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EMÍLIO PELUSO NEDER MEYER

MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA


Organização

Justiça de Transição
nos 25 anos da Constituição
de 1988

2ª edição ampliada

Belo Horizonte
2014
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NOS 25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Emílio Peluso Neder Meyer
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
Organização

1ª Edição – 2014 – Initia Via


2ª Edição [ampliada] – 2014 – Initia Via

Copyright © desta edição [2014] Initia Via Editora Ltda.


Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104 - Bairro Lourdes
Belo Horizonte, MG, Brasil, 30140-061 – www.initiavia.com

Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro


Editora Adjunta: Renata Esteves Furbino
Editora Júnior: Lídia M. de Abreu Generoso
Revisão: Ana Carolina Borges,
Lívia C. Lopes Chaves, Silvia Cardoso Cesar
Arte da capa: Eduardo Furbino
Imagem da capa: Assembléia Nacional Constituinte,
2 de Outubro de 1988, by Agência Brasil (cc)

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste


livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou processo, sem a
prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais é punível como crime e
passível de indenizações diversas.

Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 / Emílio Peluso


C749 Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (organização). 2ed.
ampliada – Belo Horizonte : Initia Via, 2014.

919 p.

Outros autores: Ana Paula Ferreira de Brito, Maria Letícia Mazzucchi


Ferreira, Isabela Camila da Cunha, Ramon de Sousa Nunes, Aécio Filipe
Coelho Fraga Oliveira, Maria Gabriela Freitas Cruz, Mariana Rezende
Oliveira, Natália Araújo, Deisy Ventura, Ricardo Silveira Castro, Eduardo
Fernandes de Araújo, Eduardo Soares Bonfim, Igor Leon Benício Almeida,
Wyllck Jadyson Santos Paulo da Silva, Tayara Talita Lemos, Maria Clara
Oliveira Santos, Roberta Cunha de Oliveira, José Carlos Moreira da Silva
Filho, Naomi Roht-Arriaza, Thomaz Francisco Silveira de Araujo Santos,
Diego Oliveira Murça, Janaína Santos Curi, Lucas Costa de Oliveira,
Marcelo D. Torelly, Julia A. Cerdeiro, Maria Carolina Bissoto, Marlon
Alberto Weichert, Ranieri Lima Resende, Flávia Piovesan, Giselle Fernandes
Corrêa da Cruz, Henrique Ratton Monteiro de Andrade, Jessica Holl, Maria
Celina Monteiro Gordilho, Natália de Souza Lisbôa, Thayara Castelo
Branco, Cristiane dos Santos Silveira, Daniel Vianna Maricato, Débora
Karina Gonçalves Vaserino, Ana Luisa Zago Moraes, Diego Oliveira de
Souza, Diorge Alceno Konrad, Vanessa Dorneles Schinke, Thelma
Yanagisawa Shimomura.

ISBN 978-85-64912-50-2 [E-book]

1. Direito constitucional. 2. Justiça de Transição. I. Meyer, Emílio Peluso


Neder. II. Cattoni de Oliveira, Marcelo. III. Título.

CDU: 340(061.3)
Sumário

Nota à 2a edição 8  

Introdução

Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988 9  


Emílio Peluso Neder Meyer
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Parte I - Direito à memória e à verdade


e identidade constitucional

Capítulo I - As reivindicações por memória e verdade e a


Comissão Nacional da Verdade: construindo a memória
social sobre o período militar no Brasil 37  
Ana Paula Ferreira de Brito
Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

Capítulo II - Memória com verdade: memória coletiva e


formação da identidade nacional 65  
Isabela Camila da Cunha

Capítulo III - Justiça de Transição no Brasil: um estudo


sobre a transição democrática brasileira ante o direito
internacional dos direitos humanos 88  
Ramon de Sousa Nunes

Capítulo IV - O arcabouço jurídico da Justiça de Transição:


comparações teórico-práticas entre Brasil e Argentina 121  
Aécio Filipe Coelho Fraga Oliveira
Maria Gabriela Freitas Cruz
Mariana Rezende Oliveira
Capítulo V - A lenta democratização do Itamaraty: o caso do
acesso à informação sobre a reforma do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos 159
Natália Araújo
Deisy Ventura

Capítulo VI - A dimensão da "justiça" na Justiça de


Transição: uma aproximação com o caso brasileiro 190  
Ricardo Silveira Castro

Capítulo VII - Justiça Transicional e a repressão no


campesinato nordestino brasileiro 231  
Eduardo Fernandes de Araújo
Eduardo Soares Bonfim
Igor Leon Benício Almeida
Wyllck Jadyson Santos Paulo da Silva

Capítulo VIII - Jurisdição constitucional  e estado de


exceção pós-1988: a Justiça de Transição como
descontinuidade da exceção 271  
Tayara Talita Lemos
Maria Clara Oliveira Santos

Parte II - Políticas de reparação

Capítulo IX - Os testemunhos das vítimas e o diálogo


transgeracional: o lugar do testemunho na transição pós-
ditadura civil-militar brasileira 301  
Roberta Cunha de Oliveira
José Carlos Moreira da Silva Filho

Capítulo X - Reparações e direitos econômicos, sociais e


culturais 350  
Naomi Roht-Arriaza

Capítulo XI - Um modelo para políticas de reparações: lições


do Fundo Fiduciário em Benefício: das Vítimas do Tribunal
Penal Internacional 413
Thomaz Francisco Silveira de Araujo Santos
Capítulo XII - A reparação como elemento constitutivo da
Justiça Transicional: reparações simbólicas e econômicas
em um contexto de Justiça de Transição pós-ditadura de
1964 no Brasil 447  
Cristiane dos Santos Silveira
Daniel Vianna Maricato
Débora Karina Gonçalves Vaserino

Capítulo XIII - O caso Peter Ho Peng na Comissão de


Anistia: do banimento pela ditadura civil-militar brasileira
à tentativa de reparação pela democracia 470
Ana Luisa Zago de Moraes

Parte III - Constitucionalização e responsabilização


criminal e civil na América Latina

Capítulo XIV - Responsabilização civil-administrativa dos


agentes públicos na ditadura militar 498  
Diego Oliveira Murça
Janaína Santos Curi
Lucas Costa de Oliveira

Capítulo XV - A formação da norma global de


responsabilidade individual: mobilização política
transnacional, desenvolvimento principiológico e
estruturação em regras internacionais e domésticas 526
Marcelo D. Torelly

Capítulo XVI - El rol de la Constitución en la transición


democrática argentina: los argumentos que posibilitaron el
proceso de juzgamiento 569
Julia A. Cerdeiro

Capítulo XVII - A cumplicidade em violações aos direitos


humanos durante a ditadura civil-militar brasileira 588  
Maria Carolina Bissoto

Capítulo XVIII - Proteção penal contra violações aos


direitos humanos 609  
Marlon Alberto Weichert
Capítulo XIX - Antinomia radical entre as leis de autoanistia
e a obrigação de punir os perpetradores de violações aos
direitos humanos: fundamentos e análise de casos 652
Ranieri Lima Resende

Capítulo XX - Responsabilização e reparação pós-ditadura


civil-militar: a morte do operário Manoel Fiel Filho e a
defesa da memória das violações de direitos humanos 688
Diego Oliveira de Souza
Diorge Alceno Konrad

Capítulo XXI - O discurso tectônico do judiciário: subversão,


política e legalidade a partir dos casos mãos amarradas e
sequestro dos uruguaios 724
Vanessa Dorneles Schinke

Parte IV - Reformas institucionais e consolidação do


Estado Democrático de Direito

Capítulo XXII - Justiça de transição, reformas institucionais


e consolidação do Estado Democrático de Direito: o caso
brasileiro 747
Flávia Piovesan

Capítulo XXIII - Ampliando as lentes: experiências de


Justiça Restaurativa em Minas Gerais 775
Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

Capítulo XXIV - Os desafios da Justiça de Transição ante a


consolidação do Estado Democrático De Direito: as
dificuldades enfrentadas pelo processo transicional
brasileiro expressas nas reformas institucionais para a
implementação da democracia 814
Henrique Ratton Monteiro de Andrade
Jessica Holl

Capítulo XXV - A justiça diante das armas e os mecanismos


eleitorais contramajoritários: a experiência do regime de
exceção brasileiro 846
Maria Celina Monteiro Gordilho
Capítulo XXVI - Os desafios da Justiça de Transição no
Brasil: o Estado, a legitimidade de suas ações e os reflexos
da legalidade autoritária no Poder Judiciário 868  
Natália de Souza Lisbôa

Capítulo XXVII - Simbolismo democrático vs. realidade


autoritária: notas sobre a política criminal brasileira 892  
Thayara Castelo Branco

Capítulo XXVIII - Símbolos de violência no “trote”


universitário: corrente e saudação nazista 901  
Thelma Yanagisawa Shimomura
Nota à 2a edição

A segunda edição da obra “Justiça de transição


nos 25 anos da Constituição de 1988” conta com signi-
ficativas contribuições, somadas aos já valiosos artigos
da primeira edição.
Na Parte II, “Políticas de reparação”, Cristiane
dos Santos Silveira, Daniel Vianna Maricato e Débora
Karina Gonçalves Vaserino participam com o artigo “A
reparação como elemento constitutivo da justiça transi-
cional”. Além disto, Ana Luiza Zago de Moraes apre-
senta o artigo “O caso Peter Ho Peng na Comissão de
Anistia: do banimento pela ditadura civil-militar brasi-
leira à tentativa de reparação pela democracia”. Na
Parte III, “Constitucionalização e responsabilização
criminal e civil na América Latina”, temos as contribui-
ções de Diego de Oliveira Souza e Diorge Alceno Kon-
rad, com o artigo “Responsabilização e reparação pós-
ditadura civil-militar: a morte do operário Manoel Fiel
Filho e a defesa da memória das violações dos direitos
humanos”, bem como de Vanessa Dorneles Schinke,
com o artigo “O discurso tectônico do judiciário: sub-
versão, política e legalidade a partir dos casos mãos
amarradas e sequestro dos uruguaios”. Por fim, na Parte
IV, “Reformas institucionais e consolidação do Estado
Democrático de Direito”, temos a contribuição de
Thelma Yanagisawa Shimomura, com o artigo “Símbo-
los da violência em trote universitário: corrente e sau-
dação nazista”.

Emilio Peluso Neder Meyer


Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
Organizadores

viii  
Justiça de Transição nos 25 anos
da Constituição de 1988

Emílio  Peluso  Neder  Meyer1  


Marcelo  Andrade  Cattoni  de  Oliveira2  

I – O Congresso Internacional Justiça de Transição


nos 25 anos da Constituição de 1988

As universidades sempre foram consideradas


um local de vanguarda para a luta política e a efetiva-
ção de ideais gestados na academia. Tornar parte da
práxis política o que se desenvolve cientificamente é
uma das incumbências dessas instituições de índole
constitucional. Para além de uma oposição cega entre

1 Professor Adjunto I de Direito Constitucional, Teoria da Constituição

e Teoria do Estado dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em


Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Pesquisador Visitante no
Brazil Institute do King’s College de Londres. Membro do IDEJUST –
Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de
Transição. Gostaria de agradecer o apoio da discente Raissa Lott
Caldeira da Cunha, pesquisadora do Programa Jovens Talentos para a
Ciência, na coleta de dados e confecção do presente artigo.
2 Bolsista de Produtividade do CNPq (1D). Mestre e Doutor em Direito

(UFMG). Estágio Pós-Doutoral com Bolsa da CAPES em Teoria e


Filosofia do Direito (Università degli Studi di Roma Tre). Professor
Associado de Teoria da Constituição e Direito Constitucional dos
Cursos de Graduação em Ciências do Estado e Direito e de Pós-
Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Membro do
IDEJUST - Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e
Justiça de Transição.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
10 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

teoria e práxis, o que se dá, muito mais, é que as ativi-


dades de ensino, pesquisa e extensão são, por si só,
fundamentais para constituir práticas dentro e fora da
instituição que fatalmente repercutirão na efetividade
de um projeto constituinte e constitucional. Tanto é
assim que, como mostram muito bem os trabalhos de
Rodrigo Patto de Sá Motta, as universidades foram
objeto de preocupação da ditadura civil-militar para
muito além do combate às manifestações, principal-
mente a partir das Assessorias Especiais de Segurança
e Informações (AESI)3.
Com a transição democrática levada à frente
com a promulgação da Constituição de 1988, esse papel
se destacou sobremaneira. Desse modo, o presente ar-
tigo pretende resgatar um importante momento de
reafirmação da postura democrática que deve ser de-
fendida institucionalmente pelas universidades e, ob-
viamente, por instituições de ensino superior do Direi-
to: a realização do Congresso Internacional Justiça de
Transição nos 25 anos da Constituição de 1988 na Fa-
culdade de Direito da UFMG.
O Congresso Internacional foi realizado entre os
dias 23 e 25 de maio de 2013, contando com apoio da
FAPEMIG, da CAPES, do CNPQ, da Comissão de Di-
reitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil –

3 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os olhos do regime militar brasileiro nos


Campi: as Assessorias de Informações e Segurança nas universidades.
Topoi, v. 9, n. 16. jan.-jun. 2008, p. 35: “No âmbito das Universidades,
as AESI foram criadas a partir de janeiro de 1971, após o Ministério da
Educação e Cultura ter aprovado seu Plano Setorial de Informações.
Poucos dias após a aprovação do Plano a DSI do MEC mandou ofício
circular às Universidades acompanhado da documentação relativa à
criação das AESI, em que recomendava nomeação do chefe
responsável em prazo de 10 dias. No caso da UnB, a Assessoria de
Segurança (inicialmente Assessoria de Assuntos Especiais, anos depois
renomeada ASI) foi criada a 19/2/1971, por meio de portaria do
Reitor. Na Universidade Federal da Paraíba a criação da AESI se deu
em março de 1971, enquanto na Universidade de São Paulo (USP) a
AESI local foi formada apenas em outubro de 1972”.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 11

Seção Minas Gerais, da Comissão de Anistia do Minis-


tério da Justiça e do Memorial da Anistia. A realização
coube ao Programa de Pós-Graduação em Direito da
Faculdade de Direito da UFMG, à Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça, ao IDEJUST – Grupo de Estu-
dos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de
Transição, ao Centro Acadêmico de Ciências do Estado
– CACE – e ao Centro Acadêmico Afonso Pena –
CAAP.
Evento este que envolveu a participação de 500
ouvintes, 16 painelistas brasileiros e estrangeiros e a
apresentação de trabalhos por 41 autores, entre eles,
alunos de graduação e pós-graduação em Direito e em
outras áreas, como Ciência Política, professores, ativis-
tas de direitos humanos, juízes, membros do Ministério
Público e outros atores sociais. As atividades desen-
volvidas abarcaram a discussão por parte de importan-
tes pesquisadores de temas fundamentais para a justiça
de transição; atividades culturais, como o lançamento
de livros e a exibição de filmes; apresentação de traba-
lhos em virtude da VII Reunião do IDEJUST; assim
como a realização de uma sessão da Comissão de Anis-
tia do Ministério da Justiça por meio da Caravana da
Anistia. Essa breve introdução recupera importantes
momentos desse evento, apresentando as discussões
que integram a presente obra de acordo com as temáti-
cas desenvolvidas no Congresso Internacional e nas
apresentações de trabalhos.

II – Direito à memória e à verdade e identidade


constitucional

A temática do “Direito à memória e à verdade e


identidade constitucional” contou com a representação
da Comissão Nacional da Verdade pela pesquisadora
12 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

Glenda Mezarobba4. Cumprindo a função de Consulto-


ra em Pesquisa, Geração e Sistematização de Informa-
ções e Pesquisadora Responsável pelo GT Ditadura e
Gênero da Comissão Nacional da Verdade, sua partici-
pação foi fundamental para permitir o conhecimento
do estágio atual dos trabalhos da comissão. Mezarobba
abordou o dever da verdade no cenário nacional atual,
como também na legislação internacional, além da fun-
ção da Comissão Nacional da Verdade. Segundo ela, o
dever de revelar a verdade após períodos em que ocor-
reram violações em massa aos direitos humanos é
abordado em diversos documentos da normativa in-
ternacional, tais como tratados e declarações aos quais
o Brasil se vincula. Dessa forma, é dever e obrigação do
Estado recordar o passado, de forma a evitar a aparição
de teses revisionistas ou de negação dos fatos ocorri-
dos. A sociedade, por outro lado, possui o direito inali-
enável de conhecer a verdade, assim como os motivos e
as circunstâncias da ocorrência dos crimes que viola-
ram os direitos fundamentais do homem.
Segunda ela, uma análise do processo de justiça
de transição no Brasil mostra que o mesmo vem sendo
pautado por uma lógica do esquecimento, a começar
pela Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979), que foi pensada
com o propósito de pacificação e esquecimento, haven-
do a inclusão dos agentes do Estado que violaram di-
reitos fundamentais como anistiados. As leis posterio-
res, Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei nº
9.140/1995) e a lei que reconhece a perseguição política
e estabelece o pagamento de indenizações (Lei nº

4 Cf. MEZAROBBA, Glenda. Between reparations, half-truths and

immunity: the difficult break with the legacy of the dictatorship in


Brazil. Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos (Impresso), v.
1, p. 7-25, 2011; MEZAROBBA, Glenda . Um acerto de contas com o
futuro: a anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro. São
Paulo: Humanitas/Fapesp, 2006; e, MEZAROBBA, Glenda. Políticas
de la memoria y memorias de la política el caso español en perspectiva
comparada. Perseu: História, Memória e Política, v. 5, p. 244-248, 2010.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 13

10.559/2002), também não tratam expressamente da


questão da verdade. Apesar disso, essas leis e as comis-
sões por elas formadas tiveram efeitos não previstos no
texto normativo e acabaram por esclarecer fatos, crimes
e práticas arbitrárias que foram cometidas5.
A constituição do processo da verdade no Brasil
vem ocorrendo por meio de iniciativas que buscam o
cumprimento do dever à verdade como o “Projeto Bra-
sil Nunca Mais”6, a releitura dos arquivos do DOPS, o
lançamento do livro “Direito à memoria e à verdade” e
as Caravanas da Anistia. A Comissão Nacional da Ver-
dade (Lei nº 12.528/2011) surge, também, procurando
cumprir o direito à verdade e à memória, sendo um
órgão temporário de função investigativa não judicial.
Ainda de acordo com Mezarobba, o principal objetivo
desse órgão é a construção de um presente e futuro
mais democrático e pacífico, pois a impunidade consti-
tui um obstáculo ao desenvolvimento da democracia.
De se esperar, pois, que os trabalhos da CNV contribu-
am para confirmar a legitimidade da democracia brasi-
leira e reafirmar a relação intrínseca entre democracia e
respeito aos direitos humanos7.
Na sequência, Menelick de Carvalho Netto8
abordou o tema da identidade constitucional e a sua

5 Em relação ao papel da Comissão de Mortos e Desaparecidos


Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, cf. BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à
memória e à verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos,
2007.
6 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Projeto Brasil nunca mais. São

Paulo: 1985. O projeto está disponível em:


<http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/>.
7 Para uma análise comparada das comissões de verdade ao redor do

mundo, cf. HAYNER, Priscilla B. Unspeakble truths: facing the


challenges of truth commissions. Routledge, 2002.
8 Algumas importantes obras do Professor Menelick de Carvalho

Netto, todas permeadas por uma compreensão procedimentalmente


adequada do paradigma do Estado Democrático de Direito instaurado
14 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

relação com o direito à verdade e à memória. A identi-


dade constitucional diz respeito a quem nós somos
enquanto uma comunidade constitucional formada por
pessoas que se reconhecem como livres e iguais. A
construção da identidade constitucional tem relação
com o passado e com a forma como o vemos, logo, re-
mete diretamente à questão da memória. Uma identi-
dade constitucional sadia tem como pré-requisito o
acerto de contas com o passado, sendo preciso revê-lo e
reavaliá-lo com critérios constitucionais de forma a
transformá-lo em um passado a não mais se recorrer.
“Será que em termos de uma identidade consti-
tucional podemos decretar nosso próprio esquecimen-
to?”; “um decreto de esquecimento feito pela ditadura
sobre ela mesma é democrático?” – essas são algumas
das perguntas que aquela relação desperta e que de-
vem ser respondidas por meio da relação entre demo-
cracia e respeito aos direitos fundamentais. Segundo
Carvalho Netto, a democracia só é efetivamente demo-
crática se respeitar os direitos fundamentais – inclui-se
aí o direito à memória. Logo, a ditadura não pode ser

com o pós-1988, ex-professor da Faculdade de Direito da UFMG e,


atualmente, Professor Associado da UnB, são: CARVALHO NETTO,
Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del
Rey, 1992; CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. 20
anos da Constituição: o desafio da assunção da perspectiva interna da
cidadania na tarefa de concretização de direitos. CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade. OLIVEIRA, Felipe Daniel Amorim
(org.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao
constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey,
2009, p. 95-110; CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica
constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (org.). Jurisdição e
hermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 25-43. PAIXÃO, Cristiano. NETTO,
Menelick de Carvalho. Entre permanência e mudança: reflexões sobre
o conceito de constituição. In: MOLINARO, Carlos Alberto;
MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto.
(Org.). Constituição, jurisdição e processo – estudos em homenagem aos 55
anos da Revista Jurídica.1ed.Sapucaia do Sul - RS: Notadez, 2007, p. 97-
109.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 15

entendida como um passado constitucional ou demo-


crático, uma vez que não havia participação política, as
normas eram elaboradas de forma a excluir toda e
qualquer participação da sociedade e o desrespeito aos
direitos fundamentais era uma prática constante. A
própria Lei da Anistia foi elaborada sem ampla partici-
pação, resultando em uma autoanistia, que não é con-
siderada uma real anistia no âmbito internacional.
A vivência inconstitucional de uma ditadura e
de suas práticas, assim como as violências cometidas
por parte do Estado contra toda a sociedade devem ser
relembradas, recordadas e jamais esquecidas, pois fa-
zem parte da identidade constitucional brasileira. É
preciso ressaltar que a identidade não deve ser pensa-
da de forma estática, mas como algo vivo, em constante
desenvolvimento.
Ruti Teitel9 abordou a importância das Cortes
estabelecidas para julgar crimes de violação em massa
aos direitos humanos para o estabelecimento da justiça,
verdade e memória. Ela afirmou estar ciente da impor-
tância do atual momento que o Brasil vive e como ele
repercute na efetivação de uma justiça de transição
pautada na memória e na verdade. A justiça de transi-
ção ocorre de forma de diferente de país para país, ela
deve atender as necessidades que surgem do contexto e
história únicos de cada país. É preciso entender que são
exatamente essas singularidades – tradições, relações

9 Professora da Cátedra Ernst C. Stiefel de Direito Comparado da New


York Law School; Codiretora do Instituto para o Direito, Justiça e
Políticas Globais; Professora Visitante da London School of Economics.
O papel desempenhado por Teitel para a construção de uma teoria da
justiça de transição é inestimável. À guisa de introdução ao seu
pensamento: TEITEL, Ruti G. Transitional justice. Nova Iorque: Oxford
University Press: 2002; TEITEL, Ruti G. Genealogia da justiça de
transição. In RÉATEGUI, Félix (coord.). Justiça de transição: manual
para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da
Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição,
2011, p. 135-170; TEITEL, Ruti G. Humanity’s Law. Nova Iorque: Oxford
University Press, 2011.
16 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

políticas, institucionais e constitucionais – do processo


de justiça de transição brasileiro que levaram ao estabe-
lecimento de medidas de reparação e comissões pauta-
das na memória e na verdade anos após o aconteci-
mento dos crimes. De modo comparativo, é preciso
lembrar que, na Argentina, os julgamentos acontece-
ram em até 30 anos após o fim dos períodos de viola-
ção aos direitos humanos.
Segundo ela, a nossa justiça de transição pode
ser comparada com a da África do Sul, pautada na re-
conciliação e na pacificação. Na África do Sul, a transi-
ção foi negociada, porém não resultou em uma anistia
geral que levasse ao esquecimento do passado: ela bus-
cou a restauração social da sociedade, deixando a pu-
nição em segundo plano, pois seu maior objetivo era o
de promover a verdade. Teitel abordou a importância
do papel desempenhado por tribunais internacionais
de direitos humanos em países que não estão prontos
como um todo para lidar com a justiça de transição,
mas em que existe o clamor da sociedade para que a
transição pautada na verdade e justiça ocorra. Para
finalizar Ruti Teitel tratou das cortes estabelecidas para
julgar crimes de violação em massa aos direitos huma-
nos, sua estrutura, funcionamento, funções e objetivos.
Em seguida, como parte do Congresso Interna-
cional, realizou-se a atividade cultural de lançamento
das seguintes obras: “Justiça de transição: contornos do
conceito”, de Renan Honório Quinalha10; “Constitucio-
nalismo e Teoria do Estado: ensaios sobre história e teoria
política”, de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira,
Adamo Dias Alves e David Francisco Lopes Gomes11;

10 QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do


conceito. São Paulo: Outras Expressões, Dobra Editorial, 2012.
11 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. ALVES, Adamo Dias.

GOMES, David Francisco Lopes. Constitucionalismo e Teoria do Estado:


ensaios sobre história e teoria política. Belo Horizonte: Arraes Editores,
2013.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 17

“Justiça de transição e Estado Constitucional de Direito:


perspectiva teórico-comparativa e análise do caso bra-
sileiro”, de Marcelo D. Torelly12; “Os direitos da transição
e a democracia no Brasil”, de Paulo Abrão e Tarso Gen-
ro13; “Ditadura e responsabilização: elementos para uma
justiça de transição no Brasil”, de Emilio Peluso Neder
Meyer14. Com relação a esta última obra, é preciso des-
tacar que corresponde ao texto da tese de Doutorado
do autor, cujo trabalho de orientação coube ao Profes-
sor Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, e
recebeu o Prêmio CAPES de Tese em Direito 201315, o
Prêmio UFMG de Tese em Direito e o Grande Prêmio
UFMG de Teses na área de Ciências Humanas, Ciên-
cias Sociais e Aplicadas e Linguística, Letras e Artes16.
Foi possível verificar contribuições de diversos
pesquisadores sobre a justiça de transição, cujos traba-
lhos foram aprovados por comitê científico do
IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Justiça de Transi-
ção e Internacionalização do Direito. Vários desses tra-
balhos integram essa obra. Na tarde do dia 23 de maio

12 TORELLY, Marcelo D. Justiça de transição e Estado Constitucional de


Direito: perspectiva teórico-comparativa e análise do caso brasileiro.
Belo Horizonte: Fórum, 2012.
13 ABRÃO, Paulo. GENRO, Tarso. Os direitos da transição e a democracia

no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012.


14 MEYER, Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização: elementos

para uma justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes


Editores, 2012.
15 Cf. a notícia disponível em

http://www.capes.gov.br/premiocapesdetese/edicoes-
anteriores/6590-teses-premiadas-em-2013>. Acesso em 5 mar. 2014. A
premiação repercutiu nacionalmente, como se pode ver pela entrevista
concedida pelo autor ao jornal Folha de S. Paulo:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/12/1391159-lei-da-
anistia-deve-ser-reanalisada-pelo-stf-diz-especialista.shtml>. Acesso
em 5 mar. 2014.
16 Cf. a notícia disponível em

< https://www.ufmg.br/online/arquivos/030620.shtml>. Acesso em


5 mar. 2014.
18 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

de 2013, a partir das 14h, foram apresentados trabalhos


ligados à temática “Direito à memória e à verdade e
identidade constitucional”. Presidiram as atividades os
Profs. Drs. Aziz Tuffi Saliba e Fabrício Polido. A partir
das 16h, foram apresentados os trabalhos relativos à
temática das “Políticas de reparação”. Os Profs. Marce-
lo Torelly e André Morais coordenaram a apresentação
de trabalhos. Todas as apresentações foram seguidas
de amplos debates.
No que respeita à temática “Direito à memória e
à verdade e identidade constitucional” (Parte I), a pre-
sente obra conta com as seguintes contribuições: “Capí-
tulo I – As reivindicações por memória e verdade e a
Comissão Nacional da Verdade: construindo a memó-
ria social sobre o período militar no Brasil” de Ana
Paula Ferreira de Brito e Letícia Mazzuchi Ferreira;
“Capítulo II – Memória com verdade: memória coletiva
e formação da identidade nacional” de Isabela Camila
da Cunha; “Capítulo III – Justiça de transição no Brasil:
um estudo sobre a transição democrática brasileira ante
o Direito Internacional dos Direitos Humanos”, de
Ramon de Sousa Nunes; “Capítulo IV – O arcabouço
jurídico da justiça de transição: comparações teórico-
práticas entre Brasil e Argentina” de Aécio Filipe Coe-
lho Fraga Oliveira, Maria Gabriela Freitas Cruz e Mari-
ana Rezende Oliveira; “Capítulo V – A lenta democra-
tização do Itamaraty: o caso do acesso à informação
sobre a reforma do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos”, de Natália Araújo e Deisy Ventura; “Capí-
tulo VI – A dimensão da “justiça” na Justiça de Transi-
ção: uma aproximação com o caso brasileiro”, de Ri-
cardo Silveira Castro; “Capítulo VII – Justiça de transi-
ção e a repressão no campesinato nordestino brasilei-
ro”, de Eduardo Fernandes de Araújo, Eduardo Soares
Bonfim, Igor Leon Benício Almeida e Wyllck Jadyson
Santos Paulo da Silva; e, “Capítulo VIII – Jurisdição
constitucional e estado de exceção pós-1988: a justiça
de transição como descontinuidade da exceção”, de
Tayara Talita Lemos e Maria Clara Oliveira Santos
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 19

III – Políticas de reparação

A primeira contribuição sobre a temática das


“Políticas de reparação” proveio da Professora Naomi
Roht-Arriaza17. Ela abordou os tipos de políticas de
reparação com as quais teve contato na América Latina,
assim como alguns dos problemas que surgem com as
reparações em casos de violações em massa dos direi-
tos humanos. Segundo ela, existem duas visões do pro-
cesso de reparações: uma decorre da tradicional ideia
de que a reparação tem a função de reestabelecer a vi-
tima à condição em que ela se encontraria se os crimes
não houvessem ocorrido. A outra provém da ideia de
que as reparações são uma forma do Estado mostrar às
vítimas que reconhece os crimes e abusos cometidos,
restaurando a dignidade e os direitos dessas pessoas. O
primeiro caso se torna muito difícil de ser posto em
prática, pois exige um volumoso orçamento. Dessa
forma, deve-se pensar nas reparações do segundo caso,
que se dividem em individuais ou coletivas.
As reparações individuais são basicamente
compostas por uma compensação monetária, mas po-
dem ser também a restituição de um emprego, de uma
terra, de uma propriedade, dos direitos civis e da pró-
pria reputação da vítima. Elas podem ser simbólicas,
como um pedido de desculpas oficial por parte do Es-
tado ou podem vir na forma de acesso à saúde, à edu-
cação e aos serviços sociais. As reparações coletivas
visam o benefício de uma comunidade inteira, uma vez
que toda a comunidade sofreu com os períodos de cri-

17 Professora da Universidade da Califórnia, na Hastings College of


Law, Roth-Arriaza é autora de obras fundamentais da justiça de
transição, como por exemplo: ROHT-ARRIAZA, Naomi. The Pinochet
effect: transnational justice in the age of human rights. Filadélfia: Uni-
versity of Pennsylvania Press, 2005; ROHT-ARRIAZA, Naomi.
MARIEZCURRENA, Javier (orgs). Cambridge: Cambridge University
Press, 2006.
20 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

mes e abusos. Essas reparações ocorrem com a constru-


ção de escolas, estradas, hospitais, enfim, todo tipo de
ação que possa ser usufruída por todos da comunida-
de. O problema desse tipo de reparação decorre da
“dupla consideração”, uma vez que construir escolas e
outras instituições do tipo já é uma obrigação do Esta-
do, então se torna complicado considerá-las reparações
por crimes cometidos pelo próprio Estado contra a so-
ciedade. Para finalizar, Roht-Arriaza relatou o proble-
ma que surge da miscelânea entre dano e necessidade
na questão das reparações, uma vez que a reparação
deve ser feita de acordo com dano infringido pelos
crimes, porém se o orçamento é limitado, a tendência é
que se reparem preferencialmente as pessoas com mai-
or necessidade. O problema que surge é que, dessa
forma, a reparação passaria a ser uma questão social e
não atenderia ao seu real objetivo.
Nilmário Miranda18 tratou da Lei da Anistia e da
necessidade de se discutir determinados temas à luz do
regime democrático. De acordo com ele, a luta pela
anistia foi uma luta popular, porém a Lei nº 6.683 de
1979 foi um projeto excludente, elaborado por um
Congresso Nacional formado após o Pacote de Abril,
ou seja, era um órgão parlamentar composto majorita-
riamente por políticos da ARENA, partido político que
apoiava a ditadura militar. Dessa forma, não se pode
dizer que a anistia foi um acordo político para sair da
ditadura, uma vez que foi uma imposição não demo-
crática. Nem por isso, a lei deixa de ser importante,
pois ela possibilitou a volta de exilados e a liberdade
para os presos. A crítica a ser feita é a de que com a Lei
de Anistia ficaram perdoados os “crimes conexos” e
isso significou o perdão para os agentes dos crimes de

18Deputado Federal. Jornalista e Mestre em Ciências Sociais pela


UFMG. Ex-Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República. Membro da Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça. Presidente da Fundação Perseu Abramo.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 21

violação aos direitos humanos, conduzindo ao esque-


cimento e à impunidade.
O art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição de 1988 estabelece que a
anistia se enderece a todos que foram atingidos por
atos de exceção, institucionais ou transitórios, ou seja, a
anistia é só para quem foi perseguido por atos de exce-
ção. A decisão da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no Caso Gomes Lund19 retoma esse assunto,
ao afirmar que não existe anistia para os que pratica-
ram tortura, perseguições, desaparecimentos forçados,
prisões arbitrárias e assassinatos.
A Constituição de 1988 é a mais democrática da
história do Brasil, porém ela deixou grandes temas a
serem enfrentados pela nossa sociedade, temas que
constituem problemas e mazelas do presente. As dívi-
das da nossa democracia só podem ser corrigidas pela
ação de toda a sociedade, pela voz do povo. Em con-
clusão, Nilmário Miranda enfatizou que é o estudo do
tema de justiça de transição que nos dá o respaldo éti-
co, jurídico e histórico para almejar que a Constituição
seja cumprida, assim como se reveja a Lei da Anistia de
1979, que até o presente momento garante a impunida-
de e o esquecimento.
Coube ao Professor Paulo Abrão20 tratar do tra-
balho das comissões de reparação estabelecidas no Bra-

19 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso


Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença
de 24 de novembro de 2010. Disponível em <www.corteidh.or.cr>. Acesso
em 1 jan. 2011.
20 Secretário Nacional de Justiça. Presidente da Comissão de Anistia do

Ministério da Justiça. Doutor em Direito pela PUC-Rio. Professor da


PUC/RS e da Universidade de Pablo Olavide. Cf., apenas a título de
exemplo na extensa bibliografia do autor sobre a temática: ABRÃO,
Paulo. TORELLY, Marcelo. Mutações do conceito de Anistia na Justiça
de Transição Brasileira: a terceira fase da luta pela anistia. In SOARES,
Inês Virginia Prado. PIOVESAN, Flávia (org.). Direitos Humanos atual.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 112-127; SILVA FILHO, José Carlos
Moreira da. ABRÃO, Paulo. TORELLY, Marcelo (org.). Justiça de
22 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

sil, da agenda da transição brasileira e das críticas feitas


a ela. Segundo ele, existem hoje no Brasil mais de 30
comissões de verdade em funcionamento concomitante
e que lidam com o legado de violências do passado, as
quais produzem memória, verdade e reparação. Como
são comissões administrativas, não possuem caráter
jurisdicional para produzir justiça, o que torna necessá-
rio refletir sobre a existência de dimensões do alcance
da verdade histórica que só são atingidas com o efetivo
envolvimento do sistema de justiça.
Esse é um importante momento para enfren-
tarmos todos os resquícios da cultura autoritária ainda
presente na sociedade brasileira, pois as comissões de
reparação criaram um ambiente de enfrentamento da
negação da história e romperam com o medo de discu-
tir o passado. Verdade, justiça, memória e reparação
são elementos que se completam na justiça de transi-
ção, já que uma comissão no momento em que reco-
nhece as responsabilidades do Estado em torno de vio-
lações aos direitos humanos está reconhecendo uma
verdade histórica, que estava escondida. Logo, naquele
instante, pode haver o enfrentamento de um ambiente
de sigilo e de esquecimento e, consequentemente, a
construção da verdade e produção de história.
A justiça de transição adotada pelo Brasil sofre
duas críticas que precisam ser enfrentadas. A primeira
delas é a de que o nosso programa de reparações privi-
legiaria violações menos graves em relação àquelas em
que houve a perda da vida da vítima. De acordo com
Abrão, é preciso separar os mecanismos de reparação
dos mecanismos de compensação, pois se comparar-

Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e


padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013; PRONER, Carol;
ABRÃO, Paulo (org.). Justiça de transição - reparação, verdade e justiça:
perspectivas comparadas Brasil-Espanha. Belo Horizonte: Fórum,
2013; PAYNE, Leigh; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (org.). A
anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional
e comparada. Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 23

mos somente as possibilidades de compensação previs-


tas em lei, veremos que a violação da vida é mais valo-
rizada que as outras violações. Logo, não há uma in-
congruência real no caso de reparação brasileiro.
A segunda crítica é a de que o Brasil privilegia-
ria o processo de reparação em detrimento das outras
possibilidades de justiça de transição. Paulo Abrão
afirma que essa crítica é fraca, pois desconsidera o ele-
mento de contextualidade, uma característica da justiça
de transição, que coloca o contexto histórico de cada
país como um elemento fundamental para a construção
da agenda de transição. No Brasil, o marco inicial da
transição jurídico-política está no viés da reparação e
isso não é um demérito, mas um reconhecimento de
que essa é a nossa característica histórica própria que
se conecta de modo evidente com as características da
nossa própria realidade.
Finalizando, ele afirmou ser necessário poten-
cializarmos as virtudes do nosso processo de repara-
ção, apropriando-se do que foi construído para, em
seguida, avançar e estender os horizontes da nossa
agenda de transição.
O Congresso ainda contou com a atividade cul-
tural de lançamento da obra “As duas guerras de Vla-
do Herzog: da perseguição nazista na Europa à morte
sob tortura no Brasil”21, de Audálio Dantas22. Dantas

21 DANTAS, Audálio. As duas guerras de Vlado Herzog: da perseguição


nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012. A obra foi vencedora do Prêmio Jabuti em
2013. Disponível em:
<http://www.premiojabuti.com.br/content/luis-fernando-verissimo-
e-audalio-dantas-ganham-o-premio-maximo-do-jabuti-2013>. Acesso
em 5 mar. 2014.
22 Ex-Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de

São Paulo. Deputado Federal pelo MDB (1978-1982). Presidente da


Federação Nacional dos Jornalistas (1983-1986). Vice-Presidente da
Associação Brasileira de Imprensa (2005-2008). Conselheiro da União
Brasileira dos Escritores. Atual Presidente da Comissão da Verdade,
Memória e Justiça dos Jornalistas Brasileiros.
24 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

rememorou suas atividades à frente do Sindicato dos


Jornalistas de São Paulo quando da perseguição de
diversos deles no ano de 1975, culminando com a mor-
te sob tortura de Vladimir Herzog.
No que respeita ao grande tema das “Políticas
de reparação”, Parte II dessa obra, pudemos contar
com as seguintes valorosas contribuições: “Capítulo IX
– Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracio-
nal: o lugar do testemunho na transição pós ditadura
civil-militar brasileira”, de Roberta Cunha de Oliveira e
José Carlos Moreira da Silva Filho; “Capítulo X – Repa-
rações e direitos econômicos, sociais e culturais”, de
Naomi Roht-Arriaza; e, “Capítulo XI – Um modelo pa-
ra políticas de reparações: lições do Fundo Fiduciário
em Benefício das Vítimas do Tribunal Penal Internaci-
onal”, de Thomaz Francisco Silveira de Araújo Santos.

IV – Constitucionalização e responsabilização
criminal e civil na América Latina

No que concerne à temática “Constitucionaliza-


ção e responsabilização criminal e civil na América La-
tina”, coube a Mark Osiel23 discorrer acerca das deci-
sões judiciais adotadas pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos em casos de graves violações aos
direitos humanos, fazendo uma análise comparativa
entre as medidas de responsabilização criminal e de
reparação estabelecidas pela Corte Interamericana e as
tradicionais medidas até então estabelecidas por outras
cortes que se propõem ao mesmo fim.

23Professor do College of Law da Universidade de Iowa. Ex-consultor


para promotores de responsabilização do General Pinochet e de
perpetradores do Genocídio de Ruanda. Cf. OSIEL, Mark. Mass atroci-
ty, collective memory and the law. New Jersey: Transaction, 2000; OSIEL,
Mark. Making sense of mass atrocity. New York: Cambridge University
Press, 2009.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 25

Segundo Osiel, as decisões proferidas pela Corte


Interamericana vêm sendo consideradas por muitos
juristas e acadêmicos como “inovadoras”, “fora do co-
mum”, “singulares” e “criativas” quando comparadas
com as medidas tradicionais, uma vez que o objetivo
padrão dessas últimas é o de basicamente reestabelecer
a vítima à condição em que ela se encontraria caso os
crimes e os danos provenientes dos mesmos não tives-
sem ocorrido. Elas propõem “reparações simbólicas” e
“políticas de caráter preventivo” que objetivam reesta-
belecer a dignidade das vítimas, concretizar o direito à
verdade e à memória e evitar que tais crimes e abusos
se repitam no futuro.
Atualmente, muitos dos tradicionais teóricos de
justiça de transição vêm mudando sua postura frente à
forma como é feita a reparação às vítimas, pois se torna
ineficaz retornar a vítima à condição em que ela se en-
contrava antes dos crimes, já que, em muitos casos,
foram exatamente essas condições que as tornaram
vulneráveis aos abusos e crimes contra elas cometidos.
Dessa forma, na prática, as medidas tradicionais bus-
cam algo mais amplo que simplesmente retornar as
vítimas a sua “posição de direito”; procuram também
oferecer as condições e os meios de se protegerem con-
tra possíveis futuras violações aos direitos humanos.
Ao se comparar os novos métodos com os tradi-
cionais, percebe-se que os objetivos de ambos são, em
sua essência, os mesmos: reafirmar a dignidade e os
direitos das vítimas e prevenir a ocorrência de crimes
futuros, proporcionando um presente e futuro mais
pacífico. Concluindo, Osiel afirma que as medidas ado-
tadas pela Conter Interamericana não são de forma
alguma radicais, elas apenas aplicam princípios já co-
nhecidos e bem estabelecidos de uma nova maneira.
26 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

Julia Cerdeiro24 traçou um panorama das medi-


das praticadas pela Unidade Fiscal de Coordenação e
Seguimento de Causas de Graves Violações aos Direi-
tos Humanos cometidas durante o Terrorismo de Esta-
do da Procuradoria-Geral da Nação Argentina. Para
tanto, ela começou por recuperar o contexto da transi-
ção argentina, dividindo-o em três etapas: uma primei-
ra, com o Governo Alfonsín e a criação da CONADEP;
uma segunda, com as Leis do Ponto Final e da Obedi-
ência Devida; e, a terceira, com, nos anos 2000, a decla-
ração de inconstitucionalidade das referidas leis pela
Suprema Corte Argentina (Caso Símon). Com isto, foi
possível levar a frente responsabilizações de caráter
criminal de agentes envolvidos com a ditadura argen-
tina. Ela mencionou que, hoje, pelo menos 400 pessoas
já foram julgadas. Tratou também dos argumentos ju-
rídicos que têm fundamentado as condenações, princi-
palmente do dispositivo da Constituição Argentina que
serve de “porta de entrada” para os documentos inter-
nacionais de proteção dos direitos humanos. Desse
modo, foi possível tratar dos crimes como crimes con-
tra a humanidade e, portanto, imprescritíveis.
Marlon Weichert25 tratou da necessidade de
produção de justiça no Brasil, da pauta de valores do
Direito Internacional referente aos direitos humanos e
da decisão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro na
ADPF nº 153. Segundo ele, a decisão do Supremo Tri-

24 Secretária da Unidade Fiscal de Coordenação e Seguimento de

Causas de Graves Violações de Direitos Humanos cometidas durante o


Terrorismo de Estado da Procuradoria-Geral da Nação Argentina.
Advogada.
25 Procurador Regional da República na 3ª Região da Justiça Federal.

Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Integrante do Grupo


sobre Justiça de Transição do Ministério Público Federal. Cf.
WEICHERT, Marlon. Proporcionalidade, Direito Penal e direitos
humanos. In ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (org.). Direitos
humanos e direitos fundamentais: diálogos contemporâneos. Salvador:
JusPodivm, 2013.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 27

bunal Federal ADPF nº 153 seria, atualmente, o maior


empecilho à produção de justiça no Brasil. O Supremo
Tribunal Federal julgou improcedente a arguição de
preceito fundamental que pedia uma interpretação da
lei de anistia que excluísse do beneficio os agentes esta-
tais que foram autores de crimes de graves violações
dos direitos humanos.
Os seguintes argumentos foram utilizados para
justificar a recusa da ação: a lei da anistia abrangeu
crimes praticados com motivação política; a anistia foi
bilateral, logo, não houve autoanistia; a Lei de Anistia
teve efeitos instantâneos, não sendo possível sua revi-
são após 30 anos; deve ser privilegiada uma interpreta-
ção compatível com o momento histórico, que leve em
consideração a intenção do legislador na época; e, por
fim, a edição e a aplicação da Lei da Anistia não se su-
jeitavam à Corte Interamericana, pois eram anteriores
ao reconhecimento pelo Brasil de sua jurisdição.
Marlon Weichert acredita que a decisão do STF
tenha sido construída a partir de vários equívocos. Um
deles estaria no fato do STF ter feito uma interpretação
de constitucionalidade da Lei de Anistia utilizando
como parâmetro de constitucionalidade o texto consti-
tucional outorgado pela ditadura militar. Esse é um
enorme equívoco, pois o controle de uma lei que trata
de direitos fundamentais deve ter como parâmetro de
constitucionalidade um conjunto de normas e princí-
pios que seja de um Estado Democrático de Direito.
Quanto à tensão existente entre a decisão do STF e a
decisão da Corte Interamericana de Direitos humanos,
é preciso entender que a adesão do Brasil à Convenção
Americana de Direitos Humanos e o reconhecimento
da jurisdição da Corte Interamericana foram atos sobe-
ranos e voluntários do Estado brasileiro. Não há que se
falar, portanto, em violação da soberania brasileira.
Precisamos estabelecer um diálogo entre as decisões.
Concluindo, Weichert afirmou que os valores
materiais de um Estado Democrático de Direito são
incompatíveis com a impunidade e a tolerância a cri-
28 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

mes de graves violações aos direitos humanos. Não se


trata, portanto, de revogar uma autoanistia que já teria
produzido efeitos, mas sim reconhecer que ela nunca
teve o poder de produzir tais efeitos, uma vez que é
originalmente incompatível com preceitos fundamen-
tais do direito brasileiro e do direito internacional.
Na sequência, coube à Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça tomar assento no mesmo local de
realização do congresso para a realização da 3ª Sessão
de Turma da 69ª Caravana da Anistia. Tomou posse na
Comissão de Anistia o Conselheiro Marlon Weichert.
Foram feitos pedidos de desculpas formais a pessoas
que já tiveram pedidos de anistia julgados, mas que
ainda não haviam recebido um pedido de perdão por
parte do Estado. Em seguida, foram julgados os pro-
cessos de Cecílio Emídio Saturnino, por meio de Sueli
Hercília Chaves, e de Wellington Moreira Diniz. Am-
bos os pedidos foram deferidos, havendo pedido de
desculpas formal e reconhecimento da condição de
anistiado, nos termos da Lei 10.559/02. Os julgamentos
lotaram o Auditório Alberto Deodato da Faculdade de
Direito da UFMG, realizando-se uma das sessões com
maior público da Caravana da Anistia.
Houve nova sessão de apresentação de traba-
lhos aprovados. Foram apresentados trabalhos ligados
à temática “Constitucionalização e responsabilização
civil e criminal na América Latina”. Presidiram as ati-
vidades os Professores Léo Ferreira Leoncy e Thomas
da Rosa Bustamante. Em seguida, foram apresentados
os trabalhos relativos à temática das “Reformas institu-
cionais e consolidação do Estado Democrático de Direi-
to”. Os Professores José Carlos Moreira da Silva Filho e
Rodrigo Lentz coordenaram a apresentação.
Para a temática “Constitucionalização e respon-
sabilização civil e criminal na América Latina” (Parte
III), a obra conta com as importantes contribuições que
se seguem: “Capítulo XII – Responsabilização civil-
administrativa dos agentes públicos na ditadura civil-
militar brasileira”, de Diego Oliveira Murça, Janaína
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 29

dos Santos Cury e Lucas Costa de Oliveira; “Capítulo


XIII – A formação da norma global de responsabilidade
individual: mobilização política transnacional, desen-
volvimento principiológico e estruturação em regras
internacionais e domésticas”, de Marcelo D. Torelly;
“Capítulo XIV – El rol de la Constitución en la transi-
ción democrática argentina: los argumentos que posibi-
litaron el proceso de juzgamiento”, de Julia A. Cerdei-
ro; “Capítulo XV – A cumplicidade em violações aos
direitos humanos durante a ditadura civil-militar brasi-
leira”, de Maria Carolina Bissoto; “Capítulo XVI – Pro-
teção penal contra violações aos direitos humanos”, de
Marlon Alberto Weichert; “Capítulo XVII – Antinomia
radical entre as leis de autoanistia e a obrigação de pu-
nir os perpetradores de violações aos direitos huma-
nos: fundamentos e análise de casos”, de Ranieri Lima
Resende.

V – Reformas institucionais e consolidação do


Estado Democrático de Direito

No grande tema “Reformas institucionais e con-


solidação do Estado Democrático de Direito”, Eduardo
Gonzalez-Cueva26 defendeu que a reforma institucional
é um dos temas menos discutidos na justiça de transi-
ção. Ele está diretamente ligado às garantias de não
repetição. Lembrou ele do recente caso sul-africano,
exemplo de justiça de transição, que está, na atualida-
de, recorrendo a leis da época do regime do apartheid

26Diretor do Programa Verdade e Memória do International Center for


Transitional Justice. Professor da New School em Nova Iorque.
Participante da organização e execução da Comissão Verdade e
Reconciliação peruana. Cf. CUEVA, Eduardo González. Tendencias en
la búsqueda de la verdad. Anuario de derechos humanos, 2007, p. 103-
112. Disponível em < http://www.cdh.uchile.cl/anuario03/6-
SeccionInternacional/anuario03_sec_internacionalIII-
GonzalezCueva.pdf>. Acesso em 12 abr. 2012.
30 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

para tratar de um caso de repressão policial de 2012 a


uma revolta de trabalhadores mineiros (com ocorrência
de várias mortes). Isto demonstra a dificuldade de im-
plementar reformas. Talvez a troca feita pela CNV sul-
africana entre justiça e verdade possa ser uma causa
disto. Parece difícil, pois, que as instituições estatais
aprendam a lição de ilegalidade das repressões. É pre-
ciso refletir, pois, não só sobre a transição, mas sobre a
qualidade da democracia que se está buscando. O pro-
blema é que a manutenção do pacto político da transi-
ção pode deixar heranças não esperadas. É isto que
pode deixar insatisfeita a cidadania que, com protago-
nismo, lutou pela transição. Deve haver, pois, um mí-
nimo a ser garantido nas transições e após elas: direitos
humanos.
Na sequência, Flávia Piovesan27 abordou o im-
pacto do sistema interamericano num processo de jus-
tiça de transição no contexto sul americano, com enfo-
que na experiência brasileira. Ela afirmou que o Siste-
ma Interamericano tem se legitimado como um eficaz
instrumento para a proteção aos direitos humanos. A
Corte Interamericana de Direitos Humanos tem como
preceito que as leis de anistia são um ilícito internacio-
nal e a sua revogação é uma forma de reparação não
pecuniária para as vítimas. À luz da jurisprudência
internacional, os Estados têm deveres para com a justi-
ça de transição, deveres referentes à verdade, à justiça,
à reparação, às reformas institucionais e à garantia de

27 Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São


Paulo. Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo nos
Cursos de Graduação e Pós-Graduação. Visiting Fellow do Centre for
Brazilian Studies da Universidade de Oxford e do Max Planck Institute
for Comparative Public Law. A Professora Flávia Piovesan tem
inúmeras obras sobre o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
De modo exemplificativo, cf. SOARES, Inês Virgínia Prado.
PIOVESAN, Flávia (org.). Direitos Humanos atual. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2014; PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 7ª. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014.

 
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 31

não repetição de crimes de violação de direitos funda-


mentais. Órgãos da ONU também indicam que as leis
de anistia são incompatíveis com o dever dos Estados
de investigar tais atos para evitar a sua repetição.
Segundo ela, quando se fala em reformas insti-
tucionais, deve-se pensar nos seguintes temas: a ques-
tão do afastamento daqueles que foram violadores aos
direitos humanos, violadores das instituições democrá-
ticas; a reforma dos setores de segurança e justiça; a
promoção do acesso a uma justiça guiada pela inde-
pendência e pelo Estado Democrático de Direito, de
forma ampla; e, por fim, a garantia de reformas para
ampliar a independência do Judiciário.
As reformas institucionais no campo da preven-
ção devem clamar pelas responsabilidades individuais
de modo a afastar do serviço público aqueles que se
envolveram em sérios e graves abusos e violações aos
direitos humanos. Existe na jurisprudência internacio-
nal essa ideia de prevenção, que busca construir insti-
tuições íntegras e confiáveis por meio do afastamento
daqueles agentes públicos que serviram ao arbítrio e
que se envolveram em violações a direitos. Vê-se que a
doutrina pode ser um instrumento fundamental para
doar uma nova legitimação social no campo institucio-
nal.
Devido ao papel de relevo que o Poder Judiciá-
rio desempenhou no arbítrio, é preciso pensar em uma
reforma não só das forças de segurança, mas também
uma reforma do Poder Judiciário. Por isto, pois, é fun-
damental a transformação e a consolidação de institui-
ções democráticas que assegurem a paz, a estabilidade
democrática e o Estado de Direito. Finalizando, Piove-
san afirmou que não podem existir no Estado Demo-
crático de Direito setores imunes a incidência da lega-
lidade, sendo necessária a criação de um Poder Judiciá-
rio confiável e independente.
32 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

Gilberto Bercovici28 abordou a questão das he-


ranças institucionais de repressão e a necessidade de
reformas nos dias atuais. Segundo ele, a transição para
a democracia do Estado brasileiro foi chamada de um
pacto, porém foi imposta, controlada pelos militares,
sendo que a Lei da Anistia é o maior exemplo disso. A
Constituição de 1988 é herdeira de muito do que foi
criado e existiu na ditadura de 1964: rompe com várias
instituições, porém preserva muitas outras ao mesmo
tempo.
Um exemplo disso é que ela mantém pratica-
mente intocada a estrutura do Estado estruturado du-
rante a ditadura militar, já que a última grande reforma
no Estado brasileiro foi em 1967. Nesse período, reali-
zaram-se uma série de reformas estruturais, que altera-
ram o sistema tributário, a estrutura financeira e orça-
mentaria do país. Praticamente, a única legislação do
período ditatorial alterada é a Lei de Imprensa, sendo
que sua alteração foi feita principalmente para benefi-
ciar as grandes empresas de comunicação.
Segundo Bercovici, o regime democrático não se
preocupou em lidar com a permanência de legislações
que foram feitas no período autoritário, já que, aparen-
temente, não houve durante a transição democrática
institucional a revisão da legislação existente. Muito se
fala em reformas e em rupturas, porém são poucas as
reformas e rupturas que já realmente aconteceram.
“Quais seriam as reformas necessárias há quase 40
anos?” é uma das perguntas lançadas por ele, à qual ele
responde citando as reformas agrária, educacional e
bancária. Essas seriam as verdadeiras reformas a serem
feitas, mas que nunca foram colocadas em prática.

28 Doutor em Direito do Estado e Livre Docente pela USP. Professor

Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de


Direito da USP. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de
Exceção Permanente: Atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2004.
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 33

Atualmente, o Estado Democrático de Direito só chega


para uma parcela mínima da população e mais de 70%
da população não vive o Estado de Direito. Portanto,
ao final, Gilberto Bercovici, afirmou que a impressão
geral que essa situação transmite é de estagnação, uma
vez que o Estado brasileiro está com 25 anos de demo-
cracia clamando por reformas que não se concretizam.
Em seguida, ainda dentro das atividades do
Congresso, ocorreu uma mostra de filmes que contou
com o apoio do Projeto Cinema pela Verdade da
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Foi
exibido o filme “Eu me lembro” e, em seguida,
comentaram a obra e debateram com a plateia os
Professores Cristiano Paixão29, Juliana Neueschwander
Magalhães30 e Vera Karam de Chueiri31.
No que concerne à temática “Reformas institu-
cionais e consolidação do Estado Democrático de Direi-
to” (Parte IV), a presente obra conta com os seguintes
capítulos: “Capítulo XVIII – Justiça de transição, re-

29 Professor Adjunto da UNB; Doutor em Direito pela UFMG;


Procurador Regional do Trabalho; Membro da Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça. Cf. BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade.
PAIXÃO, Cristiano. Crise Política e Sistemas de Governo: origens da
“solução parlamentarista” para a crise político-constitucional de 1961.
Universitas Jus, v. 24, p. 47-61, 2013; PAIXÃO, Cristiano. Direito,
política, autoritarismo e democracia no Brasil: da Revolução de 30 à
promulgação da Constituição da República de 1988. Araucaria
(Madrid), v. 26, p. 146-169, 2011; PAIXÃO, Cristiano. A constituição
subtraída. Constituição & Democracia. Nº1. Brasília, janeiro de 2006;
PAIXÃO, Cristiano. A constituição em disputa: transição ou ruptura?
In: SEELAENDER, Airton (org.) História do Direito e construção do
Estado.São Paulo: Quartier Latin, 2012 (no prelo).
30 Doutora em Direito pela UFMG; Doutora em Direito pela Università

degli Studi di Lecce; Professora Associada da Faculdade Nacional de


Direito da UFRJ. Cf. NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. A
Formação do Conceito de Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2013.
31 Doutora em Filosofia pela New School for Social Research;

Professora Adjunta de Direito Constitucional da UFPR. CHUEIRI,


Vera Karam de. Fundamentos de Direito Constitucional. Curitiba: IESDE
Brasil, 2008.
34 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

formas institucionais e consolidação do Estado Demo-


crático de Direito: o caso brasileiro”, de Flávia Piove-
san; “Capítulo XIX – Ampliando as lentes: experiências
de justiça restaurativa em Minas Gerais”, de Giselle
Fernandes Correa da Cruz; “Capítulo XX – Os desafios
da justiça de transição ante a consolidação do Estado
Democrático de Direito: as dificuldades enfrentadas
pelo processo transicional brasileiro expressas nas re-
formas institucionais para a implementação da demo-
cracia”, de Henrique Ratton Monteiro de Andrade e
Jessica Holl; “Capítulo XXI – A justiça diante das armas
e os mecanismos eleitorais contramajoritários: a experi-
ência do regime de exceção brasileiro”, de Maria Celina
Monteiro Gordilho; “Capítulo XXII – Os desafios da
justiça de transição no Brasil: o Estado, a legitimidade
de suas ações e os reflexos da legalidade autoritária no
Poder Executivo e no Poder Judiciário”, de Natália de
Souza Lisbôa; e, “Capítulo XXIII – Simbolismo demo-
crático X realidade autoritária: notas sobre a política
criminal brasileira”, de Thayara Castelo Branco.

Conclusões

As atividades do Congresso tiveram por ato fi-


nal a inauguração de monumento de homenagem às
vítimas da ditadura em frente à antiga sede do DOPS
de Belo Horizonte, no cruzamento das Avenidas Afon-
so Pena e Professor Moraes, na capital mineira. O even-
to contou com a participação de ouvintes, painelistas e
organizadores do Congresso Internacional Justiça de
Transição nos 25 anos da Constituição de 1988, além de
autoridades como o Prefeito de Belo Horizonte, Márcio
Lacerda, o Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão
e o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil –
Seção Minas Gerais – Luís Cláudio da Silva Chaves.
Como já mencionado, a partir do trabalho realizado e
das discussões que foram feitas, será publicada uma
obra contando com textos de diversos dos painelistas,
Justiça de transição nos 25 anos da Constituição de 1988 35

assim como os trabalhos apresentados por alunos de


graduação e pós-graduação durante o Congresso. A
publicação ocorrerá sob a forma de e-book.
Foi construído um site na internet para a divul-
gação do congresso, o que permitiu a presença maciça
de tantos ouvintes e participantes. Neste mesmo site,
estão disponibilizadas as falas de cada um dos painelis-
tas.32
Em razão da importância do Congresso, da rea-
lização da 69ª Caravana da Anistia e da inauguração de
monumento, a repercussão do evento foi grande. Além
da divulgação em redes sociais, houve a presença de
rádios como a CBN, jornais como Estado de Minas e
Folha de São Paulo e emissoras de televisão como TV
Globo33. O congresso permitiu a interlocução de pesso-
as oriundas de diversas partes do mundo: Peru, Argen-
tina e Estados Unidos, principalmente. Além disto, par-
ticiparam do evento pessoas de diversos Estados da
federação: Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul,
Goiás, Distrito Federal, Maranhão, Pernambuco, Paraí-
ba, Tocantins, entre outros.

32 Disponível em: <http://cjt25anosdaconstituicao.wordpress.com/o-


congresso/>.
33 Seguem alguns links de reportagem sobre os fatos que se deram

durante o evento, todos com acesso em 12 nov. 2013:


<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/05/1285115-comissao-
inaugura-monumento-em-homenagem-as-vitimas-da-ditadura.shtml>;
<http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2013/05/25/interna_
politica,394801/monumento-em-homenagem-as-vitimas-da-ditadura-
e-inaugurado-em-bh.shtml>;
<http://www.hojeemdia.com.br/noticias/politica/mortos-da-
ditadura-militar-ganham-monumento-em-belo-horizonte-1.127862>;
<http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view
=item&id=4414:caravana-da-anistia-em-belo-horizonte>;
<http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2012/12/01/interna_
politica,333715/caravana-da-anistia-recolhe-em-bh-depoimentos-de-
violacoes-de-direitos.shtml>;
<http://www.cedin.com.br/pt/2013/processo-seletivo-de-trabalhos-
para-o-congresso-internacional-justica-de-transicao-nos-25-anos-da-
constituicao-de-1988/>.
36 Emílio P. Neder Meyer & Marcelo A. Cattoni de Oliveira

A realização do Congresso deveu-se, principal-


mente, ao árduo trabalho da Comissão Organizadora,
que contou com um inestimável apoio de estudantes de
graduação e pós-graduação dos cursos de Direito e
Ciências do Estado da FD/UFMG. Importantíssimo
também foi o apoio do Centro Acadêmico de Ciências
do Estado – CACE – e do Centro Acadêmico Afonso
Pena – CAAP. Essencial também foi o apoio de servi-
dores da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça
e do próprio Ministério da Justiça para a realização não
só da Caravana da Anistia e da inauguração do mo-
numento, como também de todo o congresso.
Todo esse esforço conjunto demonstra como a
universidade, ante um Estado Democrático de Direito,
pode se constituir em um ambiente propício para a
difusão cidadã de ideias e o engajamento em políticas
transicionais fundamentais para a confirmação do pro-
jeto constitucional estabelecido a partir de 1988. Há
muito ainda a se fazer; mas a realização do Congresso
Internacional Justiça de Transição nos 25 anos da Cons-
tituição de 1988 demonstrou que é possível envolver
toda a comunidade acadêmica nessa luta. Nos 50 anos
do golpe de 1964, essa publicação é mais um importan-
te esforço de efetivação da justiça de transição no Bra-
sil.
As reivindicações por memória e
verdade e a Comissão Nacional da
Verdade
Construindo a memória social sobre
o período militar no Brasil

Ana  Paula  Ferreira  de  Brito1  


Maria  Letícia  Mazzucchi  Ferreira2  

Resumo: O Brasil viveu, por muitos anos, um “esque-


cimento coletivo” sobre as violações aos direitos hu-
manos ocorridas durante o período militar (1964-1985).
No entanto, após diversas manifestações e reivindica-
ções de organismos da sociedade civil, o poder público
criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para que
se efetive o esclarecimento de tais fatos e se cumpra o
direito à memória e à verdade. Assim, este artigo visa
discutir como a sociedade civil tem se portado diante
do tema, sua relação com a CNV e como tudo isso tem
sido efetivado para a construção da memória social
sobre o período.

1 Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural na Universida-

de Federal de Pelotas. Bolsista Capes. Graduada em História pela


Universidade Federal da Paraíba e Graduanda em Direito pelo Centro
Universitário de João Pessoa.
2 Professora do Programa de Pós Graduação em Memória Social e

Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
38 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade – Me-


mória – Sociedade Civil.

Abstract: For many years Brazil has lived a "collective


forgetfulness" over human rights violations that
occurred during the military government period (1964-
1985). Recently, after several protests and claims of
civil society bodies, the Government has created the
National Commission of Truth (CNV) to bring such
facts to light and fulfill the right to memory and truth.
In this manner,this article aims to discuss how civil
society has been dealing with the theme and its rela-
tionship with the Commission, as well as its impact on
the construction of the social memory of that period of
Brazilian history.
Keywords: National Commission of Truth- Memory -
Civil society.

Introdução

A ditadura civil-militar que foi instaurada no


Brasil em 31 de março de 1964 e que vigorou até mea-
dos de 1985 registra em sua trajetória repressões políti-
cas, violações aos direitos civis, políticos e humanos
dos que não apoiavam o regime militar instaurado.
Durante muito tempo o país viveu uma política de es-
quecimento acerca do tema, na qual se negaram trechos
da história política oficial, visando torná-la mais apazi-
guadora. Alguns agentes atuaram no sentido de pro-
mover uma amnésia social acerca de determinados
fatos relativos ao tema. Estabelecendo-se um esqueci-
mento-manipulação, que conforme esclarece Michel
(2010,18) é imputável aos atores públicos encarregados
de elaborar e transmitir a memória pública oficial,
apresentando-se como tendência a ser um instrumento
próprio às políticas de reunificação nacional dada a
necessidade de se regular a memória cívica e “cicatri-
zar” as feridas coletivas.

 
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 39

Consideradas por muitos como memórias que


não deveriam ser lembradas por serem dolorosas, o
argumento mais significativo dessa percepção centra-
va-se na necessidade do país “avançar” nas questões
sociais e econômicas. De modo que render atenção ao
passado e promover “gastos públicos” nesse sentido
seria um retrocesso. Um dos posicionamentos oficiais
que corroboram este pensamento foi proferido pela
Ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie,
durante seu voto3 sobre possível descumprimento de
preceito fundamental (Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental – ADPF 153) presente na Lei
nº 6.683/79, lei de anistia, que foi recepcionada com a
constituição de 1988. O pedido apresentado junto ao
STF pela Ordem dos Advogados do Brasil considera
que alguns dos crimes contemplados pela citada lei são
de lesa-humanidade, assim imprescritíveis. Ao respal-
dar seu voto, a ministra afirmou que a anistia foi o pre-
ço a ser pago pela sociedade brasileira dada a transição
de um regime autoritário a uma democracia plena.
Continuou defendendo que não é possível viver retroa-
tivamente a história, nem se deve desvirtuá-la para que
assuma contornos que nos pareçam mais palatáveis.
O que se percebe é que o esquecimento foi im-
plantado na conjuntura social como um dever, ainda
que de forma sutil. Sobretudo através do dever de ha-
ver concessões recíprocas para uma efetiva reconcilia-
ção nacional. Assim, compreende-se que um dos polos
ativos em torno deste conflito memorial é a revisão da
lei de anistia, uma vez que, através desta, o Estado se
posicionaria oficialmente em repúdio às ações outrora
cometidas pelos perpetradores dos direitos humanos,
tornando-se possível a realização de julgamentos a es-
sas violações, com atribuição das devidas sanções.

3
Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=6129
60>, acessado em 26/01/2013, página 153.

 
40 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

Por longo tempo, o tema foi silenciado, de modo


que a história dos fatos ocorridos no período era retra-
tada com um olhar um tanto quanto singular dos acon-
tecimentos, com efeitos considerados reducionistas,
dada a dimensão do debate e a representação desse
passado para a sociedade. Não se pode apreender de
fato o momento em que alguns grupos da sociedade
assumem a busca pelo direito à memória, verdade e
justiça pertinente ao período em questão. Mas gradu-
almente se assiste a um despertar social e político para
o tema, principalmente através dos chamados empre-
endedores da memória. Conceito apresentado por Jo-
han Michel (2010, 19), trata-se de grupos ou indivíduos
que tentam impor representações e normas memoriais
no interior do espaço público e político. Seja sociedade
civil ou os que fazem parte do aparelho de produção
de políticas públicas. Destarte, entre esses empreende-
dores aqui discutidos, evidenciam-se associações, sin-
dicatos, órgãos públicos e privados, estudantes, entre
outros grupos que começam a se organizar no sentido
de reivindicar o direito à memória e verdade sobre o
período em discussão.
A confluência desses grupos, e de outros não
mencionados em torno do tema, proporcionará um
conflito de memória, ou um conflito em torno de uma
suposta verdade histórica a ser defendida por esses
indivíduos. Esses conflitos ensejam uma tendência e
compulsão memorial, assistida sobretudo na era mo-
derna, que Joel Candau classifica como mnetropismo4.
Nesse caso, as memórias sobre o período militar no
Brasil serão elementos que articularão essa disputa
memorial, tendo no epicentro do conflito as memórias
ditas dolorosas, especialmente a dos presos e persegui-
dos políticos do regime em questão.

4
Definido por CANDAU (2009, 43) como sendo o movimento
contemporâneo em direção à memória, uma compulsão memorial.
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 41

Comissões da Verdade no Cone Sul

Busca da verdade, reparações, reformas institu-


cionais e reconciliação são as principais palavras que
figuram nos conceitos apresentados pelos teóricos
acerca da justiça de transição, que por sua vez consiste
em esforço para a construção da paz sustentável após
um período de conflito, violência em massa ou violação
sistemática dos direitos humanos (ZYL, 2011, 47). No
entanto, é interessante notar que as primeiras ações,
respaldadas através das leis de anistia, promulgadas ao
longo da América Latina, utilizaram-na com o sentido
de anistia vinculada a um esquecimento induzido.
Esse esquecimento induzido deu-se, sobretudo,
através de estratégias como o não acesso a documen-
tos, impedindo que parte dessa memória fosse restau-
rada com vistas a pedidos de justiça e indenização.
Muitos foram os argumentos em prol da permanência
dessa cultura do silêncio, comumente chamado de “es-
quecimento oficial”, que, como observa Seligmann-
Silva (2006, 05), nasce da necessidade de promover
uma reconciliação da nação, característica que despon-
ta para uma legitimação do sepultamento de partes
dessa memória política. O autor aponta ainda a célebre
frase do ex-presidente José Sarney que, em defesa da
anistia e do esquecimento, afirmou que “... é necessário
um esforço nacional para, de uma vez por todas, sepul-
tarmos esses fatos no esquecimento da história. Não
remexamos esses infernos, porque não é bom para o
Brasil”5. No entanto, o desejo de esquecimento não é
coletivo, e rompe a atuação de agentes que requerem e
exigem a preservação dessas memórias, bem como ou-
tras visões sobre o passado.

5
SELIGMANN – SILVA, Márcio. Anistia e (in) justiça no Brasil: o
dever de justiça e a impunidade. Literatura e Autoritarismo,
Memórias da Repressão, n.9, 2006. p. 04.

 
42 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

Esse esquecimento planejado é visto nas leis de


anistia nos países do Cone Sul. Essas legislações prima-
ram por cancelar as condutas tipificadas como crimes,
anulando, portanto, a possibilidade de serem realiza-
dos processos criminais e investigações.
Como se pôde perceber, as leis de anistia da região
latino-americana não cumpriram com os requisitos
do DIH e do direito internacional relativo aos di-
reitos humanos. Geralmente, foram dadas em be-
nefício do próprio governo que as outorgava e du-
rante o período de seu mandato. Contudo, cabe
ressaltar que nos últimos anos começou-se a gerar
uma corrente que pretende reverter tal situação
(SALMÓN, 2011, 238).

Em países como Argentina e Uruguai, os movi-


mentos para alteração das leis de anistia tiveram seu
início no final dos anos 1990. Na Argentina, a Suprema
Corte anulou as duas leis de anistia existentes em 2005,
no Uruguai a lei recebeu uma anulação tácita após re-
comendações da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, por violar os acordos de Direitos Humanos
e por não seguir o procedimento constitucional. No
Chile não houve derrogação da norma, mas a qualifica-
ção de alguns delitos como continuados, que viabiliza a
compreensão de que o agente, mediante mais de uma
conduta, realiza mais de um crime da mesma espécie.
Outros países ainda persistem na mudança da norma, a
exemplo do Brasil no qual foi impugnado pelo Supre-
mo Tribunal Federal o pedido de revisão da citada lei
através da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 153/2010, requerida pela Ordem dos
Advogados do Brasil.
A busca por alterações nas leis de anistia dá-se,
sobretudo, pela necessidade de julgar as graves viola-
ções aos Direitos Humanos cometidas por agentes do
Estado e que permanecem, em muitos países, sem es-
clarecimentos e devidas punições. As entidades de Di-
reitos Humanos reafirmam o perigo causado pela im-
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 43

punidade a estes crimes, e os efeitos perniciosos à soci-


edade presente e futura. Nesse sentido, as sociedades,
apesar de disporem de um direito à memória, se depa-
ram com um passado de impunidade e negligência a
seus direitos que permanecem.
Assim sendo, tem sido recorrente nas socieda-
des pós-conflito e que estão em processo de transição
para regimes democráticos o estabelecimento de Co-
missões da Verdade. Trata-se de “órgãos de investiga-
ção criados para ajudar as sociedades que têm enfren-
tado graves situações de violência política ou guerra
interna, a confrontar criticamente seu passado, a fim de
superar as profundas crises e traumas gerados pela
violência e evitar que tais fatos se repitam em um futu-
ro próximo” (CUYA, 2011, 47). A ONU em agosto de
2009 divulgou um estudo apresentando medidas a se-
rem consideradas pelos países nas ações de direito à
memória e à verdade. Destacando ainda que “a atuação
das chamadas comissões da verdade, no interior de
diferentes sociedades, tem sido uma das formas mais
populares e eficazes da busca de informações indivi-
duais sobre os desaparecimentos ainda não plenamente
esclarecidos” (BRASIL, 2010, 22).
En varios países de América Latina se constituye-
ron comisiones de la verdad oficiales y, en otros,
grupos de la sociedad civil se organizaron para in-
vestigar las violaciones a los derechos humanos.
La composición de las comisiones como la chilena,
la salvadoreña, la guatemalteca y la peruana, y el
contenido de sus informes, fueron diversos pro-
ductos de la disímil relación de fuerzas políticas de
cada transición. (CRENZEL, 2011, 62)

As comissões da verdade passaram por três fa-


ses históricas. A primeira é marcada pelo Tribunal de
Nuremberg, a partir da década de 1970 até meados de
1989 com a queda do muro de Berlim. A segunda fase é
marcada pela instituição da Comissão da Verdade na
África do Sul em 1995, na qual vigorava a concepção de

 
44 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

que o arrependimento dos violadores dos direitos hu-


manos seria considerado no processo de reconciliação
nacional. Assim, os processos penais e as punições
eram evitados. A terceira fase, no entanto, preocupa-se
mais com a devolução dos restos mortais das vítimas
dos regimes militares às famílias, bem como a respon-
sabilização penal dos perpetradores. Essa característica
da terceira fase se deve, sobretudo, ao “ressurgimento
normativo do direito internacional para a proteção dos
direitos humanos” (BRASIL, 2010, 23).
As organizações de Direitos Humanos, grupos
de familiares de vítimas das ditaduras, clérigos, entre
outros, compuseram parte fundamental ao estabeleci-
mento das comissões no sentido de reivindicá-las. Nes-
se sentido, cabe destacar a atuação do projeto Nunca
Mais na América Latina. Trata-se de informes e/ou
relatórios que denunciavam as atrocidades ocorridas
nos países em que vigorou a repressão militar, na mai-
oria das vezes, foram propostos por organismos de
Direitos Humanos vinculados à Igreja Católica. Uru-
guai (em 1989), Paraguai (1990), Bolívia (1993), Colôm-
bia (1995) e Brasil (1985) foram alguns dos países que
denunciaram os atos da ditadura através do projeto,
cujo nome tem sido o grande slogan dos que militam
pela causa das violações aos Direitos Humanos vincu-
lados aos regimes de repressão militar.
Os processos de transição para a democracia na
América Latina foram marcados por reivindicações,
como disposto, de entidades como o Sistema Interame-
ricano de Direitos Humanos, bem como da sociedade
civil, que cobravam dos Estados uma resposta frente
aos crimes do passado. Os esforços empreendidos
eram para que os danos individuais e/ou coletivos
fossem reparados, bem como que houvesse uma pre-
venção da repetição dos erros no futuro. Nesse sentido,
o principal “instrumento” para o estabelecimento da
“verdade histórica” era a criação de Comissões da Ver-
dade. De acordo com Nash (2011, 41), “en todas estas
comisiones la meta há sido determinar los alcances de
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 45

las violaciones de derechos humanos en el período que


cubre el mandato de la comisión, para establecer uma
verdad histórica compartida al interior de la sociedad”.
O apoio de entidades e órgãos de Direitos Hu-
manos é imprescindível antes mesmo da instalação da
comissão. Para um processo frutífero das investigações
de uma comissão da verdade, esta deve dispor de um
apoio internacional, que inclui entre outros o acesso a
documentos de arquivos oficiais e estrangeiros, assis-
tência técnica e de política, em geral prestada por
ONGs internacionais, investigadores internacionais às
vezes “emprestados” à comissão por governos estran-
geiros, e acesso a peritos de comissões anteriores
(ARBOUR, 2006, 298).
A ONU, em documento6 divulgado em 2006, es-
clarece que as comissões da verdade podem atuar de
três maneiras: recomendando a acusação (sendo o mo-
do mais recorrente): nesse caso, as recomendações são
em sua maioria entregues junto com o relatório final do
mandato da comissão. “A recomendação pode se refe-
rir a pessoas específicas ou tratar-se de uma recomen-
dação geral para que sejam realizadas mais investiga-
ções e se dê andamento à justiça penal para crimes co-
metidos no passado”; concedendo ou recomendando
anistia, modelo adotado no sentido de conceder anistia
em troca de esclarecimento dos fatos. Cabe ressaltar
que tal modelo não encontra abrigo no direito interna-
cional, que condena a conseção de anistia em violações
dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário. Não
obstante, a Comissão da Verdade e Reconciliação na
África do Sul “concedeu anistias apenas com relação

6 ARBOUR, Louise. Nações Unidas: Gabinete do Alto-Comissariado

das Nações Unidas para os Direitos Humanos - Instrumentos do Estado


de Direito para Sociedades que tenham saído de um conflito - Comissões Da
Verdade. Nações Unidas, Nova York e Genebra, 2006. IN: Revista
Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça. – N. 5.
(jan. / jun. 2011). – Brasília : Ministério da Justiça , 2012. p. 290-327.

 
46 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

aos delitos de motivação política demonstrada e após o


solicitante da anistia revelar total e publicamente os
detalhes do delito”; e, finalmente, concedendo isenção
limitada e condicional de responsabilidade penal,
que consiste na anulação da responsabilidade penal e
civil referente a delitos não graves, sempre que hou-
vesse um reconhecimento, pedido de desculpas, pres-
tação de serviços comunitários ou um pagamento sim-
bólico acordado para a vítima ou a comunidade. Con-
forme aponta Arbour (2006, 305), o modelo foi utiliza-
do no Timor Leste, e é compreendido muito mais como
“transação negociada” do que uma anistia.
As comissões da verdade são instituídas geral-
mente por meio de legislação nacional ou decreto pre-
sidencial. A escolha de seus membros respalda-se so-
bretudo pela respeitabilidade dos mesmos na socieda-
de e na neutralidade diante do tema. O que se tem co-
mumente discutido é a importância de se dispor de
profissionais de diversas áreas do conhecimento, ga-
rantindo uma investigação interdisciplinar. Esse aspec-
to se destaca em ações como tomada de depoimentos
de vítimas e testemunhas dos crimes investigados.
Grande parte das informações primárias das comissões
é oriunda de depoimentos coletados. Normalmente,
uma comissão da verdade recebe entre 7.000 e 20.000
depoimentos de vítimas, testemunhas ou inclusive au-
tores que desejam informar sobre sua própria partici-
pação ou de outras pessoas nos fatos investigados
(ARBOUR, 2006, 309).
Sabe-se que, em sua maioria, essas comissões
dispõem de pouco tempo para investigações e esclare-
cimento dos fatos. Portanto, o que normalmente se as-
siste é a seleção de um número representativo dos fatos
para serem investigados e apresentados no relatório
final, que reúne ainda as conclusões e recomendações
da comissão. Estas podem sugerir reformas jurídicas,
institucionais ou legislativas visando prevenir abusos
futuros, reparações às vítimas e/ou familiares, novas
investigações para apurar as violações, bem como a
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 47

promoção de outros programas pertinentes que su-


pram as deficiências indicadas (ARBOUR, 2006, 312).
Deste modo, percebe-se que o estabelecimento
de uma comissão da verdade, por si só, não cumpre a
função total do Estado de esclarecer e reparar a socie-
dade das ações de violência outrora cometidas, sendo
imprescindível que o mesmo, além de criar as comis-
sões, observe e cumpra suas recomendações, favore-
cendo um processo de transição para a democracia de
modo efetivo, e garantindo uma reconciliação nacional
através do direito à memória e à verdade.

Comissão da Verdade no Brasil

No Brasil, a criação da Comissão Nacional da


Verdade está atrelada à mobilização de alguns grupos
da sociedade civil, tais como vítimas e familiares dos
mortos e desaparecidos políticos, entidades de classe
como a Ordem dos Advogados do Brasil e estudantes
das mais diversas áreas de formação que, por longo
período, reivindicaram a instalação de uma Comissão
da Verdade para apurar os fatos ocorridos no período
do regime militar e estabelecer as responsabilidades
jurídicas pertinentes.
Corroborado pela diretriz 23, do eixo 6 do III
Plano Nacional de Direitos Humanos de 2009, foi cons-
tituído em Brasília um Grupo de Trabalho que teve a
missão de elaborar um projeto de lei para a criação da
Comissão da Verdade. O PL 7.376 foi concluído em
abril de 2010 e então encaminhado para a Sanção Pre-
sidencial e para o Congresso Nacional. Com a aprova-
ção, foi transformado em 2011 na Lei nº 12.528/2011,
sendo, no entanto, instalada de fato apenas em maio de
2012 (POLITI, 2012, 09).
Composto por sete membros indicados pela
Presidente da República, identificados pela defesa da
democracia e dos direitos humanos, o grupo é majori-
tariamente formado por juristas, com exceção de um

 
48 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

membro da área de Psicologia Social e outro da Ciência


Política. Essa predominância de juristas no grupo cau-
sou certa inquietação entre alguns setores da socieda-
de, no que concerne ao resultado final da atuação da
comissão, posto que sua função é apurar as violações
ocorridas durante o regime militar no Brasil, e não rea-
lizar julgamentos. Em nota7 oficial, a Associação Naci-
onal de História (ANPUH), em janeiro de 2012, de-
monstrou a importância e necessidade da comissão
dispor de historiadores, uma vez que o dever de me-
mória e a própria memória do período carecem ser
analisados à luz dessa ciência. Profissionais de outras
áreas do conhecimento e alguns grupos da sociedade
civil estabeleceram críticas pontuais à composição da
Comissão. Sobre a composição e escolha dos membros
de uma comissão da verdade, instrui a ONU que:
Em condições ideais, devem ser membros ampla-
mente respeitados da sociedade (ou personalida-
des internacionais) cuja neutralidade seja aceita
por todas as partes de um conflito prévio (ou o
grupo como um todo deve ser considerado repre-
sentativo de uma gama relativamente ampla de
opiniões). Pode incluir profissionais de distintos
âmbitos ou trajetórias, como dirigentes religiosos,
advogados em exercício ou juízes aposentados,
psicólogos, educadores, peritos em violência con-
tra a mulher ou crianças e profissionais dos direi-
tos humanos, entre outros (ONU, 2006, 305).

Outra crítica tem se pautado na função da Co-


missão, que, de acordo com a lei de criação, restringe-
se a examinar e esclarecer as graves violações de Direi-
tos Humanos a fim de efetivar o direito à memória e à
verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Muitas expectativas foram postas em torno da criação

7
Disponível em:
<http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=24
86>, acessado em 20/01/2013.
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 49

da CNV, que para alguns, poderia ser o caminho a ser


perseguido para possíveis julgamentos dos perpetra-
dores, e como consequência uma nova interpretação da
Lei de Anistia.
A comissão terá um prazo de dois anos para
produzir um relatório circunstanciado com os fatos
ocorridos entre 1946 a 1988. Esse relatório constará de
conclusões sobre a verdade histórica do ocorrido no
período militar, bem como as recomendações. Esta úl-
tima será o legado mais frutífero e duradouro da co-
missão instalada. O grupo trabalha a partir de subco-
missões, quais sejam: Pesquisa, geração e sistematiza-
ção de informações; Relações com a sociedade civil e
instituições e, finalmente, Comunicação Externa.
Os trabalhos da Subcomissão de Relações com a
sociedade civil e instituições têm sido de grande ajuda,
sobretudo no que tange à identificação de novos do-
cumentos, quer sejam materiais ou orais, como teste-
munhos. Nesse sentido, a CNV tem incentivado a cria-
ção de Comissões Estaduais e Comitês pela Memória,
Verdade e Justiça. Em julho de 2012, a CNV organizou
um encontro em Brasília com representantes dos comi-
tês já criados, para que pudessem dialogar com a co-
missão nacional e elaborar um documento com suges-
tões para atuação.
Na ocasião, estiveram presentes representantes
de 19 estados e Distrito Federal, contabilizando um
total de 44 comitês, que além de apresentarem suas
considerações e sugestões, entregaram documentos
que poderão auxiliar nas investigações da CNV, inclu-
indo um documento final elaborado de modo coletivo
com propostas de investigação. O documento elabora-
do pontua quase 150 reivindicações das entidades ao
Estado8. Nele, a preocupação com o passado que tan-

8
Para maiores informações ver o documento elaborado pelos comitês,
disponível em:
<http://comitedaverdadeportoalegre.wordpress.com/2012/08/13/ca

 
50 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

gencia o presente é notória. A compreensão gerada é


que a violência outrora cometida pelo Estado ainda
permanece sob outro viés, dada a impunidade dos cri-
mes ainda não apurados. O discurso produzido é que
muitos elementos gerados no período militar ainda
vigoram, muito embora não sejam os apropriados.
Uma das solicitações à CNV foi de “desenvolver linha
de pesquisa específica sobre a legislação do regime di-
tatorial, observando quais normas continuam vigentes,
a despeito de sua inadequação com os princípios de-
mocráticos e propor a sua revogação” 9. A solicitação
encontra respaldo como um dos mecanismos da justiça
de transição defendido pelos grupos de direitos huma-
nos.
A justiça de transição demanda o direito à justiça,
o direito à verdade e a reformas institucionais –
temas que remanescem negligenciados na experi-
ência brasileira. Faz-se necessário viabilizar trans-
formações profundas no aparato repressivo de se-
gurança herdado do regime militar, o que inclui
reformas nas Forças Armadas e nas polícias civil e
militar (PIOVESAN, 2009, 210).

Em resposta ao documento recebido, a CNV en-


viou aos grupos que participaram do encontro um do-
cumento no qual corroborou a importância da perma-
nência destes grupos, demonstrando a intenção em
promover outros encontros como o realizado para ou-
vir a sociedade civil através destes comitês e dos novos
surgidos, e afirmou que está realizando audiências pú-
blicas nos estados visando fomentar o debate sobre o
tema. Em discurso10 de abertura do encontro, a advo-

rta-dos-comites-a-comissao-nacional-da-verdade/>, acessado em
22/08/2012.
9
Carta dos Comitês à Comissão Nacional da Verdade, elaborada pelos
comitês regionais e discussões realizadas na reunião dos coletivos no
dia 30/07/12, em Brasília.
10
Disponível em:
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 51

gada Rosa Cardoso, membro da CNV, afirmou que “se


entendermos que esta é uma obra coletiva, se souber-
mos buscar e receber a contribuição dos militantes dos
direitos humanos e de nossos intelectuais, sim, nós
conseguiremos”.
Os membros da Comissão Nacional tiveram
contato com membros de comissões da verdade de ou-
tros países como Peru, Argentina, Guatemala e Para-
guai para conhecer os principais desafios e dificulda-
des de comissões como estas, auxiliando assim na
composição de uma metodologia de trabalho. Esse
apoio internacional é importante não apenas dada a
experiência dos outros países, bem como pela possibi-
lidade de acessar documentos estrangeiros que podem
ajudar na resolução de questões como a da Operação
Condor, entre outras.
Merece ainda destaque a atuação da CNV no
acompanhamento e solicitação aos órgãos públicos que
transformem lugares que foram centro de detenção e
tortura em centros de memória, verdade e justiça. Co-
mo exemplo, cabe mencionar o pedido de tombamento
da ex-sede11 do DOPS do Rio Grande do Sul, extinto em
1982. Assim sendo, o então coordenador da CNV,
Cláudio Fonteles, expediu ofício ao Governador do
estado do Rio Grande do Sul, indicando que o tomba-
mento seria o primeiro passo para que o local possa ser
utilizado como um lugar de memória. A cada dia no-
vos dados são acrescentados ao tema da Comissão da
Verdade no Brasil, uma vez que tem até 2014 para en-
tregar o relatório final de suas atividades.

<http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=Dj
AgU5CZnDo>, acessado em 21/01/2013.
11
O local é popularmente conhecido como DOPINHA, localizado a
Rua Santo Antônio, 600, bairro da Independência. O memorial poderá
receber o nome de um desaparecido político gaúcho, tendo ocorrido
no local manifestações e atos de identificação do espaço por grupos de
direitos humanos da região.
52 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

O papel da sociedade civil nas reivindicações por


memória e verdade

Antes mesmo da instauração da Comissão Na-


cional da Verdade, grupos da sociedade civil como o
Tortura Nunca Mais, Familiares dos Mortos e Desapa-
recidos Políticos, Núcleo de Preservação da Memória
Política, entre outros, vêm se organizando no sentido
de reivindicar o direito à memória e à verdade sobre o
período em questão. Mais recentemente, tem se regis-
trado a criação de comitês e comissões estaduais para
contribuir com o esclarecimento sobre os fatos ocorri-
dos durante o período militar. Os comitês são criados
nos mais diversos segmentos, dentro de universidades,
associações, sindicatos, municípios e outros. Já as co-
missões, em sua maioria são vinculadas às assembleias
legislativas dos estados ou à Ordem dos Advogados do
Brasil em suas seções regionais. De acordo com a Rede
Brasil, Memória, Verdade e Justiça, até março de 2013,
registra-se um total de 49 comitês, que atuam no senti-
do de reunir documentos e depoimentos que possam
ajudar a construir a história em pauta, e, de algum mo-
do, auxiliar a Comissão Nacional da Verdade em seu
relatório final, que deverá ser entregue à sociedade até
2014. Estes grupos têm atuado ainda no sentido de
conscientizar politicamente a população e sensibilizá-la
para a importância do registro dessas memórias deve-
ras importante para a história da democracia brasileira.
Cabe ressaltar que a CNV tem estabelecido pe-
riódicos encontros com os grupos supracitados, no in-
tuito de fomentar as atividades dos comitês, bem como
permitir um maior diálogo destes representantes da
sociedade civil com o trabalho a ser desenvolvido pela
comissão. O primeiro encontro ocorreu em julho de
2012; como saldo, os comitês elaboraram juntos um
documento com indicações de temas a serem observa-
dos pela equipe da CNV e foram entregues documen-
tos atinentes ao regime militar nos estados à CNV para
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 53

auxílio no relatório final. Esses encontros têm sido de


extrema relevância para a construção dos esclarecimen-
tos a que a sociedade tem direito, uma vez que a CNV
dispõe de um prazo curto para cumprir com uma de-
manda considerável de fatos a serem analisados e in-
vestigados. Assim, o apoio dos grupos citados possibi-
lita uma maior agilidade nas investigações, apoio e um
fator maior, que é a continuidade a esse processo me-
morial. Espera-se que estes grupos deem continuidade
aos trabalhos pertinentes ao direito à memória e ver-
dade, posto que a CNV já tem um prazo final para con-
cluir suas atividades.
Igualmente anterior à instalação da CNV, uma
mobilização realizada por jovens em vários estados do
país se destacou e inovou nas reivindicações por me-
mória e verdade: trata-se dos chamados escra-
chos/esculachos empreendidos pelos jovens do grupo
Levante Popular da Juventude.
O LPJ surgiu na cidade de Porto Alegre no ano
de 2006 e expandiu-se pelo território nacional em 2010.
Nascido da necessidade de criar espaços de debates
para além dos muros da universidade, o grupo possui
uma relação estreita com a Via Campesina12. Formado
em sua maioria por estudantes universitários, não pos-
sui um núcleo central e específico para atuação e seus
membros são oriundos de várias frentes de lutas e rei-
vindicações. As principais pautas e lutas do grupo são
educação, a questão agrária, a questão indígena, e dos
afro-descendentes, questões de gênero, violência em
comunidade de periferia, entre outros temas.
Os escrachos/esculachos foram a forma encon-
trada por estes jovens para denunciar a história conta-
da sobre alguns agentes que viveram e atuaram no pe-

12
Para maiores informações, consultar o site do movimento de onde as
informações foram obtidas:
<http://viacampesina.org/es/index.php/organizaciainmenu-
44/iquisomos-mainmenu-45>, acessado em 28/01/2013.

 
54 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

ríodo militar; a exemplo dos primeiros escrachos, os


jovens apontaram uma versão para a atuação de alguns
médicos como colaboradores de histórias de torturas.
O grupo então empreende a chamada “Rodada Nacio-
nal do Escracho Popular”, conforme acordado em reu-
nião da Coordenação Nacional do LPJ. Assim, a pri-
meira rodada nacional ocorreu no dia 26 de março de
2012 em seis capitais brasileiras, tendo como intuito
pressionar o governo a instaurar a Comissão da Ver-
dade, criada através da lei nº 12.528/2011, mas à época
ainda inativa. Em Belo Horizonte – MG, o grupo de-
nunciou Ariovaldo da Hora e Silva; em Porto Alegre –
RS, o grupo denunciou Carlos Alberto Ponzi; em São
Paulo – SP, o denunciado foi David dos Santos Araújo;
em Fortaleza – CE, foi a vez de José Armando Costa,
registrando-se ainda manifestações no mesmo dia em
Belém – PA e Rio de Janeiro – RJ. Cerca de uma semana
após a primeira rodada nacional dos escrachos, o gru-
po promoveu algumas intervenções em repúdio à co-
memoração da chamada “Revolução de 64”, anualmen-
te celebrada no dia 31/03 pelos Clubes Militares. Em
2012, a Presidente da República Dilma Rousseff havia
proibido a comemoração alusiva ao golpe militar; no
entanto, os militares anteciparam a celebração, e em
insubordinação à ordem presidencial, comemoraram a
data no dia 29 de março de 201213.
O LPJ, como resposta à celebração, promoveu
atos contra a comemoração do Golpe de 64 em estados
como o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, além de
estimular uma campanha nacional durante toda a se-
mana que remetia à data do golpe. Assim, a organiza-
ção solicitou aos jovens que difundissem nas redes so-
ciais a tag #LevantePelaVerdade no Twitter, tirassem
uma foto segurando uma folha com a chamada “Le-

13
Notícia veiculada nos principais sites do país. Disponível em:<
http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/48243/>, acessado em
02/02/2013.
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 55

vante pela Verdade” e publicassem no Facebook. Tam-


bém orientou para que enviassem um e-mail para a
Presidente da República exigindo a instalação imediata
da Comissão Nacional da Verdade e organizassem
grupos para colar cartazes pela cidade exigindo a insta-
lação da CNV, conforme demonstra imagem de divul-
gação feita pelo grupo nas redes sociais.
A segunda rodada nacional de escrachos ocor-
reu no dia 14 de maio de 2012, com manifestações em
Pernambuco, no Pará, na Bahia, no Ceará, em Sergipe,
na Paraíba, no Rio Grande do Norte, em São Paulo, em
Minas Gerais, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do
Sul. A ação gerou considerável repercussão nacional e
tem se repetido desde então. Por ocasião dos atos reali-
zados pelo LPJ, o Levante Popular da Juventude de São
Paulo recebeu no dia 17 de dezembro de 2012, o prê-
mio de Direitos Humanos da Presidência da República,
na categoria Menção Honrosa. O prêmio é uma promo-
ção da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
e premiou o grupo em sua 18ª edição. De acordo com a
Presidente Dilma Rousseff, a premiação serve para
“reverenciar as bravas e bravos batalhadores na causa
dos direitos humanos no Brasil”14. Em entrevista15 sobre
a premiação, Tais Carvalho, integrante do LPJ, afirmou
que
Esse ano, uma das principais lutas do levante, foi a
luta por memória, verdade e justiça, através dos
escrachos aos torturadores que inclusive justificou
a menção honrosa pela Secretaria Nacional de Di-

14
Disponível em:
<http://portal.sdh.gov.br/clientes/sedh/sedh/2012/12/10-dez-12-
premio-direitos-humanos-foi-criado-para-reverenciar-bravos-
brasileiros-diz-dilma>, acessado em 18/12/2012.
15
Entrevista da representante do grupo, concedida a Rede de Jornal
TVT. Disponível em:
<https://www.youtube.com/user/redetvt/videos?query=Levante+P
opular+da+Juventude+recebe+men%C3%A7%C3%A3o+honrosa+do+
pr%C3%AAmio>, acessado em 18/12/2012.

 
56 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

reitos Humanos, e outras lutas que a gente vem to-


cando, questões relacionadas à educação, aos 10%
do PIB, à erradicação do analfabetismo. Pra gente é
muito importante que a juventude, que essa gera-
ção, resgate uma luta que foi tocada pela geração
da juventude da década de 60. Muitos entregaram
suas vidas por essa luta, pela liberdade, pelo fim
da ditadura militar. E a nossa geração resgata a lu-
ta desses jovens, pra dizer que essa é uma ferida
que continua aberta, que essa é uma luta que a
gente ainda precisa tocar até que a verdade seja
revelada, para que a gente possa pensar um futuro
livre das marcas da repressão.

As manifestações e atos seguem ocorrendo pelo


país, não apenas por pessoas que tenham vinculação
direta com o ocorrido no período, como vítimas e fami-
liares, a exemplo dos membros do LPJ. A busca desses
agentes apresenta-se entre outros, pela construção de
uma memória social sobre o período militar no Brasil
que de fato apure as violações aos direitos humanos e
as registre na história oficial.
O que se percebe sobre estes jovens que reivin-
dicam essas memórias é que os mesmos têm analisado
o retorno ao passado, não apenas sob uma perspectiva
histórica dos fatos ocorridos, mas com uma relação que
tangencia o presente, dado sobretudo através da vio-
lência empreendida nas comunidades de periferia, a
juventude e a marginalização dos movimentos sociais.
Semelhante à relação da memória com o passado e pre-
sente proposto por Bergson (s/d,) em seu cone da me-
mória. Bosi (1994,09) defende que a memória interfere
no processo ‘atual’ das representações, uma vez que,
por dispor de uma função decisiva no processo psico-
lógico, permite a relação do corpo presente com o pas-
sado. Compreende-se assim que a memória do período
militar no Brasil se apresenta sob a representação de
passado e presente para alguns, os que vivenciaram o
período, e presente e passado para aqueles que não
possuem lembranças desse passado, senão memórias
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 57

do passado adquiridas no presente. No geral, temos


que as memórias do período ressurgem e são reivindi-
cadas não apenas como um dever de memória
(RICOUER, 2007), mas como parte da compreensão de
que esse passado está interferindo ainda hoje na vida
social do Brasil.
É uma luta pelo direito de saber o que aconteceu. E
pelo julgamento dessas pessoas que ainda estão
vivas, e que ainda durante bom tempo foram res-
ponsáveis pela formação do exército que a gente
tem hoje. Então tipo, quando a gente vê policial, ou
você vê as forças armadas, matando, torturando,
eles estão repetindo as práticas de quem formou
eles. Dos que foram torturadores, que foram
opressores do nosso povo. Então a prática se man-
tém a partir disso, sabe. A prática se mantém por-
que essas pessoas que representaram tudo isso,
não tiveram julgamento. Porque é isso, quem não
pune repete (PECHINCHA, 2012).

O que se apresenta nesse contexto são grupos


em disputa pela produção de uma memória ainda pre-
sente no cenário da história brasileira e que ainda está
para ser construída em suas nuances. De um lado, al-
guns militares e outros agentes que desejam um esque-
cimento coletivo dos fatos considerados desconformes,
defendendo a percepção de que o Brasil deve seguir
adiante e esquecer o que passou. Consideram eles que
a volta a esses fatos representa um retrocesso para o
país, posicionamento este que encontra solidariedade
de alguns políticos e agentes públicos do Estado. Em
contrapartida, apresentam-se três gerações de memó-
rias que reivindicam documentos, informações sobre os
desaparecidos políticos, análises dos processos e refle-
xões sobre os métodos repressivos utilizados pelo esta-
do durante o período compreendido entre 1964 e 1985.

 
58 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

Considerações finais

O objetivo das reivindicações memoriais reali-


zadas em prol do direito à memória e verdade, tais
como manifestações e atos públicos, é despertar a soci-
edade civil para o tema e alcançar a atenção do poder
público quanto ao esclarecimento dos fatos ocorridos
no período militar. Estas reivindicações têm se apre-
sentado no cenário social de diversas maneiras; as que
mais se destacaram nos últimos anos foram a ADPF
153, a (re)nominação de logradouros públicos referen-
ciando desaparecidos e ex-presos políticos, manifesta-
ções pela abertura dos arquivos do período militar e os
escrachos/esculachos que romperam no ano de 2012.
Mas até que ponto essas ações atingiram a sociedade
civil? Visando inferir a opinião da sociedade civil acer-
ca destas manifestações, procederam-se as pesquisas
junto ao jornal Folha de São Paulo, especificamente,
junto aos comentários dos leitores sobre o tema. A es-
colha deste veículo considerou o alcance e a repercus-
são nacional de que dispõe. Criada em 1921, a Folha é
considerada um dos jornais mais vendidos do país,
tendo sido o primeiro jornal a disponibilizar conteúdo
on-line para seus leitores, e, nesse sentido, foi o único
jornal com grande repercussão encontrado com espaço
aberto para os leitores exporem seus comentários16.
A pesquisa demonstrou que os leito-
res/comentadores estabelecem uma relação direta do
tema com questões político-partidárias, e, nesse senti-
do, as políticas públicas envolvendo o tema repercutem
de modo significativo nas críticas estabelecidas. O es-
paço pouco a pouco passou a ser utilizado como palco
para debates políticos entre os que apoiavam o gover-
no e os que eram contra. De modo que começaram a
16
Informações obtidas na página do jornal. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/institucional/conheca_a_folha.shtml
>, acessado em 05/02/2013.
As reivindicações por memória e verdade e a CNV 59

surgir relatos e argumentos mais sólidos de defesa para


suas opiniões. Entre eles, merece destaque a do senhor
Elton Santos no dia 13 de janeiro de 2010:
Sr. Guerra. Meu falecido avô foi um militar muito
respeitado em seu tempo, e ele cometeu atos que
são proibidos de serem comentados abertamente
em casa. Sei que a imagem que tenho de um avô
carinhoso mudaria muito depois que fosse tudo re-
levado e por isso prefiro não saber de nada. Mas
tem gente que gostaria sim de saber por que não
tem uma imagem de avô carinhoso para lembrar e
eu respeito essa vontade. Isso é diferente de revan-
che, é apenas para acalmar os corações.

A citação em destaque nos ajuda a observar a


dualidade que o tema em pauta nos traz, o direito legal
da reserva do passado e o direito à memória e à verda-
de. São diversas considerações a serem apontadas den-
tro desse contexto, e o acompanhamento dos comentá-
rios dos leitores realizado até o presente demonstra
pouca percepção e debate sobre o tema em questão: a
importância de se esclarecer as violações aos direitos
humanos ocorridos durante o regime militar. Há uma
vinculação direta das reivindicações empreendidas
sobre o tema a questões político-partidárias, dentro do
que se convém chamar no Brasil de “direita” versus
“esquerda” política. Apresenta-se nesse cenário uma
negligência quanto ao mérito do tema, o que sugere
tratar-se do reflexo de que a discussão não tem alcan-
çado de fato a sociedade, senão determinados grupos,
em sua maioria relacionados às duas primeiras gera-
ções de memória aqui apresentadas.
Sobre a repercussão dos escrachos empreendi-
dos pelos jovens do Levante Popular da Juventude, os
comentários têm apresentado uma rejeição ao modo de
reivindicação utilizado. A condição juvenil dos mani-
festantes é indicada por muitos leitores como deslegi-
timadora de suas reivindicações devido ao fato de não
terem vivido a época. Para os adeptos dessa compreen-

 
60 Ana Paula Ferreira de Brito & Maria Letícia Mazzucchi Ferreira

são, estes jovens deveriam promover atos de manifes-


tações sobre problemas do presente, ligados ao contex-
to deles. Todavia, durante as manifestações e nas pró-
prias matérias que veiculam as informações sobre os
escrachos, os integrantes do LPJ ressaltam que sua luta
está vinculada ao presente, sobretudo no abuso e na
violência do estado, que é apresentada como herança
das violações aos direitos humanos não investigadas
no passado.
A vinculação político-partidária aparece nesse
cenário vinculando os manifestantes ao governo do PT,
apesar do grupo expor que não possui filiação partidá-
ria. A relação é sugerida devido à proximidade do LPJ
com o MST e a Via Campesina, grupos que possuem
uma identidade ideológica com o partido do governo.
De modo geral, o que se pode apreender é que, com os
escrachos, a ação tem chamado a atenção da sociedade,
mas, por consequência da mídia, não tem conseguido
promover uma reflexão social sobre as violações ocor-
ridas durante o regime militar.

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Entrevistas

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ventude e os escrachos. Instituto de Filosofias e Ciências
Sociais, Rio de Janeiro. 06 de junho de 2012. Entrevista
concedida a Ana Paula Brito.
POLITI, Maurice. Políticas Públicas de Memória sobre o perí-
odo militar no Brasil. Núcleo de Preservação da Memória
Política, São Paulo. 14 de junho de 2012. Entrevista con-
cedida a Ana Paula Brito.
Memória com verdade
Memória coletiva e formação
da identidade nacional

Isabela  Camila  da  Cunha1  

Resumo: No presente artigo faz-se o uso de um


breve relato de como se deu a transição política brasi-
leira, os mecanismos disponíveis, segundo o ordena-
mento jurídico brasileiro, para a implantação da Justiça
de Transição no Brasil, especialmente em relação ao
pilar “direito à memória e à verdade”. Discorre-se so-
bre o que é o direito à memória e o direito à verdade,
bem como a junção desses dois direitos e a sua impor-
tância para a formação de uma memória coletiva que
contribua para a identidade nacional. Além disso, rela-
ta-se uma parte do que já foi feito no Brasil sobre o as-
sunto e alguns empecilhos para a efetivação do direito
à memória e à verdade. Dá importância à fase atual
com um relato sobre a Comissão Nacional da Verdade,
assim como alguns casos tratados por ela. Por fim, tra-
ta-se de algumas análises sobre que ainda precisa ser
feito para que a justiça de transição no Brasil seja exe-
cutada plenamente.

1 Estudante de Graduação em Direito pela Universidade Federal de

Ouro Preto. Pesquisa financiada pela Capes (Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) – Programa
Jovens Talentos para a Ciência – 2012.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
66 Isabela Camila da Cunha

Palavras-chave: Direito à Memória e à Verdade; Me-


mória Coletiva; Justiça de Transição.

Abstract: The present article approaches briefly the


implementation of Transitional Justice in Brazil, accor-
ding to the Brazilian legal system, especially in relation
to the pillar “the right to truth and memory”. The con-
cept of right to memory and truth are discussed, as
well as their dynamics and their importance for the
formation of a collective memory that contributes to
national identity. In addition, the progress on this sub-
ject is debated along with some obstacles to guarantee
the right to truth and memory. Moreover, the topics
addressed by the National Commission of Truth are
evaluated, as much as what needs to be done for transi-
tional justice in Brazil to become fully executed.
Keywords: Right to truth and memory; Collective
Memory. Transitional Justice.

Introdução:

A história brasileira, tal qual se encontra nos li-


vros didáticos, é contada de forma estritamente parcial.
Pouco se fala sobre as violações aos direitos humanos
ocorridas durante o período ditatorial. No entanto, essa
ocultação da verdade atrapalha na formação da memó-
ria individual e coletiva do povo brasileiro.
As novas gerações possuem o direito de conhe-
cer a verdade sobre as violações aos direitos humanos
ocorridas durante o regime ditatorial. Faz-se necessário
não tão somente para conhecer o que passou, mas tam-
bém para servir de lição para que novas violações não
venham a acontecer. Ter acesso aos relatos das injusti-
ças ocorridas, bem como o acesso às informações e aos
bens culturais que explicitam o passado, é de extrema
importância para a formação da identidade dos brasi-
leiros.
Memória com verdade 67

1. A transição política brasileira

A transição do regime ditatorial em direção à


democracia, no caso brasileiro, não foi liderada pelos
setores mais radicais da sociedade e do segmento polí-
tico, mas por uma coalizão formada entre as forças
moderadas, que davam suporte ao governo militar, e
os setores também moderados da oposição.
Tratou-se de modelo conhecido como “transição
com transação” em que as mudanças foram negocia-
das, não havendo rupturas violentas de início com o
regime anterior. (SARMENTO, 2009 p.8)
No processo político que se desenvolveu no pa-
ís, o início da transição decorreu de iniciativa de ele-
mentos do próprio regime autoritário, que, durante a
sua fase inicial, ditaram o seu ritmo e impuseram os
seus limites.

2. A Constituição de 1988 e a Justiça de Transição

A Constituição de 1988 representa o marco da


transição do regime ditatorial para uma democracia.
Possui ampla gama direitos fundamentais, bem como a
preocupação com a mudança das relações políticas,
sociais e econômicas, no sentido da construção de uma
sociedade mais inclusiva, fundada na dignidade da
pessoa humana. Além disso, ela dispõe de instrumen-
tos, no art. 8º do ADCT, que permitem a efetivação da
justiça de transição.

3. Justiça de Transição: o que é?

Segundo   Paul Van Zyl2·, “o objetivo da justiça


transicional implica em processar os perpetradores,

2
VAN ZYL, 2009. p.32

 
68 Isabela Camila da Cunha

revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer re-


parações às vítimas, reformar as instituições perpetra-
doras de abuso e promover a reconciliação. ”.
A Justiça de Transição corresponde aos meca-
nismos de passagem de um regime autoritário para um
regime democrático3. Entre as normas fundamentais e
medidas legais que se incentivam na concretização da
Justiça de Transição estão as que devem contribuir pa-
ra o esclarecimento da verdade e a formação da memó-
ria coletiva sobre as violações praticadas durante perí-
odos políticos ditatoriais.
Ao mesmo tempo, outros fundamentos da Justi-
ça de Transição devem ajudar na construção de parâ-
metros para que haja reparação individual e coletiva,
na reforma das instituições estatais e de segurança e
devem incentivar políticas públicas de educação para a
memória, com o objetivo fundamental de que violações
aos direitos humanos e à democracia nunca mais acon-
teçam.4

4. O direito à memória e à verdade

A preservação do registro dos fatos e aconteci-


mentos históricos e psicológicos, tanto individuais

3
É possível salientar os quatro pilares da Justiça Transicional, quais
sejam: reparação às vítimas, fornecimento da verdade e construção da
memória, restabelecimento da igualdade perante a lei e a reforma das
instituições perpetradoras dos crimes contra os Direitos Humanos.
Esses pilares também servem de base para a redemocratização após o
período autoritário.(ABRÃO, TORELLY, 2010.p.10). Os pilares da
Justiça de Transição, acima de tudo, visam à recomposição do Estado e
da sociedade, chamando cada indivíduo a retomar o controle de sua
vida – resgatando uma cidadania consciente, em que cada cidadão é
protagonista de sua própria história. (REMIGGIO, 2009.p.194)
4
Justiça de transição pode ser entendida “como o conjunto de esforços
jurídicos e políticos para o estabelecimento ou restabelecimento de um
sistema de governo democrático fundado em um Estado de Direito,
cuja ênfase não recai apenas sobre o passado, mas também numa
perspectiva de futuro.” (ALMEIDA, TORELLY, 2010. p.41)
Memória com verdade 69

quanto coletivos, se configura como uma evolução para


as relações humanas e é a base para redefinir, afirmar e
transformar valores e ações.
As gerações do presente e do futuro, que não
vivenciaram o passado de abusos cometidos, precisam
conhecer a verdade dos fatos passados para se consci-
entizarem e se tornarem responsáveis para que novas
violações aos direitos humanos por parte do Estado
não voltem a ocorrer.
Nesse sentido, Paul Ricoeur (2007) afirma que
“os mundos dos predecessores e dos sucessores se es-
tendem nas duas direções do passado e do futuro, da
memória e da expectativa, esses traços notáveis do vi-
ver juntos decifrados no fenômeno da contemporanei-
dade”.
A apuração e a revelação da verdade estão liga-
das a uma consolidação de uma memória democrática.
Esta fase é complicada, visto que envolve o Poder pú-
blico, a sociedade civil, as famílias, as vítimas e seus
agressores. A importância se dá em, além de mostrar a
violência ocorrida no período ditatorial, destacar, so-
bretudo a fragilidade da jovem democracia brasileira.
É preciso, tanto quanto reparar, que as pessoas e
as famílias que tiveram os seus projetos de vida impe-
didos por força do Estado tenham voz e que relatem o
ocorrido para que haja uma valorização e uma crença
na importância de se viver em um regime democrático
e promover uma cultura de respeito aos direitos hu-
manos.
Como assinala o professor James L. Cavallaro:
“hoje, na América Latina, os países que mais respeitam
os direitos humanos são precisamente aqueles passa-
ram por períodos terríveis de repressão e que gradu-
almente aprenderam a lidar com o passado de abusos”.
(BARBOSA, VANUCCHI, 2009, p.55)

 
70 Isabela Camila da Cunha

4.1 – O direito à memória

O direito à memória é o direito fundamental de


acesso, fruição, conservação e transmissão do passado
e dos bens culturais que compõem o patrimônio cultu-
ral de uma coletividade, tendo em vista que a memó-
ria5 – enquanto evocação do passado – apresenta tanto
uma dimensão individual, na medida em que cada in-
divíduo tem suas vivências, experiências e recordações
íntimas e pessoais, como uma dimensão coletiva, haja
vista que o compartilhamento da historicidade e cultu-
ra de um povo pertence a toda sociedade.
A preservação da memória, como registro de fato
ou acontecimento histórico e psicológico, indivi-
dual e coletivo, exerce função primordial na evolu-
ção das relações humanas: trata-se de um ato polí-
tico que constitui a base sobre a qual a sociedade
pode afirmar, redefinir e 6transformar os seus va-
lores e as suas ações. (BARBOSA, VANUCCHI,
2009 .p.57)

Como bem enfatiza Baggio:


A ideia de memória comporta uma série de subje-
tividades que a colocam em uma posição comple-
xa de constante abertura e transformação. A me-
mória envolve afetividades, emoções, seletivida-
des e também interpretações. Constitui-se como
memória social quando compartilhada intersubje-
tivamente e nem sempre está livre de divergências
e versões variadas. (BAGGIO, 2012, p.112)

Na transição política brasileira, a memória foi


entendida como sinônimo de esquecimento. Com a

5
A memória,considerada em toda a sua complexidade, é uma
condição para o estabelecimento da verdade sobre os fatos ocorridos
no passado. (BAGGIO, 2012. p.112).
Memória com verdade 71

promulgação da Lei de Anistia7, procurou-se deixar o


passado de violações aos direitos humanos intocado.
Porém, essa ideia já se encontra ultrapassada.
Já de muito foi superada a ideia de que “anistia”
significa “esquecimento”, tanto na sociedade civil,
que consigna no movimento de luta pela anistia o
início do processo de redemocratização brasileira,
quanto nos debates legislativos e ações do Execu-
tivo, que passaram a tratar a “anistia brasileira” ou
como ato de reconciliação (legislativo) ou de pedi-
do de desculpas oficiais do Estado pelos erros que
cometeu (executivo). (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.
34)

Dessa forma, atualmente, comemorando os 25


anos de promulgação da Constituição Cidadã, faz-se
necessário o resgate da memória do que aconteceu no
período ditatorial para que as novas gerações conhe-
çam o passado do seu país, para a formação da identi-
dade do povo brasileiro e para que seja instaurada no
Brasil uma cultura de respeito aos direitos humanos
para que novas violações não voltem a ocorrer.

4.2 – O direito à verdade

O direito à verdade é o direito fundamental a


ser exercido por todos os cidadãos de receber e acessar
as informações que dizem respeito ao interesse público
que estejam em poder do Estado ou de instituições pri-
vadas.
Nos períodos de transição política, esse direito
torna-se mais evidente, uma vez que é dever estatal

7
Durante muito tempo preponderou o entendimento de que a Lei de
Anistia concedeu anistia aos militares e aos opositores ao regime,
assim não foram investigadas e muito menos punidas as violações aos
direitos humanos cometidas por aqueles ao longo de seu regime
totalitário, nem os crimes políticos e eleitorais cometidos por estes.
(BAGGIO, 2012, p.113)

 
72 Isabela Camila da Cunha

revelar e esclarecer às vítimas, aos familiares e à socie-


dade as informações de interesse coletivo sobre os fatos
históricos e as circunstâncias relativas às graves viola-
ções aos direitos humanos praticadas nos regimes de
exceção.8
Para Hannah Arendt, a verdade é “o que não se
pode modificar, é o solo sob o qual nos colocamos de
pé e o céu que se estende acima de nós”.9
O Direito de acesso à informação e a comunica-
ção da verdade contribui para a diminuição da igno-
rância em relação ao passado. Através da informação, o
povo se torna consciente do ocorrido. Isso evita a cren-
ça em promessas milagrosas e a descrença na democra-
cia.
Todo governo democrático deve assegurar o li-
vre acesso à informação, prestando conta de seus atos à
cidadania. Um povo democrático tem de ser bem in-
formado e, para isso, há a necessidade de uma impren-
sa livre.
No entanto, no Brasil há uma resistência por
parte de alguns organismos estatais em abrir os arqui-
vos. Essa negação da verdade viola direitos fundamen-
tais, além de ignorar os anseios da cidadania e atrapa-
lhar o acesso às informações basilares para a estrutura-
ção de vidas individuais.
A ditadura suprimiu e ignorou a verdade. Hou-
ve “pactos de silêncio e concessões mútuas”10. Perma-
neceu “intocável o ajuste de contas”11 e a ignorância
dos fatos pretéritos entre os jovens. Dessa forma, bus-
cou-se a perda da memória.
Assim,

8
SANTOS, 2012. p. 69
9
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
10
BARBOSA, VANUCCHI, 2009. P.58
11
Ibid.
Memória com verdade 73

Nenhum governante tem o direito de ocultar a


verdade dos fatos. A negação injustificada do am-
plo e livre acesso aos arquivos viola preceitos bási-
cos de direitos fundamentais, além de ignorar os
anseios da cidadania pela construção de uma me-
mória coletiva e pelo acesso às informações estru-
turais para as vidas individuais de milhares de
brasileiros. A reconstituição da memória, fundada
na verdade, é, consequentemente, um passo histó-
rico necessário e imprescindível à consolidação
democrática. (BARBOSA, VANUCCHI, 2009. P.
59-60)

4.3 – Direito à memória com verdade: direito à memória coletiva


e formação da identidade nacional

O direito à memória e à verdade, ainda que im-


plícito no texto constitucional, constitui-se um direito
fundamental do povo brasileiro.12
O acesso à memória e à verdade contribui para a
formação da identidade de um povo e o modo como
esse lida com o seu passado, contribuindo, assim, para
a tomada de decisões futuras.
A memória passa a ser um elemento que ajuda a
compreender o modo como a sociedade e o Estado
lidam com seu passado de graves violações de di-
reitos humanos. Mais: evidenciar a opção política
pelo esquecimento ou pela lembrança, bem como
colocar às claras a legitimidade de certos grupos
para o exercício da memória, são peças que inte-
gram esse processo de formação de uma memória
coletiva.(SOARES, QUINALHA, 2011 p. 254)

12
Para mais informações sobre o assunto: SANTOS, Claiz Maria
Pereira Gunça dos. O reconhecimento do direito à verdade como um
direito fundamental implícito no ordenamento jurídico brasileiro.
Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=94aef38441efa338>
Acesso em 15 abril 2013.

 
74 Isabela Camila da Cunha

E ainda:
A memória coletiva que remete justamente a fatos
históricos que transcendem as intimidades indivi-
duais, a despeito de também influenciá-las. Por in-
teressar a um grupo de indivíduos, que pode ser
uma pequena família, uma sociedade nacional ou
até mesmo a comunidade humana em seu conjun-
to, a memória de determinado acontecimento, tal
qual este próprio, assume dimensão coletiva, sen-
do sal elaboração impossível nos estreitos limites
da individualidade. (SOARES, QUINALHA, 2011
p. 256)

5. O que já foi feito

5.1 A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos

A Lei n° 9.140/95 reconheceu como mortos, pa-


ra efeitos legais, os desaparecidos políticos que partici-
param das atividades políticas entre 02 de setembro de
1961 a 15 de agosto de 1979, permitindo a emissão do
atestado de óbito e a indenização aos familiares, e ins-
taurou a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Polí-
ticos.13

13
COMISSÃO ESPECIAL (Mortos e Desaparecidos Políticos) foi
instituída pela Lei 9.140/95 e instalada no Ministério da Justiça
(Decreto nº 18, de dezembro de 1995, Seção I pág. 21426). A Lei nº
10.536/02, publicada no Diário Oficial da União do dia 15.08.2002,
alterou dispositivos constantes da Lei nº 9.140/95, estabelecendo a
responsabilidade do Estado por mortes e desaparecimentos de pessoas
que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação em
atividades políticas, no período compreendido entre 02 de setembro de
1961 e 05 de outubro de 1988. A Lei 9.140/95 previa a possibilidade de
reconhecimento da responsabilidade estatal por mortes e
desaparecimentos, por motivação política, ocorridos no período
compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. A
Lei 10.536/02, portanto, ampliou o período de abrangência. A Lei
10.536/02 estabeleceu o prazo de 120 dias para o protocolo dos
requerimentos, a contar da data da publicação da lei. Disponível em
Memória com verdade 75

Durante onze anos de trabalho da comissão, foram


julgados 475 processos. Destes, 136 casos que já
constavam no Anexo I da Lei nº 9.140/95, obtive-
ram imediatamente o reconhecimento da respon-
sabilidade por parte do Estado pelas mortes ou de-
saparecimentos. Os outros 339 casos foram objeto
de análise e debate pela Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos. Resultando des-
sa análise, 118 indeferimentos e 221 deferimentos.
(VANUCCHI, 2007. p 48.)

O resultado do trabalho da Comissão foi divul-


gado no relatório “Direito à Memória e à Verdade”.
Dentre os casos acolhidos pela Comissão estão o
de Carlos Marighella e Carlos Lamarca. A Comissão
deu atenção especial ao esclarecimento de fatos decor-
rentes da Guerrilha do Araguaia.
Carlos Marighella, resistente que por 40 anos lu-
tou pela democracia no Brasil, foi morto por policiais
enquanto atravessava a rua rumo ao encontro de Frei
Ivo e Frei Fernando, que ele não sabia que já estavam
torturados e mortos dentro de um Volkswagen. O
guerrilheiro foi fuzilado, sem chances de defesa, quan-
do em seu atestado de óbito constava a morte em razão
de um tiroteio. Mesmo portando uma arma, Marighella
não disparou um tiro sequer. Em uma reunião da Co-
missão, por 5x2 seu caso foi acolhido e houve a respon-
sabilização do Estado por sua morte.14
Carlos Lamarca, ex-oficial do Exército Brasileiro,
deixou a carreira militar para participar da Guerrilha
Armada. Passou pela ALN, VPR até finalmente ingres-
sar no Mr-8. Lamarca foi surpreendido por opressores
da ditadura militar enquanto dormia, ao lado do com-
panheiro de luta Zequinha. Ao tentar fugir, foi baleado
e posteriormente morto. Na mesma reunião da Comis-

http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/desaparecidos/abert_desaparecidos.
htm> Acesso em 15 abril 2013
14
Mais informações sobre o caso em: MIRANDA, TIBURCIO, 2008.
Dos Filhos deste Solo. P. 96-103.
76 Isabela Camila da Cunha

são, e coincidentemente com o mesmo placar, 5x2, o


caso de Lamarca foi acolhido e o Estado Brasileiro res-
ponsabilizado por sua morte.

5.1.1 A Guerrilha do Araguaia

Desde o final de 1966, o PC do B dedicou-se à


implantação de quadros partidários na região do Rio
Araguaia, no sul do Pará, escolhida como área mais
adequada para o surgimento de um futuro ‘Exército
Popular’. Com a escalada repressiva desencadeada pe-
lo regime militar após o AI-5, o PC do B acelerou o des-
locamento de militantes para essa ‘área estratégica’,
contando, para tanto, principalmente com lideranças
estudantis obrigadas a viver na clandestinidade por
força da perseguição policial.
Em abril de 1972, os órgãos de segurança detec-
taram a presença do PC do B no sul do Pará e desloca-
ram enormes contingentes do Exército para sucessivas
operações de cerco que prosseguiram até 1974. Inicia-
dos os combates na região, o partido constituiu as ‘For-
ças Guerrilheiras do Araguaia’, que obtiveram algumas
vitórias políticas. O desfecho final dos combates foi,
entretanto, claramente favorável às tropas governa-
mentais, do ponto de vista militar, resultando mortos
mais de 50 militantes do PC do B, após cruel repressão
que se abateu sobre a população de toda a região.
(MIRANDA, TIBÚRCIO,2008.p.232.)

5.2 A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça

A lei 10.559 de 2002, no artigo 1º instaurou a


Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, regulan-
do o que estava previsto no art. 8° do ADCT.
A partir dela foi possível reconhecer a condição
de anistiado político e obter uma reparação econômica
indenizatória.
Memória com verdade 77

A partir de 2007, com a instituição da “Caravana


de Anistia”, houve uma grande contribuição para a
superação do conceito de anistia como política do es-
quecimento.15
A Caravana visita diversos locais no país, onde
realiza os seus trabalhos, explicita as violações aos di-
reitos humanos ocorridas através de depoimentos de
pessoas que tiveram a sua dignidade violada pelo re-
gime ditatorial. Assim, torna possível uma reparação
simbólica e um pedido oficial de desculpas do Estado
brasileiro, que reconhece as violações.16
Em 2005 foram transferidos os documentos rela-
tivos ao período ditatorial da ABIn (Agência Brasileira
de Inteligência) para o Arquivo Público Nacional, co-
mandado pela Casa Civil da Presidência da República.
Por meio do Decreto n° 7. 430/2011, o Arquivo
Nacional foi transferido ao Ministério da Justiça.
O Centro de Referência das Lutas Políticas no
Brasil, denominado “Memórias Reveladas”, foi institu-
cionalizado pela Casa Civil da Presidência da Repúbli-
ca e implantado no Arquivo Nacional com a finalidade
de reunir informações sobre os fatos da história política
recente do País.17
15
O conceito de anistia que vem sendo trabalhado pela Comissão de
Anistia é, portanto, muito diferente da anistia tradicional. Em primeiro
lugar, ele não implica no perdão do Estado a um criminoso, mas sim
no inverso, no pedido de desculpa do Estado por ter agido como um
criminoso, na possibilidade de um perdão concedido pela vítima em
relação ao ato criminoso do Estado. (MOREIRA FILHO, 2009. p.54).
16
A Comissão de Anistia – nascida de um dos principais marcos legais
do sistema de reparações brasileiro, a Lei 10.559/02 – no sentido de
complementar sua atuação na seara reparatória, instituiu uma política
pública que, para além dos tradicionais julgamentos dos
requerimentos de anistia que analisam individualmente a
caracterização ou não da perseguição política por parte do Estado
brasileiro, passa a estabelecer parcerias com a sociedade civil com o
intuito de incentivar a ampliação das práticas de acesso à memória e à
verdade no Brasil, buscando atingir, assim, uma dimensão coletiva da
reparação. (BAGGIO, 2012.p.115)
17
Disponível em:

 
78 Isabela Camila da Cunha

5.3 A Lei de Acesso à Informação

A lei n° 12.527/2011 tem por objetivo garantir a


todos os cidadãos o acesso à informação pública.Ela
estabelece a obrigatoriedade de os órgãos e entidades
públicas divulgarem, independente de solicitação, in-
formações de interesse geral ou coletivo.18
Tal lei revogou a lei Lei nº. 11.111, que autoriza-
va a manutenção do sigilo dos documentos e arquivos
da ditadura por um período indeterminado e violava,
portanto, o Direito à memória e à verdade.

5.4 A Comissão Nacional da Verdade:

Com a lei n° 12.528/2011, que instaura a Comis-


são Nacional da Verdade, foram obtidos mais avanços
em relação à efetivação da Justiça de Transição Brasilei-
ra. De acordo com o diploma legal, são objetivos da
Comissão:
Art. 3 São objetivos da Comissão Nacional da
o

Verdade:
I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos
de graves violações de direitos humanos mencio-
nados no caput do art. 1 ; o

II - promover o esclarecimento circunstanciado dos


casos de torturas, mortes, desaparecimentos força-
dos, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda
que ocorridos no exterior;
III - identificar e tornar públicos as estruturas, os
locais, as instituições e as circunstâncias relaciona-
dos à prática de violações de direitos humanos
mencionadas no caput do art. 1 e suas eventuais
o

<http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.
exe/sys.start.htm?inf
oid=1&sid=2>
18
Disponível e:
< http://www.pgr.mpf.gov.br/acesso-a-informacao>
Memória com verdade 79

ramificações nos diversos aparelhos estatais e na


sociedade;
IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes
toda e qualquer informação obtida que possa auxi-
liar na localização e identificação de corpos e res-
tos mortais de desaparecidos políticos, nos termos
do art. 1 da Lei n 9.140, de 4 de dezembro de
o o

1995.
V - colaborar com todas as instâncias do poder pú-
blico para apuração de violação de direitos huma-
nos;
VI - recomendar a adoção de medidas e políticas
públicas para prevenir violação de direitos huma-
nos, assegurar sua não repetição e promover a efe-
tiva reconciliação nacional; e
VII - promover, com base nos informes obtidos, a
reconstrução da história dos casos de graves viola-
ções de direitos humanos, bem como colaborar pa-
ra que seja prestada assistência às vítimas de tais
violações.

Art. 4 Para execução dos objetivos previstos no


o

art. 3 , a Comissão Nacional da Verdade poderá:


o

I - receber testemunhos, informações, dados e do-


cumentos que lhe forem encaminhados voluntari-
amente, assegurada a não identificação do deten-
tor ou depoente, quando solicitada;
II - requisitar informações, dados e documentos de
órgãos e entidades do poder público, ainda que
classificados em qualquer grau de sigilo;
III - convocar, para entrevistas ou testemunho,
pessoas que possam guardar qualquer relação com
os fatos e circunstâncias examinados;
IV - determinar a realização de perícias e diligên-
cias para coleta ou recuperação de informações,
documentos e dados;
V - promover audiências públicas;
VI - requisitar proteção aos órgãos públicos para
qualquer pessoa que se encontre em situação de
ameaça em razão de sua colaboração com a Co-
missão Nacional da Verdade;
VII - promover parcerias com órgãos e entidades,
públicos ou privados, nacionais ou internacionais,
80 Isabela Camila da Cunha

para o intercâmbio de informações, dados e do-


cumentos; e
VIII - requisitar o auxílio de entidades e órgãos
públicos.

Dentre os casos esclarecidos pela Comissão es-


tão o de Vladmir Herzog, Rubens Paiva e Alexandre
Vanucchi Leme.
Vladimir Herzog foi jornalista, dramaturgo e
militante do Partido Comunista Brasileiro. Foi tortura-
do e morto nas dependências do DOI-CODI após ser
interrogado sobre as suas atividades supostamente
“ilegais”. A família Herzog recebeu das mãos de Rosa
Cardoso, coordenadora substituta da CNV o novo ates-
tado de óbito de Vladimir Herzog, que altera a causa
da morte de asfixia mecânica para "lesões e maus tratos
sofridos durante o interrogatório em dependência do 2º
Exército (DOI-CODI)", acabando de vez com a farsa do
suicídio do jornalista, montada pela ditadura após a
sua morte, em 1975.19
O ex-deputado Rubens Paiva foi torturado e
morto nas dependências do DOI-CODI-RJ. Documen-
tos do Arquivo Nacional e aqueles entregues à polícia
do RS pela família do coronel Júlio Miguel Molinas
Dias, assassinado em Porto Alegre, em novembro,
desmontam a versão oficial montada pelo Exército de
que Paiva foi sequestrado enquanto estava sob custó-
dia dessa força militar e indicam que o ex-deputado foi
assassinado, sob tortura, nas dependências do DOI-
CODI do RJ.20

19
Disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/223-hoje-
estamos-muito-mais-proximos-da-justica-afirma-pinheiro-da-cnv>
Acesso 15 abril 2013
20
Documento disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/images/pdf/publicacaoes/claudio/publica
coes_ruben
s_paiva.pdf>
Memória com verdade 81

Alexandre Vannucchi Leme cursava o quarto


ano de geologia na USP, militava na Ação Libertadora
Nacional (ALN) e tinha 22 anos. Foi preso em 16 de
março de 1973 por agentes do DOI-CODI-SP e barba-
ramente torturado. No dia seguinte, segundo nove pre-
sos testemunharam, o corpo de Alexandre foi encon-
trado na cela onde estava preso e arrastado para o lado
de fora. As testemunhas viram que ele sangrava abun-
dantemente na região do abdome. Dias depois, em 23
de março, a repressão divulgou a falsa versão de que
Vannucchi Leme havia sido atropelado na rua Bresser,
na Mooca, ao tentar fugir da prisão.21
Alexandre Vannucchi Leme foi reconhecido
como anistiado político e foi promovido um julgamen-
to simbólico do caso do estudante, seguido de um pe-
dido oficial de desculpas do Estado.
A Comissão, que ainda está em vigor, terá pu-
blicado o seu relatório final em maio de 2014.

6. O que ainda precisa ser feito:

No entanto, parte da legislação infraconstitucio-


nal ainda constitui um empecilho à efetivação da Justi-
ça Transicional.
A Lei nº 6.683/79, que serve de marco da transi-
ção política brasileira, foi assinada no governo de João
Baptista Figueiredo, após um período conturbado, com
exigência de diversos setores sociais, onde políticos,
pensadores e jovens envolvidos na política tiveram
seus projetos e sonhos abortados.
A Lei de Anistia de 1979 acabou concedendo a
todos que tivessem cometidos crimes políticos e aos
que tiveram seus direitos políticos suspensos, uma
21
Disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/220-cnv-
participa-de-homenagem-a-alexandre-vannucchi-leme-em-sp> Acesso
em 15 abril 2013

 
82 Isabela Camila da Cunha

anistia ampla, geral e irrestrita. No entanto a referida


lei foi uma lei pela “metade”, pois não anistiou todos
os presos, cassados, banidos, exilados e perseguidos
políticos, tendo em vista que não anistiou os “conde-
nados por atentados e sequestros políticos, deixou os
cassados ainda inelegíveis, subordinou a reintegração
dos funcionários à decisão das autoridades de cada
setor envolvido” 22. Não se pode esquecer que a pro-
mulgação desta lei ocorreu com os militares ainda no
poder. A lei foi o marco para a redemocratização, con-
tudo ela representou uma política de esquecimento.
Todavia, em 05 de maio de 2005, com a promul-
gação da Lei nº. 11.111, operou-se um grave retrocesso
na lenta transição política brasileira, vez que o referido
diploma legal autorizou a manutenção do sigilo dos
documentos e arquivos da ditadura por um período
indeterminado, violando ferozmente o direito à verda-
de e à memória, além de fomentar o esquecimento e
impedir o conhecimento dos fatos. Nota-se, desse mo-
do, que até 2005, a justiça de transição brasileira foi
marcada pelo formato do esquecimento, sendo cum-
prido apenas o pilar da reparação, através da Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP
e da Comissão da Anistia.

Conclusão

A revelação da verdade é fundamental para


uma democracia, para que esta, lidando com o ocorri-
do, tenha um aprendizado para modificar o presente e
garantir um futuro de paz.
No contexto histórico político do Brasil no século
XXI, portanto, a plenitude da vigência dos direitos

22
Disponível em:
<http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/memoria-e-
historia/exposicoes-virtuais/anistia-de-1979> Acesso em 15 abril 2013
Memória com verdade 83

humanos, incluindo-se aí o direito à memória e à


verdade, deve ser considerada como instrumento
primordial da realização e da promoção da condi-
ção humana. E tal plenitude deve ser permanente,
entendida como poderosa ferramenta de transfor-
mação social, com o objetivo de construir uma so-
ciedade mais justa, e como um instrumento de
respeito integral aos valores democráti-
cos.(BARBOSA, VANUCCHI, 2009.p.66)

Nestes 25 anos da Constituição da República e


65 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
é de extrema importância que se lute para preservar a
memória dos que lutaram pela democracia e responsa-
bilizar os que praticaram crimes contra a humanidade.
A reconstrução da memória, fundada na verda-
de, promove o sentimento de justiça, um elo de conti-
nuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo.
Resgatar a memória, com verdade, é elucidar o incons-
ciente e irracional trazendo para o nível da consciência
racional. Dessa forma, o resgate da memória e da ver-
dade liberta e condiciona a reconciliação.
Além disso, cabe ressaltar a importância da
conscientização para evitar a crença em promessas mi-
lagrosas e a descrença na democracia. Conhecer o pas-
sado é fundamental para que se construa o futuro.
Por fim, vale ressaltar que na história brasileira,
o período da ditadura militar não foi o único em que se
teve enorme violação de direitos humanos. Outras épo-
cas, como o genocídio indígena do período colonial, a
escravidão, bem como o Estado Novo foram outras
épocas em que houve abuso de poder por parte de
quem deveria promover os direitos humanos. Assim,
faz-se necessária a identificação, a preservação e a difu-
são da memória para que novas violações não voltem a
ocorrer.
Ninguém pode ocultar os fatos, “a proibição tra-
ta-se de negação dos acontecimentos históricos e de
arbitrariedade, por trás da qual se escondem a medio-

 
84 Isabela Camila da Cunha

cridade e os obstáculos para vencer a força das ideias”.


(BARBOSA, VANUCCHI, 2009. P.59-60)
O povo não pode ser refém desse sistema mon-
tado com pretensões de acerto, mas que está contami-
nado com o vício pelo erro. A soberania é do povo e
não dos ocupantes do poder, nem dos detentores das
armas, e muito menos dos grupos criminosos.
(REBELO, 2013 p. 232)

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providências.
BRASIL.Lei N° 10.559/02. Regulamenta o art. 8 do Ato
o

das Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras


providências.
BRASIL. Lei N° 12.527/11. Regula o acesso a informações
previsto no inciso XXXIII do art. 5 , no inciso II do § 3 do
o o

art. 37 e no § 2 do art. 216 da Constituição Federal; altera


o

a Lei n 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei


o

n 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei


o

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o

BRASIL. Lei Nº 12.528/11. Cria a Comissão Nacional da


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86 Isabela Camila da Cunha

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Justiça de Transição no Brasil
Um estudo sobre a transição democrática
brasileira ante o direito internacional dos
direitos humanos

Ramon  de  Sousa  Nunes1  

Resumo: A ideia de justiça transicional está intima-


mente ligada aos direitos à memória, à verdade, à repa-
ração e à justiça, os quais exsurgem da ideia de não-
repetição de violações de direitos e liberdades, da re-
construção da Democracia em um país, e da tutela dos
direitos das violadas vítimas, conceitos estes alinhados
com o Sistema Global de proteção aos direitos huma-
nos e recomendações da Organização das Nações Uni-
das, com a Convenção Americana de Direitos Huma-
nos, bem como com a jurisprudência da Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos. O Estado brasileiro
selecionou somente mecanismos e processos ligados
aos direitos à reparação, que atendem de modo insufi-
ciente os direitos à memória e à verdade. Não obstan-
te, no que se refere à responsabilização (direito à justi-
ça) dos agentes públicos que violaram direitos huma-
nos no período ditatorial, à revelia das regras de Direi-
to Internacional, foi-lhes concedida a anistia, o que
demonstra claramente que a transição democrática tem
sido insatisfatória.

1 Advogado. Universidade Federal do Maranhão.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Justíça de Transição no Brasil 89

Palavras-chave: Direito Internacional dos Direitos


Humanos. Justiça de transição. Transição democrática
brasileira.

Abstract: The idea of Transitional justice is closely


linked to the right to social memory, truth, restoration
and justice, which emerge from the notion of non-
repetition of violations of rights and freedoms and the
need for rebuilding democracy and protecting the
rights of rape victims – all in line with the United Na-
tions Global System for protecting human rights, the
American Convention on Human rights, and the juris-
prudence of the Inter-American Court of Human
Rights. Notwithstanding, in order to achieve these
goals, the Brazilian government selected only tort
mechanisms and procedures, which do not meet the
rights of memory and truth. Furthermore, amnesty
was granted to public officials who violated human
rights during the dictatorial government, with com-
plete disregard of rules of international law, evincing
that the transition to democracy has been clearly unsat-
isfactory.
Keywords: International Human Rights Law . Transi-
tional justice. Brazilian democratic transition .

Introdução

A justiça de transição é o conjunto de processos


e mecanismos ligados a uma transformação segura de
um Estado violador dos direitos humanos para um
Estado democrático, na qual destacam-se os seguintes
aspectos: a garantia aos direitos à memória, à reparação
e à justiça, bem como a reforma das instituições demo-
cráticas (SIKKINK; WALLING, 2007).
Neste estudo, intenta-se verificar a extensão da
justiça que marca a transição brasileira da ditadura
militar para o período democrático e sua contribuição
para o processo democrático e os direitos humanos,

 
90 Ramon de Sousa Nunes

por meio da perspectiva da proteção internacional dos


direitos humanos, dos caminhos trilhados pelo gover-
no brasileiro e da opinião dos doutrinadores sobre o
que representa uma justiça de transição de qualidade.

1. A Justiça de Transição brasileira

Conforme Piovesan (2010b), o período que mar-


cou a ditadura militar no Brasil (1964 a 1985) acarretou
o desaparecimento forçado de 150 pessoas, a morte de
100, além de denúncias que superam a soma de 30.000
casos de tortura, de autoria de agentes públicos orien-
tados pela doutrina da Segurança Nacional.
Anote-se que o Brasil não foi o único país a pas-
sar por uma ditadura na segunda metade do século
passado na América Latina, ao que se somam, por
exemplo, as ditaduras chilena, argentina e peruana.
Outrossim, a ditadura militar brasileira foi a menos
agressiva, apesar de, igualmente, ter provocado crimes
contra a humanidade e implicado nas mais variadas
violações a direitos humanos.
Não obstante, o Brasil paulatinamente avançou
para a Democracia, utilizando os militares a Lei de
Anistia (Lei n. 6.683/79) – que anistiou tanto rebeldes
como agentes públicos - como um meio para se desvin-
cularem do poder, sem que se perdesse o controle so-
bre esse processo (PAYNE et alii, 2011, p. 28)
Tal processo, de grande repercussão, inclusive
internacional, é denominado transição democrática, da
qual decorre a justiça de transição. A importância de
uma justiça de transição aparece na necessidade de
recomposição dos direitos humanos violados e de re-
construção do processo democrático desconstituído
por um Estado autoritário.
Assim, a comunidade científica jurídica e tam-
bém das disciplinas que marcam o estudo da sociedade
ao redor do mundo, têm destinado parte de sua aten-
Justíça de Transição no Brasil 91

ção a essa específica justiça, voltada aos Estados que


passaram por um período de exceção (a Democracia).
Observe-se que a própria discussão acerca da
justiça de transição, ou seja, sobre as ações ou omissões
tomadas por um Estado para sanar graves violações de
direitos humanos cometidas no passado, frutos de um
regime de força, é relevante, porquanto atualmente os
direitos humanos estão protegidos internacionalmente,
o que indica a priori que a justiça de transição não é
somente um problema de direito interno.
A internacionalização dos direitos humanos se
iniciou na segunda metade do século XIX, perdurando
até a 2ª Grande Guerra. Nessa primeira fase, restringiu-
se a influenciar o direito humanitário, a luta contra a
escravidão e a regulação dos direitos do trabalhador
assalariado (COMPARATO, 2011, p-67-68). Assim, o
Direito Internacional voltava-se apenas de modo seto-
rial para a proteção dos direitos humanos.
Entretanto, após as atrocidades e constantes vio-
lações de direitos humanos decorrentes da Segunda
Guerra Mundial, tornou-se insuficiente a proteção in-
ternacional dos indivíduos limitada a certas condições
ou situação determinadas. Daí estes acontecimentos
culminarem no advento das Declarações Universal e
Americana dos Direitos Humanos, de 1948, ao que teve
início o processo de generalização dos direitos huma-
nos (TRINDADE, 2000, p.23). Na mesma esteira, Ian
Brownlie informa que:
Os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e
a preocupação em prevenir a repetição de catástro-
fes associadas às políticas internas das Potências
do Eixo levaram a preocupação crescente pela pro-
teção jurídica e social dos Direitos Humanos e das
liberdades fundamentais. Um pioneiro notável
neste campo foi Hersch Lauterpacht, que salientou
a necessidade duma Declaração Internacional dos
Direitos do Homem. As disposições da Carta das
Nações Unidas fornecem também uma base dinâ-
92 Ramon de Sousa Nunes

mica para o desenvolvimento do Direito. (1997, p.


587-588)

Isso ocorreu pois houve, em verdade, um deslo-


camento da discussão doutrinária – entre os autores
modernos: Alexy (2011), Perez Luño (2001) e Vargas
Ramírez (1997) - acerca da origem, ou seja, do funda-
mento dos direitos humanos, para o problema da eficá-
cia.
É que a Declaração Universal dos Direitos do
Homem solucionou o problema do fundamento, sendo
prova de fato de que um sistema de valores pode ser
humanamente fundado e reconhecido, uma vez que foi
o primeiro a ser aceito pelo consenso da maioria dos
homens, por meio de seus governos (BOBBIO, 2004, p.
25-45).
Assim, Norberto Bobbio destaca que “o proble-
ma fundamental em relação aos direitos do homem,
hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.
Trata-se de um problema não filosófico, mas político.”
(2004, p. 23).
Retomando o processo de generalização dos di-
reitos humanos, este se caracterizou precisamente pela
preocupação política com relação à tutela internacional
dos direitos humanos.
Desse modo, diversos e inúmeros instrumentos
jurídicos de proteção começariam a existir e ser cons-
truídos. Esses instrumentos passariam a se caracterizar
pela diversidade de meios e identidades de propósito,
tendo em vista que, apesar de se diferenciarem quanto
a suas origens, naturezas, efeitos jurídicos, âmbitos de
aplicação, destinatários, beneficiários, exercícios de
funções e seus mecanismos de controle e supervisão,
possuiriam uma convergência direcionada à manuten-
ção da pessoa humana de acordo com esta qualidade
(TRINDADE, 2000, p. 24-25).
Entre esses instrumentos, a professora Danielle
Annoni elenca os seguintes:
Justíça de Transição no Brasil 93

(...) a Declaração Universal dos Direitos Humanos


(ONU, 1948); a Convenção Europeia para a prote-
ção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais (Conselho de Europa, 1950); o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU,
1966); o Pacto Internacional dos Direitos Econô-
micos, Sociais e Culturais (ONU, 1966); a Conven-
ção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial (ONU, 1968); a
Convenção Americana de Direitos Humanos
(OEA, 1969); a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mu-
lher (ONU, 1979); a Convenção contra a Tortura e
Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas
e Degradantes (ONU, 1984); a Convenção sobre os
Direitos das Crianças (ONU, 1989), dentre inúme-
ros outros de alcance regional, como as Conven-
ções aprovadas pela OEA e válidas para o sistema
americano, as Convenções Africanas e da Liga
Árabe (2009, p. 26-27).

Ademais, agregou-se a este fenômeno a supera-


ção das objeções clássicas: à intervenção internacional,
a qual impossibilitou aos Estados utilizarem o conceito
de soberania como argumento contra a ação internaci-
onal; a cristalização e o reconhecimento da capacidade
processual internacional dos indivíduos; a limitação do
princípio da reciprocidade diante de questões de or-
dem pública, na qual se inclui a proteção aos direitos
humanos; e, por fim, a progressiva atribuição ou asser-
ção da capacidade de agir dos órgãos internacionais
fundamentada nos instrumentos jurídicos
(TRINDADE, 1991, p.3-12).
Formou-se, ao final de cinco décadas, um com-
plexo corpo de regras jurídicas que mantiveram a uni-
dade conceitual dos direitos humanos atrelada à ine-
rência dos direitos ao ser humano. A este complexo
deu-se o nome de Direito Internacional dos Direitos
Humanos (TRINDADE, 2000, p. 24-25).
Cabe observar que os tratados internacionais
que, com o auxílio das declarações – especialmente as
94 Ramon de Sousa Nunes

provindas da ONU - compõem a fonte do Direito In-


ternacional dos Direitos Humanos estão submetidas ao
regime objetivo das normas de direitos humanos2.
Tal regime implica que esses tratados, ao revés
do costumeiro, não sintetizarão apenas obrigações re-
cíprocas entre os Estados, mas indicarão um dever com
a própria sociedade internacional de atenderem a um
objetivo último, qual seja, a proteção do ser humano
(ANNONI, 2009, p.32-33).
Destarte, em síntese, demonstrou-se que os Di-
reitos Humanos estão hoje garantidos sob a unidade
conceitual da proteção ao homem enquanto ser huma-
no em inúmeros tratados. Assim sendo, considerando
que a justiça de transição busca reparar os direitos hu-
manos violados por um regime autoritário, confirma-se
a primeira afirmação: a justiça de transição, especial-
mente quando insuficiente, é também uma questão de
Direito Internacional.
Além disso, cabe comentar que a própria inter-
nacionalização dos direitos humanos só se deu de mo-
do efetivo no momento em que o próprio mundo pas-
sava por uma transição entre uma época extremamente
violenta para outra em que se prometia um mundo de
respeito aos direitos do homem. Assim, a justiça de
transição está na raiz da internacionalização dos direi-
tos, sendo o Tribunal de Nuremberg uma das origens
dessa justiça.
Por outro lado, o problema da responsabilização
internacional por violação de direitos humanos, decor-
rente da proteção internacional aos direitos humanos,
desenvolveu-se, uma vez que funciona como método
para se chegar à reparação, como uma resposta dos
organismos internacionais contra o responsável pela
injúria ao direito humano internacionalmente tutelado.

2
Registre-se que “o regime objetivo dos direitos humanos já foi
reconhecido no âmbito das instâncias especializadas em direitos
humanos” (ANNONI, 2009, p. 33)
Justíça de Transição no Brasil 95

Apesar de ter havido algumas tentativas de se


codificar internacionalmente as regras sobre a respon-
sabilidade internacional, vale ressaltar que este institu-
to é eminentemente consuetudinário (ANNONI, 2009,
p. 39).
De qualquer modo, não se pode olvidar que:
(...) o Estado tem o dever jurídico internacional de
prevenir razoavelmente as violações dos Direitos
Humanos, investigando seriamente as que são
cometidas no âmbito de sua jurisdição, identifi-
cando os culpados e assegurando, assim, para a ví-
tima, uma reparação equitativa (PEREIRA, 2000, p.
164).

E o descumprimento desse dever jurídico, tanto


por ação como por omissão3, ensejará a responsabiliza-
ção internacional, para que se garanta a hegemonia dos
direitos humanos.
Nessa esteira, o art. 63, par. 1º, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, afirma que quan-
do a violação de direito ou liberdade for procedente, a
Corte Interamericana determinará a reparação da vio-
lação, bem como o pagamento de indenização à vítima.
Comentando esse dispositivo, os professores Luiz Flá-
vio Gomes e Valerio Mazzuoli explicam:
Assim, nos casos constatados de violação de direi-
tos humanos, a Corte determinará [sic] sejam repa-
radas, as consequências da medida ou situação
que haja configurado a violação de direitos e de-
terminará uma indenização justa (de caráter com-
pensatório) à parte lesada. (...). Daí se entender que
o sistema interamericano é um sistema eminente-
mente reparador. (2011, p. 329-330)

3
“Essa responsabilidade, contudo, não se manifesta apenas de modo
comissivo. A omissão também gera responsabilidade, quando o
indivíduo ou o Estado tinham o dever legal de prestar, de atuar, de
impedir a lesão ou dano causado. E o Estado é assim responsável
também no foro internacional”. (ANNONI, 2009, p. 39)

 
96 Ramon de Sousa Nunes

Repise-se que em tema de direitos humanos os


próprios indivíduos terão capacidade postulatória fren-
te aos organismos internacionais4, ainda que contra o
seu próprio país de origem. No entanto, tirante o âmbi-
to da Convenção Americana, essa capacidade constitui-
se dentro dos tratados internacionais cláusula faculta-
tiva, o que a torna sem efeito contra os Estados que não
expressem seu consentimento prévio.
Sobre o tema, o professor Cançado Trindade
demonstrando a importância deste, ao afirmar:
With the consolidation of the right of individual
petition before international tribunals of human
rights, international protection has attained its ma-
turity. The human being nowadays occupies the
central position which he merits, as subject of both
domestic and international law, amidst the process
of humanization of international law, which is be-
coming more directly attentive to the identification
and realization of common superior values and
goals.5 (2011, p. 49)

Interessa ainda notar uma segunda particulari-


dade da responsabilidade internacional por violação de
direitos humanos. É que há uma certa rejeição ao clás-
sico mecanismo unilateral dos tratados bilaterais, no
qual dado Estado combate a violação individualmente,
4
“O mais interessante é que como o respeito aos Direitos Humanos
constitui uma obrigação de Direito Internacional o súdito afetado por
um evento danoso, pode e deve aparelhar contra o Estado causador de
tal evento, sem necessariamente utilizar seu Estado como
intermediário, através do endosso diplomático”. (PEREIRA, 2000, p.
159)
5
“Com a consolidação do direito individual de petição frente aos
tribunais internacionais de direitos humanos, a proteção internacional
alcançou sua maturidade. O ser humano atualmente ocupa a posição
central que ele merece, como assunto do direito interno e
internacional, por meio do processo de humanização do Direito
Internacional, que vem se tornando mais diretamente atencioso à
identificação e realização de valores e objetivos comuns e superiores”
(Tradução livre).
Justíça de Transição no Brasil 97

oferecendo sanções a outro que tenha violado direitos


humanos.
A rejeição ocorre porque esse mecanismo pode-
ria servir como instrumento de pressão política e eco-
nômica, por meio de um Estado mais desenvolvido que
pressionasse outro menos desenvolvido, acarretando a
dilapidação da soberania dos países mais frágeis.
Diante disso, adotou-se o mecanismo coletivo,
que implica na adoção do devido processo legal. Daí
que o julgamento relativo à responsabilização dos Es-
tados que violem direitos humanos se dará através de
mecanismos similares aos jurisdicionais, por meio de
órgãos especializados6.
Anote-se que apesar do processo de generaliza-
ção dos direitos humanos ter sido aqui desenvolvido
de forma linear, é preciso destacar, conforme Sikkink
(2011b), que a denominada “Era da Responsabiliza-
ção”, na qual se vive hodiernamente, foi alcançada não
através de um processo histórico único, mas múltiplo,
em que os acontecimentos convergiram.
A partir disso, verifica-se que uma justiça de
transição de má qualidade, que não revele uma efetiva
reparação por parte de um Estado em reconstrução
democrática, poderá ensejar a sua consequente respon-
sabilização7. Mas então, o que se entende por justiça de
transição? O professor José Carlos Moreira da Silva
Filho a conceituou da seguinte forma:
Justiça de transição é um termo de origem recente,
mas que pretende indicar aspectos que passaram a
ser cruciais a partir das grandes guerras mundiais
deflagradas no século XX: o direito à verdade, à

7
Sem que se julgue a justiça e a qualidade jurídica da decisão, vale
ressaltar que no caso denominado “Guerrilha de Araguaia”, procedeu-
se pela Corte Interamericana a responsabilização do Estado brasileiro
por violação de direitos humanos relativa à qualidade da justiça de
transição brasileira.

 
98 Ramon de Sousa Nunes

memória, à reparação e à justiça e o fortalecimento


das instituições democráticas. O foco preferencial
da justiça de transição recai sobre sociedades polí-
ticas que emergiram de um regime de força para
um regime democrático (SILVA FILHO, 2011, p.
280).

Depreende-se desse conceito que a justiça de


transição é composta: do direito à verdade, que signifi-
ca a revelação da história escondida; do direito à me-
mória, do qual decorre que as violações de direitos
humanos não devem ser esquecidas; do direito à repa-
ração, que visa devolver às vítimas a situação anterior
à violação de seus direitos e liberdades, bem como no
pagamento de indenização, quando os danos forem
irreversíveis; do fortalecimento das instituições demo-
cráticas, que é voltado para a democratização de insti-
tuições afetadas pelo regime antidemocrático anterior;
e, por fim, do direito à justiça, que revela a necessidade
de punição aos agentes públicos que dilapidaram direi-
tos humanos.
Esses direitos que a compõem, deve-se ressaltar,
são métodos e mecanismos, que possuem o fim de re-
construir a Democracia em um país outrora autoritário,
para que se alcance o efetivo respeito aos direitos hu-
manos.
Descrevendo este contexto, Kathryn Sikkink le-
ciona:
Desde a década de 1980, os Estados não estão ape-
nas iniciando os processos, mas também estão, ca-
da vez mais, usando diversos mecanismos alterna-
tivos de justiça transicional, incluindo as comis-
sões da verdade, reparações, anistias parciais, de-
puração, museus e outros ‘locais de memória’, ar-
quivos e projetos de história oral, para tratar de
violações dos direitos humanos cometidos no pas-
sado. (2011b, p. 43)

Desse modo, é a partir desse contexto da cres-


cente proteção aos direitos humanos aliada a um uso
Justíça de Transição no Brasil 99

frequente pelos Estados de mecanismos de transição,


que se analisará o caso brasileiro.
O estudo do caso brasileiro nesse contexto pos-
sui peculiar significado. É que a evolução da justiça
transicional se desenvolveu com ineditismo e amplitu-
de de um lado, especialmente no que concerne ao pro-
grama de reparação, embora com ausência persistente
de julgamentos de outro, e atuação insuficiente quanto
ao direito à memória e à verdade.
A justiça de transição é ainda importante no
Brasil, porquanto o Estado brasileiro tenha vivenciado
um período de ditadura militar (após 1964 e até o perí-
odo próximo da Constituição de 1998) caracterizado
pela restrição de direitos fundamentais, com seu res-
pectivo declínio decorrente do retorno do movimento
democrático ao país.
Na contramão da decisão do STF, a justiça de
transição até então praticada no Brasil vem sofrendo
novos desafios, especialmente no âmbito internacional,
no qual se destaca recente sentença da Corte Interame-
ricana no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha de
Araguaia”) vs. Brasil, condenando a este investigar,
punir e reparar as violações de direitos humanos per-
petradas.
Nesse compasso, merece ser posta em relevo a
criação da Comissão Nacional da Verdade, pela Lei
n.12.528 de novembro de 2011, com o objetivo de escla-
recer as violações de direitos humanos pertinentes ao
período entre 1946 e 1988, o que vem a trazer nova tô-
nica no que diz respeito ao direito à verdade e à memó-
ria histórica.
Como o Estado brasileiro não adotou, dentre os
mecanismos transicionais estudados, apenas os julga-
mentos, adotando ainda que de forma mínima os de-
mais mecanismos (a reparação, a reforma das institui-
ções democráticas, a memória e a verdade) e diante da
completa ausência de julgamentos, o tópico em segui-
mento abordará especialmente essa linha específica.

 
100 Ramon de Sousa Nunes

Assim, as perguntas a serem respondidas serão:


(1) a escolha do Estado brasileiro pela ausência de jul-
gamentos está em conformidade com as prescrições do
Direito Internacional dos Direitos Humanos?; (2) a au-
sência de julgamentos torna o modelo de transição bra-
sileiro efetivo?
Em relação ao primeiro questionamento, algu-
mas considerações preliminares devem ser feitas.
Primeiramente, o Brasil é parte hoje nos princi-
pais tratados sobre direitos humanos no âmbito global
e no âmbito do sistema interamericano, portanto a per-
gunta será respondida com relação a estes âmbitos. Em
segundo, deve ser frisado que a Lei de Anistia brasilei-
ra abrangeu tanto violadores como opositores do regi-
me e, outrossim, que foi fruto de um processo de tran-
sição negociada e controlada pelo regime militar.
Adicionalmente, anote-se, no que tange a este
segundo ponto, que Borges (2012, p. 92-94) e Bastos
(2009, p. 195-198) entendem que, por conta de ter im-
pedido julgamento contra ambas as partes (agentes
públicos e opositores), a anistia brasileira deve ser clas-
sificada como “autoanistia” ou anistia de via dupla8,
que tem como característica fazer esquecer as graves
violações de direitos humanos cometidas pelos agentes
do Estado durante o período de exceção9.

8
Bastos também classifica a anistia brasileira como anistia em branco,
sendo que esta classificação tem o significado muito próximo ao de
“autoanistia”, significando que: “é normalmente concedida por
influência de ditadores que estão se retirando do poder, sem que haja
qualquer legitimidade nacional ou internacional” (2009, p. 118).
9
“O processo de transição democrática brasileira, assim como o de
outras nações latino-americanas, partiu do pressuposto de que os
direitos das vítimas eram variáveis menores do processo de transição e
que, se fossem sobrelevadas, poderiam colocar em risco a própria
reconciliação. As leis de anistia, entendidas por Elizabeth Salmon
como ‘mecanismos exculpatórios que nem sempre buscam a
reconciliação da nação’, constituíram uma solução unilateral dos
governos, com o claro objetivo de promover o esquecimento dos
Justíça de Transição no Brasil 101

Desta feita, conforme visto, a anistia como pos-


sível mecanismo da justiça de transição é geralmente
incompatível com o Direito Internacional, sendo que as
leis “autoanistias” são veementemente confrontadas
pela jurisprudência interamericana e que o sistema
global ainda não possui uma posição uniforme sobre o
tema, apesar de existir uma tendência para considerá-
las incompatíveis10.
Logo, a princípio, chega-se à conclusão de que a
anistia brasileira é incompatível, em primeiro lugar,
com o sistema interamericano de direitos humanos, por
se tratar de uma “autoanistia”, e provavelmente in-
compatível, a depender da interpretação casuística da
própria ONU, frente ao sistema global11.
Nessa esteira, a Lei de Anistia brasileira, como
elemento impeditivo da realização do dever dos Esta-
dos (do brasileiro, no caso) de perseguir e punir viola-
dores de direitos humanos, não se insere na lógica da
atual jurisprudência da Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos e se encontra em desconformidade com o
Relatório S/2004/616 do Secretário-Geral do Conselho
de Segurança das Nações Unidas e com a Recomenda-
ção Geral n. 20, de abril de 1992, adotada pelo Comitê
de Direitos Humanos.

crimes cometidos por seus próprios membros e funcionários.”


(PETRUS, 2010, p. 277).
10
No mesmo sentido, concluem Gomes e Mazzuoli: “A Lei de Anistia
brasileira viola vários tratados internacionais (especialmente a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969) e não possui
nenhum valor jurídico, sobretudo o efeito de acobertar os abusos
cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura militar.” (2011,
p. 159). E também Borges, que comentando a decisão brasileira sobre a
ADPF n.º 153, afirma: “Enfim, o Brasil, sob a vertente do direito
internacional e dos tratados internacionais, como, por exemplo, a
Convenção Americana de Direitos Humanos, Declaração Universal de
Direitos Humanos, a Convenção contra a Tortura, parece ter o dever
de fornecer um remédio eficaz para as vítimas de graves violações dos
direitos humanos.” (2012, p 105).
102 Ramon de Sousa Nunes

Diante deste panorama de incompatibilidade


com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, no
âmbito interno, tentou-se, por via da Arguição de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental nº 153/2008,
ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a rein-
terpretação do parágrafo único da Lei de Anistia, em
conformidade com a Constituição Federal 1988, de
modo que a expressão “crimes políticos ou conexos”
não abrangeria os crimes comuns cometidos pelos
agentes da repressão (RAMOS, 2011, p.180).
A ADPF nº 153 também marcou a ocorrência de
um fato inédito, porquanto pela primeira vez, ao mes-
mo tempo em que a ADPF – ação com efeito vinculante
e erga omnes - era julgada no Supremo Tribunal Federal,
estava sendo processada perante a Corte Interamerica-
na uma causa com objetivo semelhante (caso Brasil vs.
Gomes Lund e outros) (RAMOS, 2011, p. 182).
Entretanto, no dia 2 de abril de 2010, o Supremo
Tribunal Federal, por maioria de seus membros, julgou
improcedente a ação, decidindo pela extensão dos efei-
tos da lei aos agentes da repressão (BORGES, 2012, p.
102-103). No voto do relator, restou rechaçado o trata-
mento dos delitos em questão como crimes contra a
humanidade, afirmada a ausência da obrigação inter-
nacional do Estado brasileiro de investigar e punir tais
crimes, além da impossibilidade de punir tais crimes
por força do princípio constitucional da prescrição
(VENTURA, 2011, p. 326).
Registre-se que a repercussão internacional, em
relação à decisão, foi bastante negativa, tendo recebido
críticas da ONU, através de sua Alta Comissária para
Direitos Humanos, Navi Pillay, e da ONG International
Center for Transitional Justice, por via de seu presidente,
David Tolbert (BORGES, 2012, p. 104-105).
Parte da doutrina, da mesma forma, posicionou-
se contrária à decisão do STF. Neste sentido, por exem-
plo, Deisy Ventura afirma que:
Justíça de Transição no Brasil 103

Perenizou-se uma equação conjuntural do Poder


Legislativo brasileiro, aliás, reconhecida em muitos
trechos do acórdão: a anistia possível, em 1979, foi
aquela. Mas isso não significa que ela seja lícita.
Sacrificar os direitos de muitos, e inclusive princí-
pios universais, para proteger o privilégio de al-
guns poucos faz parte desse provincianismo [que
significa desconhecimento da jurisdição internaci-
onal]. (2011, p. 342).

E também Flávia Piovesan, para quem:


Com esta decisão, o Supremo Tribunal Federal de-
negou às vítimas o direito à justiça – ainda que te-
nha antecipado seu endosso ao direito à verdade.
Não apenas denegou o direito à justiça, como tam-
bém reescreveu a história brasileira mediante uma
lente específica, ao atribuir legitimidade político-
social à lei de anistia em nome de um acordo polí-
tico e de uma reconciliação nacional. (2010a, p.
466)

Desse modo, o que resta constatado é que o Es-


tado brasileiro, através do Poder Judiciário, escolheu
manter a interpretação da Lei de Anistia brasileira, por
meio do argumento político de que esta foi fruto de um
acordo político e é uma forma de promover a reconcili-
ação nacional, o que, como visto, é uma noção inexata,
tendo em vista que a transição brasileira, apesar de
poder ser classificada como negociada, foi controlada
desde o seu início pelo regime militar.
Em relação aos argumentos jurídicos, estes se
mostram contrários ao Direito Internacional dos Direi-
tos Humanos, porquanto, no momento em que o Esta-
do brasileiro aderiu à Convenção Interamericana de
Direitos Humanos e à Convenção contra a Tortura,
ambos tratados sobre direitos humanos, e à Declaração
Universal dos Direitos Humanos, passou a ser obriga-
do perante a comunidade internacional a proteger os
direitos humanos, obrigação esta que não é bilateral,

 
104 Ramon de Sousa Nunes

como são as obrigações ordinárias originárias de trata-


dos, mas de ordem pública.
E entre tais obrigações, como se viu, está o dever
de perseguir e punir as violações de direitos humanos,
as quais ocorreram em série durante o período de exce-
ção, notavelmente, através de exílios, desaparecimen-
tos forçados, prisões perpétuas, execuções extrajudici-
ais e torturas.
Neste caso, quando se está diante de crimes con-
tra a humanidade, não há como se aplicar a prescri-
ção12, uma vez que o próprio período de exceção é um
óbice à persecução penal. De fato, entre as violações
ocorridas, pode ser que existam violações que não se
tratem de crime contra a humanidade ou grave viola-
ção de direitos humanos e, portanto, possa prescrever
normalmente, porém tais casos deveriam ser analisa-
dos concretamente e não de forma abstrata
(VENTURA, 2011, p. 334).
Internacionalmente, entretanto, o descumpri-
mento brasileiro reiterado da obrigação de perseguir e
punir teve consequência em termos de responsabilida-
de internacional.

12
Sem que se entre com profundidade no tema, veja-se: “(...) comento
que me causa certa graça supor que o princípio da imprescritibilidade
dos contra a humanidade estaria condicionado a assinatura, ratificação
e incorporação de uma convenção internacional por uma junta militar,
em pleno ano de 1969, a mesma que, no ano seguinte, o de 1969, como
já mencionei, emendou arbitrariamente a Constituição para instituir as
penas de morte, prisão perpétua, banimento e confisco” (VENTURA,
2011, p. 327)
E mais à frente: “Os crimes contra a humanidade são imprescritíveis,
sobretudo porque, amiúde, há, nos Estados em que são praticados, a
impossibilidade material de processo de grandes violadores, antes que
a remoção do entulho ditatorial opere-se no ordenamento jurídico
nacional, critério temporal que não é passível de medição. No caso
brasileiro, em particular, é notoriamente inacabada. E acrescento: a
prescrição só pode ser arguida caso a caso, no seio do processo
individualizado, não podendo a Corte Suprema fundar interpretação
de uma lei de anistia no aventureiro pressuposto de que todos os
crimes por ela abarcados prescreveram.” (VENTURA, 2011, p. 334).
Justíça de Transição no Brasil 105

Assim, em 26 de março de 2009, com base em


violações dos arts. 3 (direito ao reconhecimento da per-
sonalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à inte-
gridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (ga-
rantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e de
expressão) e 25 (proteção) da Convenção Interamerica-
na de Direitos Humanos, combinados com as obriga-
ções previstas nos arts. 1.1 (obrigação geral de respeito
e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar
disposições de direito interno) do mesmo tratado, a
Comissão Interamericana apresentou à Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos demanda contra o Estado
brasileiro, originada de petição apresentada pelo Cen-
tro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela
Human Rights Watch/Americas, em representação de
pessoas vítimas de desaparecimento forçado no contex-
to da Guerrilha de Araguaia, com fim de forçar o Esta-
do brasileiro a adotar medidas de reparação13 (OEA,
2010, p.3-4).
Tal demanda foi originada da responsabilidade
do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e
desaparecimento forçado de 70 pessoas (entre elas,
membros do Partido Comunista do Brasil e campone-
ses da região), além da execução extrajudicial de M. L.
P. S., resultado de operações do Exército brasileiro,
empreendidas entre 1972 e 1975, com o objetivo de er-
radicar a Guerrilha do Araguaia, durante o período de
exceção (OEA, 2010, p. 3-4).
Consequentemente, conforme Ramos (2011, p.
199-202) e a Organização dos Estados Americanos
(2010, p. 114) em 24 de novembro de 2010, alguns me-
ses após sentença do STF que decretou a improcedên-
cia da ADPF n.º 153, a Corte Interamericana condenou

13
Registre-se que anteriormente, em 31 do 10 de 2008, a Comissão já
havia elaborado o Relatório de Mérito 91 de 2008, o qual,
responsabilizando o Estado brasileiro recomendou ao Brasil que
adotasse medidas de reparação (OEA, 2010, p. 3).

 
106 Ramon de Sousa Nunes

a República Federativa do Brasil, afirmando que: a Lei


de Anistia brasileira é incompatível com a Convenção
Americana; o Brasil é responsável de forma permanen-
te pelos desaparecimentos forçados; o direito à verdade
foi violado; houve violação ao direito à integridade
pessoal dos familiares das vítimas14; e, por fim, as ale-
gações de prescrição e falta de tipificação penal prévia
não podem ser utilizadas como obstáculos à persecu-
ção penal.
Demais disso, há ainda dois aspectos que mere-
cem ser ressaltados. O primeiro (já mencionado) é o de
que a própria Corte Interamericana concluiu direta-
mente que a Lei de Anistia brasileira (classificada como
“autoanistia”) não é compatível com a Convenção Inte-
ramericana. O segundo aspecto é o de que, entre as
reparações impostas pela sentença da Corte, esta exor-
tou a iniciativa brasileira de criar a Comissão Nacional
da Verdade (até então não criada), desde que em con-
formidade com os critérios de independência, idonei-
dade e transparência, e que a Comissão não substituís-
se a obrigação brasileira de responsabilizar individu-
almente os agentes da repressão (OEA, 2010, p. 107).
Constada a ilegalidade do Estado brasileiro
frente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos,
especialmente em relação à Convenção Interamericana,
resta uma questão a ser solucionada. É que, se o mode-
lo atual brasileiro fosse o mais capaz (ou seja, um mo-

14
Gomes e Mazzuoli, enfatizando alguns aspectos da sentença,
afirmam: “Aliás, como bem enfatizou a sentença de 24.11.2010 da
Corte Interamericana, nem sequer a decisão do STF, que validou a Lei
de Anistia em abril de 2010 possui qualquer tipo de relevância (ou
obrigatoriedade/eficácia) no plano jurídico internacional. A Corte não
revogou a decisão do STF, porque não é essa sua função. Ela
simplesmente analisou a decisão do STF no plano do controle de
convencionalidade. E concluiu que o STF não levou em conta os
tratados internacionais sobre direitos humanos ratificado pelo Brasil
(Convenção Americana sobre direitos Humanos [sic] de 1969) na sua
decisão.” (2011, p. 160).
Justíça de Transição no Brasil 107

delo efetivo) de dar continuidade à transição democrá-


tica, haveria como argumentar, frente aos organismos
internacionais, se tratar a situação brasileira de uma
exceção, na qual a anistia seria admissível.
No capítulo passado, chegou-se à conclusão de
que a melhor abordagem para tornar uma justiça de
transição efetiva é a holística, na qual se percebe que
existem situações nas quais as anistias são admissíveis,
porquanto mecanismos eficientes na efetivação de uma
transição democrática, sendo que a justiça deve ser im-
plementada tanto quanto possível, tendo em vista,
além das exigências do Estado de Direito, a ampliação
do respeito aos direitos humanos.
Desta dicotomia, extraiu-se, com fulcro na pes-
quisa de Olsen et alii (2009, p. 157-158), a conclusão de
que quando a transição for negociada (como no caso
brasileiro), a melhor resposta seria uma anistia seguida
de julgamentos, devendo os julgamentos ser realizados
assim que possível e desde que possível, do ponto de
vista econômico e da possibilidade de conflito interno.
Rememore-se, nesse sentido, que a pesquisa de
Sikkink e Walling (2007), constatou que não há relação
entre conflitos e julgamentos, e, ainda, que há indícios
de que os julgamentos são capazes de melhorar os ín-
dices de proteção aos direitos humanos no Brasil.
A situação brasileira, conforme estudado acima,
é de uma transição controlada pela ditadura militar, na
qual a Lei de Anistia - promulgada no início da abertu-
ra política em 1979 e irradiando efeitos até o presente
momento - abrange, na interpretação que lhe vem sen-
do dada, de forma irrestrita os agentes da repressão.
Por outro lado, também não há expectativa
imediata de que essa situação se transforme, tendo em
vista que a decisão mais recente do STF foi no sentido
de manter a anistia aos agentes públicos e que não se
observa nos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo
qualquer tendência de buscar o fim da situação.
Dito isso, não há como reconhecer que a anistia
tenha alguma função atual na transição democrática
 
108 Ramon de Sousa Nunes

brasileira, sendo o modelo transicional brasileiro sem


efetividade, porquanto não lança mão de todos os me-
canismos necessários e possíveis (especificamente jul-
gamentos), ainda quando coagido pela ordem interna-
cional, para efetivar a transição.
Nesse caso, a conduta brasileira adequada, do
ponto de vista dos parâmetros de efetividade da justiça
de transição, seria, após a concessão de anistias, iniciar
os julgamentos, assim que possível, ou seja, assim que
o regime político estivesse a salvo do controle ou de
um revés militar.
Demais disso, além da ausência de julgamentos,
o primeiro tópico deste capítulo revelou que ainda há
alguma deficiência na prestação dos outros mecanis-
mos da justiça de transição, como a reforma das insti-
tuições, a qual até o momento ainda não se realizou
com firmeza no âmbito do sistema de segurança públi-
ca e das Forças Armadas, e prestação de verdade e
memória, que, conquanto possua expectativa de me-
lhora com a Lei de Acesso à Informação e a criação da
Comissão da Verdade, ainda vive sob a pressão e au-
sência de prestação de informações por parte dos agen-
tes militares.
Nesse sentido, Bruno Barbosa Borges entende
que:
(...) percebe-se que o Brasil, apesar de ter avançado
na superação do seu passado ditatorial, principal-
mente no que tange às reparações às vítimas e seus
familiares, ainda não cumpriu seus deveres com
relação à verdade, à justiça, e, muito menos, con-
seguiu realizar todas as reformas institucionais.
(2012, p. 162)

Assim, embora tais mecanismos não tenham si-


do o alvo principal deste tópico, é forçado reconhecê-
los ao menos como motivo concorrencial para conside-
rar a justiça de transição brasileira um modelo sem efe-
tividade.
Justíça de Transição no Brasil 109

Desse modo, conclui-se que, além da Lei de


Anistia brasileira ser incompatível com o Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos (na forma explicada
acima), o modelo transicional brasileiro não corres-
ponde a um modelo que siga as tendências, demons-
tradas por pesquisas atuais, acerca da forma efetiva de
se realizar uma transição democrática, isto é, o modelo
transicional brasileiro não é um modelo efetivo.

