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ANAIS ELETRÔNICOS

II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas


25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X

HISTÓRIA E FICÇÃO:
um estudo historiográfico da obra Histórias de Perdão, 1987, de Natalie Zemon Davis

Anderson Manoel Pereira


Graduando em História
Universidade Federal de Alagoas
Orientadora: Arrisete C. L. Costa

Neste artigo, desenvolvo um estudo da obra Histórias de Perdão e seus narradores na


França do Século XVI, da historiadora norte-americana Natalie Zemon Davis. Objetivo refletir sobre
suas especificidades teóricas e metodológicas no campo da História Sociopolítica. A partir do
método de análise historiográfica, aponto questões relativas ao valor documental das fontes
judiciais, o seu estatuto de verdade, o rigor científico da historiadora frente às narrativas das cartas
de perdão do século XVI e seus usos para o estudo da violência e os crimes em diversos meios
sociais.

Natalie Zemon Davis (1928) é uma historiadora norte-americana. Iniciou seu estudos no
Cranbrook Kingswood School, dando proseguimento no Smith College, Radcliffe College e na
Universidade de Míchigan, onde obteve seu Ph. D. em 1959. Atualmente é professora emérita de
História na Universidade de Princeton e professora na Universidade de Toronto. Suas atividades
acadêmicas tem levado-a a ensinar em diversas universidades no mundo, tais como a Universidade
de York, École dês Hautes Études em Sciences Sociais, Universidade de Yale, Universidade de
Berkeley e a Universidade de Oxford. É internacionalmente conhecida por seus estudos no campo
da História Cultural e Social da França do século XVI, em particular, por seus estudos sobre a
análise cultural do comportamento e das atitudes populares, a violência das massas e a história das
mulheres. A produção intelectual desta historiadora começou a ganhar destaque na década de 1960,

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ao publicar artigos sobre a cidade de Lyon (França). Neles, a historiadora aborda a cidade a partir de
vários pontos de vista: espaço urbano, comércio, imigração e as relações entre homens e mulheres.
Natalie Zemon Davis, em entrevista a historiadora brasileira Maria Lúcia Pallares Burke,
declara-se como uma intelectual engajada politicamente e assume influências marxistas, todavia,
confessa sua não conversão ao marxismo por preferir uma perspectiva eclética. Quando estudou a
cidade de Lyon, seus interesses estavam voltados para as classes trabalhadoras, e as revoltas dos
trabalhadores de Lyon parecia-lhe um material ideal para abordar questões mais amplas sobre
classes, conflito de classe, mudanças religiosas e relacionamentos do mundo social e intelectual.
Afirma ainda, desacreditar nas filosofias da História fundamentadas em pressupostos evolutivos.
Para a historiadora, as teorias de estágios de evolução são definidas como insatisfatórias:

Insisto na idéia de trajetórias múltiplas, de caminhos múltiplos, e, se pode falar em


filosofia, a minha esta em busca de conflitos e debates, e não de consenso e
coerência. Mais do que uma filosofia, diria que é uma visão do passado que está
interessada em multiplicidade dentro de um quadro comum e que, em vez de
acordos, busca lutas e mudanças históricas.1

Dentre suas produções historiográficas, as mais notáveis são O retorno de Martin Guerre,
1983; Culturas do povo: cultura e sociedade no início da França Moderna, 1975; Histórias de
perdão e seus narradores na França do século XVI, 1987; Nas Margens, 1995; História das
Mulheres, 19912. Essas obras foram traduzidas para diversos idiomas, tais como o alemão, espanhol,
francês, italiano, japonês, português, holandês, sueco, russo e finlandês.
A obra Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI, 1987 é a escolhida
para ser a fonte documental e objeto de análise deste estudo. Segundo a historiadora Maria
Clementina Pereira Cunha3, esta é uma das obras de maior impacto na historiografia contemporânea.
Ela tem como objetivo estudar as maneiras de narrar histórias das pessoas do século XVI, em
1
PALLARES- Burke, Maria Lucia. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 93.
2
Ver: Tomo III.
3
Professora do Programa de pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas.
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especial, como contavam suas histórias nas chamadas “cartas de remissão” ou “cartas de perdão”. A
historiadora Natalie Zemon Davis investiga como as pessoas comuns, por meio das narrativas das
“cartas de remissão” davam sentido ao inesperado, impunham coerência ao presente imediato, ao
cotidiano de suas vidas. Metodologicamente, utiliza a observação dos meios e do ambiente de
produção das cartas, assim como, dos interesses que narradores e platéias tinham em contar
histórias, considerando as estruturas pré existentes nas mentes e nas vidas dos homens e mulheres do
século XVI; por outro lado, avalia os possíveis caminhos narrativos determinados pelos limites da
lei e das coerções socioculturais. A escolha das “cartas de remissão” como objeto de pesquisa é
explicado pela historiadora por serem elas “[...] uma das melhores fontes de narrativa relativamente
ininterrupta provenientes das classes inferiores, apesar de não ser o único foco de atenção das
cartas de remissão, na França do século XVI.”4

