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Professor Doutor da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do
Pará. Coordenador do Nucleo Interdisciplinar Kairós – Pensamento da Arte e da Linguagem (NIK/UFPA), grupo que
desenvolve atualmente a pesquisa intitulada “A obra de arte e o pensamento poético-originário”. Blog do grupo:
[http://nik-ufpa.blogspot.com].
realidade – criação que pertence não ao homem, mas à própria realidade.
A tradição mimética
A tradição mimética é o correlativo, aplicado ao domínio da arte, da tradição metafísica,
que se constituiu a partir dos sucessivos sistemas filosóficos que se foram formulando no Ocidente
nos ultimos 2.500 anos, desde a Grécia Antiga. Um sistema, entretanto, é uma tentativa de organizar
a realidade. Mas nenhuma tentativa de ordenamento pode esgotar a dimensão aórgica, anterior a
qualquer ordem que se estabeleça, que é a própria realidade se manifestando. Os sistemas
filosóficos, ao procurarem estabelecer o fundamento causal da realidade, terminam sem se abrir
para o nada criativo, para o abismo da criação, para o silêncio que a obra de arte manifesta. Seu
modo de encarar a arte não lhe concede seu vigor criador, pois engessa o aórgico em sistemas. A
tradição mimética se institui como o constante afã de se estabelecer uma causa anterior, logicamente
estabelecida e inserida em um sistema metafísico, que a obra representaria.
Já no platonismo, matriz da tradição metafísica ocidental, o entendimento é o de que a arte
seria a cópia do mundo sensível, e este seria uma cópia do Ser, o mundo inteligível. Desse modo, a
arte estaria a três degraus do Ser, a três degraus da verdade, do que efetivamente é, pois não passaria
de cópia da cópia. Entretanto, não se pode confundir platonismo com Platão. Platonismo são as
travessias de questionamento de Platão transformadas em respostas, muitas vezes canônicas, as
quais, repetidas ao longo dos séculos, instauraram uma tradição. Diferentemente do que se costuma
interpretar das passagens de A Repúlica (Politéia) em que Platão fala da arte como mímesis do
mundo sensível, no Banquete (Sympósion) ele nos diz que a arte é a disputa entre tó ón (o que é) e
tó mé ón (o que não é). Platão é plural, estava no pleno vigor da questão do Ser, e se abriu para o
silêncio da arte como questão. Mas, quando se começa a repetir Platão, tomando suas respostas por
acabadas, surge o platonismo.
Em nossos dias a maneira mais usual de a tradição mimética se manifestar aponta que a
arte seria a imitação da subjetividade do artista ou dos contextos históricos em que a obra surge. E
isso mesmo quando se usa a palavra representação para falar da imitação que ela supostamente
faria. A representação seria na verdade uma cópia, ainda que recriada, de algo, pois representar é o
(re)apresentar o que já tem existência prévia.
Assim, diz-se que a obra de arte tem origem no artista. Seria ele a produzir a obra, nela
imprimindo seus dramas e questionamentos. Sem negar que os dramas e questionamentos do artista
possam estar presentes na obra, ela nunca se resume a isso, senão seria somente uma confissão
pessoal e não teria a universalidade que a caracteriza. Ela não só não se resume a isso quanto, do
ponto de vista originário, efetivamente não é isso. Não é isso o que lhe é próprio. Por originário, se
compreenda a ação da realidade em retração.
Nosso tempo é de subjetivismo exaltado – a conversão do real em objeto, submetido às
determinações epistemológicas e metodológicas do homem investido na condição de sujeito que
tudo objetualiza. Por isso, pode-se dizer que estamos imersos no antropocentrismo, o qual sempre
toma o homem como a fonte da ação, esquecendo-nos de que o questionamento não vem dele, mas
das questões. Se o artista questiona – e ele efetivamente faz isso –, a sua ação de questionar não tem
origem nele, mas nas questões. Para podermos questionar uma questão, ela já tem de se ter
manifestado previamente a nós. Não foi o homem quem fez as questões: elas se dirigem a ele. O
homem só pode questionar porque já está imerso nas questões. Ele não escolheu ser metafísico,
estar dentro (metá) da phýsis, dentro do real, palavra com que traduzimos o termo grego, o que se
justificará mais adiante. A ação originária, à qual o artista co-responde (responde junto e
estreitamente) ao realizar a obra, é da realidade do real, sempre em retração. É ao apelo desta
retração – desse velamento de tudo o que se desvela – que a obra responde. A obra tem a sua origem
no originário, que são as questões se retraindo ao se manifestarem.