1.1 O potencial da Comissão da Verdade na efetivação da


transição democrática brasileira

A Comissão Nacional da Verdade, criada pela


Lei n. 12.578/2011, possui a finalidade, conforme o art.
1º da citada lei, de examinar e esclarecer as violações
praticadas durante o regime de exceção, com o fim de
efetivar os direitos à memória e à verdade, além de
promover a reconciliação nacional. Note-se que não há
nela qualquer finalidade de promover julgamentos
quanto aos agentes da repressão15.
De fato, ela não possui o fim de sanar a mora no
adimplemento da obrigação internacional do Estado
brasileiro relativa ao direito à justiça, mas tão somente
o de ampliar a prestação do direito à verdade e à me-
mória histórica.
Atualmente, tendo em vista que a Comissão só
foi efetivamente instalada em 16 de maio de 2012, ain-
da não se pode traçar uma linha de atuação (JINKING
e LOURENÇO, 2012). Não obstante, já existem indícios
de que ela adotará uma postura autônoma, porquanto
recentemente, mesmo sob pressão de setores das For-
ças Armadas para abranger em sua atuação os crimes
supostamente cometidos pelos opositores, decidiu,
através de Resolução publicada no Diário Oficial da

15
Tal fim é inclusive vedado pelo art. 4º, § 4 , da Lei 12.578/11.
o

 
110 Ramon de Sousa Nunes

União, restringir a apuração aos agentes da repressão


(COMISSÃO, 2012).
Diante desse panorama, afigura-se mais provei-
toso tratar acerca do potencial impacto que a Comissão
Nacional da Verdade pode ter no modelo transicional
brasileiro e, assim, na efetivação da transição democrá-
tica brasileira, isto é, acerca dos resultados que se po-
dem esperar da Comissão.
Para este fim, brevemente serão analisados qua-
tro estudos, sendo três deles específicos sobre a Comis-
são da Verdade brasileira e o outro de âmbito mais ge-
ral. Os quatro estudos são os seguintes: Wiebelhaus-
Bram (2009), Coelho Filho (2012) e Ghione (2012), os
específicos; e Reiter et alii (2010), o geral.
Reiter et alii (2010, p. 475-476), após afirmarem
que os dados estatísticos indicam uma tendência das
Comissões da Verdade a piorarem a situação dos direi-
tos humanos, quando não utilizadas em combinação
com a interação entre a estabilidade proporcionada
pela anistia e a accountability provinda dos julgamen-
tos, chegam à conclusão de que:
As descobertas neste artigo demonstram o valor
de tanto de isolar os mecanismos de justiça transi-
cional como de estudar as interações para deter-
minar quando, como e por que eles alcançam obje-
tivos importantes da justiça social. Nós concluímos
que o sucesso na ampliação da proteção dos direi-
tos humanos apresenta melhores resultados quan-
do parte da interação entre a função de accountabi-
lity provinda dos julgamentos ou a estabilidade
proporcionada pelas anistias. Nossa análise quali-
tativa e quantitativa sugere que comissões da ver-
dade podem possuir um papel importante na me-
lhora do equilíbrio da justiça e na promoção dos
direitos humanos.16 (2010, p. 476).

16
“The findings of this article demonstrate the value of both isolating
transitional justice mechanisms and studying their interactions to
Justíça de Transição no Brasil 111

Desse modo, se o uso isolado da Comissão da


Verdade poderia ter um impacto negativo, a análise de
Reiter et alii (2010) conclui que ela pode ter um impacto
positivo, desde que combinada com anistia e julgamen-
tos17.
Neste caso, a perspectiva para o caso brasileiro,
no qual se adotaram unicamente julgamentos, é a de
que a Comissão Nacional da Verdade pode ter impac-
tos negativos em relação aos direitos humanos18, caso o
Estado brasileiro não passe a adotar julgamentos, no
que completaria a interação entre a anistia e os julga-
mentos.
Interessante notar, nessa esteira, que a opinião
de Ghione (2012) é a de que a Comissão da Verdade
brasileira pode ser um primeiro passo na adoção da
justiça retributiva e, assim, de julgamentos, porquanto,
a depender do impacto dos seus relatórios, é possível
que a sociedade brasileira passe a pressionar as instân-
cias públicas pela revogação da Lei de Anistia.
Ainda em relação à Comissão da Verdade, Ghi-
one (2012) entende que ela está bem equipada para
criar uma memória histórica, especialmente pelo poder

determine when, how and why the achieve important social justice
goals. We conclude that success in improving human rights protection
most likely results from the interaction of trials’ accountability
function and amnesties’ stability function. Our quantitative and
qualitative analysis suggests that truth commissions can play a
valuable role in enhancing that justice balance and in promoting
human rights.” (original em inglês).
17
Vale lembrar que esta interação pode se dar nas seguintes formas:
anistia restrita a alguns casos e julgamentos dos principais violadores
dos direitos humanos, no caso do regime ter entrado em colapso;
anistia seguida de julgamentos posteriores, quando a transição for
negociada.
18
Como Reiter et alii (2010, p. 475-476) frisam, os resultados só valem
em relação ao objetivo de fortalecer os direitos humanos, não existindo
dados para afirmar que a Comissão da Verdade usada sem
julgamentos e anistia não possa ter um efeito positivo para outros fins,
como produzir verdade oficial que possibilite a sociedade se mover em
frente ou dar voz às vítimas.
112 Ramon de Sousa Nunes

de acesso a informações fornecido pela lei que a criou.


Outrossim, tendo em vista a quantidade pequena de
seus membros, pode ser que enfrente alguns problemas
práticos.
De qualquer forma, Ghione aduz que: “A co-
missão pode contribuir consideravelmente para a re-
conciliação nacional se for bem sucedida em trazer o
conflito em torno de abusos dos direitos humanos para
a atenção do público amplo”19.
Wiebelhaus-Bram (2009, p. 22), na mesma linha,
entende que o Brasil tem muito a ganhar com a Comis-
são da Verdade, uma vez que desvelar a verdade pode
ser uma forma de muitos sobreviventes e familiares de
vítimas passem a se beneficiar de reparações. Além
disso, o autor afirma que, mesmo que a Comissão não
proporcione nenhuma sanção contra os agentes da re-
pressão, ainda assim ela pode oferecer alguma forma
de accountability, fazendo com que sua reputação pú-
blica seja desconstruída.
Em relação aos obstáculos que a Comissão pode
enfrentar, Wiebelhaus-Bram (2009, p.23) aponta dois
principais:
O primeiro é que os programas de reparações
existentes já trouxeram algumas informações. Para
conseguir informações além destas, a Comissão da
Verdade terá que negociar com os agentes da repres-
são, pois os documentos podem estar escondidos ou ter
sido destruídos, sendo que, sem um meio de incenti-
vo20, será uma tarefa muito difícil cumprir os seus obje-
tivos.

19
“The commission may contribute considerably to national
reconciliation if it succeeds in bringing the conflict surrounding past
human rights abuses to broad public attention.” (original em inglês).
20
Wiebelhaus-Bram (2009, p. 23) cita o oferecimento de imunidade ou
anistia mais segura que a atual, como um poder da Comissão, para
extrair informações dos agentes da repressão.
Justíça de Transição no Brasil 113

Nessa mesma esteira, merece destaque a conclu-


são de Coelho Filho (2012), na qual este afirma que o
melhor caminho seria a revogação da Lei de Anistia de
1979, de acordo com a jurisprudência da Corte Intera-
mericana, seguida de anistias individuais para aqueles
que cooperassem com a investigação da Comissão Na-
cional. Assim, termina sugerindo a existência de um
compromisso entre o Supremo Tribunal Federal e a
Corte Interamericana, no qual o Estado brasileiro pas-
saria a respeitar o Direito Internacional.
Outrossim, o segundo obstáculo é o de que as
violações de direitos humanos atuais podem retirar a
atenção da sociedade da memória revelada de 30 anos
atrás, assim Wiebelhaus-Bram (2009, p.23) destaca que
uma investigação mais ampla, abrangendo também as
violações ocorridas desde 1985, pode possuir mais re-
levância social e melhorar os efeitos da Comissão sobre
os direitos humanos no Brasil.
Desse modo, conclui-se que a Comissão Nacio-
nal da Verdade possui um grande potencial para cons-
truir a memória histórica e conscientizar a sociedade
acerca das violações cometidas, apesar de ter ainda
muitos obstáculos para enfrentar. Por outro lado, caso
não se adote julgamentos, existe a possibilidade de que
a ela implique um impacto negativo ou impacto ne-
nhum na cultura dos direitos humanos21.

21
“A criação de uma Comissão da Verdade, assim como o
processamento internacional do Estado brasileiro, pode produzir
desdobramentos positivos ou negativos para o modelo transicional
brasileiro. Seu sucesso poderia permitir a localização de arquivos
fundamentais para a compreensão do período de repressão, ampliar o
processo de reconciliação estatal com as vítimas e, sobremaneira,
formular uma narrativa concorrente àquela que vem sendo
remasterizada desde a ditadura e que é amplamente incorporada na
memória institucional do país. O êxito neste último aspecto singular já
seria suficiente para justificar a existência de uma Comissão da
Verdade. Inobstante, o fracasso da empresa poderia deslegitimar de
modo fatal os movimentos que afirmam a existência de arquivos
secretos em mãos particulares e, mais especificamente, a ausência de

 
114 Ramon de Sousa Nunes

Quantos aos julgamentos, é de esperar que os


relatórios da Comissão causem impacto suficiente na
sociedade para que esta passe a cobrar pelo menos a
reinterpretação da Lei de Anistia, com o fim de excluir
os agentes da repressão de sua incidência, e assim in-
clusive cumprir o conteúdo da sentença da Corte Inte-
ramericana, retirando o Brasil da mora em relação a
suas obrigações internacionais.

Conclusão

Por tudo, observa-se um processo transicional


que se desenvolveu bastante pelo lado da reparação,
tendo atualmente melhorado o sistema de implementa-
ção da verdade e memória histórica com o advento da
Comissão Nacional da Verdade, mas que desafia o Di-
reito Internacional moderno sobre o tema, baseado na
ideia de que a falta de responsabilização pode ocasio-
nar a caracterização de justiça transicional como de má
qualidade.
Daí emerge a principal característica do caso
brasileiro, uma vez que este possui um regime transici-
onal contraditório e que vem sofrendo desafios na sea-
ra internacional e interna, além de ser em parte diverso
daquele de outros países da América Latina.

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podem levar os resultados finais produzidos pela mesma a um quadro
de ampla deslegitimação, o que seria crítico para o processo
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O arcabouço jurídico
da Justiça de Transição
Comparações teórico-práticas entre Brasil e
Argentina

Aécio  Filipe  Coelho  Fraga  Oliveira1  


Maria  Gabriela  Freitas  Cruz2  
Mariana  Rezende  Oliveira3  

Resumo: A transição entre regimes ditatoriais e o Esta-


do Democrático de Direito não se resume à documen-
tação de relatos sobre as arbitrariedades cometidas pe-
los agentes da ditadura, mas se expande até as formas
de responsabilização criminal e civil do próprio Estado
e seus funcionários. Neste estudo, buscamos analisar as
divergências, e seus motivos, na maneira de efetivação
dessa Justiça de Transição no Brasil e na Argentina,
Palavras-chave: Justiça de Transição – Brasil - Argenti-
na

Abstract: The transition between dictatorships and a


democratic rule-of-law State is not limited to the doc-

1 Acadêmico do curso de direito da Universidade Federal de Minas

Gerais.
2 Acadêmica do curso de direito da Universidade Federal de Minas

Gerais.
3 Acadêmica do curso de direito da Universidade Federal de Minas

Gerais.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
122 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

umentation of reports on the arbitrariness perpetrated


by public agents. It it also encompasses criminal and
civil accountability of the State itself and of those rep-
resenting it. In this study we analyze the differences
between in the execution of Transitional Justice both in
Brazil and Argentina.
Keywords: Transitional Justice – Brazil – Argentina

1. Introdução

Com a comemoração dos 25 anos da atual Cons-


tituição Brasileira, verifica-se a necessidade de rever,
discutir e analisar o regime militar brasileiro. Nota-se
que os crimes cometidos nesse contexto não receberam,
de fato, o tratamento correspondente. Justificados pela
Lei da Anistia, adotada em 1979, os responsáveis pelas
atrocidades cometidas estão, até hoje, impunes. Vale
ressaltar, porém, que a permanência dessa lei se confi-
gura como um movimento contracorrente ao realizado
pelo restante do mundo.
Ainda sobre esta, a Lei de 1979 foi fator de con-
denação do país pela Corte Interamericana dos Direitos
Humanos, em dezembro de 2010, visto que foi conside-
rada uma ferramenta para a perpetuação da impuni-
dade em relação às graves violações cometidas durante
a ditadura. Pela Convenção de San José da Costa Rica,
considerou-se nulo qualquer efeito da Lei de Anistia1,
assim como qualquer efeito limitador que possa ter na
investigação e no processamento de qualquer outro
crime de Estado. Entende-se, assim, que a atual situa-
ção brasileira frente ao seu passado militar se configura
como um obstáculo para a norma geral de responsabi-
lização individual.
Com essa condenação, verifica-se o ascendente
papel do Direito Internacional de exigir dos Estados a
proteção real dos direitos humanos, por considerar que
tais crimes afetam a comunidade internacional como
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 123

um todo. Nesse sentido, o art.8º da Declaração Univer-


sal dos Direitos Humanos dispõe:
Toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para
as jurisdições nacionais competentes contra os atos que
violem os direitos fundamentais reconhecidos pela
Constituição ou pela lei.
Diante disso, propomos uma análise comparada
das reações pós-ditadura no Brasil na Argentina, no
intuito de fomentar uma discussão mais rica sobre uma
observação analítica dos seguintes aspectos: o contexto
histórico, as mudanças legais pós-ditadura e a respon-
sabilização criminal e civil.
Antes, porém, é importante abordar o significa-
do de Justiça de Transição, a sua aplicabilidade atual e
as críticas que foram feitas a esse estado legal da Justiça
nas duas realidades analisadas.
O estado de transição, que se verifica entre re-
gimes autoritários e o de democratização, exige um
processo de adequação do regime e da sociedade a fim
de possibilitar a real inserção da democracia e todos os
princípios que, com ela, são absorvidos nesse novo
momento. Assim, é necessário que o país afronte o seu
passado de desrespeito com os direitos humanos, cri-
ando as leis, executando os processos necessários para
a reparação das vítimas e a responsabilização dos cul-
pados.
Como já definido, justiça de transição seria “(...)
como o conjunto de esforços jurídicos e políticos para o
estabelecimento ou restabelecimento de um sistema de
governo democrático fundado em um Estado de Direi-
to, cuja ênfase não recai apenas sobre o passado, mas
também numa perspectiva de futuro4” e tem por obje-

4
ALMEIDA, Eneá de Stutz e. TORELLY, Marcelo. Justiça de Transição,
Estado de direito e Democracia Constitucional: Estudo preliminar sobre o
papel dos direitos decorrentes da transição política para a efetivação
do estado democrático de direito. Volume 2. Número 2. Porto Alegre.
Julho/dezembro 2010.
124 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

tivo “investigar a maneira pela qual sociedades, mar-


cadas por passados de abusos de direitos humanos,
atrocidades maciças ou diferentes formas de traumas
sociais, (...) buscam trilhar um caminho de mais demo-
cracia ou apenas de mais paz5.”
De fato, a Justiça de Transição foi e é fortemente
influenciada pelo cenário nacional e internacional. Ini-
ciou-se pela execução de processos referentes à viola-
ção dos direitos humanos, pelos Estados individuais da
América Latina6. Em seguida, houve a criação de novas
leis internacionais de direitos humanos e leis penais
internacionais, culminando em 1988, no Estatuto de
Roma do Tribunal Penal Internacional.
Instituições como a Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos atuaram e atuam fortemente nesse
apoio na busca de uma configuração sólida de Justiça
de Transição. O próximo estágio foi a criação de insti-
tuições internacionais ad-hoc específicas, como o Tribu-
nal Ad-Hoc para a Antiga Iugoslávia (ICTY, em in-
glês)7. Assim, em alguns casos, passou-se a utilizar da
jurisprudência internacional como apoio na penaliza-
ção dos autores de crimes contra os direitos humanos.
A Justiça de Transição se consolida em quatro
bases: reparação às vítimas, fornecimento da verdade e
construção da memória, restabelecimento da igualdade
perante a lei e a reforma das instituições perpetradoras
dos crimes contra os Direitos Humanos, sendo que es-

5
SANTOS, Roberto Lima. Crimes da Ditadura Militar. Responsabilidade
Internacional do Estado Brasileiro por Violações aos Direitos
Humanos. Porto Alegre. Núria Fabris Ed. 2010. p. 43.
6
PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D.. A anistia
na era da responsabilização:contexto global, comparativo e introdução ao caso
brasileiro. Brasil: Oxford: Brasília: University Of Oxford; Ministério da
Justiça, Comissão de Anistia, 2011. p.156.
7
PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D.. A anistia
na era da responsabilização: contexto global, comparativo e introdução ao caso
brasileiro. Brasil: Oxford: Brasília: University Of Oxford; Ministério da
Justiça, Comissão de Anistia, 2011. p.156.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 125

sas quatro vertentes serão aqui analisadas na realidade


brasileira e argentina.

2. Elementos teóricos sobre o contexto histórico do


período ditatorial brasileiro

Antes de comentar sobre a responsabilização ci-


vil dos agentes dos regimes militares brasileiro e argen-
tino, deve-se abordar o que levou à ditadura no Brasil
em 1964. De fato, as origens desse acontecimento en-
contram-se nos anos 54/558.
Em 1954, em consequência de uma oposição po-
lítica insustentável ao seu governo, agravada pelo
“atentado da Rua Toneleros”, o até então presidente
Getúlio Vargas abala a sociedade com o seu suicídio
abrindo espaço para uma nova fase de governo.
A linha adotada pelo ex-presidente era a im-
plementação de um projeto desenvolvimentista basea-
do na forte intervenção do Estado em áreas ditas como
“estratégicas”. Exemplo disso foi a campanha populista
e nacionalista, chamada “O petróleo é nosso”9, com a
qual se adquiriu apoio da população. Além disso, Var-
gas atuava contrariamente às tendências de utilização
do capital externo10. Porém, a adoção de tal manejo po-
lítico promovia a oposição internacional.
Com a morte de Vargas, inicia-se um período de
internacionalização da economia, que demonstra sua
fragilidade ao final do governo de JK, devido a um
processo inflacionário e à desnacionalização econômi-

8
ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. O processo político no
Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. P.183
9
FREIRE, Américo. Entre dois governos: 1945-1950 > redemocratização e
eleições de 1945. 2012. Artigo retirado do site da fundação Getúlio
Vargas. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/artigos/Dois
Governos/Redemocratizacao>. Acesso em: 21 mar. 2013.
10
FREIRE, op. cit.
126 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

ca, além da dependência externa11. A insatisfação popu-


lar com as dificuldades econômicas fortalece as exigên-
cias de trabalhadores e as greves, em confluência com a
antiga política varguista. Iniciam-se intensos movimen-
tos políticos em que trabalhadores se recusavam a so-
frer os prejuízos de ocasionados pelas medidas do go-
verno12.
Compreende-se, desse modo, o que de fato es-
tava em jogo no contexto do golpe militar. Em 1961,
após a renúncia do sucessor de JK, Jânio Quadros, as-
sumiu seu vice, João Goulart, mais conhecido como
“Jango”13. O perfil de João Goulart logo chamou aten-
ção das elites, mais precisamente no momento de sua
posse. Quando Jânio Quadros renunciou, Jango estava
na China comunista em uma visita. Setores da socieda-
de tentaram evitar sua posse, já que era visto como um
governador de tendências de esquerda. Iniciou-se, en-
tão, a Campanha Legalista, no intuito de garanti-la,
cumprindo a Constituição14. Para dar fim a esse impas-
se, instaurou-se um governo parlamentar, reduzindo
os poderes do presidente.
Além da desconfiança causada por seu plano de
governo, o real estopim para a instauração do Regime
Militar de 64 foi um discurso inflamado no Rio de Ja-
neiro, no qual Jango defendia a promoção da reforma

11
FERREIRA, Marieta de Moraes. Cem anos de JK., 2012. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/apresentacao>. Acesso
em: 22 mar. 2013.
12
FERREIRA, op. cit.
13
CANCIAN, Renato. Governo João Goulart (1961-1964): polarização
conduz ao golpe. , 2006. Disponível em:
<http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/governo-
joao-goulart-1961-1964-polarizacao-conduz-ao-golpe.htm>. Acesso em:
22 mar. 2013.
14
CANCIAN, op. cit.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 127

agrária e a nacionalização das refinarias estrangeiras de


petróleo15.
Logo, no intuito de manter uma realidade ali-
nhada ao capital externo, no dia 31 de Março de 1964,
tropas militares lideradas pelos generais Luís Carlos
Guedes e Olímpio Mourão Filho desencadeiam o mo-
vimento golpista16. Em pouco tempo, comandantes mi-
litares de outras regiões aderiram ao movimento de
deposição de Jango. Em 1º de abril, João Goulart aban-
donou a presidência, e se exilou no Uruguai, instau-
rando-se o regime militar17. Verifica-se, então, como
pronunciado pela doutora em História Econômica pela
Universidade de São Paulo em 1990, Sonia Regina de
Mendonça:
O golpe de 1964 não veio a representar nenhum
marco na redefinição do padrão de acumulação
brasileiro. Ele sobreveio com o objetivo tácito de
garantir a consolidação definitiva do “modelo”
implantado em meados dos anos 50, sofisticando-o
e aprofundando-o. (MENDONÇA, Sonia Regina.
Dez anos da economia brasileira: Historia e Historiogra-
fia (1954- 1956). Revista Brasileira de História, SP,
v. 24, n.3, p. 87-97, 1994.)

Assim, compreende-se o processo do golpe co-


mo consequência de uma política governamental em-
pregada por Jango. Fatores como alta inflação, decrés-
cimo no ritmo de crescimento econômico, além do bai-
xo investimento na área industrial, foram problemas
que Jango tentou solucionar, mas seu aparente alinha-
mento com a esquerda gerou desconfianças que fomen-
taram o golpe como modo de manter o capitalismo.

15
MENDONÇA, Sonia Regina. Dez anos da economia brasileira: Historia e
Historiografia (1954- 1956). Revista Brasileira de História, SP, v. 24, n.3,
p. 87-97, 1994.
16
MENDONÇA, op. cit
17
MENDONÇA, op. cit
128 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

No Brasil, não foi só por meio de armas, mas


por artefatos jurídicos que se criou um ambiente legal à
prática de torturas, assassinatos, censuras, persegui-
ções, exílios e muitas outras ações. O intuito era que
todos aqueles que discordavam do regime pudessem
admitir suas culpas de atuação contra a ordem do esta-
do ou seu alinhamento com o comunismo.
Sobre esses mecanismos jurídicos, deve-se aten-
tar mais profundamente sobre o AI n°5. Ele foi baixado
em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do ge-
neral Costa e Silva, vigorando até dezembro de 1978,
possibilitando uma série de ações de caráter de exceção
do governo18. O ano de 1968 foi considerado o “ano que
não acabou”, pois junto com um movimento mais or-
ganizado e atuante da ação estudantil contra o regime,
a “linha dura” respondeu, utilizando instrumentos
mais árduos para a sua repressão.
Ao mesmo tempo em que se instalavam esses
atos institucionais, criavam-se também órgãos para
vigiar e controlar setores da população. Exemplo des-
ses órgãos foi o Serviço Nacional de Informações (SNI),
criado em 14 de Junho de 1964. Ele contava com outros
órgãos de repressão, diretamente subordinados, como
o CIEX (Centro de Informação do Exército) e o
CENIMAR (Centro de Informação da Marinha)19.
Já em 1974, inicia-se o processo de abertura polí-
tica como governo do General Ernesto Geisel. De fato,
os militares já estavam sendo questionados pela popu-
lação que, inicialmente, havia apoiado o golpe20. Após
os inúmeros casos de torturas, mortes de estudantes e
operários, começa-se a entender o porquê do projeto

18
Tortura no regime militar. Brasil, 2010. Disponível em:
<http://www.cefetsp.br/edu/eso/culturainformacao/torturaregime
militar.html>. Acesso em: 21 mar. 2013.
19
op. Cit.
20
SADDI, Fabiana Da Cunha. Política e economia no federalismo do
governo Geisel. São Paulo, Revista de Economia Política, 2003.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 129

assumido, caracterizado por uma “distensão lenta, se-


gura e gradual21”. Somado à oposição dos estudantes,
dessa nova parcela que começava a questionar a eficá-
cia do governo militar, houve, também, um contexto de
grave crise econômica iniciada nesse momento, cha-
mada, posteriormente, de “Década Perdida”.
Dando continuação ao processo, Geisel pune os
militares que tinham relação com o assassinato do jor-
nalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Fi-
lho, vítimas de tortura pelo Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS)22. Extinguiu o ato institucional
n°5 e, em seguida, aprovou o Pacote de Abril, visto
como o caminho orientador para o processo de abertu-
ra política23.
Já em 1979, quando João Batista Figueiredo as-
sumiu a Presidência, utilizou como campanha política
o seu posicionamento enfático sobre a democratização
brasileira. Como medidas tomadas verificam-se a con-
cessão de anistia ampla e geral, abrangendo não só os
presos políticos, mas também os agentes da repressão,
além da extinção do bipartidarismo, instalando o plu-
ripartidarismo no contexto político nacional.

3. Elementos teóricos sobre o contexto histórico do


período ditatorial argentino

Embora o objeto de estudo desse trabalho seja o


período posterior ao golpe de 1976, faz-se necessário
ressaltar que a Argentina passou por seis golpes milita-
res durante o século XX. Em grande parte, essa instabi-
lidade estava diretamente ligada à conjectura da
“Grande Depressão”. Sabe-se que houve demissões,

21
SADDI, op. Cit.
22 SADDI, Fabiana Da Cunha. Política e economia no federalismo do
governo Geisel. São Paulo, Revista de Economia Política, 2003.
23
SADDI, op. cit
130 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

redução das divisas e das exportações, principalmente


na venda de carne para a Inglaterra, além do decrésci-
mo nível de investimento e de importação24.
Ainda assim, a elite agrária conseguiu conservar
o seu domínio até 1940, momento em que o país voltou
a sofrer efeitos parecidos com o anterior, mas decorren-
tes da Segunda Guerra Mundial25. Nesse contexto, a
Argentina se voltava para dentro, se posicionando de
maneira diferenciada em relação ao restante do mundo
capitalista, levando a massa a questionar o porquê da
permanência do poder oligárquico.
Os governos anteriores, perpetuados pela cor-
rupção e pela fraude, não atendiam aos desejos e inte-
resses da classe média, dos pequenos proprietários,
comerciantes e profissionais liberais26. As Forças Ar-
madas eram vistas como as únicas que ficavam longe
das ações corruptas encontradas na política, obtendo
apoio para aplicar um golpe retirando essa oligarquia
do poder e, sob organização do Coronel Perón, unificar
o exército no intuito de moralizar a sociedade. Verifi-
cou-se aceitação da população; porém, durante a Se-
gunda Guerra, internamente, o exército se dividiu en-
tre aqueles que apoiavam a ruptura com o Eixo, lidera-
da por Perón, e aqueles que buscavam a permanência
da neutralidade27.

24
CATELA, Ludmila da Silva. Argentina: do autoritarismo à democracia,
da repressão ao mal-estar castrense 1976-1989. Texto Cpdoc n° 28. , 1998.
Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/660
5/772.pdf?sequence=1>. Acesso em: 22 mar. 2013.p 02
25
RODRÍGUEZ, Margarita Victoria. Peronismo: movimento popular
democrático, ou populismo autoritário? (1945-1955). , 1998. Disponível em:
<http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Mar
garita_Victoria_Rodriguez_artigo.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2013.
26
RODRÍGUEZ, Margarita Victoria. Peronismo: movimento popular
democrático, ou populismo autoritário? (1945-1955). , 1998. Disponível em:
<http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Mar
garita_Victoria_Rodriguez_artigo.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2013. p.04
27
RODRIGUEZ, op. cit p.05
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 131

Com essa divisão, verifica-se a guinada de Pe-


rón, já que a população, confortável com as ações to-
madas, entre elas a regulação política da atividade sin-
dical, passa a apoiá-lo. No entanto, esse contato do Co-
ronel Perón com os trabalhadores criou uma atmosfera
de desconfiança por parte dos outros militares, culmi-
nando na sua renúncia. Ainda assim, em 1946, Perón
obteve pelo Partido Laborista a vitória eleitoral com,
aproximadamente, 49 por cento dos votos28.
Esse novo período foi caracterizado por relevan-
tes transformações sociais, em que os trabalhadores
passaram a ser novos atores e as organizações sindicais
formaram-se como novo canal de participação. No se-
gundo governo peronista, de 1952 a 1955, por outro
lado, se destaca uma Argentina em crise. O governo
desse período enfrentou greves e repressão. Em 1954, o
momento de instabilidade havia passado, mas surge
uma oposição que, até então, era forte aliada do gover-
no de Perón29. A Igreja rompe a aliança que era manti-
da até aquele momento, já que viam na atual gover-
nança uma atuação autoritária e repressiva em que a
igreja não podia ficar acrítica.
A falta de apoio em outros grupos sociais levou
Perón a sair do governo, por meio de outro golpe apli-
cado em 195530. Devem-se ressaltar as semelhanças en-
tre Vargas e Perón: em ambos os discursos aparece a
ideia de “independência econômica”, verificada um
meio de acumulação de capital, baseada no fechamento
econômico ao estrangeiro. Também no ponto em que o
exército teve papel de destaque na retirada dos dois
governantes, ambos praticavam políticas de cunho na-
cionalista e populista. As suas bases de apoio eram,
inegavelmente, o setor operariado, classe esta que ob-

28
RODRIGUEZ, op. cit p.05-07
29
RODRIGUEZ, op. cit p.17
30
ETULEIN, Carlos R.. Juventude, política e peronismo nos anos 60 e 70”.
Revista de Ciências Humanas. (EDUFSC), nº 40
132 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

teve inúmeros benefícios legais com os seus governos.


Ambos passaram por um momento em que o povo
clamava pelo seu retorno, assim como um período de
crise no qual culminou em certa oposição por parte da
sociedade.
Os anos seguintes foram de sucessivos golpes31.
Verifica-se uma corrente troca de presidentes, que to-
das as vezes se deparavam com a questão do peronis-
mo32. Esse momento se dividiu entre os que estavam
dispostos a fazer alianças para conseguir se eleger le-
galmente, tendo, para isso, que se eleger em partidos
independentes de Perón, e do outro lado, aqueles que
mantinham o partido e a ideologia desse governante,
exigindo que se pudesse agir na política sob influência
de Perón, abertamente.
A sociedade, cada vez mais, sentia a repressão
do governo, e as massas se alimentavam sempre pelo
sonho da volta de Perón. Contribuiu-se, assim, para
um sentimento de luta popular e protestos, reunindo
diferentes setores da sociedade, pela primeira vez nes-
se contexto.
Nesse ponto, vale destacar a esquerda peronista
formada. O grupo Montoneros, em pleno contexto de
ditadura, sequestrou o general Aramburu, o responsá-
vel pelo golpe que derrubou Perón em 195633. Esse
grupo era formado por jovens, principalmente, que
buscavam a realização de uma revolução socialista na-
cional, sendo Perón o líder34. O general Aramburu foi
condenado à morte pelo grupo, sendo fuzilado em uma
casa de campo.
31
RAIMUNDO, Marcelo. La política armada en el peronismo: 1955-
1966. , 1998. Disponível em:
<http://historiapolitica.com/datos/biblioteca/raimundo1.pdf>.
Acesso em: 21 mar. 2013. P.320
32
RAIMUNDO, op.cit
33
ETULEIN, Carlos R.. Juventude, política e peronismo nos anos 60 e 70”.
Revista de Ciências Humanas. (EDUFSC), nº 40 p.320
34
ETULEIN, op.cit p.326
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 133

Esse conjunto de oposições e movimentos pró-


Perón levaram a uma situação insustentável do gover-
no militar, já que evidenciaria o vazio de poder que o
exército representava para o povo35. Em 1960, as Forças
Armadas retiraram o apoio ao então presidente, gene-
ral Ongania. Em conjunto com o grupo os Montoneros,
o Exército Revolucionário do Povo (ERP) havia redefi-
nido a esquerda tradicional36. Esses grupos de resistên-
cia formados viam em Perón o autentico líder de uma
revolução que deveria ser aplicada na Argentina. Hou-
ve mais uma sucessão de golpes, passando a circular a
ideia de que apenas Perón poderia solucionar a tensão
entre os partidos políticos e os governos das Forças
Armadas.
Depois de pressões entre peronistas, antipero-
nistas e grupos armados, e consequência da violência
em que o governo era contestado, a forma de governar
da elite não mais convencia a sociedade. Assim, o últi-
mo governante desse período ditatorial, Lanusse, em
1973, declarou aberto o processo político e as eleições
de março de 197337.
Criou-se uma grande expectativa quanto à volta
de Perón. Operários, setores populares e estudantes, o
setor da sociedade o aguardava como solução para o
estado em que se encontrava a sociedade. O seu retor-
no, porém, não conseguiu unir novamente a sociedade,
em razão da sua morte em 1974. Em 24 de março de
1976, os comandantes do Exército, da Marinha e da
Aeronáutica derrubaram o governo eleito, prenderam a
presidente Isabel Perón e intitularam o golpe de Pro-
cesso de Reorganização Nacional38, já que o único mo-

35
ETULEIN, op. cit. p.330
36
ETULEIN, op.cit p.330-332
37
ETULEIN, Carlos R.. Juventude, política e peronismo nos anos 60 e 70”.
Revista de Ciências Humanas. (EDUFSC), nº 40 p.320
38
ETULEIN, op.cit p.336

 
134 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

do, para eles, de reestruturar a sociedade era através de


outro golpe chefiado por eles próprios, os militares.
O golpe de 1976 não se configurou como mais
uma intervenção militar na sociedade argentina. Ob-
servando-o atentamente, percebe-se que foi realizado
no intuito de mudar drasticamente a economia, a estru-
tura educacional, social, partidária e sindical. Esse
momento na história da Argentina é visto como o mais
sangrento e cruel, localizado em um contexto de crise
em que o país estava com a economia estagnada, o pre-
ço do petróleo extremamente alto e o dos alimentos
relativamente baixo, gerando um grave desequilíbrio
na balança comercial.
No início do golpe, os militares tentaram dar
uma imagem de legalidade e racionalidade ao ato, ao
tentar agir em conformidade com a lei e a moralidade
vigentes. Porém, depois de iniciado o golpe, delegados
sindicais, militantes peronistas e de esquerda, ou foram
presos ou passaram a fazer parte de uma extensa lista
de desaparecidos. Essa estratégia, somada à interven-
ção aos sindicatos, com proibição de greves, das nego-
ciações coletivas, mostrava que as Forças Militares agi-
am no intuito de orientar uma sociedade dividida em
ideologias, colocando-as em um só caminho39. Houve
uma aceitação impressionante por parte da população,
devido à situação precária vivida durante o governo
civil a partir de 1974.
Observa-se, a partir de 1974, a repressão dada
ao ERP, após a sua tentativa de criar uma guerrilha

39NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A ditadura militar argentina


1976-1983: Do Golpe do Estado à Restauração Democrática. São Paulo:
Edusp, 2007. Disponível em:
<http://books.google.com.br/books?id=WumtOZMnnJkC&pg=PA16
2&lpg=PA162&dq=golpe+de+1976+instrumentos&source=bl&ots=oc
maSYcQ1-&sig=_3K4t7RibYbKx9cFWehotvM_1PA&hl=pt-
BR&sa=X&ei=YjFwUeVjj6LyBLG-
gMAG&ved=0CEkQ6AEwBA#v=onepage&q=golpe%20de%201976%2
0instrumentos&f=false>. Acesso em: 21 mar. 2013. p.23-67
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 135

rural em Tucumán40. Em fevereiro de 1975, iniciou-se a


“Operação Independência” no intuito de eliminar a
fonte de resistência ao governo, operando detenções,
sequestros, torturas e assassinatos de militantes políti-
cos, sindicais e universitários do ERP. Os militares re-
conheciam que a capacidade dos guerrilheiros de re-
presentar uma ameaça se reduziu à esfera policial, de-
monstrando que um ano depois do golpe instalado, o
papel dos militares de extinguir a ação das guerrilhas
estava chegando ao objetivo. Porém, mesmo após a
eliminação dessa organização, as práticas citadas con-
tinuaram a ser mantidas até o final de 1975.
Há um percentual de mortes da ação militar
muito maior quando comparado à da guerrilha41. Em
1976, os guerrilheiros produziram 167 mortes, enquan-
to policiais e militares produziram 1.18742. Deve-se so-
mar, também, as pessoas sequestradas das quais não se
possui registro. Segundo o dado da Comissão Nacional
sobre Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), esse
número totalizou, nesse ano, 3.500 casos43. Em 1977 há
o relato de 4.500 baixas, incluindo pessoas que estavam
ligadas indiretamente à guerrilha, ou que não possuí-
am nenhuma ligação explícita.
Assim, desde 1950, o regime militar criou um
inimigo comum, a esquerda radical, ao qual deveria ser
aplicada a doutrina de segurança nacional. Este, po-
rém, se mostrou não um agente determinado, mas com
várias formas e traços. Assim, tal perigo estava perme-
ado em toda a sociedade, mostrando que a ação militar
atingiu muito mais do que apenas os envolvidos nesse
conflito, mas inocentes também, utilizando os mais

40 NOVARO, op.cit.p.23-67
41 NOVARO, op.cit.p. 23-67
42 NOVARO, op.cit.p.23-67
43 NOVARO, op.cit.p.23-67

 
136 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

baixos instrumentos para garantir a permanência no


poder.

4. As mudanças legais no Brasil: o arcabouço


jurídico das políticas de Justiça de Transição

A transição entre um regime ditatorial e o Esta-


do Democrático de Direito se baseia em cinco aspectos:
(i) reparar o dano causado pelo delito ou pela violação
dos direitos humanos; (ii) priorizar a exposição da ví-
tima sobre suas experiências, concedendo-a o direito à
verdade e à memória; (iii) responsabilizar os agentes
que cometeram violações; (iv) permitir a reintegração
da vítima à sociedade, livrando-a da estigmatização
social e (v) criar comissões de verdade e reconciliação
para que a história não seja construída somente pelas
versões de profissionais e técnicos do direito44.
No Brasil, a passagem do período ditatorial para
o regime democrático se deu de forma “lenta, gradual e
segura”. Em 1974, com a desaceleração da economia,
houve o crescimento do oposicionista MDB nas elei-
ções. Assume então Geisel, que dá início à transição.
Esta, entretanto, se concretiza quase 10 anos depois, em
1985, com a eleição do civil Tancredo Neves, que vem a
falecer antes de sua posse.
Em 1985, quando José Sarney, primeiro presi-
dente civil a tomar posse após a ditadura, assumiu, não
foram tomadas medidas em busca da responsabiliza-
ção dos agentes da repressão, e mantiveram-se até
mesmo certos aparatos do outro regime, como a censu-
ra, que apenas foi proibida com a Constituição de

44
BASTOS, Lucia; As reparações por violações de direitos humanos em
regimes de transição In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição.
Brasília: Ministério da Justiça, nº 01; p. 242.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 137

198845. A Lei da Anistia, número 6.683, conforme fora


aprovada ainda sob o comando do General Figueiredo,
em 1979, não sofreu nenhuma forma de contestação
pelo Executivo.
Diferentemente do que aconteceu na Argentina,
essa extinção da responsabilidade penal não foi fruto
apenas de uma imposição do regime contra a socieda-
de (autoanistia), mas também da reivindicação social
em prol dos presos políticos perseguidos pelo regime
ditatorial. Ressalta-se que a concessão de anistia aos
agentes torturadores do Estado é uma deturpação dos
interesses populares para a aprovação da Lei de Anis-
tia. Outro ponto interessante a respeito da promulga-
ção dessa lei está vinculado à união da classe proletária
aos resistentes políticos tradicionais, visto que estavam
insatisfeitos com a impossibilidade legal de promover
greves mesmo nos casos em que as condições laborais
não respeitavam a dignidade humana. Nesse contexto,
as paralisações que ocorreram foram violentamente
reprimidas, gerando perseguições aos líderes sindicais
e demissões em massa, sendo alguns trabalhadores,
inclusive, presos e enquadrados na Lei de Segurança
Nacional. Justamente por isso, nas medidas transicio-
nais de reparação tem-se expressa a fixação de indeni-
zações trabalhistas, restabelecendo direitos laborais e
previdenciários46.
Cabe ressaltar que uma comissão da verdade
oficial não foi criada imediatamente, mas em relação à
dimensão do fornecimento da verdade e construção da
memória, deve-se mencionar o Projeto “Brasil: nunca
mais”, dirigido pelo cardeal paulista Paulo Evaristo

45
Art. 5º, IX. Art. 220, para 1º e 2º. BRASIL. Constituição (1988).
Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,
1988.
46
ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo; Justiça de Transição no Brasil:
a dimensão da reparação. In: Revista Anistia Política e Justiça de
Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 03; p. 113.

 
138 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

Arns, através do qual se identificaram diversos desapa-


recidos políticos a partir de investigações sobre a di-
nâmica de repressão da ditadura. Na prática, observa-
ram-se várias reminiscências da repressão nos anos que
se seguiram à eleição de um presidente civil47.
Somente em 1995, com a aprovação da Lei 9.140,
são reconhecidas como mortas as pessoas que tenham
participado de atividades políticas no período entre 2
de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, e que em
decorrência disso tenham sido detidas por oficiais do
governo. Em 2002, pela Lei 10.536, amplia-se esse perí-
odo para até 5 de outubro de 1988. Vale lembrar que
essas leis geram direito à reparação material não inferi-
or a R$ 100.000,00 (cem mil reais), segundo § 1º do art.
11.
A partir de 2004, as mortes decorrentes de re-
pressão policial e os suicídios cometidos na iminência
de prisão ou em decorrência de sequelas psicológicas
advindas do sofrimento causado pela tortura também
passaram a ensejar indenização, conforme Lei no
10.875.
Ante a necessidade de julgar o pleito das inde-
nizações, sancionou-se a Lei nº 9.140/1995, alterada,
posteriormente, pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004.
Este dispositivo estabeleceu a constituição da Comissão
Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos
(CEMDP), que inicialmente foi instalada no Ministério
da Justiça e, em 2004, deslocada para a Secretaria Espe-
cial de Direitos Humanos. Tal Comissão exerce três
funções principais: “reconhecimento público da morte
ou desaparecimento dos perseguidos políticos; apreci-
ação dos pedidos de indenização, bem como sua quan-
tificação, quando devidos; sistematização de informa-

47
MARTINS, Luciano. A “liberalização” do regime autoritário no
Brasil. In: O’DONNELL, Guillermo; SCHMITTER, Philippe;
WHITEHEAD, Laurence (Orgs.). Transições do regime autoritário:
América Latina. São Paulo: Vértice, 1988.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 139

ções, inclusive genéticas (via banco de DNA), para o


fim de futura localização e identificação dos restos
mortais dos desaparecidos”48.
No aspecto da responsabilização criminal dos
agentes da repressão, apenas em 2008 o Conselho Fe-
deral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pro-
pôs a arguição de descumprimento de direito funda-
mental (ADPF) 153, questionando a Lei 6.638/79. Ain-
da assim, a ação foi infrutífera, tendo sido vencida por
sete votos a dois, perpetuando a impunidade dos vio-
ladores de direitos humanos.

4.1. Memória e reparação no Brasil

Ainda que atrasados em relação à Argentina,


nos anos 2000 foram iniciados vários projetos oficiais
com vistas ao resgate da memória brasileira do período
ditatorial e no sentido de reparar as vítimas e seus fa-
miliares. Entre eles:

4.1.1. Memorial “Anistia Política do Brasil”

Um projeto firmado entre o Ministério da Justi-


ça, a Universidade Federal de Minas Gerais, a Prefeitu-
ra de Belo Horizonte e a Secretaria de Patrimônio da
União, criou o Memorial denominado “Anistia Política
do Brasil”. Em tal acervo tem-se a versão histórica da
ditadura sob a perspectiva dos próprios perseguidos
do regime, mediante documentos, fotos e depoimentos
gravados. Salienta-se que ainda há o memorial oficial
do Estado, chamado Centro de Referência das Lutas
Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas.
Este, por sua vez, é responsabilidade do Arquivo Naci-

48
PINHEIRO, Douglas; Blow up – Depois daquele golpe: a fotografia na
reconstrução da memória da ditadura. In: Revista Anistia Política e Justiça
de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 02, p. 94

 
140 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

onal e compõe-se de registros ideológicos que simulam


versões justificadoras das violações de direito cometi-
das pelo regime.

4.1.2 . “Direito à memória e à verdade”

O livro-relatório “Direito à verdade e à memó-


ria”, publicado em 2007, é uma síntese do trabalho rea-
lizado pela Comissão Especial para Mortos e Desapare-
cidos Políticos (CEMDP), na qual são detalhados 357
casos de reparação, sendo cada um introduzido por
uma breve ficha biográfica, em que constam o nome
completo do militante, filiação, data e local de nasci-
mento, data e local da morte ou do desaparecimento e
organização política à qual se vinculara. Visualiza-se,
portanto, que este livro não tem somente cunho de
transparência administrativa, mas de reconstrução da
própria memória dos mortos e desaparecidos.
Ao realizar uma comparação entre o livro e o re-
latório argentino “Nunca más” (1984) percebe-se que
este último não abarcou questões importantes como a
identificação dos métodos de tortura sofridas, visto que
havia possibilidade de ajuizamento de ações penais dos
violadores dos direitos humanos49.
Para além do livro, há uma exposição fotográfi-
ca de mesmo nome, mantida pela Secretaria Especial
de Direitos Humanos, que agora também conta com a
mostra dos trabalhos “Lutas pelo Feminino” e “Histó-
ria de Meninas e Meninos Marcados pela Ditadura”.
A respeito das fotografias captadas pelos milita-
res que comprovariam o óbito dos perseguidos políti-
cos por suicídio ou tiroteio, verifica-se que as recentes

49
PINHEIRO, Douglas; Blow up – Depois daquele golpe: a fotografia na
reconstrução da memória da ditadura. In: Revista Anistia Política e Justiça
de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 02, p. 94.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 141

análises realizadas pela CEMDP apontam para a artifi-


cialidade das cenas retratadas. Como exemplo:
Ismael Silva de Jesus: membro do Partido Comu-
nista Brasileiro (PCB), teria praticado suicídio no
10º Batalhão de Caçadores em Goiânia/GO. Toda-
via, fotos de perícia localizadas em 1991 desautori-
zaram tal hipótese. Ismael encontrava-se sentado
junto à parede, com uma fina corda de persiana
amarrada, por um lado, ao redor do pescoço e, por
outro, em um porta-toalhas de louça, preso à pa-
rede. A persiana e o pequeno porta-toalhas encon-
travam-se intactos. Além disso, eram perceptíveis,
no corpo do militante, sinais evidentes de espan-
camento: um grande hematoma no olho e sangue
pelo corpo50.

Entretanto, o caso mais emblemático é o do jor-


nalista Vladimir Herzog, o qual, de acordo com a ver-
são oficial, teria se enforcado utilizando o cinto do ma-
cacão de presidiário. Porém, a foto divulgada mostra
que Herzog tinha os pés apoiados no chão e estava em
suspensão incompleta, o que desconfiguraria a alega-
ção do suicídio. Somente recentemente a família do
jornalista conseguiu que o governo modificasse o ates-
tado de óbito, no qual, agora, consta como causa da
morte a tortura a ele impetrada51.

4.1.3. Reparação

O direito à reparação dos perseguidos políticos


ampara-se no artigo 8º do Ato das Disposições Consti-
tucionais Transitórias, o qual assevera:

50
PINHEIRO, op. Cit. p. 99.
51
Notícia jornalística “Família de Vladimir Herzog recebe novo atestado de
óbito”. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/2013/03/familia-de-vladimir-herzog-recebe-novo-
atestado-de-obito.html> Acesso em 13 de abril de 2013.

 
142 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

8º - É concedida anistia aos que, no período de 18


de setembro de 1946 até a data da promulgação da
Constituição, foram atingidos, em decorrência de
motivação exclusivamente política, por atos de ex-
ceção, institucionais ou complementares, aos que
foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18,
de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo
Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, as-
seguradas as promoções, na inatividade, ao cargo,
emprego, posto ou graduação a que teriam direito
se estivessem em serviço ativo, obedecidos os pra-
zos de permanência em atividade previstos nas
leis e regulamentos vigentes, respeitadas as carac-
terísticas e peculiaridades das carreiras dos servi-
dores públicos civis e militares e observados os
respectivos regimes jurídicos.

Posteriormente, o referido dispositivo foi regu-


lamentado pela Lei nº 10.559/2002. Conforme se vê,
essa lei distingue dois grupos de perseguidos políticos:
os que tiveram violado sua integridade física e liberda-
des públicas e aqueles que perderam seu vínculo em-
pregatício. A reparação pelos danos causados a essas
vítimas do regime pode ser pecuniária ou moral.

4.1.4. Caravanas da anistia

A Comissão de Anistia, visando descentralizar


as sessões regulares que só ocorriam em Brasília, no
Palácio da Justiça, criou as Caravanas da Anistia, as
quais passariam a realizar sessões itinerantes pelo Bra-
sil. Essas caravanas seriam responsáveis tanto por
apreciar os pleitos de Anistia Política quanto por orga-
nizar atividades educativas e culturais com vista a
conscientizar as novas gerações sobre a importância da
democracia e do respeito aos direitos humanos.
Além disso, a partir dos testemunhos públicos
sobre os atos cometidos no estado de exceção, objetiva-
se resgatar, preservar e divulgar a memória política
brasileira, fomentando debates junto à sociedade civil
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 143

acerca da justiça de transição. Ainda sobre essa finali-


dade de incitar a reflexão e discussão do tema, as Ca-
ravanas exibem durante a “Sessão de Memória” vídeos
institucionais que narram o período autoritário e que
homenageiam figuras que lutaram pelo processo de
redemocratização.
Por fim, é nítido que sob o aspecto da atitude
pedagógica, é dado um relevo diferenciado aos jovens,
sobretudo porque os relatos dos ex-perseguidos, que
no primeiro momento causam comoção, em seguida
motivam uma tomada de postura mais crítica frente à
realidade atual, de maneira a assegurar a não repetição
da ditadura. Ou seja, a mensagem prioritária é de que
“a democracia não é um processo acabado, mas aberto
e, portanto, permanentemente sujeito a avanços e re-
trocessos52” e, consequentemente, cada cidadão tem
papel protagonista no processo de redemocratização.

5. As mudanças legais na Argentina: ruptura

O golpe que instaurou a ditadura militar na Ar-


gentina – o sexto no país no século XX – ocorreu em
1976 e instaurou um regime que perdurou até 1983.
Assim como no Brasil, o regime argentino se deu sob a
Operação Condor, uma cooperação entre os regimes
ditatoriais do Cone Sul, sob os auspícios do governo
estadunidense, que visava facilitar a repressão aos mo-
vimentos de esquerda53. Assim, são de fácil entendi-
mento as semelhanças entre as práticas repressoras nos
dois Estados em estudo.

52
ABRÃO, Paulo et alli. Justiça de Transição no Brasil: O Papel da
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. In: Revista Anistia Política e
Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 01, p.18.
53
BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Direito à memória e à verdade. Brasil, DF, 2007. P.357. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/55814712/livrodireitomemoriaeverdadeid>. Acesso
em 17 de abr. 2013.

 
144 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

Com a derrota na Guerra das Malvinas, fortale-


ce-se a oposição ao regime militar, e em 1983 os argen-
tinos vivem a recuperação da democracia, com a elei-
ção de Raúl Alfonsín. Estima-se que a repressão na Ar-
gentina tenha como saldo cerca de 30 mil desapareci-
dos e mortos54. Na Argentina, ao contrário do que ocor-
reu no Brasil, a eleição de um presidente civil signifi-
cou uma verdadeira ruptura com o regime ditatorial.
Primeiramente, é importante mencionar a Lei
22.924/83, conhecida como Lei de Pacificação Nacio-
nal, implementada pelo próprio regime militar. Tal ato
normativo dispunha sobre a autoanistia e previa:
ARTICULO 1º — Decláranse extinguidas las acci-
ones penales emergentes de los delitos cometidos
con motivación o finalidad terrorista o subversiva,
desde el 25 de mayo de 1973 hasta el 17 de junio de
1982. Los beneficios otorgados por esta ley se ex-
tienden, asimismo, a todos los hechos de naturale-
za penal realizados en ocasión o con motivo del
desarrollo de acciones dirigidas a prevenir, conju-
rar o poner fin a las referidas actividades terroris-
tas o subversivas, cualquiera hubiere sido su natu-
raleza o el bien jurídico lesionado. Los efectos de
esta ley alcanzan a los autores, partícipes, instiga-
dores, cómplices o encubridores y comprende a los
delitos comunes conexos y a los delitos militares
conexos.

Entretanto, o Congresso, ainda em 1983, revo-


gou esta norma por intermédio da Lei 23.040, em de-
corrência de sua inconstitucionalidade.
Com o fim da ditadura militar, a partir da elei-
ção direta do presidente Raúl Alfonsín, iniciou-se um
regime de transição que demonstra perfeitamente esse
processo de reparação descontínuo. Isso se justifica
quando se analisa, por exemplo, que o novo presidente
sancionou os decretos 157 e 158. O primeiro ordenava o

54
BRASIL, op. cit., p.20.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 145

processo dos chefes das organizações guerrilheiras ERP


e Motoneiros. O segundo ordenava o processo contra
as três juntas militares que dirigiram o país durante o
golpe, mas a apuração seria realizada pelo próprio
Conselho Supremo das Forças Armadas.
O decreto 157, tratando da acusação de líderes
da resistência, trouxe certo descontentamento da socie-
dade civil. Em sua redação, entretanto, explicita-se co-
mo motivo para sua acusação o fato de que as atitudes
terroristas dos grupos ERP e Motorneiros, além de
submeterem a sociedade à violência e à insegurança,
serviram de pretexto para o golpe que instaurou a di-
tadura em 1976. Finalmente, em um excerto, coloca-se a
necessidade de reafirmar a justiça e julgar todos aque-
les responsáveis pela instauração da ordem ditatorial.
Que la restauración de la vida democrática debe
atender, como una de sus primeras medidas, a la
reafirmación de un valor ético fundamental: Afi-
anzar la justicia; con este fin, corresponde procurar
que sea promovida la persecución penal que cor-
responda contra los máximos responsables de la
instauración de formas violentas de acción política,
cuya presencia perturbó la vida argentina, con par-
ticular referencia al período posterior al 25 de ma-
yo de 197355.

Alfonsín cria nesse mesmo dia a Comissão Na-


cional sobre o Desaparecimento de Pessoas
(CONADEP), com a função de documentar as viola-
ções de Direitos Humanos e fundamentar a acusação
contra as juntas militares. Vale lembrar que a
CONADEP tinha como objetivo “esclarecer os fatos
relacionados com o desaparecimento de pessoas ocor-
ridos no país56”, sendo vetado que a Comissão emitisse
55
La tesis denominada “la de lós demônios”. Em
<http://www.desaparecidos.org/arg/doc/secretos/tesis02.htm>.
Acesso em 17 de abril de 2013.
56
ARGENTINA. Decreto 187, de 19 de dezembro de 1983.

 
146 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

julgamentos sobre fatos e circunstâncias que constituís-


sem matéria exclusiva do Poder Judicial. Esse esclare-
cimento foi realizado no relatório denominado “Nunca
Más”57, no qual constam denúncias sobre desapareci-
mentos, sequestros e torturas acontecidos entre 1976 e
1983.
A criação de uma “comissão da verdade” é con-
siderada um passo primordial para o estabelecimento
de uma justiça de transição. Embora tais comissões não
tenham por objetivo julgar criminalmente os possíveis
violadores de direitos humanos, sua função é corrigir
um déficit de memória, ocasionado pela ocultação de
violações cometidas pelos militares, é manter viva a
memória daqueles crimes que, hediondos, não podem
ser esquecidos. Ainda que reviver crimes possa ser po-
lêmico e, em certos casos, arriscado58, essas comissões
têm um papel fundamental de consolidar a democra-
cia, enfrentando criticamente o passado, trazendo à
tona experiências traumáticas, silenciadas pela repres-
são, ajudando as vítimas, promovendo a responsabili-
zação e evitando futuros abusos. Assim como os de-
mais aspectos da Justiça de Transição, o direito à ver-
dade e à memória é essencial para fortalecer a nova
ordem normativa que está se estabelecendo, mantendo-
a próxima da realidade à qual deve servir59.
Em 1985, a Câmara federal, o tribunal civil, que
passou a analisar a questão, independentemente do
Conselho Supremo das Forças Armadas, promulgou as
sentenças, condenando Jorge Videla e Eduardo Masse-
ra à prisão perpétua; Roberto Viola a dezessete anos de

57
Disponível em:
<http://www.desaparecidos.org/arg/conadep/nuncamas/>. Acesso
em 11 de abril de 2013.
58
DALY, Erin. Truth skepticism: An Inquiry into the Value of Truth in
Times of Transition. International journal
59
TEITEL, Ruti. Editorial Note, ibidem.

 
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 147

prisão; Armando Lambruschini a oito anos de prisão e


Orlando Ramón Agosti a quatro anos de reclusão.
As forças armadas argentinas, entretanto, não
aceitavam as acusações, e durante o governo de Alfon-
sín o país viveu uma constante de insurreições milita-
res e grande instabilidade. Para frear o descontenta-
mento desse setor, Alfonsín negociou com os líderes
militares medidas que evitassem novos julgamentos.
Dessa negociação, são concretizadas duas leis: A Lei
Ponto Final, número 23.492, que estabelecia a paralisa-
ção dos processos contra a participação nos atos de
violência de ação política, e a Lei da Obediência Devi-
da, número 23.521, que estabelecia a presunção de iure
que os feitos cometidos durante a ditadura por mem-
bros das forças armadas com patente menor que a de
coronel não eram puníveis, em virtude da obediência
devida hierarquicamente.
Em seguida, durante o governo de Carlos Me-
nem, foi decretada uma série de indultos que concedi-
am anistia àqueles agentes do Estado que não haviam
sido beneficiados pelas leis sancionadas por Alfonsín.
Estes indultos poderiam eximir de penas e até mesmo
findar investigações que ainda estavam em trâmite,
abrangendo, assim, tanto as pessoas condenadas como
processadas. Exemplo disto são os decretos 2745/90 e
2746/90.
As sucessivas normas de impunidade paralisa-
ram as averiguações judiciais e determinaram encer-
ramento de inúmeros processos. Em virtude disso, co-
meçaram a aparecer reclamações a fim de que se retor-
nassem as investigações.
Ainda depois que a lei de anistia impediu os
julgamentos para a maior parte dos violadores de direi-
tos humanos, familiares de vítimas persistiram na ten-
tativa de obter seu direito à verdade e à memória. Cri-
ou-se assim um mecanismo inédito, os “julgamentos da
verdade”, que misturavam aspectos das comissões da
verdade com aspectos da justiça penal. O objetivo era
obter a verdade sobre os desaparecimentos, por meio
 
148 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

de um processo judicial, no qual as cortes avaliavam


informações e testemunhos de envolvidos, mas sem
consequências criminais60.
Em 1992, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIADH) concluiu que as Leis Ponto Final e
Obediência Devida, além dos perdões dados por Me-
nem, eram incompatíveis com a Convenção Americana
de Direitos Humanos, de 1978.
Essa mesma Corte, ao julgar as leis peruanas de
autoanistia incompatíveis com a Convenção, colocou
como dever do Estado indagar o sucedido com as pes-
soas desaparecidas em períodos de estado de exceção.
Esse precedente foi essencial na luta argentina para
declaração de inconstitucionalidade das leis de anistia
em seu país, levando à denúncia da Corte Suprema de
Justicia de la Nación Argentina (CSJN) à CIDH. Fir-
mou-se então um acordo, em 15 de novembro de 1999,
no qual o governo argentino se comprometeu a garan-
tir o direito à verdade, estabelecendo a competência
exclusiva das Câmaras Federais nos casos relativos à
ditadura, e implementar perante o Ministério Público a
designação de fiscais especiais que atuariam nos pro-
cessos de busca pela verdade61.
O Centro para Estudos Legais e Sociais (CELS)
argentino foi o principal responsável por liderar a bata-
lha contra as Leis de Anistia da Argentina62. Em 2001,
em um julgamento da causa nº 8.686/2000 de subtra-
ção de menores de 10 anos, argumentou-se que as leis
de anistia violavam tratados regionais e internacionais
de direitos humanos dos quais a Argentina era parte e
que eram incorporados diretamente na lei desse país,
60
SIKKINK, Kathryn. From Pariah State to Global Protagonist;
Argentina and the Struggle for International Human Rights.
Disponível em: < http://www.highbeam.com/doc/1P3-
1470033421.html>. Acesso em 15 de abril de 2013.
61
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Informe Nº 21/00,
caso 12.059, 29/02/2000, no qual se reproduz o texto do acordo.
62
SIKKINK,op.cit.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 149

em status constitucional, de acordo com sua Constitui-


ção. Na sentença ditada pelo juiz Gabriel Cavallo, ob-
serva-se a aceitação dos argumentos relativos aos ins-
trumentos internacionais de Direito Humanos:
“(...) a possibilidade de os afetados terem acesso à
justiça, para que se investiguem delitos cometidos
por integrantes das Forças Armadas ou de segu-
rança do Estado, se encontra pulverizada pelas
disposições das leis 23.492 e 23.521. Nesse sentido,
suprime-se a possibilidade de que um tribunal in-
dependente e imparcial tenha competência sobre
um caso de violação de direitos humanos, o que
converte as ditas leis em ilícitos para o direito de-
rivado da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos. (...) Em consequência, a promulgação e
a vigência das leis 23.492 e 23.521, uma vez que
impedem de levar adiante as investigações neces-
sárias para identificar os autores e partícipes das
violações aos direitos humanos perpetradas du-
rante o governo de fato (1976-1983) e de aplicar-
lhes as sanções penais correspondentes, violam a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Constatado, então, que a promulgação e a vigência
das leis 23.492 e 23.521 são incompatíveis com a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos e
com a Declaração Americana dos Direitos e Deve-
res do Homem, se impõe declarar inválidas as leis
de 'Ponto Final' e de 'Obediência Devida'.”.

Em 2003, pela lei 25.779, o Congresso argentino,


com o apoio do presidente Néstor Kirchner, aprovou
uma lei que determinava a nulidade das leis de anistia,
mas não anulava as decisões judiciais pretéritas. Fi-
nalmente, em 2005, a CSJN, ratificando o precedente,
declarou inconstitucionais as leis de anistia, permitindo
a reabertura de centenas de casos de violações de direi-
tos.

 
150 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

6. As diferentes posturas frente à


internacionalização dos direitos humanos

O Judiciário da Argentina amparou sua inter-


pretação das Leis de Anistia no reconhecimento da in-
ternacionalização das leis de direitos humanos, funda-
mentando-se principalmente na Convenção America-
na, interpretada pela Corte Interamericana. Isso foi
possível devido à previsão da Constituição argentina
de que tratados de direitos humanos têm hierarquia
constitucional63, conforme o art. 75, 22 da Constituição
Nacional, o qual expõe que:
[...] La Declaración Americana de los Derechos y
Deberes del Hombre; la Declaración Universal de
Derechos Humanos; la Convención Americana so-
bre Derechos Humanos [...] en las condiciones de
su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no de-
rogan artículo alguno de la primera parte de esta
Constitución y deben entenderse complementarios
de los derechos y garantías por ella reconocidos.
Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el
Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las
dos terceras partes de la totalidad de los miembros
de cada Cámara.

Em relação à Convenção sobre Imprescritibili-


dade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a
Humanidade, a adesão da Argentina se deu por meio
do decreto 579/2003. Prova dessa ilimitação de tempo
para extinção do processo foi a condenação, noticiada

63
SIKKINK, Kathryn. From Pariah State to Global Protagonist;
Argentina and the Struggle for International Human Rights.
Disponível em: < http://www.highbeam.com/doc/1P3-
1470033421.html>. Acesso em 15 de abril de 2013.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 151

em jornais do mundo inteiro, do ex- ditador Jorge Vi-


dela em dezembro de 201064.
Observa-se que a aproximação argentina com a
internacionalização dos direitos humanos, em concor-
dância com os instrumentos regionais e internacionais
de direitos humanos aos quais subscreve, é o eixo que
tem guiado suas medidas de justiça de transição.
O judiciário brasileiro, ao contrário, não aplicou
tais previsões em seu julgamento sobre a constituciona-
lidade da Lei de Anistia brasileira, a ADPF 153.
No julgamento de 2010, por sete votos a dois, o
Supremo Tribunal Federal validou a referida lei. O Mi-
nistro Ricardo Lewandowski foi o único que mencio-
nou instrumentos internacionais como fonte de obriga-
ção para a apuração dos crimes contra a humanidade
cometidos pelos agentes da ditadura65. Em especial, ele
ressaltou em seu voto o entendimento da Corte Inte-
ramericana – o mesmo utilizado como precedente na
Argentina – de que os Estados-partes do Pacto de San
José da Costa Rica têm a obrigação de averiguar as le-
sões aos direitos humanos66.
Cabe ressaltar que em 2004, por meio da Emen-
da Constitucional 45, o legislador estabeleceu a parida-
de hierárquica de tratados internacionais de direitos
humanos, mediante aprovação pelo Congresso, em

64
Notícia jornalística: “Ex- ditador argentino Jorge Videla é condenado a
prisão perpétua”. Disponível em:
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/12/ex-ditador-
argentino-jorge-videla-e-condenado-a-prisao-perpetua.html> Acesso
em: 15 de abril de 2013.
65
FERNANDES, Pádua. Ditadura Militar na América Latina e o
Sistema Interamericano de Direitos Humanos: (In)Justiça de transição
no Brasil e na Argentina. Disponível em: <http://halshs.archives-
ouvertes.fr/docs/00/53/12/73/PDF/AT12_Fernandes.pdf>. Acesso
em 15 de abril de 2013.
66
PIOVESAN, Flávia. Lei de Anistia, Direito à Verdade e à Justiça: o
Caso Brasileiro. Disponível em <
http://interessenacional.uol.com.br/2012/04/lei-de-anistia-direito-a-
verdade-e-a-justica-o-caso-brasileiro/>, acesso em 17 de abril de 2013.

 
152 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

dois turnos, por três quintos dos votos de seus mem-


bros. Tal emenda representaria um retrocesso67, uma
vez que a Constituição brasileira, em seu art.5º,§ 2º,
expressava: “Os direitos e garantias expressos nessa
Constituição, não excluem outros decorrentes do regi-
me e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte”, de modo que, conforme defendido por
Mazzuoli (2011, p.28), todos os tratados internacionais
de direitos humanos, ao serem ratificados pelo Brasil,
têm índole e níveis constitucionais, sendo desnecessá-
ria a aprovação do Congresso para garantir essa hie-
rarquia.
Em 2008, entretanto, em debate no STF, prevale-
ceram as posições da EC 45 e a do Ministro Gilmar
Mendes, sustentando apenas o valor supralegal dos
tratados de Direitos Humanos.
Por fim, cabe abordar, ainda nesse quesito, a
condenação pela Corte Interamericana do Brasil, no
Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. A Corte acusou o
país de não ter controlado a convencionalidade da Lei
de Anistia em relação à Convenção Interamericana – ao
contrário da Suprema Corte argentina. Utilizando o
princípio do pacta sunt servanda, a Corte ressaltou que
as “obrigações convencionais dos Estados-partes vin-
culam todos seus poderes e órgãos, os quais devem
garantir o cumprimento das disposições convencionais
e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direi-
to interno68”.

67
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Desafios e conquistas
do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI,
in CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo (org.). Desafios do
direito internacional contemporâneo. Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2007, p.209, nota n.6.
68 CIDH. Caso Gomes lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) VS Brasil.

Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 24 de


novembro de 2010, Série C, n.219, parágrafo 177.
O arcabouço jurídico da Justiça de Transição 153

Conclusão

Sikkink (2008) enumera uma série de razões pa-


ra explicar o protagonismo argentino em inovações na
área de direitos humanos e justiça de transição. Como
causas primárias, o nível e o tipo de repressão e o mo-
do de transição para a democracia; além dessas, são
citadas as oportunidades políticas, a mobilização de
recursos e fatores históricos e culturais.
Enquanto diferenças substanciais na constitui-
ção de um Estado, em termos de fatores históricos e
sociais são esperadas e dispensam explicações delon-
gadas no presente estudo, é imprescindível ressaltar
como as diferenças no modo de transição das ditaduras
para governos democráticos, no Brasil e Argentina,
resultaram em implementações (ou na não implemen-
tação) tão divergentes dos institutos de Justiça de Tran-
sição.
O caráter pactuado da transição no Brasil limita
a chances de julgamentos dos violadores, uma vez que
os militares, durante o processo, buscam garantir pro-
teções contra processos pelas transgressões aos direitos
humanos, conforme se percebe pela delonga na apro-
vação de leis que instituíssem mecanismos de Justiça
de Transição. Transições de ruptura, como a argentina,
por outro lado, permitem maior demanda pela respon-
sabilização dos agentes da repressão69. O colapso das
Forças Armadas argentinas devido à derrota na Guerra
das Malvinas impediu a negociação das condições da
saída do poder, tendo sido imediatamente instituídas
as medidas para sua responsabilização.

69
SIKKINK, Kathryn. From Pariah State to Global Protagonist;
Argentina and the Struggle for International Human Rights.
Disponível em:
< http://www.highbeam.com/doc/1P3-1470033421.html>. Acesso em
15 de abril de 2013.

 
154 Aécio Oliveira, Maria Gabriela Cruz & Mariana Oliveira

Somados a isso, a amplitude, a organização e os


recursos financeiros, sociais e culturais dos movimen-
tos pelos direitos humanos na Argentina imprimiram-
lhes força e capacidade efetiva de influenciar na políti-
ca e ter respostas estatais às suas demandas. Ao contrá-
rio, os movimentos brasileiros não partilharam dessa
eficiência organizacional, o que somado à falta de mo-
bilização de grande parte da população, enfraquece as
demandas e a capacidade de influência desses movi-
mentos na política e no judiciário brasileiro.
Finalmente, para além dos motivos históricos
que levaram as transições argentina e brasileira por
caminhos distintos, observa-se que ambos os percursos
sofreram com retrocessos e avanços, com certa descon-
tinuidade. Enquanto o modelo argentino já se encontra
em estágio avançado de implementação, no Brasil ape-
nas se iniciaram os trabalhos de implantação de meca-
nismos de direito à verdade, à memória e à reparação.
A ADPF 153, embora rejeitada, traz à tona a re-
discussão da Lei da Anistia. Conforme podemos
aprender com o exemplo argentino, a capacidade de
realizar mudanças no ordenamento advém de condi-
ções internas ao país e, até mesmo a utilização de ins-
trumentos de pressão internacional, deve-se, em última
instância, à disposição interna para tal. A tese de con-
trole de convencionalidade, por exemplo, permite vis-
lumbrar caminhos para a responsabilização criminal
dos violadores de direitos humanos e a concretização,
enfim, da Justiça de Transição, no Brasil.

Referências

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MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle Jurisdicional


da Convencionalidade das Leis. 2ª.ed. SP: Revista dos Tribu-
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ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo; Justiça de Transição
no Brasil: a dimensão da reparação. In: Revista Anistia Políti-
ca e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº
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BASTOS, Lucia; As reparações por violações de direitos hu-
manos em regimes de transição In: Revista Anistia Política e
Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 01,
1º semestre 2009.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Desafios e
conquistas do direito internacional dos direitos humanos
no início do século XXI, in CACHAPUZ DE MEDEIROS,
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ETULEIN, Carlos R.. Juventude, política e peronismo nos
anos 60 e 70. Revista de Ciências Humanas. (EDUFSC), nº
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grafia na reconstrução da memória da ditadura. In: Revista
Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério
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1470033421.html>. Acesso em 15 de abril de 2013.
A lenta democratização
do Itamaraty
O caso do acesso à informação sobre a reforma
do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos

Natália  Araújo1  
Deisy  Ventura2  

O presente artigo tem por objetivo analisar o


grau de adesão do Ministério das Relações Exteriores
(MRE ou Itamaraty) à Lei de Acesso à Informação
(LAI), por meio de um estudo de caso3. Trata-se do pe-
dido de informação apresentado pela Organização Não
Governamental (ONG) Conectas Direitos Humanos4,
1
Aluna do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade
de São Paulo.
2
Professora de Direito Internacional do Instituto de Relações
Internacionais da Universidade de São Paulo.
3
O estudo de caso caracteriza-se pelo estudo exaustivo de poucos
objetos, de forma a permitir conhecimento amplo e específico sobre
eles, partindo do pressuposto de que a análise de uma unidade de
determinado universo possibilita o estabelecimento de bases para uma
investigação posterior, mais sistemática e precisa” (GIL, Antônio
Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1991). Ele
cabe especialmente quando as fronteiras entre o fenômeno e o seu
contexto não estão claramente estabelecidas (YIN, Robert. Estudo de
caso. Planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005).
4
“Conectas Direitos Humanos é uma organização não governamental
internacional, sem fins lucrativos, fundada em setembro de 2001 em

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
160 Natália Araújo & Deisy Ventura

relativo aos telegramas e outros suportes de informa-


ção sobre a atuação da Delegação do Brasil Junto à
União Panamericana (DELBRASUPA)5 nas discussões
sobre o fortalecimento do Sistema Interamericano de
Direitos Humanos (SIDH)6.
A hipótese a ser aferida por este artigo é a de
que o problema específico do cumprimento da LAI está
vinculado à cultura política do MRE, que ofereceria
resistência ao processo de democratização da institui-
ção.
No âmbito desta pesquisa de iniciação científica,
a expressão democracia refere-se ao processo pelo qual
os cidadãos colocam-se em posição de desfrutar de um
conjunto de direitos, não apenas em tese, mas também
na prática, especialmente o da participação política,
que ultrapassa largamente o direito ao voto, abarcan-
do, entre outros, o direito à “compreensão bem infor-

São Paulo – Brasil. Sua missão é promover a efetivação dos direitos


humanos e do Estado Democrático de Direito, no Sul Global - África,
América Latina e Ásia.” Disponível em:
<http://www.conectas.org/pt/quem-somos> Acesso em:
20/11/2013.
5
A DELBRASUPA é a Missão Permanente do Brasil junto à
Organização dos Estados Americanos, que tem por responsabilidade
representar os interesses do Brasil junto à OEA e aos demais órgãos
que compõem o sistema interamericano, segundo informação do seu
sítio oficial. Disponível em: <http://delbrasupa.itamaraty.gov.br/pt-
br/>. Acesso em: 20/11/2013.
6
Trata-se da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de
San José da Costa Rica), de 1969, que arrola obrigações precisas em
matéria de direitos humanos, voluntariamente aceitas pelos Estados,
dotada de duas guardiãs: uma Comissão, como órgão político,
encarregado do controle do comportamento dos Estados, aos quais
pode endereçar recomendações; e uma Corte, como órgão jurisdicional,
a quem a Comissão encaminha casos persistentes de violação da
Convenção pelos Estados, que também responde a consultas dos
Estados sobre a interpretação do direito interamericano (VENTURA,
Deisy; CETRA, Raísa. O Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos de Maria da Penha a Belo Monte. In: Justiça de Transição nas
Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. 1
ed. Belo Horizonte: Forum, 2013, pp. 343-402).
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 161

mada” dos problemas e a influência sobre a agenda


política7. Assim, para os fins deste texto, a democrati-
zação de um órgão do Estado significa que ele passa a
contribuir para que essa concepção de democracia seja
implementada. Cultura política, por sua vez, designa o
conjunto de atividades, normas e crenças sobre os fe-
nômenos políticos que são partilhados pelos membros
de uma determinada unidade social8.
Os critérios utilizados para escolha do caso refe-
rente ao cumprimento da LAI pelo MRE foram:
a importância do tema questionado, que pode
ser aferida não apenas por sua presença no debate pú-
blico nacional, mas igualmente porque diz respeito aos
compromissos com os direitos e garantias individuais,
que conformam uma das cláusulas pétreas da Consti-
tuição Federal em vigor9;
a facilidade de acesso às fontes primárias (texto
integral de pedidos, respostas e recursos) que foram
disponibilizadas em rede pela Conectas10;
a disposição da ONG de fornecer entrevista, na
qual foi aplicado um questionário semi-estruturado11.

7 HELD, David. Modelos de Democracia. 3 ed. Madrid: Alianza Editorial,


2007, p.390.
8 BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.

Dicionário de Política. V.1. 11 ed. Brasília: Ed. UNB, 1998, p.306.


9 Art. 60 IV.

10 Ver <http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/lei-de-acesso-a-
informacao/30-pedido-lai-sobre-processo-de-fortalecimento-do-
sistema-interamericano>. Acesso em: 20/11/2013.
11 “É uma característica dessas entrevistas que questões mais ou
menos abertas sejam levadas à situação de entrevista na forma de um
guia. Espera-se que essas questões sejam livremente respondidas pelo
entrevistado. (...) o uso consistente de um guia da entrevista aumenta a
comparabilidade dos dados, e sua estruturação é intensificada como
resultado das questões do guia” (FLICK, Uwe. “Entrevistas semi-
estruturadas”. In: Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2 ed. Porto
Alegre: Bookman, 2004, p.106-7).
162 Natália Araújo & Deisy Ventura

Na primeira parte do texto, será feito um pano-


rama sobre os elementos da cultura política do MRE
que poderiam interferir em sua resistência ao processo
de democratização, além de uma breve referência à
literatura sobre a democracia e o Itamaraty. Na segun-
da parte do texto, será apresentado o caso. Por fim, será
empreendida sua análise crítica à luz da hipótese já
descrita.

1. Elementos da cultura política do Itamaraty e


democracia

O prestígio do Itamaraty afirma-se no início do


século XX12, especialmente por obra de seu patrono, o
Barão do Rio Branco13. Após a Segunda Guerra Mundi-
al, o MRE tornou-se “uma agência estatal progressiva-
mente insulada, sob a guarda de uma corporação pro-
fissional altamente especializada”, que “praticamente
monopolizou no país a expertise nos assuntos internaci-
onais, gozando de grande prestígio no interior da má-

12 FONSECA JR., Gelson. Política externa brasileira: padrões e

descontinuidades no período republicano. Relações Internacionais. 2011,


n.29, pp.15-32.
13 “... o que realmente sobressai é o agigantamento diante da opinião

pública brasileira, que o trouxe de volta ao Brasil como Ministro de


Estado das Relações Exteriores [1902 a 1912]. A gestão Rio Branco à
frente do Itamaraty é de fato um divisor de águas, tanto do ponto de
vista administrativo, no que toca à modernização de procedimentos da
Secretaria de Estado, quanto político. A consolidação dos limites – com
a conclusão das negociações com todos os vizinhos de então –, a
engenharia política para a América do Sul, a rivalidade com a
Argentina e o comando inspirado pela noção fundamental de
prestígio, entre outros marcos, compõem um alentado compêndio da
história do Brasil, no qual Rio Branco desponta como um traço de
união, ligando as tradições da inserção internacional do Império ao
modus operandi titubeante da República nascente” [grifo nosso], LESSA,
Antônio Carlos. O Barão do Rio Branco e a inserção internacional do
Brasil. Rev. bras. polít. int. 2012, vol.55, n.1, pp. 5-8.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 163

quina pública, na sociedade de uma maneira geral e


também no exterior14”.
Fundamental na atuação internacional dos Es-
tados15, a busca de prestígio traduz-se diretamente no
comportamento do MRE no plano interno. Segundo
Dawisson Belém Lopes, autor de um estudo de refe-
rência sobre a democracia e a política externa brasilei-
ra16, o processo de democratização do Estado não con-
seguiu arrefecer o “republicanismo aristocrático” que
permeia nossa política externa desde sua origem. As-
sim, baseado na ideia de que a “coisa pública” deve
ficar nas mãos dos “mais preparados”, o Itamaraty re-
flete no sistema de recrutamento de seus quadros os
critérios supostamente meritocráticos propostos pela
elite brasileira; este “viés aristocrático tem consequên-
cias muito práticas17”. Nesse sentido, duas críticas re-
centes ao MRE alcançaram grande repercussão no Bra-
sil. A primeira delas é uma acusação de racismo. Na
opinião do atual Presidente do Supremo Tribunal Fe-
deral, Ministro Joaquim Barbosa, “o Itamaraty é uma

14
DE FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. O Itamaraty e a política externa
brasileira: do insulamento à busca de coordenação dos atores
governamentais e de cooperação com os agentes societários. Contexto
int. 2012, vol.34, n.1, pp. 311-355.
15
“A diplomacia atual se caracteriza pela incessante busca de
oportunidades de acumular prestígio. O prestígio é um dos elementos
componentes do poder, do que hoje se denomina soft ou smart power, o
poder suave, brando, o poder inteligente, a capacidade de persuadir
pelo exemplo e os argumentos, em contraposição ao poder
contundente dos armamentos ou da coerção econômica”, RICUPERO,
Rubens. À sombra de Charles de Gaulle: uma diplomacia carismática e
intransferível. A política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010). Novos estud. - CEBRAP 2010, n.87, pp. 35-58 .
16
Política externa e democracia no Brasil: ensaio de interpretação histórica.
São Paulo: Unesp, 2013.
17
ARAÚJO, Ana Rita. Diplomacia de aristocratas - Em ensaio,
professor da UFMG analisa viés elitista da política externa brasileira.
Boletim UFMG n.1833, Ano 39, 26/08/2013.

 
164 Natália Araújo & Deisy Ventura

das instituições mais discriminatórias do Brasil”18. A


segunda emergiu da auditoria realizada pelo Tribunal de
Contas da União (TCU), relativa a um contrato firmado
pelo MRE, em 2009, e diz respeito ao fausto dos banque-
tes oferecidos pela instituição, a custo muito superior ao
gasto correlato de outros órgãos do Estado. A explicação
do Itamaraty foi a de que serviços referentes a refeições
“requerem cardápios” que contemplem ingredientes
“da mais alta qualidade” e que obedeçam às peculiari-
dades culturais das delegações homenageadas, justa-
mente por serem organizados para altas autoridades
estrangeiras19.
Outra característica marcante do Itamaraty é o
“apreço por hierarquias e cadeias de comando”, razão
pela qual “os diplomatas são conhecidos como os mili-
tares de terno e gravata”; quando a orientação da chefia
não é seguida à risca, “fabrica-se a fórceps a obediên-
cia”20.
Este traço de sua cultura institucional prova-
velmente contribuiu para que o MRE desempenhasse
importante papel durante a ditadura civil-militar brasi-
leira (1964-1985), recentemente resgatado pela literatu-
ra:
18
Entrevista concedida a Miriam Leitão, Joaquim Barbosa: Brasil não
está preparado para um presidente negro, O Globo, 28/07/2013. O
Ministro explica: “Passei nas provas escritas, fui eliminado numa
entrevista, algo que existia para eliminar indesejados. Sim, fui
discriminado”, ibid.
19
MATOSO, Filipe, “TCU identifica ‘sobrepreço’ em banquetes
oferecidos pelo Itamaraty”, G1, Brasília, 01/11/2013. Segundo o
Relator do processo, Ministro Benjamin Zymler, “enquanto atualmente
o Cerimonial [do Itamaraty] desembolsa em cada café da manhã de até
quatorze pessoas o valor unitário de R$ 159,09, o Senado [Federal]
registrou o valor de R$ 30,00 por pessoa. Para o item almoço ou jantar
à francesa para até quatorze pessoas, o Senado registrou o valor de R$
120,00 por pessoa, enquanto no MRE esse item custa o valor de R$
237,00. Diferenças significativas como essas ocorrem em vários outros
itens”, ibid.
20
LOPES, Dawisson Belém. Itamaraty sofre processo de esvaziamento
no atual governo. Folha de S.Paulo, 27/08/2013.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 165

“Até pouco tempo atrás, era comum representan-


tes da diplomacia brasileira, e mesmo alguns aca-
dêmicos, afirmarem que o Ministério das Relações
Exteriores havia “sobrevivido” ao regime de exce-
ção mais ou menos incólume, ou seja, que não ha-
via colaborado diretamente com a repressão. Tal
fato, efetivamente, não ocorreu. Houve uma inten-
sa atividade de espionagem e monitoramento das
atividades até mesmo da vida pessoal de muitos
brasileiros que se encontravam exilados após o
Golpe de Estado de 1964 em diversos países, fato
que contou, inclusive, com a colaboração de outros
governos. Os próprios funcionários do Itamaraty
passaram pelo calvário dos expurgos no período
inicial do Golpe de Estado. Vários Memorandos
internos comprovam o comportamento bastante
agressivo que alguns diplomatas adotaram frente
a colegas e outros funcionários que eram simpati-
zantes do pensamento de esquerda. Uma vez insti-
tuído, o CIEX [Centro de Informações do Exteri-
or21] também passou a exercer a função de ‘dedo
duro’, elaborando dossiês e agindo como um ten-
táculo do SNI dentro do Itamaraty”22.

O fato da colaboração com o regime militar ter


“passado despercebida por tantas décadas” denota não
apenas que pouco se sabia sobre o Itamaraty, mas tam-
bém a “postura de autoproteção da corporação diplo-
mática do país”, notavelmente empenhada “não so-
mente na produção da política externa, mas também na
sua divulgação e na reflexão sobre a sua prática profis-
sional”23. A propósito, estudos sobre a íntima conexão

21
Criado no âmbito do MRE e vinculado ao Serviço Nacional de
Informações (SNI), funcionou entre 1966 e 1988.
22
PENNA FILHO, P. Os Arquivos do Centro de Informações do
Exterior (CIEX): O elo perdido da repressão. Revista Acervo, n.21, nov.
2011, pp.79-92.
23
DE FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. O Itamaraty e a política externa
brasileira: do insulamento à busca de coordenação dos atores
governamentais e de cooperação com os agentes societários. Contexto
int. 2012, vol.34, n.1, pp. 311-355.

 
166 Natália Araújo & Deisy Ventura

entre a produção intelectual de diplomatas e a produ-


ção de acadêmicos atuantes no campo da política ex-
terna têm perscrutado a origem do reconhecimento do
diplomata como intelectual, fenômeno que é tido como
legítimo e estimulado pela sociedade brasileira24.
Por outro lado, a extraordinária influência do
Itamaraty resulta igualmente de um grande problema
conceitual. A política internacional sempre foi conside-
rada como “externa” ao Estado, e distinta de toda e
qualquer política doméstica: “apenas as políticas do-
mésticas seriam consideradas ‘políticas públicas’, ou
seja, respostas do Estado a situações socialmente pro-
blematizadas”, numa estratégica recusa ao reconheci-
mento de que “as políticas interna, externa e internaci-
onal compõem um continuum de processo decisório”25.
Porém, parece haver progresso, nos últimos
anos, no que tange à horizontalização do processo de-
cisório em matéria de relações internacionais no seio do
Poder Executivo brasileiro. Recente pesquisa sobre as
normas relativas às competências dos diferentes órgãos
do Poder Executivo revelou que cerca de 50% deles

24
“Ao diplomata, funcionário de carreira e membro de uma forte
burocracia de Estado, as distinções entre sua atuação política e sua
produção intelectual nem sempre são claras ou mesmo possíveis de
serem delineadas. (...) Nós acadêmicos somos em grande parte os
responsáveis por desconsiderar esses não ditos ao alimentarmos o
reconhecimento de um estatuto de igualdade perante as obras
analíticas de diplomatas. E da mesma forma seremos os responsáveis
por contribuir para o enfraquecimento das características que,
justamente, concedem legitimidade e potencial relevância à nossa
produção: o espírito crítico, a capacidade de superação de regimes de
verdade e a criatividade essencial para a renovação do saber”,
PINHEIRO, Leticia; VEDOVELI, Paula. Caminhos Cruzados:
diplomatas e acadêmicos na construção do campo de estudos de
Política Externa Brasileira. Revista Política Hoje. Vol. 21, No 1 (2012):
Dossiê "Política e Corrupção", pp. 211-254.
25
RATTON SANCHEZ, Michelle; SILVA, Elaini C. G. da; CARDOSO,
Evorah L. and SPECIE, Priscila. Política externa como política
pública: uma análise pela regulamentação constitucional brasileira
(1967-1988). Rev. Sociol. Polit. 2006, n.27, pp. 125-143.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 167

podem agir nesta seara, alguns deles dispondo inclusi-


ve de funções de representação do Brasil no exterior,
sem que fique claro, contudo, como tais organismos
articulam-se com o MRE, entre si e com a sociedade26.
Além da concorrência de outros órgãos do Po-
der Executivo, desde a chegada de Luiz Inácio Lula da
Silva à Presidência da República, em 2003, “tornaram-
se frequentes as manifestações públicas, principalmen-
te por parte de diplomatas aposentados, de repúdio
aos métodos, objetivos e prioridades da cúpula do
MRE”, questionando especialmente a suposta “ideolo-
gização e/ou partidarização da política externa do pa-
ís”:
a visibilidade do dissenso intracorporativo se deve
não apenas ao não compartilhamento de políticas e
estratégias, mas também àquilo que a Análise de
Política Externa denomina de "política da burocra-
cia". Cabe recordarmos que vários dos mais impor-
tantes cargos do serviço exterior brasileiro foram
ocupados, na gestão Lula da Silva, por diplomatas
que amargaram certo escanteamento durante o
governo anterior. (...) a perda da coesão interna do
Itamaraty pode ser vista tanto como fruto da poli-
tização da política externa, hoje inevitável, quanto
como elemento central neste processo, ainda am-
bíguo, de desencapsulamento do Ministério das
Relações Exteriores”27.

No entanto, a mudança mais importante, consi-


derando o objetivo deste artigo, é que, com o advento
da democracia, cresceram também as exigências de
maior participação da sociedade no debate da política

26
FRANÇA, Cassio; SANCHEZ-BADIN, Michelle Ratton. A inserção
internacional do Poder Executivo federal brasileiro. Análises e propostas
; n.40. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2010.
27
DE FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. O Itamaraty e a política externa
brasileira: do insulamento à busca de coordenação dos atores
governamentais e de cooperação com os agentes societários. Contexto
int. 2012, vol.34, n.1, pp. 311-355.

 
168 Natália Araújo & Deisy Ventura

internacional: “a sua palavra passa a contar na legiti-


mação da atuação internacional do Brasil – não só para
se beneficiar dos proveitos, mas, acima de tudo, para se
conscientizar dos custos do protagonismo internacio-
nal”28. Embora o Brasil não possua um mecanismo ins-
titucional de consulta e participação social para a ela-
boração da política externa, a partir dos governos de
Lula algumas iniciativas foram tomadas em setores
específicos, como o Programa Mercosul Social e Parti-
cipativo, o Foro Consultivo Econômico-Social do Mer-
cosul e Conselho Consultivo do Setor Privado da Câ-
mara de Comércio Exterior, que são âmbitos de diálogo
com a sociedade, desprovidos de poder decisório. Teria
havido melhora, ainda, na “disposição do Itamaraty
para informar sobre diversos assuntos da política ex-
terna em resposta à requisição de organizações e mo-
vimentos sociais e para incluir representantes destas
entidades em delegações oficiais do Brasil no exteri-
or”29.
É difícil precisar os fatores determinantes desta
relativa abertura em relação à sociedade. No que se
refere a temas de política internacional, “os povos, os
grupos sociais, os indivíduos em geral são tratados,
tradicionalmente, como intrusos”, mas, a depender de
sua legitimidade, o custo político de ignorá-los é muito
alto:
À medida que um espaço público internacional se
vai consolidando, a diplomacia passa a ser pertur-
bada pelos agentes da sociedade - mesmo quando
os atores sociais não se dão conta, ao fazerem de-

28
FONSECA, Carmen. A política externa brasileira da democracia: O
paradoxo da mudança na continuidade? Relações Internacionais 2011,
n.29, pp. 33-43.
29
Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais, Pela criação de um
órgão institucional permanente de consulta, participação e diálogo sobre a
Política Externa Brasileira - Carta ao Ministro das Relações Exteriores,
Conferência Nacional “2003-2013 – uma nova política externa”, São
Bernardo do Campo, 16/07/2013.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 169

mandas que se anunciam como domésticas, mas


que remetem a processos de negociação travados
para além das fronteiras nacionais. O saldo da
operação é uma política externa não monolítica,
não unânime, repleta de dissensos internos quanto
a suas ênfases e métodos, resultante da agregação
assimétrica de interesses de atores sociais e institu-
cionais bastante diversos entre si30.

Neste diapasão, a produção acadêmica brasilei-


ra recente está voltada sobretudo ao estudo ou da polí-
tica externa brasileira após o advento da democracia
(desde 1985), ou da democratização do processo de
elaboração da política externa, sendo raras as aborda-
gens de aspectos específicos da estrutura ou da cultura
política do MRE.
Na base de dados acadêmica Scielo, por exem-
plo, as pesquisas com os descritores “Itamaraty” e
“democracia” não indicam resultados; o descritor “Mi-
nistério das Relações Exteriores” oferece 12 resultados,
dos quais apenas um é pertinente ao tema; com os des-
critores “política externa” e “democracia”, foram obti-
dos 6 resultados, dos quais 4 foram relevantes para a
pesquisa e são citados neste texto; com os descritores
“Itamaraty” e “transparência”, um resultado foi encon-
trado, mas irrelevante para a pesquisa; finalmente, não
houve resultado para buscas com os descritores “polí-
tica externa brasileira”, “acesso” e “informação”, tam-
pouco com os descritores “Itamaraty”, “acesso” e “in-
formação”.
A revisão da literatura vai no sentido de que o
crescente aumento da participação de novos atores nas

30
LOPES, Dawisson Belém. A política externa brasileira e a
‘circunstância democrática’: do silêncio respeitoso à politização
ruidosa. Rev. bras. polít. int. 2011, vol.54, n.1, pp. 67-86. Quanto ao uso
da expressão “intruso” para referir o papel da sociedade civil na
política externa, o autor faz referência à obra de Bertrand Badie, Le
diplomate et l’intrus, Paris: Fayard, 2008.

 
170 Natália Araújo & Deisy Ventura

questões de política externa vem levando a uma mu-


dança no padrão decisório brasileiro. Porém,
“... embora esses espaços de diálogo venham sen-
do abertos em relação a outros atores estatais e
mesmo atores não-estatais, no que se refere à es-
trutura interna do Ministério das Relações Exterio-
res, o que se observa é a manutenção do status quo
organizacional, ou seja, preservando-se a estrutura
decisória altamente centralizada e hierarquizada
na cúpula, sendo os aspectos da funcionalidade da
carreira, dos cargos e dos despachos mantidos”31.

Assim, estudos consistentes sobre o padrão de-


cisório do Itamaraty apontam a existência de duas lógi-
cas administrativas distintas em seu seio:
“em primeiro lugar, o aumento da porosidade
pressupõe diminuição do insulamento burocrático
com a incorporação de preceitos gerenciais, que
visam a atender os interesses dos cidadãos (clien-
te); por outro lado, a hierarquização e a rigidez
funcional pressupõem centralização administrati-
va, princípio este amplamente criticado pela nova
proposta de gestão pública. Portanto, verifica-se
um processo de mudança ainda incipiente, onde
há sobreposições de lógicas administrativas dis-
tintas, uma em direção à mudança, outra em dire-
ção à resistência e à manutenção do status quo.
Quais dessas tendências prevalecerão na dinâmica
decisória em política externa no Brasil dependerá
sem dúvida da resposta do MRE a uma fase que
requer mudança e adaptação institucional” [grifo
nosso]32.

Não há dúvidas de que a maneira como a políti-


ca externa é formulada pelo Itamaraty está diretamente

31
FIGUEIRA, Ariane Roder. Rupturas e continuidades no padrão
organizacional e decisório do Ministério das Relações Exteriores. Rev.
bras. polít. int. 2010, vol.53, n.2, pp. 5-22.
32
Ibid.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 171

relacionada ao grau de democratização de suas estru-


turas. No entanto, o presente artigo busca um recorte
que foi pouco estudado na literatura sobre a democra-
tização da política externa: a participação informada.
Em outras palavras, o conceito de democracia
aqui adotado pressupõe, mais do que a proliferação de
espaços de consulta e diálogo, uma significativa ênfase
na qualidade da informação que é disponível aos que
atuam nos novos âmbitos de participação relativos à
política externa. Neste particular, o MRE é considerado
“uma corporação opaca, sem transparência, que está
começando a se repensar, mas em marcha muito len-
ta”33.

2. O pedido de informações sobre a posição do


Brasil em relação ao SIDH

O direito de acesso à informação é constitucio-


nalmente garantido desde 1988. O artigo 5º da Consti-
tuição Federal em seu inciso XIV, afirma que “é garan-
tido a todos o acesso à informação”. De acordo com o
artigo 37, a publicidade é um dos princípios da Admi-
nistração Pública. Tal princípio é reforçado no artigo
216 §2º, em virtude do qual “cabem à administração
pública, na forma da lei, a gestão da documentação
governamental e as providências para franquear sua
consulta a quantos dela necessitem”.
A Lei nº 12.527 (LAI), de 18 de novembro de
2011, tem por finalidade regulamentar o direito consti-
tucional de acesso dos cidadãos às informações públi-
cas e seus dispositivos são aplicáveis aos três Poderes
da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

33
LOPES, Dawisson. In: ARAÚJO, Ana Rita. Diplomacia de
aristocratas - Em ensaio, professor da UFMG analisa viés elitista da
política externa brasileira. Boletim UFMG n.1833, Ano 39, 26/08/2013.

 
172 Natália Araújo & Deisy Ventura

Sob o prisma do Senado Federal, a importância


desta lei se deve ao fato de que
“as instituições, na atual quadra da história, am-
pliam a sua legitimidade na medida em que de-
mocratizam as suas informações junto à sociedade
organizada e à própria cidadania. Esse processo
ocorre justamente porque o acesso à informação
facilita a ação das pessoas, reduz tempo e custos,
aumenta a eficiência, tudo isso em favor da credi-
bilidade institucional”34.

Todos os órgãos públicos têm o dever da trans-


parência passiva mas também ativa, o que significa
que, somando-se à obrigação de fornecer informações
sempre que elas forem solicitadas, todas as instituições
devem, de maneira espontânea, divulgar dados e fatos
que possam ser do interesse geral da sociedade. Essa
divulgação deve ser feita da maneira acessível à popu-
lação, para que não se depreenda grande esforço para
obter a informação procurada. O parágrafo 2º do artigo
8º da LAI dispõe que “os órgãos e entidades públicas
deverão utilizar todos os meios e instrumentos legíti-
mos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulga-
ção em sítios oficiais da rede mundial de computadores
(internet)”.
A LAI previu exíguos seis meses para que os
órgãos públicos se adaptassem aos seus dispositivos.
Porém,
“o projeto de lei que originou a Lei de Acesso à In-
formação foi enviado ao Congresso nos idos de
2009, e aprovado no fim de 2011. Logo, é evidente
que o tema já vem sendo debatido há anos e nada
impedia que as instituições se antecipassem, na

34
Prefácio, Cartilha Lei de Acesso à Informação no Brasil – O que você
Precisa Saber. Disponível em: <
http://www.interlegis.leg.br/produtos_servicos/informacao/bibliote
ca-virtual-do-programa-interlegis/cartilha-lei-de-acesso-a-
informacao> Acesso em: 20/11/2013.

 
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 173

medida do possível, em relação ao objeto das pro-


postas. Infelizmente, a cultura da opacidade é qua-
se onipresente no País e muitas de nossas institui-
ções ainda querem lutar em sentido contrário ao
ideal republicano da transparência que fundamen-
ta e orienta a formação do nosso Estado”35.

No primeiro dia de vigência da LAI, em maio de


2012, a Conectas apresentou ao então Ministro das Re-
lações Exteriores, Antônio de Aguiar Patriota, o reque-
rimento de “todos os despachos telegráficos, telegra-
mas e outras formas de comunicação que contenham
instruções existentes entre Brasília e a Missão Perma-
nente do Brasil Junto à Organização dos Estados Ame-
ricanos (OEA)” relacionadas “às posições adotadas
pelo Brasil no processo de fortalecimento do SIDH” do
órgão, que foi levado a cabo entre 29 de maio de 2011 e
25 de janeiro de 201236.
A referida atuação da missão brasileira ocorreu
no âmbito do “Grupo de Trabalho e Reflexão sobre o
Funcionamento da Comissão Interamericana de Direi-
tos Humanos (CmIDH) com vistas a Fortalecer o Sis-
tema Interamericano de Direitos Humanos”, criado
pelo Conselho Permanente da OEA. Esse Grupo de
Trabalho despertou, desde a sua criação, suspeitas por
parte da sociedade civil, da academia e da própria Co-
missão de que, ao contrário do que indica seu nome, o
escopo fosse o enfraquecimento do Sistema. Com efei-
to, a princípio, na agenda de trabalho do Grupo, “so-
mente foram incluídos os temas que evidentemente
representam um incômodo para os Estados e não ou-
tros que são prioritários para o fortalecimento do
SIDH, como o cumprimento e a implementação das

35
CUSTÓDIO, Rafael; CHARLEAUX, João Paulo. Contra a opacidade.
O Estado de São Paulo, 13/05/2012.
36
Pedido de Acesso à Informação n° 09200.000058/2012-13 - Resposta
ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012. Disponível em:
<http://www.conectas.org>. Acesso em: 20/11/2013.

 
174 Natália Araújo & Deisy Ventura

decisões, a eleição de autoridades e integrantes tanto


da CmIH como da CrIDH (Corte Interamericana), ou o
acesso das vítimas ao sistema, entre outros”37.
Em 18 de junho de 2012, excedendo por um dia
o prazo máximo para envio de resposta ao pedido de
acesso à informação, o MRE alegou, por meio do Servi-
ço de Informação ao Cidadão, que a quase totalidade
dos expedientes solicitados havia recebido a classifica-
ção de “reservados, em razão das implicações que po-
deriam advir sobre a participação do Brasil no processo
negociador e divulgação, antes de sua conclusão, de
posições ou comentários sobre posições de outros paí-
ses a respeito”38. A Conectas contra-argumenta que “o
informe final do Grupo de Trabalho já foi adotado pelo
Conselho Permanente da Organização dos Estados
Americanos no dia 25 de janeiro de 2012, concluindo o
processo iniciado em junho (de 2011) com a criação do
Grupo de Trabalho e colocando fim ao seu mandato”39.
Nas regras procedimentais adotadas, em 11 de agosto
de 2011, para o funcionamento do GT, é expressa a de-
terminação de que o grupo seria “um processo limita-
do no conteúdo e no tempo, diferente do regular e con-
tínuo ‘processo de reflexão sobre o Sistema Interameri-
cano para a promoção dos direitos humanos’ que tem
sido desenvolvido pela Comissão dos Assuntos Jurídi-
cos e Políticos (CAJP) com a CmIDH e CrIDH”40. Fica
evidente, portanto, que nenhum processo negociador
em curso poderia ser prejudicado.

37
AMATO, Victoria. Una mirada al proceso de reflexión sobre el fun-
cionamiento de la CIDH, Aportes DPLf 2012, n.16, p.5. Disponível em
<http://www.dplf.org/uploads/1338931610.pdf>. Acesso em:
20/11/2013.
38
Pedido de Acesso à Informação n° 09200.000058/2012-13 - Resposta
ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012. Disponível em:
<http://www.conectas.org>. Acesso em: 20/11/2013.
39
Ibid.
40
Sem título. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos-
site/RECURSOCGU1.pdf>. Acesso em: 20/11/2013.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 175

Ainda que se alegue a continuidade dos debates


sobre o fortalecimento do Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, seria possível amparar-se na LAI,
que em seu artigo 24 § 3º determina: “alternativamente
aos prazos previstos no § 1º, poderá ser estabelecida
como termo final de restrição de acesso a ocorrência de
determinado evento, desde que este ocorra antes do
transcurso do prazo máximo de classificação.”
A apresentação das recomendações do Grupo
de Trabalho deveria ocorrer até a primeira sessão regu-
lar do Conselho Permanente, em dezembro de 201141. O
Itamaraty afirma que a solicitação de informação pode-
ria ser considerada atendida, uma vez que a divulga-
ção em rede de internet das posições finais do GT
cumpriria este papel. Finalizando a carta de corres-
pondência, o Ministério oferece dois telegramas, dentre
noventa e oito que não foram considerados reservados
ou secretos42, dos quais um dizia respeito à própria
ONG, e outro aprovava a agenda para um evento em
Washington, nos Estados Unidos, não dizendo respeito
às informações requeridas43.
Diante da negativa de acesso aos telegramas so-
licitados, a Conectas impetrou um recurso, em 28 de
junho de 2012, sob o argumento de que o pedido fora
totalmente ignorado, uma vez que dizia respeito ao
“acesso às informações acerca dos debates ocorridos no
âmbito do Grupo de Trabalho” e que, apesar da dispo-
nibilidade dos documentos relativos ao posicionamen-
to do Brasil no GT em site eletrônico, o material não

41
Sem título. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos-
site/RecursoCGU2.pdf> Acesso em: 20/11/2013.
42
Itamaraty nega acesso a telegramas sobre direitos humanos. Disponível
em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/Itamaraty-
nega-acesso-a-telegramas%20> Acesso em: 20/11/2013.
43
Sem título. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos-
site/Conectas_Telegramas.pdf> Acesso em: 20/11/2013.

 
176 Natália Araújo & Deisy Ventura

abordava as posições que estavam sendo solicitadas, a


saber:
as posições do Brasil diante do mecanismo de
critérios para a construção do capítulo IV do informe
anual da CIDH;
as posições do Brasil com relação a propostas
apresentadas durante o processo pelos demais Estados
da OEA;
e o fluxograma dos processos de tomada de de-
cisão envolvendo diferentes órgãos do Estado brasilei-
ro, como a Presidência da República, o Ministério das
Relações Exteriores e a Delbrasupa e a Secretaria de
Direitos Humanos.
A ONG considerou que a negativa de acesso
omitiu-se por prescindir de fundamentação legal que
justificasse a classificação de documentos como “reser-
vados”, além de ter deixado de apresentar a identidade
da autoridade classificadora e o “código de indexação
do documento classificado44”. A ausência de justificati-
va colide com o artigo 23 da LAI, que explicita as situa-
ções que levam à classificação de informações “consi-
deradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou
do Estado”. No expediente em apreço, o Itamaraty não
fez, todavia, menção à segurança da sociedade ou do
Estado. Confronta igualmente o artigo 28 da LAI, em
virtude do qual a “classificação de informação em
qualquer grau de sigilo deverá ser formalizada em de-
cisão que conterá, no mínimo, os seguintes elementos: I
- assunto sobre o qual versa a informação; II - funda-
mento da classificação, observados os critérios estabe-
lecidos no art. 24; III - indicação do prazo de sigilo, con-
tado em anos, meses ou dias, ou do evento que defina o
seu termo final, conforme limites previstos no art. 24; e
IV - identificação da autoridade que a classificou”. No
mesmo sentido, o Decreto nº 7.724/2012, que regula-

44
Sem título. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos-
site/RECURSO%20AO%20MRE1(1).pdf> Acesso em: 20/11/2013.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 177

menta a LAI, dispõe que “as razões de negativa de


acesso à informação classificada indicarão o fundamen-
to legal da classificação, a autoridade que a classificou
e o código de indexação do documento classificado”
(artigo 19§1º).
A partir da resposta do Itamaraty, seguiu-se
uma troca de correspondências entre esse órgão e a
Conectas, e entre ela e a Controladoria-Geral da União,
para quem os recursos foram encaminhados, diante
das sucessivas recusas aos pedidos de acesso à infor-
mação, sem fundamentação idônea, por parte do MRE.
Até a finalização do presente artigo, havia registro de
dez correspondências enviadas pela Conectas, entre
pedidos de informação, recursos e reenvio de e-mail
devido à ausência de resposta; 5 correspondências do
Itamaraty, entre respostas e despacho à Controladoria
Geral da União; 4 respostas da CGU, que primeiro ad-
mite o recurso da ONG para depois negá-lo, encami-
nhando-o à Comissão Mista de Reavaliação de Infor-
mações do próprio órgão, e enfim 6 respostas dessa
Comissão. Esse processo transcorreu entre 16 de maio
de 2012 e 21 de maio de 2013.
Em resposta ao recurso de 28 de junho, impe-
trado pela ONG, o Ministério das Relações Exteriores
apresentou uma correspondência, em 3 de julho45,
quando expirava o prazo legal correspondente, infor-
mando que a resposta definitiva ao recurso só seria
enviada no dia 5 de julho, devido a circunstâncias in-
ternas46. Fica evidente, portanto, que o Itamaraty lida
com prazos de maneira discricionária, apresentando
respostas na data que lhes é conveniente, a exemplo de
45
Pedido de Acesso à Informação no. 09200.000058/2012-13 - Resposta
ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012. Disponível em: <
http://www.conectas.org/arquivos-
site/RESPOSTA%20AO%20RECURSO%20MRE1.pdf> Acesso em:
20/11/2013.
46
Sem título. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos-
site/RECURSOCGU1.pdf> Acesso em: 20/11/2013.

 
178 Natália Araújo & Deisy Ventura

outras duas respostas à Conectas (sobre quatro) que


foram apresentadas fora do prazo47.
Por outro lado, o MRE alegou “que o sigilo seria
necessário ‘para preservar a credibilidade e a confiabi-
lidade do país como parceiro em negociações interna-
cionais’”48. O Itamaraty afirmou também que parte das
informações em questão teria sido fornecida sigilosa-
mente por outros países. Entretanto, não apresentou
quaisquer provas de que isto realmente tenha aconte-
cido.
Na resposta ao recurso impetrado pela ONG, o
Itamaraty informou que as autoridades classificadoras
dos documentos solicitados foram, no caso de comuni-
cações recebidas da Delbrasupa, o Chefe ou o Encarre-
gado de Negócios daquela Missão e, no caso das co-
municações expedidas pela sede diplomática em Brasí-
lia, os titulares da Divisão de Direitos humanos e/ou
do Departamento de Direitos Humanos e Temas Soci-
ais.
Os documentos solicitados foram classificados
antes da entrada em vigor da LAI, razão pela qual não
se pode exigir a apresentação do Termo de Classifica-
ção de Informação49, já que este foi criado pela nova

47
Resposta do MRE em 18/06/2012 ao pedido inicial da Conectas,
apresentada com um dia de atraso e resposta do MRE ao primeiro
recurso da Conectas, em 28/06/2102, dois dias depois do
encerramento do prazo.
48
Disponível em:
<http://www.conectas.org/arquivos-site/RECURSOCGU1.pdf>
Acesso em: 20/11/2013.
49
“De acordo com o Decreto nº 7.724, ao classificar uma informação, a
autoridade competente deverá formalizar sua decisão no Termo de
Classificação de Informação (TCI), informando, entre outros dados, o
grau de sigilo, a categoria na qual se enquadra a informação, o tipo de
documento, as razões da classificação, o prazo de sigilo ou evento que
definirá o seu término, o fundamento da classificação e a identificação
da autoridade classificadora. O TCI deve ser anexado à informação
classificada.” Disponível em:
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 179

legislação. Entretanto, eles devem conter ao menos o


que é estipulado nos incisos do artigo 28, supracitado.
Além de que, “segundo a redação do artigo 31 do De-
creto, nenhum desses elementos deve ser mantido sob
o mesmo grau de sigilo da informação classificada”50.
Os dois telegramas que foram liberados por
meio da resposta do Itamaraty ao primeiro pedido de
informação pela Conectas eram os únicos ostensivos,
enquanto os outros expedientes “em sua quase totali-
dade, foram classificados como reservados”51. No en-
tanto, na segunda negativa de acesso, o MRE fez refe-
rência a documentos classificados como “secretos” e
“ultrassecretos”, cuja existência não havia sido, até en-
tão, mencionada. Questiona-se, portanto, o motivo des-
sa documentação não ter sido de antemão mencionada
pelo órgão. Ademais, assim como em outras corres-
pondências, o Itamaraty não fornece nenhuma infor-
mação básica sobre estes documentos: quais são, quan-
tos são, o que justifica a classificação e qual foi a auto-
ridade responsável.
Considerando que “a existência de um recurso
(um ‘segundo olhar’ sobre o mesmo fato) obviamente
pressupõe que aquele que profere a primeira decisão
não irá analisar novamente, ele mesmo, em sede de
recurso, o mesmo pedido”52, a ONG sustentou que o
Itamaraty não garantiu uma instância recursal fidedig-
na, uma vez que o despacho de 27 de julho foi assinado
pelo mesmo funcionário do MRE que já havia assinado
a resposta do órgão ao primeiro recurso da Conectas,

<http://www.acessoainformacao.gov.br/acessoainformacaogov/perg
untas-frequentes/informacoes-acesso-restrito.asp#10> . Acesso em:
20/11/2013.
50
Sem título. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos-
site/RECURSOCGU1.pdf> Acesso em: 20/11/2013.
51
Ibid.
52
Sem título. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos-
site/RECURSO%20AO%20MINITRO_DESCL.pdf > Acesso em:
20/11/2013.
180 Natália Araújo & Deisy Ventura

em 5 de julho. Ambos os documentos mantinham a


decisão de negar o acesso às informações solicitadas.
Também é importante considerar que o artigo
27 do Decreto 7.724/2012 determina que, para a classi-
ficação das informações, deverá ser observado o inte-
resse público e utilizado o critério menos restritivo
possível. É do interesse público o acesso às informações
em posse do governo53, somando-se a isso o fato de que
a nova legislação tem por objetivo justamente por ter-
mo à cultura de opacidade e de ocultamento do Estado
brasileiro54.
Além disso, não parece haver obediência ao cri-
tério menos restritivo possível quando, em uma cor-
respondência, o Itamaraty faz menção a documentos
ostensivos e reservados e, em outra, coloca a existência
de documentação secreta e ultrassecreta, que não havia
sido anteriormente explicitada.
Por meio da análise das correspondências tro-
cadas entre a Conectas e o MRE, é possível tecer tam-
bém algumas considerações a respeito da maneira co-
mo o Ministério lida com a natureza de suas funções.
Em 16 de agosto de 2012, o Itamaraty envia um docu-
mento à Conectas com referência às informações passí-
veis de classificação sobre as quais trata o artigo 25 do
Decreto55. Nele, afirma que as informações sob custódia

53
ASANO, Camila. Entrevista concedida a Natália Lima de Araújo
[gravação em celular], São Paulo, outubro de 2013. Segundo a
entrevistada, “ninguém usa a linguagem ‘eu tenho direito a acesso à
informação como um direito humano’. Ainda é em outras chaves: a
chave da não corrupção, da boa governança, de contas abertas. Mas
acho que existe sim uma pressão que está e crescendo porque claro,
não é? A democracia vai se fortalecendo e as pessoas vão querendo
mais”, ibid.
54
CUSTÓDIO, Rafael; CHARLEAUX, João Paulo. Contra a opacidade.
O Estado de São Paulo, 13/05/2012.
55
Resposta do Ministério das Relações Exteriores aos recursos
interpostos pela Conectas Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.conectas.org/arquivos-
site/Resposta_MRE%20agosto.pdf> Acesso em: 20/11/2013.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 181

do Estado concernentes ao dever de ofício do Ministé-


rio das Relações Exteriores são, “como regra, informa-
ções que devem ser classificadas por se enquadrarem
em categoria de informações cuja divulgação ou acesso
irrestrito causaria prejuízo aos próprios objetivos que o
Estado almeja concretizar”. Este argumento esbarra
frontalmente com a ideia já referida de que a política
externa do Brasil é uma política pública tal como as
outras. Se as informações são secretas, não haverá con-
trole pelo cidadão das decisões do Estado em determi-
nadas temáticas; e se elas não são passíveis de divulga-
ção por dificultarem a concretização dos objetivos do
Estado, questiona-se, então, como a sociedade terá co-
nhecimento de tais objetivos.
O Itamaraty afirma que a troca de informações
que envolvem as negociações diplomáticas é feita de
forma sigilosa. Porém, a ideia de que a atividade di-
plomática deve ser mantida sob sigilo já foi questiona-
da em 1918, quando o então presidente estadunidense
Woodrow Wilson apresenta seus Catorze Pontos, cuja
cláusula primeira defende acordos que sejam negocia-
dos publicamente56. O Brasil encontra-se na contramão
de práticas que têm se tornado comuns desde o início
do século XX, quando sequer existiam organismos nos
quais se desenvolve a diplomacia, como a Organização
das Nações Unidas.
Por outro lado, em diversos documentos, o Ita-
maraty exalta a necessidade de preservar a reputação e
a imagem do Brasil no cenário internacional. Primei-
ramente, o faz na resposta ao recurso impetrado em 28
de junho de 2012, sustentando que
“a manutenção do sigilo das comunicações solici-
tadas revela-se essencial não somente para evitar
por em risco a posição negociadora brasileira sobre

56
MELLO, Valérie de Campos. Globalização, regionalismo e ordem
internacional. Rev. bras. polít. int. 1999, vol.42, n.1, pp. 157-181
182 Natália Araújo & Deisy Ventura

o tema - com reflexos evidentes sobre a condução


das negociações -, mas também para preservar a
credibilidade e a confiabilidade do país como par-
ceiro em negociações internacionais”57.

No documento endereçado à Conectas em 16 de


agosto, essa ideia é novamente explicitada ao se co-
mentar sobre a “função que o órgão responsável pela
atividade diplomática tem como condutor e formula-
dor de estratégias de inserção, projeção e consolidação
da imagem e dos interesses de um Estado soberano em
território estrangeiro”58. Em se tratando de direitos
humanos, que deveriam ser considerados valores uni-
versais e não interesses suscetíveis à barganha do Esta-
do59, parece deslocada a justificativa do Itamaraty.
No mesmo documento, o MRE continua refe-
rindo assuntos que não parecem pertinentes ao pedido
de informações da ONG. Em outro trecho, o órgão
menciona a Convenção de Viena sobre Relações Di-
plomáticas, de 1961, cujos artigos 24 e 27 tratam do
sigilo e da inviolabilidade da comunicação diplomáti-
ca. Essa referência, porém, é inócua, visto que não se
trata de violação de correspondência devido à má fé ou
executada com uso da força física, mas se trata do direi-
to democrático do acesso à informação, como respon-
deu a Conectas em outra correspondência.
Para sustentar sua posição no que toca ao sigilo
das informações solicitadas, o Itamaraty utiliza tam-
bém o costume e a normativa internacional (dessa vez,
57
Pedido de Acesso à Informação no. 09200.000058/2012-13
Resposta ao recurso impetrado em 28 de junho de 2012. Disponível
em: <http://www.conectas.org/arquivos-
site/RESPOSTA%20AO%20RECURSO%20MRE1.pdf> Acesso em:
20/11/2013.
58
Disponível em:
<http://www.conectas.org/arquivos-
site/Resposta_MRE%20agosto.pdf> Acesso em: 20/11/2013.
59
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Os direitos humanos
como valor universal. Lua Nova 1994, n.34, pp. 179-188.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 183

sem referência concreta a tratados) para afirmar que os


resultados das negociações devem ser públicos. Tal
publicidade não deveria servir de pretexto para a não
divulgação dos documentos concernentes ao processo
de negociação, uma vez que, terminados os trâmites e
apresentados os resultados, a chance de incidência e
participação da sociedade civil na decisão torna-se pra-
ticamente nula.
O Itamaraty sustenta que a posição negociadora
do Brasil pode ter sua confiabilidade abalada se forem
divulgadas informações classificadas. Entretanto, a
Conectas não requer a divulgação de informações ade-
quadamente classificadas. Ao contrário, ela requer a
desclassificação e, por conseguinte, a divulgação de
informações cujo sigilo é injustificável à luz da ordem
jurídica vigente, de tão difícil assimilação pelo MRE.
É importante ressaltar que a confiabilidade ale-
gada é uma questão política, como afirmou o próprio
Ministério60. Mas essa cultura política afronta os prin-
cípios constitucionais que regem a Administração Pú-
blica, arrolados no artigo 37 da Constituição Federal,
especialmente o da publicidade. Sendo um princípio, a
publicidade
“é, por definição, mandamento nuclear de um sis-
tema, verdadeiro alicerce dele, disposição funda-
mental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério
para sua exata compreensão e inteligência exata-
mente por definir a lógica e a racionalidade do sis-
tema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe
dá sentido harmônico”61.

60
Resposta do Ministério das Relações Exteriores aos recursos
interpostos pela Conectas Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.conectas.org/arquivos-
site/Resposta_MRE%20agosto.pdf>. Acesso em: 20/11/2013.
61
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo.
13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 771-772.

 
184 Natália Araújo & Deisy Ventura

A confiabilidade do MRE deveria ser gerada,


então, pela transparência da gestão pública, que é re-
quisito imprescindível para que se garanta o controle
do cumprimento dos demais princípios constitucionais,
em particular a legalidade, a impessoalidade e a mora-
lidade, e não por meio do sigilo.
O MRE afirma, sem oferecer fontes, que a pro-
dução de informações classificadas não ultrapassa 7,5%
do total da documentação produzida anualmente pelo
Itamaraty, e que a transparência é, portanto, a regra e
não a exceção62. Entretanto, no início do mesmo docu-
mento, o MRE declara que informações que fizerem
referência ao seu dever de ofício devem ser, como re-
gra, classificadas.
Três meses depois do início da troca de corres-
pondências com a Conectas, o Itamaraty disponibilizou
algum tipo de informação relevante ao caso, mas que
ainda assim não corresponde ao pedido formulado. O
órgão divulgou, em obediência ao artigo 19 do decreto
7.724/2012, uma lista com “a data do expediente, seu
tipo (telegrama, despacho telegráfico ou circular tele-
gráfica), seu número sequencial no sistema interno de
comunicações do MRE, o grau de sigilo, a distribuição,
os descritos, o destinatário, o remetente e a autoridade
classificadora”. Dos 93 documentos da lista, sete eram
classificados como secretos, apenas dois como ostensi-
vos e os outros 84 como reservados63.

62
Ibid.
63
Disponível em:
<http://www.conectas.org/arquivos-site/LISTA%20telegramas.pdf>
Acesso em: 20/11/2013.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 185

3. Conclusões preliminares e desdobramentos


futuros

Neste relato dos primeiros resultados da pes-


quisa, foi abordado o problema específico do cumpri-
mento da LAI pelo Itamaraty, a fim de perscrutar sua
eventual vinculação à cultura política daquela institui-
ção, que ofereceria resistência ao processo de democra-
tização.
É importante considerar que, graças à nova or-
dem jurídica brasileira, a publicidade é a regra, e o sigi-
lo é a exceção, sendo a segurança da sociedade e do
Estado o único fator que pode justificar a não divulga-
ção de informações. Segurança, porém, é um conceito
de grande complexidade:
“Em todas as áreas científicas, a definição concei-
tual é central, e por isso ocupa espaço nobre na
produção científica. Porque, por um lado, a preci-
são conceitual fornece a univocidade que permite
a comunicação compreensiva da atividade científi-
ca e, por outro, porque o conceito bem definido
deve garantir o acesso instrumental àquela parte
da realidade que se pretende analisar. Todavia, na
área específica da segurança, essas normas se
tornam dramáticas, pois às considerações episte-
mológicas anteriores soma-se o fato de que esses
conceitos se tornaram operativos no discurso polí-
tico com consequências políticas e sociais pelas
quais os acadêmicos nem sempre se responsabili-
zam. Alguns dos autores de livros de Relações In-
ternacionais, que nestas latitudes são tomados co-
mo científicos e universais e cujos discursos são
reproduzidos sem crítica, são funcionários do De-
partamento de Estado ou assessores do Departa-
mento de Defesa dos Estados Unidos e, como tais,

 
186 Natália Araújo & Deisy Ventura

comprometidos com as formulações políticas des-


ses organismos” [grifo nosso]64.

Ora, a concepção de segurança dos Estados


Unidos, absolutamente vinculada aos seus próprios
interesses políticos, já teve profundas consequências no
território brasileiro. Ela faz parte do nefasto acervo au-
toritário que nos foi legado pelo regime militar, instau-
rado em 1964 com estreita colaboração de Washington,
como demonstra a nossa historiografia.
Uma das necessidades de aprofundamento des-
ta pesquisa está, portanto, relacionada à compreensão
de qual conceito de segurança seria compatível com a
perspectiva de um direito humano no âmbito da apli-
cação da LAI, eis que o acesso à informação é, com ra-
zão, assim classificado. Ao não disponibilizar os expe-
dientes requisitados pela Conectas, o Ministério das
Relações Exteriores viola este direito.
O caso analisado é ainda mais emblemático por
tratar de documentos referentes às orientações de Bra-
sília para o labor de seus diplomatas no processo de
fortalecimento do SIDH.
A elaboração da política externa brasileira passa
por um processo de crescente democratização, tendo as
organizações da sociedade civil a possibilidade de in-
fluir sobre seus rumos e lutar para que seus interesses
sejam contemplados. Entretanto, a estrutura de funcio-
namento do Itamaraty ainda necessita lograr avanços,
já que não condiz com o Estado democrático no qual
está inserido. Por considerar a atividade diplomática
64
SAINT-PIERRE, Héctor Luis. “Defesa” ou “segurança”?: reflexões
em torno de conceitos e ideologias. Contexto int. 2011, vol.33, n.2, pp.
407-433. O autor acrescenta: “para uma ciência que pretenda
reconhecimento no diálogo científico internacional, não bastará
estudar os conceitos, empregar as teorias e repetir os princípios dos
cientistas das metrópoles; deverá reconhecer seus próprios problemas,
formular suas perguntas, burilar seus conceitos, ensaiar seus métodos
e construir suas teorias com a precisão de quem não teme discutir com
autonomia e universalidade seus resultados”, ibid.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 187

como secreta e sustentar, portanto, que a publicização


dos documentos referentes a negociações e acordos não
deva ocorrer, o MRE alija a população brasileira do
controle de grande parte da atuação externa brasileira.
Desse modo, não há garantia de que a política externa
se mantenha conforme aos princípios constitucionais
que orientam as relações exteriores do Brasil65, que in-
cluem a prevalência dos direitos humanos como norte
para a atuação do Estado no plano mundial, tampouco
quaisquer outras diretrizes que possam resultar da par-
ticipação social, ou mesmo de coordenação com outros
órgãos do Poder Executivo, ou de recomendação do
Congresso Nacional.
Finalmente, o caso estudado indica que o Itama-
raty não tem implementado a LAI de maneira plena.
Essa constatação é corroborada pelo Relatório de pedi-
dos de acesso à informação do Sistema Eletrônico do
Serviço de Informação ao Cidadão66. Os dados foram
gerados para o período que se estende de maio de
2012, mês de implementação da LAI, a outubro de
2013. De um total de 1.123 pedidos formulados junto
ao MRE – com uma média mensal de 62,39 –, 1.117 fo-
ram respondidos, 3 estavam tramitando dentro do pra-
zo e 3 fora do prazo. O Itamaraty classificou os pedidos

65
Em virtude do artigo 4º da Constituição Federal, “a República
Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos
direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-
intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII -
solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao
racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da
humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A
República Federativa do Brasil buscará a integração econômica,
política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à
formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
66
Disponível em:
<http://www.acessoainformacao.gov.br/sistema/Relatorios/Anual/
RelatorioAnualPedidos.aspx>. Acesso em: 20/11/2013.

 
188 Natália Araújo & Deisy Ventura

em dez categorias principais67, segundo a natureza da


informação. As duas categorias com maior quantidade
de ocorrências foram Governo e política – Administração
pública, e Relações Internacionais – política externa com
622 e 271 pedidos, respectivamente. Não havia dados a
respeito de quantos desses pedidos foram recusados e
quantos foram aceitos por categoria. Do volume total
de pedidos, 399 tiveram acesso negado, e 51 parcial-
mente cedidos; ou seja, 40,07% das informações solici-
tadas não foram plenamente liberadas. Dentre os pedi-
dos que não foram atendidos, 336 não o foram por exi-
girem tratamento adicional de dados; porém, o site não
especifica o que seria o tratamento adicional de dados.
É preciso apurar, ainda, que critérios o Itama-
raty utiliza para considerar atendido um pedido de
informações baseado na LAI. O caso aqui descrito reve-
la que as informações fornecidas podem não ser exa-
tamente as solicitadas. Por outro lado, o modo pelo
qual se apresentam documentos, especialmente os da-
dos estatísticos, pode torná-los imprestáveis à finalida-
de pretendida, caso sejam imprecisos, ambíguos ou
lacunosos.
Outro campo a explorar, que requer pesquisa
qualitativa específica, é a questão de saber o quanto
esta sucessão de pedidos de informação influenciou a
mudança da posição do Brasil sobre a reforma do
SIDH.
Esta pesquisa sobre acesso à informação com fo-
co na aplicação da LAI pelo Itamaraty é ainda incipien-
te, mas já evidencia a necessidade de aperfeiçoamento,
e não apenas de procedimentos relativos à implemen-

67
Governo e Política – administração pública; Relações Internacionais
– Política Externa; Relações Internacionais – serviços consulares;
Relações Internacionais – relações diplomáticas; Relações
Internacionais – organizações internacionais; Relações Internacionais –
proteção comercial internacional; Governo e política – fiscalização do
Estado; Governo e Política – política; Justiça e Legislação - Legislação e
jurisprudência; Transportes e trânsito – Trânsito.
A lenta democratizaçãoo do Itamaraty 189

tação da lei. Trata-se de “uma mudança de paradigma.


A partir do momento que a sociedade tem acesso à in-
formação, não é mais uma questão só de governo, pois
surge o questionamento de qual providência iremos
tomar a partir da abertura daquele dado”68. No campo
da atuação internacional do Brasil, essa evolução cultu-
ral pode representar o sonhado ocaso de uma época em
que “se concebe o interesse público a partir de referen-
ciais de uma elite diminuta”69.

68
BEZERRA, Daniela [representante da organização Transparência
Hacker, no Seminário de comemoração de um ano da LAI]. CGU debate
avanços do primeiro ano da Lei de Acesso, desafios futuros e impactos no
Executivo Federal, 20/05/2013. Disponível em:
<http://www.cgu.gov.br/Imprensa/Noticias/2013/noticia05913.asp
> Acesso em: 20/11/2013.
69
LOPES, Dawisson. In ARAÚJO, Ana Rita. Diplomacia de
aristocratas - Em ensaio, professor da UFMG analisa viés elitista da
política externa brasileira. Boletim UFMG n.1833, Ano 39, 26/08/2013

 
A dimensão da "justiça"
na Justiça de Transição
Uma aproximação com o caso brasileiro

Ricardo  Silveira  Castro1  

Resumo: Com o objetivo de contribuir para a delimita-


ção dos contornos do que se pretende buscar com a
aplicação das medidas de responsabilização dentro do
marco teórico da justiça de transição, o presente estudo
analisará os principais paradigmas transicionais viven-
ciados no século XX para identificar o espaço do eixo
da "justiça". Em seguida, pretende-se averiguar o sen-
tido e as possíveis respostas ao fenômeno do crime de
Estado.
Palavras-chave: Justiça de Transição - Crime de Estado
- Responsabilidade Criminal

Resumen: Con el objetivo de contribuir a la definición


de los contornos de lo que se pretende proseguir con la
aplicación de las medidas rendición en el marco teórico
de la justicia transicional, este estudio examinará los
principales paradigmas de transición experimentados
en el siglo XX para identificar lo espacio de lo eje de la

1 Acadêmico do 8º período do curso de Direito na Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista de Iniciação


Científica PIBIC/CNPQ. Membro do Grupo de Pesquisa "Direito à
Verdade e à Memória e Justiça de Transição".

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 191

"justicia". Sucesivamente, se investigará el significado y


las posibles respuestas al fenómeno del crimen de Es-
tado.
Palabras-clave: Justicia Transicional - Crimen de Esta-
do - Responsabilidad Penal

1. Introdução

No cenário político latino-americano modelado


pela redemocratização de Estados que passaram por
períodos de autoritarismo nas décadas de 1960 e 1970
surge a problematização a respeito do binômio utilida-
de-necessidade envolvendo o julgamento dos crimes
cometidos pelos agentes públicos no momento da re-
pressão política promovida pelo Estado contra os seus
cidadãos. A análise a respeito da validade de anistias e
indultos interpretados extensivamente aos agentes es-
tatais recoloca no planejamento de ações democratizan-
tes a questão sobre a possibilidade jurídica dos proces-
sos de responsabilização por esses crimes. Diante da
emergência dessa demanda por justiça, faz-se necessá-
rio enfrentar quais os modelos teóricos que lhe dão
suporte, principalmente para que seja possível vislum-
brar o alcance dessas medidas de responsabilização
propostas.
É nessa direção que a primeira parte do presente
trabalho busca delimitar historicamente o conteúdo da
expressão "justiça de transição", para logo em seguida
descrever as propostas do paradigma preponderante
na atualidade, com destaque às proposições que envol-
vem a responsabilização criminal dos agentes públicos
que cometeram crimes de Estado. Em um segundo
momento, analisar-se-á os contornos do que se entende
por "crime de Estado", procedendo-se à reflexões bási-
cas sobre as razões que impõem a punição criminal
dessas condutas criminosas - com destaque ao caso
brasileiro - e sobre o modelo de punição que deve pre-
valecer durante os processos de responsabilização.

 
192 Ricardo Silveira Castro

2. Justiça de Transição: um conceito

Para explorar o tema da justiça de transição, é


preciso que o pesquisador manuseie ferramentas de
diversas áreas do saber (ou ao menos se proponha a
fazê-lo), tendo em vista a interdisciplinaridade do as-
sunto. Nesse sentido, mesmo uma abordagem voltada
ao campo jurídico não dispensa uma avaliação a partir
da perspectiva da sociologia, da filosofia, da história,
da ciência política, da psicologia, e de tantos outros
prismas. A busca por uma análise multifocal, assim, é
imprescindível para a compreensão do objeto em análi-
se no presente trabalho, qual seja, o modo de tratamen-
to do legado deixado pelo complexo fenômeno do
"crime de Estado"2.
O termo “justiça de transição” refere-se a uma
série de medidas que precisam ser adotadas pelo Esta-
do que sai de um período de conflito e de instabilida-
des para que se possa criar condições reais de implan-
tação de um regime democrático. A expressão foi utili-
zada em um dos relatórios do Secretário-Geral da
ONU3 em 2004 e desde então tem representado uma

2 "State crime is increasingly recognized as a sub-discipline of crimi-


nology, but while our own intellectual background is un this field,
many of the most significant contribuitions to state crime scholarship
have come from anthropologists, psychologists, political scientists, and
writers on international relations and foreign policity." (GREEN, Pen-
ny. The advance of state crime scholarship. In: Journal Of The Interna-
tional State Crime Iniciative, vol.1, n.1, 2012. p.5)
3 "A noção de 'justiça de transição' discutida no presente relatório

compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às


tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande
legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os
responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se
conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais ou
extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou
nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais,
reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de
antecedentes, a destruição de um cargo ou a combinação de todos
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 193

pauta constante nas discussões sobre democracia, Es-


tado de Direito e direitos humanos. A “justiça transici-
onal”, nessa perspectiva, propõe alterações - e em cer-
tos pontos até mesmo a ruptura - da lógica do Estado
moldado pelas circunstâncias características desses
momentos de conflito, como o desprezo pelos direitos
humanos, a fragilidade das instituições e a violação de
garantias penais e processuais penais. Tais mudanças
estão relacionadas aos mais variados eixos estruturan-
tes, que são bem representados pelas dimensões da
justiça de transição (dimensão da verdade e da memó-
ria, dimensão da reparação, dimensão da reforma das
instituições e dimensão da justiça), às quais retornare-
mos posteriormente. O fato é que, após o término de
um conflito no qual o Estado esteve diretamente en-
volvido, perseguindo e reprimindo os seus “inimigos”
por meio de ações de seus agentes (soldados, policiais,
delegados, promotores de justiça, juízes, parlamenta-
res, ministros de Estado, chefes de Estado e tantos ou-
tros que compunham o quadro pessoal da administra-
ção pública), é indispensável que se concretizem planos
de reconciliação e de restauração do regime democráti-
co. Enfatize-se que o período de conflito a ser superado
pelas políticas propostas pela “justiça de transição” não
necessariamente está relacionado a uma guerra entre
dois Estados, sendo mais frequente a situação de crise
interna referente às guerras civis ou às perseguições
promovidas pelo Estado contra grupos minoritários,
muito comuns em regimes autoritários.
Historicamente, é possível identificar três prin-
cipais paradigmas4 de modelos transicionais: o pós-

esses procedimentos" (NAÇÕES UNIDAS, Conselho de Segurança. O


Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou
pós-conflito. Relatório do Secretário Geral S/2004/616. In: Revista
Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.320-351, jan.-jun.,
2009.p.325)
4 A professora Ruti Teitel divide a construção realizada em sua obra a

respeito da genealogia da justiça de transição em três "fases". No


194 Ricardo Silveira Castro

Segunda Guerra Mundial, o pós-Guerra Fria e o atual.


Embora a história apresente casos de transições de re-
gimes políticos desde a Antiguidade, são os aconteci-
mentos marcantes do século XX - mais precisamente as
duas Grandes Guerras - que atraíram o olhar de estu-
diosos especificamente sobre esse assunto.
Após a experiência do trauma do Holocausto,
ficou evidenciada a vulnerabilidade do indivíduo pe-
rante a máquina estatal, que lhe despojou da condição
de sujeito de direitos. O estado totalitário nazista, du-
rante a barbárie da perseguição promovida contra seus
opositores – simbolizada pelo aprisionamento dos ju-
deus nos campos de concentração - demonstrou que o
crime que apresenta a maior gravidade (sobretudo em
função das consequências geradas) é justamente aquele
cometido pelo próprio Estado, quando o ser humano é
considerado um elemento supérfluo5. A maneira como

presente trabalho, em vez disso, utilizamos a expressão "paradigma"


na busca de evidenciar que os elementos que caracterizam cada "fase"
influenciaram significativamente na elaboração do "paradigma"
seguinte. Além disso, a proposta de divisão em "fases" pode dar a
noção equivocada de uma linearidade que inexiste, já que o
predomínio dos elementos caracterizadores de um paradigma não
impede a ocorrência de elementos característicos de outro.
5 “A estas alturas del tempo no se puede pensar de cualquier manera.

El pensar contemporâneo está condicionado por Auschwitz que tiene


um valor epocal y por eso hay um antes y um después, também para
la filosofia.(...) Auschwitz es um acontecimento singular porque há
puesto de manifiesto uma capacidade humana de mal hasta ahora
desconocida. Esa capacidade de mal no há quedado amortizada em
esse acontecimento. Hannah Arendt la há definido como ‘banalidad
del mal’ para dar a entender que esse horror se produjo por la extraña
proximidade del hombre criminal al hombre normal. Su singularidade
pone de manifesto que es posible activar la capacidad criminal del
hombre normal y eso abre el caminho a um processo de
deshumanización que puede acabar com el ser humano física e
metafisicamente” (MATE, Reyes. Tratado de la injusticia. Barcelona:
Anthropos Editorial, 2011. p.39-40). Ressaltando o marco construído
pelo Holocausto, Reyes Mate assinala que “Adorno expressou o
momento inaugural de Auschwitz com a proposta de um novo
imperativo categórico que reza assim: ‘Hitler impôs aos homens um
novo imperativo categórico para seu atual estado de escravidão: o de
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 195

se realizou a transição política pós Terceiro Reich - via


responsabilização penal internacional dos agentes do
Estado - figurou como um primeiro paradigma transi-
cional a ser considerado: o da “justiça retributiva”6.
Com a derrota do Estado alemão, foi possível proceder
à identificação, ao julgamento e à punição daqueles que
seriam os responsáveis pela deflagração da guerra. In-
teressante perceber que esse modelo adotado pós-
Segunda Guerra Mundial é bastante diferente daquele
seguido no pós-Primeira Guerra Mundial, em diversos
pontos, a saber: enquanto a responsabilização dos
agentes do Estado alemão ocorrida pós-Primeira Guer-
ra ocorreu via tribunais nacionais por meio de sanções
coletivas, no pós-Segunda Guerra a responsabilização
se deu por tribunais internacionais com o foco nas san-
ções individuais7. O acordo que constituiu o Tribunal
Internacional Militar dos Grandes Criminosos de Guer-

orientar seu pensamento e sua ação de modo que Auschwitz não se


repita, que não volte a ocorrer nada semelhante’” (MATE, Reyes.
Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005. p.124)
6 TEITEL, Ruti. Genealogia da justiça transicional. In: REÁTEGUI,

Félix (org.). Justiça de Transição: manual para a América Latina.


Brasília: Ministério da Justiça, 2011.p.147.
7 Conforme apontado por Ruti Teitel, "a administração do modelo de

justiça transicional punitiva do período pós-Primeira Guerra Mundial,


caracterizado por tribunais nacionais falidos, foi deixada na mão da
Alemanha. Vista sob uma perspectiva histórica, parecia bastante claro
que os tribunais nacionais do período pós-Primeira Guerra Mundial
não serviriam para evitar a futura matança ocorrida na Segunda
Guerra Mundial. Em uma evidente reação crítica ao passado, a justiça
transicional do período pós-Segunda Guerra Mundial começou por
evitar os processos em nível nacional. Ao contrário, buscou a
responsabilidade criminal da liderança do Reich em âmbito
internacional". Ainda, sobre as sanções coletivas impostas aos alemães
no pós-Primeira Guerra Mundial, adverte que "estas respostas
transicionais claramente fracassaram e foram identificadas como a
base para o surgimento de um senso de frustração econômica e
ressentimento que impulsionou o papel da Alemanha da Segunda
Guerra Mundial". Genealogia da justiça transicional. In: REÁTEGUI,
Félix (org.). Justiça de Transição: manual para a América Latina.
Brasília: Ministério da Justiça, 2011. p.140.
196 Ricardo Silveira Castro

ra foi assinado em 1945 por representantes da Grã-


Bretanha, Estados Unidos, França e União Soviética (os
“Aliados” vencedores), e a suas atividades duraram de
14 de novembro de 1945 até 1º de outubro de 1946. Em
suas atividades, o Tribunal de Nuremberg absolveu
três das principais autoridades do Terceiro Reich e con-
denou outras dezenove8, consolidando alguns enten-
dimentos importantes na seara do Direito Internacional
Público – como a fixação da noção de crime contra a
humanidade, por exemplo - e dando contornos a um
novo ramo de estudo do direito: o Direito Internacional
Penal9.
As questões emergentes da bipolaridade que
marcou as décadas posteriores a Segunda Grande
Guerra, entre capitalismo e socialismo, caracterizada
pela disputa entre Estados Unidos e pela União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, e as críticas ao mode-
lo paradigmático proposto pelo Tribunal de Nurem-
berg desfocou a discussão a respeito da responsabiliza-
ção penal individual dos agentes do Estado que come-

8 Para os condenados foram atribuídas penas que variaram de 10 anos

de prisão até a pena capital. Nesse sentido, ver: GONÇALVES,


Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg (1945-1946): a gênese de uma
nova ordem no direito internacional. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2004.
9 “Os princípios de Nuremberg foram oficialmente sistematizados pela

Comissão de Direito Internacional da ONU, por solicitação da


Assembleia Geral em resolução de 1947. A formulação destes
princípios, na forma de sete artigos, data de 1950. Os dois primeiros
princípios desta sistematização afirmam a existência de um Direito
Internacional Penal. Os princípios 3 e 4 excluem a alegação de ato de
Estado e da ordem superior como justificativas a elidir a
responsabilidade criminal. Esta deveria, consoante o princípio n.5, ser
apurada num fair trial a que se veriam submetidos os acusados das três
infrações internacionais cominadas no princípio 6: crimes contra a paz,
crimes de guerra, crimes contra a humanidade. Finalmente, o sétimo
princípio considera crime internacional o conluio no cometimento de
crimes previstos no princípio anterior” (LAFER, Celso. A reconstrução
dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.169).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 197

teram crimes internacionais. Como se sabe, os reflexos


da guerra fria na América Latina puderam ser sentidos
com a intervenção de ditaduras civil-militares que,
apoiadas pelos Estados Unidos, anunciavam a luta con-
tra o comunismo. A derrota do projeto soviético na
década de 1980, seguida pela posterior onda de libera-
lização dos regimes militares do Cone Sul, da América
Central e do Leste Europeu10 criou as condições para o
estabelecimento de um novo paradigma transicional, o
do “modelo restaurativo”. Nesse paradigma, a punição
deixa de ser o pilar central da justiça transicional, e
nessa posição entram as políticas de memória e busca
pela verdade11. Nessa construção, as comissões da ver-

10 “Durante os anos 1970 e 1980, profundas transformações ocorreram


nos Estados do Sul da Europa e na América Latina. Diversos regimes
autoritários, que há décadas governavam a maior parte dos Estados
dessas duas regiões, deram sinais definitivos de crise e de esgotamento
em um curto período, que não superou 15 anos. (...) Um rico espectro
de modalidades de mudanças ocorreu nesse curto período histórico.
Independentemente do tipo de mudança política operada, importantes
traços comuns podem ser notados em meio a essa diversidade. Em
primeiro lugar, não há dúvidas de que a contemporaneidade desses
acontecimentos (...) induziu a uma aproximação entre os rumos
tomados por esses processos. Um horizonte de tempo recorta e limita
as possíveis alternativas em um momento de transição política,
conferindo-lhes certa identidade de época. Não à toa, tornar-se-á
comum a referência a uma ‘terceira onda’ da democratização, cujo
epicentro estará no Sul da Europa, na América Latina e na Europa do
Leste, conforme descrição de Samuel Huntington.” (QUINALHA,
Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo:
Outras Expressões, 2013. p.31-32).
11 "Os dilemas transicionais em jogo na Fase II estruturam-se em

termos mais abrangentes que a simples prática de confrontar e


demandar responsabilidades ao regime anterior, e incluíram questões
sobre como curar feridas de uma sociedade inteira e como incorporar
diversos valores de um Estado de Direito, tal como a paz e a
reconciliação - o que, em grande medida, havia sido tratado
anteriormente como externo ao projeto de justiça transicional.
Consequentemente, pôr de lado os julgamentos associados à justiça
internacional, refletiu em uma mudança na compreensão da justiça
transicional, que se associou com as mais complexas e diversas
condições políticas de reconstrução da nação" (TEITEL, Ruti.

 
198 Ricardo Silveira Castro

dade passam a figurar como importantes instrumentos


de transição para a superação do regime autoritário12.
Conforme se pode identificar na leitura de alguns auto-
res que defenderam esse modelo, o objetivo da justiça
transicional deveria ser a preservação da paz, a ser al-
cançada via pacto político entre as partes envolvidas no
conflito. A partir disso, as anistias passam a represen-
tar – para a questão da responsabilidade criminal – a
escolha defendida por esses teóricos13.
O paradigma transicional mais recente, que pas-
sou a ser construído na década de 1990 - com a conso-
lidação dos regimes democráticos que sucederam as
ditaduras derrotadas na América Latina, na América
Central e na Europa - tem como característica marcante
a estabilidade, isto é, a normalização da justiça transi-
cional. As bases principiológicas inerentes ao projeto
transicional proposto por este paradigma o aproxima
do parâmetro do Estado de Direito14 pretendido por

Genealogia da justiça transicional. In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça


de Transição: manual para a América Latina. Brasília: Ministério da
Justiça, 2011. p.147).
12 “O atrativo deste modelo deriva de sua capacidade para oferecer

uma perspectiva histórica mais ampla, no lugar de meros


julgamentos” (TEITEL, Ruti. Genealogia da justiça transicional. In:
REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de Transição: manual para a América
Latina. Brasília: Ministério da Justiça, 2011.p.149)
13 Samuel P. Huntington, por exemplo, posiciona-se no sentido de que

é preciso reconhecer, na questão “processar e punir vs. perdoar e


esquecer”, que “cada alternativa apresenta graves problemas, e que o
caminho menos insatisfatório será: não processe, não puna, não perdoe
e, acima de tudo, não esqueça” (HUNTINGTON, Samuel P. A terceira
onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Editora
Ática, 1994. p.228).
14 Por "Estado de Direito" entendemos aquele no qual "todas as

pessoas, instituições e entidades, públicas e privadas, incluindo o


próprio Estado, estão submetidas às leis que se promulgam
publicamente, sendo igualmente impostas e independentemente
aplicadas, e que são compatíveis com as normas e princípios
internacionais de direitos humanos" (NAÇÕES UNIDAS, Conselho de
Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 199

um regime democrático. As alterações que ocorrem


nessa concepção retiram da justiça de transição a limi-
tação presente nos paradigmas anteriores: os mecanis-
mos transicionais passam a ser compreendidos como
ferramentas imprescindíveis ao próprio regime demo-
crático, e a noção de justiça própria de períodos excep-
cionais ("extraordinários") é superada15. Para além de
uma preocupação específica com a transição política, o
campo da justiça transicional passa a representar uma
proposta de reformulação político-social, de afirmação
de direitos e garantias contra os abusos perpetrados
pelo Estado e de consolidação do Estado de Direito.
No atual paradigma transicional ocorre a siste-
matização das políticas em quatro principais focos de
estruturação: a busca pela verdade e a recuperação da
memória, a reparação das vítimas do regime autoritá-
rio, a reforma das instituições envolvidas durante o
conflito e a responsabilização dos agentes estatais que
atuaram na repressão promovida durante o estado de
exceção. Há, igualmente, a reformulação do pensamen-
to estruturado no segundo paradigma, de que os pac-
tos políticos supostamente firmados durante a transi-
ção política possuem núcleos rígidos imutáveis que,
frequentemente, inviabilizam a investigação dos crimes

em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretário Geral S/2004/616.


In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.320-
351, jan.-jun., 2009. p.324-325).
15 A noção de justiça de transição presente nos dois primeiros

paradigmas apresentados está ligada à excepcionalidade da justiça em


tempos de instabilidade que regem as transições políticas. Conforme
esse entendimento "é possível sustentar que a associação entre ambas
palavras ["justiça" e "transição"] acaba, em alguma medida,
delimitando um pouco a multiplicidade de sentidos possíveis que
cada uma encerra. Conjugados entre si, os dois vocábulos indicam não
exatamente que se trata de um tipo diferente de justiça, mas do
fenômeno da justiça em um período histórico determinado, qual seja,
durante uma mudança entre regimes" (QUINALHA, Renan Honório.
Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras
Expressões, 2013. p.135).
200 Ricardo Silveira Castro

cometidos pelo Estado por meio de seus agentes. Nesse


ponto peculiar, ressurge a preocupação a respeito das
possibilidades, e principalmente, de como realizar a
responsabilização desses agentes. A discussão sobre a
validade e eficácia de atos normativos formulados pe-
los governos das autocracias para afastar a responsabi-
lidade criminal de seus agentes (as "autoanistias"16, co-
mo são denominadas pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos) apontou como uma questão jurídi-
co-política que precisou ser realizada pelos poderes
legislativo, judiciário e executivo sucessores.
Antes de ingressar no debate específico sobre os
crimes de Estado, voltaremos às dimensões da justiça
de transição proposta pelo atual paradigma, com o fim
de demonstrar a inter-relação entre elas e os efeitos que
a incompletude de uma pode acarretar na outra.

3. As dimensões da justiça de transição e o lugar da


responsabilização criminal

Conforme se pode constatar a partir do que foi


exposto, a noção de responsabilização dos agentes do
Estado que cometeram crimes internacionais preenchia
o próprio conceito de "justiça de transição" durante a
preponderância do primeiro paradigma transicional. A
predominância da preocupação com julgamentos cri-
minais (via Tribunais Internacionais) que aplicaram
sanções individuais marcou a dinâmica da justiça de
transição em um primeiro momento. Quando houve a
decadência das ditaduras da América (Central e Lati-
na) e da Europa no final dos anos 1970, o conceito de
justiça de transição foi alargado para se moldar às de-

16 A consolidação da noção de autoanistia ocorre na jurisprudência da

Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos de graves


violações dos direitos humanos relativos ao Peru (Caso Barrios Altos e
La Cantuta), Chile (Caso Almonacid Arellano e outros) e Brasil (Caso
Araguaia).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 201

terminações daqueles que deixavam o poder tomado


por meio de golpe de Estado: em vez de julgamento,
buscou-se uma política de apaziguamento. Desse mo-
do, o embate entre as forças políticas (pró-abertura vs
pró-manutenção) em disputa nesse período, e a ameaça
de uma contraofensiva golpista que impedisse a libera-
lização dos regimes ditatoriais causaram a expansão do
termo "justiça de transição", no sentido de representar
uma justiça capaz de permitir a democratização dos
países de maneira segura, sem os riscos de um acirra-
mento do estado de exceção que se buscava superar.
Nesse ponto, inclusive, fica evidenciada a proximidade
da justiça de transição com a política: no primeiro pa-
radigma, os agentes políticos com maior força eram
exatamente aqueles que propuseram os julgamentos
criminais, enquanto que os agentes políticos processa-
dos não apresentavam força suficiente para resistir ou
para contestá-los; já no segundo paradigma, os agentes
políticos que haviam tomado o poder via golpe de Es-
tado (e seriam os processados, portanto) criaram con-
dições de um jogo político mais complexo, com a con-
servação de grande poder na execução de transições
políticas controladas.
É justamente após a diminuição das forças des-
ses agentes políticos que promoveram as transições
controladas que o terceiro paradigma transicional sur-
ge para afirmar que, de fato, a justiça de transição diz
com muitos assuntos além da responsabilização crimi-
nal dos agentes do Estado - mas que essa esfera da
transição (os julgamentos criminais) é ponto crucial na
superação de regimes autoritários.
De uma maneira geral, a doutrina aponta que o
atual paradigma transicional pode ser sistematizado
em quatro principais pilares ou dimensões: a verdade,
a reparação, a reforma das instituições e a justiça.
Na dimensão da verdade, reflete-se a necessi-
dade de se promover a publicitação de informações de
interesse coletivo. Como as experiências históricas têm
demonstrado, os governos ditatoriais adotam uma po-
 
202 Ricardo Silveira Castro

lítica de sigilo que mina a sociedade de terror. A elabo-


ração de maneiras de manipulação dos fatos, é preciso
destacar, dificulta o esclarecimento da verdade: é bas-
tante comum, por exemplo, que as instituições envol-
vidas na repressão política apresentem versões contra-
ditórias sobre a mesma situação, ou neguem que seus
agentes tenham violado direitos humanos fundamen-
tais. A importância desse pilar está na preservação da
memória individual e coletiva dos traumas vivencia-
dos, que é imprescindível para a prevenção de novas
experiências traumáticas17. A busca pela efetivação do
direito à verdade e à memória, legitimado pelo atual
paradigma transicional como base do processo de tran-
sição, foi realizada por uma espécie de mecanismo de
transição que nasceu na América Latina, as comissões
da verdade18. A relevância das atividades dessas co-

17 Nesse sentido, afirma-se que "o luto pode ser tanto privado como

público, assim como também a compulsão de repetição, e que existem


perdas coletivas traumáticas a pesarem sobre a história de um povo ou
nação. Esses fatos traumáticos estão nas guerras, nas ditaduras, nos
confrontos civis, nas grandes tragédias naturais, nas revoluções, nas
políticas discriminatórias e excludentes. A compulsão da repetição
evidencia-se na grande dificuldade que se tem, logo após a ocorrência
dessas tragédias coletivas, em se confrontar o passado violento e
traumático. Essa dificuldade se projeta tanto no instituto da anistia
compreendido de maneira tradicional, como até mesmo na repetição
acrítica de rituais e na veneração mecânica de monumentos históricos"
(SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a
construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do
Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: SANTOS,
Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília Macdowell;
TORELLY, Marcelo(orgs). Repressão e Memória Política no Contexto
Ibero-Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e
Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.202).
18 "As comissões da verdade são mecanismos oficiais de apuração de

graves violações aos direitos humanos, normalmente aplicados em


países emergentes de períodos de exceção ou de guerras civis. O
propósito é saber o que ocorreu, para satisfazer o direito das vítimas e
da sociedade ao conhecimento da verdade e, por outro lado,
aperfeiçoar o funcionamento das instituições públicas e contribuir com
o objetivo da não repetição. O pressuposto é que a exposição pública
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 203

missões está no incentivo à pluralidade de narrativas,


que contribuem para a aproximação da verdade. Não
se trata, portanto, de um órgão que se propõe a rees-
crever os fatos para expor, em um relatório, uma espé-
cie de "verdade oficial"19.
Quando se fala em reparação das vítimas do Es-
tado de Exceção, trata-se do sentido mais amplo da
palavra "reparação". Evidentemente que, por um impe-
rativo de justiça, aqueles que tiveram o seu patrimônio
afetado por algum ato arbitrário durante o regime de
força deve ser reparado. Durante a perseguição política
promovida pelos regimes de exceção, é bastante co-
mum que as vítimas sejam surpreendidas por atos ile-
gais de apreensão de bens, despedidas injustificadas ou
perda de benefícios20. A investigação e o processamento

dos acontecimentos, suas circunstâncias, causas e consequências,


permitirá compreender o ocorrido e adotar posturas de prevenção.
Fortalece-se o princípio da transparência com ganhos significativos
para a democracia. O produto final é um relatório que, além de relatar
os fatos apurados, deve apresentar recomendações para o
aprimoramento dos organismos públicos e outras medidas
pertinentes" (WEICHERT, Marlon Alberto. A comissão nacional da
verdade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo;
TORELLY, Marcelo D. (Orgs.) Justiça de Transição nas Américas:
olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo
Horizonte: Fórum, 2013. p.165-166).
19 Cabe salientar que "a possibilidade de uma memória coletiva pode

ser vista tanto como uma conquista, como também um objeto de poder
e manipulação. Daí o apelo de Le Goff para que o esforço científico (e
acrescentaria também o político comprometido com a defesa da
pluralidade democrática) seja no sentido de permitir a pluralidade de
memória, narrativas e interpretações, evitando a imposição de
epopeias e descrições amarradas, assépticas e homogêneas" (SILVA
FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da
história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na
concretização do direito à memória e à verdade. In: SANTOS,
Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília Macdowell;
TORELLY, Marcelo(org.). Repressão e Memória Política no Contexto
Ibero-Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e
Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.203).
20 Assim, tem-se que “a amplitude do significado do termo 'reparações'

neste contexto pode ser vista quando consideramos as diversas


204 Ricardo Silveira Castro

dos pedidos protocolados pelas vítimas desses atos são


comumente analisados por comissões de reparação
criadas pelos governos de transição para tal fim. Mas
além disso, é necessária a reparação simbólica, o reco-
nhecimento da vítima enquanto sujeito de direitos a
quem se negou tal condição. Nessa seara, o pedido ofi-
cial de desculpas por parte do Estado pelos atos perse-
cutórios empreendidos, a construção de museus dedi-
cados à memória das vítimas, a mudança de nome de
espaços públicos e a criação de datas comemorativas
revelam-se como meios relevantes de reparação simbó-
lica.
É impensável que a superação de um regime di-
tatorial possa efetivamente ocorrer sem que haja uma
profunda transformação de suas instituições. Essa re-
forma se mostra particularmente importante porque é
por meio de suas instituições - e com base nos valores e
princípios adotados por elas - que o Estado se move na
busca pelos seus objetivos. Como pode, por exemplo, o

maneiras em que se utiliza o termo 'reparações' de acordo com o


Direito Internacional. Elas incluem: I – restituição, que se refere àquelas
medidas que procuram restabelecer o status quo ante da vítima. Essas
medidas vão da restauração de direitos tais como a cidadania e a
liberdade, a restituição do emprego e outros benefícios, até a
restituição de propriedades; II – compensação, que se refere àquelas
medidas que procuram compensar os danos sofridos por meio da
quantificação desses danos, em que o dano se entende como algo que
vai muito além da mera perda econômica e inclui a lesão física e
mental e, em alguns casos, também a lesão moral; III – reabilitação, que
se refere a medidas que fornecem atenção social, médica e psicológica,
assim como serviços legais; e IV – satisfação e garantias de não
repetição, que constituem categorias especialmente amplas, pois
incluem medidas tão distintas como afastamento das violações,
verificação dos fatos, desculpas oficiais, sentenças judiciais que
restabelecem a dignidade e a reputação das vítimas, plena revelação
pública da verdade, busca, identificação e entrega dos restos mortais
de pessoas falecidas ou desparecidas, junto com a aplicação de
sanções judiciais ou administrativas aos autores dos crimes, e reformas
institucionais” (GREIFF, Pablo de. Justiça e reparações. In: Revista
Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.3, p.42-71, jan.-jun.,
2010. p.43-44).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 205

Estado pretender assegurar o direito à segurança ao


cidadão se suas instituições responsáveis pela seguran-
ça pública estão dirigidas por preconcepções de violên-
cia e desigualdade? As instituições representam a face
estrutural do Estado, que precisa de reformulação ca-
paz de lhe permitir alcançar seus fins. Desse modo, a
transformação (e em alguns casos até mesmo a dissolu-
ção) de determinadas instituições, bem como a reorga-
nização do quadro funcional de agentes que prestam
serviço à Administração pública precisa estar na pauta
das políticas dos governos que tomam a frente no pro-
cesso de (re)democratização.
Por fim, afirma-se que a realização da justiça é
elemento indispensável para a implementação do re-
gime democrático. Por "justiça" se compreende o pro-
cessamento, o julgamento e a eventual responsabiliza-
ção daqueles agentes do Estado que efetivamente fo-
rem considerados culpados, conforme o devido proces-
so legal. Nesse momento, faz-se necessário esclarecer
que o projeto de justiça proposto no atual paradigma,
embora iluminado pelos princípios basilares do pri-
meiro modelo transicional (do pós-Segunda Guerra
Mundial), com ele não se confunde. Não há como afas-
tar o fato de que ambos os paradigmas defendem a
responsabilização criminal dos agentes do Estado por
violações aos direitos humanos como alicerce funda-
mental para o êxito da política transicional a ser adota-
da. Entretanto, a própria compreensão do fenômeno do
crime de Estado e o modo de como promover a aludida
responsabilização se alterou de forma significativa du-
rante a metade de século que separa o primeiro do ter-
ceiro modelo de transição, sobretudo no que diz respei-
to aos limites da punição - como se verificará posteri-
ormente. É a partir do espaço que a "responsabilização"
possui dentro do atual paradigma transicional - isto é,
de complementaridade ao projeto de transição demo-
crática - que trataremos especificamente de uma de
suas faces: a responsabilização criminal. Nesse sentido,
não se pretende defender que a investigação e o pro-
206 Ricardo Silveira Castro

cessamento de crimes cometidos pelas ditaduras latino-


americanas representam a única resposta que, sozinha,
conseguirá lidar com o legado deixado pelos regimes
autoritários.
Como se pode perceber, há uma interdependên-
cia entre as dimensões propostas pelo terceiro para-
digma transicional, de modo que a ausência de meca-
nismos que atentem para uma delas, representará –
irremediavelmente – a incompletude das demais. Os
trabalhos desenvolvidos por uma comissão da verda-
de, por exemplo, não terão grande relevância se outras
medidas reparatórias (mesmo que voltadas ao campo
simbólico) sejam adotadas para resinificar . De igual
modo, a reforma de instituições que atuaram durante a
repressão política restará inconclusa se os seus agentes
que violaram normas de direitos humanos continua-
rem compondo o quadro geral de servidores públicos,
sem que haja qualquer espécie de responsabilização.
Assim, verdade, reparação, justiça e reforma das insti-
tuições estão intimamente relacionados, de um modo
que a proposição do atual paradigma transicional se
distingue dos demais justamente pela defesa de uma
política multifocal que seja capaz de construir ferra-
mentas efetivas na construção desses quatro pilares
essenciais.
O que foi dito anteriormente não deve implicar
na compreensão da justiça de transição como uma fór-
mula geral preestabelecida que deve ser seguida do
mesmo modo em todas as transições políticas. Os pro-
cessos transicionais são marcados por peculiaridades
próprias, a depender de uma série de fatores que coe-
xistem em uma sociedade em período de pós-conflito.
A complexidade desses fenômenos e a pluralidade de
possibilidades que existe para a abertura de um regime
autoritário não permite que se pense em um caminho
universal infalível. O objetivo do atual paradigma tran-
sicional ao defender a efetivação de quatro dimensões é
motivar a criação um planejamento de políticas de
transição que perpassem por pontos básicos estratégi-
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 207

cos, que representam um mínimo imprescindível para


a afirmação de um estado de direito que garanta os
direitos fundamentais dos cidadãos. Nesse sentido, ao
propor que sejam criados instrumentos para a busca da
verdade, por exemplo, não se pretende engessar que tal
meta seja atingida por uma comissão com tais ou quais
características. Assim, o número de envolvidos nos
trabalhos dessas comissões, o período de investigação
dos fatos, a estrutura desse instrumento e a maneira
pela qual ele será criado (seja por decreto do poder
executivo, seja por ato normativo do poder legislativo)
são exemplos de escolhas que ficarão a cargo dos atores
políticos que atuarão durante a transição, e que invari-
avelmente sofrerão a pressão das influências políticas
que interagem naquela sociedade em particular.

4. Crime de Estado: definindo os contornos do


problema

Para que seja possível avançar na discussão a


respeito da responsabilização dos crimes cometidos
por agentes do Estado, é preciso compreender o que se
entende por criminalidade estatal. A expressão “crime
de Estado”, para o presente estudo, está relacionada a
condutas penalmente tipificadas pelo ordenamento
jurídico e que são praticadas por agentes integrantes da
estrutura estatal no exercício de suas atividades funci-
onais em detrimento de direitos humanos. De fato, o
Estado comete crimes por meio de seus agentes, por
meio daqueles que agem em seu nome, violando direi-
tos fundamentais.
A compreensão de que o Estado pode ser res-
ponsável pela prática de delitos, embora hoje esteja
consolidada, permaneceu por bastante tempo como
uma alternativa insustentável. Nesse sentido, é impor-
tante perceber que até o período que antecede os acon-
tecimentos marcantes da Segunda Guerra Mundial

 
208 Ricardo Silveira Castro

prevaleceu um modelo de impunidade, no qual o Esta-


do (e seus agentes) permanecem imunes a processos de
responsabilização21. A maior dificuldade, para esse
modelo de impunidade, é justamente compreender
como o Estado – que criminaliza, processa, julga, con-
dena e executa as penas – pode ser, concomitantemen-
te, autor e réu na persecução criminal.
De outro lado, é preciso mencionar o entendi-
mento de alguns autores que tomam a noção de Estado
por um viés formalista, isto é, vinculam a figura do
Estado ao direito. Segundo essa perspectiva, se o pró-
prio Estado é o criador do direito, esse Estado não po-
de ser sujeito de uma conduta que viole uma regra per-
tencente ao seu ordenamento jurídico. Com isso, aquele
agente público que ao agir descumpre a lei, está agindo
por conta própria enquanto indivíduo, e não como

21 “Antes da Segunda Guerra Mundial, a 'ortodoxia reinante' foi o


modelo de impunidade, ditando que nem os Estados nem as
autoridades estatais deveriam ou poderiam ser responsabilizados por
violações aos direitos humanos do passado. Houve exemplos isolados
de responsabilização na Grécia antiga e na França revolucionária, mas
nenhuma tentativa sustentada em processos nacionais de direitos até
após a Segunda Guerra Mundial. No nível internacional, várias
tentativas pré-Segunda Guerra Mundial de responsabilização por
crimes de guerra e atrocidades em massa ficaram aquém da criação
das instituições necessárias. O modelo de impunidade depende de
uma doutrina qual o próprio Estado e os agentes do Estado devem
permanecer indefinidamente imunes a processos, tanto nos tribunais
nacionais quanto, sobretudo, em tribunais estrangeiros. A história
intelectual da doutrina da imunidade soberana busca amparo para tal
modelo em várias fontes. Alguns dizem que ela deriva do princípio
dos ingleses de que o monarca não erra, outros do poder inerente do
Estado para evitar o processo judicial. (...) Seja qual for a explicação
para a doutrina da imunidade, antes da Segunda Guerra Mundial era
tido como certo que os agentes do Estado deveriam estar livres da
acusação de violações aos direitos humanos, tanto em seus próprios
tribunais quanto em tribunais estrangeiros ou internacionais”
(SIKKINK, Kathryn. A Era da Responsabilização: a ascensão da
responsabilização penal individual. In: ABRÃO, Paulo; PAYNE, Leigh
A.; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização: o
Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério
da Justiça, 2010. p.40-41).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 209

agente público. Em outras palavras, a atuação de um


agente público em desconformidade com a legislação
vigente, de fato, constituiria um ilícito a ser atribuído
ao indivíduo e nunca ao Estado, de modo que não ha-
veria elementos suficientes para afirmar a existência de
uma criminalidade estatal22. Tal entendimento apresen-
ta algumas incongruências que, salvo melhor juízo,
dificultam a sua defesa.
Primeiramente, essa noção normativa do Estado
(é estatal aquele ato que esteja conforme a norma vi-
gente) não dá conta da complexidade existente na esfe-
ra de interação de poder existente na dinâmica da es-
trutura Estado. A rigor, o problema aparece já na pró-
pria premissa que sustenta essa compreensão: qual ato
está em conformidade com a norma vigente? Como a
norma vigente durante a prática do ato pode ser inter-
pretada? Qual o nível de compromisso do Estado, du-
rante a prática do ato, com a efetivação da norma vi-
gente? Nesse sentido, como demonstra a história, a
grande maioria dos regimes autoritários de que temos
notícias buscou legitimar a sua atuação com a constru-
ção de uma estrutura jurídica que lhe desse amparo,
mas que pudesse ser violada a qualquer sinal de amea-
ça à ordem estabelecida. Não raras vezes a criação de
um ordenamento jurídico de faixada pretendeu escon-

22Em resumo, afirma-se que não se pode “afirmar que o Estado pratica
crimes através das condutas criminosas de seus agentes. Isso porque
os agentes estatais nunca podem, na condição de agentes estatais,
cometer crimes. Se considerarmos como agente estatal apenas os
indivíduos segundo o princípio da divisão do trabalho, designados
através de um processo determinado pelo ordenamento jurídico e que
se conduzem conforme as normas jurídicas que prescrevem os atos e
funções de que são competentes, quando esses indivíduos agem contra
o direito, eles não atuam mais na condição de agentes estatais. Ao
praticarem algum crime, eles agem em nome próprio e por isso
respondem pessoalmente pela sua conduta, e não como agentes
estatais” (SWENSSON JUNIOR, Lauro Joppert. Anistia penal:
problema de validade da lei de anistia brasileira (Lei 6.683/79).
Curitiba: Juruá, 2011. p.69).

 
210 Ricardo Silveira Castro

der a real forma de atuação do próprio Estado que, por


meio de seus agentes, submeteu seus opositores a tra-
tamentos desumanos.
Desse modo, embora reconheçamos a relação
entre Estado e Direito (na medida em que o segundo
propõe limites à atuação do primeiro), negamos essa
caráter normativo que alguns atribuem como indispen-
sável para a qualificação de “estatal” de um ato. Até
porque essa noção normativista positivista não é capaz
de lidar com a efetiva influência que a política exerce
nesse processo que envolve o direito e sua legitimida-
de23. O Estado é; o Direito deve ser. Confundir essas du-
as esferas é negar que o Estado pode – por meio de po-
líticas de repressão, de “defesa social” ou mesmo de
extermínio – cometer massacres contra inimigos de
forma deliberada, inclusive.
Por outro lado, é interessante perceber que, no
âmbito da responsabilidade cível (ilícito civil), tal en-
tendimento não encontra guarida. Se um agente públi-
co que se encontra no exercício de suas funções causa
um dano a um particular administrado, a Administra-
ção Pública será objetivamente responsável (indepen-
dentemente da comprovação de culpa daquele que
efetivamente causou o dano, portanto) pela respectiva

23 “De fato, não é possível estabelecer-se a nítida separação entre o


jurídico e o político, sendo inaceitável, neste ponto, a proposição de
Kelsen, que pretendeu limitar a Teoria Geral do Estado ao estudo do
Estado 'como é', sem indagar se ele deve existir, por que, ou como,
sendo-lhe vedado também preocupar-se com a busca do 'melhor
Estado'. Ora, como é evidente, o Estado é necessariamente dinâmico, e
toda a sua atividade está ligada a justificativas e objetivos, em função
dos quais se estabelecem os meios. Como bem acentuou Harold Laski,
o poder do Estado não é exercido num vácuo, nem se reduz a um
simples jogo de normas existentes por si. Bem longe disso, é usado
para atingir certas finalidades e suas regras são alteradas, em sua
substância, para assegurar as finalidades consideradas boas, em
determinada época, pelos que detêm o direito de exercer o poder
estatal” (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do
Estado. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p.108).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 211

indenização. Aquele que sofrer o prejuízo pelo ato do


agente público, para ser ressarcido, acionará direta-
mente o Estado que, por sua vez, poderá ter garantido
o direito de regresso contra o agente causador do dano,
desde que seja comprovada a sua culpa24. Em última
análise, defender que o Estado não se responsabiliza
(seja civil, seja criminalmente) pelos atos de seus agen-
tes que agem à margem da legalidade é uma forma de
negar-lhe o reconhecimento da condição de sujeito de
direitos e obrigações, além de ser uma maneira de cor-
roborar o modelo de impunidade.
O marco histórico para a corrosão do modelo de
impunidade certamente foi o Holocausto. Com a nega-
ção de direitos fundamentais e a sistemática violação
de garantias mínimas do cidadão, demonstrou-se que
os agentes do Estado, sobretudo aqueles que atuam
dentro das agências penais, com o consequente manu-
seio da violência "legítima" – dada a sua posição privi-
legiada de agir com o respaldo de todo um aparato
estruturado e organizado – podem facilmente extrapo-
lar seus poderes25, e que, portanto, precisam de limites

24 "Esses fundamentos vieram à tona na medida em que se tornou

plenamente perceptível que o Estado tem maior poder e mais sensíveis


prerrogativas do que o administrado. É realmente o sujeito jurídica,
política e economicamente mais poderoso. O indivíduo, ao contrário,
tem posição de subordinação, mesmo que protegido por inúmeras
normas do ordenamento jurídico" (CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de direito administrativo. 24.ed. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2011. p.504).
25 “Precisamente por deter o monopólio da violência, o Estado é aquele

que possui as maiores probabilidades de utilizá-lo de modo


inadequado, assim como é o que pode propiciar os resultados mais
funestos, tanto em qualidade como em quantidade. Ao serviço do
Estado estão aparelhos repressivos fortemente treinados e armados,
como as polícias e as forças militares. Na estruturação destes aparelhos
se apresenta uma organização burocrática com várias e complexas
ramificações, um conjunto ideológico que justifica suas ações, um forte
sentimento corporativo e uma racionalidade instrumental que
perpassa todas as instâncias. Nenhuma quadrilha ou bando de
criminosos de um país consegue igualar tal poderio (...)” SILVA

 
212 Ricardo Silveira Castro

reais e de processos estáveis que avaliem sua respon-


sabilidade no desempenho de suas atividades funcio-
nais. Importa salientar que, a partir da violação siste-
mática de direitos fundamentais assistida durante a
Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional
concluiu que, em função da peculiaridade desse crime
(sobretudo no que diz respeito ao fato de ser praticado
por agentes políticos com significativo poder e que não
possuem interesse em colaborar para o esclarecimento
das circunstâncias em que os fatos ocorreram), é preci-
so fazer incidir sobre eles algumas regras diferenciadas
– a fim de que a dignidade e a condição de sujeito de
direitos de cada cidadão não seja facilmente violada
pelo aparato estatal. Essas regras diferenciadas dizem
respeito a questões penais e processuais penais que não
podem figurar como obstáculo ao processo de investi-
gação, como a prescrição, por exemplo.
Dessa maneira, os tratados, as convenções e as
declarações sobre direitos humanos que aparecem ao
final da segunda grande guerra serviram para qualifi-
car os crimes já existentes (tipificados, na linguajem
dos penalistas) – tais como homicídio, estupro, lesões
corporais, sequestro e ocultação de cadáveres – em
crimes de Estado26, quando praticados por seus agentes
em perseguições a determinados grupos da população
civil com base em sexo, cor, raça, credo, consciência

FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes de Estado e Justiça de


Transição. In: Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, n.2, p.22-35,
jul.-dez., 2010.p.22-23).
26 A doutrina também os identifica como como "crimes internacionais"

e como "crimes de massa". Nesse sentido, Zaffaroni esclarece que,


"fuera de toda duda, también es verificable que cuando el poder
punitivo del Estado se descontrola, desaparece el Estado de derecho y
su lugar lo ocupa el de policía. Además, los crímenes de masa son
cometidos por este mismo poder punitivo descontrolado, o sea, que las
proprias agencias del poder punitivo cometem los crímenes más
graves cuando operan sin contención" (ZAFFARONI, Eugenio Raúl.
Crímenes de masa. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ediciones
Madres de Plaza de Mayo, 2010. p.33).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 213

política ou qualquer outro meio discriminatório que


represente um meio de violação aos direitos humanos.
Logo após o término do conflito da Segunda Guerra
Mundial, o próprio estatuto de Nuremberg traduziu a
categoria dos crimes de Estado em uma nova expres-
são: crimes contra a humanidade. Evidentemente que,
em função do contexto em que surgiu, a delimitação do
conceito de crimes contra a humanidade não estava
bastante clara, sobretudo no que diz respeito aos pon-
tos que o distinguia dos crimes de guerra. Durante os
julgamentos internacionais promovidos em Nurem-
berg e Tóquio e no transcorrer da segunda metade do
século XX, essa delimitação ficou mais compreensível:
é toda espécie de ataque promovido pelo Estado a um
grupo da população civil que não apresenta condições
de defesa e que não representa uma ofensividade. Dis-
tingue-se dos crimes de guerra por não estar necessari-
amente vinculado a essa situação bélica entre dois Es-
tados. Ainda, é importante salientar o fato de a concep-
ção de crime contra a humanidade estar fortemente
relacionada à ideia de que o Estado pode figurar como
criminoso a partir da atuação de seus agentes públicos,
sobretudo quando esses promovem a sistematização de
uma política de perseguição27. Na década de 1990, com

27 "A novidade do crime contra a humanidade não está na


materialidade das violências (mesmo depois do aparecimento de
novos meios científicos, postos a serviço do extermínio dos judeus
europeus por parte dos nazis), mas no facto de elas serem cometidas
em nome de uma política. Por conseguinte, não são tanto as infrações
em si mesmas, muitas vezes já puníveis pelos direitos internos, que
devem ser tidas em consideração, mas sim o contexto em que são
perpetradas. Diferentemente do delito de direito comum, que só
respeita a homens normais, e das infrações políticas, que só são
imputáveis aos militantes de uma causa, o crime contra a humanidade
é próprio do poder do Estado ou de uma organização militante. A
incriminação não visa proteger o rebanho das ovelhas ronhosas nem
do lobo, mas antes do mau pastor. O crime contra a humanidade
decorre menos da ação de um homem que da acção de toda uma
organização que pode ser oficial. Antes de ser uma criminalidade de
indivíduos, representa uma 'criminalidade do sistema'" (GARAPON,
214 Ricardo Silveira Castro

a instalação dos tribunais internacionais para a respon-


sabilização dos agentes públicos que violaram normas
de direitos humanos durante os conflitos que ocorre-
ram na Ex-Iugoslávia e em Ruanda – já durante a pre-
dominância do terceiro paradigma transicional, portan-
to – consolidaram o entendimento de que a existência
de um conflito armado não é elemento imprescindível
para a configuração do crime contra a humanidade.
A partir de 1998, o tratamento jurídico dado aos
crimes de Estado se altera. Isso porque, com a criação
do Tribunal Penal Internacional (uma Corte Internaci-
onal permanente que possui a competência para julgar
os crimes de Estado), o conceito de crime contra a hu-
manidade deixa de ser definido por um critério materi-
al (mais amplo), para seguir a definição formal (mais
específica) registrada no Estatuto de Roma. O crime
contra a humanidade, assim, passa a ser uma espécie
(um tipo penal) de crime de Estado. Importa ressaltar
que, nos termos do art. 11 do Estatuto de Roma, o Tri-
bunal Penal Internacional só terá competência para
julgar os crimes cometidos após a entrada em vigor do
instrumento normativo internacional que o instituiu.
Diante dessa realidade, uma questão se coloca: se o
Tribunal Penal Internacional tem competência para
julgar apenas os crimes de Estado (genocídio, crimes
contra a humanidade, crimes de guerra e crime de
agressão) cometidos após a sua criação, em 1998, então
aqueles crimes cometidos pelo Estado antes dessa data,
como é o caso – por exemplo – dos crimes cometidos
pelos agentes estatais durante a ditadura civil-militar
brasileira, devem ficar impunes? Embora seja possível
encontrar autores defendendo tanto uma quanto outra
posição, parece mais plausível a resposta negativa.
Não há como negar o fato de que o Tribunal Pe-
nal Internacional organiza uma estrutura sem prece-

Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa:


Instituto Piaget, 2002. p.123-124).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 215

dentes na busca pelo combate ao crime de Estado, bas-


ta verificar que dentre os seus artigos estão presentes
normas de procedimento com algo grau de detalha-
mento. Entretanto, como foi exposto, o Estatuto de
Roma não é o marco inicial referente aos crimes de Es-
tado na legislação internacional. Partindo do pressu-
posto de que condutas cometidas pelos agentes públi-
cos estavam tipificadas no ordenamento jurídico inter-
no, e que instrumentos internacionais pós-Segunda
Guerra Mundial trouxeram regras diferenciadas no
tratamento dos crimes de Estado, reconhecemos que é
dever dos tribunais nacionais promoverem a investiga-
ção e o julgamento desses fatos, com a atribuição de
responsabilidade criminal, se for o caso. Nesse ponto
em particular, há uma grande discussão a respeito da
efetividade dos julgamentos desses crimes, principal-
mente no que diz com a sua real utilidade para a de-
mocracia. Por isso, buscaremos tecer algumas conside-
rações sobre o papel dos julgamentos criminais na su-
peração do legado deixado pelo crime de Estado.

