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Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio

Marcelo Kokke & Igor de Carvalho Enríquez


Organização

PRECEDENTES JUDICIAIS, JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA


E ATIVISMO JUDICIAL

Anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política


Volume 3

Belo Horizonte
2016
PRECEDENTES JUDICIAIS, JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
E ATIVISMO JUDICIAL

Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio,


Marcelo Kokke e Igor de Carvalho Enríquez
(Orgs.)

Copyright © desta edição [2016] Initia Via Editora Ltda.


Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104, Lourdes
Belo Horizonte, MG - CEP 30140-061
www.initiavia.com

Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro


Revisão: autores
Diagramação e capa: Brenda Batista
Imagem da Capa: Colunas do STF e escultura “A Justiça”,
de Alfredo Ceschiatti, por Evaristo Sá/AFP (11. fev. 2007)

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial


deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou processo,
sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais é punível
como crime e passível de indenizações diversas.

______________________________________________________

Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política


C749 (2. : 2015 : Belo Horizonte, MG)
Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial / organiza-
dores: Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio, Marcelo Kokke, Igor de
Carvalho Enríquez. - Belo Horizonte : Initia Via, 2016.

206 p. – (Anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e


Filosofia Política, v. 3)

ISBN 978-85-64912-90-8 (Volume 3)


ISBN 978-85-64912-87-8 (Coleção)

1. Direito constitucional - Congressos . 2. Filosofia do direito – Congressos. I.


Bustamante, Thomas. II. Sampaio, José Adércio Leite Sampaio. III. Kokke, Marcelo.
IV. Enríquez, Igor de Carvalho. V. Título.

CDU: 340(061.3)

Programas de Pós-Graduação Stricto Senso da Universidade Federal de Minas Ge-


rais e da Escola Superior Dom Helder Câmara

Apoios institucionais: Capes e Fapemig


https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V03
18 • II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política

PESO POLÍTICO DAS DECISÕES JUDICIAIS ESTRUTURANTES:


O PODER JUDICIÁRIO COMO AGENTE PARA
IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Luciana Cristina de Souza1

Introdução

Este texto observa e analisa o papel social e político de maior


relevo que nas últimas décadas, muito em função da promulgação
da Constituição Cidadã em 1988, foi atribuído pela Sociedade Ci-
vil ao Poder Judiciário, modificando a tradicional relação entre os
três Poderes prevista no contexto burguês liberal e pós-iluminis-
ta. Muito mais que a típica função jurisdicional, o Poder Judiciário
possui, hoje, o dever-agir como agente político por meio de deci-
sões estruturantes que viabilizem as políticas públicas cujo escopo
seja concretizar direitos fundamentais previstos na Constituição da
República (1988), ou a ela vinculados e estabelecidos em legisla-
ções infraconstitucionais. Tais manifestações judiciais na solução
de conflitos envolvendo prerrogativas básicas de interesse comum
recebem a nomenclatura de decisões estruturantes, porque formulam
linhas gerais para implementação de políticas públicas já previa-
mente formuladas por meio da construção de uma agenda social
democrática, a qual, porventura, venha a ser desrespeitada pelo Es-
tado na sua relação com os seus cidadãos (DALLA, 2014).
O objetivo deste artigo é defender que as decisões estrutu-
rantes são consonantes com a Constituição e com o princípio de
separação entre os três Poderes, visto que nestes casos de judicia-
lização de questões sociais a magistratura nada mais faz do que
impor cumprimento ao pacto firmado anteriormente entre a Socie-
dade Civil e o Estado Democrático de Direito, o qual deve honrá-las
sob pena de ser a inação estatal causa de perda do reconhecimen-
to de direitos fulcrais para a dignidade do ser humano e para o

