Faz-se importante, antes de mencionarmos as bases em
observada, por exemplo, em um gradativo aumento do que foi pensado e construído este trabalho, ressaltarmos o
envolvimento masculino nos trabalhos domésticos. Toda- embate metodológico pelo qual as ciências humanas e
via, dados atuais têm mostrado o descompasso entre os sociais têm passado nas últimas décadas. É uma batalha
dois fenômenos, apontando crescimento acelerado de mu- entre paradigmas, por um lado o paradigma hegemônico
lheres no mercado de trabalho, enquanto a participação empírico/positivista e do outro, alternativo a este, o que
masculina nos trabalhos domésticos vem crescendo lenta se convencionou chamar de paradigma subjetivista/cons-
e gradualmente. Portanto, na família moderna ainda que o trutivista/interpretativo (Brito & Leonardos, 2001).
pai esteja mais presente em casa, a mãe continua sendo o Na prática, este embate é apresentado pelas pesquisas
maior parâmetro para os filhos pequenos. É ela quem con- que seguem o método quantitativo, representando o pri-
tinua com a maior parte das responsabilidades junto a casa meiro paradigma e as pesquisas que adotam o método

270
Azevedo, K.R., & Arrais, A.R. (2006). O Mito da Mãe Exclusiva e seu Impacto na Depressão Pós-Parto.

qualitativo, representando o segundo paradigma. Ao lon- As constatações empíricas cedem lugar a uma constru-
go das últimas décadas, ambos métodos foram julgados, ção de sentidos na qual pesquisador e pesquisado desem-
comparados e criticados e chegou-se a conclusão de que penham papéis ativos. O pesquisador enfatiza os vários
os dois têm seus aspectos favoráveis e desfavoráveis de- indicadores obtidos como elementos interligados e signi-
pendendo da investigação que se quer realizar. ficativos, passíveis de interpretação subjetiva. Trabalha-
No entanto, em função das peculiaridades do objeto de se com todas as formas de expressão do sujeito, com me-
estudo da psicologia – a subjetividade humana – acredita- táforas, expressões de diferentes tipos, e representações.
mos que o método qualitativo é mais adequado ao seu es- Segundo González Rey (1999) o indicador se refere a aque-
tudo, pois os afetos como angústia, tristeza, desamparo, les elementos que adquirem significação graças à inter-
alegria, esperança, entre outros, fazem parte de uma gama pretação do pesquisador e só tem valor dentro dos limites
de tonalidades diferentes de sentimentos, com os quais as do processo. Ele representa um momento hipotético no
pessoas vão experenciar e significar o seu ambiente físico, momento de produção da informação, se constrói a partir
emocional, social, histórico e cultural, que não são pas- das informações que vão sendo geradas da inter-relação
síveis de serem mensurados conforme os crivo positivista- do pesquisador com o participante da pesquisa. Está sem-
cartesiano. Assim, podemos afirmar que, nas últimas pre associado a um momento interpretativo.
décadas observa-se um grande esforço na área da psicolo- Por isto, o instrumento a ser utilizado, tem sentido, na
gia para produzir formas de conhecimento alternativas ao medida que se relaciona especificamente com o sujeito
empirismo. estudado. O objetivo não é criar categorias como nos tes-
Um dos expoentes desta forma alternativa ao paradigma tes de personalidade, mas sim preservar a singularidade
positivista de fazer ciência é representado por González dos sujeitos pesquisados e abrir novas zonas de sentido.
Rey através da sua construção teórica denominada de Os instrumentos não devem oferecer restrições à parti-
Epistemologia Qualitativa (González Rey, 1997, 1999, cipação espontânea dos indivíduos. É o meio utilizado
2001, 2002). González Rey se inscreve neste esforço de para a produção dos indicadores que por sua vez ganha-
diferentes psicólogos, tanto no Brasil quanto no exterior, rão sentido dentro do marco teórico e das reflexões do
pois questiona as formas tradicionais de produção do co- pesquisador.
nhecimento em psicologia, ainda predominantes no âmbi- O momento empírico, portanto, não representa apenas
to das pesquisas acadêmicas. a coleta de dados, significa uma etapa de produção da in-
González Rey enfatiza a necessidade epistemológica de formação, onde as idéias, os conceitos do pesquisador, o
haver novas formas de produção de conhecimento perante contexto histórico-socio-cultural constituem fases do pro-
um novo desafio nesta área. Para ele a pesquisa em psico- cesso de produção da informação. Por isso que se trabalha
logia exige uma compreensão de processos que não são com indicadores e não com “dados”, os dados existem, se
acessíveis à experiência objetiva, o que implica considerar consideram, se integram ao processo, mas não são consi-
o fenômeno em toda a sua complexidade de inter-relações. derados como fontes definitivas das conclusões. Já os in-
Ele ressalta a importância do resgate da subjetividade, o que dicadores permitem essa possibilidade de ter um processo
pressupõe uma evolução nas pesquisas em psicologia, im- ativo em constante movimento.
plicando o reconhecimento da essência única do ser huma- Assim, dentro dessa abordagem metodológica, o pro-
no e da importância da apreensão desta realidade subjetiva blema não aparece como entidade estática, mas como um
no processo de construção e desenvolvimento de idéias, ele- momento de reflexão do pesquisador, no sentido de levan-
mentos imprescindíveis para o progresso da ciência. tar questionamento sem pretensão de se chegar a respos-
tas finais. Também, não há exigência de levantar hipóte-
A Escolha Metodológica ses formais sobre o problema, pois não tem objetivo de
provar ou verificar o fenômeno, mas de descrevê-lo da
São por estas concepções que optamos pela Epistemo- melhor maneira possível, no sentido de construir um co-
logia Qualitativa, como constructo metodológico da nos- nhecimento.
sa investigação, pois, os princípios desenvolvidos por esta A Epistemologia Qualitativa favorece ainda, a consciên-
metodologia favorecem o acesso ao sistema de sentidos cia da impossibilidade de existência de uma causa única
elaborados pelas participantes, sendo este o objetivo cen- para qualquer fenômeno, o que nos possibilita realizar
tral desta pesquisa: possibilitar a compreensão da produ- ricas reflexões sobre vivência da maternidade diante da
ção de sentido das mães diante das experiências evocadas depressão pós-parto.
pela depressão pós-parto.
Os principais elementos do referencial Epistemológico Objetivo geral
qualitativo são, de acordo com González Rey (1997): o Compreender os sentimentos e vivências pelos quais
conhecimento é construído num processo construtivo- passam as puérperas que experimentam a depressão,
interpretativo; o pesquisador também é “sujeito” deste pro- valorizando/reconhecendo os fatores psicossociais en-
cesso, participa dele ativamente; o conhecimento não é volvidos, tanto em suas repercussões na vida psíquica da
resultado apenas de uma coleta de dados, é constituído a mulher, quanto em sua vida relacional, sobretudo com
partir de um processo sócio-histórico-cultural, acessado seu bebê.
através de recursos instrumentais alternativos.

271
Psicologia: Reflexão e Crítica, 19 (2), 269-276.

Objetivos específicos Grupo de apoio e orientação às mães com depressão pós-parto


Compreender a vivência da maternidade apesar da de- Aconteceu no Centro de Formação em Psicologia Apli-
pressão, procurando entender como os sintomas da de- cada – CEFPA, que é uma unidade do Curso de Psicologia
pressão – fracasso, incapacidade, culpa, tristeza, irrita- da UCB. O grupo visou proporcionar às puérperas um
bilidade – interagem na significação da maternidade e na espaço de escuta emocional e apoio onde o tema da de-
configuração da subjetividade da mulher/mãe. Compre- pressão pós-parto pudesse ser adequadamente abordado,
ender o processo de significação e de elaboração subjetiva buscando fornecer não apenas informações cognitivas, mas,
da maternidade, a partir da vivência da depressão pós-parto, principalmente, permiti-las expressar livremente seus te-
em relação a si mesma e de seu estilo de maternagem. O mores e ansiedades. No grupo elas receberam assistência
estudo também tem a intenção de estimular o apoio psico- e orientação psicológica para enfrentar as diversas situa-
lógico precoce em maternidades e refinar a abordagem ções de maneira mais adaptativa, realista e confiante. Fo-
técnica do transtorno da depressão pós-parto. ram abordados temas como: a vivência da DPP, o conceito
da depressão pós-parto, o bebê imaginário X o bebê real, a
Métodos de Apreensão da Realidade transição para a maternidade, os novos vínculos, mãe-bebê,
a tríade mãe-pai-bebê, fatos e mitos relacionados à mater-
Em consonância com a metodologia adotada, vários fo- nidade, a importância da rede social de apoio, as altera-
ram os recursos utilizados para acessarmos as vivências ções da vida do casal, a influência das avós, entre outros.
das mães que participaram do estudo, a saber: Estes temas permitiram desdobrar a reflexão sobre a ma-
ternidade e as dificuldades enfrentadas pela mãe com o
Técnica de completamento de frases diagnóstico de depressão pós-parto, inclusive com análise
Trata-se de uma técnica desenvolvida por González Rey de questões mitificadas e implícitas à maternidade.
(1997, 1999, 2001, 2002), a partir do teste clássico de O grupo tinha um caráter interativo, onde as mães eram
associação de palavras de Jung. Consiste na apresentação convidadas a falar e a se colocarem quando quisessem. Era
de sessenta e sete frases escritas, incompletas, para que as um grupo fechado, homogêneo quanto ao diagnóstico de
participantes as completassem a partir daquilo que pri- depressão pós-parto, mas heterogêneo no que diz respeito
meiramente emergisse em suas mentes ao ler a frase em à fase de pós-parto, idade da mãe, escolaridade, classe so-
questão. As frases incompletas suscitam questões rela- cial, estado civil.
cionadas ao desejo, às preocupações, às aspirações, ao O grupo teve a duração de quatro meses, em sessões
trabalho, às relações sociais, à maternidade, à depressão semanais, com duração média de 2 horas. Contou com
pós-parto, à amamentação, entre outros. O objetivo era 8 participantes. Cada um dos encontros tinha temas
auxiliar na produção dos indicadores. propostos pelas participantes; foram utilizadas técnicas
de dinâmica de grupo, técnicas projetivas, filmes, aulas
Escala de Depressão Pós-Parto de Edimburgo expositivas e debates.
Foi aplicada esta escala para confirmação diagnóstica da
depressão pós-parto. Ainda que tenhamos criticado os re- Atendimentos psicoterápicos individuais
cursos metodológicos quantitativos-positivistas na seção Paralelamente ao grupo, foram realizados atendimen-
anterior deste trabalho, reconhecemos que eles são váli- tos individuais, conforme a demanda das participantes, com
dos para auxiliar no diagnóstico e também podem ser ana- o objetivo de potencializar a elaboração emocional reali-
lisados em termos do conteúdo abordados pelos mesmos. zada no grupo.
Assim, utilizamos esta escala, na intenção de selecionar as
participantes para o grupo, e também para nos auxiliar na Sujeito do estudo de caso
interpretação das configurações subjetivas das participan- A Sra. Vanuza, (os nomes serão fictícios para preserva-
tes, sobretudo com relação à presença de pensamentos ção da identidade dos envolvidos na pesquisa) sujeito do
suicidas. A Escala de Edimburgo consiste em um instru- presente estudo, tem 37 anos, é natural de Goiânia e resi-
mento de auto-registro composto de dez enunciados, cujas dente em Brasília, casada com Cláudio com quem tem uma
opções são pontuadas (0 a 3) de acordo com a presença ou filha de 10 meses, gerada por meio de fertilização artificial
intensidade do sintoma. Seus itens cobrem sintomas como: e trabalha como assistente social.
humor deprimido ou disfórico, distúrbio do sono, perda Vanuza procurou nosso serviço em novembro de 2002,
do prazer, idéias de morte e suicídio, diminuição do de- queixando-se de depressão após o parto: muita tristeza,
sempenho e culpa (Santos, Martins & Pasquali, 1999; desânimo, cansaço, estresse, irritabilidade, pessimismo e
Santos, 1995). oscilação do humor. Entretanto, durante os encontros em
grupo, quando surgiam discussões a respeito do termo
Entrevista de acolhimento e triagem depressão pós-parto, Vanuza não se sentia confortável em
O acolhimento psicológico visou oferecer uma escuta aceitar para si tal diagnóstico.
especializada às mães que chegaram ao nosso serviço, no Quanto ao relacionamento com os pais, Vanuza demons-
sentido de ouvir, acolher e encaminhar adequadamente suas tra distanciamento do pai, e apresenta ter forte vínculo
demandas e triá-las para o atendimento breve, individual com sua mãe, sendo esta considerada sua verdadeira e única
e/ou em grupo. rede de apoio, sobretudo após o nascimento da filha.

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Azevedo, K.R., & Arrais, A.R. (2006). O Mito da Mãe Exclusiva e seu Impacto na Depressão Pós-Parto.

Atualmente, Vanuza não se refere a muitos amigos, e diz pessoas para ajudar; ser mãe é dedicação exclusiva”. Vanuza
estar tendo dificuldades com colegas de trabalho. Seu faz uma breve lista de renúncias, de abnegação, quase uma
envolvimento com grupos sociais parece ter diminuído punição, compatíveis com a postura socialmente esperada
após o nascimento da filha, pois se diz isolada, partici- das boas mães, que devem padecer no paraíso e se sacrifi-
pando pouco de atividades sociais. car por sua prole.
Sente muita dificuldade em cuidar da filha, tem muito A atitude passiva por si só não representa um indicador
medo de perdê-la e ao mesmo tempo sente vontade de su- de conflito com a maternidade, mas se analisada juntamente
mir. É muito preocupada com a saúde da filha. Vanuza fala com outros aspectos da configuração subjetiva revelada
constantemente sobre problemas relacionados à dificul- em Vanuza, podem indicar uma tendência masoquista co-
dade de dormir. Seu sono é, segundo ela, péssimo. Acorda mum às mães que se propõem a atender rigidamente aos
várias vezes para dar o peito ou cuidar da filha. Vanuza critérios da mãe idealizada. Serrurier (1993) nos fala que
apresenta apetite rebaixado, emagreceu 8 kg depois do uma das conseqüências dessa atitude passiva é o maso-
parto e está abatida fisicamente. O relacionamento conju- quismo materno. Sobre esse aspecto, Parker (1997) clari-
gal está muito ruim, questiona-se inclusive sobre uma fica que é possível ver as estruturas masoquistas como
possível separação, sobretudo por que sente-se desesti- uma tentativa de lidar com, e de se defender da culpa
mulada e pouco disponível para o ato sexual e esta tem evocada pelo ódio materno. As mães podem empregar com
sido uma das áreas de conflito atual com o marido. os filhos maneiras excessivamente generosas, hiper-
altruístas, numa tentativa de obter uma absolvição desses
Resultados e Discussão impulsos que as enchem de culpa. Nesse sentido, o maso-
quismo materno tem a ver com a ambivalência materna.
Vanuza é uma mulher que escolheu ter filhos mais tar- Esta ambivalência também aparece na Escala Edimbur-
de, depois de cuidar da carreira profissional, passando a go. Além de ter confirmado o diagnóstico de depressão
imagem de mulher dinâmica, auto-suficiente e ativa. Em pós-parto, o conteúdo de algumas respostas foram
contrapartida, desde a infância treina em sua família de reveladores: “Eu tenho me culpado sem necessidade quan-
origem o papel de boa mãe, segundo o qual a mulher deve do as coisas saem erradas: sim, na maioria das vezes”, “A
ser capaz de enormes sacrifícios em tempo integral e sen- idéia de fazer mal a mim mesma passou por minha cabeça:
tir-se com isso plenamente realizada. Vanuza nos diz que Algumas vezes nos últimos dias”. Essas respostas ilustram
sempre gostou muito de criança e por isso acreditava que mais uma vez a culpa e a ambivalência sentidas por Vanuza.
seria uma boa mãe (com toda ambivalência que este termo Estes sentimentos ilustram bem o pensamento de Parker
pode suscitar em nossa cultura). Sua filha é fruto de uma (1997) segundo o qual, amor e ódio são sensações experi-
longa e angustiante espera, um bebê muito desejado e mentadas pela maior parte das mães. A culpa, segundo a
amado desde a idéia de engravidar. Acontece que, segun- autora, provocada por esses impulsos conflitantes, dificil-
do relatos da paciente, o nascimento de Carol a fez ficar mente é assumida e inconscientemente acaba por levá-las
muito nervosa, cansada, irritada, e ansiosa, levando-a a uma a dirigirem esta hostilidade para si próprias. É nesse sen-
grande decepção e à depressão. Observa-se, neste caso, tido que as respostas de Vanuza à escala de Edimburgo
indicadores de conflito entre o esperado e o vivido, com confirmam uma estreita relação entre a ambivalência ma-
reflexos no desempenho do papel materno. terna, sentimento de culpa e masoquismo materno.
Na técnica de completamento de frases utilizada, ob- Um outro aspecto bastante ressaltado por Vanuza, du-
servamos vários indicadores deste conflito com a mater- rante o grupo de apoio, diz respeito à sua rede de apoio
nidade vivido por Vanuza: “Eu amo... minha filha; sempre social. Ela significa como agravante de sua insegurança e
quis... ter uma filha; minhas aspirações... ser boa mãe, e uma ansiedade quando dos cuidados com a filha o fato de sua
boa profissional; algumas vezes... tenho vontade de sumir; so- mãe e família estarem morando em outra cidade. Relata
fro... pois não sou a pessoa que desejava ser; o fracasso... está que vai quase que semanalmente para Goiânia buscar o
sempre presente; meu maior medo... perder a minha filha; me apoio da mãe e fala diariamente com a mesma por telefone.
esforço... para ser uma boa mãe; as contradições... são cons- “Minha mãe... é meu suporte”, afirma ela no completamento.
tantes; para mim a maternidade... não foi o que sonhei; eu Dentro de uma perspectiva histórica, Kitzinger (1978)
freqüentemente reflito...que estou muito deprimida”. ajuda-nos a pensar a situação da rede de apoio restrita
O discurso apresentado por Vanuza durante as sessões com que contou Vanuza e com que contam, invariavel-
de grupo, também denota sentimentos de fracasso e mente, as mães da modernidade. Até alguns anos atrás,
inadequação por ter comportamentos incompatíveis com quando as famílias eram mais numerosas, era comum a
a representação da maternidade que associa feminilidade a filha mais velha cuidar do irmão mais novo. Desta forma,
atitudes passivas. Desenvolvendo uma técnica projetiva de quando tinham seus próprios filhos, sentiam-se mais ca-
colagem, pedimos às mães que produzissem um cartaz com pacitadas e seguras em assumi-los. Hoje em dia, é mais
o que elas entendiam que era ser mãe e ser pai. Entre difícil passar por esta experiência, já que todos na família
outros conteúdos, Vanuza comunicou que ser mãe é: “não saem para trabalhar e pouco se ajudam. Vanuza parece
ir ao shopping; ser mãe é não ter tempo para conversar que não teve a oportunidade de treinar o papel materno
com as amigas; ser mãe é não ter tempo para si mesma; o antes e ficou ainda mais dependente de sua mãe após o
difícil é ser várias coisas e ser mãe quando se tem poucas nascimento da filha.

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Psicologia: Reflexão e Crítica, 19 (2), 269-276.

Outro tema recorrente nas falas de Vanuza que aparece nante quanto aos papéis parentais. Historicamente, a con-
nas sessões em grupo, no completamento de frases, e na cepção da mulher como um ser inferior ao homem pode
Escala de Edimburgo, está relacionado à privação de sono. ter contribuído para a difusão e manutenção da ideologia
Vejamos algumas de suas respostas a esse respeito: “Eu do instinto materno e do sacrifício entre as mulheres. Tal-
tenho me sentido tão infeliz que eu tenho tido dificuldade vez as mulheres tenham assimilado tão prontamente este
de dormir: sim, algumas vezes”, “Estou muito cansada, não papel porque, aparentemente, lhes conferia um espaço, o
consigo dormir, porque acordo várias vezes durante a noite único, no qual eram consideradas superiores aos homens.
para amamentar a Carol. Ela mama 5 minutinhos e volta a Soma-se aos fatores anteriormente citados, o fato da
dormir, em uma hora acorda novamente, e quer mamar”. gravidez de Vanuza ter vindo após alguns anos de trata-
Dix (1992) diz que a privação do sono causa irrita- mento de reprodução assistida e de três episódios de abor-
bilidade, pensamentos paranóicos, alucinações visuais e tos espontâneos. A evolução da gravidez contou com uma
explosões de cólera, coisas conhecidas por muitas de nós ameaça de perda do feto e de perigo para vida de Vanuza.
que temos que levantar toda noite com um ou mais filhos. Entendemos que esses eventos pessoais, subjetivos, de
As interrupções dos ciclos de sono, complementa a auto- valor potencialmente traumático tiveram grande impacto
ra, afetam a nossa capacidade para reter informação, rela- na vida de Vanuza. Em alguns relatos ela apresenta um
xar os nervos e processar as emoções. Por isto, lhe parece pequeno recorte do quão doloroso foi para ela sua histó-
estranho que não exista um estudo sério sobre os efeitos ria de tentativas de engravidar e o próprio período
da privação do sono nas mães, sobre as interrupções dos gestacional.
ciclos do que constituem um elemento intrínseco do pe- A partir da técnica de colagem, Vanuza relata que “Ser
ríodo pós-parto. Interessante notar que apesar dos pre- mãe é pisar em uma casquinha de ovo, e os dois podem quebrar”
juízos que esta privação de sono lhe traz, Vanuza resiste Esse discurso nos remete ao sentimento de fragilidade em
em dividir tarefas com seu esposo e com a sua empregada, que Vanuza se encontrava. É a fragilidade de uma mãe
confiando a filha apenas a sua mãe que está há quilôme- diante da fragilidade de um filho, é o desespero de quem
tros de distância. se vê responsável por alguém no momento em que se sen-
Esta resistência aponta para relação entre culpa mater- te terrivelmente fragilizada. A casquinha de ovo sugere a
na e estilo de maternidade veiculado ao longo das gera- fragilidade de um útero que facilmente se quebra, o que
ções, ou seja: o homem adquire o privilégio do exercício aponta para a situação dos seus abortos recorrentes. Sim-
da paternidade voluntária, enquanto a mulher se submete bolicamente, Vanuza expressa o quanto ela se percebe frá-
à maternidade obrigatória. Não existem sanções sociais gil, uma vez que não conseguiu sustentar e manter até o
para o homem quando se nega a ter filhos ou a cuidar bem final suas gestações anteriores. É um sentimento de fra-
deles, para mulher, entretanto, não é bem assim que fun- gilidade com relação ao seu próprio corpo. Um corpo sen-
ciona. No entanto, Vanuza parece se submeter a esta re- tido como fraco, um corpo sentido como doente. Daí por-
gra social a um alto custo emocional, indicando que faz que a gravidez ficou longe de ser um momento prazeroso,
questão de ser a supermulher. Inclusive é extremamente de plenitude. Na verdade, a gravidez foi um período mar-
difícil para ela reconhecer-se deprimida. Várias vezes ela cado por incertezas, dúvidas, ansiedade e medo da perda,
afirmou que estaria passando apenas por uma fase sentimentos incompatíveis com ideal de maternidade
estressante e que seu problema resume-se à dificuldade de interiorizado por ela. Sugerimos, portanto, que esse lon-
dormir um sono satisfatório. go período de tratamento, os abortos recorrentes, bem
Paradoxalmente, durante várias sessões Vanuza recla- como o risco de vida durante a gravidez são co-fatores
mava da sobrecarga da dupla jornada de trabalho e da que aliados aos fatores sociais anteriormente citados, con-
obrigatoriedade de duplo êxito. Seu discurso dava voltas tribuíram, também, para o aparecimento da depressão
na desesperança e sensação de que com ela tudo era mais pós-parto em Vanuza.
difícil, como cuidar da filha, da casa, do marido e ter su- Um outro desdobramento da infertilidade com reper-
cesso profissional: No completamento ela escreve: “Mi- cussão na vida sexual de Vanuza pode ser clarificado pelo
nhas aspirações: ser boa mãe e uma boa profissional; Meu pensamento de Maldonado (2002). Segundo essa autora,
principal problema... é dividir meu tempo, minhas tarefas; Me desde muitos séculos, a fertilidade é tida como bênção di-
esforço... para ser uma boa mãe; É difícil... ter que satisfazer o vina, ao passo que a infertilidade é tida como castigo. Par-
esposo”. Mais uma vez a supermulher entra em cena! Esta tindo dessa concepção, percebemos que Vanuza embarcou
configuração subjetiva de Vanuza nos faz lembrar de Forna na maternidade com uma culpa antecipada devido ao fato
(1999) quando ela diz que, o que a princípio podia parecer da infertilidade representar um castigo, e tem vivenciado
ascensão da mulher para um status superior com a sua sua função de mãe com grande ansiedade, acreditando que
entrada no mercado de trabalho, mostra, na verdade, a cumpriria com todos os mandamentos da lei materna, acre-
onerosa sobrecarga do duplo papel, congregando tanto o ditando que iria fazer tudo certo, decidida a não errar.
papel de provedora como o de responsável pelos cuidados Trindade (1993) nos lembra que o modelo tradicional
domésticos, além de ser também a mantenedora dos vín- da maternidade apresenta a mulher como uma figura fe-
culos afetivos familiares. minina responsável pela manutenção do vínculo familiar e
Nesse sentido, Forna (1999) nos diz que é importante que esta tarefa deve ter prioridade sobre suas necessida-
ressaltar que as mulheres têm interiorizado a ótica domi- des pessoais, visto que é através da maternidade que se

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Azevedo, K.R., & Arrais, A.R. (2006). O Mito da Mãe Exclusiva e seu Impacto na Depressão Pós-Parto.

concretizará sua identidade como mulher. A maternagem está ligado ao milagre da vida que presume um instinto
é vista, então, como o ideal feminino mais nobre e digni- materno, uma predisposição inata para o sacrifício. Opor-
ficante, o qual Vanuza quer alcançar a todo custo. se a essa visão romanceada da maternidade é, para algu-
É válido, portanto, lembrar que gestar e criar filhos mas mulheres, opor-se à feminilidade.
são dimensões humanas que têm se transformado histo- Não é por acaso que ser mãe na modernidade suscita
ricamente, mas que apesar disso a representação social sentimentos de culpa e frustração e conflitos de identida-
acerca da maternidade ainda busca corresponder a um de, afinal as mães estão habituadas a uma cultura que proí-
ideal de mãe infalível em tempo integral. Essa obriga- be a discussão plena da ambivalência materna, da coexis-
toriedade em obter satisfação absoluta exclusivamente tência de sentimentos ambivalentes natural em todas as
a partir da maternidade pode ter desdobramentos pre- mães. O natural passa a ser o sacrifício e o amor irrestrito.
judiciais, principalmente, em uma sociedade em que a E o que dizer das mães que tentam associar essa “mater-
mulher normalmente trabalha fora, também é respon- nidade cinco estrelas” a uma carreira profissional bem
sável pelo orçamento familiar e cultiva interesses diver- sucedida? O estudo de caso nos faz concluir que essa é
sos. Estes elementos aparecem muito bem representa- uma tarefa muito ambivalente. A maneira de exercer a
dos no caso de Vanuza. maternidade tem se tornado cada dia mais idealizada, e em
contrapartida, aumentam as atribuições na vida das mu-
Considerações Finais lheres no que se refere à assunção de novos papéis sociais
exigidos pela cultura moderna.
A produção de uma conclusão é comum a todos os es- No grupo, trabalhamos a idéia de que o amor materno
critos, mas no nosso caso, não temos a pretensão de colo- não é puro instinto, mas é um sentimento construído pau-
car um marco definitivo no trânsito sobre o problema da latinamente, na vivência diária da maternagem e por isso
depressão pós-parto. . Ao contrário, revendo o que foi es- está sujeito a imperfeições, oscilações e modificações, o
crito, é possível notar que há ainda várias lacunas de pon- que trouxe para as mães, de forma geral, grande alívio. A
tos que devem ser mais explorados e nosso trabalho pre- livre expressão dos sentimentos e sua maior exploração
tende ser apenas mais uma contribuição ao estudo desta são encorajadas e estimuladas através do clima de permissi-
problemática. vidade que se estrutura no grupo e da técnica de reflexão
O estudo de caso nos permitiu levantar indicadores que de sentimentos. É nesse aspecto que mais se aprofunda o
podem ter contribuído para o aparecimento da depressão valor terapêutico do grupo, pois permite manejar senti-
pós-parto em Vanuza. Quais sejam: mentos básicos em relação à maternidade, tais como ní-
Entendemos que a impossibilidade de corresponder a veis de insegurança, sentimentos de inferioridade e ina-
altos ideais ligados a maternidade (a mãe perfeita, o filho dequação e expectativas referentes ao bebê e a si própria
ideal, a satisfação absoluta com o papel de mãe, etc) aca- como mãe.
bou por suscitar em Vanuza sentimentos de desaponta- É nesse sentido que Maldonado (2002) desenvolve a hi-
mento, de vergonha, de desilusão, de fracasso, de fragili- pótese de que o grupo de discussão permite compartilhar
dade em relação a ela mesma. as vivências basicamente comuns em relação à maternida-
Vanuza não pôde contar com a rede social de apoio tra- de e às modificações conseqüentes. A ênfase, diz Maldonado
dicional, principalmente com aquela pessoa em quem ela (2002), deve ser dada ao manejo da ambivalência afetiva
realmente confiava (a mãe), representante da rede social em suas várias manifestações, com a finalidade principal
comum em gerações anteriores. Em contrapartida, ela sen- de aliviar os sentimentos de culpa e a crença na própria
tiu-se cada vez mais pressionada com relação ao fato de maldade interna e na própria capacidade de destruição.
ser boa mãe o que incluía, diferentemente do que aconte- Concordamos com Maldonado (2002), que é preciso
cia com mulheres das gerações anteriores, responsabili- evitar encorajar apenas a expressão dos sentimentos posi-
dade pelo desenvolvimento das aptidões físicas e emocio- tivos, o que criaria uma imagem muito incompleta da to-
nais da filha. talidade das vivências maternas, ao contrário, deve-se es-
Para Vanuza, a impossibilidade de uma discussão plena timular também a expressão dos sentimentos negativos,
acerca das ambivalências comuns na maternidade acabou de hostilidade e rejeição, das ansiedades, temores e dúvi-
por suscitar conflitos e sentimentos de inadequação que das a fim de que, através da elaboração, faça-se emergir
favoreceram o surgimento da depressão pós-parto. Vanuza mais plenamente os sentimentos de amor e ternura e, so-
sentiu-se marginalizada, uma vez que não se adequava ao bretudo, ajude a entender as dimensões polivalentes que
estereotipo de instinto maternal, segundo o qual a mater- compõem cada relação humana. Acreditamos que foi essa
nidade ocupa o lugar de complemento de um ser faltante. elaboração que foi possível tornar a maternagem menos
Dessa forma, pensamos que o humor deprimido em Vanuza angustiante para Vanuza e os sentimentos depressivos
expressa o sofrimento pela perda de imagens idealizadas menos presentes, no final do processo terapêutico.
com relação ao bebê, a si mesma como mãe e ao tipo de
vida que se estabeleceu com a presença do filho.
Espera-se que as mães sejam sempre ternas, acolhedo-
ras, férteis e disponíveis, em contrapartida, elas não deve-
rão demonstrar sentimentos de tristeza, afinal, tudo isso

275
Psicologia: Reflexão e Crítica, 19 (2), 269-276.

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Recebido: 30/11/2004
1ª revisão: 17/05/2005
Aceite final: 16/09/2005

276
09
PSICOLOGIA, SAÚDE & DOENÇAS, 2017, 18(3), 828-845
ISSN - 2182-8407
Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde - SPPS - www.sp-ps.pt
DOI: http://dx.doi.org/10.15309/17psd180316

DEPRESSÃO PÓS-PARTO: UMA REVISÃO SOBRE FATORES DE RISCO E DE


PROTEÇÃO

Alessandra da Rocha Arrais (alearrais@gmail.com)1 & Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araujo
(araujotc@unb.br)2
1
Escola Superior de Ciências da Saúde, Brasília, DF, Brasil. 2Universidade de Brasília, Departamento de Psicologia Clínica,
Brasília, DF, Brasil.
___________________________________________________________________________
RESUMO: O objetivo deste estudo foi investigar os fatores de risco e de proteção para
depressão pós-parto (DPP). Foi realizada uma revisão nas bases Pubmed, Scielo e Lilacs.
Descritores: postpartum depression, risk factors, protection factors. Critérios de inclusão:
artigos publicados no período de 2010-2015, nas línguas inglesa, portuguesa e espanhola,
cujos conteúdos abordassem explicitamente fatores de risco e/ou de proteção para a DPP.
Foram selecionados 60 artigos e encontrados 53 fatores de risco e 11 fatores de proteção. Os
fatores de risco mais frequentemente citados, pertenciam à categoria de fatores psicossociais
(n= 43 ou 71% da amostra). Os resultados evidenciam uma grande variedade de métodos e
instrumentos utilizados, o interesse mundial pelo tema da DPP e um elevado número de
fatores considerados de risco para DPP (n = 53) em detrimento do baixo número de fatores de
proteção (n = 11) investigados na literatura que abrange o período de 2010 a 2015. Esta
revisão da literatura mostrou que, ter tido depressão na vida, a presença de estresse e
ansiedade e depressão durante a gestação, baixo suporte social e familiar, falta de apoio do
parceiro e falta de apoio social no puerpério, são fatores que aumentam o risco de ter DPP.
Em contrapartida, ter participado de algum programa de pré-natal com base numa abordagem
psicológica, ter uma relação saudável com suas próprias mães, ter suporte social na gestação e
no puerpério e manter relações sociais positivas podem proteger a gestante contra a DPP e
minimizar o impacto dos fatores de risco causariam no puerpério.
Palavras-chave: depressão pós-parto, fatores de risco, fatores de proteção, revisão, puerpério
___________________________________________________________________________

DEPRESSION POSTPARTUM: A REVIEW ABOUT RISK FACTORS AND


PROTECTION

ABSTRACT: The aim of this study was to investigate risk and protective factors associated
to postpartum depression (PPD). A review of the literature was conducted on the databases
Pubmed, Scielo and Lilacs. Keywords: risk, protection, depression and postpartum. Inclusion
criteria: articles published in the 2010-2015 period, the English, Portuguese and Spanish
languages, the contents explicitly treat risk factors and / or protection for the PPD. We
selected 60 articles and found 53 risk factors and 11 protective factors for PPD. Risk factors
cited most often belong to the category of psychosocial factors (n = 43 or 71% of the sample).
The results show a wide variety of methods and tools used, the worldwide interest in the DPP
theme and a large number of the risk factors for PPD (n = 53) over the low number of
protective factors (n = 11) investigated in the literature covering the period 2010 to 2015. This
review of the literature showed that, having had depression life, the presence of stress and

SHIS QI 16 - Conjunto 2 - Casa 32, 71640-220, Brasília, DF, Brasil.Telf.: 55 061 3244-6947 e 55 061 99987-
7346. e-mail: alearrais@gmail.com
www.sp-ps.pt 828
A.R. Arrais & T.C.C. F. de Araujo

anxiety and depression during pregnancy, low social and family support, lack of partner
support and lack of social support in the postpartum period are factors that increase the risk of
having DPP. In contrast, have participated in some prenatal program based on a psychological
approach, have a healthy relationship with their mothers, have social support during
pregnancy and postpartum period and maintaining positive social relationships may protect
the mother against the DPP and minimize the impact of risk factors cause the puerperium.
Keywords: postpartum depression, risk factors, protective factors, review, puerperium
___________________________________________________________________________
Recebido em 07 de Agosto de 2016 / 10 de Outubro de 2017

A inclusão na literatura de estudos sobre quadros de Depressão Pós-Parto (DPP) começa com um
estudo pioneiro, realizado por Pitt, em 1968, que afirmava que essa síndrome é uma variante branda da
depressão fisiológica, frequentemente vista em mulheres jovens ou personalidades imaturas (Santos,
2001). Nas últimas décadas, tal fenômeno tem sido investigado em muitos países, com destaque para a
Grã-Bretanha, os Estados Unidos e, mais recentemente, o Japão. A DPP vem recebendo atenção por parte
dos pesquisadores e profissionais envolvidos com saúde mental, culminando na criação, em 1982, da
Marcé Society, entidade internacional que tem como meta estimular a pesquisa e a comunicação no
campo dos distúrbios mentais do puerpério (Santos, 2001).
No Brasil, a importância do assunto começou a ser reconhecida e na década de 1990, com a abertura
do primeiro ambulatório para tratamento de distúrbios mentais puerperais, no Hospital das Clínicas, em
São Paulo. Entretanto, os estudos e publicações em português sobre o tema se restringiam a pequenos
capítulos no interior de livros de medicina sobre a gravidez ou preparação para a maternidade (Santos,
2001).
O puerpério é um período de alterações biológicas, psicológicas e sociais. Essa é considerada a época
mais vulnerável para a ocorrência de transtornos psiquiátricos (Zambaldi, Cantillino, Sougey, & Rennó Jr,
2010). A DPP se insere em uma trilogia de distúrbios da psiquiatria perinatal, classicamente caracterizada
por três entidades distintas: O blues puerperal, as psicoses puerperais e as depressões pós-parto (Santos,
2001).
A DPP é definida como um episódio de depressão maior que é temporalmente associado com o
nascimento de um bebê (APA, 1994), mas no DSM-V (APA, 2014), essa terminologia foi alterada para
periparto depressão. Estipulou-se que o início dessa perturbação do humor ocorre ainda durante a
gravidez, no seu último mês até cinco meses após o parto, pois, cerca de 50% dos casos de depressão
maior no pós-parto começam antes do nascimento. No entanto, no presente será adotado o termo
Depressão Pós-Parto, pois o novo termo ainda não era amplamente utilizado nos artigos que farão parte
dessa revisão e dessa forma a busca nos portais poderia ficar prejudicada.
No Brasil, em média, 25% das mães apresenta sintomas de depressão no período de 6 a 18 meses após
o nascimento do bebê (Theme Filha, Ayers, Gama, & Leal, 2016). A prevalência global de DPP
encontrada, é de 26,3%, mais alta que a estimada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para países
de baixa renda, que é de 19,8%. Porém, é mais alta que os 13,4%, encontrados por Santos (2001) em uma
amostra de puérperas de nível socioeconômico elevado. A etiologia da DPP ainda não é totalmente
conhecida e nem concorde na literatura. Primeiramente, são apontados os fatores hormonais e
fisiológicos, seguidos dos fatores sociodemográficos, e posteriormente os fatores psicossociais. Baseava-
se na premissa que na gestação, o corpo feminino produz muito mais progesterona do que no seu estado
normal, e parte dela fica concentrada na placenta, e na ocasião do parto, quando a placenta também é
retirada, há uma queda abissal nos níveis hormonais em questão de horas, e esta queda é apontada como

www.sp-ps.pt 829
DEPRESSION POSTPARTUM: A REVIEW ABOUT RISK FACTORS AND
PROTECTION

causa determinante para a instalação do quadro de depressão. Assim, sob o ponto de vista médico, a
depressão é resultante da grande variação nos níveis de hormônios sexuais circulantes (estrogênio e
progesterona) e de uma alteração no metabolismo das catecolaminas (Santos, 2001), além de fatores
genético-hereditários, obstétricos e de saúde da gestante e do bebê (Aliane, Mamede, & Furtado, 2011;
Zinga, Phillips, & Born, 2005).
A DPP tem importantes consequências sociais e familiares, sobretudo para a díade mãe-bebê, mas
também para a tríade mãe-pai-bebê, a saber: problemas conjugais, atraso no desenvolvimento do bebê e
grande sofrimento psíquico para a mãe, inclusive com risco aumentado para o suicídio (Bortoletti, 2007;
Pereira & Lovisi, 2008; Rojas et al., 2010; Santos, 2001). Há, portanto, evidências de efeitos adversos ao
desenvolvimento do bebê, como pode ocorrer nos casos de mães com DPP, quando não adequadamente
diagnosticadas e tratadas (Arrais, Mourão, & Fragalle, 2014; Bortoletti, 2007; Faisal-Cury & Menezes,
2012; Greinert & Milani, 2015; Ramos, & Furtado, 2007; Sousa, Prado, & Piccinini, 2011; Theme Filha
et al., 2016; Zambaldi et al., 2010). Desse modo, esse tema assume grande importância clínica, com
repercussões para a saúde pública, em especial quando se considera sua repercussão mental e social para a
mãe e desenvolvimental para o bebê (Costa, 2012; Medeiros, 2012; Pedreira & Leal, 2015).
Fatores de risco são eventos ou situações já estabelecidas propícias ao surgimento de problemas
físicos, psicológicos e sociais, que serão neste trabalho convencionados em apresentar maior intensidade
no período gravídico-puerperal. De acordo com Figueira, Gomes, Diniz e Silva Filho (2011) o
estabelecimento de fatores de risco pode contribuir para melhor compreensão da doença e para a
elaboração de estratégias de prevenção e de diagnóstico precoce. Pesquisas apontam diversos fatores de
risco para o desencadeamento da DPP, como: Gestante solteira, conflitos conjugais, falta de apoio do pai
do bebê, histórico familiar de depressão, depressão e ansiedade gestacional, gravidez não desejada,
suporte social fraco, eventos estressantes e adversos a gravidez, idealização da maternidade, histórico de
violência intrafamiliar, presença de dificuldades financeiras no pós-parto, de estresse no cuidado com o
bebê e complicações obstétricas maternas durante a gestação ou no puerpério (Arrais et al., 2014; Arrais,
Lordello, & Cavados, 2015; Brito Alves, Ludermir, & Araújo 2015; Faisal-Cury & Menezes, 2012;
Figueira et al., 2011; Greinert & Milani, 2015; Pereira & Lovisi, 2008; Puccia & Mamede, 2012; Sousa et
al., 2011; Zambaldi et al., 2010).
Já os fatores de proteção são condições do próprio indivíduo que podem contribuir para um melhor
enfrentamento de determinados eventos de riscos, e são medidas preventivas, ou situações já
estabelecidas que funcionem como proteção às influências que transformam ou melhoram respostas
pessoais (Calvetti, Muller, & Nunes, 2007). Constituem fatores de proteção para a DPP: Apoio de outra
mulher, detecção precoce da depressão, suporte social, boa relação conjugal e suporte emocional do
companheiro, estabilidade socioeconômica, sistema de apoio familiar, intervenção multidisciplinar, logo
que os sintomas sejam detectados e o pré-natal psicológico (Arrais et al., 2014; Arrais et al., 2015;
Bortoletti, 2007; Santos, 2014; Sousa, Prado, & Piccinini, 2011).
Todavia, é preponderante destacar o caráter dinâmico e subjetivo de fatores de risco, que devem ser
trabalhados como processo e não como variável em si, que devem ser relativizados de acordo com a
própria subjetividade da pessoa, assim também como os fatores de proteção, que devem estar em
equilíbrio com a história de vida da gestante (Calvetti et al., 2007).
Diante do exposto, o presente artigo teve como objetivo analisar criticamente a literatura científica
produzida sobre os fatores de risco e de proteção para a DPP indicando os níveis de evidência nas
pesquisas realizadas nos anos de 2010 a 2015.

MÉTODO

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A.R. Arrais & T.C.C. F. de Araujo

Trata-se de uma revisão que reúne literatura empírica, como estudos observacionais ou
intervencionais, com a finalidade de promover maior compreensão e entendimento sobre um fenômeno
particular ou questões em saúde (Galvão & Pereira, 2014). Como guia metodológico, essa revisão deve
ser caracterizada por seis etapas: identificação do tema ou questionamento de revisão determinada por
questão norteadora; amostragem ou busca na literatura que abarca os critérios de inclusão e exclusão e
seleção dos estudos que irão compor a amostra; categorização dos estudos que define as informações a
serem extraídas do estudo, bem como sua organização e sumarização; avaliação por meio de análises
críticas dos estudos incluídos; interpretação dos resultados; síntese do conhecimento apresentado e
conclusões (Galvão & Pereira, 2014). Seguindo essas etapas, a pergunta norteadora do estudo foi definida
como “Quais são os fatores de risco e de proteção para a DPP identificados na literatura científica, no
período de 2010 a 2015? ”.
Utilizaram-se as bases de dados Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde
(Lilacs), Scientific Electronic Library Online (Scielo) e Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados
Unidos (Pubmed), no período de janeiro de 2010 a dezembro de 2015. Foram incluídos no estudo os
artigos publicados nas línguas inglesa, portuguesa e espanhola, cujos conteúdos abordassem o tema
investigado com textos completos disponíveis. Esses estudos deveriam abordar explicitamente fatores de
risco e/ou de proteção para a DPP.
Para a seleção da amostra procedeu-se a leitura minuciosa dos títulos e resumos dos artigos, atentando
para sua relação com a questão norteadora e os critérios adotados. Os critérios de inclusão foram: (a)
amostra deveria incluir gestantes ou puérperas; (b) Artigos relacionados aos fatores de risco para DPP; (c)
Artigos relacionados aos fatores de proteção para DPP; (d) Artigos relacionados aos fatores de risco e
fatores de proteção para DPP; (e) Artigos baseados em pesquisas empíricas e/ou ensaios clínicos. Os
critérios de exclusão foram os seguintes: artigos repetidos em mais de uma base de dados, artigos de
opinião, reflexão crítica, artigos teóricos e de revisão, monografias, dissertações, teses, livros e artigos
fora do período investigado. Utilizaram-se os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), com auxílio do
operador booleano AND para combinação dos mesmos e termos utilizados para rastreamento das
publicações, nas três bases de dados, conforme Quadros 1, 2 e 3 a seguir:

Quadro 1.
Estratégias de busca dos artigos na base Lilacs
Descritores Combinações Artigos
3 descritores Risco AND Depressão AND Pós-parto 43
3 descritores Proteção AND Depressão AND Pós-parto 4
4 descritores Risco AND Proteção DPP 3
Total 50

Quadro 2.
Estratégias de busca dos artigos na base Pubmed
Descritores Combinações Artigos
2 descritores Risk AND Postpartum AND 637
Depression
3 descritores Protection AND Postpartum AND 8
Depression
4 descritores Risk AND Protection AND Postpartum 6
Depression
Total 651

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DEPRESSION POSTPARTUM: A REVIEW ABOUT RISK FACTORS AND
PROTECTION

Quadro 3.
Estratégias de busca dos artigos na base Scielo
Descritores Combinações Artigos
2 descritores Risk AND Postpartum AND 34
Depression
3 descritores Protection AND Postpartum AND 1
Depression
4 descritores Risk AND Protection AND Postpartum 1
Depression
Total 36

Como resultado dessa primeira fase da busca, encontrou-se 737 publicações nos portais, sendo 50 no
Lilacs, 651 no Pubmed e 36 no Scielo, potencialmente elegíveis para inclusão nesta revisão. Após
avaliação dos títulos dos 737 artigos, verificou-se que 677 não atendiam aos critérios de inclusão. Foram
consideradas elegíveis para a segunda fase desta revisão, 60 publicações que atenderam aos critérios de
inclusão, sendo 20 encontrados no Lilacs, 34 no Pubmed e seis no Scielo, conforme Figura 1:

. LILACS
LILACS PUBMED SciEL
IBECS

O
Encontrados Encontrados
Encontradoe Encontrados
D
s
50 651 36
16
16 229
16

Selecionados Selecionados Selecionados


20 34 06

Figura 1.
Distribuição do número de artigos encontrados e selecionados nas bases de dados Lilacs, Pubmed e Scielo

A busca, seleção e análise dos estudos foram realizadas por dois revisores de forma independente, para
conferir maior rigor à busca e aplicação dos critérios de inclusão e exclusão. Por fim, agruparam-se os
fatores de risco e proteção listados pelos artigos em três categorias de análise: a) fatores de risco e
proteção psicossociais, b) fatores de risco e proteção físicos, c) fatores de risco e proteção
sociodemográficos/contextual.

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RESULTADOS

Dentre a amostra dos 60 artigos, foram encontrados 53 fatores de risco e 11 fatores de proteção para
DPP. Os fatores de mais frequentemente citados pertenciam à categoria de fatores de risco e proteção
psicossociais, com um total de 43 artigos ou 71% da amostra. Fatores sociodemográficos aparecem em
segundo lugar, com 23 artigos ou 38% dos estudos, seguidos dos fatores físicos com 21 artigos, ou 35%
das publicações. Um mesmo artigo pode ter explorado mais de um desses fatores.
Cabe esclarecer que, por representar a maioria dos fatores encontrados, no presente artigo serão
apresentados e discutidos apenas os resultados referentes aos fatores de risco e proteção psicossocial que
representaram 71% da amostra.
O Quadro 4, a seguir, sintetiza os dados da categoria fatores de risco e proteção psicossociais.

Quadro 4.
Síntese dos artigos selecionados sobre fatores de risco e proteção psicossociais
Autores Ano País Base Tipo Instrumentos Fator

Greinert & Milani 2015 Brasil Pubmed Quali*trans*** Entrevistas Risco

Bos et al. 2013 Brasil Lilacs Quanti**long**** Prof Mood Proteção


States, BDI-
II
Rodrigues & Schiavo 2011 Brasil Scielo/ Quanti long ISSL, Risco
Lilacs Entrevista,
EPDS
Castro et al. 2015 México Pubmed Quanti trans EPDS Risco

Kinsey et al. 2014 EUA Pubmed Coorte long EPDS Risco

Garfield et al. 2015 EUA Pubmed Quanti trans TEPT Q, Risco


IDADTE,
EPDS
El-Hachem et al. 2014 Líbano Pubmed Quanti long EPDS Risco

Kim et al. 2014 Canadá Pubmed Survey EPDS Proteção

Wu et al. 2014 China Pubmed Quanti long Sleep Quality Risco


Ind, EPDS
Tasneem et al. 2014 África Pubmed Quali long Entrevistas Risco
do Sul
Turkcapar et al. 2015 Turquia Pubmed Quanti long EPDS Risco

Epifânio et al. 2015 Itália Pubmed Quanti trans Parenting Risco


Stress Ind.,
EPDS
Masmoudi et al. 2014 Tunísia Pubmed Quanti prosp MSSS, Risco
AZARIN,
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PROTECTION

EPDS

Cantilino et al. 2010 Brasil Scielo Quanti long Int Axis I Risco
DSM-IV
Rojas et al. 2010 Chile Scielo Quanti trans Quest Risco
sociodemogr
áficos
Rodríguez et al. 2013 Venezu Lilacs Quanti descritivo EPDS Risco
ela
Martín-Santos et al. 2012 Espanh Pubmed Quanti trans EPQ-RS, Risco
a EPDS
Rohitkumar et al. 2014 EUA Pubmed Quanti trans EPDS Risco

Al Hinai & Al Hinai 2014 Oman Pubmed Quanti prospectivo EPDS Risco

Liu &Tronick 2013 EUA Pubmed Quanti trans Inquérito Risco


populacional
Nunes & Phipps 2013 EUA Pubmed Coorte Risk Rhode Risco
retrospectivo Island Q
Rogers 2012 EUA Pubmed Quanti trans EPDS Risco

Urquia et al. 2011 Canadá Pubmed Coorte EPDS Risco


retrospectivo
TianTian et al. 2012 China Pubmed Coorte, caso- Entrevistas Risco
controle
Guedes et al. 2011 Brasil Lilacs Quanti long Entrevistas, Risco
EPDS
McMahon et al. 2015 EUA Pubmed Quanti long Mini Plus Risco

Figueira et al. 2011 Brasil Lilacs/ Quanti trans Mini Plus Risco
Scielo
Faisal-Cury& Menezes 2012 Brasil Lilacs Coorte Prospectivo SQR-20 Risco

Silva et al. 2012 Brasil Lilacs Quanti long EPDS Risco

Iliadis et al. 2015 EUA Pubmed Quanti trans EPDS, Risco


DSRS,SSP
Morais et al. 2015 Brasil Lilacs Quanti trans EPDS, EAS Risco

Urdaneta et al. 2011 Venezu Lilacs Quanti trans EPDS Risco


ela
Lara et al. 2010 México Scielo Quanti long BDI-II, SCL- Risco
90,SSA
Darvey et al. 2011 Canadá Pubmed Coorte EPDS Risco
randomizado
Marques et al. 2010 Portuga Pubmed Quanti trans Entv. Diag. Risco
l Est.
Genéticos

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Collado et al. 2014 Espanh Pubmed Quanti long Entrevistas Proteção


a /
França
Konradt et al. 2011 Brasil Lilacs/ Coorte EPDS Proteção
Scielo
Arrais et al. 2014 Brasil Lilacs Misto long EPDS, Grupo Risco/
focal Proteção
Dantas et al. 2012 Brasil Lilacs Quanti trans SSA, EPDS Proteção

Miranda et al. 2012 Brasil Scielo Quanti trans PBI, CES-D, Risco/
EPDS Proteção
Bhandari et al. 2012 EUA Pubmed Misto randomizado Entrevista Risco/
proteção
Kozinszky et al. 2012 Hungri Pubmed Quantirandomizado Levrton Risco/
a Quest, grupo Proteção
Le et al. 2011 EUA Pubmed Quanti long BDI-II, Proteção
Mood
Screener,
grupo
*qualitativo; **quantitativo; ***transversal; ****longitudinal

O Quadro 4 revela que a maior concentração de publicações sobre o tema deu-se no ano de 2014, com
10 artigos ou 23%, seguido do ano de 2012 com nove publicações ou 20%, dos anos de 2011 e 2015 com
oito artigos ou 18% cada e por último os anos de 2010 e 2013 com apenas quatro manuscritos cada ou 9%.
Não se observa, portanto, um crescimento linear e sim alternado, ao longo do tempo, quanto à quantidade
de publicações sobre fatores de risco e proteção psicossociais para DPP ao longo dos últimos anos.
Com relação ao país de origem dos estudos com foco nos fatores psicossociais, encontraram-se 13
publicações do Brasil, 10 dos Estados Unidos, três do Canadá, dois da China, dois do México, dois da
Venezuela, dois da Espanha, e um estudo da Hungria, França, Líbano, África do Sul, Itália, Portugal,
Oman, Chile, Tunísia, Turquia cada. Esse resultado mostra que o interesse por estudar fatores de risco e
de proteção para a DPP, ultrapassa fronteiras e tem se disseminado pelos continentes, pois se encontrou
pelo menos um estudo em vários países sobre o tema, além das pesquisas pioneiras realizadas na Grã-
Bretanha, nos Estados Unidos e Japão, como mostrou Santos em 2001.
Quanto às bases de dados, dos 43 artigos foram identificados, a sua maioria, 27 ou 62% foi na base
Pubmed, seguido 27 ou 12% na base Lilacs e 16% ou sete na base Scielo. Um mesmo artigo pode ter sido
encontrado em mais de uma base ao mesmo tempo, porém só foi contabilizado uma vez na amostra. Cabe
ressaltar que a base Lilacs utilizada, privilegia os estudos realizados na América Latina e Caribe e por
essa razão as publicações de países provenientes desses locais, como: Brasil, Venezuela e Chile, tenha
sido representativa com 41% dos artigos da presente revisão. O Brasil e os Estados Unidos foram os
países responsáveis pela maior parte das publicações, com 30% e 23%, respectivamente.
Quanto aos métodos das pesquisas, se verifica majoritariamente o delineamento quantitativo, com 39
deles ou 90% das publicações selecionadas. Destes, 19 ou 44% têm delineamento transversal, 14 ou 32%
longitudinal, sete ou 16 de coorte, três ou 6% prospectivos, um ou 2% descritivo, um ou 2% survey. Os
estudos qualitativos e mistos somam apenas dois ou 4% cada. Esse resultado mostra que o método
quantitativo ainda é hegemônico nas pesquisas na área da saúde. Os estudos mistos e qualitativos
aparecem com tímida representatividade na amostra, totalizando apenas 9% dos métodos escolhidos pelos
pesquisadores.

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DEPRESSION POSTPARTUM: A REVIEW ABOUT RISK FACTORS AND
PROTECTION

O tipo de delineamento mais utilizado foi o transversal, o que vai de encontro com os resultados da
revisão sobre os fatores de risco associados à DPP de Aliane et al. (2011), na qual os estudos
longitudinais foram os mais frequentes. Há de se considerar a importância dos delineamentos
longitudinais para o estudo de fatores de risco, uma vez que existe a influência do tempo sobre o
fenômeno estudado. Neste sentido, alguns fatores de risco podem se associar à DPP em estudos
transversais, porém avaliações prospectivas não manteriam essa associação. Desta forma, se verifica a
importância deste tipo de delineamento, bem como a contribuição de vários momentos de avaliação a fim
de identificar quais variáveis mantêm-se associadas ao fenômeno estudado (Aliane et al., 2011; Galvão et
al., 2015).
Quanto aos instrumentos utilizados para rastrear a DPP, destaca-se a maior prevalência de escolha pela
Escala de Depressão pós-parto de Edinburgh Scale (EPDS) que foi utilizada em 26 ou 58% dos estudos
analisados. Esse é um instrumento de triagem e rastreamento que averigua possíveis índices de depressão
no puerpério. É auto avaliativa e autoaplicável, constituída por dez itens, de fácil aplicação por
profissionais de saúde. Consiste em um instrumento bastante utilizado em estudos sobre DPP (Lobato,
Moraes, & Reichenheim, 2011). As revisões s feitas por Aliane et al. (2011), por Galvão et al. (2015) e
Schardosim e Heldt (2011) e também encontraram que a escala EPDS foi a mais utilizada pelos
pesquisadores.
Outras escalas também foram utilizadas para medir sintomas de cunho psicossocial, a saber: o Beck
Depression Inventory II (BDI- II), a Structured Clinical Interview for Axis I Disorders DSM-IV, Mini
International Neuropsychiatric Interview (MINI-Plus), Escala de Apoio Social de MOS (EAS), Center
for Epidemiologic Studies-Depression Scale (CES-D), Postpartum Depression Screening Scale (PDSS),
Inventário de Sintomas de Stress de Lipp (ISSL), Escala estados de humor, Pittsburgh Sleep Quality
Index, Parenting Stress Index-Short, Escala de apoio social à maternidade (MSSS), a Escala Azrin, The
Patient Health Questionnaire (PHQ-9), Eysenck Personality Questionnaire Revised Short Scale (EPQ-
RS), Self Report Questionnaire (SRQ-20), Depression Self-Rating Scale (DSRS), Scale of Personality
(SSP), Hopkins Symptomb Check List 90 (SCL-90) e escala de apoio Apgar social (SSA), Mood Screener.
Além de questionários epidemiológicos e entrevistas diagnósticas semiestruturadas, grupos focais para
coleta dos dados sociodemográficos e clínicos, geralmente elaborados pelos próprios pesquisadores.
A grande maioria das pesquisas selecionadas (n = 35 ou 81%) focou no estudo dos fatores de risco
para DPP, apenas quatro ou 9% focaram nos fatores de proteção e outras quatro ou 9% em ambos os
fatores. Cabe ressaltar que, os estudos não usam com frequência o termo fatores de proteção
explicitamente, utilizam majoritariamente o termo fatores de risco

Por fim, os fatores que foram agrupados na categoria fatores de risco e proteção de caráter
psicossocial estavam relacionados a aspectos psicológicos, de personalidade, de tratamento psicológico,
de histórico psiquiátrico, de rede de apoio social, familiar e conjugal. Esses foram reagrupados em quatro
subcategorias, a saber: fatores de risco e fatores de proteção psicológico/psiquiátrico e fatores de risco e
fatores de proteção suporte social/relações interpessoais, que podem ser visualizados no Quadro 5 que
sintetiza, a seguir:

Quadro 5.
Subcategorização dos Fatores de risco e proteção psicossociais para DPP
Sub Fator Publicações Quantidade
catego
ria
Histórico de Castro et al., 2015; Darvey et al., 2011; El-
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episódios Hachem et al., 2014; Figueira et al., 2011; 13 ou 21%


depressivos Martín-Santos et al., 2012; Morais et al., 2015;
pessoais anterioresNunes & Phipps, 2013; Rodríguez et al., 2013;
à gestação Rohitkumar et al., 2014; Rojas et al., 2010;
Silva et al., 2012; TianTian et al., 2012;
Urdaneta et al., 2011
Presença de Bos et al., 2013; Figueira et al., 2011; Lara et 9 ou 15%
estresse da mãe na al., 2010; Liu & Tronick, 2013; Martín-Santos
gestação et al., 2012; Nunes & Phipps, 2013; Rodrigues
& Schiavo, 2011; Silva et al., 2012; TianTian
et al., 2012

Ansiedade Darvey et al., 2011; Figueira et al., 2011; 5 ou 8%


gestacional Garfield et al., 2015; Lara et al., 2010; Rogers,
2012.
Depressão Faisal-Cury & Menezes, 2012; McMahon et 4 ou 6%
gestacional al., 2015; Nunes & Phipps, 2013; Turkcapar et
Fator al., 2015
de Baixa auto eficácia Darvey et al., 2011; Epifânio et al., 2015; 4 ou 6%
risco no papel parental Greinert & Milani, 2015; Rogers, 2012
psicló Neuroticismo Iliadis et al., 2015; Martín-Santos et al., 2012; 4 ou 6%
gico/ Silva et al., 2012; TianTian et al., 2012
psiqui
átrico Antecedente Masmoudi et al., 2014; Zambaldi et al., 2010; 3 ou 5%
psiquiátrico pessoal Turkcapar et al., 2015.
História de DPP Faisal-Cury & Menezes, 2012; Kinsey et al., 3 ou 5%
anterior 2014; Turkcapar et al., 2015
Idealização da Arrais et al., 2014; Greinert & Milani, 2015 2 ou 32%
maternidade

Transtorno do Garfield et al., 2015 1 ou 1%


estresse pós-
traumático

Pensamentos Turkcapar et al., 2015 1 ou 11%


suicidas durante a
gravidez

Insatisfação com a Rohitkumar et al., 2014; Turkcapar et al., 2015 2 ou 32%


gravidez

Pensamentos Tasneem et al., 2014 1 ou 1%


negativos e
isolamento social

Afeto negativo, Bos et al., 2013; Marques et al., 2010 2 ou 3%


baixa qualidade de
vida e percepção de
ter um bebê mais
difícil.
www.sp-ps.pt 837
DEPRESSION POSTPARTUM: A REVIEW ABOUT RISK FACTORS AND
PROTECTION

História familiar de Rojas et al., 2010; Zambaldi et al., 2010 2 ou 3%


transtornos mentais
Programa de pré- Arrais et al., 2014; Collado et al., 2014; 4 ou 6%
natal com base Kozinszky et al., 2012
numa abordagem
Fator psicológica
de
proteç Relação saudável Bhandari et al., 2012; Miranda, 2012 2 ou 3%
ão com próprias mães
psicol
ógico/ Participação nas Ding et al., 2014 1 ou 1%
Psiqui aulas de parto
átrico durante a gravidez
Baixo apoio social Bos et al., 2013; Figueira et al., 2011; Guedes 10 ou 16%
Fator e familiar et al., 2011; Urdaneta et al., 2011; Martín-
de Santos et al., 2012; Nunes & Phipps, 2013;
risco Rojas et al., 2010; Tasneem et al., 2014;
suport Turkcapar et al., 2014
e
social/ Exposição à Castro et al., 2015; Urquia et al., 2011; 3 ou 5%
relaçã violência por Turkcapar et al., 2015
o parceiro íntimo no
interp ciclo gravídico
essoal puerperal

Não ter o apoio de Guedes et al., 2011; Lara et al., 2010; Silva et 5 ou 8%
seu parceiro al., 2012; Rodríguez et al., 2013; Urdaneta et
al., 2011;
Falta de apoio Figueira et al., 2011; Kim et al., 2014; 3 ou 5%
social no puerpério McMahon et al., 2015

Conflito/ satisfação Guedes et al., 2011; Lara et al., 2010; 6 ou 10%


conjugal Masmoudi et al., 2014; Morais et al., 2015;
Tasneem et al., 2014; Wu et al., 2014

Conflito familiar Al Hinai & Al Hinai, 2014. 1 ou 1%


Fatore Percepção de Konradt et al., 2011; Kozinszky et al.,2012 2 ou 3%
s de suporte social
proteç durante a gravidez
ão
suport Apoio social no Dantas et al., 2012 1 ou 1%
e puerpério
social/
relaçã Relações sociais Bhandari et al., 2012 1 ou 1%
o positivas
interp
essoal

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A.R. Arrais & T.C.C. F. de Araujo

- Fatores de risco psicológico/psiquiátrico


Nesta subcategoria, se agruparam fatores como ter tido episódio de depressão anterior a gestação,
vivência de situações de estressantes, e sentimentos de baixa autoestima. Dos artigos selecionados nesta
subcategoria, foram encontrados 15 fatores de risco psicossociais para DPP, que foram investigados e
citados em 39 ou 38% dos artigos. O fator mais frequente foi o Histórico de episódios depressivos
pessoais anteriores à gestação, citado por 13 ou 33% das publicações. O segundo fator mais estudado
nessa categoria foi a Presença de estresse na gestação, citado em nove ou 23,07% dos manuscritos. Mas
um deles não confirmou a há associação entre o estresse nos pais, homens, e a DPP (Garfield et al., 2015).
Em terceiro lugar, encontrou-se o fator Ansiedade gestacional, com cinco estudos ou 12,82%, seguido dos
fatores Depressão gestacional, Baixa autoeficácia no papel parental e Neuroticismo, todos com quatro ou
10% dos estudos cada.
Parte desses dados confirma a observação clínica já descrita na literatura científica em que algumas
mulheres com DPP já estavam deprimidas na gestação (Aliane et al., 2011) e justifica a nova
nomenclatura de depressão periparto, adotada pela APA a partir de 2014. Mas, ao contrário do que a
literatura da área preconiza, tanto a História de DPP, quanto à Presença de antecedentes psiquiátricos
pessoais, não foram fatores de risco frequente nos estudos dessa categoria, aparecendo em apenas três
artigos ou 7% cada.
Outros fatores que são apontados na literatura da área (Aliane et al., 2011; Costa, 2012; Arrais et al.,
2015; Oliveira & Carvalho, 2017) , também tiveram baixa representatividade nos artigos selecionados,
como os fatores: Idealização da maternidade, Transtorno do estresse pós-traumático, Pensamentos
negativos e isolamento social, Pensamentos suicidas durante a gravidez, Insatisfação com a gravidez,
Afeto negativo, Baixa qualidade de vida e percepção de ter um bebê mais difícil, e História familiar de
transtornos mentais.
Os fatores de risco, assim como os vários fatores de proteção para DPP encontrados na presente
revisão são, na sua maioria, concordes quanto aos fatores apontados pela literatura (Arrais et al., 2014;
Arrais et al., 2015; Bortoletti, 2007; Collado et al., 2014; Costa et al., 2012; Garthus et al., 2014;
Kozinszky et al., 2012; Medeiros, 2012; Milbrath et al., 2010; Pedreira & Leal, 2015; Zambaldi et al.,
2010; Zambaldi et al., 2011). Porém, deve-se evitar o raciocínio linear quando se trata de riscos
psicológicos. É necessária uma identificação do risco e de suas consequências a partir da vivência
subjetiva do indivíduo. Isso quer dizer que fatores de risco e de proteção apenas podem ser considerados
se relativizados com o histórico da gestante (Calvetti et al., 2007).
- Fatores de proteção psicológico/psiquiátrico
Quanto aos Fatores de proteção psicológico-psiquiátricos, encontraram-se três fatores, citados em oito
artigos, sendo o fator Programa de pré-natal com base numa abordagem psicológica o mais frequente com
quatro estudos ou 50%, ainda que um deles não confirme essa associação (Le et al., 2011). Outro fator
encontrado em apenas um ou 12% estudo diz respeito à Relação / ligação saudável das gestantes com suas
próprias mães.
Esse resultado sugere que programas de pré-natal com base numa abordagem psicológica, seja ela de
referencial teórico prático da psicossomática ou psicoeducacional, como o pré-natal psicológico, podem
contribuir para ampliar fatores de proteção à DPP (Arrais et al., 2015; Bortoletti, 2007).

