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Entrevista: Hilda Hilst

Por Pedro Maciel

‘Em 50 anos serei considerada genial’

Às vésperas dos 70 anos, escritora diz que a maturidade dá a certeza que não
compreendemos nada.

Nascida em Jaú, em 1930, Hilda Hilst estreou em 1950, com o volume de poemas
“Presságio”. Desde então publicou mais de 30 livros de poesia, narrativa e teatro. Hoje
a escritora de “Tu não te moves de ti” garante que parou de escrever por ter esgotado
em sua obra a necessidade “imperiosa” de se expressar que, segundo ela, levou à
literatura. A poeta, que respondeu às perguntas por escrito, discorre sobre vários
temas numa linguagem repleta de reticências _ e por isso completamente próxima à
sua obra. As respostas de Hilda Hilst são quase fábulas, falas um tanto comovidas com
a existência. “Não sei se a minha vida daria boa poesia”, duvida ela, para quem a
poesia, desde Shakespeare, jamais mudou nada no mundo.

1. Hilda, você escreve para responder perguntas que às vezes não têm respostas?
- Na maior parte da vezes sim. No meu texto Qadós, por exemplo, isso se revela mais
insistentemente. O personagem, desde criança, já perturbava os pais por ser
acentuadamente perguntante e recebia os apelidos de Qadós-pergunta-coisa, Qadós-
disseca-tripa. Depois, já adulto, continuou se perguntando:

“(Qadós)... quando comecei a perguntar de manhãzinha:


O que me dizes do administrador do Cosmos?
E o administrador sabe de que maneira deve ser administrado para chegar com
sabedoria e perplexidade ao seu último estágio?
E se ele, o administrado sabe disso, que importância tem o administrador?
Fui indo aos solavancos muitas horas e terminei com esta jóia: o meu ser pergunta é
um estado imutável?”

Mas escrevo principalmente pela necessidade imperiosa de me expressar.

2. Vale a pena escrever poesia? Não seria melhor transformar a vida em poesia do
que fazer poesia com a vida?
- Não sei o que você quer dizer com “valer a pena”. Quer dizer fama, prestígio, di-
nheiro? Palavras simples podem significar coisas complexas. Heidegger escreveu um
verdadeiro tratado sobre “O que é uma coisa?”. Poesia é a necessidade de se
expressar. Não sei se a minha vida daria boa poesia. Sei que antes de tudo, importa
poder se expressar.

3. A poesia é capaz de transformar o mundo?


- Não acho que seja. Mesmo um grande poeta não pode transformar o mundo.
Shakespeare era deslumbrante mas não transformou o mundo.

4. Hoje em dia é possível surgir um poeta que tenha a voz do povo ou a poesia nestes
tempos pós-modernos é apenas dos poetas solitários?
- No Brasil, a voz do povo é o futebol, a música, a dança. Se “voz do povo é voz de
Deus” talvez Deus goste muito de dançar. Sei muito pouco sobre Deus. Talvez ele
passe horas falando ao telefone e por isso tudo está como está. Mas, mesmo solitário,
o poeta pode ter várias vozes. Os grandes poetas são sempre solitários e falam muito
sobre a ausência.

5. Octávio Paz diz que “a história da poesia moderna é a do contínuo dilaceramento


do poeta, dividido entre a moderna concepção do mundo e a presença às vezes
intolerável da inspiração.”
- A inspiração existe, embora João Cabral não acredite. Ela vem subitamente e pode
dar até febre física. É magnífico receber algumas vezes a inspiração. É um dom divino
com o qual somos agraciados.

6. Ainda hoje nascem poetas simbolistas e saudosistas, soneteiros e bordadeiras. Se


pelo menos fossem repentistas...
- Se você se refere a “bordadeiras” como aquelas mulheres que durante a revolução
francesa assistiam aos julgamentos bordando meias e eram denominadas de
tricoteuses, isso é terrível, pode ser medonho. Acho que sempre é bom quando nasce
um bom poeta, seja repentista ou não. Mas é necessário tentar inovar.

7. Poeta é aquele que sobrevoa o abismo?


- Sim. Sobrevoei muitos mas, nunca tive coragem de me lançar sobre eles. Sempre
tive uma boa dose de auto-preservação.

8. Há algum sentido, se é que há algum sentido, nas palavras e frases do poema?


- Aquele que se expressa, sempre tenta fazer algum sentido. Não um sentido
convencional, muito menos na poesia. Ele não fala sobre o nada e para nada.

9. O ritmo é o núcleo da poesia?


- Não só. É um conjunto. O ritmo, a forma, o fundo.

10. Valéry comparou a poesia com a dança e a prosa com a marcha...


- Minha prosa não é uma marcha, é sempre uma prosa poética. Não acredito nessa di-
ferença.
11. A palavra poética é a revelação da própria imagem? Um poema só tem sentido a
partir de suas imagens?
- Um poema não tem sentido apenas a partir de imagens, mesmo as imagens tendo
grande importância. Nos meus versos “Como se te perdesse assim te quero. / Como
se não te visse (favas douradas / Sob um amarelo) assim te apreendo brusco /
Inamovível, e te respiro inteiro / Um arco-íris de ar em águas profundas.” existem
lindas imagens mas, não apenas isso.