4.1. Por que não esquecer?

O debate envolvendo as vantagens e as desvan-


tagens dos processos de responsabilização criminal
referente a violações aos direitos humanos por agentes
do Estado não é recente. Principalmente após a abertu-
ra controlada promovida pelos regimes ditatoriais da
América Latina, predominou o entendimento de que o
processo de responsabilização criminal representava
um risco à democracia. Nesse cenário das transições
controladas e negociadas, as leis de anistia surgem no
horizonte como uma ferramenta transicional importan-
te a ser utilizada, já que cria um obstáculo imediato aos
julgamentos e permite que as lideranças dos regimes
golpistas se sintam menos vulneráveis ao deixar o po-
der. A efetividade das anistias conferidas nessa conjun-
tura - entretanto - se dá no campo político e não no ju-
216 Ricardo Silveira Castro

rídico. O papel desses instrumentos, assim, é justamen-


te aliviar a tensão de forças durante a abertura e permi-
tir a ocorrência da transição para um estado de direito
estável. No campo jurídico, de outro lado, em função
das regras diferenciadas que incidem sobre os crimes
de Estado criadas pelo direito internacional a partir do
pós-Segunda Guerra Mundial, as anistias simplesmen-
te não apresentam efetividade.
Dentre tantos pontos negativos, destaca-se que a
adoção de uma política de esquecimento por meio de
concessão de anistias é incapaz de romper com o po-
tencial mimético da violência gerada pelo crime de Es-
tado, principalmente porque desconsidera o fato de
que a violência provocada por esse fenômeno se proje-
ta para o futuro e não deixa de existir com o simples
passar do tempo. Por mimese da violência, nesse con-
texto, compreende-se tanto a perpetuação de práticas
violentas por meio das instituições estatais que lidam
diretamente com o controle social, quanto a continui-
dade da violência por meio de atos das vítimas que
tendem a reproduzi-la28. Desse modo, fica claro que as
leis de anistia desse contexto deverão ser reanalisadas
pelo Estado quando ocorrer a estabilização das institui-

28 "A violência não se apaga ao finalizar o ato violento e seus efeitos


atuam na forma de eco contaminante das relações sociais, deixando
sequelas indeléveis na vítimas e nos violadores. O caráter inconcluso
de toda violência costura uma linha de continuidade entre violência do
passado e nossa violência presente. Embora nos pareça imperceptível,
essa linha alimenta muitas das condutas violentas que atualmente nos
apavoram. Ela tem um poder contagiante nas condutas e contaminante
das instituições. É a potência mimética da violência que induz os
sujeitos e as instituições a repeti-la como algo impulsivo, natural,
normalizando os comportamentos violentos como naturais" (RUIZ,
Castor M. M. Bartolomé. (In)Justiça, Violência e Memória - o que se
oculta pelo esquecimento tornará a repetir-se pela impunidade. In:
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY,
Marcelo D. (Orgs.) Justiça de Transição nas Américas: olhares
interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo
Horizonte: Fórum, 2013. p.85-86).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 217

ções democráticas responsáveis pela aplicação da justi-


ça29.
Como já foi apontado, durante a preponderân-
cia do segundo paradigma transicional, a investigação
e a punição dos crimes de Estado contrariava frontal-
mente os interesses de forças políticas que ainda con-
centravam significativa parcela de poder durante a
transição política, e portanto, representariam um afron-
te à estabilidade social e institucional necessária para a
redemocratização. É preciso destacar, no entanto, que
ao se tratar especificamente do caso dos processos
transicionais ocorridos a partir dos anos 1980 na Amé-
rica Latina, diferentemente do que se supunha, a gran-
de maioria dos países que efetuaram a responsabiliza-
ção criminal dos agentes do Estado por violações aos
direitos humanos mantiveram-se estáveis no processo
de democratização. De um modo geral, a região latino
americana tem experimentado, pós julgamentos crimi-
nais, um aprofundamento democrático sem preceden-
tes30. A partir dessa constatação empírica, salientamos a

29 Dessa maneira, afirma-se que "em alguns casos, anistias fornecem a


estabilidade que mais tarde permite que democracias fortes processem
os perpetradores e estabeleçam a proteção dos direitos humanos. Tal
sequência pode ocorrer em caso de uma transição negociada. Os
perpetradores podem ser bem-sucedidos em negociar sua retirada da
acusação com uma anistia, mas essas anistias provavelmente
enfrentarão importantes desafios posteriores por parte de
comunidades de direitos humanos mais fortes, sistemas judiciários
mais independentes e governos mais responsáveis. Nesse cenário, o
equilíbrio envolve dar sequência à responsabilização após a anistia ter
favorecido a estabilidade política. O poder da anistia continua a ser
crucial para o resultado da democracia e dos direitos humanos por
meio da criação de estabilidade num contexto particularmente
vulnerável" (OLSEN, Tricia D.; PAYNE, Leigh A.; REITER, Andrew G.
As implicações políticas dos processos de anistia. In: ABRÃO, Paulo;
PAYNE, Leigh A.; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da
responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada.
Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.562).
30 “If we compare regions that have made extensive use of trials, we

find that Latin America, which has made the most extensive use of

 
218 Ricardo Silveira Castro

insustentabilidade dos argumentos que relacionam os


processos de responsabilização com a alta probabilida-
de de contraofensivas golpistas dos regimes ditatoriais
em superação.
Na esteira da discussão aventada é indispensá-
vel uma reflexão que enfoque a utilidade e a necessi-
dade da atração do direito penal como resposta ao fe-
nômeno "crime de Estado". A primeira consideração a
ser firmada é a de que o processo de responsabilização
nos períodos de transição política constitui elemento
complementar do movimento de enfrentamento do
legado autoritário, isto é, a responsabilização não dis-
pensa uma política transicional que dê conta dos ou-
tros pilares fundamentais da verdade, da reparação e
da reforma das instituições. Não se pode esperar do
direito penal mais do que ele efetivamente pode ofere-
cer. O fenômeno do crime de Estado acarreta um sério
envolvimento da estrutura institucional, de modo que
a responsabilização criminal dos agentes públicos, por
si só, seria inútil para a superação do regime de exce-
ção.
A respeito da utilidade da incidência do direito
penal nos casos dos crimes de Estado, surge no hori-
zonte o debate entre as correntes doutrinárias que justi-
ficam a aplicação da pena, sendo as mais comuns aque-
las que enfocam ou a retribuição ou a prevenção como
seu fundamento. Para os retribucionistas, a pena é a
consequência direta imposta pelo Estado quando ocor-
re uma violação às normas vigentes. Já para a corrente

human rights trials of any region, has made the most complete
democratic transition of any transitional region. In the 20 century,
th

political instability and military coups were endemic in Latin America.


Since 1980, however, the region has experienced the most profound
transition to democracy in its history, and there have been very few
reversals of democratic regimes” (SIKKINK, Kathryn; WALLING,
Carrie Booth. The Impact of Human Rights Trials in Latin America. In:
Journal of Peace Research, vol.44, n.4, 2007. p.434). Disponível em:
http://jpr.sagepub.com/content/44/4/427. Acesso em 10 de Janeiro
de 2014.
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 219

da prevenção, os objetivos da pena não estão direcio-


nados ao passado - na busca de uma retribuição ao ato
ilícito cometido (como prescrevem as teorias retribuci-
onistas) - mas se projetam para o futuro, com o fim de
impedir que novos atos ilícitos se repitam31. No orde-
namento jurídico brasileiro, as duas correntes apare-
cem conjuntamente (adere-se à doutrina unificadora)
com o propósito de garantir uma resposta efetiva ao
ato desviante, conforme se pode depreender do dispos-
to no estatuto penal que impõe ao juiz a ponderação de
uma pena suficientemente capaz de reprovar e preve-
nir a infração em análise32.
Quando se trata de crime de Estado, a utilidade
da aplicação direito penal está indissociavelmente co-
nectada a sua capacidade de contribuir na alteração do
modelo de atuação das forças de segurança pública
consolidado pelo regime autoritário em superação.
Nesse sentido, a atribuição de responsabilidade rompe
com o paradigma de impunidade em relação aos abu-
sos cometidos pelos agente públicos. Conforme é pos-
sível constatar, nos países latino-americanos onde hou-
ve a persecução criminal dos crimes de Estado, com a
efetiva responsabilização dos culpados, os índices de
violação aos direitos humanos pelas forças de seguran-

31 Para um aprofundamento a respeito das teorias sobre as funções da

pena, ver: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal -


Parte Geral. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
32 Art. 59 do Código Penal brasileiro: "O juiz, atendendo à

culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do


agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem
como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas
aplicáveis dentre as cominadas ; II - a quantidade de pena aplicável,
dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da
pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da
liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível"(grifo nosso).
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-
Lei/Del2848.htm#art1. Acesso em 12 de Janeiro de 2014.
220 Ricardo Silveira Castro

ça pública diminuíram consideravelmente33. A punição


revela-se significativamente útil porque invariavelmen-
te afasta o agente público de suas atividades funcio-
nais, provocando a perda do cargo, inclusive. Esse afas-
tamento assume um papel fundamental já que a vio-
lência causada pelo crime de Estado também atinge o
agente estatal, a ponto de retirar-lhe a capacidade de
reconhecer no outro - sua(s) vítima(s) - um traço de
semelhança humana34. É por essa razão que, não rara-
mente, o modo de agir daquele agente público que
permanecer impune na estrutura institucional no Esta-
do pós-transição continuará sendo o mesmo, de des-
respeito aos direitos humanos.

33 "We show that, at least in Latin America, there is not a single case of
a country where democracy has been undermined because of the
choice to use trials. Nor is there evidence that trials lead to worsening
human rights situations. Rather, in 14 of the 17 cases of Latin America
countries that have chosen trials, human rights seem to have
improved" (SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie Booth. The Impact
of Human Rights Trials in Latin America. In: Journal of Peace
Research, vol.44, n.4, 2007. p.442). Disponível em:
http://jpr.sagepub.com/content/44/4/427. Acesso em 10 de Janeiro
de 2014.
34"A potência mimética naturaliza a violência tornando-a, para o

violador, um ato normal. A normalização da violência replica uma


progressiva desumanização do violador de modo que, a cada ato
violento, este tende a perder a sensibilidade humana sobre o
sofrimento do outro. A prática mimética da violência desumaniza o
violento a ponto de ele perder a capacidade de ver no outro um
semelhante. O violador, a cada ato violento, apaga na vítima as feições
de um ser humano, de um semelhante, tornando-a um objeto vazio de
sentido. A vítima, para o violador, não tem rosto. A mimese corrói, no
violador, o seu reconhecimento da alteridade humana do outro. A
mimese da violência embrutece, a cada ato violento, a consciência do
violador ao extremo de poder transformar o sadismo em prazer. O
embrutecimento mimético da violência pode transformar o sofrimento
do outro vitimado num prazer sádico" (RUIZ, Castor M. M. Bartolomé.
In)Justiça, Violência e Memória - o que se oculta pelo esquecimento
tornará a repetir-se pela impunidade. In: SILVA FILHO, José Carlos
Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.) Justiça de
Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e
padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p.93-94).
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 221

Por outro lado, partindo do pressuposto que o


papel do direito penal é estabelecer punição para certas
condutas que põem em risco os bens jurídicos de maior
valia para determinada sociedade, é forçoso reconhecer
- por uma questão de proporcionalidade - que a atração
do direito penal como resposta à criminalidade estatal
se faz necessária. Se é verdade que o Estado de Direito
deve reservar para o direito penal aquelas situações
mais graves e críticas dada a agressividade das respos-
tas formuladas pelo poder punitivo (representadas pe-
la aplicação de uma pena), não é possível afastar a sua
incidência no tratamento do crime que mais perigosa-
mente atinge os direitos fundamentais, o crime de Es-
tado35. Nenhum crime tipificado no ordenamento jurí-
dico interno é capaz de superar, em termos de gravi-
dade, aqueles cometidos pelo próprio Estado, que é -
no final das contas - justamente quem deveria zelar
pela garantia dos direitos das vítimas. Assim, ao tra-
tarmos da necessidade da atração do direito penal co-
mo resposta ao crime de Estado, é preciso ter claro que
tal incidência está diretamente relacionada com a pró-
pria coerência do sistema punitivo, que não poderia
estabelecer respostas penais a determinados atos e dei-
xar de prevê-las para outros atos mais devastadores
aos bens jurídicos protegidos. A punição dos crimes de
Estado, portanto, não está em atrito com um modelo
garantista - ao contrário disso, é elemento que dá inte-
gridade e coerência ao sistema penal. É justamente pa-
ra o esclarecimento dessa relação entre punição dos
crimes de Estado e garantismo que partiremos no tópi-

35 "Sea cual sea el paradigma científico en que cada quien se apoye, lo


cierto es que sería despreciable un saber criminológico que ignore el
crimen que más vidas humanas sacrifica, porque esa omisión importa
indiferencia y aceptación. El científico no puede alejarse de la ética más
elemental de los derechos humanos" (ZAFFARONI, Eugênio Raul. El
crimen de Estado como objeto de la criminología, 2006.p.21).
Disponível em: http://www.bibliojuridica.org/libros/6/2506/4.pdf.
Acesso em 12 de Janeiro de 2014.

 
222 Ricardo Silveira Castro

co a seguir, na busca pela construção de uma resposta


substancialmente coerente ao problema: como punir
esses crimes?

4.2. Como punir?

Os autores que contestam a punição aos crimes


de Estado apontam como uma grande falha dos pro-
cessos de responsabilização a violação a direitos fun-
damentais dos sujeitos acusados por um poder puniti-
vo ilimitado que é cooptado a aplicar sanções despro-
porcionais36. Dessa maneira, esses processos assumiri-
am a feição de uma “caça às bruxas”, onde os fins justi-
ficariam os meios – e como os fins são extremamente
importantes (construção e preservação de uma cultura
de proteção aos direitos humanos), os meios poderiam
extravasar os limites previstos legal e constitucional-
mente37.

36 Ao questionar a necessidade dos processos de responsabilização

para os crimes de Estado, Daniel Pastor pondera que “organismos


internacionales de protección y organizaciones de activistas
consideran, de modo sorprendente por lo menos, que la reparación de
la violación de los derechos humanos se logra primordialmente por
medio del castigo penal y que ello es algo tan loable y ventajoso que
debe ser conseguido sin controles e ilimitadamente con desprecio por
los derechos fundamentales que como acusado debería tener quien es
enfrentado al poder penal público por cometer dichas violaciones. Se
cree, de este modo, en un poder penal absoluto” (PASTOR, Daniel R.
La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa del
desprestigio actual de los derechos humanos, 2006). Disponível em:
http://www.juragentium.org/topics/latina/es/pastor.htm. Acesso
em 13 de Janeiro de 2014.
37 "É precisamente aí que reside o paradoxo: por ser maciço e

generalizado, o crime contra a humanidade exige, mais do que


qualquer outro crime, uma sanção. Mas, pelas mesmas razões, é mais
difícil, senão mesmo impossível, de julgar. É aí que está o trágico da
própria justiça dos crimes contra a humanidade que, sob o pretexto de
querer distanciar-se do mal radical, arrisca-se a alimentá-lo
involuntariamente. Nesses crimes que excedem o direito comum, a
justiça não pode ser proferida sem incorrer no risco de negar os seus
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 223

Data vênia, o processo de responsabilização


proposto pelo atual paradigma da justiça de transição
não defende essa punição descontrolada aos agentes
públicos que cometeram crimes de Estado. A aproxi-
mação dos princípios da justiça transicional ao modelo
do Estado Constitucional impõe limites objetivos ina-
fastáveis aos processos criminais, de maneira que as
garantias penais e processuais devem ser asseguradas
aos acusados. Diferentemente do que apresentam al-
guns críticos, para a justiça transicional, os agentes pú-
blicos que violaram normas de direitos humanos não
devem ser encarados como “monstros” ou “inimigos”,
mas como cidadãos que merecem ter respeitados seus
direitos durante os processos judiciais, como impõe a
norma constitucional. O julgamento, a propósito, é
uma ocasião onde o foco da valoração é a conduta pra-
ticada pelo sujeito, e não o sujeito por seu modo de ser.
Cabe salientar, ainda, que a opção de agregar
processos de responsabilização criminal como um pas-
so da transição não ocorre de forma ingênua a negar o
caráter político das decisões judiciais. Por outro lado,
entretanto, qual decisão judicial não é política? A im-
parcialidade do julgador que alguns autores afirmam
ser impossível no caso dos crimes de Estado é a impar-
cialidade política - mas, tal imparcialidade, de fato,
sequer existe quando da análise dos crimes comuns:
qual pessoa é capaz de se sentir minimamente indife-
rente diante de homicídios, estupros, abuso de meno-
res, utilização de trabalho escravo, e tantos outros?
Somos seres naturalmente políticos, e utilizaremos nos-
sos valores guias no momento de valorar os fatos que
ocorrem ao nosso redor. Do julgador dos processos
judiciais, cabe-nos exigir a imparcialidade jurídica, isto

próprios princípios fundadores, ou seja, a legalidade dos delitos e das


penas, a imparcialidade do juiz, a igualdade perante a lei e o
tratamento igual" (GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem
punir nem perdoar. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p.233).
224 Ricardo Silveira Castro

é, o desenvolvimento de suas atividades conforme as


regras do jogo - que nos Estados de Direito - estão pre-
sentes nas constituições. É relevante enfatizar, de igual
modo, que ao afirmarem a impossibilidade de julga-
mentos neutros (que sejam capazes de obedecer às re-
gras do jogo) para investigar os crimes de Estado come-
tidos pelas ditaduras latino-americanas, esses autores
não estão negando vigência às normas penais que tipi-
ficavam esses crimes à época dos fatos, mas as regras
de tratamento especial a esses crimes (imprescritibili-
dade, impossibilidade de serem anistiados, etc.) que
foram construídas pelo direito internacional dos direi-
tos humanos. A própria decisão do intérprete que nega
vigência a essas normas não pode ser compreendida
como imparcial, aliás.
Na apuração desses fatos que constituem crimes
de Estado, discute-se qual a melhor opção: tribunais
nacionais ou internacionais? A doutrina aponta vanta-
gens e desvantagens de um e de outro. Especificamente
no caso do Brasil – considerando que o Tribunal Penal
Internacional só tem competência para julgar os crimes
ocorridos após a sua criação (em 1998) – parece que tal
debate não tem espaço. O próprio Poder Judiciário na-
cional seria o órgão competente para a realização do
processamento desses fatos.
Antes de avaliar a questão da proporcionalida-
de das penas, é preciso esclarecer que a dimensão da
“responsabilização” na justiça de transição - mais espe-
cificamente no que diz respeito à responsabilização
criminal – não pressupõe, necessariamente, a punição
(aplicação de pena). A punição é a consequência direta
que o ordenamento impõe a uma pessoa após o devido
processamento no qual se averiguou – com base nos
procedimentos previstos pela lei – a existência de res-
ponsabilidade criminal. Nesse sentido, importa ressal-
tar que todas as garantias previstas pelos ordenamen-
tos jurídicos modernos – tais como a ampla defesa, o
contraditório e a presunção de inocência – devem ser
assegurados durante esses processos judiciais. Logo, no
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 225

caso de um processo criminal no qual não sejam junta-


das provas suficientes que apontem para a culpa do
acusado, impõe-se a sua absolvição independentemen-
te de o fato em análise constituir – em tese – um crime
de Estado.
Em relação à proporcionalidade das penas que
devem ser aplicadas, uma série de questões precisam
ser enfrentadas. Se partirmos do pressuposto de que o
crime de Estado gera a violência mais grave em relação
a todos os demais atos delituosos, por um imperativo
de coesão argumentativa, é preciso admitir que a res-
posta penal a esses crimes deve contribuir para a cons-
trução de um sistema minimamente coerente e propor-
cional. De uma perspectiva diferente daquela na qual o
primeiro paradigma da justiça de transição partiu –
corroborando, inclusive, a pena de morte nos casos dos
condenados pelos crimes de Estado – o atual paradig-
ma da justiça de transição está fundado na compreen-
são de que a pena precisa obedecer ao princípio da
humanização das penas próprio do Estado Constituci-
onal de Direito.
A partir do recorte a que proposto pelo presente
trabalho, é importante destacar quais as penas que o
sistema penal brasileiro disporia para responder aos
crimes de Estado praticados durante o regime ditatori-
al eventualmente comprovados em um julgamento
criminal que ocorresse na atualidade. Em função da
retroatividade da norma penal mais benéfica, é preciso
reconhecer que os limites intransponíveis ao poder pu-
nitivo estão na Constituição Federal de 1988. Não que
as constituições anteriores vigentes durante o regime
de exceção brasileiro - que foram três, a de 1946, a de
1967 e a de 1969 – estejam aquém nos quesitos de pro-
teção de direitos e de afirmação de garantias penais e
processuais penais38. Entretanto, o grau de detalhamen-

38 A Constituição Federal de 1946 estabelecia, no seu art. 141, § 31, que

“não haverá pena de morte, de banimento, de confisco, nem de caráter

 
226 Ricardo Silveira Castro

to das garantias existente no texto constitucional vigen-


te torna a utilização de outras balizas prejudicial ao
acusado. Como resposta aos crimes de Estado, a Cons-
tituição Federal de 1988 admitiria a privação ou restri-
ção da liberdade, a perda de bens, a multa, a prestação
social alternativa e a suspensão ou interdição de direi-
tos. Por sua vez restam vedadas as penas de morte, de
caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento
e cruéis39.
Como se pode perceber, na proposta da justiça
de transição, ao defender a dimensão da “justiça”, não
está uma demanda por vingança, mas de um estabele-
cimento de igualdade perante a lei, de modo que mais
significante do que o cumprimento da pena é o proces-
so que lhe antecede.

Conclusão

A delimitação do que se pretende dizer quando


se afirma que as medidas de responsabilização, no caso
dos crimes comedidos pelos agentes estatais durante
regimes de exceção, são imprescindíveis para a viabili-
zação de democracias é extremamente importante para
que não se confunda a demanda por justiça (proposta
como uma das quatro dimensões no atual paradigma
transicional) com procedimentos revanchistas. Assu-
mindo a premissa de que os agentes públicos - no de-
sempenho de suas funções - podem cometer infrações

perpétuo”. Por sua vez a Constituição de 1967, no art. 150,§ 11,


impunha que “não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de
banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra psicológica adversa,
ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar” -
texto que foi integralmente repetido pela Emenda Constitucional n.1
de 1969 no seu art.153, § 11. Disponível em:
http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-
historica/constituicoes-anteriores-1#content. Acesso em 14 de Janeiro
de 2014.
39 Art. 5º, incisos XLVI e XLVII da Constituição Federal de 1988.
A dimensão da “justiça” na Justiça de Transição 227

penais gravíssimas, o atual modelo da justiça de transi-


ção propõe a criação de ferramentas que impeçam a
propagação de uma cultura de impunidade que fomen-
te a violação de direitos humanos fundamentais. Nesse
sentido, é indispensável que as Constituições dos Esta-
dos - enquanto normas hierarquicamente superiores -
estejam em sintonia com a construção realizada no âm-
bito do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Como se pode observar, a responsabilização dos
agentes do Estado que violaram direitos humanos du-
rante a ditadura militar brasileira não dispensa a ob-
servância às garantias penais e processuais penais nem
representa um afronte aos princípios constitucional-
mente previstos. Ao contrário disso, inclusive, a inves-
tigação e o processamento de tais condutas são condi-
ção de coerência ao próprio sistema punitivo pátrio (de
ontem e de hoje) já que - se violações a bens jurídicos
de menor importância têm merecido a tutela penal e a
atribuição de uma pena - as violações a bens como a
vida e a integridade física não podem ficar impunes.

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Justiça Transicional e a repressão
no campesinato nordestino
brasileiro

Eduardo  Fernandes  de  Araújo1  


Eduardo  Soares  Bonfim2  
Igor  Leon  Benício  Almeida3  
Wyllck  Jadyson  Santos  Paulo  da  Silva4  

1 Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) no curso de Direito


(Santa Rita), mestre em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ/UFPB. Especialista em
Direitos Humanos pelo CCHLA/UFPB. Colaborador do Núcleo de Cidadania e
Direitos Humanos da UFPB e fundador do Núcleo de Estudos Afro brasileiros e
Indígenas da UFPB, exerce a coordenação colegiada do Centro de Referência
em Direitos Humanos da UFPB. Pesquisador do Instituto de Pesquisa Direitos e
Movimentos Sociais. Coordenador da linha de pesquisa: Justiça e Violência
Institucional - Ymyrapytã: As ligas da Memória, Verdade e Justiça.
2 Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas – Departamento de
Ciências Jurídicas (DCJ/UFPB) Santa Rita, extensionista do Projeto Ymyrapytã:
Povos Tradicionais e Meio Ambiente, estagiário do Centro de Referência em
Direitos Humanos da UFPB (CRDH/UFPB). Pesquisador da linha de pesquisa:
Justiça e Violência Institucional - Ymyrapytã: As ligas da Memória, Verdade e
Justiça.
3 Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas – Departamento de
Ciências Jurídicas (DCJ/UFPB) Santa Rita, estagiário da Dignitatis – Assessoria
Técnica Popular. Pesquisador da linha de pesquisa: Justiça e Violência
Institucional - Ymyrapytã: As ligas da Memória, Verdade e Justiça.
4 Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas – Departamento de
Ciências Jurídicas (DCJ/UFPB) Santa Rita, extensionista do Projeto Ymyrapytã :
Povos Tradicionais e Meio Ambiente, estagiário do Centro de Referência em
Direitos Humanos da UFPB (CRDH/UFPB). Pesquisador da linha de pesquisa:
Justiça e Violência Institucional - Ymyrapytã: As ligas da Memória, Verdade e
Justiça. Monitor da disciplina Sociologia Geral e Jurídica.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
232 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade esta-


belecer uma breve leitura e análise da Justiça de Tran-
sição no Brasil com foco nos casos de violações de di-
reitos humanos ocorridos no campesinato do Nordeste
brasileiro entre os anos de 1964 e 1985, especificamente
nos Estados da Paraíba e Pernambuco. As temáticas
que envolvem o tema da Justiça de Transição (Memó-
ria, Verdade e Justiça) têm ganhado espaço nos debates
midiáticos, filosóficos, históricos, políticos e jurídicos
em todo o mundo; na América Latina especialmente,
sendo relevante, no contexto brasileiro/nordestino, a
ampliação da interlocução entre a academia, Comissão
Nacional da Verdade, Comissões Estaduais, grupos de
pesquisa/extensão, mídia, instituições do Estado, mo-
vimentos sociais e sociedade civil organizada, propor-
cionando que os contornos conceituais e práticos che-
guem/retornem na/da população em geral. A Justiça
de Transição cumpre papel fundamental na formação
de um Estado Democrático de Direito, visto que possi-
bilita o diálogo entre passados/presentes/futuros en-
quanto mediadores entre o Estado e sociedade em um
processo cuja finalidade precípua é a de (re)pensar o
funcionamento das instituições, projetando novas for-
mas de ação/reflexão.
Palavras chave: Justiça de Transição; Ditadura Militar;
Campesinato Nordestino.

Abstract: This article aims to establish a brief overview


and analysis about Transitional Justice in Brazil, focus-
ing on cases of human rights violation occurred in Bra-
zil’s Northeast between the years 1964 and 1985, espe-
cially in Paraíba e Pernambuco. Themes involving
Transitional Justice (memory, truth and justice) has
gained ground on media, philosophical, political and
legal debates in the world – especially in Latin America
and Brazil’s Northeast, where there is an increasing
interaction among Universities, National Commission
of Truth, State Commissions, research and extension
groups, media, State institutions, social movements
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 233

and the organized civil society, which has bringing


conceptual and practical contours to the whole popula-
tion. Transitional Justice performs a fundamental role
in building a Democratic Rule-of-Law State, enabling
dialogue between past/present/future, as mediators
between State and Society, in a process which aims to
(re)think the functioning of institutions, projecting new
forms of action/reflection.
Keywords: Transitional Justice; military dictatorship;
Northeastern peasantry.

1. Introdução

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa [...]
“Cálice” – Chico Buarque e Gilberto Gil 1973.

O período do regime da ditadura civil-militar


(1964-1985) consistiu numa época de extremas e siste-
máticas violações de direitos humanos (dignidade, in-
tegridade física e psicológica, liberdade de expressão,
direito de ir e vir, livre associação, liberdade de expres-
são e outros), conforme a carta-denúncia de Frei Tito
de Alencar recuperada pelo Comitê Brasileiro pela
Anistia:
Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação
Bandeirantes (OB, polícia do Exército) no dia 17 de
fevereiro, terça-feira, às 14h. caminho as torturas
tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço,

 
234 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

apontavam-me seus revólveres [...].


CAVALCANTI e RAMOS, 1976/78. p. 3475

Ainda no período do regime civil-militar, foi


criada a Lei de Anistia (Lei n. 6.683, de 28 de agosto de
1979), fruto de um processo que vinha sendo trabalha-
do desde 1975 pela sociedade civil articulada no plano
nacional e internacional, buscando alternativas mo-
mentâneas para o fim da supressão de direitos em face
das medidas governamentais que estavam em curso,
principalmente os Atos Institucionais que consolida-
vam a perpetuação dos militares no poder; também é
preciso vislumbrar nessa dimensão legislativa promul-
gação a Lei de Segurança Nacional, Lei n. 6.620, de 17
de dezembro de 1978, pelo Presidente Ernesto Geisel.
A campanha pela anistia iniciara-se há alguns
anos, com a formação de comitês por todo o país,
destacando-se o Movimento Feminino pela Anis-
tia, fundado em 1975, e o Comitê Brasileiro de
Anistia, em 1978, com núcleos em Porto Alegre,
Rio de Janeiro, Fortaleza, Bahia, Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul. Esses dois grupos assimila-
ram as demandas de familiares mortos e desapare-
cidos políticos, como as Mães de São Paulo e a
União Brasileira de Mães, incorporando-as às suas
manifestações pela anistia.6

Nesse contexto de oscilações políticas, violações


de direitos humanos, mudanças comportamentais e
políticas, assim como a pressão nacional/internacional,
a Justiça de Transição entrou de forma perpendicular

5 TITO, Frei. O testemunho de Frei Tito. Carta denúncia de um preso


político, frei Tito de Alencar Lima, 24 anos, dominicano. In:
CAVALCANTI, Pedro Celso Uchôa e RAMOS, Jovelino Ramos.
Memórias do exílio, Brasil, 1964 – 19??. São Paulo: Editora e Livraria
Livramento Ltda, 1978. p. 347 – 351.
6 BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras,
desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre: Editora
Medianiz, 2012. p. 143
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 235

na agenda brasileira, em um primeiro momento relaci-


onando o campo político-jurídico às questões vincula-
das à produção normativa, anistia política, justiça pe-
nal, justiça de reparação e reforma das instituições de
segurança pública, perfazendo ligações entre passados
e presente, modo contínuo em que se apresentava en-
quanto alternativa conceitual e mediadora para a
(re)democratização.
O conceito de Justiça de Transição não é uno,
alguns entendem como um passo rumo à
(re)democratização, outros entendem como acerto de
contas com as subversões sufocadas, visto que abrem
relações/contradições entre as narrativas oficiais e não
oficiais enquanto fontes de investigação histórica.
Nesse sentido, a vinculação entre os pontos
principais da Justiça de Transição, passando pelo recor-
te temático que o artigo pretende expor em face das
situações vivenciadas pelo campesinato nordestino
(Paraíba e Pernambuco), pode estabelecer uma das vias
para a construção de uma política reconstrutiva da
memória permanente nas lutas camponesas.

2 - (Re?)construção democrática: uma memória de


várias memórias.

João Goulart, Presidente do Brasil, vinha de um


processo bastante conturbado de eleições/renúncia de
Jânio Quadros, o seu governo enfrentava resistência
ferrenha das elites brasileiras, principalmente em face
das pautas ligadas às chamadas Reformas de Base, entre
elas a Reforma Agrária.
O fato é que, entre grandes parcelas das classes
dominantes, militares conservadores e alguns se-
tores médios do Brasil, há muito se acreditava que
João Goulart era, no mínimo, um simpatizante dos
comunistas. Afinal, “Jango era o líder da ala es-
querda do PTB e um dos principais responsáveis
pela transformação do partido getulista, concebido

 
236 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

originalmente como dique contra o comunismo,


em aliado do PCB” (MOTTA, 2002, p. 234)7

Em outro campo político havia o temor por par-


te dos Estados Unidos8 de que o Brasil, no governo de
“Jango”, se tornasse uma ditadura socialista; nesse sen-
tido as pressões aumentavam de todos os lados: o Pre-
sidente era minado por interesses empresariais nacio-
nais e internacionais; grupos de latifundiários se articu-
lavam em várias regiões do país temerosos com a Re-
forma Agrária; ao mesmo tempo no cenário internacio-
nal era visível o desgaste do Brasil – e a necessidade de
posicionamento - diante da formação dos blocos eco-
nômico-políticos no ocidente.
Essa repercussão internacional tinha influência
direta na política internacional do continente latino-
americano que, por outro lado, passava por processo
de solidificação das bases populares (sindicatos, asso-
ciações e outros) em processo de (re)organização políti-
ca e construção de pautas que exigiam mais do que
reformas legais e institucionais.
Nesse sentindo, o governo de “Jango” e de seus
aliados internos em alguns Estados, assim como dentro
do próprio partido, foi sendo levado a um isolamento
político e de representatividade que criou o momento
oportuno para a tomada de poder através de uma Di-
tadura Civil-Militar, destacando-se a Marcha da Família
com Deus, pela liberdade em São Paulo, onde aproxima-
damente 500 mil pessoas se mobilizaram em repúdio

7 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o

anticomunismo no Brasil. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2002.


8 A importância dada ao caso brasileiro pelo governo Kennedy pode

ser constatada pelo fato de que a administração Goulart virou tema de


apreciação do Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional
(National Security Council, NSC) em reunião do dia 11 de dezembro
de 1962. Texto disponível em:
http://anpec.org.br/encontro/2011/inscricao/arquivos/000dee84bec
a059ff4b73fb482757a9b9bc.pdf (acesso em 09 abr. 2013).
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 237

ao comunismo, e em defesa do Regime e da Constitui-


ção9, e as mobilizações de mulheres em todo país.10
Finalmente, na madrugada do dia 31 de março, o
gal. Mourão Filho, comandante da IV Região Mili-
tar de Minas Gerais, ordenou que sua tropas se
movimentassem de Minas Gerais em direção ao
Rio de Janeiro, com o apoio do governador de Mi-
nas, Magalhães Pinto e de São Paulo, Adhemar de
Barros e recebeu o apoio do gal. Amaury Kruel, do
Rio de Janeiro, que ainda tentou um acordo com
João Goulart, para que este se afastasse do CGT e
da UNE e de outras entidades “subversivas” que
poderiam manter poder. Jango recusa, e o golpe é
desencadeado. João Goulart resolve não resistir,
apesar do apelo de vários de seus aliados, para
evitar uma guerra civil no país e se exila no Uru-
guai. A direita no Congresso aprova a declaração
de vacância do cargo de Presidente da República e
o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri
Mazzili, foi empossado no cargo11.

Com o golpe militar instalado no país e a difi-


culdade de reação dos grupos contrários a ele – no Rio

9 São Paulo pára em defesa do regime e da Constituição: “Ontem, São

Paulo parou. E foi à praça publica - porque "a praça é do povo" - numa
mobilização que envolveu meio milhão de homens, mulheres e jovens,
também de outros Estados: a "Marcha da Família com Deus, pela
Liberdade".
Disponível em:
http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm (acesso em
07 abr. 2013).
10 Nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Guanabara, Minas Gerais,

Ceará e Pernambuco, as mulheres atuaram de forma


institucionalmente organizada em entidades como a Campanha da
Mulher pela Democracia (CAMDE), a Liga da Mulher Democrata
(LIMDE) e a União Cívica Feminina (UCF)(Cf. FICO, 2004b; SIMÕES,
1985).Texto disponível em:
http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/ufba_ditadura_milita
r_na_bahia_1.pdf (acesso em 09/04/2013).
11 TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. 5ª

Ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 103 e ss.

 
238 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pernambuco houve


uma resistência mais articulada12 -, o governo militar
aumentou seus poderes administrativos, jurídicos e
políticos através dos Atos Institucionais13.
Entre os referidos documentos, o Ato Institucio-
nal Nº 5 (AI-5), de 13 de Dezembro de 1969, promulga-
do no governo do General Artur da Costa e Silva, foi o
mais contundente no campo das violações de direitos
fundamentais. O AI-5 aumentava o poder do Presiden-
te da República de tal forma que ele poderia intervir
nos estados e municípios, sem respeitar as limitações
constitucionais; Suspender os direitos políticos, pelo
período de 10 anos, de qualquer cidadão brasileiro;
Cassar mandatos de deputados federais, estaduais e
vereadores; Proibir manifestações populares de caráter
político; Suspender o direito de habeas corpus.
Há de se destacar que as violações de direitos
presentes em tal ato não se limitavam ao âmbito consti-
tucional, mas também alcançou marcos declaratórios e
imperativos consagrados internacionalmente, como foi
o caso do artigo 5º da Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos.

12 Registre-se que a Guanabara ainda era a caixa de ressonância do


Brasil, embora desde 1960 não fosse mais a capital da República. Por
isso, as tropas marcharam sobre a Guanabara. Jango, sem clima em
Brasília e no Rio, vai para o Rio Grande do Sul, onde Brizola estava
preparado para resistir, com apoio do III Exército, sob o comando do
general legalista Ladário Telles. Bastava uma ordem de João Goulart
para a resistência. Jango, porém, temendo uma guerra civil e sabedor
do apoio armado dos EUA ao golpe, preferiu evitar “derramamento de
sangue”. Até a sua decisão, Brizola, baseado na Prefeitura de Porto
Alegre, governada pelo trabalhista Sereno Chaise e usando a Rádio
Farroupilha, como em 1961, tenta reeditar a Cadeia da Legalidade. RIO
DE JANEIRO. Silvio Tendler. Jango. 1984, 117 min., cor
13 Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Ato Institucional nº 2,

de 27 de outubro de 1965. Ato Institucional nº 3, de 5 de fevereiro de


1966. Ato Institucional nº 8, de 2 de abril de 1969. Ato Institucional
nº 13, de 5 de setembro de 1969. Demais Atos Institucionais em:
http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/atos-
institucionais (acesso em 08 abr. 2013).
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 239

Diante deste e de outros abusos cometidos pelo


regime militar, parte da população brasileira começou
a partir em várias frentes de mobilização (institucionais
ou revolucionárias), entre eles trabalhadores, estudan-
tes e militantes de partidos políticos colocados na clan-
destinidade14.
Em 1979, o então presidente João Figueiredo as-
sinou o projeto de lei de Anistia e o enviou ao Congres-
so Nacional para a promulgação15 da Lei de Anistia
(ver nota adiante), trouxe alguns avanços políticos,
beneficiando milhares de brasileiros, contando com
pessoas atingidas pelos Atos Institucionais, exilados,
presos políticos, entre outros.
Em 1982, ainda no governo de João Figueiredo,
são anunciadas eleições diretas para governadores dos
estados. Mais um avanço no campo da democratização.

14 A Guerrilha do Araguaia - movimento de resistência ao regime


militar integrado por alguns membros do novo Partido Comunista do
Brasil. Esse movimento se propôs a lutar contra o regime, “mediante a
construção de um exército popular de libertação”. No final de 1974,
não havia mais guerrilheiros no Araguaia, e há informação de que seus
corpos foram desenterrados e queimados ou atirados nos rios da
região. Trechos da sentença em que o Brasil foi responsabilizado pelo
caso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf
(acesso em: 09 abr. 2013).
15 A luta em torno da Anistia desenvolveu-se inicialmente a partir do

surgimento do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), em 1975,


formado por mães e familiares de presos políticos, exilados e
desaparecidos. Neste mesmo ano, foi fundada uma “seção” no Rio
Grande do Sul, liderada pela socióloga Lícia Peres, então militante do
MDB (...). Criaram-se em seguida os Comitês Brasileiros pela Anistia
em várias cidades do país, exigindo uma anistia “ampla, geral e
irrestrita”. O primeiro deles foi fundado no Rio de Janeiro, em 1978;
neste mesmo ano foi fundado o Comitê Unitário pela Anistia no Rio
Grande do Sul. Tais comitês passaram a investigar o assassinato de
presos políticos e a divulgar os nomes dos desaparecidos, editavam
jornais e panfletos, organizavam manifestações e denunciavam a
tortura e a violência da ditadura. PADRÓS, Enrique Serra.
GASPAROTTO, Alessandra. Gente de menos – Nos caminhos e
descaminhos da abertura do Brasil (1974 -1985).

 
240 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

Dois anos depois, a Campanha das Diretas tomou


as ruas, reunindo no palanque políticos e militan-
tes de diferentes partidos e tendências. Exibindo o
slogan “eu quero votar pra Presidente” milhares
de pessoas tomaram as ruas, nos inúmeros comí-
cios realizados em diferentes pontos do país. Em
Porto Alegre, calcula-se que aproximadamente
duzentas mil pessoas tenham participado dos co-
mícios pró-diretas. Em janeiro de 1984 foi realiza-
da uma “Caminhada Democrática” em direção ao
centro da capital, na qual estavam presentes lide-
ranças como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves
e Pedro Simon. Alguns artistas também acompa-
nharam o trajeto, como os cantores Martinho da
Vila, Kleiton e Kledir e os atores Raul Cortez e
Ruth Escobar.16

Em 1985, foi eleito o último presidente de ma-


neira indireta, “o último general”, Tancredo Neves,
que veio a falecer, assumindo a presidência, em seu
lugar, José Sarney, civil que apoiou a ditadura militar.
O processo de nascimento da “Nova Repúbli-
ca”, ou período de (re)democratização, também passa
necessariamente pela redação da nova Carta Magna,
que se deu através da convocação de gerais para Depu-
tados e Senadores, ou seja, desempenhariam um duplo
papel, seriam a Assembleia Constituinte e ao mesmo
tempo cumpririam suas atividades rotineiras com base
na Constituição anterior; “sob o clima de intensos de-
bates que permeavam a sociedade brasileira sobre o
seu futuro, ao final de 1986 foi eleita a Assembleia Na-

16PADRÓS, Enrique Serra. GASPAROTTO, Alessandra. Gente de


menos – Nos caminhos e descaminhos da abertura do Brasil (1974-
1985). In: PADRÓS, Enrique Serra, BARBOSA, Vania M., LOPEZ,
Vanessa Albertinence, FERNANDES, Ananda Simões (org.). Ditadura
de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e
memória. Porto Alegre: Corag, 2009. – v. 4. p. 44
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 241

cional Constituinte, segundo o formato da Constituinte


Congressual”17.
Em 1988, após um ano e sete meses de trabalhos
da Assembleia Constituinte, o projeto constitucional foi
finalmente levado para uma primeira votação em ple-
nário. Após intensos debates, uma segunda votação
ocorreu e a nova Constituição foi promulgada em 5 de
outubro de 1988.
Consolidação do processo de (re)demo-
cratização e de uma nova forma à ordem política brasi-
leira18, a chamada “Constituição Cidadã” representou
naquele momento a Certidão de Nascimento do Brasil ou
marco simbólico que (re)inventa a nossa cidadania,
possibilitando, dentre outros direitos e garantias fun-
damentais, que em 1989 a população brasileira tivesse
novamente o direito ao voto, escolhendo livremente o
presidente do Brasil, no pleito; o vencedor Fernando
Collor de Melo veio a ser alvo de um impeachment logo
em seguida por envolvimento em corrupção em todos
os níveis/escalões do governo federal.
Entre avanços e retrocessos, não podemos es-
quecer os erros do passado, as memórias que formam a
história de uma nação não podem ser sufocadas ou
para sempre quedar silentes; a cada momento foram
surgindo movimentações e articulações que pudessem
resgatar/construir a memória em face dos atos de cru-
eldade cometidos pelo regime militar, e, junto com es-
tes atos, estabelecer perante a sociedade brasileira e o
Estado uma memória daqueles que morreram ou fo-

17 PERLATTO, Fernando. A Constituição de 1988: um marco para a


História da Nova República brasileira. Revista de Artes e
Humanidades, N.3, Nov-Abr- 2009. p. 9
18 SOUZA, Amaury de. & LAMOUNIER, Bolívar. A feitura da nova

Constituição: um reexame da cultura política. In: LAMOUNIER,


Bolívar (org.). De Geisel a Collor: o balanço da transição. São Paulo:
Sumaré, 1990.

 
242 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

ram desaparecidos lutando por seus direitos legíti-


mos19.
O direito à memória se constitui, pois, em um
direito fundamental, Hannah Arendt   aponta que “o
presente não esquece nem domestica o passado, isto
porque a relação entre estes períodos de tempo é de
transversalidade e circularidade”:
Assim, é que, se a verdade se afigura como neces-
sária na elucidação dos temas em discussão, a re-
conciliação do Estado e da República para com es-
te tempo passado que se conecta com o presente e
futuro de sua gente demanda mais passos e avan-
ços, evitando que esta verdade se transforme, tão
somente, em resultado mercantil de ressarcimen-
tos legítimos, mas afiance a função racionalizadora
da história comprometida com o desvelamento das
fissuras perpetradas à Democracia20.

Nota-se que é muito importante expurgar todo


esse passado marcado por graves violações de direitos
humanos, e isso só será possível através do resgate de
fatos reais. Todavia, como realmente buscar esse pas-
sado na sua integridade, senão constituindo elementos
individuais e coletivos, objetivos e subjetivos, factuais e

19 Comissão de Anistia: foi instalada pelo Ministério da Justiça, no dia

28 de agosto de 2001. Criada pela Medida Provisória n.º 2.151, a


Comissão está analisando os pedidos de indenização formulados pelas
pessoas que foram impedidas de exercer atividades econômicas por
motivação exclusivamente política desde 18 de setembro de 1946 até
cinco de outubro de 1988. Disponível em:
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJABFF735EITEMID48C923D22
C804143AB475A47E582E1D8PTBRIE.htm (acesso em 09/ abril 2013).
Comissão Especial Mortos e Desaparecidos Políticos: A Lei nº 9140,
de 4 de dezembro de 1995, reconheceu como mortas as pessoas
desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação,
em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de
agosto de 1979. Disponível em:
http://www.sedh.gov.br/mortosedesap (acesso em 09 abr. 2013.
20 LEAL, Rogério Gesta. Verdade, memória e Justiça: um debate

necessário. Santa cruz do Sul: Edunisc, 2012. p. 12


Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 243

sensoriais e/ou científicos/documentais que constitu-


am memórias permanentes em uma aproximada relação
com uma memória institucional e pessoal que apontem
significados?

3. Justiça de Transição: um breve trânsito global-


local.

O período ditatorial, por ser um tempo vincula-


do diretamente às torturas, privação ao direito de li-
berdade (todo tipo), entre tantas outras violações de
direitos humanos, permite na atualidade (re)pensar os
enfrentamentos no campo democrático, especialmente
quando tratamos de segurança pública e acesso à justi-
ça e memória, sendo a liga entre esses elementos os
aspectos históricos da justiça de transição.
A necessidade de punir abusos passados tem sido
registrada desde a punição dos Trinta Tiranos com
o retorno dos democratas à Atenas 403 AC, porém
foi só na era pós-Nuremberg que tais políticas, e
políticas de memória em geral se tornaram aspecto
crucial para a mudança de regime. Certamente, o
interesse na política da culpa e reparação alcançou
tais níveis, sem precedentes, que Soyinka se refere
“febre de reparação do fim do milênio”.21

Cabe destacar, nesse contexto, que a ditadura


militar prevaleceu em nosso país em um momento de
acomodações das forças políticas e ideológicas que
disputavam os discursos, territórios e práticas em me-
ados do século XX, principalmente no campo interna-
cional (socialismo/comunismo/anarquismo versus li-
beralismo/capitalismo, mesmo com as alianças contra

21 BRITO, Alexandra Barahona de. Justiça Transicional e a política de

memória: uma versão global. In Revista Anistia Política e Justiça de


Transição. - N.1 (jan./ jun). Ministério da Justiça – Brasília: Ministério
da Justiça, 2009 p. 57

 
244 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

o totalitarismo nazista ou fascista na II Guerra Mundial


ou com variações conceituais, programáticas e pragmá-
ticas entre e dentre os próprios campos de ação políti-
ca).
A discussão sobre Justiça de Transição tem ga-
nhado proporções cada vez maiores nos últimos anos22,
no campo jurídico principalmente a partir da decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constituci-
onalidade da Lei da Anistia23, na dinâmica social e ins-
titucional através do Programa Nacional de Direitos
Humanos III24, e na dimensão política a partir da cria-
ção das Comissões da verdade (Nacional e Estaduais
adiante), entre outros aspectos relevantes.

22 Governo manda liberar arquivos da ditadura retidos em

ministérios. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/poder/1240567-governo-manda-
liberar-arquivos-da-ditadura-retidos-em-ministerios.shtml acesso em
19 de mar. 2013.
23 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF

153) que versa sobre a revisão da lei de anistia. O Supremo Tribunal


Federal não acolheu os argumentos instados pela Ordem dos
Advogados do Brasil mantendo a constitucionalidade da lei,
especificamente ao que tange o alcance dos crimes (e sujeitos)
anistiados conforme previsto no Artigo 1; parágrafo 1. Disponível em
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF1
53.pdf> acesso em 24 de mar. 2013.
24 BRASIL. DECRETO Nº 7.037 DE 21 DE DEZEMBRO DE

2009 / Nº7.177 DE 12 DE MAIO DE 2010. Aprova o Programa


Nacional de Direitos Humanos – PNDH 03 e dá outras
providências. Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à
Verdade. Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada
com a promoção do direito à memória e à verdade,
fortalecendo a democracia. Objetivo Estratégico I: Suprimir do
ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de
períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os
preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos. (Grifo nosso).
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 245

A partir desse histórico, surge a Justiça de Tran-


sição, que como bem salienta Gabriela da Rosa
Bidniuk25,
tem por base quatro características primordiais,
quais sejam, a reparação das vítimas daquele perí-
odo, a busca pela verdade e construção da memó-
ria, a reforma de instituições do Estado e, por fim,
o restabelecimento da igualdade dos indivíduos
perante a lei. Foi para a efetivação desses ideais da
Justiça de Transição que diversos mecanismos fo-
ram implementados.

É verdade que essa discussão vem ganhando


força tardiamente, são mais de 20 anos para se ter uma
atenção especial sobre a questão da Justiça de Transi-
ção, mesmo que seja um aspecto do cotidiano de várias
instituições e debates midiáticos; porém, a própria te-
mática dos direitos humanos e das violações contra
esses direitos é vista com certo distanciamento e pre-
conceito por parte da população brasileira26.
Não seria estranho considerar que os períodos
de ditadura recente no país sejam um dado que nem
todos os brasileiros vislumbram enquanto período de
extrema relevância para o conhecimento da formação
das nossas instituições, da sociedade civil e dos movi-
mentos sociais.
No Brasil, pôde-se observar há pouco dois exem-
plos contundentes dessa realidade: as reações viru-
lentas de parcelas de uma opinião pública ao lan-

25 BIDNUIK, Gabriela Rosa. Justiça de transição no Brasil. disponível

em:<http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11164
&revista_caderno=27> Acesso em 19 de março de 2013
26 VENTURINI, Gustavo. O potencial emancipatório e a
irreversibilidade dos direitos humanos in Brasil. Presidência da
República. Direitos humanos: percepções da opinião pública: análises
de pesquisa nacional / organização Gustavo Venturi. – Brasília:
Secretaria de Direitos Humanos, 2010

 
246 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

çamento do terceiro Programa Nacional dos Direi-


tos Humanos (PNDH-3) – parcelas claramente mi-
noritárias, mas que souberam se articular e fazer
barulho em torno da defesa de privilégios diversi-
ficados (latifundiários, militares saudosos da dita-
dura, empresários de comunicação e igrejas cristãs,
todos portadores de interesses não universalizá-
veis), gerando a impressão de que a maioria da
opinião pública se opunha ao PNDH-3, quando na
realidade estava alheia a essa discussão. E logo a
seguir tivemos a decisão do Supremo Tribunal Fe-
deral julgando improcedente a ação da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) que questionava a
anistia aos crimes contra os direitos humanos pra-
ticados por agentes do Estado durante a ditadura
militar – decisão que contraria preceitos de con-
venções internacionais de que o Brasil é signatário
(nas quais a tortura, entre outros, é crime contra a
humanidade e, assim, imprescritível e não anistiá-
vel), isolando o país entre as nações do Cone Sul
que também enfrentaram ditaduras e hoje revisam
seus processos de anistia e puniram militares cri-
minosos.27

As reflexões sobre o tema dos direitos humanos


e Justiça de Transição não se esgotam neste texto,
abrem interlocuções também no campo jurídico através
das análises de Pactos, Convenções, Tratados Interna-
cionais e a elaboração de novas Constituições nos Esta-
dos Latino-americanos entre os anos de 1980 e 2010.
Posicionar o Estado perante uma demanda jurí-
dico-política, em que o impacto do arcabouço interna-
cional positivado fosse repercutido nas Constituições
nacionais no período democrático, é o caminho para
que outras leituras dentro de um Estado democrático

27 Idem. p. 15
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 247

de direito ocorram, apontando novos futuros, como


destacado por Flávia Piovesan28:
Importa ressaltar que as Constituições da Argenti-
na, Brasil, Uruguai e Paraguai, na qualidade de
marcos jurídicos da transição democrática nesses
países, fortalecem extraordinariamente a gramáti-
ca dos direitos humanos, ao consagrarem o prima-
do do respeito a esses direitos como paradigma
propugnado para a ordem internacional.

Na América Latina, assim como no Brasil, as re-


leituras de momentos históricos e políticos poderão
constituir caminhos alinhavados com a Justiça de Tran-
sição que possibilitem a problematização entre os
avanços no campo normativo, a lenta transformação
estrutural, cultural e social.
As contradições e as conquistas analisadas por
leituras interdisciplinares constituem um vasto e com-
plexo campo de análise; portanto, buscar e considerar
suportes que auxiliem a problematizar as questões
pendentes de aproximação com a perspectiva global-
local remete às configurações dos direitos humanos na
América Latina nos passados, presentes e futuros.
Neste sentido, subverter as conceituações e refor-
çar o caráter emancipatório das lutas pela implementa-
ção dos direitos humanos coaduna-se como um desafio
para a construção do significado de dignidade humana
e de justiça social29.

28 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, globalização econômica e

integração regional: desafios do direito constitucional internacional.


São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 58
29 ARAÚJO. E.F. AGOSTINHA – POR TRÊS LÉGUAS EM

QUADRA: A temática quilombola na perspectiva global-


local. 2008. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Centro de
Ciências Jurídicas, Direito, UFPB – Campus I, para obtenção de
título de mestre em ciências jurídicas)

 
248 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

4. Comissão Nacional da Verdade: as variáveis que


a envolvem e seus contornos

O trânsito de um sistema ditatorial para um


‘democrático’ cria a pressuposição de que os atos do
passado (políticos, jurídicos ou institucionais) foram
totalmente superados no presente; porém, será que
esse passado não reflete no presente? Será mesmo que
superamos o regime civil-militar?
Mais de 30 anos se passaram, há dúvidas em di-
versas famílias que tiveram entes mortos pela ditadura,
assim como o sentimento de injustiça, impunidade e
impotência naqueles que vivenciaram violações de di-
reitos que transcendem a ruptura com governo militar.
O governo brasileiro por muito tempo perma-
neceu inerte no que diz respeito às vítimas de seus
agentes no período ditatorial, e não consegue conjugar
o passado com elementos atuais de repressão, violação
de direitos humanos, preconceito, racismo e violência
simbólica e estrutural.
Passaram a chamar essa indenização de “bolsa di-
tadura, adotando um flagrante tom depreciativo.
Militantes políticos eram e são chamados de “ter-
roristas”, torturadores eram e são chamados de
“patriotas” (…) a sociedade brasileira continua, vi-
sivelmente, a colocar em prática o rótulo do inimi-
go objetivo a outros setores da população, como é
o caso dos jovens da periferia que passam a ser ro-
tulados de “traficantes” atraindo para si toda sorte
de procedimentos policialescos que desconhecem
olimpicamente qualquer garantia de proteção à
pessoa humana, no que são, inclusive, apoiados
por setores expressivos da população, sequiosa em
responder o problema da segurança com mais vio-
lência e preconceito. Isto sem mencionar o pro-
blema da criminalização dos movimentos sociais e
do desrespeito às culturas indígenas. Antes de se
questionar a “violência” das manifestações dos
movimentos sociais, é preciso questionar a violên-
cia, que para grande parte das pessoas parece algo
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 249

natural, em relegar milhares e milhares de pessoas


à fome, à ausência de moradia, ao desemprego e à
ação preconceituosa das forças policiais do país.30

Imprescindível apontar o avanço da Lei n.


10.559/2002, que versa sobre a indenização aos perse-
guidos políticos e a atribuição da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça, em analisar e decidir sobre os
casos, assim como a realização das Caravanas da Anis-
tia, criação do Memorial da Anistia e a centralização
dos documentos da ditadura militar no Arquivo Naci-
onal (Decreto 5.584/2005); de toda sorte as resistências
através de setores da mídia, da sociedade e de institui-
ções do Estado são notórias e cresceram quando a es-
truturação de uma Comissão Nacional da Verdade (e
das Comissões Estaduais) começou a se concretizar,
apesar das críticas dos movimentos sociais, militantes
políticos e acadêmicos estudiosos da temática sobre
suas limitações, envolvendo, por exemplo, a impossibi-
lidade de acionar mecanismos jurídicos como ocorre
em outras experiências similares.
A criação da Comissão Nacional da Verdade31
(CNV) pela Lei 12.528/2011, instalada desde maio de
2012, surge contornada por críticas, mas enquanto fina-
lidade cumpre um papel importante em nossa história
recente, pois tem por escopo apurar graves violações
de Direitos Humanos, praticadas por agentes públicos,
ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro
de 1988.
As Comissões da Verdade são mecanismos ofi-
ciais de apuração de abusos e violações dos Direitos

30 SILVA, José Carlos Moreira Filho. O anjo da história e a memória


das vítimas: O caso da ditadura militar no Brasil. In RUIZ, Bartolomé
Castor (org.). Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência.
São Leopoldo Editora Unisinos. p. 121 – 158
31 Site oficial Comissão Nacional da Verdade (CNV):
http://www.cnv.gov.br/

 
250 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

Humanos e vêm sendo amplamente utilizadas no


mundo32 como uma forma de evidenciar o passado; a
prioridade é escutar as vítimas de arbitrariedades, ao
mesmo tempo em que dá lugar a que se conheça o pa-
drão dos abusos cometidos, através da versão dos per-
petradores dessas violências ou da revelação de arqui-
vos ainda desconhecidos.33

32 Alguns resultados de outras comissões da verdade pelo mundo:

África do Sul - A CV ouviu 21.000 testemunhos, a CV recebeu 7.112


pedidos de anistia, concedeu 849 e recusou 5.392, os relatórios foram
sistematicamente destruídos entre 1990 e 1994, o relatório final
nomeava cada perpetrador individualmente, recomendou reparações
financeiras, cada vítima ou família receberia $3.500 anualmente
durante 6 anos, aqueles que não foram anistiados deveriam ser
julgados e os relatórios da Comissão deveriam ser preservados, o
governo estabeleceu um órgão para executar as recomendações da
Comissão; Argentina - O relatório da Comissão registrou 9.000
desaparecimentos entre 1976 e 1983. Contudo, o medo das vítimas e
parentes destas de dar seus testemunhos levou a Comissão a estimar
um número 10.000 a 30.000 desaparecimentos. A Comissão
recomendou um programa de reparação às vítimas e reformas
judiciais e educacionais quanto aos DH. Em 1992, foi criada a
Comissão Nacional para o Direito à Identidade. Em 1994, Argentina
reformou a sua constituição para reforçar a democracia. As
informações coletadas pela comissão foram cruciais para o julgamento
da junta militar, e cinco generais acabaram presos. No entanto, a
legislação no final de 1980 suspendeu processos contra outros
perpetradores. A Lei da Anistia revogada em 2003 resultou no
processo de 700 pessoas e 500 foram condenadas. Em 2004 foram
previstos $ 3 bilhões de dólares para reparações às vítimas; Chile - A
Comissão identificou em seu relatório as violações de direitos
humanos; sugeriu reparações que se estendiam desde declarações
públicas a reformas nos âmbitos jurídico, administrativo e
educacional; e fez um resumo biográfico das 2.279 pessoas que
morreram ou desapareceram por causa das violações. A criação da
Corporação Nacional de Reconciliação e Reparação pelo governo
chileno em janeiro de 1992. As atividades posteriores da Comissão
com familiares e organismos levaram à descoberta de provas sobre
ações dos agentes da DINA e a prisão de seu chefe, Manuel Contreras.
Fonte: Documento enviado pela Comissão Estadual da Memória e
Verdade Dom Helder Câmara Estado de Pernambuco.
33 Extraído de “A Comissão da Verdade no Brasil – Por quê? O que é?

O que temos de fazer?”. Cartilha elaborada pelo Núcleo de


Preservação da Memória Política – São Paulo, p. 8.
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 251

O direito à memória e à verdade e as ações da


CNV juntamente com as Comissões Estaduais34, são
instrumentos de extrema importância, mesmo 30 anos
após a Lei da Anistia; de toda sorte, como salienta
Eduardo González Cueva (2011)35, três décadas depois
do trabalho da Comissão Nacional sobre o Desapare-
cimento de Pessoas (CONADEP), na Argentina, parece
evidente que as comissões de verdade, apesar de surgirem
como uma resposta ad hoc a situações de transição, são vis-
tas crescentemente como um novo instrumento de justiça.
Sua validade é independente dos momentos de transição polí-
tica, e não se trata nem de uma reposição, nem de uma alter-
nativa a justiça penal.
A Comissão Nacional da Verdade brasileira foi
pautada no governo Lula, que cedeu à pressão de mili-
tares e deixou o projeto apenas no papel36. No governo
Dilma Rousseff37 é que a Comissão Nacional da Verda-

34 As Comissões Estaduais foram criadas para auxiliar no resgate das


memórias das vítimas da ditadura, segue abaixo a relação de algumas
delas: Paraíba: Comitê pela Verdade, Memória e Justiça da Paraíba;
Pernambuco: Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder
Câmara; São Paulo: Comitê Paulista Pela Memória, Verdade e
Justiça; Bahia: Comitê Baiano Pela Verdade, Memória e Justiça; Rio
Grande do Sul: Comitê à Memória, Verdade e Justiça do Rio Grande
do Sul. Ver relação completa:
http://www.dhnet.org.br/verdade/estados/index.htm#paraiba
(acesso em 10 abr. 2013)
35 Justiça de Transição: manual para a América Latina. Até onde vão as

Comissões da Verdade?
36 Após reação de militares, Lula vai amenizar proposta sobre

Comissão da Verdade. Disponível em:


http://noticias.r7.com/brasil/noticias/apos-reacao-de-militares-lula-
vai-amenizar-proposta-sobre-comissao-da-verdade-20091230.html
(acesso em 10 abr. 2013).
37 Dilma revela detalhes das torturas que sofreu nos porões da

ditadura:Disponível em:
http://www.vcartigosenoticias.com/2012/06/dilma-revela-detalhes-
das-torturas-que.html (acesso em: 10 abr. 2013).

 
252 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

de se concretizou38, com sete integrantes39 nomeados


pela própria presidente.
A Comissão Nacional da Verdade aparentemen-
te traz novas perspectivas, porém é limitada em face da
Lei de Anistia, pois não tem poder para responsabilizar
e punir ninguém.

5. Graves violações de direitos humanos no


campesinato nordestino (1962 – 1985) e uma síntese
dos relatos de líderes rurais

A análise dos movimentos sociais no campo,


considerando-se o período de 1962 a 1985 e todo o pro-
cesso de desenvolvimento econômico característico da
realidade brasileira, leva à reflexão sobre a diversidade
quanto às suas formas de organização e de expressão,
sendo imprescindível destacar as graves violações de
direitos humanos ocorridas no campesinato nordestino
brasileiro.
O Nordeste rural brasileiro presenciou um de-
senvolvimento capitalista desigual e contraditório, no
entanto toda conjuntura de pesquisa torna-se apenas
um esboço provisório de uma realidade muito mais
complexa, extensiva e multifacetada.
As fundamentações utilizadas no artigo, ainda
que de forma inacabada, objetivam evidenciar um ma-
peamento inicial a partir de relatos dos líderes rurais,

38 Dilma instala Comissão da Verdade e diz que não haverá


ressentimento, ódio nem perdão: Disponível em:
http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2012/05/16/dilma-chora-ao-instalar-comissao-da-
verdade.htm (acesso em 10 abr. 2013).
39 Comissão Nacional da Verdade: Cláudio Fonteles. Gilson Dipp.

José Carlos Dias. José Paulo Filho. Maria Kehl. Paulo Pinheiro. Rosa
Cardoso Disponível em:
http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-
informacao/quem-e-quem (acesso em 10 abr. 2013).
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 253

especificamente nos estados de Pernambuco e Paraíba,


onde o estudo da violência política e social ocorrida no
campo entre 1962 e 1985 é certamente provisório, pois
resgatar a memória do que ocorreu no campo durante
o regime militar é contar uma história que, pelas carac-
terísticas próprias à área rural, foi construída em gran-
de medida no anonimato, em geral ignorada pelos do-
cumentos oficiais, não apenas devido às experiências
de clandestinidade política, como ocorreu na área ur-
bana, mas, sobretudo, porque foi ocultada sob o cotidi-
ano de uma histórica relação de opressão e humilhação
dos representantes do latifúndio contra os lavradores,
os posseiros e os trabalhadores da terra.
O campesinato nordestino brasileiro carece de
uma reconstituição, seja no aspecto reparatório, inves-
tigativo-histórico, punitivo e até mesmo uma sistemáti-
ca revisão nos quadros das Instituições Estatais frente
às agressões que iniciaram essencialmente por parte do
Estado juntamente aos latifundiários, evidenciando
assim o compromisso democrático adotado por um
país que possui nos seus princípios constitucionais a
dignidade da pessoa humana.
As estratégias da justiça transicional devem ser
consideradas como parte importante da constru-
ção da paz, na medida em que abordam as neces-
sidades e as reclamações das vítimas, promovem a
reconciliação, reformam as instituições estatais e
restabelecem o Estado de Direito.40 (ZYL, 2009)

O livro Retrato da Repressão Política no campo –


Brasil 1962 – 1985 – Camponeses torturados, mortos e desa-

40 ZYL, Paul Van. Promovendo a justiça transacional em sociedades

pós-conflitos. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília:


Ministério da Justiça, n. 01, 1.º semestre de 2009, p. 32

 
254 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

parecidos41 representa um marco na atual conjuntura de


uma Justiça de Transicional Campesina. Resulta de
uma pesquisa do Núcleo de Estudos Agrários (MDA) e
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República (SDH), de autoria de Marta Cioccari e Ana
Carneiro, no qual objetivam expor relatos de trabalha-
dores rurais que sofreram violações durante o período
do regime militar no Brasil.
A partir da delimitação do Nordeste brasileiro
enquanto uma das principais regiões afetadas pela re-
pressão militar no campo42, podemos analisar a soma
de forças existentes na época entre o Estado e as oligar-
quias centradas na exploração do trabalho, desrespeito
às legislações trabalhistas e nos vultosos lucros.
A dimensão do direito à memória e à verdade,
nos debates sobre o tema da justiça de transição, ocupa
sempre um lugar de centralidade não só por sua pres-
suposição necessária à execução de outras dimensões,
mas também por seu caráter desconstrutivo que per-
meia toda a sociedade. “A ditadura instalada no País
elegeu o nordeste como uma região particularmente

41 CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política


no campo – Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e
desaparecidos. Ed. revista e ampliada. Brasília: MDA, 2011.
42 Ditadura matou 1.196 camponeses, mas Estado só reconhece 29.

Financiada pelo latifúndio, a ditadura “terceirizou” mortes e


desaparecimentos forçados de camponeses. O resultado disso é uma
enorme dificuldade de se comprovar a responsabilidade do Estado
pelos crimes. Estudo inédito da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência revela que 97,6% dos 1.196 camponeses vítimas do regime
foram alijados do direito à memória, à verdade e à reparação. Os
dados serão apresentados à Comissão Nacional da Verdade para
embasar investigações que possam alterar este quadro de exclusão.
Disponível
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?mate
ria_id=20975&boletim_id=1391&componente_id=23197. Acesso em
11abr. 2013.
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 255

importante, perigosa, na qual desencadeou uma re-


pressão política selvagem”43.
Antes do golpe de 1964, o cenário no campo
caminhava em passos lentos para uma maior abertura
política, de direitos e garantias fundamentais que aos
poucos iam tomando corpo. Cumpre destacar nesse
período o crescimento vertiginoso e o agrupamento de
forças das Ligas Camponesas44, que pouco a pouco nu-
triam sentimentos raivosos aos latifundiários45.
A opressão das oligarquias nordestinas, junta-
mente com milícias privadas, demonstravam o tama-
nho poder frente às lideranças rurais e os demais agri-
cultores; no entanto, figuras como Gregório Bezerra46 e
Francisco Julião47, que marcaram de maneira impres-

43 Ver Octávio Ianni e a questão Nordeste, In: Bernardes, 2005, p. 40-41.


44 As Ligas Camponesas foram associações de trabalhadores rurais
criadas inicialmente no estado de Pernambuco, posteriormente na
Paraíba, no estado do Rio de Janeiro, Goiás e em outras regiões do
Brasil, que exerceram intensa atividade no período que se estendeu de
1955 até a queda de João Goulart em 1964. Disponível em:
http://www.ligascamponesas.org.br/?page_id=99. Acesso em 10 mar.
2013.
45 As Ligas Camponesas mobilizaram dezenas de milhares de

camponeses em defesa dos direitos do homem do campo e da Reforma


Agrária nos anos 1950 e 1960, seguindo iniciativa embrionária
conduzida pelo PCB entre 1945 e 1947. Lideradas pelo advogado
Francisco Julião, as Ligas formaram-se a partir da desapropriação do
Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão (PE), e se estenderam a
vários outros estados até o golpe de 1964. Deputado pelo Partido
Socialista Brasileiro (PSB), Julião encampou a luta dos camponeses no
campo e nas tribunas. Mais informações, ver Julião (1962, 2009),
Santiago (2004) e Carneiro e Cioccari (2010, 2011).
46 "Memórias" de Gregório Bezerra traz à tona a vida assombrosa de

líder comunista. Gregório Bezerra (1900-1983) Disponível em


http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/955413-memorias-de-
gregorio-bezerra-traz-a-tona-vida-assombrosa-de-lider-
comunista.shtml. Acesso em 11/04/2013.
47 Francisco Julião Arruda de Paula nasceu em 16 de fevereiro de 1915,

no município de Bom Jardim, em Pernambuco (...). Em 1954, foi eleito


Deputado Estadual pelo Partido Socialista Brasileiro. (...) Os primeiros
sindicatos foram organizados pelas Ligas, e Francisco Julião preparou

 
256 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

cindível as lutas, desmitificam toda a construção legi-


timada em torno unicamente de uma só voz.

5.1 – Mortes, torturas, desaparecimentos e perseguições no


campesinato pernambucano

O governo de Miguel Arraes (Pernambuco)


proporcionou maior participação e efetivação nas polí-
ticas agrárias, bem como em âmbito nacional com o
governo de Jango.
“Em Pernambuco, o povo vai-se integrando paula-
tinamente no poder. Arraes e os homens que com-
põem seu governo fazem questão de trilhar por
normas diferentes no trato com as coisas públicas.
Trata-se de uma administração de um novo tipo. O
povo participa ativamente da elaboração dos pla-
nos governamentais...”48 (BRASIL: 1980, 99).

Devendo, pois, também ser local de resistências


sociais, culturais e políticas com elevado grau de casos
de torturas, desaparecimentos e silenciamentos. Apesar
de toda repressão campesina não possuir documentos
oficiais até o momento, relatos de agressões às garanti-
as fundamentais evidenciam a necessidade da recons-
trução com as devidas ações reparatórias, investigati-
vas, bem como julgamento dos perpetradores.
O agricultor Marcos Martins Silva foi obrigado a
renunciar à presidência do Sindicato dos Lavradores e
Agricultores do município de Escada/PE, sendo vítima

diversos processos, possibilitando a fundação de inúmeros sindicatos.


Em 1962, elegeu-se Deputado Federal. Após o golpe de 1964,
permaneceu três meses na clandestinidade, antes de ser preso perto de
Brasília. Esteve preso durante 18 meses. Disponível em
http://www.ufpe.br/ccj/index.php?option=com_content&view=artic
le&id=216&Itemid=160. Acesso em 11 mar. 2013.
48 BRASIL, Jocelyn. Arraes, um ano de governo popular. Rio de

Janeiro: Edições Opção, 1980. 107 p.


Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 257

de inúmeras atrocidades por parte das milícias priva-


das a mando dos latifundiários. Marcos Silva reivindi-
cava direitos trabalhistas (décimo terceiro salário, fé-
rias) devidos conforme legislação trabalhista vigente à
época; de acordo com depoimentos, os usineiros orde-
navam aos jagunços calarem e reprimirem a voz do
agricultor que relata de forma detalhada no livro Retra-
to da Repressão Política no Campo:
“Me botaram num quarto incomunicável. Toda
usina tinha uma cadeia escondida chamada ‘Bene-
dita’ – um quartinho pequeno, bem fechado, como
uma catacumba de defunto, que só tinha um bura-
quinho pra tomar fôlego. (...) Eles me dizendo: ‘No
outro dia, nós viemos pra te levar para a mata do
Espinho’...”

Eram considerados como “subversivos” os


camponeses que se levantaram contra o sistema local
ou regime instalado, como o caso do “Massacre de Ma-
tapiruma”49, quando um grupo de agricultores foi sur-
preendido e fuzilado por agentes do Departamento de
Ordem Política e Social de Pernambuco, em face de
ações na Justiça do Trabalho, onde obtiveram êxito
frente aos usineiros para o recebimento de todas verbas
rescisórias e indenizatórias.
A partir do trecho abaixo, extraído do livro Re-
trato da Repressão Política no campo – Brasil 1962 – 1985 –
Camponeses torturados, mortos e desaparecidos, percebe-se

49 Filhos de um camponês, os irmãos José, Luiz e João Inocêncio

Barreto cortavam cana no Engenho Matapiruma, em Escada (PE),


quando, em 5 de outubro de 1972, ocorreu o chamado “Massacre de
Matapiruma”. Na ocasião, um grupo de lavradores trabalhava no
canavial quando chegaram três viaturas policiais, com oito homens
armados que passaram a fuzilar os camponeses. Eram agentes do
Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS/PE).
Cinco trabalhadores reagiram, defendendo-se com foices e facões,
enquanto a maioria do grupo fugia. O conflito deixou dois mortos e
vários feridos. Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962-1985 –
Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. MDA, 2011. Pg. 51.
258 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

tamanha dimensão da repressão que existiu nos cam-


pos nordestinos.
Em 2004, a Comissão Especial sobre Mortos e De-
saparecidos Políticos (CEMDP), com base na Lei
da Anistia, deferiu o requerimento apresentado
pela família de José Inocêncio Barreto para o reco-
nhecimento da responsabilidade do Estado na sua
morte. O relatório da Comissão menciona que o
nome de José Inocêncio e do vigia Severino Fer-
nandes da Silva constam dos livros escritos pelo
ex-comandante do DOI-CODI/SP, o conhecido
torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, como
tendo sido mortos em 06/10/1972 por “terroristas
durante agitação no meio rural.” (Grifo nosso)50

É evidente a complexidade e imbricação do sis-


tema em que se encontravam os camponeses, e a partir
da ligação do conhecido torturador Carlos Alberto Bri-
lhante Ustra com os crimes e desaparecimentos existen-
tes na época, percebe-se como os latifundiários conse-
guiram proteção.

5.2 Mortes, torturas, desaparecimentos e perseguições no


campesinato paraibano

Cenário de inúmeras lutas sociais e políticas


camponesas, onde se buscavam melhorias nos direitos
trabalhistas, um dos ícones foi o paraibano João Pedro
Teixeira51, responsável pela criação da Liga Camponesa

50 CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política

no campo – Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e


desaparecidos. Ed. revista e ampliada. Brasília: MDA, 2011. Pg. 56.
51 Fundador e vice-presidente da Liga Camponesa de Sapé (PB),

uma das mais combativas e atuantes do país, o líder João Pedro


Teixeira foi assassinado a tiros por pistoleiros, a mando de
latifundiários da região, em 2 de abril de 1962. Desde criança, João
Pedro – nascido em 1918 (…) depois de trabalhar na agricultura, na
juventude, João Pedro tornou-se operário, empregando-se em
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 259

de Sapé/PB, considerada uma das mais atuantes no


cenário de lutas em âmbito nordestino e brasileiro.
João Pedro Teixeira resistiu à pressão da polícia
atrelada aos latifundiários da região, mas sempre te-
meu a perda de uma liderança na luta, apontando à
sua esposa Elizabeth Teixeira a posição política diante
de uma possível morte, conforme transcrito no livro
“Eu marcharei na tua luta – A vida de Elizabeth Teixei-
ra”: “Vão tirar a minha vida, minha filha, mas a refor-
ma agrária vai ser implantada em nosso país para que
a vida do homem do campo melhore, para que eles
tenham o direito de criar seus filhos”52.
João Pedro Teixeira foi vítima (1962), antes
mesmo do desfecho do golpe civil-militar, de uma em-
boscada arquitetada por fazendeiros e políticos da re-
gião, sendo Elizabeth Teixeira sua herdeira política;
porém, a morte de uma de suas filhas serviu como fato
memorável a ser refletido para continuidade. Com o
golpe militar, Elizabeth foi presa, passando alguns dias
no Agrupamento de Engenharia53.
De acordo com o livro Retrato da Repressão Políti-
ca no campo – Brasil 1962 – 1985 – Camponeses torturados,
mortos e desaparecidos, uma passagem de Elizabeth no

pedreiras na Paraíba e, depois, em Jaboatão (PE). Nessa época, já


estava casado com Elizabeth Teixeira. Retrato da Repressão Política
no campo – Brasil 1962 – 1985 – Camponeses torturados, mortos e
desaparecidos” 2011. Pg. 84.
52 BANDEIRA, L.M.; SILVEIRA, R.M.G.; MIELE, N. (Orgs.). Eu

marcharei na tua luta: A vida de Elizabeth Teixeira. João Pessoa:


editora universitária/UFPB, 1997.
53 Memórias da luta camponesa: Elizabeth Teixeira – [...] De lá,

fugimos para dentro das matas e no dia seguinte, conseguimos chegar


até Recife. Depois, em João Pessoa, procurei notícias dos meus filhos,
mas acabei sendo presa. Passei três meses e 24 dias na prisão, no
Agrupamento de Engenharia." Liberada, ela fugiu para a cidade de
São Rafael, interior do Rio Grande do Norte, onde viveu por 16 anos
com o nome de Marta Maria da Costa. Disponível
http://www.anovademocracia.com.br/no-10/1134-memorias-da-luta-
camponesa-elizabeth-teixeira. Acesso em 10 de mar. 2013.
260 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

seminário Memória Campesina em 2006 ganha desta-


que54:
“Hoje eu estou tão cansada. Eu sofri tanto, tanto,
que eu imagino até assim, como é que eu estou vi-
va ainda hoje, pelo sofrimento que eu passei na
vida. Não foi fácil ficar sem João Pedro Teixeira,
com meus filhos. Depois, ficar sem meus filhos.
Deixar tudo abandonado na ditadura militar. Foi
muito triste.”

Outra mulher considerada importante na repre-


sentação dos agricultores na Paraíba foi Margarida Ma-
ria Alves, que enfrentou os atos arbitrários praticados
pelos latifundiários (autodenominados de Grupo da
Várzea).
Na pauta de reivindicação estavam: carteira as-
sinada, décimo terceiro salário, redução da jornada de
trabalho e férias. O assassinato de Margarida ficou im-
pune, não tendo efetivamente julgado e condenado
nenhum acusado, sendo assim arquivados os autos55.

54 CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política


no campo – Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e
desaparecidos. Ed. revista e ampliada. Brasília: MDA, 2011.
55 Margarida Maria Alves - A personalidade, que significou estímulo

de luta, motivação para a defesa dos direitos trabalhistas e considerada


uma das principais representantes de liderança feminina no Brasil (…),
nasceu em 5 de agosto de 1943, em Alagoa Grande, na Paraíba (…). O
contato permanente com o setor latifundiário, que começou desde
muito cedo, devido à necessidade da manutenção da família,
estimulou seus desejos para lutar pelo trabalho rural. Disponível em
http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=8388.
Acesso em 11 mar. 2013.
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 261

6. Considerações finais: Justiça de Transição


enquanto política reconstrutiva no movimento
camponês

As violações de direitos humanos ocorridas não


foram cometidas apenas pelo Estado, mas também por
usineiros e fazendeiros que financiavam e recebiam
amparo institucional para os seus atos.
O retrato conjuntural da introdução deste artigo
projeta algo interessante: a Lei de Anistia desloca-se e
produz efeitos sobre aqueles que se colocam como
agentes públicos, pois efetivamente seriam apenas
aqueles públicos que praticavam essas violações insti-
tucionalizadas; tal projeção de realidade traz consigo
um simbolismo intenso: primeiro, a promulgação em
1979 é uma ruptura ou projeção desta para a sociedade,
entretanto, tal fato não traz somente implicações políti-
co-institucionais, mas também na história, isto é, na
memória social, pois, ao fazer isso, a imagem que se
produz é que a violência institucional violadora se re-
duz ao Estado e seus agentes e se secundariza, esconde
que outras relações compunham a sistemática de viola-
ções de direitos humanos.
A violência institucional não é apenas aquela
praticada pelo Estado, mas aquela naturalizada por ele
materialmente, mesmo quando vedada, não permitida
juridicamente. Por exemplo, o caso das milícias dos
usineiros e fazendeiros utilizadas nos conflitos agrá-
rios; em segundo lugar, essa transferência de responsa-
bilidade para o Estado faz com que se desloque daque-
les que promoveram institucionalmente a tortura, as-
sassinatos, prisões arbitrárias - dentro ou fora do espa-
ço estatal -, isto é, quem é responsabilizado é um ente
abstrato, de caráter político, mas com o qual historica-
mente a sociedade não tem identificação.
Esta interpessoalidade está imbricada de tal
forma na sensibilidade para o espaço público que acaba
por se tornar uma condicionante para os processos de

 
262 Eduardo Araújo, Eduardo Bonfim, Igor Almeida & Wyllck Silva

democratização deste, e particularmente aqueles que


retomam uma história-passado: reflexo da condicio-
nante é o estranhamento do espaço público, não há
uma identidade entre o espaço público e o cidadão; a
falta de identidade aponta para uma individualização
do público, uma espécie de personalização da institui-
ção em certos agentes públicos, trazendo consigo uma
eticidade imperativa, isto é, a ética individual é im-
prescindível e de preservação superior para um Estado
eficiente no cumprimento de seus fins; logo, a anomalia
do Poder Público é essencialmente um problema ético -
de não execução devida e adequada das políticas pú-
blicas.
Essa dimensão acaba por se colocar como retóri-
ca contra movimentos institucionais de fazer a história-
passado útil para o presente, pois tal é reduzida a pro-
cessos revanchistas e de deslegitimação. O próprio ten-
cionamento para reformulação do eixo do PNDH III
referente ao Direito à Memória e à Verdade retrata isso.
O retrato memorial acima traz outra dimensão
que nos aponta56: o processo de democratização - e não
redemocratização - são os processos de construção de
uma nova institucionalidade: afastando-se daquele que
se construía sobre e sob relações interpessoais, e que
esquizofrenicamente se colocava também como ordem
institucional.
Na composição da Comissão Nacional da Ver-
dade, foi criado um eixo com relatoria de casos temáti-
cos sobre a questão agrária e toda a problemática polí-
tica em suas múltiplas dimensões, para além do insti-
tucional; é importante fazer das comissões de memória
e verdade como aquelas que conseguem produzir nas
subjetividades uma situação de conflito, de percepção
de uma condição de existência comum, pois não se re-

56 PIOVESAN, Flavia. Direito internacional dos direitos humanos e a lei de

anistia: o caso brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da FMP. N 4.


Porto Alegre. FMP. 2007. p 113.
Justiça de Transicional e a repressão no campesinato... 263

toma apenas a história de quem foi violado, mas a con-


juntura e o sentido da violação. Não é apenas o assas-
sinato de um camponês, mas de um camponês que se
associava para a garantia de direitos trabalhistas, direi-
tos da seguridade social, direito do acesso à terra; po-
rém, daqueles que se inserem em questões agrárias e
historicamente foram colocados em situação de vulne-
rabilidade, tanto por latifundiários quanto pela própria
omissão do Estado. Essa percepção não é só do sujeita-
do quanto ao passado, mas o reconhecimento dessa
identidade entre passados e presentes, para que se lo-
caliza e aja estratégica e politicamente com o outro que
compartilha a condição, redimensionando a instrumen-
talidade institucional e do direito, administrando tam-
bém sua vulnerabilidade.
O processo de autorreconhecimento não se re-
duz ao sujeitado, mas também diz respeito aos que se
inserem nas relações de poder que produzem essa su-
jeição para que seja desconstruída.
O papel que cabe agora, além de participar des-
se processo de democratização pela memória e verda-
de, é fazer com que se articule isso com políticas insti-
tucionais e políticas públicas, coordenando processos
de construção de memória social e reformulação insti-
tucional no sentido de controle e para o nunca mais,
fazendo com que se tenha uma nova sensibilidade para
a questão agrária no país, tanto para a necessidade da
reforma agrária quanto para as violências acopladas a
esses conflitos.

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Jurisdição constitucional
e estado de exceção pós-1988
A Justiça de Transição como
descontinuidade da exceção

Tayara  Talita  Lemos1  


Maria  Clara  Oliveira  Santos2  

Resumo: Diante da não efetivação de direitos e da so-


negação de tantos outros por parte do Estado, busca-se
investigar se há um contínuo e permanente estado de
exceção, escondido sob o véu da democracia legitima-
da pela representação, no Brasil atual. Assim, por meio
de uma democracia construída sobre marcos autoritá-
rios, legatários de um passado de ditaduras civis e mili-
tares, não seria possível a construção de uma democra-

1 Mestre em Direito e Doutoranda em Direito pela Universidade

Federal de Minas Gerais – UFMG (bolsista CAPES/REUNI), Graduada


em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (bolsista da FAPESP -
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), especialista
em Direito Público (Universidade de Franca). Professora de Direito
Constitucional e Introdução ao Estudo do Direito da FESP-UEMG
(Fundação de Ensino Superior de Passos- Universidade do Estado de
Minas Gerais).
2 Mestre em Direito em Direito pela Universidade Federal de Minas

Gerais – UFMG (bolsista CAPES), Graduada em Direito pela


Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professora de Direito
Administrativo , Antropologia e Direitos Culturais e Metodologia da
Pesquisa em Direito da FCJ-UEMG (Faculdade de Ciências Jurídicas
de Diamantina- Universidade do Estado de Minas Gerais).

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
272 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

cia real e concreta, senão as marcas constantes da exce-


ção. A fim de descontinuar essa política, coloca-se uma
justiça de transição que busca a reparação das exceções,
o reconhecimento dos erros históricos do passado, a
promoção de pedidos públicos de desculpas pelos
equívocos praticados; para além das interlocuções teó-
ricas que tentam, por meio do resgate da memória e do
reconhecimento, apontar para uma séria interpretação
do que a permanência do estado de exceção pode oca-
sionar em um Estado que se pretende democrático, no
que se refere à sua vida política, jurídica e social.
Palavras-chave: justiça de transição, estado de exceção,
democracia.

Résumé: Compte tenu de la non-réalisation des droits


et de l'évasion tant d'autres par l'Etat, chercher à dé-
terminer si il ya un état continu et permanent d'excep-
tion, caché la démocratie légitimée par la représenta-
tion au Brésil aujourd'hui. Ainsi, par l'intermédiaire
d'un regime démocratique construit sous autorita-
risme, légataire d'un passé de dictatures civiles et mili-
taires. ne serait pas possible de construire une démo-
cratie réelle et concrète. Pour supprimer cette politique,
une justice transitionnelle aspire à réparer les excep-
tions, reconnaissance des erreurs historiques, la promo-
tion de la demande des excuses publiques pour les er-
reurs commises, au-delà dialogues théoriques qui ten-
tent, en sauvant la mémoire et la reconnaissance, indi-
quer à une interprétation sérieuse de la permanence de
l'état d'exception peut entraîner un état qui doit être
démocratique, à l'égard de sa politique, juridique et
social.
Mots-clés: justice transitionnelle, état d'exception, dé-
mocratie.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 273

Introdução: há um Estado de Exceção


permanente?

As experiências políticas violentas e sombrias


do século XX geraram uma política de reparação, de-
senvolvida especialmente após a década de 1940, que
buscou privilegiar a centralidade do discurso dos direi-
tos humanos, internacionalmente por meio dos trata-
dos e internamente por meio das Constituições do pós-
segunda guerra. Ao lado da efetivação de direitos por
parte de diversos Estados ocidentais, caminhou o uso
da violência de maneira muitas vezes indiscriminada
ou mesmo legitimada, uma vez que proveniente de
órgãos estatais e do poder soberano, pela força de lei.3
Isso é facilmente demonstrado pelos regimes to-
talitários que se instalaram na Europa do século XX, ou
ainda pelos regimes ditatoriais que se estenderam para
além do continente europeu, em terras latinas e na
África. Valendo-nos do exemplo brasileiro, nos seus
cerca de vinte anos de ditadura civil-militar, é evidente
que, ainda hoje, convive-se com uma espécie de blo-
queio da política, entendida como espaço público de
tomada de decisões,4 e com os resquícios da ditadura.

3 Sobre o termo vide DERRIDA, Jacques. Força de lei.Trad.: Lyla

Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. E também


AGAMBEN. Giorgio. Estado de exceção. homo sacer II. Trad.: Iraci D.
Poleti Belo Horizonte: Boitempo, 2004, p. 52ss. A força de lei segue
uma tradição no direito romano e medieval e tem o sentido geral de
capacidade e eficácia de obrigar e também a impossibilidade de
anulação ou modificação da lei. Também compreende a ideia de força
de lei a possibilidade de exceder o direito sem dele sair, a vigência da
lei sem sua aplicação. Cf. TELES, Edson. Entre justiça e violência:
Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In:
SAFATLE, Vladimir, TELES, Edson (Orgs.).O que resta da ditadura?, São
Paulo: Boitempo, 2010, p. 300.
4 Vide ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo,

Rev. Adriano Correia. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. LEFORT,


Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e
liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. LINDAHL, Hans. El

 
274 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

Diante de tantos direitos sonegados, bem como


das inúmeras dificuldades de acesso aos direitos, entre
tantos outros problemas de efetivação da democracia,
há quem afirme que estamos vivendo em um contínuo
e permanente estado de exceção, escondido sob o véu
da democracia legitimada pela representação.
À suspensão dos direitos permitida pelas pró-
prias Constituições, a fim de estabelecer a ordem que
supostamente ou verdadeiramente tivera sido rompi-
da, convencionou-se chamar estado de exceção. Konrad
Hesse já enunciava:
Um estado de exceção verdadeiro ou, como hoje
soa a designação predominantemente empregada,
‘situação de emergência estatal’, nasce em todos os
perigos sérios para a existência do Estado ou a se-
gurança e ordem pública, que não podem ser eli-
minados pelos caminhos normais previstos pela
Constituição, senão cujo rechaço ou eliminação
somente com meios excepcionais é possível.5

A excepcionalidade e finalidade da declaração


de um estado de exceção mostram-se evidentes não
apenas em Hesse, mas em tantos outros constituciona-
listas contemporâneos, entre os quais, vale citar Canoti-
lho. O autor português elabora um rol de possibilida-
des e restrições para a declaração do estado de exceção,
denominando-o como estado de necessidade constitucio-
nal, englobando aí os estados de sítio e de emergência,
tal como faz a Constituição Brasileira de 1988.6 Além de
prever as medidas adequadas para o que chama de

pueblo soberano: el régimen simbólico del poder político en la


democracia. In: Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), n. 94, pp.
47-72, 1996.
5 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal

da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio


Fabris Editor, 1998, p. 526.
6 A previsão se dá na Constituição portuguesa de 1976, no art. 19 e na

brasileira nos arts. 136 e 137.


Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 275

restabelecimento da normalidade constitucional, inclu-


indo a forma e o conteúdo, exige que tais medidas não
firam a proibição do excesso. Assim, para o autor, de-
veria haver a proibição absoluta da suspensão de al-
guns direitos – os diktaturfeste Grundrechte, ou direitos
fundamentais garantidos ou firmados contra a ditadu-
ra, ou ainda os direitos invioláveis – a especificação dos
direitos restringidos e a temporalidade mínina da du-
ração da medida, em no máximo 15 dias renováveis
por mais 15.7
Entretanto, a maneira como o estado de exceção
vem se apresentando atualmente não corresponde fi-
elmente aos pressupostos imaginados pela teoria clás-
sica do Estado e da Constituição, nem pela maioria das
Constituições atuais. Convive-se – e o Brasil é um
exemplo claro do que se afirma – com uma violência
(real ou simbólica) legitimada pelo Poder Executivo,
com uma desagregação normativa, gerada pela não-
aplicação de dispositivos legais por parte do Poder Ju-
diciário, mesmo quando tais dispositivos são necessá-
rios para levar os direitos a sério e com o conseqüente
ativismo judicial   8. Além disso, nas esferas legislativas,
percebe-se cada vez mais a invasão de interesses pri-
vados em um espaço que, por essência, é eminente-
mente público. O Direito toma um lugar simbólico,
sagrado e inatingível ou quando alcançável, é fragili-
zado e fragmentado.

7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed.

Coimbra: Almedina, 2004, p. 1105-1106.


8 Sobre a importante questão do papel do Judiciário e seus limites vide

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 3.ed. São Paulo,


Martins Fontes, 2010. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São
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276 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

O grande paradigma utilizado pelos autores que


estudaram ou estudam o estado de exceção é a Consti-
tuição de Weimar de 1919, seja no que diz respeito a
esse seu conceito tradicional apresentado ou ainda no
que se refere à concepção atualmente discutida, e que
aqui mais ainda nos interessa: a afirmação da existência
de um estado de exceção permanente e não declarado.
A teoria do estado de exceção de Carl Schmitt9
tem muito a dizer sobre sua origem e significado, bem
como sobre de que maneira o soberano e o Direito fo-
ram elevados à categoria de mitos e passaram a ser
considerados sagrados. Walter Benjamin10, contra Sch-
mitt, afirma a necessidade de profanação11 do Direito e
de destruição do estado de exceção, que é regra, bem
como da violência que o acompanha, por meio de ou-
tro tipo de violência, a violência pura e sem finalidade.
Giorgio Agamben12, atualmente, ao encontro do que

9 SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo


Horizonte: Del Rey, 2006.
10 BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Org.,

apresentação e notas Jeanne Marie Gagnebin. Trad. Susana Kampff


Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: O anjo da história.
Trad.: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
11 O conceito de profanação remete-nos à obra de Walter Benjamin,

apropriada por Agamben, que retoma o sentido do Direito Romano,


segundo o qual aquilo que havia sido separado na esfera do religioso e
sagrado, era restituído ao uso livre e comum do homem. Segundo
Agamben “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma
especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela
um uso particular.” In: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de
Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 65.
12 Apesar das muitas críticas feitas à desconstrução propostas por

Agamben promove uma séria investigação acerca do estado de


exceção no mundo atual em seu projeto homo sacer, já composto por
sete obras: Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2.ed. Trad.
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Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 277

Benjamin constrói, tem investigado a fundo a exceção,


a biopolítica (antes enunciada por Michel Foucault), o
totalitarismo a ela vinculado e a condição de homo sa-
cer13 a que o ser humano é submetido, pelo soberano,
no estado de exceção permanente em que vivemos.
Agamben teoriza, partindo principalmente das análises
de Foucault14 sobre a biopolítica, aliando-as aos estudos
sobre o totalitarismo, de Hannah Arendt.15
A partir do reconhecimento de que há perma-
nência da exceção no Estado Democrático de Direito,
ainda que não se manifeste a todo instante, a democra-
cia instituída deve confrontar-se com o significado ju-
rídico de uma esfera pública de ação que deve ser am-
pliada e desbloqueada. Mas mais que isso, a prática da
democracia deve reconhecer que há problemas no
constitucionalismo que se é praticado, em inúmeras
esferas, o que pode ser demonstrado a partir da per-
cepção de quão distante está a ordem jurídica do ser
vivente.

genealogia teológica da economia e do governo (homo sacer II, 2).


Trad.: Selvino Assman. São Paulo: Boitempo, 2011. O sacramento da
linguagem:arqueologia do juramento (homo sacer II,3). Trad.: Selvino
Assman. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. Opus Dei: archeologia
dell’ufficio, 2012 (sem tradução para o português). Medios sin fin: notas
sobre la politica. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Madrid: Pre-
Textos, 2010 (sem tradução para o português).
13 Homo sacer é a figura do Direito Romano apropriada por Agamben

para se referir ao indivíduo que vive na zona de indistinção entre o


fato e o direito, que é colocada para fora da jurisdição humana sem
ultrapassar para a divina. É aquela que não pode ser imolado, mas que
não merece viver, aquele a quem se deve ser indiferente. Vide:
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, cit., p. 84
ss.
14 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica.Trad.: Eduardo

Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.


15 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad.: Robert Raposo.

São Paulo: Cia das Letras, 1989.


278 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

Giorgio Agamben percebe essa continuidade do


estado de exceção das democracias atuais e sinaliza
para o problema:
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse
sentido, como a instauração, através do estado de
exceção, de uma guerra civil legal que permite a
eliminação física não só dos adversários políticos,
mas também de categorias inteiras de cidadãos
que, por qualquer razão, pareçam não integráveis
ao sistema político. Desde então, a criação voluntá-
ria de um estado de emergência permanente (ain-
da que, eventualmente, não declarado em sentido
técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos
Estados contemporâneos, inclusive dos que são
chamados democráticos.16

A exceção, declarada ou velada, não é apenas


perniciosa para o desenvolvimento de qualquer espécie
de movimento democrático, seja ele em direção às ins-
tâncias de poder institucionalizadas, ou do tipo que
brota espontaneamente no seio das comunidades. É, na
verdade, um impeditivo da institucionalização da de-
mocracia por completo, um esvaziamento do político
propriamente dito, um incentivo a simulacros de de-
mocracia popular, com escassos mecanismos de parti-
cipação. Entretanto, com tal afirmação não se quer di-
zer que a democracia é inexistente, pois, sem espera,
ela muitas vezes irrompe a exceção, que embora per-
manente, não se manifesta em todos os instantes, e ins-
taura, por meio das várias formas de tomada do espaço
público, a ação comunicativa, visando reconstruir os
direitos humanos.17
Ainda assim (e mesmo com essas esparsas ma-
nifestações que nadam contra a maré de ilegitimidades,

16 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, cit., p. 12-13


17 HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política.
Trad.: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002,
p.153 ss.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 279

ou talvez exatamente por elas e em nome delas), há que


se entender o fenômeno do estado de exceção que se
perpetua nos Estados Democráticos ocidentais, res-
guardados pela suposta legitimidade de uma democra-
cia. É a exceção que se esconde na previsão constituci-
onal, tal como aconteceu em Weimar, ou ainda, que se
esconde na previsão densa de direitos, que podem
nunca ser efetivados.
Nesse contexto, localiza-se o óbvio problema da
transição brasileira – e de uma justiça de transição – de
um regime autoritário, herdeiro de toda a tradição de
exceções do mundo ocidental do século XX, para um
regime democrático, pós Constituição de 1988 e os res-
quícios da ditadura não são poucos na paradoxal tradi-
ção política brasileira.

1. O Estado de Exceção na história do Século XX

Mas afinal o que seria essa exceção? Seria qual-


quer arbitrariedade do Estado e dos poderes públicos?
Poderíamos transportá-lo para países que não viveram
regimes totalitários, tais como os da América latina?
O estado de exceção é tema que ganha relevo
após a primeira guerra mundial, quando a Alemanha
encontrava-se submetida ao Tratado de Versalhes, de-
vendo fazer reparações a diversas nações em decorrên-
cia da responsabilidade assumida no pacto. Sua situa-
ção econômica não era das mais prósperas. Apesar de a
Constituição então em vigor (Constituição de Weimar)
ter sido modelo de consagração de direitos fundamen-
tais desde então e ainda ter sido estudada no âmbito da
internacionalização de direitos humanos (e o é até os
dias de hoje), esses direitos não eram efetivados. Havia
a previsão de amplo rol de direitos individuais e soci-
ais, entretanto faltavam mecanismos suficientes de efe-

 
280 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

tivação.18 O fenômeno se agravara com a quebra da


bolsa de valores de Nova York em 1929, o que contri-
buiu para que o presidente, Paul von Hindenburg, se
valesse da previsão do art. 48 da Constituição de Wei-
mar e nomeasse Adolf Hitler como Chanceler19.
O art. 4820 contemplava a suspensão do sistema
de direitos fundamentais previstos constitucionalmen-

18 Alexandre Franco de Sá afirma, além disso, que essa Constituição

inaugura o Estado liberal de Direito, com extensa enumeração de


direitos individuais, além de consagrar o indivíduo como cidadão ao
assinalar o povo como origem de toda a potência estatal (art.1º). SÁ,
Alexandre Franco de. O poder pelo poder: ficção e ordem no combate de
Carl Schmitt em torno do poder. Lisboa: Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, 2009, p. 268.
19 Sá explica, com base em Schmitt, que a Constituição de Weimar, por

prever a figura do Presidente e do Chanceler (dois líderes políticos),


legalizaria facilmente um golpe de Estado, caso ambos estivessem de
acordo. Para Schmitt, numa situação como essa,“surge uma
concentração política de poder como quase não seria possível numa
monarquia constitucional, surge uma ditadura conforme à
constituição.” SCHMITT, Carl apud SÁ, Alexandre Franco de. O poder
pelo poder, cit.,p. 274. Em 1930, foi necessária a edição de uma lei que
regulamentasse as relações jurídicas entre o Chanceler, os Ministros e
Presidente do Reich. A lei representou um fortalecimento do
presidencialismo e um enfraquecimento do parlamento, que já passara
por um processo de degenerescência, tendo sido transformados em
palcos de lutas partidárias e de manipulação de massas, ao invés de
fóruns de discussão pública, como assinala Franco de Sá, em leitura a
Carl Schmitt. Além disso, o autor afirma que, naquele contexto, um
presidente eleito por todo o povo teria mais autoridade do que um
parlamento eleito pelo mesmo povo, já que no presidente une-se a
confiança do povo numa única pessoa, enquanto no parlamento ela
estaria dividida em diversos parlamentares. (SÁ, Alexandre Franco de.
O poder pelo poder, cit., p.276-277).
20 Art. 48: Se um país não cumpre os deveres que lhe impõe a

Constituição ou as leis do Reich, o seu presidente poderá lhes obrigar,


com a ajuda das forças armadas.
§1ºQuando se tenha alterado gravemente ou estiverem em perigo a
seguridade e a ordem públicas no Reich, o presidente pode adotar as
medidas indispensáveis para seu restabelecimento, incluindo, se
necessário, a ajuda das forças armadas.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 281

te, a fim de resguardar a ordem. Desse modo, o presi-


dente do Reich poderia se valer das forças armadas pa-
ra obrigar os estados alemães ao cumprimento de seus
deveres e colocar fora de vigor, parcial ou inteiramente,
os direitos fundamentais, em especial as várias espécies
de liberdade. Embora o Reichstag pudesse exigir a sus-
pensão das medidas de exceção tomadas pelo presi-
dente, este detinha sempre a possibilidade de dissolver
o parlamento.21 O mencionado dispositivo foi utilizado
mais de 250 vezes durante os mais de 12 anos da Re-
pública de Weimar, o que foi um passo decisivo rumo
ao totalitarismo que se instalava e a todas as suas atro-
zes conseqüências.
Carl Schmitt, um dos teóricos que mais traba-
lhou e defendeu o estado de exceção vincula-o necessa-
riamente ao soberano e inicia o seu Teologia Política,
ressaltando que “soberano é quem decide sobre o esta-
do de exceção.”22 Desse modo, Schmitt encaminha seus
apontamentos para a função indispensável da sobera-
nia em firmar a ordem e para a relação indissociável
entre soberano e exceção. Afirma também o autor que
“o soberano se coloca fora da ordem jurídica normal-
mente vigente, porém a ela pertence, pois ele é compe-

§2º Para este fim, pode suspender temporariamente, no todo ou em


parte, os direitos fundamentais fixados nos artigos 114, 115, 117, 118,
123, 124 e 153
§3º O Presidente do Reich dará conhecimento imediatamente ao
Reichstag de todas as medidas que adotar com base nos parágrafos 1º
e 2º deste artigo. As medidas devem ser suspensas imediatamente se o
Reichstag assim o demandar.
§4º Se houver perigo iminente, o governo do Estado poderá aplicar
provisoriamente em seu território, as medidas expressas no parágrafo
2º deste artigo.Essas medidas devem ser suspensas se assim o exigir o
Presidente do Reich ou o Reichstag . Mais detalhes serão regulados
pela lei do Reich.
21 SÁ, Alexandre Franco de. O poder pelo poder, cit.,p.279-280.

22SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo


Horizonte: Del Rey, 2006, p.8.
282 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

tente para a decisão sobre se a Constituição pode ser


suspensa in toto.”23
Segundo Gilberto Bercovici, “a necessidade do
soberano era por ele [Schmitt] interpretada na inafasta-
bilidade da exceção, na normalidade da exceção,”24
sendo a soberania referente à própria origem do direito
e não ao seu término, como talvez pudesse sugerir a
suspensão da ordem jurídica. Nessa linha, prossegue
Bercovici em sua leitura schmittiana, elucidando que o
ordenamento fica à disposição do soberano:
A soberania é a afirmação da ordem e, ao mesmo
tempo, a sua negação. Isto significa dizer que o or-
denamento está à disposição de quem decide. O
soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do
ordenamento jurídico, pois ao utilizar o seu poder
de suspender a validade do direito, coloca-se le-
galmente fora da lei. O estado de exceção se justifi-
ca pela situação de ameaça à unidade política, por-
tanto, não pode ser limitado, a não ser que esta
unidade deixe de existir. A exceção não poderia se
manifestar no limite do direito, pois só ela, exce-
ção, permite, para Schmitt, que se chegue à essên-
cia do direito.25

Dessa maneira, fica demonstrado como, para


Schmitt, a exceção deveria se manifestar em ilimitação
do poder a fim de se chegar à essência do direito, à
normatividade e ao fundamento da ordem jurídica.
Para ele, a tentativa do direito em descrever ao máximo
e pormenorizadamente o estado de exceção e como ele

24 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente.

atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 65.


25 BERCOVICI, Gilberto. O Estado de Exceção Econômico e a Periferia

do capitalismo. E-premissas: Revista de Estudos Estratégicos, n.2,. jan/jun


2007, p 61-69.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 283

se daria seria somente uma tentativa de descrever o


caso em que o direito suspende a si mesmo.26
O soberano seria aquele que se identifica com
Deus, que, na realidade terrena, age de modo incontes-
tável e que na modernidade ocupa o lugar em que na
Idade Média ocupava o Deus da religião.27 Por decor-
rência, emerge o papel simbólico do soberano e a im-
portância de, por meio do estudo do conceito de sím-
bolo, investigar as continuidades e descontinuidades
da transição do significado do poder político (e da juri-
dicidade que o evoca) na Idade Média até a contempo-
raneidade. Isso tudo sem desprezar o papel da moder-
nidade, mas analisando de modo a relativizar, com
Hans Lindhal e Claude Lefort, a sua autodescrição en-
quanto começo absoluto e incondicionado.
Com elaborações sobre a exceção, mas em senti-
do oposto ao de Schmitt, pronuncia-se Walter Benja-
min, partindo da Gewalt, a violência (violência-como-
poder), que tem caráter conservador, de poder legítimo
e é sacralizado por Schmitt (que a entende enquanto
poder-como-violência). Benjamin profana o termo e o
coloca no uso comum.28 Assim, nota que, por mais que
o Direito se coloque fora da violência, isento e apartado

26 SCHMITT, Carl. Teologia Política, cit., p.14.


27 LINDAHL, Hans. El pueblo soberano,cit..
28 BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: Escritos sobre
mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011. Walter
Benjamin possui bases sólidas acerca da violência e da própria exceção
que ela ronda no pensamento de Georges Sorel. Para um
aprofundamento vide: SOREL,Georges. Reflexões sobre a violência.
Petrópolis: Vozes, 1993. O texto Para uma crítica da violência, não trata
de um ensaio pacifista, mas de uma abordagem acerca dos limites da
Gewalt e acerca da oposição entre o “poder-como-violência”, do
Direito e do Estado, e a “violência-como-poder, da greve
revolucionária.” (Vide segunda nota de rodapé do editor da obra
citada).

 
284 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

dela, ele apenas se coloca e obriga, por meio dela, o que


demonstra a violência como fim na obra do autor.29
No texto em que Benjamin elabora dezoito teses
sobre o conceito da história, o autor esboça a ideia de es-
tado de exceção permanente, como regra, e sobre como
seria possível combatê-lo:
A tradição dos oprimidos ensina-nos que o "estado
de exceção" em que vivemos é a regra. Temos de
chegar a um conceito de história que corresponda
a essa ideia. Só então, se perfilará diante dos nos-
sos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de
provocar um verdadeiro estado de exceção; e, as-
sim, a nossa posição na luta contra o fascismo me-
lhorará. A hipótese de ele se afirmar reside em
grande parte no fato de seus opositores o verem
como uma norma histórica, em nome do progres-
so. O espanto por as coisas a que assistimos “ain-
da” poderem ser assim no século vinte não é um
espanto filosófico. Ele não está no início de um
processo de conhecimento, a não ser o de que a
ideia de história de onde provém não é sustentá-
vel.30

Teria Benjamin sugerido que para combater o


fascismo e os totalitarismos seria preciso instaurar um
verdadeiro estado de exceção? Ao apontar a violência
enquanto possuidora de fins, estaria ele propondo ou-
tra violência, a violência sem fins, a violência dita pura,
a única que conseguiria combater o estado de exceção
com propriedade. A proposta desconstrutiva de Ben-
jamin, em ver a violência como esfera mediatizante
para compor o Direito, impõe a ideia de que se o Esta-
do monopoliza a violência, pela via do Direito, os mo-
vimentos que combatem essa violência precisam estar

29 BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência, cit., p. 122.


30BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: O anjo da história.
Trad.: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p.13.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 285

fora do Direito, precisam ser ilegais. Essa instauração


da violência pura abriria caminhos.
Numa linha muito semelhante à de Benjamin,
contemporaneamente, Giorgio Agamben se debruça
sobre o estudo acerca do estado de exceção. Para o au-
tor, estado de exceção é “a resposta imediata do poder
estatal aos conflitos internos mais extremos.”31 “O esta-
do de exceção não é um direito especial (como o direito
da guerra), mas enquanto suspensão da própria ordem
jurídica, define seu patamar ou seu conceito-limite.”32
Ainda completa:
A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um ca-
so singular, que é excluído da norma geral. Mas o
que caracteriza propriamente a exceção é que aqui-
lo que é excluído não está, por causa disto, absolu-
tamente fora da relação com a norma; a contrário,
esta se mantém em relação com aquela na forma
da suspensão. A norma se aplica à exceção desa-
plicando-se, retirando-se desta. O estado de exce-
ção não é, portanto, o caos que precede à ordem,
mas a situação que resulta da sua suspensão.33

Intenta a exceção fazer com que o soberano pos-


sa decidir não apenas entre lícito e ilícito, mas a impli-
cação originária do ser vivente na esfera do Direito,
decidir quem pode viver e quem pode morrer, ou qual
vida é indiferente (vida nua, homo sacer).34 A partir da
constatação da existência da exceção como regra, tam-
bém se pode concluir que entre bios, um modo de ser
próprio de cada indivíduo e zoé, a vida que é comum a

31 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.


p.12
32 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, cit., p.15.

33 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2.ed.

Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p.24.


34 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, cit., p.32.

 
286 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

todos os seres vivos,35 direito e fato há uma zona de


indistinção, de modo que a exceção pode ser perpetua-
da.
Foi o que ocorreu com o totalitarismo e também
o que continua nos estados de exceção que persistem
no interior das democracias atuais. O ser vivente, nessa
zona de indistinção, permanece incluído, mas como
elemento a ser descartado, completamente incapacita-
do para a ação política ou mesmo inapto para si, en-
quanto indivíduo. Zoé e bios já não se distinguem, direi-
to e fato são uma e mesma coisa.36 Materializa-se a bio-
política.
O termo biopolítica – embora venha sendo em-
pregado com significados diversos e em diferentes
áreas do conhecimento–, na obra de Michel Foucault,
importa em governar o conjunto dos viventes constitu-
ídos em população; em outras palavras, constitui-se no
poder que se concentra na figura do Estado ao admi-
nistrar a vida e o corpo da população. Pode ser enten-
dido enquanto exercício do poder estatal, como fenô-
meno global e transnacional, que investe na multiplica-

35 Agamben muito bem explica a diferença entre zoé e bios:“Os gregos

não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos


dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e
morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum:
zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres
vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou
maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. Quando
Platão, no Filebo, menciona três gêneros de vida e Aristóteles, na
Ethica nicomachea, distingue a vida contemplativa do filósofo (bíos
theoreticós) da vida de prazer (bíos apolausticós) e da vida política
(bíos politicós), eles jamais poderiam ter empregado o termo zoé, (que,
significativamente, em grego, carece de plural) pelo simples fato de
que para ambos não estava em questão de modo algum a simples vida
natural, mas uma vida qualificada, um modo particular de vida.”
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, cit.,p.9.
36 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer, cit., p.17.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 287

ção da vida, aniquilando-a.37 Embora tardiamente, a


biopolítica foucaultiana “tornou-se uma importante
ferramenta conceitual para compreendermos e diag-
nosticarmos as crises políticas do presente”38 Se a
abrangente constatação de Foucault na década de 1970
foi inovadora, pois permitiu avaliar criticamente o ge-
renciamento padronizado que o Estado pretendia fazer
com a vida da população, agora, essa constatação per-
mite ao século XXI compreender as tentativas de gestão
da vida do corpo social por parte do poder instituído e
por parte do que Foucault chama de mercado.39 Seria
ele também uma parte difusa do novo soberano?40
O diagnóstico feito por Foucault, em relação ao
biopoder e à biopolítica do século XX, partindo de um
percurso histórico que se inicia no fim do século XVIII,
permite-nos compreender o deslocamento do poder
soberano em gerir a vida. Dessa maneira, é possível
compreender o saneamento realizado pelos regimes po-
líticos do século XX, no sentido de purificar raças, de-
purar as doenças da população. Inicia-se, então, a indi-
ferenciação entre gerir /incrementar a vida e matar a
vida, a fim de protegê-la (uma violência com finalida-
de, para estabelecer o elo com Benjamin). Descreve
Foucault:
As guerras já não se travam em nome do soberano
a ser defendido; travam-se em nome da existência
de todos; populações inteiras são levadas à des-
truição mútua em nome da necessidade de viver.
Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores
da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça

37 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica.Trad.: Eduardo


Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
38 DUARTE, André. Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI. Revista

Cinética, ensaios críticos. p.1.


39 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica,cit.,, p. 397 ss.

40 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente, cit.

51 ss, 61 ss.

 
288 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

que tantos regimes puderam travar tantas guerras,


causando a morte de tantos homens. E, por uma
reviravolta que permite fechar o círculo, quanto
mais a tecnologia das guerras voltou-se para a des-
truição exaustiva, tanto mais decisões que as inici-
am e encerram se ordenaram em função da ques-
tão nua e Crua da sobrevivência. (...) Se o genocí-
dio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não
é por uma volta, atualmente, ao velho direito de
matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao
nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos
maciços da população.41

Assim, o autor explica ainda que “São mortos


legitimamente aqueles que constituem uma espécie de
perigo biológico para os outros”42 O direito de matar
em nome da preservação da vida e de sua purificação
pertence ao soberano, que pode, além disso, transfor-
mar determinados grupos em inimigos, momento em
que passam a ser considerados entidades biológicas. A
biopolítica transforma-se em tanatopolítica e o sobera-
no, seja quem quer que seja, tem o direito sobre a vida
e a morte.
Giorgio Agamben apropria-se do termo para
traçar sua teoria do estado de exceção, no projeto homo
sacer. Mas além de se aprofundar nas teorias de Fou-
cault acerca da bio/tanatopolítica, o italiano alia tais
teorias ao totalitarismo investigado por Hannah
Arendt.
Segundo a autora o ser vivente está incluído no
ordenamento como elemento a ser descartado, já que
deixa de gozar de qualquer capacidade para a ação
política. Aos poucos, o ser vivente é incorporado à so-
ciedade de massas, que no pensamento de Hannah

41 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, A Vontade de Saber, v.1.

13. ed. Trad.: Maria Thereza Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições


Graal, 1988, p. 129.
42 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, A Vontade de Saber, cit.,

p. 129.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 289

Arendt, é um conjunto de pessoas que não se une por


interesses ou objetivos comuns, pessoas que são inca-
pazes de fazer política, de agir concertadamente (ação em
concerto). Elas permanecem agregadas por alguma es-
pécie de sentimento ou intenção que foge às aspirações
comuns, à capacidade de agir e de fazer política. Desse
tipo de sociedade não há como esperar que haja gera-
ção de poder, já que este apenas acontece quando há
ação. Não há também a característica da pluralidade.
Embora a massa seja formada por muitos, a
quantidade numérica distancia-se do que Arendt cha-
ma de pluralidade, já que esta é uma união de interes-
ses comuns e de ação em concerto. Ao explicar a socie-
dade de massas, Arendt assim define o termo: “pessoas
que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua
indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem
integrar numa organização baseada no interesse co-
mum, seja partido político, organização profissional ou
sindicato de trabalhadores.”43
Um sistema totalitário, despótico, absolutista ou
tirano subtrai a capacidade da pluralidade e da multi-
plicidade, aniquila, juntamente com isso, a individuali-
dade da vida contemplativa. A liberdade se insere nes-
se contexto como causadora de rupturas nesses siste-
mas, com a capacidade de desmantelar a redução pro-
vocada por eles. Os governos totalitários e absolutos,
em sua tentativa de segregar o homem, impondo-lhe a
desolação e o isolamento, podem ser considerados uma
ficção44, uma abstração tendente a ruir, já que, nessa
tentativa, reificam qualquer espécie de liberdade e se
absolutiza o poder, que só se dá na partilha com os
outros.
Os regimes totalitários valeram-se da supressão
da liberdade por meio da desolação e do isolamento, a

43 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, cit., 1989, p. 361.


44 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, cit., p. 519.
290 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

fim de impedir que qualquer indivíduo pudesse gozar


minimamente do espaço público ou pudesse desfrutar
da menor porção do que chamamos pluralidade. A
ação comunicativa extirpa qualquer possibilidade, por
mais ínfima que seja, de liberdade e inaugura o gover-
no burocrático e o automatismo, que corroboram ainda
mais para o triunfo de um governo totalitário e para a
extinção de direitos. Segundo a autora, “já se observou
muitas vezes que o terror só pode reinar absolutamente
sobre homens que se isolam uns contra os outros que,
portanto, uma das preocupações fundamentais de todo
governo tirânico é provocar esse isolamento.”45
Diante da genealogia do totalitarismo, aliada à
biopolítica e projetada na atualidade por Agamben na
construção da ideia do estado de exceção permanente,
já enunciado antes por Benjamin, percebe-se que há
uma extensão desse estado de exceção para os países
que passaram por regimes ditatoriais, tais como o Bra-
sil. Como já demonstrado, essa exceção se manifesta
em uma infinidade de instituições e relações político-
jurídicas que, legatárias do autoritarismo, não conse-
guiram se democratizar adequadamente. As democra-
cias construídas a partir do fim oficial dos regimes au-
toritários não foram totalmente bem sucedidas na cons-
trução de instituições mais participativas e mais isentas
e imparciais, ou ainda na promoção de instâncias mais
transparentes e menos burocratizadas. Tudo isso a ge-
rar certa instabilidade e abrir caminho certo a exceções
dentro de um regime democrático. Seria mais uma vez
o estado de exceção mostrando sua perenidade na tra-
jetória da história do Ocidente.

45 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, cit., p.526.


Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 291

2. Estado de Exceção no Brasil Pós-1988 e Justiça


de Transição como descontinuidade da exceção

Diante desse panorama de certo modo pessimis-


ta de inviabilidade de instituição da democracia con-
cretamente, pergunta-se se algo poderia romper essa
fatalidade anunciada no sistema democrático brasilei-
ro.
Não há dúvida de que a afirmação de Benjamin
acerca do estado de exceção como regra é atual e a cada
instante se renova. Entretanto, diante (e dentro) de um
Estado Democrático de Direito legitimado pelas vias
representativas, o desafio fundamental da comunitas é
encontrar alternativas, dentro do próprio Direito, para
essa violência, para o mito, para o símbolo e para o
papel simbólico do Estado. A incomensurabilidade do
Direito, a sensação que recorrentemente toma o indiví-
duo de se estar diante da lei46, impõe a necessidade de
trazer o Direito para a esfera do comum, para a esfera
pública de tomada de decisões.
Benjamin inicialmente teria sugerido o combate
ao estado de exceção pela via da violência pura , mas o
que se pretende é defender, em sentido oposto, a ne-
cessidade de conduzir o Direito para o centro da esfera
pública e, por meio da argumentação, da discursivida-
de, criar mecanismos de efetivação e de proteção aos
direitos humanos, apontando, inclusive, o que seriam
esses direitos, uma vez que eles não podem ser qual-
quer coisa e nem uma coisa a cada momento. Ao lado
dessa tarefa, impõe-se às democracias atuais – que sur-
gem como herdeiras de regimes autoritários e totalitá-
rios – o dever de memória e justiça.

46 Franz Kafka trata da figura de um camponês que se depara com a

porta da lei, pela qual o acesso não é possível ou, ao menos, não lhe
parece possível, dado o universo simbólico que revolve a situação.
KAFKA, Franz. Diante da lei. In: Um médico rural. Trad. Modesto
Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 27-29.
292 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

Nos países da America Latina que vivenciaram


ditaduras no século XX, ou na África do apartheid, ou
ainda nos países que sofreram os regimes totalitários
europeus, o Estado, em suas três esferas de poder, pre-
cisa contemplar uma justiça de transição que refaça por
meio do resgate da memória, um caminho de recons-
trução dos direitos perdidos e esquecidos.
A continuidade do autoritarismo nas relações
formalmente democráticas impõe um sério questiona-
mento sobre o nível de democraticidade ou a sua au-
sência nessas relações. É primordial lembrar para esque-
cer: promover a política da justa memória das exceções
é fazer com que elas sejam esquecidas, sem que sejam
apagadas; lembradas, para que não sejam repetidas.
Percebemos que a transição realizada até então
no Brasil foi negociada.47 Edson Teles a denomina de
transição do consenso48 e chama a nossa democracia de
exceção democrática49, para levar ao extremo a tradição
de esquecimento cultivada pelas instâncias políticas
brasileiras. Percebemos que a criação de uma Comissão
da Verdade, ao lado da proposição de ações visando
desvelar os mitos, tenta romper com essa tradição e
pode ser considerada, até mesmo, um começo do que
se pretende criar como justiça de transição.
Entretanto ainda vivemos um “sintoma discreto
de uma profunda tendência totalitária da qual nossa
sociedade nunca conseguiu se livrar – a verdadeira
causa do caráter deformado e bloqueado de nossa de-

47 Para Vladimir Safatle o Brasil teria realizado a pior das profecias dos
carrascos nazistas: “a profecia da violência sem trauma.   47 SAFATLE,
Vladimir. Do uso da violência contra o estado ilegal. In: TELES, Edson,
SAFATLE, Vadimir. (Orgs.). O que resta da ditadura? São Paulo:
Boitempo, 2010, p.240
48 TELES. Edson. Entre justiça e violência: Estado de exceção nas

democracias do Brasil e da África do Sul. In: SAFATLE, Vladimir,


TELES, Edson (Orgs.).O que resta da ditadura?, cit., p. 307.
49 TELES. Edson. Entre justiça e violência, cit., p.315.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 293

mocracia.”50 Por mais extremista que possa parecer o


argumento, não é outra coisa que se vê quando se ob-
serva o bloqueio da democracia participativa, os sím-
bolos que revestem o Direito e a política, tornando-os
inacessíveis, a arbitrariedade e a ausência de limites às
três esferas de poder.
Por meio dessas esferas, legitimadas democrati-
camente, há que se estimular uma justiça de transição
eficaz: a efetivação de direitos fundamentais vertical e
horizontalmente, políticas públicas que ultrapassem o
discurso demagógico, além de debates nas casas legis-
lativas que combatam a mitigação do espaço público-
político, ampliando as instâncias de democracia parti-
cipativa.
A memória da violência precisa ser levada em
conta na construção de uma nova democracia e na re-
construção de direitos perdidos, para que seja possível
assumir o compromisso de responder aos atos de vio-
lência e exceção dos dias atuais. “Resta algo da ditadu-
ra em nossa democracia que surge na forma do estado
de exceção e expõe uma indistinção entre o democráti-
co e o autoritário no Estado de direito.”51 Se se acredita
na democracia por vir, há que se promover a retomada
do espaço público esquecido e a reconstrução dos direi-
tos humanos em seu centro. Tal tarefa pode e deve ser
desenvolvida a fim de se construir uma democracia
ainda não efetivada, embora pensada e idealizada pela
Constituição de 1988, a partir da realidade de exceções
que se deu até então. A partir do reconhecimento e da
memória do passado de terror, buscando reparações,
construindo políticas de restituição da verdade, por
meio de uma justiça de transição eficaz, sem deixar de

50 SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o estado ilegal, cit.,

p.240.
51 TELES. Edson. Entre justiça e violência: Estado de exceção nas

democracias do Brasil e da África do Sul. In: SAFATLE, Vladimir,


TELES, Edson (Orgs.).O que resta da ditadura?, cit., p. 316.
294 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

revolver a questão do estado de exceção, pode descon-


tinuar essa política até então elaborada.
Os debates em torno do estado de exceção e dos
efeitos das experiências políticas do século XX, no
mundo ocidental em particular, constituem hoje uma
das questões mais pertinentes e de maior impacto no
Direito e na política. Por um lado, isso se deve às inú-
meras discussões em sede de Jurisdição Constitucional
a fim de reparar os erros históricos de um passado de
contínuas exceções – discussões que se refletem no que
se denomina justiça de transição – e promover pedidos
públicos de desculpas pelos equívocos praticados; por
outro, tais debates são motivados pelas interlocuções
teóricas que tentam, por meio do resgate da memória e
do reconhecimento, apontar para uma séria interpreta-
ção do que a permanência do estado de exceção pode
ocasionar em um Estado que se pretende democrático,
no que se refere à sua vida política, jurídica e social.
Nesse contexto, não se pode desprezar o papel
das variadas interpretações de uma justiça de transição
interessada em reparar os erros desse passado de vio-
lências ou em (re)construir os direitos humanos, pela
via da argumentação e do discurso públicos, além de
deliberar o que pode e deve ser desculpado. Entende-
se, para tanto, o significado de justiça de transição ao
lado de Paulo Abrão e Marcelo Torelly, que a definem
como uma
promoção da reparação às vítimas; fornecimento
da verdade e construção da memória; regulariza-
ção das funções da justiça e restabelecimento da
igualdade perante a lei e, por fim, reforma das ins-
tituições perpetradoras de violações contra
os direitos humanos – de modo a verificar como
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 295

tais dimensões constituem-se em verdadeiras


obrigações jurídicas no sistema de direitos pátrio.52

Portanto, por justiça de transição ou transicional


entende-se um conjunto de abordagens judiciais ou
políticas, consagrado na comunidade internacional na
década de 1980, que visa atender a necessidade de re-
paração das vítimas e dos acontecimentos de regimes
totalitários ou ditatoriais, exigindo efetividade de direi-
tos humanos em momento de passagem desses regimes
para regimes democráticos, a curto e longo prazo, des-
construindo o paradigma de negação do Estado repres-
sivo, que se preocupava em fazer desaparecer a histó-
ria.
Também está compreendido nesse conceito o
resgate da memória e da história, o reconhecimento das
técnicas atrozes praticadas e a busca de mecanismos
institucionais de reparação, compreendendo por meca-
nismos institucionais aqueles provenientes do Estado e
os não estatais, uma vez que esse resgate se dá no inte-
rior de uma democracia em construção, que se consti-
tui no espaço entre os homens, no diálogo, na partilha,
no discurso, nos debates. Romper com a ideia de cul-
pabilização coletiva e responsabilizar os verdadeiros
culpados faz parte do resgate da memória e da neces-
sidade de relembrar para reparar, quebrar o silêncio e a
ideologização de perdão coletivo e de pacificidade do
povo demonstram que construir a democracia depende
da afirmação do não dito e é mais que meramente so-
breviver.
Nesse contexto, inserem-se as Comissões da
Verdade na América Latina – na Argentina em 1983 e
no Chile em 1990 –, imediatamente após a queda dos
regimes ditatoriais. Apesar de não terem atingido to-

52 ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo. Justiça de transição no Brasil: a

dimensão da reparação. In: Revista Anistia, Política e Justiça de Transição.


n.3. jan/jun/2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010.
296 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

dos os objetivos nos primeiros anos de instalação, as


primeiras Comissões visavam estabelecer uma jurisdi-
ção eficaz contra os crimes cometidos durante o regime
e políticas de reparação, através de ações penais, inde-
nizações às vítimas e suas famílias, amplas reformas
institucionais, resgate da memória e da verdade obscu-
recida e mentida por parte do Estado, além de uma
série de mecanismos de afirmação de direitos huma-
nos, como forma de blindar o Estado Democrático a
possibilidades de novos golpes.
Vera Vital Brasil, em profunda análise sobre o
papel do testemunho nas comissões da verdade que
foram criadas na América Latina, mormente no Brasil,
explica o importante papel de resgate da memória e
dos fatos exercido por essas comissões:
Uma vez levantados alguns elementos/fatores que
marcaram o cenário de silêncio e esquecimento
ativo que predominou em nosso país, uma Comis-
são da Verdade - que tenha como finalidade inves-
tigar e esclarecer os crimes de lesa-humanidade
ocorridos no contexto da ditadura civil militar,
além de apontar os métodos repressivos utilizados
e os responsáveis por esses atos – será, em princí-
pio, uma contribuição para ampliar o conhecimen-
to sobre esses fatos. Podendo ser um instrumento
na construção do “nunca mais”.53

Não obstante a política da justa memória criada


nos países vizinhos em momento concomitante à insta-
lação da democracia, o Brasil tardiamente acompanhou
esse movimento com a criação da Comissão Nacional
da Verdade apenas em 2011, vinte e seis anos após a
queda do regime militar ditatorial, por meio da lei
12.528/2011. A Comissão da Verdade brasileira, apesar
de encontrar uma série de obstáculos no resgate da

53 BRASIL, Vera Vital. Dano e reparação no contexto da comissão da

verdade: a questão do testemunho. In: Revista Anistia, Política e Justiça


de Transição. n.6. jul/dez. 2011. Brasília: Ministério da Justiça, 2012.
Jurisdição constitucional e Estado de Exceção pós-1988 297

memória, dada a distância temporal entre a ditadura e


a sua criação, fora instalada em 16 de maio de 2012 e,
por essa lei, é responsável por apurar as violações aos
direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, esclare-
cendo e identificando os fatos e apresentando propos-
tas de políticas e medidas públicas para prevenir viola-
ção de direitos humanos. Ademais, cumpre assegurar
sua não repetição e promover a efetiva reconciliação
nacional, além de colaborar para que seja prestada as-
sistência às vítimas de tais violações, por meio de am-
plos procedimentos contemplados pela lei.
A Comissão da Verdade, mas também outros
mecanismos, tais como reformas institucionais, debates
teóricos, releituras de acontecimentos podem corrobo-
rar a atuação de uma justiça de transição nesse contex-
to de democratização do país e de tentativa de constru-
ção de uma ordem mais coerente com o que se preten-
de ser, desde Constituição de 1988. Para tal fim, é pre-
ciso, sobretudo reconhecer que não é possível a cons-
trução dessa justiça de transição eficaz sobre os marcos
institucionais legatários do autoritarismo, mas constru-
ir novos marcos institucionais, uma nova história, atra-
vés da política da justa memória.
Uma justiça de transição eficaz é possibilidade
de rememorar a injustiça a fim de, por meio da repara-
ção, promover a justiça. É ela possibilitadora da inter-
rupção de uma lógica produtora de violências, por
meio do resgate da memória e da verdade, não negan-
do dos fatos, o real. Concentrar o problema da exceção
na esfera de uma justiça de transição eficaz, como mo-
do de enfrentamento do estado de exceção permanente
no Brasil, é tarefa que deve nortear as políticas e os
procedimentos institucionais e não institucionais de
combate à exceção e de reparação aos direitos humanos
ofendidos durante e após os regimes ditatoriais.
298 Tayara Talita Lemos & Maria Clara Oliveira Santos

Referências

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Os testemunhos das vítimas
e o diálogo transgeracional
O lugar do testemunho na transição
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Roberta  Cunha  de  Oliveira2  


José  Carlos  Moreira  da  Silva  Filho3  

1 Este artigo é resultado de pesquisas apoiadas pelo CNPq e pela

CAPES. O artigo está também publicado em: Renata Conde e Costa


Vescovi. (Org.). Psicanálise e Direito: uma abordagem interdisciplinar
sobre ética, direito e responsabilidade. 1ed.Rio de Janeiro;Vitória-ES:
Companhia de Freud;ELPV, 2013, v. , p. 131-162.
2 Mestra em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-Graduação em

Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande


do Sul (PUCRS); Professora de Direito da Universidade Federal de Rio
Grande (FURG); Membro do Grupo de Estudos CNPq Direito à Ver-
dade e à Memória e Justiça de Transição; Membro do Grupo de Estu-
dos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição –
IDEJUST.
3 Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do

Paraná - UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela


Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Bacharel em Direito
pela Universidade de Brasília - UnB; Professor da Faculdade de Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
(Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – Mestrado e
Doutorado - e Graduação em Direito); Bolsista Produtividade Nível 2
do CNPq; Conselheiro e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça; Coordenador do Grupo de Estudos CNPq
Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição; Membro-
Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e
Justiça de Transição – IDEJUST.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
302 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

Introdução

A nossa capacidade para narrar histórias, foi o


que permitiu que tivéssemos uma memória dos acon-
tecimentos passados. Neste sentido, os efeitos das nar-
rativas, por sua oralidade e transmissão da experiência
tendem a perpetuarem-se no tempo, atravessando ge-
rações4. Ou seja, já em sua visão mais ampla, a narrati-
va contribui originária e significativamente para a
construção de memórias em uma coletividade.
Entretanto, há situações limites, que dificultam a
transmissão da experiência apenas pela fala, necessi-
tando que se abra mão da linguagem em toda sua ri-
queza de manifestações para que ocorra a conexão en-
tre quem envia e quem recebe a mensagem. São tem-

4 Em seu texto "O narrador - considerações sobre a obra de Nikolai


Leskov", Walter Benjamin associa a memória à narração e enaltece esta
última, lamentando que no mundo da informação instantânea há cada
vez menos espaço para os verdadeiros narradores. "A reminiscência
funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de
geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais
amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas,
encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a
rede que em última instância todas as histórias constituem entre si.
Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros
narradores(...). Tal é a memória épica e a musa da narração. (...)
Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua
matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal.
Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e
a dos outros - trasnformando-a num produto sólido, útil e único? (...)
Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe
dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para
muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma
vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em
grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância
mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar
sua vida; sua dignidade é contá-la inteira" (grifos do autor)
(BENJAMIN, Walter. O narrador – considerações sobre a obra de Ni-
kolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política –
ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras escolhidas I. 7.ed.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet . São Paulo: Brasiliense, 1994.
[Obras Escolhidas; v.1]. p.211 e 221).
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 303

pos históricos de catástrofes sociais que atravessam o


indivíduo por retirarem-lhe sua condição plena de su-
jeito, submetendo-o à condição de objeto; são rupturas
no ser que geram rupturas nos grupos, estendem o
trauma, para além da esfera psíquica particular e com
isso, afetam não apenas as vítimas das violações, mas
também o entorno e as gerações seguintes5. Portanto,
na tentativa de trazer algumas inter relações entre o
direito e a psicanálise, nossa opção foi a de tratar dos
efeitos traumáticos em uma coletividade após períodos
de violações massivas de direitos humanos, pelo viés
de construção social das subjetividades, com base na
dificuldade de se fornecer espaços de escuta amplos para
as narrativas do trauma.
Para tal fim, analisaremos o momento brasileiro
de políticas públicas de memória e verdade, com a re-
cente abertura de escuta oficial das vítimas da ditadura
civil militar (que assolou o país entre os anos de 1964-
1985), cujos efeitos perversos da falta de simbolização
da violência estatal instaurada, ainda persistem crian-
do abismos na democracia. Importa ressaltar que as
políticas de memória e verdade, situam-se dentro de
um conceito de justiça de transição, a qual busca criar
mecanismos democráticos eficazes para reparação de
abusos autoritários e também para a consolidação de
uma cultura de respeito e educação em direitos huma-
nos, com o objetivo de neutralizar a produção cíclica de
violência.

5
Em tal aspecto nos embasaremos na construção psicanalítica acerca
do trauma como um acontecimento imprevisto que coloca em perigo a
“real” estrutura psíquica do sujeito, pela “pulsão de morte” diante da
morte súbita (como nos casos de guerra) ou então pela falta de elabo-
ração do duelo em relação a perda inesperada de um ser querido e
próximo. Um dos trabalhos que utilizamos como referência é o do
trauma como elemento transobjetivo fraturado pela quebra do “pacto
denegativo”, desenvolvido por René Kaes. KAES, René; PUGET,
Janine (org.). Violencia de Estado y psicoanálisis. Buenos Aires: Lu-
men,2006, p.161.
304 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

Neste aspecto, entende-se a justiça de transição


não apenas como um conjunto de mecanismos passa-
geiros de restabelecimento dos regimes democráticos,
mas também como um leque de alternativas para o
aprofundamento permanente da democracia. A tensão
instalada pelos testemunhos é também uma tensão na
busca pela justiça material, por um postulado de justiça
que nasce a partir das injustiças e desta forma, já se
consolida com a consciência da carga de responsabili-
dade pelo “outro”, da geração que foi, das vítimas que
ficaram, das vozes que foram sufocadas. Ou seja, a jus-
tiça transicional, se encarada como uma forma recons-
trutiva dos laços políticos e instauradora de um concei-
to de justiça capaz também de cuidar, ao invés de tão
só punir, é uma alternativa para a criação de espaços
de alteridade, antecessores das análises políticas e jurí-
dicas sobre a violência, porque para a vítima, “toda
violência é uma violência ética"6.

6
RUIZ, Castor M.M. Bartolomé. A justiça perante uma crítica ética da
violência. In: RUIZ, Castor M.M. Bartolomé (org.). Justiça e Memória,
para uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2009. p.87. De forma que o referido autor, ao pautar a crítica da violên-
cia a partir da questão ética, da alteridade e da responsabilidade diante
do “outro”, também se refere às formas cíclicas de violências como
exemplos de sua produção “mimética”. Tal como nos estudos de Wal-
ter Benjamin sobre a mimese enquanto constituição dos indivíduos
como ser sociais, Ruiz nos chama a atenção para o seu efeito inverso: o
da reprodução de atos violentos, que são intencionais, e, por conse-
guinte, sua “normalização” no tempo como se fossem efeitos naturais,
fora do alcance da decisão humana. Pois ao instrumentalizar a vítima,
o direito acaba retirando sua condição de sujeito político da ação. Tal
fato reforça o esquecimento da violência e comete, segundo Castor
Bartolomé Ruiz, uma segunda injustiça: a morte da vítima da memória
coletiva. “Estas são violentadas uma segunda vez pelo esquecimento
que as apaga de forma definitiva da memória da história, tornando-as
insignificantes para o presente”. RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Os
paradoxos da memória na crítica da violência. In: RUIZ, Castor M. M.
Bartolomé (org.) Justiça e memória. Direito à justiça, memória e repa-
ração: a condição humana nos estados de exceção. São Leopoldo: casa
leiria, Passo Fundo: IFIBE, 2012, p.50.
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 305

Pois bem, estamos situados em um referencial


teórico sobre a memória, a justiça e a história que care-
ce da linguagem dos “vencidos” para se realizar. Sendo
assim, adotando-se a noção de memória dos vencidos
usada por Reyes Mate7, o testemunho, ou seja, o mo-
mento em que a linguagem permanece sendo traduz a
práxis libertária daqueles que tiveram sua dignidade
negada, ao serem considerados “subumanos”: os que
ficaram como o “resto” da história, desconsiderados,
olvidados.
A memória ou a visão dos vencidos pode ajudar
a estabelecer uma cadeia de responsabilidades para
com a carga de violência retida no passado e perpetra-
da como “natural”, pois a testemunha é o concreto da
violação, está além do tempo histórico, pois sua tempo-
ralidade é aquela do “entre”, do que não foi reconheci-
do, daquilo criticado apenas por seu “excesso”; a exce-
ção moderna, que nada mais foi do que seu próprio
projeto civilizatório. Ademais, a importância do teste-
munho se dá na tensão que o “não encaixe”, nos parâ-
metros universais da história, desnuda diante do so-
frimento, do negativo que foi devorado pelo “espírito
de superação”, significante do esquecimento e que de
uma maneira ou de outra, mesmo em suas visões mais
críticas, admite o sacrifício de alguns, em prol do obje-
tivo final a ser conquistado. Ao final, o testemunho nos
mostra que não há vencedores, pois a humanidade
perde algo de sua essência, quando possibilita os mas-
sacres, violações massivas dos direitos humanos.

7MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz - atualidade e política. Tra-


dução de Antonio Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.
306 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

1. Os efeitos transubjetivos do trauma e o dano


transgeracional da violência autoritária

O testemunho advém de uma necessidade de


narrar diante da grandiosidade nefasta do horror para
a vítima, momento em que se colocam em questão os
fardos que a testemunha carrega e sua influência para
o contexto em que ocorrem. Sobretudo, o testemunho é
uma modalidade da memória, mas também da política
de memória, ainda que, muitas vezes, faltem espaços
para o testemunho: os espaços de escuta. Dessa forma,
constata-se a capacidade da linguagem para tangenciar
o simbólico, mesmo restando em cada objeto, algo que
não conseguimos simbolizar. Ademais o testemunho
em seu sentido amplo tem a capacidade crítica de ques-
tionar o tempo histórico, pois é atravessado pela narra-
tiva do trauma, que coloca em pauta o tempo psíquico,
da ausência na presença, de um futuro que não se rea-
lizará enquanto não for possível falar acerca do passa-
do.
Embora o século XX tenha sido a época da pro-
dução massiva de corpos, não se pode desconsiderar
que as grandes tragédias - como os totalitarismos ou o
terrorismo de Estado implantado nas ditaduras de se-
gurança nacional da América Latina - acabaram pro-
duzindo no vazio deixado, um novo lugar ou status para
o testemunho dos sobreviventes. Não obstante, as ca-
tástrofes sociais, justamente pela intencionalidade de
crimes que buscam não deixar marcas ou vestígios,
instituíram as vítimas de uma autoridade portada na
linguagem, do corpo que sofre para o corpo que acusa.
Logo, a dimensão de julgar do testemunho, vai além do
aspecto jurídico, conforme pontua Márcio Seligmman
Silva:
...é entender o testemunho na sua complexidade
enquanto um misto entre visão, oralidade narrati-
va e a capacidade de julgar: um elemento com-
plementa o outro, mas eles relacionam-se também
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 307

de modo conflituoso. O testemunho revela a lin-


guagem e a lei como constructos dinâmicos, que
carregam a marca de uma passagem constante, ne-
cessária e impossível entre o “real” e o simbólico,
entre o “passado” e o “presente”8.

Por conseguinte, as perguntas que a testemunha


traz, e o que ela não consegue revelar, produzem uma
dialética entre a palavra e suas reticências, propondo
uma ponte com o interlocutor, nas “zonas não negociá-
veis do silêncio”. Mas a dificuldade de se representar
ou apresentar a catástrofe pode ter efeitos diversos: o
primeiro é positivo, quando se transforma em solidari-
edade e consegue fazer do ouvinte9, uma nova teste-

8
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. In: RUIZ,
Castor M.M. Bartolomé (org.). Justiça e Memória. Direito à justiça,
memória e reparação: a condição humana nos estados de exceção. São
Leopoldo: Casa Leiria. Passo Fundo: IFIBE, 2012, p.59. Mais adiante, o
autor postula a era pós-catástrofe como um espaço de possibilidades
que necessita ser disputado: “mas existe a possibilidade desta comu-
nidade sair da posição de vítima. Justamente o testemunho pode servir
de caminho para a construção de uma nova identidade pós-catástrofe.
A uma era de violência e acúmulo de crimes contra a humanidade
corresponde também uma nova cultura do testemunho. O testemunho
tanto artístico/ literário como o jurídico pode servir para fazer um
novo espaço político para além dos traumas que serviram tanto para
esfacelar a sociedade como para construir novos laços políticos.” Ob.
cit.p.70.
9 Neste artigo utilizamos o termo "ouvinte" para designar aquele que

se mantém receptivo ao testemunho e se abre à sua mensagem, por


mais irrepresentável que ela seja, que mantém uma abertura para que
possa ser tocado pelo testemunho e transformar-se ele mesmo em
testemunha também. É o testemunhar do testemunho, chave
fundamental do diálogo transgeracional, experiência à qual se
contrapõe a figura do "espectador", que se comporta como uma escuta
amortecida e inerte. Tratando do significado paradigmático do
holocausto, Reyes Mate afirma que nele a "inumanidade alcançou a
vítima, o carrasco e contaminou o espectador porque esse crime em
massa teria sido impossível sem a cumplicidade do espectador. Essa
cumplicidade é um fato, mas o que é muito mais grave, já estava
antecipado nas chaves da nossa cultura. A filosofia se havia, com
efeito, instalado na confiança de que a essência da humanidade era
uma idéia inatingível pela barbárie. Desde o momento em que o lugar
308 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

munha, realizando o sujeito o “trabalho de luto” em


relação à perda10, elaborando o trauma; além de trans-
mitir a experiência sofrida, como um alerta de consci-
entização para o coletivo que presencia o testemunho.
Já o segundo modo, pode recair no “impedi-
mento da memória”, aquele que faz da palavra ou do
silêncio, absolutos; que não permite um “trabalho de
memória”, pois sempre retorna ao passado, mas de
uma forma que este não passa, o que em psicanálise se
denomina de “recalque”. Tal impedimento da memó-
ria, sobretudo, é provocado pelos conjuntos externos
que cercam o sujeito violado; seja o das instituições
públicas, pelo não reconhecimento ou esclarecimento
dos abusos do passado; seja o da sociedade, que ao não
encontrar o respaldo oficial da versão das vítimas, aca-
ba por optar pela “desmemoria”, a tortura como algo
“normal” ou o “mal necessário” e também, por legiti-
mar a criação constante de “bodes expiatórios”, ou no-
vos “inimigos sociais”. Trata-se de caminhos possíveis:
o primeiro terapêutico e o segundo, patológico.

da ciência da humanidade era a abstração, os atentados concretos


contra a humanidade do homem tornaram-se insignificantes. Essa
humanidade está adornada, certamente, com todos os atributos da
bondade e da verdade, mas ao preço, isso sim, da humanidade
concreta, isto é, da irrelavância humana do inumano concreto"(MATE,
ob.cit., p. 224). Essa acomodação abstrata do pensamento ocidental
ajuda a explicar porque o tema da memória é relegado, muitas vezes,
ao segundo plano.
10
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salo-
mão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. pág. 249-263. [Vol.XIV]; RICOEUR,
Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP,
2007. p.70 e ss.; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de me-
mória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anis-
tia do Brasil na concretização do Direito à Memória e à Verdade. In:
SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRAO, Paulo; MacDowell, Cecília;
TORELLY, Marcelo D. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Con-
texto Ibero-Brasileiro - Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique,
Peru e Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Brasília: Ministé-
rio da Justiça, 2010. p.185-227.
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 309

Contudo, a opção de trazer a análise do trauma


como elemento transubjetivo, situa-nos na falta de res-
postas que apenas o tratamento clínico pode acarretar.
Em outras palavras, assim como o lugar dos testemu-
nhos das catástrofes sociais transcende os tribunais,
também o faz em relação ao consultório psicanalítico.
Portanto, o objetivo de reparar as vítimas dos crimes
contra a humanidade, deve ser, antes de tudo, uma
opção política de desenvolvimento de mecanismos te-
rapêuticos, pedagógicos e culturais que consigam aliar
os procedimentos e práticas destas diferentes áreas de
atuação.
Além disso, a catástrofe social11, por se caracteri-
zar pelo estabelecimento de pactos “perversos” com os
sistemas institucionais, com o simbólico dentro da cole-
tividade, gera efeitos não apenas nas vítimas diretas ou
nos seus familiares, mas também, nas gerações posteri-
ores, que embora não tenham vivenciado a experiência
traumática, são receptores dos efeitos não elaborados,
os quais acabam produzindo transtornos psíquicos e
muitas vezes, dificuldades de reconhecimento com o
seu grupo de referência12. Por tais motivos, é que se

11
Neste sentido, qualificamos o período autoritário da ditadura civil-
militar brasileira (1964-1985) como uma catástrofe social, não apenas
pelo uso arbitrário do poder, com a mudança de normas, com o exercí-
cio da governabilidade por decretos ou atos institucionais, com a cas-
sação de mandatos parlamentares, com a violação do direito à privaci-
dade pela vigilância e pelo controle da população e dos meios de co-
municação; mas também, pelas práticas de um estado de exceção,
vigentes em espaços de anomia, com a instalação de centros clandesti-
nos de detenção, da tortura como prática de interrogatório, do seques-
tro e arresto de perseguidos políticos dentro de suas casas, com o de-
saparecimento forçado de muitos militantes. Fatores que ao serem
somados, geraram um ambiente político –social de obediência à auto-
ridade não pela confiança nas instituições ou crença na legitimidade
do sistema político, mas sim, pelo medo.
12
É neste aspecto que se corrobora a interpretação que o terrorismo de
Estado das ditaduras civis militares na América do Sul, como catástro-
fe social, gerou danos transgeracionais, verificados atualmente nos
Estados que promoveram políticas de reparação ou intentos similares.
310 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

pode falar de danos transgeracionais nas situações de


graves violações aos direitos humanos, tema estudado
primeiramente com relação aos efeitos do holocausto
para os filhos dos sobreviventes dos campos de con-
centração, porém, atualmente aprofundado de acordo
com as peculiaridades de cada lugar que sofreu abusos
por parte do poder.
Em tal aspecto, o dano transgeracional incide
sobre aquilo que já não está, a “ausência presente”, o
“não dito”, a violência silenciada e perpetuada de dife-
rentes maneiras. Conforme definição de René Kaes, o
dano transgeracional se configura como “aquello cuya
inscripción no ha sido posible, ha sido negada, reprimida o
forcluida: al precio de un asesinato silencioso, al precio de un
blanco, de un agujero, de un eclipse del ser" 13.
Na América Latina, que é o nosso foco de estu-
do no presente ensaio, desde os anos 1970, grupos de
psicanalistas começaram a se reunir para criar formas
de tratar do medo generalizado pelo terrorismo de Es-
tado - por meio das grupoterapias14 - assim como, tro-
car experiências com especialistas que atendiam o
grande número de exilados na Europa. Mais tarde, com
as reaberturas políticas a partir da década de 80, novos

Segundo René Kaes, as catástrofes sociais têm o condão de desagregar


e dividir o corpo social, enquanto que as catástrofes naturais geram
efeitos de solidariedade, pois as primeiras provocam rupturas na cren-
ça psíquica na representação e articulação do entorno: “el pensamiento
está coartado por la dificultad de representarnos la violencia asociada
a la ruptura catastrófica”. Ob. cit. p.167.
13
KAES, ob.cit.p.162.
14
Importa lembrar, que as atividades dos grupos terapêuticos também
sofreram repressão nos anos das ditaduras. Conforme Kaes, estes
grupos foram: “perseguidos, prohibidos o disueltos, pues eran
sospechosos por ser considerados lugares de subversión social. En los
hospitales, el desmantelamiento de los servicios que tenían en su seno
tales encuadres fue silencioso, o racionalizado de una manera auto
represiva. La práctica privada subsistió, no sin dificultades, pues había
que vivir y mantener en la medida de lo posible un lugar para la
palabra y el trabajo psíquico contra el silencio y el terror”. Ob.
cit.p.172.
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 311

temas surgiram, entre eles, o problema da transmissão


do trauma para as gerações já nascidas sob a égide de-
mocrática, além da complexidade das muitas gerações
afetadas15 diretamente pelas ditaduras de segurança
nacional, especialmente no estabelecimento de frágeis
vínculos políticos e comunitários.
Quando a análise se volta para o terrorismo de
Estado como tática de enfraquecimento dos grupos,
percebe-se que a violência psicológica instaurada pelo
pânico e terror durante as ditaduras civis militares no
Cone Sul, continua a produzir seus efeitos, mesmo ces-
sado o período político de amedrontamento. Isto por-
que, ao falarmos das memórias que são afetadas pela
catástrofe social, importa salientar, que se está a referir
a diferentes modalidades de memórias fraturadas: a do
indivíduo como ser com uma história; a da espécie
humana; e as dos conjuntos transubejtivos que influen-
ciam na construção da subjetividade, pelo estabeleci-
mento de relações com os grupos de pertencimento e
de referência do sujeito16.
15
Um estudo publicado pelo CINTRAS/Chile; EATIP/AR, Grupo
Tortura Nunca Mais/RJ e Sersoc/ Uruguai, aborda os diversos traba-
lhos desenvolvidos nos países sul – americanos, acerca da transmissão
do trauma destas catástrofes sociais para as gerações múltiplas, afeta-
das direta ou indiretamente pela violência sofrida por seus antecesso-
res. Dita reflexão sobre a complexidade do tratar do dano transgeraci-
onal, foi referida pela equipe do CINTRAS, ao analisar o estudo com
adolescentes chilenos, nascidos já nos anos 90, cujos pais sofreram
perseguição política da ditadura de Pinochet: “Coincidimos con los in-
vestigadores de otros equipos que estudian la transgeneracionalidad del trau-
ma cuando señalan que el daño producido por las experiencias traumáticas fue
multigeneracional, al ser afectadas simultáneamente varias generaciones;
intergeneracional, en tanto se tradujo en conflictos entre generaciones y
transgeneracional, pues sus efectos reaparecen de diversos modos en las gene-
raciones siguientes”. CINTRAS. Daño transgeneracional en
descendientes de sobrevivientes de tortura. In BRINKMANN, Beatriz
(org.). Daño Transgeneracional: consecuencias de la represión
política en el Cono Sur.Santiago/ Chile: Gráfica LOM. 2009, p.51.
16
KAES.Ob.cit.174. Segundo este autor: “no tenemos sólo una memoria
individual, sino varias: la del fantasma, memoria de lo que nunca fue; la de la
verdad, memoria de lo que fue; la del cuerpo, memoria de lo que ha sido vivido
312 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

Neste aspecto, o ato do testemunho instaura


uma tensão para quem narra, mas principalmente para
o ouvinte, sobre qual o modo de constituição de subje-
tividades e qual reflexo de sociedade que se quer. Con-
forme os estudos de Félix Guattari17, a subjetividade
não diz respeito apenas ao indivíduo, mas também às
influências externas, tanto de maneira positiva, com o
estímulo da autonomia; quanto de forma negativa, com
a imposição de barreiras ao inconsciente como a sub-
missão e a produção de modos de vida massificados. É
no sentido de constituição da subjetividade livre, apro-
priada pelos indivíduos por meio de processos de sin-
gularização que se postula a função política do desejo.
Portanto, a tensão positiva do testemunho é um meio
de “transmissão das sensibilidades”, contra o desper-
dício da experiência vivenciado pelo silencio e pelo
medo.
De maneira que, tanto o terapeuta, durante a
clínica psicanalítica, quanto as autoridades investidas
na responsabilidade de acolher a linguagem das teste-
munhas em procedimentos públicos de escuta; além da
sociedade que vivencia e presencia estes atos do teste-
munho, acabam transformando-se em memória daque-
le que narra o trauma, para que seja possível reconstru-
ir ou elaborar o que se encontrava nas zonas cinzas do
silêncio18.

con demasiada intensidad para ser suficientemente elaborado; y memoria de lo


que no ha sido vivido para dejarse olvidar. Todas estas memorias también se
combinan e interfieren constantemente, o prevalecen la una sobre la otra.”.
Ob. cit.p.175.
17
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do
Desejo. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1996.
18
De acordo com René Kaes, nas situações pós-catástrofes sociais o
trabalho de duelo, e de elaboração dos efeitos traumáticos na inscrição
social precisam ser tratados também como uma inscrição política, que
enfrenta diferentes resistências conforme o tempo em que avançam ou
ficam impedidas: “las diferentes figuras de la muerte, el asesinato, la desa-
parición, a escala de un genocidio ( habría que decir también socio-cidio) no
pueden ser tratadas por la psique como un duelo normal. (...) No hay grupo ni
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 313

Ademais, a narrativa do trauma, que circula en-


tre o privado e coletivo, pode ser um processo de sin-
gularização se respeitados tais espaços de escuta, da-
queles constantemente esquecidos, as vítimas, os que
tiveram sua dignidade negada. Não obstante, também
cabe ressalvar uma das críticas ao impedimento do
trabalho de memória no Brasil, durante quase três dé-
cadas passadas do fim dos governos militares. Como
aponta Márcio Seligmann-Silva, um fato negativo da
transição controlada brasileira, foi o de que as vítimas
não encontraram espaços públicos para sair da condi-
ção de vítimas e se transformarem em acusadores.
Os abusos e as violações da ditadura não foram
tomados pelo Estado como “fatos”, pelo menos até o
giro de sentido e significado das políticas de reparação,
ocorrido a partir dos anos 2000, com a publicação do
relatório “Direito à verdade e à memória” (elaborado
pela Comissão Especial de Mortos e Desparecidos Polí-
ticos) e com a atuação da Comissão de Anistia. Sendo
assim, a desmentida e a desmemoria continuaram vi-
gendo na passagem do regime autoritário para o regi-
me democrático, tal como a palavra dos agentes da
repressão - com meios de forjar a negativa dos seus
crimes ou justificar a violência massiva empreendida -
obteve mais êxito e crédito que a palavra dos sobrevi-
ventes, ao denunciarem seus algozes. Conforme o au-
tor supracitado, no nosso país houve um “sequestro de
provas e dos testemunhos”:
O debate político não conseguiu pôr em movimen-
to a vítima no sentido dela se transformar em um
sujeito que acusa. A sociedade negou às vítimas o
direito à acusação. A vítima foi tratada como al-

institución ni sociedad sin memoria, sin trabajo de historización. Las


sociedades que sostienen la utopías mortíferas rechazan la memoria y la
historicidad. El “no recuerdes” no está aquí ordenado por la represión del
horror, sino por la anulación de la historia y de la experiencia.” KAES,
ob.cit.p.185.
314 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

guém alheio à esfera do direito, como um menor a


ser tutelado e tratado com migalhas de justiça e de
verbas.19

Mas a clausura dos testemunhos não se deu


apenas no âmbito oficial. Foi uma consequência exitosa
da política de terror do Estado brasileiro, a qual ins-
trumentalizou a tortura como técnica capilar de im-
plantação do medo e do pânico e de rompimento dos
vínculos coletivos. Em tal aspecto, refere-se o estudo do
Grupo Tortura Nunca Mais, sobre a transmissão trans-
geracional do dano no nosso país, a partir de uma polí-
tica criminosa que teve como eixo estruturante as práti-
cas de tortura para fazer silenciar a resistência.
De acordo com este estudo, quando os afetados
pela tortura não encontram espaços coletivos e sociais
para simbolizar o trauma, o silenciamento aparece
também como mecanismo de defesa, isto é, as marcas psí-
quicas da violência ficam encapsuladas e dissociadas
dos antigos pontos de referência, não conseguindo uma
reintegração com os demais20. Além disso, para a se-
gunda e terceira geração - filhos (as), netos (as) de per-
seguidos políticos - também não há uma clareza de que
seus assuntos mal resolvidos psiquicamente estão rela-
cionados com o trauma não elaborado de seus anteces-
sores, com o silêncio que tornou a história de vida des-

19
SELIGMANN-SILVA. O local do testemunho, p.75.
20
“Para evitar el contacto con la experiencia de dolor y de desamparo, las
marcas psíquicas de la violencia se encapsulan y disocian y, en vez de la
vivencia traumática, lo que subsiste son burbujas de tiempo, zonas de silencio,
fragmentos de vida que no se pueden integrar a los demás.” KOLKER, Tania.
Problematizaciones Clínico-Políticas Acerca de la Permanencia y
Transmisión Transgeneracional de los Daños Causados por el
Terrorismo de Estado. In BRINKMANN, Beatriz (org.). Daño
Transgeneracional: consecuencias de la represión política en el Cono
Sur. Santiago/ Chile: Gráfica LOM. 2009,p.266. A experiência relatada
pelo GTNM foi analisada a partir das sessões de grupoterapias reali-
zadas com jovens, filhos de ex-perseguidos políticos que foram vítimas
da tortura e de outras violações pela ditadura civil militar brasileira.

 
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 315

tas pessoas em dramas particulares, pois, conforme o


estudo acima citado, muitos jovens procuraram o Gru-
po Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, sem associar
seu sofrimento aos efeitos da violência de Estado. Se-
gundo explicação da autora, são jovens que muitas ve-
zes, não conheceram seus pais, tendo apenas fotos ou
lembranças relatadas por outros familiares sobre eles;
ou então:
...crianças que nasceram na prisão ou no meio das
famílias submetidas à violência da tortura psicoló-
gica pela morte ou desaparecimento forçado de al-
gum de seus entes queridos, sem poder dar ne-
nhum sentido a isso; ou que estavam com os seus
pais no momento da prisão, sendo abruptamente
separados deles e entregues a desconhecidos, ou
ainda presenciando e participando dos fatos sem
poder entender a situação de sequestro e tortura21.

21
KOLKER, Tania, ob. cit. p. 268. Neste último aspecto importa relem-
brar as muitas histórias de ameaças de tortura aos filhos, para se con-
seguir informações dos pais. Há casos singulares das crianças tortura-
das antes mesmo do nascimento, como o de João Carlos Grabois – o
Joca – quem conheceu a tortura no ventre da mãe, Criméia Schmidt de
Almeida, nascido na cadeia durante o sequestro de sua progenitora.
Não esquecendo que tanto o pai quanto o avô de João Carlos (André e
Maurício Grabois) são desaparecidos políticos na Guerrilha do Ara-
guaia. Na mesma família, os tios do Joca, Maria Amélia Teles e César
Teles foram sequestrados e torturados, seus filhos Janaína e Edson
muitas vezes deram seu testemunho recordando as ameaças de sofre-
rem torturas na frente dos pais e de terem visto seus pais nos interva-
los das sessões de tortura, além dos vários dias que estiveram seques-
trados/ detidos, ambos com idade entre 04 a 08 anos. A trajetória da
família Teles ficou nacionalmente reconhecida pela ação civil movida
em São Paulo, na qual, eles conseguiram declarar em primeira e se-
gunda instância o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra como Tortu-
rador. Conforme relatado no livro Direito à Memória e à Verdade,
histórias de meninas e meninos marcados pela ditadura: “a mãe de
João Carlos, Criméia, estava com oito meses de gravidez ao ser presa
na Operação Bandeirante (OBAN) em São Paulo, um dos mais temidos
centros de interrogatórios do regime, mantido inclusive por empresá-
rios brasileiros. Ela foi espancada e recebeu choques elétricos no seio e
órgãos genitais. Depois do parto, permaneceu com o bebê por 52 dias
316 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

Não obstante, cabe fazer a ressalva de que o ca-


so brasileiro de inibição do testemunho durante a rea-
bertura democrática não foi o único na América do Sul.
Pelo contrário, mesmo nos países que tiveram uma
transição política sob a forma da ruptura, com forte
protagonismo dos movimentos dos familiares das ví-
timas da ditadura - como na Argentina - nota-se que a
etapa inicial da busca pela verdade, teve características
mais investigativas do que de escuta dos testemunhos.
Tanto que a CONADEP (Comissão Nacional so-
bre o Desparecimento de Pessoas) é criticada pelos

na cela. Com a irmã de Criméia, Maria Amélia, a situação se repetiu.


Ela e o marido César estavam tão feridos que os próprios filhos Janaí-
na e Edson – presos um dia depois – custaram a reconhecê-los”. Brasil.
Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Direito à Memória e à Verdade: histórias de meninas e meninos
marcados pela ditadura / Secretaria Especial dos Direitos Humanos. –
Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009. p.66. Rose
Nogueira também teve seu filho, Carlos Guilherme Clauset ameaçado
com poucos dias de vida, quando da invasão da sua casa, por ser ati-
vista da Ação Libertadora Nacional (ALN). “Mas nenhuma tortura ou
doença superou o pavor de ver o filho ameaçado. Um dia, uma companheira
que voltava do interrogatório lhe perguntou: “Por acaso o seu bebê é bem
clarinho e tem um moisés azul?” Sim, tinha. Era ele. Rose gritou, perguntan-
do pelo filho. A resposta que ouviu do torturador foi: “Pergunta quem faz aqui
sou eu. E vamos ver se o nenê chora mais do que você quando a gente for
buscar ele de novo”. Ob.cit.p.69. Há ainda, os casos de diversas crianças,
filhos do exílio, nascidos durante a fuga forçada de seus pais, como
Eduarda Crispim Leite e Christopher Goulart. Há o caso singular de
André e Priscila que contavam com apenas 3 e 4 anos quando foram
presos em Alagoas junto com seus pais Aldo Arantes e Dodora, mili-
tantes do PCdoB, assim permanecendo por mais de 4 meses. Além
disso, há inúmeros casos de crianças separadas de suas famílias e
enviadas a reformatórios ou “juizados de menores”, de crianças trau-
matizadas por presenciar a brutalidade dos arrestos e por vezes dos
assassinatos de seus pais, marcas que as constituíram como sujeitos,
traumas que precisam ser tidos como públicos, como parte de nossa
história, não relegados a dramas intrafamiliares. A consequencia mais
trágica da ocorrência desse tipo de trauma infelizmente aconteceu com
Carlos Alexandre Azevedo, filho de Dermi Azevedo, que no dia 17 de
Fevereiro de 2013 se suicidou com 40 anos de idade, por não mais
suportar as consequencias advindas do fato de ter sido torturado com
apenas 1 ano e oito meses de idade.
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 317

movimentos de direitos humanos argentinos22 por não


haver desenvolvido um papel de Comissão da Verda-
de. No Chile, as críticas também são acentuadas em
relação ao trabalho da Comissão Nacional de Verdade
e Reconciliação e da Comissão Nacional sobre Prisão
Política e Tortura:
El mecanismo fundamental para imponer esta si-
tuación ha sido el silenciamiento o la tergiversaci-
ón desde el poder de lo que realmente ocurrió du-
rante la dictadura: a quién le ocurrió, cómo ocur-
rió, por qué ocurrió y con qué propósito. En lugar
de una elaboración social, desentrañando toda la
verdad histórica -sin duda dolorosa, contradictoria
y conflictiva- se han ido entregando sólo fragmen-
tos de los hechos represivos, como los contenidos
en los Informes de la Comisión Nacional de Ver-
dad y Reconciliación y la Comisión Nacional sobre
Prisión Política y Tortura, desconectados de la fi-
nalidad política que les subyace y les da sentido.23

Ainda que com procedimentos diferenciados de


reparação às vítimas e seus familiares, percebe-se que
na nossa região ocorreu a tendência da privatização de
memórias, isto é, do tratamento do trauma como algo
integrante somente da esfera privada. Dita prática ge-
rou a privatização da “psicologização” da violência
social, como se a coletividade não fora vítima dos anos
nefastos de terrorismo de Estado, como se a violência
da democracia não fosse carregada com uma herança
autoritária.
Portanto, a opção política de preferir o silêncio
público sobre os crimes da ditadura, mas especifica-
mente, de não permitir a linguagem do testemunho em
seu caráter mais amplo de “dar voz aos que já não têm
voz”, transformou o sofrimento, o martírio dos centros

22
Especialmente a organização com seccionais em todo o país,
H.I.J.O.S.
23
CINTRAS, ob. cit. p.44-45.
318 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

clandestinos de detenção, das perseguições, do medo e


da paranoia social instalados, em um segredo, que mui-
tas vezes transbordou a capacidade de quem tinha o
fardo de guardá-lo. Conforme o estudo chileno acima
referido, este segredo (fruto do silenciamento) foi
transmitido para a geração seguinte na forma do fan-
tasma, visto evoluir do indizível para aquilo que não
tinha mais lugar de ser verbalizado: o inominável. Tal
patologia, para a “geração que vem”, pode se configu-
rar como o “impensável24”, se não houver a elaboração
do trauma, a simbolização da violência, a conexão en-
tre autores, mandantes, lugares, estrutura política e
social e os fatos que possibilitaram regimes ditatoriais
com ápices do terror estatal25.

24
“El secreto inconfesable, habitante de la cripta, es transmisible a otra
generación, en la cual reaparece como fantasma en la forma de actos, signos,
síntomas incomprensibles por el sujeto, que no está en condiciones de
desencriptar el secreto. El contenido de la cripta constituye para el sujeto un
indecible, por cuanto, a pesar de estar presente psíquicamente en quien lo ha
vivido, no puede hablar de ello. Al ser transmitido a la generación siguiente en
forma de fantasma, por no ser susceptible de ser objeto de representación
verbal, se convierte en innombrable, sus contenidos son ignorados, pero su
existencia puede ser generadora de disturbios psíquicos. En la generación de
los nietos ocasionará impensables, pues ésta ignora la existencia misma de un
secreto que pesa sobre un trauma no superado, pudiendo generar síntomas,
sensaciones y emociones bizarras, que se presentan sin correlato aparente con
la vida psíquica familiar”. CINTRAS, ob. cit.p.49.
25
Esta linha de pensamento vai ao encontro dos argumentos sobre os
efeitos perversos da negação dos crimes da ditadura brasileira, elenca-
dos por Márcio Seligmann-Silva: “mas o negacionismo também é perverso,
porque toca no sentimento de irrealidade da situação vivida. O teor da irreali-
dade é sabidamente característico quando se trata da percepção da memória do
trauma. Mas, para o sobrevivente, esta “irrealidade” da cena encriptada des-
constrói o próprio teor de realidade do restante do mundo. E mais, o negacio-
nista parece coincidir com o sentimento comum que afirma a impossibilidade
de algo tão excepcional”. SELIGMANN-SILVA. O local do testemunho,
p.67. Resta também observar que na Argentina, estes procedimentos
ganharam força com os “juízos pela verdade”, durante a década de
1990 e posteriormente, com a nulidade das leis do perdão e dos indul-
tos, têm fundamental importância na condução dos julgamentos por
crimes contra a humanidade, ocorridos desde 2006.
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 319

A esta transmissão do dano como o “impensá-


vel”, René Kaes qualifica como “agenciamentos catas-
tróficos” que atacam tanto as condições intermediárias
de vida dos indivíduos, quanto as condições sociais e
culturais de um povo. A perpetuação das injustiças da
catástrofe social tende a inverter o pacto firmado, que
passa a ser constituído basicamente de sua função ne-
gativa, do apagamento dos sofrimentos, do sacrifício
de uns para a continuação da comunidade, o que em
longo prazo afasta o sujeito de sua historicidade.
He puesto el acento de esta manera sobre las dos
polaridades del pacto denegativo: una organizado-
ra del vínculo y del conjunto transubjetivo, la otra
defensiva. (…) El pacto denegativo contribuye a
esta doble organización. Crea en el conjunto del
no-significante, del no-transformable, zona de si-
lencio, bolsas de intoxicación, espacios residuales o
líneas de escape que mantienen al sujeto extraño a
su propia historia. Detectamos los efectos en las
parejas, en las familias, en los grupos y en las insti-
tuciones26.