- Fatores de risco suporte social/relações interpessoais


Quantos aos Fatores de risco suporte social/relações interpessoais foram encontradas seis
subcategorias. O fator mais prevalente foi o Baixo apoio social e familiar, que foi estudado em 10 artigos
ou 25% da amostra, mas um manuscrito não mostrou associação entre esse fator e a DPP (Morais et al.,
2015). Conflito e insatisfação conjugal e, não ter o apoio de seu parceiro que são fatores semelhantes
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DEPRESSION POSTPARTUM: A REVIEW ABOUT RISK FACTORS AND
PROTECTION

aparecem em segundo e terceiro lugar em prevalência, em seis e cinco estudos respectivamente. Em


seguida, encontrou-se Falta de apoio social no puerpério, em três artigos e Exposição à violência por
parceiro íntimo no ciclo gravídico puerperal em dois artigos, e Conflito familiar em um artigo.
- Fatores de proteção suporte social/relações interpessoais
Os fatores de proteção quanto ao suporte social/relações interpessoais encontrados dividiram-se em
três subcategorias: Percepção de suporte social durante a gravidez, que representa 3% ou duas
publicações, Apoio social no puerpério e Relações sociais positivas, com um cada ou 1% da amostra.

DISCUSSÃO

Os estudos revisados indicam que, em primeiro lugar, os fatores de risco psicossociais representam a
maioria dos artigos encontrados, o que sugere que a investigação sobre fatores de risco e proteção para
DPP tem privilegiado o estudo dos fatores psicossociais, ao invés de fatores físicos/ hormonais, como
acontecia há alguns anos atrás, quando a maioria dos estudos sobre as prováveis causas da DPP centram-
se na causalidade biológica (Aliane, et al., 2011; Santos, 2001; Zinga et al., 2005). Se todas as mulheres
apresentam essas alterações hormonais, tanto na gravidez quanto no parto, mas apenas cerca de 20% delas
vão apresentar os sintomas depressivos no puerpério, se pode supor que outros fatores estão envolvidos
nesta problemática, e que eles vinham até o ano 2.000 negligenciado na literatura médica da área (Santos
2001).
A ênfase nos fatores de risco e proteção psicossociais, resultado que também foi encontrado na revisão
sobre o mesmo tema, realizada por Aliane et al. (2011), sugerem uma evolução e ampliação do olhar
sobre a mulher com DPP, que vai ao encontro da do estudo de Arrais et al. (2015) de que seja qual for a
dose hormonal para o comportamento materno, está claro que tais hormônios não são necessários nem
suficientes para determiná-los. A maternagem é marcantemente uma função de base psicológica, que
consiste na experiência pessoal e psicológica do eu materno em relação ao filho, marcada por estereótipos
de gênero que permeiam as relações sociais e que geram transtornos emocionais em mulheres,
especialmente neste período crítico da gravidez e puerpério.
Destaca-se nessa revisão que, felizmente, o Brasil também foi incluído no rol de países que tem
reconhecido e tratado a DPP como problema de saúde que afeta a população feminina, com uma produção
científica crescente e expressiva, encontrada tanto na presente revisão, quanto na realizada por Aliane et
al. (2011), Galvão, Silva Júnior, Lima e Monteiro (2015) que chegaram à mesma conclusão. Com base
nesses resultados, se pode afirmar que os estudos e publicações brasileiras não se restringem mais a
pequenos capítulos no interior de livros de medicina sobre a gravidez ou preparação para a maternidade,
como acontecia na década de 1990 (Santos, 2001).
Destarte tal resultado, nota-se, que apesar de o estudo da DPP ser um tema presente na discussão de
ordem mundial, como discutido anteriormente, estes têm uma predominância de pesquisas com
abordagem quantitativa, evidenciando uma possível lacuna no enfoque qualitativo sobre o tema, como
alertam Arrais et al. (2014) e Collado, Favrod, e Hatem (2014).
Quanto aos instrumentos utilizados nos estudos, essa revisão mostrou que, assim como Aliane et al.
(2011), Lobato et al. (2011), Schardosim, e Heldt (2011), e Galvão et al. (2015) as escalas são comumente
utilizadas nas pesquisas, por serem uma ferramenta facilitadora para rastreamento e identificação de DPP
na assistência às puérperas. Dessa forma, a utilização de escalas validadas, pode contribuir para a
produção de novas evidências acerca da relação entre fatores de risco e principalmente de proteção para a
DPP. Essas evidências podem ser importantes para subsidiar o profissional de saúde, em especial do
psicólogo da saúde, na aplicação preventiva de uma abordagem adequada ao enfrentamento do problema.

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A.R. Arrais & T.C.C. F. de Araujo

Encontrou-se na presente revisão que, a maioria das pesquisas priorizou os fatores de risco para DPP,
em detrimento dos fatores de proteção. Chama atenção, o foco da literatura científica da área sobre o viés
da doença, do risco e não da saúde, da proteção, como nos alerta a teoria da psicologia positiva. Essa
teoria surgiu há pouco mais de 25 anos, para levantar importantes questões não apenas relativas às
emoções negativas, com frequência enfatizada por várias abordagens teóricas, mas principalmente, que
vem focar seu estudo nas emoções positivas, nas potencialidades humanas e na sua busca por superação.
A intenção desta abordagem é suplementar ao que se tem de conhecimento sobre as fraquezas e
patologias humanas, explorando o que há de positivo na vida (Arrais et al., 2015).
Em síntese, pode-se afirmar que esses resultados da presente revisão revelam a grande variedade de
métodos e instrumentos utilizados, o interesse crescente e mundial pelo tema da DPP, bem como um
elevado número de fatores considerados de risco para DPP (n = 53) e o baixo número de fatores de
proteção (n = 11) que têm sido investigados na literatura que abrange o período de 2010 a 2015.
Esta revisão da literatura mostrou que, ter tido depressão na vida, a presença de estresse e ansiedade e
depressão durante a gestação, baixo suporte social e familiar, falta de apoio do parceiro e falta de apoio
social no puerpério, são fatores que aumentam o risco de ter DPP.
Em contrapartida, ter participado de algum programa de pré-natal com base numa abordagem
psicológica, ter uma relação saudável com suas próprias mães e ter suporte social na gestação e no
puerpério e manter relações sociais positivas podem proteger a gestante contra a DPP, e podem minimizar
o impacto que os fatores de risco podem causar o que confirma vários estudos da área (Arrais et al.,
2015).
Os estudos evidenciam que a DPP é um problema latente e um campo aberto e amplo a ser explorado,
sendo uma realidade cada vez mais constante no cotidiano de trabalho dos profissionais da Atenção
Básica, onde médicos e, particularmente, os psicólogos da saúde, situam-se em uma posição favorável
para detectar precocemente e intervir, evitando o agravamento do processo da DPP.

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10
A TEORIA DE GÊNERO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO
DA MATERNIDADE E DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO

Alessandra da Rocha Arrais1

O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o nascimento de um bebê?
Como entender que esse momento considerado tão feliz e esperado do ciclo vital
familiar se transforme em um momento depressivo? Por quê a chegada do bebê parece
ter o poder de provocar um estado depressivo na mãe?
No período pré-natal, muitas vezes, as preocupações giram apenas em torno do
chá de bebê, do quarto, do enxoval e das demais providências práticas a serem tomadas
para a chegada de um filho. É rara a discussão séria acerca das dificuldades emocionais
que a grande maioria das mães vivencia no período do parto e pós-parto, bem como
sobre as tarefas familiares que o casal tem a cumprir para ultrapassar esta etapa. Quando
esses temas surgem, geralmente ocorrem em tons de brincadeira e de forma caricata,
que não provocam a reflexão necessária.
Certamente, carregar no próprio corpo um novo ser pode ser uma oportunidade
ímpar e fascinante. Uma promessa de esperança, um potencial de luz, de continuidade e
de amor. Entretanto, a maternidade implica em alterações em diversos espaços da vida
da mulher, sejam eles pessoais, emocionais, profissionais ou sociais, que podem
acarretar em mais sofrimento do que se pode supor.
Ser mãe, no sentido de gerar é uma possibilidade exclusiva da mulher. Inerente a
essa realidade, entretanto, é comum essa potencialidade originar crises, conflitos e
sentimentos contraditórios entre si. Erikson (1976) ilumina nossas idéias nessa direção,
ao lembrar-nos que cada uma das fases evolutivas do ciclo vital de uma pessoa carrega
em si uma situação potencialmente crítica, a qual pode ocasionar uma crise, sendo esta
entendida como uma ruptura do status quo psíquico que requer novas respostas
adaptativas. Portanto, a crise da depressão pode ocorrer em qualquer época da vida,
inclusive durante momentos socialmente felizes, como o parto e o nascimento de um
filho (Ribeiro, 2002).
O puerpério2 é um desses períodos vulneráveis, constituindo-se, portanto como
um período de risco psiquiátrico aumentado no ciclo de vida da mulher (Erikson, 1976).
Na fase pós-natal, a sociedade espera que a mãe esteja muito feliz e satisfeita com o seu
novo rebento. Todos cobram da mulher grávida estar radiante: seu companheiro, sua
família, seus amigos e até os profissionais que a assistem na gestação, e, por isso,
geralmente desconsideram seus reais sentimentos. As mesmas atitudes são vistas no
pós- parto.
Poucos sabem, e ainda trata-se de um tabu na sociedade ocidental, que a
maternidade é vivida, por muitas mulheres, com mais sofrimento do que prazer
1
Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Brasília; profª do curso de graduação em psicologia
e mestrado em gerontologia da Universidade Católica de Brasília. Coordenadora do curso de
especialização em psicologia hospitalar da mesma universidade. Trabalha com gestantes e puérperas
desde 2001.
2
O puerpério é definido como o período que sucede o parto, podendo estender-se a até sessenta dias após
o nascimento do bebê (Corrêa & Corrêa, 1999).
(Lucena, 2004). Ao contrário do esperado, a literatura, minha experiência como mãe e
nossa prática com gestantes e puérperas3 nos mostram que a maioria das mulheres,
sobretudo as de classe média e alta, encontra na vivência da maternidade algum nível de
sofrimento psíquico, físico e social no período pré e pós-parto. Normalmente, nessas
fases, observa-se nas mães uma vivência relativamente contínua de tristeza ou de
diminuição da capacidade de sentir prazer (Santos, 1995), a qual poderá ser transitória
ou se cronificará caso não sejam assistidas adequadamente.
Para Frizzo e Piccinini (2005) os transtornos emocionais que atingem as
mulheres no período pós-parto são de três tipos: o baby blues (melancolia da
maternidade), a psicose puerperal e a depressão pós-parto (DPP), sendo esta definida
como é um episódio depressivo não psicótico. Uma depressão é classificada assim
sempre que iniciado nos primeiros doze meses após o parto. Sua manifestação clínica é
igual a das depressões em geral (Rocha, 1999; Baptista, Baptista & Oliveira, 2004). Ou
seja, a pessoa sente uma tristeza muito grande de caráter prolongado, com perda de
auto-estima, perda de motivação para a vida, é incapacitante, requerendo na maioria das
vezes o uso de antidepressivos (Ballone, 2001; Rosenberg, 2007). Sobre a depressão
pós-parto Rosenberg (2007) afirma que esse tipo de depressão apresenta uma incidência
no Brasil de aproximadamente 10% mas pode chegar até 20% das dos casos após o
parto.
É sabido que a DPP acontece com mulheres de todas as idades, classes sociais e
de todos os níveis escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que desejam muito ter um
filho, bem como aquelas que não aceitam o fato de ter engravidado. Pode ocasionar-se
no nascimento do primeiro filho, do segundo, do terceiro, ou de outros. Os autores que
estudam essa temática têm posições diversas sobre o aparecimento da DPP, e a literatura
não é concorde quanto a sua etiologia (Santos 2001; Botega & Dias, 2002; Rosenberg,
2007). Mas, se a mãe apresentou alguma história de depressão na sua vida, ela requer
mais atenção dos familiares e profissionais de saúde desde a gestação (Botega & Dias,
2002); o que normalmente não é feito nem mesmo pelos obstetras que as acompanham
no pré-natal.
A percepção de sentimentos de tonalidades negativas e contraditórias,
justamente no momento quando só deveria existir espaço para a plenitude e a felicidade,
provoca em muitas mães e profissionais uma sensação de estranhamento e inadequação.
Tanto na gestação quanto no pós-parto, são comuns assertivas do tipo: “Como você
pode estar triste, com um bebê tão lindo nos braços?”. Se a mulher ousa expressar
qualquer sentimento negativo, mesmo em relação à gestação ou a uma não–aceitação
temporária da gravidez, ou por estar enjoando muito, ou por ter parado suas atividades
pelas intercorrências de uma gravidez de risco, logo se diz que “ela está rejeitando o
filho”.
Esse tipo de associação é superficial, de cunho excludente e pejorativo, que
acarreta na caracterização da mãe com DPP como uma “aberração da natureza”. Toda
essa miscelânea de sentimentos e conflitos que a gestante geralmente vivencia não
significa que ela esteja rejeitando o filho, mas toda a complexidade da situação, para a
qual talvez não estivesse preparada (Bacca, 2005). Assim, Serrurier (1993), Maldonato
(2000), Rohenkohl (2005), Bacca (2005) e Arrais (2005) alertam para o fato de que
muitas mulheres acabam por rejeitar não o bebê em si, mas a maternidade como
instituição e muito do que isso acarreta, como por exemplo, a mudança de vida, os
sacrifícios e as obrigações. Associar estados de humor entristecido ou quadros de DPP
com rejeição ao filho, como comumente é feito não só pelos familiares e pelo senso-
comum, mas também por muitos profissionais de saúde, e da educação, é um grande e
3
A autora realiza grupos de atenção psicológica ás mães com DPP, desde 2001, na UCB.

2
preconceituoso equívoco, que acentua ainda mais o sofrimento e isolamento materno e
deve ser terminantemente combatido.
Assim, a mulher nesse caso sofre duplamente: primeiramente, pelos sentimentos
negativos vivenciados e, segundo, pela culpa em senti-los. Tudo isso, pouco alivia a dor
da mãe com depressão, quando não atrapalha ou agrava o seu sofrimento, pois a isola, a
culpabiliza e a impede de pedir ajuda. Por sentirem-se na “contra-mão” do que é
socialmente esperado e desejado, a mãe quase sempre reluta em relatar seu incômodo a
outros e a pedir ajuda profissional, mesmo que sinta muitas dificuldades no desempenho
de tarefas maternas e domésticas e que consiga perceber a sua alteração no humor
(Rosenberg, 2007).
Por isso, este sofrimento psíquico é vivido isoladamente e, o que é pior, sem um
acompanhamento profissional especializado, podendo acarretar na cronificação dos
sintomas depressivos ou somáticos e num prejuízo para a relação mãe-bebê-pai. Santos
(2001, p. 20) reafirma isso ao mostrar-nos que “a depressão pós-parto é raramente
trazida para o consultório por quem a experimenta, é vivida com dolorosa perplexidade,
com questionamentos morais, mas, sobretudo, em silêncio”. A autora acrescenta ainda
que este é um fato constatado em pesquisas estrangeiras e que se repete no Brasil.
Isso acaba acarretando não só em uma pobreza estatística sobre o fenômeno,
como também em um parco interesse e um número restrito de publicações científicas
sobre o tema. Esta realidade se reproduz na psicologia, haja vista a constatação de nossa
revisão bibliográfica revelar que a DPP é um tema ainda pouco explorado (Arrais,
2005). Dentre os escassos trabalhos psicológicos que abordam esse assunto, muitos o
interpretam do ponto de vista do bebê, levando em consideração apenas as
conseqüências negativas da DPP para o desenvolvimento e a constituição da
personalidade deste, como nos estudos de Camorotti (2001), Catão (2002), Ribeiro
(2002), Andrade (2002), Schwengber e Piccinini (2003), Frizzo, e Piccinini (2005) e
Rosenberg (2007). Estes não se atentam aos profundos prejuízos que ela pode trazer
também para as mães e para a díade mãe-bebê, e até mesmo, para a tríade mãe-pai-bebê.
Os últimos relatórios sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil,
2004) nos confirmam essa tendência unilateral em prol do bebê.
Particularmente, nós advogamos que a DPP e seu prolongamento pode ter
conseqüências ruins não só para o desenvolvimento emocional e cognitivo do bebê,
como também sobre o bem-estar da mulher, sua saúde física e psíquica, seus
relacionamentos conjugal, familiar e social, a qualidade de sua vivência materna, e
sobretudo, para o seu processo global de subjetivação como mulher.
Focalizamos a DPP do ponto de vista da mulher/mãe sem, contudo, esquecer o
aspecto essencial do relacionamento mãe-filho, mas procurando excluir qualquer
determinismo linear do tipo causa e efeito. Para nós, existe uma diversidade tão grande
de sentidos subjetivos para as mães, para os bebês e seus familiares, que nos impede de
manter um olhar reducionista e linear sobre a maternidade e a depressão após o parto.
Isso nos impulsiona para olhar a complexidade destes fenômenos e dos sujeitos neles
implicados.
Assim, apesar de terem muitos sentidos que podem ser subjetivados de forma
semelhante na vivência da maternidade e do pós-parto, cada mulher terá uma vivência
única e singular, que não deve ser padronizada e nem “vendida” para as demais como o
“retrato da maternidade” e nem “enclausurada” no diagnóstico da DPP. Em outras
palavras, levantamos nesta reflexão o seguinte questionamento: seria a DPP uma
psicopatologia, classificada no CID-10 (1993) sob a rubrica de F53.0, ou poderíamos
suspeitar tratar-se apenas de mais uma maneira de vivenciar a maternidade? Talvez seja
ela uma das formas mais sofridas, porém não menos legítima que as demais formas

3
mais convencionais de ser mãe. Através dos sintomas depressivos, a mãe não estaria
apenas revelando o lado obscuro da maternidade, socialmente negado?
Assumimos que a motivação para gestarmos o presente trabalho se deve
principalmente a algumas razões de ordem sócio-histórico-culturais, as quais cremos ser
fundamentais considerar quando se pensa na mãe com DPP, como, por exemplo, o
fenômeno da entrada da mulher no mercado de trabalho. Este fenômeno vem
provocando transformações tão profundas no casamento, na família e na sociedade e na
saúde da mulher (Diniz, 1999) que nos levou a acoplar a categoria de gênero ao nosso
olhar, com a finalidade de ajudar a compreender a saúde da mulher nesse contexto.
Dessa forma, não seria a DPP, da forma como vem se apresentando hoje, também uma
conseqüência desta nova realidade?

A MATERNIDADE NA PERSPECTIVA DA TEORIA DE GÊNERO

A pressão social sobre a mãe, sobretudo nos dias atuais, em que a mulher
acumula várias outras funções, faz com que esta não se sinta autêntica e sinta-se
incapaz, “defeituosa” e incompetente para ser mãe; levando-a muitas vezes à depressão.
Esses elementos apareceram como atributos relacionados à subjetividade social
dominante sobre a mulher e a maternidade e, em vários casos, estavam associados a
“clichês sociais” que têm acompanhado as mulheres nos últimos séculos, como: “ser
mãe é padecer no paraíso”, “toda mulher nasceu para ser mãe”, “toda mãe tem uma
predisposição inata ao sacrifício”. Esses sentidos, em um imaginário de valores,
“aprisionam” as mulheres em uma posição volitiva em serem “as mães perfeitas”.
De maneira geral, as crenças sobre a maternidade são divulgadas como se
fossem tradicionais e naturais, e por serem concebidas assim, essas crenças se tornam
inatacáveis. Contudo, é possível verificar na história da humanidade que essas idéias
têm poucas centenas de anos. A boa mãe, tal qual conhecemos hoje, com sua propensão
natural ao sacrifício, seu amor universal e automático pelos filhos e sua completa
satisfação nas tarefas da maternidade, não foi sempre assim.
Ao contrário disso, Forna (1999) nos conta que esse estilo de maternagem teve
seu início em 1762 a partir da publicação de Émile, por Rousseau, quando este criticou
as mães que enviavam os filhos para as amas-de-leite, o que era bastante comum até
esta época. Ele recomendava, enfaticamente que as próprias mães amamentassem e
criassem seus filhos e as recriminava por darem preferência a outros interesses.
Segundo Badinter (1985) dá-se aí, o início à injunção obrigatória do amor materno.
Serrurier (1993) também afirma que é deste Émile, que estamos condenadas a ser mães
e a ser boas mães. Não há alternativa para a mulher: a vocação materna é natural,
instintiva e obrigatória!
Contrária às idéias de que a maternidade só comporta o amor irrestrito e
apoiando a perspectiva das teorias do gênero, segundo a qual a maternidade é construída
e não instintiva, a maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é
um constructo social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas também,
quem é responsável por eles (Forna, 1999). Culturalmente, as representações sociais da
maternidade estão fortemente calcadas no mito de mãe perfeita. Esta concepção assume
proporções insustentáveis, segundo as quais acredita-se que a maternidade é inata à
mulher. É a idéia de que a maternidade é parte inerente ao ciclo evolutivo vital
feminino. Neste sentido, supõe-se que a mulher, por ser quem gera os filhos, desenvolve
um amor inato pelas crianças e fica sendo a pessoa melhor capacitada para cuidar delas.
(Falcke & Wagner, 2000).

4
Compreender a maternidade como fenômeno cultural, e não natural e biológico,
é o primeiro passo para podermos conhecer as implicações deste conceito na
constituição subjetiva da mulher enquanto ser imerso em um momento histórico e
social. Para Serrurier (1993), não podemos marginalizar o quadro sociológico que, na
sua opinião, com a qual concordamos inteiramente, é responsável, em grande parte,
pelas dificuldades que as mulheres experimentam para serem boas mães. Desde já, cabe
lembrar as palavras de Beauvoir (1980), neste sentido: “ninguém nasce mulher: torna-se
mulher” (p. 9). Da mesma forma, acreditamos que nenhuma mulher nasce mãe, mas
torna-se mãe.
Sendo assim, é mister considerar que o exercício da maternidade é articulado
com os discursos ideológicos dominantes, ligados à ciência, à Igreja e à economia
social, fazendo com que seja percebido como um fenômeno instintivo, arraigado na
estrutura biológica feminina, independente das circunstâncias de tempo e espaço que o
determinam. De Scott (1995), vamos tomar o conceito de gênero, que o historiciza e
propõe seu uso como, categoria analítica e instrumento metodológico para entender
como ao longo da história, se produziram e legitimaram as construções de saber/poder a
partir da diferença sexual. Ao fazê-lo, esta autora abre uma nova perspectiva teórica
para a “desconstrução” das hierarquias e desigualdades de gênero baseadas na diferença
biológica, como se fossem verdades universais. A partir de diversas representações da
feminilidade, foram deduzidas as posições de poder, submissão, complementaridade ou
exclusão das mulheres no seio da sociedade (Aleixo, 2005). Nos próximos tópicos,
veremos que quaisquer que tenham sido as variações ligadas à primazia atribuída ao
sexo ou ao gênero percebemos sempre o traço das modificações sofridas pelas mulheres
e pelas famílias ao longo dos séculos.
Na verdade, os estudos antropológicos não falam de uma permanência histórica
e cultural da maternidade tal como é concebida nos dias de hoje (Viana, 2004) 4. A
mulher reprodutora, parideira, obviamente sempre existiu, mas o conceito da mulher
materna-divina, que faz a maternagem exclusiva dos filhos, data de poucos séculos
atrás. Por isso, a maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é
um constructo social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas, também,
quem é responsável por eles (Forna,1999).

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA SUBJETIVIDADE FEMININA NA TRADIÇÃO


OCIDENTAL: DE EVA A MARIA

Ao retomarmos a história da humanidade no ocidente, remontando às mulheres


de Atenas, às mulheres de Roma, às mulheres na cultura judáico-cristã, veremos que a
mulher sempre foi vista como uma figura de ambigüidade, cuja história era contada
sempre por homens. Nestes contextos, a figura feminina normalmente é descrita como a
causa dos males do gênero humano, em função da sua curiosidade imprudente e
pecaminosa (Chauí,1984 e 1985; Muszkat, 1994; Roudinesco, 2003; Del Priori, 2004;
Aleixo, 2005). Esta ambigüidade se revela, sobretudo, nas imagens contraditórias de
Eva e da Virgem Maria.
Essas duas figuram nos conduzem à questão da repressão sexual (Chauí, 1985 e
1984). O paraíso perdido e o pecado original, sobretudo a perda da imortalidade, são
frutos da descoberta da sexualidade. Sexualidade esta que foi “atiçada” por Eva que

4
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em
outubro/2004, no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.

5
tentou Adão, recaindo sobre ela a culpa pela separação entre nós e a divindade – com a
conseqüente mortalidade.
O Paraíso significava um mundo onde havia harmonia, imortalidade, eternidade
e ausência de dores e penas. Não nascer e não morrer - infinitude. Chauí (1985 e 1984);
Muszkat (1994) e Del Priori (2004) explicam que a descoberta do sexo foi o Mal, que
condenou a humanidade à dor, à mortalidade e a finitude por culpa da mulher, já que
Adão era obediente e não tocava no fruto proibido. “Os desregramentos, o pecado e a
danação originaram-se da fragilidade moral do sexo feminino” (Del Priori, 2004, p. 25).
Por isso, desde Eva, as tentações da carne e a volúpia sexual eram predicados
femininos, representando a mulher como fraca e suscetível ao pecado, cujo o corpo
corresponde ao lugar de todos os perigos!
Por essa razão, “a mulher, eternamente condenada pelo erro de Eva, tinha que
permanecer vigiada e controlada” (Del Priori, 2004, p. 46). A Igreja e o Estado
exerciam forte pressão no controle da “maligna” sexualidade feminina, justificando
através de argumentos divinos que o homem lhe era superior, cabendo a ele autoridade
sobre a mulher. O feminino era visto como fonte de desordem que deveria ser
controlado pelas leis do casamento, em conformidade com a ordem marital
(Roudinesco, 2003). Dessa forma, foi-se incorporando à natureza feminina um estigma
que predispunha à transgressão e à maldade, revelando-se de maneira mais extrema nas
práticas de bruxaria.
Durante toda a Idade Média, a imagem da mulher estava relacionada às
tentações, ao Diabo, pois ela representava o desejo sem fim e sem limites que poderia
entorpecer e perverter os homens. Assim, de feiticeira à possuída, e desta à louca, há a
interiorização do pecado, tornando-a demoníaca em sua alma (Chauí, 1984 e 1985;
Muszkat, 1994; Del Priori, 2004). O controle do corpo, através de castigos físicos e
disciplina, foi instituído como forma de reeducá-lo e torná-lo dócil e apto para o
trabalho e, principalmente, menos ameaçador.
Assim, de fêmea insaciável, a mulher se converte num ser quase assexuado,
frígido incapaz de viver o prazer e o orgasmo, fisicamente constituído apenas para a
procriação, desde que restrito ao casamento e sem prazer, afirma Chauí (1985). Porém,
mais do que apresentar as formas visíveis e invisíveis de repressão sexual, através da
análise da mulher medieval e suas relações com a Igreja, Chauí (1984 e 1985) mostra
que a construção contemporânea de Eva e da Virgem Maria carrega uma ambigüidade
que perpassa nosso próprio presente: a mulher é responsável pela ciência do bem e do
mal - por sua imprudente curiosidade por seu desejo sexual irrefreável. É também
responsável pela semi-imortalidade e semi–eternidade da espécie, pelo seu resgate
parcial, através da procriação. Apenas sob a figura da Mãe Virgem poderia devolver ao
menos uma semi-imortalidade ao homem, ao gerar a vida, dedicando-se à tarefa da
perpetuação da espécie (Chauí, 1984 e 1985; Muszkat, 1994; Roudinesco, 2003; Del
Priori, 2004). Assim, caberia às mulheres transmitirem a vida e a morte (Roudinesco,
2003).
Uma vez tornando-se mãe, a mulher honrada, de família e casada na igreja,
afastava-se da Eva e aproximava-se de Maria, a virgem que concebeu sem pecado.
Assim, ratifica-se o surgimento do arquétipo do modelo de Maria predominante entre as
mulheres “direitas”. Para isso, suas vidas deveriam ser restritas à família, à igreja, ter
uma vida assexuada com fins apenas procriativos, serem fracas, submissas, passivas e
sem participação na vida pública. Ademais, eram educadas para o casamento, para
cuidar da casa e dos filhos e, ainda, tolerar as relações extraconjugais de seus maridos.
Del Priori (2004) ressalta que esses valores eram incorporados pelas mulheres por meio

6
da imposição da Igreja, da família e por muitos mecanismos informais e formais de
coerção. Chauí (1985) complementa essa afirmativa com a seguinte questão:

(...) poderia haver outro lugar ideológico para as mulheres senão a


maternidade, isto é a repetição da maldição? (somos mortais porque
nascemos) e a promessa de redenção (somos imortais em nossos
descendentes). Autora de uma violência irremissível – revelar aos homens
sua finitude -, a mulher só poderia pagar esse ato de violento sendo
submetida a violência – as dores do parto e a submissão àqueles que por ela
são engendrados para a morte. (Chauí, 1985, p. 32)

Portanto, afirma Roudinesco (2003) que a mulher deve, acima de tudo, ser mãe,
para que a sociedade seja capaz de resistir à tirania do gozo feminino que se acredita ser
capaz de eliminar a diferença entre os sexos, e leve à decadência dos valores
tradicionais da família, da autoridade do pai e ao caos social. Tudo era pensado como
se, “no exato momento em que as mulheres despertassem do longo sono de sua sujeição,
a família fosse ameaçada de ser ela própria destruída” (Roudinesco, 2003, p. 145).
A lógica apresentada por todas essas autoras me pareceu bastante plausível para
introduzir o tema da maternidade. Este percurso histórico pareceu-me dar sentido para a
imposição – violenta e implacável - da maternidade, da qual as mulheres ainda são
vítimas. Até hoje elas estariam pagando pela maldição que impuseram à humanidade ao
condená-la a finitude, à mortalidade, à dor e ao sofrimento, através da maternidade –
sua única chance de se redimir. E para que ela pague este preço, sem resistir ou
reclamar, veremos que foi arquitetado sutilmente e ideologicamente o processo de
naturalização da maternidade.

O PROCESSO DE NATURALIZAÇÃO DA MATERNIDADE

Em primeiro lugar, é fundamental diferenciar a capacidade reprodutiva da


mulher de maternidade. Procriar é um potencial biológico natural. É, para a mulher,
uma condição inexorável, quando assim desejado. Porém, assumir a criança e tornar-se
mãe é um fenômeno que se constitui social e culturalmente, sendo impregnado pelos
ideais e ideologias predominantes nos diversos períodos históricos.
Segundo Chauí (1985), o corpo feminino recebe um conjunto de atributos
derivados de seu atributo mais imediato: a maternidade. Esta é apreendida como
instinto materno, e isso implica num comportamento preestabelecido e predeterminado
quanto à forma e ao conteúdo da maternidade. Assim, a noção de instinto garante ao
mesmo tempo o pressuposto de uma “natureza feminina” como “natureza materna” e a
redução da experiência possível da maternidade a um comportamento inerente, sabido e
já conhecido de todas as mulheres; porque a experiência possível da maternidade é
reduzida ao comportamento materno e este é “deduzido” do instinto e das observações
de “casos”.
Desde esta perspectiva, o fato de ser mãe aparece socialmente considerado como
uma questão central na vida das mulheres. É a idéia de instinto maternal que está
presente na poesia e nos filmes, é a visão romanceada da maternidade que Forna (1999)
ilustra com grande propriedade. Assim, a maternidade tem sido representada há séculos.
O próprio Dicionário Larrousse (2002) define o instinto materno como “uma
tendência primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade e que
uma vez satisfeito, incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos”. No
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986), também encontramos
uma definição semelhante para instinto maternal, a saber:“ (...) força biológica que

7
atua, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e
independentemente de qualquer aprendizado (...) Tendência natural; aptidão inata” (p.
953).
Torna-se possível, desta forma, duplicar a ideologia do instinto. Instinto
materno é definido como um comportamento gerador, mantenedor e protetor da vida, e,
conseqüentemente, a qualidade derivada deste instinto é o amor materno. Vistas sob a
ótica do amor materno, fica fácil considerar as mulheres como “instintivamente” mais
sensíveis do que os homens, e esta sensibilidade compensaria a exclusão do mundo
racional, conforme ressalta Chauí (1985).
O instinto materno, ao mesmo tempo que mantém as mulheres num suposto
mundo natural, as transforma em produtoras desta mesma ideologia do “amor materno e
da sensibilidade”. Além do naturalismo, algo mais está presente no corpo feminino: o
instinto e amor materno são formas de controlar e reprimir a sexualidade feminina. A
natureza feminina permite apenas uma sexualidade procriadora.
Mas ser mãe é, de fato, algo da natureza da mulher? Será o amor materno um
fenômeno inato? O instinto materno de fato existe? Ou será um fenômeno construído
socialmente? Certamente, estas são questões que não povoam as mentes das mulheres
em geral, pois, ainda hoje, a maternidade é percebida com algo da ordem do
inquestionável! É próprio ao senso comum conceber instituições estáveis da sociedade
antes como formas ‘naturais’ de organização da vida coletiva, que como produtos
mutáveis da atividade social. No caso da família, entretanto, a naturalização é
extremamente reforçada pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito,
privilegiadamente, “à regulamentação social de atividades de base nitidamente
biológica: o sexo e a reprodução” (Durham, 1983, p.15).
O processo de naturalização dos fenômenos é o procedimento privilegiado da
ideologia dominante, sobretudo a patriarcal:
Sendo “por natureza” mães e criaturas sensíveis, as próprias mulheres se
farão agentes de violência quando agirem contrariando sua “natureza”, por
exemplo, reivindicando que a maternidade seja reconhecida como um direito
que pode ou não exercer, em lugar de tomá-la como instinto, ou
reivindicando o direito de agirem como seres pensantes.(Chauí, 1985, p.38).

Assim, entendemos que Chauí (1985) faz uma denúncia grave e nos alerta para o
fato de que a violência mais perfeita é aquela que acontece sem que percebamos,
instaurado sutilmente, como algo natural, pré-determinado. Através de uma sutil
inversão ideológica, a violência passa a ser imputada ao “desnaturamento” desejado
pelas mulheres. A violência agora consistirá, portanto, em constranger a vontade das
mulheres, fazendo-as interiorizar a sua “natureza” - que ela consinta em ser, de jure, o
que é realmente de facto. A hipótese de Chauí é que a idéia e a imagem de uma
“natureza feminina” permaneçam até hoje, ainda que difusa e diluída, pelo fato de que o
corpo feminino tenha sido o elemento fundamental para as ideologias da feminilidade.
A Igreja, o Estado, bem como a ciência, acabaram por fortalecer a idéia de
instinto maternal, idéia típica da teoria evolucionista, que defendia a noção de que a
natureza emocional da mulher era conseqüência direta de sua fisiologia reprodutiva
(Laqueur, 2001; Aleixo, 2005). Há, portanto, um discurso sobre as mulheres e não das
mulheres (Chauí,1985 e 1984; Muszkat, 1994; Del Priori, 2004; Aleixo, 2005). Isto
acarreta que, neste processo circular de naturalização-culturalização-naturalização da
mulher, faltou a ela justamente aquilo que a tornaria sujeito de fato e de direito: a
autonomia do falar, do pensar, do agir, do escolher. No processo de subjetivação da
mulher, observa-se, então, que lhe foi dada finalidades internas a partir do exterior.
Entendemos, com isso, que a força do instinto maternal se impõe na vida das mulheres

8
há séculos, como algo natural, predestinado e sem possibilidades de escolha! Como nós,
mulheres, poderíamos ousar duvidar desta ordem secular?
A obra de Laqueur (2001) intitulada Inventando o Sexo: corpo e gênero dos
gregos a Freu., foi, para mim, a primeira grande responsável por esta desconstrução do
sexo “inato”. Laqueur (2001) defende a tese de que o sexo biológico também é uma
construção social, a serviço dos interesses sociais/morais. Em suas pesquisas, ele
descobriu que antigamente o modelo de sexo era único. O corpo masculino era o
modelo de perfeição e o corpo da mulher seria apenas um corpo masculino
defeituoso/inferior.
Para Aristóteles e Galeno (citados por Fávero & Mello, 1997; Laqueur, 2001;
Roudinesco, 2003; Aleixo, 2005) os órgãos femininos eram uma forma menor dos
órgãos masculinos e, conseqüentemente, a mulher era um homem menos perfeito. Nesse
sentido, a mulher opõe-se ao homem sendo “passiva”, enquanto este é ativo. Isso faz
dela uma “réplica invertida do homem”, como prova a posição de seus órgãos: o útero
era o escroto; a vulva era o prepúcio; os ovários eram os testículos e a vagina era um
pênis invertido. Assim, tal qual o significado da criação de Eva a partir de uma costela
de Adão, pensa-se a humanidade como masculina e a mulher é definida em relação ao
homem, e não em relação a ela mesma (Chauí, 1985; Muszkat, 1994; Ehrhardt, 1996).
Laqueur (2001) mostra que, somente no século XVIII, os dois sexos –
masculino e feminino – foram inventados como um novo fundamento para o gênero. A
partir desse novo modelo sexual, houve um grande esforço para se descobrir as
características anatômicas e fisiológicas que distinguiam o homem da mulher. Assim a
mulher ganhou um novo status: já não era mais um “homem imperfeito”, mas era um
outro ser anatomicamente diferente. Mas, se, por um lado, esta diferenciação foi
positiva no sentido de marcar um lugar próprio da mulher, não impediu que fosse
agregado a este corpo diferente um valor inferiorizado. Destarte, a mulher não era
apenas diferente do homem, mas continuava ser vista como intelectualmente inferior
pouco racional e, portanto, toda instinto e passional.
Del Priori (2004) confirma esta concepção de mulher ao nos mostrar que para a
maior parte dos médicos do Séc. XVI, a anatomia feminina era diferente não apenas por
um conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas
características morais, sendo “o corpo da mulher destinado a procriação e assuntos
divinos” (p. 78). O lugar da mulher era definido, portanto, através desta função:
“penetrada pelo homem deitado sobre ela, a mulher ocupa o seu verdadeiro lugar”
(Roudinesco, 2003, p. 24).
Autores como Badinter (1985), Chauí (1985), Muszkat (1994), Laqueur (2001) e
Del Priori (2004) afirmam que nesse contexto, onde medicina e igreja comungavam do
mesmo discurso, continuaram sendo construídos conceitos sobre o funcionamento do
corpo feminino sublinhado por sua inferioridade em relação ao corpo masculino. Para
eles, a mulher tinha sido criada por Deus para servir à reprodução da espécie,
relacionando o estatuto reprodutivo da mulher (parir e procriar) a outros de caráter
metafísico, como ser mãe, submissa, frágil, terna.
Concepções que beiram ao cômico, apresentadas por Spencer (1975, citado por
Fávero & Mello, 1997), revelam esta inferioridade e predestinação à procriação:
As energias da mulher eram canalizadas diretamente para preparação da
gravidez e da amamentação, reduzindo sua energia para o desenvolvimento
de outras qualidades. O resultado era uma parada precoce na evolução da
mulher, o que explica seu estágio de desenvolvimento inferior ao do homem.

9
A grande preocupação dos médicos e pesquisadores daquela época, de acordo
com Del Priori (2004), era compreender o sistema reprodutor feminino, tendo em seus
estudos destacada a função de madre, nome dado ao útero, órgão este que era descrito
como uma área nebulosa da natureza feminina (Laqueur, 2001; Del Priori, 2004).
Acreditava-se, ainda, que o princípio da vida existiria no sêmen masculino, tendo a mãe
a função hospedeira de receber e nutrir o feto. Assim, “dependente do homem,
instrumento a serviço da hereditariedade da espécie, este é o corpo da mulher, visto
pelos médicos” (Del Priori, 2004, p. 84).
Essas idéias eram reforçadas por argumentos biológicos que consideravam os
instintos peculiares para cada sexo como sendo a fonte primária das diferenças sexuais,
e o instinto feminino definia-se pela submissão ao comando. A idéia “vendida” parece
ser a de que a mulher é toda instinto e que, portanto, foi programada para procriar e
cuidar. Essa deve ser sua aspiração e sua realização e, por isso, deverá ser sua fonte
primeira de gratificações (Chauí, 1985; Badinter, 1985; Serrurier, 1993; Trindade 1993;
Muszkat, 1994; Fávero & Mello,1997; Parker, 1997; Laqueur, 2001, Ribeiro. &
Almeida, 2003 e Del Priori, 2004).
No caso das mulheres, a permanência da ideologia naturalizadora é nítida, pois
seu corpo procriativo é invocado como uma determinação natural; determinação esta
que faz com que a mulher permaneça irrevogavelmente ligada ao plano biológico (da
procriação) e ao plano da sensibilidade (na esfera do desconhecimento). Maternidade,
como instinto e como destino, e sensibilidade, numa cultura que valoriza a razão em
detrimento da emoção, são algumas construções ideológicas curiosas, que, segundo
Chauí (1985), servem para manter a idéia de “natureza feminina” como uma rocha
“natural” no mundo historicizado. Assim, a naturalização seria o procedimento
privilegiado da ideologia dominante, ao qual a mulher vem sendo submetida há séculos.
Viana5 (2004) vai além disso. Para ela, o mito do instinto e do amor materno
sugerem mais do que questões ideológicas. Eles se remetem também a questões
mercantilistas e posteriormente capitalistas, na tentativa de manter a mulher fora do
mercado de trabalho. Na opinião de Chodorow (1990), a maternação das mulheres é um
dos poucos elementos universais e duráveis da divisão do trabalho por sexos. Até agora,
todos os sistemas sexo-gênero têm tido dominação masculina, o que demonstra, na
opinião dessa autora, que a maternação das mulheres é um aspecto central e definidor da
organização social do gênero, e implica na própria construção e reprodução da
dominância masculina.
Freud, de acordo com Roudinesco (2003), também considera equivocada toda
esta argumentação naturalista. Ao seu ver, não existem nem instinto materno e nem raça
feminina, pois para ela, o parâmetro não é simplesmente anatômico, mas simbólico em
torno do falo. O falicismo é pensado como uma instância neutra, portanto comum aos
meninos e meninas. Apesar da eterna atitude interrogativa acerca do “que quer uma
mulher?” e de considerá-la como um “continente negro”, Freud não encorajava as
mulheres a exercerem uma profissão, a militarem por igualdade ou a concorrerem com
os homens no domínio da arte e da sublimação. Para ela, era melhor restringi-las “à
nobreza de uma arte da qual foram iniciadoras, a textura e a tessitura” (1921, citado
por Roudinesco, 2003p. 134).
O objetivo de Chauí, ao levantar dúvidas sobre a “natureza”, “o instinto
materno”, a ”liberdade” e a “vontade” feminina, era o de sugerir que a forma e o
conteúdo dessas vivências nunca foram determinados do interior, mas sempre do

5
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em Palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em
outubro/2004, no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.

10
exterior. Nunca pelas próprias mulheres, a partir de sua interioridade/exterioridade
vividas e refletidas. De forma que a transformação do ser “natural” para ser “de desejo”
e finalmente para um sujeito “livre” foi feita, de acordo com Chauí (1985), sob a forma
de outorga da subjetividade às mulheres.
Assim, fica clara a “armadilha social” que denunciam Chauí (1985) e Beauvoir
(1980). Ou seja, não é possível obrigarmos uma mulher a assumir a maternidade. O que
se pode fazer é cercá-la por uma realidade em que se tornar mãe é a única saída que lhe
resta: os costumes do casamento, a proibição dos anticoncepcionais, do aborto e do
divórcio foram alguns dos artifícios utilizados para a construção desse cerco. Dessa
forma, a mulher se vê sem alternativas, a não ser cumprir com o seu papel imposto pela
sociedade: ser mãe.
Por meio das concepções de Chauí (1984 e 1985) e Del Priori (2004), que são na
sua maioria corroboradas por Badinter (1985), Serrurrier (1993) e Forna (1999),
entendemos que o estilo de maternidade que herdamos hoje foi moldado em um
determinado tempo da história por necessidade e utilidade e, portanto, não é
naturalmente nem instintivamente determinado como nos é imposto crer. Diante dessas
definições, o que poderíamos pensar de uma mulher que não quer ter filhos? Ou de uma
mulher com DPP? Seriam elas, mulheres normais ou desviantes patológicas?
Portanto, apesar do crescente questionamento sobre o amor materno
incondicional e inato, a visão da mãe ideal, responsável pelo bem-estar psicológico e
emocional da família, ainda é bastante presente na literatura e no senso comum
(Badinter, 1985). Acreditamos que esta insistência em que um certo estilo de
maternidade é “natural”, entra em choque com a vivência da maternagem, o que leva ao
sentimento de “mãe desnaturada” e há muito sofrimento. Mas também, tem levado
muitas mulheres, na atualidade, a questionarem cada aspecto do que fazem, pensam,
sentem, e a avaliar suas próprias experiências, buscando flexibilizar o padrão rígido e
determinista cultuado socialmente.

A MÃE MODERNA: NOVA HISTÓRIA, VELHAS REPRESENTAÇÕES.

Há algum tempo, observa-se que as mulheres de hoje não são mais criadas
somente para contrair um bom casamento e criar filhos. Ou seja, a ênfase da educação
feminina não está mais no papel materno, mas sim na preparação delas para enfrentar o
mercado de trabalho. Sobretudo nas classes sociais mais favorecidas (Durham, 1983),
elas são criadas para serem boas profissionais e terem seus próprios sustentos. Essa
mudança de foco educacional fez com que as mães não mais criassem suas filhas
somente para exercerem exclusivamente o papel de mães.
Não há dúvidas de que a inserção da mulher no mercado de trabalho,
contribuindo para o declínio do sistema patriarcal e minando a hegemonia masculina,
provocou e continua a provocar muitas transformações nas relações conjugais e
familiares atuais. Roudinesco (2003) nos mostra que hoje existe uma diversidade tão
grande de tipos familiares – desconstruída, recomposta, monoparental, homoparental,
clonada, gerada artificialmente - que a família ocidental de hoje está sujeita a uma
grande desordem. Hoje, as mulheres podem dominar a procriação, os homossexuais
podem participar do processo de filiação e o pai, não é mais o pai–patriarcal. Ele está
assumindo um papel “maternalizante” (Roudinesco, 2003, p. 179), ao aumentar
gradativamente o seu envolvimento masculino nos trabalhos domésticos. A vida
definitivamente mudou!
Na verdade, na visão Roudinesco (2003) assistimos a um empoderamento de
uma camada de mães que, além de serem detentoras da ordem procriadora, têm ainda o

11
poder de designar ou de excluir o pai de seu filho. Mesmo com a presença do pai em
casa, é ela quem continua tendo as maiores responsabilidades de controlar, educar e
criar os filhos. Resta-nos saber se este empoderamento apontado por Roudinesco (2003)
tem trazido de fato mais poder, ou mais carga de trabalho e responsabilidades para a
mulher.
Em uma análise macrossistêmica, ficam claras as transformações da posição da
mulher no contexto social, que cada vez mais vem ocupando seu espaço no mercado de
trabalho e ampliando sua representatividade na sociedade. Porém, no âmbito familiar,
observa-se que ela vem abarcando maiores responsabilidades e, agora, integra tanto as
funções de cuidado, nutrição, afeto, entre outras que já lhe cabiam, como também, o
papel principal de disciplinadora, além de ser uma participante ativa na divisão das
despesas domésticas, quando não de arrimo de família.
Assim, o fato da mulher gerar vida, fato que poderia representar o seu poder
equivalente ao falo, como afirma a teoria psicanalítica, cai por terra, pois, ao se
submeter à maternidade, passa a ser “engolida” pelo papel de mãe e esse poder é posto a
serviço da humanidade. Tal realidade coloca a mulher num lugar de subordinação,
fazendo prevalecer as funções maternas em detrimento das outras manifestações
possíveis do feminino (Beauvoir, 1980). Por isso, apesar de existirem muitos casais
experimentando novos arranjos familiares, ainda se observa hegemonicamente que a
velha divisão de papéis insiste em se manter. O pai trabalha fora e, por isso, está
“liberado” de participar ativamente da educação das crianças; e a mãe, mesmo que
trabalhe fora e contribua para o sustento da família, ainda resiste em abandonar o que
fez durante tanto tempo – responsabilizar-se “sozinha” pelos cuidados para com a sua
prole:
Para o homem, a casa é o “repouso do guerreiro”. Para a mulher que trabalha
fora, é o seu segundo turno, muitas vezes até mais desgastante que o
primeiro, porque lhe sobra pouco tempo para dar conta de todas as tarefas
que se impõe: ver se os filhos estão machucados ou doentes, se fizeram as
tarefas escolares, se a casa está arrumada, se não falta mantimentos na
despensa e ainda preparar o jantar para receber o guerreiro cansado (Tiba,
2002, p.36).

Portanto, apesar deste novo contexto, o mito social relativo ao papel feminino
demonstra-se preponderante (Falcke & Wagner, 2000). O pai continua sendo sempre
mencionado, reverenciado e merecedor dos louros da família. Ainda sobrevive a cultura
de que a última palavra é a sua (Tiba, 2002). O conceito de maternidade e as
responsabilidades desta função continuam baseados em um modelo rígido e antigo, que
parece resistir bravamente às mudanças no mundo pós-patriarcal. Dessa vez, recorremos
à Rocha-Coutinho (1994):
Ainda hoje, por trás de discursos e à margem de declarações oficiais, se ouve
a opinião de que o lar e a educação dos filhos sempre foram e devem
continuar sendo atribuições das mulheres e que, devido à sua constituição
física e espiritual, as mulheres devem ser afastadas do trabalho físico pesado,
bem como das atividades que lhes exigem muito intelectualmente" (p.42).

Nessa vertente, Trindade (1993) afirma que a manutenção dos efeitos da


socialização diferenciada entre meninos e meninas continua sustentando a divisão
tradicional de papéis: a continuidade da maternidade como condição estruturante da
identidade feminina e do sucesso profissional como uma necessidade para a construção
da identidade masculina. Isso tem contribuído significativamente para a manutenção das
concepções arcaicas da maternidade e da paternidade, apesar das transformações já
visíveis na relação dos homens com a paternidade.

12
O estudo de Falcke e Wagner (2000) confirma essa percepção. Neste, pôde-se
demonstrar que as mulheres, tanto mães quanto madrastas, ainda trazem um forte legado
transgeracional relacionado ao estereótipo de gênero, ainda que muitas mudanças
sociais venham ocorrendo nesses últimos tempos. Neste caso, pode-se perceber a força e
o poder do mito da maternidade perfeita como uma idéia muito presente, ao qual as
mulheres respondem de forma quase automática.
Neste processo, é imperioso reconhecer então que, apesar das intensas e
progressivas mudanças que vêm ocorrendo no sistema patriarcal - mudanças com
relação à divisão no trabalho, com relação à estrutura das famílias, do papel da mulher,
brilhantemente comentadas por Castells (1999), a atitude em relação às mulheres pouco
mudou (Rocha-Coutinho, 1994). A participação no trabalho remunerado não mudou o
fato de que, quando estão em casa, cabe às mulheres a responsabilidade quase total
pelos filhos (Chodorow, 1990). Ou seja, flashes capturados do cotidiano das famílias
mostram que o mundo mudou, mas nem tanto assim!
Esta constatação é muito bem expressa nas palavras de Forna (1999), com a qual
somos obrigadas a concordar: “Apesar das mudanças no trabalho e na vida da família de
milhões de mulheres, apesar de falar numa era de pós- feminismo, a atitude em relação
às mães continua colada na idade das trevas”(p.78).
Para pensar esta contradição, podemos recorrer também a Chodorow (1994,
citado por Castells, 1999), que discorrendo sobre esta manutenção dos papéis sociais
nos faz um alerta:
Mulheres, na qualidade de mães, geram filhas com capacidade maternal e o
desejo de elas próprias tornarem-se mães (...) em contrapartida, as mulheres
como mães (e os homens como não mães) geram filhos homens cuja
capacidade e necessidade de criar filhos têm sido sistematicamente reduzidas
e reprimidas. Este fato prepara os homens para sua função considerada
primordial, a participação no mundo impessoal e extra-familiar representado
pelo trabalho e pela vida pública.” (p. 265)

Durham (1983) argumenta que, para responder a essas questões, é necessário


analisar em que medida as variações familiares existentes correspondem a adaptações
ou extensões do modelo hegemônico, ou até que ponto implicam em sua contestação.
Para essa análise, porém, é necessário distinguir o significado da família para as
diferentes classes sociais. Segundo interpreta esta autora, para as classes populares, o
aumento de famílias matrifocais, sem provedor masculino estável, "podem ser antes
uma demonstração da impossibilidade de organizar a existência em termos mínimos
aceitáveis do que, na verdade, um modelo alternativo de família" (Durham, 1983, p. 34).
Na medida em que se preserva a tradicional divisão sexual do trabalho - pai-provedor e
mãe-doméstica - mesmo em lares onde as mulheres contribuem para o sustento familiar,
"exceções ao modelo, mesmo freqüentes, não significam necessariamente nem sua
contestação nem a emergência de modelos alternativos" (1983, p. 35).
Ao considerar pois, que a mãe e/ou outras mulheres da família têm tido a
responsabilidade maior na educação das crianças e que, portanto, seu papel na
transmissão de princípios e valores é muito importante, verificamos que, na realidade, é
a mulher quem tem se encarregado da reprodução de representações que a inferiorizam
e oprimem. Então, as atuais avós, apesar de criarem suas filhas para o mercado de
trabalho, continuam cobrando delas a “velha” maternidade e netos. Este legado
transgeracional é evidenciado por Chodorow (1990), ao constatar que ainda hoje a
maioria das mulheres continua a maternar, a se casar e a violência contra elas não está
diminuindo.

13
Acontece, porém, que até há alguns anos atrás, quando as famílias eram mais
numerosas, era comum a filha mais velha cuidar do irmão mais novo. Dessa forma,
quando tinham seus próprios filhos, sentiam-se mais capacitadas e seguras em assumi-
los. Hoje em dia, é mais difícil passar por esta experiência, já que em muitas famílias o
número de filhos tem diminuído consideravelmente e seus membros saem para
trabalhar. Assim, à medida que as famílias se tornam menores, os filhos não têm a
oportunidade de adquirir conhecimentos tratando dos irmãos mais novos; deste modo
somente, quando se tornam pais, percebem que desconheciam por completo o que na
realidade significa ser pai e mãe.
Nos cursos pré-natais, as futuras mães dizem muitas vezes que nunca pegaram
um bebê no colo, nunca viram uma criança recém-nascida, nem tiveram oportunidade
de observar de perto uma mãe tratar do bebê. “Não há lição de puericultura ou aulas
práticas com uma boneca de borracha numa banheira que possam suprir esta lacuna.”,
afirma categoricamente Kitizinger (1978, p.44). Mesmo diante dessas lacunas,
continuamos a cobrar das mulheres o “velho modelo de mãe”; porém, as mulheres de
hoje já não são preparadas, não sabem e nem querem cuidar de seus bebês como suas
mães faziam.
Obviamente, é importante relativizar esta afirmação, visto que não podemos
generalizá-la a todas as mulheres e de todas as culturas, camadas sociais, afiliação
religiosa, meio urbano ou rural, sobretudo porque esses fenômenos são observados
prioritariamente nas famílias burguesas, de acordo com Durham (1983). Certamente, há
na diversidade do mundo feminino muitas mulheres que ainda se encaixam neste antigo
modelo.
Há ainda outro importante elemento a ser considerado na constelação que
sustenta a maternidade na era contemporânea: a supervalorização dos filhos. O controle
da natalidade,fez com que, a partir dos anos 70 do século XX, a cultura do filho único se
propagasse. Nesse contexto, um filho passou a ser considerado uma nova espécie de
riqueza, o que, por sua vez difere da situação da família que atuava como uma unidade
econômica, como acontecia no século XVIII, quando em contextos rurais, todos fossem
jovens ou velhos eram considerados mão de obra e a sobrevivência da família dependia
do trabalho de todos os seus membros (Kitzinger, 1978; Tiba, 2002). Assim, um filho
era “apenas mais um” e não tinha um lugar de destaque.
Até o século XVIII, inclusive a infância era curta e dura. A relação mãe-filho,
tão exaltada nos tempos modernos, mal existia. Em Centuries of childhood, o
historiador Philippe Ariès (citado por Forna, 1999) fala que a “idéia de infância” era
alguma coisa que simplesmente não existia, um conceito estranho à sociedade. A
criança nascia e, se sobrevivesse, recebia apenas o sustento que se julgava necessário e
muito pouca atenção. Então, “sem a existência da infância, impõe-se à razão que o
estado interdependente da maternidade também não existia” (Forna, 1999, p. 36).
Hoje, um filho tem um “valor de uma jóia rara!” (Tiba, 2002, p.48). Na nossa
cultura da América, o planejamento é para no máximo dois filhos, nas classes mais
favorecidas, afirma Tiba (2002). Kitizinger (1978) também nos fala que a educação de
dois ou, quando muito, de três filhos tornou-se a função principal da família moderna.
Nasce assim, uma riqueza instintual, idealizada para garantir a conservação da espécie,
e espiritual, como realização humana. As crianças passaram a ser supervalorizadas,
tanto pelo Estado como pela família. Há quem afirme inclusive, que estaríamos vivendo
na era do Filiarcado (Grunstun, & Grunstun, 1984).
No que tange a psicologia, vários autores, como Badinter (1985), Chodorow
(1990), Maldonato, Dickstein e Nahoum (2000), apontam que a preocupação com os
problemas emocionais das crianças é disseminada a partir das influências da teoria

14
psicanalítica desenvolvida por Freud. É a partir deste autor que os filhos passam a ser
reconhecidos como seres humanos dotados de desejos e necessidades emocionais; e à
mãe recai a principal responsabilidade no seu desenvolvimento equilibrado e saudável.
A psicanálise argumenta que a presença física da mãe é fator decisivo para o
desenvolvimento adequado da saúde mental dos filhos.
Na psicanálise, postula-se que a mãe é o objeto primário de amor para homens e
mulheres. A mãe é responsável pela diferenciação do filho e pela futura identificação, já
que o bebê nasce em um estado de simbiose com a figura materna. A esta figura cabe
suprir o amor e as necessidades da criança. Assim, a mulher continua sendo concebida
como ser destinado a parir e amar o filho que recebe. A maternidade continua sendo
designada como uma graça recebida de Deus.
A partir das distinções feitas por Freud autor para a superação do complexo de
Édipo, fenômeno estruturador da personalidade humana, aponta as dificuldades
femininas no que diz respeito à conquista de sua identidade. E esta identidade feminina
é vinculada à capacidade de ser mãe e gerar uma nova vida. No Édipo, a menina
constrói a fantasia de que é um ser incompleto, devido à falta do pênis. Pela “inveja do
pênis”, ter um filho, é a única forma que lhe permite sua completude como mulher.
Infelizmente, apesar de serem amplamente combatidas pelas feministas atuais, como
destaca Aleixo (2005) em seu trabalho de tese, essas teorias ainda são bastante
difundidas e tomadas como verdades inabaláveis nos meios psicanalíticos.
Percebemos que a teoria freudiana é amplamente fundamentada pela concepção
familiar existente na época em que o autor pensava e escrevia. Assim, podemos supor
que não foi por coincidência que as teorias de Freud e sua filha Anna, sobre a
importância da presença e atenção maternas como determinantes para o bom
desenvolvimento psicoafetivo da criança, acabaram por corroborar e apoiar
cientificamente as tendências dos anos 50: mandar as mulheres de volta para casa!
Em uma sociedade em que a mulher normalmente trabalha fora, também é
responsável pelo orçamento familiar e cultiva interesses diversos, o fato de ter esse filho
precioso acarreta conseqüências diversas. Passados mais de trinta anos do início do
movimento feminista, ainda estamos nos debatendo sobre os efeitos das creches nos
filhos de mães que trabalham fora e culpando-as, assim como as mães solteiras ou
divorciadas, pelos problemas dos filhos (Forna, 1999).
Portanto, o que pode parecer apenas a ascensão da mulher para um status
“superior”, fruto dos movimentos feministas, mostra, também, a honerosa sobrecarga
do quádruplo papel. Hoje, nos lembra Castells (1999), resta à mulher congregar tanto o
papel de provedora como o de responsável pelos cuidados domésticos, responsável pela
criação dos filhos, além de ser também a zeladora dos vínculos afetivos familiares e
conjugais e preferencialmente, sem se queixar.
Dados do último relatório sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde
(Brasil, 2004) confirmam este fenômeno. De acordo com o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) (citado por Brasil, 2004, p.21) “mulheres representam
50,77% da população brasileira, mas, apesar de serem maioria, são tratadas como
cidadãs de segunda classe”. Sofrem discriminações nas relações sociais, principalmente
nas relações de trabalho e na sobrecarga do trabalho doméstico. Apontam que essas
condições são reforçadas pelas desigualdade de gênero, visivelmente arraigada na
sociedade brasileira.
Este relatório demonstra ainda que 71,3% das mulheres empregadas ganham até
dois salários mínimos, contra 55,1% dos homens. Aquelas que ganham mais de cinco
salários representam apenas 9,2% da população feminina economicamente ativa, contra
15,5% dos homens. As mulheres, além de ganharem menos, estão concentradas em

15
profissões mais desvalorizadas, têm menos acesso a espaços de decisão no mundo
político e econômico, sofrem mais violência (doméstica, física, sexual e emocional),
vivem a tripla jornada de trabalho, dentre outros problemas citados que comprometem o
seu desenvolvimento e saúde mental. Esses dados revelam que ainda há muito o que se
fazer para distanciar satisfatoriamente a qualidade de vida das mulheres de hoje das de
“Atenas”!
Nesse novo estilo de vida familiar, os vários fatores que interagem de forma
complexa têm um papel tanto enriquecedor como deletério para a saúde da mulher. A
realização profissional, por exemplo, proporciona, simultaneamente, benefícios na auto-
estima e acúmulo de papéis. Esta realidade atual implica numa redistribuição dos papéis
de homens e mulheres que têm resultado em sobrecarga para elas. Mas o que se observa
é que esta redistribuição caminha de forma desigual. Há um crescimento acelerado com
índices cada vez mais altos de mulheres saindo de casa e adentrando o mercado de
trabalho, enquanto a participação masculina nos trabalhos domésticos vem crescendo
lenta e gradualmente (Trindade, 1998; Chodorow, 1990; Chodorow, 1978 citado por
Castells, 1999).
Em outras palavras, poderíamos afirmar que a mulher saiu para o mercado de
trabalho sem contudo deixar de ser mãe e nem por isso, os homens se tornaram mais
pais. Só recentemente alguns começaram a participar mais ativamente da educação dos
filhos. Por outro lado, tanto homens quanto mulheres estão enfraquecidos no exercício
de suas funções. As mulheres estão confusas, desejam ter sua independência financeira,
ter sucesso profissional, serem boas amantes, serem belas, sexualmente atraentes, e
continuam tendo que atender a expectativa do mito da mãe perfeita, exigência que
implica em tempo e disponibilidade (Catão, 2001).
Diante desse quadro, Maldonato (2000) também chama atenção para esta
tendência em culpar a mulher - um aspecto importante da mentalidade higiênica e na
história da medicina, sobretudo no Brasil. A mãe do século XVIII era a auxiliar dos
médicos; no século XIX, colaboradora dos religiosos e dos professores. Já no século
XX, assume outra responsabilidade – a de cuidar do inconsciente e da saúde emocional
dos filhos. A mãe se vê, atualmente, diante de uma superabundância de conselhos,
freqüentemente conflitantes, para educar seus filhos. Normalmente, os conselhos são
sempre apresentados como “o melhor para o bebê”, ficando a mãe em segundo plano.
Em função das necessidades do filho, tudo deve ser sublimado e adiado. Roudinesco
(2003, p. 146) definiu esse fenômeno como “um fosso irreversível que parece ter se
cavado entre o desejo de feminilidade e o desejo de maternidade, entre o desejo de
gozar e o dever de procriar”. A conseqüência disto, diz Forna (1999), é que as mães se
transformaram em verdadeiros “trapezistas de circo”, voando sem rede de segurança,
sem poder se dar ao luxo de um único erro, sob pena de sentirem a famosa “culpa
materna”.
Frente a tudo o que foi exposto até o momento, podemos concluir que, revendo a
condição de vida das mulheres sob uma ótica histórica, essas têm sido subalternas,
inferiorizadas e pressionadas por uma sociedade que sempre exigiu delas muitos
deveres e obrigações e quase nenhum direito. Entre essas exigências, espera-se que a
mulher goze de boa saúde para procriar, seja sexualmente ativa e disponível, gere filhos
sadios e que, mesmo sem apoio para realizar as tarefas que lhes são atribuídas, ainda
amamente, cuide, proteja, alimente e eduque os filhos, sem reclamações e comportando-
se de maneira terna, compreensiva e sedutora (Nogueira, 2004). Qual seria, então, o
papel da DPP neste contexto histórico-social?