Arlette Farge em sua obra O sabor do Arquivo, 20105, expondo sua visão sobre os arquivos
judiciários, argumenta no sentido de nos fazer compreender o fato de serem eles mais que papéis ou
aglomerado de documentos, e sim o repouso da pequena e da grande marginalidade. Os arquivos, de
forma geral, são como um mar que abre portas para um mundo desconhecido, no qual os
desconhecidos, reprovados, miseráveis, enfim, os que estão nas margens da sociedade, são
protagonistas da História. Ao contrário dos textos impressos que possuem a intencionalidade de
serem entregues para a leitura do público, os arquivos policiais são vestígios brutais de vidas que
não pediam para ser relatadas. E somente se tornam vestígios por terem confrontado a realidade
legal do Estado. Seus depoimentos são redigidos após o acontecido, pois o presente imediato ou o
acontecimento, por si só não produzem um documento, relato escrito, sendo este realizado
posteriormente. Lidar com os documentos não é uma tarefa fácil, pois exige respeito, sensibilidade e
muita perspicácia; os atores sociais do passado, por mais que já estejam mortos, não podem ficar
apagados da memória coletiva, mas sim vivificados em seu tempo. Portanto, documentos como as
“cartas de remissão” são um meio para a reconstituição dessas histórias esquecidas, e os arquivos

4
DAVIS, Natalie Zemon. Histórias do perdão e seus narradores na França do século XVI. Tradução de José Rubens
Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 20.
5
FARGE, Arlette. O sabor do Arquivo. Tradução de Fátima Murad. EDUSP: São Paulo, 2010.
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judiciais constituem um dos melhores lugares para um ogro (historiador) vivificar esses
protagonistas anônimos da história.

As “cartas de remissão” são utilizadas por historiadores para estudos sobre festas,
violência, vingança em diferentes meios sociais. Natalie Zemon Davis foca sua análise na
construção literária destas cartas - a construção narrativa -, considerando que a criação ficcional
tinha sua expressão mais adequada na poesia ou numa história, mas não na História, entendida como
uma verdade nua e sem enfeites, vale aqui uma ressalva quanto aos “artifícios ficcionais” -
elementos formadores, modeladores e construtivo na elaboração da narrativa -, pois estes não são,
necessariamente, formadores de falsidades podendo mostrar verossimilhança ou verdade moral. As
cartas de perdão geralmente são decorrentes de homicídios alegando não serem premeditados, “não
intencionais”, em legítima defesa, enfim, de alguma forma perdoáveis para a lei francesa, mas
também há “remissões” de falso testemunho, roubos, defloração de virgens e etc. Quem tecia essas
cartas? Qual a função desses autores no processo de composição? Qual estrutura das cartas de
remissão e das narrativas? Essas são indagações que usarei para caracterizar as cartas de remissão.

