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ANTROPOLOGIA COMO FILOSOFIA PRIMEIRA

Ernst Tugendhat Nesta palestra, quero aprofundar uma tese que tinha
defendido num ensaio que publiquei há alguns anos, a saber:
que a antropologia não é simplesmente uma disciplina
filosófica entre outras, senão que deveria ser entendida como a
Três Conferências
filosofia primeira, isto é, que a pergunta “o que somos como
seres humanos?” é a pergunta em que se baseiam todas as
outras perguntas e disciplinas filosóficas.
Essa tese nos confronta com várias perguntas:
primeiro: “o que é filosofia?”; segundo: “é necessário que as
diferentes disciplinas filosóficas requeiram alguma unidade
entre elas e uma disciplina ou pergunta fundamental?”;
Antropologia como filosofia primeira terceiro: caso assim fosse, por que tem que ser a antropologia?;
quarto, e isso será o mais importante: como devemos entender
a disciplina “antropologia filosófica” em si? Ela tem, por sua
Antiigualitarismo e poder em Nietzsche e Hitler
vez, uma pergunta básica? E qual deve ser seu método? De
que maneira distingue-se da antropologia empírica, quer
O que a filosofia pode contribuir para o problema da dizer, do que os anglo-saxões chamam de cultural
eutanásia? anthropology? Outra pergunta que me parece fundamental para
um entendimento da antropologia é a sobre sua relação com a
história e com as disciplinas históricas. Pois, assim como a
metafísica, também a pergunta “o que é o ser humano?”
parece implicar uma orientação não-histórica. Devemos
perguntar-nos em que sentido a antropologia contradiz uma
orientação histórica e em qual outro sentido se poderia dizer
que ela mesma sugere um certo tipo de orientação histórica.
Começo com a pergunta sobre se as diferentes
disciplinas filosóficas têm alguma base em comum ou pelo
menos alguma interconexão. Em outros tempos, pensava-se
que a metafísica tivesse a função de uma disciplina de base.
Hoje, e desde já algum tempo, se fala do fim da metafísica.
UFSM, Maio de 2006
Mas não é tão óbvio o que é o que se entende sob esse título.

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Trata-se de uma pergunta pelo ser, de ontologia, ou dos entes pergunta “O que é o homem?”. Nessa passagem, Kant
supra-sensíveis e, em particular, de Deus, de teologia? apresentou, pela primeira vez, a idéia da antropologia como
Aristóteles mesmo vacilava entre essas duas maneiras de filosofia primeira, e essa passagem já contém uma indicação
entender o que ele chamou de filosofia primeira. Mas seja qual importante sobre o método da antropologia. As três perguntas
for a maneira que se entenda a metafísica, não parece óbvio de que, segundo Kant, nos levam à pergunta “O que é o
qual maneira ela poderia servir de base para as disciplinas homem?” estão formuladas na primeira pessoa do singular,
filosóficas. E Aristóteles mesmo não pretendia que assim fosse. enquanto que a última pergunta, “O que é o homem?”, se
Ao contrário: ele fez uma distinguiu enfaticamente a filosofia encontra numa formulação objetiva, na terceira pessoa do
teórica da filosofia prática, uma distinção que também se singular. O que significa essa tensão entre a formulação na
encontra em Kant, ainda que num outro sentido, e essa primeira e a na terceira pessoa? Creio que Kant estaria de
distinção se faz ainda hoje, a distinção entre a pergunta pelo acordo se formulássemos as três perguntas na primeira pessoa
que é e a pergunta pelo que deve ser. do plural “O que podemos saber?” etc. Se combinássemos as
Ora, tanto o ser como o dever são coisas que parecem duas formulações, a última pergunta teria a formulação “O
se referir a nosso entendimento, e, quando nos perguntamos o que somos como seres humanos?” Obviamente Kant não
que entendemos aqui por “nosso”, parece estar pressuposto: o entende as perguntas das quais está partindo (“que devemos
nosso entendimento como seres humanos. Poderia, então, fazer?” etc.), de tal maneira que tivessem o sentido “O que
parecer que o entendimento é o que está na base tanto da devemos fazer por encontrar-nos em tal ou tal tradição, por
filosofia teórica como da filosofia prática, e também da exemplo, a do cristianismo?” Por um lado, Kant fala na
ontologia (porque o ser é algo que encontramos apenas em primeira pessoa; por outro, entende suas perguntas no sentido
nosso entendimento), e, se entendemos a teologia desde o mais amplo, no sentido de humanidade. Kant não entendeu a
ângulo de uma necessidade humana, também ela remete ao antropologia simplesmente como uma disciplina formal que
ser e entender humano. Assim, o recurso ao entendimento estivesse acima das diferentes tradições culturais, como o fez a
humano apresenta-se como o ponto de partida natural tanto antropologia filosófica no século XX, senão fala como
da distinção entre o prático e o teórico, como também das representante do Iluminismo: devemos, parece dizer, tomar
diferentes concepções de metafísica, e a mesma coisa se pode nossas medidas sobre como pensar e o que fazer, não da
dizer em relação às disciplinas como lógica, ética, teoria da história, não das tradições, senão de fato de que somos seres
ação etc. Parece difícil ter que se imaginar uma disciplina humanos. Sobre esse aspecto, de como entender a
filosófica que não remete ao entendimento humano. antropologia como se encontrando numa oposição às
Existe uma passagem conhecida na Lógica de Kant (Ak., disciplinas históricas, voltarei mais adiante.
IX, 25), onde sustenta que as três perguntas que crê serem as O uso da primeira pessoa não foi uma idiossincrasia de
fundamentais da filosofia – “O que posso conhecer?” Kant, senão é algo que se pode observar também em muitos
(epistemologia), “O que devo faze?” (ética) e “O que me é escritos filosóficos contemporâneos, em particular em
permitido esperar?” (religião) –, todas elas remetem à disciplinas em que o aspecto de antropologia fica mais bem no

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fundo, como na ética ou na teoria da ação, onde, muitas vezes, entendimento inclui a reflexão sobre meu próprio
se pergunta “o que é o que entendemos por tal ou tal coisa?” entendimento de uma maneira essencial: cada um de nós sabe
Neste “nós” se expressa o aspecto reflexivo da antropologia. É apenas o que “nós” entendemos sob ser, ação, etc., quando se
por isso que a antropologia se distingue fundamentalmente de dá conta daquilo que ele entende: nosso entendimento é
perguntas por aquilo que seriam outras espécies, supondo que essencialmente um entendimento compartilhado, e
isso tivesse sentido, por exemplo, da hipopotamologia ou da “compartilhado” não significa simplesmente “igual”. Na
pergunta pelo ser dos primatas. Nesses casos, não parece ser aprendizagem da linguagem, mas já na comunicação pré-
possível perguntar por seu entendimento, como o fazemos no lingüística, a criança tenta captar um entendimento
caso do ser humano. Essa pergunta pelo entendimento dos compartilhado, em contraposição com o que se poderia
seres humanos, tanto da compreensão deles mesmos como da chamar de suas perspectivas subjetivas. Aprendemos a vê-las
compreensão do mundo, parece ser o ponto-chave da como subjetivas e como meras perspectivas na aquisição
antropologia, e isso explica por que ela tem que ser feita na gradual do entendimento dos outros, entendimento objetivo
primeira pessoa. Só na primeira pessoa, do singular ou plural, no sentido de intersubjetivo.
temos acesso ao entendimento. Parece evidente que é Nós nos vemos confrontados aqui com uma tensão
precisamente o entendimento humano que faz com que a entre o subjetivo e o objetivo que se repete dentro do
antropologia se situe na base das outras disciplinas, pois o que entendimento compartilhado, quando nos vemos
é ser, o que é dever, o que é uma ação etc. sempre remete confrontados com outras línguas e outras culturas. Isso
precisamente a esse aspecto do ser dos homens, ao seu significa que esses dois pólos que encontramos em Kant – a
entender. pergunta na primeira pessoa e um aspecto universal – não são
Por outro lado, a formulação em termos objetivos (“O uma mera tese; não basta dizer que Kant queria entender
que é o ser humano?”) também parece necessária, e parece subjetivo em termos daquilo que é universal, senão que, desde
importante dar-se conta do porquê, a fim de evitar um mal- o princípio, existe uma dinâmica que leva do subjetivo ao mais
entendido da formulação reflexiva. Quando, na ética, na teoria e mais objetivo, e isso significa que o âmbito universal é algo
da ação etc., se pergunta como é que “nós” entendemos dever, que antecipamos desde o princípio, pois, desde o princípio,
ação, etc., parece estar subentendido que não se trata, por não nos contentamos com meras perspectivas. Talvez se possa
exemplo, do entendimento dentro da língua portuguesa, senão dizer que o âmbito universal do entender o “nós” seja ainda
do entendimento de nós como seres humanos. Essa também é mais amplo que a espécie ánthropos: se encontrássemos seres
a razão para preferir o “nós” ao “eu”, pois o tipo de reflexão com os quais pudéssemos também nos comunicar, quer dizer,
que fazemos na antropologia, e, por conseguinte, na filosofia que também tivessem um entendimento, parece que seria
em geral, distingue-se fundamentalmente da reflexão sobre possível estender o âmbito da expressão “nós” também a eles.
mim mesmo no sentido de uma reflexão autobiográfica, como Se a pretensão que pode ter a antropologia de ser a disciplina
ocorre, por exemplo, num tratamento psicanalítico. Por outro básica das disciplinas filosóficas se baseia sobre o que é
lado, devemos dar-nos conta de que a reflexão sobre nosso objetivo em nosso entendimento, isso nos leva, ainda que

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apenas passo a passo, até o ponto onde abarca toda a podemos fazer como seres humanos. Existe uma passagem, no
humanidade. Que em princípio poderia nos levar ainda além primeiro livro da República de Platão (352a), onde Sócrates, em
pode parecer um mero jogo de idéias, mas o que isso me seu diálogo com Trasímaco, diz o seguinte: “Pois não estamos
parece ensinar é que o fundamental na concepção da tratando de uma questão qualquer, senão de que maneira se
antropologia como base das disciplinas filosóficas não é a deve viver”. A palavra “deve” não tem aqui um sentido
pertença à espécie, senão ao entendimento compartilhado, ao meramente moral: para Platão tratava-se do bem humano, e
fato de que podemos dialogar uns com ou outros. E isso nos numa reflexão antropológica podemos nos dar conta de que a
leva a distinguir dentro da antropologia um núcleo, que é necessidade que os seres humanos têm para colocar em
precisamente o entendimento, e isso se distingue de outros questão a sua própria vida tem a ver com o fato de que,
aspectos característicos de nossa espécie como, por exemplo, diferentemente das outras espécies, não somos de “arame
ser bípedes, dotados de pêlos, ter um cérebro de um certo peso rígido”, senão que podemos duvidar do que estamos fazendo
etc., aspectos que têm sido subsumidos sob o termo e, por conseguinte, também de como conduzimos a nossa
“antropologia física”. vida. Por um lado, creio que essa foi a pergunta básica de
Antes de prosseguir com os problemas que aqui se Platão e que tinha sido ela que o levou às perguntas que mais
abrem, quero enfrentar outra das perguntas que mencionei ao tarde se chamariam de metafísicas, e, por outro lado, parece-
princípio: pode-se dizer que a antropologia tem, por sua vez, me óbvio que não se trata de um capricho de Platão, senão que
uma pergunta básica? Se a antropologia (o seu núcleo, como encontramos essa mesma pergunta em todas as culturas, seja
agora posso dizer) é a base de toda a filosofia, a questão de de forma implícita nas mitologias e tradições, seja de forma
uma pergunta básica da antropologia teria que estar explícita. Na China, por exemplo, o que se entendia por
estreitamente ligada ao que deveria ser considerado como a filosofia se chamava a pergunta pelo “tao”, e “tao” significa
pergunta básica da filosofia. Do que acabei de dizer poderia caminho. Essa pergunta é idêntica com a de Sócrates: trata-se
apenas inferir que a pergunta básica da antropologia teria que do caminho que devemos tomar na vida, e o característico dos
consistir em se perguntar em que consiste a estrutura de nosso humanos parece ser que isso nunca é óbvio.
entendimento. No meu livro sobre filosofia analítica, Essa me parece então ser a pergunta mais básica que os
desenvolvi a tese de que a pergunta básica da ontologia “o que seres humanos podem fazer e à qual sempre respondem de
é o ser?” remete à pergunta “em que consiste a estrutura do uma ou outra maneira, e parece claro que essa pergunta tem
entendimento humano?” os dois lados que já mencionei: trata-se de uma pergunta em
Todavia, se quer identificar a pergunta básica da primeira pessoa, uma pergunta de cada um, e, ao mesmo
filosofia não simplesmente em relação com o que já tempo, uma pergunta que fazemos uns aos outros, uma
anteriormente se tinha entendido como filosofia primeira, pergunta do “nós” que tem uma pretensão intersubjetiva. Se
senão que o próprio conceito de filosofia está em jogo, e tivesse um sentido simplesmente subjetivo, não se diria “como
queremos encontrar um ponto de partida naquilo que se se deve?”.
poderia considerar como a pergunta mais básica que nos O que é especial nessa pergunta pelo bem é que ela tem

