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5º
ENCONTRO DE PSICÓLOGOS JURÍDICOS DO
ORGANIZAÇÃO DO V ENCONTRO
NÚCLEO DE PSICOLOGIA DA VARA DA INFÃNCIA E JUVENTUDE E DO
IDOSO DACOMARCA DA CAPITAL
ORGANIZAÇÃO DO LIVRO
SERVIÇO DE APOIO AOS PSICÓLOGOS DA CORREGEDORIA GERAL DO
TJRJ E PSICÓLOGOS REPRESENTANTES DOS NÚCLEOS REGIONAIS DA
CGJ
APOIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
5º
ENCONTRO DE PSICÓLOGOS JURÍDICOS DO
privado”
Programação
29/11
9h 30min – Mesa de Abertura
• Coordenação: Dr. Siro Darlan de Oliveira – Juiz Titular da 1ª Vara da
Infância e Juventude da Capital
10h – Mesa 1
• Conferência do Professor Márcio Alves da Fonseca –
PUC/SP
Coordenação: Eliana Olinda Alves – Psicóloga do TJRJ
12h - Almoço
FOLHA 3
APRESENTAÇÃO
Comissão Organizadora
“As Metáforas do Poder: entre o público e o privado”
Estes extratos de laudos médicos são parte das conclusões dos exames
médico-psicológicos a que foram submetidos três homossexuais detidos por
furto e chantagem em uma cidade no interior da França no ano de 1974.
Foucault dirá que há muito a ao mesmo tempo muito pouco a ser dito sobre
este gênero de discursos. São discursos que têm o poder de determinar uma
decisão da justiça sobre a liberdade ou a detenção de alguém. Funcionam
como discursos de verdade no interior da instituição judiciária, discursos de
verdade porque detentores de um status científico na medida em que são
pronunciados por pessoas qualificadas para dizê-los. Discursos que podem
prender, que podem matar, que fazem rir. Esses discursos cotidianos, de
verdade, que matam e que fazem rir, estariam, segundo o filósofo, no centro de
nossa instituição judiciária. Neles, vimos se cruzarem a instituição judiciária e o
saber médico. Entretanto, quando observamos de perto o seu conteúdo,
percebemos a curiosa propriedade de serem como que estranhos aos dois,
tanto às regras, mesmo às mais elementares, de formação de um discurso
científico, como às regras de Direito, pois dizem coisas que fogem aquilo que
interessa especificamente, formalmente, à lei.
Daí o nosso estranhamento ao lermos esses discursos a ponto de nos
causar alguns risos. Tal estranhamento se deve ao fato de que tais discursos
não se refiram propriamente a criminosos ou indivíduos inocentes, nem a
indivíduos doentes ou sãos, mas a indivíduos que pertencem a outra categoria,
dirá Foucault, à categoria da anomalia. Os laudos médico-legais não são
homogêneos nem ao Direito nem à Medicina, não derivam do Direito nem da
Medicina; endereçam-se a um objeto diferente, a uma espécie de terceiro
termo, recoberto, de um lado, pelas noções jurídicas de delinqüência e
reincidência e, de outro, pelos conceitos médicos de doença e de saúde. Tais
discursos estariam ligados a uma forma de poder, aquela mesma forma de
poder a que é submetido o rei George III, destronado, que transforma o poder
judiciário e o saber psiquiátrico em instâncias de controle da anormalidade. E
não somente em instâncias de controle do crime ou instâncias de tratamento
da doença, respectivamente.
No restante deste curso Foucault procura pesquisar como o domínio
compreendido pela categoria da anomalia teria se constituído historicamente a
partir de três figuras: a figura do monstro humano, a do onanista, e a figura dos
indivíduos a quem seria possível corrigir, os chamados incorrigíveis. Tais
figuras seriam os ancestrais dos anormais. Esses fragmentos tomados de
modo pouco rigoroso, de uma certa genealogia do anormal elaborada por
Michel Foucault em dois de seus cursos no Collège de France, certamente têm
o interesse de explorar essa noção de anormalidade que, segundo Foucault,
teria sido constituída historicamente. Esses fragmentos não têm a qualidade de
revelar ou de procurar definir uma verdade histórica da psiquiatria ou mesmo o
verdadeiro papel da justiça criminal na formação da noção de anormalidade.
