You are on page 1of 26
1. Redes que a raziio desconhece: laboratérios, bibliotecas, colegées Cage Os que se interessam pelas bibliotecas falam freqiientemente dos textos, dos livros, dos esctitos, bem como de sua acumulacao, de sua conservacio, de sua leitura e de sua exegese. Tém certamente raz4o, mas ha um certo tisco em limitar a ecologia dos lugares de saber aos signos ou & simples matéria do escrito, um risco que Borges ilustrou bem com sua fébula de uma biblioteca total remetendo apenas a si propria. Nessa fabula muito literéria, o impétio dos signos se apresenta como uma fortaleza de intertextualidade, Plena e sdlida enquanto nos interessamos somente pelas glosas da exegese, ela parece vazia ¢ frégil a partir do momento em que procuramos ligar os signos aos mundos que os cercam. Usuario muitas vezes frustrado das bibliotecas francesas, escolhi emoldurar esses lugares de meméria com outros lugares menos freqiientados, como os laboratérios ¢ as colegées, que a histéria e a sociologia das ciéncias nos ensinaram recentemente a conhecer melhor. Através desta breve meditagao sobreas relagées das inscrig6es e dos fendmenos, espero mostrar quea circulacso desses intermediétios muitas vezes desprezados fabrica nao s6 0 corpo mas também a alma do conhecimento. Neste capitulo, pretendo seguir nfo 0 caminho que leva de um texto a outro no interior de uma biblioteca, e sim 0 caminho que leva do mundo 4 inscrigéo, a montante ¢ a jusante do que chamarei um “centro de cdlculo”.2 Em vez de considerar a biblioteca como uma fortaleza isolada ou como um tigre de papel, pretendo pinté-la como o né de uma vasta rede onde circulam nao signos, nao matétias, e sim matérias tornando-se signos. A biblioteca nao se ergue como o palicio dos ventos, isolado numa paisagem real, excessivamente real, que Ihe serviria de moldura. Ela curva o espaco ¢ o tempo ao redor de si, ¢ serve de receptaculo provisério, de dispatcher, de transformador ¢ de agu- tha a fluxos bem concretos que ela movimenta continuamente. Apesar de al- gumas imagens, a viagem para a qual estou convidando o leitor nao ser4 tio © Poorer pas simiorecas ex6tica quanto a de Christian Jacob na Biblioteca de Alexandria, mas talvez Permita sair do universo dos signos no qual se quer as vezes — por desprezo como por respeito — confinar a cultura e seu instrumento privilegiado, Talver 0 leitor compreenda por meio desse périplo 0 que os pesquisadores franceses perdem por nao se terem beneficiado, até agora, de uma verdadeita biblioteca, € 0 crime cometido contra 0 espirito por uma nagio que se considera, no entanto, muito espiritual. Comecemos por subir a montante do signo e por perguntar a nés mesmos como definir a informagao. A informagéo nao é um signo, e sim uma relagiio estabelecida entre dois lugares, 0 primeiro, que se torna uma periferia, € © segundo, que se torna um centro, sob a condigao de que entre os dois circule um veiculo que denominamos muitas vezes forma, mas que, pata insistir em seu aspecto material, eu chamo de inscrigao, Para tornar esta definigao mais Concreta, consideremos este auto-retrato do naturalista Pierre Sonnerat (fig. 1). Aqui, nao nos encontramos nem numa biblioteca nem numa colecao, mas aquém delas, na costa da Nova-Guiné. O naturalista nao est4 em sua terra, a Figura 1. Desenho de P. Sonnerat (auto-retrato), Voyage 2 la Nouvelle-Guinée, Paris, 1776. Com a autorizacéo da Houghton Library, Harvard University, 22 ReDES QUE A RAZAO DESCONHECE mas longe, enviado pelo rei para levar na volta desenhos, espécimes naturalizados, mudas, herbarios, relatos e, quem sabe, indigenas.? Tendo partido de um centro europeu para uma periferia tropical, a expedicao que ele serve traca, através do espaco-tempo, uma relagéo muito particular que vai permitir a0 centro acumular conhecimentos sobre um lugar que até af ele nfo podia imaginar. Nesta gravura muito estudada, o naturalista se desenhou a si proprio em plena atividade de transformacao de um lugar em outro, registrando a transicao entre o mundo das matérias locais e o dos signos méveis e transportaveis para qualquer lugar. Observemos, alids, que ele se retrata num quase-laboratério, um lugar protegido pela folha de bananeira que o abriga do sol e pelos frascos de espécimes conservados no dlcool.! Observemos também que o mundo ind{gena deve fazer-se ver a fim de ser colhido pelo movimento da informacio. A escrava de formas generosas exibe 0 papagaio e permite ao desenhista detectar mais rapidamente os tragos caracteristicos do mesmo. O desenho produzido por esse quase-laboratério em breve circulard em todas as coleges reais; quanto aos espécimes, empalhados ou em frascos de lcool, irdo enriquecer os gabinetes de curiosidades de toda a Europa.’ © que é entéo a informagéo? O que os membros de uma expedi¢o devem levar, na volta, para que um centro possa fazer uma idéia de outro lugar, Por que passar pela mediagao de um vefculo, de um desenhista, por que reduzir 4 escrita, por que simplificar a ponto de levar apenas alguns frascos? Por que, ao retornar, nao levar simplesmente o lugar, em sua inte- gralidade, para 0 centro? Afinal de contas, era 0 que faziam os académicos de Lagado que Gulliver visitou. Em vez de falarem, eles se faziam acompanhar por servidores carregando em carrinhos de mao 0 conjunto das coisas que deviam constituir 0 objeto de suas conversas, ¢ que lhes bastava apontar. Grande economia de saliva, mas grande gasto de suor!’ Ora, a informagao permite justamente limitar-se 4 forma, sem ter 0 embarago da matéria. Os papagaios permanecerao na ilha com seu canto; levar-se-4 0 desenho de sua plumagem, acompanhado de um relato, de um espécime empalhado e de um casal vivo, que se tentara domesticar para o viveiro real. A biblioteca, o gabinete, a colegao, o jardim botinico e 0 viveiro se enriquecer’o com isso sem, no entanto, se entulhar com todos os tragos que nao teriam pertinéncia. Verifica-se que a informagio nao é uma “forma” no sentido platénico do termo, e sim uma relagéo muito pritica e muito material entre dois lugares, © primeiro dos quais negocia o que deve retirar do segundo, a fim de manté- lo sob sua vista e agir & distancia sobre ele. Em fungao do progresso das ciéncias, da freqiiéncia das viagens, da fidelidade dos desenhistas, da ampli- tude das taxionomias, do tamanho das colegGes, da riqueza dos colecionadores, 23 © PoveR as pipLiorEcas da poténcia dos instrumentos, poder-se-4 retirar mais ou menos matéria cartegar com mais ou menos informagGes veiculos de maior ou menor confia- bilidade. A informacao nfo é inicialmente um signo, e sim 0 “carregamento”, em inscrigées cada vez mais méveis e cada vez mais fiéis, de um maior numero de matérias. A produgio de informagoes permite, pois, resolver de modo pritico, Por operagGes de selecio, extragdo, redugéo, a contradigdo entre a presenca num lugar ea auséncia desse lugar. Impossivel compreendé-la sem se interessar pelas instituigdes que permitem o estabelecimento dessas relagbes de dominacao, € sem os veiculos materiais que permitem o transporte e 0 carregamento. O signo nao remete de inicio a outros signos, e sim a um trabalho de produgao ‘do concreto, téo material quanto a extragio de urdnio ou de antracito. Um gabinete de curiosidades, um volume de pranchas ornitolégicas, um relato de viagem devem, pois, ser tomados como a ponta de um vasto triangulo que permite, por graus insensfveis, passar dos textos a situagées e voltar aos livros Por intermédio das expedig6es, da transposi¢ao em imagem e das inscrigdes.’ Entretanto, convém completar este primeiro triangulo isésceles por um segundo, invertido, cujo vértice repousa, desta vez, na situacao de partida, € cuja base se expande nos centros de célculo. Um segundo movimento de amplificagio sucede ao primeiro movimento de redugio (fig. 2).* Ilustremos © movimento deste segundo triangulo com outra fotografia, tirada do livro admirével, ilustrado por Pierre Béranger, que Michel Butor Compatibilidade Padronizacao Texso ReDucAO REDES QUE A RAZKO DEScoNHECE consagrou antiga galeria do Museu de Histéria Natural (fig. 3).? Reen- contramos os volateis empalhados de h4 pouco, mas no meio de todos os seus congénetes, trazidos, do mundo inteiro, por naturalistas dispersos no espaco € no tempo. Em comparacio com a situagéo inicial, em que cada ave vivia livremente em seu ecossistema, que perda considervel, que diminuicao! Mas, em comparagao com a situagao inicial, em que cada ave voava invistvel na con- fusao de uma noite tropical ou de um amanhecer polar, que ganho fantéstico, que aumento! O ornitdlogo pode entao, trangitilamente, em local protegido, comparar os tracos caracteristicos de milhares de aves tornadas compardveis pela imobilidade, pela pose, pelo empalhamento/ O que vivia disperso em estados singulares do mundo se unifica, se universaliza, sob 0 olhar preciso do naturalista. Impossivel, é claro, compreender este suplemento de preciso, de conhecimento, sem a instituicao que abriga todas essas aves empalhadas, que as apresenta ao olhar dos visitantes, que as marca por um fino jogo de Figura 3. P. Beranger. In M. Butor, Les nausfragés de Varche, Paris, La Différence, 1981. 25 © poveR Das piBLiorEcas escrita ¢ de etiquetas, que as classifica por um sistema retificdvell dé pratelei- ras, de gavetas, de vitrines, que as preserva ¢ as conserva borrifimdo-as com inseticidas. Ai também, tanto para a amplificagao como para a reducao, a informagao exige uma competéncia, um trabalho tio material quanto o do embutidor ou do fresador. Talvez naturalista nao pense diferentemente do indigena que percorria sua ilha em busca de um papagaio, mas ele vive, com certeza, num outro ecossistema. A comparacio de todas as aves do'imtindo sinoticamente visiveis ¢ sincronicamente reunidas lhe dé uma enormeyantagem sobre quem s6 pode ter acesso a algumas aves vivas. A r Lt se paga com uma formiddvel amplificagao de todas as a Passando do primeiro ao segundo triangulo, af também nao descubro um mundo de signos cortado de tudo remetendo somente a si proprio. “A colegao, o gabinete, o livro ilustrado,"' o relato, a vib ioe a0 contrério, de intérprete, de intermedirio, de encruzilhada, d i de central telefonica, de dispatcher, a fim de regular as relagées n 0 trabalho de redugao ¢ o trabalho de amplificacao. Todos esses lugares esto repletos de ligagdes com o mundo, e cada pagina puxa atrés de si tantas tomadas ¢ fichas quanto a parte posterior de um computador. Ao falar de livros ¢ de signos, nao esquecamos sua “conéctica”. Apés quarenta anos de trabalhos sobre a intertextualidade e 0 espléndido isolamento do mundo dos signos, convém lembrar que os textos agem sobre 0 mundo, e circulam em redes priticas ¢ instituigdes que nos ligam a situagées. Evidéncia segunda, que, com certeza, nfo nos leva de volta & evidéncia primeira do realismo e da semelhanga ingénua, mas que, assim mesmo, nos afasta um pouco do império da semiética, Eis, por exemplo, uma pagina da revista Nature de alguns anos atrds, apresentando uma seqiiéncia de ADN bem como os aminodcidos que as bases podem codificar (fig. 4). Seria absurdo considerar esta pagina como a expresso transparente, a réplica, na linguagem da seqiiéncia, do gene tal como ele é, desde sempre, na natureza das coisas.'