Fernando Pessoa bem enxergou a ação prioritária das questões no acontecer da arte ao
dizer que “o poeta é um fingidor”. Fingidor vem do radical indo-europeu fing-, que está presente em
palavras de vários idiomas. Só para citar algumas: finger (dedo, em alemão e inglês), to figure
(imaginar, em inglês), figure (fisionomia ou figura, em francês). Em vernáculo, fingir, figurar,
figura, ficção. Ficcionis – ficção em latim – vem do verbo fingere, que quer dizer modelar a argila.
Daí também vem figulus, o oleiro, aquele que cria figuras no barro. Sempre no radical fing- está
presente a criação que o homem faz de figuras na terra, no real. Mas o ato criador não tem a sua
dimensão originária no homem, e, sim, na própria terra, no real. Pois, se todo figurar é também um
interpretar, só é possível interpretar o real de diferentes maneiras – o que corresponde a diferentes
criações – porque a terra se mostra como fenômeno velando a sua realidade, o que ela efetivamente
é, o que ela é de verdade. É porque a realidade do real está sempre se velando em todo
desvelamento que o real pode ser interpretado de diferentes modos. Por isso, a obra de arte não tem
o seu originário no artista, mas no próprio real, que se desvela como questão ao homem ao retrair a
sua realidade. E é a ação desse velamento o que determina que cada ser humano seja questão e
travessia acontecendo, pois o que somos está sempre se velando. Por mais que saibamos quem
somos, o que não sabemos de nós próprios é sempre muito maior: a realidade nos excede. É isso o
que faz com que cada existência seja uma aventura à procura do próprio. Como disse Guimarães
Rosa, “Existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 1985, p. 568). E, como nos lembra o autor,
essa travessia se faz “nonada”, literalmente, no nada que a arte põe em obra.
O poeta – o artista, aquele através de quem se manifesta a poiésis – é um fingidor porque
plasma figuras no real a partir do apelo da realidade. A obra não é a mímesis, no sentido de
imitação, da subjetividade do artista, e, sim, o manifestar da poiésis, compreendida como a ação
originária do velamento da realidade, dirigindo-se como questão ao homem.
Um outro modo como comumente se manifesta a tradição mimética é o que diz que a obra
faria a representação dos contextos históricos. E isto se prende à noção que temos do que é uma
época e do que é a história.
Uma época costuma ser vista como a vigência de um determinado contexto histórico.
Assim, diz-se, por exemplo, que o Mundo Antigo traz um contexto diferente do da Idade Média, e
esta diferente do contexto da Modernidade. Uma época seria a reunião de uma série de dimensões,
que incluiriam a social, a cultural, a econômica, a política, a ideológica etc. – e, entre estas
dimensões, a artística. A palavra contexto diz exatamente isso: reunião (con-) de tecidos (textum).
Todo contexto é a reunião de variados tecidos que se entretecem, a trama de várias dimensões que
se articulam, que se interpenetram.
Percebida como representação, a arte é vista como apenas mais uma das dimensões do
contexto histórico. A obra de arte seria, entretanto – assim ao menos se lhe faz esse favor –, uma
dimensão privilegiada, pois constituiria um tecido (textum) cujos fios seriam compostos de várias
outras dimensões: a sociedade, a cultura, a economia, a política, a ideologia vigente em uma época
ou mesmo o embate de ideologias. A concepção usual é a de que a arte representa os contextos
históricos da época em que surge. Por isso, um dos modos vigentes de entendimento da obra de arte
diz que ela faria a mímesis de tais contextos – mímesis entendida, no entanto, ainda como uma
recriação ou representação de algo com existência prévia: no caso, os contextos históricos.