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uma prioridade motivacional, uma motivação óbvia. Ora, essa orientação ao justo. Essa intuição de Aristóteles parece-me
pergunta se acha estreitamente ligada àquela outra que genial, e penso que se pode desenvolver além do que ele
mencionei, a pergunta pela estrutura do entendimento, a qual, mesmo disse.
se a fizéssemos por si mesma, poderia parecer sem motivo, O fenômeno geral ao que ele alude consiste na
uma coisa de pura curiosidade, enquanto que parece linguagem proposicional, que é uma linguagem baseada no
necessária se a entendemos como Platão a entendia, como que se chama de termos singulares, que fazem com que o
conectada à pergunta pelo bem. Essa é, então, a pergunta conteúdo do que se está dizendo torne-se independente da
básica da filosofia, porque é a pergunta básica do “nós” como situação em que se está falando. Isso tem como conseqüência
seres humanos. que o interlocutor, em vez de simplesmente reagir, responde
O próximo problema tem que ser se existe algum guia explícita ou implicitamente com “sim” ou “não” ou com as
sobre como entender a pergunta pela estrutura de nosso posições intermediárias, como pergunta e dúvida, e com isso a
entendimento. Aqui, mais uma vez, partirei de uma passagem linguagem chega a ter uma função independente, não apenas
clássica (Essas citações naturalmente não as faço em vez de da situação como também da própria comunicação; surge o
argumentos). Aristóteles, no segundo capítulo de sua Política, que denominamos pensar e, quando a pessoa pensa, ela
no qual se propôs esclarecer a estrutura social dos seres mesma pode duvidar do que está pensando, surgindo o
humanos, parte de uma comparação da linguagem humana fenômeno da deliberação. Os dois componentes que, na ação
com as linguagens primitivas das outras espécies sociais, como de um animal, estão sempre presentes, mas nunca aparecem
as abelhas, e diz que o específico da linguagem humana está separados – a crença de que as coisas são desta ou daquela
naquilo que chamou de lógos, e com isso se referia à estrutura maneira e um desejo – se desligam em duas formas
predicativa ou proposicional da linguagem humana. Diz que lingüísticas independentes – uma frase assertórica e uma frase
os outros animais comunicam reciprocamente seus estados optativa –, e isso tem como conseqüência que devemos
sensitivos, dor e prazer, enquanto que os homens podem falar distinguir entre duas formas de deliberação, uma prática, que
do bem. O que é bom só se pode entender como uma tem como alvo o que é bom ou melhor, e, por outro lado, a
predicação, trata-se sempre do juízo “algo é bom”, e se deliberação teórica, que tem como alvo o que é verdadeiro.
comunicar sobre isso pressupõe a linguagem proposicional. Quando deliberamos, nós nos perguntamos pelas razões a
Aristóteles quer mostrar que se comunicar sobre o que é bom favor ou contra ao que se está dizendo ou pensando. A ação
e, por conseguinte, sobre o que é justo (e ainda pensar nisso) agora não é dirigida simplesmente pelos desejos, senão
só se pode fazer na linguagem predicativa. Enquanto que as também por aquilo que se pensa que é bom ou verdadeiro, isto
relações sociais de outros animais estão reguladas, como é, pelos resultados da deliberação. Isso pressupõe, por sua vez,
diríamos hoje, pelos instintos ou, melhor dito, pelo sistema a capacidade de suspender os desejos, a capacidade que se
genético, a maneira como os seres humanos se reúnem em chama de liberdade e responsabilidade.
agrupamentos sociais baseia-se na capacidade de comunicar- Tudo isso significa que com a linguagem proposicional
se sobre o que consideram ser bom para eles, e disso surge a aparecem vários traços antropológicos fundamentais que estão

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interconectados: deliberação, pergunta, racionalidade, filosófica do século XX, não se entenderia a sua função, pelo
liberdade, responsabilidade. Chamava-se a espécie ánthropos fato de que esses traços devem ser entendidos como fundados,
de animal racional, mas igualmente poderíamos chamá-la de por sua vez, na linguagem como traço-chave.
animal deliberativo. A racionalidade não é uma capacidade Um problema que surge, quando se começa assim
desligada e, de alguma maneira, sobrenatural, como se tinha como eu proponho, é em que medida se podem explicar,
pensado numa parte de nossa tradição – a suposta faculdade desde esse ponto de vista, outras características que
da razão –, senão consiste simplesmente em poder perguntar consideramos fundamentais para a espécie ánthropos.
por razões, e isso é a conseqüência inevitável da linguagem Algumas, como, por exemplo, a consciência do tempo ou os
proposicional. Outra conseqüência, como acabamos de ver na aspectos particulares das emoções humanas, parecem estar
passagem de Aristóteles, é que essa espécie é, como Aristóteles estreitamente ligadas à linguagem. Mas, em outras, como na
dizia, um animal político e, como pode se agregar, um animal música ou nas artes, a conexão não é tão óbvia. Ainda que nos
cultural. A evolução biológica é superada pela linguagem e a restrinjamos dentro da antropologia ao que chamei de núcleo,
cultura por um novo mecanismo de transmissão muito mais quer dizer, ao entendimento, esse não se pode reduzir ao
dinâmico que a transmissão genética, a qual naturalmente entendimento lingüístico. Defendo apenas que a linguagem
segue funcionando na base. ocupa um lugar central dentro do entendimento humano e
Creio que uma das vantagens dessa concepção que que me parece que vale a pena perguntar pelas conseqüências
considera a linguagem proposicional como ponto-chave para que a linguagem proposicional tem para a maneira como
entender o que é próprio da espécie ánthropos é que, quando se vivemos; mas estou bem longe de ter uma idéia sistemática e
começa com ela, podemos dar-nos conta imediatamente das abarcante do entendimento e do ser humano.
funções que tem para a sobrevivência, e assim é possível No tempo que me resta, vou ocupar-me primeiramente
entender por que essa espécie pôde aparecer dentro da com a relação entre antropologia filosófica e antropologia
evolução biológica. A capacidade de poder perguntar por empírica e, a partir daí, enfrentar o problema das tradições e
razões, que é uma conseqüência imediata da linguagem do histórico, que já mencionei na interpretação de Kant. Sob
proposicional, implica um novo nível cognitivo, tanto no antropologia empírica, refiro-me ao que, em inglês, se conhece
pensamento instrumental como no social. Essa capacidade como cultural anthropology. O que, em contraposição a essa,
significa uma flexibilidade de uma nova ordem na adaptação pode-se chamar de antropologia filosófica evidentemente
ao meio ambiente, e, além disso, a linguagem humana também é empírico, mas não se faz na terceira pessoa, não se
permitiu, em comparação com o genético, um novo parte da descrição de outras culturas, senão que se começa na
mecanismo de transmissão e, assim, de acumulação da primeira pessoa do plural, esclarecendo estruturas do ser e
aprendizagem de uma geração a outra, a transmissão cultural entender próprio; e na medida em que se chega a conhecer
e histórica. Se se partisse de outras características outras culturas, se permanece na primeira e segunda pessoa,
aparentemente fundamentais do ser humano, como a isto é, se amplia o horizonte próprio. A etnologia, a cultural
liberdade ou a autoconsciência, como se fez na antropologia anthropology, parte do outro lado, mas o fato de que ela trata,

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em primeiro lugar, de sociedades pré-literárias (ágrafas?) é, vai incrementar meu conhecimento do humano na terceira
por sua vez, uma unilateralidade. Em princípio, dever-se-ia pessoa, possivelmente na segunda pessoa, mas vai ser
ocupar da totalidade das culturas e parece que é assim como rejeitado na primeira pessoa, como possível ampliação do
se vê hoje cada vez mais a tarefa da etnologia. Além disso, os entendimento de nós mesmos.
que estudam culturas alheias não podem evitar refletir Resumindo o que acabo de dizer: a antropologia
também sobre as estruturas gerais, ainda que essa reflexão se filosófica é essencialmente reflexiva, mas, como não tem um
costume fazer na terceira pessoa, pois eles investigam, em caráter a priori, é suscetível de ser corrigida pela etnologia.
primeiro lugar, culturas que estão longe de nós. Todavia creio Mas sendo reflexiva, ela faz uma distinção que pode parecer
que deveríamos ver as duas disciplinas – a antropologia estranha ao antropólogo que investiga na terceira pessoa, uma
filosófica e as investigações da antropologia cultural – como se distinção entre estruturas do ser humano que são importantes
aproximando uma da outra, assim que se distinguiriam para nós e outras que não o são. A palavra “nós” não
apenas por uma diferença de enfoque. A antropologia representa, nessa proposição, nossa tradição, como o pareceu
filosófica começa com as estruturas de nosso próprio em Gadamer, senão se trata de “nós” como nos achando numa
entendimento, e depois vamos corrigindo nossas reflexão racional que faz um exame crítico tanto da própria
ingenuidades até chegarmos a conhecer culturas sempre mais cultura como das alheias. Não se trata de um enfrentamento
diferentes da nossa. Isso é uma dinâmica hermenêutica que entre culturas, senão de um enfrentamento entre o
sempre permanece na primeira e na segunda pessoa, isto é, as antropólogo que está fazendo uma reflexão crítica tanto sobre
culturas alheias não nos interessam em terceira pessoa, como a própria cultura como sobre as alheias.
objetos de curiosidade, senão como interlocutoras num Essa problemática se torna ainda mais aguda, quando o
diálogo imaginário em que as estruturas das outras culturas antropólogo, quer dizer o filósofo, não se ocupa apenas de
são vistas como sendo potencialmente as nossas. Essa é a estruturas, senão daquilo que para ele tinha sido a pergunta
dinâmica que já descrevi no começo entre a perspectiva inicial, a pergunta de Sócrates sobre o que é bom para nós
subjetiva e uma objetividade que consiste numa como seres humanos, uma pergunta que obviamente só tem
intersubjetividade mais ampla. Assim que entendimento da sentido se se faz na primeira pessoa, tanto do singular como
vida em outras culturas é visto como uma possibilidade de nós do plural, e que, por conseguinte, não existe para o etnólogo,
mesmos. Isso implica que também se aplica uma crítica exceto como pergunta que se fazem os sujeitos que ele está
racional às demais culturas, igualmente como à própria; isso estudando. Poder-se-ia eludir essa pergunta, se se defendesse
quer dizer que o diálogo imaginário não é simplesmente, que a antropologia trata apenas de estruturas. Isso
como o parece ser em Gadamer, uma conversa, senão um naturalmente seria simplesmente uma questão de definição.
diálogo racional, e isso significa que quando as culturas Na realidade, como seres humanos, não podemos eludir essa
alheias contêm suposições que não me parecem racionalmente pergunta sobre como devemos viver, e hoje só pode ter o
justificáveis, como a crença em deuses ou costumes que só sentido, como já o tivera para Sócrates e para Kant, de se
parecem estar justificados por autoridades tradicionais, isso perguntar como devemos viver como seres humanos e não por