16
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todas estas considerações nos levaram a acreditar que a maternidade como vem
sendo concebida até nossos dias, tem influência direta no aparecimento da depressão no
pós-parto. Nossa hipótese é de que essas pressões culturais sob as quais as mulheres
invariavelmente exercem a maternidade, associadas ao sentimento de incapacidade em
adequar-se a uma visão romanceada desse estado, acabam por deixá-las ansiosas e
culpadas, suscitando dessa maneira conflitos que predisporiam a depressão pós-parto.
Isto posto, não pretendo discutir a relação da DPP a partir da perspectiva
biológica, que confere às alterações hormonais e às modificações corporais grande
influência no comportamento das mães e na a etiologia da depressão puerperal; e nem
pela perspectiva psicodinâmica, como tradicionalmente vem sendo feito sobretudo pelos
estudos psicanalíticos. Mas buscarei privilegiar o fenômeno do ponto de vista histórico-
cultural e da categoria de gênero, que aponta para os contextos e para as transformações
históricas ocorridas nos papéis sociais da mulher e dos homens e na sua integração com
a vivência atual.
Assumindo esta posição, advogamos ser imprescindível a “desculpabilização”
das mães e incentivar o compartilhamento de responsabilidades entre mães, pais,
familiares e toda a sociedade, assim como a conseqüente divisão de tarefas nos cuidados
e a responsabilidade de zelar pela educação física, emocional, cognitiva e social dos
filhos. Ou seja, todos devem se responsabilizar pela criação de um novo ser, em
especial, o pai que deve compartilhar a criação dos filhos, e não apenas se restringir a
dimensão da ajuda opcional e esporádica.
É valioso sensibilizar o profissional de saúde para a importância do fenômeno
da depressão após um parto. A falta de orientação e de apoio determina na mulher um
sofrimento físico e emocional que poderia ser evitado com medidas preventivas ou
curativas (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). Há de se considerar, com a devida
importância, que as ações assistenciais contempladas pelas normas e rotinas, ora em
vigor, não são capazes de responder de forma singular às necessidades das pacientes, tal
qual se supõe; devendo ser, portanto, revistas, dando ênfase às necessidades
diferenciadas que se alicerçam na dimensão subjetiva da mulher.
Esta mesma atitude deve ser adotada no pós-natal, período no qual as
tradicionais consultas puerperais deveriam ter seu foco ampliados para as questões
emocionais, culturais e sociais envolvidas na maternidade e na paternidade. Grupos de
acompanhamento das mães e pais, nos moldes dos que realizamos na UCB, deveriam
ser implantados junto a maternidades e bancos de leite, com o objetivo de proporcionar
às puérperas e seus companheiros um espaço de escuta emocional e apoio onde o tema
da maternidade, da paternidade e da DPP pudessem ser adequadamente abordados para
melhorar a qualidade de vida não só das mães, de seus bebês, pais e familiares. Mas
chamamos atenção que, para a efetivação dessas abordagens tanto no pré quanto no pós-
natal, é preciso trabalhar em equipe, integrando a esta o psicólogo hospitalar, com vistas
a promover também o bem estar psicológico e social das gestantes e puérperas.
Acreditamos que um pré-natal psicológico, conforme defende Bortoletti et al. (2007),
além de prevenir uma série de doenças e problemas com a mamãe e o bebê, também
serve como prevenção de uma depressão no pós-parto e para a vinculação afetiva da
tríade mãe-pai-bebê e a posterior parentalidade compartilhada.
Por fim, defendemos a necessidade de avaliar e qualificar a forma como
profissionais da saúde, têm auxiliado as mães e as famílias que estão sofrendo no pós-

17
parto. Nessa perspectiva, vale atentar para a necessidade de reformulações do modelo
assistencial ora vigente, no sentido de considerar a maternagem como uma tarefa que
precisa ser aprendida pela mulher e protegida pela sociedade. Em termos práticos,
sugerimos a implantação de um “pré-natal psicológico” que incluísse a figura paterna,
os avós, onde os médicos devessem se preocupar com a mãe e com o pai, tanto em
termos orgânicos como psicológicos. Buscamos, ainda, alertar para a necessidade de
uma análise crítica sobre o diagnóstico de DPP enquanto entidade padronizada,
estimulando a sua despatologização e o apoio psicológico precoce em maternidades.
Finalmente, esperamos ter trazido uma nova contribuição para iluminar a compreensão
sobre o processos de subjetivação das mães com DPP, na esperança de no futuro ajudar
os profissionais de saúde e os acadêmicos que atuam em áreas da saúde perinatal e do
desenvolvimento humano a evoluir em sua compreensão e maneira de pensar a mãe que
se apresenta depressiva no pós-parto. Esperamos que estas reflexões tenham nos
permitido criar fissuras em territórios tão cristalizados!

Referências bibliográficas

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20
11
A TEORIA DE GÊNERO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO
DA MATERNIDADE E DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO

Alessandra da Rocha Arrais1

O que teria a depressão a ver com a festa que cerca o nascimento de um bebê?
Como entender que esse momento considerado tão feliz e esperado do ciclo vital
familiar se transforme em um momento depressivo? Por quê a chegada do bebê parece
ter o poder de provocar um estado depressivo na mãe?
No período pré-natal, muitas vezes, as preocupações giram apenas em torno do
chá de bebê, do quarto, do enxoval e das demais providências práticas a serem tomadas
para a chegada de um filho. É rara a discussão séria acerca das dificuldades emocionais
que a grande maioria das mães vivencia no período do parto e pós-parto, bem como
sobre as tarefas familiares que o casal tem a cumprir para ultrapassar esta etapa. Quando
esses temas surgem, geralmente ocorrem em tons de brincadeira e de forma caricata,
que não provocam a reflexão necessária.
Certamente, carregar no próprio corpo um novo ser pode ser uma oportunidade
ímpar e fascinante. Uma promessa de esperança, um potencial de luz, de continuidade e
de amor. Entretanto, a maternidade implica em alterações em diversos espaços da vida
da mulher, sejam eles pessoais, emocionais, profissionais ou sociais, que podem
acarretar em mais sofrimento do que se pode supor.
Ser mãe, no sentido de gerar é uma possibilidade exclusiva da mulher. Inerente a
essa realidade, entretanto, é comum essa potencialidade originar crises, conflitos e
sentimentos contraditórios entre si. Erikson (1976) ilumina nossas idéias nessa direção,
ao lembrar-nos que cada uma das fases evolutivas do ciclo vital de uma pessoa carrega
em si uma situação potencialmente crítica, a qual pode ocasionar uma crise, sendo esta
entendida como uma ruptura do status quo psíquico que requer novas respostas
adaptativas. Portanto, a crise da depressão pode ocorrer em qualquer época da vida,
inclusive durante momentos socialmente felizes, como o parto e o nascimento de um
filho (Ribeiro, 2002).
O puerpério2 é um desses períodos vulneráveis, constituindo-se, portanto como
um período de risco psiquiátrico aumentado no ciclo de vida da mulher (Erikson, 1976).
Na fase pós-natal, a sociedade espera que a mãe esteja muito feliz e satisfeita com o seu
novo rebento. Todos cobram da mulher grávida estar radiante: seu companheiro, sua
família, seus amigos e até os profissionais que a assistem na gestação, e, por isso,
geralmente desconsideram seus reais sentimentos. As mesmas atitudes são vistas no
pós- parto.
Poucos sabem, e ainda trata-se de um tabu na sociedade ocidental, que a
maternidade é vivida, por muitas mulheres, com mais sofrimento do que prazer
1
Doutora em psicologia clínica pela Universidade de Brasília; profª do curso de graduação em psicologia
e mestrado em gerontologia da Universidade Católica de Brasília. Coordenadora do curso de
especialização em psicologia hospitalar da mesma universidade. Trabalha com gestantes e puérperas
desde 2001.
2
O puerpério é definido como o período que sucede o parto, podendo estender-se a até sessenta dias após
o nascimento do bebê (Corrêa & Corrêa, 1999).
(Lucena, 2004). Ao contrário do esperado, a literatura, minha experiência como mãe e
nossa prática com gestantes e puérperas3 nos mostram que a maioria das mulheres,
sobretudo as de classe média e alta, encontra na vivência da maternidade algum nível de
sofrimento psíquico, físico e social no período pré e pós-parto. Normalmente, nessas
fases, observa-se nas mães uma vivência relativamente contínua de tristeza ou de
diminuição da capacidade de sentir prazer (Santos, 1995), a qual poderá ser transitória
ou se cronificará caso não sejam assistidas adequadamente.
Para Frizzo e Piccinini (2005) os transtornos emocionais que atingem as
mulheres no período pós-parto são de três tipos: o baby blues (melancolia da
maternidade), a psicose puerperal e a depressão pós-parto (DPP), sendo esta definida
como é um episódio depressivo não psicótico. Uma depressão é classificada assim
sempre que iniciado nos primeiros doze meses após o parto. Sua manifestação clínica é
igual a das depressões em geral (Rocha, 1999; Baptista, Baptista & Oliveira, 2004). Ou
seja, a pessoa sente uma tristeza muito grande de caráter prolongado, com perda de
auto-estima, perda de motivação para a vida, é incapacitante, requerendo na maioria das
vezes o uso de antidepressivos (Ballone, 2001; Rosenberg, 2007). Sobre a depressão
pós-parto Rosenberg (2007) afirma que esse tipo de depressão apresenta uma incidência
no Brasil de aproximadamente 10% mas pode chegar até 20% das dos casos após o
parto.
É sabido que a DPP acontece com mulheres de todas as idades, classes sociais e
de todos os níveis escolares. Ela pode ocorrer com mulheres que desejam muito ter um
filho, bem como aquelas que não aceitam o fato de ter engravidado. Pode ocasionar-se
no nascimento do primeiro filho, do segundo, do terceiro, ou de outros. Os autores que
estudam essa temática têm posições diversas sobre o aparecimento da DPP, e a literatura
não é concorde quanto a sua etiologia (Santos 2001; Botega & Dias, 2002; Rosenberg,
2007). Mas, se a mãe apresentou alguma história de depressão na sua vida, ela requer
mais atenção dos familiares e profissionais de saúde desde a gestação (Botega & Dias,
2002); o que normalmente não é feito nem mesmo pelos obstetras que as acompanham
no pré-natal.
A percepção de sentimentos de tonalidades negativas e contraditórias,
justamente no momento quando só deveria existir espaço para a plenitude e a felicidade,
provoca em muitas mães e profissionais uma sensação de estranhamento e inadequação.
Tanto na gestação quanto no pós-parto, são comuns assertivas do tipo: “Como você
pode estar triste, com um bebê tão lindo nos braços?”. Se a mulher ousa expressar
qualquer sentimento negativo, mesmo em relação à gestação ou a uma não–aceitação
temporária da gravidez, ou por estar enjoando muito, ou por ter parado suas atividades
pelas intercorrências de uma gravidez de risco, logo se diz que “ela está rejeitando o
filho”.
Esse tipo de associação é superficial, de cunho excludente e pejorativo, que
acarreta na caracterização da mãe com DPP como uma “aberração da natureza”. Toda
essa miscelânea de sentimentos e conflitos que a gestante geralmente vivencia não
significa que ela esteja rejeitando o filho, mas toda a complexidade da situação, para a
qual talvez não estivesse preparada (Bacca, 2005). Assim, Serrurier (1993), Maldonato
(2000), Rohenkohl (2005), Bacca (2005) e Arrais (2005) alertam para o fato de que
muitas mulheres acabam por rejeitar não o bebê em si, mas a maternidade como
instituição e muito do que isso acarreta, como por exemplo, a mudança de vida, os
sacrifícios e as obrigações. Associar estados de humor entristecido ou quadros de DPP
com rejeição ao filho, como comumente é feito não só pelos familiares e pelo senso-
comum, mas também por muitos profissionais de saúde, e da educação, é um grande e
3
A autora realiza grupos de atenção psicológica ás mães com DPP, desde 2001, na UCB.

2
preconceituoso equívoco, que acentua ainda mais o sofrimento e isolamento materno e
deve ser terminantemente combatido.
Assim, a mulher nesse caso sofre duplamente: primeiramente, pelos sentimentos
negativos vivenciados e, segundo, pela culpa em senti-los. Tudo isso, pouco alivia a dor
da mãe com depressão, quando não atrapalha ou agrava o seu sofrimento, pois a isola, a
culpabiliza e a impede de pedir ajuda. Por sentirem-se na “contra-mão” do que é
socialmente esperado e desejado, a mãe quase sempre reluta em relatar seu incômodo a
outros e a pedir ajuda profissional, mesmo que sinta muitas dificuldades no desempenho
de tarefas maternas e domésticas e que consiga perceber a sua alteração no humor
(Rosenberg, 2007).
Por isso, este sofrimento psíquico é vivido isoladamente e, o que é pior, sem um
acompanhamento profissional especializado, podendo acarretar na cronificação dos
sintomas depressivos ou somáticos e num prejuízo para a relação mãe-bebê-pai. Santos
(2001, p. 20) reafirma isso ao mostrar-nos que “a depressão pós-parto é raramente
trazida para o consultório por quem a experimenta, é vivida com dolorosa perplexidade,
com questionamentos morais, mas, sobretudo, em silêncio”. A autora acrescenta ainda
que este é um fato constatado em pesquisas estrangeiras e que se repete no Brasil.
Isso acaba acarretando não só em uma pobreza estatística sobre o fenômeno,
como também em um parco interesse e um número restrito de publicações científicas
sobre o tema. Esta realidade se reproduz na psicologia, haja vista a constatação de nossa
revisão bibliográfica revelar que a DPP é um tema ainda pouco explorado (Arrais,
2005). Dentre os escassos trabalhos psicológicos que abordam esse assunto, muitos o
interpretam do ponto de vista do bebê, levando em consideração apenas as
conseqüências negativas da DPP para o desenvolvimento e a constituição da
personalidade deste, como nos estudos de Camorotti (2001), Catão (2002), Ribeiro
(2002), Andrade (2002), Schwengber e Piccinini (2003), Frizzo, e Piccinini (2005) e
Rosenberg (2007). Estes não se atentam aos profundos prejuízos que ela pode trazer
também para as mães e para a díade mãe-bebê, e até mesmo, para a tríade mãe-pai-bebê.
Os últimos relatórios sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil,
2004) nos confirmam essa tendência unilateral em prol do bebê.
Particularmente, nós advogamos que a DPP e seu prolongamento pode ter
conseqüências ruins não só para o desenvolvimento emocional e cognitivo do bebê,
como também sobre o bem-estar da mulher, sua saúde física e psíquica, seus
relacionamentos conjugal, familiar e social, a qualidade de sua vivência materna, e
sobretudo, para o seu processo global de subjetivação como mulher.
Focalizamos a DPP do ponto de vista da mulher/mãe sem, contudo, esquecer o
aspecto essencial do relacionamento mãe-filho, mas procurando excluir qualquer
determinismo linear do tipo causa e efeito. Para nós, existe uma diversidade tão grande
de sentidos subjetivos para as mães, para os bebês e seus familiares, que nos impede de
manter um olhar reducionista e linear sobre a maternidade e a depressão após o parto.
Isso nos impulsiona para olhar a complexidade destes fenômenos e dos sujeitos neles
implicados.
Assim, apesar de terem muitos sentidos que podem ser subjetivados de forma
semelhante na vivência da maternidade e do pós-parto, cada mulher terá uma vivência
única e singular, que não deve ser padronizada e nem “vendida” para as demais como o
“retrato da maternidade” e nem “enclausurada” no diagnóstico da DPP. Em outras
palavras, levantamos nesta reflexão o seguinte questionamento: seria a DPP uma
psicopatologia, classificada no CID-10 (1993) sob a rubrica de F53.0, ou poderíamos
suspeitar tratar-se apenas de mais uma maneira de vivenciar a maternidade? Talvez seja
ela uma das formas mais sofridas, porém não menos legítima que as demais formas

3
mais convencionais de ser mãe. Através dos sintomas depressivos, a mãe não estaria
apenas revelando o lado obscuro da maternidade, socialmente negado?
Assumimos que a motivação para gestarmos o presente trabalho se deve
principalmente a algumas razões de ordem sócio-histórico-culturais, as quais cremos ser
fundamentais considerar quando se pensa na mãe com DPP, como, por exemplo, o
fenômeno da entrada da mulher no mercado de trabalho. Este fenômeno vem
provocando transformações tão profundas no casamento, na família e na sociedade e na
saúde da mulher (Diniz, 1999) que nos levou a acoplar a categoria de gênero ao nosso
olhar, com a finalidade de ajudar a compreender a saúde da mulher nesse contexto.
Dessa forma, não seria a DPP, da forma como vem se apresentando hoje, também uma
conseqüência desta nova realidade?

A MATERNIDADE NA PERSPECTIVA DA TEORIA DE GÊNERO

A pressão social sobre a mãe, sobretudo nos dias atuais, em que a mulher
acumula várias outras funções, faz com que esta não se sinta autêntica e sinta-se
incapaz, “defeituosa” e incompetente para ser mãe; levando-a muitas vezes à depressão.
Esses elementos apareceram como atributos relacionados à subjetividade social
dominante sobre a mulher e a maternidade e, em vários casos, estavam associados a
“clichês sociais” que têm acompanhado as mulheres nos últimos séculos, como: “ser
mãe é padecer no paraíso”, “toda mulher nasceu para ser mãe”, “toda mãe tem uma
predisposição inata ao sacrifício”. Esses sentidos, em um imaginário de valores,
“aprisionam” as mulheres em uma posição volitiva em serem “as mães perfeitas”.
De maneira geral, as crenças sobre a maternidade são divulgadas como se
fossem tradicionais e naturais, e por serem concebidas assim, essas crenças se tornam
inatacáveis. Contudo, é possível verificar na história da humanidade que essas idéias
têm poucas centenas de anos. A boa mãe, tal qual conhecemos hoje, com sua propensão
natural ao sacrifício, seu amor universal e automático pelos filhos e sua completa
satisfação nas tarefas da maternidade, não foi sempre assim.
Ao contrário disso, Forna (1999) nos conta que esse estilo de maternagem teve
seu início em 1762 a partir da publicação de Émile, por Rousseau, quando este criticou
as mães que enviavam os filhos para as amas-de-leite, o que era bastante comum até
esta época. Ele recomendava, enfaticamente que as próprias mães amamentassem e
criassem seus filhos e as recriminava por darem preferência a outros interesses.
Segundo Badinter (1985) dá-se aí, o início à injunção obrigatória do amor materno.
Serrurier (1993) também afirma que é deste Émile, que estamos condenadas a ser mães
e a ser boas mães. Não há alternativa para a mulher: a vocação materna é natural,
instintiva e obrigatória!
Contrária às idéias de que a maternidade só comporta o amor irrestrito e
apoiando a perspectiva das teorias do gênero, segundo a qual a maternidade é construída
e não instintiva, a maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é
um constructo social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas também,
quem é responsável por eles (Forna, 1999). Culturalmente, as representações sociais da
maternidade estão fortemente calcadas no mito de mãe perfeita. Esta concepção assume
proporções insustentáveis, segundo as quais acredita-se que a maternidade é inata à
mulher. É a idéia de que a maternidade é parte inerente ao ciclo evolutivo vital
feminino. Neste sentido, supõe-se que a mulher, por ser quem gera os filhos, desenvolve
um amor inato pelas crianças e fica sendo a pessoa melhor capacitada para cuidar delas.
(Falcke & Wagner, 2000).

4
Compreender a maternidade como fenômeno cultural, e não natural e biológico,
é o primeiro passo para podermos conhecer as implicações deste conceito na
constituição subjetiva da mulher enquanto ser imerso em um momento histórico e
social. Para Serrurier (1993), não podemos marginalizar o quadro sociológico que, na
sua opinião, com a qual concordamos inteiramente, é responsável, em grande parte,
pelas dificuldades que as mulheres experimentam para serem boas mães. Desde já, cabe
lembrar as palavras de Beauvoir (1980), neste sentido: “ninguém nasce mulher: torna-se
mulher” (p. 9). Da mesma forma, acreditamos que nenhuma mulher nasce mãe, mas
torna-se mãe.
Sendo assim, é mister considerar que o exercício da maternidade é articulado
com os discursos ideológicos dominantes, ligados à ciência, à Igreja e à economia
social, fazendo com que seja percebido como um fenômeno instintivo, arraigado na
estrutura biológica feminina, independente das circunstâncias de tempo e espaço que o
determinam. De Scott (1995), vamos tomar o conceito de gênero, que o historiciza e
propõe seu uso como, categoria analítica e instrumento metodológico para entender
como ao longo da história, se produziram e legitimaram as construções de saber/poder a
partir da diferença sexual. Ao fazê-lo, esta autora abre uma nova perspectiva teórica
para a “desconstrução” das hierarquias e desigualdades de gênero baseadas na diferença
biológica, como se fossem verdades universais. A partir de diversas representações da
feminilidade, foram deduzidas as posições de poder, submissão, complementaridade ou
exclusão das mulheres no seio da sociedade (Aleixo, 2005). Nos próximos tópicos,
veremos que quaisquer que tenham sido as variações ligadas à primazia atribuída ao
sexo ou ao gênero percebemos sempre o traço das modificações sofridas pelas mulheres
e pelas famílias ao longo dos séculos.
Na verdade, os estudos antropológicos não falam de uma permanência histórica
e cultural da maternidade tal como é concebida nos dias de hoje (Viana, 2004) 4. A
mulher reprodutora, parideira, obviamente sempre existiu, mas o conceito da mulher
materna-divina, que faz a maternagem exclusiva dos filhos, data de poucos séculos
atrás. Por isso, a maternidade e a maternagem, segundo os antropólogos e sociólogos, é
um constructo social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas, também,
quem é responsável por eles (Forna,1999).

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA SUBJETIVIDADE FEMININA NA TRADIÇÃO


OCIDENTAL: DE EVA A MARIA

Ao retomarmos a história da humanidade no ocidente, remontando às mulheres


de Atenas, às mulheres de Roma, às mulheres na cultura judáico-cristã, veremos que a
mulher sempre foi vista como uma figura de ambigüidade, cuja história era contada
sempre por homens. Nestes contextos, a figura feminina normalmente é descrita como a
causa dos males do gênero humano, em função da sua curiosidade imprudente e
pecaminosa (Chauí,1984 e 1985; Muszkat, 1994; Roudinesco, 2003; Del Priori, 2004;
Aleixo, 2005). Esta ambigüidade se revela, sobretudo, nas imagens contraditórias de
Eva e da Virgem Maria.
Essas duas figuram nos conduzem à questão da repressão sexual (Chauí, 1985 e
1984). O paraíso perdido e o pecado original, sobretudo a perda da imortalidade, são
frutos da descoberta da sexualidade. Sexualidade esta que foi “atiçada” por Eva que

4
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em
outubro/2004, no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.

5
tentou Adão, recaindo sobre ela a culpa pela separação entre nós e a divindade – com a
conseqüente mortalidade.
O Paraíso significava um mundo onde havia harmonia, imortalidade, eternidade
e ausência de dores e penas. Não nascer e não morrer - infinitude. Chauí (1985 e 1984);
Muszkat (1994) e Del Priori (2004) explicam que a descoberta do sexo foi o Mal, que
condenou a humanidade à dor, à mortalidade e a finitude por culpa da mulher, já que
Adão era obediente e não tocava no fruto proibido. “Os desregramentos, o pecado e a
danação originaram-se da fragilidade moral do sexo feminino” (Del Priori, 2004, p. 25).
Por isso, desde Eva, as tentações da carne e a volúpia sexual eram predicados
femininos, representando a mulher como fraca e suscetível ao pecado, cujo o corpo
corresponde ao lugar de todos os perigos!
Por essa razão, “a mulher, eternamente condenada pelo erro de Eva, tinha que
permanecer vigiada e controlada” (Del Priori, 2004, p. 46). A Igreja e o Estado
exerciam forte pressão no controle da “maligna” sexualidade feminina, justificando
através de argumentos divinos que o homem lhe era superior, cabendo a ele autoridade
sobre a mulher. O feminino era visto como fonte de desordem que deveria ser
controlado pelas leis do casamento, em conformidade com a ordem marital
(Roudinesco, 2003). Dessa forma, foi-se incorporando à natureza feminina um estigma
que predispunha à transgressão e à maldade, revelando-se de maneira mais extrema nas
práticas de bruxaria.
Durante toda a Idade Média, a imagem da mulher estava relacionada às
tentações, ao Diabo, pois ela representava o desejo sem fim e sem limites que poderia
entorpecer e perverter os homens. Assim, de feiticeira à possuída, e desta à louca, há a
interiorização do pecado, tornando-a demoníaca em sua alma (Chauí, 1984 e 1985;
Muszkat, 1994; Del Priori, 2004). O controle do corpo, através de castigos físicos e
disciplina, foi instituído como forma de reeducá-lo e torná-lo dócil e apto para o
trabalho e, principalmente, menos ameaçador.
Assim, de fêmea insaciável, a mulher se converte num ser quase assexuado,
frígido incapaz de viver o prazer e o orgasmo, fisicamente constituído apenas para a
procriação, desde que restrito ao casamento e sem prazer, afirma Chauí (1985). Porém,
mais do que apresentar as formas visíveis e invisíveis de repressão sexual, através da
análise da mulher medieval e suas relações com a Igreja, Chauí (1984 e 1985) mostra
que a construção contemporânea de Eva e da Virgem Maria carrega uma ambigüidade
que perpassa nosso próprio presente: a mulher é responsável pela ciência do bem e do
mal - por sua imprudente curiosidade por seu desejo sexual irrefreável. É também
responsável pela semi-imortalidade e semi–eternidade da espécie, pelo seu resgate
parcial, através da procriação. Apenas sob a figura da Mãe Virgem poderia devolver ao
menos uma semi-imortalidade ao homem, ao gerar a vida, dedicando-se à tarefa da
perpetuação da espécie (Chauí, 1984 e 1985; Muszkat, 1994; Roudinesco, 2003; Del
Priori, 2004). Assim, caberia às mulheres transmitirem a vida e a morte (Roudinesco,
2003).
Uma vez tornando-se mãe, a mulher honrada, de família e casada na igreja,
afastava-se da Eva e aproximava-se de Maria, a virgem que concebeu sem pecado.
Assim, ratifica-se o surgimento do arquétipo do modelo de Maria predominante entre as
mulheres “direitas”. Para isso, suas vidas deveriam ser restritas à família, à igreja, ter
uma vida assexuada com fins apenas procriativos, serem fracas, submissas, passivas e
sem participação na vida pública. Ademais, eram educadas para o casamento, para
cuidar da casa e dos filhos e, ainda, tolerar as relações extraconjugais de seus maridos.
Del Priori (2004) ressalta que esses valores eram incorporados pelas mulheres por meio

6
da imposição da Igreja, da família e por muitos mecanismos informais e formais de
coerção. Chauí (1985) complementa essa afirmativa com a seguinte questão:

(...) poderia haver outro lugar ideológico para as mulheres senão a


maternidade, isto é a repetição da maldição? (somos mortais porque
nascemos) e a promessa de redenção (somos imortais em nossos
descendentes). Autora de uma violência irremissível – revelar aos homens
sua finitude -, a mulher só poderia pagar esse ato de violento sendo
submetida a violência – as dores do parto e a submissão àqueles que por ela
são engendrados para a morte. (Chauí, 1985, p. 32)

Portanto, afirma Roudinesco (2003) que a mulher deve, acima de tudo, ser mãe,
para que a sociedade seja capaz de resistir à tirania do gozo feminino que se acredita ser
capaz de eliminar a diferença entre os sexos, e leve à decadência dos valores
tradicionais da família, da autoridade do pai e ao caos social. Tudo era pensado como
se, “no exato momento em que as mulheres despertassem do longo sono de sua sujeição,
a família fosse ameaçada de ser ela própria destruída” (Roudinesco, 2003, p. 145).
A lógica apresentada por todas essas autoras me pareceu bastante plausível para
introduzir o tema da maternidade. Este percurso histórico pareceu-me dar sentido para a
imposição – violenta e implacável - da maternidade, da qual as mulheres ainda são
vítimas. Até hoje elas estariam pagando pela maldição que impuseram à humanidade ao
condená-la a finitude, à mortalidade, à dor e ao sofrimento, através da maternidade –
sua única chance de se redimir. E para que ela pague este preço, sem resistir ou
reclamar, veremos que foi arquitetado sutilmente e ideologicamente o processo de
naturalização da maternidade.

O PROCESSO DE NATURALIZAÇÃO DA MATERNIDADE

Em primeiro lugar, é fundamental diferenciar a capacidade reprodutiva da


mulher de maternidade. Procriar é um potencial biológico natural. É, para a mulher,
uma condição inexorável, quando assim desejado. Porém, assumir a criança e tornar-se
mãe é um fenômeno que se constitui social e culturalmente, sendo impregnado pelos
ideais e ideologias predominantes nos diversos períodos históricos.
Segundo Chauí (1985), o corpo feminino recebe um conjunto de atributos
derivados de seu atributo mais imediato: a maternidade. Esta é apreendida como
instinto materno, e isso implica num comportamento preestabelecido e predeterminado
quanto à forma e ao conteúdo da maternidade. Assim, a noção de instinto garante ao
mesmo tempo o pressuposto de uma “natureza feminina” como “natureza materna” e a
redução da experiência possível da maternidade a um comportamento inerente, sabido e
já conhecido de todas as mulheres; porque a experiência possível da maternidade é
reduzida ao comportamento materno e este é “deduzido” do instinto e das observações
de “casos”.
Desde esta perspectiva, o fato de ser mãe aparece socialmente considerado como
uma questão central na vida das mulheres. É a idéia de instinto maternal que está
presente na poesia e nos filmes, é a visão romanceada da maternidade que Forna (1999)
ilustra com grande propriedade. Assim, a maternidade tem sido representada há séculos.
O próprio Dicionário Larrousse (2002) define o instinto materno como “uma
tendência primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade e que
uma vez satisfeito, incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos”. No
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986), também encontramos
uma definição semelhante para instinto maternal, a saber:“ (...) força biológica que

7
atua, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e
independentemente de qualquer aprendizado (...) Tendência natural; aptidão inata” (p.
953).
Torna-se possível, desta forma, duplicar a ideologia do instinto. Instinto
materno é definido como um comportamento gerador, mantenedor e protetor da vida, e,
conseqüentemente, a qualidade derivada deste instinto é o amor materno. Vistas sob a
ótica do amor materno, fica fácil considerar as mulheres como “instintivamente” mais
sensíveis do que os homens, e esta sensibilidade compensaria a exclusão do mundo
racional, conforme ressalta Chauí (1985).
O instinto materno, ao mesmo tempo que mantém as mulheres num suposto
mundo natural, as transforma em produtoras desta mesma ideologia do “amor materno e
da sensibilidade”. Além do naturalismo, algo mais está presente no corpo feminino: o
instinto e amor materno são formas de controlar e reprimir a sexualidade feminina. A
natureza feminina permite apenas uma sexualidade procriadora.
Mas ser mãe é, de fato, algo da natureza da mulher? Será o amor materno um
fenômeno inato? O instinto materno de fato existe? Ou será um fenômeno construído
socialmente? Certamente, estas são questões que não povoam as mentes das mulheres
em geral, pois, ainda hoje, a maternidade é percebida com algo da ordem do
inquestionável! É próprio ao senso comum conceber instituições estáveis da sociedade
antes como formas ‘naturais’ de organização da vida coletiva, que como produtos
mutáveis da atividade social. No caso da família, entretanto, a naturalização é
extremamente reforçada pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito,
privilegiadamente, “à regulamentação social de atividades de base nitidamente
biológica: o sexo e a reprodução” (Durham, 1983, p.15).
O processo de naturalização dos fenômenos é o procedimento privilegiado da
ideologia dominante, sobretudo a patriarcal:
Sendo “por natureza” mães e criaturas sensíveis, as próprias mulheres se
farão agentes de violência quando agirem contrariando sua “natureza”, por
exemplo, reivindicando que a maternidade seja reconhecida como um direito
que pode ou não exercer, em lugar de tomá-la como instinto, ou
reivindicando o direito de agirem como seres pensantes.(Chauí, 1985, p.38).

Assim, entendemos que Chauí (1985) faz uma denúncia grave e nos alerta para o
fato de que a violência mais perfeita é aquela que acontece sem que percebamos,
instaurado sutilmente, como algo natural, pré-determinado. Através de uma sutil
inversão ideológica, a violência passa a ser imputada ao “desnaturamento” desejado
pelas mulheres. A violência agora consistirá, portanto, em constranger a vontade das
mulheres, fazendo-as interiorizar a sua “natureza” - que ela consinta em ser, de jure, o
que é realmente de facto. A hipótese de Chauí é que a idéia e a imagem de uma
“natureza feminina” permaneçam até hoje, ainda que difusa e diluída, pelo fato de que o
corpo feminino tenha sido o elemento fundamental para as ideologias da feminilidade.
A Igreja, o Estado, bem como a ciência, acabaram por fortalecer a idéia de
instinto maternal, idéia típica da teoria evolucionista, que defendia a noção de que a
natureza emocional da mulher era conseqüência direta de sua fisiologia reprodutiva
(Laqueur, 2001; Aleixo, 2005). Há, portanto, um discurso sobre as mulheres e não das
mulheres (Chauí,1985 e 1984; Muszkat, 1994; Del Priori, 2004; Aleixo, 2005). Isto
acarreta que, neste processo circular de naturalização-culturalização-naturalização da
mulher, faltou a ela justamente aquilo que a tornaria sujeito de fato e de direito: a
autonomia do falar, do pensar, do agir, do escolher. No processo de subjetivação da
mulher, observa-se, então, que lhe foi dada finalidades internas a partir do exterior.
Entendemos, com isso, que a força do instinto maternal se impõe na vida das mulheres

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há séculos, como algo natural, predestinado e sem possibilidades de escolha! Como nós,
mulheres, poderíamos ousar duvidar desta ordem secular?
A obra de Laqueur (2001) intitulada Inventando o Sexo: corpo e gênero dos
gregos a Freu., foi, para mim, a primeira grande responsável por esta desconstrução do
sexo “inato”. Laqueur (2001) defende a tese de que o sexo biológico também é uma
construção social, a serviço dos interesses sociais/morais. Em suas pesquisas, ele
descobriu que antigamente o modelo de sexo era único. O corpo masculino era o
modelo de perfeição e o corpo da mulher seria apenas um corpo masculino
defeituoso/inferior.
Para Aristóteles e Galeno (citados por Fávero & Mello, 1997; Laqueur, 2001;
Roudinesco, 2003; Aleixo, 2005) os órgãos femininos eram uma forma menor dos
órgãos masculinos e, conseqüentemente, a mulher era um homem menos perfeito. Nesse
sentido, a mulher opõe-se ao homem sendo “passiva”, enquanto este é ativo. Isso faz
dela uma “réplica invertida do homem”, como prova a posição de seus órgãos: o útero
era o escroto; a vulva era o prepúcio; os ovários eram os testículos e a vagina era um
pênis invertido. Assim, tal qual o significado da criação de Eva a partir de uma costela
de Adão, pensa-se a humanidade como masculina e a mulher é definida em relação ao
homem, e não em relação a ela mesma (Chauí, 1985; Muszkat, 1994; Ehrhardt, 1996).
Laqueur (2001) mostra que, somente no século XVIII, os dois sexos –
masculino e feminino – foram inventados como um novo fundamento para o gênero. A
partir desse novo modelo sexual, houve um grande esforço para se descobrir as
características anatômicas e fisiológicas que distinguiam o homem da mulher. Assim a
mulher ganhou um novo status: já não era mais um “homem imperfeito”, mas era um
outro ser anatomicamente diferente. Mas, se, por um lado, esta diferenciação foi
positiva no sentido de marcar um lugar próprio da mulher, não impediu que fosse
agregado a este corpo diferente um valor inferiorizado. Destarte, a mulher não era
apenas diferente do homem, mas continuava ser vista como intelectualmente inferior
pouco racional e, portanto, toda instinto e passional.
Del Priori (2004) confirma esta concepção de mulher ao nos mostrar que para a
maior parte dos médicos do Séc. XVI, a anatomia feminina era diferente não apenas por
um conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas
características morais, sendo “o corpo da mulher destinado a procriação e assuntos
divinos” (p. 78). O lugar da mulher era definido, portanto, através desta função:
“penetrada pelo homem deitado sobre ela, a mulher ocupa o seu verdadeiro lugar”
(Roudinesco, 2003, p. 24).
Autores como Badinter (1985), Chauí (1985), Muszkat (1994), Laqueur (2001) e
Del Priori (2004) afirmam que nesse contexto, onde medicina e igreja comungavam do
mesmo discurso, continuaram sendo construídos conceitos sobre o funcionamento do
corpo feminino sublinhado por sua inferioridade em relação ao corpo masculino. Para
eles, a mulher tinha sido criada por Deus para servir à reprodução da espécie,
relacionando o estatuto reprodutivo da mulher (parir e procriar) a outros de caráter
metafísico, como ser mãe, submissa, frágil, terna.
Concepções que beiram ao cômico, apresentadas por Spencer (1975, citado por
Fávero & Mello, 1997), revelam esta inferioridade e predestinação à procriação:
As energias da mulher eram canalizadas diretamente para preparação da
gravidez e da amamentação, reduzindo sua energia para o desenvolvimento
de outras qualidades. O resultado era uma parada precoce na evolução da
mulher, o que explica seu estágio de desenvolvimento inferior ao do homem.

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A grande preocupação dos médicos e pesquisadores daquela época, de acordo
com Del Priori (2004), era compreender o sistema reprodutor feminino, tendo em seus
estudos destacada a função de madre, nome dado ao útero, órgão este que era descrito
como uma área nebulosa da natureza feminina (Laqueur, 2001; Del Priori, 2004).
Acreditava-se, ainda, que o princípio da vida existiria no sêmen masculino, tendo a mãe
a função hospedeira de receber e nutrir o feto. Assim, “dependente do homem,
instrumento a serviço da hereditariedade da espécie, este é o corpo da mulher, visto
pelos médicos” (Del Priori, 2004, p. 84).
Essas idéias eram reforçadas por argumentos biológicos que consideravam os
instintos peculiares para cada sexo como sendo a fonte primária das diferenças sexuais,
e o instinto feminino definia-se pela submissão ao comando. A idéia “vendida” parece
ser a de que a mulher é toda instinto e que, portanto, foi programada para procriar e
cuidar. Essa deve ser sua aspiração e sua realização e, por isso, deverá ser sua fonte
primeira de gratificações (Chauí, 1985; Badinter, 1985; Serrurier, 1993; Trindade 1993;
Muszkat, 1994; Fávero & Mello,1997; Parker, 1997; Laqueur, 2001, Ribeiro. &
Almeida, 2003 e Del Priori, 2004).
No caso das mulheres, a permanência da ideologia naturalizadora é nítida, pois
seu corpo procriativo é invocado como uma determinação natural; determinação esta
que faz com que a mulher permaneça irrevogavelmente ligada ao plano biológico (da
procriação) e ao plano da sensibilidade (na esfera do desconhecimento). Maternidade,
como instinto e como destino, e sensibilidade, numa cultura que valoriza a razão em
detrimento da emoção, são algumas construções ideológicas curiosas, que, segundo
Chauí (1985), servem para manter a idéia de “natureza feminina” como uma rocha
“natural” no mundo historicizado. Assim, a naturalização seria o procedimento
privilegiado da ideologia dominante, ao qual a mulher vem sendo submetida há séculos.
Viana5 (2004) vai além disso. Para ela, o mito do instinto e do amor materno
sugerem mais do que questões ideológicas. Eles se remetem também a questões
mercantilistas e posteriormente capitalistas, na tentativa de manter a mulher fora do
mercado de trabalho. Na opinião de Chodorow (1990), a maternação das mulheres é um
dos poucos elementos universais e duráveis da divisão do trabalho por sexos. Até agora,
todos os sistemas sexo-gênero têm tido dominação masculina, o que demonstra, na
opinião dessa autora, que a maternação das mulheres é um aspecto central e definidor da
organização social do gênero, e implica na própria construção e reprodução da
dominância masculina.
Freud, de acordo com Roudinesco (2003), também considera equivocada toda
esta argumentação naturalista. Ao seu ver, não existem nem instinto materno e nem raça
feminina, pois para ela, o parâmetro não é simplesmente anatômico, mas simbólico em
torno do falo. O falicismo é pensado como uma instância neutra, portanto comum aos
meninos e meninas. Apesar da eterna atitude interrogativa acerca do “que quer uma
mulher?” e de considerá-la como um “continente negro”, Freud não encorajava as
mulheres a exercerem uma profissão, a militarem por igualdade ou a concorrerem com
os homens no domínio da arte e da sublimação. Para ela, era melhor restringi-las “à
nobreza de uma arte da qual foram iniciadoras, a textura e a tessitura” (1921, citado
por Roudinesco, 2003p. 134).
O objetivo de Chauí, ao levantar dúvidas sobre a “natureza”, “o instinto
materno”, a ”liberdade” e a “vontade” feminina, era o de sugerir que a forma e o
conteúdo dessas vivências nunca foram determinados do interior, mas sempre do

5
Viana, V. M. G. Comunicação pessoal feita em Palestra intitulada “ Trabalhando com mulheres: DPP”, em
outubro/2004, no I Encontro Candango da Abordagem Gestáltica, em Brasília- DF.

10
exterior. Nunca pelas próprias mulheres, a partir de sua interioridade/exterioridade
vividas e refletidas. De forma que a transformação do ser “natural” para ser “de desejo”
e finalmente para um sujeito “livre” foi feita, de acordo com Chauí (1985), sob a forma
de outorga da subjetividade às mulheres.
Assim, fica clara a “armadilha social” que denunciam Chauí (1985) e Beauvoir
(1980). Ou seja, não é possível obrigarmos uma mulher a assumir a maternidade. O que
se pode fazer é cercá-la por uma realidade em que se tornar mãe é a única saída que lhe
resta: os costumes do casamento, a proibição dos anticoncepcionais, do aborto e do
divórcio foram alguns dos artifícios utilizados para a construção desse cerco. Dessa
forma, a mulher se vê sem alternativas, a não ser cumprir com o seu papel imposto pela
sociedade: ser mãe.
Por meio das concepções de Chauí (1984 e 1985) e Del Priori (2004), que são na
sua maioria corroboradas por Badinter (1985), Serrurrier (1993) e Forna (1999),
entendemos que o estilo de maternidade que herdamos hoje foi moldado em um
determinado tempo da história por necessidade e utilidade e, portanto, não é
naturalmente nem instintivamente determinado como nos é imposto crer. Diante dessas
definições, o que poderíamos pensar de uma mulher que não quer ter filhos? Ou de uma
mulher com DPP? Seriam elas, mulheres normais ou desviantes patológicas?
Portanto, apesar do crescente questionamento sobre o amor materno
incondicional e inato, a visão da mãe ideal, responsável pelo bem-estar psicológico e
emocional da família, ainda é bastante presente na literatura e no senso comum
(Badinter, 1985). Acreditamos que esta insistência em que um certo estilo de
maternidade é “natural”, entra em choque com a vivência da maternagem, o que leva ao
sentimento de “mãe desnaturada” e há muito sofrimento. Mas também, tem levado
muitas mulheres, na atualidade, a questionarem cada aspecto do que fazem, pensam,
sentem, e a avaliar suas próprias experiências, buscando flexibilizar o padrão rígido e
determinista cultuado socialmente.

A MÃE MODERNA: NOVA HISTÓRIA, VELHAS REPRESENTAÇÕES.

Há algum tempo, observa-se que as mulheres de hoje não são mais criadas
somente para contrair um bom casamento e criar filhos. Ou seja, a ênfase da educação
feminina não está mais no papel materno, mas sim na preparação delas para enfrentar o
mercado de trabalho. Sobretudo nas classes sociais mais favorecidas (Durham, 1983),
elas são criadas para serem boas profissionais e terem seus próprios sustentos. Essa
mudança de foco educacional fez com que as mães não mais criassem suas filhas
somente para exercerem exclusivamente o papel de mães.
Não há dúvidas de que a inserção da mulher no mercado de trabalho,
contribuindo para o declínio do sistema patriarcal e minando a hegemonia masculina,
provocou e continua a provocar muitas transformações nas relações conjugais e
familiares atuais. Roudinesco (2003) nos mostra que hoje existe uma diversidade tão
grande de tipos familiares – desconstruída, recomposta, monoparental, homoparental,
clonada, gerada artificialmente - que a família ocidental de hoje está sujeita a uma
grande desordem. Hoje, as mulheres podem dominar a procriação, os homossexuais
podem participar do processo de filiação e o pai, não é mais o pai–patriarcal. Ele está
assumindo um papel “maternalizante” (Roudinesco, 2003, p. 179), ao aumentar
gradativamente o seu envolvimento masculino nos trabalhos domésticos. A vida
definitivamente mudou!
Na verdade, na visão Roudinesco (2003) assistimos a um empoderamento de
uma camada de mães que, além de serem detentoras da ordem procriadora, têm ainda o

11
poder de designar ou de excluir o pai de seu filho. Mesmo com a presença do pai em
casa, é ela quem continua tendo as maiores responsabilidades de controlar, educar e
criar os filhos. Resta-nos saber se este empoderamento apontado por Roudinesco (2003)
tem trazido de fato mais poder, ou mais carga de trabalho e responsabilidades para a
mulher.
Em uma análise macrossistêmica, ficam claras as transformações da posição da
mulher no contexto social, que cada vez mais vem ocupando seu espaço no mercado de
trabalho e ampliando sua representatividade na sociedade. Porém, no âmbito familiar,
observa-se que ela vem abarcando maiores responsabilidades e, agora, integra tanto as
funções de cuidado, nutrição, afeto, entre outras que já lhe cabiam, como também, o
papel principal de disciplinadora, além de ser uma participante ativa na divisão das
despesas domésticas, quando não de arrimo de família.
Assim, o fato da mulher gerar vida, fato que poderia representar o seu poder
equivalente ao falo, como afirma a teoria psicanalítica, cai por terra, pois, ao se
submeter à maternidade, passa a ser “engolida” pelo papel de mãe e esse poder é posto a
serviço da humanidade. Tal realidade coloca a mulher num lugar de subordinação,
fazendo prevalecer as funções maternas em detrimento das outras manifestações
possíveis do feminino (Beauvoir, 1980). Por isso, apesar de existirem muitos casais
experimentando novos arranjos familiares, ainda se observa hegemonicamente que a
velha divisão de papéis insiste em se manter. O pai trabalha fora e, por isso, está
“liberado” de participar ativamente da educação das crianças; e a mãe, mesmo que
trabalhe fora e contribua para o sustento da família, ainda resiste em abandonar o que
fez durante tanto tempo – responsabilizar-se “sozinha” pelos cuidados para com a sua
prole:
Para o homem, a casa é o “repouso do guerreiro”. Para a mulher que trabalha
fora, é o seu segundo turno, muitas vezes até mais desgastante que o
primeiro, porque lhe sobra pouco tempo para dar conta de todas as tarefas
que se impõe: ver se os filhos estão machucados ou doentes, se fizeram as
tarefas escolares, se a casa está arrumada, se não falta mantimentos na
despensa e ainda preparar o jantar para receber o guerreiro cansado (Tiba,
2002, p.36).

Portanto, apesar deste novo contexto, o mito social relativo ao papel feminino
demonstra-se preponderante (Falcke & Wagner, 2000). O pai continua sendo sempre
mencionado, reverenciado e merecedor dos louros da família. Ainda sobrevive a cultura
de que a última palavra é a sua (Tiba, 2002). O conceito de maternidade e as
responsabilidades desta função continuam baseados em um modelo rígido e antigo, que
parece resistir bravamente às mudanças no mundo pós-patriarcal. Dessa vez, recorremos
à Rocha-Coutinho (1994):
Ainda hoje, por trás de discursos e à margem de declarações oficiais, se ouve
a opinião de que o lar e a educação dos filhos sempre foram e devem
continuar sendo atribuições das mulheres e que, devido à sua constituição
física e espiritual, as mulheres devem ser afastadas do trabalho físico pesado,
bem como das atividades que lhes exigem muito intelectualmente" (p.42).

Nessa vertente, Trindade (1993) afirma que a manutenção dos efeitos da


socialização diferenciada entre meninos e meninas continua sustentando a divisão
tradicional de papéis: a continuidade da maternidade como condição estruturante da
identidade feminina e do sucesso profissional como uma necessidade para a construção
da identidade masculina. Isso tem contribuído significativamente para a manutenção das
concepções arcaicas da maternidade e da paternidade, apesar das transformações já
visíveis na relação dos homens com a paternidade.

12
O estudo de Falcke e Wagner (2000) confirma essa percepção. Neste, pôde-se
demonstrar que as mulheres, tanto mães quanto madrastas, ainda trazem um forte legado
transgeracional relacionado ao estereótipo de gênero, ainda que muitas mudanças
sociais venham ocorrendo nesses últimos tempos. Neste caso, pode-se perceber a força e
o poder do mito da maternidade perfeita como uma idéia muito presente, ao qual as
mulheres respondem de forma quase automática.
Neste processo, é imperioso reconhecer então que, apesar das intensas e
progressivas mudanças que vêm ocorrendo no sistema patriarcal - mudanças com
relação à divisão no trabalho, com relação à estrutura das famílias, do papel da mulher,
brilhantemente comentadas por Castells (1999), a atitude em relação às mulheres pouco
mudou (Rocha-Coutinho, 1994). A participação no trabalho remunerado não mudou o
fato de que, quando estão em casa, cabe às mulheres a responsabilidade quase total
pelos filhos (Chodorow, 1990). Ou seja, flashes capturados do cotidiano das famílias
mostram que o mundo mudou, mas nem tanto assim!
Esta constatação é muito bem expressa nas palavras de Forna (1999), com a qual
somos obrigadas a concordar: “Apesar das mudanças no trabalho e na vida da família de
milhões de mulheres, apesar de falar numa era de pós- feminismo, a atitude em relação
às mães continua colada na idade das trevas”(p.78).
Para pensar esta contradição, podemos recorrer também a Chodorow (1994,
citado por Castells, 1999), que discorrendo sobre esta manutenção dos papéis sociais
nos faz um alerta:
Mulheres, na qualidade de mães, geram filhas com capacidade maternal e o
desejo de elas próprias tornarem-se mães (...) em contrapartida, as mulheres
como mães (e os homens como não mães) geram filhos homens cuja
capacidade e necessidade de criar filhos têm sido sistematicamente reduzidas
e reprimidas. Este fato prepara os homens para sua função considerada
primordial, a participação no mundo impessoal e extra-familiar representado
pelo trabalho e pela vida pública.” (p. 265)

Durham (1983) argumenta que, para responder a essas questões, é necessário


analisar em que medida as variações familiares existentes correspondem a adaptações
ou extensões do modelo hegemônico, ou até que ponto implicam em sua contestação.
Para essa análise, porém, é necessário distinguir o significado da família para as
diferentes classes sociais. Segundo interpreta esta autora, para as classes populares, o
aumento de famílias matrifocais, sem provedor masculino estável, "podem ser antes
uma demonstração da impossibilidade de organizar a existência em termos mínimos
aceitáveis do que, na verdade, um modelo alternativo de família" (Durham, 1983, p. 34).
Na medida em que se preserva a tradicional divisão sexual do trabalho - pai-provedor e
mãe-doméstica - mesmo em lares onde as mulheres contribuem para o sustento familiar,
"exceções ao modelo, mesmo freqüentes, não significam necessariamente nem sua
contestação nem a emergência de modelos alternativos" (1983, p. 35).
Ao considerar pois, que a mãe e/ou outras mulheres da família têm tido a
responsabilidade maior na educação das crianças e que, portanto, seu papel na
transmissão de princípios e valores é muito importante, verificamos que, na realidade, é
a mulher quem tem se encarregado da reprodução de representações que a inferiorizam
e oprimem. Então, as atuais avós, apesar de criarem suas filhas para o mercado de
trabalho, continuam cobrando delas a “velha” maternidade e netos. Este legado
transgeracional é evidenciado por Chodorow (1990), ao constatar que ainda hoje a
maioria das mulheres continua a maternar, a se casar e a violência contra elas não está
diminuindo.

13
Acontece, porém, que até há alguns anos atrás, quando as famílias eram mais
numerosas, era comum a filha mais velha cuidar do irmão mais novo. Dessa forma,
quando tinham seus próprios filhos, sentiam-se mais capacitadas e seguras em assumi-
los. Hoje em dia, é mais difícil passar por esta experiência, já que em muitas famílias o
número de filhos tem diminuído consideravelmente e seus membros saem para
trabalhar. Assim, à medida que as famílias se tornam menores, os filhos não têm a
oportunidade de adquirir conhecimentos tratando dos irmãos mais novos; deste modo
somente, quando se tornam pais, percebem que desconheciam por completo o que na
realidade significa ser pai e mãe.
Nos cursos pré-natais, as futuras mães dizem muitas vezes que nunca pegaram
um bebê no colo, nunca viram uma criança recém-nascida, nem tiveram oportunidade
de observar de perto uma mãe tratar do bebê. “Não há lição de puericultura ou aulas
práticas com uma boneca de borracha numa banheira que possam suprir esta lacuna.”,
afirma categoricamente Kitizinger (1978, p.44). Mesmo diante dessas lacunas,
continuamos a cobrar das mulheres o “velho modelo de mãe”; porém, as mulheres de
hoje já não são preparadas, não sabem e nem querem cuidar de seus bebês como suas
mães faziam.
Obviamente, é importante relativizar esta afirmação, visto que não podemos
generalizá-la a todas as mulheres e de todas as culturas, camadas sociais, afiliação
religiosa, meio urbano ou rural, sobretudo porque esses fenômenos são observados
prioritariamente nas famílias burguesas, de acordo com Durham (1983). Certamente, há
na diversidade do mundo feminino muitas mulheres que ainda se encaixam neste antigo
modelo.
Há ainda outro importante elemento a ser considerado na constelação que
sustenta a maternidade na era contemporânea: a supervalorização dos filhos. O controle
da natalidade,fez com que, a partir dos anos 70 do século XX, a cultura do filho único se
propagasse. Nesse contexto, um filho passou a ser considerado uma nova espécie de
riqueza, o que, por sua vez difere da situação da família que atuava como uma unidade
econômica, como acontecia no século XVIII, quando em contextos rurais, todos fossem
jovens ou velhos eram considerados mão de obra e a sobrevivência da família dependia
do trabalho de todos os seus membros (Kitzinger, 1978; Tiba, 2002). Assim, um filho
era “apenas mais um” e não tinha um lugar de destaque.
Até o século XVIII, inclusive a infância era curta e dura. A relação mãe-filho,
tão exaltada nos tempos modernos, mal existia. Em Centuries of childhood, o
historiador Philippe Ariès (citado por Forna, 1999) fala que a “idéia de infância” era
alguma coisa que simplesmente não existia, um conceito estranho à sociedade. A
criança nascia e, se sobrevivesse, recebia apenas o sustento que se julgava necessário e
muito pouca atenção. Então, “sem a existência da infância, impõe-se à razão que o
estado interdependente da maternidade também não existia” (Forna, 1999, p. 36).
Hoje, um filho tem um “valor de uma jóia rara!” (Tiba, 2002, p.48). Na nossa
cultura da América, o planejamento é para no máximo dois filhos, nas classes mais
favorecidas, afirma Tiba (2002). Kitizinger (1978) também nos fala que a educação de
dois ou, quando muito, de três filhos tornou-se a função principal da família moderna.
Nasce assim, uma riqueza instintual, idealizada para garantir a conservação da espécie,
e espiritual, como realização humana. As crianças passaram a ser supervalorizadas,
tanto pelo Estado como pela família. Há quem afirme inclusive, que estaríamos vivendo
na era do Filiarcado (Grunstun, & Grunstun, 1984).
No que tange a psicologia, vários autores, como Badinter (1985), Chodorow
(1990), Maldonato, Dickstein e Nahoum (2000), apontam que a preocupação com os
problemas emocionais das crianças é disseminada a partir das influências da teoria

14
psicanalítica desenvolvida por Freud. É a partir deste autor que os filhos passam a ser
reconhecidos como seres humanos dotados de desejos e necessidades emocionais; e à
mãe recai a principal responsabilidade no seu desenvolvimento equilibrado e saudável.
A psicanálise argumenta que a presença física da mãe é fator decisivo para o
desenvolvimento adequado da saúde mental dos filhos.
Na psicanálise, postula-se que a mãe é o objeto primário de amor para homens e
mulheres. A mãe é responsável pela diferenciação do filho e pela futura identificação, já
que o bebê nasce em um estado de simbiose com a figura materna. A esta figura cabe
suprir o amor e as necessidades da criança. Assim, a mulher continua sendo concebida
como ser destinado a parir e amar o filho que recebe. A maternidade continua sendo
designada como uma graça recebida de Deus.
A partir das distinções feitas por Freud autor para a superação do complexo de
Édipo, fenômeno estruturador da personalidade humana, aponta as dificuldades
femininas no que diz respeito à conquista de sua identidade. E esta identidade feminina
é vinculada à capacidade de ser mãe e gerar uma nova vida. No Édipo, a menina
constrói a fantasia de que é um ser incompleto, devido à falta do pênis. Pela “inveja do
pênis”, ter um filho, é a única forma que lhe permite sua completude como mulher.
Infelizmente, apesar de serem amplamente combatidas pelas feministas atuais, como
destaca Aleixo (2005) em seu trabalho de tese, essas teorias ainda são bastante
difundidas e tomadas como verdades inabaláveis nos meios psicanalíticos.
Percebemos que a teoria freudiana é amplamente fundamentada pela concepção
familiar existente na época em que o autor pensava e escrevia. Assim, podemos supor
que não foi por coincidência que as teorias de Freud e sua filha Anna, sobre a
importância da presença e atenção maternas como determinantes para o bom
desenvolvimento psicoafetivo da criança, acabaram por corroborar e apoiar
cientificamente as tendências dos anos 50: mandar as mulheres de volta para casa!
Em uma sociedade em que a mulher normalmente trabalha fora, também é
responsável pelo orçamento familiar e cultiva interesses diversos, o fato de ter esse filho
precioso acarreta conseqüências diversas. Passados mais de trinta anos do início do
movimento feminista, ainda estamos nos debatendo sobre os efeitos das creches nos
filhos de mães que trabalham fora e culpando-as, assim como as mães solteiras ou
divorciadas, pelos problemas dos filhos (Forna, 1999).
Portanto, o que pode parecer apenas a ascensão da mulher para um status
“superior”, fruto dos movimentos feministas, mostra, também, a honerosa sobrecarga
do quádruplo papel. Hoje, nos lembra Castells (1999), resta à mulher congregar tanto o
papel de provedora como o de responsável pelos cuidados domésticos, responsável pela
criação dos filhos, além de ser também a zeladora dos vínculos afetivos familiares e
conjugais e preferencialmente, sem se queixar.
Dados do último relatório sobre a saúde da mulher do Ministério da Saúde
(Brasil, 2004) confirmam este fenômeno. De acordo com o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) (citado por Brasil, 2004, p.21) “mulheres representam
50,77% da população brasileira, mas, apesar de serem maioria, são tratadas como
cidadãs de segunda classe”. Sofrem discriminações nas relações sociais, principalmente
nas relações de trabalho e na sobrecarga do trabalho doméstico. Apontam que essas
condições são reforçadas pelas desigualdade de gênero, visivelmente arraigada na
sociedade brasileira.
Este relatório demonstra ainda que 71,3% das mulheres empregadas ganham até
dois salários mínimos, contra 55,1% dos homens. Aquelas que ganham mais de cinco
salários representam apenas 9,2% da população feminina economicamente ativa, contra
15,5% dos homens. As mulheres, além de ganharem menos, estão concentradas em

15
profissões mais desvalorizadas, têm menos acesso a espaços de decisão no mundo
político e econômico, sofrem mais violência (doméstica, física, sexual e emocional),
vivem a tripla jornada de trabalho, dentre outros problemas citados que comprometem o
seu desenvolvimento e saúde mental. Esses dados revelam que ainda há muito o que se
fazer para distanciar satisfatoriamente a qualidade de vida das mulheres de hoje das de
“Atenas”!
Nesse novo estilo de vida familiar, os vários fatores que interagem de forma
complexa têm um papel tanto enriquecedor como deletério para a saúde da mulher. A
realização profissional, por exemplo, proporciona, simultaneamente, benefícios na auto-
estima e acúmulo de papéis. Esta realidade atual implica numa redistribuição dos papéis
de homens e mulheres que têm resultado em sobrecarga para elas. Mas o que se observa
é que esta redistribuição caminha de forma desigual. Há um crescimento acelerado com
índices cada vez mais altos de mulheres saindo de casa e adentrando o mercado de
trabalho, enquanto a participação masculina nos trabalhos domésticos vem crescendo
lenta e gradualmente (Trindade, 1998; Chodorow, 1990; Chodorow, 1978 citado por
Castells, 1999).
Em outras palavras, poderíamos afirmar que a mulher saiu para o mercado de
trabalho sem contudo deixar de ser mãe e nem por isso, os homens se tornaram mais
pais. Só recentemente alguns começaram a participar mais ativamente da educação dos
filhos. Por outro lado, tanto homens quanto mulheres estão enfraquecidos no exercício
de suas funções. As mulheres estão confusas, desejam ter sua independência financeira,
ter sucesso profissional, serem boas amantes, serem belas, sexualmente atraentes, e
continuam tendo que atender a expectativa do mito da mãe perfeita, exigência que
implica em tempo e disponibilidade (Catão, 2001).
Diante desse quadro, Maldonato (2000) também chama atenção para esta
tendência em culpar a mulher - um aspecto importante da mentalidade higiênica e na
história da medicina, sobretudo no Brasil. A mãe do século XVIII era a auxiliar dos
médicos; no século XIX, colaboradora dos religiosos e dos professores. Já no século
XX, assume outra responsabilidade – a de cuidar do inconsciente e da saúde emocional
dos filhos. A mãe se vê, atualmente, diante de uma superabundância de conselhos,
freqüentemente conflitantes, para educar seus filhos. Normalmente, os conselhos são
sempre apresentados como “o melhor para o bebê”, ficando a mãe em segundo plano.
Em função das necessidades do filho, tudo deve ser sublimado e adiado. Roudinesco
(2003, p. 146) definiu esse fenômeno como “um fosso irreversível que parece ter se
cavado entre o desejo de feminilidade e o desejo de maternidade, entre o desejo de
gozar e o dever de procriar”. A conseqüência disto, diz Forna (1999), é que as mães se
transformaram em verdadeiros “trapezistas de circo”, voando sem rede de segurança,
sem poder se dar ao luxo de um único erro, sob pena de sentirem a famosa “culpa
materna”.
Frente a tudo o que foi exposto até o momento, podemos concluir que, revendo a
condição de vida das mulheres sob uma ótica histórica, essas têm sido subalternas,
inferiorizadas e pressionadas por uma sociedade que sempre exigiu delas muitos
deveres e obrigações e quase nenhum direito. Entre essas exigências, espera-se que a
mulher goze de boa saúde para procriar, seja sexualmente ativa e disponível, gere filhos
sadios e que, mesmo sem apoio para realizar as tarefas que lhes são atribuídas, ainda
amamente, cuide, proteja, alimente e eduque os filhos, sem reclamações e comportando-
se de maneira terna, compreensiva e sedutora (Nogueira, 2004). Qual seria, então, o
papel da DPP neste contexto histórico-social?