12. Falemos da crítica. Os críticos mandarins ignoram a sua poesia ou a tratam como
se você fosse uma poeta apenas erótica. Alguns a classificam como uma poeta por-
nográfica...
- Os críticos mandarins que leram minha poesia não a ignoram e sabem que não
posso ser classificada de poeta erótica. Anatol Rosenfeld, Jorge de Sena, Antônio Hou-
aiss falaram muito bem sobre meu trabalho. Dos meus 22 livros de poemas, apenas
um, “As Bufólicas” pode ser considerado pornográfico mas, eu sei que ele tem
principalmente humor. E dos meus 11 de prosa, apenas 3 podem ser considerados
pornográficos, mesmo não o sendo exclusivamente. Wilson Martins usou er-
roneamente a palavra “bordelesca” ao se referir ao meu livro “Do Desejo” mas ele não
o deve ter lido. Porém, estou em boa companhia. Du Boccage também sofreu esse
tipo de confusão, mesmo tendo, na quase totalidade, uma obra lírica, infelizmente
desconhecida pela grande maioria. D. H. Lawrence comentou muito bem o que é
pornografia, em 1925 no livro “Pornografia e Obscenidade”. Não sei por que ainda
fazem tanta confusão hoje em dia. Nos jornais, adoram colocar títulos chamativos. A
“Folha de São Paulo”, na resenha do meu livro “Estar Sendo-Ter Sido”, usou o título
“Uma Jeremiada Pornográfica”, deixando claro que não entenderam do que se tratava.
No jornal francês “Liberation”, Eric Loret fez um comentário brilhante sobre “A
Obscena Senhora D”, comparando-me a Bataille. Alguém, na redação, colocou o título
“La cochonne Hilsterique”. Acho que nem na França me entenderam.

13. Nietzsche diz que “é por nossas virtudes que somos bem punidos”.
- Não concordo inteiramente. Acho que quase ninguém lê Nietzsche, que foi uma
pessoa deslumbrante. Um dia ele se comoveu tanto vendo um cavalo sendo açoitado
que começou a chorar, abraçou e agarrou a cabeça do cavalo, caiu no chão e acabou
sendo levado para o hospício.

14. A leitura crítica deveria ser uma interpretação da beleza como um objeto de
saber...
- Você conhece a beleza? A idéia da beleza é muito difícil. Você pode ter a ilusão da
beleza que você já viu um dia mas, não sabe onde. Alguns místicos contemplaram a
beleza em Deus, durante os seus êxtases. Santa Angela de Foligno, que viveu no
século XIII, disse ter visto a beleza de Deus numa visão. Mas, acrescentou que “Ali
não havia nem sombra de amor”. Isso me deixou tão impressionada que comprei sua
biografia. Talvez nós todos, um dia, tenhamos visto o rosto de Deus e por isso
evocamos a beleza.
15. Você parou de escrever por causa da crítica, ou das editoras que não divulgam os
poetas, ou ainda porque os leitores estão surdos para a poesia?
- Parei de escrever quando senti que tinha dito tudo o que eu sabia e da melhor forma
que fui capaz. Fiz o esforço maior que pude para me expressar. Não adianta mais dar
explicações nem entrevistas. Se não entenderam, eu não sei dizer de outra forma. Se
me viesse alguma coisa com a força que me vinha, voltaria a escrever, seja prosa ou
poesia. Mas, não tem mais vindo. À medida que vamos envelhecendo, descobrimos
que não compreendemos nada.

16. Gide diz que “todas as coisas já estão ditas mas, como ninguém escuta, é preciso
recomeçar sempre”.
- Blake, Bataille, Rimbaud, Baudelaire, Beckett, Henry Miller, tantas outras pessoas
deslumbrantes já disseram. Eu sinto que já disse tudo o que devia. Acho que os novos
artistas, os novos talentos, devem recomeçar sempre sim.

17. Ler poemas em voz alta irrita os deuses aposentados...


- Se são deuses, nunca são aposentados. É preciso saber ler muito bem a poesia. Pa-
blo Neruda, Drummond, não sabiam ler bem seus poemas. Ouvindo uma gravação de
Cecília Meirelles declamando seus poemas fiquei surpresa. Eu sempre soube ler poesia
muito bem, tanto a minha própria como a dos outros. Quando eu tinha 19 anos,
Oswaldo de Andrade me fez ler o poema “Une Charogne” do “Flores do Mal”, de
Baudelaire, em voz alta.

18. Você concorda que, geralmente, os poetas são aplaudidos porque trabalham em
favor da língua comum e não porque inventam uma forma original de linguagem?
- Não da língua comum. Quando você escreve poesia ou prosa, tua vontade é sempre
dar um passo além. Como já teve Shakespeare, Rimbaud, Joyce e tantos outros
maravilhosos e geniais, é muito difícil dar esse passo, ser original.