? No entanto, seria igualmente insensato isolar esta pagina do conjunto das tomadas referenciais que a ligam & agao de um gene em células vivas, através do laboratério, depois de centenas de operagées de manipulacdo.'® Questo cléssica que a filosofia das ciéncias quis enquadrar por muito tempo, opondo os realistas de um lado € os construtivistas do outro, como se nao se tratasse, ao contrario, de compreender a “construcio da realidade” bem real desse gene. O texto deste artigo comenta a seqiiéncia de genes inscrita como um documento gréfico no interior da prosa. Embora se trate de dois cédigos, no REDES QUE A RAZAO DESCONHECE mete nage teat tet tnet meettt 4 1 dap Pro Cin Poe Yak al tan Pro Glu me * san Pee ctu me * ye Cle Abe Law Law bye The The tye Gly A0e Val Gly dap tye TP Yah hyo Clu Ale Leg Ges Spa Tar The bys Ghe ata Yat Gly Aep Lye Ter at Yel Lye Gu Ale Lau bau bye Tee The Lys ALR Ser Val Gly A fe ete et i i EEG tty ee te ee ee ee ye In fn nr eA We ap ee ee ty tae we ggasi ysis ee en a irae serge oor A ee es ot ng, facta 9 Dep nye op ne ey ena Hema cs tba ed aca t A ten cane ese tes bl 3 eh ne mip oe ced ts Seeraai ae fale atures aig gat eee am cen Soe ie tp eee ey te tr a ‘Sa cemetery ana eno eed ere de (Una, pga tecteaeep acer gee ec oni ona pba somata SoD, ne te areca Dunes oe ae ee rs manne shane oto a eal eee ea Figura 4. © Nature. DR. Nos encontramos af na intertextualidade. O comentario “faz referéncia” a um documento que serve de prova e que fundamenta seus dizeres. Esse documento, pela mudanga de nivel da citacao, assegura em parte a veracidade do comentario. Mas aonde nos leva 0 préprio documento, se seguirmos a série das mudangas de nivel que, por sua vez, lhe servem de provas? Chegamos ao gene? Nao imediatamente. Chegamos ao programador de genes — instrumento de laboratério —, aos bidlogos moleculares manipulando com precaugio placas forogrdficas irradiadas por produtos radioativos e montando-as numa mesa luminosa como fariam fotdgrafos. O gene que acaba se inscrevendo em claro nas paginas da revista no pode ser desligado da rede de transformacées, de deslocamentos, de traducées, de mudancas de nivel, que vai, transversalmente, do texto 4 manipulacao de laboratério. Como no caso do papagaio de hé pouco, nao € possivel situar uma informagao sobre o gene sem a rede das instituigdes, dos aparelhos ¢ dos técnicos que asseguram o duplo jogo da reducao ¢ da amplificagao. Conforme o lugar em que vocé se situar para retirar 0 sinal, vocé conseguiré: um liquido num tubo de ensaio, 0 gesto de um técnico que mangja a pipeta, faixas cinzentas ou pretas num papel prateado, seqiiéncias de ADN na listagem de um computador, um texto em prosa sobre a localizagao possfvel de um gene, um argumento na boca de um homem de branco, um boato que corre no bar da esquina. Nunca se encontra o famoso 27 © rover pas mintiorecas roteiro de uma linguagem cortada do mundo e de um mundo cortado da linguagem, mas se encontra por toda parte a relacdo transversal, a9 mesmo tempo continua — por alinhamento — e descontinua — por mudanga de nivel — que liga centros de calculo, a montante e a jusante, a outras sitmacGes. Como mostrou muito bem Christian Jacob," a cartografia pod sexvir de modelo para todo esse trabalho de transformacées que inverse as relacSes entre um lugar e todos os outros. Nesta imagem (fig. 5), 0 cartégrafe desenha, em local abrigado e no plano, a paisagem que ele domina com o olla. Inversio propriamente fantéstica, pois aquele que seria dominado, na paisagema desenhada ao fundo, torna-se o dominante assim que entra em seu gabinete de trabalho € desdobra os mapas para rasuré-los. Para compreender esta imwerso, no devemos esquecer, bem entendido, a conéctica, que liga este lugar 2 todos 9s outros, por intermédio das expedigées, das viagens, dos coléquios, das academias, pela mediagio das vias comerciais tragadas a fogo © saneue, da matematica pura, que permite experimentar varios sistemas de projeggo, ¢ pela dos gravadores em cobre e dos impressores. Prestemos aten¢ao por um instante Figura 5. DR. 28 YREDES QUE A RAZAO DESCONHECE 4 inversdo das relagGes de forca entre aquele que viaja numa paisagem e aquele que percorre com o olhar o mapa recém-desenhado. Da mesma forma que as aves do Museu ganhavam, pelo empalhamento, uma coeréncia que as tornava todas compardveis, assim também todos os lugares do mundo, por mais diferentes que sejam, ganham, através do mapa, uma coeréncia ética que os torna todos comensurdveis. Por serem todos planos, os mapas podem ser sobrepostos, € permitem, portanto, comparacées laterais com outros mapas e outras fontes de informagao, que explicam essa formidavel amplificag3o propria dos centros de cdlculo. Cada informacao nova, cada sistema de projecao favorece todos os outros.!