16
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todas estas considerações nos levaram a acreditar que a maternidade como vem
sendo concebida até nossos dias, tem influência direta no aparecimento da depressão no
pós-parto. Nossa hipótese é de que essas pressões culturais sob as quais as mulheres
invariavelmente exercem a maternidade, associadas ao sentimento de incapacidade em
adequar-se a uma visão romanceada desse estado, acabam por deixá-las ansiosas e
culpadas, suscitando dessa maneira conflitos que predisporiam a depressão pós-parto.
Isto posto, não pretendo discutir a relação da DPP a partir da perspectiva
biológica, que confere às alterações hormonais e às modificações corporais grande
influência no comportamento das mães e na a etiologia da depressão puerperal; e nem
pela perspectiva psicodinâmica, como tradicionalmente vem sendo feito sobretudo pelos
estudos psicanalíticos. Mas buscarei privilegiar o fenômeno do ponto de vista histórico-
cultural e da categoria de gênero, que aponta para os contextos e para as transformações
históricas ocorridas nos papéis sociais da mulher e dos homens e na sua integração com
a vivência atual.
Assumindo esta posição, advogamos ser imprescindível a “desculpabilização”
das mães e incentivar o compartilhamento de responsabilidades entre mães, pais,
familiares e toda a sociedade, assim como a conseqüente divisão de tarefas nos cuidados
e a responsabilidade de zelar pela educação física, emocional, cognitiva e social dos
filhos. Ou seja, todos devem se responsabilizar pela criação de um novo ser, em
especial, o pai que deve compartilhar a criação dos filhos, e não apenas se restringir a
dimensão da ajuda opcional e esporádica.
É valioso sensibilizar o profissional de saúde para a importância do fenômeno
da depressão após um parto. A falta de orientação e de apoio determina na mulher um
sofrimento físico e emocional que poderia ser evitado com medidas preventivas ou
curativas (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). Há de se considerar, com a devida
importância, que as ações assistenciais contempladas pelas normas e rotinas, ora em
vigor, não são capazes de responder de forma singular às necessidades das pacientes, tal
qual se supõe; devendo ser, portanto, revistas, dando ênfase às necessidades
diferenciadas que se alicerçam na dimensão subjetiva da mulher.
Esta mesma atitude deve ser adotada no pós-natal, período no qual as
tradicionais consultas puerperais deveriam ter seu foco ampliados para as questões
emocionais, culturais e sociais envolvidas na maternidade e na paternidade. Grupos de
acompanhamento das mães e pais, nos moldes dos que realizamos na UCB, deveriam
ser implantados junto a maternidades e bancos de leite, com o objetivo de proporcionar
às puérperas e seus companheiros um espaço de escuta emocional e apoio onde o tema
da maternidade, da paternidade e da DPP pudessem ser adequadamente abordados para
melhorar a qualidade de vida não só das mães, de seus bebês, pais e familiares. Mas
chamamos atenção que, para a efetivação dessas abordagens tanto no pré quanto no pós-
natal, é preciso trabalhar em equipe, integrando a esta o psicólogo hospitalar, com vistas
a promover também o bem estar psicológico e social das gestantes e puérperas.
Acreditamos que um pré-natal psicológico, conforme defende Bortoletti et al. (2007),
além de prevenir uma série de doenças e problemas com a mamãe e o bebê, também
serve como prevenção de uma depressão no pós-parto e para a vinculação afetiva da
tríade mãe-pai-bebê e a posterior parentalidade compartilhada.
Por fim, defendemos a necessidade de avaliar e qualificar a forma como
profissionais da saúde, têm auxiliado as mães e as famílias que estão sofrendo no pós-

17
parto. Nessa perspectiva, vale atentar para a necessidade de reformulações do modelo
assistencial ora vigente, no sentido de considerar a maternagem como uma tarefa que
precisa ser aprendida pela mulher e protegida pela sociedade. Em termos práticos,
sugerimos a implantação de um “pré-natal psicológico” que incluísse a figura paterna,
os avós, onde os médicos devessem se preocupar com a mãe e com o pai, tanto em
termos orgânicos como psicológicos. Buscamos, ainda, alertar para a necessidade de
uma análise crítica sobre o diagnóstico de DPP enquanto entidade padronizada,
estimulando a sua despatologização e o apoio psicológico precoce em maternidades.
Finalmente, esperamos ter trazido uma nova contribuição para iluminar a compreensão
sobre o processos de subjetivação das mães com DPP, na esperança de no futuro ajudar
os profissionais de saúde e os acadêmicos que atuam em áreas da saúde perinatal e do
desenvolvimento humano a evoluir em sua compreensão e maneira de pensar a mãe que
se apresenta depressiva no pós-parto. Esperamos que estas reflexões tenham nos
permitido criar fissuras em territórios tão cristalizados!

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20
12
Psico-USF, Bragança Paulista, v. 19, n. 1, p. 37-47, jan./abril 2014 37

Avosidade x maternidade: a avó como suporte parental na adolescência

Kelly Lins Beserra Pinto – Universidade Católica de Brasília, Brasília, Brasil


Alessandra da Rocha Arrais – Universidade Católica de Brasília, Brasília, Brasil
Katia Cristina Tarouquella Rodrigues Brasil – Universidade Católica de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo
Trata-se de um estudo de caso cujo objetivo foi identificar e discutir o lugar da avó como apoio parental para uma paciente
adolescente de 15 anos. Baseou-se nos relatos das sessões de psicoterapia, que revelaram o desamparo da adolescente diante da
falta de uma rede de proteção social e institucional e apontou a fragilidade materna em resistir a destrutividade que os atos da
adolescente lhe impunha. Constatou-se que a avó ocupou um lugar de suporte afetivo para essa adolescente já que sua mãe tinha
dificuldades em exercer seu papel parental. A adolescente na psicoterapia pôde perlaborar os desafios relacionais com sua mãe e
com a avó. Hipotetiza-se se as transgressões desta adolescente são de significação consciente ou inconsciente que se relacionam
à busca de limites e de reconhecimento direcionados a essas duas figuras femininas. O processo psicoterápico permitiu que a
adolescente experimentasse seus desafios pulsionais, sem se sentir ameaçada ou invadida por eles.
Palavras-chave: Adolescência, Avós, Apoio parental.

Grandmotherhood x motherhood: the grandmother as parental support in adolescence

Abstract
This is a case study aimed to identify and discuss the place of the grandmother as parental support for a 15-year-old patient.
It was based on reports of their psychotherapy sessions, which showed the helplessness of the adolescents regarding the lack
of a social safety net and institutional and pointed the mother’s fragility to resist the acts of destructiveness imposed by her
teenager. It was found that the grandmother occupied a place of emotional support for this teen as her mother had difficulties
in exercising her parental role. The adolescent in psychotherapy could work challenges related to her mother and grandmother.
It is hypothesized that adolescent transgression relates to conscious or unconscious signification that searches limits and direc-
ted the recognition of these two female figures. The psychotherapeutic process allowed this teen to experience her instinctual
challenges, without feeling threatened or invaded by them.
Keywords: Adolescence, Grandparents, Parental support.

Abuelidad x maternidad: la abuela como apoyo parental en la adolescencia

Resumen
Se trata de un estudio de caso que tuvo como objetivo identificar y discutir el lugar de la abuela como apoyo de los padres de una
paciente de 15 años. Se basa en los informes de las sesiones de psicoterapia, que revelan el desamparo de la adolescente frente a
la falta de una red de protección social e institucional y apunta la fragilidad materna para resistir a la destructividad que los actos
de la adolescente le imponían. Se encontró que la abuela ocupaba un lugar de soporte emocional para esa adolescente puesto que
su madre tenía dificultades para ejercer su rol parental. La adolescente pudo tener la perbaboración de los problemas relacionales
con su madre y su abuela en la psicoterapia. Se hipotetiza si las transgresiones de esa adolescente son de significado consciente
o inconsciente y se relacionan con la búsqueda de límites y de reconocimiento dirigidos a esas dos figuras femeninas. El proceso
psicoterápico permitió que la adolescente experimentase sus desafíos instintivos sin sentirse amenazada o invadida por ellos.
Palabras clave: Adolescencia, Abuelos, Apoyo parental.

Introdução financeiro, o idoso pode ser uma figura de referencia


parental tanto para seus filhos como para seus netos
Estudos apontam que, com os novos arranjos, (Oliveira, 2011).
a composição das famílias brasileiras ganhou força Para conviver com as gerações mais novas, os avós
expressiva dos idosos (Debert & Simões, 2006; Dias, desenvolveram estratégias relacionais de convivência com
1994; Goldfarb & Lopes, 2006, Lima, de Moraes & outras gerações, entre elas, a abertura para novas expe-
Augusto Filho, 2008). Diante do aumento da longevi- riências. Diante das particularidades da dinâmica familiar,
dade, os idosos passaram não só a conviver mais tempo alguns avós desempenharam a função de cuidadores,
com seus descendentes, bem como passaram a exercer prestando apoio afetivo e financeiro à rede familiar,
diferentes papéis na dinâmica familiar e a velhice passou enquanto outros assumiram a função paterna ou materna
a ocupar um novo lugar. Apesar da ideia de exclusão somando os papéis de avós e pais dos netos (Oliveira,
e de fragilidade associadas à velhice, além do apoio 2011; Vitale, 2008).
Disponível em www.scielo.br
38 Pinto, K. L. B. & cols. Suporte parental na adolescência

Reconhecendo os novos laços que se constituem para fornecer ao sujeito uma solidificação narcísica no
entre os adolescentes e seus pais e avós, este estudo momento da adolescência, as falhas narcísicas serão
buscou identificar e discutir o modo de relação estabe- incontornáveis (Savietto & Cardoso, 2006).
lecido entre uma adolescente e sua avó, tendo em vista a Assim, no contexto da adolescência os adultos
fragilização da função parental, pela ausência materna e serão particularmente solicitados, pois terão que aju-
paterna. Embora existam pesquisas sobre a importância dar os adolescentes a enfrentarem no real do corpo as
dos avós na infância, poucos estudos abordam a função visíveis modificações, bem como exercerem a função
destes e sua relevância na adolescência dos netos. de paraexcitação, de continente, daquilo que no sujeito
adolescente esteja transbordante, afirma Marty (2006b).
Adolescência e o apoio narcísico parental Contudo, os adolescentes podem não encon-
Segundo Pereira (2005), a palavra adolescência trar a sua volta um apoio parental que possa sustentar
deriva do latim adollacentia, e significa processo de cres- a posição de suporte e de continente para o desafio
cimento em direção à maturidade. Marty (2006a) teoriza pubertário, pelo contrário, alguns adolescentes enfren-
que esse movimento maturacional acontece com o início tarão sozinhos esse período, e essa situação poderá
do pubertário, momento do redespertar dos conflitos complexar sobremaneira esse momento da vida.
edipianos da primeira infância. Freud (1905/2001), um O apoio narcísico parental se refere à sustentação
dos pioneiros no estudo da adolescência, destaca que, advinda dos adultos no momento em que o adolescente
nesse momento, o sujeito redireciona a libido, afrou- se encontra em situação de fragilidade narcísica ou se
xando os laços com a família, que foram decisivos na percebe desamparado. Nesse período de crise, o apoio
infância. Há um amadurecimento do aparelho genital parental oferece ao sujeito bases para que no momento
com desenvolvimento da função reprodutora e o sujeito da reorganização identificatória, na adolescência, ele
se percebe capaz de gerar outros indivíduos, aspectos escolha novos objetos para investir e dar continuidade
que podem parecer ameaçadores aos privilégios da ao desenvolvimento de forma criativa a serviço da vida
infância, bem como sedutores diante da possibilidade (Marty, 2006b).
de usufruir, sem responsabilidades, do gozo genital. De modo que a ausência do apoio narcísico paren-
Nesse processo de transição, Marty e Cardoso tal leva os adolescentes a recorrer aos acting outs ou atos
(2008) ressaltam que o adolescer não se limita ao direcionados a si mesmo ou ao outro. No entanto, os
movimento de extensão da infância, que tornará o adultos podem sentir-se desamparados ante o desafio
sujeito homem ou mulher; na verdade, ao reviver a de enfrentar a violência do pubertário. Assim, alguns
problemática edipiana infantil, ele se depara com as pais, segundo Marty (2006a), desconhecem as formas
transformações corporais e a necessidade de integrá-las de proteger os próprios filhos da violência contra si
sem se perder em meio à crise “mudar e permanecer o mesmos ou não conseguem resistir a destrutividade
mesmo” (Marty & Cardoso, 2008, p. 11). do filho, de modo que a fragilidade dos adultos não
Nesse trânsito crítico o jovem repudia as identifi- contribui para que os adolescentes encontrem o apoio
cações da infância tentando se diferenciar dos valores narcísico parental para enfrentar algo de si mesmo que
estabelecidos pelos pais e pela cultura em um movi- lhe escapa.
mento de separação/ individuação. Todavia, também
reconhece sua forte ligação com os objetos internos, ou Avosidade x parentalidade
seja, seu pertencimento, pela compreensão daquilo que A literatura aponta (Berger, 2003; Goldfarb &
apreendeu sobre si na relação com seu meio familiar e Lopes, 2006) que a modificação no papel dos idosos no
sociocultural, nos explica Pereira (2005). contexto familiar e social provocou uma crise de identi-
Nesse contexto, as mudanças psíquicas produzidas dade na avosidade. A definição desse termo difundiu-se
com a entrada na puberdade confrontam o adolescente com os estudos de Paulina Redler, no ano de 1977, sobre
exigindo a reorganização e reestruturação da sua iden- psicogerontologia. Estes sugeriam ampliação da visão
tidade. O medo das mudanças individuais, culturais e biológica para além da idade cronológica ao realçar os
sociais, e a angústia de ter que se assegurar no mundo laços de parentesco que exigem do idoso a reestrutura-
externo caminham juntos no processo de adolescer ção psíquica ao ocupar um novo status pessoal, psíquico,
(Savietto & Cardoso, 2006). Esse processo sinaliza que familiar e social: ser avô/avó (Pedrosa 2006).
o jovem precisará de sólidas bases narcísicas, portanto, Contudo, para Goldfarb e Lopes (2006), o que
se as relações objetais primárias forem insuficientes definirá a avosidade não será a idade cronológica ou o

Psico-USF, Bragança Paulista, v. 19, n. 1, p. 37-47, jan./abril 2014


Pinto, K. L. B. & cols. Suporte parental na adolescência 39

papel social, mas a possibilidade de transmitir as fun- sociais e econômicos que as famílias contemporâneas
ções materna e paterna para as próximas gerações. enfrentam.
Tornar-se avô requer uma elaboração do próprio papel Contudo, para Lopes, Nery e Park (2005), o idoso
como filho e pai, pois o nascimento de um neto exige pode passar pela experiência de ser avô sem se com-
uma reorganização psíquica. Agora, ele ocupará um prometer com obrigações maternas e paternas. Pode
novo lugar, será preciso demarcar os limites entre ser desenvolver novos vínculos com seus netos, permi-
avô e pai para passar pelo processo de individuação na tindo que identificações sejam estabelecidas sem haver
estrutura familiar. sobrecarga ou estresse. Nesse sentido, Vitale (2008)
A chegada de um neto para a mulher de meia- aponta que a maioria dos avós se dispõe voluntaria-
-idade pode oferecer uma nova oportunidade para mente a cuidar dos netos. Porém, isso não quer dizer
viver a experiência da maternidade, em forma de autor- que o tornar-se avô ofereça apenas vivências praze-
realização emocional, mas também pode provocar rosas. Enquanto alguns prestam cuidados quando são
desconforto e desapontamento colocando-a em con- solicitados, outros se sentem obrigados a praticar essas
fronto com a realidade, forçando-a a pensar na idade e ações por depender financeiramente dos filhos ou para
na proximidade da morte (Dias, 1994). Apesar disso, ser cumprir um papel social esperado.
avó na contemporaneidade aponta para novas posições Sob esses aspectos, quando há ausência do pai e da
nas relações na família e no contexto social. Rodrigues mãe, os avós tendem a desempenhar as funções paren-
e Justo (2009) chamam atenção para os novos papéis tais como pais substitutos. De acordo com Oliveira
desempenhados pelas avós, que podem ser ao mesmo (2011), é notório o aumento do estilo de pais substi-
tempo mães e avós zelosas, mas também mulheres tutos em todo o mundo. Com seus papéis expandidos,
maduras, sedutoras e ativas. podem encontrar satisfação ao oferecer benefícios aos
Oliveira (2011) apresenta ainda a classificação atual netos, ou também, ônus com o estresse físico e emocio-
sobre o estilo dos avós de Gauthier: o “encarregado”, nal. Apesar dos efeitos negativos, Oliveira (2011) alerta
que são os avós que cuidam dos netos, substituindo em que dificilmente os avós recusam a tarefa de cuidar dos
vários momentos os pais da criança; o “especialista”, netos, pois o compromisso que percebem ter com sua
que são os avós que dispõem de menos tempo e parti- descendência faz com que eles se responsabilizem pela
cipam de apenas algumas esferas na vida dos netos e se prole de seus filhos, ainda que haja alguma perda para
especializam nelas e os avós “passivos” que são aqueles suas próprias vidas cotidianas.
que convivem pouco com os netos, que são os quase- Nota-se que a literatura deixa evidente que a
-ausentes, por residirem em outra cidade, por exemplo, entrada na avosidade estaria relacionada a uma prepara-
e os realmente ausentes, quando a relação com os netos ção e elaboração dos estágios anteriores para o exercício
nem existe. No Brasil, Debert e Simões (2006) obser- desse papel. No entanto, o levantamento teórico denun-
varam dois tipos específicos de arranjos familiares com cia uma marca cristalizada na qual os autores percebem
a presença de idosos: as famílias de idosos e as famílias os avós como cuidadores ou figuras de apoio idealizado
com idosos. A primeira considera a posição do idoso durante a infância dos netos, desconsiderando a pos-
como chefe de família, sendo provedor financeiro na sibilidade de emergirem outros sentimentos humanos,
criação dos netos; enquanto na segunda, famílias com durante essa fase, nas relações entre avós e netos.
idosos, em especial as de baixa renda, seu papel é de Deposita-se a expectativa do exercício de uma
suporte afetivo nos cuidados com as crianças, pois avosidade desprovida de ambivalência e realizada por
depende financeiramente dos filhos ou netos. pessoas perfeitas e em condições ideais, aspectos que
Nesse sentido, ocupar o lugar de avós exige des- distanciam a possibilidade de existirem sentimentos
tes o consentimento para que os seus filhos sejam pais conflituosos na condição de tornar-se avô. Molinier
para desempenhar o papel educativo e afetivo, cabendo (2004), ao contrário da maioria dos estudos, discute a
aos pais, na posição de avós, permitirem que seus filhos ambivalência e a flutuação de sentimentos contidos no
assumam as funções parentais, ficando na posição de cuidado com o outro. A autora destaca que o cuidado
elo entre as gerações, sem, no entanto, se ausentar do ou a preocupação com outro implica trabalho, o qual
seu lugar: ser avô/avó (Goldfarb & Lopes, 2006). Os pode mobilizar sentimentos duvidosos de amor e ódio.
autores acrescentam, ainda, que o lugar e a função dos O envelhecimento, apesar dos ganhos da moderni-
avós podem se confundir com dos verdadeiros deposi- dade, carrega também as contradições de uma sociedade
tários desses papéis, os pais, tendo em vista os desafios que mantém os adultos em posições infantilizadas e

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com grandes dificuldades em assumir seus lugares de exercer a função materna, comportando-se como uma
pais. Nesse cenário, os avós podem assumir o lugar “irmã mais velha” do filho, delegando a função materna
parental quando os pais falham nessa função. Nessa à avó. Esses avós, segundo Goldfarb e Lopes (2006),
perspectiva, este trabalho pretende identificar a vivên- permitem que a criança e o adolescente vivam seu
cia de uma adolescente cuja mãe falha em assumir seu lugar filial em um tempo provisório; no entanto, esse
lugar parental, cabendo à avó o lugar de apoio narcísico funcionamento cria um dilema para a criança sobre os
parental. verdadeiros depositários desses papéis.
O caso que será apresentado nos oferece duas rela- Como visto anteriormente, as próprias condi-
ções de mãe-filha, a relação da adolescente Clara e sua ções internas e externas vividas durante a adolescência
mãe e a relação da mãe de Clara com sua avó. A relação impulsionam o adolescente a solicitar dos adultos a
mãe e filha recebe uma atenção particular na psicaná- continência, orientação, controle e limites diante da vio-
lise, quando Freud (1925/1976; 1931/1974) assinala a lência do próprio período. Marty (2006a, 2013) ressalta
mãe como primeiro objeto de amor para a menina e que diante da ausência ou falha parental, referida neste
ressalta a intensidade desse vínculo primário, vínculo trabalho como falta de apoio afetivo dos cuidadores,
este que se fragiliza pelo impacto da castração. O com- nas novas configurações familiares, os avós podem ser
plexo de castração revela para a menina, por meio da as novas figuras parentais que oferecem aos adoles-
percepção das diferenças anatômicas entre meninos e centes o apoio narcísico parental para resistirem e não
meninas, um sentimento de inferioridade e de injustiça. sucumbirem aos impulsos destrutivos que emergem no
Posteriormente, na adolescência, segundo Emmanuelli período pubertário (Goldfarb & Lopes, 2006; Marty,
(2011), a questão que é colocada se refere ao trabalho 2006a, 2013).
psíquico da elaboração do Édipo, do narcisismo e da As falhas parentais se constituirão quando os pais
problemática da separação e da identificação entre mãe não conseguem realizar a operação simbólica das fun-
e filha, que serão tratados neste trabalho. ções paterna e materna para que a criança estabeleça as
Assim, a questão que não se pode deixar de dis- identificações primárias que asseguram a continuidade
cutir se refere ao lugar da relação entre mãe e filha, que do ser, esclarecem Lopes e Goldfarb (2006). Entre-
atravessa duas gerações, ou seja, a primeira geração que tanto, com as mudanças nos laços familiares, a figura
se refere à mãe da adolescente e sua própria mãe, a avó dos avós ganha destaque na contemporaneidade, pois
de Clara, e a outra geração, que se refere à adolescente estabelecem relações afetivas com os netos ante a insta-
Clara e sua mãe, relação esta intermediada pela avó. A bilidade psicossocial e econômica que atinge as famílias
relação entre mãe e filha de duas gerações pode ser uma (Oliveira, 2011).
devastação para essas mulheres, pois é uma relação que Assim, os avós participam ativamente e desempe-
se apresenta pela (im)possibilidade desse amor (Lacan, nham outros papéis na relação afetiva com os netos.
1973/2003). Os desafios da maternidade, segundo Mar- Eles se dispõem a cuidar dos netos, conciliando ou
cos (2011), passa pelo registro fálico, pela compreensão, sobrepondo as responsabilidades de mulher/homem,
na menina, de que a mãe é aquela que tem o falo; essa mãe/pai e avó/avô no exercício de suporte à família
situação marca a ambivalência que funda essa relação, (Vitale, 2008). Para alguns, o lugar de avós não está bem
que é caracterizada pelo lugar da mãe como primeiro delimitado, porque não conseguem se separar e trans-
Outro íntimo e estrangeiro do qual é preciso se sepa- formar a relação com o filho, agora pai, integrando o
rar, movimento que demanda um importante trabalho novo membro, o neto, à família no status de neto e não
psíquico para as meninas no processo de construção de de filho. Na atualidade, diante da nova ordem familiar
sua feminilidade a partir da relação com sua mãe. que se estrutura, tal dimensão traz o questionamento
sobre qual lugar os avós estariam ocupando nas famí-
O lugar dos avós diante da falha parental lias. Estariam estes vivendo o tempo de serem pais ou
De acordo com Sarti (2008), para a família manter verdadeiramente avós dos netos?
seu equilíbrio, ela se desdobra em relações complexas
para atender às demandas que vão surgindo. Pode ocor- Objetivo geral
rer do status atual de um membro não corresponder
ao seu papel convencional, divergindo da função que Compreender as peculiaridades e dificuldades
deveria ser exercida. Por exemplo, há casos em que a vivenciadas por uma adolescente que, em busca do
mãe permanece presa ao papel de filha e não consegue apoio narcísico parental, solicita dos avós o amparo

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Pinto, K. L. B. & cols. Suporte parental na adolescência 41

afetivo para suportar as mudanças que o processo da de convivência, com a mãe e os avós, para compreensão
adolescência lhe impõe. do modo de se relacionar da jovem. Inspirando-se no
método adotado por Conti (2004), optou-se por limitar
Método o material registrado nas sessões clínicas a dois blocos
de informações: 1) o caso Clara: contexto clínico e
Este artigo trata-se de um estudo de caso qua- familiar; 2) análise interpretativa do caso.
litativo que se desenvolveu a partir do atendimento
psicoterápico breve com orientação psicanalítica de Resultados e Discussão
uma adolescente, 15 anos, do sexo feminino, estudante
do ensino médio de uma escola pública do Distrito 1 O caso Clara: contexto clínico e familiar
Federal. Na Psicanálise, o estudo de caso é uma estraté- Clara chegou à terapia acompanhada da avó
gia metodológica na clínica. Esse método é entendido materna, com quem morava e a qual assumia o papel de
como resultado de uma experiência vivida na clínica psi- adulto responsável na ausência da mãe, que trabalhava
canalítica e que, ao dialogar com a teoria, torna-se um em tempo integral. Clara apresentou-se bem tímida no
caso construído e comunicado (Moura & Nikos, 2000). primeiro dia, talvez porque estivesse diante de sua avó,
Será a partir do analista-pesquisador que se escolherá uma figura que lhe impunha autoridade e respeito. O
um fragmento do tratamento para análise e teorização. jeito de se vestir da adolescente era calça jeans, mochila
O trabalho seguiu rigorosamente os procedimentos e All Star, usava um lenço de caveira e uma blusa de
éticos e legais recomendados pelas resoluções vigen- banda de rock. Durante a primeira entrevista, Clara
tes referentes às Clínicas-Escola, onde o paciente, ao limitou-se a ser monossilábica, dizendo não se sentir à
ingressar no tratamento, autoriza por escrito, em termo vontade para falar de suas intimidades diante da avó.
de compromisso, que as informações provenientes dos A sós com a adolescente, ela justificou o porquê
atendimentos podem ser utilizadas para fins de ensino e dos comportamentos ousados e transgressivos. Foram
pesquisa, assegurados o sigilo profissional, a não identi- estes, segundo a jovem, motivados por um amor erótico
ficação do usuário e seu bem estar e privacidade. quase obsessivo por uma professora, que a levaram a
A adolescente que protagoniza o caso clínico, a ser encaminhada ao Conselho Tutelar. Além do ressen-
qual chamaremos de Clara (nome fictício), foi encami- timento em relação à professora, por não corresponder
nhada para o atendimento psicoterápico em nossa clínica às suas investidas amorosas, Clara também se queixou
escola pelo Conselho Tutelar de sua cidade. Foi atendida da falta de compreensão da escola e da família quanto
individualmente, em sessões semanais, com duração de a sua necessidade de estar ao lado dessa professora,
50 minutos cada, entre o primeiro semestre de 2009 e expressos nas seguintes falas: “é mais forte do que eu... fico
o segundo semestre de 2010, totalizando 20 sessões, atrás das pilastras... pulei o muro só para ficar olhando para ela”
que foram todas relatadas por escrito, no prontuário No espaço psicoterápico, Clara teve posições
da paciente. A terapeuta, que é a primeira autora deste regredidas em relação á psicoterapeuta e atuadas de
artigo, era na época estagiária do último ano de psicolo- modo a transgredir o setting psicoterápico, como um
gia e foi supervisionada pela 2ª autora. Utilizou os relatos modo de ataque ao enquadre. O movimento transferen-
das sessões clínicas e as autoras procuraram analisar e cial de Clara no processo psicoterápico indicava que ela
interpretar os aspectos psicodinâmicos da adolescente tinha dúvidas se a psicoterapeuta seria capaz de conter
e a dinâmica relacional dessa adolescente com sua mãe e resistir a sua destrutividade adolescente.
e com sua avó. Abordaram-se tanto os elementos que Contudo, os desafios da adolescência puderam ser
emergiram das sessões quanto aqueles que emergiram trabalhados nas sessões e Clara pôde abordar a dor de
das entrevistas com a mãe e a avó de Clara, pois ambas ter que abandonar os privilégios da infância e respon-
foram ouvidas durante o acompanhamento psicoterá- sabilizar-se pelas próprias ações, agora que caminhava
pico de Clara. A análise do material das entrevistas e das rumo à vida adulta. Certa vez, quando falava dessa
sessões psicoterápicas de Clara se apoiou na abordagem angústia, relatou: “falar em ser adulto é como se esti-
clínico-qualitativa, tendo como embasamento teórico vesse enfiando agulhas em mim... Tenho vontade de
a Psicanálise e a Psicogerontologia, que possibilitou a gritar”. No completamento de frases, colocou: “adoles-
organização e interpretação do material clínico. cência é a pior coisa que Deus me presenteou”.
Consideraram-se os aspectos conscientes e incons- Clara residia com a mãe (37 anos), caixa de super-
cientes que regem o processo da adolescência no círculo mercado; a avó materna (60 anos), dona de casa; e a

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irmã (11 anos), estudante. O avô materno (62), fun- amor endereçada a sua mãe, Clara espera receber dela a
cionário público aposentado, de quem recebia auxílio substância do seu ser.
financeiro, morava em outra cidade. Clara é criada em uma casa onde imperou a ordem
Ao construir o desenho da linha da vida, Clara e autoridade feminina, em especial da avó materna,
trouxe alguns elementos da sua história familiar e o uma vez que a mãe assume o lugar de irmã mais velha
modo como ela nasceu. Ela relatou que o encontro delegando a sua mãe a encargo de criar Clara. É impor-
dos pais e seu nascimento foram resultado do encontro tante considerar também que, provavelmente, a mãe
sexual de seus pais de apenas uma noite. Clara parecia de Clara não podia assumir sua maternidade, em razão
lamentar esse fato e sobre isso ela falou: “gostaria de ter da sua posição subjetiva em relação à sua própria mãe,
uma família tradicional”, e com sofrimento destacou o uma vez que é a avó de Clara que a substitui na função
distanciamento do pai durante a gravidez de sua mãe, materna. Ou seja, o fato da mãe de Clara não poder
representado no desenho por uma figura masculina que assumir seu lugar de mãe perante a filha parece denun-
corria da mãe, a qual sinalizava com os braços para que ciar a impossibilidade dessa mulher sair do seu lugar
este voltasse. de filha em relação à sua mãe, agora na posição de avó.
A ausência do pai foi descrita como dolorosa pela Essa posição de poder da avó, aceita na prática pela
jovem, que conviveu com a imagem de um homem que mãe da paciente por esta leva a questionar a relação de
fugira da mãe e, consequentemente, dela. Verbalizou poder transgeracional entre elas. O suporte indicado
sentir falta de uma figura paterna. Quando criança, os na discussão do caso pode também ser lido, portanto,
colegas de turma perguntavam sobre seu pai, e ela dizia como devastação entre mãe e filha, da qual nos fala
não saber deste. A entrevista clínica com a mãe confir- Lacan (1973/2003). Essa situação sugere que a avó de
mou a ausência paterna e a dificuldade de Clara em lidar Clara não deixou espaço para que sua filha assumisse
com essa falta, e ela mencionou que a filha se isolava na a maternidade da neta. Diante desse contexto familiar,
escola quando outras crianças a questionavam sobre a cabe questionar qual seria a força e o poder que essa
ausência do pai. a avó possui nessa família. Não estariam eles relacio-
A mãe de Clara, uma jovem franzina, aparentando nados também à ausência/falha do marido/pai nessa
ter menos de 30 anos e que parecia uma irmã mais velha constituição familiar? Será que mais uma vez a história
de Clara, mostrou-se preocupada com as ações trans- se repete, ou seja, tanto a Clara, como sua mãe, não
gressivas que a filha vinha tomando, que acarretaram tiveram o lugar paterno assegurado na dinâmica fami-
no afastamento da escola. Abordou também sobre suas liar. Clara nos dá pistas sobre a ausência de seu pai e
dificuldades em conversar com Clara. Sua fala refletia de seu avô na vida familiar ao afirmar que sua casa é
o estranhamento dessa mãe frente à adolescência de a casa das mulheres. A afirmação da adolescente mostra
uma filha que, na infância, havia sido estudiosa e inte- que o tipo de organização e de autoridade nessa família
ressada na escola, e sobre isto relatou: “de uns tempos é exercido pelas mulheres e no caso dessa família, a avó
para cá as coisas pioraram”. A mãe de Clara, que investe é colocada no lugar de matriarca, situação que eviden-
atualmente em um relacionamento amoroso, encontra cia a exclusão da figura masculina nesse meio familiar.
resistência de Clara, que relata que a mãe fica mais afas- Assim, ter a avó como apoio narcísico parental poderá
tada dela, pois dorme na casa do namorado nos finais permitir à Clara uma identificação feminina constitu-
de semana. Sobre o afastamento da mãe, Clara disse: tiva para sua subjetividade, de modo que futuramente
“eu só queria que minha mãe ficasse mais em casa”. ela possa vir a ser mãe, e não delegar a sua própria
Clara faz uma demanda de amor à sua mãe, que mãe essa função quanto tiver seus filhos e, assim, tenha
desvia seu olhar de Clara e o deposita em um outro chance de não repetir a história transgeracional (Gold-
objeto de amor, o novo companheiro. Essa demanda farb & Lopes, 2006).
de amor de Clara seria uma busca infinita de subs-
tância, sem limite e que aproxima amor e devastação 2 Análise interpretativa do caso: Iniciar-se-á o processo interpre-
(Marcos, 2011). Segundo Lacan (1973/2003,) há uma tativo apresentando-se e discutindo-se o papel da avó diante da
expectativa da menina em relação à sua mãe que não falha parental
se situaria somente sob o significante do falo e que ele
nomeia como ravage, traduzido por devastação. Marcos 2.1 Avosidade: tempo de ser mãe e não avó!
(2011) lembra que, para a mulher, o amor se inscreve Em entrevista com a avó, esta mencionou que
no imperativo de que o Outro a ame e assim diga do criou a neta desde bebê. Ressaltou que sempre foi
significante do seu ser, de modo que, na demanda de uma menina ótima, “mas de uns tempos para cá,
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enlouqueceram a neta e a filha”. A avó reclamou da também pelos cuidadores dos adolescentes ao se
falta de apoio da filha no cuidado com a neta. Ela foi depararem com a própria incapacidade de suportar a
à escola da jovem verificar se esta estaria estudando e, impulsividade e agressividade que seus filhos ou netos
para sua surpresa, a menina apresentava um alto índice passam nesse período.
de faltas. Comentou que o diretor da escola solicitou a Observou-se que essa avó assume o lugar que
presença da mãe da adolescente, mas, segundo a avó, Sarti (2008) nomeou de chefe de casa, pois cuida da
esta não se preocupava com a filha desde que começou casa e das netas, enquanto a filha trabalha fora. Aspecto
a se relacionar com um novo namorado. A ausência da referido nas seguintes falas da avó materna “eu luto
mãe, na primeira entrevista reforçou a impressão de que com estas meninas desde bebê, quem criou fui eu... Elas
a avó estaria exercendo a função materna na vida da sempre tiveram hora para tudo, comer, tomar banho...
jovem. Elas me obedeciam... Hoje é tudo liberado para faze-
A convivência intensa com essa avó, parceira da rem o que quiserem”, atribuindo a causa da dificuldade
mãe na criação da neta, deu a essa figura um novo lugar, em manter a autoridade com as netas à ausência da mãe.
com exigências afetivas diferentes daquelas encontra- Enfatizou a sua dificuldade em oferecer limites à neta
das nos avós tradicionais. A avó, que na infância das sem contrarreagir “a menina é sem limite, ela não tem
netas exercia a função materna e paterna, agora não hora para nada, ela está solta no mundo”.
conseguia lidar com as mudanças no ciclo familiar: pois Nota-se que a avó se preocupa afetivamente com
a neta criança a quem um dia ofereceu seus cuidados a neta, desempenhando a função parental como mãe
maternos, agora era uma adolescente.Observou-se substituta, em busca de manter o equilíbrio familiar.
que perante a ausência parental, Clara buscou na avó No entanto, não consegue exercer a função referida na
o apoio para suportar a violência do pubertário, como dimensão simbólica, oferecendo continência e limites,
destacou Marty (2006b). como trazem Sudbrack e cols., (2003) e Marty (2006a).
A situação clínica descrita acima evidencia a fun- Outro aspecto pontuado por autores como Ber-
ção subjetiva dos lugares de filiação nessa família e ger (2003), Goldfarb e Lopes (2006), e reconhecido no
aponta para o modo como essa função se transmite caso Clara, é que as mudanças do processo de adolescer
de modo repetido entre as gerações nessa família de da neta provocam a reavaliação das questões subjetivas
mulheres (Gomes & Zanetti, 2009). Assim, quando a da avó. Essa mulher também se depara com a própria
avó disse que Clara e sua mãe enlouqueceram, ela faz realidade, diante das mudanças no ciclo familiar, pois a
uma alusão à relação identificatória entre Clara e sua neta agora é uma adolescente e ela está envelhecendo.
mãe pela transmissão psíquica entre as gerações de fun- A manifestação dos conflitos da neta, em plena adoles-
ções impossíveis de serem assumidas. Portanto, diante cência, aciona as questões emocionais e subjetivas da
da complexidade dos elementos inconscientes que cir- avó, fazendo com que esta entre em contato com suas
culam entre essas mulheres, Clara, por meio do suporte necessidades internas, percebidas nas seguintes falas:
de sua avó poderia construir uma identidade que lhe “hoje eu também quero sair, ficar na casa das minhas
permitisse assumir a função materna no futuro? Nos amigas e descansar... Mas tenho medo de dormir e
parece que a avó não conseguiu proporcionar a sua acordar morta... Se não for eu na vida dessas meninas,
filha, mãe de Clara, um lugar que lhe assegurasse assu- eu não sei o que pode acontecer com elas”. Pelas falas
mir a função de ser mãe, e há certamente o risco de que e comportamentos da avó de Clara, nota-se que esta se
ela faça o mesmo com Clara. encontra em meio à crise ou conflito de ter que assumir
Outro aspecto que evidenciou a ausência de alguém um lugar de avó substituta materna, para cumprir um
que fosse referência de função paterna para impor limi- papel que lhe foi imposto socialmente, e o de ter que
tes e exercer o controle educativo junto à adolescente, lidar com a dualidade pulsional e os desejos de viver a
como traz a autora Sudbrack e cols., (2003), foi o fato própria maturidade e enfrentar a chegada da morte sem
de a avó ter comunicado ao Conselho Tutelar, sem o maiores preocupações.
conhecimento da mãe, para que este exigisse dessa a As reações da avó, ao exercer os cuidados como
responsabilização pelos atos da adolescente. Segundo mãe substituta, trazem um sofrimento psíquico com o
a avó, sua ação foi uma maneira de tentar resolver a sobrecarga da função de cuidar, visto que a filha, agora
situação da neta, pois não sabia mais a quem recorrer. mãe, se recusa ou não tem condições psíquicas de ocu-
A mesma situação também exemplifica o que par a função materna no período da adolescência de
Marty (2006b) apontou como desamparo vivido Clara. O estado ambivalente vivido pela avó nos fala de

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um desgaste emocional e físico, provocando a emersão a ser percorrido pela jovem do desenho terminaria no
do conflito sobre sua condição atual, e de sentimen- mar. Para Clara, o mar significava a morte, pois ela não
tos dúbios contidos no cuidar do outro, como apontou sabia nadar.
Molinier (2004). Essa mulher idosa se defronta com a Observou-se que Clara trouxe no desenho o
flutuação dos próprios sentimentos, pois o prazer que impacto que um adolescente sofre, ao ser empurrado
teve ao cuidar da neta enquanto criança, reeditando sua pelo próprio processo de crescimento biológico para
maternagem ao ter uma “segunda chance” (Oliveira, um lugar que lhe exige a redefinição da própria imagem,
2011, p. 24), não lhe é permitido com a mesma, agora diante da perda do corpo infantil e aquisição de outras
na fase da adolescência. Esta não lhe oferece mais o características corporais adultas. Clara se encontrava
prazer do cuidado corporal, mas lhe exige o apoio afe- na condição de ter que continuar caminhando, ou seja,
tivo e suportivo. consciência da continuidade, de crescimento. Nesse
Por outro lado, Lachmann (2011) nos mostra que a processo de amadurecimento mental e fisiológico, Clara
chegada de um neto para a mulher de meia-idade, pode também se deparou com o medo de se desfazer no meio
oferecer uma nova oportunidade para experienciar a desse caminho em busca de uma identidade, simboli-
maternidade, em forma de autorrealização emocional, e zado no desenho com a perda dos pés e finalmente a
até aumentar a sua longevidade. No entanto, essa opor- morte no mar. Na análise do desenho se encontram ele-
tunidade de “reviver” a maternidade pode fazer com mentos discutidos por Marty (2006a) e Marty e Cardoso
que a avó impeça ou boicote as iniciativas dos próprios (2008), como a ambivalência e descontroles vividos por
filhos em assumir a função paterna/materna, pois teme Clara ao enfrentar as modificações e transformações
reconhecer o seu crescimento e amadurecimento sub- corporais e psíquicas que lhe impõe a condição de ter
jetivo, que implicariam um processo de diferenciação, que se separar dos laços estabelecidos na infância para
de distanciamento sentido como a “perda” do filho. reinvestir em novos objetos de identificação e desenvol-
Por essa razão, seria desejável que, com a chegada dos ver sua autonomia. Clara se encontra em uma situação
netos, as avós se colocassem apenas como elo entre pais fronteiriça, pois parece caminhar da vida infantil para
e filhos e não os substituindo. Assim, no desempenho vida adulta. Ao experimentar a perda da continuidade
da sua função, o avô cederia ao filho o lugar para repro- de si mesmo, percebe-se um movimento em busca de
dução da função paterna/ materna (Goldfarb & Lopes, sua identidade, a jovem continuará andando de joelhos ou de
2006). quatro,...Até chegar ao mar.
Esse mesmo conflito para se reconhecer como
adolescente foi expresso em outro momento de aten-
2.2 Sou um adolescente, mas não quero crescer!
dimento clínico. A jovem utilizou uma metáfora dos
Outro conflito psíquico central nas vivências da
parques de diversões, observada na seguinte fala:
adolescência de Clara era o seu medo de crescer. O
temor de entrar para o mundo adulto refletia uma iden-
Antes eu estava em um parque de diversões... Mas acabaram
tificação com a mãe, que, resistindo assumir seu lugar os ingressos e ele faliu. Estou no meio... No outro teriam
como mãe, delegava a sua própria mãe a função que lhe amigos, brincadeiras e festas, mas estou do lado de fora...
era falha. Não quero perder meu lado criança, brinco sempre com meu
Certa vez fez um desenho de uma menina de cabe- namorado como se fosse sua filha, com minha mãe e avó como
los curtos, roupa de adolescente e uma lata de cerveja se fosse uma criança. (Clara)
em uma das mãos, que Clara afirmou ser ela, e ressaltou
a ausência dos pés da menina ao atravessar um caminho Clara, ao se perceber “no meio” de dois parques
cheio de espinhos. A menina continuaria andando nesse de diversões, parece vivenciar um “entre lugares”, não
caminho de joelho, depois de quatro, sei lá, e ainda que lhe conseguindo formar um senso de identidade pessoal.
implantassem pés ou colocassem sapatos, ela continua- Observa-se que a jovem se encontra em um
ria machucando os pés com os espinhos e durante esse período confuso, de contradições e ambivalente, que
percurso ela enfrentou “tempestades” intensas e novos traz impresso o que Marty e Cardoso (2008) chamam
períodos turbulentos ainda viriam. Segundo Clara, de conflito entre a necessidade de manter o investi-
a jovem perdeu os sapatos aos nove anos de idade, mento narcísico, as heranças da infância, e a obrigação
período marcado pelo início de um amor transferencial de abandoná-los sem perder a continuidade de si e os
por uma professora, o qual foi nomeado por ela como privilégios do mundo infantil. A mesma reflexão cabe
sentimento materno misturado com atração física. O caminho para as seguintes fala de Clara em uma das sessões:
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“não gosto nem de pensar em ser adulta... Falar sobre pior coisa que Deus me presenteou, e freqüentemente
ser adolescente parece que está enfiando um monte sinto confusão na minha mente”. Vivência típica do
de agulhas em mim, tenho vontade de sair correndo, momento em que o jovem busca por identificação para
dói no peito.” Nesses dados existem elementos que a construção da identidade.
expressavam a intensidade das transformações psíqui- Por fim, desenhou uma jovem e um rapaz de
cas advindas com a eclosão do pubertário, movimento mãos dadas dentro de um coração, representando ela e
este que exigiu de Clara grande esforço psíquico para o “namorido”, que, segundo a descrição da jovem, era
conciliar suas exigências pulsionais internas diante do seu atual namorado e futuro marido. Indagou-se qual
ultimato do meio familiar e social: cresça! o significado desse desenho, respondeu: “aqui é o meu
recomeço”. Ressaltou que seu momento era diferente
2.3 Uma adolescente em busca de apoio narcísico parental daquele desenhado para a mãe, no início da linha. No
Em um das sessões clínicas, solicitou-se a Clara entanto, não era perceptível a diferença entre as jovens
que desenhasse em uma linha um esboço do seu desen- desenhadas. Seria esse um movimento de afastamento
volvimento. Durante a infância, referiu aos momentos do objeto amoroso da infância, a mãe, para reinvestir
felizes. Destacou seu aniversario, o nascimento da irmã em novos objetos amorosos e sexuais, por exemplo, a
e o parquinho da escola infantil, enfatizando ter sido professora ou o “namorido”? As falas de Clara trazem a
este um dos momentos mais felizes da sua vida. marca de alguém que buscou apoio ou referência em um
Na fase da latência, por volta de 9-10 anos, des- outro (professora, Conselho Tutelar e, posteriormente,
creveu que começou a sua decadência. Fez um traço com terapia), utilizando a linguagem dos atos no início da
o giz de cera preta dividindo a infância da entrada no adolescência, movimento este que ilustra a busca de
período pubertário. Clara já havia dito que iniciou sua apoio narcísico parental apontada por Marty (2006b).
vida sexual aos 10 anos de idade. Percebeu-se que a Baseando-se em Marty (2006b), foi possível
jovem deveria voltar seus interesses para a vida social e compreender que Clara ao enfrentar seu estado de
intelectual, sublimando os impulsos sexuais eminentes desamparo adolescente, defrontou-se com a ausência
do pré-pubertário. Todavia, não encontrou adultos de da mãe e do pai. Como não conseguiu interiorizar a
referência que lhe oferecessem limites e acolhimento função materna de proteção e continência, desenvol-
sem contrarreagirem às suas solicitações pela via corpo- veu comportamentos transgressores para encontrar a
ral, como apontou Marty (2006a). Em seguida relatou: reparação para aquilo que não recebeu destes. Assim,
“agora começa a parte negra da minha vida”, dese- recorreu a outras figuras de referência para tentar suprir
nhou uma boneca correndo atrás de outra. Disse ter uma carência do início da vida no nível dos processos
sido nessa época em que se apaixonou pela professora. de simbolização que, segundo Marty (2006a), justificam
Observou-se que seu movimento em busca de apoio os atos dos adolescentes para reparar o traumatismo
para conter a agressividade ameaçadora que o período por carência. A falta de uma figura continente, de auto-
pubertário trouxera apareceu logo após o período de ridade e lei, também ressalta a falha na internalização da
latência, por meio de acting outs, como aponta Levisky função parental.
(1998). Clara solicitou da professora, da escola e depois
das namoradas algum sufrágio que a ajudasse a resistir a Considerações Finais
destrutividade da violência adolescente.
No segundo momento, fez o esboço de outra O estudo demonstrou que Clara, enquanto sobre-
jovem com um cigarro nas mãos, apontando ter 12 vivia à violência de ser empurrada para um lugar,
anos nessa época. Referiu-se a esse período como seu reagindo à ruptura com o mundo infantil, buscou na
declínio. Em seguida desenhou uma sequência de qua- figura da avó um apoio ou suporte que lhe oferecesse
tro meninas. A primeira parecia uma garotinha triste, a acolhimento e contenção da própria impulsividade que
segunda tinha um dos olhos danificado, a terceira tinha emergia com a eclosão da puberdade, suporte esse que
os olhos e a boca ressaltados, e a quarta apareceu com a sua mãe não conseguia oferecer.
um ponto de interrogação sobre a cabeça. Apontou Uma análise mais detida sobre a função subjetiva
que, nesse momento, não sabia mais definir as coisas, e a transmissão transgeracional do lugar materno nessa
era seu momento de dúvida. Na sessão em que reali- família nos convocou a refletir sobre como foi transmi-
zou o completamento de frases citou: “tempo mais feliz tida a função materna entre as mulheres dessa família.
era minha eterna, expressiva infância, adolescência é a Pareceu-nos que Clara encontra-se identificada com sua

Psico-USF, Bragança Paulista, v. 19, n. 1, p. 37-47, jan./abril 2014


46 Pinto, K. L. B. & cols. Suporte parental na adolescência

mãe e estaria vivenciando a chamada “Adulescente”, Psicopatologia e Psicologia Clínica, Universidade


palavra que é uma contração das palavras adulto (“adu”) de Lion, Lion, França.
e adolescente (“lescente”) e que expressa adultos que se
Debert, G. G. & Simões, J. A. (2006). Envelhecimento
identificam com adolescentes e jovens que, por sua vez,
e velhice na família contemporânea. Em Freitas,
não conseguem renunciar às hesitações adolescentes e
E. V. e cols. Tratado de geriatria e gerontologia. (2.a
entrar na vida adulta (Kernier & Cupa, 2012).
ed.). (pp. 1368-1373). Rio de Janeiro: Guanabara
Utilizando uma linguagem corporal, Clara solici-
Koogan.
tou a reparação de uma falta que lhe foi negada desde a
infância: o apoio narcísico. Em uma sequência de atos, Dias, C. M. S. B. (1994). A importância dos avós no
após a entrada no período pubertário, a jovem buscou contexto familiar. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 10(1),
identificação e continência na professora, nas namo- 31-40.
radas e na avó para estruturar a própria identidade e Emmanuelli, M. (2011). As saídas para o trabalho psí-
ultrapassar o período da adolescência. Pautando-se quico da adolescência. Psicologia em Estudo, 16(1),
no que explica Marty (2006a), observaram-se as atua- 51-60.
ções dos adultos, no caso a avó e professora, que não
suportando a destrutividade do processo de tornar-se Freud, S. (1974). Sexualidade feminina. Em Edição
adolescente de Clara, foram de contra reagirrverbal ou Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
fisicamente, recusando-se também a assumir as respon- Sigmund Freud. (Vol. 21, pp. 255-279). Rio de Janei-
sabilidades que caberiam a cada um em seus lugares ro: Imago. (Trabalho original publicado em 1931).
originais, como adultos de referência, de apoio, pro- Freud, S. (1976). Algumas consequências psíquicas da
teção, segurança e limites. Aspectos que nos levam a distinção anatômica entre os sexos. Em Edição
refletir sobre o despreparo das instituições família e Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
escola em lidar e também sobreviver à fase de transfor- Sigmund Freud. (Vol. 19, pp. 301-320). Rio de Janei-
mação que é a adolescência. ro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925).
Quanto à avó, ainda se reconhecem essas figuras
de forma romantizada, fadadas a oferecer conselhos e Freud, S. (2001). Três ensaios sobre a sexualidade. Em:
acalento aos netos. Esquece-se de que estas também Edição Eletrônica Brasileira das Obras psicológicas com-
são figuras humanas, com histórias inacabadas, com pletas de Sigmund Freud. 2.0. CD- Rom. (2a ed.). Rio
sentimentos dúbios e mal elaborados com relação aos de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em
próprios pais, como qualquer outro ser humano. Com 1905).
este trabalho se almeja chamar a atenção para o lugar Goldfarb, D. C., Lopes, R. G. C. (2006). Avosidade: a
que essas figuras podem ocupar diante do desamparo família e a transmissão psíquica entre gerações.
adolescente ao acompanhar a violência que a fase da Em: Freitas, E. V. e cols. Tratado de geriatria e geron-
adolescência impulsiona nos netos. tologia. (pp.1374-1382). Rio de Janeiro: Guanabara
Considerando o aspecto levantado quanto às Koogan.
novas configurações familiares e à presença expressiva
dos idosos nas famílias brasileiras, sugere-se que estes Gomes, I. C. & Zanetti, S. A. S. (2009). Transmissão
também sejam lembrados ao se falar em pessoas que psíquica transgeracional e construção de subje-
podem oferecer suporte e apoio ao adolescente, bem tividade: relato de uma psicoterapia psicanalítica
como na sua necessidade de também receberem apoio vincular. Psicologia USP, 20(1), 93-108.
narcísico. Com resistências ou não, e mesmo com o tér- Kernier, N. de, & Cupa, D. (2012). Adolescência: muda
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gia, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.

Sobre as autoras:

Kelly Lins Beserra Pinto é graduada em psicologia pela UCB e atua como psicóloga organizacional no Hospital
Santa Luzia-Brasília

Alessandra da Rocha Arrais é doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília, psicóloga clínica, psicóloga hos-
pitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), docente do curso de Psicologia, do mestrado
em gerontologia da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do mestrado profissionalizante em Saúde da Mulher e
do Idoso da FEPECS.

Katia Cristina Tarouquella Rodrigues Brasil é doutora em psicologia pela Universidade de Brasília; psicóloga clí-
nica, docente do curso de psicologia e do Programa de Doutorado e Mestrado em Educação da Universidade Católica
de Brasília (UCB).
Psico-USF, Bragança Paulista, v. 19, n. 1, p. 37-47, jan./abril 2014
13
159

O lugar dos avós na configuração


familiar com netos adolescentes

The place of grandparents in the family setting with


young grandchildren

Alessandra da Rocha Arrais


Katia Cristina Tarouquella R. Brasil
Carmen Jansen de Cárdenas
Luisa Lara

RESUMO: Neste artigo buscou-se identificar e compreender o lugar dos avós na


configuração familiar de netos adolescentes. Utilizou-se o método quantitativo,
exploratório e descritivo. Aplicou-se um questionário misto, em 87 adolescentes, em
suas próprias escolas. Procedeu-se a análise estatística dos dados por meio do Teste (T)
Não-Paramétrico. Esse estudo confirmou a ideia de que há uma maior influência por
parte da mãe da mãe sob seus netos jovens, apenas quando estes residem com seus avós.
Palavras-chave: Idosos; Adolescentes; Relação Familiar.

ABSTRACT: In this article we sought to identify and understand the place of


grandparents with grandchildren in the family configuration of grandchildren teens. We
used the quantitative, exploratory and descriptive method. We applied a mixed
questionnaire in 87 adolescents in their own schools. We carried out the statistical
analysis of data through the Test (T) Non-parametric. This study confirmed the idea
that there is a greater influence by the mother of the young mother in her
grandchildren, only when they live with their grandparents
Keywords: Elderly; Adolescents; Family Relationships.

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Introdução

As novas configurações familiares do século XXI se construíram a partir de


mudanças sociohistóricas, econômicas e culturais na sociedade ocidental. As famílias
responderam às interferências externas, remodelando seus padrões de afinidade e
convivência social (Acosta & Vitale, 2008). Contudo, apesar das evidentes
transformações na vida familiar, a família ainda é vista como uma instituição
privilegiada para a constituição da identidade de seus membros (Seben, 2010).
Pesquisas revelam (Araújo & Dias, 2002; Debert, Simões, Goldfarb & Lopes,
2006) que, com as novas organizações e modos de relacionamento, a composição das
famílias brasileiras ganhou a força expressiva dos idosos. De acordo com o Instituto de
Geografia e Estatística (IBGE, 2010), a expectativa de vida no Brasil aumentou cerca de
três anos entre 1999 e 2009, passando para 73,1 anos de vida. “Quando a expectativa de
vida girava em torno dos 40 anos, eram tão poucos os avós que chegavam a ter netos
que nem fazia sentido cultivar esse vínculo” (Aratangy & Posternak, 2005). Assim,
com o aumento da longevidade, os velhos passaram a conviver mais tempo com seus
descendentes, bem como a exercer diferentes papéis na dinâmica familiar. Os avós, por
exemplo, raramente podiam conviver com os netos, sobretudo até que esses se
tornassem adultos, como pode acontecer atualmente (Glass Jr & Huneycutt, 2002;
Reitzes & Mutran, 2004, como citado em Lopes; Nery & Park, 2005). Em decorrência
da maior possibilidade de convivência entre as gerações na atualidade, observam-se
mudanças nos laços intergeracionais e até no significado do papel de avós a ser
desempenhado nas relações familiares.
Apesar desse novo contexto, observa-se o pouco reconhecimento das
implicações do envelhecer em nossa sociedade, em específico a pouca visibilidade dos
avós como atores sociais no desenvolvimento de seus netos-adolescentes. A maioria dos
dados disponíveis resulta de pesquisas realizadas no cenário internacional e relacionado
a netos na infância. Ainda que resultem de uma realidade diferente da existente no
nosso país, tais estudos nos ajudam a elucidar o quadro em que as avós e os avôs
envolvidos no cuidado de seus netos-adolescentes se encontram: dividem as
responsabilidades com os pais dos jovens ou se ocupam integralmente desse

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O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 161

compromisso. Seria essa a realidade dos avós dos adolescentes brasileiros? Ou como
nos pergunta Aratangy e Posternak (2005: 11): “Será que os brasileiros nascem com
toda a sabedoria necessária para exercer essa função?”, referindo-se à função de avô.
Assim, nasceu o interesse em desenvolver um estudo que buscasse identificar e
compreender o lugar dos avós na configuração familiar dos netos-adolescentes, que
residem em Brasília (DF).

As novas configurações familiares e o lugar dos avós

No Brasil, Debert e Simões (2006) observaram dois tipos específicos de arranjos


familiares com a presença de idosos: as famílias de idosos e as famílias com idosos. A
primeira considera a posição do idoso como chefe de família, sendo provedor financeiro
na criação dos netos. Nas famílias com idosos, em especial nas famílias pobres, seu
papel é de suporte afetivo nos cuidados com as crianças, pois depende financeiramente
dos filhos ou netos. Nos dois tipos de arranjos existem trocas informais, em que os
idosos integram o sistema de apoio mútuo. Esses aspectos evidenciam a ascensão da
população idosa e a reformulação do paradigma de que envelhecer significava deixar de
produzir e esperar o fim do ciclo da vida.
A literatura comprova (Bleger, 2001; Goldfarb & Lopes, 2006) que a
modificação no papel dos idosos, no contexto familiar e social, provocou uma crise de
identidade na avosidade1. Observa-se um aumento considerável de casos em que os
avós passam a desempenhar o papel de pais, em alguns casos com todas as funções
pertinentes, deixando de viver a experiência de serem simplesmente avós.
Dellman-Jenkins et al. (2002, como citado em Lopes, Nery & Park, 2005)
afirmam que os avós tiveram seus papéis ampliados: é cada vez mais comum que eles
tenham netos morando consigo. Eles lhes oferecem cuidados diários, responsabilizam-
se também financeiramente e até obtêm sua custódia legal. Nessa situação de cuidado e

1
A palavra avosidade corresponde em língua inglesa a grandparenthood. Paulina Redler difundiu o termo
abuelidad em 1977, em seus estudos de psicogerontologia. Trouxe uma visão para além da idade
cronológica, ao realçar os laços de parentesco que exigirão do idoso a reestruturação psíquica ao ocupar
um novo status pessoal, familiar e social: ser avô/avó (Redler, 1986, como citado em Pedrosa, 2006).

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162 Alessandra da Rocha Arrais; Katia Cristina Tarouquella R. Brasil; Carmen Jansen de Cárdenas
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papéis expandidos, há dois modelos de estrutura familiar que englobam a co-habitação


de avós e netos, a saber: na primeira, temos os lares compostos por três gerações que
teve considerável aumento a partir da década de 80, em que ambos os pais ou ao menos
um deles reside com avós e netos. Já na segunda, mais comum a partir da década de 90,
os pais estão ausentes do lar e cabe aos avós todo o cuidado com os netos (Goodman &
Silverstein, 2002, como citado em Lopes, Nery & Park, 2005).
Os modelos acima trazem consigo exigências e consequências distintas para os
avós. Há avós que cuidam dos netos apenas por um período do dia, para que os pais
possam trabalhar e por não terem outro local onde deixar as crianças. Ou ainda, há os
que cuidam em tempo integral, porque toda a família reside nos chamados lares
multigeracionais devido a, por exemplo, problemas financeiros. Nesses tipos de arranjos
podem ser apontados benefícios e dificuldades, conforme o quadro em que a família
está inserida. Em alguns casos, pode haver uma divisão das responsabilidades, maior
união entre os membros e aumento dos recursos familiares. Em outros, prevalecem os
conflitos entre avós e pais quanto à educação dos netos ou ainda descompromisso por
parte dos pais e perda de privacidade dos avós.
Se ambos os pais não residem na mesma casa, os avós responsabilizam-se
totalmente pelos netos (segundo tipo de arranjo familiar apontado). Tem-se, então, o
cenário propício para que esses avós passem a ocupar o papel de pais substitutos
(Goodman & Silverstein, 2002 como citado em Lopes; Nery & Park, 2005). Essa
substituição ultrapassa os limites práticos e instrumentais, inserindo-se no imaginário
das partes envolvidas, pois não é incomum presenciarmos netos chamando
carinhosamente seus avós de pais.

A crise da adolescência

O adolescente, ao se apresentar perante os outros, manifesta a herança psíquica


constituída no processo de identificação, apresentando os valores transmitidos pela sua
cultura, em que os avós têm um papel importante nessa transmissão (Aulagneir, 1990,
como citado em Goldfarb & Lopes, 2006). No entanto, na adolescência se inaugura uma

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O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 163

nova forma de perceber a si e o mundo. O jovem se depara com uma diversidade de


mudanças e transformações corporais, ampliação do pensamento e do conhecimento e
modificações sociais que emergem nesse processo de desenvolvimento em direção à
maturidade.
Da necessidade contínua de adaptação às mudanças relativamente bruscas, o
adolescente se encontra diante de conflitos psicológicos individuais e uma série de
exigências do meio externo que favorecem a ocorrências de crises. Na descoberta de si
mesmo, o jovem apresentará um grande número de identificações e, ao perceber o
conflito entre os materiais sociais que pode empregar na sua vida e o desejo e aptidão
para usá-los, se deparará com a crise de identidade (Pereira, 2005).
Erikson (1998) acrescentou a dimensão das relações sociais aos estágios
psicossexuais de Freud. Apoiado na visão psicanalítica, ele acrescentou que o
desenvolvimento da personalidade não para na adolescência, mas continua através do
ciclo da vida. Durante esse percurso, momentos de crises psicossociais marcariam a
passagem entre os estágios. A entrada na puberdade e adolescência marcaria a crise
psicossocial da identidade e a confusão de papéis (Kaplan & Sadock, 1984; Pereira,
2005).
Segundo Erickson (1998), todas as pessoas atravessam crises psicossociais em
cada estágio do desenvolvimento humano. Em especial no período da adolescência, este
autor ressalta que as transformações corporais, afetivas e sociais desafiam a
integralidade da personalidade, gerando a crise de identidade versus a confusão de
papéis. A crise de identidade não se restringe ao adolescente, pois os pais também
reviverão seus conflitos internos nesse tempo. A separação afetiva da família implica
investimento emocional para ambos os lados, pais e filhos (Aberastury, 1988).
Nesse período do desenvolvimento, o jovem é empurrado para um novo papel,
uma nova relação com os pais e o mundo. É um período confuso, de contradições,
ambivalente, caracterizado por conflitos com o meio familiar e social. Em resposta às
exigências exteriores, o jovem refugia-se no seu mundo interno, a fim de buscar
conexões com os objetos primários, que lhe servirão de apoio para investir no mundo
externo (Aberastury, 1988; Pereira, 2005).
Penso (2003) acrescenta que o adolescente é impelido a entrar no meio adulto,
sendo obrigado a pôr em ação o trabalho de ligação entre o sentimento de continuidade

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& Luisa Lara

da sua existência, por meio das identificações primárias, à necessidade de assumir o


lugar de adulto, para experimentar papéis e situações sociais que lhe exigem uma
capacidade de reorganização das novas formas de se relacionar.
Conflitos psicológicos e uma série de exigências familiares e sociais favorecem
a dissonância entre aquilo que ele é, para onde está indo e quais são as possibilidades de
vir a ser. Assim, ele se vê em um período em que é obrigado a abdicar da segurança e
diversão do mundo infantil, para adquirir um passaporte para vida adulta (Aberastury,
1988; Pereira, 2005).
Segundo Penso (2003) e Pereira (2005), nesse momento crítico e de tensão, o
jovem repudia as identificações da infância, tentando diferenciar-se dos valores
estabelecidos pelos pais e pela cultura. Todavia, também reconhecem sua forte ligação
com os objetos internos, pela compreensão daquilo que apreendeu sobre si na relação
com seu meio familiar e sociocultural. Quando o adolescente consegue ressignificar seu
papel e reeditar uma nova forma de ser, ele obtém um todo sobre si próprio, em
consonância com seu passado e, enquanto se prepara para o futuro, ele adentra no
mundo.
Reconhecendo a possibilidade de novos laços se constituírem entre os
adolescentes e suas famílias, este estudo busca elaborar uma leitura atualizada sobre a
adolescência e as relações em que os avós estão implicados. Embora existam pesquisas
sobre a importância dos avós na infância, não foram encontrados trabalhos que
abordassem a função destes e sua relevância na adolescência dos netos. Diante dessa
realidade, nasceu o interesse em realizar uma pesquisa que abordasse a díade: avós e
netos adolescentes.
Assim, este estudo teve como objetivos identificar e compreender o lugar dos
avós na configuração familiar dos netos-adolescentes. Pretende-se ainda comparar dois
grupos que moram e que não moram com os avós quanto: a forma como caracterizam
seus pais e avós, se o jovem procura seus avós quando tem um problema
mental/emocional, se os avós influenciam suas vidas de adolescentes.