Como tal modo de pensar a arte pode explicar que, por exemplo, uma obra como o Édipo
Rei, de Sófocles, encenada pela primeira vez no distante século V a.C., em Atenas, há mais de 2.500
anos, em um contexto histórico muito diferente do nosso, possa falar – e com tamanho poder de
questionamento – ao homem da pós-modernidade, cuja paisagem é a da expansão da técnica e da
ciência, da inteligência artificial, do chip eletrônico, do cyborg, da realidade virtual, da sociedade
ligada em rede, da globalização? Só por aí já se percebe que a arte não é uma mera representação de
contextos históricos, e nem mesmo a mímesis, entendida como imitação do já feito, pode explicá-la.
Pois, como se poderia compreender, hoje, uma obra que vem de tão longe, de um contexto tão
distinto? Não negamos que os assim chamados contextos históricos se façam presentes na obra de
arte, pois ela sempre se articula em uma multiplicidade de dimensões. Mas esses contextos também
se podem ver em um documento histórico, que não é artístico: por exemplo, um contrato de compra
e venda firmado em Roma, no século III a.C. A obra engloba tais contextos, mas jamais a eles se
resume. Por isso mesmo, do ponto de vista originário – ou seja, ponto de vista ontológico, que diz
respeito ao seu ser, ao que ela efetivamente é –, tampouco a obra de arte é a representação desses
contextos. Algo nela acontece, ela promove algo que jamais se limita, se é uma vigorosa obra de
arte, a fazer a imitação dos contextos históricos em que surge, nem jamais tem o seu originário na
sujetividade do artista. O que é esse algo? O que entender por mímesis?
Mímesis e história
O velamento da realidade se dá por ação originária do tempo: as coisas não são, elas estão
sendo. A phýsis mantém referência ontológica com a história, na medida em que é a ação do tempo
que faz com que a realidade se dirija ao homem como questão, jamais como um dado objetivável.
Por isso mesmo, história não se confunde com historiografia, a qual sempre parte de referenciais
epistemológicos determinados para estabelecer a narrativa de causas e consequências que articula.
História vem do grego hístor, que significa ser testemunha, interrogar, questionar, e tem a
mesma raiz, id-, presente no termo grego eidos. Por alterações vocálicas, o d- se perdeu em hístor.
No latim, a raiz id- também se acha no verbo videre (ver). Eidos quer dizer, efetivamente, o
fenômeno se dando a ver, manifestando-se – manifestação que, evidentemente, não pode ser vista,
em sentido poético-originário, se já partimos do pensamento como mera representação de conceitos.
Hístor, de onde vem história, significa, assim, o que vê, o que percebe a manifestação do fenômeno.
E o ver, nesse sentido, não é a representação de categorias prévias, como faz a historiografia, mas
abrir-se para a poética do fenômeno, o qual, dando-se a ver, vela a sua realidade.
A história, em sentido autêntico, é o exercício do pensamento poético-originário, e jamais
se resume a uma historiografia. Tal modo de pensar é ter desvelo, cuidado com as questões, donde,
aliás, em vernáculo, a palavra “penso”, que quer dizer curativo. O pensar assim considerado é ver –
ver no sentido de deixar a coisa se manifestar por ela mesma, sem a hipóstase de categorias prévias
sobre a questão do que elas são.
Em nosso tempo, entretanto, o pensamento tem sido reduzido à representação e aplicação
de teorias, categorias e ideologias – inclusive no trato com a arte. E é por isso que Alberto Caeiro,
mestre dos demais personagens do teatro da obra de Fernando Pessoa – inclusive e paradoxalmente
dele próprio –, investe contra o pensar reduzido à representação. 1 Diz Caeiro (PESSOA, 1995, p.
217):
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Caeiro pretende superar o pensamento representativo por ação do ver, que significa deixar
a coisa se doar como fenômeno, nesta doação velando a sua realidade. Entretanto, quando o pensar
é o deixar-se envolver pelo fenômeno – isto é, no momento em que ele se converte em ver –, Caeiro
recuperará o pensamento como desvelo, e poderá, então, dizer que “amar é pensar” (PESSOA,
1995, p. 230). Pois o pensamento cessa de ser a representação que o homem, convertido em sujeito,
faz da coisa, reduzida a objeto, através da metodologia que se supõe “correta” e que garantiria
acesso à verdade da coisa – quando, efetivamente, não fez mais do que objetualizá-la sob a batuta
da epistemologia. A partir do momento em que este esquema gnosiológico é superado, o
pensamento cessa de ser representação e se efetiva como envolvimento amoroso entre as coisas e o
homem.
