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PENSAR Diferentemente do palhago, que sabe rir da propria tragédia, somos. ensinados a ndo fracassar nunca, Sera que isso esti certo? 40. vidasimples + ourvano 2018 Foros avon mcn/GErry maces As delicias de ser palhacgo Assumir seu lado ridiculo, fracassar, despertar risadas alheias e, ainda assim, ficar contente? Ora, permita que seu clown assuma o comando ‘exo Maria Fernanda Vomero UM DOS MAIS ACLAMADOS - e queridos ~pa~ Thagos da atualidade, oamericano Avner, oEx- céntrico (ou Eisenberg, segundo seu registro oficial), esteve no Brasil em junho tiltime pa ra apresentar o espetculo Excepées é Gnavidla- de, no Festival Internacional de CircodoSese. ‘O evento trouxe também para a capital paulis- ta outros artistas memordveis, como.os suigos Pierre Byland e Gardi Hutter. Emum videoque registra a passagem de Avner pelo festival, ele diz de maneria clara: “Ao palhago est permi- tido fazer coisas que nés nao podemos. Somos ensinados ano fracassar nunca, masopalhaco deve fracassar e, entio, sobreviver”. ‘Apossibilidade de aceitar o inevitdvel fra- asso, de lidar com isso de maneira positiva e seguir adiante, na certeza de que outros escor- regoes virdo—afinal, somos todos faliveis eim- perfeitos-, sempre foi, para mim, uma das ca- racteristicas mais fascinantes do palhago. Figu- ra cémicae excéntrica, ele é herdeiro dos bufdes ‘¢ dos bobos presentes na cultura popular me- dieval, personagens marginais € grotescos, responséveis pela parédia e pelo escamnio per- manentes do comportamento humanona vida cotidianae nas esferas de poder. Datam da segunda metade do século 16 as primeiras referencias & palavra “clown”: desig- nava o tipo riistico, simplério e estipido que fazia a platcia rir nas encenagGes do teatro de moralidades da Inglaterra. Mais tarde, passou a integrar os teatros de feira ambulante, jé fa- zendo uso da pantomima ~influéncia evidente da commedia delVarte italiana, segundo o pes- quisador Mario Fernando Bolognesi, em seuli- ‘vr0 Palhagos (Editora Unesp). O encontro entre astradigdesinglesa italiana teria resultadona concepciio do clown circense. Nos incipientes espetaculos de circodo século 18, essas figuras satiricas, excéntricase desajeitadas ocupavam 0 picadeiro entre um niimeroe extroafimde pro- vocarum relaxamento cémico. Foi francés Jacques Lecoq quem levou 0 palhago de volta ao teatro. “Explorando oterre- no doridiculo e docémico, descobriabuscado proprio clown, que ia dar ao ator uma grande » ourueo 20:5 + vidasimples 41 aren te) era le PENSAR Que tal experimentar uma rotina com menos dureza e mais humor: um caminho ¢ aprender com a espontaneidade das criangas, 42 vidasimples + ouruszo 2015 ovo MaREEN HECHINGRR TT AGES liberdade ante ele mesmo”, Lecoq contaem O Corpo Poético -Uma Pedagogia da Criagao Tea- tral (Senac). As primeiras experiéncias foram feitasna décadade1960emsua escola, onde jé trabalhava comos alunos expresso corporale 2 “viagem” pelas mascaras—neutras, larvarias, expressivas e as da commedia delllarte. Ficava cevidente que ndose tratava de representar um tipo engracado, mas de assumir um estado de vulnerabillidade erisco diante dos demais. Para Lecog, nemtodososque passassem pelo treina- ‘mento se tornariam clowns; seguiriam por ou- tros caminhos artisticos, mas com os aprendi- zados daquela vivénciadeautoconhecimento. Amenor mascaradomundo © nariz. vermetho do pallaago—ou do clown, que aqui uso como sinémimos, apesar das dis- Ao palhago esta permitide fazer coisas que as outras pessoas nao podem. Todos nés somos ensinados a nao fracassar nunca, mas o palhage deve fracassar e, ent&o, sobreviver tinges