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O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 165

Método

Em primeiro lugar, é importante esclarecer, que este estudo trata de um recorte


de uma pesquisa maior intitulada: “Saúde Mental dos Adolescentes nas Escolas”, cujo
foco voltou-se para os dados que envolvessem o contexto familiar, mais
especificamente, buscou-se enfatizar os dados referentes aos avós dos adolescentes
estudados.
Esta pesquisa parametriza-se por uma abordagem metodológica quantitativa
(Cohen & Manion, 1994) que faz emergir dados objetivos da relação entre adolescentes
e seus avós. O estudo utilizou o método quantitativo exploratório descritivo, focando no
papel dos avós junto aos netos-adolescentes.

Amostra

A amostra foi constituída por dois grupos: um com 31 adolescentes que residem
com os avós (que chamaremos apenas de “residentes”) e outro com 56 adolescentes que
não residem com os avós (que chamaremos apenas de “não residentes”). Todos os
sujeitos tinham entre 14 e 19 anos e estudavam no ensino médio, em duas escolas
públicas das regiões de menor IDH em Brasília (DF).

Instrumentos

Foi utilizado o mesmo questionário elaborado para a pesquisa maior da qual este
estudo se originou. O questionário contemplou questões fechadas (dicotômicas, de
múltipla resposta e escala Likert) e questões abertas. O mesmo foi dividido em quatro
partes: a primeira ficou composta de 111 itens que diziam respeito à saúde desses
jovens, bem como as variáveis que poderiam influenciar a mesma. A segunda, por sua
vez, foi composta de 22 itens que correspondiam ao aspecto referente à família desses

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& Luisa Lara

adolescentes. A parte três referente ao bem-estar desses jovens foi composta por 27
itens e, finalmente, a quarta parte, constituiu-se de questões referentes aos dados
sociodemográficos, nomeadas no questionário como “condições de vida”. Nessa última
parte, havia o item aberto com a pergunta: “Com quem você mora?” de onde foram
retiradas as respostas para realizar a separação dos grupos e compor a amostra do
presente estudo. Nas perguntas que compõem o questionário, foi utilizada a escala
Likert de 1 a 4 pontos na parte 1 e no primeiro item da parte 2, e utilizada a escala de 1
a 5 pontos a partir do segundo item da parte 2, até o final da parte 3 do questionário,
sendo que a parte 4 é relativo ao preenchimento sociodemográfico.

Procedimentos para a coleta de dados

Os respondentes foram localizados em suas próprias escolas, após autorização


dos órgãos públicos responsáveis. A coleta de dados foi realizada durante o horário de
aula que fora designada pela direção das escolas. A aplicação foi realizada com toda a
turma, ao mesmo tempo. Os questionários levaram cerca de quarenta minutos a duas
horas para serem respondidos. A coleta durou dois meses para ser finalizada.

Procedimentos de análise de dados

O SPSS (Statistical Package for Social Sciences) foi utilizado na construção de


um banco de dados para a análise das informações contidas nos questionários.
Verificou-se a existência ou não de diferenças significativas no que se refere a residir ou
não com os avós. Também foi observada, através da descrição da frequência, o como é a
família desses jovens (pais separados, nunca viveram juntos, são divorciados, um dos
cônjuges é viúvo, vivem juntos, são casados) e quais os avós que esses jovens mais se
referiram com o fato de morar ou não com os avós. As variáveis estudadas foram
mensuradas nos níveis das escalas: nominal e intervalar. Inicialmente, com o uso do
SPSS, verificou-se a consistência das informações, ou seja, foi feita a correção da

Revista Kairós Gerontologia, 15(2). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, março 2012: 159-176.
O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 167

codificação das variáveis no banco de dados, e, em seguida, procedeu-se à análise


estatística através da construção de tabelas de frequências e cruzamentos das variáveis
pertinentes. Na sequência da análise estatística e, de acordo com os objetivos propostos,
utilizou-se o Teste (T) Não-paramétrico, em nível de significância de 5%, para verificar
a existência ou não de diferenças significativas no que se refere às questões
anteriormente explicitadas.

Resultados e Discussão

Para a presente pesquisa, analisaram-se apenas as questões do questionário que


apresentassem algum dado referente aos avós dos adolescentes. Tais questões versavam
sobre: residir ou não com os avós; de onde vêm as ideias de saúde mental dos jovens;
quem eles procuram quando estão com problemas mentais/emocionais; como eles
representam a família; como se veem, como veem a mãe, o pai e os avós; como é a
família desses jovens - pais separados, nunca viveram juntos, são divorciados, um deles
é viúvo(a), vivem juntos, são casados - e quais os avós a que esses jovens mais se
referiram - mãe da mãe, mãe do pai, pai da mãe e pai do pai. Os resultados encontrados
sobre essas temáticas serão apresentados e discutidos a seguir:

a) Sobre a configuração familiar dos jovens: no que se refere a este aspecto,


observou-se que, dos jovens residentes, 61,29% (19 sujeitos) não apresentam a família
nuclear, ou seja, os pais nunca viveram juntos, são separados/divorciados ou são viúvos.
Dos não residentes, é possível observar essa configuração de família nuclear, sendo que
para 62,50% (35 sujeitos), os pais vivem juntos ou são casados.
Os dados aqui representados corroboram a literatura disponível, uma vez que os
netos que residem com os avós geralmente são provenientes de famílias não nucleares,
com os avós exercendo a função parental. É percebido que a co-residência, isto é, os
filhos morando com seus pais, não é devido apenas pela necessidade desses idosos, mas
pela demanda da população mais jovem. Os avós são considerados parentes que
também sofrem essa ruptura da família nuclear, já que se verifica o envolvimento desses
idosos no momento crucial que seu filho ou filha está passando juntamente com seus

Revista Kairós Gerontologia, 15(2). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, março 2012: 159-176.
168 Alessandra da Rocha Arrais; Katia Cristina Tarouquella R. Brasil; Carmen Jansen de Cárdenas
& Luisa Lara

netos (Jaskowski & Dellasega, 1993 como citado em Araújo & Dias, 2002). Além disso,
a estabilidade financeira, emocional, entre outras, desses idosos são alguns dos motivos
do recebimento dos próprios filhos em casa e, consequentemente, dos filhos desses
filhos, os netos, tornando o papel desse idoso fundamental na família (Gladstone, 1988
como citado em Araújo & Dias, 2002).
Com os novos arranjos familiares, como os encontrados na amostra, os limites e
as fronteiras tornaram-se expandidos e difusos, levando os avós a assumir ou sobrepor
papéis diante da ausência parental da geração do meio (Goldfarb & Lopes, 2006). No
entanto, ocupar o lugar de avós exige desses avós o consentimento para que seus filhos
assumam-se como pais, desempenhando o papel educativo e afetivo. Cabe aos pais, na
posição de avós, permitirem que seus filhos assumam as funções parentais. Permanecer
enquanto elo entre as gerações é ser avô/avó, sem que seu lugar fique vazio (Penso,
2003; Goldfarb & Lopes, 2006). Seria ideal, portanto, que, com a chegada da
adolescência dos netos, os avós se colocassem como elo entre pais e filhos. Assim, no
desempenho da sua função, o avô cederia ao filho o lugar para reprodução da função
paterna/ materna.

b) Sobre a influência dos avós na concepção de saúde mental: foram verificadas


diferenças significativas entre o fato de os jovens residentes ou não-residentes com
relação à de quem vem as ideias sobre saúde e doença mental/emocional dos mesmos.
Para a análise desses dados, foi utilizada a pergunta do questionário “Você acha que as
suas ideias sobre saúde e doença mental/emocional vêm...” entre as opções tinham as
respostas: “dos meus pais; dos meus avós; dos meus irmãos; dos meus amigos; da
escola; de profissionais por ex-médico, psicólogo; da mídia televisão, rádio (internet),
em uma escala Likert de 4 pontos. Os resultados do Teste T indicam que há
significância de 0,019 dos residentes e 0,039 dos não residentes na resposta dos meus
“avós”.
Os jovens residentes acham que as ideias vêm mais dos avós (concordam em
parte - média 2,09) do que os não residentes (não concordam - média 1,58); as outras
respostas não foram significativas para a amostra em questão.

Revista Kairós Gerontologia, 15(2). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, março 2012: 159-176.
O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 169

Comparando os dois grupos, verifica-se uma influência que esses avós têm sobre
os jovens que moram com eles, no que se refere à ideia de saúde mental, considerando
inclusive o fato de estarem na mesma residência e com uma convivência diária.
Contudo, sabe-se que a influência da geração anterior para a atual, de maneira geral, é
mais difícil, sendo esses novos modelos peculiares, pelo maior acesso a informações,
avanço da tecnologia, por parte da geração dos adolescentes. Isso também pode ser
percebido nas respostas “Concordam em parte”, isto é, essa influência dos avós revela
ser pouca na concepção de saúde mental.
Foi questionado: “Alguns jovens procuram pessoas quando têm um problema
mental/emocional. Quando eu tenho um problema mental/emocional eu procuro...”.
Dentre as respostas, houve as opções: “a minha mãe; o meu pai; os meus irmãos; a
minha avó; o meu avô; os meus amigos/as; o meu professor; uma pessoa do contexto
religioso, por ex., padre, guia espiritual; o médico de família ou o pediatra; uma pessoa
da medicina alternativa, natural; um psicólogo/psiquiatra; um outro especialista, por ex.,
neurologista; uma clínica ou hospital”, em uma escala Likert de 4 pontos. Obteve-se
como resultado: quando os jovens residentes estão com algum problema de saúde
mental/emocional procuram as suas avós (gênero feminino) (concordam em parte –
média 2,07) com significância de 0,021. Já os que são não residentes (significância de
0,048) não procuram essas avós (gênero feminino), quando estão com problemas (não
concordam – média 1,53). Nota-se que não foi significativa para nenhum dos dois
grupos a procura aos avôs (gênero masculino).
Como já foi mencionado, percebe-se, a partir desses resultados, que há uma
maior influência por parte das avós sobre seus netos-jovens. Dias (1994) pontua que a
vivência da avosidade é influenciada pelo gênero, idade e nível socioeconômico na
cultura ocidental. O autor destaca que a chegada de um neto, para a mulher de meia-
idade, pode oferecer-lhe uma nova oportunidade para experienciar a maternidade, em
forma de auto-realização emocional, e até aumentar a sua longevidade (Lachmann,
2011) e assim elas parecem se aproximar mais dos netos, podendo ser inclusive uma
referência importante para eles, como se observa neste estudo.
Diz a literatura (Dias, Hora & Aguiar, 2010; Peixoto & Luz, 2007) que é
comum, quando há um conflito conjugal, que os netos e filhos se apoiem na figura
materna e geralmente na mãe da mãe. Afirma ainda Marcondes (2009: 12) que, em sua

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170 Alessandra da Rocha Arrais; Katia Cristina Tarouquella R. Brasil; Carmen Jansen de Cárdenas
& Luisa Lara

pesquisa, percebeu “uma total ausência da figura do avô nos relatos; revelam-se tanto
nas falas femininas quanto masculinas, como as dinâmicas familiares, nesse grupo de
entrevistados, são essencialmente articuladas pelas e em torno das mulheres”. A autora
ainda diz que a condição de avó aparece cercada de autoridade e prestígio, mostrando-se
acolhedora, mas sem excluir as cobranças inerentes ao papel de mãe, acabando por
assumir o papel de disciplinar seus netos quando as mães destes não o fazem. Isso
contrasta com a figura branda e menos exigente que se tem de uma avó, e que, em sendo
assim, a avó exerce grande influência sobre os netos (Marcondes, 2009). Observa-se,
então, uma maior atuação do papel feminino, não do masculino, que é representado na
figura do avô.

c) Sobre como os jovens dos dois grupos se descrevem e descrevem sua mãe, pai
e avós: foi realizada no questionário a pergunta: “Tente com a lista de características
abaixo descrever a si e a sua família”. Com o item: “Por favor, descreva como você é na
sua opinião:..”. Foi utilizada a escala Likert de 5 pontos. Teve-se como resultado a não
significância no cruzamento dos dados, o que pode inferir que a maneira como esses
adolescentes se veem não é significativo pelo fato de residirem ou não com os avós.
Sendo não significativo o fato de morar ou não com os avós com relação a como
eles se veem, percebe-se que os avós não influenciam a maneira como esses
adolescentes se veem, sendo diferentes as gerações, e o impacto de uma sobre a outra.
Isto é, a geração atual se redefine, se vê de forma diferente, e é autônoma, a ponto de
esses jovens não serem influenciados pelos idosos. Além disso, conforme alguns autores
(Aberastury, 1988; Pereira, 2005), nessa fase da vida, a construção da identidade é feita
mais pelos pares e pelo mundo externo do que na base familiar. Os adolescentes se
percebem no outro, no grupo de amigos, estão em fase de exploração para além da
própria residência, não desprezando a influência da base familiar, mas agregando outros
fatores, de se perceberem e se construírem. Diferentemente de quando estão na infância
em que a referência é mais sua família.

d) Em relação a como eles descrevem a mãe: não houve influência do fato de


morar ou não com os avós, na presente amostra. Já verificada a autoridade da figura

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O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 171

materna, quando muitas vezes a avó exerce a função parental para com esses netos
(Goldfarb & Lopes, 2006). Devido a diversos fatores, dentre estes, a estabilidade nesse
período de vida, a não significância na comparação entre os dois grupos pode ser
tributária ao fato de esses jovens que moram com suas avós perceberam-nas como
mães. Isso porque muitas vezes são as próprias idosas que provêm o sustento financeiro,
emocional e afetivo, bem como são as que chefiam a casa quando seus filhos saem para
trabalhar, sendo de sua responsabilidade a criação diária dos netos (Aratangy &
Posternak, 2005; Oliveira, 2009).

e) No que concerne à descrição dos pais por esses jovens, entre as opções:
satisfeito, tranquilo, medroso, animado, comunicativo, “de lua”, seguro de si,
independente, nervoso, compreensivo, atencioso e simpático: observou-se, dentre os
adolescentes que residem com os avós, que eles veem seu pai como “medroso”
(significância de 0,028 e corresponde pouco – média 2,07). Os jovens que não residem
com os avós não concordam com o pai ser “medroso” (significância de 0,057 e não
corresponde – média 1,50). Aqui, pode-se verificar que o resultado de que os jovens
residentes com os avós verem o pai como medroso pode estar relacionado com o fato de
o terem como alguém que não teve coragem de assumir a família, que fugiu do
enfrentamento da situação paterna, acarretando a separação da família; embora ainda
depositassem no pai a esperança de este assumir a família; entretanto, devido ao não
cumprimento do seu papel de pais, estes passam a ser avaliados negativamente por seus
filhos.

f) No que diz respeito a como eles descrevem esses avós: ao serem questionados
“A sua avó ou seu avô é: satisfeito/a, tranquilo/a, medroso/a, animado/a, comunicativo”,
“de lua”, seguro/a de si, independente, nervoso/a, compreensivo/a, atencioso/a,
simpático/a”, teve como resultado significativo a resposta “nervoso/a”, sendo que quem
mora com os avós (significância de 0,005) veem mais como nervoso/a (corresponde em
parte – média 3,19) do que quem não mora com os avós (significância de 0,006 e
corresponde pouco – média 2,26).
Ao analisar esses dados, é interessante notar que, em comparação com os que
não moram com os avós, os adolescentes que residem percebem esses avós como

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172 Alessandra da Rocha Arrais; Katia Cristina Tarouquella R. Brasil; Carmen Jansen de Cárdenas
& Luisa Lara

nervosos, já que pelo fato de estarem ali morando com eles, de estar no dia a dia,
enfrentando os conflitos de gerações, essa visão dos avós como pessoas nervosas fica
em evidência diante do papel de avós vistos como “a vovó e o vovô doce, que passa a
mão na cabeça”. Além do que os avós considerados somente em seu papel na avosidade
são vistos por seus netos como a “mãe/pai com açúcar”. Uma vez que desempenham a
função de mãe/pai ou junto com a filha/filho por estarem morando todos juntos, acaba-
se o “açúcar” devido à tarefa da função parental mais presente. Há, portanto, diante das
novas configurações familiares, o risco de se constituírem laços afetivos disfuncionais
entre avós e netos adolescentes.
Cabe ressaltar que, segundo Goldfarb e Lopes (2006), ainda que os avós
desempenhem o papel parental, os filhos, agora pais, não deixarão de ser pais/mães
porque a função foi transferida. Contudo, o lugar e a função dos avós podem se
confundir ao dos verdadeiros depositários destes papéis, tendo em vista os desafios
sociais e econômicos que a família enfrenta na contemporaneidade. Neste mesmo
contexto, Goodman e Silverstein (2002 como citado em Lopes, Nery & Park, 2005)
consideram que, quando há ausência do pai e da mãe, os avós tendem a desempenhar as
funções parentais como pais substitutos.
Com seus papéis expandidos, podem encontrar satisfação ao oferecer benefícios
aos netos, e também ônus, em função do estresse físico e emocional (Lachmann, 2011).
Por outro lado, para Lopes, Nery e Park (2005), o idoso pode passar por este processo
de viver a experiência de ser avô, sem comprometer-se com obrigações maternas e
paternas. Pode desenvolver novos vínculos com seus netos, permitindo que
identificações sejam estabelecidas sem que haja sobrecarga ou estresse.

g) Finalmente, descreveu-se a frequência de quem foram os avós que os


respondentes descreveram e se referiram na questão acima, por meio do sub-item:
“Quem é o avô ou a avó que acabou de descrever?” Observou-se que esses jovens
fazem referência a avó (gênero feminino). A mãe da mãe desses adolescentes foi a mais
citada em ambos os grupos, sendo em 72% dos casos de jovens que moram com avós
(22 sujeitos) e 51,4% (28 sujeitos) nos jovens que não moram com os avós. É
perceptível o fato de a função materna ser a que cumpre esse papel parental, invertendo

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O lugar dos avós na configuração familiar com netos adolescentes 173

a função de “mãe sem açúcar”. O dado aqui representado corrobora a literatura (Dias,
1994; Oliveira, 2009) em que geralmente é a mãe da mãe que ocupa essa função.

Considerações Finais

Este artigo buscou identificar e compreender o lugar dos avós na configuração


familiar de netos-adolescentes, que residem em Brasília (DF). A seguir, descreveram-se
quantitativamente aspectos da relação entre netos-adolescentes e seus avós, os lugares
que estas figuras ocupam na vida dos jovens que residem ou não com eles. Mostrou-se
que, ao desempenhar papéis multidimensionais, os idosos criam diferentes estilos de
relacionamento com seus netos, coerentes com as circunstâncias pessoais e subjetivas
(afinidade, idade e gênero) e situacionais (divórcio dos pais e questões
socioeconômicas) vivenciadas. Situações tais que requerem uma reorganização das
partes envolvidas, tendo em vista que, no imaginário das crianças e adolescentes que
convivem com seus avós, essa substituição parental pode ocasionar dificuldades
emocionais (Triadó, Martínez & Villar, 2000; Lopes, Neri & Park, 2005). Assim, este
trabalho explana a possibilidade de se constituírem laços afetivos disfuncionais entre
avós e netos-adolescentes, considerando as novas configurações familiares.
Esta pesquisa vai ao encontro dos resultados encontrados em outras pesquisas
que têm como tema principal o estudo da avosidade (Aratangy & Posternak, 2005;
Oliveira, 2009). Não foram poucos os dados sobre a importância do suporte dos avós,
ao assumirem as tarefas domésticas e os cuidados dos netos, enquanto seus pais
trabalhavam ou procuravam emprego. Os dados sobre as famílias dos jovens que
residiam com os avós mostram a sobreposição dos lugares de mães e avós, que se soma
às dificuldades socioeconômicas e situacionais. Na maioria dos casos, foi a mãe da mãe
que desempenhou um papel importante na vida dos adolescentes do grupo de residentes,
e confirmou-se a ideia de que há uma maior influência por parte das avós sobre seus
netos-jovens.
Considerando o aspecto levantado quanto às novas configurações familiares e à
presença expressiva dos idosos nas famílias brasileiras, sugere-se que estes também
sejam lembrados ao se falar em pessoas que podem oferecer suporte e apoio ao

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174 Alessandra da Rocha Arrais; Katia Cristina Tarouquella R. Brasil; Carmen Jansen de Cárdenas
& Luisa Lara

adolescente, bem como na sua necessidade de também receberem apoio na função


substitutiva.

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Recebido em 02/02/2012
Aceito em 20/02/2012

__________________________________

Alessandra da Rocha Arrais - Doutora em Psicologia; Professora da Graduação e


Mestrado em Gerontologia da Universidade Católica de Brasília (UCB).
E-mail: arrais@ucb.br

Katia Cristina Tarouquella Rodrigues Brasil - Doutora em Psicologia; Professora da


Graduação e Mestrado em Educação da UCB.
E-mail: katia@ucb.br

Revista Kairós Gerontologia, 15(2). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, março 2012: 159-176.
176 Alessandra da Rocha Arrais; Katia Cristina Tarouquella R. Brasil; Carmen Jansen de Cárdenas
& Luisa Lara

Carmen Jansen de Cárdenas - Doutora em Psicologia; Professora da Graduação e


Mestrado em Gerontologia da Universidade Católica de Brasília (UCB).
E-mail: magdagis43@hotmail.com

Luisa Lara – Bolsista de IC e Graduanda em Psicologia da UCB.


E-mail: luisinhah88@gmail.com

Revista Kairós Gerontologia, 15(2). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, março 2012: 159-176.
14
Capítulo 7
A AVÓ COMO SUPORTE PARENTAL NA ADOLESCÊNCIA: DISCUSSÃO
CLÍNICA

Alessandra da Rocha Arrais


Katia Tarouquella Rodrigues Brasil
Kelly Lins Bezerra Pinto

Diante do aumento da longevidade, os idosos passaram a conviver mais tempo com


seus descendentes, bem como passaram a exercer diferentes papéis na dinâmica familiar.
Estudos apontam que, com os novos arranjos sociais a composição das famílias ganhou uma
força expressiva dos idosos (Dias, 1994; Debert & Simões; Goldfarb & Lopes, 2006, Lima,
de Moraes& Augusto Filho, 2008), pois muitos idosos nas populações mais carentes
contribuem para a manutenção da família com os recursos da aposentadoria, pois
representam um segmento da população com uma rentabilidade expressiva, além do apoio
financeiro, o idoso pode ser uma figura de referencia parental tanto para seus filhos como
para seus netos (Coutrim, 2006).
Nesse contexto, os avós prestam apoio afetivo e financeiro à rede familiar,
assumindo a função paterna ou materna de seus netos somado aos papéis de avós (Vitale,
2008). Portanto, reconhecendo os novos laços que se constituem entre os adolescentes, seus
pais e seus avós, este estudo buscou abordar o processo psicoterápico de uma adolescente
cuja avó assume o lugar de apoio narcísico parental, tendo em vista a fragilização dos pais
em assumir tal função.

ADOLESCÊNCIA
A palavra adolescência deriva do latim adollacentia e significa processo de
crescimento em direção à maturidade (Pereira, 2005). Contudo, esse momento da vida do
sujeito nem sempre teve um lugar de reconhecimento social confortável. Segundo Marty
(2006b), no inicio do século XX a adolescência estava associada à noção de periculosidade
e mesmo de criminalidade. Grossman (2010) chama atenção para o fato de que no século
XX a ideia da adolescência como uma etapa da vida dotada de características próprias é
consolidada e assume um estatuto legal e social acompanhado pela ideia de ser uma fase
potencialmente de risco.

1
A Psicanálise, por sua vez, no início do século XX abordou a puberdade e a
adolescência revelando algumas particularidades sobre esse período da vida. Primeiramente,
ela destaca que na adolescência há uma reedição da sexualidade infantil e que sua dimensão
incestuosa é reativada e dá a ela um caráter conflituoso e fantasmático. Savietto e Cardoso
(2006) destacam que a experiência subjetiva de ruptura com a vida infantil rumo ao mundo
adulto, reedita os conflitos edipianos que na adolescência se fazem mais ameaçadores, tendo
em vista a maturidade sexual, de modo que o sujeito se depara com as transformações
corporais e a necessidade de integrá-las sem se perder em meio ao paradoxo de “mudar e
permanecer o mesmo” (Marty & Cardoso, 2008, P. 11).
Segundo Pereira (2005), nesse período particularmente crítico, o jovem abandona as
identificações da infância tentando se diferenciar dos valores estabelecidos pelos pais e pela
cultura em um movimento de afastamento em relação às vivências infantis e aos pais da
infâncias. Todavia, ele é habitado, mesmo que de modo inconsciente, pelo casal parental,
que integra a vida psíquica dos adolescentes, tanto como objetos sedutores como
perseguidores (Marty, 1977).
Nesse contexto, as mudanças corporais e psíquicas produzidas com a entrada na
puberdade, exigem um suporte parental para que o sujeito pubertário não se sinta devastado
narcisicamente pelas transformações que o atingem. Esse processo sinaliza que o
adolescente precisará de sólidas bases narcísicas, no entanto, se as relações objetais
primárias forem insuficientes para essa função, as falhas narcísicas poderão ser
incontornáveis (Savietto e Cardoso, 2006). As primeiras relações objetais são fundamentais
para a consolidação narcísica do adolescente, contudo, desvincular-se e desinvestir dos
primeiros objetos é, segundo as autoras, um “mal necessário”, pois é preciso destituir as
identificações primárias do lugar de onipotência e estabelecer novas identificações
secundárias.
Nessa perspectiva, contar com um apoio narcísico consistente é um recurso que
permite ao adolescente suportar o turbilhão de emoções que emergem com as mudanças
corporais e psíquicas iniciadas na puberdade. Esse apoio se refere à sustentação advinda dos
adultos no momento em que o adolescente se encontra com sentimentos de desamparo que
o fragilizam narcisicamente. De modo que o apoio parental poderá fornecer ao sujeito as
bases para que no momento da reorganização identificatória na adolescência, ele possa
dirigir seu investimento a novos objetos.
Assim, no contexto da adolescência os adultos serão particularmente solicitados,
pois terão que ajudar os adolescentes a enfrentarem no real do corpo as visíveis

2
modificações pubertárias, bem como, deverão exercer a função de para-excitação e de
continente, daquilo que neles esteja transbordante. A tão anunciada crise da adolescência se
refere a esta falta de controle das pulsões que ameaçam o eu. O risco dessa situação é que os
adolescentes podem não encontrar a sua volta um apoio parental que possa sustentar a
posição de suporte e de continente para o desafio pubertário, pelo contrário, alguns
adolescentes enfrentarão sozinhos este período e, essa situação poderá complexar
sobremaneira este momento da vida (MARTY, 2006a).
Savietto e Cardoso (2006) lembram que o termo “apoio narcísico parental”
introduzido por Gutton e desenvolvido por Marty (1999), se relaciona ao processo de
elaboração da violência pubertária que necessita de uma confiabilidade dos pais no processo
da adolescência. No entanto, vale à pena destacar que os adultos podem sentir-se
desamparados frente ao desafio de enfrentar a violência destrutiva do pubertário. Assim,
alguns pais, segundo Marty (2006), desconhecem as formas de proteger seus filhos da
violência contra si mesmos ou não conseguem resistir a destrutividade adolescente, de modo
que a fragilidade dos adultos não contribui para que os adolescentes encontrem o apoio
narcísico parental para enfrentarem algo de si mesmo que os escapa.

FAMÍLIA E FALHA PARENTAL

Segundo Goldfarb e Lopes (2006), foi a partir do século XIX que a configuração
familiar ganhou status de núcleo de segurança e amor, onde a mãe desempenhava as funções
de apoio afetivo e emocional e ao pai cabiam as funções estruturais, associadas à autoridade
e a responsabilidade moral. O impacto produzido desde a revolução industrial, incidindo
diretamente nas relações familiares, separou os contextos do trabalho, do lazer e do convívio
com a família.
De acordo com Penso (2003) e Sarti (2008), para a família manter seu equilíbrio, ela
se desdobra em relações complexas para atender às demandas que vão surgindo. Contudo,
algum membro da família pode não corresponder ao papel que lhe é atribuído na dinâmica
familiar, por exemplo, há casos em que a mãe permanece vinculada ao papel de filha e não
consegue exercer a função materna, assumindo um modo de relação fraterna e simétrica
com seu filho ou filha, delegando a função materna aos avós. Os avós, segundo Goldfarb e
Lopes (2006), permitem que a criança e o adolescente vivam seu lugar filial em um tempo
provisório, no entanto, esse funcionamento cria um dilema para a criança ou para o
adolescente sobre os verdadeiros depositários desses papéis.

3
Segundo Lopes e Goldfarb (2006), as falhas parentais ocorrem quando, os pais, não
conseguem realizar a operação simbólica das funções paterna e materna para que a criança
estabeleça as identificações primárias que asseguram a estabilidade do eu. Contudo,
Monteiro e Lage (2007), destacam que os pais não são os salvadores do desamparo
adolescente, pois sempre haverá uma falha, de modo que a experiência da falha parental
convocará o sujeito a um trabalho de elaboração.
Entretanto, com as mudanças nos laços familiares, caso os pais fiquem
impossibilitados de assumirem suas funções parentais, os avós podem ser chamados a
assumirem esse lugar de modo que possam assegurar um apoio parental para seus netos
pubertários e adolescentes. Portanto, nas novas configurações familiares, os avós podem ser
convocados a assumirem o lugar das figuras parentais, pois oferecerão o apoio narcísico
necessário para que seus netos adolescentes resistam e não sucumbam aos impulsos
destrutivos que emergem nesse período. Assim, ao assumirem essa função, os avós irão
sobrepor as responsabilidades de mãe/pai e avó/avô no exercício de suporte à família.

AVOSIDADE: TEMPO DE SER PAIS OU AVÓS?


Goldfarb & Lopes (2006) apontam que a modificação no papel dos idosos no
contexto familiar e social provocou uma crise de identidade na avosidade. A definição desse
termo difundiu-se com os estudos de Paulina Redler no ano de 1977 sobre
psicogerontologia. Estes sugeriam ampliação da visão biológica para além da idade
cronológica ao realçar os laços de parentesco que exigem do idoso a reestruturação psíquica
ao ocupar um novo status pessoal, psíquico, familiar e social: ser avô/avó (Redler, 1986,
citado por Pedrosa, 2006).
Para Goldfarb e Lopes (2006), o que definirá a avosidade não será a idade
cronológica ou o papel social, mas a possibilidade de transmitir as funções materna e
paterna para as próximas gerações. Tornar-se avô requer uma elaboração do próprio papel
como filho e pai, pois o nascimento de um neto exigirá do sujeito um importante trabalho
psíquico.
Nesse sentido, ocupar o lugar de avós exige desses sujeitos a aceitação de que seus
filhos sejam pais e, portanto, cabe aos pais, na posição de avós, permitirem que seus filhos
assumam as funções parentais e, cabendo aos avós a posição de elo entre as gerações
(Goldfarb & Lopes, 2006). Os autores acrescentam ainda que o lugar e a função dos avós
pode se confundir ao dos verdadeiros depositários desses papéis, os pais, tendo em vista as
dificuldades desses últimos em assumirem a função parental junto a seus filhos. As

4
contradições da sociedade se refletem em um modo de relação familiar em que adultos se
mantém em posições infantilizadas e com grandes dificuldades em assumir seus lugares de
pais. Nesse cenário, os avós podem assumir o lugar parental quando os pais falham nessa
função.
METODO
Trata-se de um estudo de caso qualitativo que se desenvolveu a partir do
atendimento psicoterápico. Participou deste estudo uma adolescente, com 15 anos de idade,
do sexo feminino, estudante do ensino médio de uma escola pública do Distrito Federal. A
adolescente foi encaminhada para o atendimento psicoterápico em uma clínica escola
universitária pelo Conselho Tutelar de sua cidade, o qual determinava o cumprimento da
medida protetiva prevista no artigo 101, inciso V (acompanhamento psicológico), do
Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
As questões éticas envolvendo seres humanos foram incorporadas a este estudo
respeitando as diretrizes e normas que regulam as pesquisas com os seres humanos. O
estudo garante sigilo e proteção à adolescente evitando expô-la a situações que
potencializem seus riscos.
A adolescente que protagonizou o caso clínico, a qual será chamada de Ana1. Ana
foi atendida individualmente em psicoterapia de orientação psicanalítica. Os atendimentos
Psicoterápicos ocorreram uma vez por semana, com duração de 50 minutos e as sessões
foram relatadas por escrito e arquivadas em um prontuário clínico. O estudo de caso em
psicanálise, segundo Guimarães e Bento (2008), busca a construção do sentido no contexto
da clínica psicoterápica seguindo a constituição páthica dos pacientes.
Esse estudo se apoiou na abordagem clínico-qualitativa, tendo como embasamento
teórico a Psicanálise, que possibilitou a organização e interpretação do material clínico,
considerado os aspectos conscientes e inconscientes que regem o processo de Ana no
círculo de convivência, com sua mãe e sua avó.
Inspirando-se no método adotado por Conti (2004), optou-se por limitar o material
registrado nas sessões clínicas a dois blocos de informações: 1) Descrição e
contextualização do caso: contexto clínico e familiar; 2) Análise interpretativa.

1
Nome fictício utilizado para preservar o sigilo das informações e da identidade real do sujeito.

5
RESULTADOS E DISCUSSÃO

1) Descrição e contextualização do caso:


Ana chegou à psicoterapia acompanhada da avó materna, com quem morava e a
quem assumia o papel de adulto responsável por Ana. O jeito de Ana se vestir era indicativo
de sua geração, calça jeans, mochila e tênis All Star, usava um lenço de caveira e uma blusa
de banda de rock. Durante a primeira entrevista, Ana limitou-se a ser monossilábica dizendo
não se sentir à vontade para “falar de suas intimidades diante da avó”.
A sós com a psicoterapeuta, a adolescente justificou que seus comportamentos
ousados e transgressivos foram motivados pelo investimento amoroso direcionado à sua
professora. Ana passou a adotar comportamentos invasivos e intimidadores direcionados a
uma professora de sua escola, cuja intensidade gerou constrangimentos no espaço escolar e
a situação foi encaminhada ao Conselho Tutelar. Esse episódio foi relatado por Ana com um
forte ressentimento, tanto em relação à professora por não ter correspondido às suas
investidas amorosas, como em relação à escola e à família pela falta de apoio e de
compreensão. Ana descreveu seus comportamentos nas seguintes falas: “era mais forte do
que eu... ficava atrás das pilastras... pulei o muro só para ficar olhando para ela”.
Ao final dessa primeira entrevista, Ana concordou em seguir uma psicoterapia
individual. Durante o processo psicoterápico os desafios foram grandes, pois Ana com o
intuito de desestabilizar a psicoterapeuta, indicava suas dúvidas sobre a capacidade desta em
conter e resistir a sua destrutividade, tanto assim, que Ana atuou de modo transgressivo em
relação ao setting psicoterápico, como um modo de ataque ao enquadre instalado, esses
ataques apareceram na forma de atrasos, de provocações e de absenteísmo. Apesar disso, o
acolhimento e a firmeza da psicoterapeuta, possibilitaram que Ana desse continuidade a
psicoterapia e estabelecesse um vínculo consistente com sua psicoterapeuta.
No processo psicoterápico, Ana pôde abordar a dor de ter que abandonar o mundo da
infância e lidar como os desafios da genitalidade adolescente. Sobre suas dificuldades
relatou “falar em ser adulto é como se estivesse enfiando agulhas em mim... tenho vontade
de gritar...”. Ana revela em sua fala de que modo as transformações da adolescência a
atingiram corporalmente, Drieu (2011) chama atenção para o fato de que na adolescência
essas sensações de ataques estão relacionadas a uma integração genital vacilante e
ameaçadora. Os sofrimentos de Ana se manifestavam em seus atos transgressivos que
exibiam as dificuldades da sua relação com seu corpo e com sua sexualidade, atos esses que

6
funcionavam como uma defesa para que Ana não se fragmentasse diante de narcisismo
frágil.
Ana expôs também seu sentimento de insatisfação pelo afastamento de sua mãe e
que esse distanciamento estaria ainda maior, tendo em vista um recente relacionamento
amoroso de sua mãe. Sobre esse afastamento, Ana disse: “eu só queria que minha mãe
ficasse mais em casa“. Ana parecia não ter clareza sobre o lugar que ocupava na vida de sua
mãe, uma vez que ela era fruto de uma breve relação sexual com pouco envolvimento
afetivo.
A casa de Ana era preenchida pela presença e pela autoridade feminina, em especial
da avó materna, uma vez que a mãe diante das dificuldades em assumir o lugar parental
adotava o lugar de irmã mais velha de Ana, delegando à sua mãe a encargo de suporte
parental dentro dessa família marcadamente feminina, Ana nomeava sua casa como “a casa
das mulheres”, pois além dela, sua avó se ocupava também de sua irmã mais nova.
No desenho a baixo, Ana ilustrou suas angústias da passagem da puberdade para a
adolescência.

Figura 1-Desenho da linha do tempo

Neste desenho Ana esboçou alguns elementos da sua história familiar e as fantasias a
ela associadas. Ao falar do seu desenho, Ana relatou que seu nascimento foi o resultado do
encontro sexual de apenas uma noite entre seus pais. Ana lamentava este fato e falou:
“gostaria de ter uma família tradicional” e expressando pesar, destacou o distanciamento do
pai durante a gravidez de sua mãe.
7
Ana divide seu desenho em dois, na primeira parte retrata sua infância, onde aparece
seu nascimento e a entrada na escola, descrita e ilustrada como um período de alegria e de
serenidade. Na segunda parte do desenho, Ana ilustra sua puberdade, indicada com a
inscrição da palavra “decadência”, escrita na parte superior da linha logo após a idade de 10
anos, período pubertário. Nesse período as interrogações sobre o afastamento do mundo
infantil e a entrada no mundo adolescente se fazem presentes e a escola que para Ana na
infância é retratada como um lugar de sol e de ludicidade, na adolescência passa a ser
ilustrada no desenho como uma caixa quadrada acima da qual ela escreveu a palavra
“chatice”.

2) Análise interpretativa do caso:

2.1) Adolescência: condição de “entre” lugares.


Iniciar-se-á o processo interpretativo apresentando-se e discutindo-se um dos
conflitos psíquicos centrais das vivências de Ana, o medo de crescer. O medo de entrar para
o mundo adulto refletia uma identificação com a mãe, a qual resistia em assumir seu lugar
parental e delegava a sua própria mãe essa função.
O desenho de Ana e as sessões de psicoterapia revelaram sua ambivalência face às
transformações pubertárias e a insegurança por ter que se separar dos laços estabelecidos na
infância para reinvestir em novos objetos de identificação e desenvolver sua autonomia. As
dificuldades diante da passagem da infância para a adolescência foram expressas em uma
sessão psicoterápica em que Ana disse “antes eu estava em um parque de diversões... mas
acabaram os ingressos e ele faliu. Estou no meio... no outro parque eu teria amigos,
brincadeiras e festas, mas estou do lado de fora... Não quero perder meu lado criança, brinco
sempre com meu namorado como se fosse sua filha e com minha mãe e minha avó como se
fosse uma criança”.
Ao se perceber “no meio” de dois parques de diversões, Ana parecia estar “entre
lugares”, em relação à passagem do mundo infantil e a entrada no mundo adolescente. O
parque da infância estava falido e, portanto, não poderia mais voltar e entrar nele, mas ela
ainda não conseguia entrar no segundo parque. Em relação à sua sexualidade, Ana também
parecia estar “entre lugares”, manifestando interesses heterossexuais e homossexuais. Marty
e Cardoso (2008) destacam que esse se revela como um período de conflito entre a
necessidade de manter o investimento narcísico, tendo em vista as heranças da infância e a

8
obrigação de abandoná-las sem perder a continuidade de si e os privilégios do mundo
infantil.
Na fala de Ana, o segundo parque de diversões representa simbolicamente sua
vivência da adolescência que se evidencia como um período de possibilidade para encontrar
novos objetos de investimentos e de identificações secundárias, como o namorado e os
amigos, que estão no parque a sua espera. Ana consegue identificar esses bons objetos no
segundo parque, mas ele ainda possui características ameaçadoras, tal como sua
adolescência e sua sexualidade. Essas ameaças podem ser identificadas na fala a seguir:
“(...) ando muito angustiada, me sinto diferente das pessoas. Às vezes acho que
estou delirando, mas sei que não é um delírio, é uma sensação estranha, me sinto diferente
das pessoas, é algo que fica dentro da minha cabeça (...) gostaria de gritar e colocar tudo
para fora”. Ana expressa o estranhamento de si mesma e a intensidade das angústias
advindas com a eclosão da adolescência. Transformações que exigiram de Ana um grande
esforço psíquico para conciliar as exigências pulsionais e as demandas do meio social.

A relação de Ana com sua avó


Ana mantinha uma relação ambivalente com sua avó materna, a quem descreveu
como “chata e inconveniente”, mas que em outro momento da psicoterapia a descreveu
como “pessoa muito importante, eu a amo muitíssimo”. A avó era para Ana alvo de amor
pela dedicação, mas era também alvo de hostilidade, uma vez que o fato da avó ocupar o
lugar de suporte parental revelava a falha materna.
As responsabilidades dessa avó em relação à sua neta adolescente lhe conferiram um
novo lugar na relação familiar. A avó, que na infância de Ana exercia a função parental sem
grandes dificuldades, com a entrada de Ana na puberdade o relacionamento entre as duas foi
marcado por intensos conflitos. Apesar disso, Ana parecia ter encontrado em sua avó uma
continência para suas dificuldades adolescente. Marty (2006a) apontou o desamparo vivido
pelos adultos ao se depararem com a própria incapacidade de suportar a impulsividade e
agressividade que seus filhos ou netos exibem no contexto relacional.
Em um dos encontros com a psicoterapeuta de Ana, a Avó relatou: “eu luto com
estas meninas desde bebê, quem criou fui eu... elas sempre tiveram hora para tudo, comer,
tomar banho... elas me obedeciam... hoje é tudo liberado para fazerem o que quiserem”. A
avó de Ana encontra-se paralisada e fragilizada diante da dificuldade em manter sua
autoridade com suas netas e sobre a dificuldade de impor limites para Ana ela falou:“a
menina é sem limite...ela não tem hora para nada... ela está solta no mundo...”.

9
A manifestação dos conflitos com a neta, em plena adolescência, aciona suas
questões emocionais e subjetivas, fazendo com que ela entre em contato com suas
dificuldades em colocar os limites de que Ana precisa para se organizar internamente. A avó
expressou também o desejo em delegar essa função a sua filha, mãe de Ana, e poder ela
nessa altura da vida ter mais liberdade sem as obrigações de se ocupar de suas netas. Sobre
esse desejo seguem as seguintes falas: “hoje eu também quero sair, ficar na casa das minhas
amigas e descansar... mas tenho medo de dormir e acordar morta... se não for eu na vida
dessas meninas, eu não sei o que pode acontecer com elas”. Pelas falas da avó de Ana, nota-
se que esta se encontra em meio ao conflito de ter que assumir um lugar de substituta
materna, para cumprir um papel que lhe foi imposto pela impossibilidade de sua filha em
assumir essa função.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Contar com um apoio narcísico consistente é um recurso que permite ao adolescente


suportar o turbilhão de emoções que emergem com as mudanças corporais e psíquicas
iniciadas na puberdade. Esse apoio se refere à sustentação advinda dos adultos no momento
em que o adolescente se encontra em situação de fragilidade narcísica com sentimentos de
desamparo. De modo que o apoio parental poderá fornecer ao sujeito as bases para que este
não sucumba à sua violência e a avó de Ana se sentindo insegura diante das demandas da
adolescente, encontrou na psicoterapeuta um apoio para lidar com esse desafio. Ana se
deparou com uma mãe com imensas dificuldades em assumir sua função parental e apesar
de contar com sua avó para tal, esta última se sente sozinha para assumir esse lugar e
algumas vezes fraqueja nessa função.
Na psicoterapia, Ana pode entrar em contato com as dores da ruptura com o mundo
infantil e encontrou na avó um apoio que lhe ofereceu acolhimento e contenção para sua
impulsividade, mesmo com as dificuldades que essa avó vivenciou. A avó reconhece suas
dificuldades em garantir à Ana o apoio narcísico que ela precisa, pois essa mulher nem
sempre encontra recursos para enfrentar esse desafio. Para essa avó ocupar o lugar parental
significa aceitar que sua filha falhou nessa função, de modo que cabe a ela estabelecer o elo
entre as gerações com o desafio de não se confundir ao da verdadeira depositária dessa
função, a mãe de Ana. Nesse contexto, a mãe de Ana não contribui para que ela, enquanto
adolescente, possa se identificar com a posição de adulta, pois sua mãe se mantém em
posições infantilizadas e com grandes dificuldades em assumir sua função materna.

10
A psicoterapia proporcionou um espaço de elaboração para os conflitos dessa
adolescente que vivenciava suas transformações como um ataque à estabilidade da sua
identidade. Assim, os ataques ao outro possuíam as marca desse conflito e se caracterizavam
como um modo de defesa para Ana.

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13
15
Revista Eletrônica de Psicologia e Políticas Públicas Vol.1 N°1, 2009 Acesso através do site do CRP-09 www.crp09.org.br
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Percepções da equipe obstétrica sobre a presença do pai durante parto


e sobre a lei do acompanhante
Perceptions of the Health team on the participation of the father at the moment of the childbirth
and on Law of the Companion
Recebido em 09/02/2009; Aceito em 14/04/2009

Lidiane Pereira Teixeira1

Raquel Souza de Sá2

Alessandra da Rocha Arrais3

Universidade Católica de Brasília (UCB) / Funiversa

Resumo
O presente estudo teve como objetivo analisar as percepções da equipe de saúde do centro
obstétrico do hospital HRAS sobre a participação do pai no momento do parto e nascimento e
sobre a lei do acompanhante. Trata-se de pesquisa mista qualitativa/quantitativa, que utilizou
questionário com perguntas abertas e fechadas, e a observação dos participantes para coleta de
dados. Através da análise de conteúdo, foi feita a categorização dos resultados. Entre os
sujeitos deste estudo estavam médicos, enfermeiras, técnicos de enfermagem e agentes
administrativos, totalizando 25 profissionais. Os resultados mostraram que as enfermeiras e as
agentes administrativas são favoráveis à presença do pai na sala de parto, enquanto médicos e
técnicos de enfermagem não, justificando desacordo entre: Lei do Acompanhante; estrutura
física hospitalar e privacidade das pacientes. Faz-se necessária a intervenção psicológica junto
à equipe, transmitindo seus conhecimentos e percepções do paciente, a fim de que estes possam
ter uma visão integral do processo, definindo seus objetivos e funções, facilitando a
comunicação entre pai e equipe. A sensibilização, a educação permanente dos profissionais
envolvidos e a fiscalização das autoridades institucionais favoreceriam o cumprimento e a
implementação da Lei na rede hospitalar pública, contribuindo assim para humanização do
nascimento em hospitais públicos.
Palavras-chave: Parto, Lei do acompanhante, pai, equipe obstétrica.

1
Psicóloga clínica, em finalização de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde (Psicologia Hospitalar) pela
Universidade Católica de Brasília (UCB) / Funiversa.
2
Psicóloga clínica, em finalização de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde (Psicologia Hospitalar) pela
Universidade Católica de Brasília (UCB) / Funiversa.
3
Psicóloga clínica e hospitalar. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB); Professora do
Curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB) e Coordenadora do Curso de Especialização em
Psicologia aplicada à Saúde (Psicologia Hospitalar) da Pós-Graduação da UCB e da Funiversa. Orientadora da 1ª e
2ª autoras. E-mail: arrais@ucb.br

127
Revista Eletrônica de Psicologia e Políticas Públicas Vol.1 N°1, 2009 Acesso através do site do CRP-09 www.crp09.org.br
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Abstract
This paper aims to analyze the perceptions of the health team of the obstetric center of HRAS
hospital on the participation of the father at the moment of the childbirth and of the Law of the
Companion. It is a quantitative / qualitative mixed research, using a questionnaire with open
and closed questions, and the comment of the participants for data collection. Through the
content analysis, the results categorization was made. Among the subjects of this study there
were doctors, nurses, nursing technicians and public agents, totalizing 25 professionals. The
results showed that the nurses and the public agents agree with the presence of the father in the
childbirth room, while doctors and nursing technicians do not, justifying disagreement
between: Law of the Companion; the physical structure of the hospital and the privacy of the
patients. The physiological intervention along with the team becomes necessary, transmitting
its knowledge and perceptions of the patient, so that these can have an integral vision of the
process, defining its objectives and functions, facilitating the communication between father
and team. The sensitization, the permanent education of the involved professionals and the
fiscalization of the institutional authorities would favor the fulfillment and the implementation
of the Law in the public hospital sector, thus contributing for humanization of the birth in
public hospitals.
Keywords: Birth, Law of the Companion, Father, Obstetric Team

Introdução
O parto envolve aspectos biológicos, psicológicos e sociais, aliados às transformações
físicas e emocionais que ocorrem com a futura mãe. É um momento de transição, no qual há a
necessidade de apoio e compreensão para que a parturiente possa enfrentá-lo e assumir sua
função ativa. A presença de um acompanhante vem assumindo um papel de suporte
psicoafetivo e social, favorecendo o conforto e encorajamento nos períodos pré e pós-parto e no
parto (Davim & Menezes, 2001).

Quando a gestante é admitida em trabalho de parto em um hospital público, geralmente,


é afastada de seus familiares e submetida a diversas intervenções, as quais não são esclarecidas
e tentam adequar o trabalho de parto ao protocolo hospitalar, independentemente dos desejos da
parturiente (Dias & Deslandes, 2006).

No Brasil, o Ministério da Saúde já havia estabelecido um protocolo assistencial que


destacava a necessidade de um acompanhante, no momento do parto não sendo incorporado na
prática de muitas instituições brasileiras (Hogab & Pinto, 2007). A atenção à gestante ainda
ocorre seguindo o modelo biomédico, o qual prioriza os cuidados físicos em detrimento dos
fatores emocionais e sociais que acompanham o nascimento de uma criança (Boaretto, 2003).

A percepção, vinda do modelo biomédico, de que o corpo humano é considerado uma


máquina que pode ser analisada em termos de suas peças e a doença é vista como um mau

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funcionamento dos mecanismos biológicos, faz com que os médicos se concentrem na máquina
corporal, negligenciando os aspectos psicológicos, sociais e ambientais da doença. Na
obstetrícia, a percepção da gestante não se afasta desta, onde se percebe o foco no corpo
gravídico ou na “barriga” da mãe (Caprara & Franco, 1999).

Segundo Martins (2002, citado por Dias & Deslandes, 2006), o acelerado processo de
incorporação tecnológica traz a negação dos aspectos subjetivos, fato que prejudica a relação
médico-parturiente. De acordo com Condernonsi e Stalba (2007), tais recursos tecnológicos
estão assumindo um papel de destaque na questão do diagnóstico e da assistência, porém,
usados como finalidade principal, fazendo com que a relação médico-paciente seja fator
secundário na intervenção.

O parto não é só mais uma função biológica do organismo, mas sim uma reestruturação
biológica, psicológica e social de todas as partes envolvidas no processo: mãe, pai, bebê, sendo
a equipe obstétrica grande colaboradora ou não para o sucesso dessa transição (Caprara &
Franco, 1999).

Relação Médico-Paciente

Condernonsi e Stalba (2007) ressaltam que antes do encontro de um profissional


treinado e uma pessoa singular que busca uma avaliação para possíveis doenças, ocorre a
relação entre duas pessoas. Neste contato interpessoal, são percebidas expectativas, exigências,
esperanças e desejos, fenômenos que estarão presentes entre o profissional de saúde, o paciente
e sua família.

A relação médico-paciente pode ocorrer de diversas formas, já que as expectativas de


ambos diferem entre si. Assim, a base da relação terapêutica está na comunicação, através da
qual o médico irá tomar conhecimento das queixas e histórico do paciente, analisando os
sintomas e chegando a um possível diagnóstico. O sucesso do tratamento está nessa
comunicação, já que o médico exerce influência direta sobre o paciente, sendo também seu
próprio instrumento de trabalho (Condernonsi & Stalba, 2007).

Maldonado e Canella (2003) afirmam que o profissional da área de saúde não deveria
utilizar apenas seu lado técnico, fato que impossibilita a utilização de sua dimensão humana,
parte do seu potencial terapêutico, o qual faz com que o profissional seja uma pessoa que trata
de pessoas. Em relação ao obstetra, este está diante de aspectos emocionais específicos do
período da gestação, parto e puerpério.

O ciclo gravídico traz o auge do desenvolvimento psicossexual feminino, no qual


haverá a reestruturação de sua identidade e ao mesmo tempo crises decorrentes de readaptações
em todos os âmbitos da vida da gestante, inclusive uma nova definição de papéis para mulher e
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para o homem. Essas grandes mudanças levam a perdas e ganhos, o que justifica a coexistência
de sentimentos ambivalentes. Desse modo, o conhecimento dessas mudanças psicológicas trará
ao obstetra mais elementos para a compreensão do comportamento da gestante ou do casal
(Condernonsi & Stalba, 2007).

Segundo Tedesco (1997, citado por Condernonsi & Stalba, 2007), o obstetra possui dois
pacientes: a grávida e o feto, os quais devem ser considerados como seres inteligentes e dotados
de vida emocional. Esse profissional está presente na vida de um casal em um momento de
mudança em seus ciclos vitais, encontrando-se mais vulneráveis, sendo suas atitudes de
extrema importância para o bom andamento do ato terapêutico.

Para Caprara e Franco (1999), a relação médico-paciente precisa evoluir de um modelo


de comunicação unidirecional para um bidirecional, chamado comunicacional, que vai além do
direito à informação. Este modelo tem por objetivo estabelecer uma relação empática e
participativa, que oferece ao paciente a possibilidade de decisão na escolha do tratamento.
Nesta relação, o médico obstetra pode acompanhar a escolha de um tratamento pelo paciente
sem que haja distanciamento, mas sim, um poder compartilhado com o reconhecimento da
capacidade de cada um, abrindo espaço para a vivência adequada das emoções. Contudo, uma
equipe interdisciplinar facilitaria o relacionamento e a tomada de decisões e, não somente,
obstetra e gestante (Condernonsi & Stalba, 2007).

O ciclo grávido-puerperal, como já foi mencionado, acarreta modificações e sensações,


sendo suas vivências semelhantes, independentemente do nível sócio-cultural, estando as
diferenças condicionadas ao contexto da gravidez (Maldonado & Canella, 2003). Assim, a
parturiente necessita de um suporte, um vínculo de confiança, o qual poderá ser proporcionado,
além da equipe competente, pelo acompanhante de sua escolha.

Recentemente, a sanção da Lei nº 11108, em abril de 2005, aprovada pelo Congresso


Nacional e sancionada pelo Presidente da República, em 07 de abril de 2005, assegura o
acompanhamento no parto em todos os hospitais públicos. A implementação da legislação
oportuniza aos profissionais de saúde compreender os aspectos que envolvem a prática, e novas
expectativas em relação à humanização do nascimento, já que ela garante às parturientes o
direito à presença de um acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.

Contudo, a vigência da lei não assegura sua total implementação, já que ocorre um
processo de reorganização de protocolos nos serviços de saúde e uma reestruturação de
logística e dos profissionais que estarão inseridos nesse contexto. De acordo com Domingues
(2000), a parturiente percebe a presença do acompanhante como apoio emocional e conforto
físico, ocasionando mudanças comportamentais, não somente para a parturiente, mas também
para a equipe de saúde, já que o mesmo possui uma função importante no momento do parto,
que deverá ser respeitado pela equipe e respeitar as funções da equipe assistencial.

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Diante de tal contexto, nasceu o interesse em realizar uma pesquisa para compreender a
percepção e conhecimento da equipe de saúde a lei do acompanhante e sobre a presença do pai
na sala de parto. Portanto, este trabalho tem por objetivo, verificar a percepção da equipe no
Centro Obstétrico sobre a presença do pai no trabalho de parto e parto hospitalar, buscando
visualizar as influências de tal percepção na forma como a assistência é prestada e se a lei tem
sido cumprida no hospital pesquisado.

Método

Escolha Metodológica

A coleta de dados ancorou-se em aplicação de questionário e observação de campo que


se integraram ao desenvolvimento da pesquisa, que se caracteriza pela abordagem mista,
quantitativa/qualitativa, combinando características das pesquisas.

O método quantitativo é considerado limitado, entre a comunidade científica, quando se


busca conhecer a subjetividade do sujeito. Esse método caracteriza-se por ser preciso, replicável
e objetivo, porém, fornece pouco respaldo para má compreensão global dos processos
psicológicos (Gihiglione & Richard, 1944, citados por Arrais,1997). Já o método qualitativo
observa o contexto psicológico, social e cultural do indivíduo, partindo de uma visão mais
ampla a ser abordada, não possibilitando replicação dos dados, e seus resultados dificilmente
observáveis (Gihiglione & Richard, 1944, citados por Arrais, 1997). Na pesquisa qualitativa, é
freqüente que o pesquisador procure entender os fenômenos, segundo a perspectiva dos sujeitos
estudados.

De acordo com Duffy (1987, citado por Neves 1996), combinar os métodos
qualitativo/quantitativo fortalece a pesquisa. As diferenças entre os dois métodos devem ser
empregadas em benefício do estudo, combinando os métodos no enriquecimento da análise. No
caso do presente estudo, verificou-se que ambos os métodos permitem obter dados mais
completos acerca da compreensão da percepção da equipe de saúde frente à participação do pai
no trabalho de parto e parto.

Sujeitos

Os sujeitos entrevistados foram escolhidos por conveniência, de acordo com a sua


presença durante os plantões das pesquisadoras no Centro Obstétrico, sendo este o critério
utilizado para inclusão na amostra. Foram realizados dois plantões com o objetivo de aplicar os
questionários, sendo quatro visitas destinadas à observação da rotina da equipe. A faixa etária
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dos entrevistados variou entre 19 e 63 anos e nas categorias profissionais, responderam aos
questionários: oito médicos, oito enfermeiros, sete técnicos em enfermagem e dois vigilantes de
portaria, que se dispuseram a colaborar com a pesquisa. Com o intuito de obter a cooperação
dos sujeitos, estes foram informados desde o começo sobre os objetivos da pesquisa, assinaram
um termo de consentimento livre e esclarecido e tiveram suas identidades preservadas com
utilização de nomes fictícios.

Instrumentos

Nesta pesquisa foram utilizados o questionário semi-estruturado e a técnica de


observação participante, com o objetivo de obter informações e verificar a rotina da equipe do
Centro Obstétrico durante o trabalho de parto e parto.

O primeiro instrumento utilizado foi um questionário onde haviam perguntas abertas e


fechadas, sobre os temas, a saber: identificação, opinião sobre a presença do pai no Centro
Obstétrico, conhecimento da Lei 11.108 (Lei do Acompanhante), percepção sobre as vantagens
e desvantagens, demanda de treinamento e sensibilização da equipe obstétrica em relação a este
tema. Houve flexibilidade na interação entre pesquisador e pesquisado, já que era possível
responder sobre dúvidas que iam surgindo durante o preenchimento do mesmo.

A observação participante permitiu o contato direto com os sujeitos durante a realização


de suas funções, inclusive durante um parto que teve o pai como acompanhante. Esta
observação foi realizada no box destinado aos partos normais e de baixo risco no Centro
Obstétrico.

Procedimento de coleta

A pesquisa foi realizada no Hospital Regional da Asa Sul de Brasília – HRAS (antigo
HMIB), responsável por 517 partos/mês, sendo o terceiro hospital com maior número de partos
no Distrito Federal. Pioneiro, desde 2002, na implementação do Programa de Humanização no
Pré-Natal e Nascimento (PHPN) do Ministério da Saúde, com incentivo da Secretaria de Estado
de Saúde do DF. Também implantou o “Projeto Maternidade Segura” e “Hospital Iniciativa
Amigo da Criança”, através de cursos de sensibilização dos profissionais de saúde do referido
hospital, promovidos e ministrados pelo então chefe da Unidade da Ginecologia e Obstetrícia,
Doutor Avelar de Holanda e pela enfermagem do Centro Obstétrico e Maternidade.

Da mesma forma, o HRAS foi pioneiro na implementação da Lei do Acompanhante,


com cursos de capacitação. Paralelo ao curso estava ocorrendo a construção do Bloco Materno
Infantil, com 11 boxes (para pré-parto, parto e pós-parto), quatro salas de alto risco com dois
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leitos, seis leitos de observação, quatro salas de cirurgia e uma sala de recuperação. O objetivo
deste Bloco materno é atender à população de baixa e média renda do Distrito Federal e
entorno.

A pesquisa foi realizada após prévio contato e autorização da chefia de enfermagem do


Centro Obstétrico e após o consentimento informado dos entrevistados, garantindo o anonimato
dos profissionais.

Num primeiro momento, foi aplicado um questionário semi-estruturado aos


profissionais de saúde, aliado à observação do ambiente do Centro Obstétrico durante as
atividades correntes.

Foram realizadas duas visitas ao centro obstétrico, em diferentes plantões. Fomos


recebidas pela enfermeira-chefe na primeira visita, que nos apresentou a equipe, para que
pudéssemos explanar sobre o objetivo da nossa pesquisa e, ao mesmo tempo, os questionários
foram entregues. As últimas quatro visitas foram a título de observação da rotina de trabalho da
equipe, nas quais ocorreram vários nascimentos, mas sendo observados apenas dois partos com
a presença do pai.

Os questionários foram respondidos pelos próprios sujeitos, enquanto as dúvidas eram


respondidas e realizadas conversas sobre o assunto. Destacando que, durante a aplicação do
questionário na primeira visita, ocorreu uma emergência com o nascimento de um bebê
prematuro, fato que movimentou a equipe de forma a interromper o preenchimento por alguns
minutos. Na segunda visita, a disponibilidade da equipe estava reduzida, pois somente seis
questionários foram respondidos.

Após a aplicação dos questionários, foram realizadas visitas para observação da equipe
atuando em sua rotina de funções. A observação participante permitiu um contato direto,
principalmente, com as enfermeiras, durante a execução dos cuidados com os recém-nascidos,
nas duas primeiras visitas de observação. Nas observações seguintes, foi possível presenciar
dois partos com o pai como acompanhante, não sendo verificada a presença de médico-
obstetra, somente de enfermeiras e técnicos de enfermagem.

Procedimento de Análise

Para o tratamento dos dados, foi utilizada a análise de conteúdo segundo Bardin (1977),
definida como: “Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por
procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores
(quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens” (Bardin, 1977, p. 42). De acordo
com a autora, a análise de conteúdo tem função heurística, na qual a análise enriquece a
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tentativa exploratória e aumenta a propensão à descoberta do conteúdo das idéias apresentadas.


Desta forma, foi realizada uma análise estatística simples para a compilação dos dados em
tabelas e procedimento de análise. Este procedimento facilitou a compreensão, falas e
apreensão das idéias principais da população estudada.

Os dados foram categorizados e divididos de acordo com as profissões, para que


pudéssemos abordar os relatos de diferentes formas. Em seguida, foi confeccionada uma tabela
para melhor visualização dos resultados, e realizado, também, uma análise quantitativa dos
dados categorizados de questões fechadas do questionário.

Resultados e Discussão

As respostas das questões fechadas do questionário foram agrupadas, para que fosse
possível uma comparação entre os dados colhidos e a realidade da Instituição, juntamente com
uma análise das respostas das questões discursivas. Por meio de uma análise quantitativa, a
freqüência das respostas fechadas foram compiladas.
A partir dos questionários e das observações, foram coletados dados que, após sua
compilação, deram origem a seis categorias: Procedimento tomado no centro obstétrico,
Protocolo utilizado na Instituição, Lei 11.108 – direito da parturiente, Alteração do
comportamento da parturiente na presença do pai, Alteração do comportamento da equipe na
presença do pai, Vantagens e desvantagens da presença do pai.