Ou seja, se a política do testemunho não se tra-


duzir efetivamente em uma política de escuta das vítimas,
há caminhos ainda mais perversos que o do silêncio,
entre eles, o esquecimento dado pelo “impensado” não
elaborado, e com este, o risco de revitimizar as vítimas,
deixando-as no pólo passivo, sem reconhecer sua im-
portância social pela resistência; criando novos estig-
mas para elas e seus descendentes. Urge que a ressalva
coletiva acompanhe a política do testemunho, caso con-
trário, os grupos permanecerão esquecidos, desarticu-
lados; visto que, pensar o terrorismo de Estado, exige-
nos pensar acerca de uma política organizada de com-
bate a uma cultura de resistência; de uma violência que
mais do que aniquilar o sujeito, intentou desarticular os

26
KAES, ob.cit.p170.
320 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

vínculos que mantinham o particular; por isto, a pers-


pectiva precisa ser coletiva e tais questões, encaradas
como problemas ou desafios sociais.
Sobretudo, quando nos referimos aos testemu-
nhos e seu papel para a simbolização da violência, es-
tamos tratando de uma reparação política, necessaria-
mente coletiva, de reconstrução ou instauração de no-
vas relações sociais com o poder. Eis o porquê da ne-
cessidade de tais testemunhos serem públicos, para
que existam ouvintes, para que se tenha a possibilidade
de contar: “foi assim que aconteceu”, “isso me fizeram”
e também de silenciar, deixando nas entrelinhas o que
já não pode mais ser verbalizado, mas que ainda poder
ser vivido de outra forma; sentido com a cumplicidade
coletiva de compartilhar histórias e memórias, para
além da cumplicidade “perversa” de desconfiança e
medo, instaurada pelo terrorismo de Estado.
Todavia, não se desconsidera o aspecto privado
da memória do trauma, o qual Paul Ricoeur27 equacio-
na como: a) singular, “minhas lembranças não são as
suas”; b) vinculado com o passado; c) transverso, pois
memória e orientação se relacionam com a passagem
do tempo não linear. Importa ressaltar que tal dimen-
são particular da memória, involucra-se com a sua di-
mensão coletiva e ambas trazem as dúvidas: como nar-
rar o trauma e conjuntamente representar a catástrofe
vivida? Há que se ter o cuidado, em diferenciar o lugar
do testemunho nos espaços públicos de escuta das ví-
timas, mas sem deixar para segundo plano, o acompa-
nhamento e o acolhimento terapêutico das testemu-
nhas, visto que existem situações de invasão da intimi-
dade, da sexualidade, de outras formas de tortura, que
precisam ser elaboradas fora do âmbito coletivo.
Por outro lado, para a construção permanente
das subjetividades, a teoria psicanalítica - desde os

27
RICOEUR, Paul. ob.cit.p.141.
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 321

tempos de Freud e Lacan - reconhece as marcas exter-


nas dos traumas individuais, sendo que em momentos
de barbárie, como o são as catástrofes sociais, a violên-
cia do entorno passa a ser “aceita” pelo indivíduo. Seja
para defesa da “nação” contra um “inimigo” confuso,
obscuro e permeável, seja para o “progresso e desen-
volvimento”, ainda que a custas de muitas vidas, ou
então, numa guerra insana que produz territórios de
ninguém, sem lei, nem amparo coletivo, mesmo em
eras “democráticas”.
No aspecto de inscrição social do trauma, o
símbolo máximo de tal transgressão feita pelo terro-
rismo de Estado é a figura do desaparecido28. Em uma
situação de normalidade, quando ocorre a perda, aca-
bam surgindo relações de angústia e reconciliação com
o objeto perdido, simbolizadas através das grandes
celebrações, a exemplo dos rituais funerários. Já nos
períodos de catástrofes sociais, dita simbolização não é
feita, nem o luto, nem o duelo são realizados.
Devido ao fato de optar-se por tratar dos efeitos
do trauma que transcendem o indivíduo, torna-se pre-
ciso entender dita ruptura do inconsciente, que trans-
forma o corpo violado em corpo que acusa e que julga,
provocando no âmbito coletivo que assiste e escuta,
uma reação imediata; seja de choque diante do teste-
munho, seja de cumplicidade com o sofrimento alheio
ou de responsabilidade diante das injustiças cometidas.
Quando se dá tal assunção de responsabilidade diante do

28
“Podemos dizer que o paradigma da negação da responsabilidade do Estado
repressivo foi o desaparecimento forçado de pessoas, como inscrição simbólica
desse trágico acontecimento. As respostas das autoridades, na época, aos
familiares – com repercussões até os dias atuais – foram não somente evasivas;
elas sugeriam uma variada gama de possibilidades sobre o destino dos desapa-
recidos: o autoexílio, o autodesaparecimento, a clandestinidade, o extermínio
cometido pelos próprios companheiros de luta”. BRASIL, Vera Vital. Dano e
Reparação no Contexto da Comissão Da Verdade: a questão do teste-
munho. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília,
n.6, jul./dez 2012. p.247.
322 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

outro, pode-se dizer que ocorre o “despertar traumáti-


co”, como ação e não como mero acidente, desenvolvi-
do por Lacan, ao realizar uma releitura da “Interpreta-
ção dos Sonhos” de Freud29. Enquanto a pergunta de
Freud girava em torno de porquê dormir, Lacan expan-
diu o conceito de trauma freudiano, pois estendeu o
sentido do confronto com a morte ao ato de acordar: “o
acordar na leitura que Lacan faz do sonho, é em si mesmo o
lugar do trauma, do trauma provocado pela necessidade e
pela impossibilidade de responder à morte de um outro30”.
Lacan pontuou a necessidade de cuidar o “in-
tervalo que constitui o acordar”, visto que, o sonho é
um instante diário entre a vida e a morte, entre o que
não mais está e a reação do sujeito com suas perdas.
Para o autor, o acordar é endereçado através da narra-
tiva, constituindo uma forma de transmitir a experiên-
cia do sonho31. Ao deslocar o foco da análise para o

29
Uma das maiores estudiosas do conceito de trauma em Freud e
Lacan e suas relações com a memória e com a ética é a inglesa Cathy
Caruth, por isto nos utilizamos a sua análise neste artigo, como refe-
rência cruzada acerca do trabalho de Lacan. A autora nos ensina que
“ao relacionar, portanto, o trauma à própria identidade do eu e à própria
relação com os outros, a leitura de Lacan nos mostra que o choque de visão
traumática revela, no coração da subjetividade humana, não tanto uma rela-
ção epistemológica, mas antes uma relação que pode ser definida como ética,
com o real”. CARUTH, Cathy. Modalidades do Despertar Traumático
(Freud, Lacan e a ética da memória). Tradução de Claúdia Valladão de
Mattos. In: NESTROVSKI, Artur. SELIGMANN-SILVA, Márcio
(orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000,
p.112.
30
CARUTH, Cathy, ob. cit. p.120. A autora analisa as interpretações
realizadas por Freud e Lacan, em relação ao sonho de um pai que vê
sua filha queimando, diante da morte que não consegue suportar.
Enquanto que para Freud, o sonho seria uma rota de fuga para o so-
frimento do pai, pois “mantém o pai dormindo”, para Lacan, o sonho
deixa de ser uma função do sono para ser um imperativo do acordar,
para narrar a morte presenciada aos demais. pp.118-119.
31
“Explorando, portanto, implicitamente a consciência tal como ela aparece
ao sobrevivente, cuja vida está intrinsecamente vinculada à morte que ele
testemunha Lacan resitua a relação da psique com o real, compreendendo-a
não apenas como uma questão de ver ou saber a natureza dos eventos empíri-
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 323

despertar, Lacan transformou o fardo pela morte do ou-


tro, em uma responsabilidade absoluta, quase um impera-
tivo do acordar. E esta responsabilidade urgente, numa
relação ética com o real é, em outros termos, uma ex-
pressão da alteridade, pois reflete a “consciência de
uma culpabilidade” devido à falta de justiça32.
Enquanto para Levinas o imperativo ético se
realiza ao se olhar e acolher o “rosto do outro33” – a
parte mais vulnerável para o assassinato e ao mesmo

cos, não como aquilo que pode ser conhecido ou não sobre a realidade, mas
como a história de uma responsabilidade urgente, ou como aquilo que Lacan
define nessa conjuntura, como uma relação ética com a realidade”. CARUTH,
Cathy, ob.cit.p.124.
32 Levinas aponta para uma precedência da ética em relação à

ontologia, demarcando a infinitude do Outro diante dos esforços de


sua assimilação ao Mesmo, tão presentes no pensamento ocidental e
cuja expressão extrema é o assassinato. Diante do Outro fulgura nossa
responsabilidade e diante da sua negação impõem-se a justiça,
vinculando a linguagem a uma dimensão não totalmente
representativa e marcadamente ética. "O elo entre a expressão e a
responsabilidade - condição ou essência ética da linguagem - essa
função da linguagem anterior a todo o desvelamento do ser e ao seu
frio esplendor permitem subtrair a linguagem à sua sujeição
relativamente a um pensamento preexistente, cujos movimentos
interiores ela teria unicamente a servil função de traduzir cá para fora
ou de universalizar. (...) O pretenso escândalo da alteridade supõe a
identidade tranquila do Mesmo, uma liberdade segura de si própria,
que se exerce sem escrúpulos e à qual o estranho apenas traz
incômodo e limitação. A identidade sem falha, liberta de toda a
participação, independente no eu, pode no entanto perder a sua
tranquilidade se o outro, em vez de chocar com ela ao surgir no
mesmo plano que ela, lhe fala, ou seja, se mostra na expressão, no
rosto, e vem de cima. A liberdade inibe-se então, não porque chocada
por uma resistência, mas como arbitrária, culpada e tímida que é; mas
na sua culpabilidade eleva-se à responsabilidade" (LEVINAS,
Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988. págs.179 e
182).
33
Fábio Landa traça uma reflexão do trabalho do trauma pela psicaná-
lise e do “estatuto ético do terceiro” a partir da filosofia da alteridade
de E. Levinas. LANDA, Fábio. E. Lévinas e N. Abraham: um encadea-
mento a partir da Shoah. O estatuto ético do terceiro na constituição do
símbolo em psicanálise. IN SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Histó-
ria, memória e literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. Cam-
pinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. p.113-124.
324 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

tempo sua impossibilidade absoluta- para Lacan, o im-


perativo acontece no acordar, com a transmissão do
horror “que se coloca entre uma repetição traumática e o
fardo ético da sobrevivência34”. Ou seja, um acordar que
ainda está “por acontecer” no tempo que resta, e que
encontra como momento de acontecer, aquele em que
se dá lugar ao testemunho.
Se as técnicas subterrâneas de desvaler a vida,
praticadas pelo terror de Estado das ditaduras de segu-
rança nacional do Cone Sul, acabaram por fundir o li-
mite entre a vida e a morte, com a tentativa de minar a
pluralidade e de matar simbolicamente o outro; o des-
pertar traumático é o momento de ruptura com este hor-
ror. Isto porque o despertar como ação (que gera seus
reflexos) acontece quando os excluídos, as vítimas da
violência histórica expressam a linguagem de sua dor,
de seu sofrimento:
A transmissão de Lacan do futuro do texto de
Freud sobre a repetição, e de uma forma geral, a
transmissão da escrita psicanalítica, não consiste
no conhecimento de uma morte que pode sim-
plesmente ser vista, mas, precisamente, na trans-
missão do ato de acordar. Abrindo os olhos outro,
o acordar consiste não apenas em ver, mas em pas-
sar a outro (e outro futuro) o ver que ele não con-
tém e nem pode conter35. (grifo nosso).

Destarte, o trabalho terapêutico precisa ser


compreendido dentro do “dever de memória” e do
resgate dos testemunhos e das narrativas do trauma,
visto que os espaços de escuta destas narrativas são os
momentos de se assumir a responsabilidade compartilhada
pelo outro violado. E aqui, terapêutico adquire um sen-
tido para além da clínica, pois é preciso haver a terapia

34
CARUTH, Cathy, ob. cit.p.131.
35
CARUTH, Cathy, ob.cit.p.135.

 
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 325

social, capaz de cicatrizar as “feridas na memória coleti-


va36”.
Portanto, para que ocorra uma reparação inte-
gral – claro que dentro daquilo que ainda é possível
reparar – torna-se necessário o estabelecimento de polí-
ticas públicas de memória, verdade e justiça que abram
espaços e tempos para o testemunho, com o desejo polí-
tico de escutar suas narrativas. Neste sentido, se o ana-
lista, na sessão analítica, é o fiador de um tempo em
que a violência não é autorizada, realização, ao longo
de todo o tratamento, da prescrição ética 'Não mata-
rás'37; no âmbito coletivo, nós somos os analistas e fia-
dores deste tempo.

2. O processo transicional brasileiro e a escuta das


vítimas

Partindo dos delineamentos teóricos feitos na


primeira parte deste artigo, bem como das referências
ao cenário transicional latino-americano, vamos agora
tratar mais de perto do contexto específico da transição
política brasileira em relação à ditadura civil-militar.
Cabe, antes de tudo, indagar se no processo de transi-
ção política brasileira o indispensável espaço de aco-
lhimento público do testemunho ocorreu e em que me-
dida.
O marco jurídico e político da transição brasilei-
ra foi a Lei N° 6683/1979, a Lei de Anistia. A partir
dela, iniciou-se de modo irreversível e paulatino a
transição política rumo à democracia. Muito embora a
Lei tenha surgido como uma espécie de concessão do
governo militar, ela só foi possível porque a forte mobi-
lização popular em torno da Anistia, que já vinha se

36
Expressão utilizada por Paul Ricoeur, na obra já citada, “A memória,
a história, o esquecimento”.
37 LANDA, ob.bit., p.24.
326 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

desenrolando desde alguns anos, criou um ambiente


político e social propício para que a ala ditatorial favo-
rável ao abrandamento do regime ganhasse a queda de
braço com a chamada linha dura. A Lei N° 6683/79 foi
fruto de uma batalha política que instantaneamente
beneficiou milhares de pessoas, permitindo o retorno
dos exilados e a progressiva libertação dos presos polí-
ticos. Paradoxalmente, e apesar de tudo isto, a Lei de
Anistia foi também o passaporte dos agentes da dita-
dura para uma transição na qual nenhum dos seus
crimes viria a ser investigado e punido. Foi uma anistia
abstrata, sem individualizações38, sem espaço para que
se conhecesse os fatos e as narrativas da violência so-
frida e praticada. Aqui a anistia assumiu o seu sentido
clássico de esquecimento, alimentando o negacionismo
dos crimes praticados pela ditadura e dos atos de resis-
tência e militância política, protagonizados pelas víti-
mas do regime de força. Em um cenário como este, a
insistência da vítima em abrir espaço para o seu teste-
munho exige um esforço colossal e uma enorme capa-
cidade de superação, e figura aos olhares incrédulos e à
escuta indiferente como um ato de ressentimento, ou,
para usar o termo mais comumente adotado pelos que
defenderam e defendem a ditadura, de "revanchismo".
Quando a memória do horror vivido em um
contexto de violência massiva não encontra espaço pa-
ra ser narrada na sociedade ainda traumatizada e se-
duzida pela falsa ideia de que é "civilizada" e não tem
nenhuma conta a prestar, o ressentimento das vítimas
pode se transformar em uma barreira para o esqueci-
mento do trauma social, assumindo no plano político
uma atitude de interpelação das autoridades inertes e

38
Com exceção dos que já estavam condenados pelos chamados "cri-
mes de sangue", que foram explicitamente excluídos da anistia, todos
dos movimentos de resistência armada à ditadura e nenhum dos agen-
tes da repressão que praticaram terrorismo de Estado, já que estes não
foram investigados até hoje.

 
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 327

amortecidas e da sociedade incrédula. Em situações


assim, as manifestações de ressentimento podem não
ser um abuso de memória, mas sim, um último recurso
que resta às vítimas dessas violências para recolocar a
necessária questão do reconhecimento da gravidade do
que ocorreu e do papel de resistência política exerci-
do39. De todo modo, o puro ressentimento, assim como
o próprio trauma não enfrentado terapeuticamente
pela memória, não são capazes de desarmar a violência
e sua reprodução mimética40. O lugar do testemunho é
aquele que possibilita a reconstrução simbólica da es-
tima perdida. A luta pela sua abertura e conquista ja-
mais pode ser confundida depreciativamente como
vingança, "revanchismo" ou ressentimento. Designar
de "ressentido" o sobrevivente que luta para abrir este
espaço em uma sociedade amortecida pela amnésia e
pelo negacionismo é cometer uma segunda violência,
não só com a vítima, mas com toda a sociedade.

39
É o que anota Reyes Mate: "O ressentimento como atitude moral nasce
quando os sobreviventes constatam que a história se vai construir
como sempre, de costas para os vencidos. (...) O ressentimento pessoal
protesta contra essa cicatrização do tempo que converte o esquecimen-
to numa segunda natureza, como se a sociedade amnésica fosse o
natural e o recordar uma agressão á natureza." (MATE, op.cit.,p.222-
223). Também Maria Rita Kehl indica que a pecha de "ressentidos"
atinge muitas vezes aqueles que simplesmente procuram lutar pelo
reconhecimento das violências que sofreram mas que não são bem-
vindos em sua luta. "O expediente corriqueiro - por má-fé ou mal-
entendido? - de chamar de 'ressentidos'aqueles que não desistiram de
lutar por seus direitos e pela reparação das injustiças sofridas não
passa de uma forma de desqualificar a luta política em nome de uma
paz social imposta de cima para baixo" (KEHL, Maria Rita. Tortura e
sintoma social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir [orgs.]. O que
resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
p.123).
40 RUIZ, Castor Bartolomé. (In)justiça, violência e memória: o que se

oculta pelo esquecimento, tornará a repetir-se pela impunidade. In:


SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás;
ABRAO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição nas Américas - olhares
interdiscilinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizon-
te: Forum, 2013. prelo
328 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

O apelo pela narração da memória traumática


não é apenas uma necessidade terapêutica para as pes-
soas que sofreram a violência diretamente, mas tam-
bém o é para a sociedade e suas instituições, que ainda
não estão conscientes do que se passou e consequen-
temente não puderam regenerar a perversão do espaço
comunitário, desviado para o apoio e a prática de cri-
mes contra a humanidade. É, em verdade, uma questão
de princípios. É não achar normal que o espaço públi-
co, mediante as suas instituições e grupos, possa tratar
pessoas como coisas, adotando a tortura, o extermínio e
a censura como práticas e políticas sistemáticas contra
os próprios cidadãos. É não achar normal que o sistema
político e as leis que dele emanam possam se dar às
espaldas da participação popular.
Em uma sociedade ainda refém do negacionis-
mo a tendência é estigmatizar o reclamo da vítima e,
ainda pior, torná-la culpada pela sua própria desventu-
ra, afinal a sociedade não teria nenhuma culpa a reco-
nhecer. É em situações sociais como essa que se torna
tão fácil, por exemplo, dizer que os frades dominicanos
torturados pela "equipe" de Sérgio Fleury foram culpa-
dos pela morte de Carlos Marighella; ou de afirmar que
a culpa pelo incremento da brutalidade das ações da
polícia política da ditadura adveio do sequestro do
Embaixador estadunidense operado por um consórcio
de organizações clandestinas de combate à ditadura em
1969.
O que se oculta na primeira afirmação é que "a
fala na tortura é obra do torturador, não do tortura-
do"41. A tortura consiste justamente em retirar do tortu-
rado a sua autonomia e em obrigá-lo a uma espécie de
fratura moral, na qual o alívio do suplício físico pode
se tornar justamente uma fratura moral perene. A in-
formação extraída a fórceps não é obra da vontade da

41
MAGALHÃES, Mário. Marighella - o guerrilheiro que incendiou o
mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.564.

 
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 329

vítima, e por ela não deveria sentir-se culpada. O nega-


cionismo ou a normalização da tortura e da violência
fazem, contudo, que só reste a própria vítima como
responsável pela prisão, tortura ou morte dos seus
próprios companheiros, e que a já torturada consciên-
cia da vítima some-se o coro do senso comum da soci-
edade e até dos seus próprios camaradas.
Isto leva a identificar o que fica oculto na se-
gunda afirmação, o fato de que não foram os grupos de
resistência que instauraram a ditadura, que depuseram
um Presidente eleito pelo voto popular, que rasgaram
uma Constituição construída por uma autêntica As-
sembleia Nacional Constituinte e que colocaram em
ação um governo que assume como política sistemática
a violação de direitos básicos da população. Quem fez
isto foram os militares golpistas e os grupos sociais que
os apoiaram. O culpado pela resistência não é quem
resiste, mas sim o agressor que viola os seus legítimos e
fundamentais direitos, ainda mais quando o faz a par-
tir do assalto das estruturas e aparelhos do Estado. Não
se pode culpar os jovens que aderiram à luta armada
pela opção que fizeram, uma escolha dificílima e abne-
gada, mas antes disto, deve-se identificar a responsabi-
lidade na instauração de uma ditadura que impedia de
modo brutal a manifestação de qualquer ação política
que lhe fosse contrária. Em suma, o aumento da bruta-
lidade da ditadura deve-se a ela própria e aos agentes
públicos e civis que a apoiaram.
Até a Constituição de 1988, o cenário da transi-
ção brasileira quanto ao reconhecimento das vítimas da
ditadura era o do negacionismo pleno. Até mesmo as
reparações profissionais presentes na Lei N° 6683/1979
e na EC N° 26/1985 eram submergidas na ideia de
apagamento da violência praticada pelo Estado e do
sofrimento experimentado pelas vítimas. Muito embo-
ra a Constituinte tenha reacendido a ação política dos
movimentos sociais e tenha gerado uma Constituição
que trouxe muito mais direitos e princípios democráti-
cos e de respeito aos direitos humanos que o controle
330 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

ditatorial da transição estivesse disposto a tolerar, o


fato é que não foram içadas à luz as contas não pagas
da ditadura.
Este cenário começa a experimentar alguma
mudança com a constituição, em 1991 de uma Comis-
são de Representação Externa da Câmara dos Deputa-
dos para acompanhar as buscas no cemitério de Perus
em São Paulo e apoiar as famílias dos desaparecidos.
Iniciativa do Deputado Nilmário Miranda esta Comis-
são funcionou por três anos e construiu um importante
acúmulo para que surgisse em 1995, também por obra
de Nilmário Miranda a Comissão Permanente de Direi-
tos Humanos da Câmara dos Deputados, que assumiu
como primeira questão o reconhecimento da responsa-
bilidade do Estado brasileiro pelos crimes da ditadura.
Diante deste cenário e a partir da pressão feita
sobre o então Presidente Fernando Henrique Cardoso,
foi editada a Lei N° 9.140/1995, que reconhece a res-
ponsabilidade do Estado brasileiro pelo desapareci-
mento de 136 pessoas e institui a Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos para averiguar outros
casos de desaparecimento e também de mortes, che-
gando-se ao montante, até agora, de 396 mortos e de-
saparecidos políticos. No ano de 2007 a CEMDP publi-
cou o seu relatório no formato de um livro, intitulado
"Direito à Memória e à Verdade"42, e que se tornou a
primeira grande publicação estatal de reconhecimento
dos crimes praticados pela ditadura.
Muito embora, a Comissão tenha contado com
comissionados que foram vítimas da ditadura e em
suas investigações tenha contado também com o de-
poimento de tantas outras, ela não constituiu um espa-
ço público de escuta das vítimas. Houve uma prioriza-

42
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Espe-
cial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à
memória. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.

 
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 331

ção do perfil investigativo da Comissão para elucidar


as circunstâncias dos assassinatos e desaparecimentos.
No ano de 2001, passada mais de uma década
da promulgação da Constituição de 1988, é que final-
mente veio a regulamentação do Art. 8º do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. Tal previsão
constitucional é o marco jurídico-legal de um novo
conceito de anistia no processo transicional brasileiro.
Em primeiro lugar, é preciso registrar que ali o consti-
tuinte firmou, com clareza inequívoca, que a anistia era
devida aos que “foram atingidos, em decorrência de
motivação exclusivamente política, por atos de exce-
ção, institucionais ou complementares”. Ou seja, ne-
nhuma palavra aqui nem no resto do texto constitucio-
nal sobre anistia a crimes conexos ou aos que tenham
promovido a repressão.
Portanto, ao contrário do que foi argumentado
no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental Nº 153 no âmbito do Supremo
Tribunal Federal, a anistia aos agentes da ditadura não
foi recebida pelo texto constitucional de 198843. Por ou-
tro lado, também não foi expressamente repudiada. De
todo modo, ao não mencionar o tema e ao assinalar o
forte repúdio à tortura, considerada crime inafiançável
e insuscetível de graça ou anistia44, a partir dos seus

43
Nesta altura, nos servimos dos apontamentos realizados em: SILVA
FILHO, José Carlos Moreira da. A ambiguidade da anistia no Brasil:
memória e esquecimento na transição inacabada. In: PIOVESAN, Flá-
via; SOARES, Inês Virginia Prado (orgs.). Direito à verdade e à justiça.
Belo Horizonte: Forum, 2013. prelo.
44
No Art. 5º, XLIII a Constituição estabelece esta condição, comple-
mentada pela Lei 9.455/97. Importa mencionar, além disso, o Art. 5º,
§4º que reconhece a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacio-
nal. O Tratado de Roma penetra a ordem jurídica interna brasileira por
força do Decreto Legislativo Nº 4.388/2002, estabelecendo explicita-
mente que a tortura praticada de forma sistemática a parcelas da po-
pulação civil, ou seja, como prática de um crime contra a humanidade
é imprescritível. Por fim, a Constituição demarca no Art. 5º, XLIV que
"constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos arma-

 
332 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

princípios e direitos fundamentais, a Constituição reve-


la-se um local muito pouco confortável para abrigar a
anistia aos crimes conexos, entendida como a anistia
aos crimes dos agentes da ditadura. Há uma evidente
contradição principiológica e valorativa no argumento
de que a Constituição brasileira de 1988 endossa a anis-
tia a tais crimes.
Além de excluir da sua apreciação a anistia aos
crimes da ditadura, o Artigo 8º do ADCT lançou as
bases de uma verdadeira política de reparação aos ex-
perseguidos políticos. Porém, como era de se esperar
naquele ambiente ainda mutilado politicamente, con-
taminado pelo esquecimento forçado e seguido de per-
to pelo autoritarismo, a lei regulamentadora dessa polí-
tica de reparação sinalizada pelo texto constitucional só
viria à luz mais de 20 anos depois, mais precisamente
em 2001.
Os anistiandos brasileiros, organizados em As-
sociações representativas, finalmente conseguiram se
articular o suficiente para pressionar o governo Fer-
nando Henrique Cardoso a regulamentar o Art.8° do
ADCT via Medida Provisória, a MP N° 2.151 de 2001,
com a participação do então Ministro da Justiça José
Gregori. Registre-se que o mesmo governo já tinha o
mérito da instauração da Comissão de Mortos e Desa-
parecidos Políticos e do reconhecimento oficial da prá-
tica do desaparecimento forçado por parte do Estado
brasileiro na Lei N° 9.140 de 1995, o que também foi o
resultado da decisiva mobilização dos amigos e famili-
ares de mortos e desaparecidos políticos45.

dos, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado De-


mocrático". Ora não foi exatamente isto que fizeram os militares gol-
pistas de 1964, com o apoio de grupos civis?
45
Importante também mencionar os esforços de diversas Comissões
especiais formadas nos diferentes Estados da Federação com o intuito
de fornecer reparações civis aos que sofreram sevícias e maus tratos
nas mãos dos agentes da ditadura.
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 333

Posteriormente, a MP N° 2.151/2001 foi conver-


tida na Lei N° 10.559/2002. A nova lei de anistia, além
de prever direitos como a declaração de anistiado polí-
tico, a reparação econômica, a contagem do tempo e a
continuação de curso superior interrompido ou reco-
nhecimento de diploma obtido no exterior, institui a
Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério da Justi-
ça, e que fica responsável pela apreciação e julgamento
dos requerimentos de anistia46.
Observando a atuação da Comissão de
Anistia, desde a sua criação, e, especialmente, durante
o segundo mandato do Presidente Lula, a condução do
Ministério da Justiça por Tarso Genro e a presidência
da Comissão por Paulo Abrão Pires Junior, percebe-se
uma radical mudança na concepção da anistia como
política de esquecimento. Em primeiro lugar, ao exigir
a verificação e comprovação da perseguição política
sofrida47, a lei de anistia acaba suscitando a apresenta-
ção de documentos e narrativas que trazem de volta do
esquecimento os fatos que haviam sido desprezados
pela anistia de 1979. Passa a ser condição para a anistia
a comprovação e detalhamento das violências sofridas
pelos perseguidos políticos.

46
A Comissão é composta hoje por 25 Conselheiros e Conselheiras
escolhidos e nomeados pelo Ministro da Justiça, e liderados pelo Pre-
sidente da Comissão de Anistia, também escolhido pelo Ministro. Dos
membros da Comissão um necessariamente representa o Ministério da
Defesa e outro representa os anistiandos. Os membros da Comissão
possuem, quase todos, formação jurídica, e, de um modo geral, atuam
na área dos direitos humanos. Os Conselheiros não recebem pagamen-
to pelo seu trabalho, considerado, de acordo com a lei, de relevante
interesse público. O conselho funciona como um tribunal administra-
tivo, mas a responsabilidade final da decisão é do Ministro da Justiça,
completando-se o processo de anistia apenas após a assinatura e pu-
blicação da Portaria Ministerial.
47
Em seu art. 2º, a Lei 10.559/2002 prevê ao todo 17 situações de per-
seguição por motivação exclusivamente política que justificam o reco-
nhecimento da condição de anistiado político e os direitos dela decor-
rentes. Aqui estão prisões, perda de emprego, ser compelido ao exílio,
ser atingido por atos institucionais, entre outras situações.
334 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

Nas sessões de julgamento da Comissão


de Anistia, os requerentes que estão presentes são con-
vidados a se manifestarem, proporcionando em muitos
casos importantes testemunhos, que são devidamente
registrados. Os autos dos processos contêm uma narra-
tiva muito diferente daquela que está registrada nos
arquivos oficiais. Os processos da Comissão de Anistia
fornecem a versão daqueles que foram perseguidos
políticos pela ditadura militar, contrastando com a vi-
são, normalmente pejorativa que sobre eles recai a par-
tir dos documentos produzidos pelos órgãos de infor-
mação do período.
Durante a gestão de Tarso Genro no Mi-
nistério da Justiça e de Paulo Abrão Pires Junior como
Presidente da Comissão de Anistia, a Comissão passou
a implementar políticas de memória. Umas das mais
expressivas e que vem alcançando grande repercussão
nacional são as Caravanas da Anistia. Nelas, a Comis-
são se desaloja das instalações do Palácio da Justiça em
Brasília e percorre os diferentes Estados brasileiros pa-
ra julgar requerimentos de anistia emblemáticos nos
locais onde as perseguições aconteceram, realizando os
julgamentos em ambientes educativos como Universi-
dades e espaços públicos e comunitários48.

48
Até março de 2013, 66 Caravanas foram realizadas em todo o Brasil.
Em recente publicação, apoiada pelo Projeto Marcas da Memória, está
o detalhamento das primeiras 50 Caravanas realizadas acompanhado
de textos escritos sobre o significado das Caravanas, de autoria de
diversas personalidades dentre artistas, intelectuais, pesquisadores,
ex-perseguidos políticos, juristas, jornalistas, entre outros. Ver:
COELHO, Maria José H.; ROTTA, Vera (orgs.). Caravanas da Anistia:
o Brasil pede perdão. Brasília: Ministério da Justiça; Florianópolis:
Comunicação, Estudos e Consultoria, 2012. Uma descrição mais sucin-
ta de todas as Caravanas realizadas de 2007 a 2010 pode ser vista em:
Ações Educativas da Comissão de Anistia - relatório de gestão 2007-
2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. Para as Caravanas mais
recentes, inclusive com vídeos, entrevistas e transcrição de depoimen-
tos, ver o Blog do Ministério da Justiça no site:
http://blog.justica.gov.br.

 
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 335

Durante esses julgamentos, todos os procedi-


mentos, inclusive os debates e as divergências entre os
Conselheiros e as Conselheiras, são realizados às cla-
ras, diante de todos os presentes e contando sempre
com o testemunho emocionado de muitos anistiandos e
anistiandas. Esses testemunhos expressam de modo
cristalino as características do testemunho como liga-
ção entre memória e história. A experiência das Cara-
vanas da Anistia permite que se vivencie algo insubsti-
tuível: testemunhar o testemunho. A narrativa do so-
frimento é quase impossível, mas, como disse Adorno,
é a condição de toda verdade49. É a possibilidade de
recolocar no plano simbólico a violência negada e repe-
titiva50.
Os efeitos multiplicadores e educadores das Ca-
ravanas são visíveis. Elas dialogam com públicos de
jovens, adultos e idosos provenientes dos mais diferen-
tes grupos sociais, projetando-se igualmente em inú-
meros registros da mídia impressa51 e televisiva.

49
ADORNO, Theodor W. Dialectica negativa. Tradução de Alfredo
Brotons Muñoz. Madrid: Akal, 2005. p.28.
50 Em 2012, em meio ao Festival de Cinema do Rio de Janeiro, ocorreu

o lançamento do documentário "Eu me lembro", de Luiz Fernando


Lobo, que faz um registro das Caravanas da Anistia a partir das
filmagens feitas em todas as Caravanas ocorridas e contando com
entrevistas das pessoas que foram anistiadas nessas Caravanas. O
filme foi financiado com verba do Edital Marcas da Memória.
Divulgado anualmente desde 2010 o Edital Marcas da Memória faz
parte das políticas de memória executadas pela Comissão de Anistia e
tem por objetivo destinar verba pública a projetos culturais, artísticos e
científicos voltados ao resgate da memória política brasileira. Ver:
BAGGIO, Roberta Camineiro. Marcas da Memória: a atuação da
Comissão de Anistia no campo das políticas públicas de transição no
Brasil. In: Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 48, N. 2, p.
111-118, mai/ago 2012.
51
Ver: SILVA FILHO, José Carlos. A Comissão de Anistia e a Concre-
tização da Justiça de Transição no Brasil - Repercussão na Mídia Im-
pressa Brasileira - Jornal O Globo - 2001 a 2010. In: SILVA FILHO, José
Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRAO, Paulo
(Orgs.). Justiça de Transição nas Américas - olhares interdiscilinares,
336 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

O momento alto das Caravanas e de todas as


sessões de apreciação de requerimentos de anistia é,
sem dúvida alguma, a realização dos testemunhos
sempre que os requerentes ou seus conhecidos e fami-
liares encontram-se presentes. Significativo também, o
que já indica a mudança de sentido da anistia a partir
das práticas da Comissão e do que estabelece o texto
constitucional, é o pedido formal de desculpas em no-
me do Estado brasileiro aos que por ele foram perse-
guidos no passado52.

fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Forum, 2013.


prelo.
52
Diante disto e de tantas outras ações que vem sendo desenvolvidas
pela Comissão de Anistia soa no mínimo incompreensível a crítica
feita por Glenda Mezarobba de que o fato de a Comissão ser chamada
de Comissão de "Anistia" seja o suficiente para desacreditar as suas
ações. A autora parece não perceber o aspecto libertário e memorialís-
tico presente na palavra "anistia" e o seu caráter historicamente ambí-
guo no Brasil. Ela ainda afirma o seguinte: "Como se pode conceber
que tais perseguidos precisem, ainda hoje, ingressar no órgão instala-
do no Ministério da Justiça com um pedido de anistia política e, em
caso de tal pedido ser aceito, aguardar pela publicação da 'concessão
do benefício' no Diário Oficial da União, exatamente como era no gover-
no do general João Baptista Figueiredo, depois da aprovação da anis-
tia? Por que as vítimas, e não o Estado, têm de pedir perdão pelos
sofrimentos que lhes foram impingidos? Isso sem mencionar as recém-
criadas Caravanas da Anistia, parte integrante de um projeto de edu-
cação em direitos humanos da comissão, cuja proposta é percorrer
todos os estados do país, difundindo 'conhecimento histórico' e bus-
cando mobilizar a sociedade para o tema, inclusive com o julgamento
de casos, algumas vezes na presença do próprio ministro da Justiça. Se
em sentido amplo o significado da anistia é esquecimento, o que seria
isso, senão a permanência da lógica do arbítrio, da falta de memória,
da omissão, ainda que em sua concepção os objetivos a serem realiza-
dos possam ser outros?" (MEZAROBBA, Glenda. O processo de acerto
de contas e a lógica do arbítrio. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson
[Orgs.]. O que resta da ditadura - a exceção brasileira. São Paulo: Boi-
tempo, 2010. p.117). Ora, pressupõe-se que todo o pesquisador quando
se debruça sobre um fato da realidade que estuda busque fazê-lo
aproximando-se deste fato. Diante das observações feitas pela autora, é
possível deduzir que não ocorreu, no seu caso e com relação às Cara-
vanas da Anistia, tal aproximação. Para começar, quem pede perdão,
como já foi mencionado, não são as vítimas e sim o Estado. Em segun-
do lugar, a anistia da qual trata a Lei N° 10.559/2002 e a Constituição
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 337

Tal pedido é formulado de viva voz pelo Presi-


dente da sessão ao comunicar o resultado de deferi-
mento do pedido e integra o texto do voto vencedor53.

em seu Art. 8° do ADCT não é a anistia penal, volta-se para o aspecto


da reparação. Tanto a Lei N° 6683/1979 como a EC N° 26/1985, além
de tratarem da anistia penal, também estabeleceram, ainda que de
modo restrito, o direito à reparação, o que ajuda a explicar porque o
tema da reparação ficou vinculado ao tema da anistia. Porém, a Cons-
tituição de 1988 desvincula a reparação da idéia de "crime político" e a
aproxima do conceito de "perseguição política", mudando radicalmen-
te o sinal. O fato de esta reparação, que não é só econômica, mas é
também moral, ser chamada de "anistia" não a torna algo arbitrário e
tampouco a vincula à noção de esquecimento. O significante anistia
comporta outros significados, especialmente em um país como o Bra-
sil, no qual o termo tem experimentado flagrante ambiguidade, já que
expressa igualmente uma conquista obtida por impressionante mobili-
zação popular e estabelece o marco da redemocratização brasileira
(Ver: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. A ambiguidade da anistia
no Brasil: memória e esquecimento na transição inacabada. In:
PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado [orgs.]. Direito à
verdade e à justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2013. prelo). Quanto ao
reclamo de Mezarobba de que o procedimento da concessão da repa-
ração seja igual ao da época de Figueiredo, importa dizer que o Estado
não deve mesmo conceder de ofício tal reparação. É um direito do ex-
perseguido político querê-la ou não, havendo até mesmo os que a
repudiam. E é claro que o pedido deverá ser analisado e, caso conce-
dido, que a decisão seja publicada mesmo no Diário Oficial da União,
como o devem ser todos os atos públicos. Basta lembrar que cerca de
34% dos pedidos feitos à Comissão foram indeferidos, e que muitos
não guardavam qualquer relação com a perseguição política praticada
na ditadura. Por fim, as aspas que a autora coloca na expressão "co-
nhecimento histórico", atribui uma conotação pejorativa às Caravanas
da Anistia, o que é grave caso nos lembremos de que nelas o ponto
alto é justamente o testemunho dos que foram perseguidos politica-
mente. Figuras como Clara Scharf, Teodomiro Romeiro dos Santos,
Gilney Vianna, João Vicente Goulart Filho, Joseph Comblin, Rose No-
gueira, Alípio Freire, Maurice Politti, Perly Cipriano, Suzana Lisboa,
Iara Xavier Pereira, Raul Pont, Hildegard Angel, Carlos Eugênio da
Paz, Denise Crispim, e tantos outros já deram seu testemunho em
Caravanas que reunem jovens, adultos e idosos em locais públicos e
espaços educativos. Afirmar que estes e tantos outros testemunhos não
contribuem para divulgar conhecimento histórico sobre a ditadura é
no mínimo estranho.
53 Reforçando o reconhecimento do dano transgeracional, a Comissão

de Anistia, tanto em meio às Caravanas como em meio às suas


338 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

Ampliando a reparação e evidenciando o cui-


dado e a preocupação com o olhar das vítimas da re-
pressão ditatorial, a Comissão de Anistia lançou em
março de 2013 o Projeto Clínicas do Testemunho, que
pretende fornecer assistência psicológica aos que foram
atingidos pela repressão política. O projeto contou em
sua preparação com o auxílio de especialistas da área e
será executado em parceria com instituições aprovadas

audiências regulares em Brasília já promoveu sessões de apreciação de


requerimentos de filhos de perseguidos políticos, que reivindicavam
prejuízos próprios pela perseguição que seus pais sofreram, seja por
terem sido diretamente atingidos pela brutalidade dos agentes da
repressão, seja por terem sido forçados a viver no exílio ou na
clandestinidade ou serem estigmatizados como filhos de terroristas e
subversivos. Alguns dos casos mais marcantes são os de Eduarda
Crispim Leite e Carlos Alexandre Azevedo. Eduarda Crispim Leit teve
o seu requerimento de anistia apreciado e deferido no dia 06/03/2009.
Emocionada, em seu testemunho narrou sobre o drama de nunca ter
conhecido pessoalmente o seu pai, Eduardo Leite, o Bacuri, morto
após intermináveis torturas praticadas pelos agentes da repressão
quando ela ainda estava no ventre materno, e do seu pai não ter quase
nenhum registro ou objeto pessoal, já que ele vivia mergulhado na
clandestinidade. O caso de Eduarda e também de Denise Crispim, sua
mãe, é contado de modo profundo e delicado no filme "Repare Bem",
dirigido pela atriz portuguesa Maria de Medeiros e financiado por
verba oriunda do Edital Marcas da Memória. O filme "Repare Bem" foi
lançado em meio à 55a. Caravana da Anistia, feita na Cinemateca em
São Paulo no dia 08/03/2012 em homenagem ao dia da mulher. Já o
caso de Carlos Alexandre Azevedo foi apreciado e deferido no dia
13/01/2010, e em seu testemunho ele afirmou o quanto era importante
poder falar do que passou e se sentir compreendido pelo Estado ali
representado pela Comissão. Em matéria publicada na Revista Isto É
em janeiro de 2010 afirmou: “Muita gente ainda acha que não houve
ditadura nem tortura no Brasil. No julgamento, em Brasília, me senti
compreendido. As pessoas sabiam que o que eu vivi foi verdade. A
indenização não vai apagar nada do que aconteceu na minha vida.
Mas a anistia é o reconhecimento oficial de que o Estado falhou
comigo. Para mim, a ditadura não acabou. Até hoje sofro os seus
efeitos. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social”
(AZEVEDO, Solange. "A ditadura não acabou". In: Isto É
independente, n.2099, 29 janeiro de 2010. Disponível em:
http://www.istoe.com.br/reportagens/46424_A+DITADURA+NAO
+ACABOU+. Acesso em 19/04/2013). Como já foi destacado acima,
infelizmente Carlos Alexandre não resistiu às sequelas nele deixadas
pela brutalidade da ditadura e veio a se suicidar em fevereriro de 2013.
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 339

em Edital público que receberão verba, apoio e estrutu-


ra para dar conta de prover essa assistência54.
Na prática, portanto, a Comissão de Anistia tem
se revelado o único espaço público de escuta das víti-
mas da ditadura civil-militar no conjunto dos meca-
nismos transicionais implementados no Brasil. Mas não
deveria ser assim. Em nosso entendimento, a Comissão
Nacional da Verdade, instalada no início de 2012 a par-
tir da Lei N° 12.528/2011 deveria igualmente se trans-
formar em um espaço público do testemunho dos per-
seguidos pela ditadura. Uma das principais razões é a
alta visibilidade e mobilização social das quais se re-
vestiu o processo de discussão, criação e constituição
da CNV. Seria a ocasião perfeita para ampliar os im-
portantes e necessários efeitos da escuta pública do
testemunho, o que poderia ser feito até mesmo median-
te convênios com canais públicos de televisão para
amplificar o impacto dos testemunhos, lembrando, por
exemplo, o que ocorreu na Comissão da Verdade e Re-
conciliação da África do Sul.
Todavia, passado já um ano da constituição da
CNV, o que se percebe é a eleição de uma estratégia
eminentemente investigativa, o que traz dois graves
problemas: o testemunho vira depoimento, e as audi-
ências são secretas55. Membros da CNV tem repetido

54
O projeto será executado primeiramente nas cidades de São Paulo,
Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro, com a expectativa de ampliação
para outras cidades em uma segunda fase. Para maiores informações
ver: http://blog.justica.gov.br/inicio/tag/clinicas-do-testemunho/
(Acesso em 14.04.2013). Outro aspecto digno de nota é que a experiên-
cia das Clínicas do Testemunho poderá ser aproveitada para que se
efetive um projeto semelhante para o tratamento de vítimas das atuais
práticas criminosas de agentes públicos, especialmente, da tortura,
ainda numerosa no país.
55
Compartilham dessa avaliação Marcelo Cattoni e Emilio Peluso: "(...)
há uma série de razões para que uma comissão estabeleça audiências
públicas. Elas podem permitir um envolvimento maior da sociedade
na questão de revolver devidamente seu passado em prol de um dever
consciente de memória; encorajam o conhecimento do sofrimento de
340 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

que o produto principal da Comissão será o relatório


final e que, portanto, os depoimentos das vítimas, as-
sim como o dos perpetradores deverá ser secreto, pois
do contrário as investigações seriam prejudicadas.
Cremos, porém, que o tom investigativo deveria se
concentrar mais em relação às falas dos perpetradores,
estas sim entendidas como depoimentos. Não vemos
razão para fazer o mesmo com os testemunhos das ví-
timas.
Os testemunhos se traduzem em práticas tera-
pêuticas para as vítimas; ao mesmo tempo em que são
momentos pedagógicos para o conjunto social, pois
este passa ao menos, a discutir a eleição dos “bodes
expiatórios” e rever os rótulos de “inimigos sociais”
impostos por quem usurpara o poder. Neste aspecto, o
caso brasileiro, tão repleto de singularidades, ainda
que pesem os longos anos de política do esquecimento,
de impedimento dos testemunhos, de instrumentaliza-
ção com a posterior “banalização” da tortura; pode
apresentar soluções diferenciadas e mais integradas
para uma política pública de reparação das vítimas.
Em outras palavras, uma das grandes vantagens
de se fazer uma Comissão da Verdade muitos anos
depois da reabertura democrática, é que já não será
preciso ou justificável, que tal Comissão se curve aos
vícios do poder (como aconteceu nos países vizinhos).

vítimas que pode cooperar para a diminuição da negação da verdade


por amplos setores da sociedade; e, também, tornam o próprio traba-
lho da comissão mais suscetível de ser compreendido por toda a esfera
pública. Isto torna possível mudar o foco para unicamente a produção
do relatório final, deslocando-o para o próprio processo de desenvol-
vimento da busca pela verdade. O exemplo sul-africano, neste ponto, é
marcante: horas de relatos eram transmitidos ao vivo pelas rádios,
assim como um programa semanal de resumo dos depoimentos alcan-
çou um dos maiores índices de audiência da televisão local
(OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; MEYER, Emilio Peluso
Neder. Comissão Nacional da Verdade e sigilo: direito à memória e à
verdade? Revista Internacional Direito e Cidadania, São Paulo, Edi-
ção Especial Dr. Rômulo Gonçalves: A verdade e o acesso à informa-
ção como direitos humanos, 2013).
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 341

Outro fator importante, é que a Comissão da Verdade


brasileira, pode aprender com os erros cometidos pelas
Comissões da Verdade anteriores, no continente56; nes-
te caso, sendo de suma importância o espaço dado ao
testemunho como espaço de escuta das vítimas.
Neste sentido, há uma brutal diferença no tra-
tamento dado à palavra das vítimas, dentro do âmbito
do testemunho e na maneira de se acolher a palavra
dos seus algozes, esta última sob a forma de depoimen-
to. Enquanto a primeira possibilita a narrativa do
trauma, com a aceitação da linguagem no sentido mais
amplo, com a publicização dos testemunhos para que
mais pessoas possam ser ouvintes da história revivida;
a segunda tem a necessidade de buscar informações
que até hoje foram negadas, constituindo-se do aspecto
investigativo, assim como se faz em qualquer produção
de inquérito. Tal decisão não é uma tarefa fácil, porém,
é o que diferencia uma Comissão comprometida com o
direito à verdade, de outras constituídas apenas for-
malmente pelo Estado.
Contudo, a Comissão brasileira se aproxima de
quase 01 ano de funcionamento, sem estabelecer víncu-
los de transparência com a sociedade sobre o trabalho

56
Um dos estudos recentes sobre as Comissões da verdade foi o de
Eduardo González Cuevas, no qual o autor disserta acerca da evolução
das Comissões conforme os Estados e as situações de violência massi-
va, em que surgiam, inclusive refere que, hoje em dia, as Comissões da
verdade tem se desenrolado de uma maneira mais complexa e com a
tendência a tratar de temas de violência massiva que se perpetuam
também nos Estados com regimes democráticos: “assim, por exemplo,
hoje seria provavelmente inaceitável que o mandato de uma comissão
não mencionasse explicitamente a violência contra as mulheres, contra
as crianças e outros setores especialmente vulneráveis ou marginaliza-
dos. Ao mesmo tempo, este compromisso com as diversidades resulta
em uma ampliação das capacidades técnicas desejadas às pessoas das
comissões.” CUEVA, Eduardo González. Até onde vão as comissões
da verdade? In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de transição: manual
para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da
Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição ,
2011.p.348.
342 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

até então desenvolvido. Apesar do site da Comissão ter


ganhado muito em qualidade nos últimos meses57, tor-
nando-se mais acessível ao cidadão, ainda falta o esta-
belecimento da comunicação direta com os grupos so-
ciais e a prestação de contas das atividades desenvol-
vidas, por meio de relatórios periódicos, para que seja
possível haver certa ciência de qual caminho será tra-
çado até o relatório final58.
Por outro lado, ressalta-se a importância da atu-
ação das Comissões Estaduais da Verdade, criadas via
decreto dos governadores ou via procedimento legisla-
tivo (como por exemplo, a Comissão Estadual da Ver-
dade “Rubens Paiva” de São Paulo). O trabalho destas
Comissões pode auxiliar qualitativa e quantitativamen-
te as investigações da Comissão Nacional. Mas para
isto, é necessário em primeiro lugar o aparelhamento
de suas estruturas físicas - pois seus membros também
são poucos – que pode ocorrer com a cessão de funcio-
nários públicos pelos poderes que as instituíram. Con-
tudo, mais além de um corpo de funcionários é preciso
também que tais Comissões estejam dispostas a traba-

57Ver: http://www.cnv.gov.br (Acesso em 19/04/2013).


58
Em matéria vinculada no dia 31 de janeiro de 2013, o jornal Brasil de
Fato, trouxe as análises parciais do observatório da Comissão da Ver-
dade, realizado por três pesquisadoras do Instituto de Estudos da
Religião (Iser). Segundo a reportagem “Um dos pontos destacados
pelo relatório é a ausência de divulgação sistemática dos trabalhos da
CNV, algo que poderia ser aprimorado para viabilizar uma mobiliza-
ção mais intensa da sociedade. A publicação de relatórios parciais seria
o caminho adequado, porém essa prestação de contas tem acontecido
apenas por meio de notícias no site que são replicadas nas redes soci-
ais Facebook e Twitter. “Essa prestação de contas com notícias é vaga
em vários sentidos e essa é a transparência que tem se delineado”,
aponta Moniza. Segundo o relatório, não é possível identificar nem
mesmo quantas pessoas foram ouvidas pelos comissionados até agora,
tampouco todos os assuntos abordados nas oitivas” (VIRISSIMO,
Vivian. Métodos da Comissão da Verdade dificultam monitoramento.
In: Brasil de Fato, 30 jan. 2013. Disponível em:
http://www.brasildefato.com.br/node/11780 . Acesso em
19/04/2013).

 
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 343

lhar em rede, por meio de Convênios de pesquisa com


Universidades e também com outros órgãos ou organi-
zações que tratem dos demais aspectos envolvidos na
reparação às vítimas.

Considerações Finais

O que é necessário compreender é que o teste-


munho não se esgota e nem se inicia com o ato perfor-
mativo diante das Comissões da Verdade, pois necessi-
ta de um acolhimento anterior, prestado pelas redes e
de um acompanhamento profissional posterior, dado
por especialistas no tratamento de traumas sociais, a
fim de que a vítima não seja “torturada” novamente
pelas lembranças traumáticas. As ações empreendidas
pela Comissão de Anistia tem servido de importante
contraponto a esta tendência, mas é preciso que elas
sejam ampliadas nas práticas das instituições e da soci-
edade.
Ressaltamos a intermitência do testemunho,
porque a incipiente experiência brasileira tem demons-
trado dificuldades em atuar de maneira transdiscipli-
nar no tratamento do trauma, o que pode gerar sérios
danos futuros, como o de transformar o que deveriam
ser espaços do testemunho, em lugares de inquisição
das vítimas, sem sua escuta, verticalizados, construídos
sem a participação social ou sem o objetivo de instau-
rar novos vínculos políticos. O risco que se corre é o de
transformar os testemunhos, ora experiência, lingua-
gem performativa e sentimentos de histórias particula-
res e coletivas, em letras mortas consignadas no relató-
rio final, sem o caráter imprescindível da cumplicidade
popular.
Como as Caravanas da Anistia têm mostrado
plenamente, o essencial nesta batalha pela memória é a
promoção de um processo de educação em Direitos
Humanos e sensibilização de jovens, adultos e idosos,
que tem a oportunidade de presenciar o testemunho
344 Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho

dos ex-perseguidos políticos. Tratar o testemunho ape-


nas como depoimento é desperdiçar uma grande chan-
ce. No momento em que se escreve este artigo resta
ainda mais um ano de trabalho para a CNV, com al-
guma possibilidade de que haja uma ampliação do
prazo de funcionamento, dadas as pressões que já se
iniciam a partir de movimentos sociais organizados.
Esperamos que ainda seja possível reverter a tendência
até aqui esboçada de deixar em segundo plano o tes-
temunho.
De todo modo, independentemente dos rumos
que a CNV venha a tomar até a conclusão dos seus tra-
balhos, são promissores os resultados a serem colhidos
pelas ações de acolhimento dos testemunhos das víti-
mas que vem sendo praticadas pela Comissão de Anis-
tia. E, certamente, a apresentação do relatório final da
CNV não encerrará o processo transicional brasileiro,
ainda carente de muitos avanços e etapas, como nos
mostra a pendência de uma condenação internacional
do país diante da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, cuja sentença ainda está longe de ser ple-
namente cumprida, e como nos mostra a timidez do
Brasil em promover a necessária reforma das suas insti-
tuições de segurança pública.
A simbolização da violência sofrida pode e deve
ser promovida e incentivada por políticas públicas,
mas não se esgota nas medidas oficiais, pelo contrário,
adquire força e significado pela participação do povo
que sofreu tamanhas injustiças, quando se colore a rua,
de memórias e de esperanças.

Referências

Ações Educativas da Comissão de Anistia - relatório de


gestão 2007-2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010.
ADORNO, Theodor W. Dialectica negativa. Tradução de
Alfredo Brotons Muñoz. Madrid: Akal, 2005.

 
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional 345

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em 19/04/2013.
Reparações e direitos econômicos,
sociais e culturais

Naomi  Roht-­‐Arriaza1  

Em suas duas primeiras décadas, a agendada


justiça transicional focalizou-se centralmente em viola-
ções de direitos básicos à integridade física. Os pro-
gramas iniciais de reparações também responderam a
esse restrito conjunto de violações: reparações foram
pagas por conta dos mortos, mas apenas mais relutan-
temente aos vivos, em lugares como Chile ou Argenti-
na. Reparações, tanto por meio das cortes, quanto por
meio de programas administrativos dos governos,
eram geralmente limitadas, quando sequer providas, a
compensações pecuniárias por mortes, desaparecimen-
tos, tortura, detenções arbitrárias ou exílios injustifica-
dos, e na forma de serviços de saúde e educação aos
sobreviventes e às famílias de vítimas de tais violações.
Em 2012, mais e mais vozes estão conclamando
às autoridades políticas para que deem atenção a um
conjunto mais amplo de violações de direitos, no que

1 Professora de Direito, Universidade da Califórnia, Hastings College

of Law. Esse artigo foi publicado originalmente em SHARP, Dustin


(editor). Transitional justice and economic violence. Springer Books, 2013 e
gentilmente cedida pela autora a tradução e publicação em português
aos organizadores do livro. Tradução: Lucas de Oliveira Gelape,
Mariana Rezende Oliveira e Jessica Holl. Revisão da tradução: Emilio
Peluso Neder Meyer.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 351

tange à justiça transicional2. Isso se deve, em parte, à


contínua fragilidade dos países pós-conflitos e pós-
ditaduras, nos quais a marginalização econômica e so-
cial estimula a violência contínua e desencoraja o entu-
siasmo pela reforma democrática. As esperanças inici-
ais de que julgamentos e comissões da verdade focadas
em crimes centrais e violações de direitos civis e políti-
cos conduziriam a democracias robustas e inclusivas
têm se mostrado, não surpreendentemente, mais com-
plicadas. Críticos, incluindo muitos de países que im-
plementaram uma ou mais medidas de justiça transici-
onal, começaram a notar que, apesar da abundância de
medidas dessa natureza, a vida cotidiana da maioria
havia pouco mudado ou mesmo se tornado pior. A
crítica à justiça transicional como demasiadamente “de
cima para baixo”, por demais conduzida pela elite e
muito suscetível a doadores ao invés de prioridades
locais, fundiu-se com um sentido de que a ênfase nos
direitos civis e políticos na justiça transicional reflete os
privilégios que esses recebem no discurso ocidental de
direitos.
Há agora um reconhecimento de que a justiça é
mais ampla do que apenas a justiça criminal e que ana-
lisar a raiz das causas dos conflitos é componente cha-
ve da busca pela verdade. A visão predominante insis-
te que direitos econômicos e sociais devem ser devi-
damente considerados tanto no que tange às violações,
quanto em suas reparações. Ampliar a agenda da justi-

2 Houve algumas defesas iniciais de uma visão mais ampla da justiça

transicional para incluir direitos econômicos, sociais e culturais (ESC).


Um trabalho seminal sobre a necessidade de distribuição ao longo da
justiça reparatória foi MANI, Rama. Beyond Retribution: seeking justice
in the shadows of war. Cambridge: Polity Press, 2002. Outro esforço
inicial para conectar impunidade e reparação para direitos ESC, embo-
ra não explicitamente no contexto da justiça transicional, está em
UNITED NATIONS SUB-COMMISSION ON THE PROMOTION
AND PROTECTION OF HUMAN RIGHTS. Final Report on the
Question of the Impunity of Perpetrators of Human Rights Violations
(Economic, Social and Cultural rights). (E/CN.4/Sub.2/1997/8). 1997.
352 Naomi Roth-Arriaza

ça transicional para que esta considere a violência eco-


nômica apresenta desafios específicos para a teoria e a
prática das reparações.
Os Estados onde as reparações são necessárias
são, geralmente, pobres, com muitos desafios simultâ-
neos e poucos recursos. Eles enfrentam a falta de infra-
estrutura adequada e oportunidades de emprego, ofer-
ta intermitente ou não existente de serviços básicos e
sistemas políticos caracterizados por clientelis-
mo/apadrinhamento, tensões étnicas e/ou frágeis
acordos pós-conflito. O número de víti-
mas/sobreviventes chega a dezenas ou mesmo cente-
nas de milhares, com necessidades agudas e variadas.
Vários desses Estados recebem quantidades significati-
vas de ajuda externa, mas tais ajudas tendem a ser por
curto prazo e inconstantes. As causas subjacentes de
conflitos armados tendem a ser tanto estruturais e rela-
cionadas a recursos pecuniários quanto ideológicas.
Ainda que haja considerável apoio à ideia de
que a justiça transicional precisa, de forma geral, lidar
mais centralmente com direitos econômicos, sociais e
culturais (direitos ESC), não está claro como as repara-
ções encaixam-se nesse cenário. Por um lado, se direi-
tos ESC devem ser assunto de investigações, relatórios
e recomendações de comissões da verdade3 e promoto-
res devem promover ações penais ao menos pelas vio-
lações de direitos ESC que também violam o Direito
Humanitário4, então seguir adiante com algum tipo de
reparação seria necessário para dar uma expressão
concreta à busca pela verdade e ao reconhecimento de

3 Ver o capítulo de Sharp na obra SHARP, Dustin (ed.). Transitional


justice and economic violence. New York: Springer Books, 2013, para uma
discussão de como recentes comissões da verdade, incluindo aquelas
da Libéria, Serra Leoa, Timor Leste e de outros países têm lidado com
violações de direitos ESC.
4 SCHMID, Evelyne. “War Crimes Related to Violations of Economic,

Social and Cultural Rights.” Heidelberg Journal of International Law, v.


71, n. 3, 2011. p. 540.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 353

injustiças, especialmente aquelas julgadas graves o su-


ficiente para serem punidas. Ultrapassar a compreen-
são de direitos ESC apenas como condições de pano de
fundo para lidar com o que as “garantias de não repeti-
ção”5 de tais violações podem implicar, requererá aten-
ção minuciosa para as retificações e reparações. Viola-
ções de direitos ESC podem ter um efeito devastador,
frequentemente estendendo-se por várias gerações,
uma vez que às vítimas são negados serviços educaci-
onais e médicos, proteção social e oportunidades de
trabalho. Em situações de conflitos armados, privações
de terra, comida, água e cuidados médicos podem ma-
tar um grande número de pessoas, e mesmo aqueles
que sobrevivem podem sofrer danos a longo prazo que
afetam a qualidade e duração de suas vidas. Expandir
o foco das violações de direitos ESC para incluir crimes
econômicos, como corrupção e usurpação, também
poderia proporcionar fundos para programas de repa-
rações6.
Por outro lado, algumas precauções devem ser
tomadas. Reparações para violações do direito são ne-
cessariamente limitadas, direcionadas e incompletas.
Como muitos estudiosos têm destacado: “em casos nos
quais a exploração econômica tem sido sistemática e
institucionalizada, reparações individuais são inade-
quadas. De fato, reparações, ao individualizar a com-
pensação, podem impedir mudanças sistêmicas ao

5 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Basic Principles and


Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross
Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of
International Humanitarian Law. A/RES60/147, 16 dez. 2005.
6 Ver, mais amplamente, CARRANZA, Ruben. Plunder and Pain:

Should Transitional Justice Engage with Corruption and Economic


Crimes? International Journal of Transitional Justice, v. 2, no. 3, p. 310-
330, 2008.
354 Naomi Roth-Arriaza

substituir a redistribuição”7. Logo, se o objetivo é obter


direitos ESC para todos, reparações são, no melhor dos
casos, um paliativo e, no pior dos casos, uma distração.
Elas também podem gerar novos conflitos entre recur-
sos destinados aos pobres e aqueles reservados para
um subconjunto dos pobres conhecidos como “víti-
mas” — muitos dos quais podem não ser os mais ne-
cessitados8. Ademais, usar um programa de repara-
ções para tentar alcançar mais profundamente desi-
gualdades estruturais é algo repleto de dificuldades,
desde as somas astronômicas necessárias até a inabili-
dade de determinar adequadamente a classe a ser be-
neficiada9. E, reciprocamente, tentar proporcionar repa-
rações para uma categoria demasiadamente ampla de
violações não será apenas proibitivamente caro, mas
gerará o risco de transformar as reparações em uma
“teoria abrangente” com vistas a criar uma grande
mudança social — uma carga que nenhum esforço de
reparações pode suportar.
Este artigo desenvolve-se da seguinte maneira:
uma breve compilação de definições e descrição de
tipos de reparações e suas potenciais contribuições pa-

7 MUVINGI, Ismael. Sitting on Powder Kegs: Socioeconomic Rights in


Transitional Societies. International Journal of Transitional Justice, v. 3, n.
2, 2009. p. 180.
8 Esse é o argumento usado pelo Presidente Mbeki da África do Sul

contra reparações para vítimas de violações de direitos da era


apartheid. Ver também MILLER, Zinaida. Effects of Invisibility: In
Search of the ‘Economic’ in Transitional Justice. International Journal of
Transitional Justice, v. 2, n. 3, 2008. p. 285 (declarando que “apenas
certas vítimas se tornam completamente parte da narrativa da reconci-
liação. Ao sofrimento de muitas vítimas vivas é negado reconhecimen-
to ou é ele relegado a um nível inferior de significado, porque seu
sofrimento é visto como politicamente problemático ou ambíguo”).
9 Para uma consideração da evolução do programa de reparações do

Peru à luz dessas preocupações, ver GARCIA-GODOS, Jemima.


Victims Participation in the Peruvian Truth Commission and the
Challenge of Historical Interpretation. International Journal of Transitio-
nal Justice, v. 2, no. 1, p. 63-82, 2008.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 355

ra a proteção e garantia de direitos ESC, seguida por


uma verificação de como programas administrativos
de reparações já existentes têm lidado com direitos co-
mo educação, saúde e habitação no contexto de “repa-
rações integrais” para outros tipos de violações. Em
seguida, o artigo desvia seus esforços para lidar dire-
tamente com violações de direitos ESC, especialmente
advindos de deslocamentos forçados e expropriação de
terras e propriedades. Finalmente, reflete sobre como
programas de reparações poderiam ser mais efetiva-
mente usados para lidar com violações de direitos so-
cioeconômicos, especialmente onde tais violações deri-
vam de discriminação e exclusão sistemáticas.

Histórico e definições

A. Direitos econômicos, sociais e culturais

Direitos econômicos, sociais e culturais têm uma


longa genealogia em teorias de justiça social, mas fo-
ram claramente definidos como “direitos humanos”
desde 1948. A Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos enumera o direito a um padrão de vida ade-
quado, incluindo alimentação e abrigo, o direito à edu-
cação, à saúde física e mental, à seguridade social, a
condições dignas de trabalho, à proteção a crianças e à
maternidade, aos benefícios da cultura e à propriedade.
O subsequente Pacto Internacional de Direitos Econô-
micos, Sociais e Culturais esclareceu muitos destes di-
reitos, ainda que, devido à sua origem na Guerra Fria,
tenha excluído o direito à propriedade. Convenções
regionais de direitos humanos, incluindo a Europeia, a
Interamericana e a Africana incluem o direito à propri-
edade, embora variem na extensão na qual os direitos
356 Naomi Roth-Arriaza

ESC são judicializáveis10. Uma série de instrumentos


subsequentes de “soft law”11 e casos de cortes nacio-
nais12 têm delineado também os contornos destes direi-
tos. Em particular, de acordo com o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, direitos
ESC são progressivos de modo que os Estados “com-
prometem-se a adotar medidas [...] até o máximo de
seus recursos disponíveis, visando assegurar, progres-
sivamente, por todos os meios apropriados, o pleno

10 A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das

Liberdades Fundamentais não inclui explicitamente direitos ESC per


se, embora eles sempre lidem com tais direitos em termos de direitos
de propriedade, garantias contra discriminação ou sobre o devido
processo. Uma Carta Social Europeia em separado, na Europa, e o
Protocolo em Direitos ESC (Protocolo de San Salvador), nas Américas,
contêm tais direitos, mas apenas alguns daqueles direitos são judiciali-
záveis por meio das cortes regionais de direitos humanos. Adicional-
mente, o Comitê Internacional sobre Direitos ESC, o comitê especial
que monitora a implementação do Pacto Internacional de Direitos
ESC, terá competência para apreciar comunicações individuais assim
que o Protocolo Facultativo que permite tais comunicações entrar em
vigor.
11 Exemplos de tais fontes de “soft law” incluem os vários “comentários

gerais” publicados pelo Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e


Culturais da Organização das Nações Unidas; “The Maastricht Guide-
lines on Violations of Economic, Social and Cultural Rights” [N.T.:
optou-se por manter em inglês o nome de publicações oficiais como
essa, em vista da indisponibilidade de tradução oficial. Uma possível
tradução seria “As Diretrizes de Maastricht sobre Violações de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais”], um conjunto de princípios a respei-
to da natureza e propósito de violações de direitos ESC desenvolvido
por um grupo da sociedade civil e por experts em direitos humanos,
adotado em 22 e 26 de janeiro de 1997; e, “The Right to Food Guideli-
nes” [N.T.: Diretrizes do Direito à Alimentação], desenvolvido pela
Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.
12 Ver os casos da Corte Constitucional Sul-Africana sobre o direito à

habitação [SOUTH AFRICA. South African Constitutional Court.


Government of the RSA v Grootboom. 2000 (1) SA 46 (CC).] e à saúde
[SOUTH AFRICA. South African Constitutional Court. Minister of
Health v Treatment Action Campaign. 2002 (5) SA 703 (CC).]; ver também
os casos da Corte Constitucional Colombiana sobre direitos de deslo-
cados forçosamente, discutidos abaixo.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 357

exercício dos direitos [...]”13. Entretanto, ainda que as


obrigações sejam progressivas, elas são reais, e Estados
devem planejar-se, programar-se e movimentar-se para
aumentar a observância destes direitos com o passar do
tempo, enquanto evitam retrocessos. As obrigações de
não discriminação do Pacto são também imediatas14.
A falta de direitos ESC, ou sua distribuição ex-
tremamente desigual, está no centro de muitos confli-
tos armados. Além disso, muitas vezes o desejo de re-
primir demandas por uma distribuição mais equitativa
de oportunidades e recursos dá início e sustenta a ma-
nutenção de ditaduras. Durante conflitos armados ou
ditaduras, a provisão de direitos ESC geralmente piora.
Instalações educacionais e médicas são destruídas ou
danificadas, seu pessoal é ameaçado ou dispersado.
Deslocamentos generalizados e expropriação forçada
de terra, casas, rebanhos e colheitas afetam direitos
básicos à comida e à moradia. Poços de água, colheitas
e outras formas de sustento são, com frequência, des-
truídos deliberadamente, e o acesso à comida, impedi-
do. É difícil, senão impossível, para muitas pessoas,
prover seu sustento ou frequentar aulas em situações
de constante insegurança e deslocamento. Fontes de
água podem ser contaminadas ou se tornar de acesso
muito perigoso; frequentar escolas torna-se uma me-
mória distante. A guerra exacerba negações de todos os
direitos ESC. Após o conflito, a população que carre-
gou o fardo da luta geralmente busca uma melhoria
nos direitos ESC como um marco de mudança positiva
que distingue a nova distribuição da antiga. Aqueles
que foram vítimas do conflito não buscarão, necessari-
amente, ser recolocados na situação em que estavam
antes que suas perdas ocorressem; pelo contrário, eles

13 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Pacto Internacional sobre


Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 3 jan. 1976. 993 U.N.T.S. 3. Parte
II, art. 2º, item I.
14 Ibid., art. 2º, item 2.
358 Naomi Roth-Arriaza

buscarão a transformação de relações sociais desiguais


como a forma mais apropriada de reparar suas perdas.
Frequentemente, mudanças no acesso a oportunidades
e recursos serão o que fazem o conflito e os sacrifícios
“valerem a pena” para os sobreviventes. Isso represen-
ta uma tarefa enorme para governos transicionais, qua-
se sempre sobrecarregados simultaneamente com
enormes expectativas, pouca capacidade, poucos recur-
sos, e um grande número de desafios econômicos e de
segurança.
Um novo governo também será medido exter-
namente por quão bem responde a demandas por di-
reitos ESC básicos. O Índice de Desenvolvimento Hu-
mano do Programa das Nações Unidas para o Desen-
volvimento tem, desde os anos 1990, ranqueado países
em termos de medidas como mortalidade e morbidade
infantil, nível educacional, direitos das mulheres e
também crescimento do PIB. Os Objetivos de Desen-
volvimento do Milênio estipulam padrões de limpeza
da água, saneamento, saúde, educação e seguridade
social, os quais governos devem buscar alcançar. Os
modelos de desenvolvimento econômico têm evoluído
consideravelmente em um caminho que é, na melhor
das circunstâncias, “sustentável” – participativo, sensí-
vel a necessidades de gênero e de minorias, ambien-
talmente sadio e equitativo. É nesta visão de um regi-
me respeitador de direitos, especialmente em como ele
considera as condições de vida e chances de setores
excluídos ou marginalizados, que a mais clara sobrepo-
sição com reparações ocorre.

B. Reparações

Reparações, antes de 1945, eram em geral um


assunto de Estado para Estado. Esforços subsequentes
focaram em tentar, na medida do possível, desfazer os
efeitos dos danos às vítimas individuais, com ênfase
em corrigir violações de direitos à integridade física. O

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 359

Direito Internacional evoluiu para reconhecer o direito


da vítima de ser reparada por graves danos que tenha
sofrido15. De acordo com os “Princípios e Diretrizes
Básicas sobre o Direito a uma Solução e Reparação para
Vítimas de Violações Flagrantes das Normas Internaci-
onais de Direitos Humanos e de Violações Graves do
Direito Internacional Humanitário”, de 2005, uma ví-
tima de tais violações tem o direito, sob o Direito Inter-
nacional, a (a) igualitário e efetivo acesso à justiça; (b)
reparação adequada, efetiva e rápida pelo dano sofri-
do; e (c) acesso à informação relevante concernente a
violações e a mecanismos de reparação16. Tal reparação
“deve ser proporcional à gravidade das violações e ao
dano sofrido”17, mas pode tomar a forma de restituição,
compensação, reabilitação, satisfação e garantias de
não repetição18. O direito a uma solução ou a repara-
ções está também previsto nos instrumentos básicos de
direitos humanos, convenções especializadas, instru-

15 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Basic Principles and

Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross


Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of
International Humanitarian Law. A/RES60/147, 16 dez. 2005. [N.T.:
“Princípios Básicos e Diretrizes sobre o Direito a uma Solução”. Op-
tou-se pela tradução de “right to remedy” como “direito a uma solu-
ção”.]. Para um exame completo dos princípios básicos da ONU, e
outras fontes do direito à reparação no Direito Internacional, ver
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Reparations: Context and Contents. In: DE FEYTER, Koen. et. al (eds.).
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33.
16 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Basic Principles and

Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross


Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of
International Humanitarian Law. A/RES60/147, 16 dez. 2005. [N.T.:
“Princípios Básicos e Diretrizes sobre o Direito a um Recurso”], art. 11.
17 Ibid., art. 15.

18 Ibid., arts. 19-23.


360 Naomi Roth-Arriaza

mentos não vinculantes, e no Estatuto de Roma da Cor-


te Internacional de Justiça19.
Reparações são distintas de reconstrução e de
assistência à vítima, primeiro por suas raízes em um
direito baseado em uma obrigação de reparar dano, e
segundo por um elemento de reconhecimento de
transgressão, de compensação, ou “de tornar as coisas
certas”. Reparações são, portanto, uma categoria limi-
tada de respostas a dano. Ainda que reparações pos-
sam ser concedidas por cortes ou processos administra-
tivos, essa discussão concentra-se principalmente no
último caso.
Reparações são classificadas em três eixos dife-
rentes: as categorias de restituição, reabilitação, com-
pensação e garantias de não repetição dos “Princípios e
Diretrizes Básicas”; a distinção entre reparações simbó-
licas e materiais; e a distinção entre reparações indivi-
duais e coletivas. Dado o objetivo desse artigo, focarei
no eixo individual e coletivo, abordando as outras di-
mensões de cada uma.
Em sua maioria, reparações foram dadas por vi-
olações flagrantes do direito à integridade física: assas-
sinatos, desaparecimentos forçados, tortura e prisões.
Alguns programas administrativos de reparação inclu-
em exílio ou deslocamento forçado como danos, mas
poucos proporcionam retificações individuais apenas
para deslocamentos.

i. Reparações individuais

Reparações individuais podem tomar a forma


de compensação pecuniária, em um pagamento único
ou uma pensão periódica. Elas também podem tomar a
forma de restituição – de terras, outras propriedades,

19ROHT-ARRIAZA, Naomi. Reparations Decisions and Dilemmas.


Hastings International and Comparative Law Review, v. 27, 2004. p. 160-65.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 361

empregos, pensões, direitos civis, ou boa reputação – e


reabilitação, a qual pode ser física, mental e sócio-
jurídica. Reverter publicamente uma condenação cri-
minal injusta, por exemplo, pode constituir uma reabi-
litação sócio-jurídica. Reparações individuais também
podem ser simbólicas assim como materiais: por
exemplo, a entrega, pelo governo chileno, de uma có-
pia personalizada do relatório da Comissão da Verda-
de e Reconciliação, com uma carta indicando onde o
nome de cada vítima individual poderia ser encontra-
do, teve um profundo valor reparatório para os indiví-
duos envolvidos. Outras reparações individuais podem
incluir a exumação e novo enterro daqueles assassina-
dos, desculpas individuais a sobreviventes ou familia-
res, ou a publicação dos fatos de um caso individual.
Reparações individuais também podem tomar a forma
de pacotes de serviços do governo: inclusão em planos
de saúde governamentais, ou acesso preferencial a ser-
viços médicos, bolsas de estudo e similares.

ii. Reparações coletivas

O conceito de reparações coletivas, por outro


lado, é mais complexo e pode ter diferentes significa-
dos em diferentes contextos. Assim como nas repara-
ções individuais, podem incluir tanto medidas materi-
ais quanto simbólicas; restituição, reabilitação e satisfa-
ção, assim como compensação. “Coletiva” pode se refe-
rir aos beneficiários da reparação, como nos casos de
comunidades religiosas, étnicas, ou geograficamente
definidas que sofreram danos a suas instituições, pro-
priedade ou ao seu tecido e coesão social na qualidade
de grupos e, logo, precisam ser reparados enquanto tal.
O exemplo mais fácil desse significado é a restituição
ou compensação por lugares de adoração danificados
durante o período em questão, mas também poderia
envolver restituição de terras de propriedades coletivas
ou medidas para se acabar a discriminação com base
362 Naomi Roth-Arriaza

na língua. O significado de reparações coletivas tam-


bém tem se referido ao tipo de reparação ao invés do
beneficiário. Assim, bens públicos concedidos a uma
comunidade específica, mas abertos a todos, constitui-
riam esse tipo de reparação coletiva. Enquanto acesso
individual ou familiar a bolsas de estudo ou a privilé-
gios hospitalares constituiriam reparação individual, a
construção de escolas ou clínicas de saúde em comuni-
dades afetadas, abertas a todos os habitantes, seria re-
paração coletiva. Isto, claro, levanta a dificuldade de
lidar com a atribuição da condição de vítimas a grupos
ou a comunidades para propósitos de reparação, um
problema ampliado por mudanças demográficas e so-
ciais durante o curso de um conflito armado. Algumas
das dificuldades específicas das reparações coletivas
são exploradas abaixo.

C. Reparações materiais e o direito a um padrão de vida


adequado

Reparações cruzam com direitos ESC, primeiro


porque as reparações materiais oferecidas— compen-
sação, restituição e reabilitação — olham tanto para o
passado quanto para o futuro, objetivando retificar
tanto danos passados, quanto transformar vidas para o
futuro. Em sua maioria, essas não são reparações por
violações de direitos ESC, apesar de haver reconheci-
mento de que direitos ESC foram violados concomitan-
temente com os direitos civis básicos que estão sendo
compensados. Assim, os membros das famílias daque-
les que foram mortos ou que desapareceram forçada-
mente sofrem, além do dano incomensurável de perder
um ente querido e do sofrimento psicológico envolvi-
do, a perda de um provedor, a necessidade de fugir, a
perda de oportunidades de educação e similares. A
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, por exemplo, compensa sobreviventes por
estas oportunidades perdidas através do conceito de

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 363

mudanças em seus “projetos de vida” (proyecto de vi-


da)20. Entretanto, estes danos raramente são divididos e
compensados separadamente em programas adminis-
trativos de reparação.
A pedra fundamental dos primeiros programas
administrativos de reparação relacionados à justiça
transicional era a concessão de indenizações individu-
ais aos sobreviventes ou às famílias daqueles mortos
ou desaparecidos. Estas tomavam duas formas: mon-
tantes fixos em pagamentos únicos e pensões periódi-
cas. Pagamentos únicos têm sido muito mais comuns.
Em alguns locais, os pagamentos foram especificamen-
te para deslocamentos forçados ou exílio, com atenção
à mudança nas perspectivas de vida, mas geralmente
todos os danos foram agregados.
O pagamento único tem a vantagem da relativa
rapidez e simplicidade – requer apenas uma alocação
temporária de orçamento e uma burocracia temporária
para administrar o pagamento. Para vítimas que têm
necessidades imediatas ou são idosas ou necessitadas,
dinheiro rápido pode ser uma dádiva. Onde comuni-
dades estão em conflito ou discordam de outras formas
de reparação, uma compensação única pode também
ser a única opção realista. Pagamentos únicos também
mais se parecem com as indenizações disponíveis em
cortes por danos pessoais. Entretanto, a quantidade de
dinheiro envolvida é quase sempre inferior ao que uma
corte concederia por danos equivalentes. Raramente é
grande o suficiente para mudar uma vida e, em geral, é
concedida muito tempo depois dos danos ocorrerem.

20 Esse conceito foi introduzido pela primeira vez no caso Loayza Ta-

mayo [INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Loayza


Tamayo case, Reparations, Judgment. Inter-Am. Ct. H.R. (ser. C), No. 42
(Nov. 27, 1998).] e desenvolvido em casos subsequentes. Ver, em geral,
BURGORGUE-LARSEN, Laurence; ÚBEDA DE TORRES, Amaya. The
Inter-American Court of Human Rights: Case-Law and Commentary.
Tradução de Rosalind Greenstein. Oxford: Oxford University Press,
2011. p. 229-230.
364 Naomi Roth-Arriaza

Estudos têm mostrado que a maioria dos pagamentos


únicos é usada para quitar dívidas, despesas médicas
ou taxas escolares, ou é simplesmente consumida sem
criar nenhuma mudança de longo prazo no padrão de
vida do beneficiado21. Eles são muito pequenos para
criar um grande impacto nos mercados locais ou para
permitir às pessoas criar microempresas, especialmente
sem nenhum treinamento adicional em finanças, tran-
sações bancárias ou em administração de negócios.
Reparações individuais na forma de pagamen-
tos únicos podem criar outros tipos de dificuldades.
Conceder tais pagamentos requer a criação de registros
de vítimas, o que pode consumir muito tempo e ser
difícil em locais onde as pessoas não têm identificação
pessoal ou certidões de óbito de seus entes queridos22.
Pagamentos podem provocar desarticulações na co-
munidade: famílias divididas, cidades invadidas por
golpistas prometendo dinheiro rápido, membros fami-
liares há muito esquecidos ou desconhecidos reapare-
cendo subitamente e alguns beneficiários agredidos ou
ameaçados para entregar os valores de seus cheques23.

21 VIAENE, Liselotte. Voices From the Shadows: The Role of Cultural

Contexts in Transitional Justice Processes. Dissertação (Doutorado em


Direito). Universiteit Gent, 2010. GREADY, Paul. The Era of Transitional
Justice: The Aftermath of the Truth and Reconciliation Commission in
South Africa and Beyond.London: Routledge, 2011.
22 A criação do registro do Peru tem levado, aproximadamente, sete

anos e, a partir disto, a inscrição de pagamentos individuais está ainda


pendente.
23 MERSKY, Marcie; ROTH-ARRIAZA, Naomi. “Guatemala.” In:

Victims Unsilenced:The Inter-American Human Rights System and


Transitional Justice in Latin America.. Washington, DC: Due Process of
Law Foundation, 2007. p. 7-32. Elisabeth Lira nota um resultado seme-
lhante nas áreas Mapuche do Chile, onde “em comunidades muito
pobres, as reparações econômicas alteraram relações familiares de
solidariedade e negativamente afetaram redes de famílias e comuni-
dades”. LIRA, Elizabeth. The Reparations Policy for Human Rights
Violations in Chile. In: DE GREIFF, Pablo (ed.). The Handbook of
Reparations. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 63.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 365

A dinâmica intrafamiliar também pode ser impactada:


enquanto em alguns casos mulheres podem ser empo-
deradas ao receber dinheiro disponível em seu nome,
em outros, familiares homens rapidamente reivindica-
rão a compensação paga a suas esposas e mães, que
poderá então não servir a seus objetivos almejados24.
Em sua pior face, tais programas de pagamentos indi-
viduais são propensos a clientelismo, políticas de apa-
drinhamento e corrupção. Eles podem se tornar a antí-
tese da reparação.
Há também uma tensão, presente em todos os
programas de reparação, mas especialmente aguda
naqueles que envolvem compensação individual, entre
direcionar-se pelo dano ou direcionar-se pela necessi-
dade. Isto é, os programas de reparação deveriam fo-
car-se nas vítimas mais necessitadas – os deficientes, os
idosos, crianças e viúvas– ou nas vítimas que têm o
direito à reparação por terem sofrido as piores viola-
ções? Claro, em alguns casos as categorias irão sobre-
por-se, mas não em todos. A maioria dos programas
tenta utilizar reparações provisórias para lidar com os
casos mais urgentes, e/ou priorizar com base em uma
combinação de fatores, incluindo necessidade, o tipo
de violação, a área geográfica e (extraoficialmente) a
afiliação política ou importância das vítimas.
Pensões ou pagamentos periódicos podem ser
melhores. Tais pagamentos podem atuar como um tipo
de seguridade social e podem prover uma subsistência
econômica mínima. No Chile, por exemplo, as repara-
ções incluíam um pagamento único equivalente a um
ano de pensão (aproximadamente US$530, em cotação
de 1996) e uma pensão mensal, baseada no salário mé-
dio, para esposos, parentes e crianças daqueles mortos
ou desaparecidos, a ser pago de acordo com uma por-

24VIAENE.Voices From the Shadows; RUBIO-MARIN, Ruth. The Gender


of Reparations. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. Ver
também MERSKY; ROHT-ARRIAZA. Guatemala.
366 Naomi Roth-Arriaza

centagem fixa do total, para cada tipo de relação. As


pensões devem estar atreladas à inflação, e requerem
uma burocracia nova ou preexistente (por exemplo,
uma que já lida com pensões para os idosos ou para os
veteranos) para desembolsar os fundos. Em locais onde
o Estado não tem estruturas preexistentes para distri-
buição periódica de fundos, especialmente em áreas
remotas, um sistema de pensão demorará mais tempo
para ser estabelecido.
Provisão de serviços — para cuidados com saú-
de, educação ou moradia — é comumente uma parte
de projetos de reparação. Tal provisão requer acordos
de coordenação e financiamento entre vários ministé-
rios governamentais e vários níveis do governo (cen-
tral, estadual e municipal) e pode não atingir suas me-
tas sem uma mudança no modo como o governo exis-
tente lida com populações pobres e marginalizadas de
forma geral. Onde os serviços em geral são carentes,
garantir acesso a eles pode ser apenas um lembrete da
indiferença e ineficácia do governo.
Assistência médica e educação são os serviços
mais comuns oferecidos como parte de pacotes de re-
paração. Como notado acima, esses podem tomar a
forma de um direito individual a serviços médicos ou
bolsas de estudo. Muitos programas de reparação têm
focado em serviços psicossociais para permitir aos so-
breviventes lidar com os danos mentais causados pelas
violações. Tais serviços têm se provado bem sucedidos
onde são ajustados para as necessidades específicas de,
por exemplo, vítimas de tortura; um exemplo é o Pro-
grama de Reparação e Serviços Integrais de Saúde (co-
nhecido por sua sigla em espanhol, PRAIS), que usou
terapeutas especificamente treinados25. Na Guatemala,
ONGs especializadas foram contratadas para oferecer
esses serviços depois que se tornou claro que os psicó-

25LIRA. The Reparations Policy for Human Rights Violations in Chile. p.


68.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 367

logos do governo não tinham nem o treinamento espe-


cializado, nem a empatia necessária com as vítimas,
amplamente indígenas, para serem bem sucedidos.
Cuidados médicos têm sido uma parte de “pa-
cotes” de reparação no Chile, no Peru, em Serra Leoa e
em outros locais. Usualmente, isto exige acesso para as
vítimas e seus familiares a serviços médicos estatais a
baixos ou sem custos. O problema tem sido que essas
clínicas oferecem cuidados indiferentes ou de baixa
qualidade e, com frequência, não têm os serviços espe-
cializados requeridos. Em Serra Leoa, por exemplo, a
cirurgia de fístulas em vítimas da guerra tem sido fei-
tas por ONGs internacionais porque o sistema médico
local não tem a capacidade. Às vezes, atitudes racistas
ou sexistas da equipe médica para com as vítimas po-
dem desencorajá-las a usar os serviços existentes.
Em pesquisas com vítimas pelo mundo, a edu-
cação de crianças é colocada no topo da lista do que as
pessoas querem de um programa de reparações. Edu-
cação pode ser uma forma especialmente importante
de reparação porque aqueles que passaram a infância
correndo e se escondendo terão perdido a oportunida-
de de uma educação formal; adultos podem ser analfa-
betos e a educação de adultos pode ser uma compo-
nente importante de melhorias econômicas. Ademais,
uma vez que programas de reparação tendem a levar
um longo tempo para serem estabelecidos e custeados,
a educação torna-se uma meta multigeracional, capaz
de responder aos aspectos intergeracionais do dano.
Programas de reparações têm frequentemente disponi-
bilizado bolsas de estudo, dinheiro para taxas escolares
e similares. Por exemplo, no Chile, o órgão de repara-
ções ofereceu formação gratuita para vítimas e seus
descendentes de até 35 anos, incluindo educação uni-
versitária. Planos na Guatemala para reparações inte-
grais incluíam o foco na educação bilíngue e estudos da
herança Maia, ainda que nenhum dos dois tenha sido
amplamente posto em prática. Em Serra Leoa, suporte
educacional também foi oferecido, embora, uma vez
368 Naomi Roth-Arriaza

que as reparações tenham demorado um longo período


para ser implementadas, um grande número de benefi-
ciários em potencial saiu agora da faixa etária benefici-
ada26. Certo número de programas de reparações inclu-
iu pequenos projetos de treinamento vocacional, mas
esses têm sido apenas modestamente bem sucedidos
em levar a empregos permanentes.
Atualmente, atividades produtivas correspon-
dem a apenas uma pequena parte dos planos dos pro-
gramas de reparação. Na Guatemala, o Programa de
Compensação Nacional (PNR) disponibilizou um pe-
queno fundo para atividades produtivas e anunciou
que o programa subsidiaria investimento em, por
exemplo, energia solar. Também propôs um fundo pa-
ra mulheres, estruturado conforme o modelo de um
banco comunitário. Mulheres receberiam pequenas
quantias (de US$300 a US$350) para atividades produ-
tivas, junto com aulas de alfabetização. Esse programa
ainda não está em funcionamento, embora vários ou-
tros projetos (privados) de microcrédito estejam ope-
rando nas áreas mais duramente atingidas. Vários pro-
jetos comunitários peruanos aprovados sob o progra-
ma de reparações coletivas descrito abaixo envolvem
atividades produtivas, desde plantar pasto e comprar
animais de pastagem a um centro de artesanato, apesar
de a maioria concentrar-se na infraestrutura básica ne-
cessária para a agricultura e para a vida rural. Na Áfri-
ca do Sul, o órgão privado Business Trust, em colabo-
ração com os governos locais, ofereceu treinamento de
habilidades e cofinanciamento para turismo e outros
projetos produtivos em comunidades fortemente afe-
tadas pelo apartheid, incluindo diversas que recente-
mente tinham recuperado terras. Entretanto, ainda que
as metas incluam reconciliação e reconstrução, o pro-

26SUMA, Mohamad; CORREA, Cristián. Report and Proposals for the


Implementation of Reparations in Sierra Leone. New York: International
Center for Transitional Justice, 2009.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 369

grama é visto mais como uma iniciativa antipobreza do


que de reparação27.

Reparações Coletivas

Reparações coletivas, como definidas acima, in-


cluem uma variedade de bens públicos oferecidos a
uma comunidade como um todo, incluindo prédios de
escolas, centros comunitários, clínicas, estradas, proje-
tos de irrigação e eletricidade, mercados e similares.
Elas são pensadas para compensar os danos à viabili-
dade e à solidariedade comunitária criados pelas viola-
ções em questão. Governos frequentemente preferem
reparações coletivas a individuais porque são vistas
como menos dispendiosas para custear e administrar e
porque os beneficiários tendem a entendê-las como
uma forma de generosidade governamental. Pela últi-
ma razão, defensores de direitos humanos tendem a
desconfiar de reparações coletivas, enxergando-as co-
mo uma tentativa de fazer passar desenvolvimentos de
infraestrutura, que já são parte da responsabilidade do
governo, como reparações, assim, de fato, “matando
dois coelhos com uma cajadada só”.
Esse dilema é facilmente resolvido ao fazer de
reparações coletivas um suplemento, ao invés de subs-
titutas, de responsabilidades do governo na área de
educação, saúde ou desenvolvimento de infraestrutura.
Por exemplo, programas de saúde podem focar-se em
orientação, apoiar a medicina tradicional ou treinar
novos profissionais da saúde baseados na comunidade.
Também é importante considerar a sustentabilidade de
tais projetos a longo prazo, especialmente projetos de

27 Ver a discussão do Programa de Investimento Comunitário do Trust

em BUSINESS TRUST. Community Investment. Disponível em:


<http://www.btrust.org.za/com_investment.html>. Acesso em: 4 out.
2012.

 
370 Naomi Roth-Arriaza

infraestrutura. Quem os manterá ao longo do tempo?


Serão garantidos fundos suficientes para suprimentos e
para operação? Se o fundo de reparações é de curto
prazo, como a manutenção e a operação serão inseridas
em orçamentos regulares de ministérios ou agências?
Essas considerações práticas podem fazer ou destruir
um esforço de reparações.
Reparações coletivas prometem beneficiar todos
os membros de uma comunidade, não apenas as víti-
mas. Em áreas onde comunidades inteiras foram viti-
madas isso pode ser apropriado, mas em outras, tais
reparações serão demasiadamente amplas e, logo, pre-
cisarão ser combinadas com componentes individuais.
Mesmo se reparações coletivas tiverem as característi-
cas de bens públicos, elas ainda podem servir a um
propósito reparatório caso esteja claro que foi a atuação
das vítimas, não apenas sua condição, que as fez acon-
tecer. Logo, reparações coletivas devem responder a
um processo no qual a comunidade é envolvida para
escolher prioridades e as vítimas desempenham um
papel preponderante. Isso permite às vítimas enfatizar
seu valor como cidadãs produtivas e garante que qual-
quer reparação oferecida responda às necessidades
percebidas como sendo as dos supostos beneficiários.
Tais reparações também devem ser combinadas com
aspectos simbólicos e comemorativos para diferenciá-
las de outros projetos de desenvolvimento.
A Guatemala fez previsões de reparações coleti-
vas, mas, como discutido anteriormente, concentrou-se
quase exclusivamente em compensação individual.
Após vários anos, o programa de reparações tentou
mudar seu foco para reparações coletivas em comuni-
dades fortemente atingidas na forma de habitações.
Enquanto alguns projetos piloto foram construídos, o
programa foi cooptado por clientelismo político e nun-
ca chegou a muitos resultados. No Marrocos, repara-
ções coletivas se davam em bases geográficas, incluin-
do a reabilitação de cidades que tinham sido antigos
locais de prisões ou tinham sofrido devido à percepção
 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 371

de um sentimento antirregime, e complementavam a


alocação individual de pagamentos de montantes úni-
cos.
No Peru, o foco inicial era em reparações a co-
munidades. As regulamentações originais estipulavam
quatro componentes: fortalecimento jurídico, incluindo
as autoridades locais, treinamento em resoluções de
disputas e em direitos humanos; suporte à infraestru-
tura produtiva e econômica; projetos concentrados no
retorno dos deslocados e dos expropriados; e suporte
para projetos de apoio educacional, de saúde, de água
e de herança cultural. Apesar disso, o governo tomou
uma decisão executiva de focar apenas nos componen-
tes de infraestrutura econômica e de oferta de serviços.
O componente de reparações coletivas foi descentrali-
zado para o nível municipal, com fundos designados
para aquelas regiões mais afetadas pela violência, as-
sim como para comunidades formadas por aqueles
forçadamente deslocados de seus lares originais. Até
hoje, diferentes localidades têm respondido diferente-
mente ao desafio de implementar um programa de re-
parações. Alguns rapidamente terminaram de constru-
ir seu registro de vítimas e familiares, enquanto outras
áreas ficaram para trás. Aos governos locais foram da-
dos fundos para implementar pequenos (até
US$30.000) projetos coletivos, de acordo com priorida-
des que foram negociadas entre comunidades e o Esta-
do, através da criação de conselhos locais de imple-
mentação28 .
Uma avaliação inicial mostrou que as comuni-
dades escolhem mais frequentemente construir com

28 INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE (ICTJ);

ASOCIACIÓN PRO DERECHOS HUMANOS (APRODEH). Perú:


¿Cuánto se ha Reparado en Nuestras Comunidades: Avances, Percepciones
y Recomendaciones sobre Reparaciones Colectivas en Peru 2007-2011.
2011. Disponível em: <http://ictj.org/sites/default/files/ICTJ-Peru-
Reparaciones-2011-Español.pdf>.
372 Naomi Roth-Arriaza

seus fundos um centro comunitário, seguidos de proje-


tos de irrigação e escolas. Com o passar do tempo, as
prioridade mudaram, com maior ênfase em água e sa-
neamento, pecuária e projetos de treinamento em ges-
tão, nos últimos dois anos. Mulheres eram sub-
representadas no processo de tomada de decisão.
Mesmo onde as comunidades colocaram um alto valor
em memoriais e outros tipos de reparações simbólicas,
governos locais têm sido relutantes em usar os fundos
para esse propósito, preferindo projetos de infraestru-
tura29. Apesar da inclusão de comunidades urbanas
compostas por grandes números de camponeses deslo-
cados na definição dos beneficiários do programa, até
2011, nenhum projeto nessas comunidades havia co-
meçado30. Uma pesquisa de 2011 mostrou que quase
metade dos beneficiários entendia que os projetos eram
reparações coletivas devido à violência política, mas
poucos pensavam que eles eram reparação suficiente.
As cerimônias de inauguração parecem ter tido um
papel importante nessa conscientização31.

Reparações por Violações de Direitos ESC

Até a presente data, esforços para reparar as vi-


olações de direitos ESC concentraram-se principalmen-
te em casos de expropriação de terras ou outras propri-
edades, o que levou à negação dos meios de subsistên-
cia, educação, saúde e outros direitos. Dentro do con-
texto da justiça transicional, estes têm quase sempre
exigido uma demonstração de que a expropriação foi
deliberadamente induzida por razões políticas ou dis-

29 Ibid.
30 Ibid. De acordo com este relatório, os projetos de até 2011 estavam a
caminho ou completos em quase 1.500 localidades, com um orçamento
total de US$ 52 million. Ibid., p. 15.
31 Ibid., p. 36-37.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 373

criminatórias.32 Apenas recentemente têm ocorrido es-


forços para compensar ou restituir terras tomadas por
razões táticas ou econômicas dentro do contexto de um
conflito armado.33 Roger Duthie sugere que uma con-
tribuição da teoria da justiça transicional sobre o deslo-
camento pode ser o reforço de uma estrutura baseada
em direitos, e não simplesmente em uma preocupação
humanitária, ao lidar com populações deslocadas34.
Essa seção traça um breve histórico dessas reivindica-
ções, para em seguida focar em um número de casos
emblemáticos: a restituição de terras sul-africanas, o
esquema de restituição de terras colombianas, o caso
do Quênia e o esforço dos povos guatemaltecos Achi
Maia para obter compensação por perdas em que in-
correram quando foram expulsos de suas terras para
facilitar a construção de uma barragem, dentro de um

32 Há também casos de expropriação de terras e restituição que não se


encaixam facilmente dentro de uma estrutura de justiça transicional.
Por exemplo, um número de países, incluindo Canadá, Nova Zelândia,
Austrália e alguns Estados latino-americanos, restituíram terras para
povos indígenas que foram tomadas por administrações coloniais. Ver
LENZERINI, Federico. (ed.). Reparations for Indigenous Peoples:
International and Comparative Perspectives. Oxford: Oxford
University Press, 2008. Uma linha de decisões da ONU e de comissões
e cortes regionais de direitos humanos estabeleceu os direitos de povos
indígenas às suas terras e ao controle do que acontece nessas terras.
Exemplos incluídos: AFRICAN COMMISSION ON HUMAN AND
PEOPLES’ RIGHTS. Centre for Minority Rights Development (Kenya) and
Minority Rights Group International on behalf of Endorois Welfare Council v
Kenya. Case 276 / 2003, 2009 (recomendando restituição e direitos
sobre terras comunitárias); UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS
COMMITTEE (HRC). Chief Bernard Ominayak and Lubicon Lake Band v.
Canada. CCPR/C/38/D/167/1984, 1990 (direito à subsistência de
grupos indígenas é parte de direitos de minorias); INTER-AMERICAN
COURT OF HUMAN RIGHTS.Case of the Yakye Axa Indigenous
Community v. Paraguay. Case 12.313, 2005 (demarcação e direitos sobre
terras indígenas previamente expropriadas).
33 DUTHIE, Roger. Transitional Justice and Displacement. International

Journal of Transitional Justice, v. 5, no. 2, p. 241-261, 2011.


34 Ibid., 260.
374 Naomi Roth-Arriaza

contexto de repressão governamental e conflito arma-


do.
Existe uma extensa literatura sobre restituição
de propriedade surgida primeiramente do confisco
nazista de propriedades dos judeus nos anos de 1940 e,
em segundo lugar, da onda de privatizações e restitui-
ções que acompanharam a queda de governos comu-
nistas da Europa Oriental e Central no pós-1989. As
reivindicações de restituição de propriedade da era do
Holocausto incluem litígios encabeçados pela Confe-
rência de Reivindicações Materiais de Judeus contra a
Alemanha, e acordos, de reivindicações que envolvem
apólices de seguros e arte roubada. Houve também
uma ampla restituição de propriedade real, sendo que
a última grande reivindicação contra a Alemanha foi
acordada em 200735.
Ao passo em que tal literatura é muito volumo-
sa para ser resumida aqui36, alguns temas gerais sur-
gem desses esforços. Em todos os casos pós-
comunistas, as questões em torno da restituição de
propriedade foram complicadas por diversas ondas de
expropriações e por difíceis problemas em provar a
cadeia de títulos e em negociar com os atuais donos
que compraram a propriedade de boa-fé. Onde a pro-
priedade esteve nas mãos de proprietários de boa-fé ou
foi usada para o interesse público, a compensação foi

35 LANDLER, Mark. German company pays Jewish family for Nazi-era


confiscation. TheNew York Times, 30 Mar. 2007. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2007/03/30/world/europe/30iht-
settle.4.5090836.html?_r=0>. Acesso em: 26 dez. 2012.
36 Ver, e.g., GELPERN, Anna. The Laws and Politics of Reprivatization

in East-Central Europe: A Comparison. University of Pennsylvania


Journal of International Business Law v. 14, n. 3, p. 315-372, 1993;
FOSTER, Frances H. Restitution of Expropriated Property: Post-Soviet
Lessons for Cuba. Columbia Journal of Transnational Law, v. 34, no. 3, p.
621-656, 1996. Com referência a populações indígenas, ver, em geral,
LENZERINI, Federico. (ed.). Reparations for Indigenous Peoples:
International and Comparative Perspectives. Oxford: Oxford
University Press, 2008.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 375

paga ao invés de se restituir a propriedade. Muito pou-


co da compensação foi paga em dinheiro; a maior parte
foi paga em vouchers ou em títulos da dívida pública,
criando um mercado paralelo de tais garantias. Houve
grandes problemas administrativos quando da identi-
ficação e inventário da propriedade, devido à falta de
fundos para o pagamento das compensações e dos efei-
tos que uma ampla restituição causaria em aluguéis e
custos de habitação.
Mais recentemente, a Comissão de Reivindica-
ções de Propriedades Reais da Bósnia-Herzegovina
investigou a possibilidade de restituição e compensa-
ção por perda de terras e propriedades durante a guer-
ra de 1992-1995. O Acordo de Paz de Dayton incluiu
disposições que tornam ilegais as transferências de
propriedades feitas sob ameaça ou coação ou que este-
jam de outra maneira relacionadas à limpeza étnica, e
determinou a restituição daquelas propriedades depois
que a Comissão recebesse provas, antes de determina-
do prazo, da propriedade válida. As provas poderiam
advir de livros de propriedade municipal de 1991, de
registros fiscais ou de documentos sucessórios. A Co-
missão também poderia, em teoria, prever a compensa-
ção pecuniária pela propriedade quando indivíduos
optassem por não retornar para a sua residência pré-
guerra (porque eles constituiriam uma minoria daquele
local e/ou por motivos de segurança), mas, na prática,
pouco dinheiro para compensação esteve disponível37.
Na realidade, muitas das pessoas que tiveram sua pro-
priedade restituída optaram por alugá-las ou vendê-las
para evitar viver como uma minoria nas áreas de suas
antigas residências. A restituição da propriedade não

37 UNITED NATIONS. Commission for Real Property Claims of


Displaced Persons and Refugees. Dayton Agreement. Annex 7. Disponí-
vel em:<http://www.unhcr.org/3c3c42794.pdf>. Ver, em geral,
HASTINGS, Lynn. Implementation of the Property Legislation in
Bosnia Herzegovina. Stanford Journal of International Law, v. 37, n. 2, p.
221-254, 2001.
376 Naomi Roth-Arriaza

está necessariamente ligada ao retorno para o lugar de


residência anterior. Todavia, a restituição envolveu
mais de 200.000 (duzentas mil) casas reivindicadas e
sustentou o retorno de aproximadamente metade das
pessoas deslocadas pelo conflito38.

África do Sul

Na África do Sul, uma série de leis progressi-


vamente destituiu a propriedade de milhões de pesso-
as. A Lei de Terras Nativas de 1913 proibiu negros sul-
africanos de serem proprietários ou arrendatários de
terras fora de pequenas áreas já designadas, posterior-
mente conhecidas como “homelands” ou “Bantustans”.
A Lei de Áreas de Grupos, de 1950, segregou áreas ur-
banas e conduziu à remoção de “não-brancos” para os
distritos ou para os subúrbios. Em 1990, milhões de
pessoas haviam sido desapropriadas e somente 13% da
terra eram reservados para a ocupação por negros39.
Quando o governo pós-apartheid chegou ao poder,
logo fez aprovar a Lei de Restituição de Direitos à Ter-
ra nº 22 de 1994. O partido do governo, o Congresso
Nacional Africano (ANC, em sua sigla em inglês), en-
frentou a necessidade de respeitar os direitos de pro-
priedade (os quais eram uma demanda chave do Parti-
do Nacional em suas negociações com a ANC), en-
quanto ao mesmo tempo respondia às demandas gene-
ralizadas por retificações, e a necessidade de começar a

38 DUTHIE, Transitional Justice and Displacement; WILLIAMS,

Rhodri. Post-Conflict Property Restitution and Refugee Return in


Bosnia and Herzegovina: Implications for International Standard-
Setting and Practice. New York University Journal of International Law
and Politics, v. 37, n. 3, 2005. p. 489.
39 HALL, Ruth. “Reconciling the Past, Present, and Future: The

Parameters and Practices of Land Restitution in South Africa.” In:


WALKER, Cherryl. et. al. (eds.). Land, Memory, Reconstruction, and
Justice: Perspectives on Land Claims in South Africa.. Athens, OH:
Ohio University Press, 2010. p. 18-19.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 377

“desracialização” da paisagem espacial do país. A lei


refletia esse compromisso: limita a reivindicação a pes-
soas ou comunidades ou seus descendentes que tive-
ram propriedades expropriadas após a Lei de Terras de
1913, “como resultado de práticas e leis de discrimina-
ção racial”, e que não foram compensadas adequada-
mente40. A expropriação pré-1913, ou seja, da era colo-
nial, foi excluída. Os requerentes poderiam ser tanto os
donos da terra e arrendatários como outros ocupantes,
dada a ausência de títulos formais para a maior parte
da terra mantidas por negros. As reivindicações deve-
riam ser apresentadas até 1998.
A lei criou a Comissão de Restituição do Direito
à Terra (CRLR, em sua sigla na língua inglesa), para
auxiliar os requerentes, investigar as reivindicações e
prepará-los para assentamento ou adjudicação, e uma
Corte de Reivindicação de Terras para conceder ordens
de ressarcimento e para dirimir litígios; posteriormen-
te, a CRLR foi habilitada para resolver as reivindica-
ções. As dificuldades em se provar direitos à terra que
datam de gerações anteriores, onde a terra era frequen-
temente mantida em comunidade e sem um título es-
crito, são terríveis, e as Cortes de Reivindicação de Ter-
ras usaram testemunhos de historiadores e antropólo-
gos, assim como de anciãos locais, para provar as rei-
vindicações. As Cortes de Reivindicação tentariam
chegar a um acordo por mediação entre os atuais ocu-
pantes e os requerentes do passado, mas se não conse-
guissem, um painel de juízes decidiria a reivindicação.
As soluções poderiam incluir a propriedade plena, di-
reitos parciais a terra, direitos a terras equivalentes ou
compensação. Os atuais proprietários são compensa-

40SOUTH AFRICA. South Africa Restitution of Lands Act of 1994, as


amended by Land Restitution and Reform Laws Amendment Act 63 of
1997. Disponível em:
<http://www.saflii.org/za/legis/num_act/lrarlaa1997423.pdf>.
Acesso em: 5 out. 2012.

 
378 Naomi Roth-Arriaza

dos pelo Estado em valor de mercado, embora o Estado


raramente tenha expropriado terra e tenha contado
com vendedores sedutoramente espontâneos; onde os
vendedores não estavam dispostos, outras terras ou
dinheiro eram as únicas soluções.
O processo finalmente resultou em cerca de
80.000 reivindicações. A CRLR relatou, em 2007, que
1,5 milhão de hectares de terra tinham sido devolvidos,
562 milhões de dólares tinham sido gastos na compra
de outras terras e 475 milhões de dólares tinham sido
gastos em compensações pecuniárias41. A grande maio-
ria das reivindicações foram urbanas e estas foram em
grande parte decididas com pagamentos em dinheiro.
As reivindicações rurais tenderam a ser maiores e mais
concentradas no norte e leste, envolvendo comunida-
des ao invés de indivíduos, assim como a negociação
sobre a terra ao invés de dinheiro.
A experiência de restituição de terras sul-
africana exemplifica um número de problemas e a es-
perança inerentes a exercícios de restituição de terras
em larga escala. Primeiramente, existiram desafios de
definição. O que constituiria uma “comunidade” quali-
ficada para uma restituição de grupo sob a lei, quando
as pessoas foram destituídas e se dispersaram há mais
de cem anos? As cortes sul-africanas inicialmente con-
centraram-se em regras compartilhadas em torno do
uso da terra, não sobre a coesão ou continuidade de
existência da comunidade. Entretanto, no caso
Richtersveld, envolvendo uma grande reivindicação
comunitária por povos indígenas, as Cortes também
buscaram línguas, cultura e normas de uso da terra em
comum. Um caso subsequente descobriu que a existên-
cia de formas comunitárias de propriedade de terras no
passado, mesmo quando o título formal já era mantido
por outros, era suficiente para provar a existência de

41 HALL. Reconciling the Past, Present, and Future. p. 30.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 379

uma comunidade42. Assim, “comunidade” não exigia a


continuidade ou a atual existência, ou a propriedade
formal da terra.
A lei sul-africana impõe um nexo de causalida-
de entre a expropriação e as leis e práticas discrimina-
tórias. Mas um nexo quão próximo? Provavelmente,
qualquer coisa feita por um governo regida por um
ânimo racista poderia se encaixar dentro da exigência.
Por exemplo, no caso Richtersveld citado acima, a terra
da comunidade foi retirada sob a Lei de Pedras Precio-
sas, pois minerais estavam localizados ali, e não a fim
de aplicar a segregação racial. No entanto, a Corte de
Apelações, e posteriormente a Corte Constitucional,
concordaram que a terra tinha sido perdida sob um
ânimo discriminatório, em que o efeito de uma lei de
minerais, à primeira vista neutra, era discriminatório.
Decisões subsequentes descobriram que a expropriação
não teve que acontecer toda de uma vez e não teve se-
quer que ser baseada no uso da força, contanto que a
saída tenha sido involuntária43.
Os problemas mais difíceis em torno do projeto
de restituição de terras envolveram o tipo e o significa-
do da solução específica concedida. Muitos requerentes
tinham memórias carinhosas, e até mesmo nostálgicas,
de crescer ou viver nas suas residências anteriores, es-
pecialmente em vizinhanças multiétnicas que foram
destruídas pelas remoções. Para eles, a restituição não
era somente sobre dinheiro; eles queriam reivindicar a
sua casa específica e recriar aquelas comunidades chei-
as de vida. Isto criou tensões não só entre os atuais
proprietários como entre os governos locais; enquanto

42 MOSTERT, Hanri. Change Through Jurisprudence: The Role of the

Courts in Broadening the Scope of Restitution. In: WALKER, Cherryl.


et. al. (eds.). Land, Memory, Reconstructio n, and Justice: Perspectives on
Land Claims in South Africa. Athens, OH: Ohio University Press, 2010.
p. 64-68.
43 Ibid., p. 65-74.
380 Naomi Roth-Arriaza

comunidades como o Distrito Seis na Cidade do Cabo


desejavam recriar um intangível senso de lugar e co-
munidade, o governo da cidade desejava usar o projeto
de restituição para trazer pessoas de baixa renda de
outras áreas e tratou do projeto como apenas outro es-
forço para resolver o problema habitacional da cidade.
Também para requerentes rurais, a terra esteve amar-
rada à identidade, especialmente quando esta foi desa-
fiada ou ameaçada por meio da perda da terra tribal.
As perdas foram emocionalmente dolorosas assim co-
mo financeiramente desastrosas.
E, ainda, houve pouco reconhecimento dos as-
pectos não-pecuniários do processo. Ao contrário da
resposta às violações de direitos à integridade física,
não existiram audiências semelhantes às da Comissão
Verdade e Reconciliação, onde os requerentes de resti-
tuição pudessem falar publicamente sobre o que a per-
da de uma casa, terra ou comunidade significou. So-
mente em uma província as indenizações incluíram,
em alguns casos, dinheiro para danos morais ou sofri-
mento44. Os atrasos intermináveis e as disputas buro-
cráticas tornaram difícil para os grupos requerentes
insistirem na restituição. Inicialmente, em muitas áreas
urbanas, os requerentes começaram pedindo suas casas
antigas de volta, ou, se aquilo não fosse possível, ou-
tras terras onde a comunidade pudesse ser recriada. Ao
longo do tempo, as pessoas ficaram desgastadas e de-
sencorajadas pelo processo e optaram, ao invés, por
aceitar o dinheiro45. Isto se adequava bem ao governo,
já que o pagamento em dinheiro era muito mais sim-
ples e permitia que ele mostrasse quão bem o progra-
ma avançava. Os valores recebidos não tinham qual-

44HALL. Reconciling the Past, Present, and Future. p. 25.


45BOHLIN, Anna. Choosing Cash over Land in Kalk Bay and Knysna.
In: WALKER, Cherryl. et. al. (eds.). Land, Memory, Reconstruction, and
Justice: Perspectives on Land Claims in South Africa. Athens, OH:
Ohio University Press, 2010. p. 116-130.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 381

quer relação lógica seja com o que a propriedade valia


no tempo da destituição ou quanto ela valeria agora.
Além disso, na maioria dos casos o dinheiro deveria ser
dividido entre descendentes, deixando apenas uma
pequena quantidade para cada indivíduo. Um dos
poucos estudos sobre como o dinheiro foi gasto46 des-
cobriu que, coerentemente com as outras experiências
de países com pagamentos únicos, o montante era mui-
to pequeno para ser transformador, e foi usado para
pagar dívidas e atender a despesas imediatas.
Um dos objetivos do programa de restituição de
terras tinha sido começar a contribuir para causar um
efeito na natureza altamente segregada dos espaços
residenciais e agrícolas. No geral, o objetivo governa-
mental de redistribuir para negros 30% das terras agrí-
colas cujos proprietários são brancos não foi alcançado.
Relutante em expulsar os proprietários brancos, restou
ao governo negociar a venda das terras, mas poucos
brancos estavam dispostos a vender pelos preços ofe-
recidos. Nas áreas urbanas, os governos locais e muni-
cipais relutaram em usar os escassos recursos para ter-
ras com o objetivo de restituição, quando esses eram os
últimos espaços livres para reordenamento urbano.
Enfrentando intensas pressões para criar habitações de
baixa renda, muitos gestores governamentais ressenti-
ram-se com as reivindicações concorrentes de antigos
proprietários, que frequentemente eram de classe mé-
dia baixa, e não pobres.
Em áreas rurais, a data de corte de 1913 signifi-
cou que a maior parte das reivindicações de restitui-
ções se concentrariam no norte árido do país, dificul-
tando para que as comunidades restituídas tivessem
sucesso como agricultoras. Pior ainda, dado o tempo
que as comunidades estavam dispersas, não havia ga-

46BOHLIN, Anna. A Price on the Past: Cash as Compensation in South


African Land Restitution. Canadian Journal of African Studies, v. 38, n. 3,
p. 672-687, 2004.
382 Naomi Roth-Arriaza

rantia de que reestabelecer a terra significaria que as


pessoas teriam as habilidades para cultivá-la. Evidên-
cias preliminares indicaram que a maioria das fazendas
reestabelecidas não estava produzindo. O governo co-
meçou a incentivar as pessoas a entrarem em “parceri-
as estratégicas” com os antigos proprietários de terras
de agronegócio, nas quais as comunidades arrendari-
am a terra de volta aos antigos proprietários em troca
de parte dos lucros, sendo que, na verdade, não viveri-
am ou trabalhariam na terra. Enquanto isso evitou que
as terras recentemente restituídas se tornassem impro-
dutivas, não foi exatamente o resultado “transforma-
dor” pretendido originalmente47.

Colômbia

O conflito armado estabelecido há décadas na


Colômbia já contou com a expulsão violenta dos agri-
cultores locais de grandes áreas do país, que foram as-
sumidas por guerrilheiros de esquerda, paramilitares
de direita, produtores e traficantes de drogas, ou uma
combinação destes. Comunidades indígenas e afro-
colombianas foram particularmente atingidas pelo des-
locamento forçado, bem como por assassinatos e outras
violações de direitos48. A Colômbia tem cerca de 3,6
milhões de pessoas deslocadas internamente, um dos
níveis mais altos do mundo. Apesar da diminuição da
violência em algumas áreas, em 2010, mais de 100.000

47 DERMAN, Bill; LAHIFF, Edward; SJAASTAD, Espen. Strategic


Questions About Strategic Partners. In: WALKER, Cherryl. et. al.
(eds.). Land, Memory, Reconstruction, and Justice: Perspectives on Land
Claims in South Africa. Athens, OH: Ohio University Press, 2010. p.
306-324.
48 KIRK, Robin. More Terrible Than Death: Drugs, Violence, and

America's War in Colombia. Jackson, TN: Public Affairs, 2004.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 383

pessoas foram deslocadas à força e os atores armados


continuam a operar com impunidade.49
O governo colombiano iniciou um ambicioso
programa de restituição e reparação, destinado a pro-
mover uma “reparação integral” que envolve o deslo-
camento forçado, bem como violações da integridade
física. Tem havido várias tentativas coordenadas para
fornecer reparações ao longo da última década. Os re-
gulamentos50 de implementação da Lei de Justiça e Paz
da Colômbia, a Lei 975 de 2005, visando à desmobiliza-
ção de grupos paramilitares, criaram penas alternativas
mínimas para os condenados por violações do Direito
Humanitário. A fim de obter as sentenças reduzidas,
indivíduos desmobilizados deveriam devolver ganhos
ilícitos, incluindo de propriedade, ao Estado, para fins
de restituição; enquanto algumas fazendas e áreas cul-
tivadas foram devolvidas, muitas outras estavam regis-
tradas sob nomes falsos ou de intermediários. A Lei da
Justiça e Paz resultou apenas em um punhado de penas
alternativas.51
A Lei 975 também criou a Comissão Nacional de
Reparação e Reconciliação, que desenvolveu um siste-
ma de reparações administrativas que forneceu repara-
ções financeiras, relativamente pequenas, a centenas de
milhares de vítimas, mas foi amplamente vista como
insuficiente. Além disso, os tribunais ordenaram repa-
rações em uma série de casos emblemáticos. O sistema
administrativo foi debatido, modificado e, finalmente,
transformado em lei, como parte da Lei das Vítimas, nº

49 UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. 2012


UNHCR country operations profile – Colombia. Disponível em:
<http://www.unhcr.org/cgi-
bin/texis/vtx/page?page=49e492ad6&submit=GO>. Acesso em: 5 out.
2012.
50 COLOMBIA. Decreto 3391 de 2006. 29 set. 2006. Disponível em:

<http://www.elabedul.net/Documentos/Leyes/2006/Decreto_3391.
pdf>. Acesso em: 6 out. 2012.
51 Durante a escrita desse artigo, a lei estava em processo de revisão.
384 Naomi Roth-Arriaza

1.448 de 2011. A nova Lei das Vítimas tenta lidar com


algumas das deficiências dos esforços anteriores. Seu
amplo escopo inclui princípios gerais sobre compensa-
ções e reparações, a participação da vítima em proces-
sos penais e, em geral, medidas que visam à criação de
um ambiente de segurança e proteção para as vítimas e
requerentes; outro que detalha os serviços e assistência
às vítimas, um capítulo separado sobre as reparações,
que inclui a restituição das terras (detalhada abaixo);
um dos arranjos institucionais que irão implementar a
lei; e uma seção especial sobre os programas para os
jovens desmobilizados.
A Lei das Vítimas é um esforço ambicioso para
abordar uma ampla gama de violações. Ela define co-
mo vítimas as pessoas, ou os familiares próximos de
pessoas, que individualmente ou coletivamente sofre-
ram danos devido aos eventos que acontecem depois
de 1º de janeiro de 1985 que constituíam graves viola-
ções dos direitos humanos ou do Direito Humanitário
Internacional, no contexto do conflito armado interno52.
Ela contém princípios gerais sobre o respeito às víti-
mas, a presunção de boa-fé e um foco diferenciado em
grupos particularmente vulneráveis. Ela afirma que o
objetivo da indenização é contribuir para o reposicio-
namento [recuperação] das vítimas como cidadãos no
pleno exercício dos seus direitos e deveres53, e de “con-
tribuir para a eliminação da discriminação e da margi-

52 COLOMBIA. Lei 1448 de 2011 (“Ley de Víctimas y Restitución de


Tierras”). 10 jun. 2011. Disponível em:
<http://www.secretariasenado.gov.co/senado/basedoc/ley/2011/le
y_1448_2011.html>. Acesso em: 6 out. 2012. De acordo com o estatuto,
a definição de família inclui o cônjuge, companheiro permanente ou
membro de um casal do mesmo sexo, bem como parentes imediatos.
Populações indígenas e afro-colombianas não são cobertas pela lei,
devido ao maior espaço de tempo necessário para realizar consultas
adequadas com as comunidades e com suas autoridades a fim de de-
cidir sobre as medidas de reparação adequadas.
53 Ibid., art. 4.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 385

nalização, que poderiam ter sido a causa dos eventos


vitimizadores”.54
Em resposta às críticas da sociedade civil aos
projetos, a lei lida com a combinação das reparações
com outras formas de assistência. Embora reconhecen-
do que as medidas de assistência humanitária e social
podem complementar e aumentar o impacto das repa-
rações, elas não seriam um substituto, e, portanto, as
quantias gastas com estas medidas não devem ser con-
tadas no orçamento destinado à reparação55. Ela tam-
bém lida com a interação entre as reparações e os pro-
cessos contra os supostos autores. A lei prevê repara-
ções a serem financiadas pelos perpetradores, bem co-
mo, quando necessário, pelo Estado. Ela cria unidades
especializadas da polícia para rastrear ativos ocultos
dos perpetradores, e cria a obrigação de repassar para
o Gabinete do Promotor informações que envolvam
indivíduos, empresas ou funcionários públicos na prá-
tica de crimes pelos quais reparações são pleiteadas. Se
a entidade for considerada culpada, o valor que for
averiguado como tendo sido usado para financiar or-
ganizações ilegais deverá ser destinado ao Fundo de
Indenizações em favor das vítimas56.
Ela tem componentes similares aos de outros
programas de reparação, incluindo um pagamento fixo
(que varia entre 17 e 40 salários mínimos, ou entre US$
5.000 e US$ 11.800), dependendo do tipo de infração. O
valor é maior se o beneficiário se comprometer a não
processar o Estado por danos. Ela prevê serviços fune-
rários gratuitos ou o seu reembolso e ajuda emergenci-
al, se necessário, para custear alimentos, bens domésti-
cos básicos e abrigo. O acesso à educação deve ser livre
através da escola secundária às vítimas que não podem

54 Ibid., art. 13.


55 Ibid., art. 25.
56 Ibid., art. 46.

 
386 Naomi Roth-Arriaza

pagar, e a educação universitária deve ser acessível


através de requisitos de admissão especiais, bem como
de empréstimos e subsídios, incluindo a garantia de
acesso a programas de formação estatais. Acesso à as-
sistência médica é contemplado através de seguro de
saúde gratuito do governo, cabendo ao governo o pa-
gamento de quaisquer taxas extras; as vítimas devem
usar os mesmos mecanismos utilizados pelas vítimas
de acidentes de trânsito e de desastres naturais, sendo
que eles ainda recebem acesso gratuito ao atendimento
privado, caso o sistema público seja insuficiente. Tam-
bém prevê subsídios de habitação, assistência psicosso-
cial especializada, isenção do serviço militar, benefícios
fiscais e medidas simbólicas, incluindo um dia de lem-
brança às vítimas.
O ponto central da Lei das Vítimas é a estrutu-
ração do sistema de restituição de terras. Ele é aplicado
às terras perdidas depois de 1 de janeiro de 1991 (e não
o

a partir de 1985, como nas outras formas de reparação).


A lei estabelece, em seu artigo 72, que o retorno legal e
real das terras que foram expropriadas, juntamente
com o suporte pós-restituição, é o objetivo central; ape-
nas quando esse objetivo não puder ser atendido (por
causa da contínua falta de segurança, por exemplo),
então deverão ser fornecidas terras equivalentes ou
compensação57. As terras devem ser devolvidas aos
proprietários, moradores ou possuidores, mesmo que
eles não tenham título formal; arrendatários, no entan-
to, são excluídos. A definição de expropriação é: “uma
ação pela qual, aproveitando-se da situação de violên-
cia, uma pessoa é arbitrariamente privada de sua pro-
priedade, posse ou ocupação, seja por meio de contra-
tos, atos administrativos, decisões judiciais, ou pelo
cometimento de crimes relacionados com a situação de

57 Ibid., art. 72.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 387

violência”58. A lei também se aplica àqueles que foram


obrigados a abandonar suas terras. Ela só se aplica às
terras, não envolvendo benfeitorias, gado, colheitas ou
direitos de subsolo.
A lei cria um registro de Terras Expropriadas ou
Forçadamente Abandonadas e daqueles que afirmam
terem sido despojados. Uma vez que tanto o reclaman-
te como a terra são registrados, dá-se prosseguimento a
um processo administrativo. Um dos aspectos mais
interessantes da lei colombiana é a forma como ela es-
tabelece o nexo de causalidade necessário para a ex-
propriação. Ao invés de exigir que o requerente prove
que ele se enquadra na definição acima, a lei inverte o
ônus da prova através do uso de presunções59. Uma
vez que o requerente demonstre que perdeu suas terras
durante o período de tempo em questão, há uma pre-
sunção de que qualquer contrato, transferência de títu-
lo ou outro documento, assinado pelo requerente ou
por sua família, com aqueles que foram condenados
por pertencer ou por financiar grupos armados ilegais
ou traficantes de drogas ou pessoas extraditadas sob a
acusação de tráfico — diretamente ou através de in-
termediários —, foi concluído sob coação e, portanto, é
nulo ab initio. Isso também é verdade quando a transa-
ção, mesmo se ratificada por ato administrativo ou pe-
los tribunais, ocorreu em uma área onde, no momento
da expropriação ou abandono, houve atos generaliza-
dos de violência, deslocamentos forçados coletivos ou
graves violações de direitos humanos, ou onde os en-
volvidos pediram proteção ao Estado. Uma presunção
de ilegalidade similar aplica-se às terras que fazem
fronteira com aquelas em que, na sequência de atos de
violência, houve uma concentração da propriedade ou
uma mudança na estruturação de uma cooperativa

58 Ibid., art. 74.


59 Ibid., art. 78
388 Naomi Roth-Arriaza

agrícola, ou houve mudanças substanciais no uso da


terra, por exemplo, da agricultura de subsistência pas-
sou-se à monocultura, ao pastoreio extensivo de gado
ou à mineração industrial. Um terceiro conjunto de
circunstâncias que leva à mesma presunção refere-se às
terras que foram vendidas por menos de metade do
seu valor real. Qualquer ação judicial posterior também
é nula e sem efeito e, portanto, os tribunais são livres
para reabrir a venda60. Assim, os legisladores tentaram
levar em consideração os padrões vigentes de ilegali-
dade, tenham sido ou não posteriormente formaliza-
dos.
A lei permite que sejam concedidas terras alter-
nativas, ao invés da restituição, onde o terreno em
questão esteja a caminho de um desastre natural, onde
a casa tenha sido destruída, onde tenham ocorrido vá-
rios deslocamentos e a terra em questão já tenha sido
dada de volta a outra pessoa, ou onde seja muito peri-
goso para o requerente voltar. A compensação também
poderá ser paga; compensação, tanto para as vítimas
como para os subsequentes compradores de boa-fé, a
ser paga pelo governo.
Uma das disposições mais controversas da lei
diz respeito às áreas onde as terras expropriadas foram
transformadas em projetos do agronegócio. Assim co-
mo acontece com as “parcerias estratégicas” dos sul-
africanos, a meta tem sido aliar os direitos dos reque-
rentes com o desejo de manter o valor econômico dos
projetos. O artigo 99 da lei permite que o magistrado
decida reconhecer os direitos legais dos requerentes,
mas também autoriza o atual proprietário a arrendar a
terra pelo prazo do projeto, contanto que ele ou ela
tenha sido um comprador de boa-fé e não tenha sido
considerado responsável pela expropriação. Se o atual
proprietário for responsável, o terreno é revertido para

60 Ibid., art. 77.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 389

o órgão estatal, com vistas a ser utilizado em repara-


ções coletivas na área ou para ser dado a outros afeta-
dos.
Em uma tentativa de evitar que as terras recen-
temente devolvidas sejam vendidas sob novas pressões
econômicas ou de segurança, a lei proíbe a venda das
terras recentemente restituídas por dois anos e requer
uma aprovação judicial para locações durante esse pe-
ríodo. Para evitar invasões, os requerentes em poten-
cial que voltam para suas terras antes de possuírem
uma ordem judicial que lhes concede esse direito po-
dem ser expulsos e perder seus direitos à restituição61.
Um grande problema potencial surge da neces-
sidade de julgar esses casos perante magistrados espe-
cializados dos tribunais civis locais; onde esses não
existam, juízes municipais ou outros juízes locais pode-
rão decidir. Isso envolverá muita preparação e treina-
mento para os novos juízes, o que demandará algum
tempo. Encontrar o pessoal adequado competente será
difícil, dada a persistente insegurança no interior do
país, que já deu origem a ameaças contra juízes, bem
como contra os requerentes iniciais, dos quais mais de
cinquenta já foram mortos62. Onde os juízes não são
ameaçados, eles são suscetíveis a integrarem parte das
elites locais que passivamente apoiaram o trabalho dos
grupos paramilitares. Além disso, é possível que o tra-
balho de levantamento e definição dos limites exatos

61 Ibid., art. 207.


62 Nesse sentido, há um paralelo com a Lei 975, em que parte da razão
de existirem tão poucas convicções é que o grupo de funcionários de
investigação necessário para a confirmação das alegações de desmobi-
lização de paramilitares não foi posto em serviço. GUEMBE, Maria
José; OLEA, Helena. No Justice, No Peace: Discussion of a Legal
Framework Regarding the Demobilization of Non-State Armed
Groups. In: ROTH-ARRIAZA, Naomi; MARIEZCURRENA, Javier.
(eds.). Transitional Justice in the Twenty-First Century: Beyond Truth
versus Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 120-
142.
390 Naomi Roth-Arriaza

das propriedades seja demorado e contestado em mui-


tas áreas.
O programa de restituição de terras é uma ten-
tativa ambiciosa de resolver uma das causas subjacen-
tes, bem como as consequências, do longo conflito. Ela
deveria se encaixar em uma lei de desenvolvimento
rural que forneceria o suporte pós-restituição para os
pequenos agricultores – incluindo crédito, sementes
melhoradas e assistência técnica – que será necessário
para que a restituição tenha chance de proporcionar
um padrão de vida adequado. No entanto, seu maior
desafio vem da contínua insegurança e dos conflitos
armados. Ao contrário da África do Sul, a Colômbia
ainda enfrenta desafios vindos do grupo armado de
esquerda, as FARC, de grupos paramilitares recém-
reconstituídos (conhecidos como Bacrim) e das redes
de tráfico de drogas. As forças armadas e autoridades
locais também cometeram abusos contra camponeses,
comunidades indígenas e afro-colombianas, especial-
mente onde a exploração mineral está em jogo63. Algu-
mas áreas são seguras para a restituição, enquanto ou-
tras claramente não o são. A lei inclui elaboradas dis-
posições de segurança e amarra a restituição ao precoce
sistema colombiano de alerta por violações aos direitos
humanos. Ela reconhece os direitos de participação e
processuais das vítimas, e “o direito de retornar ao lu-
gar dele ou dela de origem ou de mudar de forma vo-
luntária, com segurança e dignidade no âmbito da se-
gurança nacional”64. Mas se muitos líderes de comuni-
dades que retornaram forem ameaçados ou mortos, o
processo pode chegar a um impasse. Pior ainda, dada a
precária situação de segurança ao lado do longo perío-
do de tempo passado desde a ocorrência dos desloca-
mentos forçados, muitas pessoas podem ter se estabe-

63 HUMAN RIGHTS WATCH. Columbia. In:________.World Report

2012. New York: Human Rights Watch, 2012.


64 Ley de Víctimas y Restitución de Tierras, art. 28, 8.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 391

lecido em outros lugares ou estar assustadas demais


para voltarem, e podem, portanto, optar por aceitarem
terras alternativas ou uma compensação. A experiência
sul-africana mostra que, conforme o tempo passa sem
que haja uma solução clara, mais pessoas tenderão a
desistir das terras e aceitar o dinheiro da compensação.
Se for esse o resultado, o programa de restituição terá
servido para legalizar a expropriação violenta, ao
mesmo tempo em que deixa os despossuídos com pou-
co para mostrarem.

A Nova Fronteira

Reparações por violações aos direitos ESC en-


frentam a particular dificuldade de delimitação dos
atores responsáveis pelas violações. As violações à in-
tegridade física, que têm sido o foco da maioria dos
programas de reparação, também são crimes previstos
na ordem jurídica nacional e/ou internacional e, por
isso, é possível (embora não seja fácil) perseguir os au-
tores individuais, diretos e indiretos, bem como apon-
tar a responsabilidade do Estado, no mínimo, por sua
incapacidade de proteger. Tem sido muito difícil,
mesmo nessa esfera, ir além do Estado, para responsa-
bilizar assim os financiadores, fornecedores de armas
ou financiadores estrangeiros do conflito por suas con-
tribuições65. No caso de violações aos direitos ESC,

65 Várias comissões da verdade, incluindo de El Salvador e de Serra

Leoa, recomendaram que aqueles que armaram e beneficiaram o con-


flito devem contribuir para a reparação dos danos, mas até agora os
alvos dessas recomendações não responderam. Uma exceção é a con-
tribuição do Banco Riggs de Washington, DC, para um fundo para
vítimas de Pinochet, no Chile, exigido como parte de uma barganha
com os promotores espanhóis sobre as acusações de lavagem de di-
nheiro e ocultação das contas no exterior de Pinochet. ROTH-
ARRIAZA, Naomi. The Multiple Prosecutions of Augusto Pinochet. In:
LUTZ, Ellen; REIGER, Caitlin. (orgs.). Prosecuting Heads of State.
Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 77-94.
392 Naomi Roth-Arriaza

bancos, instituições financeiras internacionais ou mul-


tinacionais também podem desempenhar um papel
importante na recusa de alimentos ou destruição dos
meios de subsistência; contudo, traçar essas conexões é
ainda mais difícil.
Além disso, a linha entre os conflitos (ou dita-
duras) relacionados a violações e o processo de desen-
volvimento “normal” é imprecisa. Deslocamentos for-
çados, com a consequente perda dos meios de subsis-
tência, também ocorrem fora do contexto de um confli-
to armado; milhões de pessoas foram deslocadas no
último quarto de século por barragens, minas, reservas
de vida selvagem e parques, plantações para a produ-
ção de óleo de palma e outros projetos de “desenvol-
vimento”. Embora, teoricamente, sejam concedidas
terras equivalentes acrescidas da remuneração e dos
serviços às pessoas que são forçadas a se deslocar, esse,
muitas vezes, não é o caso. Terras “equivalentes” aca-
bam tornando-se disponíveis apenas porque ninguém
as quer, as escolas são deixadas parcialmente construí-
das ou sem pessoal e se prova impossível que as pesso-
as mantenham seu estilo de vida anterior, que geral-
mente incluía o uso dos recursos naturais locais. Desin-
tegração social, alcoolismo e outros males, assim como
o aumento da marginalização, são os resultados mais
frequentes. Esta marginalização, por sua vez, prepara o
cenário para violentos protestos, que, por sua vez, le-
vam a um novo ciclo de repressão e violência. É esse o
tipo de violência a ser incluído em um paradigma pós-
conflito ou de transição?
Um caso de “sobreposição” envolve a Barragem
Chixoy na Guatemala. A barragem, financiada pelo
Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desen-
volvimento, foi construída no início da década de 1980
e deslocou à força mais de 3.500 Achi Maya. Quando os
membros da comunidade da vila do Rio Negro protes-
taram porque as terras alternativas oferecidas eram
impróprias e a remuneração inadequada, eles foram
massacrados por patrulhas civis paramilitares, que agi-
 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 393

ram sob as ordens das forças armadas; 444 pessoas fo-


ram mortas. O massacre ocorreu durante o auge da
campanha genocida da década de 1980 e ele próprio
acabou por ser o tema do Programa Nacional de Repa-
rações descrito acima, bem como de vários processos
criminais contra os perpetradores diretos e de um pro-
cesso contra o governo na Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos66.
As vítimas trabalharam em prol da reparação
nos níveis nacional e interamericano simultaneamente,
com uma nova estratégia de concentrar-se nos bancos
que financiaram o projeto Chixoy. Elas argumentaram
que os bancos, assim como o governo, sabiam que a
barragem estava sendo construída por um regime as-
sassino e que seria pouco provável que estabelecesse
condições adequadas para as pessoas que estavam
sendo deslocadas. Os danos causados pelo projeto
eram extensos, e incluíram a perda de terrenos, habita-
ções, gado, plantações, áreas de pesca e locais religio-
sos. O rio estava poluído e a comunidade dispersa por
quatro locais diferentes. A comunidade queria repara-
ção de todas as perdas. Mais de uma década de negoci-
ações se seguiu. Em 1996, o Banco Mundial investigou
as alegações e descobriu que a empresa de eletricidade,
que então era estatal, tinha compensado apenas parci-
almente a comunidade. Por exemplo, os títulos das
terras alternativas nunca haviam sido concedidos e
nem todas as pessoas elegíveis ao recebimento tinham
adquirido as terras alternativas, sendo que a terra,
quando recebida, era de má qualidade. Nem todas as

66O caso foi decidido em 4 de setembro de 2012. O Tribunal conside-


rou o governo responsável por violações à Convenção Americana,
incluindo o artigo 22 que se refere à liberdade de circulação e residên-
cia, como resultado, em parte, do deslocamento forçado da população
durante o conflito armado interno e a impossibilidade de retornar às
suas terras ancestrais devido à construção da barragem e do reservató-
rio. Caso dos Massacres do Rio Negro v. Guatemala, set. 4, 2012, Série
C, nº 250, parágrafos 172-182.

 
394 Naomi Roth-Arriaza

casas prometidas foram construídas e aquelas que fo-


ram construídas também eram de má qualidade. Água
potável havia sido prometida, mas o fornecimento era
caro e pouco frequente. Outros elementos prometidos
para o assentamento, como um caminhão para a co-
munidade, um barco e os pagamentos pelas plantações
perdidas, não tinham sido cumpridos. As únicas partes
da compensação prometida que tinham realmente se
materializado eram a eletricidade gratuita, uma escola
e um centro de saúde na vila recém-reassentada67.
Tornou-se claro que era impossível processar os
bancos diretamente em qualquer órgão administrativo
ou judicial devido às imunidades; no entanto, como
resultado da pressão de organizações da comunidade e
dos parceiros internacionais da sociedade civil, os ban-
cos concordaram em financiar uma solução por parte
do governo68. Em 10 de abril de 2010, o Plano de Repa-
rações pelos Danos Sofridos pelas Comunidades Afe-
tadas pela Construção da Barragem Chixoy foi assina-
do e acordado por todas as partes. O plano inclui dis-
posições para compensar os membros da comunidade
em até 154,5 milhões de dólares americanos pelos pre-
juízos e perdas materiais e imateriais, para construir e
reparar as casas e melhorar os sistemas rodoviário e de
saneamento de água e esgoto. O governo comprome-
teu-se com a criação de um plano de gestão da Bacia
Chixoy baseado na gestão integrada da bacia hidrográ-
fica, incluindo um fluxo de água adequado. Além dis-
so, o Presidente da Guatemala vai apresentar um pedi-
do de desculpas. As comunidades terão acesso aos do-
cumentos no Arquivo Histórico da Polícia Nacional

67 JOHNSTON, Barbara. Reparations and the Right to Remedy. Briefing


Paper. World Commission on Dams, 2000.
68 Para a discussão sobre as imunidades do IFI, ver HERZ, Steven.

Rethinking International Financial Institution Immunities.


In: BRADLOW, Daniel; HUNTER, David . (eds.). International Financial
Institutions and International Law. Alphen aan den Rijn: Kluwer, 2010. p.
137-165.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 395

relacionados ao massacre original e ao deslocamento.


Apesar do acordo, seu texto ainda espera ser imple-
mentado69.
Chixoy é um caso “híbrido”, porque as repara-
ções pelas violações à integridade física (massacre), em
um cenário de justiça transicional, e aquelas pelas vio-
lências econômicas foram sobrepostas. Embora ne-
nhum processo tenha ainda começado, crescentes rei-
vindicações decorrentes de abusos na Birmâ-
nia/Mianmar seriam outro caso híbrido, visto que pro-
jetos de barragens e de mineração, em grande escala,
na região oriental povoada por minorias étnicas, como
a Karen, levaram à resistência e à repressão na área.
Essas violações podem ser tratadas dentro dos limites
dos mecanismos de justiça transicional existentes devi-
do à sobreposição e à intencionalidade evidente, tanto
do deslocamento como da violência física.
No entanto, a linha é imprecisa: é a expropria-
ção forçada das terras tradicionais dos Endorois no
Quênia parte de uma narrativa de justiça transicional
ligada à expropriação forçada para ganho político, ou
de uma narrativa de privatização dos recursos mais
ligada à globalização, ou ambos? Os Endorois são um
grupo de pastores indígenas, com cerca de 400 famílias,
que pastavam o gado ao redor do Lago Bogoria, que
eles consideram ser o centro de seu mundo espiritual.
Suas terras eram possuídas comunitariamente como
“terras de confiança”, até que o ex-presidente Moi de-

69Segundo a Assessoria de Direitos Humanos da Presidência da Re-


pública, o problema tem sido uma combinação da confusão burocráti-
ca sobre os mecanismos de pagamento e as incertezas sobre o que
exatamente foi pago no acordo original, incompleto, com a empresa de
eletricidade. Em certo momento, o governo tentou conseguir a aprova-
ção da legislação para financiar o acordo, mas foi derrotado. Conver-
sas posteriores ao acordo não foram adiante, com cada lado culpando
o outro por mais atrasos. Nota da Comissão Presidencial dos Direitos
Humanos (COPREDEH) ao Relator Especial da ONU sobre os Povos
Indígenas para explicar os atrasos na liquidação, 2011 (em arquivo
com a autora).
396 Naomi Roth-Arriaza

signou a área como “reserva de caça”, em 1973. Apesar


desta situação, as empresas cujos proprietários eram
próximos ao governo obtiveram licença para extrair
rubis na área e lojas de luxo surgiram na reserva. A
comunidade não foi consultada a respeito de quaisquer
dos projetos de turismo ou de mineração, e nem foi,
apesar das promessas oficiais, beneficiária de qualquer
um deles. Em vez disso, os Endorois foram expulsos de
suas terras. Terras alternativas adequadas nunca foram
encontradas e “uma comunidade que, até então, era
autossuficiente em sua segurança alimentar, foi redu-
zida a um grupo de pessoas deslocadas internamente,
dependente do Estado”70. Finalmente, os Endorois or-
ganizaram-se, encontraram aliados e ajuizaram uma
ação para recuperarem o acesso ao Lago Bogoria e às
terras ao seu redor. Quando os tribunais locais decidi-
ram contrariamente à sua causa, eles levaram o caso à
Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos,
reivindicando a restituição de sua terra ancestral, uma
compensação pelo deslocamento ilegal da Reserva para
Caça Lago Bogoria e um reconhecimento de que seus
direitos à propriedade, à cultura, à religião, aos recur-
sos naturais e ao desenvolvimento tinham sido viola-
dos71. A Comissão concordou com os requerentes ao
longo de todo o processo e recomendou que os Endo-
rois tinham o direito de serem acomodados dentro da
Reserva, e que uma compensação deveria ser paga. Até
agora, o governo queniano não cumpriu a decisão.

70 SING’OEI, Korir. The Endorois' Legal Case and Its Impacts on State and

Corporate Conduct in Africa. Disponível em:


<http://www.natureandpoverty.net/find/?eID=dam_frontend_push
&docID=1285>. Acesso em: 6 out. 2012.
71 AFRICAN COMMISSION ON HUMAN AND PEOPLES’ RIGHTS.

Centre for Minority Rights Development (Kenya) and Minority Rights


Group International on behalf of Endorois Welfare Council v Kenya. Uma
discussão completa das implicações do caso está além do escopo desse
capítulo. Ver SING’OEI, The Endorois’ Legal Case.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 397

Isso é uma violação “transicional”, que pode ser


corrigida usando os mecanismos de justiça transicio-
nal? Claramente, ondas sucessivas de expropriação e
transferência de terras estão no centro das tensões étni-
cas e políticas do Quênia e periodicamente explodem
em atos de violência, o mais espetacular deles em
200772. A Comissão para Verdade, Justiça e Reconcilia-
ção supostamente abordará estas questões em seu rela-
tório e recomendações, já há muito atrasados. Por outro
lado, ao contrário dos casos sul-africano, colombiano e
guatemalteco, aqui a expropriação não estava a serviço
de uma campanha, política ou militar, violenta, mas,
simplesmente, era o resultado da política de exclusão,
da venalidade, da ganância, e de objetivos de desen-
volvimento equivocados. Quão diferente isso torna a
questão?
Em alguns aspectos, não é diferente em modo
algum. O efeito sobre os expropriados é semelhante,
assim como a falta de orientação e a denegação da jus-
tiça. Por outro lado, o que faz com que os programas
de reparação sejam viáveis é seu caráter “transicional”,
isto é, excepcional. Para expropriações ou desapropria-
ções de terras, ordinárias, a compensação deve ser paga
por uma questão de devido processo legal, pelos Esta-
dos ou pelos atores privados que se beneficiaram. É só
porque isso não acontece efetivamente — propriedades
comunitárias não são reconhecidos pelo direito, a terra
“equivalente” nunca acaba por ser equivalente, não há
nenhuma negociação em si, mas simplesmente um de-
creto — que se torna vantajoso para as vítimas de ex-
propriações ordinárias colocarem suas reivindicações

72 Tensões estão aumentando novamente. Ver, e.g. AKWIRI, Joseph;


JORGIC, Drazen. Rival Kenyan Tribes Clash Again over Land. Reuters,
11 Sep. 2012. Disponível em:
<http://www.reuters.com/article/2012/09/11/us-kenya-clashes-
idUSBRE88A0GF20120911>. Acesso em: 26 dez. 2012.
398 Naomi Roth-Arriaza

nos termos da transição, transformar o ordinário em


extraordinário.
Para as reparações serem, nesses casos, signifi-
cativamente distintas, alguns critérios podem ajudar a
resolver os casos de cada lado da imprecisa linha entre
“transição” e os “casos relacionados com desenvolvi-
mento”. Um pode ser a direção da causalidade: a vio-
lência e expropriação, com a ação governamental, ou
com sua falta de proteção, leva à expropriação? Se as-
sim for, isso pode sugerir eventos mais relacionados
com a “limpeza étnica” familiar para os processos de
justiça transicional. Se for a expropriação que conduz à
violência, que então causa uma vasta gama de viola-
ções, isso tende a sugerir que serão necessários outros
tipos de processos reparatórios. Alternativamente, po-
dem-se distinguir efeitos “primários” e “secundários”:
é a expropriação o objetivo, ou é um subproduto infe-
liz? Nenhum desses testes será satisfatório em alguns
casos difíceis, mas eles ajudam a pensar em como ex-
pandir o universo de danos indenizáveis, sem esticá-lo
além do ponto de ruptura.

Conclusões

Este artigo suscita algumas das dificuldades en-


volvidas no tratamento das violações de direitos ESC
dentro dos esquemas de reparação. Vários tópicos ge-
rais podem ser tirados desta narrativa:

Que tipo de reparações?

Como se observa, a maioria dos programas de


reparação “integrais” incluem o dinheiro, bem como a
prestação de serviços e alguma atenção a medidas sim-
bólicas, não-pecuniárias. O dinheiro é geralmente um
pagamento fixo. Da mesma forma, os programas de

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 399

restituição de terras oferecem a opção de pagamento


em dinheiro ao invés de terras, e pretendentes frustra-
dos podem escolher o dinheiro, em vez de esperarem
um tempo maior pelas terras. Dinheiro também é a
forma mais problemática de reparação, especialmente
porque raramente há o suficiente, quando dividido
entre os membros da família, a fim de proporcionar
uma mudança de vida.
O impacto das reparações pode, em alguns con-
textos culturais, ser diferente, dependendo se elas são
feitas em espécie ou por meio de pagamentos em di-
nheiro, e se elas tentam compensar uma perda materi-
al, ao invés de uma morte injusta. Especialmente para
as violações dos direitos envolvidos em uma subsistên-
cia adequada (alimentação, abrigo, água, etc.), a resti-
tuição em espécie, incluindo materiais de construção,
insumos agrícolas ou animais de pastagem, sementes e
instrumentos domésticos e de trabalho, como enxadas
e panelas, pode ser mais apropriada. O reconhecimento
explícito das violações de direitos ESC pode tornar
mais claro que essa restituição em espécie corresponde
às perdas materiais sofridas. Também pode ter uma
ressonância mais cultural: a resolução de disputas cos-
tumeiras em grande parte da África, por exemplo, re-
quer o pagamento dos danos em bovinos, e não em
dinheiro. Ao mesmo tempo, a linha entre as perdas
pessoais e de propriedades pode não ser a mesma em
todas as sociedades. Em alguns lugares, animais do-
mésticos podem ser vistos como seres sensíveis mais
semelhantes à família, enquanto em outros, até mesmo
plantações e bens domésticos podem ter espíritos.
A restituição por meio de bens, ao invés de di-
nheiro, pode alterar os efeitos baseados no gênero e
intrafamiliares do pagamento. A economia doméstica
tende a ser a esfera das mulheres, enquanto a economia
do dinheiro a dos homens. O controle sobre os recur-
sos, então, tende a depender da esfera a que pertencem,
de modo que, quando do fornecimento de bens, será
mais provável que eles se mantenham nas mãos das
400 Naomi Roth-Arriaza

mulheres. Os animais domésticos, em particular, são


mais propensos do que o dinheiro a serem utilizados
para melhorar a nutrição da família ou para aumentar
o fluxo de renda sob o controle das mulheres. Por sua
vez, os estudos mostram que a renda controlada pelas
mulheres é mais provável de ser gasta na alimentação e
na educação dos filhos.
Na verdade, a restituição em espécie pode não
ser praticável em áreas urbanas, nem tem o mesmo
efeito em todas as culturas, mesmo nas rurais. Mas,
mesmo lá, cuidados devem ser tomados de modo a se
pensar em formas culturalmente apropriadas e econo-
micamente benéficas de pagamentos individuais não-
pecuniários, sejam elas, por exemplo, em materiais de
construção ou em ferramentas que dão às vítimas os
meios para viverem com dignidade. Deve-se pensar
também na natureza e dimensão dos mercados dispo-
níveis: se as coisas que as pessoas mais precisam não
podem ser compradas no local, os pagamentos em di-
nheiro podem acabar beneficiando elites urbanas ou
estrangeiras, ao invés de criar qualquer tipo de efeito
multiplicador a nível local. Eles podem até servir para
drenar a economia local de recursos humanos, como
quando as pessoas usam seus pagamentos de indeniza-
ções para enviar seus jovens ao exterior para trabalha-
rem como operários migrantes.

Processo como chave

Como outras medidas da justiça transicional,


reparações são, pelo menos, relativas tanto ao processo
como quanto ao resultado. Brandon Hamber observa
que a genuína reparação e a cura não ocorrem apenas,
ou principalmente, através da entrega de um objeto ou
de atos de reparação, mas também através do processo

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 401

que ocorre ao redor do objeto ou ato73. Para muitos be-


neficiários, reparações não tiveram o sentimento de
reparação, porque não houve nenhuma discussão ou
negociação com eles, individualmente ou em comuni-
dades, do que deveria ser reparado, e como. As pessoas
são, na maior parte das vezes, simplesmente destinatá-
rios passivos de cheques ou de serviços. Lieselotte Via-
ene tem mostrado como, por exemplo, para as comu-
nidades maias Kek'chi, reparações significativas teriam
que envolver negociações coletivas com o governo e
decisões coletivas sobre a forma e o conteúdo das me-
didas reparatórias74. Mesmo no Peru, onde o programa
de reparação coletiva envolveu um processo de classi-
ficação comunitária de possíveis projetos a serem reali-
zados pelo governo local, muitos destinatários senti-
ram que suas preferências receberam pouca atenção de
municípios com outras prioridades75.
A perspectiva processual privilegia o reconhe-
cimento de danos e de ações individuais e da comuni-
dade. Onde as violações aos direitos se originaram a
partir da marginalização e da exclusão, um reequilíbrio
da dinâmica do poder local em favor dos excluídos e
marginalizados será fundamental. É especialmente ne-
cessário que seja dada maior atenção para a dinâmica
de gênero, tanto intrafamiliar como nas comunidades
locais76. Um programa de reparações bem projetado
pode ajudar a reequilibrar o poder local. Obviamente,

73 HAMBER, Brandon. Narrowing the Micro and Macro: A


Psychological Perspective on Reparations in Societies in Transition. In:
DE GREIFF, Pablo (ed.). The Handbook of Reparations. Oxford: Oxford
University Press, 2006. p. 580.
74 VIAENE, Voices From the Shadows.

75 INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE (ICTJ);

ASOCIACIÓN PRO DERECHOS HUMANOS (APRODEH). Perú:


¿Cuánto se ha Reparado en Nuestras Comunidades.
76 RUBIO-MARIN, Ruth. What Happened to the Women?: Gender and

Reparations for Human Rights Violations.Brooklyn, NY: Social Science


Research Council, 2006.
402 Naomi Roth-Arriaza

ele pode colocar os recursos mais necessários nas mãos


dos que não estão no poder, que por sua vez podem
destacar e tornar público o reconhecimento do Estado
de que aquelas pessoas sofreram de forma despropor-
cional. Mas, até mesmo serviços como escolas, estradas
ou centros de saúde, que irão beneficiar todos os que
vivem na área, incluindo os autores, os espectadores e
as equipes de resgate, bem como as vítimas77, podem
ajudar a reequilibrar o poder em favor das vítimas. Se
os serviços necessários para todos vêm para a comuni-
dade por causa das necessidades e, melhor ainda, dos
esforços de vítimas e sobreviventes, isso lhes proporci-
ona uma fonte de status e orgulho aos olhos de seus
vizinhos. Uma fonte de status em muitas culturas e
comunidades é a capacidade de trazer recursos que
deem suporte ao bem comum, ou seja, ser um benfei-
tor78. Deixando claro que as vítimas são o motivo dos
serviços chegarem, mesmo que esses serviços benefici-
em a todos, reparações coletivas podem começar a re-
solver um desequilíbrio de poder existente. Isso pode,
por sua vez, permitir uma participação mais ampla das
vítimas na governança local.

77 Essas categorias são, obviamente, fluidas: a mesma pessoa pode cair


em mais de uma categoria, por exemplo, resgatando algumas pessoas
ao atacar outras; no seio das famílias, muitas vezes há representantes
de todos eles. Pode ser impossível beneficiar apenas as vítimas “cer-
tas”; o Plano do Peru de Reparação Compreensiva (PIR), e.g., exclui os
membros de grupos subversivos, mas esta disposição tem levantado
uma série de críticas de que a exclusão é discriminatória e muito am-
pla.
78 Este fenômeno assume diferentes formas em diferentes culturas. É

(pejorativamente) tratado como a capacidade de agir como padrinho,


como um grande homem, ou motor e movimentador, mas o mesmo
impulso motiva, pelo menos em parte, as grandes festas de casamento
e doações pesadas para o ballet ou para a nova ala hospitalar.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 403

Quem paga pelas reparações?

Na maior parte, os Estados têm pagado, mesmo


quando as violações foram efetivamente cometidas por
atores não-estatais, com base na teoria de que o Estado
falhou em proteger e garantir os direitos. Essa situação
é legalmente correta, mas especialmente quando estão
em causa os direitos ESC, uma gama muito maior de
atores tem responsabilidade moral e prática. Colocar
todo o peso das indenizações no governo, especialmen-
te em um governo que não estava no comando quando
as violações aconteceram, solapa o apoio político para
quaisquer indenizações e nega a importância simbólica
dos malfeitores reconhecerem seus erros.
Há alguns precedentes para o financiamento
privado das reparações, embora a maioria dos exem-
plos seja ressaltada pela relutância dos agentes priva-
dos em tomar quaisquer ações que possam ser inter-
pretadas como a admissão da culpabilidade pelos da-
nos às vítimas. A Comissão Verdade e Reconciliação
sul-africana recomendou que o setor privado pagasse
uma taxa única sobre os rendimentos corporativos e
uma doação de um por cento da capitalização de mer-
cado das empresas públicas, uma sobretaxa retrospec-
tiva sobre os lucros das empresas e um “imposto sobre
a fortuna” para fazer reparos nos lucros excedentes
gerados pelos salários da era do apartheid e pelas restri-
ções sobre o trabalho. O setor privado se recusou, ape-
sar do Business Trust ter fornecido fundos para as co-
munidades mais atingidas, sem nomeá-los como repa-
rações79. O Plano Integral de Reparações Peruano (PIR)
é financiado em parte pela “óbolo minero”, uma contri-
buição voluntária de três por cento do lucro líquido
para o governo fornecida pelas empresas de minera-

79 COLVIN, Christopher J. “Overview of the Reparations Program in

South Africa.” In: DE GREIFF, Pablo (ed.). The Handbook of Reparations.


Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 176-214. p. 209.
404 Naomi Roth-Arriaza

ção, mas que não está especificamente ligada à repara-


ção e tem muitos pretendentes; um imposto sobre os
lucros inesperados na mineração no Peru foi rejeitado.
Os fundos privados também podem vir a partir
do rastreamento e do confisco dos bens de criminosos e
dos ganhos ilícitos de ex-líderes. Além das leis colom-
bianas descritas acima, o PIR peruano também foi par-
cialmente financiado por um fundo especial criado pa-
ra manter as verbas recuperadas de ex-funcionários do
governo acusados de peculato por parte do Estado80.
Nos casos de corrupção em grande escala ou invasão
de recursos públicos, que muitas vezes acompanham
outros tipos de violações de direitos, os bens dos res-
ponsáveis devem ser usados, pelo menos em parte,
para reparar as vítimas.
Violações dos direitos ESC envolvem muitas ve-
zes empresas privadas ou financiadores internacionais
(multinacionais ou binacionais). No caso das empresas
privadas, o cenário internacional emergente invoca
essas empresas a utilizarem a devida diligência a fim
de evitar a violação de direitos e de fornecer uma solu-
ção para as violações que ocorrerem81. Com o desen-
volvimento da estrutura de soluções, seria importante
garantir que ele seja consistente com a evolução do
pensamento sobre as reparações dos Estados, especi-
almente no que diz respeito à necessidade do reconhe-
cimento e do tratamento dos requerentes.

80 ROHT-ARRIAZA, Naomi; ORLOVSKY, Katharine. A


Complementary Relationship: Reparations and Development. In: DE
GREIFF, Pablo; DUTHIE, Roger. (eds.). Transitional Justice and
Development: Making Connections. Brooklyn, NY: Social Science
Research Council, 2009. p. 213.
81 UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS COUNCIL. Human Rights

and Transnational Corporations and Other Business Enterprises.


A/HRC/17/L.17, 10 jun. 2011. Para mais informações sobre os “Rug-
gie Principles,” que estão além do escopo desse artigo, ver em geral
FLETCHER FORUM. Business and Human Rights: Together at Last? A
Conversation with John Ruggie. The Fletcher Forum of World Affairs
Journal, v. 35, n. 2, p. 117-122, 2011.

 
Reparações e direitos econômicos, sociais e culturais 405

Que tipo de reformas?

Finalmente, tratar seriamente as violações dos


direitos ESC exige alguma ampliação do que se enten-
de por “garantias de não repetição”, um componente-
chave no cenário internacional sobre as reparações. Até
agora, a maioria dessas medidas foram ligadas às re-
formas militares e das polícias, bem como da formação
de juízes e promotores e das práticas de detenção.
Aqui, uma ampliação do quadro para incluir violações
de direitos ESC exigiria uma atenção precoce e equiva-
lente às medidas destinadas a reduzir ou superar a
marginalização e a negação de serviços. Reforma edu-
cacional e programas de proteção social, por exemplo,
passariam a fazer parte do planejamento de transição,
não sendo algo a ser adiado até que "normalidade" vol-
te. Isso exigiria mudanças nos prazos e mentalidades
dos doadores e do IFI, bem como do governo.
As reparações podem ser uma fonte de melhoria
dos direitos ESC, e violações a estes podem e devem
ser corrigidas por meio de estratégias e programas es-
pecíficos. Como violações maciças aos direitos huma-
nos estão cada vez mais interligadas com as ameaças às
terras e aos meios de subsistência, é necessário repen-
sar as reparações por esses danos.

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Um modelo para
políticas de reparações
Lições do Fundo Fiduciário em Benefício
das Vítimas do Tribunal Penal Internacional1

Thomaz  Francisco  Silveira  de  Araujo  Santos2  

Resumo: O artigo trata da estrutura de funcionamento


do Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas, institui-
ção voltada a vítimas de crimes internacionais sob a
jurisdição do Tribunal Penal Internacional. A análise
tem o objetivo de averiguar se ela pode servir de mode-
lo institucional para políticas de reparação de âmbito
nacional ou regional, tendo em vista os processos re-
centes de justiça de transição em curso no contexto la-
tino-americano.

1
Uma versão estendida deste artigo foi publicada anteriormente como capítu-
lo de livro. Ver SANTOS, Thomaz Francisco Silveira de Araujo. As repara-
ções às vítimas no Tribunal Penal Internacional. Porto Alegre: Sergio Anto-
nio Fabris Editor, 2011.
2 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2005); Mestre em Relações Internacio-


nal pela Universidade de Brasília (UnB) (2008); Doutor em Ciências
Jurídicas e Sociais pela UFRGS (2012). Professor do Curso de Relações
Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing – Sul
(ESPM-Sul) e Professor dos Cursos de Direito e Relações Internacio-
nais do Centro Universitário Ritter dos Reis/Porto Alegre (UniRit-
ter/POA).

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
414 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

Palavras-chave: Fundo Fiduciário em Benefício às Ví-


timas e seus Familiares; Tribunal Penal Internacional;
políticas de reparação.

Abstract:The article deals with the working structure


of the Trust Fund for the Benefit of Victims, an insti-
tution directed towards victims of international crimes
under the jurisdiction of the International Criminal
Court. The goal of the analysis is to ascertain whether it
can serve as an institutional model for national or regi-
onal reparation policies, bearing in mind the recent
processes of transitional justice currently underway in
the Latin-American context.
Keywords: Trust Fund for the Benefit of Victims; In-
ternational Criminal Court; Reparation policies

1. Introdução.

Este artigo pretende fazer uma breve análise da


estrutura e do desenho institucional do Fundo Fiduciá-
rio em Benefício das Vítimas e seus Familiares (ou
“Fundo”), instituição relacionada ao Tribunal Penal
Internacional (“Tribunal” ou “TPI”), mas autônoma na
sua administração. A partir de tal exame, objetiva-se
averiguar se o Fundo pode servir como modelo institu-
cional para organização de regimes e políticas de repa-
rações a vítimas de graves violações de direitos huma-
nos e de crimes internacionais, tanto no âmbito nacio-
nal como regional.
Será dada atenção especial para os poderes in-
dependentes que o Fundo tem para determinar repara-
ções individuais e coletivas às vítimas, mesmo na au-
sência de sentenças condenatórias do TPI, por meio do
que aqui chamarei de “cláusula do benefício”, confor-
me previsto no regulamento do Fundo. Uma vez que a
análise se concentrará no desenho institucional do
Fundo como um modelo para organizações de inciati-
vas e instituições semelhantes, questões recentes rela-

 
Um modelo para políticas de reparações 415

cionadas ao tema mas não centrais à proposta do pre-


sente artigo, como a decisão do TPI estabelecendo os
princípios gerais para reparações às vítimas no caso
“Thomas Lubanga Dyilo”, serão abordadas de forma
tangencial.3
A relevância e a pertinência da análise de uma
instituição como o Fundo para modelos nacionais e
regionais de políticas de reparação se apoia em alguns
motivos centrais. Em primeiro lugar, a consagração de
uma justiça de transição do Brasil, particularmente, e
na América Latina, como um todo, certamente passará
pela questão da reparação devida às vítimas diretas e
indiretas de crimes internacionais como a tortura e o
desaparecimento forçado e de demais violações massi-
vas de direitos humanos tão comuns aos períodos de
ditadura militar na região.4 E, em segundo lugar, dada
a dimensão e o alcance social desses crimes, reparações
individuais determinadas por ordem judicial, por
exemplo, não seriam a resposta institucional ideal. Os
danos diretos e os efeitos indiretos decorrentes dos
ilícitos cometidos sob a égide das ditaduras militares
latino-americanas poderiam ser melhor combatidos por
uma instituição que privilegiasse iniciativas coletivas
em benefício das vítimas desses crimes.5

3
Para a decisão do TPI, de 7 de agosto de 2012, acessar http://www.icc-
cpi.int/Menus/Go?id=f491ef55-3612-4205-a195-d44a7b90ca0a&lan=en-GB
(Acesso em 09/04/2013). Para comentários sobre os efeitos potenciais dessa
decisão, ver http://www.vrwg.org/home/home/post/36-lubanga-case---q--a-
on-icc-landmark-decision-on-reparations-for-victims#_ftn1 (Acesso em
09/04/2013) e http://www.lubangatrial.org/2012/08/10/icc-issues-guidance-
on-reparations-for-victims-of-lubangas-crimes/ (Acesso em 09/04/2013).
4
PINTO, Mónica. L’Amérique latine et le traitment des violations
massives de droits de l’Homme – Institut des Hautes Etudes
Internationales de Paris, Cours e Travaux nº 7. Paris: A. Pedone, 2007,
pp. 24-34.
5 PINTO, op. cit., pp. 18-24.

 
416 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

2. A criação do Fundo Fiduciário em Benefício das


Vítimas e seus Familiares

Após a entrada em vigor do Estatuto de Roma


do TPI, em 1º de julho de 2002, foi criado o Tribunal e,
com ele, a Assembleia dos Estados-Parte do Tribunal
(ou “Assembleia”). E já na primeira sessão da Assem-
bleia, de 3 a 10 de setembro de 2002, duas resoluções
foram aprovadas, sendo uma criando oficialmente o
Fundo6 e outra estabelecendo o processo de nomeação
e eleição dos membros do Conselho de Administração
do Fundo.7 Essas resoluções previam como seria a es-
trutura organizacional do Fundo, quais seriam as suas
fontes de recurso e, o mais importante, as suas funções
e atividades em benefício das vítimas.8
Além dessas duas resoluções, bem como outras
posteriores que serviram para complementar a estrutu-
ra organizacional do Fundo, atenção especial será dada
ao Regulamento do Fundo, aprovado pela Assembleia
em 3 de dezembro de 2005 e documento de fundamen-
tal importância, pois detalha e esclarece diversas ques-
tões quanto às atribuições do Fundo, notadamente o
que se optou por chamar de “cláusula do benefício”,
que diz respeito à possibilidade de ajuda emergencial
ser conferida pelo Fundo às vítimas de crimes sob a
jurisdição do Tribunal mesmo não havendo decisão
condenatória de alguma câmara do Tribunal contra um
réu.

6
Resolução ICC-ASP/1/Res.6, de 9 de setembro de 2002, disponível em
http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso 09/04/2013).
7
Resolução ICC-ASP/1/Res.7, de 9 de setembro de 2002, disponível em
http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 09/04/2013).
8
FERSTMAN, Carla. “The International Criminal Court’s Trust Fund
for Victims: Challenges and Opportunities”, Yearbook of International
Humanitarian Law, v. 6, 2003, pp. 425-426.

 
Um modelo para políticas de reparações 417

2.1 Estrutura organizacional do Fundo Fiduciário

Tendo sido previsto como uma instituição inde-


pendente do TPI, com administração e recursos pró-
prios, o Fundo é formado por um Conselho de Admi-
nistração de cinco membros eleitos pela Assembleia a
partir de cinco grupos que buscam representar diferen-
tes culturas e continentes: o Grupo dos Estados Africa-
nos, o Grupo dos Estados da Europa Oriental, o Grupo
dos Estados da América Latina e Caribe, o Grupo de
Estados Asiáticos e o Grupo da Europa Ocidental e
Demais Estados.9
O Conselho de Administração, em que os mem-
bros possuem um mandato de três anos, trabalham de
forma voluntária e reúnem-se ao menos uma vez por
ano, é responsável pela administração do Fundo e dos
recursos a ele repassados segundo as regras constantes
no Estatuto de Roma e demais regulamentos, e delibe-
rações feitas pela Assembleia. Em 2004, a Assembleia
decidiu pela criação de um Secretariado do Fundo para
auxiliar o Conselho de Administração no desenvolvi-
mento de suas atividades, notadamente em atividades
e projetos relativos à implementação das reparações
ordenadas pelo TPI. Uma vez que as reuniões do Con-
selho são anuais e servem mais para traçar a estratégia
a ser aplicada pelo Fundo, um Secretariado presente e
participativo é uma ferramenta indispensável para tra-
tar de questões envolvendo, em primeiro lugar, as ví-
timas dos crimes que estão sendo investigados pelo
Tribunal e também as vítimas de todos os crimes sob a
jurisdição do Tribunal,10 uma questão que diz respeito ao

9
A composição atual do Conselho de Administração do Fundo, eleito
pela Assembleia dos Estados-Parte em novembro de 2012, está
disponível em http://www.trustfundforvictims.org/board-directors
(Acesso em 07/04/2013)
10
DE BROUWER, Anne-Marie. “Reparation for Victims of Sexual
Violence: Possibilities at the International Criminal Court and at the
418 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

alcance das atribuições do Fundo e que será tratada a


seguir.
É importante perceber que a estrutura organiza-
cional do Fundo permite que ele seja independente do
Tribunal, ainda que em algumas situações necessite da
colaboração do Secretariado do Tribunal, conforme já
decidido pela Assembleia. Aliás, foi o Secretariado do
Tribunal que possibilitou a realização da primeira reu-
nião do Conselho de Administração do Fundo, em
2004, e também deu apoio na preparação do primeiro
relatório do Conselho à Assembleia, também em 2004,
o que demonstra que o trabalho conjunto realizado por
diferentes órgãos do Tribunal, todos agindo sob a tute-
la da Assembleia, pode ter impacto ainda maior na
área de reparações a vítimas, dada a complexa nature-
za dessa questão, interdisciplinar e interdepartamental
por natureza.11

2.2 Recursos do Fundo: apreensões de bens, reserva de valores


para reparações determinadas pelo Tribunal e doações voluntárias.

Conforme decidido pela Assembleia, os recur-


sos do Fundo Fiduciário podem ser originados de qua-
tro tipos de fonte: a) contribuições voluntárias de go-
vernos, organizações internacionais, indivíduos, corpo-
rações e outras entidades, de acordo com os critérios
relevantes a serem estabelecidos pela Assembleia; b)
somas e demais bens coletados por meio de multas ou
sequestros transferidos ao Fundo pelo Tribunal de
acordo com o disposto no Artigo 79, parágrafo 2, do
Estatuto; c) recursos coletados por meio de títulos de
reparação determinados pelo Tribunal, de acordo com
a Regra 98 das Regras de Processo e Provas; e d) recur-

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11
FERSTMAN, op. cit., pp. 428-429.
Um modelo para políticas de reparações 419

sos, além dos já citados, que a Assembleia dos decida


alocar ao Fundo.12
Para solucionar as dúvidas existentes em rela-
ção ao funcionamento do Fundo, especialmente no to-
cante ao seu financiamento e à implementação das de-
cisões do TPI em matéria de reparações, a Assembleia
adotou, em 3 de dezembro de 2005, o Regulamento do
Fundo Fiduciário em Benefício das Vítimas e seus Fa-
miliares (ou “Regulamento do Fundo”).13 O Regula-
mento do Fundo, além de tratar de questões de ordem
administrativa como a eleição dos membros do Conse-
lho de Administração, a escolha do Secretariado e a
relação entre esses dois órgãos,14 dedica diversos arti-
gos à obtenção de recursos15 e aos projetos e atividades
do Fundo.16 No presente artigo, atenção maior será da-
da neste momento às doações voluntárias ao Fundo, a
fonte que, nos primeiros estágio de funcionamento
dessa instituição, pode ser de maior importância para o
benefício das vítimas.17
No âmbito das doações voluntárias, o Conselho
de Administração será responsável por campanhas e
missões de arrecadação18 de recursos junto a governos,

12
Resolução de 9 de setembro de 2002, ICC-ASP/1/Res.6, parágrafo 2, dis-
ponível em http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em
09/04/2013).
13
Resolução de 3 de dezembro de 2005, ICC-ASP/4/Res.3, disponível em
http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 07/04/2013).
14
Parágrafos 1 a 19 do Regulamento do Fundo, disponível em
http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 09/04/2013).
15
Parágrafos 20 a 41 do Regulamento do Fundo.
16
Parágrafos 42 a 75 do Regulamento do Fundo.
17
INGADOTTIR, Thordis, “The Trust Fund For Victims (Article 79 of the
Rome Statute)”, in INGADOTTIR, Thordis (ed.), The International Criminal
Court: Recommendations on Policy and Practice, Brill Academic Publishers,
2003, pp. 126-129.
18
FERSTMAN, op. cit., pp. 429-430.
420 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

organizações internacionais, corporações, indivíduos19


e demais entidades,20 sendo que é mencionado expres-
samente que o Conselho deverá adotar uma estratégia
específica sobre como obter contribuições financeiras
de instituições privadas,21 como bancos e empresas,
além de adotar mecanismos de verificação das fontes
desses mesmos recursos.22 Interessante notar que, inici-
almente, as doações voluntárias de governos não podi-
am ser destinadas a um projeto ou atividade específica
do Fundo (“earmarked”), ou seja, não podia haver por
parte de um Estado a determinação prévia do destino
final dos recursos doados, pois isso poderia levar a
usos políticos do Fundo.23 Tal cenário se modificou com
a aprovação de uma resolução durante a Sexta Assem-
bleia, quando foi decidido que doações de governos
nacionais e outras entidades poderiam ser destinadas a
fins específicos quando o processo de levantamento
recursos partisse do Conselho de Administração ou do
Diretor Executivo do Fundo.24
Já doações voluntárias de outras entidades po-
dem ser destinadas a atividades ou projetos específicos
do Fundo até 1/3 do seu total, e desde que sejam com-
provadamente em benefício das vítimas e não resultem
em discriminação do indivíduo ou grupo a que se des-
tina.25 As doações voluntárias também podem ser recu-
sadas por diferentes motivos pelo Fundo, como, por
exemplo, quando forem consideradas contrárias aos

19
REISMAN, William M.; ARSANJANI, Mahnoush H. “The Law-in-Action
of the International Criminal Court”, American Journal of International Law,
n. 99, 2005, pp. 401-403.
20
Parágrafo 23, Regulamento do Fundo.
21
Parágrafo 24, Regulamento do Fundo.
22
Parágrafo 26, Regulamento do Fundo.
23
Parágrafo 27, Regulamento do Fundo.
24
Resolução de 14 de dezembro de 2007, ICC-ASP/6/Res.3, disponível em
http://www.trustfundforvictims.org/legal-basis (Acesso em 09/04/2013).
25
Parágrafo 27 (a) e (b), Regulamento do Fundo.