O pensamento representativo produz a historiografia, por articular narrativas que partem de
referenciais teórico-epistemológicos previamente estabelecidos. O pensamento poético-originário,
1
Em carta a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa comenta a gênese dos heterônimos e o impacto que o
nascimento de Alberto Caeiro teve nele próprio: “E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei
desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim meu mestre” (PESSOA,
1995, p. 96).
Caeiro é efetivamente o mestre dos personagens da obra pessoana – inclusive do próprio Fernando Pessoa –,
mas não porque a eles ensinou conceitos, doutrinas ou ideologias. Ele não deu aos outros o que somente eles poderiam
dar a si próprios: aprenderem a ser quem são, a livre e criativamente colocarem-se em posição de escuta do que neles se
destina. Obrigar o próprio a ser o outro é o desencadear da impropriedade, o que certamente não convém a ninguém.
Como diz Guimarães Rosa, no Grande sertão: veredas, “um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro,
nem convém...”. Caeiro é o mestre porque mostrou que o homem está sempre dentro das questões, e que cabe, a cada
um, em diálogo com elas, que são sempre as mesmas para todos, em todas as épocas e lugares, encontrar a sua maneira
própria de ser, deixando florescer a sua diferença e originalidade a partir do apelo da própria realidade.
ao contrário, é a abertura para a história como o acontecer das questões, em que o passado jamais é
um dado objetivável. Na manifestação das questões da obra de arte, o tempo novamente acontece,
envolvendo o intérprete em uma tríplice modalidade temporal, em que o presente é o passado
projetado no porvir, e em que a poiésis é a ação originária da realidade, indagando o homem sobre
seu próprio sentido. Por isso, a arte jamais se limita a copiar os contextos históricos ou, como
também se costuma dizer, os contextos sociais. Ela não é a recriação ou representação – a mímesis
entendida como imitação do já feito – de uma época. Ao contrário, é ela quem instaura as épocas.
Época vem do grego epokhé, que significa “suspensão e reinício de uma nova configuração
dos astros, dando início a um novo período”. Uma nova época é uma nova e originária configuração
dos mesmos astros – isto é, as questões, sempre as mesmas, manifestadas de diferentes maneiras
pelas distintas obra de arte –, dando nascimento a novas figuras. As novas e originárias figuras são a
ação do fingere, da ficção, mas esta não no sentido de oposição ao real, e, sim, no de sua
manifestação. A ficção, assim, termo com que se costuma designar a arte, é a própria plasmação do
real, a sua interpretação, pois interpretar é também plasmar. Todo real é sempre ficcional, pois
jamais conseguimos esgotá-lo em conceitos, já que a sua realidade está sempre se velando na ação
do tempo.
A arte e a verdade
A verdade, manifestativamente considerada, não é o que se opõe ao falso, mas o
desvelamento das coisas. Martin Heidegger, no ensaio A origem da obra de arte, diz que a arte é o
pôr em obra da verdade (2010, p. 89). O sentido em que ele se utiliza da palavra verdade não é o do
senso comum. Não se trata da verdade que se opõe ao falso. Em sua obra, a verdade é resgatada no
sentido originário, que se associa ao termo grego alétheia.
Em sua composição etimológica, alétheia fala da realidade em retração, velando-se. Ela se
compõe do alfa privativo (a-), e Léthe, a deusa do velamento, o rio dos mortos, o que não cessa de
se velar em todo desvelamento. Trata-se, portanto, da verdade manifestativamente considerada, a
verdade fenomênica – própria às obras de arte – , e não a verdade judicativa, que se oporia ao falso.