1
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Mes-
tre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais; Pesquisadora CNPq
e FAPEMIG; Professora do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade
Milton Campos; Brasil; E-mail: dralucianacsouza@gmail.com
https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V03_35
Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial • 19

interesse coletivo. Assim, admite-se que as decisões estruturantes


possuem inegável peso político, o qual, todavia, condiz com o pa-
pel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário no âmbito do regime
democrático que visa o empoderamento dos indivíduos e grupos
sociais mais enfraquecidos e que são beneficiários em potencial das
políticas públicas propostas, mas ainda não executadas pelo Poder
Público (VALLE, 2009).
O texto percorre o caminho metodológico da descrição teó-
rica do que sejam políticas públicas, bem como de conceitos consti-
tucionais atinentes à separação dos três Poderes, Estado Democrá-
tico, cidadania ativa, dignidade da pessoa humana e função social
das atividades do Estado. Recorre, também, à exemplificação por
meio de casos concretos que permitem vislumbrar como as propos-
tas teóricas da legislação e o debate público originador do discurso
político formam a agenda social e atingem a realidade e o cotidiano
dos brasileiros, comprovando, dessa maneira, a concreta necessida-
de de efetivação da pauta de demandas por meio da judicialização.
Analisa qual deve ser o parâmetro seguido pelo Poder Judiciário
ao amparar os cidadãos em situação de abandono social ou perigo
de comprometimento de seus direitos em razão da omissão estatal.
Levanta-se a hipótese de que o Poder Judiciário pode in-
terferir em uma política pública para potencializar a democracia
constitucionalmente prevista, e a qual já tenha sido previamente
acordada entre Estado e Sociedade Civil quer via legislativa ou pela
via administrativa: legislações promulgadas, fóruns, conselhos mu-
nicipais, orçamento participativo, audiências públicas, etc. Quando
o pacto firmado entre os atores sociais é rompido, a via judicial é o
caminho apropriado para exigir-se uma reposta positiva do Poder
Público. Este se torna um caminho a mais para a participação popu-
lar, especialmente quando o instrumento adotado são as ações co-
letivas, ação civil pública e ação popular. Nestes casos ocorre uma
manifestação de democracia direta pela via não política. Embora os
magistrados não sejam eleitos pelo povo, ao solucionarem deman-
das relativas a políticas públicas prolatam decisões estruturantes
que possuem, por sua vez, uma função democrática clara expressa.
O contraditório processual entre Estado e cidadãos na causa
é, também, uma expressão de democracia. Se nas ações individu-
ais já atua o magistrado como agente político e não apenas, função
passiva, como a “boca da lei”, maior é o impacto estruturante da
decisão quando em ações coletivas devido à multiplicidade de cida-
20 • II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política

dãos envolvidos. A decisão judicial se torna, nestas situações, forma


jurídica legítima de reconhecimento de direitos e de novos sujeitos
de direitos. Também permite à sociedade interferir junto à Admi-
nistração Pública ao alocar recursos, definir medidas administra-
tivas de atendimento imediato ao cidadão e alterar procedimentos
para facilitar o acesso pela população. Pode-se afirmar que, em tais
processos judiciais, a decisão é estruturante e os recursos porven-
tura interpostos são sempre translativos, pois devem contemplar
a ordem pública, pretendida pelas partes ou não, mas diretamen-
te vinculada à causa e à agenda de política pública em discussão
(VALLE, 2009).
Logo, a judicialização de políticas públicas tempo resulta-
do a proteção do interesse coletivo e a consecução de demandas
envolvendo direitos fundamentais, sendo também expressão de
democracia devido à possibilidade de participação popular por
estes instrumentos para agir junto ao Poder Público no sentido de
direcioná-lo ao bem comum quando deste se desviar. Assim, por
meio das decisões estruturantes e de seu caráter político mantém-
-se a resiliência estatal (abertura) aos cidadãos e à democracia, tal
como ocorreu no paradigmático caso Brown versus Board of Educa-
tion julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no período
de 1954 a 1955 e que decidiu em favor da inclusão de estudantes
negros nas escolas públicas daquele país: “The case that came to be
known as Brown v. Board of Education was actually the name given
to five separate cases that were heard by the U.S. Supreme Court
concerning the issue of segregation in public schools.”2. Esta foi
uma decisão estruturante, considerando seu inegável caráter de
ordem pública ao efetivar política pública educacional e porque
solucionou mais do que uma questão pessoal (acesso à escolar
por aluno negro), mas orientou o processo de tomada de decisões
sobre a questão do racismo nas escolas públicas estadunidenses.
Com este exemplo se quer evidenciar a função importan-
te do Poder Judiciário de assegurar a efetividade da aplicação
adequada dos direitos envolvidos no caso para uma parcela da
população ainda em situação de fragilidade jurídica, política e
econômica. Este seu papel é muito mais relevante e socialmente
2
UNITED STATE COURTS. History - Brown v. Board of Education Re-enactment,
The Plessy decision. Disponível em <http://www.uscourts.gov/educational-re-
sources/educational-activities/history-brown-v-board-education-re-enactment>.
Acesso em 14 de outubro de 2015.
Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial • 21