Não é essa a nossa pretensão nem era a de Foucault. As histórias que esse
autor constrói, a partir de fragmentos que recolhe e que intencionalmente
seleciona, têm um sentido propriamente genealógico, que ele chama de
genealogia do anormal. Ou seja, não se trata de pesquisar uma origem
primeira, uma verdade primeira sobre um fato, uma situação. Trata-se, antes,
de reconstituir aspectos de um certo engendramento, de uma certa formação
histórica, com o intuito de problematizá-la.
Neste sentido, uma problematização importante que esta genealogia da
noção de anormalidade escrita por Foucault possibilita refere-se à matização
dos domínios público e privado, permitindo questionar sua distinção e seus
domínios precisos. Ao contrário da separação e da independência entre uma
esfera de liberdade e auto-determinação do indivíduo, de um lado, e um
domínio de controle e condução por parte das instituições e do Estado, do
outro. Este tipo de pesquisa genealógica permite evidenciar as incontáveis
intersecções entre estes domínios. Parece-me que esse é um dos aspectos
fundamentais a ser levado em conta numa discussão acerca do tema do
público e do privado. Penso que a pergunta sobre as intersecções entre estes
domínios, e não apenas pela sua distinção e seus limites, é que permite a
compreensão de algumas das metáforas possíveis entre os processos de
objetivação e de subjetivação que nos constituem. A esse título, e também a
título de conclusão dessa fala, permito-me retirar do contexto em que é citado
por Foucault e reproduzir aqui um diálogo um pouco longo, citado pelo filósofo
no curso O Poder Psiquiátrico, de 1974, entre Lauré, um importante médico
psiquiatra da época, e um paciente do asilo de Salpetrière. O diálogo é o
seguinte:
1
Doutora em Filosofia pela New School for Social Research – New York – USA. Professora
de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
uma espécie de imaginário da coisa pública.
2
Veja-se: ARENDT, Hannah, "The Image of Hell," em Essays in Understanding 1930-1954.
New York, San Diego and London: Harcourt Brace & Company, editado por Jerome Kohn,
1994, pp.l97 -205.
3
(tradução ligeiramente modificada) ARENDT, A condição humana. Trad. brasileira de
Roberto Rapouso, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 1 (The Human Condition.
Chicago-London: The University of Chicago Press, 1989, p. 9).
Ao contrário da valorização da imagem corporal, na qual ser e aparecer,
de certa forma, também coincidem, o que está por detrás da valorização
arendtiana do espaço público da aparência é fornecer um fórum para a
liberdade humana entendida não como horizonte das experiências interiores,
mas como um espaço do exercício da virtuosidade pública.
4
ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia de Kant. Trad. de André Duarte, Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1993, p. 94 (lectures on Kant’s Political Philosophy. Edited with na
interpretative essay by Ronald Beiner, Chicago: Ed. The University of Chicago Press, 1982, p.
73).
5
ARENDT, Hannah. “Public rights and Private Interests: Response to Charles Frankel”, em
Small Comforts for hard Times: Himanists on Public Policy, editado por Michael Mooney e
Florian Stuber, New York: Columbia University Press, 1977, p. 104.
aquilo que "interessa apenas em sociedade"6, ou ao que Hannah Arendt,
fazendo uso de um vocabulário kantiano, nomeia de "deleite desinteressado",
de natureza pública, embora nem de caráter caritativo ou mesmo altruístico7.