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encontrar-nos dentro de uma certa tradição, pois o mero fato aceitá-la, mas também podemos criticá-la, isto é, perguntar por
de que nos encontramos numa certa tradição não é suficiente suas razões, por sua justificação. O simples fato de que
para a justificação de como é bom viver. A remissão ao ser autoridades, sejam humanas ou divinas, tenham dito que seria
humano e, por conseguinte, à antropologia tinha, tanto na bom viver dessa ou de outra maneira não pode ser uma razão
Ilustração grega como na moderna, precisamente o sentido de para aceitá-lo.
rejeitar toda justificação que fosse somente tradicional e, por Creio que ainda hoje não se tem, em geral, uma
isso, autoritária, e é por essa razão que nos vemos reduzidos a compreensão correta do elemento histórico. Evidentemente
entender-nos como seres humanos. sempre vivemos numa situação histórica determinada, e isso é
Isso significa que não é suficiente entender a um fato; porém as normas com as quais encaramos essa
antropologia apenas em contraste com a metafísica, pois a situação não podem ser justificadas a partir dela. Não tem
metafísica não era, por sua vez, outra coisa que uma primeira sentido justificar que uma coisa é boa com referência à
idéia que Platão concebeu para desfazer-se da tradição. Para o situação histórica, nem a seu passado, a tradição, e também
que reflete antropologicamente e na primeira pessoa, o não faz sentido justificar que uma coisa é boa referindo-se ao
adversário mais importante não é a metafísica, senão o presente; isso significaria adequar-se a uma moda. O que hoje
pensamento que permanece dentro da tradição, do histórico. se considera bom e o que outrora se considerara bom são,
Talvez valha a pena aqui tomar consciência do alto grau em ambos, meros fatos e nada contribuem à pergunta se algo é
que sociedades anteriores se orientaram, na questão de como bom.
se deve viver, por autoridades e pelo passado. Basta Essa foi a pergunta diante da qual se viram os
mencionar aqui a Idade Média, o Islamismo ou a China, para representantes do Iluminismo antropológico, por exemplo,
não falar de sociedades primitivas. Essa orientação ao passado Sócrates e Kant, e, por seu antagonismo à tradição, podia
é, por sua vez, um traço antropológico: os seres humanos, por parecer plausível recorrer a uma justificação metafísica, isto é,
não estarem determinados geneticamente em seu modo de a uma justificação que pressupusesse algo sobrenatural. Assim
vida, mas sim por razões, buscavam essas razões, no tocante também foi Kant que pensou que, na capacidade humana de
ao como viver, nas autoridades do passado e, quando isso não racionalidade, havia um núcleo sobrenatural (que ele chamou
parecia suficiente, procuravam-nas numa revelação de razão), que nos ordena como devemos viver. Assim que ele
sobrenatural. Mas, para nós, esse fato pode ser visto apenas na pensou que, partindo de uma estrutura antropológica, se
terceira pessoa. Podemos entender por que isso tinha que ser pudesse deduzir uma resposta à pergunta sobre o bem. Uma
assim em geral, mas também podemos entender que, para nós, vez que nos convencemos de que não se pode sustentar tal
isso já não pode mais ser assim, pois, embora a vida humana suposição de um núcleo sobrenatural e que tal dedução da
não seja possível fora de tradições, o mero fato de que uma moral não é factível, devemos ver de outra maneira a conexão
concepção é justificada pela tradição não pode ser uma razão entre a estrutura da vida humana e a pergunta sobre como
para aceitá-la. Em relação à tradição, encontramo-nos na devemos viver. Ainda que novamente deva confessar que não
mesma situação que em relação a qualquer opinião: podemos me acho de posse de uma resposta sistematicamente

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satisfatória a essa pergunta, quero ao menos indicar dois A outra região dentro da pergunta pelo bem é aquela
passos que me parecem necessários. onde só se trata de boas razões para viver bem ou melhor, sem
O primeiro consiste em que devemos rejeitar, não referência a exigências recíprocas, e se pode chamar, em
apenas a concepção concreta de Kant, senão também a idéia contraposição à moral, de região do ético. Essa distinção entre
geral de um imperativo categórico, isto é, a suposição de que o ético e o moral é evidentemente apenas algo artificial que
nos encontramos sob uma necessidade prática absoluta, uma corresponde a uma distinção que muitos fazem hoje. A
necessidade não meramente hipotética. Creio ser fácil tornar- palavra “moral” é simplesmente a tradução latina do que os
se consciente de que, primeiro, uma necessidade prática gregos chamavam de ética. Mas a terminologia não tem
absoluta nem faz sentido e, segundo, que isso só se pode importância: o que importa é que hoje temos que fazer uma
entender como tendo sua origem na idéia religiosa de um distinção que não era necessária nas culturas tradicionais,
mandamento divino. Ora, se isso não é assim, se não existe porque nela todos os valores eram justificados pela autoridade
uma necessidade absoluta, então a pergunta pelo bem não e assim toda a dimensão do bem era absorvida pela moral, isto
pode levar a um mandamento, senão pode apenas ser é, prescrita por mandamentos. Só quando rejeitamos as
entendida como pergunta por um conselho. A pergunta não justificações tradicionalistas do bem, a moral, isto é, o âmbito
pode ter como alvo algo necessário, senão apenas algo de exigências recíprocas, é reduzida a uma esfera mais
possível, para o que se podem dar boas razões. limitada. E como cada um quer entender seu próprio bem, o
O segundo passo consiste em distinguir, dentro da que se chama de bem prudencial é coisa dele, um assunto de
pergunta pelo bem, uma região mais limitada, a da moral, de boas razões só no grau que o convençam. É um assunto de
uma mais ampla, que se pode chamar de ética. A moral se bons conselhos – conselho é o mesmo que deliberação, só que
caracteriza pelo fato de que aqui se trata de exigências na segunda pessoa. “Vais ver”, poderíamos dizer a alguém,
recíprocas e, por isso, em certo sentido, de algo necessário. “que assim viverás melhor, mas a decisão é tua”.
Mas é uma necessidade apenas hipotética. Entender-se como Como devemos entender essas boas razões? Aqui
membro de uma sociedade moral é sempre tão-somente uma tenho que confessar, pela terceira vez nesta palestra, que não
opção, ainda que muito aconselhável. E a única sociedade estou de posse de uma teoria. Tratei de esclarecê-lo para mim
moral que se pode justificar de uma maneira que não seja nem apenas num caso que me interessa especialmente, o da religião
tradicional nem metafísica parece-me ser a de um e da mística, talvez daí se possam depreender algumas
contratualismo simétrico. Escrevi sobre isso alhures e aqui não generalizações. O que é especificamente religioso tem que ser
é o lugar de desenvolver isso. De qualquer modo, trata-se de rejeitado num diálogo antropológico radical, pois crer num
uma temática que se impõe simplesmente enquanto somos deus implica a suposição de uma existência que não se pode
seres humanos que querem conviver, com independência de justificar intersubjetivamente e que talvez nem tenha sentido.
todas as tradições, e isso significa que as boas razões para Também isso eu desenvolvi melhor alhures. Isso corresponde
entrar nessa sociedade moral se baseiam numa reflexão à rejeição geral de tudo o que é justificado simplesmente por
puramente antropológica. autoridade e tradição. Em contrapartida, o místico, no sentido

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em que entendo a palavra, é uma atitude humana que não a interpretação que tinha inicialmente da mística. Por outro
remete a algo histórico e não se refere a nada de sobrenatural; lado, devo criticar as interpretações e justificações em que os
é simplesmente uma atitude de recolher-se em si, na qual a místicos se têm entendido e que, em geral, são mais fortes do
pessoa se torna consciente, ao mesmo tempo, da totalidade do que parece ser racional (por exemplo, muitas vezes dizem que
mundo e assim chega à consciência de sua própria a sua vida seria a única vida verdadeira).
insignificância. Essa atitude pode ser compreendida a partir Nesse exemplo da religião e da mística, apareceram
da estrutura antropológica, como o mostrei no meu livro três aspectos que se podem generalizar. Primeiro, que, na
Egocentricidade e mística. Mas adotar essa atitude é apenas uma pergunta pela vida boa, desaparece a referência à tradição
possibilidade, não uma necessidade. Não é uma possibilidade como fonte de justificação. Segundo, a importância que tem o
arbitrária, senão uma possibilidade para a qual se tem boas sentimento e que têm, como devo acrescentar, exemplos
razões. E isso porque, primeiro, o tipo de experiência que a paradigmáticos na questão da vida boa. Na pergunta sobre
mística permite pretende ser melhor (quer dizer que a pessoa como se pode viver bem é importante dar-se conta de que a
se “sente” melhor nela, o sentimento e sua comparação com vida dos outros nos pode parecer admirável e digna de
outros sentimentos é uma componente importante); e, imitação. Como já indiquei, isso implica como fator
segundo, porque permite uma atitude duradoura no tempo, importante a comparação entre diferentes sentimentos, e isso
quer dizer, se pode manter em todas as condições da vida, e, quer dizer que falar de razões não se deve entender sempre de
além disso, se trata de uma atitude que já em si se refere à uma maneira demasiadamente literal. A pergunta sobre qual
totalidade da vida. Ambos pontos estão fundados em aspectos vida é melhor não parece ser, em seus critérios últimos, tão
da estrutura antropológica, tanto a comparação deliberativa diferente da pergunta sobre que música é melhor que outra ou
que se expressa na palavra “melhor” (ainda que o critério seja que vinho é superior a qual.
apenas o sentimento), como também a importância do Terceiro, nesse diálogo imaginário, resultou inevitável
duradouro no tempo. fazer uma referência ao histórico num sentido que é bem
Ora, essa atitude é, por sua vez, passível de várias diferente daquele que rejeitei anteriormente. O que parece
interpretações. Em diferentes culturas, foi entendida de manei- importante é que, na pergunta sobre como viver melhor, devo
ras distintas, mas isso não impede um diálogo entre elas. expor-me, como disse, à multiplicidade de concepções que
Devo, por conseguinte, entrar num diálogo imaginário com as encontramos na história. Aqui a palavra “história” é entendida
distintas interpretações que se encontram na multiplicidade da num outro sentido que quando falamos de história como uma
história. Esse diálogo é, com respeito a como conceber a conexão contínua e diacrônica de uma tradição. Trata-se agora
mística, e, em geral, a vida boa, semelhante ao diálogo simplesmente de uma pluralidade de posições, não de uma
imaginário a que fiz referência em relação às estruturas do linha temporal e causal entre elas. A partir desse ponto de
entendimento. Quando me confronto com outras vista, as possibilidades humanas de outras culturas têm que
possibilidades de entender a mística, incluídas as que não se nos parecer tão importantes como aquelas com as quais nos
encontram na minha própria tradição, vou relativizar e mudar deparamos numa continuidade temporal e causal. Parece-me