desejado do que apenas declarar o “vencedor”. Segundo Felipe


de Melo Fonte (2013, p. 226), assegurar-se a adequada implemen-
tação de políticas públicas evitando sua concessão deficitária é
uma decorrência do princípio da proporcionalidade, que veda os
excessos: não deve o Poder Público extrapolar em suas funções e
concessões, bem como não pode permitir sejam elas inferiores ao
patamar estabelecido como razoável constitucionalmente.

1 Expectativas da sociedade civil frente ao poder judiciário

Assim, decisões estruturantes ocorrem com mais frequência


na atualidade porque a garantia de efetivação dos direitos funda-
mentais é um anseio de extrema relevância para a Sociedade Civil a
partir do século XX e, no caso brasileiro no cenário posterior à déca-
da de 1980, quando gradativamente realizou-se a redemocratização
brasileira. Neste contexto, o Poder Judiciário passou a assumir um
dever de agir como agente político por meio de decisões estruturan-
tes com o intuito de viabilizar a implementação de políticas públicas
voltadas a assegurar tais direitos fundamentais. Como afirma Ma-
ria Paula Dallari Bucci (2006, p. 22), esta é uma atuação imprópria,
posto que compete à Administração Pública e não aos magistrados,
via de regra, a implementação de políticas públicas; todavia, não é
um caminho constitucionalmente inválido desde que a judicializa-
ção se atenha ao seu papel excepcional de resolver omissão estatal
frente a direitos fundamentais que precisam de efetivação.
O que pesa politicamente quanto as chamadas decisões es-
truturantes é o fato de terem efeito translativo já que, mais do que
decidirem um caso concreto, projetam-se para além dele, servindo
de parâmetro para os que lhe assemelham, atribuindo à sentença
ou acórdão um conteúdo de ordem pública, típico das políticas ad-
ministrativas que visam concretizar direitos constitucionalmente
previstos. Afinal, não se pode exigir que os cidadãos esperem inde-
finidamente para usufruírem de direitos e garantias assegurados na
Constituição Federal de 1988.
Portanto, a judicialização de políticas públicas cumpre uma
função suplementar àquela que o Estado deveria ter realizado em
cumprimento ao pacto firmado com a Sociedade Civil, outro ator
deliberante na formação da agenda social. A decisão estruturante
não fere o princípio democrático, concretiza-o; este, por sua vez,
22 • II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política