 
Um modelo para políticas de reparações 421

objetivos e atividades do Fundo,26 quando puderem


afetar a independência do Fundo, ou quando sua des-
tinação a um projeto ou atividade específica do Fundo
for considerada inadequada.27 É importante aqui men-
cionar que o Fundo manterá contas separadas depen-
dendo da natureza da Fonte e de sua destinação, ha-
vendo, por exemplo, uma Conta Geral em benefício
das vítimas onde todas as doações não especificadas
são depositadas.28
Segundo dados divulgados pelo próprio Fundo,
ele dispõe apenas de recursos arrecadados a partir de
doações voluntárias de Estados, organizações e indiví-
duos, totalizando o montante de aproximadamente
€4.500.000,00 atualizado até novembro de 2009,29 sendo
que, desse montante, um total de €1.800.000,00 foram
alocados para reparações a serem determinadas pelo
TPI, conforme decisão do Conselho de Administração
do Fundo de 21 de março de 2013.30 Além disso, cerca
de €600.000,00 foram alocadas especialmente para im-
plementação de projetos especificamente na República
Centro Africana, mas, em razão da instabilidade políti-
ca recente no país e os riscos existentes em relação às
vítimas de crimes internacionais, o Fundo decidiu sus-
pender suas atividades no local até um momento mais
propício para sua continuação.31

26
Nesse sentido, uma doação feita por um indivíduo acusado de crimes inter-
nacionais ou por Estado que é notório violador de direitos humanos poderiam
ser recusadas pelo Fundo. Cf. REISMAN; MARSANJANI, op. cit., pp. 397-
400.
27
Parágrafo 30, Regulamento do Fundo.
28
Parágrafo 28, Regulamento do Fundo.
29
Dados disponíveis em http://www.trustfundforvictims.org/financial-info
(Acesso em 09/04/2013).
30 Informações disponíveis em

http://www.trustfundforvictims.org/news/tfv-board-directors-
raises-reparations-reserve-18-million-euros (Acesso em 09/04/2013).
31 Informações disponíveis em
422 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

Mesmo que, em um primeiro momento, a quan-


tia esteja muito aquém das necessidades pelas quais
passam as vítimas, as doações voluntárias são a melhor
forma de prover o Fundo com recursos.32 Em primeiro
lugar, elas são obtidas e administradas exclusivamente
pelo Fundo, possuindo ele um grau de independência
grande em relação ao TPI no tocante à utilização dos
recursos advindos de doações.33
Em segundo lugar, as doações voluntárias são
de mais fácil obtenção que as outras fontes de recursos
disponíveis ao Fundo.34 Por exemplo, como obter aces-
so e congelar os bens de condenados por crimes inter-
nacionais quando a maioria desses indivíduos não os
declara e inclusive alegam indigência perante tribunais
internacionais? Se dependesse muito desse tipo de fon-
te, o Fundo dificilmente teria condições de elaborar
projetos de atividades, porque estaria sempre na de-
pendência do Tribunal conseguir ou não acesso a bens
ou valores dos indivíduos acusados e condenados pe-
los crimes sobre os quais tem jurisdição.35
Finalmente, doações voluntárias, quando existe
uma tendência política positiva, têm a possibilidade de
serem somas consideráveis, superando em muito o
valor de eventuais multas e apreensões de bens impos-
tas pelo Tribunal. Contudo, as doações voluntárias são
extremamente voláteis, pois estão ligadas à vontade
política dos doadores, geralmente Estados que se sen-
tem na “obrigação moral” de contribuir com vítimas

http://www.trustfundforvictims.org/news/trust-fund-victims-
suspends-its-activities-central-african-republic (Acesso em
09/04/2013).
32 VILMER, Jean-Baptiste Jeangéne. Réparer l’irréparable: les réparations

aux victims devan la Cour Pénale Internationale. Paris: Presses Universi-


taires de France, 2009, pp. 144-152.
33
FERSTMAN, op. cit., pp. 430-431.
34
INGADOTTIR, op. cit., p. 126.
35
REISMAN; MARSANJANI, op. cit., pp. 402-403.
Um modelo para políticas de reparações 423

internacionais, e são muito condicionadas pelo cenário


político internacional, pela atenção que a mídia inter-
nacional oferece ao problema em questão e pelo seu
caráter emergencial. Logo, não se apresenta recomen-
dável que uma instituição como o Fundo dependa em
demasia delas para financiar seus projetos e ativida-
des.36
Quanto aos bens e valores apreendidos por or-
dem do TPI, quando uma Câmara do TPI decidir pela
aplicação de multas a um acusado ou ordenar a apre-
ensão de seus bens, o Conselho de Administração de-
verá ser consultado pela Câmara para emitir opinião
oral ou escrita quanto à transferência desses bens e va-
lores ao Fundo.37 Ademais, o Presidente do TPI deverá
requisitar ao Conselho de Administração opinião oral
ou escrita quanto à utilização e alocação dos bens e
valores apreendidos, sempre dando prioridade para a
reparação às vítimas do crime em questão.38 Esse me-
canismo, contudo, não impede que um indivíduo sob a
jurisdição do TPI declare indigência e impeça o acesso
a quaisquer bens e valores seus que não tenha declara-
do.
Nesse sentido, a cooperação com os Estados-
parte é fundamental, pois muitas vezes as organizações
policiais e judiciárias dos países podem obter acesso a
bens valores registrados sobre o nome de outras pesso-
as relacionadas ao acusado, ou então a dinheiro deposi-
tado em contas no exterior, como é frequentemente
tentado nos casos envolvendo traficantes de drogas
que agem internacionalmente. O Regulamento também
trata dos recursos advindos de reparações individuais
determinadas pelo Tribunal e que devem ser mantidas

36
INGADOTTIR, op. cit., pp. 127-129.
37
Regra 148, Regras de Processo e Provas, e Parágrafo 31, Regulamento do
Fundo.
38
Regra 221, Regras de Processo e Provas, e Parágrafo 32, Regulamento do
Fundo.
424 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

separadas dos demais valores depositados39 e recursos


alocados pela Assembleia mediante requisição feita
pelo Conselho de Administração,40 devendo tais recur-
sos, quando a Assembleia não se pronunciar sobre sua
destinação, serem depositados na Conta Geral do Fun-
do para benefício das vítimas e seus familiares, quando
for o caso.41
Além disso, o Regulamento prevê um constante
rastreamento dos recursos do Fundo para efetivar sua
implementação em benefício das vítimas,42 como, por
exemplo, o recebimento por parte dos beneficiários de
todos os recursos atribuídos, constando a data da deci-
são do TPI ordenando a reparação, a data de recebi-
mento do beneficiário e, quando possível, a data de
pagamento da entidade doadora.43 Esse procedimento
de certificação das doações e demais recursos se justifi-
ca pelo fato do processo de benefício às vítimas dever
ser o mais transparente possível para evitar fraudes e
enriquecimento ilícito com os recursos destinados às
vítimas, prevendo inclusive a elaboração de relatórios
anuais detalhadas Conselho de Administração para
apresentação na Assembleia,44 além de ser feita uma
análise das contas do Fundo por um auditor externo
indicado pela Comissão de Finanças e Orçamento da
própria Assembleia.45

39
Parágrafo 34, Regulamento do Fundo.
40
Parágrafo 35, Regulamento do Fundo.
41
Parágrafo 36, Regulamento do Fundo.
42
Parágrafo 39, Regulamento do Fundo.
43
Parágrafo 39(f), Regulamento do Fundo.
44
Parágrafo 76, Regulamento do Fundo.
45
Parágrafo 77, Regulamento do Fundo.

 
Um modelo para políticas de reparações 425

2.3 As atribuições do Fundo: o caráter subsidiário ao TPI em


matéria de reparações e a “cláusula do benefício”.

O Fundo, ao ser criado com a intenção de salva-


guardar os interesses e o bem-estar das vítimas e seus
familiares, tem o potencial de se tornar uma instituição
modelo no que diz respeito à reparação das vítimas46 e,
nesse sentido, ultrapassar o ímpeto meramente puniti-
vo dos tribunais penais internacionais anteriores, se-
dimentando-se como uma instituição de efetiva prote-
ção internacional dos direitos humanos, ligada a um
tribunal independente, permanente e de jurisdição re-
conhecida por seus Estados-parte, que hoje já somam
mais de 122.47 Ou seja, por intermédio do Fundo, o Tri-
bunal poderia trabalhar para a restauração da paz ao
aplicar a justiça retributiva aos criminosos e a justiça
restaurativa às vítimas.48 Para tanto, é necessário que
seus poderes sejam interpretados da forma mais ampla
possível,49 pois assim será mais provável que as vítimas
vejam atendidas suas necessidades mais prementes ao
mesmo tempo em que os responsáveis pelos danos a
elas causados sejam levados à justiça.50
Em primeiro lugar, ao analisar os poderes do
Fundo, é muito importante ressaltar que ele só pode
agir em situações que estejam sob a jurisdição do TPI,
ou seja, apenas situações ligadas aos seguintes delitos:

46
FISCHER, Peter G. “The Victims’ Trust Fund of the International Criminal
Court – Formation of a Functional Reparations Scheme”, Emory Journal of
International Law, v. 17, 2003, pp. 236-239.
47
A Costa do Marfim tornou-se o 122o Estado-parte do Estatuto de Roma em
15 de fevereiro de 2013. Para maiores informações sobre os Estados-parte do
Estatuto, ver
http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVI
II-10&chapter=18&lang=en (Acesso em 09/04/2013)
48
INGADOTTIR, op. cit., p. 113.
49
FERSTMAN, op. cit., pp. 433-434.
50
DE BROUWER, op. cit., p. 218.
426 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

crime de genocídio, crimes contra a humanidade e cri-


mes de guerra.51 Ademais, os crimes sob a jurisdição do
TPI deverão ser posteriores à data de entrada em vigor
do Estatuto, 1º de julho de 2002 (ou depois, caso o Es-
tado em questão tenha ratificado o Estatuto após essa
data).52 Por fim, para haver jurisdição, o crime deve
ocorrer no território de um Estado-parte ou deve ser
cometido pelo nacional de um Estado-parte.53 Não há,
contudo, a exigência de que o Fundo aja apenas nas
situações específicas que estejam sendo investigadas e
julgadas pelo TPI,54 podendo eventualmente atuar em
demais situações relacionadas a crimes que ainda não
foram investigados e julgados pelo TPI, dessa forma
atendendo ao clamor de diversas ONGs que veem o

51
Artigos 5 a 8 do Estatuto de Roma. A Fundo também poderia agir em situa-
ções ligadas ao crime de agressão, previsto no Artigo 5(d), mas a sua tipifica-
ção ainda não consta no Estatuto, pois a definição do crime de agressão,
adotada na Conferência de Revisão do Estatuto de Roma, realizada em Kam-
pala, Uganda, ocorrida de 31 de maio a 11 de junho de 2010, necessita de um
mínimo de 30 ratificações para entrar em vigor. Até o momento, 5 Estados
ratificaram, sendo o mais recente a Estônia, em 27 de março de 2013, con-
forme informações disponíveis em http://www.icc-
cpi.int/en_menus/icc/press%20and%20media/press%20releases/Pages/pr893.
aspx (Acesso em 09/04/2013). Para maiores informações sobre as emendas
quanto ao crime de agressão, consultar
http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVI
II-10-b&chapter=18&lang=en (Acesso em 09/04/13).
52
Artigo 11 (1)(2).
53
Artigo 12 (2)(a)(b).
54
Até o presente momento o TPI está investigando e julgando 18 casos ocor-
ridos em 8 situações ocorridos nos seguintes Estados e territórios de Estados:
Uganda, República Democrática do Congo, República Centro-Africana,
Líbia, Mali, Quênia, Costa do Marfim e Darfur, no Sudão. Dessas situações,
Líbia e Darfur foram levado ao TPI por recomendação do Conselho de Segu-
rança da ONU e Quênia e Costa do Marfim foram por iniciativa proprio motu
do Procurador, enquanto os outros quatro foram levados pelos respectivos
países. Para maiores informações sobre as situações e casos atualmente sendo
investigados pela Promotoria e julgados pelo TPI, acessar http://www.icc-
cpi.int/en_menus/icc/situations%20and%20cases/Pages/situations%20and%2
0cases.aspx (Acesso em 09/04/2013).

 
Um modelo para políticas de reparações 427

Fundo como uma instituição capaz de dedicar-se a to-


das as questões envolvendo vítimas de crimes interna-
cionais.55
A ausência de uma limitação expressa ao campo
de ação de Fundo pode servir de instrumento para que
seus projetos e atividades atinjam um número muito
maior de vítimas, como, por exemplo, no caso de víti-
mas de crimes sexuais que não estão sendo investiga-
dos no momento pelo Tribunal, mas que estão sob sua
jurisdição.56 Esse desenho institucional permitindo um
amplo raio de ação ao Fundo é um de seus aspectos
mais inovadores, mas não se tem exata noção até que
ponto ele será exercido na sua plenitude.57
No momento, as atenções devem ser voltadas
aos poderes do Fundo de acordo com o Estatuto, as
Regras de Processo e Provas e, principalmente, o recen-
temente aprovado Regulamento. Como visto anterior-
mente, segundo o artigo 75 do Estatuto de Roma, o TPI
poderá determinar em sua sentença, mediante reque-
rimento ou, excepcionalmente, de ofício, o alcance e a
magnitude dos danos, perdas ou prejuízos causados às
vítimas e qual a melhor forma de determinar a repara-
ção devida.58 Ainda, quando for apropriado, o TPI po-
derá ordenar que a indenização outorgada a título de
reparação seja paga através do Fundo.59
Aqui, o Fundo assume o papel de um intermedi-
ário entre o condenado e as vítimas, especialmente na-
quelas situações em que o Tribunal determinar que a
melhor forma de reparação é uma indenização, pois em
se tratando de restituição de bens, por exemplo, a Câ-

55
TOMUSCHAT, Christian, “Reparation for Victims of Grave Human Rights
Violations”, Tulane Journal of International and Comparative Law, n. 10,
2002, pp. 183-184.
56
DE BROUWER, op. cit., p. 229.
57
Ibidem, pp. 230-231.
58
Artigo 75(1), Estatuto de Roma.
59
Artigo 75(2), Estatuto de Roma.
428 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

mara específica do TPI encarregada do caso pode fazer


a transferência direta do bem, sem necessitar da ajuda
do Fundo.60 Essa é uma função cujo desempenho faz o
Fundo subsidiário do Tribunal, não podendo agir se-
gundo suas próprias convicções e devendo ser aciona-
do antes por alguma ordem do TPI.61
O artigo 79 do Estatuto também prevê que so-
mas e bens recebidos pelo TPI a título de multa ou se-
questro sejam transferidos ao Fundo,62 devendo ser
mantidos separadamente dos montantes destinados às
vítimas mencionados no artigo 75. Ou seja, uma das
outras atribuições do Fundo seria a de um depositário
encarregado de armazenar bens e valores apreendidos
dos acusados e, posteriormente, repassar às vítimas as
reparações individuais que lhe são devidas, a partir de
um pedido do próprio TPI.
No desempenho dessa segunda função, o Fundo
também ocupa uma posição subsidiária à do Tribunal,
pois será uma Câmara do Tribunal que decidirá a res-
peito das reparações às vítimas e será também uma
Câmara que exigirá multas ou sequestro dos bens do
condenado pelo crime em questão, posteriormente re-
passando o valor para o Fundo. Logo, a função ora
analisada não difere em muito daquela já desempe-
nhada por outros fundos e demais entidades encarre-
gadas de repassar recursos a vítimas de violações de
direitos humanos por parte de Estados, por exemplo,
sempre cumprindo a determinação prévia de um tri-
bunal ou corte.63
No que diz respeito às reparações coletivas, de
acordo com a Regra 98 das Regras de Processo e Evi-
dência, quando o número de vítimas e a natureza do
dano fazem com que uma reparação coletiva seja mais
60
INGADOTTIR, op. cit., pp. 154-155.
61
FERSTMAN, op. cit., pp. 432-433.
62
Art. 79(2), Estatuto de Roma.
63
INGADOTTIR, op. cit., pp. 111-113.

 
Um modelo para políticas de reparações 429

adequada, o TPI pode exigir que tal reparação coletiva


seja feita através do Fundo.64 Ademais, o TPI, mediante
consulta com os Estados interessados e o próprio Fun-
do, pode decidir que um montante aferido a título de
reparação seja repassado pelo Fundo a uma organiza-
ção intergovernamental, internacional ou nacional
aprovada pelo Fundo65, a fim de que a reparação de
fato sirva de benefício às vítimas ou familiares das
mesmas em determinada localidade.
Logo, uma terceira atribuição do Fundo, de ex-
trema importância para este estudo, diz respeito ao
pagamento de reparações coletivas e à avaliação dos me-
lhores métodos disponíveis para que tais reparações se
tornem efetivas, o que inclui a participação de organi-
zações internacionais no processo.66 No caso específico
das reparações coletivas, alguns argumentos calcados
em eficiência e efetividade levam a crer que, quando
possível, é melhor prestar auxilio às vítimas coletiva e
não individualmente.
Em primeiro lugar, como o Fundo provavel-
mente contará com recursos escassos, o investimento
desses recursos no maior número possível de pessoas
será muito mais proveitoso do que em alguns casos
individuais. Em segundo lugar, o auxílio meramente
individual, quando atendendo a diversas demandas,
pode levar ao esgotamento dos recursos do Fundo in-
clusive em razão dos gastos excessivos com operações
administrativas de transferência de valores. Finalmen-
te, o auxílio coletivo tem a vantagem de poder atingir
vítimas que não foram identificadas e que, muitas ve-
zes em razão da sua própria condição e de eventual
preconceito das comunidades das quais fazem parte,

64
Regra 98(3), Regras de Processo e Provas.
65
Regra 98(4), Regras de Processo e Provas.
66
Parágrafos 69 e 70 do Regulamento do Fundo.
430 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

não têm condições de exigir seu direito a reparações


por meio de procedimentos formais.67
Muitas vezes, quando o Fundo não tiver condi-
ções ele mesmo de implementar uma reparação coleti-
va, pode fazer uso do disposto na Regra 98 e pedir a
colaboração de alguma organização que tenha experi-
ência na proposta em questão, como, por exemplo, a
construção de uma escola na língua nativa da popula-
ção local ou a construção de um hospital dirigido às
doenças mais comuns naquela determinada área.68
Mas talvez o ponto mais importante e inovador
do Regulamento seja aquele tocante aos projetos e ati-
vidades do Fundo e às situações em que ele pode agir
por iniciativa própria, sem necessitar de uma decisão
final de uma Câmara do TPI. Em princípio, a única exi-
gência imposta às reparações é que elas sejam sempre
em benefício das vítimas, conforme definidas na Regra
85 das Regras de Processo e Prova, consistindo nas
pessoas físicas que tenham sofrido dano como resulta-
do de um crime sob a jurisdição do TPI, incluindo suas
famílias, e eventualmente também podem ser conside-
radas vítimas organizações ou instituições dedicadas a
fins religiosos, educacionais, artísticos, científicos ou
assistenciais que tenham sofrido dano a sua proprie-
dade ou a seus monumentos históricos, hospitais e
demais lugares e objetos de propósito humanitário.69
Esse conceito abrangente de “vítima” pode, por exem-
plo, permitir que um vilarejo diretamente afetado por
um conflito sob investigação do TPI seja auxiliado pelo
Fundo, quando não houver água potável ou faltarem
medicamentos essenciais às vítimas no posto de saúde
local, duas possibilidades muito frequentes no âmbito

67
INGADOTTIR, op. cit., pp. 133-134.
68
DE BROUWER, op. cit., pp. 226-228.
69
Regra 85, Regras de Processo e Provas, e Parágrafo 42, Regulamento do
Fundo.

 
Um modelo para políticas de reparações 431

dos conflitos africanos que geraram os primeiros casos


do TPI.
Segundo o Regulamento, quando os recursos
são advindos de uma decisão do TPI no tocante a repa-
rações, eles devem ser implementados unicamente em
benefício das vítimas dos crimes pelos quais o réu foi
condenado.70 Contudo, como é possível que o procedi-
mento perante o TPI seja prolongado e muito comple-
xo, dada a natureza e gravidade dos crimes cometidos,
a dificuldade na obtenção de documentos e na identifi-
cação de testemunhas e vítimas, as vítimas podem nem
chegar a ver uma sentença condenatória do indivíduo
acusado. Logo, existe uma necessidade grande de ação
imediata de auxílio às vítimas, antes mesmo de uma
sentença condenatória proferida pelo TPI.
É nesse momento que entra em ação o disposto
nos parágrafos 47 e 48 do Fundo, nos quais os recursos
advindos de outras fontes que não decisões do TPI so-
bre reparação, multas ou apreensão de bens e valores
podem ser implementados em benefício das vítimas de
danos físicos, psicológicos e materiais resultantes dos
crimes cometidos, bem como seus familiares.71 Além
disso, o parágrafo 50(a)(i) define que o Fundo estará
ocupado com certa questão quando o Conselho de
Administração considerar que é necessário providenci-
ar reabilitação física ou psicológica ou apoio material
em benefício das vítimas e suas famílias.72
Esses artigos evidenciam a natureza dupla do
Fundo: por um lado, o Fundo deve implementar as
reparações determinadas pelo TPI, devendo esperar
por uma sentença final desse tribunal para poder agir,
tendo, nesses casos, natureza subsidiária ao Tribunal;
por outro, os demais recursos disponíveis ao Fundo
podem ser implementados “em benefício das vítimas e
70
Parágrafo 46, Regulamento do Fundo.
71
Parágrafos 47 e 48, Regulamento do Fundo.
72
FERSTMAN, op. cit., pp. 432-433.
432 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

seus familiares” sem depender de uma decisão final do


TPI quanto à responsabilidade penal individual do
acusado pelo crime em questão.73 Essa “cláusula do bene-
fício”, advinda de uma leitura conjunta dos parágrafos
47, 48 e 50 do Regulamento, expande o âmbito de atua-
ção do Fundo e demonstra ser ele, de fato, uma insti-
tuição independente do TPI e que tem real condição de
agir segundo sua própria convicção quando entender
ser necessário e emergencial adotar determinada con-
duta e implementar algum projeto específico.74
Ademais, o Regulamento estabelece os princí-
pios gerais para a ação do Fundo, afirmando que o
Conselho de Administração pode e deve reunir-se com
as vítimas, seus familiares, seus representantes legais e
demais especialistas e organizações para identificar
quais as melhores formas de conduzir suas atividades e
projetos.75 Assim, sempre que o Conselho de Adminis-
tração considerar necessário providenciar às vítimas e
seus familiares reabilitação física ou psicológica ou al-
guma outra forma de auxílio material, o TPI deverá ser
informado dessa decisão e a Câmara que analisa o caso
específico deverá se pronunciar sobre o projeto propos-
to pelo Conselho.
Caso a Câmara entenda que as atividades pro-
postas não afetam a jurisdição ou a admissibilidade do
caso em questão, a presunção de inocência do acusado
e seu direito a um julgamento justo e imparcial, o Con-
selho pode implementar o referido projeto em benefício
das vítimas.76 Logo, ainda que possa agir por iniciativa
própria, esse mecanismo do parágrafo 50 existe para
impedir que determinadas atividades do Fundo inva-
dam a esfera processual e causem algum prejuízo à
defesa do réu, o que, segundo a Anistia Internacional, é
73
FERSTMAN, op. cit., p. 426.
74
DE BROUWER, op. cit., pp. 230-231.
75
Parágrafo 49, Regulamento do Fundo.
76
Parágrafo 50, Regulamento do Fundo.

 
Um modelo para políticas de reparações 433

uma decisão perfeitamente de acordo com os princí-


pios do Tribunal, tanto no que diz respeito aos direitos
das vítimas quanto aos direitos do acusado, apesar da
ONG considerar que os projetos e atividades propostos
pelo Fundo dificilmente serão ameaças aos direitos do
acusado.77
Por fim, o Regulamento prevê a conduta especí-
fica do Fundo no tocante à implementação de repara-
ções individuais78, de acordo com a Regra 98(2), repara-
ções coletivas79, de acordo com a Regra 98(3), e repara-
ções a serem implementadas por intermédio de uma
organização intergovernamental, internacional ou na-
cional80, de acordo com a Regra 98(4). Contudo, uma
vez que ainda não houve decisão condenatória do TPI
e, consequentemente, não há ordem para pagamento
de reparações individuais ou coletivas, o único meca-
nismo existente para auxiliar as vítimas dos crimes sob
jurisdição do TPI é a “cláusula do benefício”, como
anteriormente demonstrado, pois a mesma depende
apenas da vontade e iniciativa do Conselho de Admi-
nistração do Fundo e do diálogo entre o mesmo e o TPI
para que não haja qualquer desrespeito aos direitos e
garantias do acusado em questão.

3. Desafios e Possibilidades para o Fundo: relações


com o TPI e implementação de reparações.

Alguns problemas já podem ser percebidos


quanto ao trabalho do Fundo, notadamente na questão
de coordenação das atividades juntamente com o TPI,

77
AMNESTY INTERNATIONAL, International Criminal Court: Comments
and recommendations following the fourth session of the Assembly of States
Parties. Londres: Amnesty International, 2006, pp. 7-8.
78
Parágrafos 59 a 68, Regulamento do Fundo.
79
Parágrafos 69 a 72, Regulamento do Fundo.
80
Parágrafos 73 a 75, Regulamento do Fundo.
434 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

na questão de identificação de vítimas e determinação


de reparações coletivas e na questão do levantamento
de recursos para financiar as atividades do Fundo.
Além disso, há ainda a dificuldade adicional de não
haver qualquer precedente no direito internacional de
um fundo fiduciário com tantos poderes e atribuições
como o do Estatuto de Roma, sendo, portanto, difícil
encontrar modelos que possam servir de inspiração e
de guia para as atividades futuras a serem desempe-
nhadas pelo Fundo.

3.1 O Fundo Fiduciário frente ao Tribunal Penal Internacional.

Um dos primeiros obstáculos que o Fundo de-


verá superar, contando com a colaboração do próprio
Tribunal, é a ideia de que reparações civis não devem
ser tratadas em um mesmo ambiente que sanções pe-
nais.81 Em primeiro lugar, o TPI, por definição, é uma
instituição direcionada ao processo criminal e à res-
ponsabilização do indivíduo, enquanto que o Fundo se
preocupará exclusivamente com as vítimas, pois foi em
virtude delas que ele foi criado. Além disso, a formação
dos profissionais que trabalham para o Fundo é princi-
palmente nas áreas de direitos humanos e ajuda hu-
manitária, enquanto que os funcionários do Tribunal
são predominantemente de formação criminal.82

81
Há autores que sugerem a criação de um Tribunal Internacional de Respon-
sabilidade Civil para tratar das reparações separadamente do processo crimi-
nal, ou até mesmo de uma Comissão Internacional de Reparação. Cf. SAN
JOSÉ, Daniel Garcia, “El Derecho a La Justicia de Las Víctimas de Los
Crímenes Más Graves de Transcendência Para La Comunidad Internacional”,
Revista Española de Derecho Internacional, n. I, v. LVIII, 2006, pp. 139-142
82
HENZELIN, Marc; HEISKANEN, Veijo; METTRAUX, Guénaël,
“Reparations to Victims Before The International Criminal Court: Lessons
From International Mass Claims Processes”, Criminal Law Forum, n. 17,
2006, pp. 327-341.

 
Um modelo para políticas de reparações 435

Portanto, há a possibilidade de falhas de comu-


nicação entre o Fundo e o Tribunal dificultarem, por
exemplo, a determinação de uma reparação coletiva em
favor de um determinado grupo de vítimas, pois a re-
paração será aferida por pessoas que, em princípio,
estão menos a par dos problemas das vítimas que os
funcionários do Fundo.83 Ademais, eventuais proble-
mas de comunicação na determinação de reparações
podem ser ainda mais comuns uma vez que o Estatuto
e as Regras de Processo e Provas não mencionam o
Fundo como uma das partes a serem consultadas pelo
Tribunal, nem mesmo no caso de reparações coletivas.84
Uma eventual solução para esse primeiro im-
passe entre o Fundo e o TPI pode ser encontrada no
próprio Estatuto de Roma, em seu artigo 21, parágrafo
3º, o qual afirma:
Artigo 21. Direito Aplicável.
(...)
3. A aplicação e a interpretação do direito previsto
no presente artigo deverá ser compatível com os
direitos humanos internacionalmente reconheci-
dos, sem distinção alguma baseada em motivos
como o gênero, definido no artigo 7º, parágrafo 3º,
a idade, a raça, a cor, a religião ou o credo, a opini-
ão política ou de outra natureza, a origem nacio-
nal, étnica ou social, a posição econômica, o nas-
cimento ou qualquer outra condição.85

83
Houve críticas de ONGs ao TPI, como a Women’s Initiatives for Gender
Justice, pelo fato da maioria da população de Uganda não ter conhecimento
do caso frente ao Tribunal, em virtude, principalmente, de uma falta de co-
municação do Tribunal com a população e as vítimas locais. Em contraparti-
da, o Diretor-Executivo do Fundo já realizou viagens para Uganda e para a
República Democrática do Congo para Consultar com vítimas. Cf. DE
BROUWER, op. cit., pp. 222-224.
84
Artigo 75(3), Estatuto de Roma e Regra 97(2), Regras de Processo e Prova.
Cf. FERSTMAN, , op. cit., pp. 675-677.
85
Art. 21(3), Estatuto de Roma.
436 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

Ou seja, o Tribunal sempre deverá levar em con-


ta o Direito Internacional dos Direitos Humanos e, no
caso específico das reparações, documentos internacio-
nais, como os Princípios Básicos e a jurisprudência de
tribunais de direitos humanos, como a Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos (ou “CIDH”).86 Além dis-
so, não havendo precedentes de tribunais penais inter-
nacionais outorgando reparação a vítimas, é natural
que o TPI busque subsídios para o desempenho de sua
função reparatória em instituições voltadas à salva-
guarda dos direitos humanos e, consequentemente, dos
interesses das vítimas.87
Ainda, a existência de uma Unidade de Vítimas
e Testemunhas no próprio TPI tornará necessária a uti-
lização ainda maior de especialistas em direitos huma-
nos e questões relativas a vítimas, sanando, dessa for-
ma, uma eventual falha de comunicação entre os funci-
onários do Fundo e do TPI. Por fim, o fato de não haver
menção expressa ao Fundo no artigo 75(3) do Estatuto
e na Regra 97(2) não chega a ser um obstáculo intrans-
ponível para a cooperação entre o TPI e o Fundo, mas,
de qualquer maneira, essa lacuna poderia ser preen-
chida com uma eventual emenda aos dois instrumen-
tos legais no sentido de mencionarem expressamente o
Fundo como entidade a ser consultada antes da deter-
minação de reparações por parte de uma câmara do
Tribunal.
Outra dificuldade que pode ser enfrentada pelo
Fundo diz respeito a um eventual conflito de compe-

86
BITTI, Gilbert; RIVAS, Gabriela González, “The Reparations
Provisions for Victims Under the Roma Statute of the International
Criminal Court”, Redressing Injustices Through Mass Claims Processes:
Innovative Responses to Unique Challenges, Oxford University Press,
2006, pp. 302-306.
87
SHELTON, Dinah. “Reparations for Victims of International Crimes”, in
SHELTON, Dinah (ed.), International Crimes, Peace, and Human Rights:
The Role of the International Criminal Court. New York: Transnational
Publishers Inc., 2000, pp. 139-143.

 
Um modelo para políticas de reparações 437

tências entre essa instituição e a Unidade de Vítimas e


Testemunhas do TPI, anteriormente mencionada. A
Unidade de Vítimas e Testemunhas, prevista pelo Esta-
tuto, foi criada para implementar medidas de proteção,
segurança e assistência para testemunhas, vítimas que
compareçam perante o Tribunal e outras pessoas que
possam estar em risco em razão do depoimento pres-
tado pelas testemunhas.88 Por ser um órgão incorpora-
do ao orçamento do TPI, diferentemente do Fundo, há
quem considere a Unidade de Vítimas e Testemunhas a
melhor opção para tratar dos interesses das vítimas
quando elas se encontrarem em situações de emergên-
cia, devendo o Fundo agir em relação a essas vítimas
apenas quando a Unidade tiver desempenhado o seu
papel,   89 para, dessa forma, evitar um conflito de com-
petências que poderia ser prejudicial às próprias víti-
mas.
Entretanto, esse conflito é apenas aparente, pois
diferentemente do Fundo, a Unidade de Vítimas e Tes-
temunhas está encarregada de auxiliar apenas as vítimas
que comparecerem perante o Tribunal, ou seja, apenas a
vítima na sua dimensão processual,90 enquanto que o
Fundo, em princípio, deve tratar de todas as vítimas de
crimes sob a jurisdição do Tribunal, independentemente
do seu caso ser levado ao TPI ou não. Logo, quando for
o caso de o Fundo prestar auxílio emergencial a víti-
mas, tal assistência pode e deve ser feita em coordena-
ção com a Unidade de Vítimas e Testemunhas,91 pois as
funções desempenhadas por esses dois órgãos são, na
verdade, complementares, abarcando tanto as vítimas
que participam do processo criminal quanto aquelas
que não têm essa possibilidade.

88
Artigo 43(6), Estatuto de Roma.
89
INGADOTTIR, op. cit., pp. 131-132.
90
SAN JOSÉ, op. cit., pp. 133-134.
91
DE BROUWER, op. cit., 233-234.
438 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

Por fim, outro obstáculo possível ao Fundo diz


respeito, justamente, à possibilidade de prestar auxílio
emergencial às vítimas, pois, como visto, a implemen-
tação de um projeto do Fundo segundo o Parágrafo 50
do Regulamento depende de uma decisão prévia do
TPI autorizando o início dessa atividade. Ocorre que
essa exigência de uma decisão prévia do TPI foi consi-
derada um retrocesso na independência do Fundo. Du-
rante a quarta sessão da Assembleia, em 2005, houve
uma discordância entre os Estados presentes sobre
qual deveria ser o grau de independência do Fundo na
prestação de auxílio emergencial.92
De um lado, países como Bélgica, República
Democrática do Congo, Chipre, França, Quênia, Serra
Leoa, Tanzânia e Uganda achavam que o Fundo deve-
ria ser o mais independente possível do Tribunal e de-
veria agir o quanto antes necessário para ajudar as ví-
timas em situações de emergência; de outro lado, paí-
ses como a Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Norue-
ga, Peru, Suécia e Reino Unido eram da opinião que o
Fundo deveria ser controlado pelo Tribunal para não
comprometer o processo criminal. A solução encontra-
da foi a que consta no Parágrafo 50 do Regulamento,
condicionando a uma decisão prévia do TPI a ação do
Fundo de providenciar reabilitação física ou psicológi-
ca ou auxílio material às vítimas, sendo que o prazo de
45 dias que a Câmara do TPI tem para se pronunciar
sobre o projeto do Fundo pode ser estendido em até 30
dias.
Dessa forma, vítimas em situações de emergên-
cia podem esperar mais de dois meses antes de receber
alguma espécie de auxílio por parte do Fundo. Por
exemplo, em um caso envolvendo vítimas de crimes
sexuais, em que o acesso imediato à saúde é muitas
vezes fundamental para evitar maiores danos às víti-

92
BITTI & RIVAS, op. cit., pp. 318-319.

 
Um modelo para políticas de reparações 439

mas, o prejuízo causado por um tempo de espera pro-


longado pode ser irreversível.93
Nesse sentido, Simone Veil, antiga Chefe do
Conselho de Administração do Fundo, em um pronun-
ciamento à Assembleia, criticou essa solução encontra-
da, pois ela ainda limitaria o papel do Fundo, e segun-
do a resolução ICC ASP/3/Res.7, o Fundo deveria ser
um órgão complementar ao e independente do Tribu-
nal, o que estaria sendo contrariado pela solução en-
contrada para a aprovar o Regulamento do Fundo.94
Esse episódio evidencia a existência de uma tensão
entre o Fundo e a Assembleia. O problema maior será
se essa tensão se estender aos momentos em que o
Fundo e o TPI deverão entrar em acordo sobre um
eventual auxílio emergencial a vítimas e isso prejudicar
a implementação de um projeto do Fundo.95

3.2 A implementação das reparações e o Fundo Fiduciário.

Os princípios sobre reparações e as formas de


implementação das mesmas devem ser considerados
pelo Tribunal ainda que não tenha se deparado com
requerimentos das vítimas, até mesmo porque o Fundo
pode muito bem iniciar suas atividades uma vez que
encontrar vítimas que estejam em situação emergencial
e necessitando de ajuda.  96

93
INGADOTTIR, op. cit., p. 131.
94
Pronunciamento de Simone Veil à Quarta Sessão da Assembleia dos Esta-
dos-Parte, de 28 de novembro de 2005, disponível no seguinte endereço:
http://www.icc-cpi.int/library/vtf/SpeechMme_Veil_2005_EN.pdf (Acesso
em 16.11.07)
95 VILMER, op. cit., pp. 166-173.
96
DE GREIFF, Pablo e WIERDA, Marieke, “The Trust Fund For
Victims of the International Criminal Court: Between Possibilities and
Constraints”. DE FEYTER, K.; PERMENTIER, S.; BOSSUYT, M.;
LEMMENS, P. (eds.). Out of The Ashes: Reparation for Victims of Gross
440 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

Nesse sentido, o TPI desenvolveu seus princí-


pios sobre reparação, não só quanto às modalidades
possíveis a serem exigidas de um condenado por cri-
mes internacionais, mas principalmente quanto ao seu
alcance individual ou coletivo.97 Do ponto de vista con-
ceitual, reparações só podem ser determinadas por
uma sentença de um tribunal condenando um réu a
pagar determinado valor ou a cumprir certas obriga-
ções de fazer, sendo que no direito internacional esse
réu pode ser um Estado, como no caso da CIDH, ou
pode ser um indivíduo, como no caso do TPI. Logo,
quando o Fundo agisse em benefício das vítimas sem a
condenação anterior de um indivíduo sob a jurisdição
do TPI, sua ação não seria propriamente dita de repa-
ração, mas, segundo alguns autores, uma forma de
ajuda humanitária que, em princípio, busca muito mais
auxiliar um grupo de pessoas do que cada vítima indi-
vidualmente.
Em contrapartida, quando uma Câmara do TPI
for exigir de um indivíduo a implementação de repara-
ções pelos crimes cometidos, é de se esperar que,
quando não conseguir alegar indigência, o condenado
tenha condições apenas de arcar com as reparações
para as vítimas apenas na esfera individual. Portanto,
casos de restituição de posse ou de propriedade de al-
gum bem apreendido por ocasião de um crime interna-
cional ou do pagamento de uma indenização específica
para um indivíduo poderiam ser analisados pelo TPI e
ter sua implementação exigida contra um condenado, o
que não seria possível no caso de reparações coletivas,
envolvendo, por exemplo, a criação de um posto médi-
co para atender as vítimas de um crime ou a reabertura
de uma escola fechada por ocasião de um ataque ar-
mado a um vilarejo. Para essas reparações de natureza

and Systematic Human Rights Violations. Antuérpia: Intersentia, 2005, pp.


225-231.
97 VILMER, op. cit. pp. 162-165.
Um modelo para políticas de reparações 441

coletiva seria recomendado que o Fundo agisse, pois,


em princípio, terá condições materiais e institucionais
mais adequadas para atender às necessidades de um
número maior de vítimas.98
Esse entendimento também é compartilhado
por membros do TPI e de ONGs, entre outros. Em um
evento organizado pela REDRESS em março de 2007,
voltado à discussão dos regimes de reparações para
vítimas de crimes internacionais, especialmente o do
TPI, a Juíza Elizabeth Odio-Benito tratou sobre a ques-
tão das reparações individuais e coletivas que podem
ser determinadas pelo Tribunal, salientado que, quan-
do se trata de reparações coletivas, o Fundo será um
instrumento essencial para sua implementação, ponto
também defendido por Fabrício Guariglia, da Promoto-
ria do TPI, defendendo que o Fundo deveria ter mais
atribuições na implementação de reparações às víti-
mas.99
Sobre os pontos positivos da implementação de
reparações coletivas, uma representante da REDRESS
elogiou o programa do Fundo nessa área, identificando
na jurisprudência da CIDH diversas modalidades des-
sa forma de reparação, incluindo aquela de caráter não-
financeiro, o que é de extrema relevância uma vez que
os recursos do Fundo serão limitados.100 Logo, pelos
diversos motivos expostos, talvez seja mais adequado
deixar a implementação de reparações coletivas a cargo
do Fundo, pela possibilidade de alcançar um número
maior de vítimas e por ser mais fácil o Fundo ter recur-
sos de arcar com um programa em benefício de um
vilarejo do que um indivíduo condenado pelo TPI.101

98
DE BROUWER, op. cit., pp. 226-227 e 233-234.
99
REDRESS. Reparations for victims of genocide, crimes against humanity
and war crimes: systems in place and systems in the making. Londres:
REDRESS, setembro de 2007, pp. 14-16.
100
REDRESS, op. cit, pp. 48-52.
101
HENZENLIN; HEISKANEN; METTRAUX, op. cit., pp. 335-338.
442 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

Um outro ponto interessante diz respeito à iden-


tificação e tratamento destinado às vítimas pelo Fundo.
Uma das metas das reparações é procurar restaurar a
dignidade das vítimas, reforçando, dessa forma, seu
caráter de cidadãos que querem tentar contribuir para
a sociedade, e não apenas pessoas que necessitam de
ajuda e não procuram de alguma forma reconstruir
suas próprias vidas e o mundo do qual fazem parte.102
Ainda na questão das vítimas e do Fundo, outro ponto
interessante diz respeito ao reconhecimento de quem
são as vítimas dos crimes internacionais.
No âmbito do TPI, para que uma pessoa seja
identificada como vítima e, portanto, possa participar
das diversas etapas do processo de investigação e jul-
gamento de um acusado e, mais importante ainda, pos-
sa apresentar um pedido individual de reparação por
danos sofridos em virtude de um crime cometido pelo
indivíduo acusado, a Câmara de Questões Preliminares
do Tribunal deve reconhecer o status de vítima depois
de a pessoa preencher um formulário disponível no
próprio site do TPI e apresentar diversas informações e
evidências que comprovem suas alegações, entendi-
mento mantido pelo Tribunal em sua decisão sobre a
participação de vítimas durante a etapa de investigação
do caso da República Democrática do Congo.103 Logo,
do entendimento adotado pela Câmara de Questões
Preliminares, pressupõe-se que as vítimas que forem
reconhecidas como tal terão o direito a requerer repa-
rações, havendo, inicialmente, um silêncio em relação
àquelas vítimas que porventura não tenham acesso à
estrutura do Tribunal.104

102
DE GREIFF; WIERDA, op. cit., pp. 233-236.
103
Câmara de Questões Preliminares I, Situation in the Democratic Republic
of the Congo: Public Redaction Version, Decision on the Applications for
Participation in the Proceedings of VPRS 1, VPRS 2, VPRS 3, VPRS 4, VPRS
5 and VPRS 6, ICC-01/04, de 17 de janeiro de 2006, parágrafos 63 e 72.
104
DE BROUWER, op. cit., pp. 218-224.

 
Um modelo para políticas de reparações 443

Tal silêncio foi finalmente interrompido com a


decisão do TPI sobre princípios orientadores para repa-
rações a vítimas de crimes internacionais no caso Pro-
curador v. Thomas Lubanga Dyilo, de 7 de agosto de
2012. Nessa decisão, a Câmara do TPI afirmou que se-
ria injusto limitar as reparações apenas ao limitado
número de vítimas que efetivamente participou das
sessões do julgamento e que apresentou pedidos for-
mais de reparação.
Segundo a decisão, os possíveis destinatários
das reparações as vítimas diretas dos crime atribuídos a
Lubanga Dyilo, ou seja, aqueles que sofreram danos
resultantes dos crimes de alistamento e utilização de
crianças menores 15 anos na província de Ituri, na Re-
pública Democrática do Congo, de 1 de setembro de
o

2002 a 13 de agosto de 2003; as vítimas indiretas desses


crimes, incluindo membros da família de vítimas dire-
tas, juntamente com indivíduos que tenham intervindo
para ajudar as vítimas ou para prevenir a ocorrência de
tais crimes, sendo que as vítimas indiretas devem de-
monstrar um relacionamento pessoal próximo entre
elas e a vítima direta, como, por exemplo, o relaciona-
mento entre uma criança-soldado e seus pais; e, final-
mente, pessoas jurídicas, como hospitais e ONGs de au-
xílio às vítimas desses crimes. Em razão do estado de
indigência alegado por Lubanga Dyilo, todas essas re-
parações serão, portanto, implementadas por meio do
Fundo, que usará os critérios analisados ao longo do
presente artigo para sua efetivação em benefício das
vítimas desses crimes.105

105Informações disponíveis em
http://www.icc-cpi.int/Menus/Go?id=f491ef55-3612-4205-a195-
d44a7b90ca0a&lan=en-GB (Acesso em 09/04/2013).
444 Thomaz F. Silveira de Araújo Santos

Considerações Finais.

O presente artigo procurou, acima de tudo,


apresentar a estrutura do Fundo e explicar o funcio-
namento do seu regime de reparações, especialmente a
previsão da “cláusula de benefício” em seu Regula-
mento. Em razão da existência de apenas uma sentença
condenatória do TPI até o presente momento, não há
dados estatísticos ou uma projeção segura com base na
qual afirmar a eventual “taxa de sucesso” da política
de reparações levada a cabo pelo TPI.
No entanto, a existência de uma institui-
ção nesses moldes no âmbito da justiça criminal inter-
nacional pode servir como motivação para a criação de
órgãos semelhantes em países em continentes que es-
tão passando por momentos de reconstrução da sua
história e da sua memória social, como é o caso do Bra-
sil e a tentativa de justiça para as vítimas de crimes
cometidos na época da ditadura militar. Por mais que o
tempo tenha passado e diversas vítimas diretas dos
crimes de tortura e desaparecimento forçado não pos-
sam gozar das possibilidades de uma justiça restaura-
tiva, familiares e pessoas diretamente envolvidas com o
sofrimento causado por esses crimes poderiam ter
atendido o seu clamor por justiça.
Nesse sentido, reitera-se mais uma vez que o
presente artigo só tem o objetivo de apresentar um
dentre diversos modelos possíveis para servir de inspi-
ração a política nacionais e regionais de reparações a
vítimas de graves violações de direitos humanos e cri-
mes internacionais. O exame da pertinência do modelo
aqui sugerido compete à sociedade e aos governantes
dos países interessados em prover às vítimas desses
atos abomináveis o que por muitos anos lhes foi nega-
do: justiça, na sua acepção mais clara e universal possí-
vel.

 
Um modelo para políticas de reparações 445

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A reparação como elemento
constitutivo da Justiça Transicional
Reparações simbólicas e econômicas em um
contexto de Justiça de Transição pós-ditadura
de 1964 no Brasil

Cristiane  dos  Santos  Silveira1  


Daniel  Vianna  Maricato2  
Débora  Karina  Gonçalves  Vaserino3  

Resumo: Este artigo busca analisar as medidas concer-


nentes à reparação no Brasil após a Ditadura civil-
militar de 1964 a 1985, em um contexto de Justiça de
Transição. A análise compreende os principais temas e
iniciativas governamentais relacionadas à reparação,
tais como as Caravanas da Anistia e questões como a
mudança de nomes de ruas. Esta análise dá-se através
de uma explanação histórica acerca do tema, aliada às
mais recentes medidas adotadas para conceder repara-
ções às vítimas e à sociedade brasileira em geral.
Palavras-chave: Justiça de Transição, reparações sim-
bólicas, reparações econômicas.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto.

Bolsista da CAPES pelo Programa Jovens Talentos.


2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto.

3 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
448 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

Abstract: This article aims to verify the measures con-


cerning the reparation in Brazil after the civil military
Regime of 1964 to 1985, in a context of Transitional Jus-
tice. The analysis comprises the themes and the gov-
ernmental initiatives concerning to reparation, as the
Caravanas da Anistia and issues as changing street
names. This analysis is done through a historical ex-
planation about the subject combined the most recent
measures adopted to give reparations to victims and to
the Brazilian society in general.
Keywords: Transitional Justice, symbolic reparation,
economic reparation.

“[...] Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.”
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Em A Rosa do Povo, página 12,
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012)

Introdução

Após um período de sistemática violação dos


direitos humanos, decorrente do regime ditatorial im-
plantado em 1964 no Brasil, a reabertura à democracia,
consagrada pela Constituição de 1988, gera a necessi-
dade de reestruturar a sociedade e a cidadania, além de
reformar as instituições até então autoritárias, com a
promoção de justiça. E essa construção de um futuro
mais justo e democrático dependem essencialmente do
desenvolvimento dos pilares da Justiça de Transição.
Justiça de Transição é o nome dado ao conjunto
de mecanismos necessários para lidar com um legado

 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 449

histórico de violência e violação sistemática aos direitos


humanos promovidos por um Estado ditatorial. Ela
tem como objetivo fortalecer o comprometimento do
poder público com as garantias e direitos fundamentais
no novo regime democrático e compreende vários ei-
xos – justiça, memória, verdade, reforma das institui-
ções, reparações. Embora esses elementos sejam neces-
sariamente vinculados e interdependentes, o escopo do
presente artigo é analisar mais detidamente a dimensão
da Reparação.
Frisa-se que a Justiça de Transição compreende
bem mais do que a concessão de reparações, e a cons-
trução de uma sociedade justa perpassa pela aplicação
de todos os mecanismos de transição. O presente traba-
lho focar-se-á no âmbito das reparações, principalmen-
te as simbólicas, e desta forma tratará também de polí-
ticas de memória e busca da verdade, uma vez que re-
parar os danos sofridos pela sociedade é também cons-
truir espaços de memória e homenagear àqueles que
lutaram contra o regime; é reviver a história do país,
construindo uma consciência nacional para a não repe-
tição de violações aos direitos humanos; é buscar a
verdade sobre os abusos perpetrados contra os dissi-
dentes políticos, que o regime tão grosseiramente es-
camoteou. O artigo não entrará nos campos da respon-
sabilização civil e criminal de agentes públicos e refor-
ma das instituições repressoras herdadas da ditadura,
apesar desses dois aspectos também comporem o âm-
bito das reparações simbólicas coletivas.
As reparações simbólicas são importantes no
contexto de transição porque levam ao reconhecimento
da importância política e da dignidade humana daque-
les que foram vítimas de um regime ilegítimo, autoritá-
rio e violento, além de gerarem a diminuição de ten-
sões e o estreitamento de laços entre cidadãos e Estado,
e entre os próprios cidadãos, o que é essencial para a
consolidação da democracia, que só pode existir pau-
tada na confiança cívica.
450 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

1. Breve explanação histórica acerca dos fatores


influenciadores do Golpe Militar de 1964

Compreender o golpe militar ocorrido em 1964


depende da contextualização dos fenômenos políticos,
sociais e econômicos, presentes tanto no âmbito interno
da vacilante democracia brasileira da época, quanto
num aspecto político internacional, em que tensões
político-ideológicas transformaram o mundo em dois
blocos notadamente distintos.
No aspecto interno, é preciso destacar a forte
crise econômica decorrente do esgotamento do modelo
econômico datado da década de 30, assim como as arti-
culações políticas conservadoras, que, desde a ascensão
dos regimes populistas, planejaram sua subida ao po-
der por meio de um golpe. Além disso, havia a instabi-
lidade política da democracia brasileira, que se agra-
vou após a crise de sucessão do Governo Jânio Qua-
dros (IGLESIAS, 1993, p. 283). João Goulart, vice de
Jânio, iniciou uma campanha pela realização de Re-
formas de Base, que erigiam conquistas para as classes
pobres e marginalizadas e incluíam alterações bancá-
rias, urbanas, administrativas, agrárias e universitárias,
entre elas a reforma agrária e o voto para analfabetos.
Essa posição de Jango foi encarada pelas classes altas e
conservadoras do país como ameaça a seus interesses e
o risco de uma revolução comunista.
No aspecto internacional, destacam-se as
tensões entre os dois grandes blocos políticos vencedo-
res da Segunda Guerra Mundial, econômica e ideologi-
camente distintos entre si: as democracias capitalistas
ocidentais, de um lado, e os estados socialistas, de ou-
tro (HOBSBAWN, 1995, p. 235). Com o crescimento das
tensões e a ameaça iminente de início de uma nova
grande guerra, foi exigido do restante dos países do
mundo, estrategicamente importantes para as potên-
cias dominantes, um alinhamento político claro
(HOBSBAWN, 1995, pag. 225). Dessa forma, o Brasil,

 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 451

tradicional zona de influência de países ocidentais,


principalmente do Reino Unido e dos Estados Unidos a
partir da segunda metade do século XIX, foi pressiona-
do a alinhar-se ao Ocidente, liberal e capitalista (REIS,
2012). Nesse sentido observa-se a influência direta dos
Estados Unidos no contexto político brasileiro para a
saída de Jango e a instalação de um governo militar,
que garantiria a preservação dos interesses econômicos
norte-americanos no país.
Pode-se dizer que tanto os aspectos internos
quanto os externos citados acima foram fundamentais
para o sucesso do Golpe de 1964, dada a clara interfe-
rência de países estrangeiros, principalmente os Esta-
dos Unidos, em assuntos políticos brasileiros
(FERREIRA, 2012) e também devido à organização in-
terna de um movimento civil, contrário ao governo de
Jango e favorável a um golpe de Estado (REIS, 2012).
Dessa forma, o contexto político da época tor-
nou favorável a ascensão de um governo autoritário,
apoiado por setores conservadores da sociedade civil
(REIS, 2012) e despreocupado com a construção e a
afirmação da cidadania, da democracia e de avanços
sociais. Os novos líderes do governo, na intenção de
eliminar a suposta ameaça comunista e abafar os mo-
vimentos que lutavam por direitos sociais, como os
sindicais, implantaram aparelhos de estado extrema-
mente repressivos.

2. Justiça de Transição: um panorama geral

De acordo com os critérios adotados pela Co-


missão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos
(CEMDP), até 2012 a estimativa de pessoas mortas ví-
timas da ditadura civil-militar brasileira era de 457 pes-
soas; porém, há indícios de que esse número possa ser
muito maior. Através de um trabalho desenvolvido
pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, que envolveu a análise de 858 mortes e de-
452 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

saparecimentos forçados de camponeses, concluiu-se


que pelo menos mais 370 pessoas foram mortas entre
1961 a 1988 (AMADO, 2012). Contudo, o número de
vítimas da repressão é muito maior quando observados
todos os tipos de perseguições cometidas no estado de
exceção. Nesse sentido já foram realizadas sessenta e
sete Caravanas da Anistia pela Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça, onde foram concedidas anistias
políticas e reparação econômica a mais de 50 mil pedi-
dos, sendo que novos requerimentos são enviados to-
dos os dias.
Deve-se ressaltar que critérios quantitativos não
são os mais adequados para avaliar o impacto das vio-
lações de direitos humanos no período ditatorial brasi-
leiro, pois abrem margem para comparações equivoca-
das com outros países latino-americanos, como a feita
pela Folha de São Paulo em 2009, que classificou a di-
tadura brasileira como “ditabranda”. Ora, as conse-
quências da ditadura brasileira não são apenas núme-
ros de mortos ou perseguidos. A violação sistemática
de garantias fundamentais, marcada por torturas, de-
saparecimentos forçados, impedimento à liberdade de
expressão, censura aos meios de comunicação, demis-
sões arbitrárias, entre outros atos de exceção, se mos-
tram como crimes inenarráveis (SOARES; KISHI, 2009
p.77), e seus efeitos permeiam a sociedade brasileira até
os dias atuais, o que evidencia a necessidade de concre-
tização da Justiça de Transição.
As raízes históricas da Justiça de Transição re-
montam à Grécia Antiga, onde já estavam presentes
elementos que permitem percebê-la (MEYER, 2012,
p.245); mas foi na contemporaneidade que essa expres-
são ganhou força normativa, sendo o termo “justice in
times of transition” utilizado pela primeira vez em 1991
em uma conferência proferida pela argentina Ruti Tei-
tel (TEITEL, 2002 Apud MEYER, 2012, p. 243).
A Justiça de Transição compreende elementos e
iniciativas aplicadas a sociedades pós-conflito com o
objetivo de reconstrução da paz social e afastamento da
 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 453

insegurança do período anterior, por meio de procedi-


mentos que têm a finalidade de compensar abusos co-
metidos contra direitos humanos em regimes ditatori-
ais (SOARES; KISHI, 2009 p.71).
A Justiça de Transição é pautada por princípios
que decorrem de um Estado democrático constitucio-
nal. Através da análise de fatos ocorridos no passado e
com um olhar para o futuro, é possível a promoção da
paz após um período de violação sistemática de direi-
tos humanos e garantias fundamentais. São elementos
essenciais da Justiça Transicional: a) processar perpe-
tradores e julgar os responsáveis pela violação de direi-
tos humanos e garantias fundamentais; b) revelar a
verdade sobre crimes passados, construindo uma me-
mória nacional; c) conceder reparações compensatórias,
restauradoras, reabilitadoras e simbólicas às vítimas e
seus familiares; d) reformar as instituições perpetrado-
ras de abusos; e) promover a reconciliação – que não se
confunde com perdão obrigatório, impunidade ou es-
quecimento.
Observa-se que justiça transicional não deve ser
confundida com um juízo de exceção. A Justiça de
Transição tem o intuito de promover um cenário ade-
quado para estabilização de um Estado Democrático de
Direito pautado em ideais democráticos; e assim, novas
arbitrariedades, mesmo que busquem uma pretensa
justiça, afastam a legitimidade do processo e fazem a
insegurança persistir. Desta sorte, é preciso definir os
critérios para acusação dos perpetradores, bem como
as formas de punição, obedecendo ao princípio do de-
vido processo legal e os termos da lei.
A Justiça de Transição também não se confunde
com uma justiça reparadora; esta faz parte daquela,
que compreende outros elementos essenciais à consoli-
dação de uma sociedade democrática. A justiça transi-
cional estabelece procedimentos a serem adotados pelo
novo regime em relação ao regime antecedente, e isso
inclui mais que medidas reparatórias.
454 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

A reparação é uma característica específica e


fundamental da Justiça de Transição e consiste na re-
tratação por parte do Estado em relação às vítimas e
aos familiares destas, bem como à sociedade em geral.
Significa a restauração, se possível, de uma situação de
paz, uma forma de colocar em bom estado novamente
aquilo comprometido ou arruinado, no caso, pela dita-
dura brasileira.

3. O uso do termo “Reparações”

Pablo de Greiff (2010), em seu artigo “Justiça e


Reparações”, distingue dois contextos para o uso do
termo “reparações”. O primeiro é o judicial, usado nas
discussões do Direito Internacional “para referir-se a
todas aquelas medidas que podem ser adotadas para
ressarcir os diversos tipos de danos que possam ter
sofrido as vítimas como consequência de certos cri-
mes”, incluindo as seguintes esferas: restituição; com-
pensação; reabilitação e satisfação; e garantias de não
repetição (DE GREIFF, 2010, p.43).
A restituição visa estabelecer o status quo ante
das vítimas, com restauração de direitos políticos, em-
pregos, benefícios, propriedades; a compensação busca
contrabalançar, por meio de indenizações, perdas eco-
nômicas e lesões físicas, mentais e morais; a reabilita-
ção visa assistir as vítimas com atenção social, médica,
psicológica e até legal; a satisfação e medidas de não
repetição incluem medidas amplas, como:
[...] afastamento das violações, verificação dos fa-
tos, desculpas oficiais, sentenças judiciais que res-
tabelecem a dignidade e a reputação das vítimas,
plena revelação pública da verdade, busca, identi-
ficação e entrega dos restos mortais de pessoas fa-
lecidas ou desaparecidas, junto com a aplicação de
sanções judiciais ou administrativas aos autores
dos crimes, e reformas institucionais (DE GREIFF,
2010, p.44).

 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 455

O segundo conceito de “reparações” é o usado


no desenho de programas que atingem um maior nú-
mero de casos, em um conjunto mais ordenado de me-
didas de indenização. Nesse sentido, o tema é tratado
de forma mais restrita, não incluindo outras formas de
obtenção de justiça, como a reforma institucional, a
punição de perpetradores de violações de direitos hu-
manos, e o estabelecimento da verdade, apesar de po-
der relacionar-se em muitos pontos com tais pilares da
Justiça de Transição. Nesse contexto, as reparações se
classificam como individuais ou coletivas e em materi-
ais ou simbólicas (DE GREIFF, 2010, p.44).
As reparações individuais são as dirigidas às ví-
timas em particular, enquanto as coletivas são repara-
ções a toda a sociedade. As reparações materiais bus-
cam a compensação por meio do pagamento em di-
nheiro ou a oferta de benefícios às vítimas de violações
de direitos humanos; já as reparações simbólicas inclu-
em desculpas oficiais, reconhecimento do direito à re-
sistência, valorização da luta política dos perseguidos,
construção de espaços de memória, mudança de nomes
de espaços públicos (DE GREIFF, 2010, p.46).
Diante desse quadro, observa-se como a Comis-
são de Anistia, que será caracterizada mais à frente,
incorporou esse segundo sentido de reparação a partir
de 2007 ao estabelecer as Caravanas de Anistia. Isso
pode ser afirmado devido ao fato de que uma das pre-
ocupações da Comissão nesse momento foi promover a
rearticulação de causas antes esparsas sobre o tema da
anistia. Ao contrário da justiça caso a caso, que frag-
menta o processo reparatório, a reparação enquanto
desenho de políticas públicas permite uma conjugação
da luta das diferentes vítimas e o estabelecimento de
objetivos a serem alcançados, objetivos esses que, na
visão de Pablo de Greiff (2010), seriam: o reconheci-
mento das vítimas enquanto seres humanos insubstitu-
íveis e cidadãos com direitos iguais aos demais; a res-
tauração da confiança cívica, que permite aos perse-
guidos políticos perceberem o compromisso do Estado,
456 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

assim como de seus concidadãos, com o respeito e a


valorização de suas lutas políticas (DE GREIFF, 2010,
p.58); e a solidificação da solidariedade, que é a empa-
tia entre os cidadãos, quando aqueles que não viveram
a resistência política nos anos autoritários, principal-
mente os jovens, podem, por meio de relatos, vídeos,
imagens, compreender afetivamente a dor impingida
aos perseguidos pelo governo (DE GREIFF, 2010, p.62).

4. As Reparações no Brasil

A dimensão da Reparação no Brasil é integrada


por duas comissões, a Comissão Especial para Mortos e
Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a Comissão de
Anistia (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122).
A Comissão Especial para Mortos e Desapareci-
dos Políticos foi criada pela Lei nº 9.140/1995, alterada
pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004. Ela foi implanta-
da no Ministério da Justiça e, posteriormente, desloca-
da para a Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República. A Comissão
[...] focou-se primeiro na apreciação das circuns-
tâncias das mortes, para examinar exclusivamente
se as pessoas foram ou não mortas pelos agentes
do Estado no período de 2 de setembro de 1961 a 5
de outubro de 1988 e como isso aconteceu, afas-
tando-se da apreciação dos atos dos envolvidos na
atividade de repressão política (ABRÃO,
TORELLY, 2010, p.122).

Após o prazo final para o envio de requerimen-


tos à CEMDP ter-se esgotado em 2004, a Comissão con-
centrou seus esforços na localização de restos mortais
dos desaparecidos, e ainda na “sistematização de um
acervo de depoimentos de familiares e companheiros
dos desaparecidos[...] na busca e na organização de

 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 457

diligências que forem necessárias para a localização


dos restos mortais” (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122).
A CEMDP também forneceu contribuições no
campo da Memória e da Verdade quando publicou, em
2007, o livro “Direito à Verdade e à Memória”, que
constitui um importante documento oficial sobre o pe-
ríodo ditatorial e que detalha pormenorizadamente a
promoção de 357 reparações (ABRÃO, TORELLY,
2010, p.122).
Por outro lado, a Comissão de Anistia foi criada
em 2001, por meio de medida provisória, convertida na
lei nº 10.559/2002, que regula o artigo 8º do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da
Constituição de 1988. Tal Comissão, instalada no Mi-
nistério da Justiça, investiga todas as formas de perse-
guição política realizadas entre 1946 a 1988, tais como
“as prisões arbitrárias, as torturas, os monitoramentos
das vidas das pessoas, os exílios, as clandestinidades,
as demissões arbitrárias de postos de trabalho, os ex-
purgos estudantis e docentes nas universidades e esco-
las [...]” (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122) entre outros
atos de exceção. Além das vítimas de perseguição, po-
dem enviar requerimentos à Comissão de Anistia os
familiares de mortos e desaparecidos, concorrendo
dessa forma aos dois tipos de indenização.
A partir de 2007 processou-se uma “virada
hermenêutica” na Comissão de Anistia (ABRÃO,
TORELLY, 2010, p.124), em que as leituras comumente
dadas à lei nº 10.559/2002, que a percebiam apenas
como reparação econômica, passaram a considerar dois
aspectos: o primeiro é que a anistia é concedida aos
perseguidos, e não aos perseguidores, resgatando o
significado histórico de “anistia”, que se opõe a seu
sentido etimológico de perdão e esquecimento e resga-
ta a luta da sociedade civil pela redemocratização do
país na década de 1970.
O segundo aspecto é que a anistia concedida aos
perseguidos é o ato de reconhecimento de seu
458 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

[...] direito legítimo de resistência a uma ordem le-


gal ilegítima: antes de serem vítimas são, portanto, re-
sistentes. Os perseguidos políticos não se envergo-
nham da condição de ‘anistiado político’, ao con-
trário, isso simboliza toda a sua histórica contri-
buição política pessoal para com a derrubada do
regime autoritário e a consequente abertura demo-
crática (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.122).

Dessa forma, a partir do ano de 2007 a Comissão


iniciou um processo de pedido público de desculpas
em nome do Estado aos perseguidos políticos, e apenas
após tal reparação moral é que é analisada a possibili-
dade de reparação econômica. Assim não cabem mais
leituras da Anistia que a colocam como um esqueci-
mento imposto, um “cala a boca” (ABRÃO, TORELLY,
2010, p.127), um perdão por parte de um Estado ilegal
e ilegítimo àqueles que ele mesmo perseguiu e estigma-
tizou na alcunha de “terroristas”.

4.1 Reparações econômicas

Segundo a lei 9.140/1995, que instituiu a Comis-


são Especial Sobre Mortos e Desaparecidos, a indeniza-
ção para os familiares de mortos e desaparecidos polí-
ticos no período de 1961 a 1988 consistiria no pagamen-
to de um valor único igual a três mil reais multiplicado
pelo número de anos correspondentes à expectativa de
vida do desaparecido, levando-se em conta sua idade à
época do desaparecimento. O teto da indenização é de
cem mil reais e o prazo para envio de requerimentos
extinguiu-se em 2004.
Os familiares dos mortos e desaparecidos po-
dem pleitear dupla indenização, uma através da Co-
missão de Mortos e Desaparecidos e outra pela Comis-
são de Anistia, no que se refere à perda de vínculos
laborais ocorridos previamente às suas mortes e desa-
parecimentos ou a anos de perseguições em vida
(ABRÃO, TORELLY, 2010, p.114).

 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 459

No caso da Comissão de Anistia, os critérios


adotados para o pagamento de indenizações a perse-
guidos políticos estão previstos Lei n 10.559/2002, que
o

institui duas modalidades de reparação econômica,


uma em prestação única e outra em prestação mensal.
A prestação única é devida aos anistiados políti-
cos que não puderem comprovar vínculos com a ativi-
dade laboral, e chega a trinta salários mínimos por ano
de perseguição política e em não pode ser superior a
cem mil reais. A prestação mensal, permanente e conti-
nuada, é assegurada aos anistiados políticos que com-
provarem vínculos laborais e seu valor é
[...] igual ao da remuneração que o anistiado polí-
tico receberia se na ativa estivesse, considerada a
graduação a que teria direito, obedecidos os pra-
zos para promoção previstos nas leis e regulamen-
tos vigentes, e asseguradas as promoções ao oficia-
lato. Artigo 6º da lei n 10.559/2002).
o

Observa-se para a estimativa da indenização


mensal, portanto, a situação dos pares ou colegas con-
temporâneos do anistiado, que apresentavam a mesma
posição no cargo, emprego ou posto quando da puni-
ção.
A crítica que se faz a esse sistema reparatório é
que pessoas submetidas à tortura, desaparecimento ou
morte, mas que não tiveram perda de vínculos laborais
receberiam valores indenizatórios menores que as pes-
soas que tivessem como forma de perseguição a perda
de um emprego. Porém, segundo Paulo Abrão e Mar-
celo D. Torelly (2010), a maioria dos “presos e tortura-
dos que sobreviveram concomitantemente também
perderam seus empregos ou foram compelidos ao afas-
tamento de suas atividades profissionais formais” e
esses “casos de duplicidade de situações persecutórias
são a maioria e [...] não cabe sustentar a tese de subva-
lorização dos direitos da pessoa humana frente aos
direitos trabalhistas em termos de efetivos”.

 
460 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

Porém, os autores atentam para o fato de que no


caso de pessoas que não tiverem nem a possibilidade
de se inserirem no mercado de trabalho devido às per-
seguições, como ocorreu com estudantes expulsos de
universidades e escolas
[...] que tiveram que se exilar ou entrar na clandes-
tinidade e o das crianças que foram presas e tortu-
radas com os pais ou familiares [...] a legislação
efetivamente não oferece uma alternativa repara-
tória razoável, a despeito dos esforços da Comis-
são de Anistia (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.114).

4.2 Reparações simbólicas: As Caravanas da Anistia

As caravanas da Anistia são sessões itinerantes


de apreciação de requerimentos de anistia política, rea-
lizadas em diversos estados brasileiros, acompanhadas
de atividades culturais e educativas relacionadas ao
período ditatorial brasileiro (ABRÃO et al., 2009,
p.114). A Comissão da Anistia, órgão que promove as
sessões, é a responsável pelo reconhecimento oficial de
cometimento de atos de exceção por meio de persegui-
ções políticas e que garantem às vítimas o direito de
reparação.
Como aponta Abrão et al. (2009), o caráter itine-
rante das Caravanas leva a uma maior participação da
sociedade civil, em contraposição às sessões exclusivas
em Brasília e permite que as violações de direitos hu-
manos sejam reparadas no local onde foram perpetra-
das. Além disso, seu caráter educativo, com apresenta-
ções culturais e relatos pessoais dos perseguidos, resga-
ta a reflexão sobre o passado autoritário brasileiro,
principalmente para os jovens, permitindo um resgate
da Memória e a construção de discursos de não repeti-
ção das arbitrariedades.
Os requerimentos enviados à Comissão são
apreciados por conselheiros, que analisam os pedidos,
relatam os fatos e documentos constantes no processo e

 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 461

formam um juízo sobre o conjunto comprobatório da


perseguição. Após a interpelação e escuta do ex-
perseguido, há o debate entre os conselheiros e a con-
cessão ou não do reconhecimento da condição de anis-
tiado político. Tal condição de anistiado se figura como
reparação moral, cabendo posteriormente, se pertinen-
te, a reparação econômica (ABRÃO et al., 2009, p.114).
Segundo Paulo Abrão e Marcelo D. Torelly
(2010), as Caravanas de Anistia promovem dois tipos
de reparações simbólicas: reparações individuais com
efeitos coletivos e reparações coletivas com efeitos in-
dividuais.
As reparações individuais são concretizadas no
momento em que há homenagem às vítimas das perse-
guições, seus testemunhos são ouvidos, o Estado reco-
nhece que estava errado ao violar o direito legítimo do
cidadão à resistência, e os concidadãos do perseguido
reconhecem sua luta política como fundamental na
construção do Estado de Direito Democrático contem-
porâneo.
Nas sessões da Comissão há um importante es-
paço para que o período ditatorial brasileiro seja recon-
tado sob o ponto de vista dos perseguidos, agregando à
documentação oficial a narrativa dos que viveram os
fatos (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.131). Tais relatos
chegam a um grande número de pessoas, seja porque
as sessões são em várias partes do país, em espaços
públicos e com ampla divulgação, seja porque elas vi-
ram notícia de destaque nos principais jornais brasilei-
ros. Assim,
[...] por meio do compartilhamento dessas experi-
ências, um duplo movimento é desencadeado: por
um lado, possibilita-se transformar a dor em co-
nhecimento e, por outro, permite-se um processa-
mento adequado da dor, necessário à superação de
uma tragédia: a elaboração do luto e dos traumas,
em vez do silenciamento (SOUZA, 2006, apud
ABRÃO, TORELLY, 2010, p.114).
462 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

Os vídeos especialmente produzidos para a oca-


sião, com sessões de memória e homenagem às vítimas,
assim como os relatos dos perseguidos representam
um marco simbólico relevante para a democracia, uma
vez que é indispensável mostrar aos jovens a história
autoritária de seu país e o valor da democracia.
Após os relatos, há o julgamento dos pedidos e
posteriormente, se procedente, o pedido de desculpas
oficiais e o reconhecimento aos perseguidos do status
de “anistiado político”. Esses dois atos são importantes
no reconhecimento do direito legítimo à resistência e
geram a reincorporação do anistiado à sociedade brasi-
leira, uma vez que sua luta foi reconhecida como es-
sencial no processo de construção democrática do país
(ABRÃO, TORELLY, 2010, p.134).
Nesse momento, a reparação moral individual ga-
nha um inegável aspecto coletivo, pois ao anistiar
publicamente ao perseguido, pedir-lhe desculpas e
dar-lhe a palavra, o Estado brasileiro permite que
toda uma nova geração se integre ao processo de
construção democrática e comprometa-se com os
valores que sustentam esta nova fase da República
(ABRÃO, TORELLY, 2010, p.134).

Essa dimensão coletiva das reparações indivi-


duais é essencial na restauração da dignidade dos per-
seguidos, pois “se um prejuízo é reparado, [...] uma
identidade negada exige ser reconstruída, reiterada por
um ato de justiça, inédito aos olhos de muitos: o reco-
nhecimento” (GARAPON, 2002, apud ABRÃO,
TORELLY, 2010, p.128).
A reparação econômica estabelecida posterior-
mente é secundária, uma vez que a reparação moral é a
enfatizada pela sessão, o que desacredita as críticas de
que o processo reparatório brasileiro privilegia uma
visão material da reparação.
As reparações coletivas com efeitos individuais
ocorrem no momento em que são devolvidos ao povo
seus heróis nacionais e aos jovens, a história de seu

 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 463

país. São atos que restauram a identidade coletiva na-


cional e recompõem as múltiplas narrativas de um im-
portante período da história por meio de uma abertura
afetiva, pessoal e testemunhal, que somente a memória
viva proporciona (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.136).
Dessa forma as políticas de memória se mos-
tram como um mecanismo essencial no âmbito das re-
parações simbólicas coletivas. Devido à necessidade de
comprovação das perseguições políticas por meio de
documentos e testemunhos, avolumou-se, gradual-
mente, o acervo do Ministério da Justiça, com “milha-
res de dossiês e de arquivos de áudio e vídeo que retra-
tam não apenas as perseguições individualmente im-
pingidas a cada um dos perseguidos, mas também a
história do Brasil” (ABRÃO, TORELLY, 2010, p.137). E
então, a partir de 2007, iniciaram-se estudos para a cri-
ação do Memorial da Anistia, que constitui um espaço
público de pedido de desculpas do Estado frente à so-
ciedade pelos erros cometidos na ditadura militar. Esse
é também um lugar de reconhecimento do direito legí-
timo à resistência e de preservação da memória
(ABRÃO, TORELLY, 2010, p.138).
É assim que, a um só tempo, promove-se uma am-
pla reparação coletiva, com o pedido de desculpas
difuso a toda a sociedade, igualmente gerando
efeitos reparatórios para cada um dos perseguidos
políticos, uma vez que foram perseguidos por per-
tencerem a grupos e coletividades cujas ideias fo-
ram proibidas pelo Estado autoritário. O resgate
dessas ideias e de seus protagonistas compõe a es-
trutura temática do Memorial, que busca resgatar
a capacidade do Estado de conviver com o plura-
lismo político, reafirmando a reparação moral ínsi-
ta aos pedidos de desculpas individuais que reco-
nhecem o direito individual que todos possuem de
resistir ao autoritarismo.

O Memorial da Anistia será um espaço de pre-


servação e resgate da memória da ditadura civil-militar
que está sendo construído em Belo Horizonte, no anti-
464 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

go prédio da Faculdade de Filosofia e Ciências Huma-


nas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
no bairro Santo Antônio. O memorial será inaugurado
em 2014 e contará no seu acervo com todo o material
referente aos setenta mil processos de indenização que
foram apresentados na Comissão de Anistia, além de
dossiês administrativos, relatos, testemunhos, livros,
áudios e vídeos recebidos pela Comissão de Anistia
por campanhas de doação e cerca de 10 mil fotos e 400
filmes preservados pela própria UFMG.
Outra forma de reparação simbólica coletiva re-
alizada pela Comissão de Anistia foi a disponibilização
na internet de documentos do Departamento de Or-
dem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP) no ano
de 2013. A Comissão, por meio de seu projeto Marcas
da Memória, em que seleciona projetos culturais, artís-
ticos e científicos na temática “justiça de transição: re-
paração, memória e verdade”, contemplou em 2011 o
projeto da Associação de Amigos do Arquivo Público
do Estado de São Paulo, sendo repassadas verbas para
digitalização de cerca de um milhão de páginas de ar-
quivos e prontuários do Departamento Estadual de
Ordem Política e Social de São Paulo, o DEOPS. Dessa
forma, a partir do dia 1º de abril de 2013, tais documen-
tos estarão disponíveis na internet para consulta de
qualquer cidadão. Tal ato, além de consolidar a busca
da Verdade e Memória, ajudará nos trabalhos de repa-
ração da Comissão de Anistia no sentido de acesso às
provas de perseguições.

4.3 Reparações Simbólicas: Projeto de Lei nº 380/2010 – SP

A reparação simbólica às vítimas da repressão e


à sociedade em geral também pode assumir a forma de
desconstrução de homenagens àqueles que foram per-
petradores de abusos aos direitos humanos e crimes de

 
A reparação como elemento constitutivo da justiça transicional 465

lesa-humanidade. É o caso de monumentos, ruas e via-


dutos com nomes de militares, que fazem parte do co-
tidiano brasileiro e distorcem o que significou a ditadu-
ra no Brasil: um período brutal, ilegítimo e vergonhoso
na história do país. Quem passa todos os dias por tais
edificações é forçado a conviver com uma homenagem
para aqueles que além de não serem julgados por seus
crimes, ainda são relembrados como se heróis nacio-
nais fossem. Tal fato reflete um desrespeito à memória
das vítimas e à consciência política nacional.
Há algumas iniciativas no sentido de
mudanças de nomes de edificações públicas, como o
Projeto de Lei n 380/2010 – SP, proposto pelo vereador
o

Jamil Murad, em trâmite na Câmara Municipal de São


Paulo. Segundo o próprio autor do projeto de lei:
O nome das ruas de uma cidade representa a he-
rança cultural de um povo dirigida às gerações fu-
turas como referências históricas. Devem represen-
tar, portanto, personagens significativos no desen-
volvimento do país merecedores de ter sua memó-
ria perpetuada no tempo (MURAD, apud
LOBREGATTE 2013).

Nesse sentido, o então prefeito de São Paulo,


Gilberto Kassab, aprovou em 12 de julho de 2012 a
mudança de nome do viaduto General Milton Tavares
para Desembargador Domingos Franciulli Netto. Mil-
ton Tavares de Souza foi diretor do Centro de Informa-
ções do Exército durante o Governo de Médici, coman-
dando a eliminação física dos opositores do regime. Foi
ainda responsável pela organização dos DOI-CODI em
todo o Brasil e das operações Bandeirantes e Marajoara,
que visavam destruir a Guerrilha do Araguaia.
Não é apenas importante como essencial na
construção da justiça de transição essa mudança de
nomes de ruas, vias, viadutos, e ainda, renomeações
em homenagem a vítimas do regime. Tais atos recons-
troem a memória do período autoritário brasileiro e
ainda evitam o revisionismo histórico, que ocorre
466 Cristiane Silveira, Daniel Maricato & Débora Vaserino

quando os fatos históricos são interpretados por leitu-


ras conservadoras a favor do regime ditatorial, atribu-
indo a esse período características como paz social,
diminuição da criminalidade, avanço econômico, afas-
tamento da ameaça comunista e por isso uma época a
se orgulhar.

Conclusão

Este artigo se propôs a analisar e delimitar a es-


trutura de um importante instituto da Justiça de Tran-
sição, a Reparação, ressaltando sua dimensão simbóli-
ca, cuja importância é crescente no Brasil por meio da
atuação da Comissão da Anistia, no que tange às Cara-
vanas da Anistia. Embora as tentativas de reparação
econômica às vítimas da ditadura tenham surtido efei-
tos positivos para a transição política do Brasil, é notá-
vel que ainda há um caminho longo a se percorrer no
campo de consolidação da consciência nacional sobre
os fatos ocorridos no período do regime civil-militar.
Nesse sentido, é vital a importância o desenvolvimento
das reparações em seu sentido econômico e simbólico,
no intuito de guiar ações civis e governamentais que
visem garantir uma transição política justa em uma
nação afetada por um passado autoritário e violento,
que ainda perdura até hoje, como é o caso do Brasil.

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O caso Peter Ho Peng
na Comissão de Anistia
Do banimento pela ditadura civil-militar
brasileira à tentativa de reparação pela
democracia

Ana  Luisa  Zago  de  Moraes1

Resumo: durante a ditadura civil-militar brasileira,


quem se posicionava contra o regime era considerado
inimigo. Nessa época, Peter Ho Peng era um líder es-
tudantil de esquerda, tendo sido perseguido, preso e
torturado. Natural de Hong Kong, ingressou no país
aos dois anos de idade, e adquiriu a nacionalidade bra-
sileira pelas leis da época. A despeito disso, foi subme-
tido a Inquérito Policial de Expulsão e, mesmo arqui-
vado, foi forçado a entregar seus documentos brasilei-
ros e a deixar o Brasil, sem direito a retorno, tornando-
se apátrida. Quase quarenta anos depois, em razão da
atuação da Comissão de Anistia, sua cidadania foi res-
tituída e obteve reparação econômica. Durante esse
tempo, o tratamento dos estrangeiros no Brasil não
evoluiu ao ritmo da proteção internacional dos direitos
humanos, de forma que ainda existem casos de apatria
na atualidade.
Palavras-chave: estrangeiro – ditadura civil-militar
brasileira – Comissão de Anistia – crimes de estado.

1 Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFSM. Mestre e

Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Bolsista CAPES.


Defensora Pública Federal.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
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978-85-64912-50-2.
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 471

Abstract: during the Brazilian civil-military dictator-


ship, who was against the regime was considered an
enemy. At that time, Peter Ho Peng was a student
leader, having been persecuted, imprisoned and tor-
tured. He was born in Hong Kong, entered the country
at two years of age, and became a Brazilian citizen.
Nevertheless, was submitted to an expulsion process
and was forced to hand over his documents and to
leave Brazil without the right to return, becoming state-
less. Almost forty years later, due to the action of the
Amnesty Commission, his citizenship was restored and
received economic compensation. During this time, the
treatment of foreigners in Brazil has not respected the
international protection of human rights, so that there
are still similar cases today.
Keywords: foreign – Brazilian civil military dictator-
ship – Brazilian Amnesty Committee – State crimes.

Introdução

O caso que o presente trabalho propõe-se a ana-


lisar iniciou no período da ditadura civil-militar brasi-
leira, em que a atuação na liminaridade do sistema jurí-
dico era a regra geral2, e “findou” no ano de 2012, me-
diante decisão da Comissão de Anistia, cumprindo seu
papel na justiça de transição construída já durante o
regime democrático3.

2
Giorgio Agamben define o estado de exceção como a própria
liminaridade do sistema, ou seja, uma zona topológica de indistinção
entre norma e realidade, em que a própria norma pode ditar a exceção
quando, por exemplo, desconsidera o indivíduo como dotado de
direitos fundamentais (AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder
soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 43)
3
Justiça de transição é um termo de origem recente, mas que pretende
indicar aspectos que passaram a ser cruciais a partir de grandes
guerras mundiais deflagradas no século XX: o direito à verdade, à
memória, à reparação e à justiça e ao fortalecimento das instituições
472 Ana Luiza Zago de Moraes

Trata-se do “Caso Peter Ho Peng”, de um es-


trangeiro naturalizado brasileiro pelas leis da época,
que perdeu sua nacionalidade por “decisão” política e,
por fim, foi expulso do país. Tal processo de naturali-
zação e a respectiva “perda” da nacionalidade brasilei-
ra, até culminar na restituição de sua condição de es-
trangeiro e, por fim, de sua expulsão do país e subse-
quente apatria foram desvelados pelos próprios docu-
mentos oficiais.
A documentação oficial relativa ao caso foi obti-
da graças à efetivação da Lei de Acesso à Informação4,
que permitiu a vista dos autos do Processo nº
2010.01.67125, constante na Divisão de Arquivo da
Comissão de Anistia. Os autos foram instruídos com
documentos localizados através de busca no Arquivo
Nacional, como inquéritos e relatórios do Departamen-
to de Ordem Política e Social (DOPS), do Secretariado
Nacional de Informação (SNI), de buscas no Superior
Tribunal Militar e no Departamento de Estrangeiros do
Ministério da Justiça, em especial o Inquérito de Expul-
são nº 10.106/71.
No decorrer do trabalho, após um breve incurso
ao contexto histórico, serão analisadas as seguintes

democráticas em sociedades que emergiram de um regime de força


para um regime democrático (SILVA FILHO, José Carlos Moreira da.
Memória e reconciliação nacional: o impasse da anistia na inacabada
transição democrática brasileira. In: A anistia na era da responsabilização:
o Brasil em perspectiva internacional e comparada. pp. 288-306.
Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford
University, Latin American Centre, 2011, p. 281).
4
A Lei nº 12.537 regulamenta o art. 5º, XXXII, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, que prevê o direito a receber
dos órgãos públicos não só informações de seu interesse particular,
mas também de interesse coletivo ou geral. O pedido de acesso foi
formulado conforme o art. 10 do referido diploma, e atendido
prontamente pelas servidoras Amarilis Busch Tavares, Coordenadora
Executiva do Memorial da Anistia Política, e Mayara Nunes de Castro,
Arquivista da Comissão de Anistia. Algumas informações também
foram fornecidas pelo como do próprio Peter Ho Peng, que autorizou
a divulgação do estudo de seu caso.
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 473

questões: (a) quem era Peter Ho Peng e porque foi con-


siderado inimigo do regime ditatorial? (b) qual era a
condição jurídica deste indivíduo e como lhe foi desti-
tuída a cidadania? (c) quais foram os mecanismos utili-
zados pelo Estado para culminar na apatria e no que
consistiram os contramecanismos de reparação? (d)
existe possibilidade de repetição e o que fazer para que
isso não ocorra?

1. O inimigo criado: de intelectual a “subversivo”

O golpe de Estado de 31 de março de 1964 deu


início a um governo autoritário fundado na instauração
de um estado de exceção inspirado na doutrina da se-
gurança nacional. Essa doutrina traduz a ideia de ga-
rantia de uma segurança absoluta no enfrentamento de
uma guerra permanente e generalizada e, no caso bra-
sileiro, esse combate era contra um inimigo interno: o
dissidente político.5
Tratava-se de um regime que reafirmava for-
malmente os princípios democráticos e, ao mesmo
tempo, os violava mediante a edição de normas espe-
ciais, notadamente os Atos Institucionais (AI’s). O Po-
der Judiciário, principalmente através da ampliação da
competência da Justiça Militar para julgar crimes come-
tidos por civis contra a segurança interna (AI-2), cola-
borava com a institucionalização da repressão. O auge
desta foi com a adoção do AI-5, em 13 de dezembro de
1968, que autorizou o Presidente a suspender por dez
anos direitos políticos de qualquer cidadão e deixou de
garantir o habeas corpus nos casos de crimes políticos
contra a segurança nacional, a ordem econômica e soci-

5
MARTIN-CHENUT, Kathia. O sistema penal de exceção em face do
direito internacional dos direitos humanos. In: Desarquivando a
ditadura: memória e justiça no Brasil, volume I / Cecília MacDowell
Santos, Edson Teles, Janaína de Almeida Teles, organizadores. São
Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2009, pp. 224-249.
474 Ana Luiza Zago de Moraes

al e a economia popular. Paralelamente a isso, os agen-


tes públicos também atuavam à margem da lei quando
reputavam necessário ao combate dos “subversivos”.6
Durante esse período, que durou até 15 de mar-
ço de 1985, foi adotada uma posição isolacionista em
relação ao direito internacional dos direitos humanos,
com o pretexto de proteção à soberania nacional. Na
jurisprudência desse período, esta postura manteve-se
por meio de um provincianismo constitucional, isto é, o
afastamento de fontes e de influências do direito inter-
nacional e do direito estrangeiro.7 Além de isolacionis-
ta, a posição do Brasil era negacionista em relação à
existência de torturas, desaparecimentos forçados e
outros “crimes de estado”8, alegando o caráter demo-
crático do regime, o que era reforçado pela manipula-

6
Com o golpe de Estado de 1964, manteve-se a Constituição liberal de
1946 (art. 1º do AI-1). O primeiro foi editado em 9 de abril de 1964. Até
o final do regime, dezesseis outros Ais, acompanhados de uma
centena de atos complementares, sucederam-no. Com o AI-2, permitia-
se ao Presidente decretar o recesso do Congresso e demitir
funcionários civis e militares “incompatíveis com a revolução”, bem
como a justiça militar viu as competência ampliada para atingir o
julgamento de civis autores de crimes contra a segurança nacional,
inclusive contra a segurança interna” (MARTIN-CHENUT, Kathia. O
sistema penal de exceção em face do direito internacional dos direitos
humanos, p. 236).
7
Foi encontrado documento oficial do Exército, datado de 1974, que
propõe a denegação da existência de desaparecimentos forçados,
atribuindo a campanha dos desaparecidos, que ganhava dimensão
internacional, a uma estratégia de subversivos que desejavam atacar a
imagem do regime (FERNANDES, Pádua. Migração na ditadura
militar brasileira: desejados e indesejados perante a doutrina da
segurança nacional. In: America Latina y el Derecho Internacional –
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8 Defendendo a existência destes crimes, está Eugênio Raúl Zaffaroni

(Crímenes de massa. 1 Ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:


a

Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2010).

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 475

ção da informação através do controle dos meios de


comunicação e da propaganda oficial.
No que concerne às migrações, documentos se-
cretos mostram o cuidado com os migrantes de origem
do Extremo Oriente, com operações especiais da polícia
dirigidas contra essas comunidades, bem como a exis-
tência de trabalho de identificação de estrangeiros que
eram considerados indesejáveis para a segurança do
Estado brasileiro, principalmente para evitar a “infil-
tração comunista” e o “terrorismo”.9 Na esfera legal, o
Decreto-lei nº 941, de 13 de outubro de 1969, passou a
definir a “situação jurídica do estrangeiro” e preocu-
pou-se especificamente com o procedimento de expul-
são do estrangeiro nocivo à segurança nacional, ou seja,
o “subversivo” ou “dissidente político”.10
Da documentação constante no Arquivo Nacio-
nal, verifica-se que, nessa época, as agências policiais
investigavam a vida privada dos indivíduos, tinham
informantes em vários meios, dentre eles o universitá-
rio, e relatavam ao Serviço Nacional de Informações
(SNI) pormenores dos observados, de forma a descre-
ver qualquer indício de “subversão”. Havia uma ob-
sessão pela busca de panfletos, livros, jornais ou qual-
quer material “comunista”. Nesse período, houve uma
catalogação de movimentos sociais – inclusive “unica-
mente doutrinários” - e partidários inspirados na ideo-
logia comunista e na doutrina marxista-lenista, porque
visavam ao “extermínio do regime e das instituições em

9
BRASIL. Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Processo n o

2010.01.67125, p. 98.
10
Conclusões obtidas a partir de documentos sigilosos produzidos
pelo SNI, pelo Ministério do Exército e pela Polícia Federal,
pesquisados nos arquivos já abertos da ditadura militar, com o
objetivo de verificar que grupos étnicos de migrantes eram alvo
preferencial do sistema de vigilância e de informações (FERNANDES,
Pádua. Migração na ditadura militar brasileira: desejados e indesejados
perante a doutrina da segurança nacional, p. 2).
476 Ana Luiza Zago de Moraes

vigor no país”.11 Foram relatadas também operações de


desmantelamento e destruição destes grupos e necessi-
dade de fortalecimento das ações e de cada vez maior
troca de dados e informações pelos órgãos federais e
estaduais de segurança.12
A busca desenfreada pelos inimigos do regime,
inclusive os já “banidos do País”, que precisavam ser
neutralizados, era justificada pelo crescimento da
“campanha de intriga e difamação contra o Brasil e seu
Governo, com base nas supostas torturas e no rigoris-
mo do regime”. Essa campanha era classificada como
terrorismo contra o Estado que, segundo os relatórios,
era apoiado por países como Chile e Argélia, “em con-
sonância com a orientação de Cuba”.13 Por outro lado,
o desaparecimento de jovens estudantes e as torturas

11
Na perseguição das “ideias”, os dossiês concluíram quanto à
existência de movimentos subversivos de caráter unicamente
doutrinários, que “atuaram no Estado objetivando difundir o comunismo, e
atuando nos campos estudantil e operário, com relativa inexpressividade. (...)
eles buscam a participação na vida político-social do país, através da
contestação ao regime, às instituições, à maneira de viver brasileira e à
democracia. Uma vez iniciados os jovens nos princípios sócio-comunistas,
inclinam-se logo pela busca da prova de sua validade”. (Dossiê elaborado
pela Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, dirigido ao
Serviço Nacional de Informações. In: BRASIL. Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça. Processo n 2010.01.67125, pp. 99-115).
o

12
“A condução de operações de informações com mais técnica e eficiência, é
uma imposição para os órgãos de segurança, já que os movimentos
subversivos vêm se aperfeiçoando em todos os setores. É como se agentes de
espionagem atuassem em grupos – e para isto as forças de segurança estaduais
não estão preparadas”. Ainda: “o meio universitário foi e continua sendo o
maior celeiro para o recrutamento de militantes, apesar desta tarefa ter sido
muito prejudicada com as quedas e mortes de elementos do Comando Nacional
e dos que faziam a ligação com o comitê universitário (MINISTÉRIO DA
AERONÁUTICA – CISA – BRASÍLIA-DF. Informação n 215/CISA. o

Estudo sobre o desenvolvimento das atividades das organizações


subversivas massistas e militantes, durante o período de 1 de janeiro a
15 de maio do corrente ano - 17 de maio de 1973. In: Ibdem, p. 115).
13
Ibdem, p. 118.

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 477

eram sempre negadas e reputadas como falsas insinua-


ções14.
A catalogação não era apenas dos movimentos
sociais de esquerda, mas também dos inimigos do regi-
me, tendo sido localizado “quadro nominal de elementos
subversivos”. Nesse quadro, assim consta o n° 221:
“PETER HO PENG – org. Subversiva: PCdoB; estudan-
te; envolvido; detido em abril de 1970; sem inquérito
policial”. 15
Foi assim que foi criado mais um inimigo do es-
tado de exceção brasileiro, que, para ser neutralizado,
tornou-se apátrida, conforme será narrado a seguir.

2. De nacional a estrangeiro: da destituição da


cidadania ao banimento

Peter Ho Peng nasceu em 31 de janeiro de 1949


em Hong Kong, na época colônia do Império Britânico.
Adentrou no Brasil em 1950, aos dois anos de idade e,
pela Lei n 4404, de 14 de setembro de 1964, adquiriu a
o

nacionalidade brasileira por ser filho de estrangeiros já


naturalizados.16

14
A prisão de jovens, incialmente foi explorada politicamente pela
oposição, que sem nada mencionar, insinuou através de uma falsa
preocupação, que os nominados poderiam estar recolhidos em algum
órgão de segurança do governo brasileiro.” (SNI – Agência de Porto
Alegre, 22 de dezembro de 1975. In: Ibdem, p. 135.)
15
Informação no 215/CISA. In: BRASIL. Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça. Processo n 2010.01.67125, p. 131, grifo nosso.
o

16
Consta do dispositivo legal em referência: “Art. 1. O menor
estrangeiro residente no pais, filho de pais estrangeiros naturalizados
brasileiros e aqui domiciliados, é considerado brasileiro para todos os
efeitos. Art. 2. Atingida a maioridade, deverá o interessado, para conservar a
nacionalidade brasileira, optar por ela, dentro de quatro anos.”
478 Ana Luiza Zago de Moraes

Ingressou na Faculdade de Engenharia da Uni-


versidade Federal do Rio Grande do Sul17 e colou grau
em 1970. Nesse interregno, passou a atuar no movi-
mento estudantil, tendo sido eleito vice-presidente do
Centro de Estudantes Universitários de Engenharia
(CEUE). Na época, começou a ficar conhecido pelo seu
engajamento na “resistência democrática e na denúncia do
regime militar”.18 Conforme declarou Nelson Rolim de
Moura: “era um líder de esquerda, num momento em que o
movimento estudantil procurava recuperar a direção das
entidades estudantis universitárias”.19
Em pesquisa realizada junto ao Arquivo Nacio-
nal, mormente nos fundos SNI/CGI/CSN20, a pedido
da Comissão de Anistia, verificou-se que foi citado co-
mo “subversivo” em vários dossiês da época, relaciona-
do ao assunto “infiltração esquerdista em diretórios acadê-
micos da UFRS”.21 Foi mencionado como líder de reu-
niões de esquerda, motivo pelo qual seria imprescindí-
vel “neutralizar atração esquerdista” por ele e seus com-

17
No Histórico Escolar do anistiando na Escola de Engenharia, a sua
nacionalidade está registrada como “brasileiro naturalizado” (Ibdem,
p. 21).
18
Declaração de Raul Pont, Deputado Estadual no Rio Grande do Sul
(Ibdem, p. 78).
19
Ibdem, p. 79.
20
Tratam-se dos extintos Conselho de Segurança Nacional - CSN,
Comissão Geral de Investigações - CGI e Serviço Nacional de
Informações – SNI. Por determinação legal – Lei n 8.159, de 8 de
o

janeiro de 1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos


públicos e privados -, os documentos arquivísticos públicos
produzidos e recebidos por estes órgãos foram recolhidos ao Arquivo
Nacional. Nesse sentido, por exemplo, é o Decreto n 5.584, de 18 de
o

novembro de 2005, que determinou que a Agência Brasileira de


Inteligência – ABIN procedesse à entrega da documentação do
SNI/CGI/CSN que estivesse em seu poder.
21
BRASIL. Comissão de Anistia. Processo n 2010.01.67125, p. 95.
o

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 479

panheiros realizada.22 Em um dos dossiês, consta que o


movimento tendia a “alastrar-se a outras faculdades, pro-
piciando clima de agitação no meio estudantil daquela uni-
versidade”.23
Em janeiro de 1971, iniciou estudos preparató-
rios para o programa de pós-graduação em Engenharia
Química na Universidade Federal do Rio de Janeiro e,
na primeira semana de fevereiro, foi preso dentro do
ônibus do campus. Após, foi levado para o DOI-
CODI24, onde, segundo seu próprio relato, foi espanca-
do e submetido a diversos tipos de torturas, “inclusive
choques nos testículos e no ânus, enquanto estava encapuza-
do pendurado em pau-de-arara”.25 Mencionou ter perma-
necido incomunicável por 60 dias e, após, foi enviado
para o DOPS de Porto Alegre.26 Por fim, no final de
julho de 1971, foi transferido para o Presídio Central do
Município onde ficou alojado com criminosos comuns
até meados de setembro.27
Já no ano de 1972, foi alvo de novas investiga-
ções após ter sido encontrada “documentação de cunho
subversivo encontrada num aparelho, no centro da cidade de
Porto Alegre/RS”.28 Nessa época, foi qualificado como

22
Mensagem enviada via TELEX pelo Major Atila, Diretor
DCI/SSP/RS, Transmitido por JM em 24 de abril de 1970 (Ibdem, p.
175).
23
Ibdem, p. 95.
24
O Destacamento de Operações de Informações - Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi um órgão subordinado
ao Exército, de inteligência e repressão, destinado a combater inimigos
internos que supostamente ameaçariam a segurança nacional.
25
Petição de Peter Ho Peng (Ibdem, p. 03).
26
Os Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS) eram órgãos
estaduais que tinham o objetivo de controlar e reprimir movimentos
políticos e sociais contrários ao regime no poder.
27
Ofício do Delegado Regional do DPF/DR/RS ao Diretor do Presídio
Central de Porto Alegre, datado de 20 de julho de 1971 (Ibdem, p. 16).
Ministério das Minas e Energia – Divisão de Segurança e Informações
28

– Encaminhamento n 3/936/71. In: Ibdem, p. 124.


o
480 Ana Luiza Zago de Moraes

“líder estudantil de esquerda, mantinha ligações com o PC


do B”.29
Foi preso novamente em fevereiro de 1973 e
conduzido para o DOPS, onde foi interrogado sob tor-
tura. No relatório do próprio órgão, consta que prestou
depoimento entre o dia 8, das 12h30min às 18h, e o dia
9 do referido mês.30 Na qualificação do interrogatório
já constava “bras. Naturalizado, digo (apátrida)”, mas,
na inquirição, ficou registrada a afirmação de que “sa-
be que aqui é seu local, pois é Brasileiro por direito
adquirido constitucionalmente e tem orgulho dis-
so”31, bem como que, se fosse expulso do país, seria
uma “pena para o depoente, que aqui deixará as raízes, o
pensamento; e, para o País também”.32
Em razão das declarações realizadas sob tortura,
no âmbito do Inquérito Policial n° 3/1973, foi promo-
vida denúncia à Justiça Militar pelo incurso nos artigos
14 e 15 da Lei de Segurança Nacional, sob a acusação
de que ele e outros denunciados eram membros do
Partido Comunista do Brasil e mantinham local onde
distribuíam material de propaganda subversiva, vi-
sando ao aliciamento de novos adeptos.33 Dessa forma,

29
Ibdem, p. 98.
30
Estado do Rio Grande do Sul – Secretaria de Segurança Pública –
Delegacia de DOPS/RS – termo de declarações – 8 de fevereiro de 1973
– inquirição de Peter Ho Peng (In: BRASIL. Comissão de Anistia.
Processo n 2010.01.67125, pp. 195-211).
o

31
Ibdem, p. 200.
32
Impende citar outras declarações do interrogando: “o tempo
comprovará; que só o tempo é um Juiz correto, o depoente não teme o
julgamento da história, o julgamento dos nossos filhos e dos filhos dos nossos
filhos, “ad eternum”; que o depoente tem a consciência tranquila, pois só o
julgamento dos homens do século XXI deve procurar os homens conscientes
do século XX e, há poucos que diante da realidade nua e crua têm consciência
de sua responsabilidade de participar do processo de construção nacional, do
processo de criação de uma cultura nacional; crê ainda que uma sociedade
neurótica está fadada a se autoconsumir” (Ibdem, pp. 201-202).
33
Relatório do DOPS/RS do Inquérito Policial n 3/73 sobre o PC do B,
o

enviado ao SNI, endereçado ao Juiz Auditor, bem como conforme

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 481

a perseguição política, além de judicializada, foi fun-


damentada por lei editada pelo governo ditatorial. 34
Antes mesmo da denúncia, foi instaurado, pe-
rante o Ministério da Justiça, o Inquérito de Expulsão
nº 10.106-71, também com fundamento legal – art. 106
do Decreto n 66689, de 11 de junho de 197035 -, sob a
o

alegação da participação em “atividades subversivas”,


que motivou a ordem de prisão administrativa expedi-
da pelo então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid36.
Após defesa pessoal e por seu advogado constituído37 -
que alegou a inexistência de provas da “subversão”,
bem como a presença de manifestação inequívoca no
sentido de optar pela nacionalidade brasileira, sendo
que, assim que fosse liberado, iria formalizar tal mani-

Certidão emitida pelo Superior Tribunal Militar (STM), que registra a


existência do referido Inquérito Policial, a prisão e o arquivamento do
inquérito. Consta na Certidão: “indiciado em 09/03/1973 , por
infração aos arts. 14 e 43, do Decreto-lei n. 898/69. Arquivamento –
pelo juízo militar” (Ibdem, pp. 212-216 e p. 655).
Trata-se a Lei de Segurança Nacional do Decreto-Lei no 898, de 29 de
34

setembro de 1969, que define os crimes contra a segurança nacional, a


ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento. O art. 14
da lei em referência prevê a criminalizacao dos membros de associação
de qualquer titulo, que, com o auxílio de governo estrangeiro ou
organização internacional, exerça atividades prejudiciais ou perigosas
à Segurança Nacional. Já o art. 15 prevê a manutenção, em território
nacional, de serviço de espionagem em proveito de país estrangeiro ou
de organização subversiva.
35
O Decreto em referência regulamentava, na época, a situação dos
estrangeiros no Brasil, prevendo, quanto à expulsão, hipóteses muito
amplas, exemplificativamente: “Art. 100. É passivel de expulsão o
estrangeiro que, por qualquer fôrma, atentar contra a segurança nacional, a
ordem política ou social, a tranquilidade ou a moralidade pública e a economia
popular, ou cujo procedimento o torne nocivo ou perigoso à conveniência e aos
interêsses nacionais.”
36
BRASIL. Comissão de Anistia. Processo n 2010.01.67125, p. 281.
o

37
Cuida-se do advogado criminalista Osvaldo de Lia Pires, que, em
sua defesa, fez constar: “não há de ser o fato de ter consigo livros e artigos
considerados contrários ao regime brasileiro que o irá condenar. A posse de tal
material não é crime a conveniência de conhecê-lo para melhor refutar as suas
assertivas e conclusões constitui medida de todo útil” (Inquérito de
Expulsão nº 10.106-71, In: Ibdem, p. 427).
482 Ana Luiza Zago de Moraes

festação -, bem como depois da oitiva de testemu-


nhas38, foi autorizado o relaxamento da prisão39. Por
fim, o Inquérito de Expulsão foi arquivado, em 9 de
fevereiro de 1973, sob o fundamento de que nada foi
apurado com relação às atividades politicas do estran-
geiro.40
Ao ser libertado, mesmo após o arquivamento
do Inquérito, foi conduzido para a Delegacia de Es-
trangeiros, onde teve sua cédula de identidade subtra-
ída e substituída por uma carteira “modelo 19”, que era
destinada a estrangeiros. Então, sem “processo” ou
fundamento “legal”41, houve a “a cassação pura e sim-
ples da cidadania brasileira”.42 Em razão disso, obteve
um passaporte britânico, uma vez que Hong Kong era
colônia do Reino Unido quando nasceu, com o qual
viajou para os Estados Unidos, deixando sua família no
Brasil. No visto de saída, datado de 05 de julho de 1973,
consta “ESTE VISTO NÃO DÁ DIREITO DE
RETORNO AO BRASIL”.43

38
O advogado pediu para ouvir a garçonete que pegou o “material
subversivo” que Peter deixou em um bar e culminou na sua prisão. Na
oitiva, esta referiu que encontrou cartão com figuras de homens com
um pedaço de pau na mão com um dialogo escrito “ABAIXO À
DITADURA”, “ABAIXO ÀS TORTURAS”, “LIBERDADE PARA OS
PRESOS” e outras expressões (Ibdem, p. 400).
39
Ibdem, p. 318.
40
Ibdem, p. 476.
41
A única documentação oficial que demonstra esse ato aquém de
qualquer processo ou fundamento em lei, foi um “telex” da delegacia
de polícia, dirigido ao Departamento de Estrangeiros, em que consta:
“CONSULTO SE HÁ IMPEDIMENTO PARA QUE PETER HO PENG
DEIXE O PAIS VG CONSIDERANDO DATA 02 DO CORRENTE
MESMO SOL VISTO DAIDA VISANDO RADICAR-SE
DEFINITIVAMENTE EEUU”. Em resposta, o Ministro da Justiça nada
opôs (Ibdem, pp. 484-485).
42
Declaraçoes da carta de Peter Ho Peng dirigida à Comissão de
Anistia (Ibdem, p. 10).
43
Ibdem, p. 09.
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 483

3. A reparação e a reconstrução da memória e da


verdade: análise do processo nº 2010.01.67125
perante a Comissão da Anistia

Após tentar, por vários meios44, a recuperação


da nacionalidade brasileira, Peter Ho Peng recorreu,
através do Movimento Justiça e Direitos Humanos, à
Comissão de Anistia45, tendo sido autuado, em 05 de
abril de 2010, o Requerimento de Anistia nº
2010.01.6712.
Postulou, além da reparação econômica de cará-
ter indenizatório em prestação mensal, permanente e
continuada nos termos da Lei n° 10.559, de 13 de no-
vembro de 2002, o ressarcimento da cidadania brasilei-
ra, das contribuições trabalhistas, da carteira de traba-
lho e reconhecimento da sociedade brasileira dos cri-
mes praticados pelo governo militar contra sua pessoa
e seus familiares.
O processo foi amplamente instruído com do-
cumentos oriundos do Arquivo Nacional, do Departa-
mento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, do
banco de dados da Justiça Militar, além de depoimen-
tos e documentos trazidos pelo anistiando. Posterior-
mente, o foi colocado na pauta da 4 Sessão de Turmaa

da Caravana da Comissão de Anistia,46 realizada em Porto

44
Os meios serão analisados no próximo tópico.
45
Criada em 2001 por Medida Provisória, posteriormente convertida
na Lei n 10.559, de 13 de novembro de 2002, regulamentando o art. 8º
o

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.


46
As Caravanas da Anistia têm retirado o processo de reparação aos
perseguidos políticos de dentro do Palácio da Justiça, em Brasília,
levando-as para os locais onde as violações ocorreram, desnudando,
assim, a verdade e resgatando as memórias de cada localidade
(CARDOZO, José Eduardo; ABRÃO, Paulo. O guardião da memória:
as políticas públicas de memória do Ministério da Justiça no Brasil. pp.
10-20. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da
Justiça. – N. 6 (jul. / dez. 2011). – Brasília : Ministério da Justiça, 2012,
p. 16).
484 Ana Luiza Zago de Moraes

Alegre, no dia 13 de abril de 2012, ocasião em que foi


possibilitado o testemunho pessoal dos fatos narrados,
dando voz à vítima.47
O voto do Conselheiro Relator, Rodrigo Gon-
çalves dos Santos, foi favorável à concessão de anistia,
no qual foi acompanhado pelos demais Conselheiros.48
Assim, comprovada a perseguição política, o pedido
foi deferido para: (a) concessão da declaração de anisti-
ado político, oficializando, em nome do estado brasilei-
ro o pedido de desculpa ao anistiado pelos erros come-
tidos no passado; (b) reconhecimento da nacionalidade
brasileira, a fim de que possa gozar dos direitos outor-
gados pela Constituição Federal e pelas leis do Brasil;
(c) reparação econômica em prestação mensal, perma-
nente e continuada, no valor de R$ 3.309,00, corres-
pondente à projeção dos valores que recebia como En-
genheiro Químico na época; (d) contagem de tempo
para todos efeitos, a contar de 5 de julho de 1973 a 5 de
outubro de 1988, cabendo ao INSS a verificação do lap-
so temporal; (e) retroatividade quinquenal da prestação
mensal, considerada a data de protocolo do pedido de
anistia.
Em seguida, foi publicada Portaria pelo Secretá-
rio Nacional de Justiça, formalizando o reconhecimento
da nacionalidade brasileira49, foi realizada audiência

47
Sobre a importância do testemunho: SELIGMANN-SILVA, Márcio.
Narrar o trauma. A questão dos testemunhos de catástrofes históricas.
In: UMBACH, Rosani Ketzer (org.). Memórias da repressão. Santa Maria:
UFSM, PPGL, 2008. pp. 73-92.
48
Voto e ata de julgamento da 4 Sessão de Turma da Caravana da
a

Comissão de Anistia, realizada no dia 13 de abril de 2012, na cidade de


Porto Alegre/RS, presidida pelo Presidente da Comissão, Paulo Abrão
Pires Junior, também Secretário Nacional de Justiça (BRASIL.
Comissão de Anistia. Processo no 2010.01.67125, pp. 670-681).
49
“O Secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, no uso da
competência atribuída por meio da Portaria n. 1.008, de 19 de junho de 2012,
alterada pela Portaria n. 1.136, de 11 de julho de 2012, resolve: Reconhecer a
nacionalidade brasileira, em razão dos fatos narrados e comprovados nos autos
do Processo n. 08802.004924/2010-31, de PETER HO PENG, natural de

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 485

especial de entrega de Certificado de nacionalidade.


Por fim, depois do arquivamento do processo, os autos
foram encaminhados à Divisão do Arquivo da Comis-
são de Anistia.50
O tópico relativo à naturalização, antes do jul-
gamento pela Comissão de Anistia – que foi ratificador
nesse aspecto, uma vez que não há previsão, na Lei n o

10.559/2002, desta atribuição, que é do Ministro da


Justiça51 -, foi submetido à apreciação do Departamen-
to de Estrangeiros que, inicialmente, opinou pelo inde-
ferimento do pedido devido à ausência de prova do-
cumental da confirmação da nacionalidade52. Depois
de nova provocação da Comissão, justificando que Pe-
ter apenas não confirmou a nacionalidade até 1974 por
ter sido perseguido e preso, houve reavaliação, enten-
dendo que a opção pela nacionalidade brasileira foi
feita no próprio interrogatório realizado no DOPS/RS,
bem como que, no caso, “circunstâncias fáticas exorbi-
tam quaisquer previsões legais, qual seja a prisão e
perseguição política, sobejamente demonstrados nos
autos, mormente em face da documentação provenien-
te do Arquivo Nacional”53. Dessa forma, entendeu-se
não ser razoável e proporcional exigir-se os trâmites

Hong Kong,(...) a fim de que possa gozar dos direitos outorgados pela
Constituição Federal e pelas Leis do Brasil” (Portaria n. 95, de 23 de agosto
de 2012, Publicada no D.O.U de 04 de setembro de 2012, In: BRASIL.
Comissão de Anistia. Processo n 2010.01.67125, p. 682).
o

50
Ato de 10 de janeiro de 2013 (Ibdem, p. 694).
51
Lei n 6815, de 19 de agosto de 1980 (Estatuto do Estrangeiro), art.
o

111, verbis: “A concessão da naturalização nos casos previstos no artigo 145,


item II, alínea b, da Constituição, é faculdade exclusiva do Poder Executivo e
far-se-á mediante portaria do Ministro da Justiça”.
52
Parecer do Chefe da Divisão MJ/SNS/Dest/DIEP, aos 12 de
dezembro de 2011, bem como manifestação “de acordo” da Chefe do
Departamento de Estrangeiros, Izaura Maria Soares Miranda –
Diretora (Ibdem, p. 607).
53
Nesse tópico, o requisito consubstanciado na Constituição de 1967,
com Emenda n. 1 de 1969, era apenas da confirmação da nacionalidade
brasileira, sem ditar rito específico.
486 Ana Luiza Zago de Moraes

determinados pela norma infranconstitucional em vi-


gor na época, mormente ante à manifestação inequívo-
ca da intenção de permanecer nacional brasileiro no
interrogatório, deferindo, portanto, a restituição da
cidadania brasileira.

4. Perspectivas de um futuro sem inimigos,


banidos ou apátridas: estrangeiros no Brasil atual

Após deixar o Brasil com o registro de que o vis-


to não dava direito a retornar ao país, Peter Ho Peng,
cujo passaporte britânico de Hong Kong não autoriza-
va a viver e trabalhar no Reino Unido, ficou apátrida.
Trabalhou nos Estados Unidos com visto temporário
até conseguir o visto permanente somente em 1983.54
Assim, ficou no exílio, sem condições de retor-
nar ao Brasil, até meados de 1980, quando visitou o
Brasil pela primeira vez desde que saiu do país. Aliás,
como estrangeiro, a primeira Lei de Anistia não con-
templava sua situação. Após, durante o período de
2004 a 2009 tentou, através de contatos com políticos do
Rio Grande do Sul, obter algum subsídio de como fazer
para recuperar sua cidadania brasileira, mas não con-
seguiu pois, como ainda era “estrangeiro”, formava-se
um círculo vicioso.55
Em razão da impossibilidade de recuperar a na-
cionalidade, passou a tentar visto de permanência sob
o fundamento de ter cônjuge brasileira, mas deparou-
se com inúmeras exigências, muitas vezes contraditó-
rias, como a “comprovação de que seus genitores são
brasileiros”, culminando no indeferimento do pedido.
Outra questão foi a intimação para cumprir diligências

54
Nas palavras de Peter Ho Peng, “um brasileiro que jamais poderia
retornar ao Brasil” (In: BRASIL. Comissão de Anistia. Processo n o

2010.01.67125, p. 09).
55
Ibdem, p. 09.
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 487

através do Diário Oficial da União, ao invés da notifi-


cação por carta com aviso de recebimento. Diante de
tamanha burocracia, acabou tendo seu visto de perma-
nência negado. 56
A situação estudada pós-democracia, evidencia
que, em relação aos estrangeiros, a legislação e o trata-
mento não mudou muito em relação ao período da di-
tadura civil-militar. Aliás, a própria Lei n 6815, de 19 o

de agosto de 1980 (Estatuto do Estrangeiro), foi editada


durante o período ditatorial, sem ter sido reformulada
com base na normas internacionais de proteção dos
direitos humanos.
Exemplo disso é o Inquérito Policial de Expul-
são (IPE), procedimento administrativo que tem por
objetivo verificar se um estrangeiro pode ou não ser
expulso do Brasil não sofreu grandes alterações.57 A
56
A exigência da comprovação dos genitores brasileiros: “A fim de dar
prosseguimento ao processo de permanência definitiva, deverá enviar
comprovação de que os pais do requerente são brasileiros” (BRASIL.
Comissão de Anistia. Processo no 2010.01.67125, p. 546); pelo não
cumprimento das exigências proponho o indeferimento do pedido”
(Ibdem, p. 553). Posteriormente, quando novo pedido foi deferido:
“Ocorre que o requerente deveria acompanhar no DOU a publicação do
deferimento do seu pedido, para as providências necessárias quanto ao seu
registro, notadamente o cumprimento do prazo legalmente estabelecido.
Infelizmente não pôde cumprir o prazo”. Quando pediu republicação: “em
27 de fevereiro de 2008, recebeu correspondência do Ministério da Justiça,
solicitando o envio de documento que comprovasse que seus pais tinham
nacionalidade brasileira, ou seja, pedido totalmente desvinculado do protocolo
inicial, uma vez que o fez por ser casado com uma cidadã brasileira” (Ibdem,
p. 556); “também aparecem solicitações de documentos já apresentados. As
exigência feitas através de correspondência do MJ não são as mesmas que
aparecem em seu site” (Ibdem, pp. 491-589).
57
A evidência de que o tratamento dos estrangeiros não foi alterada
substancialmente desde a ditadura civil-militar até a atualidade será
analisada, neste artigo, a partir do instituto da expulsão. Ocorre que a
deportação, a transferência e a própria permanência também
demonstram tratamento autoritário por parte do Estado brasileiro,
conforme analisado no artigo “Assistência transdisciplinar aos presos
estrangeiros: uma abordagem prática com base na experiência da
Defensoria Pública da União em São Paulo”. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais. N. 101. Mar. 2013 (no prelo).
488 Ana Luiza Zago de Moraes

expulsão, uma das hipóteses de retirada compulsória


do estrangeiro do território nacional, prevista no art. 65
do Estatuto do Estrangeiro ainda é destinada àquele
que “de qualquer forma, atentar contra a segurança nacio-
nal, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade
pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne
nocivo à conveniência e aos interesses nacionais”.
A regulamentação legal da expulsão, portanto,
ainda viola o princípio da legalidade, devido à sua
amplitude, que não permite antever quais condutas são
passíveis de gerar tal medida administrativa.58 Na prá-
tica, o que ocorre é a abertura de IPE em face dos es-
trangeiros condenados pela prática de crimes, por de-
terminação do Ministro da Justiça, que recebe do Mi-
nistério Público cópia da sentença condenatória não
transitada em julgado59, iniciando o trâmite do proce-
dimento na Delegacia de Polícia Federal que tenha
atribuição territorial no domicílio do expulsando.
Instaurado o inquérito mediante Portaria, o ex-
pulsando é intimado com antecedência mínima de dois
dias úteis para ser interrogado, podendo constituir ad-
vogado para acompanhar o interrogatório ou ser
acompanhado da Defensoria Pública da União. A im-
portância do interrogatório consiste quase que basica-
mente na possibilidade de alegar e provar, seja docu-
mentalmente, seja mediante o fornecimento de nomes e
endereços, as causas impeditivas da expulsão, previs-
tas no art. 75, II, do Estatuto do Estrangeiro: cônjuge
brasileiro, desde que o casamento tenha sido celebrado
há mais de cinco anos e não haja separação de fato;
filho brasileiro sob guarda e dependência econômica,

58
DORINI, João Paulo de Campos. Considerações sobre a expulsão.
Revista da Defensoria Pública da União, Defensoria Pública da União. N.
1 (jan./jun. 2009), pp. 42-61. Brasília: DPU, 2009, p. 42.
59
Conforme previsão do Decreto n◦ 86.715, de 10 de dezembro de
1981, que regulamenta o Estatuto do Estrangeiro e discrimina o
procedimento do Inquérito de Expulsão.

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 489

desde que tenha sido registrado antes do fato que mo-


tivou a expulsão. Não há margem para discutir se o
estrangeiro é refugiado, está há muitos anos no Brasil
ou não possui mais qualquer vínculo com seu país de
origem.
Além disso, a exigência dos cinco anos de casa-
mento vai de encontro à proteção da família prevista
no art. 226 do texto constitucional. Da mesma forma,
no prazo destinado à defesa técnica deve ser suscitada
a inconstitucionalidade da exigência do nascimento do
filho antes do ato criminoso, bem como da necessidade
de comprovar dependência econômica, uma vez que
tais requisitos vão de encontro aos princípios da prio-
ridade absoluta, da proteção integral e do reconheci-
mento da peculiar condição de pessoa em desenvolvi-
mento (arts. 226 e 227 da Constituição, combinados
com os arts. 1º, 4º e 6º da Lei n◦ 8.069, de 13 de julho de
1990).60
Após a apresentação de defesa técnica pelo ad-
vogado constituído ou por Defensor Público Federal, o
inquérito será relatado e remetido à Divisão de Medi-
das Compulsórias do Ministério da Justiça, ocasião em
que será analisada, motivadamente, a conveniência e
oportunidade da medida61. Se determinada, o será por
Decreto de Expulsão, de competência do Presidente da

60
DORINI, João Paulo de Campos, Considerações sobre a expulsão, p. 54.
61
A motivação dos atos administrativos é determinação constitucional
(art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil) e também
se aplica ao ato expulsório, que deve obedecer aos princípios
constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência, e é passível de controle jurisdicional no que se
refere à obediência a esses princípios, principalmente ao da legalidade.
Exemplo disso é a inobservância de uma das causas da
inexpulsabilidade previstas em lei, que pode ensejar a declaração
judicial da nulidade do Decreto de Expulsão. Logo, apesar de não
caber ao Poder Judiciário analisar a conveniência e oportunidade do
ato, incumbe a este o controle de legalidade em sentido amplo (que
abrange a constitucionalidade), o que, na prática, também não ocorre.
490 Ana Luiza Zago de Moraes

República (art. 66 do Estatuto do Estrangeiro)62, sem


fundamentação63, em face do qual cabe pedido de re-
consideração, no prazo de dez dias a contar da publica-
ção no Diário Oficial da União, não havendo sequer
previsão da intimação pessoal do expulsando.
Não bastasse isso, há previsão, no art. 69 do Es-
tatuto do Estrangeiro, da decretação da prisão, pelo
Ministro da Justiça, por noventa dias, para conclusão
do Inquérito de Expulsão ou assegurar a execução da
medida, podendo ser prorrogada por igual prazo. Tra-
ta-se, no entanto, de prisão revogada pela Constituição
da República Federativa do Brasil, que não admite pri-
são administrativa, inclusive a prisão para fins de ex-
pulsão, mesmo que decretada por juiz, uma vez que a
judicialização não descaracteriza a natureza da prisão,
já que derivada de um procedimento administrativo, e
não para fins de cautelaridade penal.64
A tese da inconstitucionalidade da prisão para
fins de expulsão não prevaleceu nos tribunais pátrios,
que entendem que, com a Constituição de 1988, o que
houve foi a destituição da competência do Ministro da
Justiça, com a atribuição exclusiva do Poder Judiciário

62
Houve delegação ao Ministro da Justiça pelo Decreto n◦ 3.447, de
2000.
63
“Assinala Politis que, no plano do direito das gentes, o ato expulsivo deve
obedecer a motivos sérios, em correspondência com uma verdadeira
necessidade, isento de um rigor inútil, não bastando, como acrescenta Pontes
de Miranda, para servir-lhe de fundamento, meras presunções, tampouco
opinião pessoal das autoridades” (CAHALI, Yussef Said. Estatuto do
Estrangeiro. 2 Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 196). Nesse
sentido também já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: HC
212.454/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO,
PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/09/2011, DJe 26/10/2011.
64
Nessa linha, já ementou o Tribunal Regional Federal da Terceira
Região: HC 200103000077175, DESEMBARGADORA FEDERAL
SYLVIA STEINER, SEGUNDA TURMA, DJU DATA:22/08/2001
PÁGINA: 397.

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 491

para decretá-la.65 Dessa forma, mesmo que não haja


pena de natureza criminal a cumprir, o expulsando
pode ser mantido preso devido à “judicialização” da
prisão administrativa.
A expulsão é o ato mais gravoso em face do es-
trangeiro, uma vez que, caso retorne ao Brasil, comete-
rá o crime de reingresso de estrangeiro expulso (art.
338 do Código Penal). Aliás, uma vez expulso, não há
possibilidade de obter visto de permanência de qual-
quer espécie, conforme muitas vezes decidido pelo De-
partamento de Estrangeiros, sob o fundamento da ine-
xistência de previsão legal nestes sentido.
Assim, caso um refugiado, alguém que resida
sua vida inteira no país e ainda não tenha obtido natu-
ralização, ou viva em regiões de fronteira, como Santa-
na do Livramento, Foz do Iguaçu e Corumbá, mesmo
assim, caso expulso, não poderá mais retornar ao Bra-
sil. Nesses caso, torna-se claramente apátrida: o refugi-
ado, por não poder mais retornar ao país de origem;
aquele que está há muitos anos fora de sua terra natal,
por não ter mais vínculos afetivos; o fronteiriço, porque
sua vida está estruturada entre os dois países, sem ter
sido exigida sua naturalização para circular livremen-
te66.
Uma vez expulso, nos casos acima, torna-se o
estrangeiro um “homem sem Estado”, um “fora da lei”.
Dessa forma, há necessidade de editar uma lei eficaz
para aqueles que haviam perdido a proteção do gover-
no nacional originário, e não simplesmente transferir o

65
Exemplificativamente: Superior Tribunal de Justiça, HC
134.195/DF, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira
Seção, julgado em 24 de junho de 2006, DJe 03/08/2009.
66
Nesse tópico, exemplificativamente, o Decreto n° 5.105, de 14 de
junho de 2004, promulgou o Acordo entre o Governo da República
Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai
para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais
Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios.
492 Ana Luiza Zago de Moraes

problema para a polícia.67 Com esta última solução,


retorna-se novamente à perseguição do inimigo como
“vida nua”, uma vez que o Estado apenas perseguirá o
indivíduo, que não poderá mais obter a cidadania bra-
sileira e, se encontrado pelas autoridades estatais, po-
derá ser novamente preso pelo crime de reingresso de
estrangeiro expulso.68

Considerações finais

O caso estudado demonstrou a perseguição po-


lítica de Peter Ho Peng no período da ditadura, que
culminou, inicialmente, na sua prisão e tortura. Evi-
denciou que este adquiriu a nacionalidade brasileira
pelas leis da época, mas, a despeito disso, foi submeti-
do a Inquérito de Expulsão e, mesmo arquivado, foi
forçado a entregar seus documentos brasileiros e a dei-

67
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; PEREIRA, Gustavo Oliveira
de Lima. Direitos humanos, dignidade da pessoa humana e a questão
dos apátridas: da identidade à diferença. In: Direito & Justiça, Porto
Alegre, v. 34, n. 2, p. 67-81, jul./dez. 2008 Disponível em: <
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fadir/article/view
File/5170/3794 > Acesso em: 18 de fevereiro de 2013.
Nua”, no sintagma “vida nua”, corresponde ao termo haplôs, ou seja,
68

o ser puro, remetendo-se ao pensamento de Aristóteles que distingue as


múltiplas formas de ser. O significado político do ser puro, para
Agamben, exprime a sujeição ao poder político dessa forma de vida,
ou seja, não da forma de vida qualificada pela cidadania em sentido
substancial, do indivíduo dotado de direitos protegidos
constitucionalmente, bem como por tratados internacionais
(AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, pp. 187-188). Esse termo possui
influência de Hannah Arendt e de trabalho sobre vida desqualificada –
cujo refugiado é o exemplo paradigmático – em contraposição à
existência política (ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad.
Roberto Raposo. 10 Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.
15).

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 493

xar o Brasil, sem direito a retorno, tornando-se apátri-


da.
A apatria perdurou até o julgamento pela Co-
missão de Anistia, que também concedeu reparação
econômica, esclareceu a verdade dos fatos – inclusive
mediante acesso a documentos antes sigilosos, mas
agora disponíveis no Arquivo Nacional-, resgatou a
memória, deu voz à vítima e formulou pedido de des-
culpas pelas atrocidades perpetradas, no próprio local
onde ocorreram, via Caravana da Anistia. Assim, foi
além de seu papel na justiça de transição para provocar
o próprio Ministério da Justiça a reapreciar os fatos do
passado e, com isso, constatar que a destituição da ci-
dadania não tinha qualquer fundamento legal sequer
nas normas do regime ditatorial, tratando-se, pois, do
estado de exceção como liminaridade do sistema, indis-
tinção entre lei e anomia.
Até a decisão, tentou permanência como estran-
geiro – com base na reunião familiar -, mas não conse-
guiu em razão de inúmeras exigências impossíveis de
cumprir, bem como da ausência de intimação pessoal
para satisfazê-las. Daí porque a impossibilidade de
retornar ao Brasil perdurou após o advento do regime
democrático, evidenciando que, para o estrangeiro,
com a vigência da mesma lei desde a 1980, o tratamen-
to não evoluiu ao ritmo da proteção internacional dos
direitos humanos.
Nesse sentido, aliás, ainda existem casos de apa-
tria na atualidade, como o exemplo dos indivíduos ex-
pulsos do país por não possuírem cônjuge ou familiar
brasileiros, mas que não podem retornar ao Estado de
origem. Tal conclusão auxilia na desconstrução do
dualismo “ditadura-democracia”, bem como culmina
na necessidade de questionar: como construir um futu-
ro sem inimigos, banidos ou apátridas?
Um ponto de partida é começar a tratar os imi-
grantes como trabalhadores e, com isso, evocando os
direitos humanos – em particular, os direitos sociais,
políticos e culturais -, de forma a desconstruir o rótulo
494 Ana Luiza Zago de Moraes

de “outro”, mormente porque o fenômeno migratório


deve-se, sobretudo, à busca de trabalho e de vida dig-
na.69 Dessa forma, é necessária a atribuição da questão
migratória a um órgão político, para que deixe de ser
“caso de polícia”. A exclusão de “penas perpétuas”
como a expulsão também urge, além da criação de ou-
tras causas de inexpulsabilidade, e desburocratização é
igualmente uma prioridade de luta, com destaque para
a celeridade dos procedimentos, a intimação pessoal e
a supressão de onerosas taxas e multas que pesam so-
bre os migrantes.70
Outra necessidade imperiosa é a revogação do
Estatuto do Estrangeiro, legado do regime civil-militar
e consagração máxima do paradigma da segurança
nacional. Como visto, a lei vigente garante ao Estado a
possibilidade de discriminar, punir ou ejetar, de distin-
tas formas, inclusive a expulsão, qualquer estrangeiro
que o Poder Executivo considerar como uma ameaça,
culminando, inclusive, na apatria. Tal lei deve ser re-
vogada por outra que adote medidas para regular os

69
Em razão disso, “migrar é um direito humano fundamental”
(VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Estatuto do estrangeiro ou lei de
imigração? In: Le Monde Diplomatique Brasil. Ago. 2010. Disponível em:
< http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=744>. Acesso em:
19 de março de 2013).
70
VENTURA, Deisy; ILLES, Paulo. Estatuto do estrangeiro ou lei de
imigração? tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº
5.655/09, apresentado pelo Ministério da Justiça (MJ), que, uma vez
aprovado, revogará o atual Estatuto do Estrangeiro. Da análise destes
dois projetos emergem, porém, ao menos dois graves problemas. Em
primeiro lugar, sua incoerência: o PL nº 5.655/09 não é a tradução
jurídica da Política Nacional de Imigração, a começar pelo fato de que
o MJ insiste em editar uma nova lei do “estrangeiro”, enquanto o CNI
visa o “trabalhador migrante”. Em segundo lugar, ainda que contenha
alguns avanços, como a supressão da referência à “segurança nacio-
nal”, impressionam tanto o viés burocrático como o ranço autoritário
do PL nº 5.655/09.

 
O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 495

fluxos migratórios de forma a proteger os direitos hu-


manos dos migrantes, especialmente em razão de prá-
ticas abusivas advindas de sua situação migratória ir-
regular, inclusive para reafirmar a própria democracia.

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O caso Peter Ho Peng na Comissão de Anistia 497

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Crímenes de masa. 1 Ed. Ciu- a

dad Autónoma de Buenos Aires: Ediciones Madres de


Plaza de Mayo, 2010.
Responsabilização civil-
administrativa dos agentes
públicos na ditadura militar

Diego  Oliveira  Murça1  


Janaína  Santos  Curi2  
Lucas  Costa  de  Oliveira3  

Resumo: O presente artigo visa estudar a possibilidade


da responsabilização civil-administrativa dos agentes
públicos por crimes cometidos durante o regime mili-
tar, entre 1964 e 1985. Para atingir este fim, realiza-se
uma análise das ações civis públicas propostas pelo
Ministério Público Federal da 3º região, bem como da
Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, do ordenamento jurídico brasileiro e do Direito
Internacional.
Palavras-chave: Agentes públicos. Responsabilização
civil-administrativa. Ditadura Militar.

Abstract: This paper aims to study the possibility of


holding public officials accountable, civilly and admin-
istratively, for crimes committed during the military

1
Aluno do 5º período de Direito da Universidade Federal de Ouro
Preto. Membro do grupo de estudos de Justiça de Transição.
2
Aluna do 4º período de Direito da Universidade Federal de Ouro
Preto. Membro do grupo de estudos de Justiça de Transição.
3
Aluno do 7º período de Direito da Universidade Federal de Ouro
Preto. Membro do grupo de estudos de Justiça de Transição.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 499

regime between 1964 and 1985. To this end, public civil


actions proposed by Federal Prosecutors of the 3rd re-
gion are analyzed, as well as the 1998 Constitution of
the Federative Republic of Brazil, the Brazilian legal
system and International Law.
Keywords: Public agents. Civil and administrative ac-
countability. Military Dictatorship.

1. Introdução

O presente trabalho busca expor o andamento


da responsabilização civil-administrativa dos agentes
públicos da ditadura brasileira por graves violações de
direitos humanos e avaliar a possibilidade de concreti-
zação dessa responsabilização, utilizando-se de seis
ações civis públicas propostas pelo Ministério Público
Federal da 3ª região como instrumento de análise. A
saber: Caso Policiais Civis no DOI-CODI/SP; Caso Ossa-
das de Perus; Caso DOI/CODI/SP; Caso Manoel Fiel Filho;
Caso Desaparecidos Políticos - IML -DOPS - Prefeitura SP;
e, por fim, Caso OBAN.
A União figura como ré em todas as ações, uma
vez que o Estado, através dos seus agentes, é responsá-
vel pelas violações ocorridas no período ditatorial no
Estado de São Paulo. Naquelas em que pode ser res-
ponsabilizado, o estado de São Paulo também é citado
como réu.
No Caso Desaparecidos Políticos - IML -DOPS -
Prefeitura SP, o Município de São Paulo também foi
citado, juntamente com Romeu Tuma, chefe do Depar-
tamento Estadual de Ordem Política e Social durante o
regime militar, Harry Shibata, médico legista do IML
na década de 70, Paulo Maluf, prefeito de São Paulo
entre 1969 e 1971, Miguel Colasuonno, prefeito de São
Paulo de 1973 a 1975, e Fábio Pereira Bueno, responsá-
vel pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo
entre 1970 e 1974. Nesta ação, os réus são acusados de
haverem enterrado inúmeros militantes políticos como
500 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

indigentes no Cemitério Dom Bosco e no Cemitério


Vila Formosa. O Cemitério de Dom Bosco teria sido
construído para esse fim, durante a gestão de Paulo
Maluf e os corpos dos "indigentes" lá chegavam após
ter sido lavrada uma certidão de óbito falsa pelo DOPS,
que era confirmada pelo IML e trazia um nome - ge-
ralmente aquele utilizado na militância - e relato falso
sobre a causa da morte. Assim, essas pessoas eram da-
das como desaparecidas, enterradas em valas de indi-
gentes e a família permanecia sem nenhuma informa-
ção.
Homero Cezar Machado, Innocencio Fabrício de
Mattos Beltrão e Mauricio Lopes Lima são, hoje, milita-
res reformados e João Thomaz é capitão reformado da
Polícia Militar de São Paulo, todos fizeram parte da
Operação Bandeirantes e são réus do Caso OBAN. A
OBAN foi o primeiro órgão de repressão militar que
obteve sucesso e acabou dando origem aos DOI/CODI
espalhados pelo país. Todos os quatro teriam conduzi-
do sessões de tortura em seus respectivos destacamen-
tos. Da mesma forma, os réus do Caso DOI/CODI, Car-
los Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, exe-
cutaram diversas sessões de tortura enquanto coman-
dantes do órgão que dá nome à ação.
O Caso Manoel Filho responsabiliza inúmeros
agentes públicos pela morte de Manoel Fiel Filho, me-
talúrgico que foi detido no dia 16 de janeiro de 1976,
levado ao DOI/CODI e morto no dia seguinte. Entre os
réus citados encontram-se militares, carcereiros, polici-
ais civis, delegados, um perito e um legista e todos te-
riam colaborado, direta ou indiretamente, para a morte
da vítima.
Em 1991, a Universidade de Campinas, junta-
mente com a Universidade Federal de Minas Gerais, se
responsabilizou pela identificação das ossadas existen-
tes no Cemitério Dom Bosco, conhecido como Cemité-
rio de Perus, mas não conduziu o trabalho até o fim,
demonstrando descaso e irresponsabilidade. Posteri-
ormente, a responsabilidade foi assumida pela Univer-
 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 501

sidade e pelo Estado de São Paulo, mas também não


obtiveram resultados significativos. Assim, além da
responsabilização objetiva destes réus pessoas públi-
cas, o Caso Ossadas de Perus busca a responsabilização
subjetiva dos servidores públicos cuja negligência fez
com que diversas ossadas permaneçam sem identifica-
ção até hoje.
No caso Policiais Civis no DOI-CODI/SP, os réus
Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo
e Dirceu Gravina - o último ainda na ativa - eram dele-
gados da Polícia Civil durante a ditadura e, lotados no
DOI/CODI, também foram responsáveis por sessões
de tortura.
Apesar das particularidades de cada caso cita-
do, não detalharemos as ações no desenvolvimento do
trabalho, já que todas possuem um tema comum e isso
é evidente tanto nos pedidos quanto nos argumentos
utilizados para sustentá-los. Nosso objeto de estudo se
encontra nos pedidos de cada uma das petições iniciais
e os argumentos para defender nosso posicionamento
estão presentes em todos os documentos que compõem
cada caso.
Na análise dessas ações, atentamos aos pedidos
feitos pelos representantes do órgão, sendo eles: i) o
pedido de responsabilização civil dos acusados, ii) veto
ao exercício ou acesso a cargos de função pública, iii)
cassação de proventos de aposentadoria, iv) publiciza-
ção dos fatos ocorridos durante a ditadura e pelos
quais os réus eram julgados.
Os pedidos feitos pelo Ministério Público são
fundamentados em investigações cujos resultados
permitiriam que os réus fossem responsabilizados pe-
los ilícitos descobertos, conforme citado no parágrafo
acima. Como constam das ações usadas como fonte de
pesquisa e fundamentação, existem elementos que
permitem a prova prática das graves violações enume-
radas em suas páginas, violações estas, em sua maioria,
contra os direitos humanos.
502 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

Deve ser ressaltado que os presentes pedidos


possuem por base apenas a responsabilização civil e
administrativa, de modo que não se confundem com a
responsabilização criminal, conforme apontado pelo
art. 935 do nosso Código Civil vigente. Sendo assim,
apontaremos o porquê do pedido de responsabilização
civil-administrativa dos réus.
Trataremos dos argumentos oriundos da legis-
lação ordinária, utilizados pelo Ministério Público, bem
como da limitação da lei de anistia ao âmbito criminal,
dando margem à responsabilização civil-
administrativa dos agentes públicos beneficiados por
ela. Logo em seguida, discutiremos acerca dos princí-
pios constitucionais relevantes, com ênfase no princí-
pio da dignidade da pessoa humana, considerando
também as normas de direito internacional.
O pedido de responsabilização civil dos réus
pode ser justificado, inicialmente, pelos danos causa-
dos ao patrimônio público, baseados no art. 37, §5º de
nossa Constituição Federal, que aponta que são im-
prescritíveis as ações de ressarcimento pela prática de
atos ilícitos que ocasionaram prejuízos ao erário, ca-
bendo assim aos réus suportarem o ônus das obriga-
ções advindas do ilícito cometido.
Prosseguindo, temos os argumentos do Ministé-
rio Público para a imprescritibilidade dos crimes contra
a humanidade. Apesar da divisão das instâncias do
direito brasileiro em civis, criminais e administrativas,
a prática de um ilícito que se reconhece como crime de
lesa-humanidade impõe-se a todo o sistema de justiça.
O resultado será a aplicação de princípios gerais de
responsabilização e reparação de danos condizente
com a gravidade do ato.
No tocante ao veto ao exercício de cargos ou
funções públicas, a razão está na contradição entre os
ilícitos cometidos e os princípios da administração pú-
blica, que exigem, entre outros requisitos, a higidez
moral. A cassação de qualquer tipo de proventos de
aposentadoria fundamenta-se no mesmo argumento.
 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 503

Acerca da publicização dos crimes cometidos


pelos réus contras as vítimas e toda a sociedade brasi-
leira vêm à tona o direito de a sociedade brasileira co-
nhecer a verdade e construir uma memória sobre a sua
história – ou seja, um direito a memória e à verdade4.
Quanto à proteção constitucional dos direitos
humanos, conforme apresentado no interior das ações
civis públicas, considera-se que a pauta de valores de
nossa Constituição Federal impede que as graves vio-
lações aos direitos humanos sejam excluídas de apreci-
ação judicial em função do decurso do tempo.
Antes de prosseguirmos com a discussão dos
argumentos a favor dos pedidos, há a necessidade de
justificar a legitimidade do Ministério Público na pro-
positura de tais ações civis públicas.

2. Legitimidade do Ministério Público Federal e a


possibilidade da propositura de ação civil pública

Na medida em que o presente artigo visa estu-


dar a possibilidade da responsabilização pessoal, civil e
administrativa, dos agentes públicos por decorrências
dos crimes cometidos durante a ditadura militar, e par-
tindo da análise das ações civis públicas propostas pelo
Ministério Público Federal, faz-se necessária a análise
de dois pontos cruciais: o Ministério Público Federal
possui legitimidade para a tutela desses interesses? A
ação civil pública é o meio adequado para atingir os
objetivos pretendidos?
Comecemos com a primeira indagação. A Cons-
tituição prevê, no art. 127, caput, que cabe ao Ministério
Público a defesa da ordem jurídica, do regime demo-

4 PACHECO, Mariana Pimentel Fischer. Direito à memória como

exigência ética – Uma investigação a partir da hermenêutica filosófica


de Hans-Georg Gadamer. Revista Anistia – Política e Justiça de
Transição, nº 1, p.250. 2009.
504 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

crático e dos interesses sociais e individuais indisponí-


veis, e ainda dispõe, no art. 129, IX, que é atribuição
ministerial o exercício de outras funções que lhe forem
conferidas, desde que compatível com sua finalidade.
A nosso ver, a responsabilização pessoal dos
agentes, na atual situação da justiça de transição brasi-
leira, é de interesse difuso, que correspondem aos di-
reitos cujo titular não é uma pessoa, mas sim, uma cole-
tividade de pessoas que não podem ser identificadas
ou determinadas5.
É difuso, uma vez que com a entrada em vigor
de leis reconhecendo a responsabilidade civil do Esta-
do pelos crimes praticados por agentes públicos, ocor-
reu um dano de extensa dimensão ao erário. Este é
composto pelo trabalho e contribuição tributária de
toda sociedade brasileira, não podendo ser devastado
por atos individuais, em que se sabe o autor.
A respeito do sistema de reparação das vítimas
pelo Estado se esclarece:
O sistema reparatório para os atos dos regimes de
exceção do século XX no Brasil é integrado por
duas comissões de reparação: a Comissão Especial
para Mortos e Desaparecidos Políticos (doravante
CEMP) e a Comissão de Anistia.
A CEMP, criada pela Lei nº 9.140/1995, alterada
pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004, foi instalada
no Ministério da Justiça e, em 2004, deslocada para
a Secretaria Especial de Direitos Humanos. A le-
gislação instituidora da Comissão já veio acompa-
nhada de um anexo com um reconhecimento au-
tomático de 136 casos relacionados que deveriam
ser indenizados. O objeto de trabalho da Comissão
Especial focou-se primeiro na apreciação das cir-

5 MOYSÉS, Helena Carvalho. Legitimidade do Ministério


Público para propor ação coletiva na defesa de direitos
Individuais Homogêneos. De Jure – Revista Jurídica do
Ministério Público de Minas Gerais. V, 10, nº 17. Belo
Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2011.

 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 505

cunstâncias das mortes, para examinar exclusiva-


mente se as pessoas foram ou não mortas pelos
agentes do Estado no período de 2 de setembro de
1961 a 5 de outubro de 1988 e como isso aconteceu,
afastando-se da apreciação dos atos dos envolvi-
dos na atividade de repressão política. É também
responsabilidade da Comissão a localização dos
restos mortais dos desaparecidos. Em 2007, a
CEMP publicou o mais importante documento ofi-
cial sobre o período ditatorial, o já referido livro-
relatório denominado Direito à Verdade e à Me-
mória”, que detalha pormenorizadamente a pro-
moção de 357 reparações24. O prazo final para a
entrada com requerimentos perante a CEMP foi
prorrogado duas vezes, tendo sido encerrado em
2004.
(...)
Por sua vez, a Comissão de Anistia instalada no
Ministério da Justiça foi criada em 2001 por meio
de Medida Provisória do Presidente da Repúbli-
ca26, posteriormente convertida na lei no
10.559/2002, em atenção à necessidade de regula-
mentação do artigo 8o do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constitui-
ção da República de 1988.
(...)
Os familiares dos mortos e desaparecidos também
podem pleitear junto à Comissão de Anistia pelas
perseguições sofridas por seus entes em vida. Até
dezembro de 2009, a Comissão recepcionou apro-
ximadamente 65 mil requerimentos, dos quais 58
mil já foram apreciados, tendo indeferido inte-
gralmente um terço deles, e deferido os outros
dois terços com ou sem cumulação de reparação
econômica. (ABRÃO, TORELLY, 2010, p. 121-123).

Ainda na esfera dos direitos difusos, destacam-


se os danos morais coletivos gerados, que são entendi-
dos pelo STJ como a lesão na esfera moral de uma co-
munidade, isto é, a violação de valores coletivos, atin-
gidos injustificadamente do ponto de vista jurídico.
Podem tratar de dano ambiental, desrespeito aos direi-
tos do consumidor, danos ao patrimônio histórico e
506 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

artístico e violação à honra de determinada comunida-


de (negra, judaica, japonesa, indígena) . Vale ressaltar
6

que a concepção de danos morais coletivos vem se am-


pliando, assim como a sua aplicação, como bem explica
a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy
Andrighi:
Nosso ordenamento jurídico não exclui a possibi-
lidade de que um grupo de pessoas venha a ter um
interesse difuso ou coletivo de natureza não pa-
trimonial lesado, nascendo aí a pretensão de ver
tal dano reparado. Nosso sistema jurídico admite,
em poucas palavras, a existência de danos extrapa-
trimoniais coletivos, ou, na denominação mais cor-
riqueira, de danos morais coletivos. (SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2013)

No caso em questão, apontam, conforme relatos


históricos, os danos causados não só às vitimas, mas
também à sociedade brasileira em toda sua dignidade e
honra, bem como aos valores democráticos de verdade
e reparação.
O art. 129, III, da CF/88, por sua vez, estabelece
que o Ministério Público tem legitimidade para propor
ação civil pública para proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente e de outros direitos difusos
e coletivos. Ora, não trata o dano ao erário de um efeti-
vo dano ao patrimônio público?
Todavia, conforme de depreende das ações civis
públicas estudadas, o judiciário vem defendendo os
direitos de reparação e responsabilização pessoal dos
agentes como direitos individuais homogêneos e dis-
poníveis, por serem de caráter patrimonial. Ainda ale-
gam, em virtude disso, que o Ministério Público não

6 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Dano moral coletivo


avança e inova na jurisprudência do STJ.
<http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tm
p.area=398&tmp.texto=106083> Acesso em: 21/03/2013.

 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 507

teria legitimidade para a tutela dos interesses indivi-


duais homogêneos7.
Não obstante, com a entrada em vigor do Códi-
go de Defesa ao Consumidor, o Ministério Público pas-
sou a ter ainda a função de defesa dos direitos indivi-
duais homogêneos, que tem como titulares mais de um
sujeito e estes sempre são determinados, possuindo a
origem da causa de pedir em comum. Assim, ficou
acertado, em que pese toda discussão acerca deste te-
ma, que a atuação na defesa destes direitos, ainda que
disponíveis, cabe ao Parquet, na forma de ação civil
pública, desde que haja relevante interesse social. A
respeito do objeto da ação civil pública ensina Hugo
Mazzilli:
Embora a ação civil pública de que cuida a Lei n.
7.347/85 objetive apenas adefesa de interesses
transindividuais, na verdade, as civis públicas,
ações

sob o aspecto doutrinário, podem ter objeto mais


amplo. Como bem ensinou Calamandrei, sob o as-
pecto doutrinário, ação civil pública é a ação de
objeto não penal, movida pelo Ministério Público.
Neste sentido, podemos referir-nos, por exemplo,
às ações civis públicas para defesa de interesse pú-
blico (como as de nulidade de casamento, movidas
pelo Ministério Público), para a defesa de interesse
individual indisponível (como as ações de alimen-
tos em defesa de crianças e adolescentes), para a
defesa do patrimônio público e social (CF, art. 129,
III; Lein. 8.429/92, art. 17; LONMP, art. 25, IV, c.c.
LOMPU, art. 6º, VII). (MAZZILLI, 2005, p. 5-6)

Nesse mesmo sentido entendem o Superior Tri-


bunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal:

7Ação Civil Pública caso DOI-CODI/SP. Sentença. Disponível em

<http://www.prr3.mpf.gov.br/
component/remository/?func=fileinfo&id=2441/> Acesso
em:19/03/2013.
508 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.


VESTIBULAR. LIMITAÇÃO DO NÚMERO DE
CONCESSÕES DE ISENÇÃO DE TAXAS PARA
EXAME EM UNIVERSIDADES FEDERAIS.
LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO.

1. A jurisprudência desta Corte vem se sedimen-


tando em favor da legitimidade ministerial para
promover ação civil pública visando a defesa de
direitos individuais homogêneos, ainda que dis-
poníveis e divisíveis, quando na presença de rele-
vância social objetiva do bem jurídico tutelado (a
dignidade da pessoa humana, a qualidade ambien-
tal, a saúde, a educação, apenas para citar alguns
exemplos) ou diante da massificação do conflito
em si considerado.
Precedentes.
2. Oportuno notar que é evidente que a Constitui-
ção da República não poderia aludir, no art. 129,
inc. II, à categoria dos interesses individuais ho-
mogêneos, que só foi criada pela lei consumerista.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal já enfrentou
o tema e, adotando a dicção constitucional em sen-
tido mais amplo, posicionou-se a favor da legiti-
midade do Ministério Público para propor ação ci-
vil pública para proteção dos mencionados direi-
tos.
3. No presente caso, pelo objeto litigioso deduzido
pelo Ministério Público (causa de pedir e pedido),
o que se tem é pretensão de tutela de um bem di-
visível de um grupo: a suposta invalidade da limi-
tação do número de concessões de isenção de taxas
para exame vestibular de universidades federais
em Pernambuco. Assim, atua o Ministério Público
em defesa de típico direito individual homogêneo,
por meio da ação civil pública, em contraposição à
técnica tradicional de solução atomizada, a qual se
justifica não só por dizer respeito à educação, inte-
resse social relevante, mas sobretudo para evitar as
inumeráveis demandas judiciais (economia pro-
cessual), que sobrecarregam o Judiciário, e evitar
decisões incongruentes sobre idênticas questões
jurídicas.

 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 509

4. Nesse sentido, é patente a legitimidade ministe-


rial, seja em razão da proteção contra eventual le-
são ao interesse social relevante de um grupo de
consumidores ou da massificação do conflito.
5. Recurso especial provido.
(REsp 1225010/PE, Rel. Ministro MAURO
CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA,
julgado em 01/03/2011, REPDJe 02/09/2011, DJe
15/03/2011)

Postos estes argumentos, entendemos ser legí-


tima a atuação do Ministério Público Federal, através
de ação civil pública, para tutelar a responsabilidade
dos agentes públicos na forma de regresso pelo que já
foi pago pela União em termos de direito à reparação.
Novamente, embasamos nossa afirmação no sentido da
Justiça de Transição abarcar o direito à reparação e este
ter sido efetuado exclusivamente pelo Estado, através
da Comissão de Anistia e Comissão Especial para Mor-
tos e Desaparecidos Políticos, causando graves danos
aos cofres, devendo assim, ser ressarcido pelos agentes
que causaram efetivamente o dano8.

3. Legislação brasileira

Para se chegar a um entendimento completo so-


bre a possibilidade ou não da responsabilização civil e
administrativa dos agentes públicos por crimes come-
tidos durante a ditadura militar, faz-se mister a análise
do ordenamento jurídico como um todo.
Para tanto, far-se-á um estudo das normas que
versam sobre este assunto, partindo da Constituição
Federal de 1988, passando pela legislação ordinária e
finalizando com as normas de direito internacional.

8 Para mais detalhes sobre o tema conferir: GREIFF, Paulo de. Dossiê

Reparação: Justiça e Reparações. Revista Anistia - Política e Justiça de


Transição nº 3. P. 42.
510 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

Desta sorte, após a análise destes pontos, poderá se


chegar à resposta pretendida.
No ápice do rol de dispositivos do direito mate-
rial que servirão de justificação e argumentação para os
pedidos de responsabilização se encontram os artigos
da Constituição Federal de 1988. Dentre os mais rele-
vantes nessa perspectiva de responsabilização, pode-
mos citar os artigos 1º, II e III; 5º, XIV e XXXIII; 14; 220;
e 215 e 216, que tratam da garantia ao direito ao patri-
mônio histórico e cultural. Todos incidem veemente-
mente como argumento para a publicização dos fatos,
trazendo à tona o direito de a sociedade brasileira co-
nhecer a verdade sobre a sua história e de construir a
memória em respeito a esta.
Atento ao art. 1º da Constituição, devemos con-
siderar os incisos II e III, que protegem a cidadania e a
Dignidade da Pessoa Humana como fundamentos da
República Federativa do Brasil, preceitos desrespeita-
dos durante a vigência do período ditatorial com a prá-
tica de torturas e ocultação de cadáveres. O parágrafo
único deste artigo também é importante , pois a repres-
são ocorrida durante a ditadura impossibilitou o exer-
cício do poder estatal, que emana do povo.
Quanto aos detentores de cargos da função pú-
blica, o art.14, §9º aponta a inelegibilidade em função
da imoralidade configurada durante o exercício da
função.
O artigo 220 garante a livre manifestação do
pensamento, mas faz ressalva que proíbe o anonimato.
Apesar disso, o anonimato - e a não responsabilização
- daqueles que fizeram mais do que um cercear a liber-
dade de expressão ainda é mantido, violando também
o disposto nos artigos 215 e 216, impedindo a constru-
ção de um patrimônio histórico e cultural, para as víti-
mas de tortura e para todo o país.
Entretanto, ainda que citemos inúmeros outros
dispositivos legais do direito material brasileiro que
justificam a responsabilização, nenhum deles se asse-
melhará ao art. 5º de nossa Constituição. O presente
 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 511

dispositivo apresenta um rol de inúmeros direitos e


garantias do cidadão brasileiro que, como sabemos,
foram violados durante o período ditatorial. Direitos
como aqueles que protegem a liberdade, a vida, a segu-
rança, a não submissão à tortura ou a um tratamento
desumano e a não inviolabilidade da intimidade e da
vida privada, ao livre exercício de trabalho, ofício ou
profissão, além de outros tantos, foram por diversas
vezes deixados de lado.
De forma estrita, e diretamente ligada ao tema
de nosso trabalho, podemos citar as violações ocorridas
aos direitos contidos nos incisos XIV e XXXIII do art. 5º
da Constituição, pois tratam do acesso à informação
enquanto direito dos cidadãos, seja em função de inte-
resse particular, geral ou mesmo profissional, direito
este reprimido de forma incisiva durante o período
abordado.
Estabelecendo uma ponte de ligação entre Cons-
tituições, deve ser frisado que todos os atos que viola-
ram os direitos, preceitos e princípios já apontados com
referência em nossa Constituição atual foram pratica-
dos na vigência da Constituição de 1967, que também
assegurava a proteção dos mesmos, o que reafirma a
inconstitucionalidade dos atos cometidos, pois toda a
gama de pressupostos já citados não era estranha à
época.
A legislação ordinária possui inúmeros disposi-
tivos acerca do tema, mas ressaltaremos somente aque-
les mais relevantes e essenciais para o estudo. A come-
çar pela Comissão de Anistia, criada pela lei
10.559/2002, que se incumbiu de analisar os requeri-
mentos de indenização daqueles que foram impedidos
de exercer atividade econômica, no período de 18 de
setembro de 1946 até cinco de outubro de 1988, por
motivação exclusivamente política. As indenizações se
limitam a uma parcela única correspondente a até 30
salários mínimos por ano de perseguição política até o
valor máximo de 100 mil reais ou prestação mensal que
corresponderá ao posto que o anistiado ocuparia, se na
512 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

ativa estivesse. Esse valor ė devido aos anistiados polí-


ticos que puderem comprovar vínculos com a ativida-
de laboral.
Outro dispositivo legal importante ė o artigo
134 da lei 8.112/90 que disciplina sobre a perda de
aposentadoria para os autores dos atos que são foco em
nosso trabalho. Deve ser ressaltado ainda o fato da hi-
gidez moral ser discriminada como requisito para a
ocupação de cargos públicos, e conforme consta nas
ações, seria incompatível a permanência em cargos
públicos dos responsáveis por atos que agridem uma
série de pressupostos legais e atentam contra o ser hu-
mano, visto que o requisito da higidez moral não seria
cumprido por tais servidores públicos.
Além de atentar contra a atual lei do servidor
público, a série de atos perpetrados por agentes públi-
cos no período ditatorial também afrontava os disposi-
tivos da lei 1.711/52, o Estatuto dos Funcionários Pú-
blicos civis da União, em vigor na época em que ocor-
reram os fatos referidos em nosso trabalho. Especial-
mente no tocante aos artigos 198, 199 e 201, que se refe-
rem à responsabilização civil e administrativa dos ser-
vidores públicos pelo exercício irregular de suas atri-
buições, bem como às penas cabíveis diante da prática
de tais atos.
Aqui também se evidencia uma forma de res-
ponsabilização administrativa em função dos atos cita-
dos, na qual os agentes executores de atos ilícitos e
abusivos durante o período que compreende a ditadu-
ra militar têm como sanção a perda da aposentadoria
ou proventos de qualquer espécie em função da práti-
ca, durante o exercício do cargo, de falta administrativa
que, conforme regulamentação cabível, seria punível
com a demissão do cargo ou posto ocupado.
A Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, mais co-
nhecida como Lei de Anistia, foi promulgada no fim da
ditadura militar brasileira, sob um regime de governo
autoritário e omisso. Ainda assim, representou um
enorme avanço ao estabelecer um diálogo com a oposi-
 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 513

ção no momento de transição para um país efetivamen-


te democrático.
No primeiro artigo da referida lei, a anistia é
concedida nos seguintes termos:
É concedida anistia a todos quantos, no período
compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15
de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou
conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tive-
ram seus direitos políticos suspensos e aos servi-
dores da Administração Direta e Indireta, de fun-
dações vinculadas ao poder público, aos Servido-
res dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Milita-
res e aos dirigentes e representantes sindicais, pu-
nidos com fundamento em Atos Institucionais e
Complementares. (BRASIL, 2013)

A grande discussão acerca desta lei se deve aos


crimes conexos. A definição do termo vem no primeiro
parágrafo do mesmo artigo, mas é demasiado impreci-
sa ao dizer que crimes conexos são "os crimes de qual-
quer natureza relacionados com crimes políticos ou
praticados por motivação política". Esta imprecisão
levou à impunidade dos agentes públicos defensores
da ditadura militar, ainda que o Estado venha tomando
medidas para se responsabilizar pelos atos cometidos
entre 1961 e 1979, período que compreende os atos an-
teriores a lei da Anistia.
A Lei de Anistia acabou por adquirir um caráter
bilateral, anistiando militantes e presos políticos, mas
também conciliando os agentes públicos responsáveis
pela opressão à democracia futura. Essa interpretação,
mantida pelo STF na ADPF 153, é por nós, contudo,
rechaçada. Não há que se falar, no contexto da Consti-
tuição de 1988, bem como em vista das decisões da cor-
te interamericana de direitos humanos, em anistia bila-
teral. Sob este aspecto relata Lúcia Bastos:
Algumas anistias em branco já foram analisadas
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
como pela Comissão Interamericana de Direitos
514 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

Humanos. Essas verificações ocorreram porque


muitas dessas anistias, que foram promulgadas
durante os anos 70, 80 e 90 originaram-se de Esta-
dos Latino-americanos, e, conforme visto anteri-
ormente, essas duas instituições interamericanas
são as responsáveis na condução das investigações
judiciais nesses casos. O que Serpa possível obser-
var, é que, na grande maioria das vezes, não foi
verificada a validade da Lei de Anistia propria-
mente dita, mas, sim, o direito das vítimas às in-
denizações pelas graves violações dos direitos
humanos.
Mesmo assim, nos processo relacionados ao tema,
a Corte Interamericana julgou essas leis de anistia
em branco inválidas e inaplicáveis, condenou os
Estados que as tinham emitido e declarou ser a
anistia uma violação fundamental ao direito inter-
nacional. (BASTOS, 2007, p.220)

É importante ressaltar que a referida lei não faz


menção alguma à anistia civil. Quanto à anistia no âm-
bito administrativo, ela restringe somente aos perse-
guidos políticos. Uma vez que as instâncias penal, civil
e administrativa são autônomas, fica claro que a anistia
ampla e geral no âmbito penal não surte efeitos nas
duas últimas esferas jurídicas.
Na tentativa de reverter o caráter conciliatório
da anistia concedida no Brasil, a OAB propôs, em 2010,
a Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-
mental n° 153, requerendo que a lei fosse interpretada
de acordo com os preceitos fundamentais estabelecidos
na Constituição da República de 1988. A ADPF em
questão foi julgada improcedente, mas os votos dos
ministros do Supremo Tribunal Federal são bastante
claros quanto à restrição da anistia ao âmbito penal.
O Ministério Público recorre, nas petições inici-
ais, ao teor do voto da Ministra Carmem Lúcia, que
ressalta a importância de investigar e esclarecer os
desmandos cometidos no período ditatorial, para opor
o significado de anistia ao esquecimento.

 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 515

A Ministra é categórica ao afirmar que não se


anistiou a responsabilidade do Estado, que responderá
de acordo com os princípios jurídicos do sistema vigen-
te, estes previstos na Constituição Federal de 1988, e
que este "deverá voltar-se contra os que lhe atingiram os
deveres de lealdade aos limites de ação respeitosa das pessoas
políticas com os homens e as mulheres cujos direitos funda-
mentais foram cruamente atingidos9".

4. Normas de direito internacional

Nas ações propostas pelo Ministério Público Fe-


deral nas quais uma sentença já foi proferida, o que se
pode perceber é um total descaso e até mesmo desco-
nhecimento sobre o Direito Internacional. Observa-se
uma fundamentação rigorosa e extensa por parte mi-
nisterial em suas iniciais, porém, quando proferida a
sentença, todos os fundamentos são refutados como se
não possuíssem nenhuma aplicabilidade, isto quando
são mencionados. Tendo isto em mente, faz-se necessá-
ria a realização de uma breve análise sobre a aplicação
e posicionamento destas normas no ordenamento bra-
sileiro.
Durante um longo período discutiu-se sobre a
existência, validade e eficácia das normas de direito
internacional dentro do ordenamento interno de cada
Estado. Nestes debates, sobressaíram duas correntes
para explicar esta relação de Direito Internacional e
Direito Interno: a corrente monista e a dualista. Em
linhas bastante simples, entende-se a corrente dualista
como aquela que entende o Direito Internacional e In-
terno como dois sistemas distintos e independentes,

9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento

de Preceito Fundamental n° 153. Voto da Ministra Carmem Lúcia, p. 2.


Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticia
NoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf>.
516 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

sendo necessária a conversão das normas de Direito


Internacional para o Direito Interno para a aplicação
deste no ordenamento interno de cada Estado. Já a cor-
rente monista, sustenta a existência de uma única or-
dem jurídica onde prevalece o do Direito Internacional,
estando hierarquicamente superior as ordens inter-
nas1011.
Não obstante, não há um consenso entre os paí-
ses, cabendo a cada um destes dispor sobre a aplicação
destas normas. No caso do Brasil não há menção ex-
pressa sobre qual a posição dos tratados de direito in-
ternacional, havendo apenas dois dispositivos consti-
tucionais tratando sobre o assunto.
O primeiro é o parágrafo segundo do art. 5° da
Constituição Federal, que dispõe que os direitos e ga-
rantias previstos na Constituição não excluem os trata-
dos de que a República Federativa do Brasil faça parte.
Este dispositivo levou muitos estudiosos a entenderem
que estes tratados estariam no mesmo nível da Consti-
tuição, entendimento que foi refutado pelo Supremo
Tribunal Federal, que entendeu que os tratados inter-
nacionais entram no ordenamento jurídico brasileiro
como normas infraconstitucionais, no mesmo nível das
leis federais.
O parágrafo terceiro do artigo 5º, por sua vez,
determina que:

10 SOARES, Carina de Oliveira. Os tratados internacionais no ordenamento

jurídico brasileiro: análise das relações entre o Direito Internacional Público e


o Direito Interno Estatal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 88,
maio 2011. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=943
1>. Acesso em abr 2013.
11 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Supremo Tribunal Federal e os

tratados internacionais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.


52, 1 nov. 2001 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2460>.
Acesso em: 16 abr. 2013.

 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 517

os tratados e convenções internacionais sobre di-


reitos humanos que forem aprovados, em cada Ca-
sa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes à emenda constitucional. (BRASIL,
2013)

Desta forma, caso seja aprovado na forma ex-


pressa no dispositivo, o tratado ou convenção sobre
direitos humanos ganha status de emenda constitucio-
nal. Mas e se estes tratados não forem aprovados desta
maneira? Entendeu o Supremo Tribunal Federal, no
Recurso Extraordinário 466.343- SP,que nestes casos
terão o caráter supra-legal, ou seja, superior a lei fede-
ral, mas inferior à Constituição.
Ainda acho necessário evidenciar quando os tra-
tados e convenções de Direito Internacional passam a
existir no nosso ordenamento. Cabe ao Presidente da
República celebrar o tratado, devendo este ser aprova-
do pelo Congresso Nacional, através de decreto legisla-
tivo. Com a devida aprovação do Congresso Nacional,
o tratado retorna ao Poder Executivo para que este ve-
nha a ser ratificado. Tendo sido ratificado, o tratado
internacional deverá ser promulgado internamente
através de um decreto de execução presidencial. Isto
ocorrido, o tratado passa a existir no ordenamento bra-
sileiro.
Ainda que de maneira sucinta, uma vez não ser
tema principal do trabalho, resta claramente demons-
trado que os tratados e convenções integram o orde-
namento jurídico brasileiro.
Mas em que isto interfere na responsabilização
pessoal dos agentes? Interfere na medida em que o
Brasil adota o conceito de crimes contra a humanidade,
ou lesa-humanidade, desde 1907, com a Convenção de
Haia sobre guerra terrestre, tendo sido ratificado e
promulgado pelo Brasil em 1914. Salienta-se que este
foi apenas o primeiro documento ratificado e promul-
gado pelo país, que mais adiante celebrou diversos
518 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

outros tratados e convenções sobre o assunto, com des-


taque à Carta das Nações Unidas, em 1945.
Crime lesa-humanidade segundo a ONU é
qualquer ato desumano cometido contra a população
civil, no bojo de uma perseguição por motivos políti-
cos, raciais ou religiosos, estando os crimes praticados
no período ditatorial, portanto, dentro deste conceito.
A principal decorrência desta conceituação, é que os
crimes praticados neste contexto são insuscetíveis de
anistia e imprescritíveis.
Já que o Brasil ratificou tais tratados, não há de
se falar em anistia e prescrição dos ilícitos cometidos
durante a ditadura, haja vista a aplicação das normas
de Direito Internacional no ordenamento jurídico brasi-
leiro já exposta neste artigo.

5. Andamento dos processos

Apesar da argumentação desenvolvida pelo


Ministério Público Federal - a qual procuramos esclare-
cer neste artigo, nenhum dos processos estudados teve
sentença proferida no sentido da responsabilização
civil-administrativa dos agentes públicos. Nos casos já
julgados em primeira instância, o Ministério Público
tem entrado com recursos e apelações na tentativa de
rever ou invalidar as decisões.
O caso "Desaparecidos Políticos IML-DOPS-
Prefeitura de São Paulo" se encontra suspenso, aguar-
dando a regularização dos sucessores de réus que vie-
ram a óbito depois do início do processo.
A ocorrência da prescrição foi fundamento con-
tra a procedência dos pedidos em dois processos. No
caso "OBAN", apesar do requerimento dos réus de não
cabimento da ação ter sido rejeitado, a ação foi extinta
com base no argumento da prescrição. O juiz do caso
"DOI-CODI/SP", por sua vez, extinguiu processo sem
resolução de mérito e declarou, também se utilizando
da ocorrência de prescrição, a improcedência dos pedi-

 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 519

dos (I) de condenação dos réus a repararem os danos


apontados, (II) de perda de função pública e (III) de
não serem investidos em qualquer nova função públi-
ca. Segundo ele, os agentes públicos praticaram danos
a particulares e, portanto, a imprescritibilidade de pre-
juízos ao erário não se aplicaria. Este juiz, entretanto,
parece ignorar que as indenizações cabíveis aos parti-
culares vêm sendo pagas pelo Estado, deixando claro o
prejuízo causado pelos atos destes agentes. Em ambos
os casos, o Ministério Público leva o processo adiante.
A primeira decisão proferida no caso "Manoel
Filho" extinguiu o processo sem resolução de mérito,
sob o argumento da carência de interesse processual
pelo MPF, de acordo com o artigo 295 inciso III do Có-
digo do Processo Civil, diante da inadequação da via
escolhida. O recurso interposto pelo Ministério acabou
por remeter os autos Tribunal Regional Federal da 3ª
região, que decidiu pelo provimento da ação. Este pro-
cesso se encontra na fase de citação dos réus.
No caso "Ossadas de Perus" o Ministério reque-
reu uma liminar para permitir o início mais breve da
busca e identificação dos corpos enterrados como indi-
gentes no Cemitério de Perus na cidade de São Paulo.
A liminar foi concedida em primeira instância, mas o
TRF a suspendeu devido à potencialidade lesiva à or-
dem econômica pública de tal ação de busca sem um
planejamento orçamentário mais elaborado. Hoje, o
processo está na fase de produção de provas.
Por fim, no caso "Policiais Civis no DOI-
CODI/SP" a liminar que requeria o afastamento imedi-
ato dos réus, pessoa física, de cargos públicos foi inde-
ferida. Ainda que o MPF não tenha explicitado quais
são os cargos públicos ocupados pelos réus, o principal
argumento utilizado para o indeferimento da liminar
foi o julgamento da ADPF 153, na qual, como já foi ex-
posto no presente artigo, os Ministros do STF afirmam
explicitamente a necessidade de responsabilizar agen-
tes que tenham cometido desmandos em nome do Es-
tado Brasileiro. Já na sentença, o juiz decide pela extin-
520 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

ção do processo, acolhendo os argumentos que esten-


dem a Lei de Anistia ao âmbito civil e administrativo e
a prescrição aos atos cometidos pelos agentes públicos.
O Ministério Público opôs embargos de declaração e
entrou com recurso requerendo a remissão do processo
ao Tribunal Regional Federal da 3ª região.

Conclusão

O ponto de partida do presente trabalho se deu


na análise das ações civis públicas propostas pelo Mi-
nistério Público Federal. Tendo sido dada uma visão
geral de cada caso, passou-se aos pontos mais específi-
cos.
O primeiro destes foi o estudo da legitimidade
do Ministério Público Federal em porpor tais ações e
análise da ação civil pública como meio adequado para
se atingir o objetivo pretendido. Assim, concluímos
que a atuação ministerial é cabível, principalmente na
medida de obter o regresso dos agentes que foram
identificados, pelas indenizações prestadas pela União
às vítimas através da comissões de anistia. Da mesma
forma, entendemos ser a a ação civil pública o meio
correto, uma vez ser a ação proposta para proteger o
patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros direitos difusos, coletivos e individuais homo-
gêneos.
Em continuidade ao nosso trabalho, perpassa-
mos por todo o ordenamento jurídico brasileiro cabí-
vel, atuais e passadas, que de forma direta ou indireta
poderia influenciar nos processos de responsabilização
civil–administrativa. Apesar da utilização da legislação
ordinária de forma relevante, podemos dizer que a
Constituição Federal de 1988, foi a principal fonte para
a justificação dos pedidos de responsabilidade dos
agentes.
Quanto à recorrente alegação da Lei de Anistia
ser aplicável à responsabilização civil e administrativa,

 
Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 521

demonstramos, baseados nas ações que fundamenta-


ram grande parte de nosso estudo, que a mesma não se
aplicaria a estas esferas, sendo cabível apenas em âmbi-
to criminal, e restringida aos perseguidos políticos na
esfera administrativa.
Da mesma forma, passamos brevemente pelas
normas de Direito Internacional e vimos que estas in-
tegram o ordenamento brasileiro. Assim, à época dos
crimes já existiam convenções e tratados em que o Bra-
sil era signatário, como a Convenção de Haia e a Carta
das Nações Unidas, tornando ilegal a auto-anistia e
gerando a imprescritibilidade de tais crimes, por trata-
rem de crimes lesa-humanidade.
Logo, entendemos ser possível a responsabiliza-
ção pessoal dos agentes por ilícitos civis cometidos du-
rante o período ditatorial brasileiro. Há argumentos
sólidos suficientes para que medidas de responsabili-
zação sejam tomadas. Isso é importante tanto para a
construção da memória das vítimas e do povo brasilei-
ro quanto para a consolidação do Estado Democrático
de Direito brasileiro defendido pelo artigo 1° da Cons-
tituição da República.
Entretanto, nenhum dos julgamentos proferiu
sentença final responsabilizando os agentes públicos. O
processo "Desaparecidos Políticos" está suspenso, em
fase de citação dos réus. Já o caso "Ossadas de Perus"
está em fase de produção de provas e, embora a limi-
nar para acelerar o processo de identificação das ossa-
das tenha sido concedida em primeira instância, o TRF
a suspendeu sob a justificativa de proteger a ordem
econômica. Os demais processos analisados foram ex-
tintos por causas diversas: ocorrência de prescrição,
ampliação dos efeitos da Lei de Anistia à esfera civil e
carência de interesse processual e inadequação da via
escolhida pelo MPF. Isso demonstra que os juízes não
tem aceito os argumentos utilizados pelo Ministério
Público e que há um descompasso visível entre os ar-
gumentos doutrinários e aqueles acolhidos pelos tribu-
522 Diego Murça, Janaína Curi & Lucas de Oliveira

nais. Apesar disso, o Ministério tem entrado com re-


curso em todas as ações.
Por fim se destaca que a oportunidade de ob-
servar a responsabilização civil e administrativa em nosso
país mostrou sua precariedade e limitação, pelo congestio-
namento e despreparo do judiciário, pelo tempo decorrido
da prática dos atos, pelo falecimento das vítimas, além do
desconhecimento de fatos que ainda se encontram enterra-
dos no passado
Essas e outas tantas situações ainda impedem
uma responsabilização civil e administrativa mais impo-
nente e geradora de frutos em nosso país, restando aos
estudiosos do Direito apontar a direção a ser seguida.

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Responsabilização civil-administrativa dos agentes públicos... 525

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A formação da norma global de
responsabilidade individual
Mobilização política transnacional,
desenvolvimento principiológico e estruturação
em regras internacionais e domésticas

Marcelo  D.  Torelly1  

Resumo: O presente trabalho investiga o processo de


formação da ‘norma global de responsabilidade indi-
vidual’ especialmente desde a perspectiva da justiça de
transição. Para tanto, combina a leitura de teses sobre o
‘ciclo da vida’ das normas globais (Finemore & Sik-
kink) com as leituras divergentes sobre as regras e
princípios em Alexy, Dworkin e Neves. Conclui que a
diferenciação entre regras e princípios no direito mun-
dial é de natureza funcional, e não qualitativa, apontan-

1 Pesquisador visitante no Institute for Global Law and Policy,

Harvard Law School (Estados Unidos). Mestre e doutorando em


Direito pela Universidade de Brasília. Foi coordenador-geral de
memória histórica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça
(2007-2013), tendo também dirigido o programa de cooperação
internacional e desenvolvimento de políticas de justiça de transição
mantido pelo Governo Federal em parceria com o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Autor do livro
Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito, publicado pela
coleção Fórum Justiça e Democracia (Belo Horizonte: Fórum, 2012),
além de diversos artigos e capítulos sobre justiça transicional,
constitucionalismo e direitos humanos disponíveis em português,
espanhol, inglês e alemão.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
A formação da normal global de responsabilidade individual 527

do, desde o exemplo da norma global em questão, que


tal diferenciação se dá por meio do desenvolvimento
do conteúdo da própria norma em seu processo de
formação. Ao operarem os instrumentos jurídicos de
maneira persuasiva, demonstrativa ou mecânica, os atores
estratégicos gradualmente criam e reduzem complexi-
dades. Neste processo, a capacidade de mobilização
social em torno dos atores estratégicos gradualmente
altera a percepção de adequação do direito, produzindo
mudanças interpretativas e formações de consensos
parciais que alteram as decisões, gerando novas formas
de consistência, que alteram o modo como dispositivos
legais são interpretados no direito internacional e do-
méstico, transformando expectativas políticas em prin-
cípios, dos quais derivam decisões redutoras de com-
plexidade que, finalmente, estabilizam regras capazes
de operar de forma consistente no novo contexto social.
Palavras-chave: 1. Norma Global de Responsabilidade
Individual; 2. Princípios; 3. Regras; 4. Justiça de Transi-
ção; 5. Constitucionalismo; 6. Direito Internacional.