* Compreende-se melhor, entao, a expresso “centros de cdlculo”. A partir do momento em que uma inscrig4o aproveita as vantagens do inscrito, do calculado, do plano, do desdobravel, do acumuldvel, do que se pode examinar com o olhar, ela se torna comensuravel com todas as outras, vindas de dominios da realidade até entao completamente estranhos. A perda considerdvel de cada inscrig&o isolada, em relacdo ao que ela representa, se paga ao céntuplo com a mais-valia de informagées que lhe proporciona essa compatibilidade com todas as outras inscrig6es. O mesmo mapa pode cobrir- se de cAlculos; é possivel sobrepor a ele mapas geoldgicos, meteoroldgicos, pode-se comentd-lo num texto, integr4-lo num relato. Nesta imagem do servigo da Météo-France, por exemplo (fig. 6), pode-se ver como, gracas a coeréncia ética do mapa, se superpem tipos de informacao diferentes, uns, provenientes de um cdlculo numérico, e os outros, de uma imagem em infravermelho tomada por satélite. Hoje compreendemos melhor esta Figura 6, © Météo-France. 29 © oper Das piBLiorecas compatibilidade, pois todos utilizamos computadores que se tornam capazes de remexer, religar, combinar, uraduzir desenhos, textos, fotografias, c4lculos ainda agora fisicamente separados. A digitalizagéo prolonga essa longa histria dos centros de cilculo, oferecendo a cada inscri¢ao 0 poder de todas as outras. Mas este poder nao vem de sua entrada no universo dos signos, ¢ sim de sug compatibilidade, de sua coeréncia ética, de sua padronizacio com outras insctigdes, cada uma das quais se encontra sempre lateralmente ligada ao mundo através de uma rede. Nesta imagem (fig. 7) que Tufte considera como um dos diagramas Clentificos mais “eficazes’, compreende-se a origem dessa aposta dupla que faz o cientista ganhar cada vez que parece ter perdido o contato direto com © mundo. No mesmo desenho, Marey, o grande fisiologista (e inventor do inverso do cinemal'”), péde superpor 0 mapa da Ruissia, 2 medida das femperaturas, 0 percurso da Grande Armée, a data de seus deslocamentos e, mais tragicamente, 0 ntimero de soldados sobreviventes em cada bivaque! Informacées diferentes, procedentes de instrumentos separados, podem unificar- Se numa s6 visio, porque suas inscrigdes possuem todas a mesma coeréncia Otica, Sem a superposicdo das inscrigdes méveis e fis, seria impossivel apreender as relacdes entre os lugares, as datas, as temperaturas, os movimentos estratégicos as vitimas do general Inverno, Neste “lugar-comum’, oferecido pela roteirizacao Figura 7. Mapa estabelecido por M. Minard, In¥. J. Marey, O método gréfico, Patis, 1885. 30 REDES QUE A RAZAO DESCONHECE do grafico, cada dado se liga, por um lado, a seu proprio mundo de fendémenos, €, por outro lado, a todos aqueles com os quais se torna compativel. Quando Mercator utiliza pela primeira vez a palavra Atlas, para designar nao mais o gigante que carrega o mundo em seus ombros, e sim o volume que permite s oe ‘Terra entre as maos, cle materializa a inverséo das telagdes de forga que a cartografia torna téo claramente visiveis — mas que se encontram, em graus diferentes, em todas as disciplinas que entram sucessivamente na “via direta de uma ciéncia”. Resumo notdvel da historia das ciéncias, este frontispicio em que Atlas néo tem mais nada a fazer, sendo medir a bola que segura sem esforco nos joelhos (fig. 8). Ora, essa inversio das relagGes de forga se realiza por uma inversio literal das proporgées, dos tamanhos respectivos, entre o gedgrafo ea paisagem. Quando se usa a metéfora cOsMOGRAPHICR. MEDITATIONES Sijngee Bary Cor as Figura 8. Foto B. Latour. 31 © rover pas BiBLioTecas astronémica da “revolugio copernicana”, sempre se esquece um pequeno detalhe: 0 que chamamos “dominar com o olhar” permanece impossivel enquanto nao nos tornarmos Gulliver no pafs dos liliputianos. Nao existe Giéncia, rfgida ou flexivel, quente ou fria, antiga ou recente, que nao dependa dessa transformacéo prévia, e que nao acabe por expor os fendmenos pelos quais ela se interessa numa superficie plana de alguns metros quadrados, em volta da qual se retinem pesquisadores que apontam com o dedo os tragos pertinentes, discutindo entre eles. © controle intelectual, o dominio erudito, no se exerce diretamente sobre os fendmenos — galdxias, virus, economia, Paisagens — mas sim sobre as inscrigGes que lhes servem de veiculo, sob condi¢ao de circular continuamente, e nos dois sentidos, através de redes de transformacées — laboratérios, instrumentos, expedigdes, colegdes. O dedo apontado sempre permite aos realistas afirmar seu ponto de vista, antes de dar um murro na mesa exclamando, num tom de camponés do Dantibio: “Os fatos esto af, teimosos”."® Ora, 0 dedo desses cientistas, fotografados antes de sua partida para a floresta amazOnica, nao designa a floresta, ¢ sim a sobreposigao dos mapas ¢ das fotos satélites que lhes permitirao determinar onde estéo (fig. 9). Paradoxo do realismo cientifico, que s6 pode designar com o dedo a ponta extrema de uma longa série de transformacées no interior da qual circulam os fendmenos. Mas este paradoxo, afinal de contas, nao € menor que o do anjo pintado por Fra Angelico (fig. 10). Sua mio direita designa, para surpresa das mulheres, 0 ttimulo vazio (“ele no est4 mais aqui”), enquanto sua mao esquerda designa a aparicao do ressuscitado, que as mulheres também nfo véem, mas que 0 monge em oracéo pode contemplar com devogio, sob condicao de compreender bem 0 duplo gesto do anjo: “Nao é uma aparigao, Jesus, aqui na pintura, ndo esté aqui, no timulo, mas esté presente porque ressuscitado, nio 0 procurem entre os mortos, mas entre os vivos”. Paradoxo desse déitico que designa também, como o das ciéncias, uma auséncia."