é ofendido sempre que o órgão público competente omite-se de


executar as medidas convencionadas com os cidadãos e por eles
apresentadas à autoridade pública diretamente ou por meio de seus
representantes eleitos. Nestes casos, o Poder Judiciário age no senti-
do de restabelecer o equilíbrio democrático entre a Sociedade Civil
e o Estado. De acordo com Felipe de Melo Fonte (2013, p. 223), os
tribunais, nesses casos, exercem um “controle de suficiência e ade-
quação das políticas públicas” com o intuito de impedir qualquer
retrocesso quanto às garantias constitucionais decorrente de medi-
das administrativas deficitárias.
Diante deste ponto de vista, pergunta-se: as chamadas deci-
sões estruturantes realmente são instrumento apropriado jurídica e
politicamente para implementação de políticas públicas já previa-
mente formuladas na agenda social? Haveria efetivamente respei-
to ao princípio democrático, uma vez que os magistrados não são
eleitos como ocorre no caso dos representantes políticos? O Poder
Judiciário poderia ser considerado um ator/agente político segundo
a Constituição Federal de 1988 e, se o for, qual é o seu papel efetivo
e legítimo na atualidade?
Tendo em vista o problema apresentado da insuficiência de
atendimento das demandas sociais (ou inadequação das mesmas
à realidade) pelo Poder Executivo em razão da desconexão entre
Estado e Sociedade Civil, sendo uma das causas da ineficácia das
políticas públicas, considera-se como hipótese válida afirmar que,
em razão do grau de confiabilidade que o Poder Judiciário adquiriu
após 1988, judicializar demandas sociais se tornou uma via cidadã
de efetivação de direitos fundamentais que deveriam ser contem-
plados em políticas públicas específicas. Tais decisões tem por fi-
nalidade potencializar a democracia constitucionalmente prevista,
a qual já havia sido previamente acordada entre Estado e Socieda-
de Civil quer pela via legislativa ou pela via administrativa. Sendo
assim, os provimentos judiciais que alcançam o caráter de ordem
pública – decisões estruturantes – são constitucionalmente válidos
se destinam-se a garantir a efetiva implementação das políticas pre-
vistas e omitidas, mas não para deliberar ou escolher as medidas
administrativas a serem tomadas em lugar dos órgãos competentes.
Um exemplo claro desta perspectiva será visto no item 3.
Quanto ao fato de os magistrados não serem eleitos é preci-
so, antes, analisar de modo crítico a participação política por meio
de representantes, a democracia indireta. O modelo brasileiro, no-
Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial • 23

tadamente para os cargos de eleição proporcional, apresenta sérios


problemas de conexão eleitoral entre a base de eleitores e as banca-
das dos partidos eleitas, o que faz com que a influência do poder
econômico nas campanhas e a possibilidade de os votos da legenda
definirem postos para parlamentares inicialmente não desejados
comprometa seriamente a qualidade da representação e seu funda-
mento, supostamente, democrático. Quando o magistrado ou tri-
bunal defende a execução de uma política pública o faz no sentido
de evitar que os conchavos políticos interfiram, por exemplo, na
definição pouco democrática dos orçamentos públicos – por exem-
plo, evitar que haja escusa de investimento em áreas prioritárias
com invocação do princípio da reserva do possível indevidamente,
quando, ao mesmo tempo, os vencimentos dos próprios parlamen-
tares são aumentados. Democracia não é mais apenas “voto”, mas
participação em sentido amplo, com controle sobre o Estado inclu-
sive, e este, muitas vezes, só se consegue pela via judicial.
Logo, o Poder Judiciário possui, sim, um papel de agente
político quando prolata decisões estruturantes, mas ressaltando-
-se que nesses casos exerce uma função atípica, razão pela qual
deve ser excepcional. Faz-se necessário estabelecer-se limites a esta
atuação, não no sentido de impedi-la, mas com o intuito de ade-
quá-la às necessidades dos cidadãos de assegurarem seus direitos
fundamentais. Esta abertura de uma outra via para a consecução
de objetivos políticos resulta de três fatores: a) omissão do Poder
responsável, fato que não pode causar prejuízo ao cidadão por ser
conduta inapropriada da autoridade pública; b) aplicação do prin-
cípio da resiliência estatal (SOUZA, 2012; 2015), segundo o qual os
organismos governamentais devem adaptar-se às novas contingên-
cias com a finalidade de manter os valores do Estado Democrático
de Direito; c) concreção do princípio democrático inviabilizado, por
vezes, na via política em razão dos compromissos firmados pelos
representantes eleitos com os grupos financiadores de suas campa-
nhas, ao invés de firmá-los com a população, os eleitores – perda da
conexão eleitoral.