Categoria 1: Procedimento tomado no Centro Obstétrico em relação à presença do pai

Nessa categoria, em relação à presença do pai, percebe-se que a resposta mais freqüente
foi referente à obrigatoriedade da participação no curso de gestantes, oferecido pelo Hospital, e
a apresentação do certificado do mesmo, estando presente em 80% dos questionários. Contudo,
em uma de nossas visitas de observação, ocorreu um parto com a presença do pai, sendo este
estrangeiro (francês) e não tendo participado do curso, trazendo somente a alegação de ter
experiência por já ter participado de outro parto.

Neste mesmo dia, podemos observar também que um pai não pôde presenciar o
nascimento de seu filho por não ter o certificado do curso mencionado acima. Então, surge a
pergunta: Qual a diferença entre esses dois pais?

Segundo Deslandes (2005), o sentido mais utilizado para o termo humanização é o de


acolhimento, um cuidado atento às necessidades da gestante, do bebê e da família. Afirmando
que, essa postura não se restringe aos profissionais diretamente ligados ao processo da
gestação, parto e pós-parto, mas sim, deveria ser adotada por todos os profissionais desde a
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entrada na maternidade. Isto significa que os procedimentos tomados no Centro Obstétrico


deveriam estar ligados às necessidades da gestante e não ao que se adequaria à Instituição,
como por exemplo, a escolha de qual pai pode ou não acompanhar a parturiente mediante a
obrigatoriedade de um curso e certificado. Muitas gestantes são encaminhadas de outras
regionais, muitas nem tiveram a oportunidade de fazer um pré-natal adequado, chegando ao
hospital já em trabalho de parto. Com isso, o pai não teve a possibilidade de realizar o curso
para gestantes oferecido, logo, isso o impediria de participar do parto.

Observamos nesta categoria, que médicos, enfermeiras e técnicos em enfermagem


mantêm o discurso relacionado à presença obrigatória do certificado do curso de gestantes,
sendo que a fala mais freqüente é “é obrigatória a apresentação do certificado do curso de
gestantes oferecido pela regional”. Havendo mudança em relação aos agentes de portaria,
profissionais que recebem a parturiente e seus familiares no Hospital, que afirmaram não
participar dessa fase. Isso contradiz o que foi dito acima, que o processo de humanização aliado
à implementação da Lei do Acompanhante deveria priorizar as necessidades da mulher e seu
bebê. Mais uma vez, um direito concedido à mulher é colocado frente a uma condição da
Instituição e os primeiros profissionais a entrarem em contato com essa mãe se dizem não
incluídos em tal protocolo.

O próprio funcionamento do Hospital pode desencadear esse processo de


despersonalização pela rotina de procedimentos, a burocratização dominante, a existência de
diversas linhas de autoridade, a falta de participação na organização, podendo gerar este
sentimento de não fazer parte da administração e funcionamento da Instituição. Trazendo ainda,
a falta de interesse pela informação sobre os protocolos utilizados e como reagir diante de cada
situação (Jimenez, Herrer & Hernández, 2007).

Categoria 2: Conhecimento da Lei 11108 (Lei do Acompanhante) – Direito da Parturiente

Neste tópico, a resposta mais freqüente entre técnicos de enfermagem e enfermeiras é “a


lei que dá direito ao pai de acompanhar no momento do parto”. Contudo, a lei se refere ao
direito da parturiente de escolher um acompanhante, o que levaria a uma distorção do conteúdo
da Lei, por desconhecimento ou com a intenção de “retirada” desse direito da parturiente,
colocando-o como de escolha da Instituição. Interessante notar que as posturas contra ou a
favor da presença do pai no parto não estão associadas ao conhecimento da lei, ou seja,
independentemente do que se sabe sobre a Lei, isso não modificaria as opiniões. Verificou-se
que 44% possuem conhecimento sobre a lei, 32% desconhecem a mesma, enquanto 24%
conhecem parcialmente a lei.

A implementação da Lei do Acompanhante baseada nas necessidades da mulher e não


subjugada aos parâmetros da Instituição, poderia ser vista como um conjunto de práticas
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capazes de diminuir a assimetria das relações, corrigindo comportamentos autoritários dos


profissionais e permitindo que as gestantes possam participar nas decisões a serem tomadas em
seu atendimento (Deslandes, 2004, citada por Deslandes, 2005).

Outro fator interessante nesta categoria, foi que as respostas dos médicos, quando
questionados sobre a Lei, enfatizavam possíveis problemas de implementação, como por
exemplo, “falta de material”, “falta de privacidade para as outras parturientes” e apenas um dos
médicos que respondeu que a Lei “está ligada ao direito da parturiente de escolha de um
acompanhante”. Este colaborador foi o mesmo que em uma questão final indagou: “Por que o
Hospital tem que ser o primeiro a implementar tal lei?”. Pode-se perceber uma resistência por
parte dos médicos na implementação de novos protocolos, sobretudo em hospitais públicos em
que se observa uma cultura onde a postura é: ”estamos prestando um favor” ao atender o
paciente no que diz respeito a dar mais direitos aos pacientes.

Segundo Porto (1994, citado por Koifman, 2001), a incorporação tecnológica passou a
produzir, em vários níveis, efeitos colaterais, como a interferência na relação médico-paciente.
Essa racionalidade anatômica, que enumera e classifica doenças, mostrou-se insuficiente, já que
exclui aspectos importantes do adoecimento do indivíduo. Koifman (2001) afirma que a
onipotência e o autoritarismo são tentativas de negar a morte, afastando subjetividades do
paciente e do médico. Essas tentativas de negação da morte afastam os médicos da consciência
de fragilidade da natureza humana, que os mantêm onipotentes na relação médico-paciente.
Esta mesma postura se observa na obstetrícia ainda que, neste caso, não se trate apenas de
doença, mas de um momento que requer cuidados especiais.

Há outra resposta interessante, a de um médico que relatou “dependendo do contexto, aí


eu verifico se deixo ou não o pai participar”, indicando a onipotência médica característica, que
ilustra ainda mais o distanciamento entre paciente e médico. Segundo Condernonsi e Stalba
(2007), muitos médicos transmitem pouca informação aos pacientes sobre seu estado de saúde
e sobre os possíveis tratamentos. Esse relacionamento paternalista mantém o paciente
dependente do julgamento e das idéias do médico. Este comportamento distante protege o
médico dos seus sentimentos em relação à situação, devido à falta de certeza no sucesso do
tratamento (Condernonsi & Stalba, 2007).

Em relação aos agentes de portaria, foi constatado o desconhecimento da Lei do


Acompanhante, o que demonstra uma fragilidade no sistema de protocolo, já que, como foi dito
anteriormente, estes são os primeiros profissionais a entrar em contato com a parturiente e seus
familiares.

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Categoria 3: Alteração do Comportamento da Parturiente na Presença do Pai

Nesta categoria, em relação aos profissionais de medicina, enfermagem, técnicos em


enfermagem e agentes de portaria, verificou-se que 72% enfatizou a tranqüilidade e o
sentimento de segurança da parturiente com a presença do pai. Segundo Bruggemann, Osis e
Parpinelli (2007), o bem-estar da parturiente deve ser assegurado pelo livre acesso do
acompanhante de sua escolha, durante o nascimento e em todo o período pós-parto. Estudos
sobre apoio demonstram evidências científicas que o respeito à escolha da futura mãe é uma
prática útil, pois a presença do pai, por exemplo, é uma fonte segura de suporte emocional,
colaborando para uma evolução mais rápida do parto.

Para Condernonsi e Stalba (2007), a vivência da gestação sedimenta a identidade da


mulher e oferece condições para o crescimento pessoal. Contudo, é um período de crise por
exigir reestruturações e readaptações, com a alteração e uma nova definição de papéis tanto
para a mulher quanto para o homem. Nesse período de crise, há o aumento da sensibilidade
levando a mulher a ficar irritada e vulnerável. Fato que reforça a necessidade da presença do
acompanhante, em especial o pai, no momento do parto, já que ele, como foi mencionado nas
falas acima, traz segurança e suporte emocional para a parturiente facilitando o
desenvolvimento do trabalho de parto.

Essa relação médico-paciente acaba seguindo o modelo da relação de subordinação do


profissional à instituição de saúde, baseada em dominação e pressão. Deste conflito, resulta o
autoritarismo e onipotência por parte dos médicos, restando à parturiente a submissão
(Maldonado & Canela, 2003).

Categoria 4: Alteração do Comportamento da Equipe na Presença do Pai

As respostas nesta categoria traziam como conteúdo a tensão da equipe, sendo


verificados 68% das respostas representadas em falas como: “não foi boa a presença do pai”, “a
equipe está dividida em favoráveis e desfavoráveis, sendo que estes se sentem observados e
vigiados mais de perto por um familiar” e “mudanças devem existir, mas sem sentido de
vigilância ou politicagem”, sendo estas respostas dadas por médicos e alguns técnicos de
enfermagem. Em relação aos enfermeiros as respostas focalizaram os aspectos mais positivos,
como por exemplo, “o pai passou quase desapercebido”, mas também ressaltaram a diferença
do atendimento “a paciente teve uma assistência diferenciada”.

Pôde-se perceber, no início da nossa coleta de dados, que a enfermagem mostrou-se


mais receptiva à presença do pai durante o trabalho de parto, além de terem preenchido o
questionário com as respostas mais completas e que traziam uma visão positiva da presença do
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pai no momento do parto. A segurança foi indicada como fator relevante. Uma técnica de
enfermagem acredita que a presença do pai “dá mais segurança à mãe, acalmando-a”. Uma
enfermeira concorda com: “a mãe se sente mais segura com a presença do parceiro num
momento importante e difícil em sua vida”. Um médico também se mostrou favorável quando
diz que acredita “que seria mais vantajoso para a parturiente por permitir maior segurança
emocional”.

Segundo Nakano e Mamede (1994), a presença do pai na sala de parto não pode ser
resolvida com uma receita apenas, mas sabe-se que essa presença pode desempenhar um papel
importante na relação mãe-filho-pai. É importante obter essa relação com o obstetra, já que o
pai é parte atuante, aumentando a naturalidade e trazendo segurança para a parturiente neste
momento que mescla felicidade e medo. A presença do pai gera mudanças benéficas na
assistência fornecida pela equipe de saúde, fortalecendo as ações de humanização na
instituição. Este tipo de apoio não acarreta ônus para instituição ou para mulher, sendo que a
condição socioeconômica não é um fator limitante para sua efetivação, principalmente na rede
pública (Bruggemann, Parpinelli & Osis, 2002, citados por Kitahara, Rossi & Grazziotin,
2006).

Segundo Boaretto (2003), a presença do pai representa um dos itens de maior facilidade
de implementação em termos de custos e de adequação da área física, contudo, o livre acesso
dos pais aos serviços enfrenta, muitas vezes, restrições dos profissionais de saúde, como
pudemos observar nessa pesquisa. A política de saúde na atenção ao parto ocupa um importante
espaço na agenda sanitária na maioria dos países. O momento do parto é de grande intensidade
emocional, afetando profundamente as mulheres, os bebês, as famílias, com efeitos persistentes
sobre a sociedade. O aumento da autonomia e do poder de decisão das mulheres está associado
à valorização do parto e nascimento humanizado (Boaretto, 2003).
Pode-se supor um choque cultural nesta tentativa de implementação da Lei do
Acompanhante, entre o modelo seguido pelos médicos e o modelo de humanização do parto, já
que neste último, a mulher teria seu lado ativo no parto restaurado, pois, segundo o MS (2001,
citado por Boaretto, 2003), a mulher parturiente está totalmente insegura, submetendo-se as
todas as ordens e orientações, cada vez mais distante da sua condição ativa no parto.

Categoria 5: Vantagens da Presença do Pai

Em relação às vantagens da presença do pai no parto, notou-se que 84% dos


entrevistados já participaram de um parto com a presença do pai, apontando com maior
freqüência a tranqüilidade e segurança para a parturiente, sendo mencionado o vínculo precoce
entre pai, mãe e bebê. Kitahara, Rossi e Grazziotin (2006) apontam a gestação, o parto e o
nascimento como processos naturais que envolvem aspectos biológicos, psicológicos e sociais,
com grandes transformações no corpo e na vida emocional da mulher. Isso torna importante o
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acompanhamento pelos profissionais de saúde e familiares durante estes acontecimentos


singulares na vida de cada mulher, para que a gestação seja saudável e o parto seguro. Na Lei
11.108 (Brasil, 2005) consta que o Programa de Humanização do Ministério da Saúde prevê a
possibilidade ao pai de maior participação no momento do parto, assegurando um ambiente
agradável em que a gestante sinta apoio e conforto emocional na companhia do pai do bebê
(sobretudo, no que se refere à assistência prestada a parturiente durante o pré-natal, parto e
puerpério).

Uma enfermeira acrescentou o processo de formação de vínculo como justificativa da


importância da participação do pai: “porque de acordo com alguns estudos, favorece a
formação precoce do vínculo pai-filho e diminui as intervenções”. Enquanto outra enfermeira
apontou a vida sexual e reprodutiva do casal como integrante do nascimento: “porque o
nascimento integra a vida reprodutiva e sexual do casal, não somente da mulher”.

A participação do pai no parto possibilita o suporte psicossocial, o compartilhamento da


experiência pelo casal e a formação do vínculo pai-bebê. A presença do pai traz benefícios à
saúde da mãe e do bebê, oferecendo a oportunidade de mãe e pai compartilharem o nascimento
(Domingues, 2002; Hodnett, 2001, citado por Carvalho, 2003). Essa oportunidade alcança a
limitação cultural dada à gestação e parto como eventos apenas femininos, fazendo com que a
paternidade não seja somente um evento socioeconômico, mas sim, a participação efetiva de
ambos os pais.

A presença do pai pode reduzir a necessidade de medicações para aliviar a dor, para
reduzir o tempo de trabalho de parto, o número de cesáreas e de casos de depressão pós-parto
(Domingues, 2002). Segundo Lowndermilk et al. (2002, citados por Kitahara, Rossi &
Grazziotin, 2006), o desconhecimento da linguagem técnica dos profissionais, o ambiente
estranho pode provocar insegurança na gestante, fato que leva à tensão, medo e aumento de dor
e com isso, a presença de uma pessoa de confiança (o pai) transmite mais segurança.

Conceição, Macedo e Grazziotin (s/d) apontam que o fato de a mulher se sentir


protagonista durante o parto, de ser ativa percebendo o nível de controle sobre o trabalho de
parto, é determinante para uma boa experiência de parto. Isto demonstra a necessidade da
mulher de ser tratada como sujeito ativo e participante de todo o processo e não como mero
objeto de estudo, o que fica claro quando lhe é permitido escolher seu acompanhante durante o
parto.

Adicionais as vantagens descritas acima, um médico citou como outra da presença do


pai “verificar in loco as deficiências mascaradas no serviço público”, demonstrando mais uma
vez a resistência à Lei do Acompanhante no hospital, colocando em foco as dificuldades da
instituição que atrapalhariam a implementação da Lei.

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Segundo Jimenez, Herrer e Hernández (2007), a pressão assistencial e a sobrecarga de


trabalho destacam-se como situações causadoras de estresse crônico, agravando-se com a falta
de recursos humanos e materiais para concluir a tarefa assistencial. O profissional
sobrecarregado percebe os pacientes como não atendidos corretamente, facilitando o
surgimento de erros e dificuldades nas relações interpessoais. Os recursos humanos e técnicos,
muitas vezes, não estão de acordo com os objetivos assistenciais estabelecidos, trazendo
situações de desgaste para os profissionais, o que interfere em seu trabalho e relação com o
paciente. Este fato pode aumentar a resistência à novas rotinas, já que haveria a necessidade de
treinamento, ambientes adequados, o que, na maioria das vezes, não acontece paralelamente ao
surgimento dos novos protocolos de tratamento.

O momento do parto introduz mudanças muito intensas para o casal, pois é uma
situação próxima e irreversível, afirmam Maldonado, Dickstein e Nahoum (2000).
Montgomery (1992) afirma que a união entre o casal amenizará as sensações que estão por vir,
promovendo a solidariedade e o vínculo mãe, pai e bebê e, não apenas, o parto como evento
exclusivamente feminino.

O Ministério da Saúde reconhece os benefícios e a ausência de riscos relacionados à


presença de um acompanhante no momento do parto, recomendando esforços para que todas as
parturientes tenham uma pessoa de sua escolha, durante o trabalho de parto e pós-parto, para
dar-lhe segurança e conforto (Bruggemann et al., 2007).

Categoria 6: Desvantagens da presença do pai

Verificou-se que 76% dos entrevistados responderam: “o homem fica nervoso por não
entender o que está acontecendo e fica agressivo”, “despreparo do pai”, “constrangimento para
as outras parturientes” e “receio de desentendimento entre esposo e médico”.

Pinto (2001, citado por Bruggemann et al., 2007), também verificou em seus estudos
que os profissionais julgam a presença do acompanhante fator prejudicial ao atendimento,
devido à falta de preparo deste para enfrentar a situação. Segundo Brüggemann et al. (2007),
outros estudos sobre o tema percepções de profissionais e acompanhantes escolhidos pelas
parturientes demonstraram que os profissionais de saúde apresentaram rejeição inicial,
preconceito, medo de suposta violência dos acompanhantes (pais) e dos possíveis
questionamentos sobre a conduta profissional. Carvalho (2003) cita o preconceito de classes, já
que os homens pobres são vistos como descontrolados na sexualidade e na agressividade.

Alguns profissionais ainda relatam que a parturiente demonstra um comportamento


inadequado na presença do pai como, por exemplo, estarem desestabilizadas. Isso reflete que os
profissionais de saúde esperam um comportamento de passividade adequado da parturiente e de
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aceitação das circunstâncias, centrado no modelo de assistência da Instituição e não nas


necessidades da mulher.

Contudo, um dos médicos entrevistados relatou: “tive que ser mais enérgico mantendo a
ética com a paciente, pois existe a tendência ao apoio do esposo em detrimento da orientação
médica”. Magalhães e Glina (2006) apontam a complexidade do relacionamento entre médicos
e pacientes e entre médicos e instituições públicas, que aumentam a cada dia, devido ao caráter
estressante inerente à tarefa do médico aliada às condições precárias de trabalho nos serviços da
rede pública.

Conclusão

O presente trabalho teve como objetivo compreender a percepção dos profissionais de


saúde frente à participação do pai na sala de parto e parto. Para isso, algumas categorias
profissionais do HRAS foram questionadas sobre o tema. Os resultados demonstraram que, a
categoria médica, em parte, discorda da lei por desconhecimento da mesma, outra parte
discorda do texto da lei por entenderem que o acompanhante interfere no trabalho e desconhece
os procedimentos médicos. Na totalidade, a categoria acredita que o hospital não tem estrutura
para receber o acompanhante e, portanto, demonstra-se resistente à implementação da lei
11.108 no hospital supracitado.

As enfermeiras entrevistadas possuíam maior conhecimento da Lei, como também


mostraram concordância com seu teor e prática. São multiplicadoras e esclarecedoras, cuidando
para que a Lei seja cumprida, divulgando os direitos das pacientes e favorecendo a entrada e
permanência dos pais ou outros acompanhantes durante o trabalho de parto e parto.

Já os técnicos de enfermagem, em sua maioria, divergem da categoria acima.


Paradoxalmente, a maioria nem sequer conhecia o teor da Lei do Acompanhante, apenas não
concordavam com a rotina hospitalar que autorizava a entrada do pai no parto. Esta categoria
justificou o desacordo, apontando a falta de privacidade das outras pacientes e falta de estrutura
física hospitalar para recepcioná-los, refletindo a opinião da categoria médica.

Apesar de não terem conhecimento do teor da Lei do Acompanhante, interessante notar


que as agentes de portaria do centro obstétrico concordavam com a presença do pai durante o
trabalho de parto e parto.

As percepções em relação à presença do pai no parto foram diversas para cada categoria
profissional aqui estudada. Os médicos mostraram-se incomodados com a presença do pai,
demonstrando a não-aceitação de um “estranho” em seu campo de atuação. As enfermeiras,
provavelmente, pela formação acadêmica mais voltada para as questões sociais, afetivas e
humanitárias estão mais de acordo com a presença do pai durante o parto. Os técnicos de
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enfermagem têm formação mais técnica, com pouca informação acerca da legislação, ética e
cidadania. Por outro lado, as agentes de portaria, mesmo com menor escolaridade e nenhuma
formação na área da saúde, mostraram-se a favor. A proximidade desta categoria com família e
suas angústias, na porta do hospital, parece ter influência relevante na aplicação da Lei do
Acompanhante. Porém, a permissão da entrada do pai fica a mercê da caridade, dependendo da
sensibilidade de cada uma destas profissionais.

Assim, as respostas dos profissionais entrevistados puderam mostrar a percepção de


cada categoria em relação à presença do pai durante o nascimento de seu filho, atingindo,
assim, o objetivo da presente pesquisa. A metodologia empregada também se mostrou
adequada para atingir os objetivos, apesar da influência da presença da enfermeira facilitadora
em uma das visitas.

A metodologia aplicada foi eficiente para a pesquisa, apresentando, porém, algumas


fragilidades, tais como: número de profissionais entrevistados, dificuldade de adesão,
dificuldade de entrevista no horário do trabalho e interferência da chefia do Centro Obstétrico.
Esta interferência estava vinculada à atitude da enfermeira chefe de entregar os questionários,
sem esperar pela adesão da equipe, já trazendo um discurso sobre as vantagens de participar da
pesquisa. O trabalho apresenta, entretanto, potencialidade de disseminação da informação,
elucidação de questões correlatas ao tema estudado e de sensibilização do corpo de trabalho. A
pesquisa não tem a pretensão de esgotar o assunto em si, sugerindo estudos futuros. Vale
também, investigar a percepção do pai frente à equipe de saúde, de como ele pode contribuir no
momento do parto.

Consideramos a pesquisa importante, por nos permitir conhecer a visão da equipe de


saúde acerca da participação do pai, identificando pontos que devem ser trabalhados e possíveis
ajustes para o cumprimento da lei no trabalho de parto e parto. Ressaltamos a necessidade de
capacitação do pessoal envolvido na rotina de trabalho do Centro Obstétrico. Pensamos que
essas atividades devem ser realizadas por psicólogos, devido o potencial de interagir e utilizar-
se dos momentos do pré-parto e parto para explorar a sensibilidade da equipe. Neste contexto, o
papel do psicólogo hospitalar é essencial para apoiar, e levar a equipe a se relacionar
efetivamente com o pai. Com isso, adquire um papel para harmonia da equipe e do pai,
podendo facilitar o entendimento da situação, diminuindo a distância entre os mesmos. Com a
realização da pesquisa foram agregados valores, com uma visão ampliada da influência sob a
participação do pai no momento do parto.

Espera-se que a pesquisa tenha contribuído para o aprimoramento das políticas públicas
no Brasil e para o processo de humanização no parto, mostrando a necessidade de maior
conhecimento da lei e consenso quanto a sua aceitação por parte da equipe de saúde. O presente
estudo pode contribuir para estimular e subsidiar a implementação da legislação em vigor,

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possibilitando para que as parturientes possam saber dos seus direitos tendo o apoio do
acompanhante.

Uma política de educação permanente facilitaria a incorporação do contexto


psicossocial ao modelo biomédico, pois, segundo Marco (2005), o modelo biopsicossocial
proporciona uma visão mais abrangente do ser em seus aspectos físicos, psicológicos e sociais.
Com isso, a inserção de tal modelo em treinamentos, poderia sensibilizar a equipe quanto à
necessidade da presença do pai no momento do parto, ressaltando a necessidade de que o
profissional, além do aprendizado e evolução das técnicas, evolua também as capacidades
relacionais para o estabelecimento do vínculo adequado e compreensão da dimensão
psicossocial ligada ao parto e pós-parto. Além disso, a fiscalização das autoridades
institucionais favoreceria o cumprimento definitivo da referida Lei, em toda a rede hospitalar.

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145
16
Revista Psicologia e Saúde 152

Proposta de atuação do psicólogo hospitalar em maternidade e UTI


neonatal baseada em uma experiência de estágio
Motion performance psychologist’s hospital in maternity and newborn ICU based on
a stage experience
Propuesta para el papel del psicólogo de la salud en la maternidad y UCI neonatal
basado en una experiencia stage
Alessandra da Rocha Arrais
Universidade Católica de Brasília
Mariana Alves Mourão

Resumo
Atualmente, já é possível encontrar muitos escritos a respeito da atuação de psicólogos em hospitais, principalmente
em relação a seu papel, que geralmente está associado a ajudar pacientes e acompanhantes a lidarem com suas
doenças e hospitalização. Porém, encontra-se pouco na literatura a respeito da atuação do psicólogo hospitalar
aplicada à obstetrícia. Há muitos livros e artigos que tratam a respeito da relação mãe/bebê, dos sentimentos
e emoções de casais que passam pela gestação, parto e pós-parto. Porém, não há uma sistematização de como
podemos usar este conhecimento na prática dos psicólogos nas maternidades e UTIs Neonatais. Pretendemos
com este trabalho compartilhar com os psicólogos hospitalares nossa experiência em uma maternidade e na UTI
Neonatal de um hospital privado, sugerindo uma proposta que construímos para estruturar e facilitar a atuação de
psicólogos nesta área. O mesmo é resultado de um estágio acadêmico de pós- graduação na Universidade Católica
de Brasília-UCB, realizado em uma maternidade particular de Brasília.
Palavras-chave: Psicólogo hospitalar; Maternidade; UTI Neonatal.

Abstract
Currently, it is possible to find many writings about the role of psychologists in hospitals, especially in relation to
their role, which is usually associated with help patients and caregivers cope with their illness and hospitalization.
However, there is little in the literature about the performance of hospital psychologists applied to obstetrics. There
are many books and articles dealing with the relationship mother / baby, the feelings and emotions of couples
who go through pregnancy, childbirth and postpartum. However, there is a systematization of how we can use
this knowledge in practice of psychologists in hospitals and NICUs. We intend to share this work with health
psychologists our experience in maternity and neonatal ICU of a private hospital, suggesting that a proposal to build
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS

structure and facilitate the activities of psychologists in this area. The same is the result of an academic internship
graduate from the Catholic University of Brasilia-UCB, held in a private maternity hospital in Brasilia.
Key-words: Hospital psychologist; Maternity; NICU.

Resumen
En la actualidad, es posible encontrar muchos escritos sobre el papel de los psicólogos en los hospitales,
especialmente en relación con su papel, que generalmente se asocia con ayudar a los pacientes y cuidadores hacer
frente a su enfermedad y hospitalización. Sin embargo, hay muy poco en la literatura sobre el desempeño de los
psicólogos del hospital se aplican a la obstetricia. Hay muchos libros y artículos que tratan de la relación madre
/ hijo, los sentimientos y las emociones de las parejas que pasan por el embarazo, el parto y el posparto. Sin
embargo, existe una sistematización de cómo podemos utilizar este conocimiento en la práctica de los psicólogos
en los hospitales y las UCIN. Tenemos la intención de compartir este trabajo con psicólogos de la salud de nuestra
experiencia en la maternidad y la unidad de cuidados intensivos neonatal de un hospital privado, lo que sugiere que
la propuesta de construir la estructura y facilitar las actividades de los psicólogos en este ámbito. El mismo es el
resultado de una pasantía de postgrado académico de la Universidad Católica de Brasilia-UCB, que tuvo lugar en
una maternidad privada en Brasilia.
Palabras-clave: Psicóloga del hospital; Maternidad; UCIN.

INTRODUÇÃO da Universidade Católica de Brasília, realizado na


maternidade e UTI Neonatal (UTIN) de um hospital
Este trabalho é resultado da experiência de estágio privado de Brasília, no ano de 2011. Pretende-se expor
acadêmico de pós- graduação em Psicologia Hospitalar a rotina de assistência psicológica construída nestes
setores, as quais prevêem uma prática humanizada de
atendimento. Para tanto, abordaremos os desafios de
Endereço 1 : Campus Avançado Asa Norte - SGAN 916 Módulo B um serviço de obstetrícia, assim como questões que
Avenida W5 - CEP: 70790-160 - Brasília/DF.
permeiam a internação de gestantes, parturientes,
Endereço 2: SHA conjunto 6 Chácara 18F lote 5A – Arniqueiras,
Brasília-DF. CEP:71996-165. puérperas e neonatos. A partir de um enfoque da

Revista Psicologia e Saúde, v. 5, n. 2, jul. /dez. 2013, p. 152-164 ISSN: 2177-093X


Revista Psicologia e Saúde 153

psicologia hospitalar, apresentaremos uma proposta Baltazar; Gomes e Cardoso (2010) que afirmam que a
de atuação para psicólogos que atuam ou pretendem construção de rotinas e protocolos em UTINs permite
atuar na área da obstetrícia, que foi construído que os próprios psicólogos possam eleger as famílias
por nós, durante o referido estágio curricular, que e bebês que demandam acompanhamento regular,
facilitou para estruturamos a nossa atuação nesta área colocando-se disponível a eles para as questões que
específica. surgem durante a internação. Assim, defendemos
É importante ressaltar que a demanda para a que a inserção do psicólogo em maternidades e
atuação do psicólogo nesta instituição partiu da UTINs implica na organização de uma proposta de
diretoria que nos deu total liberdade para atuarmos rotina e participação quotidiana nos acontecimentos
em todos os setores do hospital. A maternidade e a do serviço, numa proposta que não se restrinja a
UTIN, setores pelos quais eu estive como responsável, pareceres psicológicos, mas na abordagem regular
especificamente não tinham demandas formadas, foi das famílias e seus bebês. O psicólogo inserido
preciso que nós trabalhássemos esta demanda. neste contexto obstétrico, a partir de um enfoque da
Na maternidade é mais trabalhoso construir a psicologia hospitalar, irá acolher os pais e auxiliá-
demanda e fazer com que as pessoas percebam que los na vinculação entre si e com o bebê internado
ela existe a partir de cada paciente, principalmente (Terreno, 2012). A escuta destes pais e a compreensão
porque a maioria das pacientes atendidas neste setor de seus conteúdos internos é fundamental para o
“não está doente, apenas grávida”, e as pessoas não entendimento da parentalidade e de como isso está
costumam considerar que haja sofrimento no ciclo implicado diretamente com as manifestações do bebê.
gravídico-puerperal, afinal este seria um processo
natural e instintivo e “a chegada de um bebê só pode PROPOSTA DE ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO
trazer alegrias” (Arrais, 2005, p. 30). NA OBSTETRÍCIA
Há poucos casos para os quais a equipe de O quadro 1 a seguir apresenta a síntese de todas
psicologia é solicitada a acompanhar, geralmente as atividades que consideramos que o psicólogo
para os casos em que os bebês têm alguma má hospitalar pode e deve realizar em uma maternidade
formação, alguma deficiência, ou quando há alguma e na UTIN. Esta proposta de atuação baseou-se
intercorrência decorrente dos partos, ou ainda em na nossa prática construída ao longo de alguns
casos de aborto e óbitos, pois o sofrimento das mães anos de experiência na área da obstetrícia, que foi
fica mais evidente nestas situações. Raramente somos sistematizada na situação de estágio curricular, no ano
chamadas para intervir de forma a proporcionar a de 2011, e que se mostraram viáveis e eficazes para a
psicoprofilaxia das gestantes e puérperas. clientela atendida; bem como na literatura disponível
No entanto, ao longo do trabalho desenvolvido sobre a atuação do psicólogo nesta área específica. A
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS

nestes setores, foi ficando claro ser de grande sistematização das atividades que o psicólogo pode
relevância a atuação do psicólogo na obstetrícia. e deve realizar em uma maternidade e na UTIN, foi
Porém, nos deparamos com pouco respaldo teórico o principal objetivo deste artigo, onde buscar-se-á
para nossa atuação. Observamos uma lacuna teórica para cada atividade proposta, o respaldo teórico,
existente na literatura disponível na área da psicologia dialogando com os estudos e propostas realizadas
aplicada à obstetrícia, quanto à sistematização de nesta, nos últimos anos.
protocolos de atuação do psicólogo neste serviço. Em
nossa busca bibliográfica, não encontramos sequer DISCUSSÃO DA PROPOSTA DE ATUAÇÃO
um artigo que abordasse o papel do psicólogo, num 1. Ronda: A atividade de ronda refere-se a uma
centro obstétrico, durante o trabalho de parto e parto, caminhada junto a gestante pelos corredores do
a maioria deles se concentra na atuação no pré-natal hospital, entrada em enfermarias, UTIN e sala de
ou no aleitamento. Pouco também se fala sobre o parto (Camacho, 2006). Nesse momento o psicólogo
atendimento à morte na maternidade. O óbito perinatal pode utilizar-se da escuta terapêutica e de técnicas
aparece basicamente em artigos sobre a atuação nas para controle da ansiedade e dor.
UTIs Neonataia (UTINs). Com a ronda o psicólogo hospitalar possibilita
Os poucos artigos encontrados como o de Baltazar; às gestantes, puérperas e pais de UTIN, a expressão
Gomes e Cardoso (2010), reforçam a importância de uma demanda, ele reconhece a possibilidade de
de sistematizar rotinas e criar protocolos para uma haver um sofrimento, mesmo que a gravidez tenha
prática do o psicólogo em UTIN. Portanto, este sido planejada, aceita e que tudo tenha corrido bem
cenário lacunar, nos motivou a escrever uma proposta durante a gestação, parto e pós-parto. Buscamos
de atuação do psicólogo em maternidades e UTINs, sempre mostrar às gestantes e as puérperas que
na esperança de que a mesma possa inspirar e auxiliar elas têm o direito de sentirem-se tristes, mesmo ao
psicólogos interessados nesta área, contribuindo com realizarem o sonho de quase toda mulher “o sonho
a evolução da psicologia hospitalar como um todo. de ser mãe”. Procuramos então fazê-las falar sobre
Para justificar a relevância deste artigo, trazemos este sofrimento. O que fazemos é desmistificar
esta idéia, sinalizar que pode haver sofrimento, as

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Revista Psicologia e Saúde 154

Quadro 1
Proposta do protocolo de atuação do psicólogo na maternidade e UTIN
Atividades Definição/ Objetivos Operacionalização
Esclarecer dúvidas e auxiliar na ambientação do Visita realizada aos os apartamentos/
paciente ao hospital, aos procedimentos que estão enfermarias nas quais os (as) pacientes
sendo feitos e ao tratamento; estão internados (as) bem como em
Fornecer orientações sobre a gestação, parto, pós- todos os leitos da UTIN.
parto e UTIN; É realizada diariamente e visa acolher
Triagem de demandas: identificar possíveis o (a) paciente e detectar possíveis
1. Ronda
pacientes para admissão na psicologia; demandas para a psicologia.
Desmistificar o mito da “mãe perfeita”;
Realizar uma breve avaliação psicológica do (a)
paciente e breve exame do estado psíquico do (a)
mesmo (a)
Proporcionar uma escuta atenta à paciente que Atividade que proporciona atendimento
passa por um momento delicado de mudanças individual às parturientes, puérperas
intensas; que por algum motivo estejam passando
Quando necessário desenvolver avaliação por alguma dificuldade, devido ao
2 . psicológica, por meio de testes específicos. (por processo de internação, gestação, parto,
Atendimento exemplo, nos casos dos transtornos emocionais do dificuldades com a amamentação, entre
de Apoio pós-parto); outros.
Individual às Realizar os encaminhamentos para outros Verificamos as necessidades das
gestantes e profissionais parturientes e puérperas e trabalhamos
puérperas Resgatar sua auto-estima e autoconceito; suas dificuldades;
Assegurar a parturientes/puérpera a possibilidade
de manutenção de uma boa qualidade de vida, em
vista das mudanças.

Esclarecer sobre os procedimentos que estarão Atendimentos de apoio e orientação à


sendo feitos no período de internação; família das parturientes e puérperas,
Esclarecer as dúvidas relacionadas aos que podem ser realizados de
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS

procedimentos com o bebê e também com a forma individual ou em grupos de


3 . paciente; acompanhantes.
Atendimento Orientar quanto às mudanças que ocorrerão na Escuta diferencial que visa manter o
de Familiares rotina da família, e a forma como poderão proceder; equilíbrio e o bem estar da família diante
e Acompa- Favorecer a socialização e interação da paciente e do momento em que poderão sentir-se
nhantes da família com equipe; ameaçados, inseguros ou preocupados.
Oferecer um panorama do que poderá ocorrer a Estimular a participação dos pais e
nível emocional com a parturiente/puérpera e de familiares durante o trabalho de parto e
que forma agir. parto;
4 . • Preparar psicologicamente a paciente para • Assistência à parturiente no pré e
Preparação enfrentar parto Cesário e normal. pós-parto. Preparação emocional e
para o • Incentivar a participação do pai ou do psicológica para o momento do parto.
trabalho de acompanhante durante todo o processo • Acompanhamento da parturiente
parto e parto • Oferecer atenção integral à parturiente de forma durante o trabalho de parto com
que ela não se sinta desamparada realização de massagens para alívio da
• Proporcionar um parto o mais humanizado dor e suporte emocional
possível, segundo as recomendações da OMS. • Acompanhar a parturiente na sala
• Fazer o manejo da dor e da ansiedade de parto de forma a proporcionar
segurança e apoio no momento do
parto seja natural ou Cesário

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Revista Psicologia e Saúde 155

5 . • Estimular o vínculo entre os pais e o bebê; • Favorecer para a humanização do


Atendimento • Estimulação sensorial global aos bebês especiais. atendimento aos bebês na UTIN
aos bebês na
UTIN
Proporcionar segurança e conforto aos pais e Acompanhar os pais ou parentes do
familiares dos bebês, de modo que cada um receba bebê à visita a UTIN e/ou realização
acompanhamento e acolhimento específico, diante de atendimentos aos familiares
de cada caso; proporcionando um suporte emocional
Estabelecer um vínculo maior dos pais com o e favorecendo para que a visita possa
6 . hospital e com a equipe, para que então se sintam ser vivenciada da melhor forma possível
Atendimento mais familiarizados e, portanto mais tranqüilos tanto para os visitantes quanto para o
e acompanha durante o período de internação do bebê; bebê
mento das Promover ambientação a UTIN orientando quanto Estimular o contato físico entre pais e
famílias com às rotinas do setor; bebê
bebês na Evitar com que esta vivência seja traumática para Estimular a comunicação pais bebês,
UTIN os familiares minimizando traumas futuros; especialmente o mamanhêz;
Possibilitar aos familiares expressar suas
dificuldades e sentimento em relação a esta
situação;
Identificar possíveis necessidades de atendimentos
individuais sistemáticos.

Trata-se de um novo conceito em atendimento Atendimento em grupo semanal, aberto.


perinatal, voltado para uma maior humanização Oferecer uma escuta qualificada e
do processo gestacional e do parto e de construção diferenciada sobre processo da gravidez,
da parentalidade. O programa visa à integração da fornecendo assim um espaço onde a
gestante e da família a todo o processo gravídico- mãe\pai possa expressar seus medos e
puerperal, através de encontros temáticos suas ansiedades,
com ênfase na preparação psicológica para a Favorecer a de troca de experiências,
7. Pré-natal
maternidade e paternidade. descobertas e informações, com extensão
psicológico
Prevenir a depressão pós-parto. à família, em especial ao cônjuge e
Desmistificar o papel da psicologia durante o ciclo as avós, visando à participação na
gravídico-puerperal gestação/puerpério e compartilhamento
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Prevenção de problemas emocionais da parentalidade.


O apoio psicológico ao casal grávido para Orientá-las procurar ajuda caso
construção da parentalidade identifiquem uma mudança patológica.
Proporcionar apoio e orientação
relacionados à experiência vivenciada
8 .
Visa atender grupos homogêneos de pessoas para pelo grupo e favorecer a troca de
Atendimento
trabalhar as problemáticas vividas por cada grupo. experiência entre os participantes
psicológico
de forma que eles possam se ajudar
de apoio a
mutuamente.
grupos tais
Preparar casais grávidos para o parto
como: pais
e pós-parto minimizando as dúvidas e
de UTIN;
ansiedades provocadas pela gestação e
pais de bebês
nascimento do bebê;
de 0 a 1
Diminuir a sensação de fracasso e
ano; casais
impotência dos pais de UTIN;
grávidos,
Dar suporte emocional aos pais
puérperas em
que vivenciam as dificuldades da
sofrimento
maternidade e paternidade
psíquico.
Prevenir a depressão-pós-parto.

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Assegurar que as gestantes e pais se sintam mais Visita a gestantes e puérperas em


9 . seguros e amparados. situações que foi identificado a
Atendimento Favorecer a elaboração do luto em casos de óbitos necessidade de estender o atendimento
Psicológico de recém-nascidos e aborto.
em domicílio
Elaborar e fornecer parecer psicológico sobre as Conhecimento dos casos e dos
10. pacientes; diagnósticos específicos;
Interconsulta Possibilitar a socialização e a interação entre Troca de informações sobre as condições
paciente e equipe, essenciais nesse momento; do paciente;
Esclarecimentos sobre o estado geral da paciente.

11. Favorecer a elaboração do luto; prevenir traumas Promover a despedida do bebê


Atendimento obstétricos futuros e a instalação do luto patológico. Garantir às famílias um espaço de
ao óbito expressão da dor da perda
perinatal Trabalhar o desligamento do bebê
Incentivar que a mãe se despeça do filho
morto que carrega em seu ventre
Sugerir que lhe dê um nome, caso não
tenha feito.
Facilitar a expressão das emoções
positivas em relação ao filho;
Assegurar que se trata do seu filho e que
ele sempre fará parte da sua história;
Desculpabilizar a mãe, mesmo em casos
de negligência materna;
Respeitar o tempo de elaboração do
luto para indicar a indução do parto ou
incentivar a espera pelo parto espontâneo
Permitir que os pais vejam e toquem (se
quiserem) o filho morto;
Sugerir que organizem o funeral
(fetos>500 grs);
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Recolham lembranças possíveis;


Facilitar o contato com a difícil realidade
e com o espaço de expressão das
emoções;
Não poupar a mãe em detrimento da
expressão dos sentimentos;
Cuidar também do pai;
Marcar atendimento ambulatorial
para rastreamento de transtornos
psicopatológicos.

fazendo sentir menos a sensação de estranhamento puérperas tem lidado com a gestação, com a chegada
e inadequação, e abrimos então o espaço para a do parto e do bebê, bem como com a internação do
escuta deste sofrimento. Se a mulher ousa expressar bebê. De acordo com esta primeira conversa, temos
qualquer sentimento negativo, tanto com a gestação uma visão panorâmica da pessoa de cada pessoa
quanto com a chegada do bebê, logo se diz que ela atendida nos setores em questão e podemos fazer uma
está “rejeitando o filho”.Esse tipo associação, que é triagem das gestantes e/ou puérperas que merecem
muito recorrente, é superficial, de cunho excludente uma maior atenção da psicologia, identificando as que
e pejorativo. Essas mulheres acabam se sentido uma precisam de um atendimento individual e indicando
“aberração da natureza” favorecendo ainda mais para para os atendimentos de grupo.
o aumento do sofrimento (Arrais, 2005). 2. Atendimento de Apoio Individual às gestantes e
Desta forma, fica mais fácil que as pacientes e puérperas: Os atendimentos individuais são realizados
seus acompanhantes falem de suas dificuldades e de em uma perspectiva breve, durante o período em que
seus sofrimentos e de entender como as gestantes ou as gestantes e puérperas permanecerem internados

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Revista Psicologia e Saúde 157

(as), podendo os atendimentos ser realizados nos da mesma.


próprios quartos onde se encontram hospitalizados Quando há alguma intercorrência na gestação,
ou nos corredores do hospital. Em alguns casos parto ou pós-parto, que colocam em risco a saúde
fazemos os atendimentos na sala da psicologia. ou a vida tanto da mãe quanto do bebê, a família
Muito embora, consideramos que o setting não também irá precisar de suporte emocional e
exija necessariamente uma sala específica para o orientações de nossa parte, pois poderão surgir
atendimento, pois o psicólogo hospitalar deve estar dúvidas, preocupações quanto à saúde da mãe e do
onde os acontecimentos estão, deve circular pelo bebê, bem como sentimentos de culpa que devem ser
hospital e atender o paciente em seu quarto ou andar trabalhados. Mesmo que tudo esteja ocorrendo bem,
(Simonetti, 2004). durante o parto a família pode se mostrar angustiada e
O trabalho do psicólogo hospitalar na maternidade precisando de um apoio e falar dos medos que surgem
durante o período do puerpério se dá num momento neste momento.
particular em que a questão da filiação está emergente. 4. Preparação para trabalho de parto e parto: A
As mulheres estão às vezes afetadas pelo baby blues, presença do psicólogo durante o trabalho de parto e
manifestando intensa disposição para se expressar e o parto pode trazer benefícios a parturiente por vários
falar sobre a nova experiência, colocar em palavras motivos que serão listados aqui. Sabemos que a
o sentimento que emerge com a chegada do novo sensibilidade da dor está ligada a emoção, a coragem,
bebê. Uma intervenção psicológica neste período na ao medo (Szejer, 1999) e o psicólogo deverá lidar
maternidade visa prevenir a saúde mental e física com estas emoções da parturiente durante o trabalho
da mãe e do bebê, com o objetivo de estimular uma de parto e o parto de forma que facilite este processo.
ligação mais saudável entre ambos (Angerami- Há várias questões ambientas que podem interferir
Camon, 2000). Diante disso, o psicólogo hospitalar no trabalho de parto, tanto para atrapalhar a evolução
na maternidade deve favorecer a psicoprofilaxia do quanto para favorecer a evolução do trabalho de parto,
ciclo gravídico-puerperal (Wendland, 2012a; Cabral; o psicólogo irá mediar estes aspectos, principalmente
Martins & Arrais, 2012). no que se refere à relação médica e paciente, familiar
Oferecemos este atendimento às gestantes e e parturiente, quando estas estão atrapalhando. O que
puérperas que apresentam um sofrimento com a atual não significa questionar os procedimentos médicos,
vivência, pois como dito anteriormente, a chegada de mas poderá trabalhar junto com o mesmo informando
um bebê pode suscitar sofrimento em vários aspectos ao médico o estado emocional da parturiente. O mais
tais como: no relacionamento social, na identidade, importante é fazê-la tomar o lugar de sujeito, ou seja,
o medo do parto, a insegurança no papel de mãe, a fazer com que seja ativa no processo de nascimento de
realização de um parto muito diferente do idealizado, seu filho, incentivá-la a questionar os procedimentos
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o confronto do bebê real com o imaginário, dentre para entender o que se passa com ela. O psicólogo
outros. Atendemos individualmente também àquelas poderá utilizar técnicas de relaxamento e visualização
gestantes e puérperas que perderam seus bebês ou tanto durante o trabalho de parto, quanto durante a
durantes a gestação ou após o parto. espera para a cesárea para aliviar a dor e controlar a
3. Atendimento de Familiares e Acompanhantes: ansiedade.
Realizamos atendimentos aos familiares e Além disto, a Política Nacional de Humanização
acompanhantes por considerarmos que a família (Brasil, 2007) fala da importância da mulher ter um
sofre com o impacto da internação e hospitalização acompanhante no momento do parto, sendo este um
da gestante, parturiente ou puérpera. Este sofrimento direito seu. Defende que o parto envolve o fisiológico,
pode estar relacionado com o impacto da notícia de social, cultural, afetivo da mulher e da comunidade,
uma gestação e/ou com o nascimento de um novo ser logo não há motivo para que a mulher permaneça sem
na família, tanto no que diz respeito ao parto quanto a acompanhante neste momento devemos incentivar
chegado do bebê. Eles, assim como os pacientes, têm principalmente, a participação do pai do bebê, se
temores, receios, dúvidas, inseguranças, ansiedade, esta for da vontade da parturiente. Esta participação
fantasias que causam seus sofrimentos, necessitando é benéfica tanto para a parturiente, quanto para o pai
de apoio tanto no momento da gestação quanto do e para o bebê, afirmam estudos como os de Carvalho
pós-parto para superarem essas dificuldades. Os (2003) e Perdomini e Bonilha (2011). A mulher se
acompanhantes e familiares de gestante e puérperas, sente mais amparada quando seu companheiro está
também precisarão delimitar um novo espaço para presente, ele poderá mencionar palavras de incentivo.
o bebê e pensar sobre os papéis de cada um, cada Para este, a sua presença pode estar carregada se
membro deverá se recolocar com a chegada de um sentido positivo o que favorece para que ele não se
novo membro (Szjer, 1999). O psicólogo hospitalar sinta excluído de um momento tão importante de sua
deverá ajudar neste processo de delimitação do espaço vida que a chegada de seu filho. Ele pode se sentir
e papéis, ajudar os pais, avós e filhos mais velhos a se deslocado, ou o sofrimento de sua companheira pode
adaptarem com a novidade de um novo membro na lhe causar grande desconforto, neste caso, a atuação do
família favorecendo para um funcionamento saudável psicólogo hospitalar será apoiar este pai. A presença

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do pai no momento do parto é de grande importância contato e de fugir do contato quando não suportam o
também para a construção do vínculo entre ele e o excesso de dor, de estimulação ou de estresse (Brasil,
bebê. O bebê já conhece a voz de seu pai que foi 2002). É preciso estar atento a esta comunicação do
ouvida durante toda a gestação, sendo para o bebê um bebê.
conforto ouvir esta voz durante o seu nascimento. Fala-se muito sobre os efeitos negativos da
De acordo com Fighera e Viero (2005), a ansiedade hiperestimulação, mas frequentemente esquecemo-
provocada pela possibilidade de uma intervenção nos que a hipoestimulação também pode ter efeitos
cirúrgica pode afetar o paciente se este sentimento negativos sobre o desenvolvimento do bebê. O
não for expresso e conscientizado. Os momentos importante é que o bebê possa receber atenção
que antecedem a cirurgia são vivenciados pelo (a) em equilíbrio, que levem em consideração suas
paciente de uma forma dramática e assustadora. necessidades psicoativas (Andrade, 2002).
O medo do desconhecido é a principal causa da Ao pensarmos no bebê internado na UTIN,
insegurança e da ansiedade do paciente pré-cirúrgico. devemos lembrar que ele, assim como o bebê que
Ele teme a morte, a anestesia, o procedimento em si, a nasceu saudável, precisa ter seu desenvolvimento
recuperação (Fighera & Viero, 2005). Segundo Szejer afetivo preservado e, para que isso ocorra, será
(1999), as parturientes submetidas à cesárea tendem preciso da presença dos pais (Brasil, 2002; Baltazar;
a vivenciar a mesma apenas como uma cirurgia, Gomes & Cardoso, 2010). Cunha (2002; 2012)
diminuindo a importância deste momento. Diante mostra que o bebê prematuro, mesmo doente, tem
dessas características quanto à cesárea, consideramos sua capacidade de sedução muito desenvolvida para
de grande importância à assistência do psicólogo para conquistar o cuidador. Devemos então ajudar os pais
a preparação para a cesárea, bem como durante a a serem conquistados por seu bebê. O psicólogo
mesma, ajudando-as a lidar com os medos da cirurgia, poderá apresentar o bebê aos pais, mostrar a eles as
podendo assim vivencia um momento único em suas competências já existentes no seu bebê tais como se
vidas, o no nascimento de seus filhos. virar na direção de suas vozes; mostrar a diferença
5. Atendimento aos bebês na UTIN: Vários nos valores de saturação e oxigênio na presença deles,
estudos têm mostrado a importância tanto da vida a sensibilidade ao toque.
intra-uterina quanto dos primeiros dias de vida do É importante observar ainda a mudança do
recém-nascido no desenvolvimento psiconeuromotor ambiente intra-uterino para o ambiente fora do útero
do mesmo (Corrêa, 2002, 2102, Cunha, 2102). As e o impacto dessa mudança no bebê. Ainda no útero,
rotinas das UTIN tradicionais impedem, de certa Andrade (2002) destaca que ele já realiza atividades e
forma, que o bebê receba os cuidados que o bebê a brincadeiras, tais como: tocar na placenta, se agarrar
termo e saudável tem, determinando superestimulação no cordão umbilical, empurrar a parede amniótica
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sensorial, dor, estresse e principalmente alteração com os pés, leva a mãe à boca, dentre outras. Sta
dos ritmos comportamentais: estados de sonolência mesma autora também aponta para um interesse do
interrompidos, choro não consolado, posição supina, bebê em tocar os limites da incubadora com os pés,
manuseio rotineiro e excessivo, ruído ambiental mãos e cabeça como uma forma de sentir-se seguro,
inadequado, pouca oportunidade de sucção e absoluta bem como o interesse em segurar objetos (a sonda,
falta de interação com o olhar, do toque contingente por exemplo). Desta forma, pode-se colocar um
e da linguagem articulada que nomeia o mundo. Esta tecido sobre o corpo do bebê (quando possível) e
vivência poderá influenciar nos desenvolvimento do possibilitar-lhe um ponto de apoio, segurar algo. Estes
bebê. Porém, por meio de mudanças nos cuidados recursos podem significar para ele uma continuidade
na UTIN, pode ser possível a obtenção de melhorias importante para a organização da vida psíquica no ser
de diversos aspectos do desenvolvimento do bebê humano.
internado (Cunha, 2002; Silva, 2002, Cunha 2012). Como apresentado no quadro acima, a atuação do
O principal instrumento que deve ser utilizado psicólogo na UTIN deverá favorecer a humanização do
para minimizar o impacto negativo da internação atendimento ao bebê internado, isto significa intervir
são as pistas ou os sinais do bebê, reconhecer estas tanto no ambiente físico quanto no ambiente humano
pistas e sinais, tornando-o um parceiro competente na que cerca o bebê (Baltazar; Gomes & Cardoso, 2010).
interação, sendo papel do psicólogo ajudar a equipe O Manual de Atenção Humanizada ao recém-nascido
a reconhecer estas pistas (Silva, 2002, Cunha 2012). de baixo peso (Brasil, 2002) dos apresenta algumas
É importante lembrar que mesmo sendo bebê, este sugestões que podem ser utilizadas pelos psicólogos
deve ser considerado como sujeito dotado e emoções, para favorecer a humanização na UTIN, tais como:
que sente dor e possui sua própria individualidade conversar com o bebê, explicar-lhe por que está na
que deve ser respeitada. Como psicólogos, devemos UTI; oferecer conforto através do toque; friccionar as
ajudar a equipe e a família na busca da segurança mãos para aquecê-las antes de tocar o bebê; chamá-
psíquica do bebê, minimizando ao máximo este lo pelo nome, orientando a equipe a fazer o mesmo;
sofrimento (Baltazar; Gomes & Cardoso, 2010). Os orientar a equipe a também conversar com o bebê
bebês são capazes de manifestar prazer, dor, de buscar e avisar sempre que for fazer algum procedimento.

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Lembrando de estar atento para os sinais de estresse qualidades e capacidades de seus bebês; orientá-los
do bebê. e favorecer na participação dos cuidados com o bebê,
6. Atendimento e acompanhamento das famílias para se aproximarem da função de pai e mãe; ajudar a
com bebês na UTIN: Na UTIN fundamentamos comunicação pais/equipe, entendendo que a equipe é
a nossa atuação em uma pesquisa que abordou o alvo de projeção dos pais.
sofrimento das mães na UTIN, na qual as mães desta Estes autores acrescentam ainda que o psicólogo
instituição foram as participantes entrevistadas. Nesta deverá ajudar os irmãos dos bebês de UTIN a lidarem
pesquisa pudemos perceber quais eram os principais com esta nova situação. A chegada de um bebê saudável
motivos de sofrimento nos permitindo atuar junto já provoca mudanças que podem trazer sofrimento
às mesmas, tais como: se deparar com o bebê real, para os filhos mais velhos do casal, a internação do
que é diferente do bebê imaginário; o contato com bebê poderá agravar este sofrimento, pois certamente
um ambiente estranho; o medo da perda do filho; irá levar a uma separação maior com os pais (Morsch.
a insegurança de lidar com um “bebê problema”; o & Delamonica, 2005). Torna-se difícil também para
sentimento de culpa e fracasso; o relacionamento com os pais se dividirem entre os filhos que estão em casa
outros profissionais; a falta de informação sobre o o que se encontra na UTIN. O psicólogo poderá atuar
estado de saúde do filho e tratamento, dentre outros então favorecendo visitas dos irmãos mais velhos,
(Mourão, 2006). Consideramos, e temos observado, incentivando na participação dessa experiência
que os pais e os avós também sofrem com a internação junto com a família; ajudar na compreensão do que
do bebê e também necessitam de apoio. ocorre com o bebê; auxiliar para reforçar seu lugar
Além dos sentimentos citados acima, todas as na família (Valansi & Morsch, 2004). Lembrando que
referências sobre maternagem, paternagem e cuidados na intervenção junto aos irmãos, deve-se levar em
com o bebê apresentadas pela família, parecem não consideração a idade do irmão orientando de forma
fazer sentido, pois ele encontra-se internado, sob o que sua estrutura cognitiva permita a compreensão da
cuidado da equipe de saúde. Quando o bebê nasce situação (Morsch. & Delamonica, 2005).
prematuro, o casal não pôde viver psiquicamente no A principal função desse trabalho com a família
final da gestação as questões próprias deste período na UTIN é proporcionar a psicoprofilaxia ao
para a preparação da chegada do bebê (Valansi & desenvolvimento das relações desse grupo familiar,
Morsch, 2004), desta forma, será preciso então integrar além de minimizar o sofrimento daqueles que têm um
a realidade a vivencia da família. O psicólogo deverá bebê internado (Brasil, 2002), incluindo seus irmãos.
então ajudá-los a fazer esta integração, possibilitando- 7. Pré-natal psicológico: O pré-natal psicológico
os falar sobre essa vivencia, a falarem sobre este é complementar ao pré-natal tradicional realizado
nascimento e internação, que provavelmente não era pelo médico, tem caráter psicoterapêutico e oferece
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esperado, ajudá-los a abrir espaço para o bebê real e apoio emocional, discute soluções para demandas que
fazer o luto do bebê imaginário. podem surgir no período gravídico-puerperal, como
Para isso é de fundamental importância à presença aquelas relacionadas aos mitos da maternidade, sua
dos pais no ambiente da UTIN, a presença deles neste idealização, à possibilidade da perda do feto ou bebê,
ambiente é tão importante para o bebê quanto para eles gestação de risco, malformação fetal, medo do parto,
próprios. Segundo Andrade (2002), quando os pais da dor, transtornos psicossomáticos, transtornos
são privados de ver seu bebê logo após o nascimento, depressivos e de ansiedade, mudanças de papeis
eles podem apresentar dificuldades em demonstrar um familiares e sociais, alterações na libido, conflito
sentimento caloroso e espontâneo em relação ao bebê. conjugal, ciúme de outros filhos, planejamento
Afinal de contas, quando o bebê nasce prematuro, os familiar, além de sensibilizar quanto à importância do
pais também se encontram prematuros na aquisição plano de parto e do acompanhante durante o trabalho
de suas funções de pai e mãe, e o contato com o filho de parto e parto (Cabral; Martins; Arrais, 2012).
era favorecer para a construção desses papéis. Porém, Essa intervenção, também denominada
deverão receber o apoio necessário ao freqüentarem de psicoprofilaxia por Bortoletti (2007), justifica-
ao UTIN, será preciso criar um ambiente propício se segundo Maldonato (1982) por ser preventivo
à formação e ao fortalecimento dos laços afetivos em vários aspectos: modificações da identidade da
(Baltazar; Gomes & Cardoso, 2010). gestante; acompanhar a gestação do vínculo pais-
Procuramos também seguir as sugestões trazidas bebê; trabalhar o desenvolvimento da confiança
por Valansi e Morsch (2004) e Morsch e Delamonica na própria percepção e na própria sensibilidade;
(2005). Eles nos apresentam algumas atividades que ampliar recursos do casal como agente de prevenção
podem ser realizadas na UTIN junto aos familiares, (Wendland, 2012b) com outras pessoas da família; e
tais como: colocar-se como referência na equipe, conscientização dos pais em relação ao atendimento
pois há uma grande rotatividade de profissionais; que recebem e à reivindicação de suas necessidades.
ajudar os pais a olhar este bebê como um outro, Além desses aspectos preventivos o grupo pode
para que possam investi-lo como sujeito; ajudar colaborar e desmistificar alguns temas importantes,
na comunicação pais/bebês, mostrando aos pais as como cuidados com amamentação, cuidados com o

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bebê, a maternidade idealizada. pessoa pode ajudar a elaborar sua própria vivência.
Para participar do pré-natal psicológico, a gestante 9. Atendimento Psicológico em domicílio: Em
não precisa, necessariamente, estar atravessando alguns casos o contato é estendido para atendimento
dificuldades emocionais. Basta explicitar o interesse domiciliar ou por telefonemas aos pacientes, quando
para construir o novo papel materno ou para aprimorar consideramos o caso grave ou numa tentativa de
tal função de responsabilidade e complexidade, assegurar que as gestantes e pais se sintam mais
uma vez que a construção do vínculo mãe-bebê-pai seguros e amparados. São casos como, por exemplo,
demanda tempo e elaboração (Terreno, 2012). óbito de algum bebê da UTIN, em que a equipe da
O pré-natal psicológico objetiva, ainda, psicologia não estava presente, cujos pais vinham
proporcionar as gestantes um entrosamento com sendo acompanhados por nós, ou quando verificamos
outras mulheres que comunguem sentimentos a necessidade, ou seja, percebemos que na alta algo
e emoções presentes nessa fase de suas vidas, não estava bem.
favorecendo o mecanismo de identificação. Os Nos casos de óbito, este contato é feito por nós,
encontros do grupo têm por finalidade acolher e dar na maioria das vezes, com o intuito de favorecer a
voz a elas, informar, orientar e prepará-las para que elaboração do luto, pois, o que se observa, tanto nestes
passem por esse processo da melhor maneira possível. casos quanto em casos de aborto, é que as pessoas que
Para tanto, diversos temas são desenvolvidos ao estão em volta negam o sofrimento destes pais.
longo da existência do grupo, levando-se em conta as Os contatos são estendidos também a puérperas
características e necessidades deste homem no ciclo que nos procuram, já que no momento da ronda
gravídico-puerperal e as mudanças que ocorrem neste citamos este atendimento domiciliar aos pacientes,
período. pois entendemos que as maiores dificuldades irão
8. Atendimento psicológico de apoio a grupos aparecer quando elas voltarem para suas casas. Tendo
tais como: pais de UTIN; pais de bebês de 0 a 1 ano; em vista que neste hospital os cuidados do bebê são
gestantes, puérperas em sofrimento psíquico: Assim realizados em grande pela auxiliar de enfermagem, em
como Delfino (2004), entendemos que o contexto casa ela deverá assumir estes cuidados (acrescentar –
grupal desenvolve naturalmente um espaço para a diferença do bebê real x imaginário, o conhecimento
o movimento da promoção da saúde através de um do bebê). Não pretendemos com os atendimentos
processo de ensinar-aprender. As ações educativas em domiciliares seja um acompanhamento contínuo e
saúde mediante atividades grupais com indivíduos prolongado, são intervenções pontuais. Caso seja
em situação de vida comum, podem se constituir num verificada uma necessidade de um acompanhamento
método privilegiado de investigação-intervenção. Os prolongado, fazemos o encaminhamento necessário.
grupos que aqui propomos - pais de UTIN, pais de 10. Interconsulta: Como dito anteriormente, nós
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bebês de 0 a 1 ano, gestantes, puérperas em sofrimento realizamos a Ronda com o intuito de abranger todas
psíquico – são de apoio psicológico, sabemos que as mulheres atendidas no hospital, onde iremos
todas essas situações podem produzir conflitos, abrir espaço para a demanda. Porém, podemos ser
mudanças, sofrimento, enfim, problemáticas comuns solicitados a avaliar e atender um paciente. Trata-se da
a cada grupo, propomos então a união dessas pessoas interconsulta, na qual o psicólogo é chamado a tratar
com a finalidade de discutir, refletir e tentar encontrar de questões psicológicas que o paciente apresenta no
solução para essas problemáticas. decorrer do atendimento médico.
Cada grupo, além de ser informativo, ainda abre Segundo Marinho e Caballo (2001) o profissional
espaço para expressão de vivências, de fantasias que faz o pedido da interconsulta atendia o paciente
irracionais, ilógicas, de sentimento que podem surgir antes e continuará atendendo após a interconsulta. O
em todo o processo do ciclo gravídico-puerperal, sobre interconsultor é sempre um especialista de outra área,
os quais nunca ou quase nunca se fala fora do contexto chamado a esclarecer, diagnosticar ou dar solução a
terapêutico de grupo. Segundo Maldonado (1982) o uma problemática de saúde, que o paciente tenha e
que faz mal é o “não-falado”, o sufocado, vivido com que fuja da competência do profissional ou da equipe
culpa e vergonha. Como vimos anteriormente, estes responsável. O essencial da ação do psicólogo é ser
dois sentimentos estão muito presentes na gestação e capaz de fazer uma rápida análise da situação para
no pós-parto, sendo preciso expressá-los e perceber identificar a origem do problema. Procurar envolver
que outras pessoas também os sentem. os outros profissionais da saúde, identificar ações que
Para que este clima de comunicação e expressão possam surtir efeitos imediatos como, incentivar o
seja possível, o coordenador precisa ter como qualidade médico a esclarecer o problema do paciente, solicitar
básica à capacidade de elaborar o medo de expressão o serviço social quando necessário (Marinho &
de sentimentos, legitimando a comunicação sem Cabalho, 2001). Consideramos esta uma atividade
tentar cerceá-la com excesso de informação ou com que pode ser realizada na maternidade, bem como na
mensagens apressadas de tranqüilizarão (Maldonado, UTIN, principalmente para identificar nas gestantes e
1982). Em todos os grupos incentivamos a troca de puérperas uma depressão, ou algum outro transtorno
experiência, pois consideramos que a vivência de uma próprio destes momentos.