19 20
importante dar-se conta dessa ambigüidade naquilo que se ANTIIGUALITARISMO E PODER
chama de história. O histórico, quando o entendemos numa EM NIETZSCHE E HITLER
continuidade sincrônica e causal, não pode justificar valores.
Ao contrário: quando conseguimos demonstrar as condições Pode parecer estranho comparar Nietzsche e Hitler.
temporais e causais de uma concepção, a relativizamos Enquanto Hitler tinha um pensamento simples e monolítico,
(naturalmente a história no outro sentido, naquele de pura Nietzsche foi um pensador profundo e ambíguo. Mas creio
multiplicidade de concepções, também não serve como que tanto as semelhanças como as diferenças entre os dois são
justificação, mas isso ninguém o pretende; todavia, a instrutivas.
multiplicidade de concepções são interlocutores sincrônicos Desde a Revolução Francesa, o igualitarismo determina o
possíveis no diálogo da primeira e da segunda pessoa). pensamento ocidental sobre a moral e a legitimidade. Isso não
Se me perguntar por que devemos entender esse significa que todos o subscrevem, mas ele domina o cenário da
diálogo imaginário como racional e por que, quando discussão. É por isso que os pensadores que não estão de
concepções não me parecem justificáveis, as rejeito e as vejo acordo com o igualitarismo não são simplesmente não-
mais adiante apenas na terceira pessoa, possivelmente não igualitaristas, senão antiigualitaristas. Eles se entendem como
possa dizer muito mais do que dizia Aristóteles em resposta combatendo o igualitarismo. Igualitarismo não significa, como
aos que pediram uma justificação do princípio de não- muitos pensam hoje, distribuição igual dos recursos materiais,
contradição: dizia que, na sua crítica, tinham pressuposto senão que todos os seres humanos têm os mesmos direitos
aquilo que colocaram em dúvida. Por outro lado, ninguém fundamentais, isto é, que existem direitos humanos. E é isso
está obrigado a participar nesse diálogo. Não saberia dizer que que tanto Nietzsche como Hitler negaram.
sentido teria essa obrigação. (Assim, o diálogo sobre a vida A Declaração da Independência dos Estados Unidos diz:
boa distingue-se do diálogo sobre a moral. Na moral, temos “Consideramos” ser evidente de per si “que todos os homens
obrigações. Todavia, nem essa obrigação é uma necessidade são criados iguais”. Temos de admitir que essa formulação é
absoluta, é simplesmente parte do jogo, uma vez que nos insatisfatória por duas razões: primeiro, porque a convicção
entendemos como membros da comunidade moral, e para do igualitarismo não consiste em que todos os homens são de
entender-se assim só existem boas razões prudenciais). Penso fato, normativamente, em seus direitos, iguais, mas que,
que a pergunta pela vida boa, se é entendida como pergunta apesar de serem desiguais, devem ser considerados iguais.
intersubjetiva, tem esse sentido racional na qual a entendeu Segundo, quando se diz que uma coisa é evidente por si, isso
Sócrates e que, nesse caso, tem como conseqüência rejeitar o parece como uma confissão de que não se sabe como justificá-
que é tradicional e autoritário como instância de justificação. É la. Por isso, embora todas as Constituições modernas sejam
isso o que conduz à idéia de uma antropologia como tentei igualitárias nesse sentido fundamental, não existe até hoje um
descrevê-la nesta palestra, a qual não aparece apenas consenso sobre a razão do igualitarismo. Alguns dizem que a
contraposta à metafísica, mas também contraposta às igualdade não é justificável, e outros dizem que a igualdade
tradições. provém de preconceitos e que é uma arbitrariedade. Mas creio

21 22
que a explicação correta é a seguinte: quando leis ou normas de poder em Nietzsche é ambíguo e multifacetado, como
não podem ser justificadas àqueles para os quais devem valer, veremos, tendo sido a resposta a várias perguntas. Além disso,
então lhes são compulsivas, e isso significa que não são um interesse central de Nietzsche era o problema da moral,
legítimas. Normas morais e políticas são justificadas só se são enquanto que, para Hitler, a moral não representava problema
justificáveis igualmente aos que estão subordinados a elas. Se aglum; ele usava as crenças morais dos outros simplesmente
não se podem justificar a todos igualmente, então elas têm o de maneira instrumental. Para ele, a única coisa que contava
caráter de compulsão para aqueles para os quais não são era seu poder pessoal aliado ao poder do povo, ou seja, da
igualmente justificáveis, e, no caso extremo, isso significa que raça, enquanto que Nietzsche rejeitava o nacionalismo.
são escravos. Nesse caso, em vez de legitimidade, temos Nietzsche se via como membro de uma elite, com a qual se
simples poder. E é precisamente isso o que Nietzsche e Hitler combinava a idéia de uma diferença, geneticamente baseada,
defendem: segundo ambos, o que conta não é o direito, mas, entre os homens superiores e os comuns. Para Nietzsche, a
sim, o poder, e a maior parte da humanidade deve ser tratada desigualdade era uma desigualdade vertical entre em cima e
como escravos. Nisso ambos me parecem mais conseqüentes embaixo, enquanto que, para Hitler, se tratava de uma luta de
do que os antiigualitaristas contemporâneos. poder entre os povos, isto é, de uma desigualdade quase
Não se sabe se Hitler leu Nietzsche, mas as posições horizontal. A isso voltarei mais adiante.
antiigualitaristas de ambos são suficientemente parecidas. Começo com a posição mais fácil, que é a de Hitler. Em
Tanto para Nietzsche como para Hitler, a rejeição da Nietzsche, havia várias perspectivas diferentes, mas, no fim,
igualdade é central. Ambos falam da idéia de igualdade como uma delas predominou, e foi ela que, como veremos, o
se fosse uma idéia absurda. No Zaratustra de Nietzsche, a aproximou mais de Hitler.
doutrina da igualdade é apresentada pelas tarântulas. Em Hitler apresenta o que chamou a sua concepção de mundo
Hitler, é uma idéia dos judeus. Ambos não vêem no lugar da (Weltanschauung), no seu livro Mein Kampf (Minha luta). Ele se
igualdade uma outra concepção de justiça, senão o poder. A compreendia como alguém que tinha uma vontade fortíssima
expressão de Nietzsche é “vontade de poder”, e Hitler escreve: (“fanática”, como ele mesmo disse); toda sua vontade esteve
“Sempre o mais forte tem o direito de impor sua vontade; essa concentrada num ponto, a saber: o de tirar seu povo da
é a lei da natureza”. O poder, entendido como força, está no “ignomínia” do Tratado de Versalhes, assinado depois da
lugar do direito. E, tanto em Nietzsche como em Hitler, isso se Primeira Guerra mundial, e conduzi-lo ao domínio do mundo.
deve ao fato de que toda ação humana, como também toda a Esse programa repousa na sua concepção da realidade que
vida biológica, é determinada exclusivamente pelo poder. E tirou do darwinismo social. Toda a vida, e em particular a vida
isso implica – Nietzsche e Hitler têm o mesmo raciocínio – que dos povos, consiste, para ele, em “luta pela sobrevivência”, e,
também o igualitarismo é, em última instância, determinado por isso, os fortes vencem, e os fracos sucumbem. As idéias
pelo poder. igualitárias se acham personificadas, para Hitler, nos judeus.
Mas há diferenças. Hitler tinha um conceito cru e simples Tudo o que em Nietzsche são as idéias modernas – igualdade
de poder como violência, enquanto que o conceito de vontade e internacionalismo, liberalismo, democracia e socialismo – são

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para Hitler idéias judaicas. Ele considerava as idéias tal não tem “nem dignidade nem direitos”. Essa convicção de
igualitaristas invenções de um adversário, que, por não ter Nietzsche é anterior à sua crítica da moral.
raízes nacionais, as usava para destruir o que é nacional. Os Mais tarde, o conceito decisivo, para Nietzsche, será o
conceitos de moral e de humanidade só devem ter, segundo de vontade de poder. Ele o introduziu no livro Assim falou
Hitler, uma função subordinada na luta de um povo por sua Zaratustra. A tese de que toda a vida é tão-só vontade de poder
existência e seu poder. Assim, o resultado disso, em Hitler, é e “nada mais do que isso”, apesar de ter permanecido
um sistema normativo consistente, que tem seu princípio ambígua, foi uma idéia genial. Com ela, Nietzsche obteve um
apenas no valor do povo como raça. Ele combate o conceito supostamente unificante para todo querer. Já nos
igualitarismo, porque esse representa a concepção de que tão- escritos anteriores, Nietzsche tentara demonstrar que toda
somente os indivíduos, e não os povos, são portadores de atitude supostamente altruísta – e por isso toda moralidade –
valor próprio. O programa de aniquilar os judeus, os era realmente egoísta. Com o conceito de vontade de poder,
portadores das idéias não-igualitárias, é uma conseqüência do Nietzsche encontrou uma perspectiva unificante para todo
fato de que os concebe como raça. egoísmo, tanto do egoísmo dos homens superiores como dos
O pensamento de Nietzsche é bem mais complexo. O comuns. Segundo, Nietzsche pensou que, não apenas a vida
ponto de partida, desde sua juventude, é fomentar o homem humana, mas toda a vida biológica pode ser compreendida a
superior e a cultura superior. Por detrás disso, está a convicção partir da vontade de poder. Pensou que podia objetar a
de que os homens nascem ou superiores ou inferiores. Os Darwin que não se trata apenas de sobrevivência, mas também
homens se dividem nessas duas categorias geneticamente de ampliação de poder. O que motivou Nietzsche a
determinadas. Nietzsche nunca cogitou a possibilidade de que desenvolver uma ampliação tão implausível de sua teoria? Se
tais diferenças pudessem ser condicionadas pelo meio e pela toda a natureza é determinada por essa lei, o homem,
educação. Num de seus primeiros escritos, explica isso da obviamente, não pode ser uma exceção. O alvo foi o mesmo
seguinte maneira: uns apenas querem viver a todo custo, que o de Hitler, quando diz que o direito do mais forte é uma
enquanto que o homem grande não estima a sobrevivência e lei da natureza. Hitler pensou que, com essa teoria do poder,
sim está dirigido a uma criação, à gloria. Aqui o baixo ainda estivesse de acordo com Darwin. Nietzsche viu corretamente
significa o convencional; o superior, a autonomia e a que Darwin não falava do mais forte, mas da capacidade de
transcendência a uma obra. Num outro escrito dessa época, dá sobrevivência, de forma que Nietzsche chegou à mesma tese
um passo adiante. Contrariamente à “suposta igualdade de que Hitler, mas apenas porque pensou que podia refutar a
direitos”, deve-se perceber que uma cultura não se pode Darwin. Mas, de ambas as maneiras, a tese é obviamente
desenvolver sem escravidão. A “classe superior deve ser errada, se aplicada à vida biológica em geral.
mantida pelo labor dos homens comuns”. A diferença entre os Porém, será que se pode entender a vontade de poder
homens não é apenas um fato, para Nietzsche, senão que deve pelo menos como característica essencial da ação humana? É
ser forçada, porque é a condição da cultura. O homem como correto reduzir todo comportamento moral à vontade de
poder? Ainda que se conceda a Nietzsche que todas as ações

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humanas, e, em particular, as altruístas, sejam, em primeiro perto de Hitler) “bestas louras germânicas”. O característico
lugar, egoístas, pode-se duvidar de que a única coisa a que se de uma “aristocracia boa e sadia” não é apenas o fato de dizer
aspira para si seja o poder. Mas a crítica mais importante é que sim a si própria e um sentimento de distância para com os
a palavra “poder” é ambígua. Normalmente tem o sentido de fracos, senão “que, com boa consciência, se aceita, em favor
ter poder sobre a vontade de outras pessoas. Porém, Nietzsche dos superiores, o sacrifício de um sem-número de homens que
a usa também no sentido mais geral de “força” e “aumento da devem ser rebaixados e diminuídos a serem homens
força”, no sentido do latim potentia. A princípio, é lícito usar a incompletos, escravos, ferramentas”.
palavra em vários sentidos, mas o problema é que Nietzsche Nos escritos tardios, Nietzsche não só vê os inferiores
nunca esclareceu a diferença entre eles, e a conseqüência é que como simplesmente ordinários, mas como fracos, e a
oscila entre eles. característica dos fortes já não é apenas que se distinguem dos
Se por poder entendemos força, surge a seguinte fracos senão que têm poder sobre eles. “Aqui se tem que
pergunta: Qual é a medida da força? Nietzsche deu as mais pensar de uma maneira fundamental e chegar ao fundo e
diversas respostas a essa pergunta. A pergunta da medida da abstrair de toda fraqueza sentimental: a vida é essencialmente
força é fundamental para ele, porque dela depende o que apropriação, violação, dominação sobre os alheios e os fracos,
chama de “ordem de precedência” e, com ela, a diferença entre supressão, dureza, imposição de formas próprias,
os homens superiores e inferiores. Nietzsche oscila, quando incorporação e, pelo menos, exploração”.
fala de força e saúde, entre um entendimento mais espiritual e Nietzsche também se aproxima da posição de Hitler,
um entendimento mais físico. E quando não está pensando quando apresenta Napoleão como representante do homem
apenas em potência, mas em poder, em seu sentido mais superior. Apesar das diferenças entre Napoleão e Hitler, nisso
estrito, isto é, em poder sobre outros, ele não distingue entre ambos foram iguais: ambos eram homens de poder, no sentido
diferentes maneiras de exercer poder sobre outros e fala, em mais simples da palavra. E esse era o aspecto decisivo para
primeiro lugar, de poder físico. Assim que a grande atração Nietzsche. Embora seu conceito de vontade de poder fosse
que tinha para ele o conceito de poder foi que ele podia, por ambíguo, na sua admiração por Napoleão e criaturas
um lado, usá-lo num sentido muito amplo, enquanto que o similares, como César Augusto e César Bórgia, ele foi
conceito de força física de poder, em sentido de violência, se inequívoco.
impôs mais e mais. E no grau em que isso foi assim, Enquanto que, para Hitler, poder em sentido de força
Nietzsche se aproximou muito de Hitler. física era tão exclusivamente determinante, de tal modo que a
De uma maneira correspondente se restringiu seu moral tradicional não tinha importância alguma, para
entendimento dos “homens superiores” e de sua virtude, de Nietzsche foi central fazer uma “transvaloração dos valores”, e
sua nobreza. Na questão o que significa ser nobre (na última isso significava desvalorizar a moral tradicional, por meio de
parte de Para além do bem e do mal), Nietzsche se orienta por seu ambíguo conceito de vontade de poder, e conceber um
sociedades “aristocratas” e até “bárbaras”. Os homens novo entendimento de moral. Para isso, não foi suficiente
superiores aparecem como “feras magníficas” e (ainda mais simplesmente reduzir os motivos altruístas à vontade de