2 Âmbito de validade das decisões estruturantes

Portanto, decisões estruturantes são provimentos judiciais


pelas quais o Poder Judiciário soluciona questões políticas e sociais
24 • II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política

demandadas pela Sociedade Civil, assim tomando decisões que re-


gularmente deveriam ser providas por meio de políticas públicas.
São válidas e não ofendem ao princípio da separação dos Poderes
quando o seu exercício se faz de modo atípico, excepcional, somen-
te sendo invocado quando a omissão do Poder Público causa fron-
tal desobediência ao texto constitucional e, assim, à efetivação de
direitos fundamentais previamente pactuados entre cidadãos e Es-
tado. Logo, não podem formar a agenda social ou elaborar políticas
públicas, mas tão somente fomentar a sua implementação consoan-
te as deliberações feitas entre os atores sociais. Nesses casos, a or-
dem judicial proferida possui o objetivo de fazer cumprir a agenda
já formada pela interação entre os Poderes Legislativo, Executivo e
a Sociedade Civil, ou seja, assegurar que a promessa democrática
não se torne apenas simbólica. Por exemplo, o RE(RS) nº 581.488,
que trata da internação hospitalar com diferença de classe no SUS,
patente afronta ao princípio da igualdade. A via judicial, quando
usada para esse fim de reequilibrar relações jurídicas entre Estado e
cidadãos denota a resiliência estatal, ou seja, a capacidade do Poder
Público de estabelecer outros canais de comunicação para com a
Sociedade Civil além dos tradicionalmente existentes.

Uma evidência brasileira e atual dessa postura em favor da


atuação do magistrado como uma figura que intervém junto
à realidade e debate com a Sociedade Civil o que deve ser o
direito – reflexo claro da aplicação do princípio da resiliência
visando democratizar a relação entre Estado, direito e socie-
dade – é representada pelas audiências públicas realizadas
nos últimos anos pelo Supremo Tribunal Federal acerca de
temas como políticas de ação afirmativa de reserva de vagas
no ensino superior [...] as decisões recentes do Supremo Tri-
bunal Federal, como a equiparação da união homoafetiva à
união estável entre homem e mulher. (SOUZA, 2012, p. 123-
124)

2.1 O que são políticas públicas

Diante desse quadro, pode-se afirmar, mais uma vez, que


o Poder Judiciário não deve criar políticas públicas ou direcionar a
ação técnica dos demais Poderes. Compete-lhe, in casu, efetivá-las.
Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial • 25

Para que fique mais claro, apresenta-se, aqui, uma conceituação


para políticas públicas. Segundo Maria Paula Dallari Bucci (2006,
passim), elas são programas governamentais que servem como ins-
trumentos de concretização dos direitos sociais pelo Estado. Têm
por suporte as normas constitucionais – embora não apenas estas –
razão pela qual defendem a densificação do texto magno por meio
de sua aplicação ao contexto real, o que ocorre quando são elabo-
rados e implantados planos e ações de governo específicas para a
garantia de tais direitos sob a ótica administrativa. E elas resultam
sempre da composição entre os aspectos jurídico, político e econô-
mico, pois a previsão de uma medida administrativa que concretize
um direito depende frequentemente de dotação orçamentária para
sua execução.
Essa democracia dos direitos, que é mais ampla do que a
mera prática democrática de representatividade político-eleitoral,
exige cada vez mais uma articulação entre os atores intra e extra-ex-
tatais, de acordo com Bucci (2006), e além de seguir os parâmetros
constitucionais, deve também observar e analisar os fatores extra-
-jurídicos e sua influência sobre a escolha das políticas públicas. O
cenário que molda esta agenda social é um significativo elemento
definidor do modo de implantação de tais medidas, motivo pelo
qual se assevera que deve, para tanto, haver o que Souza (2012;
2015) denomina de resiliência estatal, ou seja, uma capacidade
adaptativa que caracteriza a atuação dos órgãos componentes da
estrutura de um Estado Democrático de Direito segundo o grau de
abertura à participação social nos processos de tomada de decisão
de interesse público.
Assim, políticas públicas são uma expressão de democracia
quando bem elaboradas e implementadas e sua inadequação fere
o princípio democrático. Contra o ato daquele Poder que as pre-
judicar, cabe defesa pela via judicial, de modo que o cidadão, pela
diferença de forças para com a autoridade pública, não fique à sua
mercê e sofra prejuízos em seus direitos fundamentais. Compre-
ender adequadamente este conceito permitirá delinear de maneira
mais acurada a função social que o Estado possui na atualidade
considerando o cumprimento das normas constitucionais e o de-
ver-agir de amparo a esses direitos. Esta é uma das razões pelas
quais as decisões estruturantes podem ser um instrumento de ação
política válida para cumprir o princípio democrático e a densifica-
ção constitucional.
26 • II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política