® Em outras palavras, as ciéncias nao sao mais imediatas que as imagens piedosas nem menos transcendentes que elas, Tanto Deus como a Natureza circulam através de redes de transformag6es. Haveria impiedade em crer que se pode ver diretamente a Floresta Amazdnica ou pér diretamente, como Séo Tomé, os dedos nas chagas do Salvador. Para compreender um centro de célculo, é preciso pois apreender 0 conjunto da rede de transformagGes que liga cada inscrico a0 mundo, e que 32 REDES QUE 4 RAZKO DESCONUECE Figura 10. Fra Angelico, Résurrection. Florenga, Museu de San Marco, Cl. Giraudon. 33 © PopER DAS pinLiorecas liga em seguida cada inscrigéo a todas as que se tornaram comensurdveis a ela pela gravura, 0 desenho, o relato, 0 célculo ou, mais recentemente, pela digitalizaco. Se quisermos compreender a imagem do gedgrafo trabalhando em seu gabinete, nao devemos esquecer a imagem tirada do mais belo romance verdadeiro da histéria das ciéncias (fig. 11).2” Na bruma dos contrafortes andinos, os infelizes ge6grafos da expedico La Condamine esforcam-se por avistar as balizas que com grande dificuldade levantam, mas que os indios Se erat hed eT eset oe Pe Figura 11. Jn F. Trystram, Le proces des évoiles, Paris, Seghers, 1979. Doc. Servigos Culturais da Embaixada da Franca no Equador. D.R. de noite derrubam, ou que os tremores de terra ¢ as erupgées vulcanicas deslocam ligeiramente, arruinando assim a preciséo de seus alinhamentos, Para que o mundo termine no gabinete do gedgrafo, é preciso que expedicées tenham podido quadricular os Andes com balizas bastantes para obter, por triangulacdes sucessivas, 0 meridiano de Quito ¢ visar em seguida as mesmas estrelas fixas nas duas extremidades. Que tenham sido necessdrios vinte anos de duros trabalhos e de inverossimeis aventuras para obter esse meridiano (fig. 12), eis © que néo se deve esquecer, sob pena de crer que o signo representa © mundo sem esforgo ¢ sem transformacdo, ou que ele existe & parte, num sistema auténomo que lhe servitia de referéncia, Mito cientifico oposto 20 mito literdrio, ¢ que dissimula tanto o labor dos construtores de redes como 34 Repes QUE A RAZAO DESCONHECE Quito. Jn F, Trystram. Le proces des éeoiles, Figura 12. La Méridienne de Paris, Seghers, 1979. Doc. Bibliothéque de l'Institut, Cl. Lauros-Giraudon. 35 © PopeR Das BiBLioTECAS © dos centros de cdlculo. Com efeito, os estudiosos de literatura, como os de ciéncia — sem falar nos tedlogos -, tém alguma dificuldade, mas por motivos opostos, em reconhecer o papel das inscrigées, em se interessar pelo corpo da prdtica instrumental. Eu jé disse o suficiente para que se possa agora considerar a topologia particular dessas redes e centros. Redes de transformagées fazem chegar aos centros de célculo, por uma série de deslocamentos — redugio e amplifica- 40 ~, um ntimero cada vez, maior de inscrigdes. Essas inscrigdes circulam nos dois sentidos, tinico meio de assegurar a fidelidade, a confiabilidade, a verdade entre o representado e o representante. Como elas devem ao mesmo tempo permitir a mobilidade das relag6es ¢ a imutabilidade do que elas transportam, eu as chamo de “méveis imutéveis”, para distingui-las bem dos signos. Com efeito, quando as seguimos, comecamos a atravessar a distingdo usual entre palavras e coisas, viajamos nfo apenas no mundo, mas também nas diferentes matérias da expressio. Uma vez nos centros, outro movimento se acrescenta ao primeiro, que permite a citculagao de todas as inscrigGes capazes de trocar entre si algumas de suas propriedades. A coeréncia ética dos fendmenos relatados autoriza de fato essa capitalizagéo, que parece sempre tio incom- preensivel quanto a do dinheiro (fig. 13). O conjunto dessa galaxia descabelada — redes e centro — funciona como um verdadeiro laboratério, deslocando as propriedades dos fenémenos, Capitalizagad’ oo CENTRO DE CALCULO 0 Deslocamento Figura 13. 36 REDES QUE A RAZAO DESCONHECE redistribuindo 0 espaco-tempo, proporcionando aos “capitalizadores” uma vantagem consideravel, uma vez que eles esto ao mesmo tempo afastados dos lugares, ligados aos fenémenos por uma série reversivel de transformasies, ¢ aproveitam o suplemento de informagGes oferecido por toda e qualquer inscrigo a todas as outras. Uma biblioteca considerada como um laboratério nao pode, é evidente, permanecer isolada, como se ela acumulasse, de modo man{aco, erudito ¢ culto, milhées de signos. Ela serve antes de estacdo de triagem, de banco, representando para o universo das redes e dos centros o papel de Wall Street ou da City para o capitalismo. Para dar outro exemplo, ela se apresenta, nessa descrigéo, como um grande instrumento de fisica, como os aceleradores do Centro Européeu de Recherche Nucléaire (CERN), obtendo em seu interior condig&es extremas, que redistribuem as propriedades dos fendmenos submetidos a provas que nao existem em nenhum outro lugar, e que detectores gigantes expressamente construidos para isso sabem colher, localizar, amplificar. Onde se encontram os fendmenos?, perguntar-se-A. “Fora, na extremida- de das redes que os representam fielmente”, dirdo uns. “Dentro, ficcéo regulada pela estrutura propria do universo dos signos”, ditdo os outros, Tanto os realistas como os construtivistas, tanto os epistemdlogos como os leitores