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poder. Isso só se tinha referido aos conteúdos, enquanto que Essa citação mostra que Nietzsche não tinha nenhuma
Nietzsche também queria destruir a forma das morais possibilidade de ver um sentido positivo no social. A única
tradicionais, porquanto foram sistemas normativos, morais forma válida ou pelo menos decente de uma relação social
baseadas no dever. consistia para ele em ser veículo para a vontade do poder do
Na concepção do homem superior, o conceito de indivíduo (Nesse ponto, Nietzsche se distingue extremamente
autonomia foi essencial para Nietzsche. Mas ele descuidou de de Hitler). Nietzsche vê a relação válida entre homens só como
distinguir entre dois conceitos de autonomia: independência atitude-contra e nunca como atitude-com.
nos juízos (o que ele chamava de “espírito livre”), por um Nos escritos tardios, ele reduz todo “com” a um “contra”,
lado, e deixar-se determinar pelos próprios desejos – egoísmo, ainda na moral tradicional. Ele entende agora a moral de
por outro lado. A transvaloração dos valores, da qual ele fala rebanho mais precisamente como uma moral de escravos,
nos seus escritos tardios, não é uma nova moral intersubjetiva, como uma subordinação, não apenas às regras morais, mas
mas, sim, o enaltecimento do indivíduo no seu egoísmo. À também aos senhores. A possibilidade de afirmar o
primeira vista, isso parece ter um bom sentido. O indivíduo desenvolvimento próprio dos indivíduos e, ao mesmo tempo,
recupera seu sentimento de valor próprio, deve afirmar a sua reconhecer um sistema de normas intersubjetivas, não foi
natureza e a vida e libertar-se das atitudes de vergonha e pensável para Nietzsche, e a viu como refutada, por sustentar
subordinação que são características das morais tradicionais. que a idéia de igualdade pertence à moral do rebanho.
Isso parece em si um passo importante, mas Nietzsche não O que me parece convincente na problemática de
distingue os dois conceitos de autonomia e, por isso, não Nietzsche foi a questão de como nos podemos emancipar das
chega a uma nova concepção de moral intersubjetiva, senão a normas autoritárias, da heteronomia. Mas como via os homens
uma negação total dessa. Parece-lhe um assunto só dos fracos, do rebanho como subordinados, não apenas a regras mas a
que agora são chamados “os animais do rebanho”. Além disso, senhores, lhe pareceu inevitável, ainda que para nós possa
Nietzsche pensa que o indivíduo, quando se entende a partir parecer estranho, que falar de obediência não só implica uma
de si mesmo, tem de exercer poder sobre os outros. Isso é a obediência às regras senão aos senhores. A fraqueza dos fracos
conseqüência de não distinguir, no conceito de vontade de consiste agora em só poder obedecer. Supostamente existem
poder, entre “potência” e “poder sobre outros”. homens que só podem obedecer e, por outro lado, homens
O que ele chama “moral dos senhores” não é uma nova com uma vontade forte que podem mandar a eles próprios e
concepção de moral intersubjetiva. Ele escreve: “Os fortes – os que, por isso, são destinados a mandar nos fracos.
homens individuais da espécie de feras solitárias – aspiram Isso se insere muito bem na doutrina da vontade de
com tanta necessidade a se desligarem uns dos outros como os poder: a idéia da legitimidade não apenas é restituída do céu à
fracos aspiram a se ligarem com outros; quando os primeiros terra como também é abolida, e o lugar das normas é tomado
se conectam com outros, isso só tem o sentido de uma ação por comandos dos senhores (cf. Para além do Bem e do Mal, §19).
conjunta de agressividade e de satisfação de sua vontade de Essa, então, foi a solução de Nietzsche para o problema da
poder” (Genealogia da Moral, III §18). recuperação da autonomia contra as normas supra-sensíveis.

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O problema só se podia resolver, no seu modo de ver, de tal de ter que se impor contra outros como com esse outro fator
maneira que não apenas recuperamos a legitimidade para a de estar com outros. Além disso, é notável que Nietzsche só
terra, mas também que ela desaparece, e as normas são podia imaginar a vontade de se expandir indefinidamente e
substituídas por comandos, comandos que aqueles, que têm o que nunca considerou um outro aspecto da vontade humana,
poder, impõem aos fracos, por ter uma natureza (como os que desde Aristóteles tinha estado no centro das reflexões
escravos em Aristóteles) que só pode obedecer. filosóficas: a capacidade de relacionar-se consigo mesmo e de
Não teria sido muito mais plausível uma outra solução? Na se limitar a si mesmo.
realidade, o problema da restituição da transcendência das Nietzsche encontrou-se num caminho declivoso, na qual,
normas em autonomia não se apresenta ao homem e sim aos uma vez que se tinha fixado no conceito de vontade de poder,
homens. Quando vemos a problemática assim, na primeira se movia numa linguagem progressivamente megalomaníaca.
pessoa do plural, temos que dizer: a nossa relação com as E me parece que tem sentido comparar o termo desse caminho
normas se torna autônoma, quando, em vez de obedecer a com Hitler. Hitler representa, num exagero como ninguém
uma autoridade transcendente, nos obedecemos e mandamos outro, o tipo puro de poder. Pode-nos parecer nojento e
reciprocamente. Quando é assim, cada um concede tanta poderíamos dizer que não foi assim como Nietzsche se
autonomia ao outro como o exige para si. Dessa maneira, a imaginava o homem do qual diz na Genalogia da Moral (II, §
contradição que existiu para Nietzsche entre norma e 24): “Em algum momento, num tempo mais forte que este
autonomia estaria resolvida. Para Nietzsche, essa solução não presente podre e cheio de dúvidas de si mesmo, ele terá que
esteve acessível, precisamente porque rejeitava, desde o vir, o homem que nos salvará”. A descrição que Nietzsche dá
princípio, a idéia de igualdade. Mas, se Nietzsche pelo menos nessa passagem do super-homem com efeito não se coaduna
tivesse visto essa maneira de ver as coisas como uma com Hitler, quando Nietzsche fala do “homem do grande
possibilidade, para depois poder rejeitá-la, não teria podido amor e grande desdém” e com o “espírito criativo”. Mas
repudiar tão facilmente a igualdade e o que chama de “idéias outras descrições que Nietzsche faz do super-homem (como
modernas”. Mas ele pensava que igualdade significava a grande força da vontade, falta de consideração) se coadunam,
mesma coisa que uniformidade e vulgaridade e que, por isso, sim, muito bem com Hitler.
seria contrária à idéia de superioridade e de cultura. Tanto ele Mas vou abstrair da pessoa de Hitler. A pergunta é como
como tantos outros não perceberam o verdadeiro lugar da se relaciona a concepção de Nietzsche com as de Hitler.
igualdade e sua função para a justificação recíproca das Parece-me que faz sentido aqui distinguir, tanto em Nietzsche
normas. como em Hitler, entre suas teorias de poder e suas idéias
É certo que Nietzsche nos fez sensíveis pela significação loucas. Tanto Hitler como Nietzsche tinham, cada um dentro
das relações do fator “contra”, mas sua acentuação exclusiva de seu sistema, uma idéia central que creio pode chamar-se de
desse fator me parece ter algo de fanático. Parece-me muito louca, no sentido preciso da palavra. No caso de Hitler, trata-
mais plausível dizer que indivíduos normais da espécie se da idéia do judeu como adversário diabólico e, em
humana estão equipados geneticamente, tanto com o motivo Nietzsche, temos a idéia não menos louca de que os homens se

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distinguem, desde o nascimento, em duas classes, os como as bestas louras germânicas), e novamente estaríamos ao
superiores e os inferiores. lado de Hitler.
Essas duas idéias são bem diferentes, mas têm Porém, essa passagem não se pode interpretar assim,
características similares. Primeiro, nenhuma delas pode ser porque Nietzsche não falava dos judeus como raça, pelo
derivada das doutrinas do poder; segundo, ambas são teorias menos não nessa passagem, senão como representantes de
de diferenciação, ao mesmo tempo genéticas e valorativas. Em uma ideologia; e quando aqui fala de Judéia, está pensando na
ambos os casos, trata-se de super-homens geneticamente cristandade. Mas, de qualquer maneira, falar de coletividades
determinados e homens inferiores geneticamente foi para Nietzsche secundário. A distinção genética, que foi
determinados. Terceiro, tanto em Hitler, como já em importante para ele, não foi uma distinção horizontal entre
Nietzsche, um programa de extermínio (Nietzsche fala do povos e raças, ainda que algumas vezes fale de arianos, de
“aniquilamento de milhões de deformes” que os super- uma maneira similar a Hitler, mas a distinção que, para
homens têm que realizar (Götzendämmerung)) surgiu da Nietzsche, foi central foi uma diferença vertical entre elite e
combinação de sua idéia louca com a teoria do poder. massa.
Tanto em Nietzsche como em Hitler, o inigualitarismo não Assim que o inigualitarismo de Nietzsche foi, em contraste
apenas é a conseqüência de sua negação da relevância da ao inigualitarismo de Hitler, vertical e nostálgico. Como
moral e de só se concentrar sobre o poder, mas também ambos Nietzsche nunca indicou critérios de como se poderia
sustentam, além disso, que existe uma desigualdade operacionalizar em que consistem fraqueza e deformidade,
especialmente importante, a entre super-homens e homens não tinha um programa realizável. Em contrapartida, Hitler
inferiores. tinha talentos virtuosos, para realizar seu conceito de poder,
A maneira como Nietzsche e Hitler se distinguem entre si, junto com sua idéia louca para alguns anos de destruição
no seu entendimento dessa diferença fundamental, segue-se horripilante. O inigualitarismo horizontal e só ele é sob
do fato de que, para Hitler, os sujeitos do combate para o condições modernas uma possibilidade real, por poder ser
poder são os povos e, para Nietzsche, os indivíduos. Mas de realizado dentro da comunidade de um povo em boa parte
maneira secundária também para Nietzsche os sujeitos podem igualitário e porque pode aproveitar-se da tendência agressiva
ser as coletividades; quando fala assim, se aproxima mais de rara, fora, que existe em todas as nações. O que Nietzsche
Hitler. Nos escritos tardios, fala em vários lugares de guerras desprezava como “a loucura do nacionalismo” foi, em
monstruosas iminentes, e, na Genealogia da moral, fala do realidade, para o inigualitarismo, dentro de um mundo
grande combate “Roma contra Judéia, Judéia contra Roma”. igualitário, a única possibilidade e, lamentavelmente, o segue
Os Romanos aqui representam “os fortes e nobres”. “Roma”, sendo. Só no seu programa de eutanásia o programa de Hitler
escreve Nietzsche, “sentia os judeus como o que é contra a continha uma parte que se assemelhava à idéia de Nietzsche.
natureza, como o monstro oposto a ela mesma”. Nessa frase,
bastaria falar de “arianos”, em vez de Roma (o que não parece
errado, porque, no mesmo texto, ele caracterizou os nobres