19. Falemos do tempo. A eternidade está no presente?


- Os antropólogos dizem que para todos os homens a ação onírica une o passado e o
futuro no presente, e nos sonhos o espaço inexiste. O Zen questiona muito isso do Ali
e Agora, a eternidade estaria no aqui e agora. Mas não sabemos o que é Eternidade.

20. A morte não tem importância, desde que haja alguma coisa do outro lado...
- Ela não tem importância porque ela é inevitável.

21. Nunca somos geniais quando morremos...


- Podemos ser muito geniais ao morrer. As últimas palavras de Kafka foram “Para o
poço, para o fundo do poço filho de reis”. Rimbaud despediu-se da sua irmã, refe-
rindo-se ao dia seguinte da sua morte, dizendo “Eu estarei embaixo da terra e tu
caminharás ao sol”. Eu apenas diria “Que maçada”. Daqui há 50 anos serei conside-
rada genial. Principalmente quando morremos podemos ser geniais.
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2 poemas inéditos

Ai, que translúcido Te fazes


Que maravilha Teus ares
Ai, bem-querer de mim!
Tu
Nos Teus palanquins do alto
Olhando-me tão ferida
Tão mula velha
Tão carne de despedida
Tão ossos
Tão tudo que regozija
Tua garganta de brisa!
Vem. Engole-me inteira
No Teu exílio de esteiras!

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II

No Teu leito de lírios


Lambe-me o pêlo
Agora reluzente
De remansos de zelo.
Devolve-me a cabeça
(Pois mula que sou
E deitada com o Pai
Isso talvez se faça ou aconteça)
Rodeia-a de rosas
Como os humanos fazem
À guisa de louros
Com os seus mais preclaros.
Barganha-me nas feiras
Em proveito Teu:
Mula que se fez musa
(Porque deitou com Deus)
Na grande noite escura
Do Teu riso.

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2 poemas não-inéditos

(Alcoólicas / DO DESEJO)

I
a Jamil Snege

É crua a Vida. Alça de tripa e metal.


Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturnos pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

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(DO AMOR)

XXIII

Essa lua enlutada, esse desassossego


A convulsão de dentro, ilharga
Dentro da solidão, corpo morrendo
Tudo isso te devo. E eram tão vastas
As coisas planejadas: navios,
Muralhas de marfim, palavras largas
Consentimento sempre. E seria dezembro.
Um cavalo de jade sob a águas
Dupla transparência, fio suspenso
Todas essas coisas na ponta dos teus dedos
E tudo se desfez no pórtico do tempo
Em lívido silêncio. Umas manhãs de vidro
Vento, a alma esvaziada, um sol que não vejo

Também isso te devo.


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poesia

Presságio - Revista dos Tribunais, 1950


Balada de Alzira – Edições Alarico, 1951
Balada do festival – Jornal de Letras, 1955
Roteiro do silêncio – Anhambi, 1959
Trovas de muito amor para um amado senhor-
Anhambi, 1959; Massao Ohno, 1961
Ode fragmentária - Anhambi, 1961
Sete cantos do poeta para o anjo - Masso Ohno, 1962
Poesia (1959-1967) – Editora Sal, 1967
Júbilo, memória, noviciato da paixão - Massao Ohno, 1974
Poesia (1959-1979) – Quíron, 1980
Da morte. Odes mínimas – Massao Ohno,
Roswitha Kempf, 1980
Cantares de perda e predileção – Massao Ohno/
Lídia Pires e Albuquerque Editores, 1980
Poemas malditos, gozosos e devotos - Massao Ohno/
Ismael Guarneli Editores, 1984
Sobre a tua grande face - Massao Ohno, 1986
Amavisse- Massao Ohno, 1989
Alcoólicas – Maison de vins, 1990
Bufólicas – Massao Ohno, 1992
Do desejo – Pontes, 1992
Cantares do sem nome e de partidas - Massao Ohno, 1995
Na bibliografia de Hilda, acrescentar
Do Amor --- SP: Edith Arnhold- Massao Ohno Editor, 1999

teatro (inédito)

A possessa, 1967
O rato no muro, 1967
O visitante, 1968
Auto da Barca de Camiri
Aves da noite, 1968
O verdugo, 1969
A morte do patriarca, 1969

prosa

Fluxo-floema – Perspectiva, 1970


Qadós – Edart, 1973
Ficções – Quíron, 1977
Tu não te moves de ti – Cultura, 1980
A obscena senhora D – Massao Ohno, 1982
Com meus olhos de cão e outras novelas –
Brasiliense, 1986
O caderno rosa de Lory Lambi – Massao Ohno, 1990
Contos d’escárnio/Textos grotescos – Siciliano, 1990
Cartas de um sedutor – Paulicéia, 1991
Rútilo nada – Pontes, 1993
Estar sendo – Ter sido – Nankin, 1997
Cascos e carícias – Nankin, 1999

Entrevista publicada em 25 de dezembro de 1999, caderno “Prosa & Verso”; Jornal “O


Globo”

Pedro Maciel é autor do romance “A Hora dos Náufragos”, Ed. Bertrand Brasil. E-mail: pedro_maciel@uol.com.br

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