A definição de Bucci pode ser reforçada pela conceituação


apresentada por Mario Procopiuck (2012, p. 139): “A política públi-
ca, quando vista como processo, é o meio pelo qual a sociedade se
organiza, regula e governa”. Logo, ela é e deve ser um “processo”
decisório debatido e construído com a Sociedade Civil, segundo o
Estado Democrático brasileiro. Quando os parlamentares e os de-
mais agentes públicos comprometem sua atuação em prol da po-
pulação para beneficiar outros interesses, é mister que os cidadãos
tenham mecanismos jurídicos de defesa. A finalidade das políticas
públicas é realizar “atividades legislativas e administrativas dire-
cionadas para a resolução de problemas reais” (PROCOPIUCK,
2012, p. 138) e quando este objetivo fulcral não é assegurado pelos
Poderes competentes, neste momento, o Poder Judiciário atua ex-
cepcionalmente.

2.2 Democracia direta pela via judicial?

Pode-se afirmar, portanto, que a implementação de políti-


cas públicas pela via judicial quando consonante com a defesa da
sua adequação em harmonia com a Constituição Federal estabelece
uma nova comunicabilidade entre Estado e Sociedade Civil, além
das vias políticas estabelecidas por meio do voto como plebiscito e
referendo, ou mesmo os projetos de lei de iniciativa popular.
Por exemplo, a Lei 13.105, de 16 de março de 2015, o novo
Código de Processo Civil. Esta legislação prevê que o contraditório
processual entre Estado e cidadãos na causa é, também, uma ex-
pressão de democracia (NUNES, 2009). O novo Código de Processo
Civil (Lei 13.105/2015) enriquece ainda mais esta relação dialógica
que ocorre nestas ações de defesa de interesses coletivos e visam a
ordem pública, porque tem por valor democratizar o processo (NU-
NES, 2009). São exemplos de dispositivos que amplia a participação
nos processos judiciais: Art. 138: participação do amicus curiae; Art.
190: as partes podem fazer mudanças no rito processual quando
há caminho para autocomposição; Art. 927, §2º: audiências públicas
quando houver rediscussão de tese em súmula ou enunciado3.
3
Conquanto possam ser levantadas justificáveis dúvidas sobre a qualidade das
audiências públicas realizadas no Brasil atualmente – no âmbito dos três Poderes
– a necessidade de aprimoramento deste instrumento político-participativo não
diminui sua importância enquanto democracia direta, restando ao Estado, em par-
ceria com a Sociedade Civil (resiliência), estabelecer critérios que melhorem estes
Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial • 27

Logo, este se torna um caminho a mais para a participação


dos cidadãos, especialmente quando os instrumentos adotados são
a ação civil pública e a ação popular. Maior é o impacto estruturan-
te da decisão quando em ações coletivas devido à multiplicidade
de cidadãos envolvidos, como se verá a seguir. O caso abaixo foi
decidido antes no novo CPC, mas já reflete uma preocupação séria
com a qualidade da decisão judicial estruturante, pois intermediou
um debate pela via processual em que cada uma das partes argu-
mentou sobre a política pública em tela: o Estado alegando a reser-
va do possível, a Sociedade Civil, por meio do Ministério Público,
invocando direitos sociais fundamentais.