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O QUE A FILOSOFIA PODE CONTRIBUIR PARA O existe uma contribuição fraca que a filosofia pode e deve
PROBLEMA DA EUTANÁSIA? prestar em todo caso. Consiste em indicar quais conseqüências
seguem de quais premissas ou princípios éticos. Dessa
Devo primeiramente esclarecer o título: na sua maneira, pode-se conseguir que não se siga discutindo de uma
etimologia grega, “eutanásia” significa uma morte boa. Na maneira meramente intuitiva ou casuística como em geral se
prática, isso se refere a causar uma morte prematura, tanto está fazendo. A maioria dos que discutem essas questões
quanto possível humanamente digna, quando, caso isso não partem de idéias éticas que estão mais ou menos contidas em
fosse feito, poder-se-iam prever agonia e uma morte nossa tradição, que é, em parte, religiosa e, em parte,
humanamente indigna. Por “problema da eutanásia” entendo iluminista. Isso é insatisfatório. Na medida em que hoje nos
a questão de se causar uma morte prematura ou o permitir tornamos mais conscientes de certos problemas que sempre
que ela se aconteça é moralmente permissível ou mesmo existiram, mas também na medida em que esses problemas se
obrigatório em certas circunstâncias e se, por conseguinte, tornam mais agudos pelos progressos da medicina,
também juridicamente deveria ser permissível ou obrigatório. deveríamos refletir sobre os fundamentos, a partir dos quais
Essa será a temática central. Existem, além disso, outras podemos julgar aqui, e quando existem diferentes
questões que estão estreitamente ligadas a ela, ainda que não fundamentações e estamos incertos de qual devemos partir, é
caiam sob a definição dada, em particular o problema do necessário tornar-nos conscientes disso. De qualquer maneira,
direito ao suicídio e o da assistência ao suicídio. a nebulosidade é nociva, e obter uma consciência clara sobre o
Ora, o que a filosofia pode e o que não pode contribuir que não se sabe sempre é o primeiro passo para uma tomada
para o esclarecimento dessa problemática? Sem dúvida, trata- de posição responsável.
se de uma problemática interdisciplinar que requer a reflexão Em segundo lugar, também existiria a possibilidade de
conjunta de filósofos, juristas e médicos. O filósofo pode uma contribuição forte da filosofia ao problema da eutanásia,
apenas esclarecer a questão em conceitos abstratos; do jurista segundo a qual a própria filosofia moderna seria a instância
se espera o esclarecimento de como as normas, que parecem que refletiria sobre as bases da ética, sobretudo depois que a
plausíveis abstratamente, deveriam ser aplicados religião, em nosso caso a cristã, já não se considera como
concretamente no direito. E só na base da experiência médica determinante para a ética. Mesmo aqueles entre nós que são
pode dizer-se, em casos específicos, quando e com que grau de cristãos convictos não se podem dar ao luxo hoje de derivar
probabilidade são aplicáveis certos conceitos abstratos e em si suas convicções morais apenas da religião, porque não
indeterminados, como, por exemplo, o caso de sofrimento podemos querer ter uma sociedade fundamentalista, mas tão-
insuportável ou o de falta de sentido na perspectiva da vida. somente uma sociedade laica, e nos encontramos, tanto dentro
Com isso fica indicado onde, nas reflexões que seguem, como fora de um Estado político, numa sociedade mundial, na
necessariamente aparecerão lacunas. qual pessoas que pertencem a diferentes religiões ou a
Em que a filosofia pode contribuir? Na minha opinião, nenhuma têm que poder comunicar-se sobre os seus direitos e
ela pode contribuir em dois aspectos. Em primeiro lugar, obrigações morais. A moral e, em particular, as convicções

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sobre a legitimidade e ilegitimidade de causar a morte de uma seria decidida por aquelas obrigações que surgem no
certa maneira não é um assunto privado. As normas morais contratualismo: não prejudicar, ajudar, cumprir com as
são exigências que todos temos reciprocamente, uns com os obrigações cooperativas. Pode-se entender a filosofia kantiana
outros, e assim para com todos. Aqueles que não respeitam como um contratualismo enriquecido; enriquecido no sentido
essas normas são objeto de indignação e de desprezo moral, e de que não se trata de obrigações que surgem de um contrato
cremos que temos o direito de puni-los. Isso exige uma explícito, que então poderiam ser restringidas a um grupo
justificação que não se pode basear em convicções religiosas arbitrário, senão de um respeito recíproco de todos em relação
particulares, mas que deve ser, se possível, convincente ou a todos, no qual cada ser humano é reconhecido como sujeito
plausível para todos. de direitos.
Evidentemente aqui surgem perguntas céticas. Poder- É fácil reconhecer os pontos fortes e fracos dessas duas
se-ia perguntar primeiramente: existem convicções morais que grandes tradições modernas. O utilitarismo não tem um
se podem justificar sobre uma base humana geral? Parece que conceito genuíno de justiça, mas isso não parece ter
existe um núcleo da moral que se pode justificar de uma conseqüências para o problema especial da eutanásia; porém,
maneira recíproca de tipo contratualista, mas as questões da o utilitarismo tem uma outra fraqueza que, ela sim, tem
eutanásia talvez não pertençam a essa parte nuclear da moral. conseqüências para nossa problemática, a saber: para o
E se poderia perguntar em segundo lugar: não é uma utilitarismo, os indivíduos não têm direitos inalienáveis; o
exigência excessiva e possivelmente uma presunção falsa da utilitarismo não entende o indivíduo como portador de
filosofia, querer se considerar guardiã da moral, pondo-se, de direitos, senão apenas como sujeito de sentimentos. O lado
certa maneira, no lugar que anteriormente a religião ocupara? forte do utlitarismo é que é mais universal que o kantismo,
Mas os filósofos contemporâneos não têm tal presunção. Com referindo-se a todos os seres sensíveis. Essa diferença tem a
efeito, os filósofos morais modernos não puderam entrar em ver com o fato de que o kantismo – a ética do respeito –, de
acordo sobre uma posição comum. A maior parte das maneira similar ao contratualismo, é uma moral de
tentativas éticas modernas divide-se em duas tradições: de um reciprocidade, enquanto o utilitarismo (que, nesse ponto, está
lado o utilitarismo; para essa tradição, o conceito fundamental mais próximo da tradição judaico-cristã) é uma moral
é o de evitar o sofrimento, e, por essa razão, o utilitarismo unilateral; isto é, segundo ele, temos obrigações morais
também inclui os animais na ética. De outro lado, temos as também para com seres que não têm obrigações para conosco,
concepções de tipo kantiano. Em relação a elas, não creio que como, por exemplo, para com as crianças pequenas e também
nos devamos orientar pela justificação duvidosa de Kant, para com seres que, diferentemente das crianças, não terão
mesmo num conceito exagerado de razão, senão na concepção, posteriormente obrigações, como os animais.
ainda que também seja problemática, de “dignidade” ou de Não se pode discutir o problema da eutanásia sem
valor absoluto de todos os seres humanos e pela idéia de que levar em conta tanto a moral da tradição judaico-cristã como
os homens são portadores de diretos morais, onde a questão também essas concepções morais modernas. Encontramo-nos,
sobre quais são esses direitos e as correspondentes obrigações então, com efeito, dentro de três concepções morais que são

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determinantes para a atual consciência moral do Ocidente. e que por isso não pode dispor dela a seu bel-prazer.
No que segue, concentrar-me-ei no que qualifiquei É igualmente estranho que, na tradição judaico-cristã, a
como a possível contribuição fraca da filosofia, pois não pode vida dos outros animais esteja à disposição dos homens e que
ser a tarefa desta palestra contrapor as diferentes concepções e não existam normas morais em relação a outros seres
perguntar qual é mais justificada do que qual. Tão-somente sensíveis, senão apenas em relações aos seres humanos. Essa é
esclarecerei quais são as respostas decorrentes de cada uma a conseqüência da concepção contida no Gênesis, uma
das concepções às diversas perguntas que surgem em torno concepção que se pode chamar de mitológica, segundo a qual
aos problemas da eutanásia. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e que
Mas, antes de começar, quero sim apontar algumas submeteu ao homem tudo o que existe sobre a terra (Gênesis
perguntas críticas que se poder fazer à moral judaico-cristã, a 1,26). Na discussão sobre eutanásia e aborto e sobre se temos
partir de uma consciência moral esclarecida. É importante ou não obrigações morais para com os animais, sempre
tomar consciência do enorme peso que a tradição judaico- encontramos a idéia de que a espécie “homem”, já como tal (e
cristã tem para todos nós. Também os não-crentes foram não apenas uma qualidade especial dela, como a razão ou sua
socializados numa sociedade que, em grande medida continua autonomia ou personalidade), confere por si mesma uma
sendo determinada pela tradição judaico-cristã. É por isso que posição moral única a todos que pertencem a essa espécie. O
é lógico que tenhamos internalizado de modo mais ou menos espanto que muitos hoje têm ante a exigência de também
inconsciente os conteúdos morais que procedem termos obrigações para com os animais parece análogo ao
particularmente dessa tradição e é por isso que eles podem assombro que teria surgido nos Estados Unidos ou no Brasil,
determinar nossas reações intuitivas (quase instintivas) numa na primeira metade do século 19, ante a asserção de que
direção que pode ser oposta a de nossas concepções morais teríamos obrigações para com os negros.
explícitas oriundas da moral esclarecida. Aqui, especialmente, Pode-se perguntar se a pertença a um determinado
devemos ter cautela com nossas evidências morais intuitivas. grupo pode ser um critério para ter uma obrigação moral para
Existe uma proposição que é fundamental para a moral o indivíduo, e se não o é em geral, por que o é precisamente a
judaico-cristã-islâmica no tocante aos problemas da eutanásia pertença a uma espécie? É por isso que hoje alguns chamam a
e que não é nada evidente para uma consciência moral discriminação dos animais, em analogia ao racismo e ao
esclarecida; trata-se da seguinte proposição: “toda vida sexismo, de especiessismo. Não quero sustentar que seja
humana e tão-somente a vida humana é sagrada (quer dizer, impossível demonstrar sem recurso a mitos religiosos que os
inviolável)”. Ambas as partes dessa proposição têm que dois casos são diferentes; é suficiente estar consciente de que
parecer estranhas para uma consciência imparcial, e é por isso essa diferença não é evidente. É certo que também na tradição
que nessa forma extrema não existem em outras religiões ou kantiana obrigações morais diretas para com os animais não
tradições. Que a vida seja em si inviolável e que a proibição de foram aceitas, mas, em Kant, o critério não foi o fato de não
matar não seja apenas uma norma intersubjetiva, é pertencerem à espécie “homem”, mas o de não serem
conseqüência de que, para o crente, a vida lhe é dada por Deus racionais, e isso queria dizer que não tinham uma consciência