Os juízos verdadeiros ou falsos, articulados pelo homem, dependem, previamente, que as coisas a
ele se tenham manifestado como fenômenos, velando a sua realidade, pois sobre o nada, sobre o que
não é, sobre o silêncio, não pode haver judicação, senão já deixam de ser o nada, o silêncio.
Tampouco a verdade pode se resumir a uma ideologia, pois ao velamento do que se desvela não se
pode atribuir ideologias. Alberto Caeiro bem observou isto, ao pronunciar que “o Universo não é
uma ideia minha. / A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha” (1995, p. 238). As ideias
que temos das coisas – a verdade que sobre elas podemos judicar – não são as coisas, cuja essência
se mantém sempre velada.
A concepção usual da essência da verdade, segundo a qual ela é a adequação da coisa ao
conhecimento (veritas est adaequatio rei et intellectus), o que permitiria dizer que uma proposição é
verdadeira ou falsa, só é possível na medida em que a coisa se tenha deixado ver no silêncio de sua
realidade. Por isso, a verdade manifestativa – que no caso da arte é o manifestar das questões – é
prioritária sobre a judicativa, e até mesmo a sua condição de possibilidade.
A obra de arte é o acontecer do nada, não como niilismo, mas o nada criador, o operar do
silêncio de que fala Guimarães Rosa no conto “O espelho”, do livro Primeiras estórias: “quando
nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (ROSA, 2005, p. 113). Ela é a manifestação
do Ser enquanto retração e velamento, não a cópia de um ente. E este silêncio é a própria
linguagem, considerada não como instrumento de comunicação, mas ontologicamente, matriz de
todas as línguas e diferentes obras de arte. Ninguém fala a linguagem portuguesa, inglesa ou alemã.
Falam-se a língua portuguesa, inglesa ou alemã, pois a linguagem é o que se dá em todas as
diferentes línguas – e em todas as diferentes obras de arte – retirando-se, velando-se como
linguagem. A linguagem não é um ente, ela é a dimensão dentro da qual o Ser a nós se dirige, ao se
velar em todo desvelamento. Por isso, Heidegger pôde dizer na “Carta sobre o humanismo”:
A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os
pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a
manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a
conservam na linguagem (1967, p. 24).
Obra vem do latim opus, em que está presente o radical indo-europeu op-, que dá origem a
palavras associadas à germinação em abundância, como cornucópia, opulência e o operar. A obra de
arte é a dimensão que as questões operam em abundância. Ela é o acontecer do pensamento não
como mera representação, e, sim, como manifestação do pensamento poético-originário, que se abre
para o desvelar autovelante da realidade. O pensamento poético-originário toma a poiésis (a arte)
como instância originária de todo questionar, pois a ação de velamento da realidade não vem do
homem, mas da realidade em retração, muito embora a ele se dirija no apelo da linguagem.
Nas obras de arte, as questões se manifestam, velando a sua realidade, e, neste velamento –
vigor do silêncio da linguagem – doam, a quem com elas dialogam, a possibilidade de fazer a
travessia para o próprio, para sua maneira autêntica de ser, no exercício do diálogo como
autoescuta. Ou seja: aquele que dialoga com a arte se percebe dentro (diá-) do logos (da
linguagem). Fazendo a escuta das questões da obra, há de perceber que ele próprio é doação das
mesmas questões postas em obra na obra, por ação da poiésis. Neste sentido, toda existência é, a seu
modo, também um poema, em que se dá a verdade compreendida como o desvelar de questões.
Conclusão
Quando nos colocarmos à escuta do pensamento poético-originário articulado pelas obras,
dá-se a superação da ideia de que poéticas extrínsecas, que vêm desde fora, possam facultar um
diálogo efetivamente operante com a obra, a qual sempre repõe as coisas em questão, por ação
originária da retração de sua realidade. Cada obra de arte instaura a sua própria poética.