Peça chave no processo de composição das cartas era o “requerente”, que pedia perdão
quando era imediatamente preso em flagrante, aconselhado por algum parente, “advogado” ou em
caso de fuga, percebia que seu caso se encaixaria num pedido de remissão. Os “advogados”,
“conselheiros” em muitos casos, principalmente, de pessoas abonadas, possuíam formação
universitária, interesse em belas letras, tanto quanto em leis romanas, eram conhecedores da retórica
legal, possivelmente aprendida nas orações de Cícero6, e outros modelos clássicos; ou quando
“jovem advogado”, escutando as petições proferidas pelos mais velhos, recorria ao “notário real” ou
“secretário real”, conhecidos como uma “[...] elite do mundo dos escribas, possuíam um lucrativo
escritório real, que passaria de pai para filho ou de tio para sobrinho e traria consigo o título de
nobreza.” 7

6
Marco Túlio Cícero, um filósofo, orador, escritor, advogado e cônsul romano, foi conhecido por sua retórica e por sua
extrema dedicação à República. Recebeu aprimorada educação, com os maiores oradores e jurisconsultos de sua época.
7
DAVIS, Natalie Zemon, op. cit., p. 34.
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Quanto à função dos referidos “autores” na construção das cartas, a figura central desse
processo eram os “requerentes”, estes geralmente “iletrados”, na audiência do pedido de perdão
demonstravam dotes para contar histórias em decorrência dos meios sociais que freqüentavam, pois
as narrativas estavam presentes na vida cotidiana das pessoas em determinadas ocasiões como:
reuniões noturnas na cidade e no campo, onde se liam poemas e romances em voz alta, contavam
histórias; nas tabernas e jantares; nos relatos familiares dos mais velhos. Os “advogados” quando
procurados pelos “requerentes” os aconselhavam em determinados aspectos, por exemplo, a “arma”
que a vítima foi morta deveria ser apontada como um “instrumento” de uso cotidiano ou estava em
algum lugar largado sem nenhuma pretensão de uso maléfico, outro aspecto é o “estado de espírito
da vítima”, ajudava dizer que ela reconhecia seu erro, ou perdoava o “requerente” antes do último
suspiro, esses conselhos tendiam a afastar o dolo8 da atitude extremada dos “requerentes” dando-lhe
um caráter acidental; já houve caso de o “advogado” ajudar a rascunhar as cartas, suas mãos
cumpriam a função de homogeneizar o relato, possivelmente, suprimindo fatos que prejudique o
“requerente”. Cabendo ao “advogado” a narração oral dos acontecimentos, diante das cortes,
acrescentando referências legais e princípios morais.

Os “notários”, por sua vez, eram responsáveis por redigir as palavras de introdução e
conclusão. Na introdução, ele contava com o “manual da chancelaria”, que aconselhava a enaltecer
as qualidades do “requerente” e depois “relatar os acontecimentos fidedignamente como
aconteceu”; já na conclusão, ele estruturava os argumentos da história do “requerente” de tal forma
a conseguir o perdão. O “requerente” quando recorria ao “notário”, já possuía uma história em
mente, caso fosse alfabetizado com um rascunho em posse, assim sendo, os “notários” reproduziam,
sempre que possível a linguagem e o modo como os fatos eram relatados, pois este documento tem
por objetivo conquistar o perdão real, então o relato do “requerente” tinha que se adequar ao escrito
no pergaminho não cabendo nesta situação palavras que não fizesse parte do seu linguajar. Por fim,
o “requerente” revia a carta antes de ir à corte e ser julgado.

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Refere-se ao ato de má fé.
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Geralmente, nos relatos das “cartas de remissão” o requerente estava fazendo suas
atividades diárias, quando um desentendimento ou conflitos de ordem pessoal acarreta em um ato de
cólera, um clímax trágico e sangrento. O “requerente”, por sua vez, teria que submeter-se às leis
ditadas pelo “Rei”, pois ele não deveria ser citado como um herói astucioso contando seus feitos em
um romance popular, não com a arrogância dos atos violentos nas biografias deixadas para seus
filhos, mas sempre citado na terceira pessoa nos relatos dos “notários”, em posição de submissão ao
“Rei”, transformando seu ato em impulso, mostrando sua inocência, a “não intencionalidade” de
seus atos. Na busca da “verossimilhança” entre fatos e relatos, a descrição de lugares, pessoas e
gestos precisos criavam a imagem de uma “história verdadeira”, os detalhes garantem à conquista da
“verossimilhança”, como que brotando do próprio acontecimento, a “legitimidade” de suas ações.
Segundo a análise de Natalie Zemon Davis: “O mais importante era uma história persuasiva, capaz
de efetivamente ajudar.” Ou seja, convencer, comover e obter o perdão.