feitas por alguns pesquisadores (um se- tia de picadeiro; 0 outro, do teatro)-€amenor méscara do mundo. Mas tambéméaque mais deixa expostoo seu portador, paiispor meio de- ase revelam os medos, osanseios,odesejo de seramado e as fragilidades daquele que a usa. Ao contrario do que muita gente acredita, no bastacolocar um singelonarizvermelho, vestir uma roupa extravagante e fazer piadinhas para se tornar um clown. Um palhagonao interpreta ‘um personage; ele é quemé. Eesse estado de disponibilidade que nor- teia ocurso oferecido pelo Solarda Mimica, es- ago de investigagao artisticamantido pelos ar- tistas Alberto Gaus e Vanderli Santos, com se- de em uma deliciosa chécara em Juquitiba, na regio metropolitana de Sao Paulo. O treina- ‘mento do clown se insere na pesquisa sobre 0 corpo que Gaus, mimico e palhago, desenvol- ve hd quase quatro décadase denomina “teatro ativo”, uma linguagem que prioriza aescutaea relagdo sempre dindmica como outro. “Assim como nés somos tinicos no universo, 0 nosso clown também é tinico, nao existe outro igual. E, quando assumimos essa grandeza,ele apare- ce, vem a tona”, diz Vanderli. “O humor desse clown nasce da esséncia absoluta do ser e, quan doele consegue espaco para se manifestar, cau- sa outro riso, nio um riso sarcistico que utiliza 0 ‘outro como motivo de chacota, mas sim um ri- soque reconstrdi, como um balsamo curador.” formato do curso oferecido pelo Solar da Mimica é 0 de um retiro de sete dias. Confesso que, para mim, foi um processo dolorido, mas que resultou prazeroso no final. Embora ja ti- vvesse feito outras oficinas de iniciacdoao clown antes, sempre em busca da libertadora sensagéo deme permitir errare serridicula diante dos ou- tros sem grandes constrangimentos, foi durante uma improvisagio especifica que me senti, pe- la primeira vez, palhaga. Compreendi, entio, na pratica, o sentido das qualidades atribuidas a0 clown: presenca, verdade e generosidade. “Todos somos idiotas, mas néo nos permi- timos ser na vida cotidiana. Isso nao significa querer chamar aatengo, mas sim assumiraes- séncia do idiota, que € algo sublime. Por isso, 0 nariz,vermelho ¢ a possibilidade do nio julga- mento”, diz Joana Marques Barbosa, palhaga profissional e professorade clown desde 2009. Quando ainda era uma estudante de psicolo- gia, Joana fez seu début na arte dopalhagocom aaatriz paulistana Bete Dorgam, uma das mes- tras da linguagem no Brasil. Gostou tanto que tomnou a participar do mesmo curso outras ve~ zes. Ali descobriu-se Maria Gelatina, a “Joana emestado puro”, preguigosa e molenga. Depois de uma temporada em Londres, es- tudando 0 método desenvolvido por Jacques Lecog em uma prestigiosa escola, Joana criou aesquete The Tale of Cloud Clown (A Fabula do Palhago Nuvem, em inglés) para explorar outra vertente de seu clown. O espetculo conta a jor- nada de um palhago pregui¢oso que caida estre- laem que dormiae, durante a queda, atravessa uma nuvem, que gruda nele. Chega a uma ci- dade chuvosa, olha para tudo pela primeira vez endo entende nada: como as pessoas podem » ourusro 2015 + vidasimples 43 PENSAR Bree ee Nan at tesa ‘A auséncia dos dentes, o tombo espalhafatoso niio devem ser motivo de vvergonha, mas de aprendizado. A vida, afinal, & chela de imperfeicdes, 44. vidasimples - ovrusso 2018 ronos mescesounce/oETEY maces » viver naquelas condigdes? “Cada vez que co- loco onatiz, descubro coisas novas, experimen- tonovas redengies”, diz Joana. Contradigées e vulnerabilidade ‘Talvezo grande desafio para o palhaco seja con- quistar cimplicespara sua aventura pelo.acaso. Ele ndo quer errar, mas errae nemse dé conta. ‘Applateia ri ao reconhecer as