Abstract: This article analyzes the formation of the


‘global norm of individual accountability’ from the
transitional justice perspective. It combines thesis on
the norms ‘cycle of life’ (Finemore & Sikkink) with di-
vergent readings on norms nature from Alexy,
Dworkin, and Neves. It concludes that the differentia-
tion of rules and principles in global law is functional,
not qualitative, pointing that this differentiation hap-
pens on the development of the norm itself. Operating
legal tools for persuasion, demonstration, or mechanical
application, law field players gradually create and re-
duce complexity. In the process, the capacity of social
mobilization around strategic actors of the legal field
changes the perception of Law’s adequacy, leading to
new interpretations and consensus and, finally, to new
forms of Law consistency, reshaping the way legal tools
are interpreted and applied domestically and interna-
tionally. In the process, political expectations are con-
528 Marcelo D. Torelly

solidated into legal principles; principles are applied in


decisions that reduce social complexity and, finally;
generate stable rules that consistently operates in the
new social context.
Keywords: 1. Global Norm of Individual Accountabil-
ity; 2. Principles; 3. Rules; 4. Transitional Justice; 5.
Constitutionalism; 6. International Law.

1. Introdução

Uma crescente literatura especializada vem


apontando o surgimento de uma chamada “norma
global de responsabilidade individual” em resposta as
graves violações praticadas conta os direitos humanos.2
Os direitos humanos, de muito, são considerados um
dos pilares do constitucionalismo moderno, entendidos
como uma resposta contra majoritária à vontade da
popular, e, neste sentido, a insurgência de tal norma
global caracteriza-se por excelência como matéria cons-
titucional em uma perspectiva não necessariamente
doméstica ou internacional, mas sim transconstitucio-
nal, atravessando tanto o chamado “direito internacio-
nal”, quando o “direito doméstico”.3
Os principais debates em teoria constitucional
doméstica desde os anos 1970 estruturam-se desde
uma perspectiva principiológica, com um vasto conjun-
to de autores redimensionando a teoria jurídica para
comportar não apenas regras estruturadoras de condutas,
mas também princípios matizadores que permitem a ex-
tração de normas de decisão em casos onde a situação
fática submetida à apreciação judicial não se encontra

2 Payne, Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. “A Anistia na Era


da Responsabilização: contexto global, comparativo e introdução ao
caso brasileiro”. In: Payne, Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D.
(orgs.). A Anistia na Era da Responsabilização. Brasília/Oxford:
Ministério da Justiça/Universidade de Oxford, 2011, pp. 18-31.
3 Neves, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF, 2011.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 529

coberta por uma regra, demandando processos de so-


pesamento de valores para a obtenção de uma decisão
“correta”. Tal processo apresenta uma tendência de
matematização da realidade, objetivando apresentar
problemas constitucionais como questões onde a deci-
são (seja ela lida como ato político, jurídico ou híbrido)
não mais faz do que equacionar interesses para soluci-
onar conflitos dentro de um contexto normativo aprio-
risticamente pré-determinado.4
A insurgência da norma global de responsabili-
zação torna o processo de sopesamento ainda mais
complexo, uma vez que adiciona à suposta equação um
novo elemento. Construída originalmente a partir de
pressupostos do direito internacional, que se internali-
zam em distintas medidas (no próprio direito interna-
cional, mas também nos direitos domésticos), a norma
global se apresenta como um elemento de interação
externo aos ordenamentos quando estes abrem janelas
de possibilidade para diálogos transconstitucionais
entre direito doméstico, regional e internacional. Dife-
rentes respostas foram dadas nestes processos de inte-
ração, constituindo, no âmbito padrões de convergência,
articulação ou mesmo resistência.5
Esses padrões de relação permitem questionar,
em diversos níveis, a estruturação de processos de go-
vernança global que, segundo Kennedy, são cada vez
mais presentes, mesmo que não plenamente compre-
endidos.6 Uma primeira questão bastante simples diz

4 Síntese bem feita desta pretensão, acompanhada de crítica, encontra-


se disponível em Aleinikoff, Alexander. “Constitutional Law in the
Age of Balancing”. In: Yale Law Journal. Vol. 96, nº 05, 1987, pp.943-
1005.
5 Jackson, Vicky. Constitutional Engagement in a Transnational Era. Nova

Iorque: Oxford University Press, 2009.


6 Kennedy, David. “The mystery of Global Governance”. In: Ruling the

World – Constitutionalism, International Law, and Global Governance. New


York: Cambridge University Press, 2009, pp. 37-67.
530 Marcelo D. Torelly

mesmo respeito à legitimidade destes processos, abso-


lutamente descolados dos pressupostos clássicos estru-
turadores de vertentes soberanistas do direito constitu-
cional.7
Um segundo grande questionamento possível,
desde uma perspectiva internacionalista, aponta para o
próprio papel do direito internacional, a ser lido por
alguns como um reflexo de relações de poder e interes-
ses nacionais, com permanentes tendências hegemoni-
zantes,8 por outros como uma forma mais aprimorada
do direito, destinada a uma regulação similar àquela
proposta pelo direito constitucional doméstico, porém
em escala global,9 ou, ainda, numa terceira via, como
um conjunto de fragmentos constitucionais amalgama-
dos, cujas interações não são de pleno previsíveis, mas
conformam padrões que se aglutinam não mais no
próprio binômio doméstico/internacional que estrutu-
rou boa parte da disciplina, mas sim por meio de regi-
mes especializados capazes de auto se regularem inde-
pendente do Estado nacional, num modelo que aban-
dona a ideia de um direito de natureza material em
prol de uma ideia de direito procedimentalmente cons-
truído.10
Deixando de lado o primeiro conjunto de pro-
blemas, da legitimidade dos atuais processos globais, e
adotando uma perspectiva empirista, aliando análise
concreta com teorias que explicam os processos, não

7 No exemplo europeu, veja-se, por exemplo: Möllers, Christoph.

“Multi-Level Democracy”. In” Ratio Juris. Vol. 24, nº 3, Setembro de


2011, pp. 247-266.
8 Koskenniemi, Martii. The Politics of International Law. Oxford: Hart

Publishing, 2011.
9 Piovesan, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo:

Saraiva, 2011.
10 Teubner, Gunther. Constitutional Fragments – societal constitutionalism

and globalization. Oxford: Oxford Univeristy Press, 2012.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 531

seus fundamentos de legitimação, este estudo propõe a


análise do processo de insurgência de normas globais,
especialmente conforme lido fora do direito, pela ciên-
cia política e pelas relações internacionais (seção 02); o
modo como se apresenta atualmente o debate sobre a
distinção entre regras e princípios, desde os modelos
teóricos de Dworkin, Alexy, bem como sua crítica por
Neves (seção 03); descrever o processo de consolidação
da norma global de responsabilidade individual e, em
menor medida, da norma global alusiva à responsabi-
lidade do Estado, traduzida nos direitos à reparação à
verdade, e, finalmente (seção 04); explorar como o pro-
cesso de estruturação da norma global de responsabili-
dade individual pode ser lido desde a perspectiva da
distinção entre regras e princípios, esboçando propos-
tas de superação para as leituras dogmáticas desenvol-
vidas pela teoria do direito, especialmente nas décadas
de 1970 e 1980, tendentes a identificar regras e princí-
pios por meio de distinções qualitativas, e apontado
para uma perspectiva de diferenciação pela funcionali-
dade estrutural das normas vinculada a seu momento de
desenvolvimento, em um processo que apresenta a
distinção entre regras e princípios como, também, parte
de tal desenvolvimento (seção 05).

2. Como surgem as normas globais?

Como surgem as normas globais? Uma resposta


clássica, desde a teoria institucionalista, aponta para a
ideia de que tais normas são apenas e tão somente o
produto da vontade soberana dos Estados. Desde esta
perspectiva o surgimento de uma norma desta nature-
za ocorreria quando a vontade política de suficientes
(e/ou relevantes) Estados se alinhasse, produzindo um
instrumento legal, geralmente um tratado, ou um cos-
tume consolidado pela repetição e não questionamen-
to, regulando uma determinada questão.
532 Marcelo D. Torelly

Sem deixar de ser verdadeira, essa abordagem


ilumina apenas uma parte do problema. No direito
doméstico o surgimento de novos instrumentos legais
encontra-se articulado desde a perspectiva democráti-
ca, sendo os poderes constituídos que, em resposta à
vontade popular ou na interpretação do sistema jurídi-
co emanado desta vontade, produzem texto e trans-
formam texto em norma. Muitos autores, não obstante,
tem refletido sobre este processo no âmbito internacio-
nal, apontando tanto para uma especial legitimidade
derivada da delegação estatal para que agências e or-
ganizações internacionais produzam direito11 (tema
que, como antes dito, não é o objeto central do presente
estudo), quanto, e mais especialmente, para o papel
que a esfera pública internacional tem em articular pre-
tensões políticas de afirmação de direitos.12 Alguns
exemplos deste processo são a ideia de “litígio estraté-
gico” junto ao sistema interamericano de direitos hu-
manos,13 ou mesmo a de mobilização pró-
institucionalização de novas cortes e agências regula-
doras, como pôde ser visto no processo de mobilização
internacional para a criação do Tribunal Penal Interna-
cional (TPI).14
No primeiro exemplo, temos organizações não
governamentais representando interesses de vítimas de

11 Mollers, op.cit.
12 Veja-se, por exemplo: Santos, Cecilia MacDowell Santos. “Questões
de Direitos Humanos: a mobilização dos direitos humanos e a
memória da ditadura no Brasil”. In: Santos, Boaventura; Santos, Cecilia
MacDowell; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs.). Repressão e
Memória Política no Contexto Ibero-Americano. Brasília/Coimbra:
Ministério da Justiça/Universidade de Coimbra, 2010, pp. 124-151.
13 Cardoso, Evora Lusci Costa. Litígio Estratégico e Sistema
Interamericano de Direitos Humanos. Coleção Fórum Direitos Humanos,
vol.04. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
14 Cf.: Zilli, Marcos (Org.). “Especial 10 Anos do Tribunal Penal

Internacional”. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília:


Ministério da Justiça, vol. 08, Jul./Dez.2012.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 533

violações aos direitos humanos não com o fito exclusi-


vo de proteger direitos singulares, mas de produzir
processos onde a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, por meio da interpretação da Convenção
Americana, derive normas protetivas de caráter uni-
versal entre os signatários do instrumento internacio-
nal em questão. Esse processo de definição de stan-
dards pela Corte, batizado como processo de “controle
de convencionalidade”15, permite que a pressão social
em escala internacional, em alguma medida, emule no
plano internacional as lutas domésticas pela efetivação
de direitos. Ou seja, emule o uso do exercício da políti-
ca para a produção de texto a ser interpretado pelo sis-
tema jurídico.
Essa questão pode, sempre, gerar a ressalva de
que se estaria aqui apenas interpretando a Convenção
Americana, e não propriamente produzindo novos
direitos, mas os processos em que a Corte julgou casos
que podem ser colocados sob o guarda-chuva da nor-
ma global de responsabilização individual em alguma
medida relativizam este argumento. No mais recente
caso em que a questão foi apreciada pela Corte, Julia
Gomes Lund e outros vs. Brasil, a Corte derivou a obriga-
ção de investigar e punir graves violações contra os
direitos humanos de um conjunto de outros direitos,
estes sim previstos, tais como o direito à vida,16 à inte-
gridade17 e à liberdade pessoal,  18 e às garantias e a pro-
teção judicial.19 Nas leituras mais correntes na dogmáti-
ca tradicional, tais instrumentos poderiam caracterizar

15 Bazán, Víctor; Nash, Claudio (orgs.). Justicia Constitucional y derechos

fundamentales – el control de convencionalidade. Santiago/Bogotá:


Universidad de Chile/Konrad Adenauer Stiftung, 2011.
16 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 4º.

17 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 5º.


18 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 6º.
19 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 25º.
534 Marcelo D. Torelly

tanto regras de aplicação impositiva, quanto princípios


a serem otimizados.
O caso da mobilização social pela instituição do
Tribunal Penal Internacional é, não obstante, ainda
mais explícito em demonstrar a utilização da política
internacional para produzir o substrato à formação e
efetivação de novas normas globais. Antes da criação
do TPI construiu-se a Coalizão Internacional para o Tri-
bunal Penal Internacional, associação ainda ativa inte-
grada por mais de 2.500 organizações civis em 150 paí-
ses, com uma clara agenda orientada a pressionar os
estados nacionais para aderirem ao Estatuto de Roma,
que constitui a Corte.
Observando processos como estes (e poderiam
ser citados muitos outros, como o de luta pelo direito
de sufrágio feminino, ou dos direitos dos portadores de
deficiências físicas, ou mesmo do movimento LGBT),
os pesquisadores da ciência política passaram a locali-
zar o primeiro estágio da formação de normas globais
não na institucionalização propriamente dita de direitos
por meio de tratados, convenções ou costumes (portan-
to, não na positivação de pretensões políticas que pas-
sam a integrar, em dado momento, o sistema jurídico),
mas na própria agenda de mobilização por esses direi-
tos. O objeto de estudo desta disciplina é, portanto,
anterior àquele a que classicamente dedicam-se os ju-
ristas.
Por essa razão autores como Finemore e Sikkink
se propõem a estudar a influência das normas globais
desde seu “ciclo de vida”, iniciando suas considerações
não pelo momento em que se institucionaliza o disposi-
tivo legal em forma de texto a ser explorado pelos juris-
tas, mas sim numa fase (de um total de três) que de-
nominam como a “emergência” da norma no contexto
social: “[...] o primeiro estágio é a “emergência da norma”; o
segundo estágio envolve a ampla aceitação da norma, ao qual

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 535

chamamos, seguindo Cass Sunstein, de “cascata da norma”;


e o terceiro estágio envolve a internalização”. 20
A ideia aqui presente é que o processo de pro-
dução de normas globais depende não apenas da von-
tade dos Estados, mas de um conjunto mais ampliado
de fatores que inclui, especialmente, os processos de
convencimento dos agentes que interpretam e aplicam
textos legais sobre a existência ou não de dadas pres-
crições normativas. Assim, processos sociais de reivin-
dicação e luta por direitos, ao tencionarem o sistema
político, não impactam apenas a “efetivação” pelos
responsáveis por implementar as normas (geralmente
atores executivos mais explicitamente sujeitos à pres-
são política), mas também a formação e interpretação
do Direito pelos tribunais e instituições em geral. Su-
marizando o argumento, o ciclo da vida de uma norma
apresenta-se como segue21.
Primeiro estágio – emergência da norma: após mo-
bilização social, os interpretes do direito, por meio de
suas plataformas institucionais disponíveis (procura-
dorias, cortes, escritórios, ongs), motivados por altru-
ísmo com a luta dos interessados, empatia, identidade
ou compromisso, procuram persuadir a comunidade
legal da existência de uma dada norma, derivada do
escopo legal da própria plataforma que ocupam, ou do
direito geral.
Segundo estágio – cascata normativa: Estados, ins-
tituições internacionais e transnacionais, organizações e
redes internacionais assumem a existência da norma.
Legitimidade e reputação são seus principais móveis

20 Tradução livre, no original: “[…] the first stage is ‘‘norm emergence’’;


the second stage involves broad norm acceptance, which we term, following
Cass Sunstein, a ‘‘norm cascade’’; and the third stage involves internaliza-
tion”. Finnemore, Martha; Sikkink, Kathryn. “International Norm
Dynamics and Political Change,” International Organization 52, vol. 4,
Autumm 1988, p.895.
21 Para o argumento completo: Finnemore, Martha; Sikkink, Kathryn.

Op.cit.
536 Marcelo D. Torelly

de ação. Aqui, passam não mais a buscar persuadir so-


bre a existência da norma, mas sim a demonstrar sua
existência desde exemplos fáticos de concretização ti-
dos na etapa anterior, socializando e institucionalizan-
do seu conteúdo, formando uma “cascata normativa”22
que ganha volume e irradia para os demais atores dos
processos institucionais.
Terceiro estágio - internalização: Atores jurídicos
gerais, especialmente no plano interno e nas burocraci-
as, assumem a existência interna da norma global, que
se positiva ou é judicialmente recebida por meio de
decisões. Seu principal motivo para aplicar a norma é a
conformidade. O hábito se segue à institucionalização.
Originalmente, na teoria de Finemore & Sik-
kink, a internalização diz respeito à migração da norma
internacional ao plano doméstico, mas como se preten-
de aqui demonstrar, igualmente as normas internacio-
nais “puras” passam por um processo de internaliza-
ção, desde a perspectiva do regime do direito interna-
cional. Portanto, o processo de internalização pode
ocorrer anteriormente no direito internacional, mas
também de modo simultâneo ou mesmo antecipado
nos distintos regimes de direito doméstico. Para fins
deste estudo, portanto, a ideia de internalização diz res-
peito não apenas ao processo de fertilização cruzada en-
tre direito internacional e direitos domésticos,   23 mas

22 O conceito de “justice cascade” foi depois aprofundado por Sikkink


em: Sikkink, Kathryn. The Justice Cascade. Nova Iorque: W. W. Norton
and Company, 2011.
23 Slaughter define tal processo de fertilização cruzada como aquele

no qual “Cortes constitucionais [...] citam precedentes umas das outras


em temas que variam da liberdade de expressão aos direitos à
privacidade e a pena de morte. [...] Elas citam-se reciprocamente não
como precedentes, mas como autoridade persuasiva. Elas também
podem distinguir sua visão daquela de outras cortes que consideraram
a problemas similares. Como resultado, ao menos em algumas áreas
como a pena de morte e os direitos à privacidade, é a emergência de
uma jurisprudência global”. Tradução livre, no original: “Constitu-
tional courts are citing each other’s precedents on issues ranging from

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 537

sim ao processo de recepção de uma pretensão política


por direitos enquanto norma em um determinado re-
gime jurídico (nacional, regional, transnacional ou in-
ternacional).24
Desde essa perspectiva a mudança social altera
a percepção geral sobre a adequação do direito e, assim,
produz a tensão que gera a alteração legal que se inicia
focalmente (emergência), se espalha transversalmente
(cascata) e, por fim, se institucionaliza em regimes jurí-
dicos distintos daqueles em que surgiu.
Nesta teoria sobre o surgimento das normas
globais fica patente tanto a relação de tensão existente
entre mudança social e mudança legal, quanto a relação
entre direito doméstico e direito internacional. Mas
resta a dúvida: tal conceito de “norma”, desenvolvido
pela ciência política e as relações internacionais, é coe-
rente com aquele de uso comum entre os juristas? Para
responder a essa questão passamos a análise do debate
sobre princípios e regras e, posteriormente, a sua apli-
cação à norma global de responsabilidade individual.

3. Antes das normas, princípios e regras

A abordagem de Finemome e Sikkink aponta


para a existência de um conjunto de conceitos para o
que seja uma “norma”, destacando, não obstante, os
dois mais comuns: “Acadêmicos de distintas disciplinas
reconhecem diferentes tipos ou categorias de normas. A dis-

free speech to privacy rights to the death penalty. […] They cite each
other not as precedent, but as persuasive authority. They may also
distinguish their views from views of other courts that have consid-
ered similar problems. The result, at least in some areas such as the
death penalty and privacy rights, is an emerging global jurispru-
dence”. Slaughter, Anne-Marie. “A Global Community of Courts”. In:
Harvard International Law Journal, vol. 44, no. 01, 2003, pp. 193.
24 Agradeço ao Professor Marcelo Neves por chamar minha atenção e

insistir na necessidade deste esclarecimento para o bom entendimento


do argumento em desenvolvimento.
538 Marcelo D. Torelly

tinção mais comum é entre normas reguladoras, que orde-


nam ou constrangem comportamentos, e normas constituti-
vas, que criam novos atores, interesses e categorias de
ação”.25
Para os fins deste estudo o que interessa desta
perspectiva da ciência política é, portanto, que a ideia
de “norma reguladora” desenvolvida quando tratamos
da “norma global”, pode tratar tanto de um princípio,
quanto de uma regra, quanto da combinação entre am-
bos. Assim, torna-se profícuo explorar como a teoria
jurídica tem enfrentado, primeiramente, a própria dis-
tinção entre regras e princípios para, então, escrutinar
como se desenvolveu a norma global em questão (se-
ção 04) e, em um momento final, buscar-se compreen-
der como tais distinções aplicam-se e reconfiguram-se
no caso concreto da norma global de responsabilidade
individual (seção 05).
Duas abordagens vêm sendo recorrentemente
aduzidas quando se discute a diferença entre regras e
princípios na teoria jurídica, procurando estabelecer
uma distinção qualitativa, vale resgatá-las brevemente:
Robert Alexy propõe, em sua teoria dos direitos
fundamentais, que tanto regras quanto princípios são
espécies de normas, já que constituem “expressões
deônticas básicas do dever”.26 Diferencia-os, posterior-
mente, ao apontar que:
“O ponto decisivo na distinção entre regras e prin-
cípios é que princípios são normas que ordenam
que algo seja realizado na maior medida possível
dentro das possibilidades jurídicas e fáticas exis-

25 Tradução livre, no original: “Scholars across disciplines have recognized

different types or categories of norms. The most common distinction is be-


tween regulative norms, which order and constrain behavior, and constitutive
norms, which create new actors, interests, or categories of action”.
Finnemore; Sikkink. Op.cit., p.891.
26 Alexy, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros,

2008, p.87.
A formação da normal global de responsabilidade individual 539

tentes. Princípios são, por conseguinte, mandamen-


tos de otimização, que são caracterizados por pode-
rem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de
que a medida devida de sua satisfação não depen-
de somente das possibilidades fáticas, mas tam-
bém das possibilidades jurídicas. O âmbito das
possibilidades jurídicas é determinado pelos prin-
cípios e regras colidentes.”27

Por sua vez, as regras:


“[...] são normas que sempre são ou satisfeitas ou
não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se
fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais,
nem menos. Regras contêm, portanto, determina-
ções no âmbito daquilo que é fática e juridicamente
possível.”28

Concluindo que “[...] isso significa que a distinção


entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não
uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um
princípio.”29 Assim, os princípios detêm mandamentos
prima facie, ou seja, “representam razões que podem ser
afastadas por razões antagônicas”,30 enquanto as regras
possuem um comando que, se válido, determina exa-
tamente aquilo que deve ocorrer. Alexy define que
princípios são sempre razões prima facie, enquanto re-
gras são sempre razões definitivas. O autor entende, de
forma parcialmente coincidente com Joseph Raz, que
princípios e regras são razões para normas, mas que, ao
sê-lo, igualmente tornam-se razões para ações. Discor-
da, não obstante, daqueles que entendem que os prin-
cípios são apenas razões para regras, vez que “regras po-

27 Alexy. Op.cit., p.90.


28 Alexy. Op.cit., p.91.
29 Alexy. Op.cit., p.91.
30 Alexy. Op.cit., p.104.
540 Marcelo D. Torelly

dem ser também razões para outras regras e princípios po-


dem ser razões para decisões concretas”.31
Ronald Dworkin, por sua vez, aponta que as re-
gras possuem uma natureza de “tudo ou nada” em sua
aplicação, não sendo possível afirmar que uma dada
regra “é mais importante que outra”,32 enquanto os prin-
cípios “possuem uma dimensão que as regras não têm – a
dimensão do peso ou importância”.33 É assim que:
“Quando princípios se entrecruzam [...] aquele que
vai resolver o conflito tem de levar em conta a for-
ça relativa de cada um. Esta não pode ser, por cer-
to, uma mensuração exata e o julgamento que de-
termina que um princípio ou política é mais im-
portante que outra frequentemente será objeto de
controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma
parte integrante do conceito de um princípio, de
modo que faz sentido perguntar que peso ele tem
ou quão importante é.”34

Na teoria de Dworkin “depois que um caso é deci-


do podemos dizer que ele ilustra uma regra particular [...]
mas a regra não existe antes de o caso ser decidido; o tribunal
usa princípios para justificar a adoção e aplicação de uma
nova regra”35. Nessa perspectiva os juristas, quando re-
solvem casos complexos, abandonam o modelo de re-
gras e passam a se guiar por outros padrões. Entre es-
tes padrões estão as políticas e os princípios. As primei-
ras são entendidas como “objetivos a serem alcançados”, e
os últimos como um “padrão que deve ser observado [...]

31 Alexy. Op.cit., p.104.


32 Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: WMF, 2010,
p.43.
33 Dworkin. Op.cit., p.42.

34 Dworkin. Op.cit., pp.42.-43


35 Dworkin. Op.cit., p.46.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 541

porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma


outra dimensão da moralidade”.36
Desta feita o aplicador do direito pode “criar”
direito ou alterar as regras em vigor desde uma pers-
pectiva da moralidade comum a dada comunidade
quando satisfeitos dois pressupostos: primeiramente, a
mudança em questão deve favorecer a um princípio;
em segundo lugar, a mudança só pode ocorrer após o
aplicador considerar todos os padrões contrários a alte-
ração doutrinaria e, ainda assim, constatar a vantagem
em prol do princípio em questão.
Neves criticará a ambas as teorias. Quanto à teo-
ria de Alexy, sobre a otimização, apontará que:
“[...] passa por cima do fato de se tratar de uma so-
ciedade complexa, com diversos pontos de obser-
vação conforme a esfera social que se parte [...] e
de um sistema jurídico que traduz internamente,
conforme seus próprios critérios, essa pluralidade
de ângulos. O que é otimizante em uma perspecti-
va não é otimizante em outra.”37

Quanto à tese de Dworkin aponta, primeira-


mente, que embora os princípios constitucionais sir-
vam para possibilitar uma maior abertura da argumen-
tação jurídica à complexidade social, não se deve des-
conhecer que as regras “reduzem a complexidade dos prin-
cípios, possibilitando a passagem de um estado de incerteza
inicial para a certeza no final do procedimento de solução do
caso”.38
Neves propõe uma abordagem distinta, desen-
volvida a partir de leituras da teoria dos sistemas, onde
lê as regras como produto de uma observação de pri-

36 Dworkin. Op.cit., p.36.


37 Neves, Marcelo. Entre Hidra e Hercules. São Paulo: WMF, 2013, p.83.
A crítica, evidentemente, é mais ampla e complexa, recortando-se aqui
apenas aquilo que interessa ao argumento em construção.
38 Neves. Ibidem, p.58.
542 Marcelo D. Torelly

meira ordem, no nível da estrutura de expectativas,


enquanto os princípios seriam produtos de uma obser-
vação de segunda ordem, não oferecendo critérios de-
finitivos para a solução do caso. Assim, regras e princí-
pios passam a funcionar como elementos de equilíbrio
entre a consistência interna e a adequação social do direito:
“Não há norma pronta e previamente acabada, a
ser aplicada de maneira diversa como regra ou
princípio. Isso pressuporia uma externalização da
justificação da norma para uma ordem moral com
pretensão de validade pragmática universal. O que
se passa é que, na observação de primeira ordem, a
diferença entre regras e princípios ainda é irrele-
vante. Quando, na observação de segunda ordem,
instaura-se a controvérsia argumentativa em torno
do sentido, da validade e das condições de aplica-
ção das respectivas normas, a diferença entre prin-
cípios e regras ganha um significado imprescindí-
vel para o desenvolvimento consistente e adequa-
do do direito.”39

No plano da consistência, as regras cumprem a


função de estabilizar expectativas, determinando de
forma regular e coerente a conduta; no plano da ade-
quação, os princípios permitem a atualização do direito
com os desenvolvimentos sociais. Assim, para Neves, o
que tratamos ao distinguir regras de princípios é, gros-
so modo, equilibrar um tipo de argumentação formal
(baseada em regras), com um tipo de argumentação
substancial (baseada em princípios), ambas necessárias
para que o direito seja, a um só tempo, internamente
consistente e externamente adequado.40 Tal paradoxo,
entre conservação e mudança, encontra-se especial-
mente presente no direito constitucional, vez que, para
Neves, funcionando como acoplamento entre Direito e

39 Neves. Ibidem, p.100.


40 Neves. Ibidem, p.170.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 543

Política, a Constituição “sempre tem duas dimensões:


“Constituição como politização do direito” e “Constituição
como juridificação da política”.”41
Temos, assim, um panorama dos principais de-
senvolvimentos e críticas em torno da distinção entre
princípios e regras, restando a questão: como tais teorias
dialogam com a emergência da norma global de responsabili-
dade individual?

4. A consolidação da norma global de


responsabilidade individual

4.1. A Emergência da Norma

A norma global de responsabilidade individual


não se encontra expressa de maneira objetiva em ne-
nhum texto legal. Estrutura-se, basicamente, a partir da
premissa de que agentes responsáveis por graves vio-
lações contra os direitos humanos devem ser responsa-
bilizados por suas condutas, estas sim, tipificadas no
direito penal internacional. Tal premissa encontra dois
fortes campos de resistência, o primeiro, no âmbito do
direito doméstico, o segundo no âmbito do direito in-
ternacional.
No direito doméstico, a resistência remonta a
tensão dentre a vontade da maioria (seja ela fática ou
pressuposta) e a garantia dos direitos fundamentais
das vítimas. O grande exemplo de tal obstáculo são as
leis de anistia, amplamente utilizadas enquanto meca-
nismos transicionais ao longo do Século XX.42 Tais leis,
em prol da ideia de pacificação nacional, perdoam cri-
mes, inclusive graves violações aos direitos humanos.

41 Neves. Ibidem, p.195.


42Torelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de
Direito. Coleção Fórum Justiça e Democracia, vol. 02. Belo Horizonte:
Fórum, 2012, pp. 84-90.
544 Marcelo D. Torelly

No direito internacional, as doutrinas da sobe-


rania e da imunidade representam, sem nenhuma dú-
vida, o maior obstáculo à premissa da necessidade de
responsabilização individual. Segundo tais doutrinas
os Estados estrangeiros não podem, exceto em situa-
ções absolutamente excepcionais, processar e punir
agentes públicos envolvidos em graves violações con-
tra os direitos humanos. A própria pressão internacio-
nal por julgamentos domésticos, no plano diplomático,
pode ser lida como uma intromissão em assuntos in-
ternos.
A primeira grande quebra de paradigma rumo à
afirmação da premissa contida na norma global data
dos anos 1940. Mais especificamente, remonta os jul-
gamentos de Nuremberg e Tóquio, após a Segunda
Grande Guerra.43 Embora críticos apontem tais julga-
mentos como “tribunais de vencedores”,44 é relativa-
mente pacífico o entendimento de que tais tribunais
não apenas cumpriram um papel efetivamente jurídico
no processamento dos crimes dos nazistas e seus alia-
dos, como que igualmente estabeleceram uma série de
standards para julgamentos futuros.
A partir dos padrões estabelecidos nos julga-
mentos do pós-guerra, especialmente aqueles alusivos
a categoria de delitos contra a humanidade, uma ampla
doutrina constituiu-se. Como aponta Teitel, que classi-
fica esta fase do pós-guerra como uma primeira fase da
genealogia da ideia de justiça de transição, o período
seguinte, portanto, a segunda fase, foi caracterizada me-
nos por julgamentos, e mais por alternativas domésti-
cas, como o estabelecimento de comissões da verdade,

43 Neste sentido: Teitel, Ruti. “Genealogia da Justiça Transicional”. In:


Reategui, Felix (org.). Justiça de Transição – Manual para a América
Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp. 135-
170. Bem como: Sikkink. Op.cit., introduction.
44 e.g. Elster, Jon. Closing the Books – transitional justice in historical

perspective. New York: Cambridge University Press, 2004.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 545

diagnosticando tal movimento como um resultado di-


reto do encrudescimento da Guerra Fria, produtor de
severa redução na capacidade dos estados em alinha-
rem-se de forma homogênea para o estabelecimento de
tratados e tribunais de escala efetivamente global.45
Não obstante, seguindo com a categorização de
Finemore e Sikkink, fica claro que a mobilização trans-
nacional por responsabilização individual tem, aqui,
seu início, sendo o exemplo mais evidente aquele do
esforço de agentes da comunidade judaica pelo proces-
samento de criminosos de guerra, entre os quais o caso
Eichmann tornou-se o célebre.46 As plataformas dispo-
níveis, no caso, eram os próprios estados nacionais (no
caso Eichmann, o estado de Israel), mas também as
organizações internacionais, vez que nesta época, tanto
no âmbito da Organização das Nações Unidas quanto,
localmente, da Organização dos Estados Americanos,
diversos tratados internacionais sobre direitos huma-
nos foram estabelecidos, demonstrando o esforço de
mobilização transnacional para, num primeiro momen-
to, persuadir a comunidade internacional e os estados
nacionais sobre a existência de uma obrigação de inves-
tigar e punir as graves violações contra os direitos hu-
manos.

4.2. A Cascata da Norma

Seguindo com Sikkink, a cascata da norma ini-


cia nos anos 1970 e 1980, quando são julgados os altos
agentes de estado envolvidos em graves violações con-
tra os direitos humanos na Grécia, Portugal e Argenti-

45 Teitel, Ruti. “Genealogia da Justiça Transicional”. In: Reategui, Felix


(org.). Justiça de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova
Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp. 135-170.
46 Para uma análise: Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São

Paulo: Companhia das Letras, 1999.


546 Marcelo D. Torelly

na, seguindo-se, nos anos 1990, um boom de julgamen-


tos por crimes análogos em todas as regiões do mun-
do.47 No interlúdio entre a Era de Nuremberg e a casca-
ta, não obstante, uma mudança-chave ocorre na genea-
logia da justiça transição. No período que Teitel identi-
fica como a segunda fase desta genealogia, as alternati-
vas internacionalistas estavam bloqueadas pelo conflito
bipolar, produzindo como efeito a necessidade de que
os estados nacionais pós-conflito tivessem de lidar do-
mesticamente com seus legados autoritários (naquilo
que, metaforicamente, Elster definiu como a necessida-
de de reconstruir um barco em alto mar)48.
Esse processo fortaleceu a ideia de que, mesmo
que anistias fossem válidas, bloqueando a responsabi-
lidade individual, era cogente e imperativa a necessi-
dade de alguma forma de responsabilização, mesmo
que abstrata, emergindo um novo paradigma, fulcrado
no princípio responsabilidade do Estado. Os modelos de
responsabilização estatal deram azo a um conjunto de
medidas, consolidadas na literatura sobre justiça tran-
sicional nos campos da verdade e da reparação.
As primeiras comissões da verdade (na acepção
odierna), na Argentina (1983) e na África do Sul (1995)
trabalharam, em sentidos distintos, para garantir que
alguma forma de reconhecimento e responsabilização
fosse possível. Na Argentina, partindo de uma plata-
forma muito mais social que institucional, mesmo com
as idas e vindas na luta por responsabilização crimi-
nal,49 os atores envolvidos no processo de acerto de
contas com o passado foram capazes de reunir um

47 Sikkink. Op.cit., p.21; pp.96-127.


48 Elster, Jon. Rendición de Cuentas – La Justicia Transicional en Perspectiva
Histórica. Tradutor: Ezequiel Zaidenwerg, Buenos Aires: Katz, 2006,
pp.94-95.
49 Para uma visão geral deste processo, veja-se: Filippini, Leonardo. La

persecución penal en la busqueda por la justicia. In: Hacer Justicia.


Buenos Aires: Siglo XXI/CELS/ICTJ, 2011, pp. 19-48.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 547

enorme volume de informações capazes de demonstrar


não apenas a responsabilidade do Estado, mas também as
responsabilidades individuais de diversos agentes públi-
cos e privados nos crimes da ditadura militar (demons-
trações estas que, posteriormente, na fase de internali-
zação doméstica da norma, foram – e seguem sendo –
úteis aos processos criminais de responsabilização).
Já a Comissão de Verdade e Reconciliação sul
africana, que igualmente avançou na assunção de res-
ponsabilidade estatal, robusteceu uma norma de anis-
tia, consignando o perdão à revelação da verdade,50
dando origem a uma ampla literatura sobre o dilema
jurídico-moral entre a busca pela verdade ou pela justi-
ça,51 e sobre o cabimento de anistias no direito interna-
cional.52
É na mesma época que se consolidam os gran-
des programas de reparações às vítimas. O processo de
reparação, por sua natureza mesma, depende do reco-
nhecimento dos crimes. Na América Latina, Argentina,
Brasil e Chile foram pioneiros neste processo.53 Aqui,
seja partindo do trabalho prévio de comissões da ver-
dade que identificaram fatos e agentes, como na Ar-
gentina,54 seja partindo do trabalho de comissões que
não individualizaram responsabilidades, como no Chi-

50 Du Bois-Pedain, Antje. Transitional Amnesty in South Africa. Nova


Iorque: Cambridge University Press, 2007.
51 Por exemplo: Rotberg, Robert; Thompson, Dennis (orgs.). Truth v.

Justice. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2000.


52 Pensky, Max. “O status das anistias no direito penal internacional”.

In: Payne, Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs.). A Anistia
na Era da Responsabilização. Brasília/Oxford: Ministério da
Justiça/Universidade de Oxford, 2011, pp.76-101.
53 Para um marco teórico e estudos de caso, confira-se: Abrão, Paulo;

Torelly, Marcelo D. (orgs.). Dossiê: Reparação. In: Revista Anistia


Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 03,
Jan./Jun. 2010, pp.40-172.
54 CONADEP. Nunca Mais – informe de la Comisión Nacional Sobre la

Desaparición de Personas. Buenos Aires: EUDEBA, 8ª edição, 2006.


548 Marcelo D. Torelly

le,55 ou, ainda, sendo os trabalhos das comissões de


reparação anterior ao estabelecimento de uma comis-
são da verdade, como Brasil,56 o fato central é que se
consolidou a norma do direito internacional, original-
mente identificada como a “obrigação de reparar” que,
gradualmente, completando o ciclo de formação das
normas globais, internalizou-se como “direito à repara-
ção” das vítimas dos abusos.57
A internalização da norma de responsabilidade
estatal alusiva às reparações, terceira etapa da formação
de uma norma global (quando os operadores do siste-
ma jurídico passam a aplicar, sem mais questionar),
impactará diretamente no processo de desenvolvimen-
to da norma de responsabilidade individual, pois permi-
tirá que aqueles atores que antes procuravam persuadir
a obrigação de responsabilizar individualmente os vio-
ladores possam, com base no amplo reconhecimento
dos fatos, migrar para uma nova estratégia, onde as
violações já estão reconhecidas, cabendo instigar o sen-
so de inadequação social quanto ao estado de impuni-
dade individual ante a estas violações.
Somando-se a isso a existência de casos prévios
isolados de aplicação da norma ao espólio de violações
legado da II Grande Guerra, fortaleceu-se o processo

55 Zalaquett, José. “Verdade e Justiça em perspectiva comparada – José


Zalaquett responde Marcelo D. Torelly”. In: Revista Anistia Política e
Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 04,Jul./Dez.
2010, pp.12-29.
56 Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. “O programa de reparações como

eixo estruturador da Justiça de Transição no Brasil”. In: Reategui, Felix


(org.). Justiça de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova
Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp. 473-515.
57 Sobre estre processo de transformação da “obrigação de reparar”

dos Estados no direito à reparação das vítimas, veja-se: Parmentier,


Stephan. “Out of the Ashes: reparations for victims of gross and
systematic human rights violations”. In: Feyter, Koen; Parmentier,
Stephan; Bossuyt, Marc; Lemmens, Paul (orgs). The right to reparation
for victims of serious human rights violations location. Antuérpia: Intersen-
tia, Antwerpen, 2005.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 549

de demonstração da existência da norma de responsabi-


lidade individual nos planos do direito internacional e
comparado. Os fatos estavam reconhecidos e existiam
precedentes disponíveis para demonstrar a existência
de uma norma sobre eles incidente.
A combinação da cascata da norma individual
com o contexto de internalização da norma responsabi-
lidade estatal em regras fortalece, assim, o processo
social de luta por justiça, na medida em produz (e é
produzido por) uma mudança social radical no enfren-
tamento da questão da violência de estado. De um la-
do, o conteúdo determinado das regras alusivas à repa-
ração e a busca da verdade estabelece direitos claros às
vítimas e estabiliza expectativas quanto à natureza ilíci-
ta de fatos vitimadores. De outro, o início do processo
de cascata da norma global de responsabilidade indi-
vidual permite que a se estabilize ainda, não uma regra,
mas pelo menos um princípio norteador para a necessi-
dade de diferenciação entre formas abstratas e individu-
ais de responsabilidade, estabelecendo um novo horizon-
te reflexivo dentro do direito “global”.
Dialogando com essa realidade, no contexto la-
tino-americano, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos passa a cumprir um papel essencial, tanto na
formação de ambas as cascatas (reparações e verdade;
responsabilização individual) no âmbito regional,
quanto na afirmação de princípios diretores e na inter-
nacionalização de regras estáveis no plano internacio-
nal. Fez ainda mais ao pressionar, por via de seus me-
canismos de monitoramento de implementação de sen-
tenças, pela internalização das normas internacionais
no âmbito doméstico dos estados-parte, seja enquanto
regras de aplicação direta, seja enquanto princípios
orientadores de políticas.58 É a Corte quem, convencida

58 Cf.: Caso Almonacid Arellano e outros VS. Chile; Caso Chumbipuma

Aguirre e outros VS. Peru (Barrios Altos); Caso Goiburú e outros vs.
Paraguai; Caso Gutierréz Soller vs. Colômbia; Caso La Cantuda vs. Perú;

 
550 Marcelo D. Torelly

da existência de dadas regras e princípios, passa a ado-


tar uma estratégia de demonstração da sua existência no
âmbito interpretativo da Convenção Americana – cuja
redação é bastante geral – apontando regras de cum-
primento obrigatórios pelos estados (internalização de
regras no regime internacional), e auxilia no processo
de convencimento e demonstração, nos planos domés-
ticos, da existência de regras e princípios atinentes à
norma global.
4.3. Internalização doméstica da norma
É claro que a norma de responsabilidade indi-
vidual encontra-se internalizada enquanto regra no
direito regional dos direitos humanos na América Lati-
na, mas é hoje a norma global uma norma efetivamente
internalizada nos demais regimes, especialmente nos
domésticos? A resposta pode ser obtida tanto da análi-
se sobre a ratificação de outros tratados internacionais
que preveem tal norma, quanto de sua absorção, por
mecanismos ordinários, nos sistemas de direito domés-
tico.
Na perspectiva internacional, a aprovação em
1998 do Estatuto de Roma, que estabelece o Tribunal
Penal Internacional (TPI) na Haia, pode ser tomada
como ponto de referencia. O TPI iniciou suas ativida-
des em 1º de julho de 2002, com poderes para investi-
gar e punir graves violações contra os direitos huma-
nos, e atualmente 122 estados já aderiram à jurisdição
da Corte, o que demonstra um substancial nível de in-
ternalização por meio de ratificação (mesmo que Esta-
dos estratégicos na geopolítica mundial, como Estados
Unidos e China, não reconheçam a jurisdição do TPI).
Ainda, por meio do direito internacional, dois presi-
dentes no exercício de suas atribuições foram proces-
sados por graves violações contra os direitos humanos

Caso Masacre de La Rochela vs. Colômbia; Caso Molina Teissen vs.


Guatemala; Caso Tibi vs. Equador, Caso Velásquez-Rodríguez vs.
Honduras.
A formação da normal global de responsabilidade individual 551

(Slobodan Milosevic, da Iugoslávia, e Charles Taylor,


da Libéria), demonstrando a capacidade da norma glo-
bal de insurgir-se contra, e vencer, as doutrinas sobe-
ranistas da imunidade.
Na perspectiva doméstica, a internalização pode
dar-se por dois distintos caminhos: a implementação
de sentenças internacionais e a alteração de legislações
domésticas. Nos dois casos, os principais obstáculos à
internalização da norma global são as anistias domésti-
cas, baseada nas normas e doutrinas de proteção da
soberania, e a questão da “retroatividade” penal.
Usando, novamente, a América Latina como
exemplo, as sentenças da Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos59 auxiliaram na internalização da nor-
ma global. Chile e Uruguai processaram graves viola-
ções sob influência direta de decisões emanadas do
tribunal sediado em San José da Costa Rica.60 Ainda, o
Brasil debate formas de implementação da sentença do
caso Julia Gomes Lund e outros,61 e a Argentina, mesmo
sem ter sido condenada, passou a utilizar, nas cortes
ordinárias e na Corte Suprema de Justiça da Nação, os
julgados da Corte Interamericana para fundamentar
suas decisões.62

59 Valendo ainda o exemplo dos referidos na nota anterior.


60 Para um debate comparado entre a influência não da Corte, mas do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos, nas jurisprudências
domésticas de Brasil e Argentina veja-se nosso: Torelly, Marcelo D.
“Transconstitucionalização do Direito e Justiça de Transição:
elementos para a análise de insurgências constitucionais por interações
institucionais na Argentina e Brasil”. In: Neves, Marcelo (org.). Fugas e
Variações sobre o Transconstitucionalismo. (no prelo)
61 Veja-se, por exemplo, o documento que consolida a mudança de

posição do Ministério Público Federal sobre este tema: MPF. 2ª


Câmara de Coordenação Criminal. “Documento nº 02/2011”. In:
Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da
Justiça, vol. 07, Jan./Jul. 2012, pp.358-371.
62 Parenti, Pablo. “A aplicação do Direito Internacional no julgamento

do terrorismo de Estado na Argentina”. In: Revista Anistia Política e


552 Marcelo D. Torelly

A maioria dos países, no período pós-cascata,


estabeleceu mecanismos domésticos que tornam a
norma global aplicável, entre eles a tipificação dos cri-
mes contra a humanidade, a vedação e imprescritibili-
dade da tortura, a tipificação e imprescritibilidade do
genocídio, entre outros. O grande debate corrente, não
obstante, é quanto à aplicação destes dispositivos para
os crimes do passado. A doutrina (assim como a práti-
ca judicial) divide-se entre aqueles que entendem que,
sopesado o direito internacional, tais normativas não
podem ser aplicadas ao passado, sob pena de caracteri-
zação de retroatividade penal;63 e aqueles que enten-
dem que, seja por meio da aplicação direta do direito
internacional,64 seja por uma aplicação não retroativa,
mas sim retrospectiva, do próprio direito constitucio-
nal doméstico,65 é possível a aplicação da norma global
a fatos que ocorreram antes mesmo do próprio reco-
nhecimento da norma global no regime doméstico.
Ou seja, não se discute mais a própria existência
da regra, mas sim, primeiramente, seu momento de
institucionalização (se aquele do direito internacional, ou
aqueles dos direitos domésticos) e, em segundo lugar,
debate-se a natureza jurídica da norma durante o perí-
odo entre a institucionalização das regras internacional

Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, vol. 04, Jul./Dez.


2010, pp.32-55.
63 Dimoulis, Dimitri; Martins, Antonio; Swensson Jr., Lauro Joppert

(orgs). Justiça de Transição no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010.


64 Ventura, Deisy. “A interpretação judicial da Lei de Anistia no

Brasil”. In: Payne, Leigh A.; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs). A
Anistia na Era da Responsabilização. Brasília/Oxford: Ministério da
Justiça/Universidade de Oxford, 2011, pp.308-343. Piovesan, Flávia.
“Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Lei de Anistia: o caso
brasileiro”. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília:
Ministério da Justiça, vol. 02, Jul./Dez. 2009, pp.176-189.
65 Torelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de

Direito. Coleção Fórum Justiça e Democracia, vol. 02. Belo Horizonte:


Fórum, 2012, pp.210-217.
A formação da normal global de responsabilidade individual 553

e domésticas. Deve ser aplicada enquanto regra de di-


reito internacional que colide com regra de direito in-
terno, conforme o fez o Supremo Tribunal Federal bra-
sileiro no julgamento da ADPF n.º 153/2008, priori-
zando uma argumentação soberanista que conduziu ao
afastamento do dispositivo internacional, num modelo
de resistência. Como regra de direito internacional que
se impõe ante a regra doméstica posterior, num mode-
lo de convergência, como no caso Argentino e seus jul-
gados na Suprema Corte de Justiça da Nação? Ou deve
ser aplicada enquanto princípio internacional matizador
da leitura do direito doméstico, sendo sopesado com
seus dispositivos, num modelo de articulação, como fez
a Suprema Corte Chilena em diversos casos alusivos ao
regime Pinochet?
Apesar deste debate aceso sobre a extensão
temporal e as formas de interação entre direito domés-
tico e internacional, restam claras, hoje, portanto, as
evidências da internalização da norma global de res-
ponsabilidade individual, mesmo que seus efeitos ain-
da sejam objetos de disputa política e social. Pende,
portanto, no campo da dogmática jurídico-
constitucional, a questão de ser tal norma uma regra ou
um princípio. Como exposto, tal questão tem, justamen-
te, implicações quanto ao tipo de aplicabilidade da
norma. A tese aqui defendida é que a própria evolução
da norma global oferece respostas, relacionadas a de-
senvolvimento de seu ciclo vital.
554 Marcelo D. Torelly

5. Conclusões tentativas: a internalização da norma


global e o processo de diferenciação funcional das
normas em princípios e regras na sociedade
mundial

5.1. Superando as abordagens tradicionais da dogmática


constitucional

A distinção entre regras e princípios foi formu-


lada para pensar a aplicação das normas. Independente
de qualquer teorização, tem, portanto, um fito prático.
Como se pretendeu demonstrar, especialmente na
quarta seção deste estudo, resta inequívoca a existên-
cia, hodiernamente, que uma norma global de respon-
sabilidade individual quanto as graves violações contra
os direitos humanos. Cabe, portanto, o questionamen-
to: tal norma deriva de uma regra ou de um princípio?
Antes de responder, não obstante, não é demais refor-
çar porque se entende que tal debate figure como um
debate de direito constitucional, e não exclusivamente
de direito penal internacional, ou de direito penal do-
méstico.
É razoavelmente consensual que questões de di-
reitos humanos são questões constitucionais para qual-
quer comunidade. Igualmente, é fácil identificar no
debate sobre a responsabilização o tratar-se de um de-
bate sobre garantias fundamentais (sejam elas substan-
tivas como o direito a integridade física, sejam proces-
suais, como o direito de recorrer à justiça ante a uma
violação). Deste modo, é claro que o problema em
questão é um problema constitucional. A indagação
pendente é, justamente, a qual comunidade se refere tal
problema. Às comunidades nacionais singulares? Aos
blocos geopolíticos que se organizam por tratados e
estabelecem mecanismos protetivos de direitos funda-
mentais? À sociedade mundial, implicada na ideia de
universalidade dos direitos humanos?

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 555

Na perspectiva que aqui se entende construir, o


problema se apresenta como um problema global, atre-
lado a um direito da sociedade mundial, heterárquico e
organizado em fragmentos constitucionais (para usar o
vocabulário de Gunther Teubner,66 ou em “regimes”,67
como mais ao gosto do direito internacional). Trata-se,
portanto, daquilo que Neves define como um problema
transconstitucional:
“Um problema transconstitucional implica uma
questão que poderá envolver tribunais estatais, in-
ternacionais, supranacionais e transnacionais (arbi-
trais), assim como instituições jurídicas locais nati-
vas, na busca de uma solução”.68

Assim, a norma global de responsabilidade in-


dividual, entendida como uma norma transconstitucio-
nal, reintroduz no debate a questão da hipercomplexi-
dade da sociedade mundial, pontuada na crítica de
Neves as teorias de Dworkin e Alexy. Como tais teorias
nos auxiliam a entender a natureza da norma global
em questão?
As primeiras formulações sobre a norma global,
mais especificamente focadas na obrigação internacio-
nal dos Estados em investigar e punir as violações gra-
ves contra os direitos humanos tendiam a apontar que
tal obrigação deriva de uma regra. A então futura rela-
tora especial das Nações Unidas para o combate à im-
punidade, Diane Orentlicher, em 1991, defendia que o
conjunto de textos legais então existentes (os legados
de Nuremberg, a Convenção contra a Tortura, a Con-
venção contra o Genocídio, o Direito Internacional
Consuetudinário, as convenções de Direitos Humanos

66 Teubner, Gunther. Op.cit.


67 Young, Margaret A. (org.). Regime Interaction in International Law.
Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012.
68 Neves, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martis

Fontes, 2009, p.22.


556 Marcelo D. Torelly

e, ainda, o Direito Comparado), apontava para a exis-


tência de uma norma cuja natureza, para usar a catego-
ria de Alexy, conteria uma determinação.69 Ante a dados
crimes, não caberia escolha que não a responsabiliza-
ção individual. Tal posição não se alterou quando
Orentlicher atualizou o Conjunto de Princípios para o
Combate à Impunidade, das Nações Unidas.70
Com o passar do tempo – e sem abandonar a
perspectiva pró-norma global – Orentlicher reorientou
seu pensamento, passando a considerar que o contexto
político local (uma dimensão fática, portanto, externa
ao sistema do direito), afetaria a própria percepção da
adequação da aplicação doméstica da norma global en-
quanto regra de direito internacional, pontuando, em
2007, que:
“Enquanto essas tendências [novos desenvolvi-
mentos da Justiça de Transição] significam uma
poderosa afirmação da norma global em favor da
responsabilização criminal pro crimes atrozes, os
profissionais praticantes da justiça de transição es-
tão mais conscientes do que em qualquer momen-
to anterior de que não pode existir um abordagem
do tipo one-size-fits-all para a justiça de transição.
Assim também estão os oficiais das Nações Unidas
que afirmaram com robustecida convicção ‘a posi-
ção de que anistias não podem ser concedidas em
relação a crimes internacionais’. Dada a extraordi-
nária extensão das experiências e culturas nacio-
nais, como pode alguém imaginar que exista uma

69 Orentlicher, Diane F. “Settling Accounts: The Duty to Prosecute


Human Rights Violations of a Prior Regime”. In: The Yale Law Journal,
Vol. 100, No. 8, Jun.1991, pp. 2537-2615.
70 Orentlicher, Diane F. Report of the Independent Expert to Update the Set

of Principles to Combat Impunity. UN Doc. E/CN.4/2005/102 Feb. 18,


2005.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 557

formula universal relevante para a justiça de tran-


sição?” 71

Tal posição foi revista após uma série de experi-


ências concretas. Primeiro, o êxito (mesmo que não
absoluto) da Comissão Nacional da Verdade Sul Afri-
cana. Depois, o fracasso de alguns tribunais ad hoc, co-
mo o para Ruanda, em estabelecer processos duradou-
ros de paz, não pela desnecessidade da justiça criminal,
mas por sua incompletude. Nesta segunda interpreta-
ção dada por Orenlitcher, os textos internacionais que
sustentam a norma global poderiam ser lidos como
regras internacionais, mas também como base funcional
para princípios domésticos, que, na linguagem de Alexy,
deveriam ser otimizados na medida do possível. Porém
tal abordagem segue sendo insatisfatória. “A medida
do possível”, em muitos contextos pós-conflito (quan-
do não na maioria), significaria nenhuma justiça.
Uma abordagem desde a teoria de Dworkin,
considerando a norma global enquanto regra, esbarra-
ria diretamente no problema das anistias, que também
teriam natureza de regras. Ter-se-ia, portanto, uma
situação de colisão de uma regra nacional com outra
internacional e, na impossibilidade de escolher “a me-
lhor”, o único recurso possível seria o de buscar um
princípio ponderador. Portanto, aqui também, a norma

71 Tradução livre, no original: “But while these trends [new develop-


ments in Transitional Justice] signify powerful affirmation of a global
norm in support of criminal accountability for atrocious crimes, pro-
fessional practitioners of transitional justice are more aware than ever
before that there cannot be a one-size-fits-all approach to transitional
justice. So, too, are officials of the same United Nations that has af-
firmed with ever-strengthening conviction ‘the position that amnesties
cannot be granted in respect of international crimes.’ Given the ex-
traordinary range of national experiences and cultures, how could
anyone imagine there to be a universally relevant formula for transi-
tional justice?”. Orentlicher, Diane F. “‘Settling Accounts’ Revisited:
Reconciling Global Normas with Local Agency”. In: The International
Journal of Transitional Justice, vol. 01, 2007, p.18.
558 Marcelo D. Torelly

global teria uma natureza principiológica, vez que sua


prevalência se basearia em uma “exigência de justiça ou
equidade”.
A perspectiva de Dworkin, portanto, melhor so-
luciona a questão do que aquela de Alexy, porém inci-
de diretamente naquilo que Elster crítica: ao resolver o
problema do conflito desde uma perspectiva da mora-
lidade pública, ignora imperativos formais do direito.72
Ao gerar adequação, prejudica fortemente a consistência.
Neste sentido, o direito constitucional não funcionaria
como mediador entre direito e política. Ele seria política
pura e simples.
Mais ainda, experiências concretas apontam que
a moralidade comunitária poderia não entender a res-
ponsabilidade individual como “justiça e equidade”. No
caso sul-africano, não ocorreram sequer questionamen-
tos em foro judicial quanto a anistia ofertada em troca
da verdade, nem nas cortes domésticas, nem no siste-
ma regional de direitos humanos. Se tivesse ocorrido
(ou venha a ocorrer – o que não parece possível, passa-
dos quase 20 anos), muito provavelmente o resultado
seria a manutenção da anistia. O caso brasileiro, mes-
mo que ainda em desenvolvimento, aponta na mesma
direção. Pesquisas de opinião indicam uma tendência
geral da moralidade pública em denegar uma alteração
da lei de anistia de 1979,73 e no mesmo sentido manifes-
tou-se (a meu ver equivocadamente)74 o Supremo Tri-

72 Elster, Jon. Rendición de Cuentas – La Justicia Transicional en Perspectiva


Histórica. Tradutor: Ezequiel Zaidenwerg, Buenos Aires: Katz, 2006,
p.108.
73 “Datafolha: 45% são contra punição a torturadores da ditadura”.

Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/datafolha-45-sao-


contra-punicao-a-torturadores-da-
ditadura,915a4bc92690b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. A
mesma pesquisa indica que 40% seriam favoráveis.
74 Uma abrangente crítica a esta decisão encontra-se disponível em:

Torelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito.

 
A formação da normal global de responsabilidade individual 559

bunal Federal na Ação de Descumprimento Funda-


mental n.º 153/2008, que questionava a anistia a graves
violações contra os direitos humanos alegadamente
cobertas pela anistia.
5.2. Entre consistência e adequação – a consolidação
da norma global e o problema da mudança de expectativas
sociais
Enfrentando o problema da hipercom-
plexidade social, Neves aponta para a constante tensão
entre a “justiça interna”, relacionada à consistência do
sistema do direito, e a “justiça externa”, relacionada à
adequação social do direito:
“Não se pode imaginar um equilíbrio perfeito en-
tre consistência jurídica e adequação social do di-
reito, a saber, entre justiça constitucional interna e
externa. A justiça do sistema jurídico como fórmu-
la de contingência importa sempre uma orientação
motivadora de comportamentos e expectativas que
buscam esse equilíbrio, que sempre é imperfeito e
se define em cada caso concreto. Por um lado, um
modelo de mera consistência constitucional con-
duz a um formalismo socialmente inadequado. [...]
Por outro lado, um modelo de mera adequação so-
cial leva a um realismo juridicamente inconsisten-
te.”75

Neste sentido, partindo da formulação de Ne-


ves, que aponta para “o paradoxo da relação entre consis-
tência jurídica, associada primariamente à argumentação
formal com base em regras, e adequação social do direito,
vinculada primariamente à argumentação substantiva com
base em princípios”,76 bem como da teoria sobre as fases
da formação das normas globais apresentada por Fi-
nemore e Sikkink, que demonstra como a mobilização

Coleção Fórum Justiça e Democracia, vol.02, Belo Horizonte: Fórum,


2012, pp.299-360.
75 Neves, Marcelo. Entre Hidra e Hercules. São Paulo: WMF, 2013, p.225.

76 Neves. Ibidem, p.170.


560 Marcelo D. Torelly

social produz alterações na percepção da adequação do


direito, que, depois, tendem a gerar novas regras que
redundam em novas formas de consistência, torna-se
especialmente interessante refletir sobre essas mudan-
ças sociais, e sua capacidade de alterar o direito, esta-
belecendo novos padrões de decisão que, por sua vez,
estabilizam novas formas de consistência. A combina-
ção destas leituras permite escapar da armadilha de
procurar, aprioristicamente, nos textos legais, por re-
gras ou princípios. Na interpretação que aqui se pro-
põe, a norma se faz na prática dos atores do sistema do
direito, e sua aplicação, condicionada ao contexto soci-
al, é funcionalmente determina por seu estágio de desen-
volvimento, ou seja, por seu ciclo de vida, funcionando
primeiro como princípio, na fase de persuasão, depois
como princípio (passando a ganhar contornos de regra)
na fase de demonstração e, finalmente, como regra, do-
méstica ou internacional, após a internalização definitiva
pelos regimes jurídicos, passando a ser aplicada ordi-
nariamente.
Após a fase de persuasão sobre a existência das
normas globais, com sua gradual institucionalização
em diferentes planos (doméstico, regional, internacio-
nal) os atores jurídicos determinantes no processo de
consolidação atuam em sentido demonstrativo, sendo
essa mudança aquela que viabiliza a cascata. Após a
cascata, a norma pode ou não se internalizar. Os exem-
plos apresentados na seção quatro demonstram que a
cascata normativa consolidou ao menos dois princípios
complementares incorporados pela justiça transicional:
o da responsabilidade estatal e o da responsabilidade indivi-
dual. Esses princípios passaram a integrar a estrutura
reflexiva do sistema jurídico em escala mundial, inci-
dindo em conflitos normativos plurais e complexos
cujas regras prévias geravam expectativas antagônicas,
como aqueles que determinam punir, e aquelas que
determinam anistiar. A mobilização social local e
transnacional, não obstante, é que permitiu a transfor-
mação (ou não) da leitura dos dispositivos legais atre-
A formação da normal global de responsabilidade individual 561

lados à norma global enquanto princípios reflexivos, que


matizam a interpretação judicial e as políticas públicas
(caso das políticas de responsabilização abstratas, ca-
racterísticas da segunda fase da justiça transicional), ou
regras de aplicação simples nos sistemas jurídicos domés-
ticos (caso dos processos de responsabilização pós-
atrocidade em inúmeros países), transmutando-os de
estrutura normativamente reflexiva à estrutura norma-
tivamente determinante.
Por que, na Argentina, o princípio da responsa-
bilidade individual foi internalizado, encerrando na-
quele contexto o ciclo de consolidação da norma,77 e
permitindo a solução padronizada em regras daquilo
que antes era conflitivo, enquanto, no Brasil, a norma
global enfrenta resistência por parte do sistema domés-
tico?78 Uma possível resposta diz respeito às diferentes
formas, tempos e intensidades da mobilização social
em torno do tema.79
Foi o processo de mobilização transnacional que
permitiu a construção de um senso de inadequação das
medidas de impunidade atreladas aos princípios sobe-
ranistas e aos princípios democráticos, viabilizando, no
plano internacional, a emergência de normas globais
que, primeiro, se estabilizaram enquanto princípios,
funcionando como mecanismos reflexivos de segunda
ordem que forçaram a reinterpretação das regras de
impunidade nos planos doméstico e internacional, alte-
rando a própria dinâmica de consistência do direito. A

77 Sikkink. Op.cit., pp.87-95.


78 Sobre esta resistência, veja-se: Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D.
“Resistance to change: Brazil’s persistente amnesty and its alternatives
for Truth and Justice”. In: Lessa, Francesca; Payne, Leigh A. (orgs).
Amnesty in the Age of Human Rights Accountability. Nova Iorque:
Cambridge University Press, 2012, pp.152-180.
79 Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. “Mutações no conceito de anistia

na Justiça de Transição brasileira: a terceira fase da luta pela anistia”.


In: Revista de Direito Brasileira. São Paulo: Conpedi/Thonson Reuters,
Ano 02, vol. 03, Jul./Dez. 2012, pp.375-380.
562 Marcelo D. Torelly

percepção inadequada força uma mudança no padrão


decisório que, por sua vez, estabiliza um novo referen-
cial, reconstituindo a consistência formal em um pata-
mar socialmente mais adequado.
Um direito internacional socialmente adequado,
na chamada Era dos Direitos Humanos, necessariamente
é incompatível com a impunidade. Assim, os princípios
antiimpunidade constituíram-se em plataforma para a
mudança do sistema jurídico, tanto para a constituição
de novas políticas de assunção de responsabilidade abs-
tratas, baseadas no princípio da responsabilidade estatal,
quanto de regras antiimpunidade individual derivadas
do princípio da responsabilidade individual. Na cascata da
justiça, primeiro persuade-se sobre a existência dos prin-
cípios que, na medida em convencem os atores relevan-
tes sobre sua adequação, institucionalizam-se, e passam
a então permitir a demonstração da existência da norma.
Os desenvolvimentos peculiares a cada contexto local
simplificam, de distintas maneiras e por distintos pro-
cessos, o conteúdo, ainda complexo e abstrato, dos
princípios, passando a constituir regras determinadas.
No processo doméstico, para internalização das
normas globais, a mesma mobilização é demandada.
Focando-se apenas na dimensão da consistência do Di-
reito, a tendência dos tribunais (como de qualquer ou-
tra instituição) é contrária à mudança. A mudança pró-
responsabilização só ocorre se, pelo tencionamento na
esfera política, o direito constitucional é pressionado
pela mudança social. Novamente, é necessário persuadir
sobre a inadequação social das regras de impunidade
para que estas possam abrir espaço para a cascata
normativa e a afirmação da norma global.
Mesmo que não seja perfeita, essa abordagem,
que abandona a predeterminação da natureza das re-
gras e princípios, permite maior abertura da teoria do
direito para o entendimento do fenômeno da insurgên-
cia normativa em escala global, e de suas relações com
o direito doméstico. O processo de consolidação das
normas globais é, em grande medida, um processo de
 
A formação da normal global de responsabilidade individual 563

irradiação do direito comparado, do direito internacio-


nal e do direito regional, que contagia o direito domés-
tico, e igualmente dele se alimenta. Daí Orentlicher
estabelecer o necessário link entre o processo de desen-
volvimento das normas globais e seu impacto nas es-
tratégias de mobilização (primeiro persuasivas, depois
demonstrativas) no plano doméstico, afirmando que
“crucialmente, as normas legais internacionais atinentes ao
processamento de crimes atrozes desempenharam um papel
importante permitindo [...] aos países superar barreiras de
outras maneiras instransponíveis para a persecução”·.
Abandonando uma perspectiva estritamente
doméstica do direito, ou uma perspectiva binomial que
antagoniza direito doméstico e direito internacional, é
possível entender as normas globais como produto de
complexos processos sociais de tencionamento de es-
truturas jurídicas que, embora fragmentárias, comuni-
cam-se constante e permanentemente, de formas har-
moniosas e conflitivas. Os princípios e as regras deste
direito global, que produz tanto normas constitucio-
nais, quanto normas ordinárias afasta-se completamen-
te de uma leitura hierarquizante que percebe os princí-
pios enquanto estruturas superiores as regras (a sobe-
rania nacional, inclusive, é um princípio); quanto de
uma leitura de otimização, vez que os valores da pró-
pria sociedade mundial não são homogêneos (punir é
melhor investimento que desenvolver a economia, em
um contexto de recursos escassos?). No contexto do
surgimento de normas globais – que não dizem respei-
to apenas a direitos humanos – explicita-se a tensão
entre a necessidade de adequação e de consistência do
direito não apenas no plano doméstico, mas também
no de uma sociedade mundial, de normatividades en-
trecruzadas. Neste sentido, uma abordagem de contin-
gência talvez seja mais apropriada que aquelas que
objetivam uma maximização arquimediana, ou uma
única decisão correta.
564 Marcelo D. Torelly

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El rol de la Constitución en la
transición democrática argentina
Los argumentos que posibilitaron
el proceso de juzgamiento1

Julia  A.  Cerdeiro2  

Introducción

El presente trabajo tiene dos objetivos. El prime-


ro, describir los puntos más salientes de la transición
democrática argentina; el segundo, reseñar los artículos
de la Constitución Nacional que mayor influencia tuvi-
eron en el proceso de juzgamiento de violaciones masi-
vas y sistemáticas que tuvieron lugar durante la última
dictadura militar en la Argentina.

1 El presente artículo fue expuesto en el panel de Constitucionalización y


responsabilidad penal y civil en América latina del Congreso Internacional
Justicia de Transición a los 25 años de la Constitución de 1988, que
tuvo lugar los días 23, 24 y 25 de mayo de 2013 en la Facultad de
Derecho de la Universidad de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.
Agradezco la invitación a la Comisión organizadora del Congreso, a la
Universidad de Minas Gerais y especialmente a los Profesores Emilio
Peluso Neder Meyer y Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira.
2 Abogada de la Universidad de Buenos Aires, secretaria de la

Procuraduría de Crímenes contra la Humanidad de la Procuración


General de la Nación de la Argentina.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
570 Julia A. Cerdeiro

La transición democrática hasta el día de hoy

El tratamiento de violaciones masivas y sistemá-


ticas ocurridas en el pasado reciente representa uno de
los mayores desafíos para las transiciones democráti-
cas. Este problema no sólo se presentó en América La-
tina, sino también en el resto mundo. En los años 70, la
Argentina, como muchos otros países del cono sur,
estuvo sometida una dictadura militar. Luego de ella,
nuestro país enfrentó una transición democrática que
puede dividirse en tres etapas.3 La primera comenzó en
el año 1983 y se extendió hasta el inicio de la década
del '90; la segunda se desarrolló durante esa década; y
la última comenzó, aunque tímidamente, con la década
siguiente y empezó a consolidarse a partir del año
2003.

La primera etapa, que puede denominarse la


justicia retroactiva limitada, se caracterizó por el juzga-
miento a las cúpulas militares. El 10 de diciembre de
1983 asumió la presidencia Raúl Alfonsín. Tres días
después mandó a perseguir, primero, a los principales
miembros de las organizaciones armadas4, y, segundo,

3 Tomo en parte esta división en tres etapas, aunque con algunas

diferencias, de Marcelo Raffin, La experiencia del horror: subjetividad y


derechos humanos en las dictaduras y postdictaduras del Cono Sur (Buenos
Aires, Del Puerto, 2006), p. 171.
4 El art. 1 del decreto 157/83 disponía: “Declárase la necesidad de

promover la persecución penal, con relación a los hechos cometidos


con posterioridad al 25 de mayo de 1973, contra Mario Eduardo
Firmenich (L.E. 7.794.388); Fernando Vaca Narvaja (L.E. 7.997.198);
Ricardo Armando Obregón Cano (L.E. 2.954.758); Rodolfo Gabriel
Galimberti (C.I. 5.942.050); Roberto Cirilo Perdía (L.E, 4.399.488);
Héctor Pedro Pardo (L.E. 7.797.669); y Enrique Heraldo Gorriarán
Merlo (LE. 4.865.510) por los delitos de homicidio, asociación ilícita,
instigación pública a cometer delitos, apología del crimen y otros
atentados contra el orden público, sin perjuicio de los demás delitos de
los que resulten autores inmediatos o mediatos, instigadores o
cómplices.” Todos miembros de la agrupación Montoneros, salvo por

 
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 571

a los miembros de las tres primeras juntas militares que


ejercieron el poder durante la dictadura.5 Paralelamen-
te, el Poder Ejecutivo envió al Congreso un proyecto de
reforma del Código de Justicia Militar, que luego se
convertiría en la ley 23.049.6 La reforma se basaba en

Gorriarán Merlo que había sido fundador del ERP (Ejército


Revolucionario del Pueblo).
5 El art. 1 del decreto 158/83 establecía: “Sométase a juicio sumario

ante el Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas a los integrantes de


la Junta Militar que usurpó el gobierno de la Nación el 24 de marzo de
1976 y a los integrantes de las dos Juntas Militares subsiguientes,
Teniente General Jorge R. Videla, Brigadier General Orlando R. Agosti,
Almirante Emilio A. Massera, Teniente General Roberto E. Viola,
Brigadier General Omar D. R. Graffigna, Almirante Armando J.
Lambruschini, Teniente General Leopoldo F. Galtieri, Brigadier
General Basilio Lami Dozo y Almirante Jorge I. Anaya.”
6 El art. 10 de la 23.049 determinaba: “El Consejo Supremo de las

Fuerzas Armadas conocerá mediante el procedimiento sumario en


tiempo de paz establecido por los artículos 502 al 504 y concordantes
del Código de Justicia Militar, de los delitos cometidos con
anterioridad a la vigencia de esta ley siempre que: 1º) Resulten
imputables al personal militar de las Fuerzas Armadas, y al personal
de las Fuerzas de seguridad, policial y penitenciario bajo control
operacional de las Fuerzas Armadas y que actuó desde el 24 de marzo
de 1976 hasta el 26 de setiembre de 1983 en las operaciones
emprendidas con el motivo alegado de reprimir el terrorismo, y 2º)
estuviesen previstos en el Código Penal y las leyes complementarias
comprendidas en los inciso. 2, 3, 4 b 5 del artículo 108 del Código de
Justicia Militar en su anterior redacción. Para estos casos no será
necesaria la orden de proceder a la instrucción del sumario y las
actuaciones correspondientes se iniciarán por denuncia o prevención.
El fiscal general ejercerá en estas causas la acción pública en forma
autónoma, salvo que reciba instrucción en contrario del Presidente de
la Nación o del ministro de Defensa. Procederá en estos casos un
recurso ante la Cámara Federal de Apelaciones que corresponda, con
los mismos requisitos, partes y procedimientos del establecido en el
artículo 445 bis. Cumplidos seis meses de la iniciación de las
actuaciones, el Consejo Supremo dentro de los cinco días siguientes
informará a la Cámara Federal los motivos que hayan impedido su
conclusión. Dicho informe será notificado a las partes para que en el
término de tres días formulen las observaciones y peticiones que
consideren pertinentes, las que se elevarán con aquél. La Cámara
Federal podrá ordenar la remisión de proceso y fijar un plazo para la
terminación del juicio; si éste fuera excesivamente voluminoso o
572 Julia A. Cerdeiro

una idea de autodepuración de las Fuerzas Armadas.7


Para ello, establecía una primera instancia castrense, a
cargo del Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas
(CONSUFA). La justicia civil sólo conocería las causas
mediante un recurso de apelación o por avocación en
aquellos casos que sufriesen demoras injustificadas o
negligencia en la tramitación.
El 15 de diciembre se creó la Comisión Nacional
sobre Desaparición de Personas (CONADEP). Funcio-
naría durante 9 meses (el período inicial había sido
fijado en 180 días y luego fue prorrogado por 3 meses
más8), en los que recibiría denuncias y pruebas y emiti-
ría un informe detallado de los hechos investigados,
que luego se titularía “Nunca más”.9

complejo, la Cámara señalará un término para que se informe


nuevamente con arreglo a lo dispuesto en el párrafo anterior. Si la
Cámara advirtiese una demora injustificada o negligencia en la
tramitación del juicio asumirá el conocimiento del proceso cualquiera
sea el estado en que se encuentren los autos.”
7 Carlos Santiago Nino, Juicio al mal absoluto. Los fundamentos y las

historia del juicio a las juntas del Proceso (Buenos Aires, Emecé, 1997), p.
117.
8 Ídem, p. 129.

9 La CONADEP fue creada por el decreto 187/83: “Art. 1: Constituir

una Comisión Nacional que tendrá por objeto esclarecer los hechos
relacionados con la desaparición de personas ocurridos en el país. Art.
2: Serán funciones específicas y taxativas de la Comisión las siguientes:
a) recibir denuncias y pruebas sobre aquellos hechos y remitirlas
inmediatamente a la justicia si ellas están relacionadas con la presunta
comisión de delitos; b) averiguar el destino o paradero de las personas
desaparecidas, como así también toda otra circunstancia relacionada
con su localización; c) determinar la ubicación de niños sustraídos a la
tutela de sus padres o guardadores a raíz de acciones emprendidas con
el motivo alegado de reprimir al terrorismo, y dar intervención en su
caso a los organismos y tribunales de protección de menores; d)
denunciar a la justicia cualquier intento de ocultamiento, sustracción o
destrucción de elementos probatorios relacionados con los hechos que
se pretende esclarecer; e) emitir un informe final, con una explicación
detallada de los hechos investigados, a los ciento ochenta (180) días a
partir de su constitución. La Comisión no podrá emitir juicio sobre
hechos y circunstancias que constituyen materia exc1usiva del Poder
Judicial. Art. 3: La Comisión podrá requerir a todos los funcionarios
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 573

En marzo de 1984, el Congreso aprobó la Con-


vención Americana de Derechos Humanos (ley 23.054),
ratificada ese mismo año por el Poder Ejecutivo10, y en
agosto sancionó la ley de defensa de la democracia
(23.077), que modificaba algunos artículos del Código
Penal. El delito de rebelión pasó a ser denominado
atentado al orden constitucional y a la vida democrática,
algunas penas fueron agravadas y, por último, se cri-
minalizaron conductas nuevas (como la de “aceptar
colaborar con las autoridades de facto continuando en
funciones o asumiéndolas en alguno de los tres pode-
res del Estado”11). Sorprendentemente mientras el Po-
der Legislativo sancionaba esta ley para el futuro, en el
juicio a las cúpulas militares no se utilizó el tipo penal
de rebelión.12
En octubre de 1984, luego de que el Consejo Su-
premo de las Fuerzas Armadas informara que debía
investigar con mayor profundidad, la Cámara Federal
de Apelaciones de la Capital Federal se avocó el cono-
cimiento de la causa contra los ex miembros de las tres
primeras juntas, marcando así el fracaso de la estrate-

del Poder Ejecutivo nacional, de sus organismos dependientes, de


entidades autárquicas y de las fuerzas armadas y de seguridad que le
brinden informes, datos y documentos, como asimismo que le
permitan el acceso a los lugares que la Comisión disponga visitar a los
fines de su cometido. Los funcionarios y organismos están obligados a
proveer esos informes, datos y documentos y a facilitar el acceso
pedido.”
10 En agosto de 1984.

11 Marcelo A. Sancinetti, Derechos humanos en la Argentina post-


dictatorial (Buenos Aires, Lerner, 1988), p. 19.
12 Sobre esto llama la atención Sancinetti: “La agravación de la pena de

un delito para su eventual comisión del mañana, cuando el mismo


hecho ya cometido no es perseguido hoy, produce en la sociedad, lejos
de una mayor confianza en la norma como modelo orientador del
contacto social (Jakobs), precisamente el efecto inverso: una profunda
desconfianza motivada en la percepción de un obrar fraudulento por
parte del Estado, que proclama rigor para el futuro, al tiempo en que
demuestra no tener interés alguno en reprimir en el presente el mismo
hecho ya cometido.” La cursiva es del original. Ídem, p. 20.
574 Julia A. Cerdeiro

gia de autodepuración. En febrero de 1985 comenzó el


“juicio a las juntas” por 670 casos, seleccionados del
trabajo de la CONADEP. La causa sería conocida −por
su número− como la 13/84. El 9 de diciembre de 1985,
la Cámara dió a conocer su decisión: condenó a Videla,
Massera, Agosti, Viola y Lambruschini y absolvió a
Graffigna, Galtieri, Anaya y Lami Dozo (el Comandan-
te en jefe de la Fuerza Aérea de la segunda junta y los
integrantes de la tercera junta militar).13 Las absolucio-
nes se fundaron en que los hechos habían transcurrido
fuera del periodo en el que los imputados se desem-
peñaron como comandantes en jefe de las fuerzas cor-
respondientes. Por otra parte, en algunos casos -como
el de Agosti- las penas fueron leves. Esto se debió, por
un lado, a que la acción penal referida a algunos he-
chos fue considerada prescripta14 y, por el otro, a que se
utilizó un criterio comparativo para la determinación
de la pena. Este criterio sería similar a una regla de tres
simple: si Videla había sido condenado a reclusión
perpetua por una determinada cantidad de crímenes,
Massera, quien había sido responsabilizado por una
cantidad más pequeña, debía ser condenado a prisión
perpetua.
En el punto dispositivo 30 de la parte resolutiva
de la sentencia, el tribunal ponía en conocimiento del
CONSUFA el contenido de esta última y de las piezas
de la causa con el fin de que juzgue a los oficiales supe-
riores que ocuparon los comandos de zona y subzona y
de todos aquellos que tuvieron responsabilidad opera-

13 Videla, Massera y Agosti fueron los miembros de la primera junta,


encabezaban el Ejército, la Armada y la Fuerza Aérea,
respectivamente. Viola, Lambruschini y Graffigna, la segunda, y
Galtieri, Anaya y Lami Dozo, la tercera.
14 El obstáculo de la prescripción se podría haber superado de varias

maneras, como, por ejemplo, con la utilización del delito de rebelión,


que concursaría de manera ideal con los demás delitos e impediría el
comienzo del plazo de prescripción.

 
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 575

tiva en las acciones. Meses después la Corte Suprema


de Justicia de la Nación (CSJN) confirmó la sentencia.
Paralelamente a la tramitación de esta causa, se
instruyó la nº 44/85, conocida como “Causa incoada en
virtud del decreto 280/84”. Las confesiones del Gene-
ral Camps dadas en el marco de una entrevista a fina-
les de 1983 habían dado lugar a un decreto que ordenó
su detención y enjuiciamiento. En el año 1986, fue con-
denado por la Cámara Federal.
Este primer momento de desarrollo de justicia
retroactiva fue seguido por uno de contención del pro-
ceso punitivo.15 En un contexto de fuerte tensión gene-
rado por las fuerzas armadas se sancionaron dos leyes.
La primera fue la ley de punto final (23.492), que esta-
bleció una fecha límite para la citación a indagatoria de
quienes aún no se encontraban imputados. Cumplidos
los 60 días que disponía la ley, no se podrían citar a
indagatoria a nuevos imputados, la acción penal que-
daría extinguida.16 La única excepción contemplada en
la ley eran los casos de apropiación de menores.17 La
ley fue sancionada el 23 de diciembre de 1986. Ello de-
terminó a las cámaras federales a habilitar la feria de
verano −que se prolonga durante todo el mes de ene-
ro− para alcanzar a citar a todos los imputados.

15 Carlos Santiago Nino, ob. cit., p. 143.


16 El artículo 1 de la ley disponía: “Se extinguirá la acción penal
respecto de toda persona por su presunta participación en cualquier
grado, en los delitos del artículo 10 de la Ley Nº 23.049, que no
estuviere prófugo, o declarado en rebeldía, o que no haya sido
ordenada su citación a prestar declaración indagatoria, por tribunal
competente, antes de los sesenta días corridos a partir de la fecha de
promulgación de la presente ley. En las mismas condiciones se
extinguirá la acción penal contra toda persona que hubiere cometido
delitos vinculados a la instauración de formas violentas de acción
política hasta el 10 de diciembre de 1983.”
17 El artículo 5 de la ley establecía: “La presente ley no extingue las

acciones penales en los casos de delitos de sustitución de estado civil y


de sustracción y ocultación de menores.” Esta excepción no había
estado contemplada en el proyecto enviado por el Poder Ejecutivo.
576 Julia A. Cerdeiro

Las presiones militares se mantuvieron y dieron


lugar a una segunda ley que buscó limitar aún más el
proceso de enjuiciamiento, la ley de obediencia debida
(23.521). Ésta determinaba que a partir de cierto grado
los miembros de las fuerzas habían actuado siguiendo
órdenes de sus superiores y, como consecuencia de
ello, no podían ser responsabilizados por los crímenes
cometidos.18 Esta presunción no regía en relación con
algunos delitos: los de violación, apropiación de meno-
res y apropiación extorsiva de inmuebles.19
Esta segunda etapa finalizó con los indultos de
los años 1989 y 1990, que abarcaron tanto a los conde-
nados en el juicio a las juntas como a otros miembros
de las fuerzas armadas.20

18 Artículo 1: “Se presume sin admitir prueba en contrario que quienes

a la fecha de comisión del hecho revistaban como oficiales jefes,


oficiales subalternos, suboficiales y personal de tropa de las Fuerzas
Armadas, de seguridad, policiales y penitenciarias, no son punibles
por los delitos a que se refiere el artículo 10 punto 1 de la ley Nº 23.049
por haber obrado en virtud de obediencia debida. La misma
presunción será aplicada a los oficiales superiores que no hubieran
revistado como comandante en jefe, jefe de zona, jefe de subzona o jefe
de fuerza de seguridad, policial o penitenciaria si no se resuelve
judicialmente, antes de los treinta días de promulgación de esta ley,
que tuvieron capacidad decisoria o participaron en la elaboración de
las órdenes. En tales casos se considerará de pleno derecho que las
personas mencionadas obraron en estado de coerción bajo
subordinación a la autoridad superior y en cumplimiento de órdenes,
sin facultad o posibilidad de inspección, oposición o resistencia a ellas
en cuanto a su oportunidad y legitimidad.”
19 Artículo 2: “La presunción establecida en el artículo anterior no será

aplicable respecto de los delitos de violación, sustracción y ocultación


de menores o sustitución de su estado civil y apropiación extorsiva de
inmuebles.”
20 El 6 de octubre de 1989 el Poder Ejecutivo sancionó tres decretos que

indultaron a casi 400 personas que se hallaban bajo proceso. Estos


indultos eran de dudosa constitucionalidad, teniendo en cuenta que el
art. 86 de la CN prevé la facultad del presidente de indultar sólo en la
medida en que sea coherente con el 95 que le prohíbe interferir en
juicios aún pendientes. El 29 de diciembre de 1990 Menem firmó otro
grupo de indultos, en favor de quienes ya estaban condenados. Carlos
Santiago Nino, ob. cit., p. 162.

 
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 577

Tanto las leyes como los indultos fueron conva-


lidados por la CSJN. El proceso de juzgamiento quedó
paralizado casi por completo y la determinación de
responsabilidad por los hechos cometidos en el pasado
reciente, inconclusa.

La segunda etapa puede ser denominada una al-


ternativa a la justicia retroactiva. En 1995, el periodista
Horacio Verbistky entrevistó al capitán de corbeta
Adolfo Scilingo. La entrevista fue posteriormente
plasmada en el libro El vuelo.21 Fue la primera vez que
un miembro de las fuerzas armadas reveló el destino
de muchos detenidos desaparecidos: eran subidos in-
conscientes a aviones y lanzados al río. Este fue el pun-
tapié para ubicar nuevamente al tema en el centro del
debate público. Ante la imposibilidad de impulsar ac-
ciones penales, se buscó, en vez, la determinación de lo
ocurrido. Carmen Aguiar de Lapacó y Emilio Mignone,
fundadores del Centro de Estudios Legales y Sociales
(CELS)22, se presentaron ante la Cámara Criminal y
Correccional Federal de la Capital Federal, el tribunal
que había llevado adelante el juicio a las juntas, exigi-
endo la determinación de lo ocurrido con sus hijos.
Este fue el inicio de los Juicios por la verdad, tanto los
familiares y como la sociedad en su conjunto tenían
derecho a la verdad, a conocer lo que había pasado

21 (Buenos Aires, Editorial Planeta, 1995).


22 El CELS fue una de las organizaciones no gubernamentales
fundadas por padres con hijos desaparecidos, que se unieron con el fin
de reclamar justicia.
578 Julia A. Cerdeiro

durante esos años.23 Los juicios se llevaron adelante en


varios puntos del país y aún hoy muchos continúan.24

La tercera etapa comenzó cerca del año 2000 y se


prolonga hasta la actualidad; ésta puede llamarse la
justicia retroactiva ampliada. Por aquellos años, algunos
tribunales declararon la inconstitucionalidad de las
leyes de punto final y de obediencia debida y, de esta
manera, reabrieron algunas investigaciones. Como
ejemplos de ello podemos mencionar los casos Simón
en Capital Federal y la Masacre de Margarita Belén en la
ciudad de Resistencia.
En 2003 durante la presidencia de Néstor Kir-
chner, el Poder Legislativo anuló las leyes (25.779)25,
que habían sido derogadas en 1998 por el Congreso en
un acto simbólico. A partir de ahí, las Cámaras Federa-
les, donde habían quedado paralizadas las causas de
los años 80, mandaron a reabrirlas. La anulación fue
confirmada por la CSJN y fue seguida de la anulación
de los indultos. El proceso de juzgamiento se puso
nuevamente en marcha, esta vez, con un alcance mu-
cho más amplio.
Actualmente ya se han juzgado a más de 400
imputados. De ellos, sólo unos pocos son ajenos a las
fuerzas armadas o de seguridad. Éste es el gran desafío
que actualmente presenta el último tramo de esta eta-
pa: la determinación de la responsabilidad de los civi-
les.

23 Si bien la primera respuesta de los tribunales fue sólo pedir informes

a las fuerzas armadas sobre las víctimas y ante la respuesta negativa


de ellas no hacer nada más, el reclamo fue llevado ante la Comisión
Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) que determinó -en el
marco de una solución amistosa- al Estado a reconocer el derecho a la
verdad y a implementar una política que acompañara este reclamo.
24 Como, por ejemplo, el de la Plata.

25 Artículo 1: “Declárense insanablemente nulas las Leyes 23.492 y


23.521.”

 
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 579

Al momento se están llevando adelante 10 juici-


os orales en todo el país, estos involucran a más de 200
imputados y los casos de más de 1700 víctimas.26 Te-
niendo en cuenta que ya han pasado 10 años desde la
reapertura de las causas, estos números podrían no
resultar satisfactorios. Sin embargo, no se debe perder
de vista que, aun en el contexto político actual, el avan-
ce de estas causas requiere un inmenso esfuerzo por
parte de varios actores. Este avance aún se encuentra
repleto de obstáculos. Entre ellos, se puede mencionar
la complejidad de las causas, no sólo por la cantidad de
casos que hay que llevar adelante y la problemática
que ellos encierran, sino también porque las imputaci-
ones requieren el manejo de herramientas técnicas es-
pecíficas y más elaboradas.

Los argumentos constitucionales

Hay dos artículos de la Constitución Nacional


que tuvieron un rol determinante en la tercera parte
del proceso de juzgamiento, posibilitaron una justicia
retroactiva ampliada. Estos son el artículo 118 y el 29.
El primero fue señalado por los tribunales desde el
comienzo de la tercera etapa como aquel que receptaba
el Derecho Penal Internacional en el orden interno. Por
su parte, el artículo 29 fue utilizado tanto por los pri-
meros jueces que declararon la inconstitucionalidad de
las leyes como por los legisladores a la hora de sancio-
nar la ley que anuló las leyes.

26 Esta información corresponde a agosto de 2013 y se toma del

informe de la Procuraduría de Crímenes contra la Humanidad de la


Procuración General de la Nación, disponible en:
http://fiscales.gob.ar/lesa-humanidad/wp-
content/uploads/sites/4/2013/08/Cuadro-juicios-en-curso-29-
agosto-2013.pdf.
580 Julia A. Cerdeiro

El artículo 118 de la Constitución Nacional

El artículo 118 de la Constitución Nacional esta-


blece: “Todos los juicios criminales ordinarios, que no
se deriven del derecho de acusación concedido a la
Cámara de Diputados se terminarán por jurados, luego
que se establezca en la República esta institución. La
actuación de estos juicios se hará en la misma provincia
donde se hubiere cometido el delito; pero cuando éste
se cometa fuera de los límites de la Nación, contra el
derecho de gentes, el Congreso determinará por una
ley especial el lugar en que haya de seguirse el juicio.”
A primera vista, el artículo fija tan sólo reglas de
competencia, una territorial (los juicios se realizarán en
la provincia donde haya sido cometido el delito) y otra
extraterritorial (los delitos cometidos contra el derecho
de gentes serán juzgados conforme una ley especial).
Sin embargo, esta cláusula constitucional fue entendida
como la puerta de entrada para el Derecho Internacio-
nal. Tanto la doctrina como la jurisprudencia sostienen,
sobre la base de este artículo, que nuestro derecho in-
terno recepta el derecho internacional consuetudinario.
Como antecedente de una aplicación similar a la
que se hizo desde el comienzo de la tercera etapa de la
transición del 118 se debe citar el caso Priebke.27 Allí, la
CSJN hizo lugar a la extradición solicitada por Italia del
criminal de guerra Erich Priebke. Para resolver de esta
manera, sostuvo que los principios de ius cogens del
Derecho Internacional formaban parte del orden inter-
no, dado que la aplicación del derecho de gentes se
encontraba reconocida por el ordenamiento jurídico
argentino. En resumidas cuentas la CSJN resolvió: “3º)
Que, frente a la índole de tal calificación, resulta obvio
que el país requirente haya procedido a solicitar la ex-

27CSJN, Priebke, Erich s/ solicitud de extradición — causa Nº 16.063/94,


del 2/11/1995, Fallos: 318:2148.

 
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 581

tradición sin perjuicio del juzgamiento definitivo inclu-


so sobre la naturaleza del delito por los tribunales del
lugar en donde se ha cometido (arts. 75 incs. 22 y 118
de la Constitución Nacional y arts. II, III, V, VI y VII de
la Convención para la Prevención y la Sanción del Deli-
to de Genocidio). 4º) Que la calificación de los delitos
contra la humanidad no depende de la voluntad de los
estados requirente o requerido en el proceso de extra-
dición sino de los principios del ius cogens del Derecho
Internacional. 5º) Que, en tales condiciones, no hay
prescripción de los delitos de esa laya y corresponde
hacer lugar sin más a la extradición solicitada.”
En los casos de que aquí nos interesan el artículo
118 fue utilizado −como señalé− desde el comienzo de
la tercera etapa. Cuando algunos jueces de distintos
puntos del país declararon la inconstitucionalidad de
las leyes de punto final y obediencia debida se funda-
ron no sólo en el artículo 29 de la Constitución, sino
también en el artículo 118. Como ejemplo podemos
citar la decisión del ex−juez Cavallo en el caso Simón.28
Siguiendo la línea de la CSJN en Priebke, Cavallo afirmó
que, de acuerdo al artículo 118, el ordenamiento jurídi-
co interno receptaba el derecho internacional. Ello im-
plicaba que los delitos contra el derecho de gentes for-
maban parte de nuestro ordenamiento jurídico. Entre
ellos se encontraban −evidentemente− los crímenes
contra la humanidad, de los que, de acuerdo al derecho
consuetudinario internacional, surgían acciones im-
prescriptibles.
En el debate legislativo por la nulidad de las le-
yes varios legisladores también hicieron referencia a
este artículo.29

28 Juzgado Nacional en lo Criminal y Correccional Federal Nº 4, causa


Nº 8686/2000, Simón, Julio, Del Cerro, Juan Antonio s/sustracción de
menores de 10 años, del registro de la Secretaría Nº 7, del 6/03/2001.
29 A modo de ejemplo menciono a la diputada Elisa Carrió, entre

muchos. Ver: Diarios de sesiones de la Cámara de Diputados de la


582 Julia A. Cerdeiro

Esta línea fue seguida por la CSJN30: el artículo


118 de la Constitución receptaba el ius cogens, que al
momento de los hechos ya establecía la imprescriptibi-
lidad de los crímenes contra la humanidad. Es por ello
que, si bien la prescripción para nuestro sistema forma
parte de lo que llamamos “tipo garantía” (es decir, las
reglas de prescripción se encuentran abarcadas por el
principio de legalidad, a diferencia de lo que ocurre en
otros sistemas jurídicos)31, la aplicación de la consecu-
encia jurídica de la imprescriptibilidad para las accio-
nes que surgen de los crímenes contra la humanidad
cometidos en los '70 no viola el principio de legalidad
(nullum crimen sine lege).

El artículo 29 de la Constitución Nacional

El artículo 29 de la Constitución Nacional argen-


tina señala: “El Congreso no puede conceder al Ejecu-
tivo nacional, ni las Legislaturas provinciales a los go-

Nación, 12ª reunión, 4° sesión ordinaria (especial) del 12 de agosto de


2003, y de la Cámara de Senadores de la Nación, 17ª reunión, 11º
sesión ordinaria, del 20 y 21 de agosto de 2003.
30 Entre otros, Arancibia Clavel, Enrique Lautaro s/ homicidio calificado y

asociación ilícita y otros, causa Nº 259, del 24/08/2004, Fallos: 327:3312;


Simón, Julio Héctor y otros s/ privación ilegítima de la libertad, etc., causa
Nº 17.768, del 14/06/2005, Fallos: 328:2056; Mazzeo, Julio Lilo y otros s/
rec. de casación e inconstitucionalidad — Riveros, del 13/07/2007, Fallos:
330:3248.
31 A modo de ejemplo se puede citar el caso alemán. Para ese sistema

el principio de legalidad no comprende las reglas de prescripción. Así,


pudieron ser modificadas ex post facto en varias oportunidades. Esto
ocurrió no sólo con los crímenes del nazismo (los plazos de
prescripción de las acciones fueron modificados en varias ocasiones
hasta ser declaradas imprescriptibles), sino también con los crímenes
de la Alemania oriental. Pastor, Daniel R., El plazo razonable en el proceso
del estado de derecho. Una investigación acerca del problema de la excesiva
duración del proceso penal y sus posibles soluciones (Buenos Aires, Ad Hoc,
2002), p. 453; y Knut Amelung, Die strafrechtliche Bewältigung des DDR-
Unrechts durch die deutsche Justiz, Dresdner Juristische Beiträge (I),
(Dresden, Dresden University Press, 1996).
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 583

bernadores de provincia, facultades extraordinarias, ni


la suma del poder público, ni otorgarles sumisiones o
supremacías por las que la vida, el honor o las fortunas
de los argentinos queden a merced de gobiernos o per-
sona alguna. Actos de esta naturaleza llevan consigo
una nulidad insanable, y sujetarán a los que los formu-
len, consientan o firmen, a la responsabilidad y pena de
los infames traidores a la patria.”
Este artículo prohíbe al Congreso conceder fa-
cultades extraordinarias o la suma del poder público,
ya que hacerlo (esto es, consentirlo o firmarlo) implica
la comisión de un delito constitucional. Como señalé
arriba, este artículo fue también utilizado por la doctri-
na y la jurisprudencia para invalidar las leyes de punto
final y obediencia debida.
Si bien a primera vista el mandato parece estar
dirigido sólo al Poder Legislativo, la prohibición tam-
bién abarca la asunción de la suma del poder público.32
En este sentido se pronunció, entre otros, la CSJN en
causa 13.33 Allí la CSJN afirmó: “... el art. 29 de la Cons-
titución Nacional sanciona con una nulidad insanable
aquellos actos que constituyan una concentración de
funciones, por un lado, y un avasallamiento de las ga-
rantías individuales que nuestra Carta Magna tutela,
por otro.”
En relación con este artículo el el Prof. Sancinetti
en “Derechos humanos en la Argentina post-
dictatorial” sostenía: “En apariencia, la amnistía poste-
rior de esa misma conducta, por parte de los legislado-
res -por ejemplo, por los mismos que hubieran conce-
dido las facultades, o por otros- no está conceptual-
mente incluida en el art. 29 de la Constitución. Desde el
punto de vista estrictamente lógico, la prohibición de

32 Juzgado Nacional en lo Criminal y Correccional Federal Nº 4, Simón,


ya citado (v. nota 26).
33 Fallos: 309:1689.
584 Julia A. Cerdeiro

realizar cierta conducta no implica necesariamente la


falta de facultades para amnistiarla, una vez ya come-
tida. Sin embargo […] la Corte Suprema, en su integra-
ción de facto de 1955, afirmó −al fallar la causa 'Juan
Carlos García y otros, in re Juan Domingo Perón y
otros', que se registra en 'Fallos C.S.', t. 234, p. 16− lo
siguiente: 'Que los términos enfáticos en que está con-
cebida, los antecedentes históricos que la determinaron
y la circunstancia de habérsela incorporado a la ley
fundamental de la República, revelan sin lugar a dudas
que la disposición citada constituye un límite no suscepti-
ble de franquear por los poderes legislativos comunes, […]
en consecuencia, la amnistía que expresamente comprendi-
era en sus disposiciones el delito definido por dicho precepto
constitucional, carecería enteramente de validez como con-
traria a la voluntad superior de la Constitución'...”34 Si-
guiendo esta línea dada por la CSJN, Sancinetti conclu-
ía: “Si, en verdad, conceder un poder que esté más allá
del bien y del mal es no amnistiable, el ejercicio del
poder tampoco puede serlo. Creer lo contrario implica-
ría afirmar que los legisladores, responsables por otor-
gar el poder -y, por tanto, partícipes de él- son inamnis-
tiables, pero que no lo son los autores mismos de los
hechos que impliquen el ejercicio de un poder que
ponga bajo merced de persona alguna la vida de los
argentinos.”35
La línea anteriormente fijada por la CSJN en
causa 13 fue seguida al comienzo de la tercera etapa de
la transición36, en contraposición a lo que había ocurri-
do luego de que se sancionaron las leyes de punto final
y obediencia debida.37

34 Marcelo A. Sancinetti, ob. cit., pp. 82 y 83. La cursiva es del original.


35 Ídem, p. 83. La cursiva es del original.
36 Arancibia Clavel, ya citado (v. nota 28); y Simón, ya citado (v. nota 28).
37 Al analizar la constitucionalidad de la ley de obediencia debida, en
el marco de la causa Camps, la mayoría se pronunció en favor de la

 
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 585

También durante la discusión parlamentaria


previa a la sanción de la ley 25-779 se recurrió a este
artículo. Elisa Carrió fue una de las diputadas que lo
utilizó en su exposición. Tradicionalmente se entiende
que el control de constitucionalidad de nuestro sistema
es difuso, es decir que puede ser ejercido por cualquier
juez en el caso concreto y que sólo tendrá efectos para
las partes. Sin embargo, ello no quiere decir que
−siguiendo la exposición de Carrió− los otros poderes
no ejerzan un control de constitucionalidad. El Poder
Legislativo, por ejemplo, revisa la constitucionalidad
de un proyecto de ley al momento de discutir su san-
ción. Ahora bien, ello no implica sin más que el Poder
Legislativo tenga atribuciones para declarar la nulidad
de las leyes sólo porque violen la Constitución: “En
principio no lo puede hacer, es cierto, salvo que la
norma con la cual se confronta sancione bajo pena de
nulidad. Si la violación constitucional de las normas
que está analizando el Congreso, en este caso, las leyes
de punto final y de obediencia debida, se refiere al artí-
culo 29 de la Constitución, y es el propio artículo 29 el
que sanciona con nulidad absoluta e insanable todos
los actos que se opongan […] la nulidad corresponde.”
El Poder Legislativo de ese momento no tenía faculta-
des para sancionar este tipo de leyes por ser violatorias
del artículo 29 de la Constitución y, por esa razón, el
Legislativo que lo precedió podía tomar a su cargo la
declaración de nulidad de aquellas leyes.
Finalmente, al margen de si el Congreso efecti-
vamente tenía facultades para anular o no las leyes en
cuestión, lo cierto es que la ratificación por parte del
Poder Judicial de la nulidad de las leyes tornaba abs-
tracta la discusión. Las leyes fueron siempre nulas, in-

constitucionalidad de la ley. Petracchi y Bacqué votaron en disidencia.


Causa incoada en virtud del decreto 280/84 del Poder Ejecutivo Nacional.
Camps, Ramón Juan Alberto y otros; del 22/06/1987, Fallos: 310:1162.
586 Julia A. Cerdeiro

dependientemente de cuál fuese el poder del Estado


que así lo afirme.

A modo de conclusión

Durante estos minutos repasamos brevemente


la transición democrática argentina, que fue desde una
justicia retroactiva limitada hasta llegar a una amplia-
da, en la que hoy vivimos: en la que existen una gran
cantidad de procesos que, a grandes rasgos, avanzan a
pesar de numerosas dificultades. En este camino se ha
utilizado la Constitución Nacional en varias ocasiones:
para fundar la imprescriptibilidad de las acciones que
surgen de los crímenes contra la humanidad que tuvie-
ron lugar en los '70 y la imposibilidad de oponer frente
a estas acciones cualquier otro tipo de obstáculo, como
amnistías o indultos. El proceso vivido hasta el día de
hoy en la Argentina parecería mostrar, en primer lugar,
que la justicia retroactiva requiere de una voluntad
política clara y decidida, que ubique en el centro de la
agenda la necesidad de llevar adelante la persecución
penal por las violaciones masivas y sistemáticas a los
derechos humanos. Afrontar este tipo de procesos im-
plica enormes esfuerzos por parte de los poderes del
Estado. Por eso, es necesario que la persecución penal
se encuadre en una verdadera política estatal. Puedo
mencionar algunos sucesos, además de los ya referidos
en el apartado sobre la última etapa de la transición
democrática, que dan cuenta de esta política. En el
marco del Ministerio Público Fiscal (MPF), se creó en
2007 la Unidad Fiscal de Coordinación y Seguimiento
de causas por violaciones a los Derechos Humanos,
hoy denominada Procuraduría de Crímenes contra la
Humanidad, que se encuentra abocada a revisar los
obstáculos existentes en cada jurisdicción para superar-
los y a diseñar la política criminal en estas causas.
También, dentro del MPF, se han destinado nuevos
recursos humanos para llevar adelante las causas en
El rol de la Constitución en la transición democrática argentina 587

varios puntos del país. Otros esfuerzos han ocurrido en


el marco del Poder Judicial, que también ha provisto de
personal nuevo a los distintos tribunales. Además,
desde el Poder Legislativo, se ha reformado el proceso
penal en las instancias recursivas, para imprimir cele-
ridad e impedir que los procesos se paralicen en virtud
de recursos pendientes de resolución.
En segundo lugar, parecería evidente que frente
a violaciones masivas y sistemáticas a los derechos
humanos el Estado no puede permanecer inconmovi-
ble. Frente a estas violaciones varios son los caminos
posibles: comisiones por la verdad, reparaciones pecu-
niarias, simbólicas (como, por ejemplo, la indicación de
un sitio como centro clandestino de detención, la admi-
sión de responsabilidad por parte de las fuerzas arma-
das, la realización de documentales o películas, etc.),
enjuiciamientos penales. En la Argentina actual la justi-
cia retroactiva es la que prevalece.
A cumplicidade em violações aos
direitos humanos durante a
ditadura civil-militar brasileira

Maria  Carolina  Bissoto1  

Resumo: O artigo trata da questão da cumplicidade em


violações aos direitos humanos por parte de empresá-
rios durante a ditadura civil-militar brasileira. Para
isso, discute-se a construção internacional acerca da
responsabilização de empresas como cúmplices em
violações a direitos humanos desde o Tribunal de Nu-
remberg, bem como os estudos feitos na Comissão de
Direitos Humanos da ONU e na Comissão Internacio-
nal de Juristas, utilizando-se deste último estudo para
verificar se há a presença dos critérios causalidade,
conhecimento e proximidade no caso concreto da Ope-
ração Bandeirantes (OBAN).
Palavras-chaves: cumplicidade em violações a direitos
humanos – ditadura militar - OBAN

Abstract: The article discusses the question of complici-


ty in human rights violations by businessmen during
the Brazilian civil-military dictatorship. For that, it ap-

1 Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade

Católica de Campinas, Consultora PNUD - Comissão de Anistia do


Ministério da Justiça.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 589

proaches the international construction about the ac-


countability of companies as accomplices in human
rights violations since the Nuremberg Tribunal, as well
as works done by the Human Rights Commission of
the United Nations (UN) and the International Com-
mission of Jurists , using the latest study to check for
the presence of causality criterion, knowledge and
proximity in case of the Bandeirantes Operation
(OBAN).
Keywords: complicity in human rights violations - mil-
itary dictatorship - OBAN

Introdução

Ao tratar do relacionamento de empresas com


os sistemas repressivos é possível se remeter a duas
facetas. A primeira é a contribuição de empresários e
empresas a órgãos repressivos contribuindo para seu
funcionamento; a segunda remete a empresas e empre-
sários que foram perseguidos pelo regime ditatorial,
causando algumas vezes o seu fechamento, como o
caso da companhia áerea PANAIR2 que perdeu sua
licença de voo em 10 de fevereiro de 1965 e foi extinta
pelo regime militar somente tendo sua reabilitação em

2
Em reportagem sobre a audiência pública da Comissão Nacional da
Verdade que foi realizada em 23 de março de 2013 no Rio de Janeiro:
“O jornalista e escritor Daniel Leb Sasaki, autor do livro Pouso
Forçado, sobre a história da Panair, lembra que a empresa era a maior
companhia aérea do Brasil na época, concessionária da maior parte
dos voos internacionais e uma rede nacional muito grande, além de ter
uma estrutura em terra que nenhuma companhia alcançou até hoje,
com aeroportos e uma área de telecomunicações
aeronáuticas privada”. In: NITAHARA, Akemi. Caso Panair abre
debate sobre perseguição a empresas durante o regime militar.
Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-03-23-
caso-panair-abre-debate-sobre-perseguicao-empresas-durante-regime-
militar-0>. Acesso em 13 de abril de 2013.
590 Maria Carolina Bissoto

1995, recentemente discutido em uma audiência públi-


ca pela Comissão Nacional da Verdade.
Este artigo foca-se na primeira faceta, ou seja,
procuraremos discutir a respeito da contribuição feita
por empresas e empresários a órgãos repressivos e suas
implicações jurídicas e possíveis formas de responsabi-
lização.

1. A questão da cumplicidade em violações a


direitos humanos

Como aponta Marlon Weichert desde o final da


Segunda Guerra Mundial se discute a responsabilidade
de empresas pela colaboração com agentes estatais à
violações dos direitos humanos, focando neste primei-
ro período as contribuições realizadas por empresas
alemãs, que utilizavam-se de prisioneiros de campos
de concentração como mão de obra e sobre as relações
comerciais mantidas por bancos dos países neutros
com o governo nazista3.
Após o Tribunal de Nuremberg a ONU aprovou
uma série de princípios relacionados a crimes de guer-
ra e crimes contra a humanidade, sendo que em um
deles foi declarado expressamente que “a cumplicida-
de no cometimento de crimes contra a paz, crimes de
guerra e crimes contra a humanidade conforme o esta-
belecido no princípio VI é um crime perante o direito
internacional4”. Esse princípio foi reafirmado nos esta-

3
WEICHERT, Marlon Alberto. O financiamento de atos de violação de
direitos humanos por empresas durante a ditadura brasileira. Acervo:
revista do Arquivo Nacional. —v. 21 n. 2(jul./dez. 2008). — Rio de
Janeiro:Arquivo Nacional, 2008, p. 183 e 184.
4 VII Principles of the Nuremberg Tribunal. Principles of International

Law Recognized in the Charter of the Nuremberg Tribunal and in the


Judgment of the Tribunal. Adopted by the International Law
Commission of the United Nations, 1950. Disponível em:

 
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 591

tutos dos Tribunais Internacionais para a ex-Iuguslávia


e de Ruanda e no Estatuto de Roma que instituiu o Tri-
bunal Penal Internacional.
Em 2003 a Comissão de Direitos Humanos da
ONU elaborou um estudo sobre o tema, sendo impor-
tante destacar duas recomendações: 1. que as empresas
devem sempre procurar não desenvolver atividades
que apoiem, solicitem ou encorajam aos Estados ou
qualquer outra entidade a abusar dos direitos huma-
nos, e devem procurar garantir que seus bens ou servi-
ços fornecidos não sejam utilizados para o abuso dos
direitos humanos. 2. outra recomendação é que as em-
presas não devem se envolver e nem se beneficiar de
crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocí-
dio, tortura, desaparecimento forçado e outras viola-
ções dos direitos humanos5.
Em 2006 foi realizado um painel pela Comissão
Internacional de Juristas publicado em 2008. Segundo a
Comissão para verificar se uma empresa ou seus geren-
tes e diretores possuem responsabilidade civil e penal
por cumplicidade em violações a direitos humanos há
três critérios a serem observados.
O primeiro critério é o da causalidade. É neces-
sário verificar se a empresa contribuiu para a prática de
violações dos direitos humanos por meio de atitudes
práticas que tornaram essa violação possível. Essa con-
tribuição pode ser material, por exemplo empréstimo
de carros, combustível, armas ou pode ser feita por
meio de delação de empregados que tenham posições
políticas contrárias ao regime vigente. Nos casos em
que a empresa contribuiu por meio dessas práticas é

<http://deoxy.org/wc/wc-nurem.htm>. Acesso em 13 de abril de


2013. Tradução da autora.
5
Norms on the Responsibilities of Transnational Corporations and Other
Business Enterprises with Regard to Human Rights, U.N. Doc.
E/CN.4/Sub.2/2003/12/Rev.2 (2003). Disponível em: <
http://www1.umn.edu/humanrts/links/norms-Aug2003.html>.
Acesso em 13 de abril de 2013. Tradução da autora.
592 Maria Carolina Bissoto

possível a sua responsabilização como cúmplice em


violações dos direitos humanos.
O segundo critério é o conhecimento. O que de-
ve-se verificar é se a empresa possuia conhecimento ou
tinha como saber sobre as violações dos direitos huma-
nos praticadas. Se ela assumiu o risco de estar contribu-
indo com essas violações sua responsabilidade pode
ser caracterizada.
O terceiro critério é a proximidade da empresa
aos agentes da repressão, qual era a influência da em-
presa sobre estes, sendo que quanto maior proximida-
de maior responsabilidade é possível de ser caracteri-
zada.
Passaremos a analisar a seguir o caso brasileiro
no órgão repressivo onde esta cumplicidade em viola-
ções dos direitos humanos é mais destacada: a Opera-
ção Bandeirantes (OBAN) em São Paulo.

2. A participação de empresários na OBAN

Devido a preocupação com o aumento das ações


armadas, e visando maior repressão e combate às or-
ganizações, foi oficializada em 01 de julho de 19696 em
São Paulo a Operação Bandeirantes (OBAN). Era com-
posta por elementos vindos das Forças Armadas (Ma-
rinha, Exército e Aeronáutica), da Polícia Federal e da
Polícia Estadual. Antônio Carlos Fon descreve o lan-
çamento do órgão:
“escondida nas páginas internas dos jornais edita-
dos na cidade de São Paulo no dia dois de julho de
1969, a notícia passou quase despercebida. No dia
anterior, com a presença do governador do Estado,
Roberto Costa de Abreu Sodré, do secretário de

6
Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI menciona
em seu livro que a data de instalação da OBAN teria sido 27 de junho
de 1969.
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 593

Segurança Pública paulista – professor Hely Lopes


Meirelles – e dos comandantes do VI Naval e da 4ª
Zona Aérea, o general José Canavarro Pereira, co-
mandante do II Exército, havia lançado oficialmen-
te uma certa ‘Operação Bandeirantes’. Sem maio-
res detalhes, os jornais informaram apenas que o
novo organismo teria como função coordenar as
atividades dos diversos órgãos encarregados da
repressão à subversão e ao terrorismo. O general
Canavarro Pereira não disse – em seu discurso ele
limitou-se a falar da necessidade de que todos os
setores da sociedade se unissem às forças armadas
no esforço pela defesa da segurança interna – mas
aquele era um momento histórico”7.

A ideia da união de esforços no combate a re-


pressão das Forças Armadas com policiais civis surgiu
bem antes. Hely Lopes Meirelles, secretário de Segu-
rança Pública do Estado de São Paulo de abril de 1968 a
agosto de 1969, afirmou que o entrosamento entre as
Forças Armadas e a Secretaria de Segurança Pública
aumentou nos fins de 1968, e que este entrosamento
resultou na formação da Operação Bandeirantes8.
Mariana Joffily relata que em fevereiro de 1969
realizou-se em Brasília o I Seminário de Segurança In-
terna, reunindo todos os secretários de Segurança Pú-
blica, os comandantes das Polícias Militares e os supe-
rintendentes regionais da Polícia Federal, com a orien-
tação do ministro da Justiça Gama e Silva e do chefe da
Inspetoria Geral das Polícias Militares, general Carlos
de Meira Mattos9.

7
FON, Antonio Carlos. . Tortura – a história da repressão política no
Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda., 1979, p. 15.
8
Idem, p. 25.
9
JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem. Os interrogatórios na
Operação Bandeirantes e no DOI de São Paulo (1969 – 1975). Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo (USP), 2008, p. 32.
594 Maria Carolina Bissoto

Manoel Rodrigues de Carvalho Lisboa,


comandante do II Exército no início de 1969, era con-
trário a instalação de um órgão como a OBAN, já que
alegava que o contato com os bens e dinheiros apreen-
didos nas operações poderia facilitar a corrupção, o
que futuramente veio a se comprovar10. Entretanto,
com a posse do general José Canavarro Pereira como
comandante do II Exército, este obstáculo estava supe-
rado.
Em maio de 1969, no seu discurso de posse, o
general José Canavarro Pereira afirmou crer num en-
tendimento maior entre civis e militares e que para ele
esta união não seria imposta e sim decorreria da per-
cepção de que a Pátria não poderia viver sem a garan-
tia da manutenção da paz e da segurança11.
No Jornal da Tarde de 28 de junho de 1969 há
uma nota afirmando que estaria em execução um plano
sigiloso de uma ação conjunta das Forças Armadas e
da polícia para o combate ao terrorismo. Conforme o
jornal a proposta teria sido apresentada pelo secretário
de Segurança Pública, Hely Lopes Meirelles, aos co-
mandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica do
Estado de São Paulo12. Dois dias depois, no mesmo jor-
nal é mencionada que na reunião do Conselho de Se-
gurança Nacional (CSN), marcada para o dia seguinte,

10
A informação de que Manoel Rodrigues de Carvalho Lisboa era
contra a instalação da OBAN está em: FICO, Carlos. Como eles agiam: os
subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de
Janeiro: Record, 2001, p. 115. Ver também sobre o mesmo tema o
depoimento de Adyr Fiúza de Castro in D’ARAUJO, Maria Celina,
SOARES, Glaucio Ary Dillon e CASTRO, Celso (org.). Os anos de
chumbo: a memória miitar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994, p. 154.
11
Diário Oficial do Estado de São Paulo de 03 de maio de 1969, p. 1 e 2.
“Creio num entendimento ainda maior entre civis e militares”.
12
Jornal da Tarde de 28 de junho de 1969, p. 2. Arquivo do Estado de
São Paulo.

 
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 595

seria discutido o esquema de segurança que uniria as


Forças Armadas à polícia no combate ao terrorismo13.
O motivo da instalação da OBAN na cidade de
São Paulo, segundo Ottoni Fernandes Júnior foi o fato
dos suportes políticos das organizações de luta armada
se encontrarem nas cidades, tendo São Paulo como sua
base mais importante. A OBAN, em sua opinião, teria
sido uma experiência piloto e tornou a tortura uma
prática sistemática. Em 1970, os militares já reuniam
informações que possibilitavam a catalogação de todas
as organizações de luta armada14.
Para Carlos Alberto Brilhante Ustra, este órgão é
chamado de forma errônea por Operação Bandeirantes,
pois esta era, na verdade, um Centro de Coordenação,
subordinado ao comandante do II Exército, composta
pela Central de Informações e pela Central de Opera-
ções, com a missão específica de combater a subversão
e o terrorismo, havendo internamente divisões de fun-
ções, sendo que o entrosamento desses órgãos que le-
vou ao sucesso da OBAN e a uma série de prisões de
militantes15.
A OBAN não era um órgão institucionalizado,
assim não havia previsão orçamentária para seu funci-
onamento. Mas ao contrário do que se pode pensar o
governo paulista assumiu a sua existência. Uma prova
disso está no Diário Oficial do Estado de São Paulo do
dia 08 de novembro de 1969. Nele há menção a uma
fala do governador Roberto Costa de Abreu Sodré em

13
Jornal da Tarde de 30 de junho de 1969, p. 2. Arquivo do Estado de
São Paulo. Apesar de estar disponível no site do Arquivo Nacional,
não consegui localizar nenhuma referência a OBAN na pauta da
reunião do Conselho de Segurança Nacional do dia primeiro de julho
de 1969.
14
FERNANDES JÚNIOR, Ottoni. O Baú do Guerrilheiro. Rio de Janeiro:
Record, 2004, p. 129.
15
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a
esquerda não quer que o Brasil conheça. 4ª edição. Brasília: Editora Ser,
2007, p. 224.
596 Maria Carolina Bissoto

uma palestra realizada no Palácio Bandeirantes no dia


anterior. Ele afirma que naquele momento havia em
São Paulo um perfeito entrosamento entre a polícia
civil e militar e as Forças Armadas, o que garantia uma
unidade de ação, de informação e contrainformação,
visando a defesa e segurança internas. Exemplificando
essa união de esforços ele citou o sucesso da Operação
Bandeirantes, idealizada pelo General Canavarro Pe-
reira, que em poucos dias teria eliminado vários focos
de subversão16.

2.1 Os motivos alegados para a instalação e os


funcionários

A Operação Bandeirantes surgiu com o intuito


de destruir ou ao menos neutralizar as organizações de
esquerda, principalmente aquelas que se dedicavam a
uma oposição armada à ditadura. Havia duas novida-
des nesse órgão: a primeira era conjugar atividades de
segurança ou repressão com operações de informações;
a segunda era reunir em suas fileiras agentes de diver-
sas forças policiais e das forças armadas. Muitos desses
agentes vinham da Divisão Estadual de Investigação
Criminal (DEIC), esta era famosa por seus métodos de
atuação, que envolvia a tortura como meio de obtenção
de informação.
Antonio Carlos Fon afirma que:
“Inexperientes em investigações de caráter polici-
al, os oficiais destacados para a ‘Operação Bandei-
rantes’ tiveram, em seus primeiros tempos, de va-
ler-se quase exclusivamente da experiência de de-
legados e investigadores da Polícia Civil. Quase
sem o público tomar conhecimento, por se tratar

16
Diário Oficial do Estado de São Paulo de 8 de novembro de 1969, p.
1 e 2. “Estamos governando com os olhos voltados para o
desenvolvimento do país”.

 
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 597

de medida administrativa interna da Secretaria de


Segurança Pública, um grande contingente de po-
liciais da Divisão de Crimes contra o Patrimônio,
foi transferido, em meados de 1969, para o DOPS
paulista17 e, em seguida, uma parte deles, para a
‘Operação Bandeirantes’18”.

Entre esses agentes, o mais célebre foi o delega-


do Sergio Paranhos Fleury. Conhecido por ser acusado
de participar do Esquadrão da Morte, o delegado pas-
sou a história como um dos maiores torturadores da
ditadura brasileira.

2.2 A colaboração dos empresários

Quando se lê sobre a OBAN, na maioria das ve-


zes é dito que, como este órgão não possuia verbas or-
çamentárias previstas, os empresários brasileiros e de
multinacionais foram chamados a contribuir para seu
aparelhamento. Teria sido realizada uma reunião com
vários empresários na qual foi dito que o governo não
possuía recursos e equipamentos para o combate aos
opositores e que os empresários teriam assumido o
compromisso de financiar o órgão.
Elio Gaspari, em seu livro “A Ditadura Escanca-
rada” cita que o governador Abreu Sodré cedeu o ter-
reno da 36ª Delegacia de Polícia localizada na Rua Tu-
toia na Vila Mariana para instalação da OBAN e que o
prefeito Paulo Maluf mandou que fossem instalados
postes de iluminação e que se asfaltasse a área19. Cita

17
No Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOE) de 17 de setembro
de 1969 encontrei as portarias de transferência de vários delegados
para o DOPS. Entre esses estão: Sergio Paranhos Fleury, Edsel
Magnotti, Celso Telles, Silvio Moraes Bartoletti, Edson Venicio
Charnilot, Antonio Fasoli e Firmino Pacheco Netto. DOE, p. 10 e 11.
18
FON, Antonio Carlos. Obra citada, p. 20.
19
GASPARI, ELIO. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 61.
598 Maria Carolina Bissoto

ainda que o ministro Antonio Delfim Netto e um grupo


de empresários teriam se reunido no palacete do Clube
São Paulo. O ministro apresentou o problema aos em-
presários e estes assumiram o compromisso de pagar
esses gastos. As reuniões para a coleta das verbas ocor-
riam na Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP),
sendo que ao final dessas reuniões era passado o que-
pe. A Ford e a Volkswagen forneceriam os carros, a
Ultragás emprestaria caminhões e a Supergel fornece-
ria refeições congeladas20.
O difícil é encontrar empresários que não cola-
boraram materialmente com a OBAN. Todas as empre-
sas automobilísticas forneceram carros que eram usa-
dos na captura dos militantes. Entre essas podem ser
citadas: General Motors, Ford, Willys, Mercedes Benz,
Volkswagen, Toyota e Chrysler. Nas páginas do Diário
Oficial do Estado de São Paulo do ano de 1969 é fre-
quente ver listas e mais listas de carros sendo forneci-
dos à polícia paulista, sendo constante a troca de veícu-
los.
A ajuda em espécie também era frequente, mas
apesar disso em muitos processos da Auditoria Militar
os militantes alegaram que quantias que estavam em
seu poder foram apreendidas pela OBAN.
Derlei Catarina de Luca narra que durante sua
prisão na OBAN lhe foi servida comida congelada,
sendo que esta era fornecida gratuitamente ao órgão.
Ela afirma ainda que na OBAN lhe foi dito que a em-
presa de cigarros Souza Cruz fornecia cigarros aos fun-
cionários21.
Assim como é difícil encontrar empresários que
de alguma forma não colaboraram com a OBAN, pro-
vas escritas dessa colaboração não são encontradas fa-
cilmente. Entretanto, as muitas fotografias e notas do

20
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada, p. 62.
21
LUCA, Derlei Catarina. No corpo e na alma. Criciúma: Editora do
Autor, 2002, p. 99.

 
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 599

caderno social da Folha de São Paulo, registrando as


homenagens, coquetéis e banquetes oferecidos por em-
presários e banqueiros aos militares demonstra que
havia um vínculo entre eles. Também não é difícil en-
contrar empresários condecorados com medalhas pelo
Exército. Instituída em 1953, após 1955 a Medalha do
Pacificador passou a ser oferecida a militares e a civis
que tivessem prestado um relevante serviço ao Exérci-
to.
Em 1973, Geraldo Alonso (presidente da Nor-
thon Publicidade) e José Papa Junior (presidente da
Federação do Comércio de São Paulo) foram agracia-
dos com a Medalha do Pacificador. Qual seria o motivo
para um empresário receber uma medalha pelos bons
serviços prestados à Nação? E que bons serviços seriam
esses? Mas eles não foram os únicos condecorados.
Em 1987, o então tenente-coronel Erasmo Dias,
comandante da invasão da PUC de São Paulo em 1977,
foi condecorado com esta Medalha em virtude dos ser-
viços prestados ao Exército22.
Muitos militares acusados de serem torturado-
res foram condecorados com a Medalha do Pacificador.
Entre esses pode-se citar: Carlos Alberto Brilhante Us-
tra (condecorado em 1972); Alberto dos Santos Lima
Fajardo, comandante do DOI-CODI do Rio de Janeiro
em 1975 (condecorado em 1973); Amilton Nonato Bor-
ges, que atuou no DOI-CODI de Salvador (condecora-
do em 1972); Freddie Perdigão Pereira, Major da Cava-
laria do Exército no DOI-CODI do Rio de Janeiro (1969-
1971), conhecido como Doutor Nagib e Doutor e que
também atuou na Casa da Morte, em Petrópolis (con-
decorado em 1970); José Canavarro Pereira, comandan-

22
As informações sobre os condecorados com a Medalha do
Pacificador estão disponíveis no site da Secretaria Geral do Exército.
Disponível em:
<http:www.sgex.eb.mil.br/sistemas/almanaque_med_mdp/
resposta.php>. Acesso em 17 de abril de 2013.
600 Maria Carolina Bissoto

te do II Exército em 1969, condecorado em 1954; Mau-


rício Lopes Lima, um dos torturadores da OBAN, rece-
beu a medalha em 1981.
Dalmo Lúcio Muniz Cyrillo, que também inte-
grava a equipe de torturadores da OBAN, recebeu a
Medalha do Pacificador duas vezes (1969 e 1972).
Outro que recebeu a comenda foi o juiz da 2ª
Circunscrição Militar, Nelson Machado Guimarães
(condecorado em 1972), acusado de participar de tortu-
ras dos presos, suas sentenças eram pródigas nas acu-
sações, sendo muitas vezes conivente com a repressão
militar ao não permitir a menção às torturas alegadas
pelos presos.
Além da Medalha do Pacificador, havia também
outras condecorações que poderiam ser concedidas
àqueles que se distinguissem por relevantes serviços
prestados ao país, ou seja, que colaborassem com a di-
tadura. No estado de São Paulo, o governador Abreu
Sodré instituiu a Ordem do Ipiranga, visando premiar
os que auxiliassem a repressão, as condecorações eram
publicadas no Diário Oficial do Estado que sempre
exaltava os serviços prestados por aqueles cidadãos.
Há ainda casos de empresários que teriam cola-
borado com a tortura. O mais famoso é o de Henning
Albert Boilesen, dono do Grupo Ultragás, que seria o
responsável pela arrecadação dos fundos que manteri-
am o funcionamento da OBAN e, segundo denúncias
de ex-presos políticos participaria de sessões de tortu-
ra. Por sua participação no financiamento da repressão,
Boilesen foi morto por militantes que lutavam contra a
ditadura no dia 15 de abril de 1971. No manifesto dei-
xado junto ao seu corpo estava escrito:
“HENNING ALBERT BOILESEN, foi justiçado,
não pode mais fiscalizar PESSOALMENTE as tor-
turas e assassinatos na OBAN, nem oferecer ban-
quetes aos altos oficiais das forças armadas brasi-
leiras, que comandam o terror e a opressão de que
é vítima o povo brasileiro desde abril de 1964. Boi-
lesen era apenas um dos responsáveis por este ter-

 
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 601

ror e opressão. Como ele existem muitos outros e


sabemos quem são. Todos terão o mesmo fim, não
importa o quanto demore; o que importa é que to-
dos eles sentirão o peso da JUSTIÇA
REVOLUCIONÁRIA23”.

Como se percebe do manifesto outros havia


além de Boilesen.
Recentemente a Comissão da Verdade de São
Paulo localizou seis livros de registros de visitantes do
DOPS de SP no Arquivo Público do Estado de São Pau-
lo, sendo que neles constava a assinatura de Geraldo
Resende Matos (ou Mattos), identificado como FIESP,
algumas vezes indicando a permanência no local por
mais de 12 horas ou registros sem horário de saída ou
saída somente no dia seguinte. Constatou-se também
que no ano de 1971, Matos teria realizado aproxima-
damente 50 visitas ao DOPS24. Todos que fossem ao
local em determinado horário poderiam saber da práti-
ca de torturas no prédio. Como alguém que visitava
tanto não saberia disso? E por qual motivo um repre-
sentante da FIESP frequentaria tanto o prédio? Que
ligações isso pode indicar?
Há também denúncias da existência de listas
negras em determinadas empresas. Segundo o jornalis-
ta José Casado “grandes empresas recrutaram pessoal
nas Forças Armadas e na polícia, mantiveram aparatos
de expionagem dos empregados dentro das fábricas e
nos sindicatos. A Volks e a Chrysler, por exemplo, re-

23
Manifesto “Ao povo brasileiro”. Documento nº 5483 do Inventário
de Anexos do Brasil: Nunca Mais. Arquivo Edgar Leuenroth (AEL),
UNICAMP. Grifos do original.
24
SADA, Juliana. Indícios mostram ligação dos EUA e FIESP com
tortura. Disponível em: <http://www.rodrigovianna.com.br/plenos-
poderes/novos-indicios-mostram-ligacao-dos-eua-e-da-fiesp-com-
tortura.html>. Acesso em 16 de abril de 2013.
602 Maria Carolina Bissoto

passaram listas de funcionários aos órgãos de seguran-


ça, às vezes com as respectivas fichas funcionais. (...)25”.
É importante frisar também que nem todos os
empresários contribuiam voluntariamente com os ór-
gãos da repressão, sendo que a maior disposição de
colaborar vinha da parte das multinacionais, já que em
caso de perigo estes empresários poderiam ser transfe-
ridos para outro país, entretanto, os empresários brasi-
leiros que se recusavam a colaborar eram vítimas de
extorsão segundo relato de Kurt Mirow, diretor da Co-
dima – Máquinas e Acessórios S/A26.
José Mindlin, que na época dirigia a empresa
Metal Leve narra ter sido procurado por uma pessoa
que lhe pediu uma contribuição financeira para a
OBAN pois o órgão estaria se organizando para com-
bater o terrorismo e precisava de equipamentos técni-
cos. Narra ainda que respondeu que achava que a
OBAN tinha ações violentas e que não poderia contri-
buir sem conhecer exatamente o seu modo de funcio-
namento27. A empresa de Mindlin sofreu muitas perse-
guições durante o período ditatorial.
Mas poucos tiveram a atitude de Mindlin se re-
cusando a colaborar. Entretanto, é necessário frisar que
na verdade, a instalação da OBAN não se deu exclusi-
vamente devido a participação dos empresários. Que
eles forneceram ajuda material para este órgão é ver-
dadeiro, mas que a instalação da OBAN tenha sido
possível única e exclusivamente porque eles financia-
ram não é verdade.

25
CASADO, José. Repressão no pátio da fábrica. Disponível em:
<http://www2.igmetall.de/homepages/brasil/file_uploads/cnm-
2005-19.pdf>. Acesso em 17 de abril de 2013.
26
“Quem deu dinheiro para a tortura – Assessor de Delfim no
esquema do dinheiro que financiou as torturas”. O Movimento, edição
192, 5 a 11/03/1979, p.11. Acervo de Periódicos do Arquivo Edgar
Leuenroth (AEL), UNICAMP.
27
Transcrição da entrevista de José Mindlin ao documentário Cidadão
Boilesen de Chaim Litewski.

 
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 603

Os carros usados na OBAN eram sim de empre-


sas automobilísticas como a Ford, GM e Volkswagen,
mas tinham sido fornecidos ao governo para o apare-
lhamento de suas tropas. Havia sim contribuição em
espécie de empresários, mas a finalidade do dinheiro
antes de ser a manutenção do órgão, era para premiar a
captura dos militantes.
Com isso não se quer negar que houve financi-
amento de empresários, que estes deram dinheiro, for-
neceram carros, mantimentos. Quer se dizer que mes-
mo que este dinheiro não tivesse sido dado, a OBAN
teria existido da mesma forma. O que se deseja afirmar
é que a criação deste órgão ocorreu num panorama de
aumentar a repressão para combater principalmente a
luta armada, já que órgãos como o DOPS não sabiam
como reprimir esses movimentos. Com a união de es-
forços dos civis e militares, com o uso de informações,
logo as organizações de luta armada foram atingidas
fortemente.

3. A caracterização da cumplicidade por parte dos


empresários na OBAN

Como dissemos acima para caracterização da


cumplicidade segundo o painel realizado pela Comis-
são Internacional de Juristas é possível a utilização de
três critérios.
O primeiro é o da causalidade. Portanto, é ne-
cessário verificar se a empresa contribuiu por meio de
atitudes práticas para que violações a direitos humanos
pudessem ser praticadas. No caso de várias empresas
há suspeitas que indicam que carros teriam sido em-
prestados a OBAN, ex-presos narram que teriam sido
conduzidos em carros de empresas para o órgão. Há
também denúncias de fornecimentos de outros materi-
as como cigarros, marmitex. Há ainda denúncias de
listas negras nas empresas que eram fornecidas aos
órgãos da repressão que causavam a prisão de empre-
604 Maria Carolina Bissoto

gados do local contrários ao regime militar. Portanto,


este critério da causalidade é totalmente verificável no
caso da OBAN, podendo assim haver uma responsabi-
lização dos empresários.
O segundo critério como vimos é o conheci-
mento. O que deve-se verificar é se a empresa possui
conhecimento ou tinha como saber sobre as violações
aos direitos humanos praticadas. Ora, era impossível
que alguém que frequentasse um local como o DOPS
não soubesse das torturas praticadas no local. É impos-
sível de se imaginar que o dono do Sítio 31 de março, o
empresário Joaquim Rodrigues Fagundes, dono da
Transportes Rimet Ltda na Móoca – que por sinal só
tinha um cliente: a TELESP – não soubesse que seu sítio
era utilizado como centro clandestino de tortura. Ele
que foi um dos condecorados com a Medalha do Paci-
ficador e também com uma comenda do Exército, tor-
nando-se oficialmente comendador, e que reunia em
churrascos Erasmo Dias (comandante da invasão da
PUC-SP em 1977), Carlos Alberto Brilhante Ustra, Sér-
gio Paranhos Fleury28, como não saberia o que era feito
em seu sítio e o que faziam os seus “amigos” no traba-
lho?
Era totalmente possível ter o conhecimento das
torturas que eram praticadas nos órgãos repressivos e
nos centros clandestinos de torturas, assim, é totalmen-
te viável caracterizar a responsabilidade desses empre-
sários que colaboraram nesses órgãos. Até porque as
palavras de José Mindlin provam que no meio isso era
conhecido.
O terceiro critério é a proximidade da empresa
aos agentes da repressão e como foi visto esta proximi-
dade era existente. Seja nas colunas sociais, seja na exis-

28
VIANA, Natalia Viana, CHASTINET, Tony e MALAVOLTA, Luiz.
O sítio da tortura. Disponível em:
<http://www.apublica.org/2011/08/o-sitio-da-tortura/>. Acesso em
17 de abril de 2013.

 
A cumplicidade em violações aos direitos humanos... 605

tência de fotos de empresários em companhia de mili-


tares, seja pelas medalhas de Pacificador que muitos
empresários receberam, na presença de empresários
participando da tortura como é o caso de Boilesen. Tu-
do isto comprova a proximidade empresas – órgãos da
repressão e caracteriza perfeitamente a responsabilida-
de dos empresários como cúmplices em violações aos
direitos humanos.
Em vista do discutido no presente artigo acredi-
tamos que é possível a responsabilização dos empresá-
rios por cumplicidade em violações aos direitos huma-
nos, sendo necessário, assim, que esta faceta do regime
seja discutida de maneira mais abrangente para que
esta responsabilidade possa ser devidamente reconhe-
cida.

Referências

CASADO, José. Repressão no pátio da fábrica. Disponível


em:
<http://www2.igmetall.de/homepages/brasil/file_uplo
ads/cnm-2005-19.pdf>. Acesso em 17 de abril de 2013.
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CASTRO, Celso (org.). Os anos de chumbo: a memória miitar
sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOE) de 17 de
setembro de 1969
Diário Oficial do Estado de São Paulo de 03 de maio de
1969. “Creio num entendimento ainda maior entre civis e
militares”, p. 1 e 2.
Diário Oficial do Estado de São Paulo de 8 de novembro
de 1969. “Estamos governando com os olhos voltados
para o desenvolvimento do país” , p. 1 e 2.
FERNANDES JÚNIOR, Ottoni. O Baú do Guerrilheiro. Rio
de Janeiro: Record, 2004.
606 Maria Carolina Bissoto

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2001.
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política no Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora
Ltda., 1979.
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VIANA, Natalia Viana, CHASTINET, Tony e
MALAVOLTA, Luiz. O sítio da tortura. Disponível em:
<http://www.apublica.org/2011/08/o-sitio-da-
tortura/>. Acesso em 17 de abril de 2013.
WEICHERT, Marlon Alberto. O financiamento de atos de
violação de direitos humanos por empresas durante a
ditadura brasileira. Acervo: revista do Arquivo Nacional.
608 Maria Carolina Bissoto

—v. 21 n. 2(jul./dez. 2008). — Rio de Janeiro:Arquivo


Nacional, 2008.

 
Proteção penal contra violações
aos direitos humanos 1

Marlon  Alberto  Weichert2  

1 Este artigo se originou da conferência "Visão Crítica dos Óbices à

Promoção da Justiça no Brasil", proferida no Seminário "Justiça de


Transição: análises comparadas Brasil Alemanha“ (“Transitional
Justice": Vergleichende Einblicke in Transitionsprozesse aus Brasilien
und Deutschland"), na Universidade Goethe, em Frankfurt, Alemanha,
no dia 17/7/2012, realizado sob os auspícios da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça do Brasil e da Universidade Goethe de
Frankfurt. O texto não é reprodução exata do apresentado na
conferência, pois alguns argumentos foram aprofundados neste artigo.
Foram aproveitados elementos de trabalhos anteriores do autor,
sobretudo Suprema impunidade no julgamento da ADPF 153. In
SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais
no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011, p. 955-979, e A Obrigação constitucional de punir graves
violações aos direitos humanos. In: Direito à verdade e à justiça.
SOARES, Inês Virgínia Prado; PIOVESAN, Flávia (coord.), Editora
Fórum, prelo.
2 Procurador Regional da República. Mestre em Direito do Estado pela

PUC/SP. Perito em justiça de transição indicado pela Comissão


Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Funcionou como
testemunha no processo Gomes Lund, na Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Coordenador do Grupo de Trabalho em Memória e
Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Autor de
diversos artigos sobre justiça de transição e coautor de iniciativas civis
e criminais de responsabilização de perpetradores de violações aos
direitos humanos durante a ditadura militar brasileira, bem como de
promoção da verdade em relação a esse período autoritário.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
610 Marlon Alberto Weichert

1. Introdução

Este artigo tem por objeto imediato a análise dos


dois principais óbices invocados por parte do Poder
Judiciário brasileiro para negar a promoção da justiça
criminal em relação às graves violações de direitos
humanos ocorridas no Brasil durante a ditadura militar
brasileira: a existência de uma lei de anistia e o trans-
curso do prazo da prescrição. Porém, os fundamentos
utilizados contribuem para uma reflexão mais ampla
sobre o papel do direito penal como instrumento de
garantia de direitos humanos, assim como os limites da
atividade legislativa quando produtora de normas de
impunidade.
Trabalharei o tema à luz de princípios do direito
constitucional democrático e também do direito inter-
nacional dos direitos humanos. Antes, porém, farei um
breve resumo do desenvolvimento da transição no Bra-
sil, para contextualizar aspectos fáticos e jurídicos da
edição da Lei de Anistia.

2. A transição política

A ditadura militar brasileira teve início em 1964,


no contexto da guerra fria. O País tinha um governo
democrático que desenvolvia algumas políticas sociais,
as quais foram consideradas – por segmentos conser-
vadores – como de influência socialista.
Juridicamente, o País era regido pela Constitui-
ção democrática de 1946, promulgada por uma Assem-
bleia Nacional Constituinte convocada com o fim da
ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945).
O golpe militar de 1º de abril de 1964 manteve a
vigência (meramente formal) da Constituição de 1946.
Para fundamentar a quebra dos preceitos constitucio-
nais foram editados Atos Institucionais e Atos Com-
plementares, outorgados pelo Poder Executivo, ou seja,
decretos presidenciais aos quais os militares atribuíram

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 611

força constitucional. Em 1967, com a edição do quarto


Ato Institucional, o Congresso Nacional foi convocado
para votar e promulgar um novo projeto de Constitui-
ção, ou seja, formalmente referendar o texto outorgado
pelo governo. E, com efeito, nesse ano se formalizou a
Constituição autoritária, ditada pelo regime militar,
que revogou o texto de 1946.
Não obstante a outorga de uma Constituição au-
toritária, o governo manteve a edição paralela de Atos
Institucionais e Complementares, os quais – inclusive –
eram usados para alterar a carta "constitucional" por
ele mesmo imposta.3
No plano da repressão, desde os primeiros dias
do golpe houve prisões em larga escala e atos de re-
pressão. Todavia, foi a partir de 1968 que a perseguição
sistemática e generalizada ganhou força e passou a ser
extremamente violenta. Nesse ano o governo editou o
Ato Institucional nº 5, com o qual restringiu ainda mais
os direitos e as garantias fundamentais, inclusive abo-
lindo o habeas corpus nos casos de crimes políticos e
contra a segurança nacional. Em 1969, com o Ato Insti-
tucional nº 14, foi instituída a pena de morte, a prisão
perpétua e o banimento nos casos de guerra externa
psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva.
Ainda em 1969, com o Congresso em recesso, foi
decretada a Emenda Constitucional nº 1, que alterou
substancialmente a Carta outorgada em 1967 e consoli-
dou a previsão das penas de morte, prisão perpétua e
banimento introduzidas no AI-14.
Estes atos deram o sinal verde para a instituição
do terrorismo de Estado e a perpetração em larga esca-
la da violação aos direitos humanos, tais como prisões
arbitrárias, torturas, execuções sumárias, desapareci-
mento forçado de pessoas e violências sexuais. Os or-
ganismos policiais e militares responsáveis pela segu-

3 No total, foram 17 atos institucionais e 104 atos complementares.


612 Marlon Alberto Weichert

rança política receberam a orientação de tratar qual-


quer dissidente como um inimigo (em conformidade
com a doutrina da segurança nacional).
Em meados dos anos setenta praticamente todos
os movimentos de resistência haviam sido aniquilados.
Estima-se que a repressão produziu um saldo de ao
menos 30 mil pessoas presas ilegalmente e torturadas.
Milhares de brasileiros foram para o exílio. A maior
parte em auto-exílio, para fugir do risco de ser preso e
torturado. O número de mortos e desaparecidos é da
ordem de 500 pessoas4, considerados os dissidentes
políticos perseguidos pelo regime militar. Mas pode
chegar a número bem mais expressivo, se forem acres-
cidas as vítimas que não eram militantes políticas, mas
de alguma forma se opuseram ao modelo do regime
autoritário, sobretudo nas áreas rurais e nas popula-
ções vulneráveis, tais como os indígenas.
Em 1978 um movimento da sociedade civil em
favor da anistia a presos políticos ganhou força no país.
Em decorrência dessa pressão da sociedade civil e da
perda de popularidade do regime militar (fruto, sobre-
tudo, da crise econômica e social, mas também do es-
gotamento do modelo de privação das liberdades), as-
sim como da vitória que este já tinha obtido sobre
qualquer resistência organizada, o governo militar con-
cordou em 1979 com uma anistia limitada aos crimes
políticos. Foram excluídos os autores já condenados
por crimes de terrorismo, assalto, sequestro ou atenta-
do pessoal.
A Lei de Anistia estabeleceu que os crimes co-
nexos aos crimes políticos estavam igualmente anistia-
dos. Entretanto, um dos seus preceitos legais definia
que essa conexão incluiria quaisquer crimes praticados
com motivação política (§ 1º, do artigo 1º). A intenção

4 Apesar da instituição da pena de morte pelo Ato Institucional nº 14,


ninguém foi morto seguindo o devido processo legal. Todos os casos
foram de execução ilegal.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 613

do governo militar foi, com essa redifinição (alarga-


mento) do conceito de crimes conexos, conceder uma
autoanistia disfarçada a seus agentes.5
A anistia de 1979 foi, portanto, anunciada como
bilateral, pois concedeu perdão aos perseguidos políti-
cos e, também, aos agentes públicos.6
O governo militar somente deixou o poder em
1985, após um movimento popular que reuniu nas pra-
ças públicas milhões de brasileiros em defesa da eleição
direta para presidente e o fim da ditadura.
Embora o movimento não tenha conseguido
implantar a imediata eleição direta para presidente, foi
fundamental para a escolha de um civil da oposição na
eleição indireta pelo Congresso Nacional.
Sob esse novo governo civil, de moderada opo-
sição aos militares, uma Assembleia Constituinte foi
convocada, mediante a Emenda Constitucional nº 26,
de 1985.
Essa mesma Emenda Constitucional previu
anistia “aos autores de crimes políticos ou conexos” (§
1º, art. 4º), praticados entre 2 de setembro de 1961 e 15
de agosto de 1979 (§ 2º)7. Portanto, trata-se de norma

5 Dispõe a Lei nº 6.683/79:


“Art. 1º. É concedida anistia a todos quantos, no período
compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, (...)
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados
pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado
pessoal.”
6 Na nossa interpretação, apesar da intenção do legislador, o texto da

Lei nº 6.683/79 foi mal elaborado e não veiculou norma que pudesse
ser interpretada como instituidora da anistia aos agentes públicos da
repressão à dissidência política. Os crimes por eles praticados não
podem ser considerados políticos em sentido próprio ou impróprio e,
tampouco, conexos a crimes políticos. (WEICHERT; FÁVERO, 2009).
7 O teor completo do dispositivo é o seguinte:
614 Marlon Alberto Weichert

parcialmente semelhante à da anistia de 1979. Diferen-


temente da anterior, o preceito da nova anistia omitiu a
extensão dos benefícios aos crimes de qualquer nature-
za praticados por motivação política ou relacionados
com crimes políticos, constante do § 1º, do artigo 1º, da
Lei nº 6.683/79 .
Uma nova Constituição foi finalmente promul-
gada em 1988. Nela não há referência à anistia de 1979.
Como se pode notar, a ditadura se socorreu
formalmente do direito como instrumento de legitima-
ção de seus atos. Houve a preocupação em outorgar
duas constituições e reiterados atos institucionais e
complementares, positivando o autoritarismo. Mesmo
assim, a repressão funcionou também à margem desse
aparato normativo, o qual, aliás, vedava o emprego da
tortura, conforme o § 34, do artigo 153, do texto outor-
gado em 1969: "[i]mpõe-se a tôdas as autoridades o respeito
à integridade física e moral do detento e do presidiário". Fi-
nalmente, preparando a sua retirada, o governo editou
norma de anistia para seus agentes e seus opositores. A
diferença essencial é que estes já haviam sido perse-
guidos e punidos, enquanto os agentes da repressão
eram desconhecidos e seus atos não haviam sido inves-
tigados.

“Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da


Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de
exceção, institucionais ou complementares.
§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou
conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e
estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam
sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política,
com base em outros diplomas legais.
§ 2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos
imputáveis previstos no 'caput' deste artigo, praticados no período
compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979."
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 615

3. A discussão jurídica

Conforme mencionado, a Lei de Anistia de 1979


foi explícita sobre o perdão penal aos autores de crimes
praticados contra o Estado, por motivação política, tais
como os praticados pelos dissidentes políticos e resis-
tentes ao regime ditatorial instaurado em 1964.
Entretanto, não foi clara para instituir o perdão
aos agentes do Estado que, no bojo das atividades de
repressão à dissidência política, cometeram graves vio-
lações aos direitos humanos.
Até 2008 prevalecia a afirmação política de que
a anistia era bilateral. Os poucos julgados sobre o tema
simplesmente afirmavam, sem qualquer apreciação
técnica do conteúdo da norma, que a anistia impedia a
persecução penal dos agentes públicos, numa repetição
da interpretação oficial fixada durante a própria dita-
dura.
No mencionado ano de 2008, o Ministério Públi-
co Federal em São Paulo iniciou investigações e ações
judiciais contra agentes da repressão. Essas medidas se
baseavam em estudo que elaboramos, no qual defen-
demos ser inaplicável a anistia aos autores de graves
violações aos direitos humanos e, da mesma forma, a
imprescritibilidade desses delitos.
O tema ganhou projeção política a partir de au-
diência pública realizada no Ministério da Justiça em
julho de 2008, oportunidade em que os Ministros da
Justiça e da Secretaria Especial de Direitos Humanos
manifestaram concordância com a tese da Procuradoria
da República em São Paulo.
Nesse mesmo ano o Conselho Federal da Or-
dem dos Advogados do Brasil propôs uma ação consti-
tucional denominada "Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental - ADPF" no Supremo Tribu-
nal Federal, com o objetivo de ser conferida “uma in-
terpretação conforme a Constituição, de modo a decla-
rar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anis-
616 Marlon Alberto Weichert

tia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou


conexos não se estende aos crimes comuns praticados
pelos agentes da repressão contra opositores políticos,
durante o regime militar”.
Em abril de 2010 o Supremo Tribunal Federal
julgou, por maioria, improcedente a ADPF. A Corte
utilizou vários argumentos, dos quais destacamos os
seguintes: (a) a Lei de Anistia abrangeu quaisquer cri-
mes praticados com motivação política, o que inclui os
delitos praticados pelos agentes do Estado na repres-
são; (b) a anistia foi, portanto, bilateral; (c) a lei teve
efeitos instantâneos, não sendo possível rever sua apli-
cação após 30 anos; (d) deve ser privilegiada uma in-
terpretação compatível com o momento histórico, que
leve em consideração a intenção do legislador da épo-
ca; (e) houve um pacto político entre o governo militar
e entidades da sociedade civil, que teriam anuído com
a anistia aos agentes estatais para viabilizar a liberdade
de presos políticos e o retorno do exílio de milhares de
perseguidos do regime; (f) não seria legítimo rever esse
acordo, especialmente por decisão judicial; (g) o Brasil
tem tradição de conceder anistias dessa natureza, após
conflitos políticos; (h) não houve autoanistia, dada a
bilateralidade do benefício penal, sendo inaplicável a
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos que reputa inválidas normas legais institui-
doras de anistia dessa natureza; e (i) a edição e a apli-
cação da Lei nº 6.683/79 não se sujeitam à Corte Inte-
ramericana por serem anteriores ao reconhecimento,
pelo Brasil, de sua jurisdição, válida apenas para fatos
ocorridos após dezembro de 19988. Portanto, o Supre-

8 Ao manifestar a aceitação como obrigatória da competência da Corte

Interamericana de Direitos Humanos, o governo brasileiro ressalvou o


reconhecimento dessa jurisdição para apreciar fatos ocorridos até 10 de
dezembro de 1998 (Decreto Legislativo nº 89/98 e Decreto Presidencial
nº 4.463, de 8 de novembro de 2002).

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 617

mo Tribunal Federal não precisava temer uma conde-


nação internacional9.
O Supremo Tribunal Federal, parece-me, enve-
redou por caminho inadequado na avaliação da vali-
dade da anistia a perpetradores de graves violações aos
direitos humanos.
Primeiro, no que diz respeito ao juízo de consti-
tucionalidade originária. A Corte apenas tratou dos
fundamentos históricos da lei e dos reflexos decorren-
tes de sua suposta reinterpretação. Assim, não houve o
indispensável juízo de constitucionalidade da norma
editada pela Lei nº 6.683/79 em face do parâmetro
constitucional que vinculava a atividade legislativa no
momento do seu exercício. Ou seja, é preciso analisar
se o legislador podia, em 1979, editar uma lei de anistia
que tornasse impunes os crimes relacionados à execu-
ção sumária, desaparecimento forçado, tortura e vio-
lências sexuais de cidadãos brasileiros por agentes do
Estado. Insisto que essa avaliação não foi ainda efetua-
da pelo Supremo Tribunal Federal.
Em segundo lugar, houve equívoco na avaliação
do efeito, para o direito interno, das obrigações inter-
nacionais assumidas pelo Estado brasileiro.
Antes, porém, de analisar essa decisão da Su-
prema Corte brasileira, é importante destacar que outro
grande óbice para a promoção da justiça está no prazo
prescricional. De acordo com a lei penal brasileira, o
prazo mais amplo de prescrição é de 20 anos, o qual se
conta, em regra, da data da consumação do crime. Por
esses postulados, desde meados dos anos noventa a

9Voto do Min. Eros Grau, relator, pág. 50. Note-se que o julgamento
da ADPF foi anterior à sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso Gomes Lund. A CIDH reconheceu a sua
competência para analisar a falta de investigação e punição das graves
violações aos direitos humanos durante a ditadura brasileira, pois esta
omissão persiste mesmo após o reconhecimento da jurisdição da CIDH
pelo Brasil.
618 Marlon Alberto Weichert

persecução penal já não mais seria possível para a mai-


or parte dos delitos aqui mencionados.
As normas de prescrição, portanto, são causa
autônoma de impunidade e também devem ser objeto
de reflexão para fins de definição da possibilidade jurí-
dica de responsabilização criminal dos autores de vio-
lações aos direitos humanos durante a ditadura brasi-
leira.

4. Controle de constitucionalidade da Lei de


Anistia: parâmetro

O primeiro aspecto que se destaca diz respeito à


definição de qual ordem constitucional deve ser adota-
da para o parâmetro de constitucionalidade. A própria
Constituição outorgada pelo regime autoritário, com
seus acessórios arbitrários (refiro-me aos atos instituci-
onais e complementares), ou o último texto constituci-
onal democrático?
Em outras palavras, o controle de constituciona-
lidade da Lei nº 6.683/79 deve ser realizado em relação
à Constituição de 1967, emendada em 1969 e remenda-
da por atos institucionais, ou com prestígio à Consti-
tuição de 1946 e os valores de um Estado Democrático
de Direito?
A resposta me parece irremediavelmente no
sentido da desconsideração da ordem jurídica arbitrá-
ria, ou seja, das constituições outorgadas e seus acessó-
rios.
É incompreensível que se pretenda avaliar a va-
lidade constitucional de uma norma legal sobre prote-
ção de direitos fundamentais com a utilização de um
parâmetro decorrente de uma ordem jurídico-
constitucional outorgada por ditadores.
Não advogo a desconsideração integral das
normas jurídicas editadas durante o arbítrio, pois isso
equivaleria a instituir o caos, na medida em que as re-
lações sociais evidentemente prosseguem durante o

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 619

estado de exceção. Pessoas nasceram, casaram, morre-


ram, compraram, venderam e praticaram todos os atos
da vida social durante os 21 anos da ditadura. O prin-
cípio da segurança jurídica impõe que se reconheça
validade às normas que regularam tais atos, ainda que
provenientes de fonte legislativa ilegítima. Ademais, a
continuidade das relações sociais, e dos negócios pú-
blicos, impede qualquer arroubo de excluir do sistema
jurídico, de modo acrítico, toda e qualquer norma ori-
unda das fontes arbitrárias. Não se pode "infirmar to-
das as numerosas leis produzidas no período da dita-
dura militar, que disciplinam os aspectos mais comuns
do quotidiano e que provavelmente não seriam muito
diferentes se o contexto político fosse outro. Não assim,
todavia, com as normas que tratam de assuntos dire-
tamente ligados à sustentação do regime de força e,
com ainda mais evidência, aquelas que pretendem
blindá-lo de crítica para o futuro. Estas padecem irre-
mediavelmente da falta de legitimidade", conforme
indica WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG (2012, p.
350).
Toda norma emanada do autoritarismo deve
passar por um crivo de valoração material, não só de
recepção pela Constituição posterior, como também de
sua compatibilidade com os valores constitucionais de
um Estado de Direito. E, em se tratando de preceitos
legais que se referem direta ou indiretamente com a
promoção ou defesa de direitos fundamentais, o rigor
no exame deve ser ainda mais elevado. A ilegitimidade
da fonte normativa impõe um alto grau de severidade
na aceitação do valor material de leis que regulem di-
reitos fundamentais editadas durante o autoritarismo.
Ademais, em se tratando da promoção e garan-
tia de direitos fundamentais, há de se reconhecer uma
contradição interna na adoção de uma ordem constitu-
cional arbitrária como parâmetro de controle de consti-
tucionalidade.
A falta de legitimidade do ordenamento positi-
vo chamado de constitucional por um regime de exce-
620 Marlon Alberto Weichert

ção impõe ao jurista o dever de se socorrer do ordena-


mento do Estado de Direito antecedente. Essa regra
deve ser aplicada, inclusive, para normas penais edita-
das pelo regime autoritário que protegem deficiente-
mente direitos fundamentais violados pelos seus agen-
tes, ou que estabelecem penas excessivas para delitos
de opinião, resistência política ou outras manifestações
da liberdade. Ou seja, para o uso abusivo e despropor-
cional (excessivo ou deficitário, positivo ou negativo)
do direito penal, como medida de repressão indevida
ou favorecimento irrazoável.
Isso significa que a discussão sobre a validade
de normas relacionadas direta ou indiretamente com o
exercício de direitos e garantias fundamentais deve ser
feita à luz de uma ordem constitucional de um Estado
democrático de direito. O parâmetro deve ser o direito
constitucional anterior ao período de exceção, especi-
almente se retomado na ordem jurídica subsequente ao
arbítrio.
Portanto, o intérprete constitucional não pode
adotar como critério de valor para aferição da validade
material de uma norma infralegal de direitos funda-
mentais o ordenamento constitucional outorgado pelos
ditadores, inclusive em matéria penal.
Ele deve buscar na Constituição anterior o pa-
râmetro de avaliação, respeitando – obviamente – ou-
tros princípios e regras de direitos fundamentais.
Portanto, no que diz respeito à anistia outorga-
da em 1979, sua aceitação após a restauração do regime
democrático (1988) pressupõe um exame da sua consti-
tucionalidade originária. Podia o Estado brasileiro edi-
tar em 1979, à luz dos princípios constitucionais de um
Estado democrático de direito, uma lei que garantia a
impunidade a autores de crimes contra a humanidade?
Ressalto que não se poderia aceitar um juízo de
constitucionalidade da Lei de Anistia apenas em rela-
ção à ordem constitucional posterior ao regime autori-
tário. As normas relativas ao direito penal não podem
ser interpretadas indiscriminadamente com base em
 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 621

ordem constitucional superveniente. Um parâmetro de


constitucionalidade ulterior não pode agravar situações
de responsabilização criminal, salvo quando a norma
legal já padecia – à luz do direito supralegal então vi-
gente – de vícios originários de validade. O princípio
da irretroatividade da lei mais gravosa obriga que o
parâmetro seja o núcleo material constitucional anteri-
or ao golpe de Estado que deu origem ao regime de
exceção.

5. Inconstitucionalidade da Lei de Anistia

A pauta axiológica de uma Constituição de um


Estado Democrático de Direito aponta para a impossi-
bilidade de serem criados ou mantidos obstáculos
normativos ou materiais para a investigação e respon-
sabilização de graves crimes atentatórios aos direitos
humanos.
O primeiro elemento constitucional a invalidar
qualquer pretensão de considerar anistiáveis atos de
tortura ou outras graves violações aos direitos huma-
nos reside no princípio da dignidade da pessoa huma-
na.
A razão existencial do Estado é, antes de tudo, a
promoção dos direitos fundamentais dos seus cida-
dãos. Ainda que muitas vezes seja discutida a existên-
cia de um rol mínimo desses direitos fundamentais ou
humanos, está acima de qualquer outra cogitação a
certeza de que a proteção da dignidade da pessoa hu-
mana paira sobranceira em qualquer Estado de Direito
democrático.
Reportamo-nos ao que diz CELSO ANTONIO
BANDEIRA DE MELLO:
"Será difícil encontrar algo mais agressivo à digni-
dade da pessoa humana e à cidadania e, pois, mais
agressivo a dois dos fundamentos da República,
do que a tortura. (...) Eis, pois, que não pode pade-
cer a mais remota, a mais insignificante dúvida de
622 Marlon Alberto Weichert

que a tortura representa a antítese dos valores bá-


sicos que a Constituição Brasileira professa enfati-
camente. Donde, prestigiar a impunidade de tortu-
radores é uma contradição radical e óbvia aos
princípios essenciais do Estado Brasileiro". (2009,
p. 135-136)

O reconhecimento da anistia aos crimes dos


agentes da repressão é também incompatível com os
princípios republicano e do Estado de Direito. Esses
preceitos – umbilicalmente imbricados e caracterizado-
res do Estado brasileiro desde ao menos 193410 – trazem
como corolários o compromisso do Estado com o impé-
rio da Lei, a responsabilidade dos agentes públicos
pelos atos que praticam e a impessoalidade na gestão
dos interesses públicos.
Manter imunes à lei penal os autores estatais de
graves violações aos direitos humanos fere a autorida-
de do Estado de Direito, pois indica à sociedade que o
Poder Público pode violar a integridade física e moral
de seus cidadãos, persegui-los, sequestrá-los e matá-
los. Não se trata aqui de mero exercício de enquadra-
mento dos crimes à norma abstrata da lei, mas sim, de
admitir a possibilidade do legislador ordinário afrontar
o conteúdo material (os valores) do conjunto normati-
vo do País, o qual é vinculado à promoção dos direitos
fundamentais e ao respeito do cidadão. Lembre-se que
o Estado detém o monopólio do uso da violência, vin-
culado à promoção da segurança pública. O emprego

10 Em 1934 teve início a república nova, com a edição de uma


Constituição. Todavia, desde 1891 encontramos em todos os textos
constitucionais (mesmos os ditatoriais e outorgados) a previsão do
Brasil como um república e um Estado de Direito. Ou seja, ainda que
formalmente, todas as leis fundamentais do período republicano
reafirmaram esses princípios como valores essenciais, inclusive
aquelas outorgadas por governos que não praticavam tais valores
(constituições de 1937, 1967 e 1969). Vide CF/88: arts. 1º, caput e
parágrafo único, 5º, XXXIII; EC 1/69: art. 1º, caput e parágrafo único;
CF/46: art. 1º; CF/37, art. 1º; CF/34, art. 1º e CF/1891, art. 1º.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 623

ilegítimo e desvirtuado desse poder estatal não recebe


acolhida no Estado de Direito.
A concessão de anistia "para os que se encon-
tram fora do poder é ato compreensível, já que se trata
de indulgência penal, por parte do Estado, aos que se
encontram agindo fora dos limites da legalidade. No
entanto, o Estado não pode ser indulgente, com o esco-
po de promover a paz social, na mesma proporção,
com os que detém o poder", aponta MARCUS ORIONE
CORREIA. "A razão é óbvia: fazê-lo implicaria a ad-
missão da violência por aquele que, originariamente, é
posto à disposição de seu combate e da manutenção da
ordem existente. A única violência admitida ao agente
estatal é aquela juridicamente autorizada – já que, ao
suprimir parte da vontade privada, o direito em si re-
presenta uma limitação ao agir individual. A violência
permitida ao Estado é decorrente do Direito" (2009, p.
144).
Nem mesmo a alegação de prática do terrorismo
pelos dissidentes do regime poderia dar suporte às
condutas de torturar, sequestrar e assassinar esses mili-
tantes ou quaisquer outros suspeitos. Os agentes da
segurança pública estão sempre adstritos à lei e esta –
nem mesmo durante o regime de exceção – previu o
uso dessas práticas. O já mencionado § 34, do artigo
153, da carta outorgada de 1969 (anterior artigo 150 da
carta de 1967) era taxativo ao determinar que "[i]mpõe-
se a tôdas as autoridades o respeito à integridade física e mo-
ral do detento e do presidiário".
O Estado de Direito é quem fornece os instru-
mentos para o combate à criminalidade. Fora desses
limites, é o agente público quem envereda pelo cami-
nho do crime, praticando a violência arbitrária.
Por outro lado, admitir uma lei de autoperdão –
outorgada pelo Estado autoritário em favor de seus
agentes – é desconsiderar a essência do princípio repu-
blicano, que repousa sobre a responsabilidade dos ad-
ministradores públicos pelos seus atos e pelo dever de
impessoalidade.
624 Marlon Alberto Weichert

As autoanistias são artifícios de impunidade,


mediante os quais os perpetradores de violações aos
direitos humanos se concedem imunidade penal pelos
atos que cometeram. Ora, é evidente que ao próprio
regime que pratica – ou praticava – a violação não cabe
a iniciativa de se autoperdoar. Essa conduta atenta con-
tra os prefalados princípios da responsabilidade e da
impessoalidade, pois implicaria admitir que o Estado
pode conferir a seus servidores um regime de proteção
e impunidade, em razão da defesa pessoal que fizeram
do governo e de seus ideais. Estar-se-ia adotando pa-
râmetros de um regime absolutista, com a irresponsabi-
lidade dos agentes públicos e a confusão dos interesses
estatais com os pessoais.
Ainda que o Estado autoritário tenha perdoado
alguns delitos dos opositores políticos, isso não o in-
vestia de competência para conceder igual benefício
aos seus agentes. As situações jurídicas e o desvalor
constitucional das condutas de uns e de outros são fla-
grantemente distintos. O Poder Público em um Estado
de Direito não detinha e não detém autorização consti-
tucional para se autoanistiar.
Oportuno lembrar que a Lei nº 6.683/79 não é
fruto de um debate ou acordo democrático. Não se po-
de afirmar que foi fruto de um pacto político democrá-
tico. Essa linha de argumentação não sobrevive à cons-
tatação de que inexistia correlação de forças no proces-
so legislativo, tampouco liberdade política e civil para
a formação de um debate legítimo e um acordo de von-
tades. Nem mesmo a livre manifestação do pensamen-
to e a circulação de ideias era tolerada.
Embora o início do processo de anistia tenha si-
do fruto de pressão popular – capitaneado sobretudo
pelas mulheres e familiares de perseguidos políticos –,
é indiscutível que Lei de Anistia foi um “produto” uni-
lateral e exclusivo do governo militar. A sociedade não
tinha voz nem voto.
Para as vítimas e a sociedade civil, em virtude
da grave situação das famílias que tinham parentes
 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 625

exilados, banidos ou presos, não havia alternativa se-


não o acolhimento do concomitante perdão aos carras-
cos da repressão. Sem poder repudiar a autoanistia, a
sociedade civil garantiu uma anistia parcial aos perse-
guidos políticos. Era “pegar ou largar”. Ou se aderia à
chantagem estatal ou se manteria a situação de pro-
funda injustiça com os perseguidos políticos. Não ha-
via escolha.
Sem a concessão do benefício aos agentes do Es-
tado não haveria anistia alguma para os presos e per-
seguidos políticos. À oposição e à sociedade civil coube
apenas aceitar (ainda que sob protestos) essa cláusula,
como condição inicial para livrar da prisão e do exílio
milhares de brasileiros.
Não é legítimo, pois, alegar a existência de um
acordo, quando sabidamente o que houve foi uma im-
posição por parte dos detentores do poder estatal de
que qualquer Lei de Anistia deveria garantir proteção
aos agentes do Estado.
Também é incompreensível a tese de constitucionali-
zação da anistia, pela Emenda Constitucional que convocou
a Assembleia Nacional Constituinte em 1985.
Primeiro, porque essa emenda não reproduziu
integralmente a lei de 1979. Há diferenças substanciais.
A emenda constitucional de 1985 não repetiu a fórmula
de previsão de uma conexão sui generis, ou seja, de que
qualquer crime praticado com motivação política seria
conexo a crime político, constante do § 1º, do artigo 1º,
da Lei de 1979. Não há como omitir que toda a tese da
bilateralidade está fundada na dicção semântica e sin-
tática desse preceito, o qual, de forma confusa, afirma
que "[c]onsideram-se conexos, para efeito deste artigo, os
crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políti-
cos ou praticados por motivação política." Desse preceito
tirou o STF a norma legal que instituiria anistia a cri-
626 Marlon Alberto Weichert

mes comuns "[i] relacionados com os crimes políticos


ou [ii] praticados por motivação política."11
Em outras palavras, a interpretação em favor
dos agentes repressores parte da premissa de que a Lei
nº 6.683/79 trouxe duas normas anistiantes. No caput
do artigo 1º encontra-se o benefício em favor dos auto-
res de crimes políticos e conexos, no seu conceito tradi-
cional do direito processual penal. Ou seja, a norma
decorrente alcançaria exclusivamente aqueles que agi-
ram em face do Estado ou praticaram delitos relacio-
nados com a motivação de atacar o Poder Público. Foi
necessária a edição do preceito específico do § 1º para
ampliar o conceito de conexão, criando conteúdo sui
generis desse instituto, para abarcar os agentes do Esta-
do que praticaram crimes na repressão à dissidência.
Temos, pois, dois preceitos (caput e § 1º) e duas normas
(anistia a crimes políticos e conexos em sentido estrito,
de um lado, e anistia a crimes comuns com conexão sui
generis, de outro), respectivamente relacionados.
Ora, o artigo 4º, § 1º, da Emenda Constitucional
nº 26/85 reproduziu apenas o comando do caput do
artigo 1º da Lei de 1979, pois estipula que "[é] concedida,
igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou cone-
xos,...". Não há uma única referência à definição ampli-
ativa de conexão ventilada em 1979 no mencionado § 1º
(crimes de qualquer natureza relacionados com crimes
políticos ou praticados com motivação política) e, nem
mesmo, alusão à Lei nº 6.683/79.
Assim, longe de se poder presumir que houve a
constitucionalização integral das duas normas anistian-
tes de 1979, o que se depreende é a previsão na Emen-
da Constitucional tão somente da norma favorável aos
autores de crimes políticos e conexos stricto sensu. O
silêncio do legislador da Emenda Constitucional nº 26
nos parece eloquente quanto ao objetivo de absorver a

11 Voto do relator, Min. Eros Grau, p. 25, item 26.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 627

anistia aos delitos políticos e excluir os praticados fora


desse âmbito.
Nem mesmo a tese de que a interpretação da
anistia de 1979 deve ser feita sem apego ao texto nor-
mativo (item 28 do voto do Relator)12, mas sim com
ênfase no momento histórico, aproveita ao argumento
da constitucionalização. Isso porque o "momento histó-
rico" em 1985 era, evidentemente, distinto daquele de
1979. A ditadura militar havia terminado e, embora de
modo frágil, havia se iniciado a "nova república". As-
sim, a interpretação do texto normativo da EC 26/85
deve ser feita – se adotarmos com coerência a visão do
próprio Ministro Relator – sob os valores do novo
"momento histórico" de 1985, ou seja, sob os parâme-
tros de reinstituição de um Estado Democrático de Di-
reito, o qual – como será visto – é incompatível com a
impunidade de violações aos direitos humanos.
Não se pode simplesmente presumir que a
Emenda Constitucional nº 26/85 reproduziu na sua
inteireza as normas e a interpretação da anistia de 1979.
Não há nada no texto normativo que permita essa lei-
tura. Ao contrário, a absorção de apenas um dos pre-
ceitos do artigo 1º da Lei nº 6.683 e o contexto de edição
dessa Emenda levam a interpretação diametralmente
oposta.
Em segundo lugar, o argumento nos soa frágil
por dar valor a uma Emenda Constitucional também
oriunda de um Poder Legislativo ilegítimo e de uma
ordem jurídica autoritária.
Terceiro, porque a Emenda Constitucional con-
vocatória da Assembleia Nacional Constituinte foi re-
vogada com o próprio advento da nova Constituição,
em 1988, ou "provavelmente mesmo antes, quando a

12 Esse argumento, usado pelo Supremo Tribunal Federal, contraria o

princípio de hermenêutica no sentido de que a interpretação das


normas jurídicas deve ser realizada a partir do texto legal, e não da
intenção subjetiva do legislador.
628 Marlon Alberto Weichert

Constituinte definiu seus rumos em sentido parcial-


mente divergente e autônomo" em relação aos limites
impostos na ordem jurídica anterior (ROTHENBURG,
2012, p. 350). A nova Constituição "representou uma
autêntica ruptura do ponto de vista jurídico, seu pro-
cesso de elaboração tendo-se desvinculado do ato con-
vocatório", não sendo possível considerar que o ato
convocatório implicitamente se insere no corpo do no-
vo texto constitucional. No exercício do poder constitu-
inte originário, o produto (Constituição) não é subor-
dinado à ordem constitucional anterior, mesmo quan-
do esta foi a sua origem formal (ato convocatório da
Assembleia Constituinte). A interpretação de que a
Constituição de 1988 obrigatoriamente incorporou a
anistia de 1979 (ou de 1985), por força do seu ato con-
vocatório, navega em sentido oposto à compreensão de
que uma das principais limitações à Assembleia Cons-
tituinte advém da obrigação de respeito aos direitos
fundamentais (TAVARES, 2002, p. 37, 41-42), verdadei-
ro pilar do conceito material de Constituição. No caso,
a tese do Supremo Tribunal Federal advoga que o po-
der constituinte originário estaria vinculado ao valor
oposto, ou seja, a impunidade de graves violações aos
direitos humanos. Evidente, pois, que não se sustenta.

6. Anistia e prescrição diante do direito


internacional

Também o direito internacional impedia o Esta-


do brasileiro de conceder anistia a graves violações de
direitos humanos.
O Brasil, ao menos desde a promulgação das
Convenções de Haia, em 1907 (ratificadas em 1914), e
especialmente com a subscrição da Carta de São Fran-
cisco (1945) de constituição das Nações Unidas, assu-
miu na comunidade internacional o papel de corres-
ponsável pela promoção dos direitos humanos.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 629

O País participou da promulgação da Decla-


ração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
e da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
ambas de 1948, as quais consagraram os princípios
do direito à vida, ao devido processo legal e de não
ser submetido a tortura, tratamento ou pena cruel,
desumano ou degradante (Declaração Americana,
artigos I, XXV e XXVI; Declaração Universal, artigos
III e V). E, mais recentemente, ratificou a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos e reconheceu a
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos.
O Brasil está vinculado a essa ordem interna-
cional de proteção aos direitos humanos por força de
decisão de sua própria Constituição, que determina a
prevalência desses interesses em suas relações inter-
nacionais (art. 4º, II). Esse preceito é reforçado pelas
normas ampliativas do rol de direitos fundamentais
constantes dos §§ 2º a 4º do artigo 5º.
Nesse contexto de vinculação constitucional
ao direito internacional dos direitos humanos, o Es-
tado brasileiro está jungido à norma que lhe impõe a
responsabilização de graves violações aos direitos da
pessoa humana.
A comunidade internacional – com a partici-
pação do Brasil – firmou desde o Tribunal de
Nüremberg (1945), cujos princípios foram ratificados
na primeira sessão da Assembléia Geral das Nações
Unidas (Resolução nº 95, 194613), que em relação a
crimes de guerra, contra a paz e contra a humanida-
de, a promoção da persecução penal é um imperati-
vo inafastável.

13Resolução nº 95 (I), 55ª reunião plenária de 11 de dezembro de 1946.