Se nossa época se acha tão presa à trama conceitual que impede as questões de se
manifestarem, fomentar o diálogo com as obras de arte é o caminho para propor uma educação da
literatura em que esta não seja o mero pretexto para a verdade das teorias e ideologias que sobre as
obras se aplicam, e, sim, elas próprias o acontecer da verdade. E isto é fundamental, pois, de todas
as artes, a literatura é a que privilegiadamente coloca o real em questão na palavra, caminho
privilegiado para o homem aprender a ver e, antes de tudo, a se ver. E isto só pode ser feito pelo
próprio intérprete, na travessia das questões. O professor, portanto, não é aquele que ensina
doutrinas, mas o que se abre para o não-saber de tudo o que já se sabe, para o velamento de tudo o
que se manifesta, isto é, para a verdade da obra. É por isso que Guimarães Rosa disse, no Grande
sertão: veredas, que “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.
Quando assim se pensa a manifestação da obra de arte, o intérprete não pode ter a
pretensão de estar certo, em contraposição ao errado, tampouco de ter o monopólio da verdade,
contraposta ao falso, pois a verdade é concebida como o próprio manifestar da obra. As diferentes
intepretações verdadeiras que uma obra permite decorrem sempre da verdade da obra, pois, como
na Metafísica diz Aristóteles, tó ón légetai pollakhõs (o Ser se diz de muitas maneiras). A obra se
deixa ver de diferentes maneiras, vez que o fundo de sua realidade está sempre se retirando no
velamento. As sempre diferentes interpretações que se podem fazer de uma mesma obra de arte não
decorrem, portanto, das diferenças entre os intérpretes, mas do poder que ela tem de pôr em obra a
verdade como desvelamento. Cada diferente intérprete há de se apropriar, no diálogo com as
questões da obra, de sua maneira própria de ser. Uma interpretação só não pode ser considerada se
não for a escuta das questões da obra. Pois, fora da escuta, o que resta é ou a verdade reduzida à
subjetividade do intéprete ou à suposta verdade da teoria prévia ao acontecer da obra.
Percebendo a verdade não como um juízo propositivo, mas como o velamento da
realidade, as verdades engessantes dos conceitos são postas em questão, e ao homem é dado entrar
na morada (éthos) em que desde sempre já está, que é a pertença à poiésis em seu modo próprio de
se realizar enquanto homem. É o que nos lembra o poeta alemão Friedrich Hölderlin, ao pronunciar:
“Poeticamente o homem habita esta Terra” (Dichterisch wohnet der Mensch auf dieser Erde).
As obras de arte existem antes da instauração da tradição metafísica, e seu correlativo em
arte, a tradição mimética. Elas percorrem o desenrolar histórico dos povos antes do surgimento da
filosofia. Elas integram o que poderíamos chamar de paidéia poética, que confere às obras de arte o
poder de manifestar a realidade. Abertos à paidéia poética – a formação do homem proposta pelas
obras de arte – havemos de contornar os entraves da paidéia filosófica que, como tradição,
submeteu o fenômeno artístico ao estabelecimento de fundamentos causais que impedem as obras
de serem a abertura para o nada criativo, para o Ser em retração. Pois é justamente a partir do que
ainda não é que se pode vir a ser, é a partir do que jamais se dimensiona que se desdobram todas as
dimensões.
Em um diálogo com a arte que a reconheça não como o falso, mas como o acontecer da
verdade como desvelamento das questões, oferta-se a possibilidade de o intérprete se perceber como
o verdadeiro poema a ser percorrido, sem a pretensão de esgotar o silêncio da obra em teorias que a
impedem de se manifestar. Na travessia pelo que jamais se reduz a um ente, pelo não-ser de tudo o
que é, e pondo-se à escuta das questões que estão na obra e das quais ele mesmo é doação, abre-se o
fundo sem fundo da realidade, abismo que não convida à queda, mas à maravilha do vôo. Não será
a isso que se referiu Lao Tsé, há mais de 2.500 anos, no Tao Teh King? Diz o pensador chinês:
Ser e não ser emanam da mesma fonte,
Ainda que tenham nomes diferentes.
Ambos são um mistério.
E nesse mistério está a porta para a toda a maravilha.
(2003, p. 11)
Referências
ARISTÓTELES. Física.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010.
_________________. Sobre a essência da verdade: a tese de Kant sobre o ser. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1970.
__________________. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1967.
LAO TSÉ. Tao Teh King. São Paulo: Editora Isis, 2003.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
___________________. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
SANTO AGOSTINHO. Confissões.