2.2.1 Ministério Público versus Estado de Minas Gerais

Antes de descrever o caso ressaltamos que é inegável que,


por melhores que sejam as intenções dos magistrados ao judicia-
lizarem questões políticas, o que efetivamente tem potencial em
muitos casos concretos de densificar os direitos consignados na
Constituição Federal (1988), nem por isso podem avançar sobre
prerrogativas de outros Poderes, não somente em razão do prin-
cípio que assegura o equilíbrio entre eles, mas porque com fre-
quência, como ocorre em questões envolvendo políticas públicas,
um efeito econômico será sempre observado, pois a concretização
de medidas administrativas pelo Poder Público envolve recursos
materiais e humanos. Este é um dos critérios para a aplicação do
princípio da resiliência: há subsunção da abertura estatal à con-
tribuição dos cidadãos nos processos de tomada de decisões po-
líticas aos limites impostos pelo Estado Democrático brasileiro,
fundado na vigente Constituição. Tais limites podem ser de or-
dem social (metas previstas como políticas de Estado), quanto às
liberdades (harmonização de direitos individuais entre si e para
com a autoridade pública), políticos (critérios de representativi-
dade majoritária e contramajoritária), cultural (minorias étnicas)
ou econômica (recursos orçamentários disponíveis).
Quanto a este último aspecto, é essencial recordar-se que
as políticas públicas possuem sempre implicações financeiras para
o Estado, logo, decisões judiciais estruturantes devem levar isto

mecanismos democráticos, ao invés de simplesmente desmerece-los por causa dos


vícios existentes.
28 • II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política

em consideração, especialmente porque não lhes cabe avaliar a


distribuição do orçamento público. Todavia, podem agir de modo
a avaliar se as políticas públicas previstas estão sendo implemen-
tadas conforme agenda pactuada entre governo e cidadãos. Um
exemplo é o julgamento do processo n. 1.0024.03.163240-9/002, jul-
gado em 1º de março de 2005 pela 2ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais. Nesta lide, que consistiu em uma ação civil
pública proposta pelo Ministério Público mineiro para que fosse
determinado ao governo estadual a compra de seis medicamentos
específicos para asma que viessem a compor a cesta de medicamen-
tos oferecida aos cidadãos, houve ampla discussão entre a aplicação
do princípio da reserva do possível
Alegou o governo do Estado de Minas Gerais em sua defesa:

Este trabalho racionaliza o gasto da verba pública e impede


que medicamentos que não apresentam demandas sejam
adquiridos e posteriormente invalidados em razão do ven-
cimento do prazo de validade. E, por outro lado, não signi-
fica que o Estado não esteja cumprindo sua obrigação. Isso
porque, os medicamentos selecionados, como já referido, são
suficientes ao atendimento da demanda e, além disso, em ca-
sos especiais, quando o paciente necessitar de algum outro
medicamento, será regularmente fornecido. Apenas, nesses
casos, o Estado não o manterá em estoque, em razão da pe-
quena demanda.

Decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

Se os técnicos de saúde do Estado de Minas Gerais, que em


princípio merecem fé e credibilidade, concluíram que a aqui-
sição de 03 daqueles 06 medicamentos listados seria suficien-
te para atender a demanda do sistema de saúde, deixando
a aquisição dos demais para as hipóteses excepcionais em
que, comprovadamente, fossem necessários, não há porque
desprestigiar tal conduta e determinar a compra de todos os
medicamentos, para que se percam nas prateleiras.
[...]
O juiz tem liberdade na apreciação da prova e na formação
de seu convencimento, mas não pode desprezar os elementos
dos autos nem partir de afirmações dissociadas da experiên-
cia comum, desprezando conclusões de especialistas da área
de saúde que integram os quadros do Estado, sem que os au-
Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial • 29

tos nada forneçam que autorize tal procedimento.


[...]
O Poder Judiciário poderá, até, determinar condutas que ga-
rantam a aplicação imediata daqueles direitos, mas esta de-
terminação deve observar os limites e os princípios definidos
na Constituição e na legislação, sob pena de, insista-se, ina-
ceitável agressão ao princípio da separação dos poderes.