Vejamos o exemplo de uma dessas cartas de remissão. Escolhi a carta de Thomas Manny
por ela conter aspectos descritivos e propriedades narrativas acima comentadas.

Vamos à carta:

Francisco etc. Declaramos a todos os presentes e vindouros que recebemos a


humilde petição de Thomas Manny, pobre lavrador, de cerca de 36 anos, morador
de Sens, afirmando ser ele ligado por matrimônio a Caludine Guyart, com a qual
tem um filho. E conquanto o citado requerente a tenha sempre tratado e conduzido
bem e decentemente e ele próprio viva de maneira integra, gozado de boa
reputação e honesta conversação, mesmo assim a citada esposa, mal aconselhada,
procedeu com lascívia e perversão, e a tal ponto que, estando sob seu governo,
contraiu a doença conhecida como sífilis, da qual o citado requerente, muito
injuriado, fez com que se tratasse e curasse. E ela, assim curada, foi, na companhia
da criada que dela tratou durante a doença, ás escondidas do citado requerente,
para a casa de Jean Baston, taverneiro morador do outro lado da Porta de Santo
Antônio, onde passou o período de dois dias até que o citado requerente foi avisado

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por uma moça chamada Symonette, criada da casa de banhos chamada Chez
Noblet, de que sua citada esposa se encontrava na citada casa. À qual se dirigiu o
citado requerente, em companhia de Thomas Geneteau, pedreiro, e de Pierre
Numbiliers, sargento real em Sens, encontrando-a escondida no porão da citada
casa. A qual o citado requerente e acima citados acharam meio de levar de volta à
sua casa do citado requerente mediante a promessa feita pelo citado requerente de
não espancá-la nem desrespeitar, coisas que afirma não ter feito.

Mas depois de estar pelo período de cinco ou seis dias na citada casa, sempre
prometendo ao citado requerente bem se comportar e contrariando a citada
promessa, achou meio de pilhar e roubar a citada casa de tudo que lhe pareceu
bom e dirigiu- se, às escondidas do citado requerente, à casa de um serralheiro
chamado Graffiquart, morador da citada porta de Santo Antônio. Na qual
permaneceu durante o período de oito dias aproximadamente, até que uma mulher
da vida chamada Jacquette abordou o citado requerente em frente da sua citada
casa, a qual lhe disse que se ele quisesse lhe pagar uma bebida, ela lhe contaria
onde estava sua citada mulher, coisa que ele lhe prometeu fazer.

E logo depois o citado requerente, acompanhado por Jean Collart e Pierre


Hofflart, sargentos reais em Sens, e outros, dirigiram- se num domingo de manha
por volta do mês de junho de 1529 à citada casa do citado Graffiquart, na qual lhe
foi ordenado que nos abrisse a porta da citada casa, coisa que fez obtemperando a
justiça. E entraram incontinente na citada casa, onde encontraram a citada mulher
deitada em uma pequena cama com um desconhecido, que encontrou meio de fugir,
nu, e ganhar a saída dos fundos. E então os citados requerente e sargentos levaram
a outra, esposa daquele requerente, à sua casa, na qual o citado requerente fez
muitas repreensões à sua citada mulher e tomou uma vassoura que estava na
citada casa, da qual fez varas, com as quais castigou e bateu na citada mulher, que
se manteve três dias depois na citada casa. Passado esses três dias, mais uma vez
saiu e ausentou- se pelo período de três semanas aproximadamente, durante as
quais o citado requerente foi avisado de que sua citada esposa estava na casa de
um chamado Edmé Choppin, para onde se dirigiu para tratar de recuperar sua

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citada esposa. Mas uma chamada Katherine, irmã da citada mulher, em vez de isso
fazer, deu uma forte pedrada na cabeça do citado requerente, da qual jorrou
sangue em grande efusão.