Deste modo, o que era atividade exclusiva do animal laborans, qual seja,
o exaustivo consumo dos nossos apetites, que além de ser do domínio da
necessidade se encerrava na própria atividade em si, se funde com o princípio
da fabricação. Uma fabricação sem qualquer vislumbre de telos, pois o
principal critério de medida deixa de ser o da utilidade, e passa a ser o da
felicidade limitada à ilusão de um infinito processo de fabricação e consumo do
corpo; mesmo que tal felicidade seja por pouco tempo, o tempo suficiente de
sermos tragados por uma nova possibilidade de consumirmos mais uma nova
fabricação da nossa imagem corporal. A autora de A condição humana afirmou
que a vitória do homo faber se baseava na convicção de que "o homem é a
medida de todas as coisas"14. Na promessa contemporânea de felicidade, o
ponto arquimediano não é mais o self solipsista, mas o corpo solipsista, que
passa a ser a medida de todas as coisas, o artefato humano por excelência, a
medida de fabricação da vida. Talvez a tradução consagrada do filme de Frank
Capra continue sendo elucidativa, "a felicidade não se compra", nem mesmo se
fabrica, mesmo que sua matéria-prima seja nosso bem mais precioso, nosso
corpo, onde se encerra a vida.
14
Ibid., p. 319 (original, p. 306).
AS METÁFORAS DO PODER: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Geraldo Prado15
Peço desculpas ao público pelo atraso. Em alguma medida este atraso é explicável,
embora não se justifique. Ele é explicável na lógica do tema principal do 5º Encontro de
Psicólogos do Tribunal de Justiça – As metáforas do poder: entre o público e o privado.
Em primeiro lugar, vou me apresentar: eu sou juiz de Direito há 17 anos, fui promotor
de Justiça durante três anos, sou professor de Direito Processual Penal da graduação da UFRJ
(Faculdade Nacional de Direito) e do Programa de Mestrado da Universidade Estácio de Sá.
Sou Doutor em Direito, sou morador, nascido e criado nessa cidade do Rio de Janeiro, pela
qual sou profundamente apaixonado. Portanto, sendo isso tudo e sendo a contradição que todo
sujeito é, penso nessas relações entre público e privado a partir da minha experiência pessoal.
Não poderia ser de outra maneira. Minha experiência como juiz, morador de uma cidade
assustada, professor encarregado de pesquisas na área da criminologia e controle social, todas
essas minhas experiências são a base daquilo que eu penso e da minha atuação na
magistratura, nas minhas relações sociais outras e até mesmo do fato de eu ter, juntamente
com outros grandes companheiros – entre os quais eu cito e presto homenagens a Siro Darlan,
Joaquim Domingos, Sílvio Teixeira, André Trendinique, André Nicolite, Cristiane Ferrari, Milene
Massali –, formado esse grupo de magistrados pela democracia (Magistratura Fluminense pela
democracia no Rio de Janeiro), cujo compromisso, já de alguns conhecido, é no sentido da
radicalização democrática, independente do que isso possa vir a nos custar. Portanto, são
todas essas experiências que formam a pessoa que está com vocês hoje e que tem que falar
15
Juiz de Direito da 37.ª Vara Criminal do TJRJ.
do público e do privado tomando talvez como referência, como ponto central, o Poder Judiciário
e a minha condição de juiz. Há um livro – Histórias de violência: crime e lei no Brasil organizado
pela Elizabeth Canceli e publicado pela UnB –, uma coletânea de artigos de muita gente boa.
Entre os excelentes autores que publicam esse trabalho, há uma professora do Rio Grande do
Sul, Ruth Gauer, antropóloga. A Ruth apresenta um texto sensacional, “Fundamentos do
moderno pensamento jurídico brasileiro” e, sobre esse texto da Ruth, a Elizabeth escreveu o
seguinte: “o segundo capítulo do livro de Ruth Gauer faz um exaustivo exercício na busca da
ruptura portuguesa com a herança das estruturas político-administrativas da Idade Média e do
romantismo, as quais informariam o nosso país colonial. Encontra, dessa forma, o modelo de
modernidade que seria adotado pelo Brasil no século XIX ao mesmo tempo em que vislumbra
a“força da tradição”, ou seja, o mesmo instante em que as inovações estariam separando pela
modernidade o público do privado, e valorizando a coisa pública com o paralelo surgimento de
uma sociedade civil, a manutenção da personalização como a força da tradição seria a
tentativa de não transformação e a permanência de regras particulares sobre gerais do
tratamento personalizado”.