de Borges, todos gostariam de dispensar 0 conjunto tracado pelas redes e pelos centros, e contentar-se seja com o mundo seja com os signos. Infelizmente, 0s fendmenos circulam através do conjunto, ¢ é unicamente sua circulagao que permite verificé-los, asseguré-los, validé-los. Nao esquecamos que as belas palavras de conhecimento, exatidao e preciséo perdem seu sentido fora dessas redes, dessas transformagées, dessas acumulagées, dessas mais-valias de informacio, dessas inversbes de relagdes de forca. Setia como querer separar a eletricidade doméstica das redes atendidas pela Electricité de France (EDF) ou as viagens de avido das linhas da Air France, Compreende-se entZo a obsesséo da geometria, da matemitica, da estatistica, da fisica, da metrologia, pela nocao de constante. Com efeito, trata- se sempre, pela invengao de instrumentos cada vez mais sutis, de conservar 0 maximo de formas ¢ forgas através do maximo de transformagGes, deformagées, provas. Ah, deter-se num ponto e, por uma série de simples transformacies, de simples dedugoes, recriar todos os outros, 4 vontade! Os melhores espiritos se entusiasmaram com essas invengdes que, no entanto, nao os afastavam, muito pelo contrério, da busca do poder e da criagio de coletivos cada vez mais vastos e cada vez mais bem “dominados”. 37 © ropeR Das aipLiorecas Para compreender essa esquisitice, é preciso interessar-se pelo trago mais curioso dessas redes de transformacio, isto é, por sua relatividade. Tomemos © exemplo simples da perspectiva, bem estudado por Ivins e por Booker.”! Nos desenhos feitos sem perspectiva, o leitor nao pode deduzir o conjunto das posigdes do objeto no espaco (fig. 14). Como diz Edgerton: “Nao se gira por trds de uma Virgem de Cimabue”.”» Num desenho em perspectiva tinica, A moda italiana, é possivel imaginar outras posig6es do objeto no espago, mas © sujeito, quanto a ele, deve ocupar a posigao privilegiada que o pintor lhe reservou. Num desenho técnico, que obedega as regras da geometria projeti- va — € 4s convengées relativas 4s sombras, 4s cores e aos simbolos —, é possivel ao leitor (competente) reconstituit a peca em todas as suas posigées através do espago. Com o desenho industrial A maneira de Monge, a relatividade d4 Figura 14, Mr, Wilkinson's Bradly Forge Engine Working Gear. Escala: 1/8 por polegada, c. 1782. In K. Baynes e F. Pugh, The Art of the Engineer, Guilford, Sussex, Lutherword Press, 1981. D.R. um passo de gigante. O documento grafico permite recalcular — como num mapa, mas em trés dimensées — a totalidade das posicdes, bem como a totalidade dos pontos de vista do espectador. Todas as posigées do sujeito € todas as posicSes do objeto sao equivalentes, tanto que se pode transportar © desenho técnico através do espaco sem modificar em nada as relacdes entre 38 REDES QUE 4 RAZAO DESCONHECE as partes que 0 compéem. Nao hd mais nem observador nem perspectiva privilegiados. De fato, como na relatividade de Einstein, existe sim um observador privilegiado, aquele que, no centro de célculo, pode capitalizar 0 conjunto dos desenhos, dos dados, dos levantamentos, dos mapas, das observacées, enviados por todos os observadores despojados de qualquer privilégio, e pode também, por uma série de corregies, de transformacoes, de reescritas, de conversées, torné-los todos compativeis.” E justamente porque os observadores delegados ao longe perdem seu privilégio — o relativismo — que o observador central pode elaborar seu panéptico ~ a relatividade — e encontrar-se presente a0 mesmo tempo em todos os lugares onde, no entanto, nao reside. E essa negociagao pratica entre os observadores da periferia e os do centro que dé carne ¢ sentido & express4o, sem isso vazia, de “leis universais”. A partir do momento em que um observador, um instrumento, um investigador se torna muito especifico, muito particular, muito idiossincrético, cle interrompe o deslocamento dos méveis imutéveis, acrescenta rufdo na linha, enfraquece o centro de célculo, impede o observador privilegiado de capitalizar, isto & de conhecer.* Como se vé, os fenémenos no se situam nem no exterior nem no interior das redes. Bles residem numa certa maneita de se deslocar que otimiza a manutengio das relagbes constantes, apesar do transporte e da diversidade dos observadores. A perspectiva, a teoria da relatividade, a geome- tria sdo alguns dos veiculos que asseguram as inscrigGes seja sua mobilidade, seja sua imutabilidade. Existem muitos outros, menos grandiosos, como o empalhamento, a imprensa, 0 modelo reduzido, a conservacao no azoto liqui- do ou a perfuragao para extracio de amostras.?