Desde então, o citado requerente, no mês de julho do citado 1529, dirigiu- se a


certo prado próximo de nossa cidade de Sens, onde encontrou sua citada esposa
trabalhado no citado prado junto com muitos outros, entre os quais se encontrava o
amante de sua citada esposa, a qual o citado requerente recriminou pelas citadas
faltas, mas as pessoas ali presentes zombaram do citado requerente. Diante disso, e
da vergonha que sentia, pegou um forcado de madeira, com o qual bateu nos
ombros da sua citada mulher, dizendo- lhe que era muito má por estar com seu
amante diante de todos, e a levou de volta à citada casa. E nesse mesmo dia, por
volta das nove horas da noite, o citado amante, acompanhado de duas outras
pessoas, dirigiu- se à frente da casa do citado requerente xingando e blasfemando
contra o nome de Nosso Senhor e atirando grandes pedras contra as janelas
daquele, dizendo que ia levar sai citada mulher, chamando- o de ‘cabrão’, que
equivale àquilo que chamamos ‘corno’ ou ‘chifrudo’, dizendo também grandes
injúrias contra o citado requerente.

E no dia de santa Maria Madalena, uns quinze dias depois, o citado amante
dirigiu- se, acompanhado de dois outros, à frente da casa do citado requerente,
onde ele estava, xingando e blasfemando contra o nome de Deus, e disse ao citado
requerente, aplicando-lhe três ou quatro bofetões no rosto, que o mataria. E
enquanto ele prometia se vingar, um dos citados companheiros tirou um pequeno
machado que trazia debaixo da roupa, com o qual tentou dar um golpe na cabeça
do citado requerente, mas contra o qual colocou o citado requerente seu braço à
frente, onde foi atingido. E para se salvar, foi ele à casa de um vizinho seu, da qual
incontinênti, muito exaltado e nervoso pela agressão que sofrera, o citado
requerente saiu para se dirigir à sua citada casa levando uma pedra na mão, e ao
se encaminhas a ela, percebeu o citado amante, com um de seus companheiros.
Diante disso, mais nervoso do que antes apressou- se a ir para sua citada casa,
diante da qual encontrou sua citada mulher, à qual, numa explosão de raiva e

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invocando o nome de Deus, disse “tenho de morrer por causa de uma puta?”. E ao
dizer isso desferiu- lhe uma pedrada na cabeça. E quando a citada mulher caiu à
sua frente, então lhe desferiu duas ou três facadas, com uma faca que costumava
levar consigo e que utilizava à mesa, em varias partes do corpo de citada mulher,
ele não sabe onde.

Diante disso, ele fugiu, temendo o rigor da justiça. E depois ouviu dizer que em
razão das ditas facadas e por falta de tratamento, curativos, e bons cuidados, a
citada mulher falecera. Em razão do citado caso o requerente foi feito prisioneiro
em nossas prisões de Sens, nas quais ainda hoje está detido em grande cativeiro
correndo inclusive perigo físico e arriscando ali terminar miseravelmente seus
dias. Tendo sido humildemente solicitado pelo citado requerente que, haja vista o
que disse, o citado caso ocorreu verdadeiramente numa explosão de raiva e que o
citado requerente até hoje teve vida honesta, boa reputação e honesta conversação,
sem ter jamais sido acusado nem condenado de nenhum caso perverso, culpa ou
repreensão, nós lhe desejamos etc. Por que etc. o que ordenamos pela presente ao
nosso meirinho de Sens ou a seu lugar-tenente etc. Atribuído em Paris no mês de
agosto no ano da graça de 1530, décimo sexto de nosso reino, aqui assinada pelo
conselho de La Mare visa, contentor Berthelemy, registrada.9

Analisando essa carta veremos que os acontecimentos iniciam-se pela fuga e pelos
flagrantes da mulher adúltera, passam pela humilhação do marido, pelo ato não doloso até culminar
no clímax. São percebíveis as mãos do “notário”, tecendo afáveis adjetivos ao “requerente”, sempre
citado em “terceira pessoa”, uma “pessoa integra”, de “boa reputação”, de “honesta conversação”;
enquanto a esposa, impulsionadora da “explosão de raiva” do “requerente” é definida como uma
pervertida de atos lascíveis. Na conclusão, as mesmas mãos reafirmam os adjetivos afáveis, o ato
meramente impulsivo – apesar da brutalidade – e não doloso. Nota-se a presença de um “conselho”
seja de que procedência for quanto à arma usado para matar a esposa, citada como instrumento de
uso cotidiano. A descrição do ambiente e dos atores aponta para os detalhes que acentuam a

9
DAVIS, Natalie Zemon, op. cit., p. 169-176.
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“verossimilhança”. O resultado do pedido de Thomas Manny fora a absolvição, em agosto de 1530.