contradigées e a vulnerabilidade daquela figura, mas ritambém por reconhecer-se nela-e isso €universal. En- tre outubro e novembro do anopassado, 0 cole- tivo Cromossomos, formado pelo palliago Ar- thur Eder Toyoshima e outros dez clowns de distintas nacionalidades (brasileira, chilena, espanhola, italiana e venezuelana), fez uma expedigio composta por espetiéeullos, cortejos musicais e oficinas pelos camposderefugiados O nariz vermelho 6 a menor mascara do mundo e a que mais deixa exposto seu portador, pois por meio dela se revelam os medos, os anseios, o desejo Ge Ser amado e as fragilidades de quem 4 usa saarauis, no sul da Argélia- Empuiso de seu ter- ritdrio no Sara Ocidentalipelogovemo do Mar- +r0cos, opovo saarauiaguandadesdeadécada de 1970 tet direitoa seupréprio Estado. “Foi uma experiémctamagniiea”,conta Ar- thur, “Nao haviajulgamentomem preconceito por parte do piblico,estavamtodosmuito aber- tos.” Sob orientagoartisticadopalhacoemes- tre E'sio Magalhies, osespetdculos aconteceram principalmente em escolas para centenas de estudantes. Gragasaostraposorientais, Arthur caiu na graca da criancada. Os pequenos sem- pre queriam ver “el chino”, em especial nas es- quetesem que um carateca tentava quebrar pe- dagos de madeira e falhava. Os palhacos tam- bém seidentificaram com os saarauis;apesar de terem decididonao se envolverem temas politi- cos, acabaram, aofinal, se engajandonumama- nifestagdo contra o muro erguido por Marrocos paraisolar osrefugiados. Essa experiéncia de empatia e alteridade tem sido uma constante na trajet6ria da atriz e palhaga Priscila Bichuette jé como a Birgite Bor- 6, a quem conheci quando ambas nos inicié- vamos na arte do clown. Integrante do coletivo Forgas Amadas, que atua no projeto municipal Onibus-Biblioteca em comunidades da peri- feria de Sio Paulo, ela jé esteve com Ivin Pra- do, 0 Capitan Jadoc, da onc espanhola Palla- sos en Rebeldia, na aldeia indigena Kariri Xo- cd, em Alagoas, e entre os Krahé do Tocantins, ‘quando conheceuo hotxua 0 palhago sagrado ousacerdote doriso, figura ancestral responsé- vel por animar a tribo durante a Festa da Bata- ta, No teatro, sem onariz, mas imersa no espi- tito doclown, Priscila apresentouo espetdcu- lo Cuidado Frdgil, no qual era uma professora que ensinavaa ovosos meandros da existéncia. “yim para 0 mundo fazer isso”, ela diz, ‘emocionada. “Sempre tive essa ingenuidade e essa tontice, mas ainda nao havia encontra- do meu lugar. Meu palhago transborda, nao te- nho como nao sé-lo na vida.” Entre seus mes- tres, destaca a canadense Sue Morrison, herdei- radas tradigdes ancestrais do palhago sagrado norte-americano. Enquanto ainda trabalhava ‘como fonoaudidloga em um posto de satide, conheceu o trapezista Dover Tangeré, hoje fa- lecido, que Ihe apresentou outros tantos artistas circenses, entre eles os palhagos Puchy, morto em 2014, ¢ Pepin. O encontro resultouno docu- ‘mentirio Circo Paraki, no qual Priscila narra a histétia desses personagens incriveis. ‘Ainda que vocé nao queira atuar profissio- nalmente comoum palhago ou seguir uma traje- ‘6ria artistica, dé uma chanceao clown quemo- ral dentro, Nao se leve tio asérioe ria de suas prdprias bobagens. Sé temos a ganharao admi- tir que podemos ser patetas e, a despeito de to- dasas exigéncias sociaise da supervalorizagio do sucesso, que fracassamos. O importante-re- Jembro 0 que disse Avner, o Excéntrico-é so- breviver. E seguiradiante. MARIA FERNANDA VOMERO éuuma eterna aprendiz de palhago. Enquanto ensaia voos artisticos, on- tinua tropegando sem receio de er alvoderrisadas. ourvero 2015 + vidasimples 45

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