Isso diz muito da nossa realidade, muita gente já enfrentou essa temática – Roberto Da
Matta, com a sua maneira de ver as coisas; a extraordinária professora da UFF, Gislene Neder,
também; Vera Malaguti Batista, que tenho certeza já trocou idéias com vocês – da questão da
permanência de práticas de particularização sobre práticas de generalização, que são próprias
de uma República. Isso no momento atual quando a gente pensa que está no século XXI, em
2004, dezesseis anos depois da edição de uma constituição que deveria produzir, se não
resgate de uma cidadania que nunca existiu, no mínimo as condições elementares para a
configuração de um novo modelo de cidadania a ser realizado diariamente. E não encontramos
isso, muito pelo contrário, parece que estamos vivendo o mesmo tipo de situação pré-1988, em
que a cidadania ainda é uma cidadania bem particularizada, ainda é uma cidadania de apenas
alguns segmentos sociais. Então, a coisa se complica e exige de todos nós um esforço de
compreensão para não reproduzirmos, no nosso atuar concreto, o que nos parece que é justo.
E todos aqui sabem que não há uma justaposição entre o justo e o legal, pode ser legal e estar
muito distante do justo. Estarmos aí a atuar, fazendo justiça e na realidade perpetuando
injustiças, segmentações, abismos, diferenciações sociais.
Como pensar isso? Embora fale para psicólogos, na maioria aqui, falo como juiz. Em
que estágio nós do Direito, nós juízes, nos encontramos? Em primeiro lugar, é necessário
compreender que o Poder Judiciário brasileiro nunca foi um poder transformador. Se nós
pudéssemos talvez fazer uma análise histórica da formação do Poder Judiciário da
modernidade, principalmente essa chave que é a Revolução Francesa, que Poder Judiciário
surge com o fim do Antigo Regime? Que Poder Judiciário é o que a comunidade espera em
uma República? Se pudermos pensar em Poder Judiciário da modernidade como sendo este
poder transformador, criador, motivador de universalidade dos direitos ou do processo de
universalização do gozo de direitos fundamentais, é evidente que estamos muito distantes
disso na realidade brasileira.
Não há como analisar o Poder Judiciário brasileiro sem analisar a sua função penal,
sua função de controle social. O Poder Judiciário brasileiro nasce como um instrumento nas
mãos do Executivo para ser realmente uma ferramenta de controle social, de segurança
pública. O modelo judiciário, digamos liberal, que em alguma medida a constituição do Império
trazia já esculpido, referido e que já estava neutralizado pelo próprio poder moderador do
imperador, aquele Poder Judiciário na prática não tinha absolutamente nada a ver com o
discurso do texto constitucional. As práticas sociais entregaram a juízes, desde o início da
história do Poder Judiciário brasileiro, a tarefa de ser instrumento de segurança pública. Juízes
como intendentes, juízes como policiais ou, em outras palavras, policiais como juízes. A
formação da nossa estrutura judiciária trazia, logo de cara, esta deformação com a atribuição
de funções de segurança pública a quem deveria ter uma posição imparcial, dentro dos limites
em que a imparcialidade é possível. Ter uma posição imparcial na gestão de conflitos. Em uma
gestão de conflitos que tenderia a diminuir o grau de conflitividade social, reduzir o nível de
violência na comunidade. Mas se isso era o modelo ideal do Poder Judiciário da modernidade
não era, por certo, o modelo do Poder Judiciário brasileiro, de uma sociedade escravocrata, de
uma sociedade marcada profundamente pelo tipo de produção que havia escolhido para ser a
sua força econômica e de uma sociedade que vivia num estado que ainda sequer se conhecia
direito. Todos sabemos que a língua falada no Brasil no início do século XIX não era o
português, era uma língua geral, era uma combinação do português de quem chegava, com as
línguas trazidas pelos africanos que também chegavam, com a língua dos índios que já
habitavam esta terra. Era uma língua absolutamente incompreensível, por exemplo, para um
sujeito culto vindo de Portugal que não tivesse a experiência de viver no Brasil durante muito
tempo. E o processo de uniformização lingüística, que é essencial na visão de muitos para a