> Todos esses meios juntos permitem reter os fendmenos, com a condigao de transformé-los, procurando de cada vez. o que se mantém constante através dessas transformagées. A veridicidade nao vem da superposicéo de um enunciado € de um estado do mundo, mas procede antes da manutencao continua das redes, dos centros e dos méveis imutaveis que af circulam. A palavra verdade nao ressoa quando uma frase se prende a uma coisa como um vagio a outro vagio, conforme o modelo comum da adequatio rei et intellectus, Deve-se ouvi- la antes como o ronronar de uma rede que gira e que se estende. Compreende- se entio que as instituigées como as bibliotecas, os laboratérios, as coleges no s4o simples meios que se poderiam dispensar facilmente, sob pretexto de que os fenémenos falariam por si mesmos a simples luz da razao. Adicionados 39 © Pope pas sistiotecas luns aos outros; eles compdem os fendmenos que sé tém existéncia por essa exposicao através da série das transformacées. No entanto, tal visio, que parece muito afastada do realismo & moda antiga, no nos leva de volta a0 simples jogo dos signos, pois essa série de transformagées tem justamente como particularidade atravessar continuamente ¢ reversivelmente © ou os limites dos signos e das coisas. A obsessio pela constante, pela manutencio de relagSes estaveis através das transformagées mais extremas, no se manifesta apenas entre as inscrig6es, como no caso da perspectiva ou do desenho técnico. Ela se manifesta ainda mais claramente quando ¢ preciso manter um fendmeno através das transformagées que o faze passar da matéria 4 forma ou, inversamente, da forma A matéria. Voltemos a0 exemplo simples da cartografia. Como verficar a adequacdo do mapa ao territério? Impossivel aplicé-lo diretamente a0 mundo — a menos que se refaca 0 trabalho colossal que permitiu aos Cassini, aos La Condamine, aos Vidal de La Blache inverter a proporcio entre dominantes e dominados, © que suporia outras instituigées, outros meios, outros instrumentos, Nz Pritica, aplicamos o texto do mapa a uma baliza, inscrita na paisagem (Fig. 15 ¢ 16). Reencontramos os dedos apontados de ha pouco ¢ 0 mesmo jogo Figuras 15 ¢ 16. Fotos S. Lagoutte. 40 REDES QUE A RAZAO DESCONHECE sutil da auséncia e da presenga. Esse viajante apressado mostra com o dedo © mapa do metré, e pode ler em letras grandes 0 nome da estacio que corresponde aquele, menor, do mapa. Essa moga aponta com o dedo o nome da rua, e pde em correspondéncia, com um répido movimento da cabega, 0 nome que se encontra em sua planta de Paris e nas placas de rua.”* As duas inscriges — a primeira no mapa, a segunda na placa — serio ambas signos? Certamente, mas numa relacdo que nos afasta da intertextualidade. Essas duas espécies de signos, mapas e placas, alinhados uns aos outros e mantidos ambos por grandes instituigdes (0 Instituto Geogréfico Nacional, o “Ponts et Chaussées”, © Ministério do Interior), nos permitem passar do mapa ao territério, negociando com cautela a enorme mudanga de nivel que separa um pedaco de papel, que dominamos pelo olhar, de um lugar onde moramos que nos cerca por todos os lados. Naturalmente, a série nao para ai. A posicio da placa depende de um regulamento do ministro do interior; a marcacio das ruas se bascia, por sua vez, através de outra mudanga de nivel, nos marcos geodésicos que se encontram cravados nas calcadas, ou recém-pintados. Podemos enfim passar para o solo argiloso? Ainda nao, pois os tridngulos da rede nacional nos afastam logo do lugar balizado para nos alinhar em outras balizas avarios quilémetros de distancia, ou em satélites a varios milhares de quilémetros de distancia, geridos por outras instituigdes. As inscrigdes nfo remetem no vazio a outros signos, uma vez que, a cada mudanga de nivel, elas se carregam de matéria e servem de validacdo uma & outra. E, no entanto, nao se pode percorrer sua cadeia sem encontrar, atrés da matéria anterior, outras marcas, outras instituicgdes que j4 “prepararam o terreno”, a fim de que sua leitura se torne compativel, apesar da mudanga de nivel, com o mapa que cu seguro na mao. Se desejamos entender como chegamos, as vezes, a dizer a verdade, devemos substituir a antiga distincdo entre a linguagem e 0 mundo por essa mistura de instituig6es, formas, matérias e inscricées. As vezes, pretende-se dispensar bibliotecas, laboratérios, colegdes, sem com isso perder nem o saber nem a raz4o. E acreditar na “natureza se desvelando aos olhos da ciéncia”, como nessa estétua de Ernest Bramar, que se encontra no Conservatério das Artes e Oficios (fig. 17). Esse mito nao é ctiticdvel somente por seu sexismo,”” mas também pela nudez terrificante na qual deixa sobreviver a Natureza, como a Verdade saindo gelada de seu poco. Tudo o que aprendemos recentemente das ciéncias, e que eu lembrei aqui muito rapidamente, nos mostra, a0 contratio, a verdade vestida, equipada, gorda, instrumentada, custosa, exposta, rica, e os pesquisadores fazendo uma coisa bem diferente de contemplar 0 mundo num derrisério peep-show. Os 4l © pover pas siptiorecas / | | | Figura 17. E. Bramar, A Natureza se desvelando i Ciéncia, 1895. Foto B. Latour. estudiosos de letras como os de ciéncias, por razGes opostas, porém, nao parecem poder reconhecer ao mesmo tempo o papel dos lugares fechados, onde se elabora o conhecimento, e as redes ampliadas e violentas, através das quai circulam os fendmenos. Os estudiosos de letras consideram a linguagem auténoma e livre de fazer referéncia a qualquer coisa, os estudiosos de ciéncias gostariam de dispensar o miserdvel intermédio das palavras, a fim de terem acesso direto as coisas. Ora, esses lugares silenciosos, abrigados, confortaveis, dispendiosos, onde leitores escrevem e pensam, se igam por mil fios ao vasto mundo, cujas dimensées e propriedades transformam. Tomemos, para acabar, um tiltimo exemplo, extremo, reconhego (fig. 18). Eis um dos War Rooms em que Winston Churchill conduzia a tiltima guerra, abrigado das bombas num bunker cavado por baixo de Westminster, que foi aberto ao puiblico depois de restaurado. Neste lugar abrigado, sé se véem nas paredes inscrigdes, compilacées estatisticas demogréficas sobre 0 nuimero de comboios afundados, de