No caso em tela, a decisão orientou o governo do Estado no


sentido de introduzir algumas das sugestões feitas pelo represen-
tante do Ministério Público para a lista de medicamentos de asma
em Minas Gerais, uma vez que não se pode olvidar as políticas
públicas relativas ao direito fundamental à saúde, porém não na
sua totalidade, tendo levado em consideração o parecer técnico dos
funcionários estaduais. Fez cumprir o direito constitucional previs-
to sem, contudo, legislar sobre seu cumprimento. Esta é uma deci-
são de caráter estruturante, cujos efeitos são translativos e atingem
a ordem pública, mas que respeita o princípio da separação dos
Poderes.
Como promovida por uma ação civil pública, de caráter so-
cial inegável, reflete um anseio válido da população expresso no
âmbito do princípio democrático, que inclui, também, o devido
processo legal, o qual permitiu ao cidadão questionar a inação do
Poder Público. Tal deliberação pela via judicial é decorrente do mo-
delo de Estado Democrático de Direito, que Permite que ela ocorra
pela via judicial, em razão da aplicação do princípio da resiliência
estatal, que visa capacitar os órgãos estatais a serem mais adapta-
tivos, conquanto resguardem e zelem pelos limites impostos pela
Constituição.

2.2.2 Necessidade de definição de limites à judicialização

É claro, que afirmar-se que a judicialização por meio de de-


cisões estruturantes é uma via de democracia direta pode suscitar
discussões louváveis em defesa da preservação do Estado Demo-
crático de Direito e do equilíbrio entre os três Poderes, razão pela
qual este tópico do artigo está escrito seguido de um ponto de in-
terrogação (DALLA, 2014). E, em mesa redonda realizada em 28 de
novembro de 2014 durante o XVII Congresso Brasiliense de Direito
Constitucional, Ingo Wolfgang Sarlet alertou para o fato de que as
30 • II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política

decisões estruturantes devem apenas reconhecer e garantir efetivi-


dade a direitos existentes e não declarar direitos novos sob perigo
de excesso judicial – caráter excepcional. E Lênio Streck chamou a
atenção para o fato de que a Sociedade Civil deve ter cuidado ao
acreditar em uma “superioridade moral do Poder Judiciário” sobre
o setor político, devendo perceber com clareza os perigos do ativis-
mo judicial.

Considerações finais

Embora nossa tradição legalista romano-germânica seja ten-


dente a considerar a atuação do Poder Judiciário uma importação
por vezes inadequada do sistema jurídico Comon Law, a atuação dos
magistrados em decisões estruturantes não contraria a Constituição
e tampouco prejudica a relação entre os três Poderes se atine exclu-
sivamente à implementação e não elaboração de políticas públicas
já previstas. Deve-se ter em vista que estas políticas, ao menos em
tese, já foram deliberadas pelos representantes democraticamente
eleitos, com a população inclusive, como ocorre em casos em que
há a atuação das Comissões Legislativas Participativas ou nas audi-
ências públicas, por exemplo. Logo, mesmo os aspectos orçamentá-
rios já foram – ou deveriam ter sido – apreciados e apurados pelos
agentes políticos legislativos.
No momento em que o Poder Judiciário age como também
um agente político por meio da judicialização ele não substitui a
função do Poder Legislativo, apenas faz cumprir o que já foi pactu-
ado entre Poder Público e Sociedade Civil quando da elaboração da
política pública já proposta e aprovada, adotando a única e exclusi-
va ação de dar-lhe seguimento objetivando sua implementação por
meio de uma decisão estruturante, posto que não é condizente com
os princípios constitucionais vigentes a inação estatal relativamente
aos direitos fundamentais. Todavia, é fulcral que existam limites à
esta atuação judicial de modo a não investir os magistrados em mais
poderes do que lhes foi conferido pela própria Constituição Federal
de 1988. Como o próprio princípio da resiliência impõe, a abertura
estatal ao clamor social por direitos, in casu pela via judicial, deve
respeitar os parâmetros estabelecidos na formação de nosso Estado
Democrático de Direito. Portanto, a atuação dos magistrados como
agentes políticos tem caráter suplementar e delimita-se pelo estri-
Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial • 31

tamente necessário para fazer valer as decisões deliberadas entre


Estado e Sociedade Civil, não para supri-las ou à função específica
dos demais Poderes.

Referências

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ceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.
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