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11. Atendimento ao óbito perinatal: É nosso papel Muza; Souza e Iaconelli (2012), o papel do psicólogo
como psicólogos hospitalares favorecer para que nesse contexto é então o de “prevenir” possíveis
este luto possa ser elaborado. Primeiramente abrindo psicopatologias relacionadas à vida ou morte do
espaço para que se fale deste filho que as pessoas bebê, além do esclarecimento e atenção às fantasias
tendem a desconsiderar; verificar se há um desejo dos dos pacientes. A elaboração do luto do bebê precisa
pais de realizarem algum procedimento ritualístico ocorrer de forma a devolver a saúde mental e a
e favorecer para que o mesmo possa ser realizado; reestruturação psíquica a todos os que sofreram com
proporcionar algum teste de realidade, verificando essa perda.
se os pais viram o corpo do bebê no caso de recém- Para finalizar, corroboramos os desafios apontados
nascidos, ou sabem o que seria feito do feto em caso por Baltazar; Gomes e Cardoso (2010), que também
de aborto; explicando-lhes que este luto pode levar nortearam o nosso quotidiano como psicólogos
tempo ao contrário do que as pessoas costumam em maternidades e UTINs e que certamente serão
considerar. Estes procedimentos devem levar em encontrados pelos psicólogos interessados nesta área
consideração as diferenças entre os pais, não devendo de atuação:
ser algo padronizado. • Sensibilizar a equipe para a dimensão subjetiva
Iaconelli (2007), Arrais; Muza; Sousa e Iaconelli que cada mãe, família e bebê traz consigo, para além
(2012), Chatelard e Freire (2012) apontam para de sua dimensão física e história clínica.
uma falta de reconhecimento social da dor dos pais • Facilitar a comunicação efetiva da equipe
na morte de um feto ou recém-nascido. As pessoas obstétrica com os pais, principalmente quando estes
não entendem esta perda como a perda de um filho não correspondem às exigências que lhes são feitas,
cujos pais vinham investindo psiquicamente. Usam ou quando estão diante de más formações do bebê,
frases como “você é jovem, poderá ter outros filhos”, prognósticos fechados e óbitos perinatais.
como se outro pudesse substituir o lugar do filho • Dividir com a equipe as expectativas e angústias
que perderam. Desta forma, as condições mínimas produzidas pelo trabalho com gestantes de alto risco,
para a elaboração do luto nestes casos, tendem a ser trabalhos de parto complicados e os bebês prematuros.
negligenciadas. • Propiciar um espaço para que pai, mãe e bebê
Carvalho e Meyer (2007) confirmam que tenham uma vida afetiva em comum, participando dos
um dos principais papéis da psicologia diante de cuidados dispensados ao seu bebê.
intercorrências como o luto perinatal é desafiar a
mentalidade da morte como tema interdito, buscando CONSIDERAÇÕES FINAIS
identificar as vulnerabilidades e alto risco dos pais que
perderam seus filhos. Cabe a psicologia ajudar com Quando tratamos do serviço psicológico no
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS

que os pais e familiares se apropriem da situação que contexto hospitalar, primeiro é percebida a diferença
estão vivendo, para posteriormente conseguirem falar de setting em relação à atuação clássica do profissional
e aos poucos assimilar, e bem posteriormente aceitar. de psicologia. O atendimento com as pacientes é feito
Arrais; Muza; Sousa e Iaconelli (2012), trazem que em geral junto ao leito, contudo a questão de setting
os rituais fúnebres ajudam no processo de luto, pois como Simonetti (2004, p, 156) aponta em seu livro
a recuperação é centrada na aceitação, e o velório sobre a psicologia hospitalar, que “nesse ambiente em
permite que as pessoas se despeçam e que o enlutado geral a capacidade de escuta é mais importante do que
seja considerado como tal. Abordagens terapêuticas um setting pré-determinado, pois a sua construção é
que possibilitam ajudar os pais no processo de perda dada em grande parte de forma psicológica”.
do filho, bem como torná-la mais real consistem Em consonância com esta premissa, quando
em permitir que os pais visitem o recém-nascido, considerando a pratica no Hospital Planalto, que foi o
toquem-no, caso queiram, e que recolham lembranças campo de experimentação do estágio, esse quesito se
possíveis (Bartilotti, 2007). Essas são estratégias que expressa, o atendimento por vezes é conduzido além
favorecem a saúde psíquica de muitos casais e de seus do leito, nos corredores, na sala de espera, de parto,
futuros bebês, que é objetivo primordial da psicologia junto à equipe médica, sendo em alguns casos feita a
hospitalar. intervenção com o acompanhante das pacientes.O que
De acordo com Carvalho (2010) e Chatelard e fizemos acima de tudo como psicólogos hospitalares,
Freire (2012), o processo de luto envolve um trabalho foi abrirmos espaço para a subjetividade das gestantes,
pessoal de adaptação à perda. É através do luto que parturientes e puérperas, seus familiares e seus bebês;
aprendemos a lidar com a morte, com as perdas e sendo este um trabalho específico do psicólogo, pois,
com o sofrimento causado por estas. Este período além dele, nenhum outro profissional da área da saúde
de adaptação caracterizado pela dor e sofrimento foi treinado a fazer (Simonetti, 2004).
deve ser encarado como normal e necessário, sendo Não obstante esta especificidade do profissional da
fundamental sua elaboração, para que a perda seja psicologia, o atendimento deve sempre ser realizado
enfrentada de forma saudável, não evoluindo de dentro de um parâmetro interdisciplinar, pois este
maneira patológica (Bortoletti, 2007). Para Arrais; e continente e inspira maior segurança e tem maior

Revista Psicologia e Saúde, v. 5, n. 2, jul. /dez. 2013, p. 152-164 ISSN: 2177-093X


Revista Psicologia e Saúde 162

probabilidade de êxito nos seus resultados, pois há Angerami-Camon, V. A. (2000). Psicologia da Saúde - Um
uma gama de conhecimentos técnicos e científicos Novo Significado para a Prática Clínica. São Paulo: Pioneira
Thomson Learning.
que se complementam entre si visando um objetivo Arrais, A. R (2005). As Configurações Subjetivas da Depressão
comum. Assim, o psicólogo hospitalar deve procurar Pós-Parto: Para Além da Padronização Patologizante. 2005. 158 f.
se inserir na equipe fazendo parte da mesma somando Dissertação (Doutorado em Psicologia) – Universidade de Brasília,
com o seu saber, procurando fazer um trabalho DF.
Arrais, A.R; Muza, J. C.; Sousa, E. M. & Iaconelli, V.
interdisciplinar (Moretto, 1999). (2012). Quando a morte visita a maternidade: papel do Psicólogo
Percebemos que não existia um trabalho em equipe Hospitalar no atendimento ao luto perinatal. Revista Psicologia
estabelecido na maternidade e UTIN do Hospital Teoria e Prática. No prelo.
Planalto, cada profissional faz o que lhe cabe sem Baltazar, D. V. S.; Gomes, R. F. S.; Cardoso, T. B. D. (2010).
Atuação do psicólogo em unidade neonatal: rotinas e protocolos
que os casos sejam discutidos entre os profissionais para uma prática humanizada1. Rev. SBPH, 13(1): 02-18.
da saúde. O padrão é a comunicação apenas pelo o Brasil (2002). Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de
prontuário, o médico deixa as prescrições as quais Saúde. Área de Saúde da Criança. Atenção humanizada ao recém-
são executadas pelos enfermeiros e auxiliares. Os nascido de baixo peso: método mãe-canguru: manual do curso.
Brasília: Ministério da Saúde.
outros membros, fisioterapeutas, nutricionistas, Brasil. (2007). Ministério Da Saúde. Humaniza SUS: Visita
fonoaudiólogos e psicólogos, também deixam seus aberta e direito a acompanhante. Brasília. Ministério da Saúde.
registros nos prontuários sem uma discussão ou Bortoletti, F. F. (2007). Psicoprofilaxia no Ciclo Gravídico
comunicação verbal com os outros membros, o que Puerperal. In: Bortoletti, F. F. et al., Psicologia na prática obstétrica:
abordagem interdisciplinar. Barueri: Manole, p. 37-46.
muitas vezes, dificultou o nosso trabalho e pode Cabral, D. S. R., Martins, M. H. F., & Arrais, A.R. (2012).
ser um verdadeiro entrave a atuação do psicólogo. Grupo de pré-natal psicológico: avaliação de programa de
Mas, reconhecemos, assim como Baltazar; Gomes e intervenção junto a gestantes. Encontro: Revista de Psicologia. No
Cardoso (2010), que muitos encaminhamentos feitos prelo.
Camacho, R. S. et al. (2006) Transtornos psiquiátricos na
pela equipe traduzem suas dificuldades em lidar gestação e no puerpério: classificação, diagnóstico e tratamento.
com as repercussões emocionais da internação em Rev. Psiquiatr. Clín., 33 (2), 92-102.
neonatologia, o que demanda trabalho interdisciplinar Carvalho, M. L. M. (2003). Participação dos pais no nascimento
justificando a presença de psicólogos nas equipes. em maternidade pública: dificuldades institucionais e motivações
dos casais. Cad. Saúde Pública, 19 (2), 389-398.
Cabe ressaltar ainda que, de modo geral, a prática Carvalho, C. et al. (2010). Luto por morte perinatal emoções
dentro do Hospital Planalto, reflete os trabalhos feitos em saúde contributos. Corrente Dinâmica. Pág 170 < http: //www.
por outros pesquisadores e profissionais da psicologia, correntedinamica.com/pubfatout.pdf> Acesso 1 Junho 2012.
citados ao longo deste artigo, contudo devemos Carvalho, F. T. & Meyer, L. (2007). Perda gestacional tardia:
aspectos a serem enfrentados por
sempre nos atentar na diversidade de realidades que mulheres e conduta profissional frente a essas situações.
se apresentam no ambiente hospitalar, muitas vezes Boletim de Psicologia, 57 (126), 33-48.
Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS

nossas ações são restringidas pela instituição, em Chatelard, D. S & Freire, T. C. (2012). Natimorto Invisível In:
outros momentos facilitados em comparação a outros Wendland, J.; Correia Filho, L.; Lucena, L. H. & Barr, M. ª (orgs).
Primeira infância: idéias e intervenções oportunas. p. 108-113.
contextos. A experiência certamente mostra que Brasília: Editora Senado.
existem alguns fatores que são chave na atuação do Correia Filho, L.; et al (orgs). (2002). Novos Olhares Sobre
psicólogo da saúde, determinação, uma postura ativa, a Gestação e a Criança até os 3 anos: Saúde Perinatal, Educação e
disponibilidade, flexibilidade e criatividade, pois Desenvolvimento do Bebê. Brasília: L.G.E.
Cunha, I. Neurobiologia do Vínculo (2002). In: Correia Filho,
muitas vezes é necessário lançar mão de instrumentos L.; et al (orgs). Novos Olhares Sobre a Gestação e a Criança até os
e técnicas ou mesmo de settings que não são 3 anos: Saúde Perinatal, Educação e Desenvolvimento do Bebê. p.
tradicionais, contudo o suporte pode ser feito, e este 353-387 Brasília: L.G.E.
atendimento faz diferença no trabalho na obstetrícia. Cunha, I. (2012). A comunicação mãe-bebê: o crescimento
do cérebro em desenvolvimento e a gênese dos processos mentais
Consideramos que o papel e tarefas do psicólogo no início da vida In: Wendland, J.; Correia Filho, L.; Lucena, L.
hospitalar ainda encontram-se em construção. H. & Barr, M. ª (orgs). Primeira infância: idéias e intervenções
Destacamos no nosso artigo, a proposta de algumas oportunas. p. 67-71 Brasília: Editora Senado.
“novidades” ainda pouco realizadas na prática desta Delfino, M. R. R.(2004). O processo de cuidar participante
com grupo de gestantes: repercussão na saúde integral individual
área como o pré-natal psicológico e o atendimento coletiva. Ciência e Saúde Coletiva, 9 (4), 33-38.
ao óbito perinatal. Assim, esperamos que o presente Duarte, T. (2010). Luto por perda fetal. emoções em saúde
trabalho possa inspirar psicólogos e que esta proposta contributos. Corrente Dinâmica. Pág 162. < http: //www.
de atuação possa acrescentar na prática dos psicólogos correntedinamica.com/pubfatout.pdf> > Acesso em: 1 Junho 2012.
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Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS

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119.

Recebido: 23/07/2012
Última revisão: 13/09/2013
Aceite final: 20/09/2013

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Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia, UCDB - Campo Grande, MS

Sobre os autores:
Alessandra da Rocha Arrais - Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília; psicóloga clínica;
psicóloga Hospitalar Psicóloga Hospitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF);
Docente do Curso de graduação em Psicologia e do Mestrado em Gerontologia da Universidade Católica de
Brasília (UCB) e do Mestrado Profissionalizante em Saúde da Mulher e dos Idoso da FEPECS.
E-mail: arrais@ucdb.br

Mariana Alves Mourão - Graduada em psicologia pela UCB; especialista em Psicologia Hospitalar e da
Saúde pela UCB e Psicóloga Hospitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF).
E-mail: mariana.amourao@gmail.com

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PERCEPÇÃO DA EQUIPE OBSTÉTRICA SOBRE O PAPEL DO PSICÓLOGO

HOSPITALAR EM UM CENTRO OBSTÉTRICO DO DF

Perception Obstetrical Team on the Role of Psychologist in a Hospital Center of Obstetric

DF

Alessandra da Rocha Arrais1


Naraiana Oliveira da Silva2
Sílvia Renata Magalhães Lordello3

Recebido em: 8 out. 2014


Aceito em: 10 dez. 2014

RESUMO: Este estudo teve como objetivo conhecer a percepção da equipe de saúde
obstétrica sobre o trabalho desenvolvido pelo psicólogo hospitalar no centro obstétrico – CO,
além de verificar se a equipe reconhece as potencialidades e limites da equipe de psicologia e
avaliar a inserção desse profissional na equipe. Trata-se de uma pesquisa quantitativa,
exploratória, transversal realizada em um hospital público do Distrito Federal, cujos sujeitos
foram trinta e um profissionais de saúde, entre eles: enfermeiros, enfermeiros obstetras,
técnico de enfermagem, residente de enfermagem, auxiliar de enfermagem, médicos obstetras
e pediatras, residente de medicina, nutricionistas, técnico de nutrição, técnico administrativo e
estagiários de diversas áreas da saúde. Os dados foram coletados através de questionário
semi-estruturado, auto-aplicativo e utilizado para a análise de estatística simples. Concluiu-se
que os profissionais de saúde têm conhecimento sobre a atuação do psicólogo hospitalar num
centro obstétrico, reconhecem a relevância para os aspectos subjetivos das pacientes e
identificam sua importância no processo de trabalho de parto e parto. Entretanto, a solicitação
do auxílio do psicólogo é restrito aos momentos que desafiamos limites profissionais da
equipe, quando se percebem impotentes, como nos casos de anomalias fetais, óbito fetal,
morte materna, entre outras intercorrências. Destaca-se ainda, a relevância da continuação da
pesquisa nessa área, para enfatizar o sentido da atuação psicológica num centro obstétrico e na
consolidação de sua inserção na equipe de saúde.
Palavras-chaves: Psicólogo Hospitalar. Psicologia Obstétrica. Centro Obstétrico. Trabalho
de Parto. Parto.

ABSTRACT: This study aimed to understand the perception of obstetric health care
team about the work of the psychologist in a hospital obstetric unit - CO, and verify that
the staff recognizes the potential and limits of psychology team and evaluate the
insertion of a trader in team. This is a quantitative cross-sectional, exploratory study,

1
Psicóloga. Doutora em psicologia, Especialista em Psicologia da Saúde e Intervenção Terapêutica, Psicóloga da
Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal, Professora da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS),
Brasília, DF. Autora responsável para correspondência: alearrais@gmail.com
2
Psicóloga. Graduada pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Brasília, DF.
3
Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica e Cultura, Psicóloga da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito
Federal, Professora da Universidade Católica de Brasília (UCB), Brasília, DF.

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conducted in a public hospital of the Federal District, whose subjects were thirty-one
health professionals, including: nurses, midwives, nurse technician, resident of nursing,
nursing assistant, obstetricians and pediatricians, medical resident, nutritionists,
nutrition technician, administrative and technical trainees from different areas of health.
Data were collected through semi-structured, self-application and used for statistical
analysis of simple questionnaire. It was concluded that health professionals have known
about the role of the psychologist in a hospital obstetric unit, acknowledge the relevance
to the subjective aspects of patients and identify their importance in the labor and
delivery process. However, the request for aid the psychologist is restricted to moments
that challenge professional boundaries of the team when they perceive themselves
powerless, as in cases of fetal anomalies, fetal death, maternal death, among other
complications. Moreover, we highlight the importance of continued research in this
area, to emphasize the sense of psychological performance in an obstetric unit and the
consolidation of its inclusion in the health team.
Keywords: Psychologist Hospital. Obstetric Psychology. Obstetric Center. Labor.
Delivery.

1 INTRODUÇÃO

Atualmente, já é possível encontrar muitos escritos a respeito da atuação de


psicólogos em hospitais, principalmente em relação a seu papel, que geralmente está
associado a ajudar pacientes e acompanhantes a lidarem com suas doenças e hospitalização
(SIMONETTI, 2004). Porém, a literatura torna-se escassa quando se trata da atuação do
psicólogo hospitalar aplicada à obstetrícia, especialmente quando este profissional atua em
um Centro Obstétrico - CO. Na nova área de psicologia obstétrica, assim denominada por
Bortoletti (2007), é mais comum encontrarmos livros e artigos que tratam a respeito do papel
do psicólogo durante o acompanhamento na gestação, durante o pré-natal e/ou no pós-parto,
nos casos que evoluiram para depressão pós-parto ou que necessitaram das UTIs Neonatais
(MOURÃO, ARRAIS, 2013). Porém, não há muito conhecimento disponível sobre como este
profissonal pode atuar em um CO., durante os trabalhos de parto, parto e suas intercorrências.

Observamos uma lacuna teórica existente na literatura disponível na área da


psicologia aplicada à obstetrícia, quanto à sistematização de protocolos de atuação do
psicólogo neste setor. Em nossa busca bibliográfica, não encontramos sequer um artigo que
abordasse o papel do psicólogo, num CO., durante o trabalho de parto e parto, a maioria deles
se concentra na atuação no pré-natal ou no aleitamento. Pouco também se fala sobre o
atendimento à morte na maternidade. O óbito perinatal aparece basicamente em artigos sobre
a atuação nas UTIs Neonatais (UTINs) (Mourão, Arrais, 2013).

Pretendemos com este trabalho, compartilhar com os psicólogos hospitalares nossa

RIES, ISSN 2238-832X, Caçador, v.3, n.2, p. 49-67, 2014.


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experiência de quatro anos de trabalho em um CO. de um maternidade pública de Brasília.


Assim, o presente artigo irá descorrer sobre as intervenções psicológicas implantadas e
realizadas nesse setor, além de demonstrar a percepção da equipe de saúde obstétrica da
referida maternidade sobre o trabalho desenvolvido pela psicologia no CO.

2 CONDUTAS DO PSICÓLOGO HOSPITALAR NO CENTRO OBSTÉTRICO

Este trabalho é resultado da experiência de quatro anos de atuação no CO de uma


grande maternidade pública de Brasília, desde o ano de 2011. Pretende-se expor a rotina de
assistência psicológica construída neste setor, as quais pressupõem uma prática humanizada
de atendimento. Para tanto, abordaremos os desafios de um serviço de obstetrícia, assim como
questões que permeiam a internação de gestantes, parturientes, puérperas e neonatos e as
difuculades de inserção na equipe obstétrica.

A partir de um enfoque da psicologia hospitalar, apresentaremos uma proposta de


atuação para psicólogos que atuam ou pretendem atuar na área da obstetrícia, especialmente
com trabalhos de parto e parto, que foi construído por nós, que favoreceu a estruturação de
nossa atuação neste setor específico.

É importante ressaltar que a demanda para a atuação do psicólogo nesta instituição


partiu da diretoria que nos deu total liberdade para atuarmos no CO, solicitando que
implantássemos o serviço de psicologia nesse setor, pois em 52 anos de existência da
maternidade, o CO nunca havia contado com o trabalho exclusivo de psicólogos para as
parturientes e puérperas, durante trabalho de parto e parto. Portanto a presença constante de
um psicólogo neste setor era “novidade” para a maioria dos membros da equipe.

Em uma maternidade é mais trabalhoso construir a demanda e fazer com que as


pessoas percebam que ela existe a partir de cada paciente, principalmente porque a maioria
das pacientes atendidas neste setor “não está doente, apenas grávida”, e as pessoas não
costumam considerar que haja sofrimento no ciclo gravídico-puerperal (MOURÃO, ARRAIS,
2013), afinal este seria um processo natural e instintivo e a chegada de um bebê só pode trazer
alegrias.

Segundo Arrais e Mourão (2013), há poucos casos para os quais a equipe de


psicologia é solicitada a acompanhar, geralmente para os casos em que os bebês têm alguma
má formação, alguma deficiência, ou quando há alguma intercorrência decorrente dos partos,

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ou ainda em casos de aborto e óbitos, pois o sofrimento das mães e da própria equipe fica
mais evidente nestas situações. Raramente somos chamadas para intervir de forma a
proporcionar a psicoprofilaxia das gestantes e puérperas. No entanto, ao longo do trabalho
desenvolvido neste setor, foi ficando claro ser de grande relevância a atuação do psicólogo na
obstetrícia, pois o psicólogo hospitalar em um CO. deve trabalhar com os aspectos
biopsicossociais, realizando atendimentos psicoterápicos diversos, discussão de casos,
orientações terapêuticas, supervisão de parto e manejo da dor, protocolo de luto e
encaminhamentos. Porém, nos deparamos com pouco respaldo teórico para nossa atuação.

Apresentetaremos a seguir, as principais atividades que podem ser desenvolvidas


pelo psicólogo em um CO, baseados na nossa prática e na articulação teórica com a literatura
pequisada.

2.1 Acompanhamento psicológico durante o trabalho de parto e parto para alívio não

farmacológico da dor

O parto, por mais que seja um momento crítico na vida da mulher, pode ser uma
experiência única. Mas para ter satisfação no parto, é fundamental a gestante fazer sua escolha
fundamentada em suas crenças e seus valores, sendo esclarecida sobre os procedimentos que
irá enfrentar.

Quando se trata de parto normal, existem técnicas não farmacológicas de alívio da


dor que auxiliam nesse longo processo: banho quente, massagem, exercícios de respiração,
deambulação, posições específicas, exercícios sobre a bola e sobre o “cavalo” fisioterápico,
entre outros (MARTINHO, 2011). Esses recursos podem ser utilizados por psicólogos como
também por outros membros da equipe, como as enfermeiras obstetras e as doulas.

O alívio da dor não é o único fator que deve ser levado em conta ao considerar o
cuidado e o conforto no trabalho de parto. Dessa forma, o psicólogo verifica o nível
ansiogênico positivo e negativo da parturiente, mediante avaliações e orientações terapêuticas
no trabalho de parto e com foco no parto. Sua atuação tem por objetivo realizar uma
contenção do estado psíquico da parturiente, que propicie uma ressignificação de suas dores.
Assim, a intervenção contribui para a redução da ansiedade e para seu empoderamento
(SIMONETTI, 2004).

Quando se trata de parto cesáreo, o atendimento psicológico envolve esclarecimento

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à mãe sobre os procedimentos a serem realizados relacionados ao processo cirúrgico. Esse


esclarecimento envolve a anestesia, posição e como agir e ainda inclui orientações sobre a sua
permanência no bloco cirúrgico após a cirurgia.

Nesse atendimento, o psicólogo deve utilizar gravuras que demonstrem algumas


etapas da cesárea, auxiliando nas desmistificações de mitos e na redução da ansiedade. O
intuito é de qualificar a voz da gestante, focalizando a constituição do significado da
experiência do nascimento para as mulheres e homens envolvidos na reprodução.

2.2 Atendimento psicológico em casos de prematuridade e malformação fetal

O nascimento de uma criança pré-termo ou com diagnóstico de malformação é


consecutivamente seguida de angústia por parte das parturientes e seus familiares.

No caso de prematuridade, ou seja, idade gestacional inferior à 37 semanas, o


psicólogo realizará uma intervenção visando tranquilizá-las e orientá-las diante de uma
possível internação do concepto na UTI neonatal (UTIN).

Para Lopes (2004), o psicólogo deverá facilitar os contatos iniciais dos pais com o
seu bebê, oferecendo informações sobre a sua saúde, os cuidados que irá receber e o direito
que lhes assiste de estar junto ao seu filho, bem como seus familiares, estimulando a
vinculação afetiva ou preparando para possíveis sequelas e/ou até o óbito.

No caso de anormalidade do bebê, as intervenções do psicólogo podem ser propostas


desde o pré-natal, nas situações em que os casais tomam conhecimento do diagnóstico do
concepto (GOMES, 2007).

Bortoletti, Silva e Tirado (2007) ressaltam que os objetivos do psicólogo devem em


casos de inviabilidade do feto, preparar os pais para o luto, evitando que a gestante transforme
a esperança em negação da realidade; prevenir a depressão pós-parto e a psicose puerperal, já
que essas gestantes têm aumento nos riscos de desenvolvimento de psicopatologias.

2.3 Atendimento psicológico em casos de óbito perinatal

A organização Mundical da Saúde (OMS) define óbito fetal a morte que ocorre “[...]
em qualquer momento da gravidez, independentemente de sua localização, incluindo abortos
e gestações extrauterinas [...]”(BRASIL, 2012, p.101). Natimorto, portanto, é esse feto que
morre antes ou durante seu nascimento.

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No caso de óbito fetal, o papel do psicólogo segundo Arrais, Muza, Sousa e Iaconelli
(2013), é o de prevenir possíveis psicopatologias relacionadas à vida ou morte do bebê, além
do esclarecimento e atenção às fantasias dos pacientes. Assim como, auxiliar esses pais,
incentivando os rituais fúnebres, quando possível, e visita ao natimorto, para que possam
tornar suas lembranças as mais reais possíveis, a fim de que se despeçam daquele que
reconhecidamente é seu filho. Ou seja, o trabalho do psicólogo é tornar os natimortos visíveis
para que a dor dos pais possa assim, ser reconhecida.

Este trabalho, nomeado como protocolo de luto é descrito por Iaconelli (2007) e
Arrais, Muza, Sousa e Iaconelli (2013) como procedimentos que permitem a desconstrução do
investimento subjetivo feito no bebê, tendo os pais a oportunidade de reconhecer o lugar do
bebê falecido, independente do seu número de semanas e formação, facilitando, por fim, a
elaboração desta perda e o surgimento do luto patológico.

2.4 Atendimento psicológico a gestantes com hiperemese gravídica

Hiperemese gravídica trata-se de vômitos e náuseas que podem provocar


desidratação, distúrbios hidroeletrolíticos, metabólicos e nutricionais, ocorrendo geralmente
no primeiro trimestre da gestação. A causa da hiperemese gravídica ainda não está
completamente esclarecida, mas, atualmente, alguns estudos incluem fatores biológicos e
psicológicos (SUN, 2007).

A manifestação da hiperemese começou a ser investigada psicologicamente pela


psicanálise, pois era compreendido que os vômitos poderiam ser interpretados como uma
rejeição da gravidez. Chertok et al (1963) apud Campos (2000), afirma que os vômitos não
seriam um ato simbólico de rejeição, como dizia a psicanálise, mas sim uma atitude mais
complexa, um sentimento de forte ambivalência da mãe frente à gravidez, ou seja, um conflito
entre a rejeição e seu oposto.

A intervenção psicologica em caso de hiperemese é intervir sobre o foco


desencadeador de acordo com a psicoterapia breve, transmitir tranquilidade à gestante,
esclarecê-la sobre o caráter fisiológico e orinetar a gestante sobre os hábitos alimentares
adequados (SUN, 2007)

2.5 Atendimento psicológico à parturiente com diabetes

O Diabetes Mellitus Gestacional (DMG) é definido por Padilha et al (2010) pela

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diminuição da tolerância à glicose, que se inicia ou é reconhecida pela primeira vez na


gestação, podendo ou não persistir após o parto.

O diagnóstico de DMG está associado às sérias complicações, que incluem: maior


risco de rotura prematura de membranas, parto pré-termo, feto macrossômico, pré-eclâmpsia,
o risco da gestante desenvolver diabetes tipo 2 no futuro, e à chance de a criança desenvolver
obesidade e diabetes na idade adulta. Adicionalmente, o DMG aumenta a morbidade neonatal,
expondo os recém-nascidos a maiores riscos de síndrome de angústia respiratória,
cardiomiopatia, icterícia, hipoglicemia, hipocalcemia, hipomagnesemia e policitemia
(MATTAR et al, 2011).

Nesse contexto, o sofrimento psicológico à parturiente com diabetes está


frequentemente associado a diversas dificuldades ligadas ao enfrentamento da rotina diária do
tratamento e ao medo de desenvolver complicações futuras decorrentes. Esse sofrimento pode
impedir que a paciente assuma comportamentos de autocuidado, comprometendo o controle
glicêmico.

Dessa forma, o acompanhamento psicológico torna-se muito importante para as


gestantes com diagnóstico de DMG, pois proporcionará uma elaboração dos aspectos
emocionais da doença minimizando os sofrimentos psíquicos e o temor do parto prematuro,
do óbito perinatal ou mesmo da morte materna.

2.6 Atendimento psicológico a parturiente com síndrome hipertensiva

Quando diagnosticada com síndrome hipertensiva, a paciente necessitará de rigoroso


acompanhamento médico, com monitoramento constante da pressão arterial e
acompanhamento das dosagens de proteínas. Quando são detectados fetos com alterações
indicativas de grave insuficiência placentária, recomenda-se a interrupção da gestação,
independente da idade gestacional (MOURA et al, 2011).

A intervenção psicológica nesse contexto, ocorre no sentido de orientação da


gestante, devendo-se transmitir tranquilidade e orientação sobre a sua situação. De acordo
com o Ministério da Saúde (BRASIL, 2012), o psicólogo é o profissional preparado para
ajudar a paciente, bem como sua família a lidar com as dificuldades emocionais envolvendo
suas angústias, medo e dúvidas em relação à gestação e ao desfecho do parto.

Dessa forma, faz-se importante a presença e a intervenção do psicólogo junto à

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gestante hipertensa no CO., na medida em que esse possibilita a criação de estratégias para
lidar com experiências que causam ansiedade, ajudando no enfrentamento da situação da
melhor forma possível e prevenindo o parto prematuro e o temor do óbito perinatal ou mesmo
da morte materna.

2.7 Atendimento psicológico aos acompanhantes das parturientes

A presença de um acompanhante nos partos diminuiu o tempo de internação,


depressão pós-parto e melhora as condições de nascimento. Contribui, ainda, para que o parto
seja percebido pela mulher como uma experiência positiva e fortalecedora de vínculos (REIS;
PATRICIO, 2013).

O atendimento psicológico ao acompanhante é feito no momento de escuta à


gestante/parturiente, desde a sala de espera e na entrada do hospital. Há esclarecimento de
dúvidas, dinâmica do parto cesáreo ou natural, apoio emocional, orientações em saúde,
mediação entre equipe e acompanhante e marcação de interconsultas quando necessário.

Pode-se concluir que os acompanhantes devem ser considerados elementos que


integram o processo terapêutico, por conta de sua eficácia clínica. “Sempre que possível, a
autorização de visitas e acompanhantes deve respeitar o desejo e a autonomia do paciente e
considerar as demandas específicas” (BRASIL, 2007, p.13).

Cabe ao psicólogo estimular a presença dos acompanhantes no CO, escolhidos pela


parturiente, durante o trabalho de parto e parto. Orientá-los quanto a participação ativa no
processo, repassando informações sobre o processo do parto, controle não farmacológico da
dor, normas de conduta do CO.

3 MÉTODO

Trata-se de um estudo quantitativo, exploratório e tranversal, realizado em uma


unidade hospitalar pública do DF que consta a atuação do psicólogo hospitalar no CO.

Os colaboradores foram trinta e um servidores de um Hospital Público em Brasília,


atuantes diretamente no cento obstétrico da unidade.

Para conhecer como a equipe percebe o papel do psicólogo no CO., utilizou-se um


questionário semiestruturado elaborado com referência na literatura pela própria
pesquisadora.

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O questionário foi composto por oito questões fechadas e quatro abertas, sobre os
temas: papel do psicólogo no CO, atividades desenvolvidas pelo psicólogo hospitalar no CO,
setting, quem deve anunciar o óbito, a clientela da psicologia no CO, aspectos positivos e
negativos em relação a presença do psicólogo no CO.

Tendo em vista os aspecto éticos, a pesquisa foi submetida ao comitê de ética em


pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde – FEPECS, por meio da
Plataforma Brasil. Inicando-se a coletado dos dados após a aprovação da FEPECS e
autorização da direção do hospital. Os funcionários foram contactados pessoalmente no
horário de seu plantão, sendo esclarecidos sobre o objetivo do estudo e apresentado o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, que foi lido e assinado quando concordaram
em ser colaboradores.

4 RESULTADOS

Foram disponibilizados cinquenta e dois questionários à equipe, mas somente trinta e


um servidores devolveram os instrumentos respondidos, os quais compuseram a amostra do
estudo, ou seja, somente 59,6% dos que aceitaram participar da pequisa efetivametne
compuseram a amostra. Desses, treze (41,94%) eram médicos, oito (25,81%) da equipe de
enfermagem, seis (19,35%) eram estagiários de enfermagem, três (9,68%) da equipe de
nutrição (nutricionistas e Técnico de nutrição), um (3,23%) era técnico administrativo.

Entre esses profissionais, vinte e dois (70,97%) declararam trabalhar com a


perspectiva biopsicossocial, seis (19,35%) com a perspectiva biomédica, e três (10%) não
responderam.

Quanto ao contato da equipe com profissional da psicologia no ambiente de trabalho,


a maioria (54,84%) ou dezessete profissionais declararam que não trabalhavam com psicólogo
no CO., contra (45,16%) quatorze profissionais que declararam trabalhar com esse
profissional. Por outro lado, em outros serviços de saúde, dezessete ou 54,84%, afirmaram
que já trabalharam com psicólogos, enquanto doze ou 38,71% nunca trabalharam com esse
profissional e restando dois ou 6,45% que não responderam a questão.

As respostas em relação ao foco de trabalho do psicólogo hospitalar no CO.


revelaram que vinte dos servidores ou 64,52% relataram que o foco seria os acompanhantes e
parturientes, sendo que ninguém mencionou ser exclusivamente os acompanhantes. Quatro ou

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12,90% deles mencionaram as parturientes, seis (19,35%) responderam que o foco seria a
equipe de enfermagem ou equipe médica, e apenas um (3,23%) mencionou ser os recém
nascidos.

Quanto ao local de atendimento psicológico, a maioria dos respondentes da pesquisa,


com 58,06% (18) das respostas, o local indicado para os atendimentos psicológicos no CO.
deveria ser onde os usuários estivessem, por não ter um local estipulado para procederem aos
atendimentos dessa natureza. Sete (22,58%) mencionaram que os atendimentos ocorreriam no
próprio leito e os três demais (9,68) relataram que ocorreriam em sala reservada se o usuário
solicitasse, ou o local do atendimento deveria ser avaliado dependendo de cada caso.

Todos os participantes mencionaram suas opiniões a respeito das atividades que


poderiam ser desenvolvidas pelo serviço de psicologia hospitalar em um CO. Verifica-se que
todos participantes acreditam que o psicólogo poderia desenvolver atividade para: amenizar o
nível de ansiedade da parturiente e seu acompanhante, durante o trabalho de parto – TP (31-
100%); realizar atendimento quando tiver ocorrência de natimorto (óbito fetal) (31-100%);e
orientar a puérpera e seu companheiro quanto a possíveis mudanças que poderão vir atreladas
àchegada do bebê (31-100%).

Dentre as atividades que os participantes acreditam que o psicólogo não possa fazer,
três receberam um percentual com maior elevação (≥41,94%), sendo: I - Orientar a parturiente
e seu acompanhante quanto ao procedimento do parto cesáreo (13 - 41,94%); II- esclarecer a
parturiente e seu acompanhante quando os mesmos tiverem dúvidas em relação às
intercorrências que estejam vivenciando (diabetes gestacional, síndrome hipertensiva
gestacional, hiperêmese gravídica, malformação fetal) (14 - 45,16%); III - Instruir a
parturiente e seu acompanhante sobre a rotina hospitalar (14 - 45,16%).

Dentre as atividades elencadas, apenas duas não receberam opinião de um


participante (3,23%) se o psicólogo pode ou não realizar a atividade descrita. Uma delas foi
referente à psicologia fazer uso dos recursos não-farmacológicos durante o trabalho de parto
para o alívio da dor e o ato de o psicólogo humanizar o centro cirúrgico através de sua
presença e de seu discurso diferenciado dos demais profissionais.

A avaliação dos participantes quanto à relevância da atuação do psicólogo no CO.,


pode ser vista que, 29 (93,55%) dos servidores acredita que a atuação do psicólogo é muito
importante ou importante, pois o momento do trabalho de parto e parto pode causar

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desconforto, muita ansiedade, medo e receio por parte da parturiente e seu acompanhante,
nesse momento o psicólogo poderá orientar os usuários sobre os procedimentos que serão
adotados pela equipe no momento do trabalho de parto e parto, auxiliando assim no trabalho
da equipe.

A presença do psicólogo no CO. não foi dispensada por nenhum profissional e dois
(6,45%) mencionaram que a presença do psicólogo é razoável por considerarem que o
psicólogo atrapalha a rotina do CO., ressaltando que seria importante contar com um
psicólogo no hospital em outro setor, para que quando sua intervenção fosse realmente
necessária, ele fosse chamado.

Por meio das perguntas abertas, constatamos que 93,55% equivalente a vinte nove
servidores, declararam que o psicólogo ajuda a equipe do CO.: proporcionando apoio
emocional à parturiente e acompanhante no trabalho de parto, parto e pós-parto; orientando os
usuários sobre o trabalho de parto e rotina hospitalar; atendendo casos de óbito fetal,
anomalias fetais e morte materna, e amenizando o nível de ansiedade dos mesmos e da
própria equipe. A ajuda também é percebida quando o psicólogo auxilia no relacionamento
entre equipe de saúde, pacientes e familiares, evitando assim conflitos desnecessários entre
ambos e até mesmo entre a própria equipe, por seu apoio prestado aos servidores e por seu
trabalho de humanização.

Verificamos que além dos relatos positivos sobre o trabalho do psicólogo, ele
também é percebido como um profissional que não contribui ou prejudica o trabalho da
equipe. Identificou-se que doze servidores ou 38,71% da amostra avaliaram que o psicólogo
pode atrapalhar a equipe de saúde, especialmente durante o parto, devido o espaço físico ser
insuficiente para toda equipe; caso esteja atendendo em um momento cuja necessidade é de
atuação médica; se realizar atendimento sem discutir previamente com a equipe; pelo grande
número de profissionais pode deixar a parturiente nervosa e se a equipe tiver dificuldade de
reconhecer a importância do trabalho multiprofissional.

Os participantes foram solicitados a expressarem seus pensamentos sobre a atuação


do psicólogo nos hospitais, e constatamos que os seis (19,35%) profissionais que declararam
trabalhar com o modelo biomédico mencionaram que é importante a atuação do psicólogo
para amenizar a ansiedade, medo e receio da parturiente e seu acompanhante, favorecendo na
concentração das mesmas no trabalho de parto e parto, contribuindo assim com o trabalho da

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equipe.

Os profissionais que trabalham com o modelo biopsicossocial (22- 70,97%),


relataram que o psicólogo é o profissional mais habilitado a prestar assistência emocional aos
pacientes de forma adequada, ajudando compreender a situação e as particularidades dos
pacientes.

Aqueles que não declararam sua perspectiva (3- 10%) referiram que é fundamental
que a parturiente e seus familiares tenham suporte psicológico devido o trabalho de parto e
parto serem um processo abrupto na vida e para prevenir as depressões pós-parto,
mencionando que seria importante o acompanhamento psicológico durante um mês após o
nascimento.

A pesquisa propôs um espaço para os participantes falarem livremente sobre o


trabalho do psicólogo no CO. Com essa abertura, dezoito servidores (58,06%) mencionaram
que o trabalho da Psicologia é fundamental e essencial, pois “se a mente estiver boa o corpo
irá refletir”(sic). Também mencionaram suas angústias referentes ao número de profissionais
da área de Psicologia, relatando que a quantidade de psicólogos no setor não é suficiente,
sendo necessário ter mais profissionais para garantir assistência a todos, até mesmo nos finais
de semana. Os demais (13 - 41,94%) não expressaram seus pensamentos.

5 DISCUSSÃO

O estudo demonstrou que a equipe obstétrica de um hospital público do Distrito


Federal percebe o trabalho do psicólogo hospitalar relevante para contribuir com a equipe
quando há alguma intercorrência no trabalho de parto e parto. O profissional de psicologia é
requisitado por todos servidores de saúde quando os mesmos se deparam com situações
especiais na rotina do CO. Afirma Arrais, Mourão (2013) e Chiattone (2007), que em casos de
óbito fetal, anomalias fetais, morte materna, entre outras intercorrências, a equipe de saúde
demanda atuação psicológica emergencial, pois o sofrimento dos pacientes fica mais evidente
nestas situações.

No entanto, não identificam demanda para a atuação psicologica, quando não há esse
contexto de intercorrência. O profissional de psicologia não é requisitado pelos servidores de
saúde quando as pacientes passam pelo trabalho de parto e parto sem intercorrências. Nesses
casos, a equipe alega que o psicólogo pode atrapalhar a equipe devido ao espaço físico ser

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insuficiente para toda equipe, e por ser um momento de necessidade da atuação médica.
Portanto, não percebem o papel preventivo e de ajuda que o psicólogo pode ter no momento
do parto, mencionando que grande número de profissionais pode deixar a parturiente nervosa.
Ou seja, não percebem o trabalho preventivo do psicólogo. Essa colocação é demonstrada
também no estudo de Arrais, Mourão (2013), quando pontua que raramente os psicólogos são
chamados para intervir de forma proporcionar a psicoprofilaxia das gestantes e puérperas.

Paradoxalmente, alguns participantes ressaltaram que o psicólogo ajuda a equipe


quando proporcionam apoio emocional à parturiente e acompanhante no trabalho de parto,
parto e pós-parto amenizando o nível de ansiedade. Apesar dos servidores não demandarem
uma atuação preventiva do psicólogo, observa-se que os mesmos concordaram com as
atividades desenvolvidas pelo psicólogo que visa cumprir os objetivos da psicoprofilaxia
mencionado por Bortoletti (2007), no quesito de facilitar o desenvolvimento das
potencialidades dos envolvidos do processo para a nova realidade.

Essas contradições reafirmam o estudo de Tonetto e Gomes (2007), dos psicólogos


não serem totalmente aceitos pela equipe. Essa não aceitação também pode ser sugerida
quando 21 servidores não devolveram os instrumentos respondidos, ressaltando que essa
ocorrência também pode ser levada em consideração as variáveis, que no caso, rotina
hospitalar, sobrecarga no serviço e/ou a não valorização da pesquisa psicológica.

O estudo revelou que a maioria dos profissionais entrevistados não trabalhou


conjuntamente com o psicólogo no CO, por mais que o serviço conte com dois psicólogos e
seis estagiários de psicologia no setor. Esse desconhecimento pode-se dar devido à
desvalorização do profissional de psicologia, por não assumirem uma posição de igualdade, e
por não considerarem as necessidades biopsicossociais e culturais das pacientes, ou
simplesmente, pelo fato dos profissionais ficarem a maioria do tempo no bloco cirúrgico ou
nos consultórios do CO., onde o psicólogo raramente atua.

Assim, é necessário o psicólogo ter uma postura ativa no processo, para realizar
profilaxia, pois, de acordo com a demanda da equipe, o psicólogo irá intervir apenas em
situações de crise. Cabe a esse profissional mostrar que também pode contribuir para que o
trabalho de parto e parto, seja menos traumático, mais humanizado, e bem sucedido, tanto em
casos de risco habitual como em casos de alto risco que enfrentem alguma intercorrância,
como afirma Bortoletti (2007).

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O psicólogo hospitalar no CO. é reconhecido pelos funcionários de saúde como


profissional capaz de amenizar o nível de ansiedade, medo e desconforto da parturiente e seu
acompanhante, durante o trabalho de parto e parto. Esse reconhecimento reafirma que os
objetivos psicológicos pontuado por Simonetti (2004) são cumpridos por realizar uma
contenção do estado psíquico da parturiente, que muitas vezes encontra-se “desorganizado” e
necessitando de uma intervenção de “maternagem” por parte deste profissional, que propicia
uma ressignificação de suas dores físicas e suas falas e, assim, ao “emprestar” o equilíbrio
emocional à mesma, corroborar para o seu empoderamento e à redução da ansiedade.

Os servidores mencionaram que os focos de trabalho do psicólogo hospitalar no CO.


são os acompanhantes e parturientes. Porém apresentam também uma demanda para
atendimento também à equipe quando mencionam que o psicólogo poderia atender as queixas
emocionais e de trabalho da equipe, evitando também conflitos desnecessários entre ambos.
Essa demanda é apresentada também no estudo de Gorayeb, Borges, Oliveira (2012), quando
evidenciaram a necessidade de uma intervenção psicologica voltada para o suporte à equipe,
visando melhorar as relações interpessoais entre os profissionais.

Remetem também que os conflitos entre equipe e paciente são evitados quando o
psicólogo auxilia o relacionamento entre ambos. Esse papel de mediador da relação entre os
profissionais e os pacientes é confirmado por Souza, Delevati (2013), que argumenta que
independentemente da instituição onde atua, o psicólogo da saúde pode desempenhar essa
função, que facilita a compreensão dos procedimentos recomendados, assim como pode
ajudar estes profissionais na comunicação mais clara com os pacientes.

No presente trabalho verificamos que a visão dos servidores em relação ao setting


psicológico em um ambiente hospitalar está de acordo com a literatura, quando mencionam
que os atendimentos aconteceriam onde os usuários estivessem, por não ter um local
estipulado para procederem aos atendimentos, pois conforme Simonetti (2004), a capacidade
de escuta deste profissional nesse contexto é mais importante do que em um setting pré-
determinado.

A pesquisa revelou que os servidores de saúde dão relevância ao psiquismo e a


subjetividade dos usuários como aspectos importantes no processo do trabalho de parto e
parto. Essa importância aparece quando solicitam mais profissionais de psicologia no CO.,
para garantir assistência a todos, até mesmo nos finais de semana, por acreditarem que “se a

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mente estiver boa o corpo irá refletir”(sic). Essa colocação está de acordo com Lazzaretti
(2007), quando pontua que a assistência física é insuficiente para abarcar o ser humano em
todos os seus âmbitos, e oferecer um tratamento que lhe proporcione a qualidade de vida em
sua totalidade.

Quase a metade dos servidores mencionou que o psicólogo não deve orientar os
usuários em relação ao procedimento do parto cesáreo, esclarecer as dúvidas em relação às
intercorrências e instruir os mesmos sobre a rotina hospitalar.Estas afirmações se opõem à
visão de Arrais, Mourão (2013) quando relatam que o psicólogo deve esclarecer os pacientes
sobre os procedimentos que estarão sendo feitos no período de internação, orientá-los e sanar
suas dúvidas em relação as intercorrências que estiverem vivenciando e preparar
psicologicamente a paciente para enfrentar o parto natural quanto cesáreo.

Observa-se que os servidores de saúde do CO. solicitam outros profissionais de


outras especialidades para compreensão do caso quando se deparam com seus limites, e não
simplesmente por trabalharem com a perspectiva biopsicossocial ou biomédica, pois ambos
profissionais independentemente da perspectiva de trabalho concordam em relatar que o
psicólogo é o profissional habilitado para atuar na esfera emocional.

Essa pesquisa contou com a participação mais efetiva dos servidores que declararam
trabalhar com o modelo biopsicossocial, que pode ter influenciado os resultados encontrados,
pois de acordo com Tonetto e Gomes (2007), o trabalho da equipe de psicologia é mais bem
compreendido em instituições com predomínio do modelo biopsicossocial, no entanto, não é
viável colocar os profissionais que declararam trabalhar com o modelo biomédico como
obstáculo ao trabalho, já que os resultados obtidos pela parte participante não foi discrepante
com aqueles encontrados no modelo biopsicossocial.

Constatamos que apesar do psicólogo estar inserido no contexto hospitalar, sua


inserção efetiva para com a equipe está em construção. Então vale ressaltar que o psicólogo
em sua competência, deve investir em comunicação empática e escuta ativa, para que através
de seus atendimentos ele possa mostrar o sentido de sua atuação. Assim, progressivamente,
poderá sensibilizar a equipe e fazê-la entender a contribuição da psicologia para a área da
saúde, revertendo o quadro de desvalorização para o conhecimento e aceitação da atuação
psicológica.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa demonstrou que os servidores de saúde têm conhecimento sobre a


atuação do psicólogo hospitalar no CO., visando um trabalho multiprofissional, por mais que
essa busca seja apenas em momentos que desafia seus limites profissionais.

Quanto ao processo parturitivo, o ideal seria que os servidores reconhecessem a


importância dos aspectos fisiológicos e mentais para abarcar o ser humano em sua totalidade e
proporcionar um trabalho de parto e parto ativo e feliz. Essa ideia não foi corroborada pelo
presente estudo, pois os aspectos psiquicos deixam de ser invisíveis apenas em situações de
crise, onde o psicologo é solicitado a intervir. O atendimento psicológico primário não é
requisitado, por mais que os relatos dos servidores afirmem a valorização do cuidar em todos
os níveis. Assim, pode-se questionar o discurso por fantasia de agradar ao entrevistador e ser
“politicamente correto”.

Acredita-se que o reconhecimento da importância da contribuição de diversos


profissionais da área da saúde no trabalho de parto e parto seja um facilitador para o processo
parturitivo, por oferecer um atendimento integral à parturiente e seu acompanhante, no
quesito do cuidar, tanto nas mudanças fisiológicas, como também no acolhimento das
alterações emocionais acometidas no trabalho de parto e parto.

Acredita-se que este estudo possa contribuir para a construção e sistematização do


papel do psicólogo hospitalar em um CO., expandindo as áreas de atuação no âmbito
hospitalar, que favorecerá a inserção do psicólogo neste tipo de serviço. Pretende-se que sua
participação em um CO. venha ser aceito e requisitado pelos hospitais e profissionais que
atuam no setor, por acreditar que sua atuação primária possa preservar a saúde mental.

A atuação do psicólogo hospitalar num CO. é recente e rara, pois esse profissional
frequentemente não está presente em CO., sejam públicos ou privados. Sugere-se a
continuação da pesquisa na área, para renovar e atualizar sua atuação. As pesquisas que
poderiam auxiliar o trabalho do psicólogo hospitalar num CO. seriam: I – Pesquisa junto à
equipe sobre suas maiores fragilidades frente ao trabalho de parto e parto; II – Pesquisa junto
à pacientes e acompanhantes sobre suas maiores necessidades no momento parturitivo; III –
Padronização da atuação do psicólogo hospitalar num CO.

Por fim, além dos conteúdos expostos nesse trabalho, ainda há muito a ser realizado.
Além do conhecimento que a pesquisa proporcionou, sugere-se que o psicólogo deva sempre

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refletir sobre sua atuação, buscando aperfeiçoar para contribuir com os pesquisadores da área
da psicologia da saúde, no trabalho com a equipe de saúde, como também para atender as
demandas dos pacientes.

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RIES, ISSN 2238-832X, Caçador, v.3, n.2, p. 49-67, 2014.


18
DOI: 10.15253/2175-6783.2016000600002 Artigo Original
www.revistarene.ufc.br

Perfil epidemiológico de mães de recém-nascidos admitidos em uma


unidade neonatal pública*
Epidemiological profile of newborns´ mothers admitted to a public neonatal unit

Mariana Fanstone Ferraresi1, Alessandra da Rocha Arrais1

Objetivo: identificar o perfil epidemiológico de mães de recém-nascidos internados em uma unidade neonatal
pública. Métodos: estudo descritivo e transversal, realizado com 57 mães e 58 bebês que ficaram internados
na unidade neonatal. Resultados: observou-se que a maioria das mulheres tinha condições sociodemográficas
desfavoráveis, apresentou intercorrências na gestação e, apesar da maior parte ter realizado o número
preconizado de consultas de pré-natal, o internamento do recém-nascido em Unidade especializada leva ao
questionamento da qualidade dessa assistência. Conclusão: identificou-se perfil de risco para admissão de
recém-nascidos em Unidade especializada, pois a maioria das mulheres tinha condições sociodemográficas
desfavoráveis e apresentou intercorrências na gestação.
Descritores: Unidades de Terapia Intensiva Neonatal; Saúde Materno-Infantil; Perfil de Saúde.

Objective: to identify the epidemiological profile newborns´ mothers hospitalized in a public neonatal unit.
Methods: this is a descriptive and cross-sectional study of 57 mothers and 58 infants who were admitted to the
neonatal unit. Results: it was observed that most of the women had unfavorable sociodemographic conditions,
had intercurrences during pregnancy and although most of them had performed the recommended number of
prenatal consultations, the hospitalization of the newborn in a specialized unit leads to questioning the quality
of this care. Conclusion: a risk profile for admission of newborns in a specialized unit was identified, since most
of the women had unfavorable sociodemographic conditions and presented intercurrences during pregnancy.
Descriptors: Intensive Care Units, Neonatal; Maternal and Child Health; Health Profile.

*Extraído da dissertação “Avaliação da assistência multiprofissional em uma unidade neonatal pública do Distrito Federal na perspectiva das
mães”, Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde, 2016.

Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde. Brasília, DF, Brasil.


1

Autor correspondente: Mariana Fanstone Ferraresi


SMHN Quadra 03, Conjunto A, Bloco 1 - CEP: 70710-907. Brasília, DF, Brasil. E-mail: marianafferraresi@gmail.com

Submetido: 06/04/2016; Aceito: 18/10/2016. Rev Rene. 2016 nov-dez; 17(6):733-40. 733
Ferraresi MF, Arrais AR

Introdução pesquisas que possam evidenciar as principais carac-


terísticas epidemiológicas das mães dos bebês inter-
A diminuição do número de mortes de recém- nados em unidade neonatal, pois este conhecimento
nascidos no mundo, por meio dos rápidos avanços constitui importante ferramenta para realizar melho-
tecnológicos e científicos, possibilitou maior sobre- ria na assistência pré-natal, parto e nascimento, de
vida de neonatos antes considerados inviáveis, cons- modo a prevenir afecções perinatais e óbitos neona-
tituindo, assim, um dos maiores sucessos no campo tais(3).
da saúde pública(1). O Brasil conseguiu alcançar o Ob- O conhecimento das características dessas
jetivo de Desenvolvimento do Milênio de reduzir em mães é relevante, pois pode contribuir para promoção
dois terços a taxa de mortalidade infantil. Entretanto, e melhoria da saúde materno-infantil, auxiliando na
ainda se observa elevada taxa de óbitos neonatais. Na elaboração de políticas de saúde pública direcionadas
atualidade, a maior parte destes óbitos pode ser as- ao grupo da população estudada e na prevenção das
sociada a causas preveníveis, evidenciando, assim, a afecções perinatais que podem levar à necessidade de
necessidade da melhoria do acesso e da qualidade da tratamento intensivo em unidade especializada.
atenção materno-infantil(2-3). Neste cenário, considerando que o perfil das
O período neonatal é vulnerável e constitui o mães pode influenciar no nascimento de recém-nasci-
principal componente da mortalidade infantil. Esti- dos com necessidade de internação em uma unidade
ma-se que cerca de 25,0% das mortes acontecem nas neonatal, este estudo teve como objetivo identificar o
primeiras vinte e quatro horas de vida. A maioria das perfil epidemiológico de mães de recém-nascidos in-
mortes neonatais está relacionada à prematuridade, ternados em uma unidade neonatal pública.
asfixia e infecções, fatores potencialmente controlá-
veis. O componente neonatal possui relação estreita Métodos
com as condições de atenção à saúde da mulher du-
rante a gestação e de acesso aos serviços de atenção Estudo descritivo e transversal, realizado em
ao parto e ao nascimento(2). uma unidade neonatal pública de um hospital de alta
A literatura mostra vários fatores de risco ges- complexidade vinculado ao Sistema Único de Saúde,
tacionais, como idade materna avançada, gravidez na localizado no Distrito Federal, Brasil.
adolescência, condições socioeconômicas desfavorá- Este estudo teve como critérios de inclusão: pe-
veis, baixa escolaridade, alta paridade, doença obs- ríodo mínimo de sete dias de internação do bebê na
tétrica na gestação, assistência pré-natal de má qua- Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e dois dias de
lidade e/ou insuficiente, intercorrências clínicas na internação na Unidade de Cuidados Intermediários
gestação, entre outros. Esses podem contribuir para Neonatal. Esses critérios foram estabelecidos, consi-
desfechos neonatais desfavoráveis, como a internação derando-se a necessidade de um tempo de convivên-
do recém-nascido em uma unidade neonatal(4-6). cia das mães com a equipe para responder ao questio-
Em relação às características dos recém-nasci- nário e às características inerentes de cada unidade,
dos internados em uma unidade neonatal, a prematu- devido à Unidade de Terapia Intensiva Neonatal pos-
ridade e o baixo peso ao nascer representam os prin- suir menor rotatividade e maior tempo de internação
cipais motivos das internações. Esses recém-nascidos, dos bebês.
em grande maioria, demandam cuidados especiais e A amostra deu-se por conveniência e foi com-
contínuos, pois possuem maior probabilidade de in- posta por 57 mães e 58 bebês que ficaram internados
fecções, atraso no desenvolvimento e morte(7-8). na unidade neonatal onde foi realizado o estudo. O
Diante desse contexto, fazem-se necessárias período de coleta de dados foi entre abril e setembro

734 Rev Rene. 2016 nov-dez; 17(6):733-40.


Perfil epidemiológico de mães de recém-nascidos admitidos em uma unidade neonatal pública

de 2015. Os dados foram coletados dos prontuários Resultados


e também por meio de um quastionário estrutura-
do, elaborado e pré-testado pelas pesquisadoras. O Quanto à renda, observou-se que um número
pré-teste foi realizado com cinco mulheres antes da significativo das mães (50,9%) vivia com a renda per
aplicação dos questionários para coleta definitiva de capita de até um salário mínimo. A maior parte das
dados da pesquisa. Após o pré-teste, o questionário mães era procedente do Distrito Federal (29,8%) e
foi ajustado com objetivo de adequá-lo à realidade do de Goiás (29,8%) e cerca de 70,0% não possuía tra-
serviço. Diariamente, foi obtida a relação de pacien- balho extra domiciliar. Em relação ao grau de instru-
tes aptas a ingressarem no estudo e, posteriormente, ção, 89,4% não possuía ensino superior completo. Ob-
foi realizado um convite às mães que se enquadravam servou-se que 42,1% cursou ensino médio completo,
nos critérios de inclusão para participarem da pesqui- seguida de fundamental incompleto (21,0%) e médio
sa. A abordagem das mães foi iniciada com uma apre- incompleto (12,3%). Quanto ao estado civil, os resul-
sentação da pesquisa, seus riscos, benefícios, custos e tados demonstraram que a maioria das mães era casa-
liberdade para participar ou não. Os questionários fo- da (57,9%), seguida de solteira (31,5%). Em relação à
ram aplicados às mães na unidade neonatal, por meio idade, foi observada maior frequência na faixa etária
de entrevistas realizadas por um auxiliar de pesquisa de 26 a 30 anos (28,0%) e de 21 a 25 anos (22,9%),
adequadamente treinado. sendo que os extremos de idade (< que 17 anos e > de
As variáveis foram coletadas em relação à mu- 35 anos – 8,8%) foram pouco prevalentes (Tabela 1).
lher, ao recém-nascido e sobre a assistência prestada,
a saber: Parturiente - idade em anos, renda familiar, Tabela 1 - Caracterização sociodemográfica das mães
escolaridade, estado civil, profissão, procedência, dos recém-nascidos internados em unidade neonatal
tipo de gestação, gravidez desejada/planejada, inter- pública
corrências na gravidez, filhos internados em unidade Dados sociodemográficos n (%) IC 95%*
Renda (Salário mínimo)
neonatal anteriormente, conhecimento sobre o moti- ≤1 29 (50,9) 37,44 – 64,2
1,0 – 1,5 8 (14,0) 6,68 – 26,35
vo pelo qual o bebê internou na unidade; recém-nasci- 1,5 – 2,0 9 (15,8) 7,91 – 28,37
>2 6 (10,5) 4,35 – 22,2
do - sexo, idade gestacional, peso ao nascer, indicação Sem resposta 5 (8,8) 3,27 – 20,04
Procedência
de internação do recém-nascido na Unidade, local de Distrito Federal 17 (29,8) 18,8 – 43,57
Goiás 17 (29,8) 18,8 – 43,57
internação; Assistência - número de consultas de pré- Bahia 7 (12,3) 5,49 – 24,29
Piauí 4 (7,0) 2,27 – 17,83
natal, tipo de parto. Outros 7 (12,3) 5,49 – 24,29
Sem resposta 5 (8,8) 3,27 – 20,04
Os dados coletados foram computados em um Trabalho extra domiciliar
Não 40 (70,2) 56,43 – 81,12
arquivo de dados no software Excel 2013 e, em segui- Sim 17 (29,8) 18,80 – 43,57
Escolaridade
da, processados com a utilização do programa estatís- Fundamental incompleto 12 (21,0) 11,80 – 34,25
Fundamental completo 1 (1,7) 0,09 – 10,63
tico Software R, versão 3.1.2. Para caracterização da Médio incompleto 7 (12,3) 5,49 – 24,29
Médio completo 24 (42,1) 29,40 – 55,88
população, foi utilizada estatística descritiva, utilizan- Superior incompleto 7 (12,3) 5,49 – 24,29
Superior completo 5 (8,8) 3,27 – 20,04
do frequências absolutas e relativas para as variáveis Sem resposta 1 (1,8) 0,09 – 10,63
Estado civil
estudadas, cuja análise foi feita por um profissional Casada 33 (57,9) 44,12 – 70,60
Solteira 18 (31,5) 20,27 – 45,38
estatístico contratado para esse fim. Foi estabelecido União estável 4 (7,0) 2,27 – 17,83
Divorciada 1 (1,8) 0,09 – 10,63
intervalo de confiança de 95,0% para as proporções. Sem resposta 1 (1,8) 0,09 – 10,63
Idade da mãe (anos)
O estudo respeitou as exigências formais conti- ≤ 17 5 (8,8) 3,27 – 20,04
18 – 20 12 (21,0) 11,80 – 34,25
das nas normas nacionais e internacionais regulamen- 21 – 25 13 (22,9) 13,16 – 36,16
26 – 30 16 (28,0) 17,36 – 41,75
tadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. 31 – 35 6 (10,5) 4,35 – 22,20
> 35 5 (8,8) 3,27 – 20,04
*Intervalo de Confiança

Rev Rene. 2016 nov-dez; 17(6):733-40. 735


Ferraresi MF, Arrais AR

Segundo os relatos das mães, a gravidez foi in- nos de 37 semanas. Estes podem ainda serem classifi-
desejada em 38,6% e não foi planejada em cerca de cados conforme o peso ao nascer, sendo considerados
43,0%. Os resultados também demonstraram que baixo peso aqueles nascidos com menos de 2.500g.
47,0% estavam na primeira gestação, 86,0% nunca
haviam sofrido um aborto, 89,5% nunca tinham tido Tabela 2 - Caracterização das intercorrências gesta-
um filho internado em uma unidade neonatal ante- cionais das mães de recém-nascidos internados em
riormente e 10,5% das mães não sabiam o motivo unidade neonatal pública
pelo qual o filho estava internado. Em 59,6% dos ca- Intercorrências gestacional n (%) IC 95%*
sos, as mães realizaram seis ou mais consultas duran- Sem intercorrências 18 (31,5) 20,27 – 45,38

te o pré-natal. Em relação ao tipo de parto, 72,0% das Intercorrências

mães tiveram parto cesáreo. Doença hipertensiva específica da 15 (26,3) 15,94 – 39,91
gestação
A Tabela 2 informa as intercorrências gestacio- Infecção do trato urinário 13 (22,8) 13,16 – 36,16
nais mais comuns. A maioria das mães (68,5%) teve Descolamento prematuro de placenta 2 (3,5) 0,61 – 13,16
alguma intercorrência, sendo as mais prevalentes a Crescimento intrauterino restrito 2 (3,5) 0,61 – 13,16
Doença Hipertensiva Específica da Gestação que ocor- Vaginose 1 (1,7) 0,09 – 10,63
reu em 26,3% dos casos, seguida de Infecção do trato Eclâmpsia 1 (1,7) 0,09 – 10,63

urinário, em 22,8%. Descolamento prematuro da pla- Doença inflamatória pélvica 1 (1,7) 0,09 – 10,63
Sífilis 1 (1,7) 0,09 – 10,63
centa e crescimento intrauterino ocorreram em 3,5%
Placenta prévia 1 (1,7) 0,09 – 10,63
das mães. As demais intercorrências que apareceram
Edema agudo de pulmão 1 (1,7) 0,09 – 10,63
uma única vez foram: vaginose, bolsa rota (12 dias),
Furunculose 1 (1,7) 0,09 – 10,63
eclampsia, doença inflamatória pélvica, sífilis, placen-
Monolíase vaginal 1 (1,7) 0,09 – 10,63
ta prévia, diabetes gestacional, edema agudo de pul- *Intervalo de Confiança
mão, furunculose e monolíase vaginal. O percentual
não totalizou 100,0% (n=57), visto que mais de uma Na Tabela 3, observa-se que 82,4% dos recém-
intercorrência pode ser relatada para uma única mãe. nascidos eram prematuros e 77,5% nasceram com
Vale destacar que 15,0% das mulheres que tiveram baixo peso. Os prematuros também foram classifica-
parto cesariana, nesta pesquisa, não apresentaram dos conforme grau de prematuridade. Os resultados
intercorrência de acordo com registros nos prontuá- desse estudo demonstraram que 12,1% eram prema-
rios e que 66,6% dos bebês dessas mulheres nasce- turos extremos (idade gestacional <que 28 semanas),
ram prematuros. 36,2% muito prematuros (28 a 32 semanas) e 34,5%
Quanto aos recém-nascidos, a amostra totali- prematuros moderados a prematuros tardios (32 a
zou 58, devido à presença de gêmeos. De acordo com 37 semanas). Em relação aos recém-nascidos de bai-
a Organização Mundial de Saúde, os recém-nascidos xo peso, destaca-se que 15,6% eram de extremo bai-
podem ser classificados pela idade gestacional, sendo- xo peso (<1.000g) e 29,3% muito baixo peso (1.000-
considerados prematuros os bebês nascidos com me 1.500g).