soldados mortos, de fornecimentos militares 42 REDES QUE A RAZKO DESCONHECE Figura 18. Foto Imperial War Museum. em produgéo. Entretanto, este lugar nao esta isolado da grande batalha planetéria. Ao contrério, ele a resume, a mede, serve-lhe, literalmente, de modelo reduzido. Com efeito, como saber se o Eixo ganha ou nao dos Aliados? Ninguém pode sabé-lo com seguranca sem construir um “dinamémetro” que mega a relacio das forgas por meio de uma série de instrumentos estat{sticos € de contagens. Como o gabinete de nosso cartégrafo, esta sala baixa © protegida das bombas se aplica, através de mil intermedidrios — dossiés, fichas, lisas, elatérios, avaliagbes, fotografias, contagens, estoques—, a colher informaces sobre a batalha que se desencadeia [4 fora, mas cujo sentido global ficaria perdido sem esse pandptico, sem essa compilasao notarial* Apesar de seu caréter marcial, eu afirmo que esta situago se parece mais com o lago que liga o leitor, curvado sob a auréola amarela da limpada, ao mundo que o cerca, que os mitos perversos de uma verdade desvelada pela ciéncia ou que a biblioteca interminavel de Borges. E porque os laboratérios, as bibliotecas ¢ as colecbes estao ligados num mundo que, sem eles, permanece incompreens{vel, que convém manté-los, se nos interessarmos pela raz4o. Segundo Christian Jacob,” parece que a Biblioteca de Alexandria teria servido de centro de cdlculo para uma vasta rede da qual era a fonte abastecedora. Nao é 4 toa 43 © PopeR Das BiBLIoTECAS que os Prolomeus cram gregos. O império de Alexandre sabia muito bem as forgas que podem ser derrubadas com o impétio dos signos.” Bruno Latour com a colaboracio de Emilie Hermant 44 11 Notas 1. Redes que a raziio desconhece: laboratbrios, bibliotecas, colecées Daston, 1988, p. 452-470; Latour, ‘Woolgar, 1988; Daston, Galison, 1992, p. 81- 128. Para a definiséo do termo, ver Latour, 1989 (Folio, 1995), ¢ para exemplos numerosos, ver Latour, De Noblet, 1985. Ver o artigo apaixonante de Star e Griesemer, 1989, p. 387-420. Sobre as separagées entre 0 exterior ¢ 0 interior do laboratétio, ver os importantes trabalhos de Shapin, 1990, p. 191-218; Shapin, 1990, p. 37-86, ¢ Shapin, 1991, p. 324-334, A nogéo de mével imutével combinavel se aplica, como se vé, tanto as coisas Como aos signos. Para uma apresentacio da teoria, ver Latour, 1985, p. 4-30, “No entanto, entre a elite do pensamento e da cultura, sio numerosos os que ado- taram essa nova linguagem por coisas. Alids, s6 lhe acham um tinico incon- veniente; € que, quando os assuntos de conversa¢ao so abundantes ¢ variados, a pessoa pode ser obrigada a carregar nas costas um fardo muito volumoso das diferentes coisas a serem debatidas, se nao tiver os meios de manter dois sélidos ctiados para este uso.” Swift, Paris, Gallimard, La Pléiade, 1965, p. 195. Encontrat-se-4 em Desmond, Moore, 1991, a desctigZo mais detalhada e mais convincente das relagdes estabelecidas entre o trabalho do cientista, no caso Darwin, no interior de sua colecio (particular), ¢ a rede de seus correspondentes, que cobre, em determinado momento, todo o Império Britinico em construczo, Encontrar-se-d 0 argumento de conjunto em Latour, 1993. Butor ¢ Béranger, 1981. E 0 que toma posstvel & (etno)ciéncia dos modernos, a superioridade que cla adquire, de fato, sobre a (etno)ciéncia dos antigos, e permite levantar a questio da simetria (Latour, 1991), apesar da ignorncia manifesta dos antropélogos de profisséo. Ver a histéria dessa forma de primeira revolucao audiovisual em Ford, 1992. 19 20 a m2 23 24 25 26 27 28 29 30 © rover Das mistiorecas Ver, por exemplo, Knont-Cetina « Amann, 1990, p. 259-283, e a coletinea de Lynch e Woolgar, 1990. Ver o magnifico exemplo desenvolvido por Mercier, 1987, 1991, p. 25-34. Ver Jacob, 1992. O livro classico sobre a grande questéo (hist6rica ¢ cognitiva) da sinoticidade do: impresso permanece o de Eisenstein, 1991. Tufte, 1984 e 1990. Dagognet, 1987. Para uma descricdo etnolégica dos gestos obrigatérios do realismo, ver o excel artigo de Ashmore, Edwards Potter, 1994, p. 1-14. Ver o magnifico livro de Marin, 1989. Trystram, 1979. Ivins, 1953; Booker, 1979. Edgerton, 1991. Latour, 1988, p. 3-44. Mallard, 1991. Ver o apaixonante exemplo dado por Bowker, 1994. Agradeco 20 fotdgrafo Stéphane Lagoutte por ter tirado para mim estas fotos. Ver sua critica em Merchant, 1980. Para uma andlise muito foucaltiana desta criagao pela contabilidade dos pandpticos, ver Miller, 1992, p. 61-86, ¢ para uma til compilagao das invengGes técnicas ligadas a essas enumerag6es, ver Beniger, 1986. Ver abaixo, p. 68-72. Ver Serres, 1993. 2. Ler para escrever: navegacées alexandrinas Para nos limitarmos a algumas obras recentes, 0 essencial de nossos conhecimentos sobre a Biblioteca de Alexandria € apresentado e discutido por: Parsons, 1952: Pfeiffer, 1968; Fraser, 1972 (em particular, o capitulo 6: “Ptolemaic Patronage: The Mouscion and Library”); Canfora, 1986, 1993. O dossié consagrado & Biblioteca de Alexandria poderd também ser visto em Préfaces,n. 12, mar./abr. 1989, p. 67-103. Os testemunhos antigos so, freqiientemente, tardios e parciais ou alusivos, ou mesmo fortemente reelaborados, recopiando-se, as vezes, uns aos outros. Entre os mais sugestivos sobre a fundacao da biblioteca, mencionemos a Carta de Aristeu, 9- 10; Epifanio, bispo de Salamina de Chipre a partir de 367 d.C. (De ponderibus 290

You might also like