configuração da nacionalidade, de constituição de uma unidade lingüística, se fez dentro do
próprio projeto de integração territorial brasileira, com o enfrentamento entre o poder central e
as forças provinciais numa luta que era entre conservadores: mais conservadores contra
menos conservadores. Então, uma luta de imposição da unidade territorial brasileira, a luta de
imposição de um certo modelo econômico. Todas essas lutas foram travadas entre elites
centrais e outras elites, mas seres humanos, negros, camponeses e o pessoal que já
trabalhava nas cidades numa condição infeliz foram, de alguma forma, importantes nestas
batalhas. Eu cito sempre a Balaiada como exemplo disso, porque as pessoas falam da
Balaiada mas não se lembram de que, naquele mesmo período, os negros se revoltaram em
quilombos no Maranhão, liderados por Cosme, e se não fosse a força militar dos negros dos
quilombos, o Balaio e seu grupo de liberais não tinha conseguido enfrentar o poder central
durante muito tempo. Mas esses todos certamente eram massa de manobra de um mecanismo
complicado que tinha na justiça uma das suas principais engrenagens. A justiça criminal
brasileira, no período da Regência, foi empregada ao limite para atingir dois objetivos: o
primeiro deles era não permitir que a justiça, no seu funcionamento concreto, enunciasse
regras que poderiam ser interpretadas como regras de universalização de direitos. Tínhamos
um tribunal do júri, nesse período da nossa vida no século XIX, que não tinha um juiz
profissional como hoje, com a sua predominância, a sua hegemonia no julgamento. Tinha, sim,
pessoas da comunidade que conduziam todo o julgamento e quando – nesses conflitos como a
Balaiada – alguém que integrava o grupo revoltoso dos balaios era levado a julgamento,
perante esse tribunal popular, era absolvido com o seguinte argumento: esse sujeito tem que
ser absolvido porque, na realidade, está lutando por nossa liberdade, por direitos da
comunidade do Maranhão. Ele está enfrentando o poder central, mas está enfrentando em
busca de algo que o poder central nunca nos oferecerá, o poder central nos oferece a
escravidão como modo de produção, o poder central nos oferece a aristocracia como modo de
definição de estamentos sociais e aqui, não, os balaios estão querendo coisa diferente, estão
querendo construir uma República em que haja unidade, igualdade, etc. Então, se esse
camarada matou um soldado, vai ser absolvido porque havia uma justa razão para tal. Quando
os tribunais do júri, em meados do século XIX, começavam a produzir esse tipo de decisão, o
Poder Central se deu conta de como era importante dominar o Poder Judiciário, de como era
importante não permitir que o Poder Judiciário tivesse essa independência, de como era
importante não permitir, tanto do ponto de vista ideológico como do político, ter um Poder
Judiciário capaz de dizer ao próprio governo central “olha, você está do lado errado, você não
tem razão”. Vivíamos uma época em que não havia o chamado controle de constitucionalidade
das leis, o juiz não podia deixar de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional e isso era
muito positivo para as elites, mas ainda assim não era suficiente. Não era suficiente porque,
apesar de tudo, era possível se produzir decisões contestando o status quo. Então, há um
desmonte, o tribunal do júri brasileiro é desmontado, e estou citando só um dos inúmeros
exemplos que poderia citar aqui. Ele é desmontado, desaparecem esses jurados que decidiam
um pouco como decidem os júris americanos que vocês assistem pela televisão: encerrado o
debate, se reuniam, conversavam entre si, trocavam idéias e, em seguida, apresentavam o
veredito, que era a posição deles, jurados, a respeito daquele caso. Aquilo desaparece, um juiz
profissional é inserido neste processo e esse juiz profissional era absolutamente ligado aos
interesses da Coroa e só permanecia naquela cidade, naquela comarca à frente daquele Juízo
enquanto bem servisse à Coroa. Seria curiosidade histórica? Seria curiosidade histórica se isso
não representasse a realidade do Poder Judiciário ao longo de toda a nossa história até bem
recentemente.