736 Rev Rene. 2016 nov-dez; 17(6):733-40.


Perfil epidemiológico de mães de recém-nascidos admitidos em uma unidade neonatal pública

Tabela 3 - Caracterização dos dados dos recém- Discussão


nascidos internados em unidade neonatal pública
Caracterização dos recém-nascidos n (%) IC 95%* Os dados obtidos neste estudo não podem
Idade gestacional (semanas completas) ser extrapolados para a população em geral, não
< 28 7 (12,1) 5,39 – 23,91 permitindo, desta maneira, a generalização dos
28 – 32 21 (36,2) 24,34 – 49,94
resultados. Apesar disso, os resultados encontrados
podem contribuir para elaboração de políticas de
32 – 37 20 (34,5) 22,82 – 48,12
saúde pública direcionadas ao grupo da população
> 37 10 (17,2) 9,01 – 29,88
estudada, uma vez que o conhecimento do perfil
Peso ao nascer (kg)
dessas mães pelos profissionais de saúde é essencial
<1 9 (15,6) 7,77 – 27,30
para desenvolver e priorizar uma assistência materno-
1,0 – 1,5 17 (29,3) 18,46 – 42,91 infantil de qualidade.
1,5 – 2,0 13 (22,4) 12,92 – 35,59 Neste estudo, as mulheres tenderam a ter fi-
2,0 – 2,5 6 (10,3) 4,27 – 21,83 lhos em idade mais avançada. O adiamento da mater-
2,5 – 4,0 13 (22,4) 12,92 – 42,91 nidade na nova constituição familiar tornou-se fator
Sexo comum na atualidade, visto que anteriormente a ado-
Masculino 33 (56,9) 43,29 – 69,6 lescência era considerada a faixa etária ideal para ter
Feminino 24 (41,4) 28,86 – 55,04
filhos(6). Em relação à escolaridade, os resultados da
presente investigação registraram que a maioria das
Sem resposta 1 (1,7) 0,09 – 10,46
mulheres não tinha ensino superior completo. Há evi-
Diagnóstico/indicação da internação
dências que a baixa escolaridade pode estar associada
Prematuridade 46 (79,3) 66,28 – 88,41
com a mortalidade neonatal. Mães que possuem essa
Baixo peso 44 (75,9) 62,54 – 85,72
condição são mais vulneráveis a situações de risco, as
Desconforto respiratório 33 (56,9) 43,29 – 69,60 quais podem afetar de maneira negativa a saúde do
Infecção neonatal 13 (22,4) 12,92 – 35,59 recém-nascido(4,9).
Local da internação A regionalização é uma das diretrizes do Sis-
Unidade de Cuidados Intermediários 23 (39,7) 27,33 – 53,36 tema Único de Saúde, e orienta a descentralização
Unidade de Terapia Intensiva Neonatal 35 (60,3) 46,64 – 72,67 das ações e serviços de saúde, possibilitando, assim,
*Intervalo de Confiança melhor assistência obstétrica, de modo a atender às
necessidades das gestantes em um determinado ter-
Observa-se ainda na Tabela 3 que a maioria ritório(10). Desta maneira, observa-se que os resulta-
dos recém-nascidos era do gênero masculino (56,9%). dos desse estudo corroboram com a ideia de que essa
O local de internação com o maior número de bebês regionalização enfrenta grandes desafios, sendo que,
no período estudado foi a Unidade de Terapia Inten- muitas vezes, a mesma não é cumprida, de modo que
siva, correspondendo a 60,3% das internações. Em muitas mulheres procuram serviços de saúde em ou-
relação aos diagnósticos/indicações de internação tras regiões, aumentando, desta forma, a demanda da
do recém-nascido na unidade neonatal, observa-se assistência nesses locais.
que prematuridade (79,3%), baixo peso (75,9%), Em relação à renda, sabe-se que, no Brasil, o
desconforto respiratório (56,9%) e infecção neonatal sistema público de saúde é mais procurado pela po-
(22,4%) foram os mais prevalentes. O percentual não pulação de baixa renda e de menor poder aquisitivo,
totalizou 100,0% (n=58), visto que mais de um diag- diferentemente do que acontece nos países desenvol-
nóstico pode ser relatado para uma única mãe/bebê. vidos, em que os usuários da rede pública nem sempre

Rev Rene. 2016 nov-dez; 17(6):733-40. 737


Ferraresi MF, Arrais AR

possuem esse perfil(11). Com relação ao mercado de maturidade, podendo gerar grandes impactos para o
trabalho, os resultados deste estudo vão ao encontro binômio mãe-filho(16).
dos achados de outra pesquisa realizada em um hos- Apesar da maioria das mulheres ter tido in-
pital escola localizado na Turquia, em que 87,0% das tercorrências gestacionais, tal fato não justifica o alto
mães dos bebês internados na Unidade de Terapia In- percentual de cesarianas observado neste estudo
tensiva não trabalhavam(12). (71,9%), pois este resultado aproxima-se de outros
De acordo com os resultados da presente in- estudos também realizados em Unidades Neonatais,
vestigação, houve número significativo de gravidezes os quais demonstraram percentual de cesarianas em
indesejadas e não planejadas. Uma gravidez não pla- torno de 55 a 60,0%(8,17).
nejada/indesejada pode estar relacionada a inúmeros O alto índice de prematuridade, observado em
agravos ligados à saúde reprodutiva materna e bebês nascidos de parto cesariana, cujas mães não
perinatal, gerando grande impacto na vida da mulher. apresentaram intercorrência gestacional, pode estar
A ocorrência desses fenômenos também faz com que interligado ao aumento de cesarianas eletivas, geran-
essas mulheres sejam mais vulneráveis a fatores de do, também, como consequência, o aumento da pre-
riscos gestacionais. Estudo realizado no extremo Sul maturidade(18). Esse procedimento cirúrgico, quando
do Brasil demonstrou que cor da pele negra/parda, realizado sem indicação adequada, pode gerar com-
adolescência e não ter companheiro mostraram as- plicações graves que podem levar a necessidade de
sociação com gravidez não planejada. Gravidez inde- tratamento intensivo do recém-nascido em unidade
sejada foi mais frequente em mulheres que fumavam especializada. O Brasil vive uma epidemia de opera-
regularmente e mulheres com mais filhos(13) . ções cesarianas, sendo que nos últimos anos o aumen-
É importante destacar que o desconhecimento to do índice de cesarianas tem aumentado progressi-
de algumas mães sobre o motivo pelo qual o filho es- vamente, tornando-se um grande problema de saúde
tava internado pode estar interligado com a falha na pública(8,18).
comunicação de alguns dos profissionais de saúde da A assistência pré-natal é de extrema importân-
Unidade. Esse estudo também demonstra que para a cia na gestação e pode contribuir para o diagnóstico
maioria das mães a experiência de ter um filho inter- e tratamento oportuno de afecções, além de diminuir
nado em uma unidade neonatal era nova, o que pode complicações neonatais e maternas. Apesar da litera-
gerar ainda mais insegurança devido ao ambiente es- tura demonstrar que o aumento do número de consul-
tranho, estressante e confuso inerente à unidade neo- tas no pré-natal pode ser um indicador de qualidade e
natal, acarretando ainda mais consequências negati- se correlacionar com desfechos mais favoráveis, este
vas na relação mãe/filho(14). estudo apresentou dados contraditórios, pois apesar
Os resultados deste estudo em relação às in- da maioria das mulheres ter realizado o número de
tercorrências gestacionais vão ao encontro de outra consultas preconizado (seis ou mais), a maioria dos
pesquisa(15) realizada no estado de São Paulo, Bra- bebês teve desfechos desfavoráveis, como prematu-
sil. Na pesquisa, foi demonstrado que a maioria das ridade e baixo peso, dois fatores importantes do alto
mães teve intercorrências gestacionais, com a Doen- percentual na morbimortalidade neonatal, o que pode
ça Hipertensiva Específica da Gestação e a Infecção gerar uma indagação se o pré-natal está sendo realiza-
do Trato Urinário como as mais prevalentes. Essas do com a qualidade que deveria(3,19).
intercorrências podem gerar diversas repercussões Salienta-se que a maioria dos bebês deste estu-
clínicas e estão relacionadas com altas taxas de morbi- do era do sexo masculino, assim como se observou em
mortalidade materna e neonatal(5). A infecção do trato estudos realizados em outras unidades neonatais(8,15).
urinário também se destaca por estar associada à pre- Quanto aos diagnósticos/indicações de internação

738 Rev Rene. 2016 nov-dez; 17(6):733-40.


Perfil epidemiológico de mães de recém-nascidos admitidos em uma unidade neonatal pública

do recém-nascido na unidade neonatal, os resultados 5. Rolim KMC, Costa RD, Thé RF, Abreu FRH. Agravos
deste estudo vão ao encontro de outra pesquisa reali- à saúde do recém-nascido relacionados à doença
hipertensiva da gravidez: conhecimento da
zada em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal
enfermeira. Rev Enferm Atenção Saúde. 2014;
do Sul do Brasil, a qual também demonstrou que os 3(2):19-28.
principais motivos de internação dos recém-nascidos
6. Patias ND, Gabriel MR, Weber BT, Dias ACG.
foram prematuridade, baixo peso e desconforto respi- Considerações sobre a gestação e a maternidade
ratório(7). na adolescência. Mudanças Psicol Saúde. 2011;
19(1-2):19-26.
Conclusão 7. Arrué AM, Neves ET, Silveira A, Pieszak GM.
Caracterização da morbimortalidade de recém-
Os resultados apontaram que o perfil das mães nascidos internados em Unidade de Terapia
Intensiva Neonatal. Rev Enferm UFSM. 2013;
encontrado neste estudo era de risco para admissão
3(1):86-92.
de recém-nascidos em unidade especializada, pois se
observou que a maioria das mulheres tinha condições 8. Lages CDR, Sousa JCO, Cunha KJB, Silva NC, Santos
TMMG. Predictive factors for the admission of
sociodemográficas desfavoráveis e apresentou inter- a newborn in an intensive care unit. Rev Rene.
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Ferraresi MF e Arrais AR contribuíram na con- 70.
cepção, no planejamento, análise e interpretação dos 10. Gryschek ALFPL, Nichiata LYI, Fracolli LA, Oliveira
dados, revisão crítica relevante do conteúdo e aprova- MAF, Pinho PH. Tecendo a rede de atenção à saúde
da mulher em direção à construção da linha de
ção da versão final a ser publicada.
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19
Revista Psicologia: Teoria e Prática, 15(3), 34-48. São Paulo, SP, set.-dez. 2013. ISSN 1516-3687 (impresso), ISSN 1980-6906 (on-line).
Sistema de avaliação: às cegas por pares (double blind review). Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Quando a morte visita a maternidade:


atenção psicológica durante a perda
perinatal
Júlia Costa Muza1
Hospital São Mateus, Brasília – DF – Brasil
Erica Nascimento de Sousa
Centro Brasiliense de Nefrologia, Brasília – DF – Brasil
Alessandra da Rocha Arrais
Universidade Católica de Brasília, Brasília – DF – Brasil
Vera Iaconelli
Instituto Sapientiae, São Paulo – SP – Brasil

Resumo: O presente estudo pautou-se no método qualitativo com o objetivo de co-


nhecer o significado da perda perinatal para famílias enlutadas e avaliar a intervenção
psicológica em situações de luto perinatal. Participaram desta pesquisa cinco famílias
que vivenciaram o óbito perinatal numa maternidade de Brasília. Utilizaram-se como
instrumentos o prontuário psicológico do serviço de psicologia da maternidade e a
entrevista de avaliação pós-óbito. A partir da análise de conteúdo de Bardin (1977),
emergiram cinco categorias, a saber: história da gestação, os pais diante da morte do
filho, desejo de reparação, despedida do bebê e avaliação do atendimento da psicologia
na situação do luto. Os resultados demonstraram que o intenso trabalho psíquico de
luto sofrido pelas famílias ainda recebe pouco apoio social das instituições, e a psicologia
hospitalar pode ter um papel fundamental junto a essas famílias no sentido de prevenir
traumas futuros e evitar o luto patológico e gravidezes reparadoras.

Palavras-chave: óbito perinatal; luto; psicologia da saúde; maternidade; estudo


qualitativo.

WHEN THE DEATH VISIT THE MATERNITY: PSYCHOLOGICAL ATTENTION DURING


THE PERINATAL LOSS

Abstract: This study was based on qualitative methodology in order to know the
meaning of perinatal loss to the bereaved families and assess the psychological inter-
vention in situations of perinatal grief. Five families participated in this study who ex-
perienced perinatal deaths, a maternity of Brasilia. The psychological record of the
psychology of maternity and post-assessment interview death were used as instru-
ments. From the analysis of Bardin (1977), which emerged five categories, namely:
history of pregnancy, parents before her son’s death, desire to repair, to bid farewell
to the baby, and evaluation of the psychology service in the situation of mourning. The
results showed that intensive psychological work of mourning suffered by families still
receives little support from social institutions, and health psychology can play a key
role along with these families in order to prevent future trauma, to avoid pathological
mourning and remedial pregnancies.

Keywords: perinatal death; grief; health psychology; motherhood; qualitative study.

1
Endereço para correspondência: Júlia Costa Muza, Hospital São Mateus, Serviço de Psicologia Hospitalar,
SRES, Quadra 02, área especial A, lote 01, Cruzeiro Velho, Brasília – DF – Brasil. CEP: 70648-145. E-mail: juliamuza@
gmail.com.

34
Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal

CUANDO LA MUERTE VISITA LA MATERNIDAD: ATENCIÓN PSICOLÓGICA


DURANTE LA PÉRDIDA PERINATAL

Resumen: Este estudio se basó en una metodología cualitativa con el objetivo de co-
nocer el significado de la pérdida perinatal para familias en luto y evaluar la intervención
psicológica en situaciones de luto perinatal. Participaron del estudio cinco familias que
experimentaron las muertes perinatales en una maternidad Brasília. Se utilizaron como
instrumentos el registro psicológico de la psicología de la maternidad y una entrevista
de evaluación después de ocurrir el óbito. Del análisis de Bardin (1977), surgieron cinco
categorías, a saber: la historia del embarazo, padres antes de la muerte de su hijo, el
deseo de reparar, adiós bebé y la evaluación del servicio de la psicología de la situación
de duelo. Los resultados demostraron que el trabajo psicológico intensivo de luto sufri-
do por las familias todavía recibe poco apoyo de las instituciones sociales y la psicología
de la salud, no obstante es un trabajo que puede desempeñar un papel clave a lo largo
de estas familias con el fin de prevenir el trauma futuro, para evitar el duelo patológico
y los embarazos correctivas.

Palabras clave: muerte perinatal; luto; psicología de la salud; maternidad; estudio


cualitativo.

O presente artigo busca investigar as consequências do óbito perinatal e o signifi-


cado da perda para famílias enlutadas, assim como avaliar a intervenção psicológica
em situações de luto perinatal. A concepção de maternidade, que permeia o imaginá-
rio social, está diretamente relacionada aos termos nascimento, alegria, começo, vi-
da... (Maushart, 2006). Entretanto, existem situações em que ocorrem intercorrências
no ciclo gravídico puerperal, o que se contrapõe a essa imagem social da maternidade
(Maushart, 2006). Paradoxalmente, a morte é um evento que ocorre mais frequente-
mente na maternidade do que gostaríamos de supor (Iaconelli, 2007). Apesar disso,
poucos são os estudos que se debruçam sobre esse tema e orientam como deve ser o
manejo de pais que perdem seus bebês no contexto no qual esperariam ganhá-los.
A dificuldade de elaboração do luto decorrente do óbito fetal ou de recém-nasci-
do, chamado genericamente por Iaconelli (2007) de luto perinatal, expressão que será
assumida neste artigo, é vivenciada pela sociedade como algo que deve ser evitado.
Opta-se pela negação e racionalização, sem o contato com a angústia. Assim, as rea-
ções das pessoas à notícia da perda de um bebê são sentidas e interpretadas pelos pais
como, no mínimo, desconcertantes.
A morte de um filho antes ou logo depois do nascimento rompe com a ordem na-
tural da vida, assim como interrompe os sonhos, as esperanças, as expectativas e as
esperas existenciais que normalmente são depositados na criança que está por vir. Nas
palavras de Torloni (2007, p. 297), “A morte de um feto é a morte de um sonho”.
Além de Freud (1976) e Kübler-Ross (1998), observa-se um crescente número de
estudos (Gesteira, Barbosa, & Endo, 2006; Kovács, 2008) sobre a relação das pessoas
com a morte, enfocando normalmente os processos de luto. Ainda assim, poucos estu-
dos focam o luto perinatal, por este ser constituído por temas interditos e negados.
Ressalta-se que o luto perinatal merece uma atenção especial, visto que é uma perda
não plenamente reconhecida, que não é abertamente apresentada, e muito menos
socialmente validada (Gesteira et al., 2006), pois há algo da perda desse objeto que

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Júlia Costa Muza, Erica Nascimento de Sousa, Alessandra da Rocha Arrais, Vera Iaconelli

não se oferece à percepção, ou melhor, parafraseando Freud (1976), não se vislumbra


o que foi perdido no objeto e com o objeto. Observamos que as reações das pessoas à
notícia da perda de um bebê são sentidas e interpretadas pelos pais como, no mínimo,
desconcertantes. Segundo Iaconelli (2007, p. 5), as mães por vezes ouvem: “Calma,
você é jovem e poderá ter outros filhos”, “Volte para casa e desmanche o quartinho”,
“Foi melhor assim...”, o que pode trazer repercussões consideráveis àqueles que não
tiveram a oportunidade de vivenciar essa perda de forma mais saudável.
A perda de qualquer ordem gera o sentimento de luto. Gesteira et al. (2006) defi-
nem o luto como uma reação normal e esperada quando um vínculo é rompido, e sua
função é proporcionar a reconstrução de recursos e viabilizar um processo de adapta-
ção às mudanças ocorridas em consequência das perdas. Bromberg (1999 como citado
em Gesteira et al., 2006) ressalta a existência de alguns fatores que geram o processo
de luto: fatores internos, estrutura psíquica do enlutado, histórico de perdas anterio-
res, circunstâncias da perda, crenças culturais e religiosas, e apoio recebido.
Elisabeth Kübler-Ross (1998) foi uma pioneira no sentido de sistematizar o processo
de perda em estágios: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação.
Entretanto, outros autores, como Simonetti (2004), entendem que o luto não é apenas
um processo de sucessivas fases, mas também um carrossel de reações e sentimentos
que se alternam de diferentes maneiras em cada situação de perda.
Freud (1976, p. 277-278) aponta que “o luto é trabalho psíquico que não requer
tratamento”. Para que o luto seja realizado, o autor indica algumas condições que o
psiquismo vai concretizando com a ajuda do tempo, como superinvestimento e poste-
rior desinvestimento de cada lembrança que diga respeito ao objeto, teste de realida-
de, reconhecimento social da dor do sujeito e elaboração da ambivalência (Iaconelli,
2007). Vejamos como essas situações se aplicam ao luto perinatal.
Para a mãe, a construção do vínculo com o filho sonhado precisa preceder a che-
gada do bebê, e é desse material que emerge a vinculação com o filho. Quanto ao
teste de realidade, a tendência cultural é de desaparecer com vestígios da existência
do bebê em casos de má-formação grave. Assim, “a mãe busca reconhecimento do
filho perdido, enquanto que, para as pessoas que a acompanham, fica difícil vislum-
brar o que ela perde” (Iaconelli, 2007, p. 6). Portanto, a elaboração do luto pela morte
de uma criança antes de seu nascimento tem uma dinâmica diferente, pois “a constru-
ção de vínculos afetivos fortes e de recordações de convivência mútua fica impossibi-
litada, uma vez que lembranças não podem ser evocadas posteriormente e a ausência
da criança é profundamente sentida, como se fosse retirada parte do corpo” (Duarte
& Turato, 2009, p. 487). Além disso, Duarte e Turato (2009, p. 487) complementam a
ideia afirmando que “essa ausência de lembranças também pode trazer a sensação de
que a criança foi alguém que não existiu”.
O processo de luto parental é parte integrante do processo de luto familiar, afetan-
do todos os outros subsistemas e sendo afetados por eles. O luto parental por si só já
é um fator de risco para o desenvolvimento de um luto complicado (Caselatto, 2002
como citado em Silva, 2009). A ameaça básica que paira sobre a função parental pode

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ISSN 1516-3687 (impresso), ISSN 1980-6906 (on-line).
Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal

gerar consequências drásticas, como inabilidade provisória ou permanente para o


exercício dessa função ou ainda um isolamento social irrestrito e de duração inde-
terminada. Sob a perspectiva parental, não existe uma idade menos traumática para
a morte de um filho, e estudos da área apontam que sentimentos como frustração,
decepção, revolta, tristeza, culpa e choro são comuns aos pais e familiares (Santos,
Rosenburg, & Buralli, 2004).
De acordo com Bartilotti (2007), não é incomum que o luto perinatal desmantele o
entendimento do papel feminino que passa a ser acompanhado pelo desprezo, pela
inadequação e por um profundo sentimento de ineficiência. Normalmente é um “gol-
pe” para a autoestima da mulher, para sua capacidade maternal e para sua femini-
lidade. Entende-se que a “criança morta” também é “mãe morta”, pois a construção
do papel de mãe e a identidade materna que se constrói lentamente com a gesta-
ção são, de forma abrupta, interrompidas. E com isso, pela impossibilidade de gestar
o próprio filho, despontam sentimentos de intenso fracasso, incapacidade e inferiori-
dade (Bartilotti, 2007).
Essa mesma autora analisa uma prática comumente observada que diz respeito a
“poupar” e/ou supervalorizar a fragilidade da mãe em detrimento da expressão dos
sentimentos, igualmente presentes, por parte do pai. Segundo Maldonado (1986),
com frequência o pai é bruscamente comunicado da morte do bebê, com raros mo-
mentos em que lhe é permitido “desabar” e demonstrar a dor de ter perdido o filho.
Ou seja, o pai é colocado em contato com a realidade, normalmente de forma pouco
cuidadosa, mas não costuma encontrar acolhida para expressar de forma honesta a
própria dor.
Observa-se ainda que a dificuldade de elaboração da perda de um filho que nem
“chegou a nascer” é comumente intensificada pela falta de apoio social. Iaconelli
(2007) ressalta que, no luto perinatal, nem sempre é escutado o desejo dos pais de
realizar procedimentos ritualísticos que fazem parte das demais perdas por morte
e, quando são realizados, não deixam de criar certo constrangimento. Essas diferen-
ças no tratamento desses casos revelam uma impossibilidade de atribuir à morte de
um bebê (pré ou pós-termo) o status de morte do filho. Quando os rituais são realiza-
dos – em caso de luto pós-termo, por exemplo –, ainda assim, os pais costumam ouvir
declarações de que seus bebês são substituíveis e sofrem pressão para acelerar o tra-
balho do luto. A questão é que a impossibilidade de enxergar o lugar psíquico de
onde emerge um filho faz com que as mínimas condições para a elaboração desse tipo
de luto tendam a ser desconsideradas.
Ainda segundo Iaconelli (2007), o luto de um bebê recém-nascido carrega em
si um aspecto de inerente incomunicabilidade e atrai, por sua vez, olhares de incom-
preensão. A morte do filho inverte as expectativas das perdas pressupostas na vida –
morte dos pais, dos mais velhos –, deixando os pais sem referências temporais. Há
algo do mais profundo desamparo nessa vivência. Não há como inscrever essa perda
no psiquismo, pois ela é sistematicamente desautorizada pelo outro. Não há como

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Júlia Costa Muza, Erica Nascimento de Sousa, Alessandra da Rocha Arrais, Vera Iaconelli

compartilhar desse luto no senso comum da modernidade, ficando os pais duplamente


desamparados: pelo bebê e pelos adultos.
Assim, diante de toda repercussão que o luto perinatal pode acarretar para os pais,
familiares e até mesmo equipe de saúde, entende-se como fundamental a presença da
psicologia. Muitas vezes a equipe de saúde evidencia seu despreparo para lidar com a
dor e a angústia do outro, principalmente pelos próprios conflitos que possui na rela-
ção com a morte ou com a eminência desta (Bartilotti, 2007). O psicólogo é o profis-
sional que tem preparação para viabilizar a expressão do luto.
“A psicologia entende que para dissipar a dor psíquica de uma perda, é necessário
que ela seja dita, vivida, sentida, refletida e elaborada, mas nunca negada” (Gesteira,
et al., 2006, p. 465). Contudo, há um tempo para todo esse processo se constituir que
não pode ser apressado nem pela família e nem pela equipe de saúde. Na verdade,
o tempo tem de ser usado para melhorar a capacidade do enlutado de elaborar a
perda do bebê.
Segundo Carvalho e Meyer (2007), um dos papéis da psicologia diante de inter-
corrências como o luto perinatal é desafiar a mentalidade da morte como tema in-
terdito, buscando identificar as vulnerabilidades e o alto risco dos pais que perderam
seus filhos. Cabe à psicologia ajudar os pais e familiares a se apropriar da situação
que estão vivendo, de modo que, posteriormente, eles consigam falar do fato ocorri-
do, assimilá-lo e, algum tempo depois, aceitá-lo. De acordo com Gesteira et al. (2006),
os rituais fúnebres ajudam no processo de luto, pois a recuperação é centrada na
aceitação, e o velório permite que as pessoas se despeçam e que o enlutado seja
considerado como tal.
Abordagens terapêuticas que possibilitam ajudar os pais no processo de perda do
filho, bem como torná-la mais real, consistem em permitir que os pais visitem o re-
cém-nascido, toquem-no, caso queiram, e recolham lembranças possíveis (Bartilotti,
2007). Essas estratégias favorecem a saúde psíquica – que é o objetivo primordial da
psicologia hospitalar – de muitos casais e de seus futuros bebês.

Método
Este trabalho pautou-se pelo método qualitativo, que procura estudar fenômenos
nos termos das significações que as pessoas trazem para estes, como afirmam Lüdke e
André (1986). Segundo Turato (2003), os métodos qualitativos caracterizam-se pela bus-
ca dos significados dos fenômenos humanos, tendo o ambiente natural do sujeito como
campo de observação e o pesquisador como parte do próprio instrumento de pesquisa.

Participantes
Participaram desta pesquisa cinco famílias que vivenciaram o óbito perinatal em
uma maternidade particular de Brasília. Para assegurar a privacidade e garantir o sigi-
lo dos participantes, utilizou-se nome fictício para os bebês e suas famílias. No caso da

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Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal

família Lopes, que constatou o óbito com 32 semanas de gestação, o pai, a mãe, as
avós paterna e materna, os tios e primos do bebê, aqui chamado de Pedro, receberam
atendimento. Na família Silva, que perdeu o bebê com 23 semanas de gestação, foram
atendidos o pai e a irmã da criança, Paulo. Na família Machado, que perdeu o bebê
com 31 semanas de gestação, apenas o pai do bebê Maria foi atendido pela psicolo-
gia. Na família Sinval, óbito com 30 semanas de gestação, receberam atendimento a
mãe, o pai, as avós paterna e materna e as tias do bebê Luzia. No caso da família Pe-
reira, que perdeu o bebê com 34 semanas de gestação, atenderam-se os pais, as avós
materna e paterna e os tios do recém-nascido André.

Instrumentos
A fonte dos dados teve como base dois instrumentos: o prontuário psicológico e
uma entrevista semiestruturada. O prontuário psicológico é um documento no qual
se anotam a queixa principal, a descrição do caso, o parecer e a conduta do psicólogo
em todos os atendimentos sistemáticos realizados pelo serviço de psicologia da ma-
ternidade. A entrevista semiestruturada foi realizada pós-óbito com cinco questões
abertas, com o objetivo de avaliar o processo de luto e o trabalho da psicologia na
ocasião do óbito.

Procedimentos de coleta de dados


O projeto deste estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universi-
dade Católica de Brasília, sob Protocolo nº 268/10. Todas as famílias foram atendidas e
os atendimentos registrados nos respectivos prontuários pela psicóloga da referida
maternidade, que também fez parte da equipe de pesquisa. As demais pesquisadoras
tiveram acesso aos prontuários após o consentimento das famílias. Por meio de liga-
ção telefônica, foi explicada a pesquisa e agendada a entrevista na residência do casal
enlutado. Posteriormente, em um único encontro, foram realizadas as entrevistas pós-
-óbito com o casal e solicitou-se a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Escla-
recido (TCLE). As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra.

Procedimentos de análise dos dados


Os relatos contidos nos prontuários foram submetidos à análise documental, a qual
se assemelha muito à pesquisa bibliográfica, mas é diferente no que concerne à natu-
reza das fontes, conforme Lüdke e André (1986). Segundo Gil (1999), na pesquisa do-
cumental, os materiais não receberam ainda um tratamento analítico, tendo como
primeiro passo a exploração das fontes documentais.
A análise de conteúdo descrita por Bardin (1977) foi outro método utilizado neste
estudo para análise dos relatos dos prontuários e do conteúdo das entrevistas pós-
-óbito. Esse método que se baseia na fragmentação de um texto em unidades permite
identificar e reagrupar as unidades em categorias explícitas de análise textual para

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Júlia Costa Muza, Erica Nascimento de Sousa, Alessandra da Rocha Arrais, Vera Iaconelli

fins de pesquisa. A partir da leitura exaustiva dos prontuários e do conteúdo das en-
trevistas, identificaram-se cinco categorias, a saber: história da gestação: planejamen-
to e risco da perda, os pais diante da morte do filho, desejo de reparação, despedida
do bebê e avaliação do atendimento da psicologia na situação do luto.

Resultados e discussão
História da gestação: planejamento e risco da perda
Na população estudada, apenas uma das famílias participantes relatou que a ges-
tação não foi planejada. As demais afirmaram que as gestações foram desejadas e
idealizadas em algum momento da vida. Em todos os casos, houve acompanhamento
médico pré-natal.
Todas as mulheres foram submetidas a cesáreas, e a gravidez foi interrompida
quanto estavam entre a 23ª e 32ª semana de gestação. Natimorto é quando a morte
do bebê ocorre dentro do útero e neomorto quando a morte ocorre até o sétimo dia
do nascimento. Portanto, podem-se classificar, nesta amostra, dois natimortos e três
bebês neomortos. Vale salientar que, desde o momento em que o diagnóstico de óbi-
to perinatal é comunicado à família, profundas alterações ocorrem em todos os âm-
bitos das pessoas envolvidas, como mostra o seguinte relato:

Nós já estávamos pensando em ter filhos, mas não esperávamos que fosse tão sofrido e que ela teria
problemas. Se a gente imaginasse, nós teríamos adiado, até ela e eu ter um pouco mais de estrutura
emocional, porque a gente quando casa pensa em ter filhos. São sonhos (pai – família Machado).

Nos relatos apresentados a seguir, percebeu-se que, para a maioria das famílias, o
risco de perda na gestação esteve presente:

[...] eu já sabia que ele teria poucas chances de sobreviver [...] desde o início já estava complicado, era
muito arriscado, eu não imaginava que ela também corria risco [...] (pai – família Silva).

[...] nós já estávamos nos preparando, pois ela vem sofrendo muito, sempre com ameaça de aborto,
fica de repouso o tempo todo e mesmo assim [...] (pai – família Machado).

Apenas uma das famílias não vivenciou intercorrência durante toda a gravidez: “fomos extremamente
felizes nessas 32 semanas. Tudo ia correndo bem, sem dores. Ela nunca teve náuseas, dores [...] nada,
era só felicidade” (pai – família Lopes).

Os pais diante da morte do filho


A morte de um bebê, antes de sua chegada, propicia a frustração de muitos dese-
jos, fantasias e, sobretudo, rompe a possibilidade do exercício da maternidade e da
paternidade. Estudos afirmam que frequentemente, para as mulheres, a interpreta-
ção do papel feminino passa a ser de desprezo, inadequação. Em outras palavras, é um

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Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal

golpe para a autoestima da mulher, para a sua capacidade maternal e para sua femi-
nilidade (Soifer, 1992).
A constatação de um óbito perinatal traz consigo significativas repercussões emo-
cionais, que são agravadas por uma sobreposição de perdas: “criança morta” é tam-
bém “mãe morta” (Bartilotti, 2002). A edificação do papel de mãe e a identidade ma-
terna que vinham se desenvolvendo lentamente são interrompidas de forma abrupta
(Maldonado, 1986), e constata-se que, com a frustração materna, há o sentimento de
impotência e falha do pai, como podemos observar nos relatos apresentados a seguir:

Quando a minha filha nasceu viva, eu fiquei cheio de esperança [...] então, estou bobo [após consta-
tação do óbito] [...] procurando entender (pai – família Machado).

Do que adiantou tanta preparação [...] não consegui salvar o meu filho (mãe – família Lopes).

Vários sentimentos podem surgir diante dessa situação, desde culpa, tristeza até
raiva e hostilidade. É importante destacar que o intenso sofrimento psíquico diante da
perda do bebê (real ou imaginário) pode abrir caminhos para estados depressivos,
caracterizados pelo desejo de morrer, como meio de unir-se ao objeto do amor perdi-
do (Bartilotti, 2002).
Já quanto à implicação dessa perda no papel paterno, não foram encontrados rela-
tos sobre o tema na literatura pesquisada, o que não deixa de chamar a atenção, pois
isso evidencia o descaso em relação ao sofrimento do homem perante a perda sofrida:

Eu sempre quis ter um filho, seja homem ou mulher, acho que com ele eu vou saber o trabalho que dei
aos meus pais. Já estava me programando para ficar acordado (pai – família Machado).

Desejei tanto te dar [referindo-se ao bebê] ao meu marido. Ele te desejou ardentemente. Sei que você
seria melhor filho do que eu [...] (mãe – família Pereira).

Durante a gestação, ou seja, ainda na fase pré-natal, os pais podem ter três imagens
do seu filho: o bebê imaginário, o bebê real e o bebê fantasmático. O bebê imaginário
é aquele idealizado, uma combinação de impressões e desejos derivados da própria
experiência da mãe (Irvin, 1978). O bebê real é aquele que nasce (ou que morre). Nas
falas dos pais, pode-se observar a transição do bebê idealizado para o bebê real, que
nasceu morto, e consequentemente surge a imagem do bebê fantasmático.
O luto já começa logo depois que o bebê é expelido. Nesse momento, há o encon-
tro com a dura realidade. Dessa forma, faz-se necessário o desvencilhamento do bebê
ideal para o real, o que, de fato, pode ser potencializado com o encontro do corpo do
bebê e, posteriormente, com o reconhecimento social, ou seja, no caso de algumas
famílias, o enterro, ritual de despedida: “Não posso aceitar isso [morte do bebê], ja-
mais aceitarei [...]” (pai – família Sinval).
Quando se trata da perda perinatal, é muito comum a negação do sofrimento dos
pais, favorecendo o desmentido da perda e obstruindo a possibilidade de representação

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(Iaconelli, 2007). Atualmente, muitas pessoas enlutadas são encorajadas a deixar, de


forma prematura, a experiência do luto, sobretudo quando se trata do luto perinatal.
Dessa conduta, afirma Iaconelli (2007), poderão resultar dois fatores: o enlutado vi-
vencia seu luto isoladamente ou força-se a abandoná-lo antes de tê-lo completado, o
que pode prejudicar o psiquismo do indivíduo.
A raiva e a revolta são outros sentimentos comuns a quem está passando por
um luto:

Não sei o que eu sinto, se é só dor, se é raiva, se é revolta [...] não sei [...] (pai – família Lopes).

Se ele nasceu e estava bem, como isso pode ter acontecido? (pai – família Pereira).

Meu filho você é algo que está difícil digerir! (pai – família Silva).

O momento imediato à perda é repleto de fortes emoções, exigindo dos pais e de


sua família bastante força e coragem. Autores como Carvalho e Meyer (2007) afirmam
que os sentimentos mais presentes nessas famílias são de culpa, tristeza e raiva. De
acordo com Simonetti (2004), os estágios descritos por Kübler-Ross (1998) não são fi-
xos, não seguem uma ordem, pois eles estão inseridos em uma órbita; sendo assim, é
possível encontrar o sujeito enlutado em qualquer momento que não seja predeter-
minado na sequência: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.
O impacto do luto de um bebê tem peculiaridades, principalmente quando é negado
e desconsiderado na sociedade em que se encontram os participantes deste estudo.
Definitivamente o luto perinatal não tem um reconhecimento social e muito menos
uma aceitação daqueles que o vivenciam, aspecto que traz preocupação, uma vez que
Freud (1976) reforça a importância do reconhecimento social da dor para que o proces-
so de luto possa ser realizado. Este relato exemplifica a atitude das famílias: “Todos nós
queríamos virar a página como se nada tivesse acontecido” (tia materna – família Lopes).
É importante que as famílias que perderam seus bebês se apropriem da situação
que vivenciaram, oportunizando, em um primeiro momento, o espaço de fala para
que aos poucos possam assimilar e aceitar o fato. Entende-se que, em um primeiro
instante, há um momento de choque, e, mesmo não sendo a hora ideal para tomar
decisões, é a hora de entrar em contato com alguns procedimentos. Novamente é im-
portante que quem esteja vivendo o luto, os pais normalmente, possam se apropriar
da situação, ter consciência do que estão passando (Carvalho & Meyer, 2007, p. 45),
pois assim poderão fazer escolhas de acordo com seus próprios limites. Com essa com-
preensão, reforça-se a necessidade de existirem profissionais capacitados que propor-
cionem esses espaços e os protagonismos dessas pessoas.

Desejo de reparação
Nos depoimentos apresentados anteriormente, contatou-se o desejo de reparação
perante o passado que os pais tiveram, quando estavam no papel de filhos, dando ao

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Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal

próprio filho um significado de recuperação de suas histórias. Nos relatos apresenta-


dos a seguir, pode-se observar como é comum pais e familiares criarem expectativas e
planos sobre as crianças antes mesmo de elas nascerem:

Esperei por isso durante tanto tempo, agora que eu ia curtir o meu neto, já havia feito altos planos,
uma vez que, quando tive meus filhos, trabalhava muito [...] (avô – família Lopes).

Maria Luiza era a primeira neta mulher por parte das duas famílias. Só existe menino homem. Imagina
o quanto a minha filha estava sendo esperada [...] (pai – família Sinval).

Todos nós queríamos que ele viesse e fosse um grande homem, ele deveria estudar e ser um grande
homem, servo de Deus. Nossa família tem muita gente certa, mas tem muitos errados, e eu orava todos
os dias para que ele fosse uma pessoa do bem [...] (pai – família Silva).

Nesses trechos, é possível identificar o que Melanie Klein (1996) chama de repara-
ção, uma vez que entende que o sujeito procura reparar os efeitos produzidos no seu
objeto de amor, nesse caso os bebês, por suas fantasias destruidoras que fazem parte
do imaginário materno. laconelli (2007) reforça que o narcisismo materno engloba
o objeto para depois, com a chegada do bebê, fazer o luto da fantasia, ou seja, todo o
investimento, as idealizações e reparações são realizados ou desconstruídos com o nas-
cimento da criança, e, se ela não faz mais parte da realidade dessa família, abre-se uma
lacuna que precisa ser preenchida com o decorrer do processo de luto.

Despedida do bebê
O momento de despedir-se do bebê é muito importante para o reconhecimento
da perda do filho (Bartilotti, 2007). As outras formas de reconhecer esse bebê que
faleceu e valorizar o sofrimento das pessoas que o perderam consistem na nomeação
da criança, na decisão de ter ou não contato com ela, mesmo que morta, no reco-
lhimento de lembranças possíveis, entre outros (laconelli, 2007). No relato dos par-
ticipantes da pesquisa, percebe-se que as famílias que tiveram a oportunidade de
despedir-se do bebê experimentaram uma gratificação e um reconhecimento do que
viveram, o que possivelmente fará muita diferença em seu processo de luto:

Amor, você deveria ver o seu filho [...] o quão lindo era ele [...] estava perfeito, você deveria vê-lo. A
doutora me explicou e me ajudou a vê-lo; se você quiser ela, também te ajuda, mas você é livre [...]
Amor [...] vai ser melhor para nós [...] eu já me sinto aliviado (pai – família Lopes).

Só posso te acariciar, meu filho [...] afinal agradeço a Deus a oportunidade que Ele me deu de ter você,
mesmo que por pouco tempo [...] (pai – família Pereira).

No caso dos pais que não tiveram a mesma oportunidade, percebe-se uma lacuna
que possivelmente irá trazer dificuldade no processo de elaboração da perda:

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Não vi o meu filho; se eu tivesse visto meu filho, ainda que morto, eu ia gostar, ainda que deficiente,
ele era o meu filho. Deus que me deu [...] mas, como não foi possível, só escuto o que o meu marido
fala sobre ele [...]. Mas é que eu sinto muita tristeza e às vezes raiva. Se eu tivesse visto ele ao menos,
acho que teria sido melhor (mãe – família Silva).

Oportunizar o encontro e proporcionar comunicação e contato dos familiares com


esses bebês permite o teste de realidade (Freud, 1976), o que pode incentivar essas
pessoas a lidar com o bebê real e a enxergar o lugar psíquico que essa criança ocupava.
De acordo com a Iaconelli (2007), esses procedimentos, quando em conformidade com
o desejo dos pais, permitem desconstruir todo o investimento subjetivo que foi feito
no bebê (Klein, 1996), proporcionando o momento de reconhecimento do lugar do
bebê falecido e assim comportando condições para a elaboração da perda:

É preciso ver para acreditar no que está acontecendo (pai – família Machado).

Eu queria que ele, o Lucas, fosse enterrado em um caixão bem bonitinho e com aquela roupa que foi
comprada nos Estados Unidos. Meu Deus, leva ele logo daqui, já que não vou poder amamentar [...] o
que adiantou tanta preparação [...] não consegui salvar o meu filho (mãe – família Lopes).

Não tive tempo de conversar com ele, pois eu queria tanto, tanto esse filho, que tudo o que as pessoas
diziam para eu fazer eu fazia, conversava com ele, mesmo sem ter o nome definido, nós já íamos esco-
lher o nome para eu conversar melhor, mas nem isso eu pude fazer [...] (mãe – família Silva).

Como já mencionado anteriormente, para dissipar a dor psíquica de uma perda, é


necessário que ela seja dita, vivida, sentida, refletida e elaborada, mas nunca negada
(Gesteira et al., 2006). Outro aspecto que também ajuda no processo do luto são os ri-
tuais fúnebres, porque a recuperação é centrada na aceitação, e o velório permite que
as pessoas se despeçam e que o enlutado seja considerado como tal. Para a Iaconelli
(2007, p. 616), no luto perinatal, normalmente não há espaço de escuta para o desejo
dos pais quanto à realização de procedimentos ritualísticos que fazem parte das de-
mais perdas por morte e, quando são cumpridos, não deixam de criar certo constrangi-
mento: “Estas diferenças no tratamento destes casos revelam uma impossibilidade de
atribuir à morte de um bebê (pré ou pós-termo) o status de morte de um filho”.

Avaliação do atendimento da psicologia na situação do luto


Em geral, a população que experiencia essa realidade é negligenciada e desconside-
rada socialmente, uma vez que até a própria instituição hospitalar não viabiliza a ex-
pressão do luto, o desamparo social ao óbito perinatal já se inicia nesse espaço, onde
médicos e enfermeiros veem essa perda como um fracasso da medicina, oportunizando
espaço apenas para os sentimentos de frustração e impotência (Santos et al., 2004).
Carvalho e Meyer (2007) afirmam que conhecer os aspectos a serem enfrentados
nessas situações traz a possibilidade de prestar um melhor auxílio e acompanhamento,

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Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal

o que se constitui em ação preventiva quanto ao desenvolvimento de dificuldades


emocionais posteriores. No relato dos participantes do estudo, observaram-se o reco-
nhecimento e a oportunidade de falar sobre a perda do bebê e o fato de os pais serem
acolhidos e reconhecidos em sua dor:

Me ajuda, doutota [refere-se à psicóloga], entender tudo isso, me ajuda [...] (mãe – família Lopes).

Obrigado por acolherem a minha raiva [fala direcionada para a psicóloga], estou para ter um infarto
[...] (pai – família Sinval).

Os profissionais da equipe de saúde que se propõem a ajudar essa população pre-


cisam saber manejar os momentos iniciais de um luto, tanto no que se refere aos sen-
timentos dos pacientes diante do fenômeno da morte como aos seus próprios senti-
mentos (Carvalho & Meyer, 2007). Tanto nos relatos do presente estudo quanto na
revisão da literatura, percebe-se que normalmente é atribuída ao psicólogo a função
e a capacidade de facilitar o contato com a difícil realidade e de proporcionar um es-
paço de expressão das emoções e dos sentimentos, favorecendo assim uma maior pos-
sibilidade de elaboração do luto do filho perdido:

Hoje eu posso dizer que, se não fosse vocês [refere-se à psicologia], pegar [o bebê] nos braços e tudo
aquilo seria muito pior (mãe – família Sinval).

Obrigada por oportunizar que eu segure o meu filho nos braços [...] só tenho a agradecer por esta
despedida, mesmo sendo de uma forma que nós nunca imaginávamos [...] a gente fica louca, nem
sabe o que diz, eu queria sair correndo, nem pensava em segurar [...] e Deus manda vocês (mãe – fa-
mília Pereira).

Não sei o que dizer, mas muito obrigado porque pude segurá-lo ainda que morto [...] (pai – famí-
lia Lopes).

Nos relatos referentes aos atendimentos imediatos ao óbito dos bebês, não foi
possível perceber diferenças de gênero no que diz respeito à forma de lidar com o
sofrimento. O que se mostrou mais significativo foi o quanto o atendimento imediato
aos familiares influenciará na forma como vão vivenciar o luto a partir de então. Aju-
dar os pais e familiares a se apropriar da situação que estão vivendo promove um es-
paço de expressão da dor, de modo que eles possam, aos poucos, assimilar a perda e,
enfim, aceitá-la (Carvalho & Meyer, 2007).
Diante dessa realidade, é possível identificar a necessidade de uma rede social de
apoio no sentindo de ajudar essas famílias a superar a experiência vivida com tanto
sofrimento. Iaconelli (2007, p. 622) afirma que grupo de pais pode ser um tratamento
muito eficaz para evitar um luto patológico, pois “compartilhar a dor com outros pais
enlutados tem sido uma forma de encontrar escuta do vivido e construir representações
que deem conta da perda”. Embora se trate de cuidados de longo prazo, precisam ser

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incentivados nos atendimentos imediatos ao óbito fetal. A seguir, apresentam-se al-


guns relatos sobre o reconhecimento da rede social:

[As avós abraçam o casal Sinval, que agradece a presença delas] Vocês são para a nós o nosso grande
alicerce! (pai – família Sinval).

Sei que o meu sobrinho cumpriu a sua missão. Ele veio para nos mostrar o quanto somos uma família
unida, e, mais uma vez, reforça o que nos foi passado por nossos pais que a família é o grande porto
seguro. Por isso que nos estamos aqui (irmã – família Lopes).

O presente estudo, de natureza qualitativa, permitiu uma aproximação da compreen-


são do significado da perda perinatal vivenciada por cinco famílias, alcançando os
objetivos propostos. Por meio dos relatos, entendeu-se como a perda perinatal é avas-
saladora para as famílias enlutadas, principalmente quando não têm um apoio social
e profissional. Este estudo também proporcionou uma avaliação positiva da interven-
ção psicológica em situações de luto perinatal.
No decorrer da pesquisa, foi possível identificar diversas potencialidades que este
trabalho suscitou como: a valorização do sofrimento das famílias enlutadas e o re-
conhecimento do profissional da psicologia nesse processo de perda, oportunizando
assim espaço de escuta. A pesquisa também buscou desmistificar a morte, especifi-
camente de um óbito perinatal, alertando para as repercussões emocionais que um
sujeito pode carregar se não houver o cuidado merecido, ainda que este não tenha
sido o foco da pesquisa. Percebe-se que houve ainda o reconhecimento da psicologia
tanto para as pessoas que receberam o atendimento como para a própria equipe, re-
conhecendo a sua importância e relevância no espaço da maternidade. Outro ponto
do estudo que merece destaque consiste no cuidado com o sofrimento de todos os
envolvidos na perda perinatal, inclusive o pai, normalmente excluído na maioria dos
estudos e do atendimento.
O fato de este estudo ter um número reduzido de casos, que é próprio da pesquisa
qualitativa, possibilita uma análise mais aprofundada da singularidade de cada história
e, com isso, favorece a reflexão e o aprendizado para todos os envolvidos. Sugere-se
que estudos com um número maior de famílias sejam realizados, a fim de identificar
a presença desses achados de maneira mais generalizada e consistente.
Para finalizar, destaca-se o impacto que este estudo pode gerar para a psicologia
hospitalar, pois exige uma importante mudança de paradigma, oferecendo um acolhi-
mento humanizado, independentemente do atendimento oferecido, seja ele em um
contexto público ou privado. Ficou evidente a necessidade do acompanhamento das
famílias que tiveram perda perinatal nos serviços de saúde por uma equipe multipro-
fissional, que inclua o psicólogo hospitalar. Ressalta-se, também, a importância de
uma rede de apoio para famílias que vivenciam esse problema, que pode e deve ser
estimulada pela atuação do psicólogo hospitalar que atua no tripé “paciente, família
e equipe de saúde”, podendo inclusive oferecer grupos de apoio pós-óbito.

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Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal

O papel do psicólogo nesse contexto é de “prevenção” de possíveis psicopatologias


relacionadas à vida ou morte do bebê, além de esclarecimento e atenção às fantasias
dos pacientes. Nesse caso, o trabalho deve ser feito não somente com as mulheres
mães, mas também com o pai, a família e a equipe de saúde. A elaboração do luto da
perda de um bebê precisa ocorrer de forma a devolver a saúde mental e a reestrutu-
ração psíquica a todos os que sofreram com essa perda.

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Submissão: 06.03.2012
Aceitação: 09.08.2013

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20
Saúde
Amamentar que atender as demandas do bebê. E aquela
imagem que ela tinha, da maternidade cor-
de-rosa, não corresponde à realidade”, afirma.
Onde procurar ajuda
desenvolvimento do bebê. “O vínculo afetivo
é muito importante para o desenvolvimento
psíquico da criança e para a compreensão dele
PESQUISA

é preciso, mas não


Geralmente, a depressão pós-parto tem mesmo como sujeito. E a amamentação tem Estudos relacionam a amamentação
HFA (Forças Armadas) – 3966-2250
muito a ver com a idealização da maternidade um potencial de fortalecimento da relação prolongada ‒ até os dois anos ou mais ‒ com um
HRAN (Asa Norte) – 3325-4207
feita pela sociedade. “Na maioria dos casos, não entre mãe e bebê muito grande”, explica ela. melhor desenvolvimento cognitivo. “A ama-
HRAS (Asa Sul) – 3445-7597
mentação favorece um vínculo afetivo que pro-

pode ser uma


tem nada a ver com rejeição ao bebê. É uma HRBZ (Brazlândia) – 3479-9643 Segundo a psicóloga, o contato que
decepção que a mulher tem com a maternidade”, a amamentação proporciona é o principal porciona uma base segura para o desenvolvi-
HRC (Ceilândia) – 3372-9652
afirma Arrais. Segundo ela, é preciso responsável pelo fortalecimento do vínculo. mento da criança. Isto contribui tanto para os
HRG (Gama) – 3384-0337
desmitificar essa imagem da mãe perfeita. “Na amamentação o bebê tem o contato pele a aspectos cognitivos quanto para o desenvolvi-
HRP (Planaltina) – 3388-9794

pressão
“A mulher se cobra muito. Esse ideal acaba pele com a mãe. Ele consegue visualizar de perto mento de um sujeito seguro, independente”, es-
HRPA (Paranoá) – 3369-9980
exercendo muita pressão sobre ela”, esclarece. o rosto dela. Sente o cheiro. Tudo isso contribui clarece Shyrlene Brandão.
HRS (Sobradinho) – 3387-3993
Pressão ‒ Além disso, a imagem para essa formação”, afirma. “Além disso, o Segundo Miriam Santos, coordenadora
HRSM (Santa Maria) – 3392-6287
da amamentação passada como ideal de bebê que mama em livre demanda, aprende a dos BLHs do DF, isto também ocorre pelo fato
HRT (Taguatinga) – 3352-6900
maternidade contribui para essa cobrança. demonstrar quando ele está com fome, quando de o leite materno conter proteínas específicas
HUB (Universitário de Brasília) – 3448-5391
“Existe pressão tanto da mulher quanto da está saciado. Contribui para que o sujeito para o desenvolvimento cerebral humano. “O
Posto de Coleta São Sebastião – 3339-1125
A história de Nilza alerta: culpa e cobranças familiares sociedade. E a mulher que não consegue Posto de Coleta HRSAM (Samambaia) – aprenda a manifestar seus desejos”, completa. cérebro do ser humano continua se desenvol-
amamentar se sente uma fracassada”, diz Afeto ‒ No entanto, Shyrlene diz vendo após o nascimento até por volta do se-
e sociais podem agravar estado depressivo Alessandra. “É preciso que essas mulheres
3458-9811
que o essencial é o cuidado e o carinho com gundo ano de vida, ao contrário de outras es-
saibam que amamentar não é a única forma a criança. “Qualquer criança que receba pécies. Recebendo as proteínas específicas do
que a mãe tem de fortalecer o vínculo cuidados, que receba carinho, seja da mãe leite materno, esse desenvolvimento é mais fa-


afetivo com o filho”, ressalta a psicóloga. ou de outra pessoa, vai se desenvolver bem. vorecido”, explica.
» ESTELA MONTEIRO
O apoio da família nesses casos é O importante é que haja afeto”, esclarece. “A
A depressão pós-parto é uma doença fundamental. “Muitas sentem vergonha de criança, do ponto de vista psicológico, vai se
Levei meu filho expor a tristeza para alguém. Porque no mesmo construir na relação com o cuidador primário Amanhã
que atinge entre 10% e 15% das mulheres que
dão à luz. Diferente do Baby Blues, uma tristeza a três pediatras diferentes. momento são julgadas. As pessoas cobram que dela, que geralmente é a mãe, mas pode ser Na última reportagem da série,
ela esteja feliz pela chegada do bebê”, afirma. Bom para o bebê, ótimo para a também o pai, a avó”, completa a psicóloga. leia mais sobre como o abalo emocional
fisiológica que atinge quase 80% das puérperas Todos me maltrataram.
e acaba em torno da segunda semana após o Ilustração: Nillo Samyr Por isso, a psicóloga explica que a depressão mãe O ideal é que tanto a mãe como o filho se influencia na produção de leite; o que
parto, a depressão não passa espontaneamente
Insinuavam que não dava pós-parto é de difícil diagnóstico. “É preciso sintam bem nessa relação. “Não adianta o bebê fazer depois do sexto mês do bebê; e as
e pode durar anos se não for tratada. de mamar porque eu não que a família esteja atenta, seja acolhedora e A psicóloga Shyrlene Nunes Brandão, estar bem nutrido e a mãe estar triste. Ele também diferenças entre leite natural e artificial.
Segundo a psicóloga do Centro deu seu depoimento ao Fantástico sobre o tudo pelo o que ele tinha passado neste um evite pressionar demais essa mãe”, diz. “Uma do Banco de Leite Humano (BLH) do precisa que a mãe esteja bem para ele”, ressalta Veja também porque evitar mamadeira; e
queria. Colocavam a culpa quadro depressivo que enfrentava após o ano”, diz Nilza. “Quando, no dia da festa, eu quando é preciso complemento.
Obstétrico (CO) do Hospital Materno-Infantil mãe também precisa ser maternada, cuidada. Hospital Regional de Taguatinga (HRT), diz Shyrlene. “O importante é apoiar a mulher
de Brasília (HMIB), Alessandra da Rocha Arrais, do insucesso em mim” parto. “Ela falava que se estivesse em uma vi tudo o que o Wandery tinha vivido, vi que Ela também é uma mãe recém-nascida”, ressalta que a amamentação traz benefícios para o na trajetória dela, sem cobranças”, completa.
a amamentação tem um papel importante multidão e houvesse outros bebês no local, eu tinha participado também. E um pouco Arrais.
Nilza Kotvent, pedagoga
neste quadro. “A amamentação é um dos segurava os filhos com força. Com medo daquela culpa foi embora”, afirma a pedagoga.
grandes ideais da maternidade. A mulher que deles se misturarem e ela não reconhecê- Só depois do primeiro ano do filho,
não consegue desempenhar este papel, muitas los mais”, diz. A pedagoga conta que sentia Nilza começou o tratamento psiquiátrico.
vezes, se sente terrivelmente culpada”, diz. a mesma sensação com relação ao filho. “Os médicos não queriam que eu tomasse
Por outro lado, se a mulher não está medicamentos por causa da amamentação,
Os problemas com a amamentação foram
bem emocionalmente, a amamentação fica Cuidar de quem cuida diziam que ia fazer mal para o bebê”, conta.
determinantes para que Nilza desenvolvesse a
prejudicada. “É como um ciclo que não acaba. Um A maneira como as outras pessoas Nilza lutou contra a doença durante cinco
depressão. Por conta de uma cirurgia plástica
interfere no outro e vice-versa. Nisto, a vida da tratavam Nilza neste período também foi anos. Neste período, ficou sem trabalhar,
nos seios, o bebê não conseguia mamar. “Meu
mãe já está muito abalada”, comenta a psicóloga. determinante para que o quadro depressivo tinha síndrome do pânico e desenvolveu
peito ficava muito duro, tanto pela plástica
Foi o caso de Nilza Mendes Gomes se agravasse. “Levei meu filho a três pediatras fibromialgia – doença que a fazia sentir
como pelo leite. Ele não pegava bem. Eu
Kotvent, 44, pedagoga. Ela é mãe de Wandery diferentes. Todos me maltrataram. Insinuavam muita dor e um dos sintomas da depressão.
também não conseguia ordenhar muito leite.
(pronuncia-se Uânderi), 14, um menino forte e que não dava de mamar porque eu não queria. Nilza não teve outros filhos. “Mesmo
Às vezes, em um dia inteiro, eu conseguia
inteligente com quem tem uma relação muito Colocavam a culpa do insucesso em mim”, depois que me curei, eu tinha medo de passar
tirar 80 ml. O leite não saía”, relembra.
próxima. Mas nem sempre foi assim. Apesar relata. O marido de Nilza também não a por tudo aquilo novamente”, afirma. Quando
de amar imensamente o bebê que acabara de apoiava. “Ele achava que era frescura minha, a conta sua história, ela não consegue conter
Incompetência ‒ O fato de não conseguir
chegar, Nilza sentia uma tristeza profunda. A tristeza. Ele só mudou de postura depois que as lágrimas. “Até hoje isso mexe comigo.
amamentar o filho fez com que Nilza se
pedagoga teve diagnóstico de depressão pós- meu obstetra deu uma chamada nele”, diz. O fato de não ter amamentado o Wandery
sentisse incompetente na tarefa de ser
parto quase um ano depois do nascimento do filho. Foi o obstetra de Nilza que percebeu como eu queria me entristece muito”, relata.
mãe. Outras pessoas que davam de mamar
que ela não estava bem emocionalmente.


na mesma época chegaram a amamentar
Culpa e tristeza “Na consulta pós-parto, com 40 dias,
Wandery. “Minha irmã dava de mamar para
A gravidez de Nilza havia sido tranquila, ele notou que eu estava muito abalada e
ele e ainda falava: está vendo como ele gosta
apesar da pressão alta. Ela conta que não teve de mim? Aquilo me deixava muito mal”, conta.
decidiu conversar com meu marido”, afirma. A mulher se
Festa ‒ O marido passou a apoiar Nilza.
enjoos e nem muitos desconfortos. “Tinha “Eu comecei a achar que ele não mamava cobra muito. Esse ideal
muitos desejos, mas foram todos saciados”, “Ele propôs que começássemos a planejar
porque não gostava de mim”, relembra.
a festa de um ano do bebê. E nem de festa (da maternidade) acaba
relembra. Era uma gravidez planejada e Nilza amamentou o filho até o sexto mês
desejada pelo casal, juntos há 15 anos. com muita dificuldade. “Ele tinha que tomar leite
ele gosta. Isso me deu um pouco de ânimo”, exercendo muita pressão
Por conta da pressão alterada, o obstetra conta. “Eu decidi que a festa se chamaria
em pó. A quantidade que ele tirava do peito era
Como é bom ser bebê. Usei vários objetos,
sobre ela”
resolveu antecipar o parto em 15 dias por meio muito pequena. Mesmo tendo muito leite, ele Alessandra da Rocha Arrais, psicóloga
de uma cirurgia cesariana. “No vídeo do parto, roupinhas, fotos, vídeos. Queria mostrar
não conseguia tirar por causa da plástica”, diz.
já dá para notar a diferença no meu semblante a Apesar da depressão, Nilza sempre
partir do momento em que o bebê foi retirado. foi muito apegada à criança. “Eu amava
Mudou completamente”, ‒ afirma Nilza. A demais, amo até hoje. Mas não sentia que Medicamentos Maternidade idealizada
pedagoga conta que a tristeza começou ali. A amamentação pode ser conciliada A psicóloga do CO do HMIB,
eu era uma boa mãe. Por mais que eu fizesse
Nos três dias que se seguiram, ainda com os medicamentos para a depressão sem Alessandra da Rocha Arrais, explica que o
tudo por ele, eu achava que não fazia nada”,
no hospital, ela diz que mal conseguia ficar riscos para o bebê. Atualmente, existem período puerperal é o mais vulnerável na
relembra. “Sentia-me incapaz de cuidar
acordada. “Lembro que acordava, tomava uma medicamentos seguros no mercado. Além vida da mulher. Nesta época, ela tem 25 vezes
dele. Questionava-me muito: como uma
colher de sopa e voltava a dormir”, afirma. disso, é preciso avaliar os benefícios do mais chances de ter um surto emocional
pedagoga, que já trabalhou em berçário,
Nilza diz que também não conseguia dar de tratamento já que a depressão pode ser mais do que em qualquer outra fase da vida.
não consegue cuidar do próprio filho?”, diz.
mamar para o filho. “Eu não conseguia nem nociva ao bebê do que os medicamentos Ela esclarece que, além da variação
Na época em que Nilza passava pelo
me alimentar, quanto mais amamentar. E o problema, a atriz Luíza Tomé, que acabara em si. Neste contexto, a mãe fica menos hormonal pela qual a mulher passa nesta fase,
hospital não dava outro leite para ele. Toda de dar à luz um casal de gêmeos e chegou a responsiva às necessidades da criança. existe um contexto emocional muito delicado.
hora ele ficava com hipoglicemia”, conta. estrelar uma campanha pró-amamentação, “A rotina da mulher muda completamente.
Existe estresse, privação de sono. Ela tem

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