Disponível em:
<http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/036/55/
IMG/NR003655.pdf?OpenElement>.
630 Marlon Alberto Weichert

Há, portanto, preceito de jus cogens (norma in-


ternacional imperativa), geradora de uma obrigação
erga omnes internacional, que retira da alçada do Es-
tado o perdão de crimes contra a humanidade, carac-
terizados pela prática de atos desumanos, como o
homicídio, a tortura, as execuções sumárias, extrale-
gais ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados,
cometidos em um contexto de ataque generalizado e
sistemático contra uma população civil, em tempo de
guerra ou de paz.14
Assim, em decorrência das obrigações inter-
nacionais do Estado brasileiro, não poderia o direito
interno veicular norma garantidora de anistia a esses
delitos.
Quando membros das Forças Armadas e da
polícia no Brasil praticavam, nos anos sessenta e se-
tenta, o sequestro, a tortura, o homicídio e a oculta-
ção de cadáveres, dentro de um padrão de persegui-
ção a qualquer suspeita de dissidência política, co-
metiam delitos reputados – já então – como crimes
contra a humanidade, independentemente do con-
texto de uma guerra.
É particularmente importante que não se te-
nha dúvidas quanto à existência de um regime jurí-
dico específico sobre crimes contra a humanidade,
vigente antes da perpetração por agentes do governo
brasileiro dos graves crimes aqui tratados. A antiju-
ridicidade da conduta de matar e torturar em larga
escala era evidente a qualquer um, mormente após

14 Cf. Caso “Almonacid Arellano y otros Vs. Chile”. “Excepciones


Preliminares, Fondo Reparaciones y Costas”. Sentença de 26 de
setembro de 2006. Série C, nº 154. Par. 96. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.do
c>.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 631

os horrores da Segunda Guerra Mundial e a conde-


nação internacional dos responsáveis15.
Ressalte-se que não há a necessidade de con-
sumação de um genocídio. É suficiente que se verifi-
que a prática de apenas um ato ilícito no contexto da
perseguição ampla para que consume um crime con-
tra a humanidade: “um só ato cometido por um
agente no contexto de um ataque generalizado ou
sistemático contra a população civil traz consigo res-
ponsabilidade penal e individual, e o agente não ne-
cessita cometer numerosas ofensas para ser conside-
rado responsável.”, fixou o Tribunal Penal Internaci-
onal para a ex-Iugoslávia.16
É norma internacional cogente a punição dos
autores de crimes contra a humanidade. Trata-se de
um princípio de respeito obrigatório por todos os
países por força do costume internacional. Esse pre-
ceito afasta qualquer possibilidade de, por ato inter-
no, o País conceder anistia aos autores desses delitos.
Embora as normas que tratam do conceito e
regime jurídico dos crimes contra a humanidade fos-

15 Outros Estatutos recentes confirmaram o conceito do crime contra a

humanidade: Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a


Iugoslávia, artigo 5, e do Tribunal Penal para Ruanda, artigo 3 e,
especialmente, o artigo 7 do Estatuto de Roma (17 de julho de 1998),
que criou o Tribunal Penal Internacional – ratificado e promulgado
pelo Brasil em 2002 (Decreto nº 4388, de 25 de setembro de 2002).
16 Tradução livre do texto. Cf. Caso “Prosecutor v. Dusko Tadic”. IT-

94-1-T. “Opinion and Judgement”. 7 de maio de 1997. Par. 649.


Disponível em:
<http://www.un.org/icty/tadic/trialc2/judgement/tad-tsj70507JT2-
e.pdf>. Acesso em 25 set. 2007. Igual entendimento foi posteriormente
firmado pelo Tribunal em “Prosecutor v. Kupreskic”. IT-95-16-T.
“Judgement”. 14 de Janeiro de 2000. Pár. 550, Disponível em:
<http://www.un.org/icty/kupreskic/trialc2/judgement/kup-
tj000114e.pdf>; e “Prosecutor v. Kordic and Cerkez” 9. IT-95-14/2-T.
“Judgement”. 26 de fevereiro de 2001. Par. 178. Disponível em:
<http://www.un.org/icty/kordic/trialc/judgement/kor-
tj010226e.pdf>.
632 Marlon Alberto Weichert

sem costumeiras nos anos sessenta e setenta, elas


devem ser, nos termos constitucionais, aplicadas in-
ternamente, em conjunto com o direito legislado bra-
sileiro.
O costume é “a mais antiga e original fonte do
direito internacional” (STEINER; ALSTON, 2000, p.
69). A própria Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados, de 1969, em seu artigo 38, reconhece
que regras de um tratado podem obrigar Estados
não firmatários da avença quando for “regra consue-
tudinária de Direito Internacional, reconhecida como
tal”17. E mais, que nem mesmo um tratado pode der-
rogar norma consuetudinária imperativa (jus cogens
consuetudinário), conforme seu artigo 53.
Portanto, as normas do direito internacional
costumeiro relativas ao crime contra a humanidade
obrigam o Estado brasileiro e interagem com as
normas domésticas de direito penal. O Brasil, por
força de seus compromissos internacionais e da ad-
missão constitucional da prevalência dos direitos
humanos, não pode anistiar seus agentes públicos
que perpetraram crimes de lesa humanidade.
O mesmo ocorre em relação à prescrição. O
direito internacional determina que graves violações
aos direitos humanos e crimes contra a humanidade
são imprescritíveis. Essa norma do jus cogens precisa
ser aplicada em conjunto com o direito penal interno,
para afastar a contagem do prazo de prescrição nos
crimes que recebem essa qualificação.
Essa conjugação do direito internacional com
o direito penal interno não afeta garantias penais,

17Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 26 de maio de


1969. Disponível em:
<http://74.125.45.104/search?q=cache:Pv75hy4s8GYJ:www2.mre.gov.
br/dai/dtrat.htm+%22conven%C3%A7%C3%A3o+de+viena+sobre+o
+direito+dos+tratados%22&hl=pt-R&ct=clnk&cd=1&gl=br>.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 633

pois respeita tanto a tipificação legal específica dos


crimes pelo Código Penal, como também o princípio
da irretroatividade, na medida em que são princípios
em vigor desde meados dos anos quarenta.
A proibição da prescrição é norma de extrema
importância para a justiça transicional. Isso porque o
tempo de aplicar o direito em face de violações aos
direitos humanos perpetrados pelo Estado não é o
mesmo dos crimes ordinários. A responsabilização
dessas autoridades estatais demanda prévias altera-
ções políticas, administrativas e legislativas no Esta-
do em transição.
Tome-se como exemplo o caso brasileiro. A
ditadura demorou 21 anos, prazo – por si só – supe-
rior ao maior lapso de prescrição fixado no Código
Penal. Ademais, a saída dos militares do poder, no
processo lento e gradual acima mencionado, foi rea-
lizada com a garantia da impunidade. Assim, foram
necessários mais 20 anos após a edição da Constitui-
ção para que se reconhecessem condições políticas
para esse debate.
O fato de se sobreporem no Estado a titulari-
dade da ação penal e a autoria dos crimes é suficien-
te para demonstrar a impossibilidade de se admitir a
prescrição penal, nos moldes ordinários, dada a sua
contrariedade interna. A prescrição penal é o direito
ao esquecimento em face da atividade persecutória
ou punitiva do Estado. Não é para operar a seu fa-
vor.
Esse, aliás, um dos grandes méritos das Na-
ções Unidas ao formalizar os princípios do Tribunal
de Nüremberg, fixando que os crimes contra a hu-
manidade são, ontologicamente, imprescritíveis.
634 Marlon Alberto Weichert

7. Anistia como direito extremamente injusto

Como afirmado, a promoção da impunidade –


via anistia – a graves violações aos direitos humanos,
tanto quanto a própria promoção da violação, são in-
compatíveis com princípios estruturantes de um Esta-
do republicano e democrático de direito. Por esse mo-
tivo, uma lei que estipule tal benefício deve ser reputa-
da inválida, pois materialmente inconstitucional. So-
mente uma visão estritamente positivista e acrítica do
direito poderia lhe reconhecer validade.
A proposta de aceitação cega de uma norma
apenas por estar positivada legalmente nos remete,
nesse particular, ao juízo elaborado por GUSTAV
RADBRUCH, conhecido como Fórmula de Radbruch,
que impõe um limite axiológico para o direito positivo:
"El conflicto entre la justicia y la seguridad jurídica
podría solucionarse bien en el sentido de que el
derecho positivo estatuido y asegurado por el po-
der tiene preeminencia aun cuando por su conte-
nido sea injusto e inconveniente, bien en el de que
el conflicto de la ley positiva con la justicia alcance
una medida tan insorpotable que la ley, como de-
recho injusto, deba ceder su lugar a la justicia.
Es imposible trazar una línea más exacta entre los
casos de arbitrariedad legal y de las leyes válidas
aún a pesar de su contenido injusto. Empero se
puede efectuar otra delimitación con toda exacti-
tud: donde ni siquiera una vez se pretende alcan-
zar la justicia, donde la igualdad que constituye la
médula de la justicia es negada claramente por el
derecho positivo, allí la ley no solamente es dere-
cho injusto sino que carece más bien de toda natu-
raleza jurídica." (1962, p. 37-38)

RADBRUCH reconhece a primazia do direito


positivo. Porém, essa prevalência não é absoluta, de-
vendo a lei escrita ceder diante do valor da justiça,
quando for insuportável a contrariedade entre ambos.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 635

Nesse caso, a lei seria um caso de direito injusto e, por-


tanto, inválido.
Assim, a Fórmula de Radbruch afirma que se for
insuportável uma medida legal em face do conceito de
justiça, essa seria inválida. Ou, como bem refere
ROBERT ALEXY (2000, p. 204-205), define que "direito
extremamente injusto não é direito".
"La Fórmula de Radbruch es expresión de un con-
cepto no positivista del derecho. Según este con-
cepto, lo que sea el derecho viene determinado no
sólo por la positividad válida y formalmente esta-
blecida y por la eficacia social, sino también por su
contenido [de justicia material]. Lo que tiene de
especial la Fórmula de Radbruch es que postula
una conexión necesaria entre derecho y moral, pe-
ro sin pretender un solapamiento total entre am-
bos. Así, por razones de seguridad jurídica, el de-
recho positivizado y eficaz no deja de ser derecho
aunque tenga contenidos desproporcionados o in-
justos. La Fórmula introduce únicamente un límite
excepcional en el [concepto de] derecho."

Curioso notar que RADBRUCH em seus escritos


anteriores ao nazismo defendia a segurança jurídica
(principal virtude do direito positivo) como valor su-
perior em qualquer hipótese, quanto cotejado com o
conceito de justiça (1959, p. 11018, apud VIGO, 2006, p.
9). Todavia, após os terrores impostos pelo nacional-
socialismo à população alemã e mundial, RADBRUCH
percebeu a insuficiência da visão absolutista do direito
positivo para fazer face ao autoritarismo e ao arbítrio.
Retomando, pois, o conceito de KANT sobre a ideia de
humanidade (VIGO, 2006, p. 12) – o professor germâ-
nico adota uma postura de presunção da validade da
norma positiva, como meio de garantir a segurança
jurídica, a qual – todavia – deve ceder se insuporta-

18 RADBRUCH, Gustav. Filosofia del Derecho, Madrid: Ed. Revista de

Derecho Privado, 1959.


636 Marlon Alberto Weichert

velmente conflitante com o direito supralegal relativo à


dignidade humana e os valores democráticos perenes.
Como aponta LUIS ROBERTO VIGO:
"Entonces para saber si estamos o no frente al de-
recho no bastan las respuestas iuspositivistas que
lo identifiquen a través de criterios estructurales o
formales, sino que hay que somertelo a un test de
contenido dado 'que hay leyes que no son Derecho
y hay Derecho por encima de las leyes'. Precisa-
mente, Radbruch se encargó de pone en práctica
esta teoría del 'derecho supralegal' analizando dis-
tintos casos jurídicos acaecidos durante la vigencia
del derecho nazi y con posterioridad al mismo, pa-
ra llegar a la conclusión de que 'carecen asimismo
de juridicidad todas esas leyes que aplicaban un
trato infrahumano o les negaban los derechos hu-
manos a ciertos hombres'." (2006, p.13)

A Fórmula de Radbruch não é dependente do


jusnaturalismo. O direito constitucional material demo-
crático e outras fontes supralegais, tal como o direito
internacional, fornecem parâmetros suficientes para se
chegar à conclusão do extremo grau de injustiça de
normas, especialmente no campo da proteção dos di-
reitos humanos.
Aplicar a Fórmula de Radbruch não implica um
compromisso com o direito natural, mas sim a aceita-
ção de normas consagradas pela humanidade, e pela
própria nação brasileira, que devem ser adotadas como
parâmetro de validade de quaisquer leis. A identifica-
ção de um direito “extremamente injusto” é possível
com o confronto da norma legal e os princípios gerais
do direito constitucional democrático moderno e os
princípios do direito internacional.
Na matéria sob exame neste artigo, percebe-se a
absoluta incompatibilidade entre o estímulo e a tole-
rância à prática reiterada da violação de direitos hu-
manos (presentes numa lei de anistia que protege os
autores desses atos) com o conceito de democracia,

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 637

república e Estado de Direito (rule of Law), bem como o


jus cogens do direito internacional.
Ao afirmarmos que uma autoanista a delitos
como tortura, desaparecimento forçado, execução su-
mária e estupro é inconciliável com o princípio repu-
blicano e com a proteção constitucional da dignidade
da pessoa humana, assim como atentatória ao conceito
de direito democrático, nada mais fazemos do que re-
conhecer que a lei de anistia instituiu um direito ex-
tremamente injusto, não em face de preceitos do direito
natural, mas sim da pauta axiológica constitucional e
internacional de direitos humanos. Desde as Conven-
ções de Genebra, passando pelo Estatuto do Tribunal
de Nüremberg, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos, a Convenção Americana sobre Direitos Hu-
manos, até as Constituições brasileiras de 1934 e 1946, é
fácil identificar que antes da edição da Lei nº 6.683/79
havia um conjunto de normas e valores jurídicos in-
compatíveis com aqueles atos violentos e com quais-
quer atos estatais (materiais ou legislativos) que esti-
mulassem, tolerassem ou protegessem tais condutas.
Essa discussão, aliás, norteou os precedentes do
Poder Judiciário alemão relativamente ao sanciona-
mento penal dos sentinelas do muro de Berlim, da an-
tiga República Democrática da Alemanha (RDA), que
no exercício de suas funções atiraram – e mataram –
cidadãos que fugiam da RDA para a República Federal
da Alemanha (RFA).
O Tribunal Supremo Federal (pós reunificação)
afirmou a punibilidade dos guardas de fronteira e
também de seus comandantes pelos homicídios come-
tidos, ainda que o direito interno positivo da RDA fos-
se compatível com esses atos. O Tribunal Supremo Fe-
deral alemão afastou a justificativa outorgada na lei da
RDA (autorização para os sentinelas da fronteira atira-
rem e eventualmente matar fugitivos) por reputá-la
incompatível com um direito supralegal, nos termos da
Fórmula de Radbruch.
638 Marlon Alberto Weichert

As decisões do Tribunal Supremo Federal – e a


aplicação da Fórmula de Radbruch – foram confirma-
das pelo Tribunal Constitucional Federal, no exato sen-
tido que ora defendemos, ou seja, de que a definição de
um direito extremamente injusto – e inválido – não
demanda recurso ao direito natural, mas sim princípios
gerais e o direito internacional. Afirmou a Corte ger-
mânica:
"La relación entre los así vinculados criterios de la
fórmula de Radbruch y de los derechos humanos
protegidos por el Derecho de Gentes ha sido preci-
sada por la Corte Suprema Federal en el sentido de
que a los criterios de la fórmula de Radbruch, difí-
ciles de operar a causa de su indeterminación, se
les habrían añadido pautas de evaluación más
concretas, dado que los pactos internacionales so-
bre derechos humanos ofrecerían puntos de apoyo
para ello, cuando un Estado lesiona derechos hu-
manos según la convicción de la comunidad jurí-
dica universal.
Esta valoración se ajusta a la Ley Fundamental."19

De enfatizar que o Tribunal Constitucional Fe-


deral alemão acrescentou que a aplicação dessa inter-
pretação, e o decorrente afastamento das normas legais
da RDA que excluíam a culpabilidade nesses casos, não
atentava contra a regra da irretroatividade, pois o "di-
reito extremamente injusto" editado num estado autori-
tário (ou seja, à margem dos princípios democráticos,
de divisão de poderes e de promoção dos direitos fun-
damentais) não está sob essa proteção [da irretroativi-
dade].
Conforme expõe ALEXY (2000, p. 213), o Tribu-
nal Constitucional entendeu que:

19 Decisão disponível em VIGO, Rodolfo Luis, La Injusticia Extrema no

es Derecho. Buenos Aires: Facultad de Derecho UBA – La Ley, 2006, p.


73-99.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 639

"'la protección estricta de la confianza mediante el


103.2 de la Ley Fundamental [o qual veicula o
princípio da irretroatividade da lei penal gravosa]
debe inaplicarse' cuando, en primer lugar, ni la
democracia ni la división de poderes ni los dere-
chos fundamentales sean respetados (verwicklicht)
y, en segundo lugar, cuando bajo esta circunstan-
cias se prevean causas de justificación que ampa-
ren derecho extremadamente injusto, sin olvidar el
hecho de que el Estado 'incite, por encima de las
normas escritas, a un derecho injusto semejante,
favoreciéndolo',…".20

No caso brasileiro, a solução é ainda mais sim-


ples. Não se trata de argumentar que os atos de graves
violações aos direitos humanos encontravam causas de
justificação (autorização para agir contrariamente à lei).
Está acima de dúvidas de que esses atos eram crimino-
sos (típicos21) e que os autores agiram com dolo e cul-
pabilidade, ainda que a motivação fosse a defesa do
Estado. Eles atuaram à margem do próprio regime ju-
rídico autoritário (nem mesmo a tortura era admitida
no regime jurídico formal), ainda que implementando
diretrizes do alto escalão governamental. O que se dis-
cute é uma lei posterior aos fatos e que os torna impu-
nes, mediante a concessão de anistia. Uma norma que
subverte a obrigação estatal de punir diante da consta-
tação de crimes gravíssimos, concedida em benefício
próprio pelos detentores do poder.
Assim, diferentemente da Alemanha, onde a
matéria passava pela discussão da validade de uma lei
anterior aos fatos que previa uma justificadora para a
conduta (descaracterizando a ocorrência do crime), no
caso brasileiro estamos discutindo o valor jurídico de

20 Para conferir o texto original: VIGO, 2006, p. 93.


21Lembramos que o crime de tortura não era tipificado à época no
Brasil. Todavia, é possível a persecução penal pelo crime de lesões
corporais ou, quando o caso, dos crimes contra a liberdade sexual.
640 Marlon Alberto Weichert

uma norma posterior ao fato, que isentou de punibili-


dade o que antes era punível.
A aplicação de critérios de
(in)constitucionalidade originária elimina a necessida-
de de reflexões sobre uma suposta alteração retroativa
do direito por via interpretativa. Ainda que todos os
requisitos invocados pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha para afastar a re-
gra da irretroatividade estejam presentes no caso da lei
de anistia brasileira (lei extremamente injusta, violado-
ra de direitos fundamentais, antidemocrática e emana-
da de um regime autoritário) parece-nos que a devida
leitura da validade inicial dessa norma de extinção da
punibilidade (ainda que realizada mais de 30 anos após
a sua edição) é causa suficiente para reconhecer a inva-
lidade da interpretação favorável aos perpetradores de
violações aos direitos humanos.
Podemos, então, concluir que a norma contida
na Lei nº 6.683/79 que outorgaria anistia aos autores de
graves violações aos direitos humanos é um direito
positivo extremamente injusto e sua manutenção for-
mal no sistema jurídico brasileiro é insuportável, não
sobrevivendo aos critérios da Fórmula de Radbruch,
quando aplicada com os parâmetros do direito consti-
tucional republicano e democrático brasileiro antece-
dente ao arbítrio, bem como aos princípios do direito
internacional dos direitos humanos.

8. Vedação à proteção insuficiente

A anistia a graves violações de direitos funda-


mentais não resiste, finalmente, ao crivo da proporcio-
nalidade.
O Estado, na produção normativa penal, está
vinculado a critérios de proporção que o impedem de
instituir punição excessiva ou proteção insuficiente. A
atividade legislativa está adstrita a estabelecer puni-
ções justas e proporcionais aos autores de delitos. As-

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 641

sim, não pode a lei ser excessiva na sanção e, tampou-


co, insuficiente.
"A proporcionalidade da atuação estatal na de-
fesa de direitos fundamentais deve ser sindicada não
apenas para evitar medidas gravosas e evitáveis – a
proibição do excesso, Übermassverbot – mas, também,
no sentido de proibir a proteção subdimensionada ou
insuficiente, Untermassverbot", adverte LUIZ CARLOS
GONÇALVES (2007, p. 57).
Essa construção doutrinária ganhou relevo com
sua aplicação também pelo Tribunal Constitucional
Federal alemão, sobretudo quando julgou a validade
de leis sobre o aborto22 e considerou que normas exces-
sivamente favoráveis à liberdade de interrupção da
gravidez acarretariam uma proteção insuficiente (Un-
termassverboten) em relação ao direito à vida.
Como refere LENIO LUIS STRECK,
"Trata-se de entender, assim, que a proporcionali-
dade possui uma dupla face: de proteção positiva
e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a in-
constitucionalidade pode ser decorrente de exces-
so do Estado, caso em que determinado ato é de-
sarrazoado, resultando desproporcional o resulta-
do do sopesamento (Abwägung) entre fins e mei-
os; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de
proteção insuficiente de um direito fundamental
(nas suas diversas dimensões), como ocorre quan-
do o Estado abre mão do uso de determinadas
sanções penais ou administrativas para proteger
determinados bens jurídicos. Este duplo viés do
princípio da proporcionalidade decorre da neces-
sária vinculação de todos os atos estatais à materi-
alidade da Constituição, e que tem como conse-
quência a sensível diminuição da discricionarie-

22 Caso Aborto II. Vide MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta anos de

jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. SCHWABE,


Jürgen (Coletânea original); Berlim: Konrad Adenauer Stiftung, 2005,
p. 273.
642 Marlon Alberto Weichert

dade (liberdade de conformação) do legislador."


(2007).

De fato, o direito penal está a serviço da socie-


dade e, dentre seus vários objetivos, destacam-se a
prevenção geral e a retribuição individual. Especial-
mente o campo dos direitos fundamentais é carente da
proteção penal, não só pela insuficiência dos demais
mecanismos sancionatórios disponíveis no direito civil
e administrativo, como também pela percepção de que
a linguagem da impunidade é um dos grandes estímu-
los à perpetração desses atos. Não por menos as Na-
ções Unidas reconhecem uma obrigação de punir os
autores de crimes contra a humanidade e de guerra,
conforme a Resolução nº 3074, de 1973 (“Princípios de
Cooperação Internacional na Identificação, Detenção,
Extradição e Castigo por Crimes de Guerra ou Crimes
de Lesa-Humanidade”):
"8. Os Estados não adotarão disposições legislati-
vas nem tomarão medidas de outra espécie que
possam menosprezar as obrigações internacionais
que tenham acordado no tocante à identificação, à
prisão, à extradição e ao castigo dos culpáveis de
crimes de guerra ou de crimes contra a humanida-
de."23

Nesse contexto, a inserção na legislação penal


de comandos que provocam a desproteção de bens ju-
rídicos está condenada pelo vício da inconstitucionali-
dade por desproporção, ou vedação à proteção insufi-
ciente. Sejam normas de supressão de tipos penais, de
abrandamento excessivo de penas ou instituidoras de
causas de extinção da punibilidade.

23 Tradução livre do texto. Disponível em:

<http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/285/99/
IMG/NR028599.pdf?OpenElement>. Acesso em 25 de set. 2007.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 643

O Supremo Tribunal Federal brasileiro já apli-


cou esse princípio em 2006, quando afastou a possibi-
lidade de se aceitar a extinção da punibilidade de um
crime de estupro de uma criança de nove anos de ida-
de pelo posterior casamento da vítima e seu algoz.24
Naquela ocasião, apontou o Min. Gilmar Men-
des:
"De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de
norma penal benéfica, situação fática indiscuti-
velmente repugnada pela sociedade, caracterizan-
do-se típica hipótese de proteção insuficiente por
parte do Estado, num plano mais geral, e do Judi-
ciário, num plano mais específico.
Quanto à proibição de proteção insuficiente, a
doutrina vem apontando para uma espécie de ga-
rantismo positivo, ao contrário do garantismo ne-
gativo (que se consubstancia na proteção contra os
excessos do Estado) já consagrado pelo princípio
da proporcionalidade. A proibição de proteção in-
suficiente adquire importância na aplicação dos
direitos fundamentais de proteção, ou seja, na
perspectiva do dever de proteção, que se consubs-
tancia naqueles casos em que o Estado não pode
abrir mão da proteção do direito penal para garan-
tir a proteção de um direito fundamental."

É exatamente esse o fenômeno que provoca a


anistia a crimes contra os direitos humanos. A norma
penal anistiante acarreta uma desproteção de direitos
fundamentais, os quais estavam, anteriormente, prote-
gidos.
E, como adverte LUIZ GONÇALVES:
"A existência de norma penal criminalizadora,
fundada em obrigação constitucional tácita funci-
ona como óbice à eventual descriminalização ou
redução da esfera de proteção, em nome da proibi-

24 RE 418.376-5/MS, Rel. para o acórdão Min. Joaquim Barbosa. Pleno,

maioria, j. 9/2/2006, DJ 23/3/2007.


644 Marlon Alberto Weichert

ção de retrocesso. Uma vez assegurada a proteção


penal, sua supressão ou redução poderão implicar
em desproporcionalidade." (2007, p. 138)

Assim, a lei de anistia é uma causa de indisfar-


çável retrocesso na proteção das vítimas e da sociedade
relativamente à pauta de direitos fundamentais, o que
encontra barreira no princípio da proporcionalidade,
na sua vertente da vedação à proteção insuficiente. Há,
portanto, mais essa óbice à sua admissão num sistema
jurídico democrático.

9. A decisão da Corte Interamericana de Direitos


Humanos

O último aspecto a ser analisado refere-se aos


efeitos da condenação que o Brasil sofreu em 2010 na
Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, no
caso Gomes Lund, e a divergência de enfoques entre
essa Corte e o Supremo Tribunal Federal no que se re-
fere à validade da anistia aos perpetradores de graves
violações aos direitos humanos25.
Com efeito, é indispensável, antes de tudo,
compreender que a adesão à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos e o reconhecimento da jurisdi-

25 Esse tema é objeto de análise detida em CARVALHO RAMOS,


André de. Crimes da ditadura militar: a ADPF 153 e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. E também WEICHERT, Marlon
Alberto. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a
obrigação de instituir uma Comissão da Verdade. Ambos in GOMES,
Luiz Flavio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Org.). Crimes da ditadura
militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de
Direitos Humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2011. E, ainda, ROTHENBURG, Walter Claudius.
Controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade: o
caso brasileiro da Lei de Anistia. In: PAGLIARINI, Alexandre
Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (Coord.). Direito constitucional e
internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 333-
359.

 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 645

ção obrigatória da CIDH foram atos soberanos e volun-


tários do Estado brasileiro. Portanto, foi o Brasil, por
suas autoridades constitucionalmente competentes
(Presidência da República e Congresso Nacional), que
decidiu integrar o sistema interamericano de direitos
humanos. Não se identifica nenhuma mácula no pro-
cesso de ratificação da Convenção, ou de sua aprova-
ção em âmbito interno. Outrossim, nenhum Estado
estrangeiro compeliu o País a tomar parte desses atos e
organismos internacionais.
Pouco importa, nesse particular, a discussão so-
bre a estatura constitucional da Convenção. O relevan-
te é compreender que a aceitação da jurisdição e da
competência da CIDH concretiza preceitos constitucio-
nais. Destaca-se, dentre outros26, o artigo 7º do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, no qual se
define que “[o] Brasil propugnará pela formação de um
tribunal internacional dos direitos humanos”.
Assim, a aceitação pelo Estado brasileiro da ju-
risdição de um tribunal interamericano de direitos
humanos previsto em Convenção Internacional encon-
tra pleno e direto apoio na Constituição. Portanto, o ato
do Presidente da República de ratificar a Convenção e
a decisão do Congresso Nacional de aprová-la, longe
de afrontar a Constituição, concretizam mandamentos
nela inseridos.
Para recusar a autoridade da CIDH seria neces-
sário existir algum vício de inconstitucionalidade –
formal ou material – nos atos de ratificação, aprovação
e promulgação da Convenção Americana sobre Direi-
tos Humanos ou de aceitação da jurisdição da CIDH.

26Vide o artigo 4º, inciso II (“A República Federativa do Brasil rege-se


nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II -
prevalência dos direitos humanos;”) e o § 2º, do artigo 5º (§ 2º - Os
direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte”).
646 Marlon Alberto Weichert

Em especial, para sustentar a não aplicação de uma


sentença da CIDH proferida contra o Brasil, o Supremo
Tribunal Federal terá que declarar inconstitucional a
promulgação da cláusula do artigo 68.1 da Convenção:
“Os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a
cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem
partes.”
Porém, é necessário lembrar que o Brasil – se
sustentar que a jurisdição da CIDH não é obrigatória
para os órgãos internos – terá que denunciar integral-
mente a Convenção, conforme dispõe o artigo 44.1 da
Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.
Essa situação, porém, é inimaginável e represen-
taria um retrocesso sem precedente nas relações inter-
nacionais do Brasil e um duro golpe na democracia e
na promoção dos direitos humanos. Aliás, por si só
seria uma autônoma violação à Constituição, pois so-
freria impedimento pela cláusula da vedação ao retro-
cesso.
No que diz respeito ao aparente conflito entre a
decisão do STF na ADPF nº 153 e a sentença da CIDH
no caso Gomes Lund, os órgãos internos de persecução
penal, para discernirem qual delas seguirão, devem
observar os limites da competência de cada um dos
Tribunais.
Primeiro, de entender que ambas decisões con-
vivem juridicamente. O Supremo Tribunal Federal é a
corte final no julgamento de constitucionalidade, en-
quanto a Corte Interamericana realiza controle de con-
vencionalidade. A lei de anistia teria passado pelo cri-
vo da constitucionalidade aplicado pelo STF, mas não
da convencionalidade, realizado pela CIDH.
Assim, se os crimes estiverem vinculados a
“violações aos direitos humanos”, deverão ser exami-
nados sob o pálio da decisão da CIDH, pois se vincu-
lam à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Nessa situação, não prevalecerá a decisão do STF. Po-
rém, nos delitos que não se refiram a “violações aos
direitos humanos”, remanesce com exclusividade o
 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 647

efeito do julgamento da ADPF. Há, pois, uma relação


de especialidade da sentença da CIDH em relação ao
Supremo Tribunal Federal.
Em suma, a CIDH não é uma instância adicional
ao processo interno e não reformou a decisão da Su-
prema Corte brasileira na ADPF nº 153. Sua sentença
navega no estrito espaço de sua competência e somente
ali prevalece em relação às decisões dos órgãos jurisdi-
cionais internos. Logo, toda autoridade que participa
da persecução penal (membros do Poder Judiciário, do
Ministério Público e da Polícia Judiciária) está adstrita
a respeitar ambas as decisões, nos limites de suas res-
pectivas aplicabilidades.

Conclusão

Os valores materiais de um Estado constitucio-


nal, republicano, democrático e de direito são incompa-
tíveis com a tolerância e o incentivo à tortura, o desa-
parecimento forçado, o estupro, a execução sumária e
outros atos violentos de agentes do Estado contra seus
cidadãos, quaisquer que sejam os motivos dessas con-
dutas. É função do direito penal proteger direitos fun-
damentais e, portanto, é inarredável seu emprego em
face dos autores dessas graves violações aos direitos
humanos.
A estatura constitucional da proteção aos direi-
tos humanos não admite que o legislador possa enfra-
quecer ou desautorizar a responsabilidade penal por
sua violação. Há um mandado geral implícito de cri-
minalização e, em alguns casos, expresso e específico
(v.g., na CF/88, tortura e racismo) que impõe sejam
essas lesões sancionadas criminalmente. E, logicamen-
te, esses mandados impedem a descriminalização (ou
seja, a impunidade), tornando inconstitucionais quais-
quer leis que gerem uma proteção insuficiente, vale
dizer, retrocedam de um grau razoável de punição.
648 Marlon Alberto Weichert

Assim, normas instituidoras de causas de extin-


ção da punibilidade de graves violações aos direitos
humanos são extremamente injustas (RADBRUCH) e
incompatíveis com a Constituição. A edição de leis
dessa natureza, inclusive de anistia, colide com a proi-
bição da proteção insuficiente.
Para reconhecer uma norma penal negativamen-
te desproporcional não é necessário recorrer ao direito
natural, ou supra jurídico. A sociedade nacional e a
comunidade internacional possuem normas jurídicas
que, ao menos desde os anos quarenta, afirmam a obri-
gação de promover e proteger os direitos humanos,
inclusive com a sanção penal. Essas normas são parâ-
metros suficientes para invalidar a pretensão de extin-
ção da punibilidade de graves violações aos direitos
humanos mediante anistia.
Há de se dedicar especial atenção às pretensões
de emprestar a normas jurídicas gestadas durante o
arbítrio o manto da constitucionalidade material, me-
diante a invocação de sua compatibilidade com precei-
tos das cartas outorgadas pelo próprio regime autoritá-
rio. O intérprete constitucional não pode ser vítima de
uma armadilha que é verdadeira petição de princípio:
avaliar a validade material de uma norma legal de um
regime autoritário adotando como parâmetro o próprio
ordenamento jurídico e político ditatorial. O sentido e o
conceito dos direitos fundamentais, sobretudo civis e
políticos, são ontologicamente antagônicos ao arbítrio e
ao regime de exceção. É um menoscabo à sua posição
no sistema jurídico submetê-los a juízos de constitucio-
nalidade com constituições outorgadas. É preciso des-
considerar os ordenamentos impostos pelo arbítrio e
substituí-los por aqueles em vigor antes do golpe de
Estado, especialmente quando reconfirmados pelo po-
der constituinte superveniente ao período ditatorial.
A interpretação dada à Lei nº 6.683/79 – no sen-
tido de ter instituído uma anistia penal a atos de grave
violação aos direitos humanos – insere-se nesse contex-
to de exame de validade e não sobrevive a um juízo de
 
Proteção penal contra violações aos direitos humanos 649

compatibilidade com a Constituição brasileira de 1946


e os princípios que lhe estruturam. Da mesma forma, a
pauta axiológica da Constituição de 1988 é incompatí-
vel com tais preceitos de impunidade, o que confirma a
incompatibilidade material das normas de autoanistia.
Não se trata de revogar uma anistia que já te-
ria operado seus efeitos, mas sim de reconhecer que
ela nunca teve o condão de produzir o benefício
alardeado, em decorrência da incompatibilidade
dessa interpretação com preceitos fundamentais das
Constituições brasileiras e do direito internacional
incorporado ao sistema jurídico pátrio. Antes mesmo
da instauração da ditadura militar vigoravam causas
jurídicas que impediam o Estado de deixar impunes
e esquecidos os bárbaros atentados que seus agentes
aplicaram à dignidade humana.
Portanto, em que pese a decisão do Supremo
Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 153, pontos essenciais ainda
pendem de apreciação e discussão. O aprofundamento
dessa reflexão é essencial para o processo de afirmação
histórica do direitos humanos no Brasil.

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650 Marlon Alberto Weichert

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Antinomia radical entre
as leis de autoanistia e a obrigação
de punir os perpetradores de
violações aos direitos humanos
Fundamentos e análise de casos

Ranieri  Lima  Resende1  

Resumo: O artigo tem por foco os fatores fundantes da


Justiça Transicional (responsabilidade, justiça e recon-
ciliação), especialmente à luz do posicionamento dos
órgãos das Nações Unidas sobre as leis de autoanistia,
a destacar a Comissão de Direitos Humanos, a Assem-
bleia Geral e os Comitês interpretativos de tratados de
direitos humanos de abrangência universal. A busca
por significados e parâmetros perpassou, conjuntamen-
te, a jurisprudência dos tribunais internacionais no to-
cante ao direito penal internacional (Tribunal ad hoc

1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais


(UFMG); Membro do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do
Direito e Justiça de Transição (IDEJUST); Membro do Grupo de
Pesquisa "Justiça de Transição" da Universidade de Brasília (UnB);
Membro da International Law Association (ILA); Associado da Sociedad
Latinoamericana de Derecho Internacional (LASIL-SLADI) e Integrante de
seu Grupo de Estudios sobre Responsabilidad Internacional; Pesquisador
Bolsista do Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und
Völkerrecht (Heidelberg, 2008); Presidente da Comissão de Estudos
Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Bahia
(OAB/BA).

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 653

para a ex-Iugoslávia) e à proteção regional dos direitos


humanos (Cortes Europeia e Interamericana de Direi-
tos Humanos). Nesse ponto, determinados casos-chave
da Corte Interamericana foram analisados (Velásquez
Rodríguez, Barrios Altos, Almonacid Arellano e Gelman),
de modo a evidenciar a linha de coerência da respecti-
va jurisprudência, a par de suas repercussões na práti-
ca subsequente dos Estados denunciados.
Palavras-chave: Leis de Anistia. Nações Unidas. Tribu-
nais Internacionais.

Abstract: The article focuses on the founding elements


of Transitional Justice (responsibility, justice and re-
conciliation), on the light of the United Nations' posi-
tion about Amnesty Laws, specially the Human Rights
Commission, the General Assembly and universal
Human Rights Treaties' Committees. The search for
meaning and parameters has crossed through prece-
dents of international tribunals, with regard to Interna-
tional Criminal Law (International Criminal Tribunal
for the Former Yugoslavia) and the regional protection
of human rights (European and Inter-American Courts
of Human Rights). In this aspect, factors connected to
Transitional Justice were analyzed and key cases jud-
ged by the Inter-American Court of Human Rights ha-
ve been considered (Velásquez Rodríguez, Barrios Altos,
Almonacid Arellano and Gelman), in association with its
subsequent impact on the practices of the respondent
States.
Keywords: Amnesty Laws. United Nations. Internatio-
nal Courts.

Introdução

Durante os seminários discentes desenvolvidos


no ambiente instigante da disciplina “Teoria Geral dos
Direitos Humanos”, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Eneá de
Stutz e Almeida perante o Programa de Pós-Graduação
654 Ranieri Lima Resende

em Direito da Universidade de Brasília, o eixo central


da “Justiça de Transição” foi enfrentado em suas diver-
sas vertentes (verdade, reparação, justiça e reforma),
mas, de imediato, chamou a atenção do autor do pre-
sente paper a problemática residente na persecução pe-
nal dos perpetradores de violações aos direitos huma-
nos, em face das leis de autoanistia. ·∙.
Onde se situaria o fundamento obrigacional pa-
ra investigar, processar, julgar e punir os autores de
violações graves de direitos humanos na ambiência de
um regime de exceção? Em que contexto órgãos judici-
ais internacionais enfrentaram a questão das autoanis-
tias? Foram esses alguns tópicos investigativos enfren-
tados e que, no presente trabalho preliminar, para eles
buscou-se possíveis respostas.

1. Elementos de Realização da Justiça Transicional

Em momentos históricos decorrentes de proces-


sos de paz ou da superação de autoritarismos, exsurge
o desafio da abordagem jurídica da ocorrência de cri-
mes internacionais cometidos na ambiência do regime
político pretérito. Nesse contexto, destaca-se a função a
ser exercida pela chamada “Justiça de Transição” (Jar-
dim, 2006, p. 1-2).
Seu papel decorre do elemento comum às tran-
sições políticas experienciadas nas mais diversificadas
partes do globo, qual seja: o largo acervo de violações a
normas protetivas fundamentais de direitos humanos
pela ação do Estado, ou de grandes grupos organiza-
dos em seu território, durante o período de exceção ou
de prática autoritária que se busca superar (Almeida;
Torelly, 2010, p. 38).
A partir de certo consenso internacional, a no-
ção de “Justiça Transicional” pode ser compreendida
por toda a gama de processos e mecanismos associados
aos esforços da sociedade em lidar com um legado de
violações ocorridas em larga escala, no sentido de as-

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 655

segurar a responsabilização, proporcionar justiça e


promover a reconciliação.
Tais medidas podem abranger mecanismos ju-
diciais e não judiciais, com diferentes níveis de envol-
vimento internacional (ou nenhum), dirigidos à perse-
cução penal individualizada, reparação das vítimas e
seus familiares, busca da verdade, reforma institucio-
nal, vedações de acesso e dispensas do serviço público,
consoante externado pelo Secretário-Geral das Nações
Unidas (UN, 2004, p. 4).
Entretanto, o trinômio “Responsabilidade - Jus-
tiça - Reconciliação” não deve ser vislumbrado com a
preponderância do último elemento sobre os demais,
na medida em que são bastante comuns os riscos de
uma política de reconciliação nacional voltada estrita-
mente para o futuro e dirigida a uma suposta estabili-
zação das relações sociais presentes. Com base em ra-
mificações conservadoras, marcadas pelo esquecimento
esquizofrênico do passado, tal caminho pode gerar
consequências negativas em longo prazo, a citar o re-
tardamento de reformas políticas de maior amplitude e
a fragilização da democracia (Teitel, 2011, p. 156-157).
A concepção de Justiça focada em processar e
julgar os perpetradores que cometeram violações aos
direitos humanos configura-se parte fundamental para
a confrontação de referido legado de abusos, tendo em
vista que tais julgamentos poderão servir para evitar
que crimes dessa magnitude se repitam, dar consolo às
vítimas, estimular o debate sobre um novo grupo de
normas estruturais e impulsionar reformas de institui-
ções governamentais, com a agregação de uma maior
carga de confiança pública (Zyl, 2009, p. 34).
O direito à verdade, também inserido na ampli-
tude da Justiça, vincula-se ao dever iniludível do Esta-
do de realizar uma investigação séria e efetiva acerca
dos fatos que geraram as violações aos direitos huma-
nos, ao qual acompanha a obrigação de identificar, jul-
gar e punir seus responsáveis, tendo por uma das prin-
656 Ranieri Lima Resende

cipais finalidades almejadas a de promover garantias


de não recorrência (Cançado Trindade, 2011, p. 284).
Diversas instâncias das Nações Unidas e cortes
internacionais manifestaram-se em prol da efetividade
da persecução penal dos perpetradores de graves vio-
lações aos direitos humanos e de direitos de caráter
humanitário, especialmente nas hipóteses de tortura,
maus-tratos, desaparecimentos forçados e homicídio,
no seio de uma concepção de combate à impunidade, à
luz de abordagens mais amplas a serem vislumbradas
a partir do próprio reconhecimento da condição huma-
na das vítimas e de sua posição indelével de sujeitos de
direito.

2. Posição das Instâncias Normativo-


Interpretativas das Nações Unidas

Ao editar seu General Comment n.º 20/1992 acer-


ca do que dispõe o art. 7.º, do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos (“ninguém poderá ser subme-
tido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, de-
sumanos ou degradantes”), o Comitê de Direitos Hu-
manos2 registrou, expressamente, que as anistias são
em geral incompatíveis com o dever dos Estados de
investigar atos de tortura (UN, 2008a, p. 202).
Uma dúvida foi levantada acerca da obrigação
do Estado em levar os perpetradores de violações aos
direitos humanos à justiça, ou seja, se atingiria até o
momento da persecução penal e, subsequentemente,

2 O Comitê de Direitos Humanos é o órgão de expertos independentes

que monitora a implementação do Pacto Internacional de Direitos


Civis e Políticos (1966) por seus Estados Partes. Conjuntamente, o
Comitê publica suas interpretações sobre o conteúdo de normas de
direitos humanos, conhecidas como comentários gerais (General
Comments) acerca de questões temáticas e seus métodos de trabalho
(OHCHR, 2013a).

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 657

avançaria para o instante da sua efetiva condenação


judicial.
O dever de punir os violadores foi explicitamen-
te registrado pelo Comitê de Direitos Humanos em
diversos casos, especialmente com referência a execu-
ções sumárias e extrajudiciais, desaparecimentos for-
çados, tortura, maus-tratos e detenções arbitrárias. No
entanto, em seus comentários de 1994 sobre a situação
em El Salvador, o Órgão deu um passo além e conside-
rou que todas as violações passadas de direitos hu-
manos devem ser cuidadosamente investigadas e seus
perpetradores punidos (Seibert-Fohr, 2002, p. 319, 321).
O problema da impunidade vinculada a referi-
das violações pode configurar-se um importante ele-
mento contributivo para a recorrência de tais abusos no
futuro, razão pela qual, de acordo com o estabelecido
pelo Comitê em seu General Comment n.º 31/2004, a
concessão de anistias, imunidades ou outras vedações
legais não são admissíveis na condição de fatores ex-
cludentes ou preclusivos da responsabilidade pessoal
dos perpetradores de violações aos direitos humanos,
destacadamente quando envolvidos agentes públicos
de qualquer nível hierárquico (UN, 2008a, p. 247).
Cumpre salientar a existência de posições di-
vergentes, como a externada por Louise Mallinder
(2007, p. 214), ao considerar que, mesmo diante da cla-
reza de um dever de persecução penal, para o direito
internacional não seria exigível do Estado que efetivas-
se tais persecuções contra todo e qualquer perpetrador,
sendo admissível a adoção de uma sistemática seletiva
de punição dos “mais responsáveis” e a aplicação da
anistia aos ofensores de menor potencial, desde que
tais medidas sigam acompanhadas de mecanismos de
asseguramento dos direitos das vítimas.
É necessário registrar contra essa posição, que o
ato internacionalmente ilícito será atribuído ao Estado
em nome do qual agiu o autor do ato ou do comporta-
mento ilícito e, nesse tocante, pode tratar-se de um ór-
gão individualmente considerado, com abrangência
658 Ranieri Lima Resende

desde os governantes e os mais altos funcionários até o


agente mais subalterno (Dinh et al., 2003, p. 788).
O Comitê contra Tortura3 fez registrar em seu
General Comment n.º 2/2007 que anistias ou outros im-
pedimentos à pronta e justa persecução penal e puni-
ção dos perpetradores de tortura ou maus-tratos vio-
lam a norma ius cogens de proibição absoluta da tortu-
ra, em consonância com o princípio da “inderrogabili-
dade” (UN, 2008b, p. 377).
A obrigação geral de prover a reparação das ví-
timas e a punição de seus torturadores pode, efetiva-
mente, configurar-se um fator proibitivo para anistias
dirigidas a isentar pessoas que tenham afligido direta-
mente outras com tratamentos desumanos ou degra-
dantes (Joseph et al., 2004, p. 206), quais sejam: os agen-
tes executores da prática da tortura que, na maioria dos
casos, situam-se na base da pirâmide da hierarquia
estatal ou organizacional.
Dentre os princípios diretores do combate à im-
punidade elencados pela experta Diane Orentlicher
(2005) perante a Comissão de Direitos Humanos,4 cons-
ta que os Estados devem adotar e reforçar medidas de
salvaguarda contra manifestos abusos de direito que
beneficiem os perpetradores de violações aos direitos
humanos, tais quais: prescrição, anistia, direito de asilo,
recusa à extradição, aplicação do princípio non bis in
idem, escusa do dever de obediência e imunidades ofi-
ciais.

3 O Comitê contra Tortura está para a Convenção contra Tortura e

outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes


(1984), em equivalência ao explicitado na nota supra sobre o Comitê de
Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
(1966).
4 Na condição de órgão das Nações Unidas direcionado à promoção e

proteção dos direitos humanos em nível global, a Comissão de Direitos


Humanos foi restruturada e convertida em 2006 no Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas (OHCHR, 2013b).

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 659

Cerca de 8 (oito) anos antes, o Special Rapporteur


Louis Joinet (1997) já havia registrado em seu relatório
apresentado à Subcomissão sobre Prevenção da Dis-
criminação e Proteção de Minorias da Comissão de
Direitos Humanos, que as mesmas restrições configu-
ram-se medidas abusivas destinadas a beneficiar a im-
punidade e conflitam diretamente com o direito das
vítimas à verdade, justiça e reparação.
A par disso, há de que se considerar dentre as
garantias de não recorrência, a necessidade imperiosa
de destituição do serviço público dos agentes estatais
de maior hierarquia que tenham envolvimento com-
provado com violações graves de direitos humanos, os
quais permanecem oficialmente ativos sob o manto
protetor da autoanistia impeditiva dos respectivos pro-
cedimentos investigatórios (judiciais ou administrati-
vos).
Com base em tais premissas, a Comissão de Di-
reitos Humanos optou por editar a Resolução n.º
2005/81, em 21 de abril de 2005 (UN, 2005),5 onde dei-
xou claro o seu reconhecimento de que as anistias não
devem configurar garantia de impunidade para os
perpetradores de violações aos direitos humanos e
humanitários que constituam crimes. Portanto, os Es-
tados devem pautar sua atuação em acordo com suas
obrigações de direito internacional, no sentido de
promoverem a sustação, renúncia ou nulidade de anis-
tias e de outras imunidades.
Estatuiu a Comissão, ainda, que os acordos de
paz endossados pelas Nações Unidas jamais poderão
comprometer-se com a concessão de anistias a genocí-
dio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou
violações graves de direitos humanos.

5Antecederam-lhe as Resoluções n.º 2002/79, de 25 de abril de 2002;


n.º 2003/72, de 25 de abril de 2003; e n.º 2004/72, de 21 de abril de
2004, com textos menos amplos.
660 Ranieri Lima Resende

A Assembleia Geral das Nações Unidas, em se-


de da Resolução n.º 60/147 (UN, 2006, p. 5), deixou
expresso que os Estados possuem a obrigação de inves-
tigar e, em caso de prova suficiente, a conjunta obriga-
ção de submeter à persecução penal as pessoas alega-
damente responsáveis por violações massivas de direi-
to internacional dos direitos humanos e de violações
graves de direito internacional humanitário. Na hipó-
tese de esses indivíduos serem considerados culpados
por referidos crimes, os Estados permanecem titulares
da subsequente obrigação de aplicar concretamente as
correspondentes medidas punitivas.
No prisma da reparação das vítimas de vulnera-
ções de direitos humanos, incluem-se aspectos de natu-
reza não monetária dentre os quais se destaca o concei-
to de satisfação. Em seu relatório comentado sobre o
direito da responsabilidade dos Estados (ILC, 2001, p.
90), a Comissão de Direito Internacional das Nações
Unidas6 considerou que proporcionar garantias de não
recorrência da violação pode ser vislumbrado como
uma forma de satisfação, exemplificativamente, por
intermédio da adoção de medidas preventivas concre-
tas e de caráter normativo geral direcionadas a que a
violação não torne a ocorrer.
Não foi outra a conclusão da Assembleia Geral,
ao haver inserido a aplicação de sanções judiciais e
administrativas contra pessoas responsáveis por Viola-
ções aos Direitos Humanos e de direitos de caráter
humanitário na qualidade de medida de satisfação e
essa, por sua vez, inserida dentro do princípio nortea-
dor da reparação de danos sofridos pelas vítimas (UN,
2006, p. 7-8).

6 A Comissão de Direito Internacional possui a atribuição primordial

de promover o desenvolvimento progressivo do direito internacional e


sua codificação, consoante disposto no art. 1.1 de seu Estatuto e em
harmonia com o art. 13.1 da Carta das Nações Unidas.

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 661

A vasta gama de normas produzidas e interpre-


tadas no âmbito das Nações Unidas deixa clara a teleo-
logia da sanção penal derivada de graves Violações aos
Direitos Humanos no resgate da dignidade humana
das vítimas e, conjuntamente, na proteção do tecido
social circundante, de modo a criar um ambiente des-
favorável à repetição de tais ocorrências.

3. Posição do Tribunal Internacional ad hoc para a


ex-Iugoslávia: Caso Prosecutor v. Anto Furundžija
(1998)

Competente para processar e julgar os perpe-


tradores de graves violações de direito internacional
humanitário ocorridas no território da ex-Iugoslávia a
partir de 1991, criado sob os auspícios das Nações Uni-
das, o Tribunal Internacional ad hoc para a ex-
Iugoslávia apreciou o caso Prosecutor v. Anto Furundžija
por intermédio de sua Câmara Julgadora em 1998,
momento em que algumas questões fundamentais vin-
culadas ao dever de persecução penal foram abordadas
(ICTY, 1998).
Trata o case a respeito da participação de Anto
Furundžija na posição de comandante local dos Jokers,
unidade militar especial do Conselho de Defesa Croata
durante o conflito armado nos Bálcãs, com relação a
ocorrências verificadas e comprovadas de maio de
1993, dentro do Quartel-General do grupo situado na
cidade de Nadioci, atual Bósnia-Herzegóvina.
Durante a instrução probatória do processo pe-
nal internacional, restaram, claramente, atestadas vio-
lações de tortura mediante tratamento cruel, desumano
e degradante, além de estupros e severos abusos físicos
e psicológicos infligidos a pessoas ilegalmente detidas,
tudo sob a presença, supervisão e atuação direta e efe-
662 Ranieri Lima Resende

tiva do acusado.7 Entretanto, mesmo que não houvesse


prova da participação direta do acusado nas violações
sob análise, sua condenação penal internacional encon-
trou bases de sustentação bastante sólidas.
As jurisprudências dos Tribunais Internacionais
ad hoc para Ruanda e para a ex-Iugoslávia demons-
tram-se consonantes com a premissa, segundo a qual,
não é necessário que os superiores pertençam ao grupo
de comando militar ou civil da mais alta posição hie-
rárquica, visto que conjuntamente punível o chefe de
uma pequena unidade militar ou uma pessoa com au-
toridade civil em uma zona delimitada (Ambos, 2005,
p. 80).
O que interessa para o direito penal internacio-
nal, é que o controle efetivo sobre os subordinados es-
teja acompanhado da possibilidade de adotar medidas
preventivas ou contramedidas repressivas às viola-
ções.
Ao tratar a respeito da natureza normativo-
hierárquica ius cogens da proibição da tortura na ambi-
ência do direito internacional, o Tribunal Internacional
para ex-Iugoslávia registrou no caso concreto que tal
vedação possui efeitos jurídicos marcantes nos níveis
interestatal e individual (ICTY, 1998).
Na seara interestatal, o caráter peremptório da
norma atua no sentido de deslegitimar internacional-
mente todo e qualquer ato legislativo, administrativo
ou judicial que autorize a tortura. Se, de um lado, inci-
dem os arts. 53 e 64, da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados,8 que tornam nulos e sem efeito

7 Não foi identificada prova de que Anto Furundžija teria praticado


atos de violência sexual, apesar de evidenciada a sua presença e a
continuidade dos interrogatórios durante tais violações.
8 Artigo 53

Tratado em Conflito com uma Norma Imperativa de Direito


Internacional Geral (jus cogens)
É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com
uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 663

jurídico qualquer tratado ou norma costumeira que


permita tal prática, de outro, não se admite que o Esta-
do adote medidas internas direcionadas a autorizar ou
aceitar a tortura ou no sentido de absolver seus perpe-
tradores mediante leis de anistia.
O Tribunal Internacional considerou, conjunta-
mente, que processos poderão ser inaugurados por
iniciativa das potenciais vítimas perante órgãos judici-
ais nacionais ou internacionais, com vistas a que as
medidas internas legitimantes da prática da tortura
sejam declaradas atos internacionalmente ilícitos. Da
mesma forma, viabiliza-se que a vítima possa deduzir
uma pretensão indenizatória por danos sofridos peran-
te um tribunal estrangeiro, o qual poderá ser deman-
dado para decidir a respeito da (in)validade jurídica da
medida estatal autorizadora ou incentivadora da tortu-
ra.
Independentemente de qualquer autorização
outorgada pelas instâncias legislativas ou judiciais com
vistas a violar o preceito imperativo de banimento ab-
soluto da tortura, os indivíduos permanecem obriga-
dos a agir em conformidade com a norma cogente.
Consoante estabeleceu o Tribunal Militar Internacional
de Nuremberg, os indivíduos possuem deveres inter-
nacionais que transcendem às suas obrigações de obe-
diência nacional impostas pelo Estado (ICTY, 1998).

presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional


geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade
internacional dos Estados como um todo, como norma da qual
nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por
norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.
Artigo 64
Superveniência de uma Nova Norma Imperativa de Direito
Internacional Geral (jus cogens)
Se sobrevier uma nova norma imperativa de Direito Internacional
geral, qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa
norma torna-se nulo e extingue-se (Brasil, 2009).
664 Ranieri Lima Resende

4. Posição da Corte Europeia de Direitos Humanos

Chama atenção que a Corte Europeia de Direi-


tos Humanos também possua jurisprudência acerca da
insustentabilidade jurídica das anistias concedidas na
seara do ordenamento jurídico interno dos Estados
Partes da Convenção Europeia para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.
Entretanto, na abordagem constante em seus preceden-
tes, normalmente, a questão da autoanistia é vislum-
brada na posição de fundamento argumentativo do
requerente, ou seja, dirigido a afastar as condenações
criminais que tenham sido impostas pelo Estado reque-
rido aos perpetradores de Violações aos Direitos Hu-
manos.

4.1. Caso Ould Dah v. France (2009)

Ao decidir o caso Ould Dah v. France (ECHR,


2009), a Corte Europeia tratou a situação apresentada
pelo mauritano Ely Ould Dah, que fora detido, proces-
sado e condenado na França em decorrência da prática
de tortura na condição de oficial da inteligência e in-
vestigador ativo durante o conflito armado de natureza
étnica ocorrido na Mauritânia entre 1990 e 1991.
O caso tratou, preliminarmente, acerca do exer-
cício da jurisdição universal para processar e julgar o
acusado na condição de perpetrador de tortura, pro-
cesso esse iniciado com a detenção do requerente
quando se encontrava em território francês para trei-
namento em uma academia militar.
Em 14 de junho de 1993, foi editada uma lei de
anistia pelo Estado mauritano, mediante a qual todos
os membros das forças armadas e das forças de segu-
rança foram beneficiados pela inviabilidade de instau-
ração de quaisquer procedimentos investigativos e pe-
nais, por fatos ocorridos entre 1.º de janeiro de 1989 e

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 665

18 de abril de 1992 que estivessem em conexão com


conflitos armados ou ações de violência.
Apoiada expressamente nas posições do Comitê
de Direitos Humanos e do Tribunal Internacional para
a ex-Iugoslávia já explanadas acima, a Corte Europeia
assumiu a premissa de que anistias são, de uma forma
geral, incompatíveis com o dever dos Estados de inves-
tigar atos de tortura, motivo pelo qual a lei sob crítica
foi considerada juridicamente incapaz de comprome-
ter o processamento e a condenação criminal de Ould
Dah pelo Estado francês.

4.2. Caso Marguš v. Croatia (2012)

Outro julgamento bem mais recente e digno de


nota reporta-se ao caso Marguš v. Croatia (ECHR, 2012),
no qual Fred Marguš denunciou à Corte Europeia o
segundo processamento penal que culminou na sua
condenação pelo Judiciário da Croácia em decorrência
da prática de crimes de guerra contra a população civil,
a citar: produção de ferimentos graves em criança, rou-
bo, sequestro, detenção arbitrária, tortura e homicídio,
na posição de membro do exército croata em novembro
de 1991.
No âmbito do primeiro processo criminal inici-
ado em 1993, o requerente chegou a ser indiciado pe-
rante a Corte do Condado de Osijek, mas teve o proce-
dimento extinto por força da prevalência da lei geral de
anistia editada pelo Estado croata em 25 de setembro
de 1992, o que foi posteriormente confirmado pela Su-
prema Corte Nacional. Para tanto, referido órgão judi-
ciário superior justificou que as ações do indiciado es-
tavam em clara conexão com atos de agressão, rebelião
e conflitos armados cometidos entre 17 de agosto de
1990 e 23 de agosto de 1996 no território atual da Croá-
cia, as quais se encontravam imunizadas pela autoanis-
tia.
666 Ranieri Lima Resende

Na segunda denúncia apresentada contra o re-


querente em 2006, basicamente pelos mesmos atos vio-
latórios evidenciados no primeiro processo, foi exarada
sentença condenatória com a imposição da pena de 14
(catorze) anos de prisão, ulteriormente majorada para
15 (quinze) anos, e a rejeição da alegada excludente de
responsabilidade de anistia por todas as instâncias ju-
diciais, inclusive pela Suprema Corte.
A Corte Europeia de Direitos Humanos, ao
apoiar-se em sua jurisprudência reiterada especialmen-
te a partir do caso Abdülsamet Yaman v. Turkey (ECHR,
2004), destacou que quando o agente estatal haja sido
acusado da prática de crimes envolvendo tortura ou
maus-tratos, é de fundamental importância que o pro-
cesso criminal e sua sentença não sejam protelados,
com a garantia de que não se permita a concessão de
anistia ou perdão. Considerou-se que, particularmente
em tais casos, as autoridades nacionais processantes
não transmitam a impressão de que pretendem deixar
fatos dessa gravidade impunes.
A outorga de anistia com relação a crimes inter-
nacionais, categoria em que se incluem crimes de lesa-
humanidade, guerra e genocídio, é progressivamente
proibida pelo direito internacional. Tal entendimento,
segundo a Corte Europeia (2012, p. 27), deriva de nor-
mas costumeiras de direito internacional humanitário e
de tratados de direitos humanos, tanto quanto de deci-
sões de tribunais regionais e internacionais e da prática
desenvolvida pelos próprios Estados, a ponto de ser
possível identificar o crescimento de uma tendência de
nulificação das anistias gerais pelas instâncias judici-
ais nacionais, regionais e internacionais.
Essa tendência pode ser atestada na esfera do
Tribunal Especial para Serra Leoa, criado por força de
tratado firmado entre as Nações Unidas e o Estado de
Serra Leoa, em cujo Estatuto - que possui primazia so-
bre as jurisdições internas - restou expressa a inadmis-
sibilidade das anistias previstas no Acordo de Paz de
Lomé aos crimes internacionais submetidos à sua com-
 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 667

petência, ou seja, crimes de guerra e outras violações


graves de direito internacional humanitário (Frulli,
2004, p. 315).
Nesse aspecto, referido Tribunal Especial regis-
trou em sua jurisprudência que a concessão de anistia
para crimes internacionais não configura apenas uma
violação isolada ao direito internacional, mas a quebra
de uma obrigação do Estado perante a Comunidade
Internacional como um todo (Meisenberg, 2004, p.
842).
De igual modo, com referência ao plano jurídi-
co-nacional, Antonio Cassese (2005, p. 208) relata su-
cessivos julgamentos em que tribunais espanhóis (ca-
sos Scilingo e Pinochet) manifestaram sua posição acerca
de leis de anistia, ao considerá-las inaplicáveis quando
contrárias a normas internacionais de caráter ius cogens.
Nessa mesma linha filiaram-se os tribunais argentinos
(caso Simon Julio, Del Cerro Juan Antonio), na mesma
linha do governo suíço quanto ao crime de genocídio.

5. Posição da Corte Interamericana de Direitos


Humanos

Com vistas a compatibilizar a presente explana-


ção com as dimensões do paper, optou-se por restringir
a análise dos precedentes específicos da Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos a 4 (quatro) casos-
chave julgados em 1988, 2001, 2006 e 2011, respectiva-
mente, caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, caso Bar-
rios Altos vs. Peru, caso Almonacid Arellano y otros vs.
Chile e caso Gelman vs. Uruguay, espaçados temporal-
mente de modo a evidenciar a linha de coerência da
jurisprudência do Tribunal Interamericano sobre o te-
ma da autoanistia, além de suas subsequentes reverbe-
rações nos Estados demandados, especialmente nos
três últimos casos.
668 Ranieri Lima Resende

5.1. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras (1988)

Em seu histórico primeiro julgamento de mérito,


prolatado no caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras
(CorteIDH, 1988), a Corte Interamericana de Direitos
Humanos apreciou a ocorrência do desaparecimento
forçado em 12 de setembro de 1981 de Manfredo Ve-
lásquez, estudante, sequestrado em um estacionamento
no centro de Tegucigalpa por vários homens fortemen-
te armados, no contexto de uma prática sistemática do
Estado hondurenho que, entre 1981 e 1984, protagoni-
zou cerca de 150 (cento e cinquenta) desaparecimentos
forçados à época identificados. A participação direta de
agentes militares, policiais ou de pessoas sob sua dire-
ção era considerado fato público e notório pela popula-
ção civil.
Com referência à apuração interna dos fatos, ve-
rificaram-se as sucessivas negativas das autoridades
das forças armadas, a par de suas costumeiras omis-
sões e do próprio governo de Honduras em investigar
e informar sobre o paradeiro do desaparecido. Parale-
lamente, as instâncias judiciais tiveram sua atuação
marcada pela completa ineficácia nos 3 (três) pedidos
de exibição de pessoas apresentados e nas 2 (duas) de-
núncias criminais ajuizadas.
A subsequente sentença da Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos fundou-se na qualificação do
desaparecimento forçado como crime contra a huma-
nidade e na condição de procedimento cruel e desu-
mano praticado com o propósito de evadir-se à aplica-
ção da lei, em detrimento de normas que garantam a
proteção do indivíduo contra a detenção arbitrária e o
direito à segurança e à integridade pessoal, na esteira
do posicionamento da Assembleia da Organização dos
Estados Americanos (OEA).
Ao condenar Honduras, a Corte Interamericana
deixou registrado que o Estado possui o dever jurídico
de prevenir razoavelmente as violações aos direitos

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 669

humanos e, concomitantemente, a obrigação de inves-


tigar com seriedade as vulnerações que tenham sido
cometidas no âmbito de sua jurisdição, com o fito de
identificar os responsáveis e impor-lhes as sanções per-
tinentes.
Para a Corte Interamericana, o dever de preve-
nir comporta uma qualificação que extrapola a mera
orientação política para os Estados, face aos contornos
deontológicos vinculativos equivalentes à obrigação
jurídica de prevenir. Nesse sentido, tal obrigação abar-
ca todas as medidas que promovam a salvaguarda dos
direitos humanos e assegurem que eventuais violações
sejam efetivamente qualificadas e tratadas na condição
de ato ilícito, suscetíveis, portanto, de gerar sanções aos
respectivos perpetradores.
Na hipótese em que o aparato estatal atua de
forma a que violações dessa natureza permaneçam im-
punes, e não se restabeleça às vítimas a plenitude de
seus direitos, considera-se que foi descumprido o pre-
ceito referente à garantia do livre e pleno exercício das
faculdades jurídicas fundamentais previstas na Con-
venção Americana sobre Direitos Humanos. O mesmo
é válido quando se tolera que particulares ou grupos
privados atuem livre e impunemente com desprezo aos
direitos humanos (CorteIDH, 1988, p. 37).

5.2. Caso Barrios Altos vs. Peru (2001)

No âmbito do caso Barrios Altos vs. Peru (Cor-


teIDH, 2001), a Corte Interamericana apreciou a ocor-
rência do assassinato coletivo de 15 (quinze) pessoas e
a produção de ferimentos graves em outras 4 (quatro),
enquanto participavam de uma festa de arrecadação de
fundos para a reforma de um prédio, na localidade de
Barrios Altos, periferia de Lima, em 3 de novembro de
1991.
A ação foi executada pelo grupo de extermínio
denominado “Grupo Colina”, integrado por membros
670 Ranieri Lima Resende

da inteligência militar e do exército peruano, durante a


fase mais repressiva do governo do então Presidente
Alberto Fujimori.
Iniciada a investigação judicial pelo Estado pe-
ruano apenas em abril de 1995, ou seja, quase três anos
e meio após a ocorrência, diversos impedimentos legais
intervieram no processo, com destaque para o conflito
de competência suscitado perante a Suprema Corte do
Peru entre o juízo criminal comum e o tribunal militar.
E antes mesmo que a Corte Suprema decidisse o inci-
dente sob trato, foi promulgada a Ley de Amnistía (n.º
26.479), mediante a qual foram exonerados de respon-
sabilidade geral militares, policiais e civis por atos vio-
ladores aos direitos humanos ocorridos entre 1980 e
1995.
Em face da postura desafiadora do juízo crimi-
nal comum que continuava a investigar e processar o
caso Barrios Altos, na medida em que considerou a Ley
de Amnistía inconstitucional e contrária à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, foi promulgada
uma segunda lei de anistia (n.º 26.492) que, interpre-
tando a norma anterior, explicitou a sua aplicação para
todos os processos em curso e para os demais casos
ainda não denunciados, além de vedar qualquer revi-
são judicial a seu respeito.
Seguiu-se, então, a ordem de arquivamento do
respectivo processo penal pela Corte Superior de Justicia
peruana com forte fundamento no princípio da sepa-
ração dos poderes, além de haver sido determinada a
investigação disciplinar do juiz de primeira instância
processante da causa.
Ao apreciar o caso, a Corte Interamericana con-
siderou que são inadmissíveis as disposições de autoa-
nistia, de prescrição e o estabelecimento de excludentes
de responsabilidade que pretendam impedir a investi-
gação e a sanção dos responsáveis por violações graves
de direitos humanos, a citar: tortura, execuções sumá-
rias, extrajudiciais ou arbitrárias e desaparecimentos
forçados, todas elas proibidas por vulnerar direitos
 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 671

inderrogáveis reconhecidos pelo direito internacional


dos direitos humanos (CorteIDH, 2001, p. 15).
O Tribunal Internacional registrou, então, a ma-
nifesta incompatibilidade entre as leis de autoanistia e
o Pacto de San José de Costa Rica, em vista da qual tais
normas internas careciam de efeitos jurídicos e não
poderiam configurar um obstáculo para a investigação
dos fatos, nem para a identificação e punição dos res-
ponsáveis (CorteIDH, 2001, p. 16). Ao final, a Corte
decretou que o Estado peruano deve, conjuntamente,
divulgar publicamente os resultados de todas as inves-
tigações e subsequentes medidas punitivas aplicadas
aos perpetradores de ditas violações.
Quase 10 (dez) anos após o advento da sentença
meritória da Corte Interamericana, em 1.º de outubro
de 2010, a Câmara Penal Especial da Corte Suprema de
Justicia do Peru condenou Vladimiro Montesinos, ex-
assessor do então Presidente Fujimori, e os membros
do “Grupo Colina” pela execução extrajudicial ocorrida
em Barrios Altos (1991) e, conjuntamente, pelo desapa-
recimento forçado de 9 (nove) moradores do Valle de
Santa (1992) e do jornalista Pedro Yauri (CEJIL, 2010).
A Corte Suprema peruana registrou que os fatos
ocorridos no caso Barrios Altos constituíram crimes de
lesa-humanidade, qualificados pelo uso perverso das
posições de poder dos acusados para dirigir e partici-
par das atuações do “Grupo Colina”, a partir da estru-
tura do próprio exército, com a finalidade de eliminar
os líderes do Sendero Luminoso e todas as pessoas sus-
peitas de pertencer a esse grupo rebelde. Em face de
tais conclusões, foi possível precisar a relação direta
entre o citado grupo de extermínio e o Servicio de Inteli-
gencia Nacional (SIN), sob as ordens diretas de Vladimi-
ro Montesinos e do Chefe do SIN, Julio Salazar Mon-
roe.
672 Ranieri Lima Resende

5.3. Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile (2006)

Trata o caso do assassinato a tiros de Almonacid


Arellano por Carabineros9 na porta de sua residência e
na frente de sua família, logo após ser retirado à força
de casa em 17 de setembro de 1973 (CorteIDH, 2006). A
vítima não teria resistido aos ferimentos e falecera no
dia seguinte em uma instituição hospitalar. Chama
atenção a posição social e política da vítima: professor
primário e dirigente sindical vinculado ao Partido Co-
munista, em claro confronto com as forças sustentado-
ras do então recente golpe de Estado no Chile.
A investigação judicial iniciou-se ainda em ou-
tubro de 1973, mas foi suspensa em diversas ocasiões
processuais, até a sua “suspensão definitiva” em se-
tembro de 1974. Cumpre notar a nítida contradição do
instituto empregado pelo Judiciário chileno, tendo em
vista que, por sua própria natureza jurídica, a suspen-
são do processo possui caráter inequivocamente tem-
porário e sem qualquer grau de definitividade (Chio-
venda, 1998, p. 210).
Alguns anos mais tarde, no entanto, veio à luz a
anistia concedida pela Junta de Governo mediante o
Decreto Ley n.º 2.191, de 18 de abril de 1978, que estabe-
lecera:
Artículo 1° - Concédese amnistía a todas las per-
sonas que, en calidad de autores, cómplices o en-
cubridores hayan incurrido en hechos delictuosos,
durante la vigencia de la situación de Estado de Si-
tio, comprendida entre el 11 de Septiembre de 1973
y el 10 de Marzo de 1978, siempre que no se encu-
entren actualmente sometidas a proceso o conde-
nadas (CorteIDH, 2006, p. 30).

9 Agentes policiais vinculados ao Ministério do Interior do Chile.

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 673

Em novembro de 1992, adveio o requerimento


judicial da viúva de Almonacid Arellano solicitando o
fim do sobrestamento do processo penal, o que foi aca-
tado pelo Juízo com a posterior oitiva dos suspeitos do
homicídio. Entretanto, após diversas idas e vindas pro-
cessuais, a Corte Suprema do Chile declarou a compe-
tência do Juízo Militar para processar e julgar o feito.
Sobreveio, então, a decisão da Corte Marcial que
extinguiu o processo penal e, em seus fundamentos,
reproduziu precedentes jurisprudenciais da própria
Suprema Corte do Chile em prol da prevalência da lei
de anistia no caso concreto:
la amnistía [es] una causal objetiva de extinción de
responsabilidad criminal [y] sus efectos se produ-
cen de pleno derecho a partir del momento esta-
blecido por la ley, sin que puedan ser rehusados
por sus beneficiarios […], pues se trata de leyes de
derecho público, que miran al interés general de la
sociedad. [Grifou-se] (CorteIDH, 2006, p. 34).

Inspirada na interlocução necessária entre o di-


reito penal internacional e o direito internacional dos
direitos humanos, ao julgar o caso Almonacid Arellano a
Corte Interamericana reconheceu que os crimes contra
a humanidade incluem a comissão de atos desumanos,
tais quais assassinatos cometidos em um contexto de
ataque generalizado ou sistemático contra uma popu-
lação civil. Nesse sentido, basta que um único ato ilícito
seja praticado sob tais condições para que se produza
um crime de lesa-humanidade, consoante decidido
pelo Tribunal Internacional ad hoc para a ex-Iugoslávia
no caso Prosecutor v. Dusko Tadic (CorteIDH, 2006, p.
45).
Foi determinado pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, então, que a investigação sobre a
morte da vítima fosse realizada por todos os meios le-
gais disponíveis e orientada para a determinação da
verdade e para a persecução, captura, processamento e
punição de todos os responsáveis intelectuais e materi-
674 Ranieri Lima Resende

ais pelos atos sob trato, especialmente se estiverem


envolvidos agentes públicos. Outro dado importante
ressaltado pelo Tribunal Interamericano refere-se à
aplicação do princípio da efetividade, na medida em
que, para a Corte, não podem ser considerados efetivos
os recursos (legal remedies) que resultarem ilusórios,
seja em virtude das condições gerais do país, seja em
razão das circunstâncias especiais do caso concreto
(CorteIDH, 2006, p. 50).
Via de consequência, concluiu-se que os Estados
não podem subtrair-se ao dever de investigar, identifi-
car e punir os responsáveis por crimes de lesa-
humanidade, sob a justificativa da aplicação de leis de
anistia ou de outro tipo de norma interna excludente
de responsabilidade.
Em dezembro de 2006, a Suprema Corte do Chi-
le referiu-se expressamente à jurisprudência da Corte
Interamericana nos casos Barrios Altos e Almonacid Arel-
lano, para estatuir que as normas estatais internas não
possam ser utilizadas como obstáculos para a persecu-
ção penal dos perpetradores de graves Violações aos
Direitos Humanos (Binder, 2011, p. 1221).
Apesar dessa louvável decisão da Suprema Cor-
te nacional, a Corte Interamericana emitiu a Resolução
de 18 de novembro de 2010, na qual identificou vários
pontos de sua sentença internacional ainda pendentes
de implementação pelo Estado chileno, sempre inspi-
rada no princípio da efetividade, a citar:
a) investigar, identificar, juzgar y, en su caso, san-
cionar a los responsables por la ejecución extraju-
dicial del señor Almonacid Arellano y el deber de
asegurar que el Decreto Ley No. 2.191 no siga re-
presentando un obstáculo para la continuación de
las investigaciones […]; y
b) asegurar que el Decreto Ley No. 2.191 no siga
representando un obstáculo para la investigación,
juzgamiento y, en su caso, sanción de los respon-
sables de otras violaciones similares acontecidas en
Chile […]. (CorteIDH, 2010, p. 11-12).

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 675

Em 14 de janeiro de 2013, a Corte de Apelaciones


de Rancagua (Chile) prolatou decisão unânime na inves-
tigação sobre o homicídio de Luis Almonacid Arellano,
por intermédio da qual foi ratificada a sentença de
primeira instância que havia condenado Raúl Neveu
Cortesi à pena de 5 (cinco) anos de prisão, na qualidade
de autor do crime sob trato, mas concedendo ao con-
denado o benefício da liberdade vigiada (PJCH, 2013).
5.4. Caso Gelman vs. Uruguay (2011)
Os fatos do caso Gelman vs. Uruguay (CorteIDH,
2011) remontam ao contexto das trocas de informações
e operações repressivas transnacionais denominadas
“Operação Condor”, envolvendo Brasil, Argentina,
Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia. Chama atenção o
caráter oficial do conjunto de ações concertadas, inclu-
sive com a lavratura formal de uma ata de fundação.
Segundo a Corte Interamericana, foram três as
grandes áreas de atuação da “Operação Condor:
a) Vigilância dos dissidentes exilados ou re-
fugiados;
b) Operações secretas de contrainteligência;
c) Ações conjuntas de extermínio, com atua-
ção de grupos específicos que operavam
dentro e fora das fronteiras nacionais, in-
clusive nos Estados Unidos e Europa.

Na amplitude dessas ações repressivas conjuga-


das, ocorreu a detenção em Buenos Aires de María
Claudia García Casinelli em 24 de agosto de 1976. De
nacionalidade argentina e então com 19 anos, a vítima
era estudante da Universidade de Buenos Aires e esta-
va grávida de 7 (sete) meses quando foi sequestrada
juntamente com seu esposo Marcelo Gelman (torturado
e morto separadamente).
Transferida para Montevideo e alojada no Servi-
cio de Información de Defensa uruguaio, Maria Claudia
García deu à luz sua filha em um hospital militar. Em
dezembro de 1976, porém, foi-lhe retirada a guarda da
filha recém-nascida, tendo sido a criança entregue à
676 Ranieri Lima Resende

família de um policial uruguaio, portando apenas um


bilhete com a sua data de nascimento e a informação de
que a genitora não possuía condições para criá-la. Em
sequência, María Claudia García (mãe) foi executada
no Uruguai ou na Argentina (dúvida que ainda per-
manece).
Após longas e difíceis investigações privadas de
Juan Gelman, pai de Marcelo Gelman e sogro de María
Claudia García, foi possível localizar sua neta Maria
Macarena Tauriño Vivian (nome dado pela família de
criação), então com 23 anos. Por intermédio de exames
de DNA, foi possível atestar a ascendência, sua vincu-
lação direta com as famílias Gelman e Casinelli e, por-
tanto, a filiação biológica.
Como sói acontecer nas ditaduras latino-
americanas, também no Uruguai foi editada uma nor-
ma de isenção de responsabilidade penal dos perpetra-
dores, materializada na denominada Ley de Caducidad
de la Pretensión Punitiva del Estado (n.º 15.848), de 22 de
dezembro de 1986, que dispunha:
Artículo 1º.- Reconócese que, como consecuencia
de la lógica de los hechos originados por el acuer-
do celebrado entre partidos políticos y las Fuerzas
Armadas en agosto de 1984 y a efecto de concluir
la transición hacia la plena vigencia del orden
constitucional, ha caducado el ejercicio de la pre-
tensión punitiva del Estado respecto de los delitos
cometidos hasta el 1º de marzo de 1985 por funci-
onarios militares y policiales, equiparados y asimi-
lados por móviles políticos o en ocasión del cum-
plimiento de sus funciones y en ocasión de accio-
nes ordenadas por los mandos que actuaron du-
rante el período de facto (CorteIDH, 2011, p. 46).

Ainda no ano de 1988, a Suprema Corte de Justicia


uruguaia declarou que o supracitado dispositivo legal
configurava-se plenamente constitucional e que, ape-
sar de não se referir textualmente à palavra “anistia”, a
intenção do legislador teria sido conferir uma “autênti-

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 677

ca anistia” às forças nacionais de segurança (Abraham;


Mattei, 2012, p. 98).
Interessante destacar que a mesma Ley de Cadu-
cidad sob trato foi declarada inconstitucional pela Su-
prema Corte do Uruguai em 2009, o que merece alguns
esclarecimentos.
Restaurada a validade da Constituição da Re-
pública de 1967 a partir de 1.º de março de 1985, ocor-
reram no Uruguai reformas constitucionais parciais
plebiscitárias de menor impacto normativo nos anos de
1989, 1994 e 2004 acerca de temas pontuais, a citar:
aposentadorias e pensões, reajuste monetário de pro-
ventos e acesso à água potável e ao saneamento básico.
Entretanto, uma reforma parcialmente estrutural foi
feita em 1996, com a reformulação de disposições sobre
eleições, partidos políticos, processo legislativo, atri-
buições presidenciais e matérias governativas outras
(Espiell; Gallicchio, 2008).
Tais premissas indicam que não teria havido al-
terações textuais na estrutura dos direitos fundamen-
tais positivados na Carta Magna uruguaia entre as du-
as declarações aparentemente conflitantes da Suprema
Corte de Justicia, com referência à testagem de constitu-
cionalidade da Ley de Caducidad (1988 e 2009), o que
pode indicar a ocorrência do fenômeno da mutação
constitucional.10
No julgamento do caso Gelman, além de manter
a mesma linha da jurisprudência externada nos casos
Barrios Altos e Almonacid Arellano, a Corte Interameri-

10 A mutação constitucional, vinculada à mudança do conteúdo e do


significado das normas constitucionais pela via informal (sem
alteração do texto), guarda relação com a atualização e a modificação
da constituição em virtude do câmbio na esfera da realidade fática
(social, econômica, cultural etc.) e, em razão disso, diferente da
reforma constitucional (textual), não representa em geral um
acontecimento específico, na medida em que resulta de um processo
maturado ao longo de um interstício temporal mais ou menos dilatado
(Sarlet, 2012, p. 146, 148).
678 Ranieri Lima Resende

cana considerou que a incompatibilidade do Pacto de


San José de Costa Rica com as anistias de graves viola-
ções aos direitos humanos abrange, além da premissa
procedimental e de legitimidade da própria autoridade
que tenha emitido a lei de anistia, a sua própria ratio
legis, centrada em assegurar a impunidade dos perpe-
tradores (CorteIDH, 2011, p. 67).
Surpreendentemente, em outubro de 2011 foi
noticiado o processamento e a detenção de 5 (cinco)
acusados pelo homicídio de María Claudia García,
sendo deles 4 (quatro) militares aposentados e 1 (um)
ex-policial, todos na condição de coautores. Conjunta-
mente, foi requerida pelo juízo criminal uruguaio pro-
cessante a extradição de um coronel militar fora da
ativa detido na Argentina, supostamente envolvido nos
crimes em questão (El País, 2011).
Na sessão aberta do Parlamento de 22 de março
de 2012, marcada pela honrosa presença de Juan Gel-
man (sogro) e María Macarena Gelman11 (filha), o Esta-
do do Uruguai assumiu publicamente a responsabili-
dade pelo desaparecimento de María Claudia García.
Com a mesa composta pelo Presidente da Suprema Cor-
te de Justicia, do Presidente e do Vice-Presidente da Re-
pública, deu-se cumprimento a uma parte significativa
da sentença da Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos.
Em prol de proporcionar a mais ampla divulga-
ção acerca do cumprimento da sentença da Corte Inte-
ramericana pelo Estado uruguaio, a disponibilização
do vídeo da sessão do Parlamento no site Youtube
(2012) pode ser considerada medida combinante com a
atualização do princípio da publicidade no âmbito do
processo internacional de direitos humanos.

11 Decidida a “corrigir” seu nome para vinculá-lo a seus pais

biológicos, María Macarena Tauriño Vivian conseguiu registrar-se


oficialmente como María Macarena Gelman García Iruretagoyena
(CorteIDH, 2011, p. 35).

 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 679

Pouco após esses acontecimentos, uma lamen-


tável surpresa foi o posicionamento da Suprema Corte de
Justicia do Uruguai (SCJ, 2013), ao decidir em 8 de mar-
ço de 2013 em prol da inconstitucionalidade da lei uru-
guaia que havia estabelecido a imprescritibilidade dos
crimes de lesa-humanidade praticados durante o perí-
odo de exceção. O que mais impressionou no julgado
foi o fundamento adotado pela maioria dos juízes do
Tribunal, centrado no princípio da irretroatividade da
lei penal mais gravosa, ou seja, na impossibilidade de
aplicar de maneira retroativa os artigos da lei nacional
que haviam firmado a imprescritibilidade de tais cri-
mes.
Na prática, a decisão judicial da Suprema Corte
de Justicia servirá de base para o arquivamento de uma
série de processos criminais instaurados perante os
juízos ordinários contra perpetradores de graves Viola-
ções aos Direitos Humanos, tornando a Ley de Caduci-
dad tão válida quanto eficaz perante a ordem interna
uruguaia, em flagrante contrariedade ao Pacto de San
José de Costa Rica e, especialmente, à sentença da Cor-
te Interamericana prolatada no caso Gelman.

Considerações Finais

No processo político de tomada do poder insti-


tucional por intermédio do uso das forças repressivas
disponíveis, a primeira providência adotada foi, coin-
cidentemente, a suspensão de direitos e liberdades ou a
grave restrição à sua fruição com o uso das mais diver-
sas nomenclaturas político-jurídicas, mas estrutural-
mente sob a mesma fórmula padrão: Estado de exce-
ção, suspensão da condição humana de sujeito de direi-
to e violação massiva de direitos humanos sob a titula-
ridade do Estado.
A indicar a conjuntura geral dos Estados em que
ocorridas as violações apreciadas pela Corte Interame-
680 Ranieri Lima Resende

ricana de Direitos Humanos com foco na temática da


autoanistia, insta registrar com destaque:
a) Caso Barrios Altos vs. Peru (CorteIDH, 2001):
atuação de grupo de extermínio composto por mem-
bros do exército e dirigido por membros do governo,
que culminou na morte por tiros de 15 (quinze) pessoas
e no ferimento grave de outras 4 (quatro) em 3 de no-
vembro de 1991, inserida na violência estatal recrudes-
cida na ambiência preparatória do golpe intitulado
“Gobierno de Emergencia y Reconstrucción Nacional”
(5 de abril de 1992), que dissolveu o Congresso e inter-
veio arbitrariamente no Poder Judiciário;
b) Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile
(CorteIDH, 2006): homicídio de Luis Arellano por for-
ças policiais em 17 de setembro de 1973, inserido no
contexto do Golpe de Estado, que culminou na morte
do então Presidente Salvador Allende em 11 de setem-
bro de 1973, e do Estado de Sítio formalmente decreta-
do no dia 22 seguinte;
c) Caso Gelman vs. Uruguay (CorteIDH, 2011):
detenção arbitrária de María Claudia García no dia 24
de agosto de 1976 em Buenos Aires, seguido do seques-
tro de sua filha recém-nascida (Montevideo) e posterior
desaparecimento forçado da genitora, por intermédio
do aparato transnacional da “Operação Condor” e sus-
tentado pelos Atos Institucionais editados no Uruguai
a partir de junho de 1976.
Nesse contexto, a percepção do caráter antijurí-
dico das leis de autoanistia na ambiência do direito
internacional dos direitos humanos é assumida explici-
tamente em manifestações de órgãos das Nações Uni-
das, sentenças de tribunais internacionais e pela dou-
trina publicista prevalecente.
Em contrapartida, a prática dos Estados sob
análise (Peru, Chile e Uruguai) tem buscado acompa-
nhar o progressivo desenvolvimento da matéria, ainda
que sem a adoção de uma perspectiva necessariamente
coerente, a confirmar a tese de Walter Benjamin (1992,
p. 150), para quem as concepções de linearidade, ho-
 
Antinomia radical entre as leis de autoanistia e a obrigação... 681

mogeneidade e evolução em história ainda se configu-


ram insustentáveis.

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Responsabilização e reparação
pós-ditadura civil-militar
A morte do operário Manoel Fiel Filho e a
defesa da memória das violações de direitos
humanos

Diego  Oliveira  de  Souza1  


Diorge  Alceno  Konrad2  

Resumo: Este artigo é composto de estudo interdisci-


plinar que combina abordagens historiográficas e pers-
pectivas de estudos originárias do campo do saber ju-
rídico. Trata de duas formas distintas de realizar a con-
solidação do Estado Democrático de Direito, no Brasil,
pós-Ditadura Civil-Militar. A primeira corresponde à
promoção da responsabilização civil frente às violações
de direitos humanos, cometidas nas dependências do
DOI/CODI/II Exército, contra o operário metalúrgico
Manoel Fiel Filho, durante o período considerado de
abertura política da Ditadura Civil-Militar. A segunda
é compreendida através da provocação da realização

1 Técnico do Ministério Público da Federal (MPF), lotado na


Procuradoria da República no Estado do Rio Grande do Sul.
Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM). Mestrando em História pela Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM). Linha de Pesquisa Migrações e Trabalho.
2 Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de

Pós-Graduação em História da UFSM, com atuação na área de História


do Brasil, Pesquisador da Ditadura Civil-Militar Brasileira (1964-1985),
Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 689

de política de reparação, aos crimes praticados durante


a Ditadura Civil-Militar, concebida na construção de
espaços permanentes de memória.
Palavras-chave: Responsabilização – Reparação - Me-
mória das Violações de Direitos Humanos.

Abstrat: This article consists of interdisciplinary study


that combines historiographical approaches and per-
spectives of studies originating from the field of legal
knowledge. These two different ways of performing
the consolidation of a democratic state, in Brazil, post-
Civil-Military Dictatorship. The first corresponds to the
promotion of civil liability concerning the violations of
human rights committed on the premises of the
DOI/CODI/II Army against the metalworker Manoel
Fiel Filho, during the period considered opening policy
Civil-Military Dictatorship. The second challenge is
understood by performing repair policy, for crimes
committed during the Civil-Military Dictatorship, de-
signed to build permanent memory spaces.
Keywords: Accountability - Repair - Memory of Hu-
man Rights Violations.

Introdução

A Ditadura acusava-o do 'crime' de lutar contra a


carestia, contra o aumento do pão e do leite e de
todos os alimentos. Contra o aumento dos alugueis
da condução de tudo (…) e por uma vida mais de-
cente para os trabalhadores. Acusava-o do 'crime'
de reivindicar as liberdades democráticas e lutar
por uma sociedade sem exploradores, onde os tra-
balhadores que tudo produzem sejam também o
poder.3

3 Panfleto sem autoria, encontrado pendurado por gancho, na


passarela da Avenida Brasil, na subestação de Transportes, em
Manguinhos, no Rio de Janeiro. Pode-se estimar que o documento
690 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

Este artigo é composto de estudo interdiscipli-


nar que combina abordagens historiográficas e pers-
pectivas de estudos originárias do campo do saber ju-
rídico. Sua temática está voltada para a democracia
brasileira, pós-Ditadura Civil-Militar, e a necessidade
de promover medidas de responsabilização e de repa-
ração às violações de direitos humanos, praticadas no
âmbito das instalações de repartição da Administração
Pública Federal, ou seja, nas dependências do Desta-
camento de Operações de Informações (DOI), do II
Exército, em São Paulo, no ano de 1976.
Cabe lembrar que as democracias restauradas
da América Latina, na visão de Alain Rouquié, são as
herdeiras das ditaduras, quando não são suas prisio-
neiras.4 Por este motivo, nesta investigação, trata-se da
responsabilização pela prática de prisão ilegal, tortura
e morte do operário metalúrgico Manoel Fiel Filho,
bem como da prática de atos de dissimulação das reais
causas de sua morte.
Diante disso, volta-se para duas formas distintas
de realizar a consolidação do Estado Democrático de
Direito, no Brasil, pós-Ditadura Civil-Militar. A primei-
ra corresponde à promoção da responsabilização civil
frente às violações de direitos humanos, cometidas nas
dependências do DOI/CODI/II Exército, contra o ope-
rário metalúrgico Manoel Fiel Filho, durante o período
considerado de abertura política da Ditadura Civil-
Militar. A segunda é compreendida através da provo-
cação da realização de política de reparação, aos crimes

tenha sido elaborado provavelmente alguns dias após 17 de Janeiro de


1976. Disponível em:
<http://www.documentosrevelados.com.br/imprensa-
clandestina/panfleto-denunciando-a-morte-de-manoel-fiel-filho-na-
tortura/>. Acesso em dezembro de 2012.
4 ROUQUIÉ, Alain. A la sombra de las dictaduras: la democracia en

América Latina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2011, p.


15.
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 691

praticados durante a Ditadura Civil-Militar, concebida


na construção de espaços permanentes de memória.
Entre os objetivos deste trabalho, pretende-se
investigar a forma como o Poder Judiciário brasileiro se
relaciona com a Justiça Transicional e a defesa da me-
mória das violações de direitos humanos, praticadas
contra o operário metalúrgico Manoel Fiel Filho, em
1976. Para atender esta demanda, formulou-se a se-
guinte questão: qual é a forma jurídico-política adotada
pela democracia brasileira, pós-Ditadura Civil-Militar,
para promover a responsabilização e a reparação aos
abusos de direitos humanos, praticados contra o operá-
rio Manoel Fiel Filho, no âmbito do DOI, do II Exército
brasileiro, em São Paulo, no ano de 1976?
De todo modo, a literatura sobre Justiça de
Transição, como ressalta Cecília Macdowell dos Santos,
tende a ignorar as ações de natureza cível e a mobiliza-
ção dos direitos humanos, por parte de diversos atores
sociais e político-jurídicos, bem como a assumir certa
homogeneidade na atuação do Estado.5 Diante disso,
evidencia-se a relevância de realizar estudo acerca das
iniciativas cíveis do Ministério Público Federal, volta-
das para a promoção do Direito à Memória e à Verda-
de.
Ademais, a memória constituída do período da
Ditadura Civil-Militar, relativa às mortes dos operários
Virgílio Gomes da Silva, assassinado em 1969, e Mano-
el Fiel Filho, assassinado em 1976, é pobre em informa-
ções sobre os registros de suas mortes. Com isto, evi-
dencia-se o desenvolvimento de um processo de ocul-

5 SANTOS, Cecília Macdowell dos. Questões de justiça de transição: a

mobilização dos direitos humanos e a memória da Ditadura no Brasil.


In. SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília
Macdowell dos; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.) Repressão e memória
política no contexto Ibero-Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala,
Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da
Justiça/Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de
Coimbra/Centro de Estudos Sociais, 2010, p. 127.
692 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

tação das reais causas de suas mortes. Na opinião de


Elio Gaspari, por exemplo, Virgílio Gomes da Silva,
“virou um personagem ora secundário, ora embruteci-
do”, ao tempo em que “a morte de Manoel Fiel Filho é
pouco lembrada”, nos registros das memórias do perí-
odo.6
A postura teórico-metodológica deste trabalho
corresponde àquela adotada por José Carlos Reis, de
que a verdade na pesquisa histórica é impossível de ser
alcançada sendo que apenas consegue-se aproximar
dela, produzindo uma versão do que efetivamente
aconteceu no passado.7
Além disso, para atender os objetivos anterior-
mente delineados, associa-se tal concepção de verdade
à noção de trama histórica, definida por Paul Veyne,
para o qual os fatos não existem isoladamente, sendo o
tecido da história concebido como uma trama, “de uma
mistura muito humana e muito pouco científica de
causas materiais, (...) de uma fatia da vida que o histo-
riador isolou segundo sua conveniência”.8
Assim, para atender os objetivos deste trabalho,
o mesmo encontra-se divido em três momentos sendo
o último deles segmentado: na primeira etapa, volta-se
para a atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército e
a morte de Manoel Fiel Filho, explorando seu contexto
político anterior; na segunda etapa, trata especifica-
mente dos agentes do DOI/CODI/II Exército, envolvi-
dos no caso Manoel Fiel Filho, através da análise do
Inquérito Policial Militar (IPM), instaurado a época dos

6 GASPARI, Elio. O que é isso, companheiro? O operário se deu mal.


In. REIS FILHO, Daniel Aarão (Org.). Versões e ficções: O seqüestro
da História. São Paulo: Perseu Abramo, 1997, p. 115.
7 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. Rio de Janeiro: FGV,

2000, p. 9. De todo modo, objetivamente Manoel Fiel Filho foi


assassinado nas dependências do DOI/CODI/II Exército.
8 VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Foucault revoluciona a

História. 4 ed. Brasília: Editora UNB, 2008, p. 42.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 693

fatos; por fim, ao tempo em que apresenta a justiça


transicional e as limitações de sua prática, a partir do
pensamento de Jon Elster, trata também da atuação
cível do Ministério Público Federal, voltada para a res-
ponsabilização e reparação das violações de direitos
humanos perpetradas contra o operário metalúrgico.

1. A atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército


e a morte de Manoel Fiel Filho

O contexto político anterior à instituição da prá-


tica sistemática de violações de direitos humanos, ba-
seada no uso da violência em interrogatórios de mili-
tantes políticos, opositores da Ditadura Civil-Militar é
marcado por diversos esforços no sentido de unificar
as ações repressivas sobre a dissidência política brasi-
leira.
Em nível nacional, a ideia de criar estrutura de
combate ao crime político e social (atribuição perten-
cente até então às Quartas Delegacias Auxiliares) se
consolida com a criação da Delegacia Especial de Segu-
rança Política e Social (DESPS), em 1933, embrião da
futura DOPS.9 Em 1936, objetivando melhorar as rela-
ções entre as polícias estaduais, a fim de aperfeiçoar o
combate ao comunismo, ocorreu o aperfeiçoamento
daquele aparato, durante o Congresso de Chefes de
Polícia, realizado no Rio de Janeiro, o qual foi convo-
cado pela Chefia de Polícia do Distrito Federal e o Mi-
nistério da Justiça.10 Já em 1958, realizou-se a II Confe-

9 Ver mais sobre isto em: KONRAD, Diorge Alceno. O fantasma do


medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos
sócios-políticos (1930-1937). Tese de Doutorado Orientada por Michael
McDonald Hall. Campinas: IFCH-UNICAMP, 2004.
10 JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na

Operação Bandeirante e no DOI em São Paulo (1969-1975). Tese


(Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2008, p. 41.
694 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

rência Nacional de Polícia, na qual surgiu novamente o


tema da reestruturação da polícia, com a proposta de
se criar uma Polícia Federal, tendo sido cogitado o mo-
delo norte-americano do FBI.11
De outro lado, a base jurídico-filosófica da atua-
ção das forças repressivas da Ditadura Civil-Militar,
formada através de princípios do Direito Internacional
Público, que tratam das relações entre Estados belige-
rantes, estava estabelecida, em meados de 1968, como
lembra o jornalista Antônio Carlos Fon:
Prender, torturar, matar, tudo é permitido para de-
fender a segurança nacional. A base jurídico-
filosófica para justificar qualquer ato, tornando lí-
cito o que é intrinsecamente ilícito, foi desenvolvi-
da durante três anos de prolongados debates na
Escola Superior de Guerra (ESG).12

Além disso, até 1969, a repressão política era


atividade essencialmente desenvolvida pelas Secretari-
as da Segurança Pública e os DOPS de cada Estado. A
centralização da repressão à dissidência política ocorre
a partir do nascimento da Operação Bandeirante
(OBAN), em julho de 1969, definida pela Diretriz para
Política de Segurança Interna, do Governo Arthur da
Costa e Silva. Esta diretriz apontava o que deveria ser
feito para “impedir, neutralizar e mesmo eliminar os
movimentos subversivos”, bem como evidenciava o
processo de assunção do Exército do planejamento e da
execução das medidas repressivas.13

11 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O ofício das sombras. In. Revista do


Arquivo Público Mineiro: Belo Horizonte, Ano XLII, Junho 2006, p.
61-62.
12 FON, Antônio Carlos. Tortura: a história da repressão política no

Brasil. 5 ed. São Paulo: Global, 1980, p. 27.


13 PEREIRA, Freddie Perdigão. O Destacamento de Operações de

Informações (DOI). Histórico papel no combate à subversão –

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 695

No Governo Costa e Silva, surgiu a Diretriz para


Política de Segurança Interna, de julho de 1969, a qual
permitiu a união de esforços mútuos para concretizar o
surgimento da OBAN.14 A união de forças para comba-
ter à dissidência política, em São Paulo, contou com a
participação do Prefeito da cidade, Paulo Maluf, do
Governador do Estado de São Paulo, Roberto de Abreu
Sodré, e de grandes grupos comerciais e industriais
paulistas.15
A participação dos empresários, no desenvol-
vimento do sistema de repressão brasileiro, ocorreu a
partir do Grupo Permanente de Mobilização Industrial
(GPMI).16 Formado nos primeiros dias após o Golpe de
1964, o GPMI reunia não só empresários interessados
na possibilidade de abertura de um novo campo para a
iniciativa privada, mas também empresários empe-
nhados na luta pela manutenção da Segurança Inter-
na.17
Os resultados alcançados com as ações da
OBAN levaram a Ditadura Civil-Militar avançar na

Situação atual e perspectivas. Monografia. Escola de Comando e


Estado Maior do Exército, Rio de Janeiro, 1978, p. 6.
14 Conforme o General Sylvio Frota asseverou em seus depoimentos,

“(...) o grande objetivo da Operação Bandeirante consistia na prisão de


Marighella – orientador e incentivador do terrorismo – e em destroçar
a célula comunista em que se apoiava.” Ver: FROTA, Sylvio. Ideais
traídos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 217.
15 GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das

Letras, 2009, p. 61-62.


16 Sobre as últimas investigações acerca do Grupo Permanente de

Mobilização Industrial (GPMI), cabe referir o texto do membro da


Comissão Nacional da Verdade (CNV), o ex-Procurador Geral da
República, Cláudio Fonteles, constituído a partir de pesquisas junto ao
Arquivo Nacional, em documentos confidenciais produzidos pelo
Serviço Nacional de Informações – SNI. Em especial ver: A união
industrial militar. Disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/index.php/publicacoes/177-textos-de-
claudio-fonteles>. Acesso em 18 de fevereiro de 2013.
17 FON, Antônio Carlos, op. cit., p. 54-55.
696 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

concessão do campo de atuação dos Comandantes Mi-


litares de Área (CMA) e em setembro 1970, expedir
nova orientação para o combate à dissidência política
no Brasil. Tratava-se, então, da Diretriz Presidencial de
Segurança Interna, elaborada durante o Governo do
general-presidente Emílio Garrastazu Médici, a qual
possibilitou a existência dos DOI, em nível federal.18
O processo de assunção do Exército brasileiro
da coordenação da repressão política ocasionou, entre
outros desdobramentos, o surgimento dos DOI. A es-
trutura repressiva deste órgão repetia o mesmo traba-
lho da OBAN, constituindo-se em corpo de polícia po-
lítica dentro das organizações militares do Exército.
Para Elio Gaspari, o DOI repetia o defeito genético da
OBAN, “(...) misturando-se informações, operações,
carceragem e serviços jurídicos”.19
De toda maneira, em 1974, dá-se o início do es-
gotamento da Ditadura Civil-Militar, sendo a maior
evidência a vitória do Movimento Democrático Brasi-
leiro (MDB) nas eleições daquele ano. Ademais, a partir
de 1975, nascia o reconhecimento dos opositores à Di-
tadura Civil-Militar, com a repercussão das lutas tra-
vadas nas prisões de todo o País, pois “não havia mais
como negar a existência de presos políticos no Brasil”.20
A ofensiva sobre o Partido Comunista Brasileiro
(PCB), perpetrada pelos agentes de segurança da Dita-
dura Civil-Militar, iniciou após o aniquilamento dos

18 USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN,

DOI/CODI.29 set .70–24 jan.74. Brasília: Editerra, 1987, p. 67. Grifos


nossos.
19 GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das

Letras, 2009, p. 180.


20 SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Anistia no Brasil: um processo político

em disputa. In. PEYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo


D. (Orgs.). A anistia na era da responsabilização: o Brasil em
perspectiva internacional e comparada. Brasília:Ministério da Justiça,
Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American
Centre, 2011, p. 196-197.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 697

militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na


região do Araguaia, em 1975. Jacob Gorender lembra
que quando não havia organizações de esquerda para
justificar a atuação dos organismos repressivos, tais
órgãos se voltaram para a "reserva de caça" que lhes
oferecia o PCB:
[...] Seis anos de fogo brando induziram o Partidão
a baixar a guarda e se descuidar da segurança
clandestina. Abriu-se em excesso na campanha
eleitoral de 1974, quando o MDB alcançou o pri-
meiro êxito significativo. Os órgãos policiais não
tiveram dificuldade para desarticular o Partidão e
paralisar sua alta direção.21

O ex-jornalista da Revista Veja Elio Gaspari,


apresenta elementos da ofensiva do aparelho repressi-
vo estatal sobre os militantes do PCB:
Descobrira-se uma base do Partidão dentro da Po-
lícia Militar paulista. Ela estivera invicta desde sua
montagem, em 1946. Funcionava sob as rígidas
normas de segurança do Setor Mil, ligando-se dire-
tamente a um representante pessoal do secretário-
geral do PC. Na sua liquidação, prenderam-se 63
policiais.22

Entre os resultados alcançados pela ação do


DOI/CODI/II Exército, voltada para a eliminação dos
componentes do PCB, encontram-se, em agosto de
1975, a morte do Tenente reformado da Polícia Militar
do Estado de São Paulo, José Ferreira de Almeida, e,
em outubro, nas mesmas dependências do DOI/CODI,
o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. A próxima
vítima das fracassadas tentativas de forjar o suicídio de

21 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das


ilusões perdidas à luta armada. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987, p. 264.
22 GASPARI, Elio. A Ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das

Letras, 2004, p. 159-160.


698 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

militantes políticos, foi o operário metalúrgico Manoel


Fiel Filho, morto em 17 de Janeiro de 1976, na mesma
repartição da Administração Pública Federal, sobre o
controle do II Exército.

2. Os atores do DOI/CODI/II Exército no caso


Manoel Fiel Filho e o IPM

Um documento histórico bastante rico para re-


constituir a atuação dos agentes do sistema de segu-
rança da Ditadura Civil-Militar é o IPM23, mandado
instaurar por requisição do então Comandante do II
Exército, General Ednardo D'Ávila Mello, visando apu-
rar os fatos relacionados à morte de Manoel Fiel Filho,
nas dependências do DOI, de São Paulo.24
Especificamente sobre as condições da morte de
Manoel Fiel Filho, é necessário observar o Relatório da
Perícia, de encontro de cadáver, requisitado pelo então
de Delegado da Polícia Civil de São Paulo, Orlando

23 Conforme o historiador Marc Bloch, a falsificação de documentos é

algo recorrente na História, da Idade Média à Modernidade, diversos


foram os interesses que prejudicaram a autenticidade e a veracidade
dos testemunhos históricos. No caso da análise do aludido Inquérito
Policial, é possível aplicar-se o posicionamento de Marc Bloch, posto
que “(...) não basta constatar o embuste. É preciso também descobrir
seus motivos. (…) Acima de tudo, uma mentira enquanto tal é, a seu
modo, um testemunho.” Ver: BLOCH, Marc Leopold Benjamin.
Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar,
2002, p. 98.
24 O IPM foi instaurado em 21 de janeiro de 1976, através da Portaria

Número 01-SJ, do Comandante do II Exército, General Ednardo


D'Ávila Mello. O encarregado do Inquérito Policial foi o Coronel
Murilo Fernando Alexander. Conforme as palavras do Ex-Ministro do
Exército, Sylvio Frota, o Coronel Alexander: “partiu, segundo todas as
informações que me foram dadas, da premissa da existência de crime e
sobre ela desenvolveu suas investigações. Conta que levou as minucias
a ponto de não aceitar a tese de suicídio nas condições apresentadas.
Tentou na reconstituição do fato, ele próprio ocupar as condições do
suicida, o que lhe ia sendo fatal.” Ver detalhes em: FROTA, Sylvio, op.
cit., p. 234.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 699

Domingues Jeronymo, elaborado pelos peritos crimi-


nais Ernesto Eleutério e Paulo Pinto, o qual trouxe a
seguinte conclusão, dentro do campo da criminalística:
a individualização do agente da força constritora,
isto é se foi o da própria vítima ou de terceiros,
configurando no primeiro caso suicídio e, no se-
gundo, o homicídio, não pode ser feita pelos peri-
tos por carência de elementos materiais, passíveis
de comprovação e demonstração.25

Ainda cabe destacar que no laudo do Exame de


Necropsia, elaborado pelos médicos legistas José An-
tonio de Mello e José Henrique da Fonseca, consta que
Manoel Fiel Filho veio a falecer através de “asfixia me-
cânica por estrangulamento.” Interessante observar
que, entre os quesitos para a elaboração do Laudo de
necropsia, encontrava-se a seguinte questão acerca da
morte de Fiel Filho: “foi produzida por meio de vene-
no, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro
meio insidioso ou cruel?” Para esta questão, os médicos
legistas apenas informaram “não”.26
No Inquérito Policial Militar, instaurado para
investigar as circunstâncias da morte do operário Ma-
noel Fiel Filho27, foram ouvidos, todos na condição de

25 Laudo de Exame de Local e Encontro de Cadáver nº 01041, de 17 de

Janeiro de 1976, do Instituto de Criminalística de São Paulo. Encartado


no Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação Ordinária nº 1298666,
da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 24. Documento extraído da inicial
da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
26 Laudo de Exame de Corpo de Delito nº 1781, de 21 de Janeiro de

1976, do Instituto Médico Legal do Estado de São Paulo. Encartado no


Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação Ordinária nº 1298666, da
5ª Vara Federal de São Paulo, p. 39-40. Documento extraído da inicial
da ACP Caso Manoel Fiel Filho. Grifos nossos.
27 Em relação à veracidade das informações trazidas neste expediente

investigativo, e a necessidade da adoção de precauções metodológicas,


oportuno mencionar as palavras de Marc Bloch, para o qual “(...) não
basta constatar o embuste. É preciso também descobrir seus motivos.
Mesmo que, a princípio, para melhor rastreá-lo. (...) Acima de tudo,
700 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

testemunhas, os membros da equipe de trabalho do


DOI/CODI/II Exército, civis e militares, bem como os
presos políticos, vinculados ao PCB, os quais se encon-
travam naquele organismo repressivo entre 16 e 17 de
janeiro de 1976.
Deste modo, foram ouvidos na condição de tes-
temunhas, relacionadas ao Exército brasileiro, o Ten-
tente-Coronel Audir dos Santos Maciel, o Major Dalmo
Luiz Muniz Cyrillo, o 2º Sargento Luiz Shinji Akabos-
chi, e o 2º Sargento Moacir Piffer. Relacionados à Polí-
cia Militar do Estado de São Paulo, o Tenente Tamotu
Nakao, na condição de chefe da equipe de interrogado-
res, e os soldados Alfredo Umeda e Antonio José Noce-
te, responsáveis pelos serviços de carceragem. Além
dos membros da Polícia Civil do Estado de São Paulo,
os quais prestavam seus serviços ao DOI/CODI/II
Exército, na condição de interrogadores, os Delegados
Harim Sampaio de Oliveira e Edervarde José.
Em relação aos membros do PCB, detidos no
DOI/CODI/II Exército, foram ouvidos, no âmbito da-
quele IPM: o vendedor de bilhetes de loteria, Sebastião
de Almeida28, o aposentado Manoel Dias Veloso29, o
pintor lituano João Daniliauskas30, o enfermeiro, Geral-

uma mentira enquanto tal é, a seu modo, um testemunho.” Ver:


BLOCH, Marc Leopold Benjamin, op. cit., p. 98.
28 Termo de Inquirição de Testemunha. Sebastião de Almeida. 02 de

Fevereiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 90-91.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
29 Termo de Inquirição de Testemunha. Manoel Dias Veloso. 02 de

Fevereiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 92-93.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
30 Termo de Inquirição de Testemunha. João Daniliauskas. 02 de

Fevereiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 93-95.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 701

do Castro da Silva31, o técnico de televisão, José Amil-


ton Rodrigues32 e a doméstica Rozária Amado Andra-
de33. Por fim, foi ouvida também na condição de teste-
munha, a senhora Thereza de Lourdes Martins Fiel34,
esposa do operário metalúrgico Manoel Fiel Filho.
De acordo com o depoimento, de Tamotu Na-
kao, então 2º Tenente da Polícia Militar, a equipe de
interrogatório de 17 de janeiro de 1976, pela qual Ma-
nel Fiel Filho foi assassinado, era composta dos Dele-
gados da Polícia Civil do Estado de São Paulo, Harim
Sampaio de Oliveira e Orlando Domingues Jerônymo,
acompanhados do Sargento do Exército Luiz Shinji
Akaboschi, e dos soldados da Polícia Militar do Estado
de São Paulo, Alfredo Umeda e Antonio José Nocete.35
Conforme os esclarecimentos do Sargento do
Exército Luiz Shinji Akaboschi, responsável pela toma-
da de depoimento de Manoel Fiel Filho, as discrepân-
cias entre as declarações do operário metalúrgico e Se-
bastião de Almeida relacionavam-se ao número de jor-

31 Termo de Inquirição de Testemunha. Geraldo Castro da Silva. 03 de

Fevereiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 95-96.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
32 Termo de Inquirição de Testemunha. José Amilton Rodrigues. 03 de

Fevereiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 96-97.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
33 Termo de Inquirição de Testemunha. Rozária Amado Andrade. 03

de Fevereiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 98-99.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
34 Termo de Inquirição de Testemunha. Thereza de Lourdes Martins

Fiel. 09 de Fevereiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da


Ação Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 124-
126. Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
35 Termo de Inquirição de Testemunha. Tamotu Nakao. 26 de Janeiro

de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação Ordinária nº


1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 57-59. Documento
extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
702 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

nais Voz Operária, recebidos e distribuídos por Manoel,


bem como sobre a pessoa do seu aliciador para o PCB.36
De outro lado, interessa ressaltar o depoimento
de Antonio José Nocete, o qual em conjunto com Al-
fredo Umeda, era responsável pelos serviços de carce-
ragem naquela ocasião, asseverando que, desde 1970,
fazia a guarda das instalações do DOI/CODI/II Exérci-
to e, apenas, há sete meses passara a desempenhar a
função de carcereiro, além disso, afirmou naquela oca-
sião:
Somente os carcereiros têm acesso às chaves dos
xadrezes, e somente tem acesso aos xadrezes o
Comandante, o Subcomandante ou o Oficial de
Permanência. Perguntado com que frequência os
carcereiros devem inspecionar as celas e os xadre-
zes, respondeu que ininterruptamente.37

Ainda do depoimento de Sebastião Almeida,


prestado no âmbito daquele Inquérito Policial-Militar,
o mesmo indica as supostas inconsistências nas infor-
mações prestadas por Manoel Fiel Filho, ao tempo em
que afirmava repassar 3 (três) jornais Voz Operária à
Manoel e ter aliciado o mesmo para o PCB, Manoel
afirmava receber apenas 1 (um) exemplar do jornal e
ter sido aliciado por Fiori.38

36 Termo de Inquirição de Testemunha. Luiz Shinji Akaboschi. 28 de

Janeiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 65.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
37 Termo de Inquirição de Testemunha. Antônio José Nocete. 28 de

Janeiro de 1976. Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 67.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.
38 Termo de Inquirição de Testemunha. Sebastião de Almeida. 02 de

Fevereiro de 1976 Inquérito Policial-Militar, integrante da Ação


Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 90.
Documento extraído da inicial da ACP Caso Manoel Fiel Filho.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 703

De todo jeito, avaliando a repercussão das mor-


tes de José Ferreira de Almeida, Vladimir Herzog e
Manoel Fiel Filho, todos acusados de manterem liga-
ções com o PCB, percebe-se que as manifestações da
sociedade não ocorreram da mesma maneira. Com isso,
chega-se à conclusão de que o tratamento dado à tortu-
ra, por parte da sociedade civil, não foi o mesmo na-
queles casos, como se percebe:
Ao contrário da repercussão social do caso Her-
zog, na morte do tenente não houve manifesto de
protesto ao acontecido, a não ser na pessoa de D.
Paulo Evaristo Arns. A repercussão social do fato
foi mais no sentido policial do que política. Não
surgiu nenhuma contestação da versão oficial de
suicídio. A palavra cidadão não foi mencionada
por nenhum órgão de comunicação. Também foi
diverso o significado da morte do metalúrgico
Manoel Fiel Filho no dia 17 de janeiro de 1976. Es-
se assassinato teve pouca visibilidade. A morte do
operário ganhou repercussão maior não pelo as-
sassinato em si, mas pela demissão do General
Ednardo D'Avila Mello, comandante do II Exérci-
to, feita pelo Governo Federal.39

Percebe-se que, diante da atuação de um meca-


nismo de poder e solidariedade, houve o ocultamento
das reais circunstâncias das mortes dos três envolvidos.
Levando-se em consideração a classe social dessas três
vítimas do aparelho repressivo ditatorial, percebe-se a
necessidade de se estabelecer na sociedade brasileira
espaços de memória voltados para as violações de di-
reitos humanos, praticadas contra os trabalhadores, no
sentido de estender-lhes o status amplo da cidadania,

39MORAES, Mário Sérgio de. Memória e cidadania: as mortes de V.


Herzog, Manoel F. Filho e José F. de Almeida. In. SANTOS, Cecília
MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Orgs.)
Desarquivando a Ditadura: memória e justiça no Brasil. Volume I. São
Paulo: Aderaldo e Rothschild Editores, 2009, p. 61.
704 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

daqueles que lutaram contra os arbítrios da Ditadura


Civil-Militar brasileira.
Contudo, em 1979, a atuação repressiva do
DOI/CODI/II Exército, consubstanciada na prisão e
morte de Manoel Fiel Filho foi objeto de apreciação em
ação judicial cível. A viúva Thereza de Lourdes Mar-
tins Fiel e as filhas Márcia de Fátima Fiel e Maria Apa-
recida Fiel Pivotto, representadas pelos advogados
Samuel Mac Dowell de Figueiredo, Marco Antônio
Rodrigues Barbosa e Sergio Bermudes, propuseram
ação ordinária de indenização contra a União.40
Por fim, daquela ação judicial cível de 1979, em
relação à prisão de Manoel Fiel Filho, executada pelos
agentes do DOI/CODI/II Exército, o Juiz Federal Jorge
Flaquer Scartezzini, proferiu a sentença (com 139 lau-
das) de procedência do pedido, e delimitou a atuação
daquele organismo repressivo:
(...) na hipótese, mesmo que se admita poderem os
agentes compelirem indivíduos a comparecerem
ao DOI/CODI, para colherem seus depoimentos,
não lhes era permissível prendê-los arbitrariamen-
te. Nessa linha, a única conclusão que se põe é de
que a prisão de Manoel Fiel Filho teve todos os fo-
ros de ilegalidade, por falta de pressupostos le-
gais.41

3. Justiça transicional: conceito e limitações de sua


prática

A justiça transicional como fenômeno social po-


de ser percebida tanto sobre a perspectiva histórica

40 A ação de indenização contra a União foi ajuizada perante a 5ª Vara


Federal de São Paulo, Autos nº 1298666.
41 Sentença de 17 de dezembro de 1980. Juiz Federal Jorge T. Flaquer

Scartezzini. Autos nº 1298666. Ação de indenização contra a União,


ajuizada perante a 5ª Vara Federal de São Paulo, p. 918.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 705

quanto jurídica. Na tentativa de constituir o marco his-


tórico da justiça transicional, Jon Elster descreve os
processos transicionais ocorridos ao longo da História,
percorrendo da Antiguidade Clássica até os recentes
acontecimentos do século XX. Os casos de justiça tran-
sicional, registrados desde a Antiguidade, demonstram
que tal fenômeno não é exclusivo dos regimes moder-
nos e nem mesmo dos democráticos.42
Deste modo, a reflexão sobre a vulnerabilidade
dos direitos humanos no Brasil, durante o período em
que militares, associados a civis, exerceram o poder
(1964-1985), não pode escusar-se de observar a catego-
ria experiência, a qual Edward Palmer Thompson pro-
põe como a compreensão da resposta mental emocio-
nal, seja de um indivíduo ou grupo social, a muitos
acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repeti-
ções do mesmo tipo de acontecimento.43
No período agitado de transição política, a mo-
tivação da justiça transicional ou dos agentes que pro-
movem o processo de “reparação” ou “prestação de
contas” baseia-se em uma tríade integrada pela (a) ra-
zão como concepção de justiça, (b) interesse e (c) emo-
ção.44 A partir da definição da motivação do processo
de “prestação de contas”, é o momento de resolver
problemas surgidos após o término do período autori-
tário, dentre eles destacam-se:
(a) como fazer com que os líderes do regime políti-
co anterior 'prestem contas' de seus atos políticos
e, também, dos crimes cometidos e impedir que
continuem exercendo influência política relevante
no futuro? (b) Como construir um novo – e melhor

42 ELSTER, Jon. Rendición de cuentas: la justicia transicional em

perspectiva histórica. Buenos Aires: Katz, 2006, p. 15.


43 THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de

erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 15.


44 ELSTER, Jon, op. cit., p. 101-102.
706 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

– regime político? (c) O que fazer com as vítimas


do regime político anterior? (d) Como conciliar a
busca por justiça – rápida, ágil e severa com os
criminosos – com a reestruturação econômica e po-
lítica da sociedade?45

A passagem institucional de um governo ditato-


rial para uma democracia não é suficiente para reconci-
liar a sociedade e sepultar as violações aos direitos
humanos. A justiça transicional pode ser compreendi-
da através de conjunto de medidas consideradas neces-
sárias para a superação de períodos de graves viola-
ções a direitos humanos, ocorridas no bojo de conflitos
armados (guerras civis) ou de regimes autoritários (di-
taduras).
Entretanto, considerada as particularidades de
cada sociedade, a justiça transicional implica a adoção
de medidas tendentes a, em primeiro lugar, esclarecer
a verdade, tanto histórica (mediante Comissões de
Verdade) quanto judicial (através de investigações das
instituições que compõem o sistema de justiça), através
da abertura dos arquivos estatais relacionados ao perí-
odo ditatorial. Em segundo lugar, realizar a justiça,
mediante a responsabilização dos violadores de direi-
tos humanos, notadamente os autores de crimes consi-
derados de lesa humanidade.
Na realização da justiça devem ser afastados
quaisquer óbices para a persecução penal, tais como
autoanistias, prazos prescricionais e limitações materi-
ais e políticas às investigações. Em terceiro lugar, repa-
rar os danos às vítimas. Esses são, portanto, os três
princípios básicos: verdade, justiça e reparação. A con-
cretização desses princípios é indispensável para a con-

45 SILVA, Alexandre Garrido da; VIEIRA, José Ribas. Justiça

transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no


Brasil. In. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v.
11, n. 22, 2º Sem., 2008, p. 21.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 707

secução de um quarto princípio, que consiste na não-


repetição.46
De outro lado, o conceito de justiça de transição
ou justiça transicional, ao ver de Cecília Macdowell dos
Santos, oferece importante marco teórico para se com-
preender as práticas jurídicas, sociais e políticas que
envolvem o trabalho da memória política e da justiça
histórica, embora também apresente algumas limita-
ções analíticas.47
Em relação ao significado do termo reparações,
Pablo De Greiff assevera que há dois contextos diferen-
tes do uso do termo. Na construção de concepção de
justiça para os programas de reparação administrativa,
em âmbito estatal, distinta daquela expressada através
dos conceitos jurídicos tradicionais de restituição e re-
paração na proporção do dano sofrido, convém ressal-
tar a necessidade de promoção do reconhecimento, da
confiança cívica e da solidariedade social. Com isso,
lembra De Greiff que o termo reparações, no contexto
jurídico do Direito Internacional,
se emplea, en un sentido amplio, para referirse a
todas aquellas medidas que pueden adoptarse pa-
ra resarcir los diversos tipos de daño que puedan

46 Conjunto de medidas extraído da Representação Criminal referente


ao Caso Vladimir Herzog, formalizada em 03 de dezembro de 2007,
pelo Procurador Regional da República Marlon Alberto Weichert
perante à Procuradoria da República em São Paulo, p. 12-13.
Disponível em:
<http://www.prr3.mpf.gov.br/component/option,com_remository/I
temid,68/func,select.>. Acesso em 14 de set. de 2012.
47 SANTOS, Cecília Macdowell dos. Questões de justiça de transição: a

mobilização dos direitos humanos e a memória da ditadura no Brasil.


In. SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília
Macdowell dos; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.), op. cit., p. 129.
708 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

haber sufrido las víctimas como consecuencia de


ciertos crímenes.48

De outro modo, para Jon Elster, há três princi-


pais limitações impostas à efetivação da justiça transi-
cional. Em primeiro lugar, destaca-se a questão das
cláusulas ou leis de anistia ou perdão como condição
política necessária para a transição negociada e a con-
solidação do novo regime político.49 Em segundo lugar,
surge a existência de limitações econômicas e adminis-
trativas para a implementação das diferentes dimen-
sões da justiça de transição.50
Prosseguindo, há também o problema das aspi-
rações incompatíveis, diante de um cenário de escassez
de tempo e de recursos, as quais impedem seja alcan-
çado, de uma só vez, a justiça veloz, ágil, severa, justa,
exaustiva e eficaz.51 O fator tempo associado à manifes-
tação das emoções se revela como importante limitação
das pretensões normativas da justiça transicional, no
momento em que “o desejo de retribuição diminui se é
demasiado longo o intervalo entre os crimes e a transi-
ção, e também se passa muito tempo entre a transição e
os julgamentos dos crimes”.52
Com relação ao Poder Judiciário, Jon Elster nos
lembra que “em muitos casos, o Poder Judiciário fez
parte do regime que deve ser julgado”, constituindo a
escassez de juízes “confiáveis” uma limitação muito
importante para a justiça de transição.53 Em consonân-

48 DE GREIFF, Pablo. Justicia y Reparaciones. In. DÍAZ, Catalina

(Editora). Reparaciones para las víctimas de la violencia política.


Bogotá: Centro Internacional para la Justicia Transicional, 2008, p. 304.
49 ELSTER, Jon, op. cit., p. 221.

50 Ibid, p. 243.
51 Ibid, p. 247.
52 Ibid, p. 260.
53 Ibid, p. 249.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 709

cia com este pensamento, temos que Anthony Pereira,


no caso brasileiro, assevera a existência de elevada co-
operação e integração entre os poderes Militar e Judici-
ário, durante a Ditadura Civil-Militar.
Deste modo, o padrão de repressão das ditadu-
ras está associado à variável fundamental do enigma
das variações da legalidade autoritária, a qual está di-
retamente relacionada ao consenso, à integração e à
cooperação entre os militares e o Judiciário.54 Sendo
assim, ao analisar a razão pela qual a Ditadura Civil-
Militar se deu o trabalho de judicializar a repressão, no
contexto brasileiro, Anthony Pereira demonstra que foi
construído na esfera judiciária um poder infraestrutu-
ral, o qual mudou o foco do nível macropolítico para os
micromecanismos de longo prazo, que passaram a ope-
rar entre dois conjuntos do aparato estatal: as elites
judiciárias, em especial os juízes, promotores e profes-
sores de direito, e os oficiais militares.55
De toda maneira, a partir de 1999, o Ministério
Público Federal, em São Paulo, iniciou suas atividades
no tocante à promoção da reparação às violações de
direitos humanos, perpetradas no período 1964-1985,
através do ajuizamento de ações civis públicas voltadas
para apurar a responsabilidade civil dos agentes dos
órgãos de repressão. Diante disto, é oportuno notar que
este conjunto de iniciativas, tanto das vítimas quanto
do próprio Estado, através das iniciativas do Ministério
Público Federal, ao ver de Cecília Macdowell dos San-
tos:
(...) têm em comum, não a pretensão de reparação
pecuniária ou de sanção penal, mas o reconheci-
mento de responsabilidade civil – estatal, nos pri-

54 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o

Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e


Terra, 2010, p. 283.
55 Ibid., p. 285.
710 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

meiros casos, pessoal, nos últimos. Os pedidos se


referem, entre outras coisas, à declaração judicial
da verdade dos fatos, ao esclarecimento das cir-
cunstâncias das mortes, desaparecimentos políti-
cos ou prisões arbitrárias. A memória política da
tortura, a memória dos mortos, desaparecidos po-
líticos e ex-presos políticos, o resgate, enfim, desta
memória é um dos principais objetivos dessas
ações judiciais.56

3.1 Atuação do Ministério Público Federal: Responsabilização e


Política de Memória

As iniciativas do Ministério Público Federal


(MPF), em São Paulo, voltadas para a promoção das
reparações às violações de direitos humanos, ocorridas
no período de 1964-1985, foram influenciadas por al-
guns acontecimentos, no plano internacional. Entre
eles, a prisão de Augusto José Ramón Pinochet Ugarte
e a atuação da justiça italiana, em referência à Opera-
ção Condor, no tocante à identificação e punição dos
responsáveis pelo desaparecimento forçado dos cida-
dãos ítalo-argentinos Lorenzo Ismael Viñas e Horacio
Domingo Campiglia.57
A atuação da justiça italiana pode ser observada
através do trabalho de Giancarlo Capaldo, Procurador
da República italiano, o qual investigou, desde 1998, a
morte de cidadãos, com nacionalidade italiana, detidos
durante o funcionamento da Operação Condor. No final

56 SANTOS, Cecília Macdowell dos. Questões de justiça de transição: a

mobilização dos direitos humanos e a memória da ditadura no Brasil.


In. SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília
Macdowell dos; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.), op. cit., p. 128.
57 FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Crimes da Ditadura:

iniciativas do Ministério Público Federal em São Paulo. In: KISHI,


Sandra A. Shimada; SOARES, Inês V. Prado (Coord.). Memória e
verdade: a justiça de transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo
Horizonte: Fórum, 2009, p. 220-21.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 711

do ano de 2007, a imprensa brasileira noticiou que a


justiça italiana determinou a busca e prisão de militares
e civis envolvidos na morte de 25 cidadãos com nacio-
nalidade italiana, no âmbito da Operação Condor, no
total 146 militares e civis sul-americanos.58
O contexto de possível punição jurídica aos en-
volvidos na prática de violações aos direitos humanos,
ocorridas no âmbito do DOI/CODI de São Paulo, é
marcado pela incoerência da prescrição e da Lei de
Anistia brasileira.59 O texto da Lei da Anistia de 1979
não abrange crimes cometidos pelos militares e polici-
ais contra os opositores políticos, tendo em vista que as
Forças Armadas negavam e ainda negam a prática de
qualquer crime. Disto resulta a questão: “como os cri-
mes dos militares podem ter sido anistiados se sequer
foram admitidos”?60
O início da atuação do MPF, em São Paulo, di-
ante dos crimes da Ditadura Civil-Militar, relaciona-se
a tarefa humanitária de buscar e identificar restos mor-
tais de desaparecidos políticos para entrega às respec-
tivas famílias. Em setembro de 1999, instaurou-se na
Procuradoria da República em São Paulo, o Inquérito

58 Dentre eles 13 brasileiros, 61 argentinos, 32 uruguaios, 22 chilenos, 7

bolivianos e 7 paraguaios, além de 4 peruanos, acusados de seqüestro,


massacre e homicídio múltiplo. Para maiores destalhes, ver a
reportagem de SEQUEIRA, Claudio Dantas. Itália exige punição. In.
Correio Braziliense, Brasília, 26 dez. 2007. Caderno Mundo, A16.
Disponível em:
<http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=
view&id=4387&Itemid=2.>. Acesso em 03 de jun. de 2012.
59 Sobre as discussões em torno do conceito de anistia política, importa

notar o trabalho de Lauro Swenson Júnior, sobre a validade da anistia


concedida em 1979, pois “[...] Quando um Estado decide não punir ou
diminuir a pena de certos criminosos, ele nunca perdoa, mas exerce
seu poder de clemência, comutando penas, concedendo anistia,
indulto ou graça”. Ver: SWENSON JUNIOR, Lauro Joppert.
Problemas de validade da Lei de Anistia Brasileira (Lei 6.683/79).
Curitiba: Juruá, 2010, p. 141.
60 FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. op. cit., p. 214.
712 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

Civil Público nº 06/1999, a partir da representação da


Comissão Especial dos Familiares de Mortos e Desapa-
recidos Políticos (CEMDP).61
Em 02 de março de 2009, o MPF, em São Paulo,
propôs Ação Civil Pública (ACP), relativa ao Caso Ma-
noel Fiel Filho, a qual trata dos reflexos cíveis decorren-
tes da prisão ilícita, torturas e homicídio de Manoel Fiel
Filho, por agentes do Destacamento de Operações de
Informações do Centro de Operações de Defesa Interna
(DOI/CODI) do II Exército, sediado em São Paulo, as-
sim como dos atos praticados por agente da Delegacia
da Ordem Política e Social (DOPS), peritos e médicos-
legistas do Estado de São Paulo, que participaram da
simulação da versão de suicídio para justificar a morte
do operário metalúrgico.62
Além da Ação Civil Pública, relativa ao Caso
Manoel Fiel Filho, a Procuradoria da República, em São
Paulo, e a Procuradoria Regional da República, na 3ª
Região, órgãos do MPF, propuseram mais cinco provi-
dências cíveis no tocante à promoção da responsabili-
zação pessoal de autores de torturas, desaparecimentos
forçados, homicídios e outros delitos, cometidos na
repressão à dissidência política durante a Ditadura Ci-

61 Acerca do surgimento da Comissão Especial dos Familiares de

Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), do histórico de


reivindicações e das lutas da Comissão em torno da Vala de Perus e da
Guerrilha do Araguaia, bem como sobre o processo indenizatório de
Carlos Lamarca e Carlos Marighella, convém salientar o trabalho de
Sheila Cristina Santos. Ver: SANTOS, Sheila Cristina. A Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a
reparação do Estado às vítimas da Ditadura Militar no Brasil.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2008.
62 Ver: Petição inicial Ministério Público Federal. Ação Civil Pública nº

2009.61.00.005503-0, proposta pelo Ministério Público Federal de São


Paulo, ajuizada perante a 11ª Vara Federal Cível de São Paulo, relativa
ao “Caso Manoel Fiel Filho”, p. 05.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 713

vil-Militar, assim como para a revelação da verdade


sobre esse processo histórico.63
Neste artigo, para alcançar o objetivo proposto,
fora analisada a Ação Civil Pública referente ao Caso
Manoel Fiel Filho. A seguir é apresentada a pretensão
detalhada desta Ação Civil Pública, ajuizada pelo Mi-
nistério Público Federal:64
1. declarar a existência de responsabilidade pes-
soal dos réus TAMOTU NAKAO, EDEVARDE
JOSÉ, ALFREDO UMEDA e ANTONIO JOSÉ
NOCETE perante a sociedade brasileira pela per-
petração de violações aos direitos humanos, me-
diante participação direta nos atos relativos à pri-
são ilícita, tortura e morte de MANOEL FIEL
FILHO e indireta na dissimulação das causas da
morte, declarando, também, a existência de relação
jurídica entre esses réus e a sociedade brasileira
consistente no dever de reparar os danos suporta-
dos pela coletividade em decorrência desses atos;

63 Dentre as providências relacionadas a essa temática encontram-se a

Ação Civil Pública, referente ao Caso DOI/ CODI de São Paulo, Autos
n.º 2008.61.00.011414-5, em trâmite na 8ª Vara Federal de São Paulo, a
Ação Civil Pública, acerca do Caso Ossadas de Perus, Autos n.º
2009.61.00.025169-4, em trâmite na 6ª Vara Federal de São Paulo, a
Ação Civil Pública, relativa ao Caso Desaparecidos Políticos - IML -
DOPS - Prefeitura SP, Autos n.º 2009.61.00.025168-2, em trâmite na 4ª
Vara Federal de São Paulo, a Ação Civil Pública, referente ao Caso
Policiais Civis no DOI-CODI/SP, Autos n.º 0018372-59.2010.4.03.6100,
em trâmite na 7ª Vara Federal de São Paulo e a Ação Civil Pública -
Caso OBAN, Autos n.º 0021967-66.2010.4.03.6100, em trâmite na 4ª
Vara Federal - São Paulo. Ver:
<http://www.prr3.mpf.gov.br/index.php?option=com_content&task
=view&id=143&Itemid=184>. Acesso em 25 fev. 2013.
64 Cabe destacar que o oficial do Exército Audir Santos Maciel,

comandante do DOI/CODI/II Exército no período em que ocorreu a


morte de Manoel Fiel Filho, não é apontado como réu nesta Ação Civil
Pública, tendo em vista que o mesmo é réu em outra ação referente ao
Caso DOI/ CODI de São Paulo, Autos n.º 2008.61.00.011414-5, movida
pelo Ministério Público Federal de São Paulo.

 
714 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

2. declarar a existência de responsabilidade pes-


soal dos réus ORLANDO DOMINGUES
JERÔNYMO, ERNESTO ELEUTÉRIO e JOSÉ
ANTONIO DE MELLO perante a sociedade brasi-
leira pela perpetração de violações aos direitos
humanos, mediante participação direta nos atos
de ocultação dos sinais de tortura e das circuns-
tâncias da morte de MANOEL FIEL FILHO e in-
direta na sua prisão ilegal, tortura e morte, decla-
rando, também, a existência de relação jurídica en-
tre esses réus e a sociedade brasileira consistente
no dever de reparar os danos suportados pela cole-
tividade em decorrência desses atos;

3. condenar todos os réus pessoas físicas, nomi-


nados nos itens 1 e 2 acima, a suportarem, solidá-
ria e regressivamente, o valor da indenização paga
pela União Federal aos familiares de MANOEL
FIEL FILHO, no montante de R$100.000,00 (cem
mil reais), atualizado monetariamente e acrescido
de juros moratórios pelos índices aplicáveis aos
créditos da Fazenda Nacional, desde a data do pa-
gamento (21/10/1997), deduzindo-se – na fase de
execução – eventuais valores que tenham sido sa-
tisfeitos pelo devedor solidário AUDIR SANTOS
MACIEL por força da condenação que vier a su-
portar nos autos da ação civil pública nº
2008.61.00.011414-5;

4. condenar todos os réus pessoas físicas, nomi-


nados nos itens 1 e 2 acima, a suportarem, solidá-
ria e regressivamente, o valor da indenização paga
pela União Federal aos familiares de MANOEL
FIEL FILHO, no montante de R$338.772,00 (trezen-
tos e trinta e oito mil, setecentos e setenta e dois
reais), atualizado monetariamente e acrescido de
juros moratórios pelos índices aplicáveis aos crédi-
tos da Fazenda Nacional, desde a data do paga-
mento (19/06/1997);

5. condenar todos os réus pessoas físicas, nomi-


nados nos itens 1 e 2 acima, a repararem os danos
morais coletivos, mediante pagamento de indeni-
zação a ser revertida ao Fundo de Direitos Difusos,

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 715

em montante a ser fixado na sentença, ou outra


providência razoável;

6. condenar todos os réus pessoas físicas, nomi-


nados nos itens 1 e 2 acima, à perda das funções e
cargos públicos, efetivos ou comissionados, que
estejam eventualmente exercendo na administra-
ção direta ou indireta de qualquer ente federativo,
bem como a não mais serem investidos em nova
função pública, de qualquer natureza;

7. cassar os benefícios de aposentadoria ou inati-


vidade de todos os réus pessoas físicas, nomina-
dos nos itens 1 e 2 acima, independentemente da
data em que foi concedido o benefício;

8. desconstituir os vínculos existentes entre todos


os réus pessoas físicas, nominados nos itens 1 e 2
acima, e o Estado de São Paulo, relativamente às
investiduras nos cargos públicos que ainda exer-
çam, bem como, conforme o caso, os vínculos rela-
tivos à percepção de benefícios de aposentadoria
ou inatividade;

9. declarar a omissão da União Federal e do Esta-


do de São Paulo no cumprimento de suas obriga-
ções de, logo após os fatos, investigar efetivamente
as circunstâncias e os responsáveis pela prisão ile-
gal, tortura e morte de MANOEL FIEL FILHO, as-
sim como declarar a responsabilidade desses entes
públicos pela ocultação, à época, da real causa de
sua morte, declarando, ainda, a existência de rela-
ção jurídica entre esses réus e a sociedade brasilei-
ra consistente no dever de reparar os danos imate-
riais causados por essas condutas;

10. condenar a União Federal e o Estado de São


Paulo a incluírem a divulgação dos fatos relativos
à morte de MANOEL FIEL FILHO em equipamen-
to(s) público(s) permanente(s) destinado(s) à me-
716 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

mória da violação de direitos humanos durante o


regime militar.65

Os autos judiciais da Ação Civil Pública, acerca


do Caso Manoel Fiel Filho, foram julgados, em apenas
4 (quatro) dias pela Juíza Federal Regilena Emy Fukuy
Bolognesi, em 06 de março de 2009. A sentença indefe-
riu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolu-
ção do mérito, com fundamento no artigo 267, inciso I,
c.c artigo 298, inciso III, ambos do Código de Processo
Civil. Cabendo destacar que a sentença aponta como
um dos motivos para o indeferimento o fato da morte
de Manoel Fiel Filho ter ocorrido “há muito passado”,
o que “por si só não originaria a alegada violação aos
direitos humanos suficiente a ser reparada à toda a
coletividade”.66
Diante disso, o Ministério Público Federal
(MPF) interpôs recurso de apelação67, passando a ale-
gar que a responsabilização requerida encontra sólido
fundamento na jurisprudência brasileira e internacio-
nal, tendo em vista tratar-se de delito qualificável como
crime contra a humanidade, no qual são afetados, por
óbvio, todos os cidadãos brasileiros. Outro ponto de
contestação na apelação é a fundamentação da senten-
ça de que seria facultado ao Poder Público, “segundo
juízo de conveniência e oportunidade”, a recuperação

65 Ver: Petição inicial Ministério Público Federal. Ação Civil Pública nº

2009.61.00.005503-0, proposta pelo Ministério Público Federal de São


Paulo, ajuizada perante a 11ª Vara Federal Cível de São Paulo, relativa
ao “Caso Manoel Fiel Filho”, fls. 79/80. Grifos nossos.
66 Ver: Sentença. Juíza Regilena Emy Fukuy Bolognesi. Ação Civil

Pública nº 2009.61.00.005503-0, proposta pelo Ministério Público


Federal de São Paulo, relativa ao “Caso Manoel Fiel Filho”, fls.
1904/1907.
67 Ver: Recurso de Apelação. Procuradora Eugênia Augusta Gonzaga

Fávero. Ação Civil Pública nº 2009.61.00.005503-0, proposta pelo


Ministério Público Federal de São Paulo, relativo ao “Caso Manoel Fiel
Filho”, fls. 1909/1935.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 717

regressiva ao erário dos valores gastos pela União com


as indenizações à família de Fiel Filho.
Contudo, o processo foi remetido ao Tribunal
Regional Federal da 3ª Região, em maio de 2009, para o
julgamento da apelação. Os autos judiciais foram dis-
tribuídos à 5ª Turma daquele Tribunal Regional Fede-
ral, sendo que em 14 de setembro de 2009 foi publicado
o Acórdão, decidindo, por unanimidade, dar provi-
mento ao recurso de apelação, interposto pelo MPF.
Com isso, até o momento da finalização deste artigo, a
Ação Civil Pública, referente ao Caso Manoel Fiel Fi-
lho, passou a fase de citação/contestação dos réus,
após o Tribunal Regional Federal da 3ª Região ter re-
formado a sentença que extinguia o processo.

Considerações Finais

O Estado brasileiro, a fim de efetivar o processo


de acerto de contas com o seu passado, herança da Di-
tadura Civil-Militar (1964-1985), como revela a análise
do caso do operário metalúrgico Manoel Fiel Filho,
deve envidar esforços para criar mecanismos capazes
de desenvolver políticas de memórias efetivas como a
instituição de espaços de memórias, além de promover
a responsabilização civil-militar pelas violações de di-
reitos humanos ocorridas no desempenho da função
pública, por agentes de segurança.
Dos desdobramentos do estudo realizado, re-
corre que outra medida singular trazida pelas iniciati-
vas do MPF, em São Paulo, a qual merece o indicativo
da continuidade, é a promoção de ações cíveis voltadas
para a reparação dos gastos públicos destinados à in-
denização financeira de vítimas e de familiares, dos
abusos cometidos por agentes do Estado durante a Di-
tadura Civil-Militar (1964-1985).
De toda maneira, é necessário enfatizar a urgên-
cia de se afirmar a omissão da União Federal e do Es-
tado de São Paulo no cumprimento de suas obrigações
718 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

de, logo após os fatos, investigar efetivamente as cir-


cunstâncias e os responsáveis pela prisão ilegal, tortura
e morte do operário Manoel Fiel Filho, bem assim co-
mo declarar a responsabilidade desses entes públicos
pela ocultação, à época, da real causa de sua morte.
A morte de Manoel Fiel Filho não é lembrada,
atualmente, pelo Estado brasileiro, de forma a colabo-
rar com o conjunto de medidas de reparação às viola-
ções de direitos humanos, perpetradas no período de
1964-1985. Deste modo, o conhecimento histórico das
violações de direitos humanos, daquele período, não
deve ser elaborado a partir de perspectiva que coloque
os intelectuais em vantagem sobre os operários, pondo-
se esses últimos como personagens secundários de
uma trama histórica.
Por fim, das medidas propostas pelo MPF, aque-
la que será capaz de trazer significativa mudança para
a formação da memória das violações de direitos hu-
manos, do período de 1964-1985, trata-se da condena-
ção da União Federal e do Estado de São Paulo, voltada
a inclusão da divulgação dos fatos relativos à morte de
Manoel Fiel Filho, em equipamentos públicos perma-
nentes destinados à memória das violações de direitos
humanos.

Fontes consultadas

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01041, de 17 de Janeiro de 1976, do Instituto de Crimina-
lística de São Paulo. Encartado no Inquérito Policial-
Militar, integrante da Ação Ordinária nº 1298666, da 5ª
Vara Federal de São Paulo.
Laudo de Exame de Corpo de Delito nº 1781, de 21 de
Janeiro de 1976, do Instituto Médico Legal do Estado de
São Paulo. Encartado no Inquérito Policial-Militar, inte-
grante da Ação Ordinária nº 1298666, da 5ª Vara Federal
de São Paulo.

 
Responsabilização e reparação pós-ditadura civil-militar 719

Panfleto sem autoria, encontrado pendurado por gancho,


na passarela da Avenida Brasil, na subestação de Trans-
portes, em Manguinhos, no Rio de Janeiro. Disponível
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clandestina/panfleto-denunciando-a-morte-de-manoel-
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subversão – Situação atual e perspectivas. Monografia.
Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Rio de
Janeiro, 1978. Documento Confidencial. Encartado no
Anexo 4 da peça inicial da Ação Civil Pública nº
2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público
Federal de São Paulo, relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”.
Petição inicial Ministério Público Federal. Ação Civil Pú-
blica nº 2009.61.00.005503-0, proposta pelo Ministério Pú-
blico Federal de São Paulo, ajuizada perante a 11ª Vara
Federal Cível de São Paulo, relativa ao “Caso Manoel Fiel
Filho”.
Recurso de Apelação. Procuradora Eugênia Augusta
Gonzaga Fávero. Ação Civil Pública nº 2009.61.00.005503-
0, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo,
relativo ao “Caso Manoel Fiel Filho”.
Representação Criminal referente ao Caso Vladimir Her-
zog, formalizada em 03 de dezembro de 2007, pelo Procu-
rador Regional da República Marlon Alberto Weichert
perante à Procuradoria da República em São Paulo. Dis-
ponível em:
<http://www.prr3.mpf.gov.br/component/option,com_
remository/Itemid,68/func,select.>Acesso em setembro
de 2012.
Sentença de 17 de dezembro de 1980. Juiz Federal Jorge T.
Flaquer Scartezzini. Autos nº 1298666. Ação de indeniza-
ção contra a União, ajuizada perante a 5ª Vara Federal de
São Paulo.
720 Diego Oliveira de Souza & Diorge Alceno Konrad

Sentença de 06 de março de 2009. Juíza Regilena Emy


Fukuy Bolognesi. Ação Civil Pública nº 2009.61.00.005503-
0, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo,
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O discurso tectônico do judiciário
Subversão, política e legalidade a partir dos
casos mãos amarradas e sequestro dos
uruguaios

Vanessa  Dorneles  Schinke1  

Resumo: O texto apresenta o discurso tectônico do Po-


der Judiciário brasileiro em casos notórios que envol-
veram situações de cooperação do poder público com
atos de violações aos direitos humanos durante a dita-
dura militar brasileira. A análise parte da atuação do
judiciário em dois processos criminais e em dois pro-
cessos indenizatórios, todos decorrentes de fatos ocor-
ridos nas décadas de 60 e 70. O caso das mãos amarradas
diz respeito ao assassinato de um ex-sargento do exér-
cito, torturado no DOPS, levado à Ilha do Presídio no
Rio Guaíba, vítima de novas torturas, assassinado por
militares em 1966, cujo corpo foi encontrado boiando
no Rio Jacuí, com as mãos amarradas para trás. O se-
gundo, conhecido como o sequestro dos uruguaios, evi-
dencia a forte cooperação entre as forças militares do
Brasil e do Uruguai, no grande contexto da Operação
Condor.

1 Doutoranda em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente e pesquisadora na


linha de Violência, Controle Social e Segurança Pública. Mestre em
Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Contato:
vanessa.schinke@gmail.com

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
O discurso tectônico do judiciario 725

Palavras-chave: Judiciário. Reformas institucionais.


Legalidade. Discursos.

Abstract: The paper presents the tectonic discourse of


the Brazilian judiciary in notorious cases involving sit-
uations of cooperation by the government in acts of
human rights violations during the Brazilian military
dictatorship. The analysis of the role of the judiciary in
two criminal cases and in two cases indemnity, all aris-
ing from events that occurred in the 60s and 70s. The
case of tied hands concerns the murder of a former ar-
my sergeant, in DOPS tortured, taken to Prison Island
in Rio Guaiba, victim of new tortures, murdered by the
military in 1966, whose body was found floating in the
Rio Jacuí with his hands tied behind him. The second,
known as the kidnapping of the Uruguayans, evidence
of the strong cooperation between military forces in
Brazil and Uruguay, in the great context of Operation
Condor.
Keywords: Judiciary. Institutional reforms. Legality.
Speech.

Introdução

Os processos judiciais analisados neste texto


ilustram elementos relevantes sobre a atuação do Poder
Judiciário durante o período da ditadura militar brasi-
leira. Poder-se-ia dizer que, de um lado, aparecem ex-
pressões conformadoras com o regime e, de outro, uma
ânsia pela necessidade de respeito aos direitos huma-
nos dos envolvidos. Os discursos entrelaçam-se a pon-
to de não se tornarem identificáveis, revelando a com-
plexidade que o emaranhado de expressões representa.
Complexidade que transparece e vai além da constante
utilização de adjetivos amarrados a princípios enraiza-
dos em uma suposta cultura democrática, instrumenta-
lizados, todavia, para aplicar a legalidade do poder
instituído. Os processos utilizados nessa pesquisa de-
726 Vanessa Dorneles Schinke

correm de dois fatos que tiveram grande repercussão


nos meios de comunicação e, talvez por isso, tenham
recebido maiores cuidados com suas instruções.
Como substrato de uma reflexão para essa aná-
lise recorreu-se às noções de razão vulgar e razão ardilo-
sa, desenvolvidas pelo professor Ricardo Timm de
Souza. Valendo-se do cerne crítico da própria ideia de
crítica. Surge, pois, a necessidade de renovar a crítica
das razões vigentes, propiciando uma correlação entre
a interpretação sobre a postura do judiciário nos casos
ora analisados com elementos que indiquem, em maior
ou menor grau, a persistência, nos dias de hoje, de pro-
cedimentos e interpretações adotados há cinquenta
anos e mantidos durante os vinte e um anos de ditadu-
ra civli-militar.
A razão vulgar apresenta-se como a razão indi-
ferente de cada dia, que homogeneiza a ação violenta
do real, com aparência de variedade infinita de signifi-
cantes. Aparência que não é senão jogo infinito de es-
pelhos que se refletem mutuamente, sendo, porém,
apenas autorreplicantes, pois a alternativa verdadeira é
rara e encontra-se em um espaço forjadamente inóspi-
to. Hegemônica, nada faz senão reafirmar a vulgarida-
de homogênea do indiferenciado, do indiferente. Para
ela, pensar é perigoso. Servil, a razão vulgar é o campo
de concentração do pensamento, em que são agrupados
os estímulos incapazes de sobreviver à dinâmica feroz da
dialética dos interesses; seu único argumento é não ter
argumento nenhum e disso se orgulhar.
Será racista, se a maioria o for; apoiará o populis-
mo punitivo, pois penderá sempre à obviedade;
correrá a linchar alguém, se essa for a vontade da
massa; clamará por pena de morte, pois em ne-
nhuma hipótese pretende compreender o que está
para além do mais raso dos discursos que se ade-
reça com o lustro de argumentos capciosos que
não resistiriam a um grão de crítica, se ela ainda
existisse no campo das possibilidades da vulgari-
dade. Pois a razão vulgar é a expressão do huma-

 
O discurso tectônico do judiciario 727

no feito massa, de-generado, qual lava indiferencia-


da, que se amolda sem excessiva dificuldade ao
formato daquilo que a possa conter e suportar e
que logo se empedra em sua própria intransparên-
cia.2

Encontra-se amalgamada à razão ardilosa, cuja


subsistência depende da habilidade em escamotear
tanto suas razões reais, quanto suas reais finalidades:
aquilo que dá o que pensar – a quantificação violenta
do mundo e a anulação do tempo. A razão ardilosa apre-
senta, pois, inúmeras razões possíveis para que a vul-
garidade da própria razão vulgar permaneça em seu
lugar; seu arsenal de ferramentas destinadas a estereli-
zar o novo é enorme, pois disso depende seu sucesso.
Cerca-se, então, de cuidados e credibilidades procu-
rando não chocar, evitando o que pode ser perigoso.
Tem como tarefa sustentar a violência e a vulgaridade
do mundo, como um exoesqueleto altamente cerebral.
O meio-tom intelectual é seu registro, já que não pode
mostrar a que veio, mas apenas o que transparece em
sua retórica de intenções. Desde sua seiva argumenta-
tiva, é capaz de justificar o injustificável, de legitimar o
ilegitimável e de adocicar a violência. Articulando es-
sas duas ideias, o autor indica, ao final, a necessidade
de trilhar a passagem da razão vulgar-ardilosa (ins-
trumental) para uma racionalidade ética, guiada pelo
intuito de combater o pensamento que negue a injusti-
ça.
A razão ardilosa, contraponto exato da razão vul-
gar e, simultaneamente, sua outra face, sabe exa-
tamente em que consiste e a que veio; mas sua
subsistência depende de sua simultânea habilida-
de de escamotear tanto suas razões reais, quanto

2 SOUZA, R. T. 2010. O Nervo Exposto: por uma crítica da ideia de

razão desde a racionalidade ética. In: R. M. C. GAUER (org.),


Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II [recurso
eletrônico], Porto Alegre, EDIPUCRS, p. 111.
728 Vanessa Dorneles Schinke

suas reais finalidades, ou seja, em escamotear a re-


alidade, aquilo que dá o que pensar: a quantifica-
ção violenta do mundo e a anulação do tempo, ou
seja, a redução do outro ao mesmo. Dá conta do
que lhe perguntam, mas apenas disso; oferece con-
forto a quem navega nos mares tempestuosos da
existência; demarca desde sempre seu âmbito de
validade, destilando algo que se costuma interpre-
tar como modéstia e prudência e que a torna tão
atrativa para espíritos inteligentes medianos.3

O material aqui utilizado é capaz de denotar as-


pectos que se aliam às propostas de razão menciona-
das. Evidentemente que o estudo não se presta a gene-
ralizações ou a reducionismos, mas revela ricos ele-
mentos que podem contribuir para a reflexão sobre a
atuação de segmentos e/ou de instituições do Estado
que, de certa forma, naturalizaram as conotações de
sentido propostas pelo regime ditatorial como instru-
mento de legitimação.

1. O caso das mãos amarradas: subversão, tortura e


a legalidade autoritária

Em 30 de julho de 1964 Manoel Raimundo Soa-


res, até então Sargento do Exército Nacional, foi expul-
so do serviço ativo com base no Ato Institucional nº 01,
artigo 7º, por motivos ideológicos, notadamente por ter
ligação com o Movimento Legalista. Em 11 de março
de 1966, por volta das 16:30h, em frente ao Auditório
Araújo Viana, na cidade de Porto Alegre, foi preso ar-
bitrariamente por sargentos do exército e conduzido à
Companhia de Polícia do Exército, de onde foi transfe-

3 SOUZA, R. T. 2010. O Nervo Exposto: por uma crítica da ideia de

razão desde a racionalidade ética. In: R. M. C. GAUER (org.),


Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II [recurso
eletrônico], Porto Alegre, EDIPUCRS, p. 114.

 
O discurso tectônico do judiciario 729

rido para o DOPS. Neste Departamento foi torturado


durante mais de uma semana. Em 19 de março de 1966,
foi levado à Ilha do Presídio, localizada no Rio Guaíba,
de onde remeteu cartas para sua esposa, nas quais soli-
citava providências para sua libertação. Em 13 de agos-
to de 1966, foi novamente levado ao DOPS, onde foi
vítima de novas torturas, agora sob as ordens de outros
Tenentes-Coronéis. Neste mesmo dia, foi colocado em
um jipe do Exército e levado para o Rio Jacuí, onde foi
assassinado por militares e policiais do DOPS. Em 24
de agosto de 1966, seu corpo foi encontrado boiando,
com as mãos amarradas, no Rio Jacuí. Esse fato origi-
nou uma ação penal e uma ação indenizatória, cuja
autora foi a viúva, Elizabeth Chalupp Soares.4
Essa parte do trabalho debruçou-se sobre duas
ações judiciais decorrentes do fato acima descrito: uma
criminal, ajuizada contra agentes do exército brasileiro;
outra de indenização, cujos réus foram a União, o Esta-
do do Rio Grande do Sul e militares. As manifestações
dos juízes e das partes são incontáveis. Dessa forma,
alguns ínfimos aspectos serão destacados, a fim de
propiciar a reflexão sobre a posição conflituosa das
instituições pertencentes ao sistema de administração
da justiça do país.
Em 1975, o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul manifestou-se, em acórdão, decidindo pela im-
pronúncia dos agentes públicos denunciados pelo Mi-
nistério Público pelo crime de homicídio qualificado
por asfixia. A assimilação dos procedimentos adotados
pelos órgãos de repressão ganham destaque desde o

4
Salienta-se que o texto não tem como objetivo discutir todas as
minúcias dos casos selecionados (mãos amarradas e sequestro dos
uruguaios), mas refletir sobre as manifestações institucionais do Poder
Judiciário no contexto ditatorial civil-militar. Quanto ao mãos
amarradas, o caso possui diversos estudos e publicações a seu respeito,
dentre as quais: O DIREITO NA HISTÓRIA. O Caso das Mãos
Amarradas. Porto Alegre: Tribunal Regional Federal da 4ª Região, n. 1,
mar./out. 2008. Edição Especial.
730 Vanessa Dorneles Schinke

relatório elaborado pelo Relator da causa até os votos


que se seguiram. A normalização de posturas como o
monitoramento de pessoas é revestida sob o argumen-
to tecnicista de ausência de nexo da causalidade. No
caso, a vítima fora posta em liberdade (do Presídio da
Ilha) em 13 de agosto e seu corpo aparecera boiando no
Rio Jacuí nove dias depois.
Esse ínterim entre a soltura e o aparecimento do
corpo serviu de substrato fático para o raciocínio técno-
formal utilizado no julgamento pois, segundo o Rela-
tor, seria evidente que os órgãos militares saberiam o
paradeiro de uma pessoa tachada como subversiva: se
fosse assim, denunciados e pronunciados deveriam ser todos
os funcionários da Ilha do Presídio, onde estivera detido a
vítima e os agentes do DOPS naquele período.5 Não seria
admissível, então, que um órgão como o DOPS não
mantivesse um detalhado monitoramento dos passos
de alguém, cujo posicionamento político fosse notori-
amente contrário ao poder instituído. Além disso, os
agentes públicos passaram facilmente de denunciados
a vítimas de uma tentativa de aviltar o desempenho de
suas funções.
Foi solto e depois de solto desapareceu. Então se
imputou à autoridade policial a participação na
morte desse homem com as mãos amarradas. A
polícia seria tão inocente que iria amarrar as mãos
desse homem, jogá-lo no rio, sabendo que a cor-
rente, de acordo com o vento, o traria consequen-
temente para o lado da ponte, como querendo tra-
zer ao conhecimento de todos a morte do homem

5
“A título de hipótese, não seria defeso atribuir a morte de Manoel
Raimundo Soares a seus ex-companheiros de ideologia política,
interessados no seu desaparecimento, estancando uma perigosa e
possível fonte de informações, de par com o criar um clima adverso
aos detentores do poder instituído, lançando-os no descrédito popular
e na condenação dos povos civilizados.” Recurso Crime nº 16.336.
Câmara Criminal Especial de Porto Alegre. Acórdão proferido em
29.09.1975. Relator Des. Cristovam Daiello Moreira.

 
O discurso tectônico do judiciario 731

com as mãos amarradas. O que para mim se fez na


denúncia é uma hipótese contra ela.6

Expressões como subversivo, por exemplo, apa-


recem seguidas de explicações sobre a impossibilidade
de posicionamento político do Poder Judiciário. O su-
posto véu tecnicista reveste um posicionamento subs-
tancialmente nutrido pelo status quo ditatorial, pois
além de agentes do DOPS, ninguém vira Manoel Rai-
mundo Soares retirar-se daquela repartição e, ainda
que saísse em liberdade, face sua qualificação de subversi-
vo, os agentes continuariam a vigiá-lo e a seberem seu para-
deiro. Inconcebível era acreditar não soubesse o DOPS, um
dos órgãos de segurança do Estado, dos destinos de um sub-
versivo recém posto em liberdade.7
Ao proferir suas decisões, o judiciário aparece
como um elemento de tutela da promessa civilizatória
dos povos, na medida em que evita a desgraça da na-
ção, a partir de seus entendimentos assentados na pu-
reza da lei, entendida desde sempre como legítima. O
povo brasileiro, então, surge desfigurado e incapaz de
adotar posicionamentos à altura do raciocínio constru-
ído pelos poderes instituídos. A atuação judicial é des-
provida de qualquer cunho político e afastada das pai-
xões. Após citar Oliveira Vianna, afirma o Relator: ex-
trapola a atividade jurisdicional resolver problemas políticos.
Embora seja uma das manifestações vivas e atuan-
tes da soberania do Estado Federal, o Judiciário é
um poder desarmado e o respeito a suas decisões
depende do grau de evolução cultural do povo, da
estatura de estadista dos condutores políticos e da

6
BRASIL. Recurso Crime nº 16.336. Câmara Criminal Especial de
Porto Alegre. Acórdão proferido em 29.09.1975. Relator Des.
Cristovam Daiello Moreira. Voto do Presidente da Câmara,
Desembargador José Silva.
7
BRASIL. Recurso Crime nº 16.336. Câmara Criminal Especial de Porto
Alegre. Acórdão proferido em 29.09.1975. Relator Des. Cristovam Daiello
Moreira.
732 Vanessa Dorneles Schinke

estrutura moral dos detentores da força. Eviden-


temente, a nação brasileira não atingiu, ainda, o es-
tágio das nações anglo-saxônica no culto ao Poder
Judiciário.8

A violação do devido processo legal e de garan-


tias básicas do ser humano passam quase despercebi-
das diante da naturalização discursiva desses compor-
tamentos. A utilização de métodos violentos para ob-
tenção de informações e a disseminação dessas práticas
dentro dos órgãos de repressão são claramente regis-
tradas, a fim de afastar a possibilidade de responsabili-
zação dos agentes públicos.
Ao derradeiro, assume relevância o concluído no
auto de necropsia: “A causa imediata da morte foi
afogamento. Permite-se afirmar que a vítima inge-
riu álcool e no momento da morte se encontrava
em estado de embriaguez alcóolica.” Os recorridos
são policiais experimentados, vividos e, de acordo
com o usual, não iriam embriagá-la para depois
submetê-la ao “caldo” a fim de obter informações.
A experiência e a mais rudimentar razão os levari-
am unicamente a sujeitá-la ao “caldo” se elemen-
tos quisessem obter. Desnecessário embriagá-la e
matá-la, com isso eliminando um elemento valioso
no contexto informacional. É da história da huma-
nidade a existência de homicídios, cujos autores
jamais foram identificados.9

Percebe-se que a organização dos argumentos


tenta deslegitimar a denúncia realizada. A intercalação
entre expressões tecnicistas e raciocínios eminentemen-
te relacionados e posicionamentos políticos da época

8
BRASIL. Recurso Crime nº 16.336. Câmara Criminal Especial de
Porto Alegre. Acórdão proferido em 29.09.1975. Relator Des.
Cristovam Daiello Moreira.
9
BRASIL. Recurso Crime nº 16.336. Câmara Criminal Especial de
Porto Alegre. Acórdão proferido em 29.09.1975. Relator Des.
Cristovam Daiello Moreira.

 
O discurso tectônico do judiciario 733

configura uma alternância significativa que tende a


afastar qualquer possibilidade de responsabilização
dos denunciados, seja a partir da constatação de ausên-
cia de elementos básicos para uma condenação penal
(como o nexo causal), seja desde um prosaico conheci-
mento da disseminada utilização de métodos de tortu-
ra. O substrato maior é o argumento de que, invaria-
velmente, tais fundamentações estariam distanciadas,
por natureza, de qualquer viés politico. A manifestação
do presidente da Câmara, Des. José Silva, após o voto
do Relator, espelha a base antitética da construção ar-
gumentativa realizada. A própria legislação autoritária
da época é destacada como um divisor de águas entre
pessoas que comportam-se, ou não, de forma social-
mente aceitável, colocando em pauta, então, o que seri-
am manifestações de resistência à legalidade autoritá-
ria e à farta utilização de métodos de tortura. Note-se
que a palavra lei aparece diversas vezes como sinônimo
da normatividade instituída, circunstância que apre-
sentava o judiciário como um simples instrumento de
aplicação do arcabouço legislativo vigente, indepen-
dentemente do grau de arbitrariedade que possuísse. É
igualmente plausível, por outro viés, que a aplicação
da legalidade autoritária tenha sido realizada de forma
lúcida, deixando rastros de que a cooperação do judici-
ário com a ditadura civil-militar não se restringiu aos
relacionamentos entre os altos escalões dos poderes
Executivo e Judiciário, podendo ter alcançado extensos
níveis verticais de materialização, alcançando decisões
em casos concretos disseminados pelo país.
No caso presente, a repercussão foi trazida de uma
maneira estranha. A repercussão que o caso teve
foi como que produzida e orientada por algum
grupo mais ou menos habitual em tais manobras.
Devo consignar que do relatório de S. Exa. me
chamou a atenção, um elemento que desde logo
destaco, que o grupo partidário a que a vítima per-
tencia, grupo que, para felicidade do Brasil, está à
margem da lei. (...) A maneira como ele apareceu
734 Vanessa Dorneles Schinke

de mãos amarradas representa, sem dúvida, uma


forma de agir destes grupos, agressivos e violen-
tos, que desonram o Brasil nessa ocasião. (...) Estes
grupos, que normalmente são maquiavélicos,
achou de interesse lançar a morte desse homem
sobre os policiais.10

As contradições reiteram-se. A mesma compe-


tência que os funcionários do DOPS possuiriam para
dar um caldo na vítima, com o propósito de obter in-
formações, é novamente invocada para afastar qual-
quer descuido no ocultamento do corpo. Paralelamente
a tais argumentos, invoca-se a ausência de um dos
elementos da Teoria Geral do Delito, de forma a im-
possibilitar o deferimento do recurso do Ministério
Público a fim de pronunciar os réus – a não ser, se-
guindo o raciocínio do Relator, que a decisão fosse pro-
ferida com base em entendimentos políticos.
A ação indenizatória ajuizada pela viúva, em
1973, traz interessantes elementos sobre o sistema de
administração da justiça, inclusive sobre a morosidade
judicial e sobre eventual despreparo de servidores pú-
blicos aliado às arcaicas diretrizes institucionais que,
em regra, nutrem algumas entidades.
Destacar-se-á nesta ação um despacho saneador
juntado ao processo, proferido em outra ação indeniza-
tória também ajuizada por ex-integrante do exército,
em razão da sua caracterização como subversivo e terro-
rista, que acarretou sua expulsão do exército. Em res-
peito ao princípio da legalidade e na impossibilidade
de condenação penal sem lei anterior que preveja o
crime, utilizou-se o argumento de que a Lei nº 4.898/65
(Abuso de Autoridade) não seria aplicável ao caso, pois

10
BRASIL. Recurso Crime nº 16.336. Câmara Criminal Especial de
Porto Alegre. Acórdão proferido em 29.09.1975. Relator Des.
Cristovam Daiello Moreira. Voto do Presidente da Câmara,
Desembargador José Silva.

 
O discurso tectônico do judiciario 735

fora publicada em data posterior ao Ato Institucional


nº 1 (AI1), de abril de 1964. Somara-se a isso o argu-
mento de que os Coronéis denunciados não eram par-
tes legítimas na ação, pois o Decreto que expulsou o
autor do exército foi proferido pelo então Presidente da
República.
Perceba-se que o argumento da legalidade utili-
zado no caso concreto serviu para tornar impossível a
apreciação do fato pelo juiz, pois, se a Lei nº 4.898/65
era posterior ao Ato Institucional nº 1, estar-se-ia vio-
lando o princípio da anterior previsão legal do delito e,
hipoteticamente, se fosse anterior, o juiz argumentara
que, em razão da redação do AI1, artigo 7º, §4º, a apre-
ciação dessa espécie de fato ficaria excluída do controle
jurisdicional.
De qualquer forma, eram dois argumentos (le-
galidade e legitimidade das partes) de cunho restritivo
e emitentemente técnico que assegurariam, em tese, o
devido processo e as garantias elementares do Estado
de Direito. Entretanto, no mesmo despacho há transcri-
ção da regra que integrou boa parte dos atos instituci-
onais, qual seja: o controle jurisdicional desses atos limitar-
se-á ao exame de formalidades extrínsecas, vedada a aprecia-
ção dos fatos que o motivaram, bem como da sua conveniên-
cia ou oportunidade. Note-se o paradoxo da manifesta-
ção: na mesma manifestação judicial há argumentos
que tentam solidificar o respeito às garantias legais do
indivíduo e que asseguram que o judiciário não poderá
se manifestar sobre condutas que, por natureza, violam
essas mesmas garantias.11
A ação indenizatória proposta por Elizabeth
Chalupp Soares foi autuada em 13 de agosto de 1973. A
sentença de primeira instância foi proferida em 2000 e
a de segunda instância em 2005. Elizabeth faleceu em

11
BRASIL. Justiça Federal. Seção Judiciária do Rio Grande do Sul.
Ação Ordinária. 5ª Vara Federal. Processo nº 88.00.09436-8, de
13.08.1973, fls. 231 e 232.
736 Vanessa Dorneles Schinke

2009 e o processo encontra-se em fase de execução,


após habilitação da filha de criação do casal. O proces-
so foi tombado e pode ser encontrado no Arquivo Judi-
cial do Rio Grande do Sul.

2. O sequestro dos uruguaios: cooperação


internacional, subversão e hierarquia

No dia 12 de novembro de 1978, em Porto Ale-


gre, o apartamento onde a uruguaia Lilian Celiberti
residia com seus filhos, um de 8 e outro de 3 anos, foi
invadido por homens armados e desprovidos de qual-
quer mandado judicial. As crianças foram levadas para
a sede da Secretaria de Segurança do Estado/RS, onde
permaneceram por alguns dias até serem levadas para
o Uruguai. Enquanto isso, a mãe, que possuía perma-
nência legal no Brasil, foi coagida a permanecer no
apartamento até dia 17 do mesmo mês, quando foi en-
contrada por dois jornalistas que haviam recebido um
telefonema anônimo, procedente de São Paulo, suspei-
tando da incolumidade dos moradores daquele ende-
reço. Os jornalistas foram recebidos, revistados e inter-
rogados por agentes policiais armados que estavam à
espera de pessoas ligadas a movimentos subversivos que
manteriam contato com a família uruguaia.
Universindo Diaz12, companheiro de Lilian, di-
rigiu a Federação dos Estudantes de Medicina e inte-
grou a direção da Federação dos Estudantes Universi-
tários do Uruguai. Lilian integrava a Associação dos
Estudantes do Magistério, figurando em uma nominata
de professores que apoiava o Grupo dos 70 do Magis-
tério Uruguaio, que repudiava a Lei de Ensino. Foi pre-
sa e torturada e, em 1974, deportada para a Itália. En-
quanto isso, Universindo exilava-se na Argentina. Pos-
teriormente, encontraram-se na Europa, na condição de

12
Falecido em 2012.

 
O discurso tectônico do judiciario 737

refugiados políticos, sob proteção do Alto Comissaria-


do das Nações Unidas. No Uruguai eram filiados ao
Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), circunstância que
os motivou a viajar da Europa para o Brasil e radica-
rem-se em Porto Alegre, onde poderiam ajudar nas
ideias de reconstrução democrática de seu país.
Em Porto Alegre, prontificaram-se a distribuir
um jornal mensal editado pelo PVP chamado Compañe-
ro e, ao mesmo tempo, passar informações à imprensa
brasileira sobre os acontecimentos que ocorreram no
Uruguai, a partir de julho de 1973, quando Bordaberry
assumira o poder. Todavia, antes de transmitir infor-
mações à imprensa brasileira, foram delatados. Outros
amigos de Lilian e Universindo também foram presos e
acabaram fornecendo dados sobre o paradeiro do casal.
A Companhia de Contra Informações do Uruguai en-
viou militares ao Brasil, mas não obteve sucesso em
localizá-los.13 Acionaram, então, o Departamento de
Ordem Política e Social.
O evento, por si só, revela a cooperação entre os
órgãos de segurança do Brasil e do Uruguai para a
identificação e captura de pessoas que pudessem, de
alguma forma, questionar os respectivos ditames dos
regimes instituídos.
Debruçando-se sobre as ações decorrentes do fa-
to mencionado surgem outros elementos que transpa-
recem a contradição entre argumentos, de forma a ca-

13
Conforme o Comunicado nº 1400, da Oficina de Imprensa das Forças
Conjuntas Uruguaias, de 25 de novembro de 1978: Universindo
RODRIGUEZ DIAZ y Liliana CELIBERTI ROSAS DE CASARIEGO y
dos hijos menores de edad de ésta última, habrian desaparecido de la
ciudad de Porto Alegre, se pone en conocimiento de la población: que
los mismos fueron detenidos por las Fuerzas Conjuntas al penetrar a
territorio uruguayo, hallándose en su poder material sedicioso, que
ratifica las informaciones que se poseían sobre sus actividades en
varios países, integrando uma vasta organización internacional
marxista. URUGUAI. COMUNICADO Nº 1.400. DA OFICINA DE
PRENSA DE LAS FUERZAS CONJUNTAS DECRETO Nº 393/973.
Montevidéu, 25 de Novembro de 1978.
738 Vanessa Dorneles Schinke

racterizar uma anuência com as violações aos direitos


humanos decorrentes das ditaduras militares. Veja-se,
por exemplo, a argumentação realizada pelo juiz na
ação indenizatória, de forma a admitir a realização de
prisões arbitrárias e demais atos violentos, diante do
contexto social da época.
Poder-se-ia argumentar que dadas as circunstân-
cias, na época, por razões de segurança, as prisões,
e posterior remoção do casal, não poderiam seguir
os trâmites regulares ou normais e de qualquer de-
tenção ou prisão. Aliás, dada a natureza e os moti-
vos alegados para a prisão o sucesso da operação
estaria condicionado ao absoluto sigilo. (...) Insti-
tucionaliza-se, por assim dizer, o consentimento
com relação a atos praticados com abuso por auto-
ridades policiais ligadas aos serviços de informa-
ções encarregados do combate à subversão. Se, por
sua própria natureza, tais operações (detenções e
prisões), quando justificadas, desaconselham a
adoção de formalidades legais num primeiro mo-
mento, tais como rapidez e sigilo, não é menos
verdade que tais atos devem revestir um mínimo
de justificativa, proporcionalidade da ação repres-
siva em relação à gravidade do delito.14

Paralelamente, o argumento que busca caracte-


rizar o abuso dos policiais envolvidos é o mesmo que
reforça a possibilidade de utilizar excessos violentos
em relação a pessoas tachadas como subversivas e/ou
terroristas.
Em primeiro lugar é imprescindível o registro no
sentido de que os autores Lilian e Universindo não
estavam envolvidos de forma alguma em ativida-
des terroristas ou subversivas o que, de resto, nun-
ca foi alegado ou sequer sugerido pelo Estado em
sua contestação. Registre-se, também, que, em

14
BRASIL. Ação Ordinária nº 01187300056. Justiça do Rio Grande do
Sul. 4ª Vara da Fazenda Pública. Juiz Paulo Roberto Hanke. Decisão
proferida em 27.03.1989, fl. 619.