Eu vou marcar três coisas brevemente, três tópicos e vamos ver como é
que a gente pensa isso. Primeiro, eu queria marcar a diferença do sujeito e do
indivíduo. Se o indivíduo é o produto dessa separação entre privado e público,
ele é o privado e o público é o social, o sujeito não é exatamente indivíduo.
Pelo menos o que a psicanálise nos ensina, desde Freud, com certeza, e
depois dele, é que o sujeito se constitui primeiro numa dimensão de alteridade,
a partir de um outro. Esse outro que o constitui está presente em várias
dimensões que borram essa distinção entre privado e público e, portanto, a
gente não pode pensar só no indivíduo. Então, a gente tem indivíduos que nos
dirigem suas queixas, suas palavras, enfim, falam a nós e que se deve legislar
para punir ou educar. E o sujeito, a partir da psicanálise, eu diria que é efeito
de linguagem; a linguagem não tem dono. Essa distinção de linguagem privada
e linguagem pública não é possível de ser feita quando se fala do campo da
linguagem. Então, se o sujeito é uma produção do efeito de linguagem, ele é
pontual, ele não é um indivíduo o tempo todo, é o que se produz a partir do
indivíduo. A partir do indivíduo, a distinção de privado e público já não se
sustenta mais. O indivíduo é pensado como um corte no que se diz social. Na
questão social, a segunda coisa é que se a gente tem um sujeito que é efeito
de linguagem, que pensa e que aparece a partir da fala e que essa distinção
privado e público já não se sustenta mais, a gente tem duas dimensões da fala,
o que se diz ou o dito e o dizer. Não existe um dito sem um dizer. Quem diz, diz
alguma coisa. Então, a relação entre o dizer e o dito é uma relação estreita,
inseparável. Mas o dizer envolve a responsabilidade do sujeito, envolve a
posição a partir de onde ele diz alguma coisa. A fala é como se fosse a
linguagem funcionando, o dizer é o que você recorta na fala. O dito é o
conteúdo. O dizer não tem compromisso com a verdade porque o dizer é um
ato, assim eu disse, “eu disse e está dito”, o dito sim pode ser falso ou
verdadeiro, então você pode mentir ou dizer a verdade. O dizer é verdadeiro ou
falso, a gente está no campo do dito, o dizer não é verdadeiro nem mentiroso,
o dizer é um ato e ele parece ser extremamente importante para quem trabalha
no campo do judiciário ou pra quem trabalha em qualquer campo. Como
trabalhar levando em consideração o dizer e não só o dito. Isso é uma coisa
que eu queria marcar. O dito é o que se fixa ao mesmo tempo em que é
passível de interpretação, da atribuição de sentido, de ressignificação. Então o
dito pode ser trabalhado ao mesmo tempo. O que está dito está dito, não se
volta atrás, o dito é uma conseqüência do dizer. Se dizer é um ato, tem
conseqüências e cabe ao profissional “psi” do tribunal levar o sujeito a essa
responsabilidade do ato, no ato, porque aí existe a reposta de quem ouve o
que está sendo dito, tem o dizer do lado do profissional “psi”. O dizer é o ato de
tornar público, o que de outro modo se restringe ao privado ou ao indefinido.
Ele é extraído de uma certa falação, da controvérsia, do burburinho da fala
colocado em cena, em pauta, em ato. E aí você tem o sujeito se constituindo
em ato, a partir do seu dizer. Isso é fundamental para se fazer laudos, para se
fazer avaliações e perícias de um modo geral, para construir um laudo, por
exemplo, ou decidir coisas, e um ato perante o juiz, inclusive. O Juiz tem uma
função de acolher esse dizer como um ato.
Sérgio Carrara17
18
Atuais Juizados Especiais.
acusado e que o conflito já foi superado pode o Estado assim mesmo condenar
o acusado? O que será melhor para esse casal?”
Não acho que esta reflexão, ainda bastante preliminar, resolva a tensão
e o desconforto, mas talvez sirva para a gente poder equacioná-los e
compreendê-los de uma maneira mais adequada.