Observa-se que esta carta atende ao objetivo de justificar moralmente a violência em torno de
valores compartilhados pela sociedade da época, ou seja, formas aceitáveis de justificação da
violência e da culpa.10

Toda essa institucionalização e sua hierarquia social e política que compõem uma cultura
da violência constituída pelo trabalho de “notários”, “requerentes” e “advogados” para a composição
das “cartas de remissão” com propriedades plausíveis, persuasivas, detalhistas – é posta de lado,
quando o requerente possui relações pessoais e/ou políticas com o Rei. Esse, de imediato, realizava
o favor real emitindo o perdão. Assim sendo, para o fortalecimento de sua soberania o Rei tinha de
exercer sua vontade em detrimento da lei. “Entre o verdadeiro e o plausível havia espaço para a
graça e o poder do soberano [...]”11 Tais privilégios cristalizavam relações políticas com o Rei e
facilitavam a conquista do perdão, gerando um ciclo de favores que fortalecia o poder real e revelam
os aparelhamentos políticos da impunidade, da violência e da injustiça social. Maria Clementina
Pereira comenta que Natalie Zemon Davis “busca inserir cuidadosamente as cartas de perdão em
uma rede de textos de diferentes naturezas, para estabelecer seu significado político na França do
século XVI.”12

Tendo como parâmetro analítico a averiguação dos processos construtivos e compositivos


próprios das narrativas, Natalie Zemon Davis denomina de “artifícios ficcionais”, as estratégias
retóricas exercidas pelos “notários” ao escrever as “cartas de remissão”. E, nos explica as estratégias
e mecanismos de poder constitutivos do sistema judicial frente aos casos de violência social no
século XVI. São inúmeras as indagações suscitadas por este estudo sobre questões relativas às
possibilidades de acesso ao passado a partir dos relatos ou, em que medida, esses documentos
conformados pelas normas e etiquetas narrativas da retórica próprias de seu tempo, com suas cargas
de intencionalidade podem ser considerados como vestígios de modos de vida do passado. Decerto
as supriria se “reconhecêssemos a existência de um elemento fictício em toda narrativa histórica –

10
CUNHA, Maria Clementina Pereira. “A história nas histórias”. Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, p.191.
11
DAVIS, Natalie Zemon, op. cit., p. 91.
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CUNHA, Maria Clementina Pereira, op. cit., p.191.
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espaço para a crítica das ideologias – que nos motivaria para superar a idéia do “recolher os dados
do que um dia aconteceu”.

A análise historiográfica da obra Histórias de perdão, de Natalie Zemon Davis procurou


demonstrar que o ofício do historiador tem como lastro três pontos fundamentais: em primeiro lugar,
a ampliação do conceito de fontes documentais e as possibilidades de usos das fontes judiciais; em
seguida, a exigência de um exercício de interpretação, de análise e de crítica às fontes, pautadas pelo
rigor científico frente aos inúmeros testemunhos constitutivamente dialéticos por serem
ficcionalmente histórias verídicas; e por fim, suscitar ressonâncias entre as narrativas do passado e
narrativas de crimes do presente. Observamos que o trabalho do historiador não pode prescindir das
fontes documentais, da crítica e do diálogo entre o presente do historiador e o passado daqueles que
viveram em outros tempos. Concluo, com a expectativa de ter demonstrado o pressuposto de que o
estudo analítico tendo como fonte uma obra historiográfica sobre a violência e os crimes, reforce a
amplitude das pesquisas no campo da História Sociopolítica.

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REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Trad. Sergio Paulo Rouanet. Prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O oficio do historiador. Trad. André Telles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
CONRADO, Iris Selene. “Tempo e Narrativa: um estudo dos escritos de Walter Benjamin sobre
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COSTA, Arrisete C. L. “Explicação histórica e compreensão narrativa: na trilha de Paul Ricoeur”.
Revista do Mestrado de História, Vassouras, v. 10, n. 11, p. 11-34, 2008.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. “A história nas histórias”. Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, p.
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de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
PALLARES- Burke, Maria Lucia. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: UNESP,
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VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro- história. Rio de Janeiro:
Campus, 2002.

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