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moral. Esse critério valia em Kant “para todos os seres O primeiro problema é se existe um direito ao suicídio.
racionais”, por exemplo, também para anjos, e na filosofia Ainda que esse problema seja o mais discutido hoje,
contemporânea se fala analogamente da possibilidade de seres filosoficamente é o mais simples. Na concepção judaico-cristã,
que, embora não pertençam à espécie humana, tenham essa pergunta, como também todas as subseqüentes, encontra
personalidade ou racionalidade. uma resposta inequivocamente negativa. Se a vida é
Se comparamos as três tradições morais mais considerada, a princípio, sagrada e inviolável, o tem que ser
importantes para nós – a judaico-cristã-islâmica, a utilitarista e também em todos os casos especiais, pelo menos em todos os
a kantiana –, pode-se constatar, em antecipação ao problema casos nessa discussão (não discutirei o caso da autodefesa e do
da eutanásia, que em grande parte são, em suas conseqüências auto-sacrifício, isto é, de matar ou morrer para evitar a morte
práticas, similares, mas apenas em seu núcleo que se pode de outros).
entender numa perspectiva contratualista – esse núcleo é Para ambas as posições morais modernas, como já para
caracterizado pelo que se chama a regra de ouro (“não faças a os estóicos, não há nenhuma razão para considerar o suicídio
outrem o que não queres que ele te faça), mas se distinguem moralmente inadmissível, sempre que não se prejudique os
em suas regiões marginais, aquelas regiões onde não se trata direitos de outrem. Uma posição não-religiosa que condena o
de reciprocidade, e esse é o caso na concepção da eutanásia e suicídio como tal me parece difícil de se imaginar, enquanto
do aborto. Aí se pode constatar que a moral judaico-cristã dá que muitos acham que assim o é. Isso ter a ver com, a presença
uma prioridade absoluta à conservação da vida humana, subliminar das normas cristãs em nossa consciência como já
enquanto que é característico do utilitarismo que a orientação mencionei. Diz-se que uma pessoa não tem o direito de
prioritária é pela evitação de sofrimento e, para a filosofia arrebatar a sua vida, porque a vida nos é dada. Mas essa idéia
kantiana, o importante é a autonomia da pessoa. Sem dúvida, de que a vida me seja dada sem que alguém ma deu, não tem
os três valores – a conservação da vida, a evitação do sentido. Não se pode naturalizar a Deus, e uma posição semi-
sofrimento e o respeito da autonomia – são importantes em religiosa – crê-se sem saber em quem se acredita ou se crê em
todas as três posições, mas as diferenças surgem em situações algo indeterminado – deveria ser rejeitada, se se quer ser
complexas quando esses três valores entram em conflito. intelectualmente honesto, e representa uma falta de respeito
Explorarei cinco problemas que existem em torno à diante da seriedade da atitude religiosa. É verdade que Kant
questão da eutanásia; em cada caso, o problema subseqüente acreditava que poderia derivar a proibição moral do suicídio
contém uma nova complexidade em relação ao problema de seu imperativo categórico, mas isso foi um erro, como a
anterior. O problema consistirá em perguntar-se o que decorre maioria dos comentaristas afirma; nesse ponto, ele também foi
de se defender uma ou outra das três posições fundamentais simplesmente herdeiro inconsciente da tradição cristã.
que mencionei. Nos três primeiros problemas, vamos A pessoa que se encontra em meio da vida normal tem,
encontrar respostas precisas, no quarto, pelo menos sem dúvida, quase sempre obrigações para com outrem, e na
aproximações. O quinto problema parece-me tão difícil que, medida em que isso é o caso, o suicídio é considerado, com
nesse caso, só restarão perguntas em aberto. razão, moralmente odioso. Mas em muitos casos não é assim,

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em particular quando a pessoa crê que ninguém precisa dela sentido, e para isso existem em geral critérios mais ou menos
ou até pensa que ela só representa um peso para os demais. comuns. A falta de imputabilidade sempre é uma base
O segundo problema concerne à assistência ao suicídio, legítima para o paternalismo. Autonomia pressupõe
e aqui já pisamos no terreno da eutanásia, quando se fala de imputabilidade.
causar a morte por solicitude nos casos de doentes graves. No Tem-se que admitir que a ajuda ao suicídio ou o causar
direito penal, a assistência à morte é geralmente proibida, e só a morte por solicitude pode ser fonte de abusos e que, por isso,
o que se chama de eutanásia passiva (da qual me ocuparei no se tem que impor barreiras correspondentes. Uma vez que, a
ponto subseqüente) se pratica com efeito amiúde em casos de princípio, tal ajuda é permitida na lei penal, sua
doença grave, e, se não me equivoco, em muitas lugares é permissividade tem que ser justificada no caso concreto de
juridicamente tolerada. uma maneira objetiva; não se pode deixar ao juízo de uma só
Mas como devemos julgar esse problema de um ponto pessoa se é permissível dar tal passo, porque se tem que evitar
de vista moral? Em grande parte, de maneira idêntica ao que alguém persiga, dessa maneira, interesses próprios e que
anterior. Na perspectiva cristã, ajudar ao suicídio deve ser ele, por sua vez, esteja manipulando a quem solicita ajuda
igualmente proibido como o próprio suicídio. Visto numa para morrer.
perspectiva moderna, do direito ao suicídio e da obrigação Creio que em todos os problemas da eutanásia o
geral de ajudar resultam como algo óbvio, não apenas o argumento do abuso é em geral exagerado. No problema que
direito, mas também, no caso dado, a obrigação de ajudar ao estamos tratando agora existe obviamente, também no caso
suicídio. Digo “no caso dado”, pois aquele de quem se solicita contrário, a possibilidade de abuso, pois podem existir
ajuda tem o direito e inclusive o dever de julgar por ele interesses de pôr sob tutela a outrem. Falar da possibilidade
mesmo sobre a situação de quem quer morrer. Isso é assim em de abuso sempre pressupõe que se trata de uma matéria
todos os casos em que se lesariam direitos de outrem. Quando complexa. Em vez de simplesmente falar da possibilidade de
se trata apenas do bem e do prejuízo da própria pessoa, o abuso e assim criminalizar também os casos justificáveis,
utilitarista julgará de maneira diferente do que aquele para dever-se-iam – como em todas as partes – estabelecer medidas
quem a autonomia da pessoa é prioritária. Temos o direito de de regulação que permitissem distinguir da maneira melhor
não prestar ajuda, quando cremos que a pessoa avalia possível os casos legítimos dos ilegítimos.
incorretamente sua própria situação? Não é isso paternalismo O terceiro problema é o único que, na minha opinião,
(uma posição que o utilitarista em boa medida tem que não depende das premissas morais que se tem, mas requer
assumir)? Podemos reagir negativamente à solicitude desse apenas um esclarecimento conceitual. Refiro-me à distinção
tipo, porque consideramos que a pessoa seja irracional? entre o que se chama a eutanásia ativa e a eutanásia passiva.
Duvido disso, pois todos somos mais ou menos irracionais. Chama-se ativa aquela em que o médico mata o paciente,
Um verdadeiro limite só parece certo quando se pensa enquanto na passiva ele simplesmente o deixa morrer, isto é,
que a pessoa não se encontra numa condição, em que seus atos nada faz para impedir a morte.
lhe são imputáveis, isto é, quando não é responsável nesse A concepção moral e jurídica que hoje é dominante

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parece propor a existência de uma diferença essencial entre as outro. Ora, existe um certo tipo de proximidade no qual não se
duas formas de eutanásia e que se deve tolerar a passiva, pode distinguir entre ação e omissão, entre prejudicar e não
enquanto que a ativa é considerada como punível. Em ajudar. Esse é o caso, quando uma pessoa está sob a custódia
contrapartida, na filosofia contemporânea existe um amplo de outra, isto é, no caso em que o outro é responsável pelo
consenso de que, primeiro, a distinção implica uma confusão bem dela. Isso é assim na relação da mãe com a criança e
conceitual e que, segundo, manter essa distinção e a proibição também no caso do médico com o seu paciente. Enquanto que,
da eutanásia ativa, enquanto que se tolera a passiva, só em geral, a negligência de obrigações positivas evidentemente
conduz a sofrimentos desnecessários e, por conseguinte, a não implica que se quer que a outra pessoa seja prejudicada,
conseqüências moralmente inaceitáveis. esse é o caso quando a pessoa que omite ajuda é responsável
Em que consistiria a diferença entre o médico desligar pela outra. Só nesses casos a intenção é a mesma (ou pelo
o aparelho que fornece oxigênio ao paciente e o médico ver menos pode sê-lo), quando se omite ajuda como quando se
que a ligação está a ponto de desfazer-se, mas nada faz para quer prejudicar. Por isso, aqui, e apenas aqui, a obrigação
evitar isso? Ou, para dar outro exemplo que não pertence ao positiva e a negativa são idênticas. Por conseguinte, no caso do
problema da eutanásia: qual a diferença entre uma mãe que médico, a eutanásia ativa e a passiva só se distinguem nos atos
mata seu filho com uma faca e a mãe que o deixa morrer de e omissões externas, mas não na intenção que orienta esses
fome? Nesses casos, não se pode indicar um critério que seja atos ou omissões, enquanto que para a pessoa afetada existem
moralmente relevante para distinguir fazer de omitir. Apenas diferenças graves entre os dois casos, do mesmo modo como
a intenção que orienta o ato ou a omissão de um ato é um assassinato lento, acompanhado de torturas, se distingue
moralmente relevante. A mãe pode matar a sua criança das de um assassinato rápido. O sofrimento da pessoa que padece
duas maneiras, matando-a ou deixando-a morrer. uma eutanásia passiva é normalmente mais longo e, por isso,
A razão por que pode parecer perigoso não distinguir pode ser mais cruel. Por conseguinte, na maioria dos casos, a
entre esses dois casos é que, se não se faz essa diferença, isso eutanásia ativa é moralmente preferível à eutanásia passiva.
poderia parecer conduzir a não distinguir entre obrigações Porém, pode ser que o paciente prefira a eutanásia passiva;
negativas e positivas, e isso seria, com efeito, uma pode ter boas razões para isso, e então naturalmente se tem
conseqüência fatal. Obrigações negativas são aquelas que que respeitar a sua autonomia. Muitas vezes, a objeção contra
proíbem prejudicar a outrem; obrigações positivas são aquelas a eutanásia ativa é o argumento do possível abuso. Mas não
que consistem em ter que ajudar a outrem ou evitar que sofra posso ver como, nesse tocante, se distingue a eutanásia ativa
um prejuízo. A diferença entre essas duas formas de obrigação da passiva.
é, em geral, precisa: temos obrigações negativas para com Passo agora ao quarto problema. Esse é mais difícil que
todos e de uma maneira absoluta (quer dizer que aqui não tem os anteriores. Trata-se da eutanásia que se chama de não-
sentido falar de um mais ou menos e de circunstâncias). As voluntária. É muito importante distinguir a eutanásia não
obrigações positivas, por sua vez, existem em diferentes graus voluntária da eutanásia involuntária. Essa última significa que
e se distinguem segundo a proximidade entre a pessoa e o se mata a outrem contra sua vontade, e isso naturalmente é

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proibido incondicionalmente. Em contrapartida, fala-se de outro resíduo da concepção cristã da inviolabilidade da vida
eutanásia não-voluntária, quando os pacientes não podem humana.
dizer o que querem, como no caso de crianças pequenas, em Devo fazer algumas observações adicionais a esse
particular recém-nascidas, e também de adultos, em particular quarto problema:
idosos, que se acham numa condição em que não estão Primeiro: sem dúvida, existe aqui uma ampla zona
conscientes ou conscientes, mas incapazes de articular sua cinzenta de casos em que o sofrimento não parece tão grande,
vontade . e a esperança de cura não é tão mínima que uma decisão
Como se deve agir nesses casos segundo as diferentes inequívoca seja possível.
concepções morais? É óbvio que, dentro da tradição judaico- Mas o fato de haver essa ampla zona cinzenta não
cristã, a eutanásia não-voluntária é igualmente proibida como significa que não existam casos que pertencem
no caso em que o paciente a deseja. Qual é a conseqüência das inequivocamente à parte escura, e parece desumano deixar em
duas outras posições morais? Parece plausível que, nesse caso, seu sofrimento essas pessoas que se acham na zona escura,
aqueles que têm a responsabilidade sobre um paciente – apenas porque há outros casos, em que não se pode decidir tão
médicos, pais, instâncias estatais –, que não consegue mais facilmente, a não ser que se adote uma posição religiosa
expressar sua vontade, têm que se perguntar: o que o paciente extrema. Quase em os casos nos quais temos que tomar
preferiria se pudesse falar? Aqui, os mesmos pontos de vista decisões normativas existem zonas cinzentas, e esse fato não
devem ser decisivos como quando o fossem para a própria significa que não tenhamos de tomar decisões normativas.
pessoa: sofrimento grave, doença sem esperança. Requer-se Estou falando simplesmente do princípio. Uma vez que esse é
uma decisão em substituição da própria pessoa, dirigida visto de uma maneira não-tradicionalista, muita sabedoria
conscientemente da melhor maneira possível ao bem dela, e, médica e muita reflexão moral são necessárias para decidir
nesse caso, experiências médicas sobre a extensão do adequadamente sobre os casos da zona cinzenta.
sofrimento e o grau previsível de convalescença tem que ser Segundo: é notável que, nessa questão, o utilitarismo
de grande peso. possa agir com mais facilidade que a filosofia kantiana. A
Muitas vezes se responde aqui que não se deve decidir orientação do utilitarista para o sofrimento (e isso sem uma
sobre a vida de outrem. Mas por que não? De qualquer referência especial à autonomia) torna mais fácil para ele
maneira, trata-se de uma decisão: os responsáveis têm que assumir responsabilidade nesse âmbito por pessoas que não se
decidir sobre a vida do afetado em ambos os casos, têm que podem articular, enquanto que o kantiano poderia tender aqui
decidir se prolongam sua vida ou não. Não faz sentido dizer a uma postura de indiferença.
que, se o afetado não pode decidir, não se deve decidir por ele, Terceiro: aqui, no quarto problema, um certo tipo de
porque de qualquer maneira se decide sobre ele. Isso abuso é bem perigoso. A única coisa que deve ser a referência
significaria desfazer-se da própria responsabilidade. E é isso o de que e o que se deve fazer num caso assim – prolongar a
que é moralmente reprovável. A estranha idéia de que, nesse vida ou não – são os interesses do afetado. Isso significa que
caso, não se deve decidir pelo afetado só posso entender como deve ser acertado que a decisão não seja determinada pelos

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interesses dos parentes ou da sociedade. A pergunta é como outrem é em si uma coisa tão claramente ilícita que é difícil
isso pode ser garantido. Garantido não pode ser, mas a única imaginar-se que pode haver um caso, em que, se a proibição
maneira de aproximar-se a isso tem que ser uma decisão pode ser transgredida, isso não só possa ser justificado se
democrática esclarecida; com isso quero dizer que a decisão existe uma razão que tenha um peso comparável, quer dizer,
deve ser tomada por várias pessoas, a fim de evitar um abuso por um mandamento contrário, como o vimos no quarto
ou um juízo errado. O temor de que uma decisão desse tipo problema. Ali o matar só foi lícito porque aparece como
sempre possa resultar numa direção falsa só levaria a uma um dever, e a pergunta é: também existem casos, onde o matar
proibição geral, e isso me parece insustentável, exceto se não é um dever, senão simplesmente algo permitido? Parece-
assumirmos a posição cristã, e a dificuldade da posição cristã, me que a razão só pode ser que se trata de seres humanos, aos
no quarto problema, é que ela leva a uma falta de compaixão, quais o critério que está na base da proibição de matar não é
e isso naturalmente é crítico desde o ponto de vista do próprio aplicável. Todas as três concepções morais, também as
cristianismo. modernas, falam de uma maneira universal da proibição de
Ora, deve-se admitir que existe um caso no qual parece matar homens. A pergunta é se essa proibição é aplicável aos
pensável que se poderia permitir aplicar a morte, baseando-se seres humanos que se acham no estado de embriões ou num
nos interesses da sociedade: esse seria o caso, quando se supõe estado de coma irreversível. Sabemos que houve culturas, que
que o paciente não tem interesses próprios, como os embriões, em geral aderiram rigorosamente à proibição de matar, mas
especialmente na primeira fase de sua vida, quando ainda não permitiram a morte de embriões, em alguns casos também de
sentem, e também no caso de seres humanos que se acham recém-nascidos e em outras culturas também de idosos sob
num coma irreversível. Nesses casos, a razão da autorização certos critérios. Outra pergunta é: a proibição de matar vale
de matar (exceto se defendemos a posição cristã) já não apenas para os homens ou também para os animais? Em geral,
pareceria ser moral, senão simplesmente o fato de que esses responde-se que não, mas qual é a razão?
seres humanos não pertenceriam à comunidade moral nem em Para tais perguntas não encontramos respostas nas
seu sentido mais amplo, que abarca todos os seres que sentem. éticas kantianas, simplesmente porque essas éticas não se
Com isso, já nos encontramos no quinto problema. enfrentaram com questões sobre a aplicação das normas
Enquanto que a eutanásia da qual tratei no segundo, terceiro e morais aos casos marginais. Em contrapartida, encontramos
quarto problema sempre tem como ponto de referência um uma resposta inequívoca na tradição judaico-cristã. Como já
dever moral (o cristão diz que sempre é ilícito causar a morte, disse, nessa tradição, o critério único é o pertencer à espécie
as concepções modernas dizem que, em certos casos, temos o homem, e a conseqüência é: é lícito matar animais, não é licito
dever de matar), confrontamo-nos aqui com o problema se, matar nenhum membro da espécie humana. Visto desde uma
partindo-se do ponto de vista não-religioso, existe uma classe perspectiva moderna ou de outras culturas, essa concepção
de seres humanos diante dos quais, ainda que não tenhamos o pode parecer estranha. Para poder entendê-la, tem-se que
dever de matar, poderia ser permitido matar. À primeira vista, recorrer à Bíblia, a qual não fala da espécie humana, mas
essa idéia parece terrível e, com efeito, o é, pois matar a simplesmente do homem, e esse se acha completamente

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separado da multiplicidade das espécies biológicas, foi criado teria que acrescentar: se os pais o permitem).
por Deus num dia separado e, por conseguinte, não se fala dos Muitos acham que tal concepção é monstruosa, porque
“demais animais” (como ainda o fizeram os gregos), mas então seria lícito matar sem causar dores, não apenas os outros
simplesmente dos animais. Mas pode parecer difícil falar animais e os embriões, mas possivelmente ainda crianças
assim hoje. recém-nascidas. Porém temos que nos perguntar em que
O utilitarismo rejeita essa distinção profunda entre medida essa reação não se baseia simplesmente em intuições
homens e animais. Segundo ele, o critério de ter obrigações que oriundas da tradição cristã. Mas não quero defender que,
morais para com um ser é que seja sensível, isto é, que possa para isso, não existam razões independentes dessa tradição.
sentir dor. Se, não obstante, se faz uma distinção na Deixo aberta essa pergunta. Nós nos encontramos aqui diante
modernidade, não pode consistir na pertença a uma espécie, de uma problemática que só podemos enfrentar, para dizê-lo
senão apenas em certas características que geralmente são com Kierkegaard, com “temor e tremor”, e aqui quero limitar-
resumidas sob o conceito de pessoa: características como ter me a simplesmente indicar as contradições em que a
razão, autonomia etc. Para Kant, o critério decisivo era a razão, consciência geral se encontra hoje.
e isso significa que o critério era a capacidade de agir A primeira contradição consiste em que tratamos de
moralmente. Parece-me certo que esse critério é maneira radicalmente diferente os outros animais e aqueles
demasiadamente estrito, pois assim ficariam excluídas as seres humanos que não são pessoas. Essa concepção parece
crianças pequenas. Um critério, que muitos filósofos consistente apenas na concepção judaico-cristã. Alguns
contemporâneos adotam, é a capacidade de um ser de valorar pensam que precisamente isso seja uma razão para defender a
sua própria vida, e isso pressupõe que esse ser não apenas está posição cristã. Mas isso evidentemente implicaria um
consciente, mas que tem consciência de sua vida. Poder-se-ia paralogismo. Se uma norma que se quer defender segue de
dizer que a razão da proibição de matar é precisamente o fato uma premissa, isso não é uma razão para afirmar a premissa.
de termos consciência da própria vida e que, em geral, Ter-se-ia que buscar outra premissa, da qual a norma que se
valoramos nossa vida e que, por conseguinte, para dizê-lo na quer defender também é uma conseqüência e que seria
formulação do imperativo categórico de Kant, não podemos justificada independentemente.
querer que seja uma lei universal que alguém abrevie a vida A segunda contradição consiste no fato de que hoje é
de outrem, exceto se ele mesmo o pede. geralmente aceito que um aborto é lícito numa fase
Tal critério que pertence à tradição kantiana, também relativamente tardia baseando-se num diagnóstico pré-natal,
poderia ser aceito pelo utilitarismo. Desde a sua perspectiva, ainda em casos em que isso seja apenas no interesse dos pais,
poder-se-ia dizer: primeiro, não é lícito causar dores a nenhum não da criança, por exemplo, no caso de mongolismo. Isso
ser sensível; segundo, não é lícito matar nenhum ser que tem significa que se permite matar uma criança antes do
uma consciência de sua vida. Seria permitido matar os que não nascimento, apenas porque é de interesse dos pais, enquanto
têm uma consciência de sua vida, se isso pudesse ocorrer sem que matar uma criança recém-nascida não é permitido, mesmo
dores (no caso de embriões e de crianças recém-nascidas se em casos onde isso parecer ser do interesse da própria criança.

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Se queremos dividir o desenvolvimento humano em demonstrou que isso não é justo. O problema 4 tem
fases que são moralmente relevantes, chegamos, baseados nas exatamente duas respostas possíveis. Segundo a tradição
reflexões que fiz, às seguintes distinções: a primeira fase seria cristã, nunca é lícito abreviar a vida humana, a fortiori a
aquela em que a criança ainda não pode sentir; nessa fase eutanásia de uma pessoa que não pode expressar sua vontade
deveria ser lícito, segundo o utilitarismo, abortá-la sem é sempre ilícita. Para mim, isso significa abandonar a vítima
problema algum. A segunda fase seria aquela em que já sente, de uma doença grave à sua sorte. Segundo a posição
mas ainda não é pessoa. A terceira fase é aquela em que o utilitarista, os responsáveis pela pessoa devem decidir o que é
homem é pessoa e, nesse caso, matar é claramente ilícito. É a o melhor para ela. Isso pode ser muito difícil no caso concreto,
segunda fase que nos causa problemas. A concepção segundo mas em termos gerais a tarefa se pode formular claramente. Se
a qual matar é ilícito depois do nascimento e lícito antes só não não aceitamos o desafio, abandonamos o paciente ou o bebê a
é contraditória se se pode mostrar que o nascimento é a incisão tormentos intermináveis sem sentido. Em contrapartida, tratei
decisiva. Existem boas razões para supor que o nascimento é do problema 5 só porque é bom ter presente toda a gama da
uma linha divisória importante, apesar de argumentos problemática e não queria simplesmente esquivar-me das
recentes sustentarem que não é o nascimento, mas o que se dificuldades que considero serem imensas, sempre supondo
chama de viabilidade ser a incisão decisiva, quer dizer quando que não se adote a posição cristã, e isso seria desonesto se se
a criança tem a capacidade de vida fora do ventre materno. faz simplesmente porque permite uma resposta fácil. E se se
Poder-se-ia dizer que, com o nascimento, começa um processo adota essa posição, tem-se que estar consistente e negar toda
gradual de comunicação que termina no ser pessoal. Além eutanásia desde o princípio. O que eu pessoalmente abomino é
disso, existe um argumento bem mais pragmático, segundo o misturar tudo segundo o que nos parece mais cômodo.
qual, depois do nascimento, não existe nenhuma fase que
poderia ser considerada como a linha divisória entre ser
pessoa e ainda não sê-lo. Mas pode parecer duvidoso que tais
reflexões sejam suficientes. Devemos suspeitar de argumentos
que têm apenas a função de legitimar concepções
convencionais. Nós nos encontramos aqui na obscuridade.
Mas a grande falta de clareza que cobre toda essa
problemática que chamei de quinto problema não deve ocultar
o fato de que, nos primeiro quatro problemas, chega-se a
conclusões claras segundo as diferentes premissas éticas.
Muitas vezes, os críticos da eutanásia, em particular no
problema 4, dizem que esse problema conduziria
imediatamente ao problema 5 e assim compartilharia a mesma
obscuridade dele. Creio que minha exposição do problema 4

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