 
O discurso tectônico do judiciario 739

momento algum houve qualquer acusação ou sus-


peita no sentido de que eles, Universindo e Lilian,
conspirassem, por qualquer forma, contra o Go-
verno ou instituições brasileiras ou até mesmo que
estivessem envolvidos em atos subversivos ao sis-
tema de governo de então no Uruguai. (...) Não
havia, não houve e não há até hoje evidência e se-
quer indícios de atividade terrorista ou subversiva
dos autores neste Estado ou fora daqui. Entendi-
das tais atividades como organização de atentados
violentos ou pelas armas contra qualquer regime
estabelecido de governo.15

Imprescindível perceber que o magistrado acei-


ta, expressamente, os conceitos de terrorismo e de sub-
versão, utilizando tais rótulos como fatores que poderi-
am justificar claras práticas violadoras dos direitos
humanos. O julgador define esses conceitos como ativi-
dades como organização e atentados violentos ou pelas armas
contra qualquer regime estabelecido de governo. Reconhe-
cendo-se essa proposição, pode-se admitir que uma
manifestação contrária à instituição violenta do poder -
com a utilização do aparato estatal -, subsume-se a esse
enquadramento legal-autoritário, apresentando como
deslegítimos os atos populares de resistência à ditadu-
ra civil-militar. O raciocínio realizado pelo juiz, então,
debruça-se sobre os movimentos da sociedade e não
questiona a natureza da legalidade autoritária. Note-se
que a argumentação baseia-se no afastamento da ale-
gação estatal de prática de atos terroristas ou subversi-
vos pelos autores, ou seja, admite que terroristas e sub-
versivos pudessem receber tratamento diferenciado,
incompatível com as garantias mínimas do Estado de
Direito.
Os fragmentos de desrespeito aos direitos hu-
manos que aparecem neste caso carregam em seu bojo

15
BRASIL. Ação Ordinária nº 01187300056. Justiça do Rio Grande do
Sul. 4ª Vara da Fazenda Pública. Juiz Paulo Roberto Hanke. Decisão
proferida em 27.03.1989, fls. 620-622.
740 Vanessa Dorneles Schinke

a questão da neutralização das responsabilidades dos


agentes públicos, na qual ganha destaque a técnica da
neutralização, advinda principalmente da organização
fortemente hierarquizada do aparato estatal. Eventuais
consequências, ainda que indesejáveis ou potencial-
mente excessivas, são consideradas inevitáveis. De
forma sub-reptícia, o argumento dessas violações não
se confronta diretamente com supostos princípios ar-
raigados na sociedade, apenas lastimam a impossibili-
dade de seguí-los à risca, diante do contexto. Nas pala-
vras de Zaffaroni: aunque destruyen las repúblicas suelen
hacerlo en nombre de su fortalecimiento o restauración.16
Especificamente neste caso, a ação criminal foi
ajuizada contra um delegado, dois inspetores e um es-
crivão. Entendera-se que os inspetores e o escrivão,
recém ingressados na carreira policial, não poderiam
construir e executar a operação sozinhos, já que não
seria possível demandar o tempo utilizado para essas
ações contra Lilian e Universindo sem a concordância
de alguém que os liberasse de suas tarefas diárias. Não
obstante, recorreu-se ao argumento de ausência de ne-
xo causal para a responsabilização do superior denun-
ciado.
Agora, que a partir da conclusão de que Orandir e
João Augusto praticaram o fato, fica evidente esta-
rem a mando de superiores, isto é claro. Um inspe-
tor e um escrivão, recém ingressando na carreira
policial jamais agiriam por conta própria. Não em
um caso como este, que fugia aos padrões da nor-
malidade. Mas daí, e só por isso, concluir-se que
essa autoridade superior era o delegado Pedro
Seelig, é uma temeridade. Assim como ele, poderia

16
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crímenes de Masa. Buenos Aires:
Madres de Plaza de Mayo, 2010. p. 08.

 
O discurso tectônico do judiciario 741

ser qualquer outra autoridade, a seu nível ou mai-


or, quer civil, quer militar.17

Os elementos encontrados nas manifestações


judiciais denotam uma contradição entre as balizas
expostas como assecuratórias de garantias fundamen-
tais e violações a esses limites, em um emaranhado de
fundamentos contraditórios. O argumento da legalida-
de é elevado para, logo mais, sustentar a impossibili-
dade de proferir decisão diversa com base em uma le-
gislação que, por natureza, violou esse mesmo princí-
pio. O suposto afastamento do judiciário de aprecia-
ções políticas sobre os casos é pautado ao mesmo tem-
po em que expressões carregadas de cunho ideológico
são distribuídas textualmente ao longo das sentenças.
Indaga-se, então, o que entenderiam nossos juí-
zes por tortura, terrorismo, subversão, direito à resistência,
crimes contra a humanidade e Estado de Direito? É indubi-
tável, porém, compreender-se que aqui foram expostos
casos paradigmáticos que revestiram-se de grande di-
fusão na mídia e que não devem ser interpretados co-
mo ilustrativos de um comportamento uníssono do
Poder Judiciário.
Ao contrário, servem para enaltecer a complexi-
dade que revestiu as falas dessa instituição durante a
ditadura civil-militar e que, de certa forma, podem re-
fletir a mesma ranhura significativa que o judiciário
possui atualmente diante de temas igualmente vincu-
lados aos direitos humanos. O intuito, por fim, é de-
monstrar que as intricadas manifestações institucionais
do judiciário - suas contradições, rachaduras e reitera-
ções -, podem ser identificadas através de diversos re-
cortes. Estudos como este estimulam a reflexão sobre o
papel desempenhado pelo judiciário durante a ditadu-

17 BRASIL. Apelação Crime nº 11.775. 3ª Câmara Criminal de Porto

Alegre/RS. Relator Des. Pedro Henrique P. Rodrigues. Julgado em


16.12.1980.
742 Vanessa Dorneles Schinke

ra civil-militar brasileira e, de forma prospectiva e con-


comitante, indagam sobre eventuais reminiscências de
comportamentos institucionais, lançando luz sobre sua
função em um Estado Democrático de Direito.

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BRASIL. Ação Ordinária nº 01187300056. Justiça do Rio
Grande do Sul. 4ª Vara da Fazenda Pública. Juiz Paulo
Roberto Hanke. Decisão proferida em 27.03.1989
BRASIL. Justiça Federal. Seção Judiciária do Rio Grande
do Sul. Ação Ordinária. 5ª Vara Federal. Processo nº
88.00.09436-8, de 13.08.1973.
BRASIL. Recurso Crime nº 16.336. Câmara Criminal Es-
pecial de Porto Alegre/RS. Acórdão proferido em

 
O discurso tectônico do judiciario 743

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Justiça de transição, reformas
institucionais e consolidação do
Estado Democrático de Direito
O caso brasileiro

Flávia  Piovesan1  

1. Introdução

Como enfrentar as graves violações de direitos


humanos perpetradas no passado? Como ritualizar a
passagem de um regime militar ditatorial a um regime
democrático? Como compreender o impacto do siste-
ma interamericano o processo de justiça de transição
no contexto sul-americano? Como interpretar as leis de
anistia em face das obrigações jurídicas assumidas na
esfera internacional? Qual é o alcance dos deveres in-

1 Professora Doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos


Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha,
Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law
School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da
University of Oxford (2005), visiting fellow do Max Planck Institute for
Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007 e
2008), sendo desde 2009 Humboldt Foundation Georg Forster
Research Fellow no Max Planck Institute; procuradora do Estado de
São Paulo e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
748 Flávia Piovesan

ternacionais contraídos pelos Estados relativamente ao


direito à verdade, à justiça, à reparação e a reformas
institucionais? Quais são os principais desafios e pers-
pectivas concernentes às reformas institucionais e à
consolidação do Estado Democrático de Direito sob o
prisma da justiça transicional considerando a experiên-
cia brasileira?
São estas as questões centrais a inspirar este ar-
tigo, que tem como objetivo maior enfocar o direito à
verdade, o direito à justiça e reformas institucionais no
marco da justiça de transição sul-americana, conside-
rando o especial impacto do sistema interamericano.
Sob esta perspectiva, emerge o desafio de assegurar o
fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e
dos direitos humanos, aliando a luta por justiça e paz
na experiência brasileira.

2. Proteção do Direito à Verdade, à Justiça e


Reformas Institucionais: Impacto do Sistema
Interamericano no contexto sul-americano

Dois períodos demarcam o contexto latino-


americano: o período dos regimes ditatoriais; e o perí-
odo da transição política aos regimes democráticos,
marcado pelo fim das ditaduras militares na década de
80, na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil.
Em 1978, quando a Convenção Americana de
Direitos Humanos entrou em vigor, muitos dos Esta-
dos da América Central e do Sul eram governados por
ditaduras. Dos 11 Estados-partes da Convenção à épo-
ca, menos que a metade tinha governos eleitos demo-
craticamente, ao passo que hoje quase a totalidade dos
Estados latino-americanos na região tem governos elei-
tos democraticamente2. Diversamente do sistema regi-

2 Como observa Thomas Buergenthal: “O fato de hoje quase a

totalidade dos Estados latino-americanos na região, com exceção de

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 749

onal europeu que teve como fonte inspiradora a tríade


indissociável Estado de Direito, Democracia e Direitos
Humanos3, o sistema regional interamericano tem em
sua origem o paradoxo de nascer em um ambiente
acentuadamente autoritário, que não permitia qualquer
associação direta e imediata entre Democracia, Estado
de Direito e Direitos Humanos. Ademais, neste contex-
to, os direitos humanos eram tradicionalmente conce-
bidos como uma agenda contra o Estado. Diversamen-
te do sistema europeu, que surge como fruto do pro-
cesso de integração européia e tem servido como rele-
vante instrumento para fortalecer este processo de in-
tegração, no caso interamericano havia tão somente um
movimento ainda embrionário de integração regional.
A região latino-americana tem sido caracteriza-
da por elevado grau de exclusão e desigualdade social
ao qual se somam democracias em fase de consolida-
ção. A região ainda convive com as reminiscências do
legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma
cultura de violência e de impunidade, com a baixa
densidade de Estados de Direitos e com a precária tra-
dição de respeito aos direitos humanos no âmbito do-
méstico. A América Latina tem o mais alto índice de
desigualdade do mundo, no campo da distribuição de
renda4. No que se refere à densidade democrática, se-

Cuba, terem governos eleitos democraticamente tem produzido


significativos avanços na situação dos direitos humanos nesses
Estados. Estes Estados ratificaram a Convenção e reconheceram a
competência jurisdicional da Corte”. (Prefácio de Thomas Buergenthal,
Jo M. Pasqualucci, The Practice and Procedure of the Inter-American
Court on Human Rights, Cambridge, Cambridge University Press,
2003, p. XV).
3 A respeito, ver Clare Ovey e Robin White, European Convention on

Human Rights, 3a ed., Oxford, Oxford University Press, 2002, p.1 e


Flavia Piovesan, Direitos Humanos e Justiça Internacional, 3ª edição,
São Paulo, ed. Saraiva, 2012.
4 De acordo com o ECLAC: “Latin America’s highly inequitable and

inflexible income distribution has historically been one of its most


prominent traits. Latin American inequality is not only greater than
750 Flávia Piovesan

gundo a pesquisa Latinobarômetro, no Brasil apenas


47% da população reconhece ser a democracia o regime
preferível de governo; ao passo que no Peru este uni-
verso é ainda menor correspondendo a 45% e no Méxi-
co a 43%5.
É neste cenário que o sistema interamericano se
legitima como importante e eficaz instrumento para a
proteção dos direitos humanos, quando as instituições
nacionais se mostram falhas ou omissas. Com a atua-
ção da sociedade civil, a partir de articuladas e compe-
tentes estratégias de litigância, o sistema interamerica-
no tem a força catalizadora de promover avanços no
regime de direitos humanos. Permitiu a desestabiliza-
ção dos regimes ditatoriais; exigiu justiça e o fim da
impunidade nas transições democráticas; e agora de-
manda o fortalecimento das instituições democráticas

that seen in other world regions, but it also remained unchanged in the
1990s, then took a turn for the worse at the start of the current
decade.” (ECLAC, Social Panorama of Latin America - 2006, chapter I,
page 84. Available at
http://www.eclac.org/cgibin/getProd.asp?xml=/publicaciones/xml
/4/27484/P27484.xml&xsl=/dds/tpli/p9f.xsl&base=/tpl-i/top-
bottom.xslt (access on July 30, 2007). No mesmo sentido, afirmam
Cesar P. Bouillon e Mayra Buvinic: “(…) In terms of income, the
countries in the region are among the most inequitable in the world. In
the late 1990s, the wealthiest 20 percent of the population received
some 60 percent of the income, while the poorest 20 percent only
received about 3 percent. Income inequality deepened somewhat
during the 1990s (…) Underlying income inequality, there are huge
inequities in the distribution of assets, including education, land and
credit. According to recent studies, the average length of schooling for
the poorest 20 percent is only four years, while for the richest 20
percent is 10 years.” (Cesar P. Bouillon e Mayra Buvinic, Inequality,
Exclusion and Poverty in Latin America and the Caribbean: Implications for
Development, Background document for EC/IADB “Seminar on Social
Cohesion in Latin America,” Brussels, June 5-6, 2003, p. 3-4, par. 2.8).
Acessar: http://www.iadb.org/sds/doc/soc-idb-socialcohesion-e.pdf,
Julho 2007. Consultar ainda ECLAC, Social Panorama of Latin America
2000-2001, Santiago de Chile: Economic Commission for Latin America
and the Caribbean, 2002.
5 Ver Democracy and the downturn: The latinobarometro poll, The

Economist, 13 de novembro de 2008.


Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 751

com o necessário combate às violações de direitos hu-


manos e proteção aos grupos mais vulneráveis.
Considerando a atuação da Corte Interamerica-
na no processo de justiça de transição no contexto sul-
americano, destaca-se, como caso emblemático, o caso
Barrios Altos versus Peru6 – massacre que envolveu a
execução de catorze pessoas por agentes policiais. Em
virtude da promulgação e aplicação de leis de anistia
(uma que concede anistia geral aos militares, policiais e
civis, e outra que dispõe sobre a interpretação e alcance
da anistia), o Peru foi condenado a reabrir investiga-
ções judiciais sobre os fatos em questão, relativos ao
“massacre de Barrios Altos”, de forma a derrogar ou a
tornar sem efeito as leis de anistia mencionadas. O Pe-
ru foi condenado, ainda, à reparação integral e ade-
quada dos danos materiais e morais sofridos pelos fa-
miliares das vítimas7.
A Corte Interamericana realçou que, ao estabe-
lecer excludentes de responsabilidade e impedir inves-
tigações e punições de violações de direitos humanos
como tortura, execuções extrajudiciais e desapareci-
mentos forçados, leis de anistia são incompatíveis com
a Convenção Americana de Direitos Humanos. No en-
tender da Corte: “La Corte, conforme a lo alegado por la
Comisión y no controvertido por el Estado, considera que las
leyes de amnistía adoptadas por el Perú impidieron que los
familiares de las víctimas y las víctimas sobrevivientes en el
presente caso fueran oídas por un juez, conforme a lo señala-
do en el artículo 8.1 de la Convención; violaron el derecho a
la protección judicial consagrado en el artículo 25 de la Con-
vención; impidieron la investigación, persecución, captura,
enjuiciamiento y sanción de los responsables de los hechos

6Caso Barrios Altos vs Peru. Fondo. Sentencia de 14 de marzo de 2001.


Serie C No. 75.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_75_esp.pdf
7 Barrios Altos case (Chumbipuma Aguirre and others vs. Peru).

Judgment of 14 March 2001.


752 Flávia Piovesan

ocurridos en Barrios Altos, incumpliendo el artículo 1.1 de la


Convención, y obstruyeron el esclarecimiento de los hechos
del caso.Finalmente, la adopción de las leyes de autoamnistía
incompatibles con la Convención incumplió la obligación de
adecuar el derecho interno consagrada en el artículo 2 de la
misma”.
Conclui a Corte que as leis de “auto-anistia”
perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça
continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o
acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de
receber a reparação correspondente, o que constituiria
uma manifesta afronta à Convenção Americana. As leis
de anistiam configurariam, assim, um ilícito internaci-
onal e sua revogação uma forma de reparação não pe-
cuniária.
Esta decisão apresentou um elevado impacto na
anulação de leis de anistia e na consolidação do direito
à verdade, pelo qual os familiares das vítimas e a soci-
edade como um todo devem ser informados das viola-
ções, realçando o dever do Estado de investigar, pro-
cessar, punir e reparar violações aos direitos humanos.
Foi a primeira vez, no Direito Internacional contempo-
râneo, que um Tribunal internacional determinou que
leis de anistia eram incompatíveis com tratados de di-
reitos humanos, carecendo de efeitos jurídicos.
No mesmo sentido, destaca-se o caso Almona-
cid Arellano versus Chile8 cujo objeto era a validade do

8 Ver caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile. Sentencia de 26 de


septiembre de 2006. Serie C n. 154. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf
(acesso em 27/12/08). Ver ainda as sentenças proferidas nos seguintes
casos: a) caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Fondo. Sentencia de
29 de julio de 1988. Serie C No. 4- disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_esp.pdf;
b) caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 25 de
noviembre de 2000. Serie C No. 70.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_70_esp.pdf;
c) caso La Cantuta Vs. Peru. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 29 de noviembre de 2006. Serie C No.

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 753

decreto-lei 2191/78 -- que perdoava os crimes


cometidos entre 1973 e 1978 durante o regime Pinochet
-- à luz das obrigações decorrentes da Convenção
Americana de Direitos Humanos. Para a Corte Intera-
mericana: “La adopción y aplicación de leyes que otorgan
amnistía por crímenes de lesa humanidad impide el cumpli-
miento de las obligaciones señaladas. El Secretario General
de las Naciones Unidas, en su informe sobre el establecimien-
to del Tribunal Especial para Sierra Leona, afirmó que
[a]unque reconocen que la amnistía es un concepto jurídico
aceptado y una muestra de paz y reconciliación al final de
una guerra civil o de un conflicto armado interno, las Nacio-
nes Unidas mantienen sistemáticamente la posición de que la
amnistía no puede concederse respecto de crímenes interna-
cionales como el genocidio, los crímenes de lesa humanidad o
las infracciones graves del derecho internacional humanitá-
rio. (...) Leyes de amnistía con las características descritas
conducen a la indefensión de las víctimas y a la perpetuación
de la impunidad de los crímenes de lesa humanidad, por lo
que son manifiestamente incompatibles con la letra y el espí-
ritu de la Convención Americana e indudablemente afectan
derechos consagrados en ella. Ello constituye per se una vio-
lación de la Convención y genera responsabilidad.” Acres-
centa a Corte: “En consecuencia, dada su naturaleza, el De-
creto Ley N. 2.191/78 carece de efectos jurídicos y no puede
seguir representando un obstáculo para la investigación de
los hechos que constituyen este caso, ni para la identificación
y el castigo de los responsables, ni puede tener igual o similar
impacto respecto de otros casos de violación de los derechos

162.http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_162_esp.
pdf; d) caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Excepciones
Preliminares, Fondo, reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de junio
de 2005.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_124_esp1.pd
f; e) caso Castillo Páez Vs. Peru. Reparaciones y Costas. Sentencia de
27 de noviembre de 1998.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_43_esp.pdf
754 Flávia Piovesan

consagrados en la Convención Americana acontecidos en


Chile”.
Por fim, por unanimidade, concluiu a Corte pela
invalidade do mencionado decreto lei de “auto-
anistia”, por implicar denegação de justiça às vítimas,
bem como por afrontar os deveres do Estado de inves-
tigar, processar, punir e reparar graves violações de
direitos humanos que constituem crimes de lesa hu-
manidade.
Em direção similar, adicione-se o caso La Cantu-
ta versus Peru9, referente à execução sumária de um
professor e nove estudantes da Universidade de La
Cantuta, em 1992, perpetrada por um “esquadrão da
morte” denominado “Grupo Colina”, também respon-
sável pelo assassinato de catorze vítimas no caso Barri-
os Altos, em 1991. Neste caso, sustentou a Corte Inte-
ramericana que “o aparto estatal foi indevidamente utiliza-
do para cometer crimes de Estado, constituindo inadmissível
violação ao jus cogens, para, depois, encobrir tais crimes e
manter seus agentes impunes. (...) O jus cogens resiste aos
crimes de Estado, impondo-lhe sanções.”
Como será enfocado por este estudo, em 2010,
no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a Corte In-
teramericana condenou o Brasil em virtude do desapa-
recimento de integrantes da guerrilha do Araguaia du-
rante as operações militares ocorridas na década de
7010. A Corte realçou que as disposições da lei de anis-
tia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a
Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e
não podem seguir representando um obstáculo para a
investigação de graves violações de direitos humanos,
nem para a identificação e punição dos responsáveis.
Enfatizou que leis de anistia relativas a graves viola-

9 Caso La Cantuta versus Peru, sentença de 29 de novembro de 2006.


10Caso Gomes Lund and others versus Brasil, Judgment of 24
November 2010.

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 755

ções de direitos humanos são incompatíveis com o Di-


reito Internacional e as obrigações jurídicas internacio-
nais contraídas pelos Estados. Respaldou sua argumen-
tação em vasta e sólida jurisprudência produzida por
órgãos das Nações Unidas e do sistema interamericano,
destacando também decisões judiciais emblemáticas
invalidando leis de anistia na Argentina, no Chile, no
Peru, no Uruguai e na Colômbia. Concluiu, uma vez
mais, que as leis de anistia violam o dever internacio-
nal do Estado de investigar e punir graves violações a
direitos humanos.
Ao compartilhar do mesmo entendimento, em
2011, no caso Gelman versus Uruguai11, a Corte Intera-
mericana decidiu que a “Lei de Caducidade da Preten-
são Punitiva” carecia de efeitos jurídicos por sua in-
compatibilidade com a Convenção Americana e com a
Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento
Forçado de Pessoas, não podendo impedir ou obstar a
investigação dos fatos, a identificação e eventual san-
ção dos responsáveis por graves violações a direitos
humanos.
À luz dos parâmetros protetivos mínimos esta-
belecidos pelo sistema interamericano, destacam-se
cinco direitos:
a) o direito a não ser submetido à tortura nem a
desaparecimento forçado;
b) o direito à justiça (o direito à proteção judici-
al);
c) o direito à verdade;
d) o direito à prestação jurisdicional efetiva, na
hipótese de violação a direitos (direito a remédios efe-
tivos); e
e) garantias de não repetição decorrentes do de-
ver do Estado de prevenir violações a direitos huma-

11 Caso Gelman versus Uruguai, Judgment of 24 February 2011.


756 Flávia Piovesan

nos, mediante reformas institucionais (sobretudo no


aparato da segurança e da justiça).
A racionalidade adotada pela Corte Interameri-
cana é clara: as leis de anistia violam parâmetros prote-
tivos internacionais; constituem um ilícito internacio-
nal; e não obstam o dever do Estado de investigar, jul-
gar e reparar as graves violações cometidas, assegu-
rando às vítimas os direitos à justiça e à verdade.
Acrescente-se, ainda, o dever do Estado de prevenir
violações a direitos humanos, mediante garantias de
não repetição – o que demanda reformas institucionais,
especialmente no aparato da segurança e da justiça.
Frise-se que os instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos estabelecem um núcleo
inderrogável de direitos, a serem respeitados seja em
tempos de guerra, instabilidade, comoção pública ou
calamidade pública, como atestam o artigo 4º do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, o artigo 27
da Convenção Americana de Direitos Humanos e o
artigo 15 da Convenção Européia de Direitos Huma-
nos12.Este núcleo inderrogável consagra o direito a não
ser submetido à tortura. A Convenção contra a Tortura,
de igual modo, no artigo 2 , consagra a cláusula da in-
o

derrogabilidade da proibição da tortura, ou seja, nada


pode justificar a prática da tortura (seja ameaça ou es-
tado de guerra, instabilidade política interna ou qual-
quer outra emergência pública).Todos estes tratados
convergem ao endossar a absoluta proibição da tortura.
Isto é, o direito a não ser submetido à tortura é um di-
reito absoluto, que não permite qualquer exceção, sus-
pensão ou derrogação.
No que se refere ao direito a não ser submetido
a desaparecimento forçado, em 23 de dezembro de
2010, entrou em vigor a Convenção Internacional para

12 Ver também a Recomendação Geral n.29 do Comitê de Direitos

Humanos, que esclareceu acerca dos direitos inderrogáveis e


identificou os elementos que não podem ser sujeitos à suspensão.

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 757

a Proteção de todas as pessoas contra o Desapareci-


mento Forçado, contando, até junho de 2012, com 33
Estados-partes, incluindo o Estado Brasileiro que a rati-
ficou em 29 de novembro de 2010. A Convenção esta-
belece o direito a não ser submetido a desaparecimento
forçado, bem como o direito da vítima à justiça e à re-
paração. Esclarece que nenhuma circunstância excepci-
onal – seja estado de guerra ou ameaça de guerra, ins-
tabilidade política interna ou qualquer outra emergên-
cia pública – poderá ser invocada como justificativa
para o desaparecimento forçado. Adiciona também o
direito da vítima de conhecer a verdade sobre as cir-
cunstâncias do desaparecimento forçado e o destino
das pessoas desaparecidas, enunciando o direito à li-
berdade de buscar, receber e difundir tais informa-
ções13. Prescreve a Convenção que, por sua extrema
gravidade, a prática generalizada ou sistemática de
desaparecimento forçado constitui crime contra a hu-

13 Recentes decisões do STF autorizaram a extradição de militares

argentinos acusados de crime de sequestro durante a ditadura naquele


país, entendendo que “nos delitos de sequestro, quando os corpos não foram
encontrados, (...) está-se diante de um delito de caráter permanente” (STF,
Extradição n.1.150). A lei de anistia explicitamente estabelece que
“excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática
de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Em 18 de
setembro de 2012, o STF acolheu outro pedido de extradição de militar
argentino acusado da prática de crimes durante a ditadura militar
naquele país. Reiterou o Supremo que “nos delitos de seqüestro, quando
os corpos não forem encontrados, em que pese o fato do crime ter sido cometido
há décadas, está-se diante de um delito de caráter permanente, com relação ao
qual não há como assentar-se a prescrição”. Em 30 de agosto de 2012, o
Tribunal Regional Federal do Pará recebeu denúncia oferecida pelo
Ministério Público Federal contra militares acusados da prática do
crime de seqüestro na guerrilha do Araguaia. O coronel reformado
Sebastião Rodrigues de Moura (mais conhecido como major Curió) e o
major reformado Lício Augusto Maciel tornaram-se os primeiros réus
por crimes da ditadura na Justiça brasileira. Acrescente-se que, em 14
de agosto de 2012, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
confirmou, por decisão unânime, sentença que reconheceu a prática de
tortura pelo coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra em face
de integrantes da família Teles.
758 Flávia Piovesan

manidade. Impõe, ainda, aos Estados-partes o dever de


prevenir e punir a prática de desaparecimento forçado,
instituindo um Comitê próprio (“Comitê contra Desa-
parecimentos Forçados”, nos termos do art.26 da Con-
venção) com a competência de apreciar relatórios pe-
riódicos submetidos pelos Estados-partes, petições in-
dividuais e comunicações inter-estatais (arts. 29, 31 e 32
da Convenção, respectivamente). É previsto, ademais,
o poder do Comitê de realizar investigações in loco, em
conformidade com o art. 33 da Convenção.
No sistema global de proteção, cabe ainda men-
ção à Recomendação Geral n. 20, de abril de 1992, ado-
tada pelo Comitê de Direitos Humanos, a respeito do
artigo 7º do Pacto de Direitos Civis e Políticos, concer-
nente à proibição da tortura e outros tratamentos ou
penas cruéis, desumanos ou degradantes, que ressalta:
“As anistias são geralmente incompatíveis com o dever dos
Estados de investigar tais atos; para garantir a não ocorrên-
cia de tais atos dentro de sua jurisdição; e para assegurar que
não ocorram no futuro. Os Estados não podem privar os in-
divíduos de seu direito a um recurso eficaz, inclusive a possi-
bilidade de compensação e plena reabilitação.”14
No mesmo sentido, destaca-se a Recomendação
Geral n. 31, adotada pelo Comitê de Direitos Humanos,
em 2004, ao afirmar: “O artigo 2, parágrafo 3, requer que
os Estados partes proporcionem a reparação aos indivíduos
cujos direitos do Pacto forem violados. Sem reparação aos
indivíduos cujo direito foi violado, a obrigação de fornecer
um recurso eficaz, que é central à eficácia do artigo 2, pará-
grafo 3, não é preenchida. (...) O Comitê ressalta que, quando
apropriada, a reparação deve abranger a restituição, a reabili-
tação e as medidas de satisfação, tais como pedidos de descul-

14 Recomendação Geral n. 20, do Comitê de Direitos Humanos da

ONU, sobre o artigo 7 do Pacto Internacional de Direitos Civis e


Políticos, disponível em:
http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/6924291970754969c125
63ed004c8ae5?Opendocument

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 759

pas em público, monumentos públicos, garantia de não-


repetição e mudanças em leis e em práticas relevantes, assim
como conduzir à justiça os agentes de violações dos direitos
humanos. (...) Os Estados partes devem assegurar que os
responsáveis por violações de direitos determinados no Pacto,
quando as investigações assim revelarem, sejam conduzidos
aos tribunais. Como fracasso na investigação, o fracasso em
trazer os agentes violadores à justiça poderia causar uma
ruptura do Pacto. (...) Dessa forma, onde os agentes públicos
ou estatais cometeram violações dos direitos do Pacto, os
Estados partes envolvidos não podem aliviar os agressores da
responsabilidade pessoal, como ocorreram com determinadas
anistias e as imunidades e indenizações legais prévias. Além
disso, nenhuma posição oficial justifica que pessoas que pode-
riam ser acusadas pela responsabilidade por tais violações
permaneçam imunes de sua responsabilidade legal. Outros
impedimentos à determinação da responsabilidade legal tam-
bém devem ser removidos, como a defesa por devido cumpri-
mento do dever legal ou aos períodos absurdamente curtos da
limitação estatutária nos casos onde tais limitações são apli-
cáveis. Os Estados partes devem também ajudar a conduzir à
justiça os suspeitos de cometimento de atos de violação ao
Pacto, os quais são puníveis sob a legislação doméstica ou
internacional.”15
Ressalte-se, por fim, que à luz da jurisprudência
do sistema interamericano e do sistema global de pro-
teção, fundamental é o dever do Estado de prevenir
graves violações a direitos humanos, mediante garanti-
as de não repetição. Isto realça a relevância das refor-
mas institucionais visando alcançar um objetivo central
para uma justiça transicional legítima e eficaz: a pre-

15 Recomendação Geral n. 31, do Comitê de Direitos Humanos da


ONU, sobre a natureza da obrigação geral imposta aos Estados partes
do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, disponível em:
http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/CCPR.C.21.Rev.1.Add.
13.En?Opendocument.
760 Flávia Piovesan

venção de ocorrências de abusos e violações a direitos


humanos.
Para o Comitê de Direitos Humanos da ONU,
como medida de prevenção, faz-se fundamental a ex-
clusão de serviços públicos de agentes diretamente
envolvidos em violações de direitos humanos do pas-
sado (mecanismo do “vetting”). Na mesma direção, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos endossa
que: “a impunidade dos perpetradores da prática de
tortura em regimes repressivos significa uma violação
ao dever de prevenção”. Os Princípios das Nações
Unidas no Combate à Impunidade frisam a natureza
preventiva do “vetting” – por meio da remoção de ser-
vidores públicos responsáveis por sérios abusos de
direitos humanos – como uma medida central no cam-
po das reformas institucionais visando à prevenção de
violações a direitos humanos.Além disso, o mecanismo
do “vetting” pode exercer um importante impacto em
assegurar a legitimidade de instituições públicas16
Logo o instituto do “vetting” apresenta três im-
pactos relevantes: a) sanção dos perpetradores de gra-
ves violações; b) a prevenção de ocorrência de futuras
violações; e c) reformas institucionais. O “vetting” --
como um elemento da reforma institucional e da justiça
de transição -- deve ser considerado como uma medida
para reformar instituições responsáveis por violações a
direitos humanos, atribuindo responsabilização indivi-
dual àqueles envolvidos em abusos de direitos huma-
nos perpetrados no passado. Como uma medida cen-
tral para as reformas institucionais, o “vetting”, em lar-
ga medida, afeta o funcionamento de instituições a se-

16 Recomendação Geral n. 20, do Comitê de Direitos Humanos da

ONU, sobre o artigo 7 do Pacto Internacional de Direitos Civis e


Políticos, disponível em:
http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/6924291970754969c125
63ed004c8ae5?Opendocument

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 761

rem reformadas, influenciando ainda o processo de


reforma de outras instituições.17

3. Proteção do Direito à Verdade e à Justiça e


Reformas Institucionais: impacto do Sistema
Interamericano no caso brasileiro

Acenando a um isolamento no contexto da justi-


ça de transição sul-americano – marcado pelas sucessi-
vas anulações de leis de anistia -- em 29 de abril de
2010, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Argüição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
n.153, manteve a interpretação de que a lei de anistia
de 1979 (Lei n. 6683/79) teria assegurado anistia ampla,
geral e irrestrita, alcançando tanto as vítimas como os
algozes. O argumento central é que lei de anistia teria
sido expressão de um acordo político, de uma concilia-
ção nacional, envolvendo “diversos atores sociais, an-
seios de diversas classes e instituições políticas”.
Acrescentou o Supremo Tribunal Federal que não ca-
beria ao Poder Judiciário “reescrever leis de anistia”,
não devendo o Supremo “avançar sobre a competência
constitucional do Poder Legislativo”, tendo em vista
que “a revisão da lei de anistia, se mudanças do tempo
e da sociedade a impuserem, haverá de ser feita pelo
Poder Legislativo e não pelo Poder Judiciário”. Obser-
vou, contudo, a necessidade de assegurar “a possibili-
dade de acesso aos documentos históricos, como forma
de exercício fundamental à verdade, para que, atento
às lições do passado, possa o Brasil prosseguir na cons-
trução madura do futuro democrático”. Concluiu afir-
mando que “é necessário não esquecermos, para que

17 Ver Maja Kova, Vetting as an Element of Institutional Reform and

Transitional Justice, Institute of Criminological and Sociological


Research, Belgrado, 2007.
762 Flávia Piovesan

nunca mais as coisas voltem a ser como foram no pas-


sado.”
Com esta decisão, o Supremo Tribunal Federal
denegou às vítimas o direito à justiça – ainda que tenha
antecipado seu endosso ao direito à verdade. Não ape-
nas denegou o direito à justiça, como também reescre-
veu a história brasileira mediante uma lente específica,
ao atribuir legitimidade político-social à lei de anistia
em nome de um acordo político e de uma reconciliação
nacional.
Contudo, como realça Paulo Sergio Pinheiro,
prevaleceu uma contrafação histórica, eis que a “a lei
de anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação
alguma, pois o projeto não correspondia àquele pelo
qual a sociedade civil, o movimento de anistia, a OAB e
a heróica oposição parlamentar haviam lutado. Houve
o Dia Nacional de Repúdio ao projeto de Anistia do
governo e manifestações e atos públicos contrários à lei
– que, ao final, foi aprovada por 206 votos da Arena
(partido da ditadura) contra 201 votos do MDB (oposi-
ção)”  18.
Em 24 de novembro de 2010, no caso Gomes
Lund e outros versus Brasil, como já destacado, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos condenou o Bra-
sil em virtude do desaparecimento de integrantes da
guerrilha do Araguaia durante as operações militares
ocorridas na década de 70. O caso foi submetido à Cor-
te pela Comissão Interamericana, ao reconhecer que o
caso “representava uma oportunidade importante para
consolidar a jurisprudência interamericana sobre leis
de anistia em relação aos desaparecimentos forçados e
às execuções extrajudiciais, com a consequente obriga-
ção dos Estados de assegurar o conhecimento da ver-
dade, bem como de investigar, processar e punir gra-
ves violações de direitos humanos”.

18Paulo Sérgio Pinheiro, O STF de costas para a humanidade, Folha de


São Paulo, 30 de abril de 2010.

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 763

Em sua histórica sentença, a Corte realçou que


as disposições da lei de anistia de 1979 são manifesta-
mente incompatíveis com a Convenção Americana,
carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir repre-
sentando um obstáculo para a investigação de graves
violações de direitos humanos, nem para a identifica-
ção e punição dos responsáveis. Enfatizou a Corte que
leis de anistia relativas a graves violações de direitos
humanos são incompatíveis com o Direito Internacio-
nal e as obrigações jurídicas internacionais contraídas
pelos Estados. Respaldou sua argumentação em vasta e
sólida jurisprudência produzida por órgãos das Nações
Unidas e do sistema interamericano, destacando tam-
bém decisões judiciais emblemáticas invalidando leis
de anistia na Argentina, no Chile, no Peru, no Uruguai
e na Colômbia. A conclusão é uma só: as leis de anistia
violam o dever internacional do Estado de investigar e
punir graves violações a direitos humanos.
A respeito da decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal, entendeu a Corte que “afeta o dever
internacional do Estado de investigar e punir graves
violações a direitos humanos”, afrontando, ainda, o
dever de harmonizar a ordem interna à luz dos parâ-
metros da Convenção Americana. Adicionou a Corte
Interamericana: “Quando um Estado ratifica um trata-
do internacional como a Convenção Americana, seus
juízes, como parte do aparato do Estado, também estão
submetidos a ela, o que lhes obriga a zelar para que os
efeitos dos dispositivos da Convenção não se vejam
mitigados pela aplicação de leis contrárias ao seu obje-
to, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. (...)
o poder Judiciário deve exercer uma espécie de “con-
trole da convencionalidade das leis” entre as normas
jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.Nesta
tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somen-
te o tratado, mas também a interpretação quedo mes-
mo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última
764 Flávia Piovesan

da Convenção Americana”19. Concluiu a Corte que


“não foi exercido o controle de convencionalidade pe-
las autoridades jurisdicionais do Estado brasileiro”,
tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal con-
firmou a validade da interpretação da lei de anistia
sem considerar as obrigações internacionais do Brasil
decorrentes do Direito Internacional, particularmente
aquelas estabelecidas nos artigos 1, 2, 8 e 25 da Con-
venção Americana de Direitos Humanos
No que se refere ao direito à verdade, até então,
estava em vigor aLei n.11.111/05, ao prever que o aces-
so aos documentos públicos classificados “no mais alto
grau de sigilo" poderia ser restringido por tempo inde-
terminado, ou até permanecer em eterno segredo, em
defesa da soberania nacional. Esta lei violava os princí-
pios constitucionais da publicidade e da transparência
democrática, negando às vítimas o direito à memória e
às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a
repetição de tais práticas20. Para a Comissão Interame-
ricana de Direitos Humanos é fundamental respeitar e
garantir o direito à verdade para o fim da impunidade
e para a proteção dos direitos humanos. Acentua a
Comissão: “Toda sociedad tiene el irrenunciable derecho de
conocer la verdad de lo ocurrido, así como las razones y cir-
cunstancias en la que aberrantes delitos llegaram a cometer-
se, a fin de evitar que esses echos vuelvam a ocurrir em el
futuro”. É, assim, dever do Estado assegurar o direito à
verdade, em sua dupla dimensão -- individual e coleti-
va – em prol do direito da vítima e de seus familiares
(o que compreende o direito ao luto) e em prol do di-

19 Este entendimento já havia sido firmado pela Corte Interamericana


de Direitos Humanos no caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile,
sentença de 26 setembro de 2006.
20 A respeito, ver parecer que, na qualidade de perita, elaborei sobre a

inconstitucionalidade da Lei n.11.111/05, no caso Gomes Lund e


outros versus Brasil (abril de 2010).

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 765

reito da sociedade à construção da memória e identi-


dade coletivas.
Para o Alto Comissariado de Direitos Humanos
das Nações Unidas: “O direito à verdade abrange o
direito de ter um conhecimento pleno e completo dos
fatos ocorridos, das pessoas que deles participaram,
das circunstâncias específicas, e, em particular, das vio-
lações perpetradas e sua motivação. O direito à verda-
de é um direito individual que assiste tanto às vítimas,
com aos seus familiares, apresentando ainda uma di-
mensão coletiva e social. No último sentido, o direito à
verdade está estritamente relacionado ao Estado de
Direito e aos princípios de transparência, responsabili-
dade e boa gestão dos assuntos públicos em uma soci-
edade democrática. Constitui, com a justiça, a memória
e a reparação, um dos pilares da luta contra a impuni-
dade das violações graves aos direitos humanos e das
infrações ao Direito Internacional Humanitário”.21
Atente-se que, em 21 de dezembro de 2009, foi
lançado o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos,
que, dentre suas metas, ineditamente estabeleceu a cri-
ação de uma Comissão Nacional de Verdade, com o
objetivo de resgatar as informações relativas ao perío-
do da repressão militar. Tal proposta foi causa de ele-
vada tensão política entre o Ministério da Defesa (que
acusou a proposta de revanchista) e a Secretaria Espe-
cial de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça (que
defenderam a proposta em nome do direito à memória
e à verdade), culminando, inclusive, com exoneração
do general chefe do departamento do Exército, por ter
se referido à “comissão da calúnia”.
À luz da experiência brasileira, até final de 2011,
concluí-se que: a) não havia incorporação da jurispru-
dência da Corte Interamericana e dos parâmetros pro-

21 Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, El

Derecho a la verdad, Conselho de Direitos Humanos, quinto período


de sessões, A/HRC/5/7, 7 de junho de 2007.
766 Flávia Piovesan

tetivos internacionais pelo Supremo Tribunal Federal22;


b) havia uma tensão intra-governamental a respeito da
política de Estado em prol da memória, verdade e jus-
tiça; e c) havia a afronta aos direitos à verdade e à justi-
ça.
Finalmente, em 18 de novembro de 2011, foram
adotadas duas leis de profunda relevância para a justi-
ça transicional brasileira: a) a Lei n.12.527, que regula o
acesso à informação; e b) a Lei n. 12.528, que cria a Co-
missão Nacional da Verdade. É evidente o elevado im-
pacto da decisão da Corte Interamericana de Direitos
Humanos (no caso Gomes Lund versus Brasil) para o
advento destes dois avanços democráticos.

22Escassa ainda é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que


implementa a jurisprudência da Corte Interamericana, destacando-se
até março de 2010 apenas e tão somente dois casos: a) um relativo ao
direito do estrangeiro detido de ser informado sobre a assistência
consultar como parte do devido processo legal criminal, com base na
Opinião Consultiva da Corte Interamericana n.16 de 1999 (ver decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 2006, na Extradição
n.954/2006); e b) outro caso relativo ao fim da exigência de diploma
para a profissão de jornalista, com fundamento no direito à informação
e na liberdade de expressão, à luz da Opinião Consultiva da Corte
Interamericana n.5 de 1985 (ver decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal em 2009, no RE 511961).Levantamento realizado
acerca das decisões do Supremo Tribunal Federal baseadas em
precedentes judiciais de órgãos internacionais e estrangeiros constata
que 80 casos aludem à jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, ao
passo que 58 casos aludem à jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha – enquanto que, reitere-se,
apenas 2 casos amparam-se na jurisprudência da Corte
Interamericana. Nesse sentido, Virgilio Afonso da Silva, Integração e
Diálogo Constitucional na América do Sul, In: Armin Von Bogdandy,
Flavia Piovesan e Mariela Morales Antoniazzi (coord.), Direitos
Humanos, Democracia e Integração Jurídica na América do Sul, Rio de
Janeiro, ed. Lúmen Júris, 2010, p.529. Apenas são localizados julgados
que remetem à incidência de dispositivos da Convenção Americana –
nesta direção, foram localizados 79 acórdãos versando sobre: prisão do
depositário infiel; duplo grau de jurisdição; uso de algemas;
individualização da pena; presunção de inocência; direito de recorrer
em liberdade; razoável duração do processo; dentre outros temas
especialmente afetos ao garantismo penal.

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 767

A Lei n.12.527, que regula o acesso à informa-


ção, limita o prazo de sigilo de documentos classifica-
dos como “ultra-secretos”. Inova ao estabelecer que tais
documentos sejam mantidos em segredo até 25 anos,
renováveis por, no máximo, mais 25 anos. A proposta
sofreu forte resistência de parlamentares que defendem
o sigilo eterno destes documentos.
Com efeito, a questão central atinha-se aos do-
cumentos considerados “ultra-secretos” e ao poder da
autoridade pública de decidir o que é “ultra-secreto”,
impondo tal classificação, com a prerrogativa de pror-
rogar e estender o sigilo de informações eternamente.
O ato de classificar permite à autoridade pública atri-
buir o grau de sigilo a documento, culminando, na prá-
tica, com a delegação ao Executivo do poder de definir
o núcleo essencial do direito constitucional à informa-
ção. O risco é que tal sistemática fomentasse a discrici-
onariedade e o arbítrio do Estado no ímpeto abusivo de
classificar como “ultra-secretos” documentos públicos,
privando-os do acesso à sociedade, sobretudo quando
referem-se a graves violações a direitos humanos.
À luz dos parâmetros constitucionais e interna-
cionais, ao direito à informação corresponde o dever do
Estado de prestá-las de forma ampla e efetiva, sob pena
de responsabilidade. No regime democrático a regra é
assegurar a disponibilidade das informações com base
no princípio da máxima divulgação das informações; a
exceção é o sigilo e o segredo. As limitações ao direito
de acesso à informação devem se mostrar necessárias
em uma sociedade democrática para satisfazer um in-
teresse público imperativo.
No atual contexto brasileiro, o interesse público
imperativo não é o sigilo eterno de documentos públi-
cos, mas, ao contrário, o amplo e livre acesso aos ar-
quivos. O direito ao acesso à informação é condição
para o exercício de demais direitos humanos, como o
direito à verdade e o direito à justiça, sobretudo em
casos de graves violações de direitos humanos perpe-
tradas em regimes autoritários do passado.
768 Flávia Piovesan

Não há como conciliar o direito à verdade com o


sigilo eterno. A luta pelo dever de lembrar merece pre-
valecer em detrimento daqueles que insistem em es-
quecer. Não há como conciliar os princípios constituci-
onais da publicidade e da transparência com o sigilo
eterno. Para Norberto Bobbio, a opacidade do poder é a
negação da democracia, que é idealmente o governo do
poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem
em público, sob o controle democrático da opinião pú-
blica.
O sigilo eterno afrontava o direito à informação,
o direito à verdade, bem como os princípios da publi-
cidade e da transparência essenciais à consolidação do
Estado Democrático de Direito.
Na mesmo 18 de novembro de 2011, foi adotada
a Lei n. 12.528, que cria a Comissão Nacional da Ver-
dade, com a finalidade de elucidar as graves violações
de direitos humanos ocorridas entre 1946 a 1988. Cabe-
rá à Comissão promover o esclarecimento circunstanci-
ado de casos de torturas, mortes, desaparecimentos
forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, identifi-
cando e tornando públicos as estruturas, os locais e as
instituições envolvidas.
A proposta contou com o apoio do Ministério
da Defesa, tendo o aval dos comandantes das três For-
ças. Em julho de 2011, o Ministério da Justiça há havia
garantido a um grupo de 12 familiares de mortos e de-
saparecidos políticos o acesso irrestrito a todos os do-
cumentos do Arquivo Nacional. A esta conjuntura na-
cional adicione-se a histórica condenação do Brasil pela
Corte Interamericana no caso Gomes Lund. Reitere-se:
para a Corte as disposições da lei de anistia de 1979 são
incompatíveis com a Convenção Americana, carecem
de efeitos jurídicos e não podem seguir representando
um obstáculo para a investigação de graves violações
de direitos humanos, nem para a identificação e puni-
ção dos responsáveis.
Em 16 de maio de 2012 foram empossados os se-
te integrantes da Comissão Nacional da Verdade, em
 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 769

cerimônia que contou com a presença de todos os ex-


Presidentes da República vivos.
Neste contexto, a instituição da Comissão da
Verdade simboliza um extraordinário avanço na expe-
riência brasileira, ao consagrar o direito à memória e à
verdade, permitindo a reconstrução histórica de graves
casos de violações de direitos humanos.

4. Desafios e perspectivas da justiça de transição


no contexto brasileiro

A justiça de transição lança o delicado desafio


de como romper com o passado autoritário e viabilizar
o ritual de passagem à ordem democrática.
Nas lições de Kathryn Sikkink e Carrie Booth
Walling23, a justiça de transição compreende: o direito à
verdade; o direito à justiça; o direito à reparação; e re-
formas institucionais24.
Como evidenciado por este artigo, a jurispru-
dência do sistema interamericano e do sistema global
de proteção reconhece que leis de anistia violam obri-
gações jurídicas internacionais no campo dos direitos
humanos, adotando como perspectiva a proteção aos
direitos das vítimas (“victim centric approach”).
Estudos demonstram que justiça de transição
tem sido capaz de fortalecer o Estado de Direito, a de-
mocracia e o regime de direitos humanos, não repre-
sentando qualquer ameaça ou instabilidade democráti-
ca, tendo, ainda, um valor pedagógico para as futuras
gerações. Como atentam Kathryn Sikkink e Carrie Bo-

23Ver o artigo “The Effect of Trials on Human Rights in Latin America” de


Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling.
24 As reformas institucionais devem ser sobretudo endereçadas ao

aparato de segurança e Forças Armadas, sendo inaceitável que


perpetradores de atrocidades no passado permaneçam com o
monopólio das armas no país.
770 Flávia Piovesan

oth Walling: “O julgamento de violações de direitos


humanos pode também contribuir para reforçar o Es-
tado de Direito, como ocorreu na Argentina. (...) os ci-
dadãos comuns passam a perceber o sistema legal co-
mo mais viável e legítimo se a lei é capaz de alcançar os
mais poderosos antigos líderes do país, responsabili-
zando-os pelas violações de direitos humanos do pas-
sado. O mais relevante componente do Estado de Di-
reito é a idéia de que ninguém está acima da lei. Deste
modo, é difícil construir um Estado de Direito igno-
rando graves violações a direitos civis e políticos e fra-
cassando ao responsabilizar agentes governamentais
do passado e do presente. (...) Os mecanismos de justi-
ça de transição não são apenas produto de idealistas
que não compreendem a realidade política, mas ins-
trumentos capazes de transformar a dinâmica de poder
dos atores sociais”.  25
Constata-se na experiência de transição brasi-
leira um processo aberto e incompleto, na medida em
que – até maio de 2012 -- tão somente havia sido con-
templado o direito à reparação, com o pagamento de
indenização aos familiares dos desaparecidos políticos,
mediante a criação da Comissão Especial sobre Mortos
e Desaparecidos pela Lei n. 9.140 de 1995 e da Comis-
são de Anistia pela Lei n.10.559 de 2002. Em 2010, con-
cluia Anthony Pereira que, diversamente dos demais
países da região, “a justiça de transição no Brasil foi
mínima. Nenhuma Comissão de Verdade até o mo-
mento foi instalada, nenhum dirigente do regime mili-

25 Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, The Emergence and Impact of

Human Rights Trials, p.20-21. A reduzida densidade do Estado de


Direito no Brasil é evidenciada pela pesquisa Latinobarômetro (2009),
quando 44% dos brasileiros concordam que, em face de uma situação
difícil, seria justificável ao Governo não respeitar as leis, o Parlamento
e as instituições – na Argentina este universo é de 18%.

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 771

tar foi levado a julgamento e não houve reformas signi-


ficativas nas Forças Armadas ou no poder Judiciário”26.
Este quadro começa a se transformar no final de
2011, em decorrência do impacto da sentença da Corte
Interamericana no caso Gomes Lund versus Brasil. Ao
endossar a relevante jurisprudência internacional sobre
a matéria, esta inédita decisão da Corte Interamericana
irradia extraordinário impacto na experiência brasilei-
ra. Traduz a força catalizadora de avançar na garantia
dos direitos à verdade e à justiça. De um lado, contri-
bui para o fortalecimento da Comissão Nacional de
Verdade, com a finalidade de resgatar as informações
relativas ao período da repressão militar, em defesa do
direito à memória coletiva. Por outro lado, contribui
para o direito à justiça, combatendo a impunidade de
graves violações de direitos humanos, que alimenta um
continuísmo autoritário na arena democrática.
Com efeito, em resposta à condenação sofrida
pela Corte Interamericana, são aprovadas pelo Estado
brasileiro dois marcos normativos essenciais à luta pela
justiça de transição: a Lei n.12.527, que regula o acesso
à informação; e a Lei n. 12.528, que cria a Comissão
Nacional da Verdade (ambas adotadas em 18 de no-
vembro de 2011).
Um dos desafios centrais da justiça de transição
no Brasil é assegurar o direito à verdade em sua dupla
dimensão individual e coletiva – o que, em muito, está
condicionado ao êxito do trabalho da Comissão Nacio-
nal da Verdade. Outro desafio será como lidar com a
verdade e em que medida a efetivação deste direito
demandará a luta pelo direito à justiça e por reformas
institucionais.
Reformas institucionais devem assegurar o de-
senvolvimento sustentável de uma ordem pautada na
paz, na justiça, na estabilidade democrática e no Estado

26Anthony Pereira, Political (In)justice: Authoritarianism and the Rule


of Law in Brazil, Chile, and Argentina, 2010, p.172.
772 Flávia Piovesan

de Direito. Fundamental é fortalecer o rule of law; asse-


gurar a accountability (com a remoção dos perpetrado-
res de violação a direitos humanos do aparato da segu-
rança); densificar a efetividade normativa; construir a
confiabilidade e credibilidade no aparato da justiça;
prevenir violações a direitos humanos; e pavimentar
com integridade e legitimidade as instituições demo-
cráticas. No campo das reformas institucionais, especi-
al atenção deve ser confiada aos aparatos da segurança
e da justiça, reestruturando as relações entre indiví-
duos e o Estado.
A justiça de transição deve implicar em um de-
senvolvimento institucional sustentável na esfera de-
mocrática, na busca de restaurar o rule of law, fortale-
cendo mecanismos de prevenção e reparação de viola-
ções de direitos humanos e aprimorando mecanismos
de responsabilização individual aos perpetradores de
abusos de direitos humanos. Neste desafio, destaca-se
o mencionado instituto do “vetting”, a implicar a remo-
ção de um significativo número de agentes públicos
violadores de direitos humanos por ausência de inte-
gridade, o que estaria a afeta a credibilidade institucio-
nal. A fim de fortalecer o rule of law é fundamental re-
mover agentes estatais envolvidos com violações direi-
tos humanos. A mais importante ideia do rule of law é
que “power is constrained by means of law”27. Reformas
institucionais devem focar sobretudo nos aparatos da

27Consultar “Promotion of truth, justice, reparation and guarantees of non-


recurrence”, UN, General Assembly, 13 de setembro de 2012. O rule of law é
definido como: “A principle of governance in which all persons, institutions
and entities, public and private, including the State itself, are accountable to
laws that are publicly promulgated, equally enforced and independently
adjudicated, and which are consistent with international human rights norms
and standards. It requires, as well, measures to ensure adherence to the
principles of supremacy of law, equality before the law, accountability to the
law, fairness in the application of the law, separation of powers, participation
in decision making, legal certainty, avoidance of arbitrariness and procedural
and legal transparency.” (report of the Secretary-General to the Security
Council on the rule of law and transitional justice, S/2004/616, para.6).

 
Justiça de transição, reformas institucionais e consolidaçãoo... 773

segurança e da justiça. Observe-se que a independência


judicial é fundamental ao rule of law, que requer o esta-
belecimento de um complexo de instituições e proce-
dimentos, destacando um poder Judiciário indepen-
dente e imparcial. O rule of law enfatiza a importância
das Cortes não apenas pela sua capacidade decisória
(pautada no primado do Direito), mas por “institucio-
nalizar a cultura do argumento”, como medida de res-
peito ao ser humano.
No âmbito das reformas institucionais essencial
é remover agentes públicos comprometidos com o re-
gime autoritário e perpetradores de violações a direi-
tos; desenvolver uma detida análise das falhas do apa-
rato de segurança e justiça visando à sua reforma; am-
pliar e promover o acesso à justiça; fomentar reformas
para fortalecer a independência judicial; fortalecer a
institucionalidade democrática; visibilizar as vítimas,
ampliando os mecanismos de participação; e fomentar
a conscientização pública sobre a importância do rule of
law.
Daí a necessidade de compreender a justiça de
transição sob uma perspectiva integral e holística capaz
de assegurar uma política de justiça de transição legí-
tima, eficaz e sustentável, propiciadora do desenvol-
vimento humano. Emergencial é fortalecer a relação
entre justiça de transição e desenvolvimento humano,
mediante a consolidação de uma ordem justa e inclusi-
va, pautada no Estado de Direito, na estabilidade de-
mocrática e no respeito aos direitos humanos.
Sob a ótica republicana e democrática, conside-
rando ainda as obrigações internacionais do Estado
brasileiro em matéria de direitos humanos, implemen-
tar os mecanismos da justiça de transição é condição
para romper com uma injustiça permanente e continu-
ada, que compromete e debilita a construção democrá-
tica. Endossa-se a obrigação jurídica internacional do
Estado brasileiro de prevenir, investigar e punir graves
violações a direitos humanos decorrente dos tratados
de direitos humanos ratificados pelo Brasil – com des-
774 Flávia Piovesan

taque à Convenção Americana de Direitos Humanos


(ratificada em 1992), à Convenção contra a Tortura (ra-
tificada em 1989) e à Convenção Internacional para a
Proteção de todas as pessoas contra o Desaparecimento
Forçado (ratificada em 2010).
Inaceitável moral e juridicamente é a indiferença
à prática sistemática de tortura e de desaparecimento
forçado que maculam o passado brasileiro. Fundamen-
tal é assegurar os direitos à verdade e à justiça e refor-
mas institucionais, sob pena de se fomentar uma vio-
lência institucional a agravar a violência do arbítrio
responsável pelo desaparecimento forçado e pela tortu-
ra generalizada durante o regime militar brasileiro.
Honrar esta responsabilidade é condição essencial para
fortalecer o Estado de Direito, a democracia e o regime
de direitos humanos no Brasil.

 
Ampliando as lentes
Experiências de Justiça Restaurativa em Minas
Gerais

Giselle  Fernandes  Corrêa  da  Cruz1  

Resumo: O presente trabalho consiste no estudo de


duas experiências mineiras de acesso à justiça e resolu-
ção de conflitos em contextos de exclusão social, à luz
da teoria de Justiça Restaurativa. O Projeto Núcleos de
Mediação e Cidadania do Programa Pólos e o Progra-
ma Mediação de Conflitos da SEDS foram analisados a
partir dos princípios e valores da Teoria de Justiça Res-
taurativa que, por sua vez, tem sido entendida como
um novo modelo de justiça. A partir da teoria sobre o
tema e de práticas restaurativas inovadoras, concluiu-
se que os princípios da Justiça Restaurativa podem ser
desenvolvidos tanto dentro do sistema de justiça quan-
to em espaços extrajudiciais. A partir de então, foi pos-
sível investigar se as duas experiências podem ou não
serem consideradas como Justiça Restaurativa em âm-
bito comunitário, e se são efetivas e de aplicação viável
para o contexto sócio-político brasileiro. Realizou-se,

1 Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas

Gerais. Atuou como supervisora de metodologia do Programa


Mediação de Conflitos da Secretaria de Estado de Defesa Social.
Mediadora de Conflitos pelo IMAB – Brasil. Trabalho extraído do
relatório final de pesquisa de dissertação concluída e defendida em
2012 com financiamento pelo CNPQ.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
776 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

para tanto, pesquisa de campo e utilizou-se da técnica


de pesquisa estudo de caso. As duas experiências cita-
das acima foram tomadas como casos em análise. Os
procedimentos utilizados de levantamento de dados
permitiram a confirmação da presença de princípios e
características que, à luz dos critérios propostos para a
verificação do grau de restauratividade das práticas,
permitiram a conclusão de que Minas Gerais já tem
desenvolvido metodologia e ações restaurativas. Não
somente a metodologia, mas também as práticas de
mediação coletiva são imbuídas de alto grau de restau-
ratividade e também são efetivas e viáveis quanto à sua
implementação.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Acesso à justiça.
Comunidades.

Abstract: The following dissertation consists in the


study of two experiences, from Minas Gerais, concern-
ing the access to justice and conflicts resolution in con-
texts of social exclusion, at the light of the Restorative
Justice theory. The Mediation and Citizenship Project
of the Polos Program and the Conflict Mediation Pro-
gram were analyzed from the principles and values of
the Restorative Justice theory, which, in turn, has been
understood as a new model of justice. From the theory
about the theme and from innovative restorative prac-
tices, we have concluded that the principles of Restora-
tive Justice may be developed inside the justice system
as much as in extra-judicial spaces. From then, it was
possible to investigate if both experiences could or
could not be considered as of Restorative Justice in a
community scope, if they were effective, and of viable
application on the socio-political Brazilian context. For
such an end, field studies were performed and the case
study type of research was applied. Both experiences
mentioned were studied as case analysis. The proce-
dures performed of data collection allowed the identi-
fication of principles and characteristics that, at the
light of the criteria proposed to the verification of the
 
Ampliando as lentes 777

degree of restorativity of these practices, lead to the


conclusion that Minas Gerais has been developing both
restorative methodology and practices. Not only the
methodology, but also the conference mediation prac-
tices express a high degree of restorativity and are also
effective and viable in their implementation.
Keywords : Restorative Justice. Access to justice.
Communities.

1. Introdução

O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Esta-


tística – IBOPE realizou em 2011, pesquisa que aponta
o índice de confiança social2 do brasileiro em dezoito
instituições, dentre estas o judiciário, e em quatro gru-
pos sociais. O resultado revela o índice de satisfação de
49% com o Judiciário, menor em relação à confiança
nos bancos (57%), nas empresas (59%), nos meios de
comunicação (65%) e nas igrejas (72%). O índice de
satisfação com o judiciário é menor também em com-
paração com os quatro grupos sociais pesquisados:
família: 90%, amigos: 68%, outros cidadãos: 60% e vizi-
nhos: 59%. Muitas são as indagações que podem ser
feitas com base nesse dado e em tantas outras evidên-
cias que demonstram a insatisfação dos cidadãos com o
modelo de justiça disponível para a resolução de seus
conflitos cotidianos. Múltiplas são também as tentati-
vas de respostas para a questão da efetividade e ade-
quações do modelo adotado aos anseios de justiça dos
brasileiros. Seria uma questão de ampliação de acesso
material? Celeridade processual? Melhor distribuição

2 O Índice de Confiança Social (ICS) é realizado anualmente pelo

IBOPE Inteligência, desde 2009. Tem por objetivo o acompanhamento


da relação de confiança da população com as instituições e também
com as pessoas de seu convívio social. Além do Brasil, o ICS é medido
em Porto Rico e na Argentina desde 2009 e a partir de 2011 também no
Chile.
778 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

territorial dos serviços judiciais? Um maior investimen-


to nos métodos alternativos de resolução de conflitos?
As hipóteses se multiplicam e cada uma delas tem sido
alvo de estudos, na tentativa de elucidar os caminhos
possíveis para a melhoria de nosso sistema de justiça.
A insatisfação relativa ao sistema judicial pode
ter origem, também, na insuficiência do modelo vigen-
te, diante da pluralidade social e jurídica das socieda-
des contemporâneas. Boaventura de Sousa Santos
(2007) entende que, do ponto de vista sociológico, vá-
rios sistemas jurídicos e judiciais coexistem e circulam
e que nem sempre o sistema jurídico estatal é o mais
utilizado na gestão normativa do dia a dia dos cida-
dãos.
Para que as necessidades de justiça sejam com-
preendidas e acolhidas, é necessária a ampliação das
lentes utilizadas para enxergar o fenômeno jurídico e
sua expressão nas relações sociais. Também se tornam
essenciais as reformulações nos conceitos adotados até
então e a admissão de novas formas de realização da
justiça.
Nesse sentido, o presente trabalho tem por obje-
tivo demonstrar a efetividade e a viabilidade da utili-
zação de práticas restaurativas em contextos comunitá-
rios em Minas Gerais, assim como o significado que
produzem quanto à realização de justiça para as pesso-
as e grupos que as utilizam.
Para tanto, investiga a efetividade de tal modelo
de justiça no Projeto de Mediação e Cidadania do Pro-
grama Pólos, que atua por meio dos Núcleos de Medi-
ação e Cidadania – NMC e o Programa Mediação de
Conflitos – PMC, desenvolvido pela Secretaria de Esta-
do de Defesa Social de Minas Gerais – SEDS. À luz da
Teoria da Justiça Restaurativa aplicada em contextos
comunitários, as duas experiências mineiras são anali-
sadas para a verificação de elementos restaurativos em
sua atuação.
Parte-se da hipótese de que tais experiências
mineiras possuem as quatro características das práticas
 
Ampliando as lentes 779

restaurativas comunitárias, propostas por Froestad e


Shearing (2005): a ampliação da inclusão dos interessa-
dos na resolução dos conflitos; a ampliação da agenda
e dos objetivos dos programas a partir da abordagem
de problemas estruturais; a alocação de responsabili-
dades na comunidade, e a tomada de decisões com
base no conhecimento e capacidade locais. Sendo as-
sim, com base neste marco teórico, as experiências mi-
neiras poderiam ser reconhecidas como práticas de
Justiça Restaurativa comunitária.
Apresenta-se o novo modelo de justiça proposto
pela Justiça Restaurativa, ressaltando-se suas bases
conceituais nos valores de horizontalidade, diálogo,
escuta e equilíbrio de poder. A atuação da Justiça Res-
taurativa dá-se na administração de conflitos interpes-
soais e intergrupais, considera as estruturas normativas
formais e as informais e traz para o cenário comunitá-
rio local a realização da justiça por meio da inclusão de
novos atores e esferas de juridicidade.
A investigação realizada considera as quatro ca-
racterísticas restaurativas como critérios de análises
dos dois casos já citados, tomando-se como unidade de
análise a parte prescritiva ou o conteúdo programático
do projeto de Mediação do Programa Pólos de Cidada-
nia e do programa Mediação de Conflitos, chamada
também de metodologia de atuação.
Sobre a ordem de apresentação dos capítulos, o
trabalho inicia-se com uma parte dedicada ao tema do
acesso à justiça. Baseando-se no entendimento de Boa-
ventura de Sousa Santos (2007) sobre a revolução de-
mocrática da justiça, aplicada ao caso brasileiro, ques-
tiona-se sobre a justiça a que se tem acesso e a justiça a
que se quer acesso, admitindo-se, na resposta, novas
formas mais democráticas e participativas de práticas
jurídicas.
O terceiro capítulo dedica-se à teoria de Justiça
Restaurativa. São abordadas algumas origens históricas
do modelo, as tentativas de alguns teóricos em sua
conceituação, baseada em princípios e valores; as prin-
780 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

cipais práticas restaurativas no cenário internacional e


os recentes projetos iniciados no Brasil após o ano de
2005.
No quarto capítulo é abordada a questão da
ampliação das lentes restaurativas, qual seja a amplia-
ção de contextos e casos passíveis de serem abordados
por práticas restaurativas. Com base em Froestad e
Shearing (2005), são expostos os critérios utilizados
para a investigação do potencial restaurativo das ações,
segundo essa visão mais ampliada de Justiça Restaura-
tiva. Os quatro critérios (já citados anteriormente) são
explanados e, em seguida, de acordo com cada critério,
procede-se à análise de conteúdo das metodologias do
Projeto Mediação do Pólos e do PMC.
O presente trabalho realiza, portanto, uma relei-
tura dos conteúdos programáticos das duas experiên-
cias mineiras. Contribui assim para reflexões, revisões
das metodologias e identificação de aspectos que po-
dem responder a alguns de seus entraves e limites no
alcance dos próprios objetivos propostos pelas experi-
ências. Trata-se, portanto, de um estudo que contribui
para as discussões que têm se realizado no país sobre a
implementação de práticas restaurativas adequadas ao
contexto brasileiro.

2. Considerações sobre o acesso à justiça

A seguir abordam-se as principais discussões


sobre a questão do acesso à justiça e as propostas de
inovações nas perspectivas da ampliação do acesso a
partir da incorporação de novas experiências jurídicas.

2.1 Acesso a qual Justiça?

O tema acesso à justiça tem estado em evidência


nos últimos anos no Brasil e tem sido colocado na pau-
ta de reformas legislativas, processuais e administrati-

 
Ampliando as lentes 781

vas; de debates acadêmicos, produções teóricas, con-


gressos jurídicos, agendas de políticas públicas para a
efetivação de direitos, dentre tantas outras ações que
apontam para a atualidade e importância do assunto.
No caso brasileiro, tal temática tem se apresen-
tado no movimento de Reforma do Judiciário, que, na
opinião de Boaventura de Sousa Santos (2007) foi inau-
gurado com o marco institucional da Emenda Consti-
tucional n. 45, do ano de 2004. Tal ato normativo pro-
duziu várias alterações, tais como: um judiciário mais
acessível, a garantia de autonomia das defensorias pú-
blicas, a consagração da súmula vinculante e do efeito
vinculante, que colaborou para a celeridade e o des-
congestionamento dos processos nos tribunais. Para o
autor, o segundo momento dessa reforma judicial é
traduzido nas mudanças de natureza processual, alte-
rações na execução civil, sistema de recursos e proces-
sos e na modernização administrativa da justiça com a
implantação do processo eletrônico.
Ao analisar o movimento da reforma do judiciá-
rio, o autor pontua que ela tem sido orientada quase
que exclusivamente pela idéia de rapidez, pela neces-
sidade de uma justiça célere. Porém, apesar da celeri-
dade da justiça ser um componente essencial de sua
qualidade, do ponto de vista das transformações de-
mocráticas da justiça, não basta somente celeridade. É
necessário que a Justiça seja cidadã. Apesar de todas as
alterações do primeiro e segundo momentos terem
possibilitado maior acesso e qualidade na prestação
jurisdicional, existe ainda a necessidade de um terceiro
momento de reforma judicial, centrado na promoção
do acesso à justiça. Uma nova cultura jurídica demo-
crática, novos mecanismos e novos protagonismos se-
riam fundamentais para uma verdadeira transforma-
ção neste acesso. Deveriam ser fomentadas outras ex-
periências de práticas jurídicas mais politizadas e aten-
tas aos conflitos estruturais, com intervenções mais
solidárias, propagadoras de valores e princípios que
incentivam o intercâmbio de saberes, as relações hori-
782 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

zontais e propagadoras da emancipação social, e não


dependência e subalternidade. Isso significaria não
somente uma mudança no acesso ao que já existe, mas
uma mudança ao quê se tem acesso. A revolução de-
mocrática da justiça ensejaria, nas palavras de Santos
(2007), a consideração de outras possibilidades, a oferta
de caminhos alternativos à realização da justiça “sob
um novo equilíbrio da tensão entre regulação e eman-
cipação, favorecendo esta última”.
Para exemplificar a proposta, Santos (2007) faz
referências a algumas experiências que são realizadas
fora do Sistema Judicial: as promotoras legais popula-
res, experiência desenvolvida em Porto Alegre e em
várias cidades de São Paulo, cuja metodologia consiste
em socializar, articular e capacitar mulheres nas áreas
do direito, justiça e gênero. As Assessorias Jurídicas
universitárias populares com enfoques em ações de
defesa de direitos coletivos, através de atuações mais
politizadas, utilizando-se de métodos alternativos para
a administração de conflitos.
Como exemplos de inovações dentro do Sistema
Judicial, o autor registra os avanços alcançados por
meio das experiências de justiça itinerante, da justiça
comunitária, dos juizados de conciliação judicial e ex-
trajudicial, dos juizados especiais, da utilização dos
meios alternativos de resolução de conflitos e da Justiça
Restaurativa, cujos tema e prática são abordados neste
trabalho.
Nesta linha de pensamento é que a pesquisa lo-
caliza as duas experiências mineiras que serão analisa-
das, assim como a teoria de Justiça Restaurativa em
âmbito comunitário, a partir da qual serão feitos os
estudos dos casos e a verificação da ocorrência de as-
pectos restaurativos em tais práticas.

 
Ampliando as lentes 783

2.2 A questão da procura suprimida

Antes da descrição dos casos em estudo nesta


pesquisa, é de essencial importância a compreensão do
contexto em que tais experiências se desenvolvem. Pa-
ra tal tarefa, será abordada a questão da procura su-
primida, desenvolvida por Santos (2007).
O autor identifica as últimas décadas no Brasil
como marcadas por um forte protagonismo do sistema
judicial. Todavia, não se trata do protagonismo do tipo
político, mas sim da idéia de que “as sociedades assen-
tam no primado do Direito, de que não funcionam efi-
cazmente sem um sistema judicial eficiente, eficaz, jus-
to e independente” (SANTOS, 2007, p. 15). Tal fato jus-
tifica a necessidade de grandes investimentos, como o
que tem sido visto, na dignificação das profissões jurí-
dicas, na modernização de modelos de organização
que tornem o sistema mais eficiente, nas reformas pro-
cessuais e na formação de juízes e funcionários.
Para o autor, o protagonismo ou a evidência do
poder judiciário emerge, no caso de países semi-
periféricos como o Brasil, de mudanças políticas com-
preendidas em duas principais vias. Uma delas é o
modelo de desenvolvimento econômico, assentado nas
regras de mercado, contratos privados e negócios, que
para serem cumpridos e terem estabilidade, exigem um
judiciário eficaz, rápido e independente. A outra via
refere-se à precarização dos direitos econômicos e soci-
ais e ao consequente impacto no grande aumento da
procura do judiciário. O autor identifica que muitos
litígios judiciais decorrem do desmantelamento do Es-
tado social, resultando em um número crescente de
demandas de direito trabalhista, previdenciário, de
saúde e educação. A alta taxa de litigação, além de es-
tar atrelada à cultura jurídica e política de uma socie-
dade, tem a ver também com o “nível de efetividade da
aplicação dos direitos e com a existência de estruturas
administrativas que sustentem essa aplicação” (idem,
784 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

p. 17). O autor afirma que no caso brasileiro, assim co-


mo em outros países periféricos e semi-periféricos,
ocorreu um curto-circuito histórico na passagem de
regimes autoritários para regimes democráticos. Assim
sendo, muitos direitos que foram conquistados nos
países centrais após longos processos históricos, no
caso brasileiro foram meramente consagrados num ato
constitucional. Depara-se, então, com um conjunto ex-
tenso de direitos, sem respaldo de políticas públicas e
sociais que possibilitem e garantam seu exercício.
A situação se agrava quando é considerada, ba-
seado em Santos (2005), a situação do acesso à justiça
nas regiões periféricas, caracterizadas por serem alvo
de alocação de poucos recursos institucionais, em que a
população se depara com a justiça formal inacessível, a
assistência judiciária de baixa qualidade, o acesso a
advogados mal preparados, e igualmente, poucos re-
cursos simbólicos.
Se por um lado, as alterações constitucionais e
infraconstitucionais e as reformas processuais no Brasil
conseguiram alcançar boa parte da demanda e da pro-
cura potencial, por outro, existe outra demanda, a que
o autor chama de procura suprimida:
É a procura daqueles cidadãos que têm consciência
dos seus direitos, mas que se sentem totalmente
impotentes para os reivindicar quando são viola-
dos. (...) Ficam totalmente desalentados sempre
que entram no sistema judicial, sempre que con-
tactam com as autoridades, que os esmagam pela
sua linguagem esotérica, pela sua presença arro-
gante, pela sua maneira cerimonial de vestir, pelos
seus edifícios esmagadores, pelas suas labirínticas
secretarias etc. (SANTOS, 2007, p. 31).

Para Santos (2007), grande parte das demandas


dos cidadãos das classes populares localiza-se na pro-
cura suprimida, e, a partir de tais considerações, pode-
se caracterizar o contexto e a abordagem proposta pelo
Projeto de Mediação de Conflitos do Programa Pólos

 
Ampliando as lentes 785

de Cidadania e pelo Programa Mediação de Conflitos,


da Secretaria de Estado de Defesa Social.

2.3 Uma proposta mineira: constituição de capital social e


humano, redes sociais mistas e mediação de conflitos

Minas Gerais tem apresentado ao Brasil uma


das metodologias mais completas de resolução de con-
flitos, prevenção à violência e acesso à justiça. A meto-
dologia do Programa Pólos de Cidadania3, em especial
para o objeto deste trabalho, aquela utilizada nos Nú-
cleos de Mediação e Cidadania – NMC, é desenvolvida
para atuação em contextos comunitários de exclusão
sócio-econômica e de precário acesso a bens e serviços
públicos e é implementada em vilas e favelas de Belo
Horizonte.
Atualmente, o Pólos possui dois Núcleos de
Mediação e Cidadania, localizados no aglomerado da
Serra e no aglomerado Santa Lúcia, ambos na região
centro-sul da cidade. Sobre a idealização e a implemen-
tação do NMC, Silva (2010, p. 184) afirma que se origi-
nou da necessidade de revisar as formas utilizadas pelo
Estado em relação às questões da exclusão social, da
violência e do estímulo ao exercício da cidadania, em
comunidades marcadas pelo acesso precário aos servi-
ços sociais básicos e por violações recorrentes aos direi-
tos fundamentais.

3 O Programa Pólos de Cidadania é um programa interinstitucional e

de extensão da faculdade de Direito da UFMG. Foi criado em 1995 por


professores, pesquisadores e alunos da faculdade, com a proposta de
atuarem em contextos de exclusão social e econômica por meio de
ações e serviços jurídicos e sociais. Tais ações são desenvolvidas por
equipes interdisciplinares, formadas por profissionais graduados e por
estagiários das áreas das ciências sociais e humanas, que se orientam
por teorias e metodologias específicas, com vistas à construção de
cidadania e efetivação de Direitos Humanos.

 
786 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

Os núcleos utilizam a técnica de mediação como


um meio não-adversarial de resolução de conflitos para
a abordagem dos mais variados tipos de situações le-
vadas pela população aos núcleos. Demandas interpes-
soais, entre o cidadão e as prestadoras de serviços pú-
blicos, entre organizações comunitárias, entre estas e
órgãos do Estado e entre estes e os cidadãos, são exem-
plos de situações de conflitos trabalhados nos NMC.
Segundo Gustin (2005) a metodologia da media-
ção alia-se a outras duas: constituição de capital social
e humano e formação de redes sociais mistas, com vis-
tas a uma atuação efetiva em tais contextos marcados
por complexas características de exclusão, precarieda-
des e riscos sociais. O capital social e humano é enten-
dido como a “existência de relações de solidariedade
e de confiabilidade entre os indivíduos, grupos e co-
letivos, inclusive a capacidade de mobilização e de
organização comunitárias, (...), a inserção de cada um
no todo” (GUSTIN, 2005, p. 20, grifo do autor). Para
que o capital social e humano de uma comunidade seja
fomentado, é necessário que o processo de animação de
redes sociais mistas seja desencadeado.
Essa proposta estrutura-se a partir de outros
três temas: cidadania, subjetividade de emancipação.
Tal aparato conceitual se desdobra na prática dos NMC
por meio de equipes compostas por estagiários e pro-
fissionais de diversas áreas das ciências humanas e so-
ciais. Tais equipes acolhem as demandas levadas pelos
moradores que, dependendo do objeto do problema,
serão trabalhadas como demandas individuais (ou in-
terindividuais) ou demandas comunitárias.
Os atendimentos individuais e os encontros con-
juntos entre as partes são conduzidos pelos mediado-
res, no sentido de lhes possibilitar a oportunidade de
decidirem sobre a melhor solução para a questão.
Caso a mediação termine com um acordo, este
pode ser pactuado verbalmente ou por escrito. O im-
portante é que seja legítimo, ou seja, que as partes con-
sigam se identificar naquela construção.
 
Ampliando as lentes 787

A outra vertente de mediação ofertada pelos


núcleos refere-se às demandas comunitárias, ou seja,
situações que versam sobre um interesse da coletivida-
de e em que há uma ampliação do número de pessoas
envolvidas. Geralmente são questões que envolvem
órgãos do poder público ou prestadores de serviços
públicos.
Um aspecto fundamental dessa metodologia de-
senvolvida e aplicada pelo Pólos é a sua relação com a
prevenção de violências. Considerando-se o contexto
em que é aplicada, várias são as situações de violações
de direitos e inúmeras são as condições de desvanta-
gens sociais que expõem quotidianamente os cidadãos
às situações de conflitos, em muitos casos caracteriza-
das por violências. A proposta de fortalecimento dos
vínculos sociais de solidariedade e confiança, o incen-
tivo e a apresentação de alternativas para a organiza-
ção de indivíduos e grupos no empoderamento para a
solução de questões que lhes dizem respeito, são aspec-
tos que podem produzir grandes efeitos no enfrenta-
mento de fatores de riscos sociais. Pode-se concluir
que, quanto maior o estoque de capital social e humano
e quanto mais colaborativo o trabalho em rede, maiores
são as possibilidades de abordagem e solução de pro-
blemas individuais e coletivos e menores são as situa-
ções que expõem pessoas e grupos a riscos e violências.
As características de tal proposta culminaram na
implantação dessa metodologia, no ano de 2005, na
política de prevenção à criminalidade da Secretaria de
Estado de Defesa Social do Governo de Minas Gerais –
SEDS.
A Coordenadoria de Prevenção à Criminalida-
de – Cepec é o órgão responsável pelo estabelecimento
dos Centros de Prevenção à Criminalidade. Estes são
equipamentos públicos de base comunitária, inaugura-
dos em 24 locais que apresentam altos índices de cri-
minalidade violenta do Estado, regiões que coincidem
com aglomerados, vilas e favelas, além de bairros loca-
788 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

lizados na periferia de Belo Horizonte e região metro-


politana.
O Programa Mediação de Conflitos tem sua ori-
gem, portanto, no Programa Pólos de Cidadania, e im-
plementa nas localidades abrangidas pela Política de
Prevenção a metodologia antes descrita. Por isso, pode-
se falar em uma proposta mineira de acesso à justiça
com tais características, uma vez que apesar de serem
experiências executadas por instituições diversas, pos-
suem a mesma base conceitual e prática.
Como se pode perceber, são atuações coerentes
com o que Boaventura de Sousa Santos chama de ter-
ceira fase da revolução democrática da Justiça: experi-
ências mais democráticas e emancipadoras e que se
utilizam de caminhos alternativos para a realização da
Justiça.
Apesar da boa qualidade de tal metodologia, da
importância das iniciativas e da amplitude dos resulta-
dos, entende-se a importância de uma constante revi-
são de sua proposta. O objeto desta pesquisa é investi-
gar esses dois aspectos, à luz da Teoria de Justiça Res-
taurativa. A tarefa permite um novo olhar e o conhe-
cimento de novas ferramentas para a execução das
ações.

3. Justiça Restaurativa

Esta parte do trabalho aborda os principais as-


pectos teóricos e práticos da Justiça Restaurativa, perti-
nentes à proposta da pesquisa. Salienta-se a definição
baseada em princípios e valores restaurativos assim
como as principais experiências internacionais e nacio-
nais.
A Justiça Restaurativa é um movimento recente,
ainda em construção e que tem atraído os olhares de
estudiosos e cidadãos em todo o mundo. Em alguns
países as discussões sobre o tema, a utilização das prá-
ticas restaurativas e até mesmo as avaliações das mes-

 
Ampliando as lentes 789

mas estão muito avançadas. Em outros, como é o caso


do Brasil, ainda está se iniciando o contato e a experi-
mentação desse novo modelo de Justiça.

3.1 Aproximações teóricas

Jaccoud (2005) afirma que, devido ao seu mode-


lo de organização social, as sociedades comunais (soci-
edades pré-estatais européias e as coletividades nati-
vas) privilegiavam as práticas de regulamento social
centradas na manutenção da coesão do grupo. Tais
sociedades eram caracterizadas pela supremacia dos
interesses coletivos em relação aos interesses individu-
ais, o que significava que a transgressão de uma norma
causava reações orientadas para o restabelecimento do
equilíbrio rompido e para a busca de uma solução rá-
pida para o problema. A autora destaca que, embora as
formas punitivas (vingança ou morte) também fossem
aplicadas, as sociedades comunais tinham tendência a
utilizar alguns mecanismos capazes de conter a deses-
tabilização do grupo social.
Dupont-Bouchât citado por Jaccoud (2005) afir-
ma que o nascimento do Estado coincide com o afas-
tamento da vítima no processo criminal e com a quase
extinção das formas de reintegração social nas práticas
de justiça habitual. Quanto aos países que sofreram
processos de colonização, tornou-se necessária a cria-
ção de nações-estado pelos colonizadores em vista da
neutralização e substituição das práticas habituais na-
tivas, por meio da imposição de um sistema de direito
único e unificador. Porém, apesar desta imposição, as
práticas tradicionais de resolução dos conflitos destas
sociedades não foram completamente extintas. Tal fato
pode ser observado com o ressurgimento contemporâ-
neo dos modelos restaurativos nos Estados formados
durante o processo de colonização. Jaccoud destaca
que este ressurgimento está, em parte, ligado aos mo-
vimentos reivindicatórios dos povos nativos, como por
790 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

exemplo, na Nova Zelândia e no Canadá. Nestes dois


países houve demandas dos povos nativos para que a
administração da justiça estatal respeitasse suas con-
cepções de justiça, além da constatação crítica dos pro-
blemas endêmicos de superpopulação dos nativos nos
estabelecimentos penais e sócio-protetivos. Na opinião
da autora, seria errôneo afirmar que a justiça restaura-
tiva tenha se originado exclusivamente das práticas
tradicionais dos povos nativos. Ela argumenta que os
vestígios de uma justiça direcionada para o reparo não
são exclusivos dos povos nativos, mas sim das socie-
dades comunais em geral.

3.2 Um Conceito de Justiça Restaurativa

Froestad e Shearing (2005) relatam que a partir


da década de 90 a Justiça Restaurativa tornou-se o mo-
vimento social emergente para as reformas da Justiça
Criminal, tendo sido concebida como uma tentativa de
olhar o crime e a Justiça através de novas concepções.
Estas concepções, chamadas de lentes por Zehr (2005)
apresentaram novas abordagens e intervenções no âm-
bito criminal. Froestad e Shearing (2005) alegam que
um argumento frequentemente utilizado a respeito da
Justiça Restaurativa é o de que não há nenhuma defini-
ção única e consensual a respeito do tema. Segundo os
autores, exames da literatura específica revelam uma
tensão entre a necessidade do desenvolvimento de vi-
sões claras para a Justiça Restaurativa e, ao mesmo
tempo, a relutância em se formular definições univer-
sais que enrijeceriam ou poderiam limitar o seu desen-
volvimento.
Tal contexto torna difícil a tarefa de conceituá-
la. Van Ness e Johnstone (2007) afirmam que existem
concepções diferentes, porém complementares de Jus-
tiça Restaurativa. Para os autores, é preferível o exercí-
cio de manter o conceito aberto, flexibilizado por cons-
tantes discussões em torno de seus princípios e valores.

 
Ampliando as lentes 791

Este movimento social e global possui larga di-


versidade interna. Objetiva modificar nossos sistemas
altamente profissionalizados de justiça punitiva e con-
trole para um modelo de justiça baseada em comuni-
dades. Não há concordância sobre a natureza de fato
da transformação buscada pelo movimento de Justiça
Restaurativa. Alguns a vêem como uma nova tecnolo-
gia social ou programa que possa ser implementado no
sistema de justiça criminal. Outros a vêem com o obje-
tivo de abolição dos modelos de punição estatais e de
realocação da abordagem do crime e da ofensa no âm-
bito comunitário. Este seria o espaço ideal para o ensi-
no, o tratamento, a reparação e restauração de vítimas,
ofensores e das próprias comunidades envolvidos no
crime. Outros ainda concordam com a visão de trata-
mento e restauração para todos os tipos de conflitos.
De fato, o objetivo último e primordial, sugerem os
autores, deve ser a mudança na forma como vemos a
nós mesmos e nos relacionamos com os outros na vida
cotidiana.
Apesar da atual imprecisão conceitual, Van
Ness e Johnstone (2007, p. 7) esclarecem que, para uma
ação ser considerada como uma prática de Justiça Res-
taurativa, deve conter um ou mais dos seguintes ele-
mentos não descritos em ordem de importância:
1 - Deve existir um processo relativamente infor-
mal que objetive envolver vítimas, ofensores e ou-
tros que sejam próximos a estes ou à situação ou
crime em discussão.

2 - Deve haver uma ênfase no empoderamento de


pessoas comuns cujas vidas estão afetadas pelo
crime ou ato de ofensa.

3 - Algum esforço deve ser feito pelos tomadores


de decisão ou pelos facilitadores para promover
uma responsabilização que gere menos estigmati-
zação ou punição ao ofensor e maior reconheci-
mento e responsabilização deste.
792 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

4 - Os tomadores de decisão ou os facilitadores


deste processo devem certificar-se de que tal pro-
cedimento seja guiado por certos princípios e valo-
res como: respeito deve ser demonstrado pelos ou-
tros, violência e coerção devem ser evitados ou
minimizados se for o caso, e inclusão é preferida à
exclusão.

5 - Os tomadores de decisão ou os facilitadores do


processo devem devotar atenção significativa à
ofensa sofrida pelas vítimas, às necessidades resul-
tantes dela e às formas tangíveis, possíveis destas
serem resolvidas e encaminhadas.

6 - Deve haver alguma ênfase no fortalecimento ou


reparação das relações entre as pessoas.
(JOHNSTONE; VAN NESS, 2007, p. 7, tradução
nossa).

Como podem ser observados, os elementos des-


tacados pelos autores contém referências a princípios,
valores, procedimentos e até mesmo alguns resultados
almejados pelo modelo de Justiça Restaurativa.
Adota-se neste trabalho o entendimento de que
os valores restaurativos orientam processos restaurati-
vos que, por sua vez, para serem efetivos, resultam em
decisões ou soluções restaurativas. Deve-se ter em
mente que a participação nos processos restaurativos é
voluntária e que tal característica é de essencial impor-
tância no alcance do resultado restaurativo, uma vez
que o reconhecimento de responsabilidade enseja uma
atitude voluntária de implicação e engajamento em
relação ao resultado pactuado entre os participantes.

3.3 Os principais modelos de Justiça Restaurativa

As práticas e políticas envolvendo a Justiça Res-


taurativa assumem diferentes formas, se as analisamos
tanto dentro de um país como em países diferentes.
Para Froestad e Shearing (2005, p. 81) as formas con-
temporâneas ou modelos mais debatidas de justiça res-
 
Ampliando as lentes 793

taurativa são os programas de mediação vítima-


infrator, os encontros restaurativos com grupos de fa-
miliares e os círculos de emissão de sentenças. Eles re-
latam que no Reino Unido, nos EUA e na maior parte
da Europa, a Justiça Restaurativa foi associada a for-
mas de mediação entre as vítimas e os infratores.
O primeiro programa de reconciliação vítima-
infrator foi estabelecido em 1974 em Ontario, EUA, pela
comunidade Mennonite. O modelo é descrito como
baseado na mediação direta entre vítima e ofensor, fo-
calizando o tratamento dos traumas relacionados ao
crime ou ofensa sofrida e a assistência às vítimas. O
modelo também objetiva a mudança de vida dos infra-
tores e o restabelecimento das relações entre os envol-
vidos. Froestad e Shearing (2005) afirmam que a neces-
sidade de humanizar o sistema de justiça criminal foi
uma das motivações para o programa.
Na Nova Zelândia, após a segunda metade da
década de 80 foram realizadas reformas no Sistema de
Justiça, no qual era visível um pano de fundo de vio-
lência política contra os Maori. Tais reformas basea-
ram-se na necessidade de uma resposta da justiça cri-
minal apropriada para os jovens de tal origem. Assim,
os encontros restaurativos com grupos de familiares
foram introduzidos como parte do programa nacional,
com a intenção de evocar e utilizar as tradições dos
nativos para a resolução de problemas. Essas reuniões
foram introduzidas tanto como uma alternativa aos
tribunais, como na forma de um guia para as sentenças.
Já na Austrália, o modelo dos encontros restau-
rativos ganhou espaço na política e na legislação por
iniciativas de administradores de nível médio e profis-
sionais, e não como conseqüência de um desejo de se
engajar em políticas raciais construtivas (CRAWFORD
e NEWBURN apud FROESTAD; SHEARING, 2005).
Um dos modelos mais conhecidos desenvolvidos na
Austrália, iniciado em New South Wales, é o modelo
Wagga Wagga. Em resumo, é aplicado em processos de
encontros restaurativos conduzidos pela polícia para
794 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

casos de menor gravidade como uma forma de “adver-


tência restaurativa”. As reuniões conduzidas pela polí-
cia foram introduzidas em Sidney em 1995.
Outra prática restaurativa muito utiliza-
da nos EUA e Canadá são os círculos de emissão de
sentenças. Esta prática relaciona-se diretamente ao rea-
parecimento da soberania dos povos indígenas nas
reservas norte-americanas e alguns projetos adotam
práticas oriundas dos povos indígenas da América do
Norte. No Canadá, à semelhança da Nova Zelândia,
um dos objetivos primários foi a redução do número
de jovens aborígines em prisões.
Os autores afirmam que, apesar dos círculos de
emissão de sentenças não serem previstos em nenhuma
legislação, eles se baseiam no arbítrio jurídico. Assim,
não são realizados como forma de encaminhamento
alternativo, mas fazem parte do processo formal de
emissão de sentenças. Para decidir o caso o juiz consi-
dera a participação consensual das partes envolvidas
na demanda, incluindo a comunidade na qual elas es-
tão inseridas.

3.4 A Justiça Restaurativa no Brasil

No Brasil, as práticas de Justiça Restaurativa são


muito recentes e têm ganhado um espaço crescente. No
ano de 2005, por meio da parceria entre o Ministério da
Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desen-
volvimento – PNUD, deu-se início a um projeto: “Pro-
movendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça
Brasileiro” (SLAKMON; DE VITTO; GOMES PINTO,
2005). Nesta ocasião, três projetos-piloto foram implan-
tados com financiamento pelas citadas instituições, nas
cidades de Brasília - DF, Porto Alegre - RS e São Caeta-
no do Sul - SP.
O projeto implementado em São Caetano do Sul
é desenvolvido por iniciativa da Vara da Infância e da
Juventude e conta com apoio institucional no Tribunal

 
Ampliando as lentes 795

de Justiça de São Paulo. Melo, Ednir e Yasbek (2008)


relatam que o projeto pauta-se pela busca de promoção
de responsabilidade ativa e cidadã das comunidades e
escolas onde é aplicado. Para tanto, tal projeto baseia-
se na parceria entre justiça e educação com vistas à cri-
ação de espaços de resolução de conflitos e de “sinergi-
as de ação” em âmbito comunitário, escolar e forense.
O projeto é desenvolvido nas Varas da Infância e Ju-
ventude, nas escolas e nas comunidades, por meio da
utilização dos círculos restaurativos para a abordagem
de atos infracionais e conflitos diversos.
O projeto desenvolvido em Porto Alegre é o
mais conhecido no Brasil. Chama-se “Justiça para o
século 21” e recebeu grande impulso no ano de 2005,
assim como os dois outros projetos-piloto. O projeto
tem o objetivo de divulgar e aplicar as práticas da Jus-
tiça Restaurativa na resolução de conflitos nas escolas,
ONGs, comunidades e no Sistema de Justiça da Infân-
cia e da Juventude. Sobre a aplicação no Sistema de
Justiça, além das práticas aplicadas na 3ª Vara da In-
fância e da Juventude, são também desenvolvidas no
Sistema Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul e nas
escolas. O Projeto defende que tais ações consistem em
estratégias de enfrentamento e prevenção à violência
em Porto Alegre. Os encontros promovidos pela Cen-
tral de Práticas do Juizado são chamados de círculos
restaurativos nos quais são reunidas as pessoas dire-
tamente envolvidas nos atos infracionais: o adolescen-
te, a vítima, amigos e familiares. Os encontros restaura-
tivos são voluntários e só ocorrem se o infrator, a víti-
ma e seus pais concordarem em participar do procedi-
mento. São conduzidos por um coordenador que tem o
objetivo de auxiliar os participantes na definição de um
plano de ações para resolverem o problema.
O projeto desenvolvido em Brasília no Núcleo
Bandeirante, cidade satélite do Distrito Federal, deno-
mina-se “Justiça Restaurativa”. Foi criado em 2006 e é
aplicado no Juizado Especial Criminal, para os crimes
de menor potencial ofensivo. As partes devem concor-
 
796 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

dar com a participação no processo restaurativo sendo


que, ao que tudo indica, trata-se de procedimento apli-
cado entre autor e vítima, podendo participar também
o Ministério Público.
Além dos três projetos-piloto, uma quarta expe-
riência, novíssima, está surgindo no cenário nacional.
Trata-se da implantação da Justiça Restaurativa no Tri-
bunal de Justiça de Minas Gerais. As práticas restaura-
tivas estão sendo disponibilizadas no Juizado Especial
Criminal e no CIA/BH, ou seja, adultos e adolescentes
poderão passar pelos círculos restaurativos, modalida-
de de prática escolhida, e experimentar essa aborda-
gem para os delitos e infrações em que incorreram.
Percebe-se que os programas restaurativos bra-
sileiros utilizam-se do modelo chamado círculo restau-
rativo, também chamado por alguns autores de encon-
tro restaurativo que, por sua vez, não se destina a
apontar culpados ou vítimas, nem a buscar perdão e
conciliação. O foco é o fomento à percepção de que
nossas ações nos afetam e afetam aos outros, e que so-
mos responsáveis por seus efeitos.

4. Ampliando as lentes: a necessidade de novos


projetos restaurativos

Segundo Melo, Ednir e Yasbek (2008) há uma


grande controvérsia na literatura em relação aos fun-
damentos da Justiça Restaurativa, mas algo comumen-
te aceito pelos teóricos é a forte tendência a considerá-
la em torno de seus valores, processos e resultados. Os
autores fazem menção de um movimento mais amplo
da Justiça Restaurativa que aumentou suas possibili-
dades de aplicação para além do Sistema de Justiça
Criminal. Esse movimento amplificador considera que
tais valores, processos e resultados podem ser aplica-
dos aos mais diferentes tipos de conflitos e contextos.
Os autores fazem referências a documentos oficiais que
norteiam e embasam o que chamam de “estruturação

 
Ampliando as lentes 797

alargada” de Justiça Restaurativa. Como exemplo, são


citadas as Diretrizes de Riad4 e as Regras de Beijing5
que apontam claras conexões entre os princípios res-
taurativos e ações voltadas à prevenção de violências.
Tais documentos, ao incentivarem a criação de espaços
de resolução de conflitos utilizando-se práticas restau-
rativas em ambientes de trabalho, escolas e comunida-
des, reforçam o desenvolvimento de ações restaurati-
vas fora do âmbito judicial, descentralizando as abor-
dagens das mesmas e realocando-as nos espaços onde
ocorre a maioria dos conflitos.

4.1 Investigando o potencial restaurativo

Froestad e Shearing (2005) afirmam a necessi-


dade de novos projetos restaurativos, inovadores, com
base no potencial dessa metodologia. Os autores en-
tendem que a capacidade de realização de valores res-
taurativos por meio dos programas e metodologias
varia de acordo com a forma como os processos restau-
rativos são organizados e administrados. Isso significa
que, dependendo da qualidade dos processos restaura-
tivos, teremos ou não a produção de valores da Justiça
Restaurativa. Os autores oferecem quatro dimensões,
consideradas “um modo mais frutífero e prático de
avaliar a capacidade restaurativa das práticas restaura-
tivas” (Idem).

4.1.1 O grau de inclusão dos interessados

Trata-se de perspectiva desenvolvida por


McCold (apud FROESTAD; SHEARING, 2005), utili-

4 Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência.


5Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça
da Infância e da Juventude.
798 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

zada para medir o potencial restaurativo de diferentes


práticas. Os programas que “ampliam o círculo”, per-
mitindo uma pluralidade de vozes serem ouvidas,
normalmente terão capacidade de restauração e de so-
lução de problemas maior do que os programas que
limitam a participação.
A partir da análise de trechos extraídos dos re-
gistros das metodologias do Programa Pólos (Projeto
Mediação) e do Programa Mediação de Conflitos –
PMC, pode-se observar que o capital social e humano é
uma das bases conceituais do projeto de mediação do
Programa Pólos e também do PMC. O mesmo é defini-
do nas relações de solidariedade e confiabilidade entre
indivíduos e grupos. Ao que parece, na parte prescriti-
va (metodologias) dos programas, o fomento e o apri-
moramento das relações interpessoais e coletivas dão
tônica aos serviços e intervenções disponibilizados aos
cidadãos e grupos que os acionam. Tal ênfase sugere a
constituição de oportunidades para a inclusão dos inte-
ressados nas questões trabalhadas pelos programas, o
que pode ser entendido também como ampliação do
círculo de envolvidos nas demandas e na escuta de
uma pluralidade de vozes.
Outros trechos extraídos de documento do Pro-
grama Pólos de Cidadania, que também são aplicados
ao PMC, relatam uma metodologia que se realiza por
meio de atuação coletiva e que prioriza ações, decisões
e discussões da rede local.
Os dois programas realizam o diagnóstico orga-
nizacional comunitário, com o intuito de promover
conhecimento e reconhecimento de/e entre os atores
locais, o que também pode ser visto como expressão da
inclusão dos interessados nas questões, não só pelo
catálogo de entidades que se forma, mas principalmen-
te devido ao processo de mobilização que pode ser fo-
mentado com a aplicação dessa ferramenta específica.
Pode-se identificar a característica de ampliação
do círculo de interessados diante dos procedimentos de

 
Ampliando as lentes 799

mediação, que envolvem processos de interação dialó-


gico-argumentativos entre pessoas e grupos.

4.1.2 Ampliação da agenda ou dos objetivos dos programas

Froestad e Shearing (2005) extraíram esta di-


mensão de avaliação de Dignan e Van Ness e afirmam
que, segundo esses autores, alguns programas definem
suas metas de forma muito específica; por exemplo, na
reparação do dano específico, causado por crimes es-
pecíficos. Já outras práticas apresentam metas mais
ampliadas; consideram, por sua vez, a reintegração dos
infratores de volta à comunidade, abordam problemas
estruturais e desigualdades sociais que geram contex-
tos de dominação e a eclosão de conflitos, ou objetivam
empoderar a própria comunidade, aumentando sua
capacidade de gerenciamento dos conflitos. Froestad e
Shearing afirmam que os programas que ampliam sua
agenda ou objetivos podem ter maior potencial restau-
rativo, uma vez que atuam além da “intervenção de
crise”, em direção a uma governança legítima dos con-
flitos e das suas causas.
Ao analisar as metodologias dos Programas com
base neste segundo critério, referente à ampliação do
foco de atuação de ações restaurativas, observa-se que
o Programa Pólos estabelece em sua metodologia as
estratégias de constituição do capital social e humano,
formação de redes sociais mistas e resolução de confli-
tos pela mediação como as alternativas mais adequadas
“(...) para a minimização ou superação dos riscos e da-
nos que acometem esses segmentos sociais diuturna-
mente, além das inúmeras violências que conturbam a
tranqüilidade das famílias, grupos sociais e indivíduos
dessas localidades” (p. 18). O Programa Mediação de
Conflitos, seguindo a mesma linha, utiliza-se de tal
tecnologia, porém inserida dentro de uma política de
prevenção às violências e crimes. Segundo a política de
segurança pública do Governo de Minas Gerais, a pre-
800 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

venção às violências deve ser situacional e social. Isso


só é possível quando a violência e o crime não são vis-
tos como os únicos problemas em pauta, mas somam-
se a outras formas de desvantagens sociais.
Por isso, pode-se afirmar que ambas as experi-
ências ampliam suas agendas e os seus objetivos, ao
atuarem na prevenção de violências e crimes.

4.1.3 Alocação de responsabilidades, recursos e o controle dos


serviços investidos na comunidade local

De acordo com este critério os autores entendem


que o potencial restaurativo também varia conforme
suas localizações de base de poder e controle. Assim,
programas que alocam responsabilidades, recursos e o
próprio controle dos serviços investidos na comunida-
de local, mesmo que sejam instituídos e administrados
pelo Estado, tendem a ter maior potencial restaurativo.
Segundo tal entendimento, o movimento de redução
de intervenções do sistema formal instituído e o de
aumento das intervenções da comunidade geram um
maior protagonismo da sociedade civil, redistribuem o
poder e dispersam os processos de tomada de decisões
privilegiando o âmbito comunitário. Os autores tam-
bém entendem que os programas baseados localmente
e dirigidos por entidades não governamentais tendem
a ter um potencial restaurativo maior que os progra-
mas administrados pelo Estado.
Sobre este terceiro critério de análise das meto-
dologias, afirma-se que um dos conceitos trabalhados
nos programas é o de subjetividade, entendida como a
capacidade de autocompreensão e de percepção do
senso de responsabilidade do indivíduo e da própria
população sobre seu contexto e seus rumos. As ações
dos programas, ao voltarem-se para o fomento e consti-
tuição de capital social e humano, compreendido den-
tro das relações e de redes locais que visam transfor-
mações e melhorias, tornam-se expressão da alocação

 
Ampliando as lentes 801

de poder, recursos e serviços na localidade e, por isso,


alocam também responsabilidades.
Em relação ao controle dos serviços prestados,
Mika e Zher citados por Froestad e Shearing (2005)
afirmam que o controle do serviço deve ser investido
na comunidade local e em seus cidadãos. O trecho des-
tacado de Gustin (2005, p. 22), referente ao Programa
Pólos, prevê que os resultados devem ser processados
nas e pelas comunidades, proporcionando a revisão
das práticas sociais de mobilização e de organização
popular.
Esses pontos selecionados já demonstram que as
metodologias prevêem a alocação nas comunidades
dos serviços, recursos e que o controle dos serviços
volta-se também para a comunidade.

4.1.4 Tomada de decisão com base no conhecimento e na


capacidade local

Com base nas identificações de Braithwaite,


Froestad e Shearing (2005) o diálogo respeitoso e a não
dominação devem ser considerados como valores res-
taurativos centrais. Os autores sugerem que o respeito
a tais valores significa que não apenas as vozes dos
envolvidos no conflito sejam ouvidas, mas que a reso-
lução dos problemas deva ser baseada principalmente
em relatos de como os interessados locais experimen-
tam e concebem os conflitos.
À medida que os profissionais dominam as reu-
niões restaurativas, os envolvidos no conflito perdem
parte de seu senso de pertencimento do problema. As-
sim, os programas que priorizam a tomada de decisão com
base no conhecimento e na capacidade local têm maior po-
tencial restaurativo do que programas nos quais a reso-
lução de problemas está circunscrita por definições e
categorias formuladas em outras instâncias.
O procedimento adotado pelos programas para
a abordagem dos conflitos baseia-se no método de me-
802 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

diação de conflitos. Com base na análise das metodolo-


gias pode-se destacar as seguintes características do
procedimento de mediação adotado:
a) é um processo dialógico que atribui às partes
o poder de decisão sobre a situação;
b) tal poder de decisão baseia-se no convenci-
mento e não na persuasão;
c) o procedimento valoriza os pontos positivos
do problema e da argumentação dos envolvi-
dos, baseia-se na comunicação colaborativa,
busca a preservação da igualdade quanto às
condições de diálogo e enfatiza a consciência de
que o problema tem solução e de que esta deve
ser proposta por eles mesmos.

Nota-se que as características de tal procedi-


mento de mediação, atende ao quarto critério de avali-
ação do potencial restaurativo dos programas. O diálo-
go respeitoso e a não-dominação, identificados por
Braithwaite (apud FROESTAD; SHEARING, 2005),
como valores restaurativos centrais, são elementos en-
contrados nos casos em análise. Destes valores restau-
rativos decorrem, segundo o referido autor, que a reso-
lução dos problemas deve ser baseada em como os en-
volvidos experimentam e concebem os conflitos. Ob-
serva-se também que o conhecimento e capacidade
local são elementos previstos nas metodologias como
aspectos que devem ser valorizados e determinantes
nos processos de tomadas de decisões.
As duas práticas mineiras de resolução de con-
flitos em âmbito comunitário foram avaliadas, até aqui,
quanto aos seus aspectos prescritivos. Como se pode
depreender da exposição feita pelos autores, o poten-
cial restaurativo de ações e programas pode ser mensu-
rado ao avaliarem-se os processos utilizados para as
tomadas de decisões ou alcance de soluções.
Com base nas análises expostas acima, é possí-
vel identificar os quatro critérios do potencial restaura-
tivo no que se refere à parte prescritiva, ou conteúdo
 
Ampliando as lentes 803

programático dos programas. Desse modo, os aspectos


encontrados nas metodologias apontam para a consta-
tação de que os casos em análise são imbuídos de alto
potencial restaurativo e que se constituem em práticas
de Justiça Restaurativa em contextos comunitários.

Conclusão

As discussões sobre o tema do acesso à Justiça


no Brasil têm sido feitas, geralmente, segundo a ótica
da reforma do sistema judicial, traduzidas na busca
pela celeridade, mudanças na legislação processual,
utilização de métodos autocompositivos, ampliação do
acesso material e a modernização administrativa. Ape-
sar das melhorias alcançadas, deve-se reconhecer que
algumas limitações no acesso não serão sanadas so-
mente com tais medidas. Esta constatação coincide com
o entendimento de Santos (2007) quando afirma que a
questão do acesso à justiça diz respeito também à mu-
dança ao quê se tem acesso. No rol de caminhos alter-
nativos à realização de Justiça estão inseridas as práti-
cas de Justiça Restaurativa, que, neste trabalho, foi con-
ceituada a partir de seus princípios e valores. Estes
permitem que as concepções e práticas restaurativas
sejam ampliadas e possibilitam a identificação de no-
vas experiências assim consideradas.
Com base no entendimento de Froestad e Shea-
ring (2005) sobre a necessidade de novos projetos res-
taurativos e as investigações de potencial restaurativo
de programas ou ações, analisaram-se as duas experi-
ências mineiras: o Projeto de Mediação do Programa
Pólos de Cidadania e o Programa Mediação de Confli-
tos da SEDS.
Os resultados encontrados a partir das análises
de conteúdo das metodologias foram:
Em relação ao conteúdo programático ou à me-
todologia adotada pelas experiências, verificou-se a
presença dos quatro critérios restaurativos, propostos
804 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

pelos autores citados, de forma expressiva, o que apon-


ta para o elevado grau de restauratividade do Projeto
de Mediação do Programa Pólos e do Programa Medi-
ação de Conflitos da SEDS. Constituem-se assim em
experiências, cujas previsões de atuação, as caracteri-
zam como práticas de Justiça Restaurativa em contex-
tos comunitários.
É recomendável, porém, que as metodologias do
NMC do Pólos e do PMC estabeleçam mecanismos
mais efetivos para a abordagem de aspectos estruturais
e ampliação da participação dos envolvidos nas ques-
tões interindividuais. Como visto na apresentação das
metodologias, os mecanismos utilizados neste sentido,
colocam na pauta da comunidade os temas mais em-
blemáticos trabalhados nos atendimentos interindivi-
duais, por meio da coletivização de demandas (proje-
tos, palestras, ações na comunidade). Porém, tais ações
não asseguram o alcance de tais propostas e efeitos nos
casos de mediação individual, para as pessoas neles
envolvidas. Sugere-se, pois, o envolvimento mais ativo
do PMC e NMC com as redes locais, por meio de dis-
cussões de casos, encaminhamentos e chamamento de
tais atores para participarem da solução das demandas.
Isso ensejaria a perda de certo grau de “neutralidade”
ou “imparcialidade”, típica dos processos de mediação
de conflitos, em prol da ampliação de aspectos restau-
rativos nas abordagens.
Quanto à efetividade das experiências mineiras,
conclui-se que quanto mais restaurativa a abordagem
do problema, mais efetiva ela será. Uma vez demons-
trada que as expectativas do projeto e do programa,
expressas em seu conteúdo programático (metodolo-
gia), condizem integralmente com a proposta restaura-
tiva, resta considerar que os quatro critérios caracteri-
zadores da restauratividade das ações são capazes de
assegurar que as necessidades dos usuários do PMC e
do NMC do Programa Pólos sejam atendidas. Isto por-
que os processos restaurativos pressupõem participa-

 
Ampliando as lentes 805

ção, acolhida das necessidades e a responsabilização


dos envolvidos nos problemas.
Com base nos resultados expostos, pode-se con-
firmar a hipótese inicialmente proposta. As experiên-
cias mineiras de mediação de conflitos interindividuais
e coletivos, desenvolvidas em contextos comunitários,
utilizam-se de princípios e valores restaurativos, e pre-
vêem processos restaurativos em seus conteúdos pro-
gramáticos. Na prática dos programas, constata-se que
os processos utilizados nos casos coletivos identificam-
se com práticas restaurativas, pois concretizam valores
e princípios restaurativos. Produzem assim resultados
restaurativos, principalmente entre os participantes das
comunidades. Em relação aos casos interindividuais,
porém, há menor potencial restaurativo, devido, prin-
cipalmente, à ausência de participação da rede social
local no desenvolvimento da questão.
Pode-se concluir que tais experiências mineiras
apresentam em suas bases metodológicas princípios de
Justiça Restaurativa comunitária e desenvolvem pro-
cessos de mediações coletivas com alto grau de restau-
ratividade, característica também dos seus resultados.
Quanto à mediação interindividual, tanto processo
quanto o resultado são parcialmente restaurativos.
A pesquisa também demonstrou a efetividade
de tais práticas, o que permite a conclusão de que sig-
nificam realização de justiça para pessoas e grupos que
delas se utilizam, sendo também viáveis quanto a sua
aplicação em contextos comunitários.

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Os desafios da Justiça de Transição
ante a consolidação do Estado
Democrático De Direito
As dificuldades enfrentadas pelo processo
transicional brasileiro expressas nas reformas
institucionais para a implementação da
democracia

Henrique  Ratton  Monteiro  de  Andrade1    


Jessica  Holl2  

Resumo: Este artigo visa analisar os desafios para a


efetivação do Estado Democrático de Direito em um
contexto pós ditadura. Para isso, em sua primeira parte
é feita uma abordagem conceitual acerca das peculiari-
dades do Estado Democrático e do Estado ditatorial;
em seguida, parte-se para uma análise da importância
da Justiça de Transição no contexto de mudanças e dos
seus elementos basilares. Por fim, é feita uma reflexão
acerca das heranças ditatoriais e das conquistas demo-
cráticas, com especial enfoque no caso brasileiro.

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.


2graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais,
bolsista do programa Jovens Talentos para a Ciência – CAPES, mem-
bro do Grupo de Estudos de Direito Internacional CIJ – GEDI CIJ da
UFMG

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Os desafios da Justiça de Transição... 815

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Justiça


de Transição. Brasil.

Abstract: This article aims to analyze the challenges to


the effectiveness of the Democratic Rule-of-Law State
in a post dictatorship context. For that, in its first part, a
conceptual approach about the Democratic State’s and
the dictatorial State’s peculiarities is carried on; this is
followed by an analysis about the basic elements and
the importance of Transitional Justice in such context.
Lastly a reflection on dictatorial’s heritage and demo-
cratic’s achievements is presented, with special focus in
the Brazilian case.
Keywords: Democratic Rule of Law State. Transitional
Justice. Brazil.

1. Introdução

Conhecer a verdade não é simplesmente saber


de fatos ou dados, é um conhecimento mais interiori-
zado, mais profundo; é fazer jus a uma memória, a um
passado que não deve e não pode ser ignorado. Verda-
de vem do grego aletheia, em que o prefixo a indica ne-
gação e lethe significa esquecimento. Modernamente
essa palavra assume um significado mais importante:
segundo o pensamento de Heidegger, aletheia quer di-
zer desvelamento. Logo, verdade pressupõe o não es-
quecimento – isto é, a memória3 – e o desvelamento de
circunstâncias e eventos passados cujo entendimento
ainda permanece obscuro para a história e para a soci-
edade como um todo.
Desvelar a verdade é, simultaneamente necessá-
rio e perigoso. É necessário por consistir um direito de

3Com relação ao conceito de memória, é possível análisá-lo sob três


perspectivas: memória impedida, manipulada e obrigada (RICOUER,
2007, p. 82-104).
816 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

todos o acesso a qualquer fato que ajude a construir a


história de seu povo. Entretanto, é perigoso, pois o
modo como essa história vai ser contada ao longo dos
anos deve ser pensado a fim de se evitar que alguns de
seus aspectos sejam deliberadamente omitidos enquan-
to outros sejam excessivamente exaltados. Sistemas
autoritários geralmente possuem versões oficiais que
são distantes da realidade por eles vivenciada. Muitos
acontecimentos são abafados no intuito de promover
seu esquecimento e outros são manipulados, de modo
que a nova versão favoreça o governo.
Quando esses regimes são desfeitos e intenta-se
instaurar um Estado Democrático de Direito, é necessá-
rio que haja um período transicional de reforma das
instituições – sociais e políticas –, de sorte que os lega-
dos autoritários não minem as chances de
(re)democratização do país. É nesse ponto que entra a
chamada justiça de transição, que objetiva proporcionar
as condições mais favoráveis para o desenvolvimento
dos elementos principais do novo modelo de Estado.
Assim, a justiça transicional exerce um papel
constante de memória e de desvelamento, posto que só
é possível consumar a passagem de regimes quando se
tem conhecimento dos eventos ocorridos anteriormen-
te. Nesse sentido, todo e qualquer abuso cometido de-
ve ser apurado, de forma a assegurar sua não recorrên-
cia. Contudo, são muitos os resquícios que ficam de um
regime totalitário. São muitas as instituições que ainda
trabalham conforme o modelo ditatorial. Elas estão
mascaradas em nosso sistema, e, mesmo que velada-
mente, ainda representam os perigos do retorno ao
modelo autoritário. São claros os exemplos observados
no contexto brasileiro: a insistência na adoção da no-
menclatura Revolução de 64, de modo a negar o uso do
termo golpe; a eleição de expoentes do poder coercitivo
Estatal, como o coronel Telhada da Rota, o que estabe-
lece uma ligação inadequada entre política e segurança
policial; e, ainda, declarações como a do então gover-
nador de São Paulo, Geraldo Alckimin – sobre a desas-
 
Os desafios da Justiça de Transição... 817

trosa operação da Rota que resultou em nove mortes –


que afirmou que “Quem não reagiu está vivo”4.
Perpetuar a existência dessas instituições é man-
ter acesa a brasa do autoritarismo que é passível de se
incendiar novamente a qualquer momento – que pode
ser incendiada por qualquer ator político a qualquer
momento. A justiça de transição se faz presente, então,
como forma de garantir que não haja impunidade, re-
vanchismo e muito menos esquecimento. Nesse caso,
recordar é necessário; é garantir a vida e o respeito a
todos os direitos fundamentais que ela traz consigo.

2. Do autoritarismo à democracia, período de


transição

Desde a Grécia Antiga, percebe-se a preocupa-


ção do homem com as formas de governo presentes em
sua própria sociedade. A definição dessas formas segue
diferentes parâmetros, sendo o mais comum deles a
existência ou não das liberdades individuais e políticas.
Isso posto, tem-se a estruturação de dois modelos go-
vernamentais básicos e diametralmente opostos: o au-
toritarismo e a democracia.
A priori, é mister pontuar os diferentes sistemas
autoritários a fim de se evitar incorrer em erros de clas-
sificação corriqueiros. Ditadura, autocracia, monarquia
e despotismo são todas formas autoritárias de governo
(BOBBIO, 1997, p. 94), que, apesar de guardarem mui-
tas semelhanças, possuem diferenças fundamentais no
tocante à maneira com que o Estado lida com seu povo.
Em todos esses regimes há a sujeição das massas a uma
elite política, caracterizada ou não pela presença de um
chefe, uma vez que o voto, bem como a maioria dos
direitos e liberdades políticos e indiviuais são abolidos

4 Entrevista postada no site http://g1.globo.com/ atualizado em

12/09/2012 17h04.
818 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

ou limitados pelo regime, de sorte que somente persis-


tem aqueles direitos que são de interesse para a manu-
tenção do Estado (BADÍA, 1989, p. 285). Cria-se, então,
pseudo-direitos que têm sua validade limitada à von-
tade estatal. É importante destacar, nesse sentido, o
papel dos regimes totalitários, que são o expoente má-
ximo do controle da vida do cidadão. Regimes como o
facismo e o nazismo encontraram vasta base ideológica
entre o povo e chegaram a desfrutar de enorme aceita-
ção social. Conquanto, também exerceram um controle
descomunal sobre a vida de seus subjugados, de modo
a garantir a manutenção do poder:
Porque o líder totalitário enfrenta duas tarefas que
a princípio parecem absurdamente contraditórias:
tem de estabelecer o mundo fictício do movimento
como realidade operante da vida de cada dia, e
tem, por outro lado, de evitar que esse novo mun-
do adquira nova estabilidade; pois a estabilização
de suas leis e instituições certamente liquidaria o
próprio movimento. (ARENDT, 1989. p.441)

Por intermédio dessa breve explanação é possí-


vel perceber que o contexto brasileiro de outrora dife-
rencia-se da forma popularmente considerada totalitá-
ria. Muitas pessoas se confundem ao tentar caracterizar
o período militar brasileiro. A nomenclatura correta é
ditadura, entretanto não podemos considerá-lo um
governo totalitário, mas sim, autoritário. Destarte, tor-
na-se conveniente frisarmos que a ditadura brasileira
teve sua instauração apoiada por vários setores da so-
ciedade. Movimentos de toda elite burguesa contribuí-
ram para a derrocada do presidente João Goulart. “O
golpe de Estado militar de 1964 foi o instrumento que
permitiu aos setores da burguesia mais claramente (ali-
ados) ao capital internacional e aos grandes proprietá-
rios de terra descartar o ‘perigo de uma república sin-
dicalista’” (OLIVEIRA, 1980. p.108).
Após a entrada dos militares no poder, as clas-
ses que outrora apoiaram a “substituição presidencial”

 
Os desafios da Justiça de Transição... 819

foram sistematicamente perdendo influência, na mes-


ma medida em que as liberdades democráticas passa-
ram a ser consecutivamente cerceadas, até o ápice da
afronta aos direitos humanos ser atingido por meio do
Ato Institucional nº 5. São notórios os casos de tortura e
restrição de direitos fundamentais, que por uma ques-
tão prática não serão aqui pormenorizadas5. Contudo,
o fim do regime militar, trouxe consigo nova adversi-
dade: a temida transição eficaz para um regime nova-
mente democrático. As más lembranças e as desconfi-
anças permaneceram, o que poderia levar a uma tran-
sição conturbada.
Entrementes, nesse momento podem ser feitos
diversos questionamentos: a que se destinaria essa
transição? Estaríamos indo de um regime ditatorial
para qual novo modelo? Para uma democracia? E em
que consiste essa democracia? Em que ela se diferenci-
aria do antigo modelo? Para darmos início a essas ex-
plicações, é preciso que voltemos à Grécia antiga, mais
especificamente a Atenas, ao chamado “berço da de-
mocracia”.
A democracia, como imaginada na Grécia anti-
ga, propunha um vínculo entre sujeito e objeto do po-
der político, sem aventar qualquer possibilidade de
representatividade. Dessa forma, o poder político de-
veria ser exercido diretamente (GARCYA PELAYO,
1993, p. 175). Ela abarcava uma noção de poder cons-
truído de baixo para cima, priorizando sempre a sobe-
rania popular (SOARES, 2001, p. 313). Mormente,
cumpre ressaltar, que a condição de cidadão nas pólis

5 Para mais detalhes acerca das violações aos direitos humanos

perpetradas durante o regime ditatorial brasileiro, ver: Direito à


Memória e à Verdade, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República, 2007; 68 a geração que queria mudar o mundo: relatos.
Organização: Eliete Ferrer. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de
Anistia, 2011.
820 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

gregas era limitada a apenas alguns homens gregos,


pois excluía a grande maioria do contingente populaci-
onal representado por mulheres, escravos, crianças e
estrangeiros (não gregos). Ademais, a inexistência de
uma esfera privada individual também era um fato
significativo, presente nesse regime. O sujeito somente
possuía significado no contexto público da pólis.
Modernamente, esse conceito é impraticável, se-
ja pela enorme densidade demográfica, seja pelo confli-
to de interesses entre o público e o privado expresso de
forma mais agravada no jogo político atual. Sob a égide
do paradigma do Estado Democrático de Direito6, a
democracia funciona de forma indireta através do
princípio da representatividade. O indivíduo exerce
seu poder democrático periodicamente (no caso brasi-
leiro a cada quatro anos) e indiretamente7 (não toma as
resoluções públicas, apenas elege alguém para fazê-lo).

6 Para fins desse artigo é adotada a definição de Estado de Direito

presente no Relatório do Secretário Geral das Nações Unidas ao


Conselho de Segurança S/2004/616 de 23 de agosto de 2004: “ ‘Estado
de Direito’ [...] refere-se a um princípio de governança segundo o qual
todas as pessoas, instituições e entidades, públicas e privadas,
incluindo o próprio Estado, estão submetidas às leis que se
promulgam publicamente, sendo igualmente impostas e
independentemente aplicadas, e que são compatíveis com as normas e
princípios internacionais de direitos humanos.”. Do inglês: “The ‘rule
of law’ is a concept […] [that] refers to a principle of governance in
which all persons, institutions and entities, public and private, includ-
ing the State itself, are accountable to laws that are publicly promul-
gated, equally enforced and independently adjudicated, and which are
consistent with international human rights norms and standards.”
(Tradução livre). Disponível em inglês em:
http://www.unrol.org/files/2004%20report.pdf
7 É importante destacar a presença, cada dia mais acentuda, dos canais

de participação da sociedade na administração pública. Como


exemplo podem ser mencionados os conselhos políticos – Conselho
Tutelar, Conselho do Idoso - as audiências públicas e o orçamento
participativo. Entrementes, esse movimento de crescente atuação
direta da população nas questões governamentais não muda o fato de
que, nas democracias modernas, a participação popular se dá, via de
regra, de modo indireto.

 
Os desafios da Justiça de Transição... 821

Não obstante, como bem definiu Marcelo Andrade Cat-


toni de Oliveira e David Gomes (2011, p. 225) a demo-
cracia é um processo infindável e hiperbólico cuja
completude nunca será plena. Representa sempre um
porvir aberto a transformações e receptivo a uma infi-
nita pluralidade.
Sem embargo, o mero rompimento, abrupto ou
gradual, com um regime autocrático, não implica a
vivência de um regime democrático reafirmado pela
autonomia e autodeterminação por parte do povo, da
nação e do Estado – que são os sujeitos da transição
(GOMES, REZENDE. 2012, p. 116). Qualquer mudança
resoluta e irrevogável corre o risco de assumir uma
máscara autoritária semelhante à que se quer findar.
Assim sendo, o exercício pleno da democracia e a ins-
tauração do Estado Democrático de Direito demandam
doses homeopáticas, tendo em mente que esse é um
processo sempre passível de novas transformações, que
deve transcorrer-se paulatinamente:
“Pensar a transição na justiça de transição como
transição para um modelo pronto de democracia a
ser consolidado é um risco perigoso ao qual não se
pode ceder. A transição não termina, porque a
democracia não se completa, não se esgota.”
(CATTONI DE OLIVEIRA, GOMES. 2011. p.225)

O processo de democratização na América Lati-


na ainda engatinha perante outras consolidadas demo-
cracias difusas pelo globo terrestre. A experiência re-
democratizante vivenciada pelos latino-americanos
trouxe consigo melhorias, mas também frustrações com
os ditos governos “populares” e igualmente com as
próprias instituições democráticas (D'ARAÚJO, 2008,
p. 323). A justiça de transição, por conseguinte, ocupa
ofício garantidor de uma profunda e profícua reforma,
de modo a se preocupar com a efetivação dos princí-
pios do Estado Democrático de Direito – constitucio-
nalidade, defesa dos direitos fundamentais, legalidade
da administração, segurança jurídica, proteção jurídica
822 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

e das garantias processuais e divisão dos poderes


(SOARES, 2001, 304-305) – sem olvidar dos desafios
oriundos das transformações que ainda porvirão.

3. Justiça da transição

A expressão justiça de transição, empregada pri-


meiramente por Ruti Teitel na década de 1990, trás o
desafio de amalgamar dois termos que, a princípio,
podem parecer inconciliáveis: transição e justiça. Tran-
sição, remete ao latin transitiō, que se refere à ação de
passar, de ir de um lugar a outro, de passar de um lado
para outro (GOMES, REZENDE, 2012, p. 108). Assim,
transmite a ideia de fluidez, de mudança paradigmáti-
ca. Entretanto, uma mudança a que não cabe esquema-
tizações ou roteiros predefinidos, que – conforme será
exposto adiante – depende das peculiariedades de cada
contexto.
Por outro lado, tem-se que a justiça é um fim em
si mesma, que ela não deve ser praticada com o objeti-
vo de se alcançar a felicidade, ou como meio para
qualquer outro fim, mas que ela está diretamente rela-
cionada com o princípio da equidade – um dos funda-
mentos do Estado Democrático de Direito – e, por isso,
apresenta um valor intrínseco. Historicamente, a socie-
dade ocidental, de acordo com Chaïm Perelman, de-
senvolveu seis principais parâmetros para a definição
do justo: a distribuição segundo o mérito individual,
segundo as obras de cada pessoa, segundo as necessi-
dades específicas de cada um, segundo a posição na
hierarquia social e de acordo com as atribuições legal-
mente estabelecidas (NUNES, 2003, p. 1). Para efeitos
desse artigo, no intuito de nos determos mais especifi-
camente no encontro da justiça com a transição, adota-
remos a visão que correlaciona o ideal de justiça com o
equilíbrio necessário para se evitar a impunidade dos

 
Os desafios da Justiça de Transição... 823

atos cometidos em desacordância com o Direito8, bem


como para que não se caia na aplicação do direito ape-
nas por revanchismos. Dentro desse panorama, é im-
portante, ainda, dar o devido destaque à materialidade
da justiça, que fornecerá a matiz interpretativa do que
se enquadra no que é Direito. Justiça, então, analisada
como “ideal de responsabilidade e equidade na prote-
ção e defesa dos direitos e prevenção e punição dos
crimes” (CSNU, 2004, p. 4)9.
Dessa forma, uma justiça de transição estaria
ancorada na necessidade de uma mudança de lado, de
uma mudança do paradigma político no sentido de
uma (re)democratização e de uma (re)estruturação dos
institutos que garantem a defesa dos direitos humanos,
da igualdade e da liberdade. Quando colocados em
paralelo, os termos justiça e transição remetem à tenta-
tiva de um acordo na sociedade no tocante aos abusos
e violações de direitos fundamentais cometidos no pas-
sado, com o intuito de que haja a responsabilização dos
perpretadores (CSNU, 2004, p. 4) e que seja assegurado
o direito à verdade, de modo que se caminhe em dire-
ção à justiça.
Quando mencionado o direito à verdade, seria
até mais adequado referirmo-nos a um direito às ver-
dades, pois o que não se pode buscar nesse momento é
a implementação de uma verdade oficial, inquestioná-
vel. O processo transicional genuíno requer múltiplas
possibilidades de verdade, diferentes visões e versões.
Isso, pois a historiografia contemporânea tem cada vez

8 Com relação às normas de direito, aqui é preciso ter em mente a

Fórmula de Hardbruch, segundo a qual todo o direito vigente é válido,


desde que ele não seja extremamente injusto. Portanto, não se objetiva
legitimar absolutamente qualquer norma jurídica apenas por ela estar
positivada; seria ainda necessário que ela não violasse os preceitos
fundamentais de direitos humanos nem as normas de jus cogens.
9 Do inglês: “‘justice’ is an ideal of accountability and fairness in the

protection and vindication of rights and the prevention and punish-


ment of wrongs”. (Tradução livre). (CSNU, 2004, p. 4).
824 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

mais se distanciado da tradição marxista, em que havia


a busca por uma história plena e objetiva, como se os
fatos estivessem prontos e fechados, aguardando para
serem encontrados pelo historiador, que transmitiria ao
público a verdade (CATTONI, GOMES, 2011, p. 218).
Esse novo paradigma da historiografia, natu-
ralmente, abre-se para o risco de que qualquer versão
ou narração seja considerada como história, de modo a
colocar em xeque a autenticidade e a veracidade de
todos os estudos, na medida em que eles poderiam,
deliberadamente, ser manipulados. Entrementes, esse é
um risco que não pode ser eliminado sem que se caia
na concepção, ainda mais perigosa, de uma história
oficial – na verdade, aqui o risco de manipulações seria
ainda maior, pois é vedado qualquer tipo de contesta-
ção da versão apresentada como correta.
Como forma de minimizar esse risco há de se
garantir que a construção histórica ocorra de modo a
seguir critérios mínimos de cientificidade e que se dê
em espaço público (CATTONI, GOMES, 2011, p. 226).
Essa demanda por publicidade manifesta-se até como
um impositivo constitucional do Estado brasileiro para
com os cidadãos, que, de acordo com o art. 5º, XXXIII,
C.F. de 1988, “têm direito a receber dos órgãos públicos
informações de seu interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei,
sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo
sigilo seja imprescidível à segurança da sociedade e do
Estado”. Nesse ponto, em específico, é preciso destacar
a importância para o processo de construção histórica
no Brasil que teria a publicidade dos materiais10 coleta-
dos e produzidos pelos militares durante a ditadura,
mas que permanecem em sigilo de Estado. É um tanto

10 Esses materiais talvez não sejam ainda considerados como

documentos, propriamente, por ainda não terem passado pelo crivo de


uma crítica que os eleve à condição documental estrita (CATTONI,
GOMES. 2011, p. 219).

 
Os desafios da Justiça de Transição... 825

quanto questionável a imprescindibilidade do sigilo


desses papéis para a segurança da sociedade brasileira.
A única justificativa para a necessidade desse
sigilo seria a alegação de que a divulgação dos materi-
ais em questão poderia colocar em risco o frágil equilí-
brio da democracia do Brasil. Contudo, essa seria uma
justificativa válida em 1988, quando a Constituição
Democrática acabava de ser promulgada. Hoje, quando
são comemorados os 25 anos desse texto constitucional,
não há mais motivos racionais que corroborem a teoria
de que o sigilo desses papéis constitui requisito para a
segurança nacional. A verdade é exatamente o contrá-
rio: o que compromete os institutos democráticos brasi-
leiros é esse sigilo. A publicidade dos arquivos atende-
ria a uma demanda do povo, a quem interessaria dire-
tamente dispor de mais de uma visão, de mais de um
panorama acerca dos acontecimentos do período dita-
torial.
Com relação à justiça da transição, ela é uma
justiça a ser efetivada sempre em um tempo posterior
ao devido, ao necessário (GOMES, REZENDE, 2012, p.
223-224). É uma justiça em nome de pessoas que tive-
ram suas liberdades violentadas, seus direitos avilta-
dos, mas que não mais estão aqui para manifestarem
seus clamores por justiça, para terem suas perdas inde-
nizadas. Para esse grupo cabe à memória o papel do
reconhecimento de suas lutas em prol de um Estado
Democrático de Direito. Entrementes, essa também é
um justiça para as gerações vindouras, que têm o direi-
to de receberem um Estado cada vez mais democrático,
de sorte que sua própria liberdade, que os seus pró-
prios direitos individuais não sejam tolidos como fo-
ram os de seus antepassados. Assim, essa dialética en-
tre passado e futuro, entre memória e projeto
(RICOEUR, 2007, p. 101) torna a justiça de transição
uma demanda do presente e para o presente, de modo
que não se postergue ainda mais a sua execução, no
sentido de tornar cada vez mais viável o caminhar em
direção ao Estado Democrático de Direito.
826 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

Nesse diálogo entre passado, presente e futuro,


nota-se que cada nação apresenta uma história pre-
gressa, vive um momento presente e que todas estão
abertas a seus futuros. Posto isso, observa-se ainda que
as demandas de cada sociedade perante seu passado
são diferentes, que cada uma delas está inserida em um
contexto próprio e que esse não deve, e não pode, ser
desconsiderado no processo transicional. É com base
nessa diferença contextual e de percepção dos fatos por
parte das diferentes comunidades, que Teitel explica
como em uma dada circunstância o Estado Democráti-
co de Direito pode fundamentar tanto a reafirmação da
legalidade e anterioridade da lei, quanto à negação
dessa legalidade e a refutação de defesas nela baseadas
(GOMES, REZENDE. 2012, 109-110). Assim, cada pro-
cesso de transição de um regime autocrático deve se-
guir seus próprios padrões, sem importar fórmulas
padronizadas no estrangeiro (CSNU, 2004, p. 3), de
sorte a atentar para suas próprias peculiariedades e
necessidades, afinal, nem toda ditadura se deu nos
mesmos moldes e nem todo povo reagiu da mesma
forma às situações que foram colocadas para ele.

4. Justiça de transição

Após sistemáticas violências aos direitos huma-


nos, a justiça transicional tem como tarefa primordial
fazer erigir no nascente Estado Democrático de Direito
um ambiente de paz sustentável (ZYL, 2009, p. 32). Pa-
ra tanto devem ser adotadas diferentes medidas, que
dependem necessariamente da história pregressa da
nação. Contudo essas políticas públicas seguem os pi-
lares básicos de todo processo de transição, que mani-
festar-se-ão de forma própria em cada Estado. O tripé
fundamental da justiça de transição consiste na verdade
e memória, na justiça e na reparação; além desses, tam-
bém é interessante acrescentar a (re)construção das insti-
tuições democráticas. Cada um desses elementos contri-

 
Os desafios da Justiça de Transição... 827

buiu para a execução de um projeto que nenhum deles


seria capaz de cumprir isoladamente: o de construir
um corpo estatal, com base no reconhecimento de um
passado de graves violações à dignidade inerente à
pessoa humana, que progrida continuamente no senti-
do da efetivação dos princípios democráticos.

4.1. Verdade e memória

O direito à memória fundamenta-se no reconhe-


cimento por parte do governo, que corroborou com – e
até promoveu – graves violações aos direitos funda-
mentais do homem, dos erros cometidos. Aqui, é ex-
tremamente importante que não haja a negação do pas-
sado autoritário, nem a tentativa de minimizar suas
consequências para todo o rol de vítimas, sejam elas
diretas ou indiretas. Isso, pois para que seja concreta-
mente possível caminhar rumo a um Estado Democrá-
tico de Direito, é preciso que seja incorporado à história
nacional o passado ditatorial, de sorte que ele constitua
um exemplo, sempre presente na memória de toda a
nação, de um modelo de governo a ser constantemente
evitado.
Nesse sentido, faz-se necessário remetermo-nos
a Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e a David Fran-
cisco Lopes Gomes (2012, p. 229), quando eles afirmam
a irrevogabilidade e a irrecuperabilidade do passado
em toda a sua complexidade, logo somente um olhar
crítico de reatribuição de sentido é que nos poderia
salvar dessas características e, a partir de então, possi-
bilitar um aprendizado genuíno com base no que já foi
vivido pela nação. Dessa forma, fica evidente que é
necessária uma real introjeção das experiências passa-
das do povo, para que, somente a partir de então, seja
possível (re)construir um ambiente democrático, que
vá na direção oposta da experiência autoritária, preve-
nindo assim a possibilidade de haver uma
(re)instauração de um novo regime de exceção.
828 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

O próprio jusfilósofo Hans Kelsen (2006, p.15) já


mencionava a imutabilidade dos fatos acontecidos, mas
a possiblidade de sua (re)interpretação à luz de um
novo parâmetro – no caso, normativo. Segundo o aus-
tríaco, seria efetivamente impossível transformar fatos
acontecidos em não acontecidos, entretanto, uma nova
interpretação acerca desses mesmos acontecimentos
seria possível à luz de normas postas em vigor após o
evento a ser interpretado. Trazendo essa análise para o
caso do processo transicional, observa-se que, quando
já instalados os primeiros sustentáculos do novo Esta-
do democrático, é possível (para não dizer necessário)
que nos voltemos para uma nova análise do momento
político anterior e, aqui, sem os entraves de uma histo-
riografia oficial, possamos (re)interpretar os fatos ocor-
ridos, agora, tendo como parâmetro os princípios do
Estado Democrático de Direito.
Se, por outro lado, é feita a opção pelo esqueci-
mento, tem-se três principais consequências: o impe-
dimento de investigações acerca das violações aos di-
reitos humanos, o comprometimento da compreenção
crítica da história nacional – compreenção essa que
favoreceria a consecução de mudanças estruturais na
sociedade –e a consolidação da impressão, na socieda-
de como um todo, de que, mesmo com o passar do
tempo, não houve significativas mudanças nas institui-
ções políticas herdadas da ditadura (PETRUS, 2010, p.
275). Portanto, evidencia-se a importância de preservar
o direito à verdade e à memória como uma garantia
fundamental no autêntico Estado Democrático de Di-
reito. Isso, posto a necessidade da sociedade ver reco-
nhecidas as atrocidades cometidas no passado, a im-
portância delas serem investigadas e, quando possível,
também serem punidas.

 
Os desafios da Justiça de Transição... 829

4.2. Justiça

Mais do que uma proposta revanchista de punir


os algozes daqueles que se revoltaram contra o sistema
ditatorial, a justiça precisa ser vista como mecanismo
de efetivação dos direitos humanos, que constituem o
norte do Estado Democrático de Direito, e não uma
nova violação a eles. Assim, os processos judiciais apa-
recem como uma conclusão das investigações acerca
dos envolvidos nas violações aos direitos humanos e
sua responsabilização por suas próprias ações e unica-
mente por essas. Não será justiça se for ignorado o
princípio da proporcionalidade entre o crime cometido
e a pena aplicada, no intuito de tornar as incriminações
exemplares para a comunidade. Também não será jus-
tiça se o réu já chegar em seu julgamento previamente
condenado pela sociedade e esse fator constituir-se
como determinante para sua condenação penal.
Dessa forma, a principal função dos julgamen-
tos consiste na reafirmação política das normas e dos
valores da sociedade democrática (ZYL, 2009, p. 35). Os
processos judiciais demonstram à sociedade que as
violações aos direitos fundamentais não são aceitáveis
e que a comunidade jurídica não é – e nem pode ser –
conivente com elas. Assim, é dado mais um passo em
direção à reestruturação da confiança entre a sociedade
civil e o governo, confiança essa que havia sido des-
construida quando aqueles que tinham a obrigação
prima facie de representar o povo e assegurar a proteção
dos direitos dos cidadãos foram os que violaram esses
direitos.
Assim, pode-se observar que algumas decisões
políticas adquirem extrema importância para o desen-
rolar desse processo, são elas: a definição dos critérios
de acusação e de punição dos perpretadores; a análise
da oportunidade das sanções penais ou políticas; e a
expulção dos cargos da administração pública dos en-
volvidos com as violações aos direitos humanos
830 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

(MEYER, 2012, p. 231). Essas seriam medidas prelimi-


nares, que permitiriam a consecução de uma justiça
transicional realmente preocupada com a legalidade e a
justiça das ações a serem tomadas; que não desconside-
raria as emoções dos envolvidos, mas que nem por isso
se curvaria às paixões. Que, portanto, almeja a estrutu-
ração de bases sociais realmente democráticas, isto é,
que respeitem as opiniões e os interesses da comuni-
dade, e que estão ancoradas nos princípios do Estado
de Direito.
Contudo, na maioria dos processos de transição
ocorridos na América Latina, incuindo o brasileiro, o
direito das vítimas foi apresentado como uma variável
menor, que deveria ser contraposta ao ideal de concili-
ação nacional (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010). Assim,
com o intuito de evitar uma revolta nacional e propor-
cionar uma maior aceitação das violações perpetradas
no passado, optou-se, no caso do Brasil em específico,
pela incorporação de uma lei de anistia – de autoanistia
– ao novo ordenamento inaugurado em 1988, que a
princípio deveria ser considerado democrático.
Nesse momento, não se observou que exata-
mente a incorporação dessa herança normativa clara-
mente antidemocrática é que impediria a reconciliação
nacional com o passado autoritário. A Lei 6683/79 con-
figurou-se como uma tentativa de impedir, em um
primeiro momento, os debates públicos acerca das vio-
lações aos direitos basilares do homem ocorridas du-
rante o período ditatorial e culminou na impunidade
dos perpetradores bem como daqueles que se aprovei-
taram do regime, para cometer crimes supostamente
em nome de uma ideologia11. Esses fatores constituem
um entrave para a aceitação e compreenção pela nação

11É importante relembrar Aristóteles, quando ele afirma que não se


deve cometer uma injustiça no intuito de reparar uma outra injustiça,
pois não é a primeira injustiça que tornará a segunda uma justiça,
ambas permanecerão como injustiças. (ARISTÓTELES, 1973)

 
Os desafios da Justiça de Transição... 831

do período autoritário, pois para que se possa virar a


página da ditadura primeiro é necessário que essa pá-
gina seja lida e interpretada (CATTONI DE OLIVEIRA,
GOMES, 2011, p. 220).

4.3. Reparação

No que concerne às reparações, conforme iden-


tificado por Paul Van Zyl (2009, p. 36-37), primeira-
mente faz-se necessário definir qual será o conceito de
vítima adotado. Pode-se entender como vítima aqueles
que sofreram diretamente com as violações aos direitos
humanos, como por exemplo, os que foram alvos de
torturas, desaparecimentos ou assassinatos; mas, por
uma outra perspectiva, é possível adotar uma compre-
enção mais ampla, uma que considera como vítima
também aqueles que sofreram de forma mais indireta
as consequências do sistema, como os que foram alvo
de preconceito, perderam suas terras ou seus cargos
públicos.
Entretanto, independente da concepção adota-
da, é imprescindível que o Estado arque com a repara-
ção das vítimas, visto ser essa uma demanda do direito
internacional (ZYL, 2009, p. 36). Importante ainda, res-
saltar que essa reparação não necessariamente adquiri-
rá caráter pecuniário, também pode dar-se por meio de
medidas simbólicas (como a construção de monumen-
tos ou homenagens prestadas através de nomes de ruas
ou praças) ou de ajuda psicológica para os envolvidos
em situações traumáticas. A reparação monetária é
apenas mais uma opção e, se implantada, será apenas
de caráter simbólico, pois é inviável um cálculo preciso
de todas as possíveis perdas financeiras tidas pelas
vítimas em decorrência das medidas adotadas pelos
regimes autoritários, bem como valorar bens infungí-
veis como a vida e as integridades física e moral.
Desse modo, as reparações, em suas mais varia-
das formas, apresentarão, necessariamente, um caráter
832 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

simbólico, em que o objetivo central é demonstrar que


o Estado reconhece sua culpa mediante as violações
dos direitos fundamentais. Logo, é importante que,
quando da implementação das reparações, haja sempre
um equilíbrio entre o demandado pela vítima e o que o
Estado pode arcar ou implementar, de sorte a seguir os
princípios da equidade e proporcionalidade.

4.4. (Re)construção das instituições democráticas

A (re)construção das instituições democráticas


aprece na “dimensão de futuro a ser problematizada”
(GOMES, REZENDE, 2012, p. 112) da justiça de transi-
ção. É aqui que o olhar ao passado conflui com a cons-
trução do presente e do futuro, na medida em que o
exemplo das estruturas ditatoriais passa a ser compre-
endido como um exemplo do que não deve ser seguido
ou buscado na estruturação do Estado Democrático de
Direito.
Quando as investigações acerca das violações
aos direitos humanos demonstram que esses eventos
não foram esporádicos (ZYL, 2009, p. 34-35), é possível
compreendê-los como uma política de Estado e, apartir
de então responsabilizar as instituições estatais – e não
apenas os indivíduos – pelas perpetrações ocorridas.
Com isso, espera-se que essas instituições sejam forte-
mente reformadas ou completamente extintas no Esta-
do Democrático de Direito, pois somente assim, ele
poderá obter a legitimidade necessária para o seu ple-
no desenvolvimento.
Se, por outro lado, houver a manutenção dessas
instituições corre-se o risco de que a nova democracia
já seja tolhida em seu nascimento, visto não estar pro-
priamente ancorada em um sistema reconhecido por
garantir a defesa dos direitos humanos. Assim, ela já
nascerá com descrédito e desapontamento por parte da
comunidade, que almejava um novo governo, com no-
vas instiuções, com novas políticas, que rompessem

 
Os desafios da Justiça de Transição... 833

com o passado de abusos, ao invéz corroborar com a


sua manutenção. Portanto, o necessário é que ocorra
um desligamento das instituições responsáveis pelas
práticas que violavam os direitos básicos dos indiví-
duos, para, então, ser possível o nascimento de novas
instituições que não tenham a marca do autoritarismo
em seu passado, nem em seu presente.

5. Justiça, Transição, Brasil

A instituição do Estado Democrático de Direito


após um período autoritário fundamenta-se necessari-
amente nas heranças desse período. As marcas de uma
ditadura na sociedade que a vivenciou não são sim-
plesmente apagadas de um momento para o outro.
Elas persistem, ainda que, de forma mais velada.
Quando a sociedade se opôs de forma mais
branda, ou aceitou quase que pacificamente o regime
ditatorial, há a tendência da nova democracia ser guia-
da pelas antigas forças politicas, apenas “cosmetica-
mente renovadas”. Se, por outro lado, a sociedade civil
herdou um forte engajamento político e um genuíno
comprometimento com os direitos humanos, pode-se
evitar o esquecimento forçado dos crimes ocorridos o
que levaria à responsabilização dos envolvidos e a
mudanças contundentes na estruturação das institui-
ções políticas (BRITO, 2009, 66-67). Naturalmente, a
conformação da ditadura em um Estado não determina
necessariamente como estruturar-se-á seu novo regime
político, entretanto, constitui um forte indicativo de
como esse regime tende a ser moldado.
Nesse ponto é que a justiça de transição adquire
fundamental importância, por constituir o momento de
reorganização institucional, político, jurídico e social
do nascente Estado Democrático de Direito. Seria uma
utopia crer que instantaneamente todos os institutos
autoritários seriam extintos e que os alicerces democrá-
ticos surgiriam automaticamente. Na verdade, o que se
834 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

tem é um longo e gradual processo de contínua substi-


tuição das heranças ditatoriais por novos elementos
democráticos.
Um claro exemplo desse processo é o caso brasi-
leiro, em que coexistem justiça militar, possibilidade de
pena de morte, instituições policiais que não respeitam
o devido processo legal, flagrantes violações aos direi-
tos humanos dos presos e uma lei de autoanistia com
comissões da verdade, da anistia, dos mortos e desapa-
recidos políticos e com uma Constituição Federal que
busca reconhecer e proteger as minorias. Heranças au-
toritárias ao lado de perspectivas democráticas. Passa-
do convivendo com o futuro. E, no presente, um pro-
cesso transicional em andamento, que já obteve diver-
sas vitórias, mas que ainda tem muitos desafios a en-
frentar.
No que concerne à Justiça Militar sua estrutura-
ção pode ser criticada por constituir um privilégio dos
militares e um mecanismo que favorece práticas corpo-
rativistas que podem levar à impunidade dos indicia-
dos (OLIVEIRA, 2012, p. 1). Exemplos dessa situação
podem ser facilmente encontrados na jurisprudência
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos12,
que já considerou admissíveis diversos casos em que o
Estado brasileiro, na figura de seus órgãos de polícia
(no caso, polícia militar e o próprio exército) não asse-
gurou a proteção aos direitos humanos.
Em dezembro de 2004, foi levada à Comissão In-
teramericana de Direitos Humanos uma petição em
que se argumentava que um cadete da Primeira Com-
panhia do Curso de Treinamento de Oficiais da Aca-
demia Militar das Agulhas Negras do Exército Brasilei-
ro havia morrido em outubro de 1990 em virtude de
tratamento desumano por parte de seus superiores. O
inquérito policial instaurado não havia chegado a ne-

12 A partir de agora tratada como CIDH.

 
Os desafios da Justiça de Transição... 835

nhuma conclusão, e havia sido inócuo, assim como a


ação civil de indenização por danos. Em 2005 a Comis-
são também recebeu uma petição contra o Estado Bra-
sileiro, proposta por representantes da sociedade civil
que se apresentavam em defesa de 10 ciranças que de-
veriam cumprir medidas sócio-educativas e foram le-
vadas ao Centro de Triagem e Recepção do Rio de Ja-
neiro, onde deveriam ser redirecionadas para as uni-
dades em que cumpririam as medidas cabíveis. Em
maio de 2002, as referidas crianças teriam sido vítimas
de abusos e até de torturas no Centro em que estavam
detidas. Os inquéritos abertos não chegaram a qual-
quer conclusão e configurou-se uma condição de im-
punidade.13
A descrição desses eventos seria mais condizen-
te com a realidade de um Estado autoritário, em que
são notórias as violações aos direitos humanos, em es-
pecial os casos de tortura. Entrementes, um Estado
Democrático de Direito deveria ter como fundamento
precípuo o respeito à integridade física e moral de seus
cidadãos e ao devido processo legal. Logo, medidas de
abuso de poder por parte de qualquer funcionário pú-
blico não poderiam ser acobertadas pelo sistema judi-
ciário, mas deveriam ser devidamente esclarecidas e,
caso verificada a culpabilidade de algum dos envolvi-
dos, esse deveria receber as sanções proporcionais ao
seu ilícito.
Contudo, o advendo de uma justiça especial mi-
litar abre brechas legais para que muitos processos li-
gados a oficiais do exército e da polícia militar, por

13 Dados referentes ao relatório nº 72/08. Petição 1342-04.


Admissibilidade. Márcio Lapoente da Silveira. Brasil. 16 de outubro de
2008; e ao relatório nº 40/07. Petição 665-05. Admissibilidade. Alan
Felipe da Silva, Leonardo Santos da Silva, Rodrigo da Guia Martins
Figueiredo Tavares e outros. Brasil. 23 de julho de 2007. Disponíveis
em:
http://www.justica.sp.gov.br/novo_site/paginas/tabela_comissao.ht
ml
836 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

exemplo, tenham sua solução postergada o máximo


possível, isso, quando não culminam simplesmente na
total absolvição dos envolvidos. Esse corporativismo,
herdado das práticas militares do período da ditadura
brasileira, constitui-se como um entrave para a maxi-
mização dos ideais democrárticos, que têm como uma
de suas exigências a publicidade dos atos cometidos
por agentes públicos quando atuando em nome do Es-
tado.
Outro fator que também limita a efetivação da
democracia brasileira consiste na previsão legal da pe-
na de morte. A Constituição Federal de 1988, em seu
art. 5º, XLVII, alínea a define que “Não haverá penas:
de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos ter-
mos do art. 84, XIX”. Esse ponto em específico repre-
sentou um atraso da Constituição brasileira em relação
ao seu tempo, em que o direito internacional dos direi-
tos humanos rechaça qualquer possibilidade de pena
de morte. A própria Convenção Americana de Direitos
Humanos de 1969 – Pacto San José da Costa Rica14 – ao
tratar dos direitos civis e políticos, condena a pena de
morte em seu art. 4º. Todo o movimento internacional
vai na direção de se extirpar qualquer possibilidade da
pena capital, visto ser essa de impossível reparação em
caso de erro do judiciário e ser contrária ao princípio
da reeducação do indivíduo para o convívio em socie-
dade, como um dos objetivos da sanção penal.
A incorporação da Lei 6683/1979 ao ordena-
mento pós 1988, também é mais um exemplo das he-
ranças autoritárias ainda presentes no Brasil. A própria
Comissão Interamericana de Direitos Humanos já con-
denou as leis de autoanistia promulgadas pelos regi-
mes ditatoriais no intuito de livrarem seus agentes das
condenações por práticas que violem os direitos fun-
damentais. O caso Gomes Lund e outros v. Brasil ilustra

14 Disponível em:
http://www.aidpbrasil.org.br/arquivos/anexos/conv_idh.pdf

 
Os desafios da Justiça de Transição... 837

como a Comissão rechaça a incorporação dessa lei pelo


Estado brasileiro e exige desse medidas concretas de
reparação às vítimas do regime. Contudo, a não aceita-
ção do governo brasileiro da decisão da CIDH configu-
ra-se como mais uma tentativa de se conter os movi-
mentos em prol da memória e da verdade relativas ao
regime autoritário. Podemos, então, enumerar três
principais fatores que contribuíram para a aceitação
dessa lei de anistia na realidade brasileira: primeiro, o
contexto histórico da transição vivenciada pelo Brasil,
que foi controlado pelo antigo regime ditatorial e influ-
enciado pelas lutas pela anistia; em seguida, o papel de
legalização da ditadura exercido pelo poder judiciário;
e os movimentos sociais que ocorreram após 1988, que
se voltaram mais para a crítica aos déficits institucio-
nais do que para a proposição de soluções para as
questões políticas concretas (PIRES JÚNIOR,
TORELLY. 2010, p. 196-206).
Entretanto, atermo-nos apenas aos resquícios di-
tatoriais proporcionaria uma análise incompleta da
comunidade política brasileira. O passado recente do
país demonstra uma preocupação de atores estatais e
privados em promover a ampliação do respeito aos
direitos humanos, o incremento dos estudos acerca do
período ditatorial e a expansão do direito à memória e
à verdade.
Em dezembro de 1995, por meio da Lei
9140/1995, foi instituída a Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos (COMISSÃO
ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS
POLÍTICOS, 2007, p. 17). Seu objetivo era solucionar os
casos de desaparecimentos forçados e mortes de oposi-
tores políticos perpetrados por agentes estatais entre os
anos de 1961 e 1988. Essa Comissão permitiu que o go-
verno brasileiro assumisse sua responsabilidade pela
integridade dos presos e pelo destino dado a eles, em
virtude da elucidação das circunstâncias em que ocor-
ream as prisões, mortes e torturas. Em agosto de 2001,
a Medida Provisória nº 2151 criou a Comissão da Anis-
838 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

tia, que tem como função analisar os requerimentos de


indenização formulados pelas vítimas da ditadura que
se viram impedidas de exercer atividades econômicas,
unicamente em virtude do regime político, no período
entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro de 198815.
Também com o intuito de elucidar os fatos ocorridos
durante o período ditatorial, foi criada a Comissão Na-
cional da Verdade (Lei 12528/2011) cujo foco está na
apuração de graves violações aos direitos humanos16.
Vale ressaltar que sistematicamente estão sendo cria-
das comissões da verdade a níveis mais locais, como a
Comissão Anísio Teixeira de Memória
e Verdade da UnB, A Comissão da Verdade da Facul-
dade de Direito do Largo São Francisco e as Comissões
da Verdade da OAB de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Esse intenso movimento social no sentido de
promover um estudo mais detalhado dos acontecimen-
tos do período ditatorial e a consequente recriminação
das práticas que violam os direitos humanos indicam
que o Brasil está caminhando em direção à efetivação
do Estado Democrático. Isso, pois uma das demandas
primárias desse processo é o reconhecimento das viola-
ções cometidas no passado e de seu peso para a histó-
ria nacional, para que, então, possa-se buscar um Esta-
do livre dessas práticas.
Portanto, o exemplo brasileiro ilustra como fra-
gmentos autoritários convivem com projetos democrá-
ticos. É aqui que entra a Justiça de Transição: na pro-
moção dos princípios democráticos e na minimização
dos institutos herdados dos regimes ditatoriais. Esse é
um processo contínuo, sempre por fazer, visto que a

15 Mais informações disponíveis em:

http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ20BF8FDBITEMIDDB66A119
72EE4432A7654440E32B2B6CPTBRNN.htm Acesso em: 23 de março de
2013.
16
Mais informações disponíveis em: http://www.cnv.gov.br/ Acesso
em: 23 de março de 2013.

 
Os desafios da Justiça de Transição... 839

democracia constitui-se como um ideal a ser sempre


buscado, mas impossível de ser plenamente concreti-
zado. Logo, a justiça transicional não tem data certa
para terminar, na verdade, o que ela não tem é fim,
pois sempre surgem novos desafios, novas metas, no
sentido de se promover a máxima democratização pos-
sível do Estado.

Conclusão

As experiências boas e também as ruins devem


ser lembradas sempre. Ambas passam e, ou deixam
marcas gratificantes, ou eventos que, apesar de duros e
cruéis, servem para manter a memória em alerta, no
sentido de se evitar sua recorrência. O esquecimento
desses eventos, quando forçado, é um meio de manipu-
lar as memórias, de conformá-las com base em um
molde artificial, ou simplesmente de sufocá-las, na es-
perança de que elas nunca voltem à tona. Entretanto,
além de não ser saudável, isso não é possível. Por mais
que um governo, que um grupo político ou social, ou
que qualquer entidade almeje silenciar forçadamente as
memórias, elas sempre ressurgirão.
Elas não serão simplesmente afogadas no Rio
Letes de Dante Alighieri. Isso, pois o rio da Divina
Comédia não tem o intuito de sufocar o passado, de
evitar sua discussão ou sua superação. Ele apenas re-
cebe as memórias que já foram trabalhadas e interpre-
tadas, que já cumpriram seu papel de ensinar às gera-
ções futuras os males das experiências desastrosas. Es-
sas memórias é que já podem ser calmamente acolhidas
pelo fluxo das águas. As outras ainda precisam cum-
prir o seu papel social de assegurar um futuro livre dos
erros do passado.
A tentativa incauta de reprimir as lembranças
adquire um peso ainda maior quando considerada a
longo prazo. Impor uma memória predeterminada é
impedir a construção de documentos com valor histó-
840 Henrique Ratton Monteiro de Andrade & Jessica Holl

rico e, mais do que isso, atentar contra um direito fun-


damental do homem. Conhecer o passado é determi-
nante para a escrita de um futuro promissor e seguro.
A memória é um processo contínuo, e como tal deve
ser construída paulatinamente. Assim como um joa-
lheiro lapida uma pedra bruta, os fatos são trabalhados
e vão ganhando significado ao longo dos anos. Esse é
um processo lento, cuidadoso e contínuo.
Antes de adentrar no Letes é preciso acertar as
contas com o passado. É preciso compreender o que foi
esse passado e o que são essas memórias. Afinal, como
esquecer algo que não é plenamente conhecido? Como
se libertar de um passado, cuja não compreensão – e
consequente não superação – está enraizada nos mais
simples institutos da nação?
Primeiro é preciso que ocorra uma transição do
passado para o futuro, do autoritarismo para a demo-
cracia, da memória para o projeto. Assim temos o pre-
sente: a conjugação de opostos, a transição das realida-
des. Aqui é o momento da recordação em nome da efe-
tivação do regime democrático. Assim, a promoção
efetiva dessa transição, através do cultivo da memória,
da defesa da justiça, da proposição de indenizações às
vítimas e da (re)construção das instituições sociais é
que viabiliza o projeto de democratização. Portanto,
enquanto houver de pé um instituto que represente as
atrocidades do passado autoritário, a justiça de transi-
ção tem sua existência requerida e validada. O caminho
em direção ao pleno Estado Democrático de Direito é
longo e tortuoso, mas a justiça de transição apresenta-
se altiva e vigilante, de modo a impedir que novos
abusos sejam cometidos, assegurando que a memória
seja resguardada e que o amanhã seja vindouro.

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mecanismos eleitorais
contramajoritários
A experiência do regime de exceção brasileiro

Maria  Celina  Monteiro  Gordilho1  

Resumo: O presente trabalho se destina a apresentar


uma pesquisa em andamento no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Bra-
sília. A finalidade principal da pesquisa é investigar o
papel do Tribunal Superior Eleitoral na ditadura mili-
tar, mais especificamente no período médio da ditadu-
ra, a partir de 1970. O corte temporal foi feito nessa
época para englobar a promulgação da Lei de Inelegi-
bilidades (Lei Complementar n. 5/70), cuja análise será
o fio condutor da pesquisa, a partir de uma pesquisa
elaborada pelo professor David Fleischer. Foi escolhida
essa lei, pois análises históricas, jurídicas e políticas da
LC n. 5/70 indicam que a lei pode ter sido usada com
viés político, para atingir opositores do regime militar.
A partir do estudo da jurisprudência do Tribunal Su-
perior Eleitoral acerca da Lei de Inelegibilidades, pro-
põe-se a reconstrução histórica do papel desse tribunal
nesse período de exceção da história constitucional
brasileira.

1 Mestranda em Direito na Universidade de Brasília – UnB. Advogada.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
A justiça diante das armas... 847

Palavras-chave: ditadura militar – justiça eleitoral –


direito à memória e à verdade.

Abstract: This paper aims to introduce a research being


held at the Programa de Pós-Graduação em Direito of
the Universidade de Brasília. Its main finality is to in-
vestigate the role of the Electoral Supreme Court dur-
ing the military dictatorship in Brazil, specifically dur-
ing de mid-1970s. This decade was chosen to encom-
pass the publication of the Ineligibility Law (LC n.
5/70), whose analysis will be the conductor of this re-
search, as from a research held by Professor David
Fleischer on the subject. This law was chosen, because
historical, juridical and political analysis of the LC n.
5/70 indicate that it ma have been used with a political
bias, aiming opponents of the military dictatorship.
Departing from the study of the jurisprudence of the
Electoral Supreme court on the Ineligibility Law, it is
proposed the historical reconstruction of the role of the
Court during this exceptional time being of the Brazili-
an constitutional history.
Keywords: military dictatorship – electoral law – right
to memory and truth.

Introdução

A justiça de transição é um período que ocorre


posteriormente a um regime autoritário, onde ocorre-
ram numerosas e sistemáticas violações a direitos hu-
manos, no qual a sociedade procura reparar os danos
cometidos pelo governo anterior, buscar a verdade so-
bre os fatos, reformar o direito e as instituições que
violaram direitos humanos e possibilitar a eficácia da
democracia e a paz, além de identificar as vítimas. Con-
forme definição do International Center for Transitional
Justice, a justiça de transição é a resposta a uma siste-
mática violação de direitos humanos, um tipo de justi-
848 Maria Celina Monteiro Gordilho

ça adaptado a uma sociedade que se reconstrói após


um período de abuso dos direitos humanos.
O termo pode ser mais bem definido como “o
grupo de processos designados para se dirigir a viola-
ções de direitos humanos que se seguiram após perío-
dos de turbulência política, repressão estatal ou confli-
to armado" (OLSEN, 2010a, fl. 11), sendo notado que o
termo “justiça de transição” foi cunhado para descre-
ver procedimentos e mecanismos adotados em relação
à violência ocorrida no passado, que buscam a reconci-
liação da sociedade com seu passado e a promoção da
paz social.
Ruti Teitel, professora de Direito Comparado na
New York Law School que cunhou o termo "justiça de
transição", define-o como "a concepção de justiça asso-
ciada com períodos de mudança política, caracteriza-
dos pelo confronto com os erros do anterior regime
político repressor" (TEITEL, 2003, p. 69). Teitel afirma
que se identifica a justiça de transição desde o final da
Primeira Guerra Mundial, mas seu auge acontece com
o fim das ditaduras e dos conflitos armados ao redor
do mundo, na segunda metade do século XX, quando,
então, torna-se rotineiro (TEITEL, 2003, p. 71).
Várias medidas podem ser adotadas para se
chegar aos objetivos da justiça de transição, as quais
são implantadas de maneira diferente em cada país.
Podem-se ter, em resumo, programas de reparação às
vítimas, políticas de memória, reforma das instituições,
julgamentos e comissões da verdade. Cada uma dessas
medidas tem um foco diferente. A reparação às vítimas
se relaciona com a responsabilização do Estado; com a
admissão, pelo Estado, de que ocorreram violações de
direitos humanos, e busca reparar pecuniariamente as
perdas físicas, laborais e psicológicas que as vítimas e
seus familiares tiveram em decorrência do período de
exceção. Os julgamentos, por sua vez, procuram
igualmente responsabilizar o Estado pelas violações,
pela via do Judiciário, que irá julgar e condenar quem
deve ser punido. É um tipo de resposta direta à popu-
 
A justiça diante das armas... 849

lação, uma promoção da paz social por intermédio do


Judiciário.
A reforma das instituições procura readaptar o
sistema jurídico e alterar as leis e normas que foram
elaboradas e promulgadas no período de exceção, in-
clusive pelo fim do regime constitucional anterior. Por
fim, o objetivo das comissões da verdade é resgatar a
memória e apresentar uma história ideológica e politi-
camente neutra do período.
Nem todas essas abordagens são utilizadas no
sistema de justiça de transição. Pode-se escolher apenas
uma delas, ou algumas, embora seja sugerido que a
melhor estratégia é adotar uma mistura de medidas,
como reparação, responsabilização e comissão da ver-
dade, na chamada abordagem holística (OLSEN, 2010a,
p. 24).
No Brasil, essas medidas foram implementadas
em várias etapas, ao longo de três décadas, tendo como
início a Lei de Anistia, de 1979, e como ato mais recente
a criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012.
Nota-se (ABRÃO, 2011, p. 215) que muitas dessas e
outras medidas foram adotadas tardiamente em rela-
ção a outros países da América Latina que também
passaram por períodos de ditadura, nos quais a justiça
de transição operou mais rapidamente após o fim dos
regimes de exceção.
Considera-se como início da justiça de transição
brasileira a publicação, ainda sob a égide do regime
autoritário, no ano de 1979, da Lei n. 6.683, também
chamada de Lei da Anistia, concedida
a todos quantos, no período compreendido entre
02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes políticos ou conexo com estes,
crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos po-
líticos suspensos e aos servidores da Administra-
ção Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao
poder público, aos Servidores dos Poderes Legisla-
tivo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento
850 Maria Celina Monteiro Gordilho

em Atos Institucionais e Complementares (art. 1º,


caput).

Em recente decisão na ADPF 153, o Supremo


Tribunal Federal declarou que essa Lei é aplicável in-
clusive aos violadores de direitos humanos, ampliando
a interpretação do § 1º da Lei citada. Considerando as
peculiaridades da transição do regime militar para a
democracia brasileira, a anistia foi um primeiro e gran-
de passo que possibilitou a volta de exilados políticos,
mas também protegeu aqueles que violaram direitos
humanos. A Lei de Anistia foi um passo essencial e
relevante para a transição lenta e gradual para a demo-
cracia no Brasil, tendo se originado de pactos políticos
que possibilitaram o fim da ditadura.
Outras medidas transicionais brasileiras têm ca-
ráter reparatório. Há, por exemplo, duas Comissões
instaladas no âmbito do Ministério da Justiça: a Comis-
são de Anistia e a Comissão Especial de Mortos e De-
saparecidos Políticos. A primeira analisa os pedidos de
indenização formulados por pessoas impedidas de
exercer atividades econômicas por motivos políticos da
época da ditadura até a redemocratização, tais como
funcionários aposentados, congressistas cassados e
outras hipótese. A segunda, por sua vez, deve proceder
ao reconhecimento de vítimas e buscar a localização
dos corpos dos desaparecidos, para dar respostas aos
familiares das vítimas da ditadura e, assim, possibilitar
a responsabilização do Estado por essas mortes e desa-
parecimentos, de acordo com a Lei n. 10.536/2002.
Além dessas comissões, foi instalado um grupo
de trabalho que deve proceder a investigações e buscas
pelos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia (1972-
1975). Esse grupo de trabalho é a resposta a uma das
condenações do Brasil na Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos (CIDH) no caso Gomes Lund e outros
vs. Brasil sobre a Guerrilha do Araguaia, tendo a sen-
tença determinado que o Brasil, entre outras medidas,

 
A justiça diante das armas... 851

publique a sentença, proceda às investigações, puna os


responsáveis e revise a Lei de Anistia.
Esses são exemplos de medidas transicionais
que mostram que a justiça de transição no Brasil é atual
e ainda está acontecendo. A condenação do Brasil na
CIDH se deu em novembro de 2010. As comissões fo-
ram instaladas nos anos 1990 e ainda estão em ativida-
de. Além disso, recentemente a justiça de transição tem
ganhado apoio de magistrados de primeiro grau, que,
instados por familiares de vítimas notórias da ditadura
militar, determinam retificações nas certidões de óbito,
para colocar como causa mortis a tortura promovida
pela ditadura.
Porém, apenas essas comissões e medidas não
foram suficientes para atender as demandas da socie-
dade civil e dos grupos brasileiros que atuam em favor
dos direitos humanos por justiça. Nem a condenação
do Brasil na CIDH foi suficiente para atender a essas
demandas, apesar dos esforços empreendidos para
tanto.
Por esse motivo, foi criada recentemente a Co-
missão Nacional da Verdade, que busca resgatar a
memória do período militar. A criação dessa comissão,
juntamente com a existência de outras comissões e ou-
tras medidas transicionais, atende a abordagem mode-
rada estudada por Tricia Olsen, a qual traz a comissão
da verdade como meio eficaz para estabelecer respon-
sabilização e condenação de violações de direitos hu-
manos, enquanto ao mesmo tempo evita julgamentos
tendenciosos que podem mobilizar forças antidemocrá-
ticas. Para tanto, deve-se cumprir três condições: a ver-
dade deve ser completa, deve ser proclamada oficial-
mente, e deve ser exposta publicamente (OLSEN,
2010a, p. 21).
A partir dessas perspectivas, é possível conside-
rar que o Brasil vive, atualmente, uma nova fase em
sua justiça de transição, esse período pós-ditadura mi-
litar em que o país que teve um regime repressivo ten-
ta estabilizar suas instituições democráticas e se recon-
852 Maria Celina Monteiro Gordilho

ciliar com o passado. Esse novo momento transicional


atual tem na Comissão Nacional da Verdade sua prin-
cipal representante. Criada pela Lei n. 12.528/2012, a
Comissão da Verdade foi instalada e teve seus inte-
grantes nomeados em maio deste ano, com o objetivo
de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e
promover a reconciliação nacional” (art. 1°, caput).
Sua instalação não foi feita sem críticas e questi-
onamentos da imprensa e dos meios acadêmicos. Há
quem afirme que é um passo para futuras punições2,
outros defendem que a Comissão apure os crimes co-
metidos por militares e também por militantes3, e há,
por fim, aqueles que simplesmente não querem abrir a
“caixa de Pandora” da ditadura militar4.
Não se pode esquecer que já existem duas co-
missões instaladas no Ministério da Justiça com o obje-
tivo colateral de apurar a verdade: a Comissão de Mor-
tos e Desaparecidos Políticos (Lei n. 9.140/95) e Comis-
são de Anistia (Lei n. 10.559/02). Essas comissões, no
entanto, têm objeto de pesquisa mais restrito e prestam
outros serviços à justiça de transição, buscando outras
respostas para os questionamentos das vítimas.
A Comissão da Verdade, por sua vez, é direcio-
nada para a apuração da verdade, esclarecimento das
circunstâncias e identificação dos partícipes quanto às
violações de direitos humanos ocorridas em um perío-
do de tempo que engloba a ditadura militar brasileira
(1964-1985), com o objetivo de promover a reconstru-

2 Entrevista de Frei Betto à Globo, disponível em


http://oglobo.globo.com/pais/frei-betto-diz-que-comissao-da-
verdade-passo-para-punicoes-4992280, acesso em 17 ago 2012.
3 “Braga defende investigação de militares e de militantes”, disponível

em http://oglobo.globo.com/pais/frei-betto-diz-que-comissao-da-
verdade-passo-para-punicoes-4992280, acesso em 17 ago 2012.
4 “Comissão da Verdade é ‘moeda falsa’, diz general”, disponível em

http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,comissao-da-verdade-
e-moeda-falsa-diz-general,874634,0.htm, acesso em 17 ago 2012.

 
A justiça diante das armas... 853

ção da história nesse período (art. 3°, VII, Lei n.


12.528/12).
Todo país tem seus segredos, e as ditaduras mi-
litares da América Latina do séc. XX produziram mui-
tas caixas de Pandora. A ditadura brasileira, então, pe-
lo caráter documental da administração brasileira, po-
de ter produzido ainda mais caixas do que o normal. O
que muda é como o país irá lidar com a abertura dessa
caixa, com a memória e a sua história recente.
A pesquisa histórico-jurídica sobre o período de
exceção brasileiro pode auxiliar na reconstrução da
memória jurídica e política do regime militar. Nesse
aspecto, é importante que a sociedade brasileira conhe-
ça seu passado, para evitar os riscos das verdades insti-
tucionais e dos desvios históricos comumente feitos
por quem deixa um governo de exceção, de modo a
evitar que arbitrariedades ocorram novamente. Além
disso, apreender o passado é relevante também no as-
pecto social, pois uma das finalidades da justiça transi-
cional é promover o fechamento (closure) desse perío-
do, atentando para o aspecto de luto que existe após o
fim de um tempo de exceção, para que a sociedade ul-
trapasse psicologicamente esse período e possa, enfim,
seguir adiante, sem que as reminiscências do passado
continuem a assombrar o presente.
Com a instalação da Comissão Nacional da
Verdade, dá-se novo fôlego à justiça de transição brasi-
leira, e, igualmente, uma importância à dimensão da
memória e da verdade, o que leva à curiosidade e ne-
cessidade de investigar aquele período, procurando,
além disso, pesquisar a ditadura militar brasileira sob
variados enfoques, no que se insere a presente pesqui-
sa.

Proposta de pesquisa

Já se disse que a diferença do regime de exceção


brasileiro em relação aos seus congêneres latino-
854 Maria Celina Monteiro Gordilho

americanos reside no fato de sua legalidade autoritária


ser mais baseada na constituição e na criação de leis
que lhe oferecesse sustentabilidade, sem, no entanto,
afastar o poder da centralização no Executivo militar,
nem deixar o caráter ditatorial do regime.
Nesse aspecto, o regime militar necessitava de
mecanismos para se manter no poder e dar uma aura
de legalidade a seu governo, por meio da criação de
novas leis, enfraquecimento das demais instituições e
fortalecimento do Executivo. Assim, houve a promul-
gação de uma Constituição em 1967, alterada por uma
emenda constitucional em 1969. Outrossim, as institui-
ções que normalmente são fechadas em regimes ditato-
riais, tais como o Congresso, mantiveram-se em ativi-
dade, com raros momentos de suspensão das ativida-
des.
Em matéria eleitoral, foram realizadas várias al-
terações no corpo legislativo, com a edição de atos ins-
titucionais, emendas constitucionais e outras normas,
permitindo, dessa forma, que o próprio regime condu-
zisse as eleições para adequá-las aos seus interesses,
procurando obter uma maioria favorável ao governo.
Essas novas regras eleitorais eram diuturnamen-
te analisadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, o órgão
de cúpula da Justiça Eleitoral. A função primordial do
TSE é dar efetivação às garantias que constituem o
ethos da operação eleitoral. O Tribunal tem, entre suas
atribuições, a decisão das arguições de inelegibilidade.
Sobre esse tribunal, já se disse que:
“E, no Tribunal Superior Eleitoral essa função se
mostra em extenso campo de exercício, quer pela
sua posição de cúpula da organização judiciária
eleitora, quer pela razão sobremodo relevante de
que, cabendo ao Tribunal Superior Eleitoral zelar
pela neutralidade ou isenção das autoridades in-
cumbidas da direção do processo eleitoral, já agora
atingindo sua culminância, impõe-se-lhe ainda
editar resoluções normativas de cumprimento
obrigatório pelos jurisdicionados, poder que, é for-

 
A justiça diante das armas... 855

çoso convir, somado às suas atribuições constituci-


onais e legais, confere a imponência da Corte no
cipoal do denso sistema judiciário brasileiro.”
(GORDILHO, 2009, p. 11)

Nessa pesquisa, portanto, é proposta a recons-


trução da memória do regime militar brasileiro a partir
do estudo do Tribunal Superior Eleitoral no período, e
de seu papel institucional quanto ao regime de inelegi-
bilidades criado pela Lei Complementar 5/70 e o im-
pacto que a lei teve nos anos que se seguiram à sua
promulgação.
Embora o governo Castelo Branco tivesse feito
modificações expressivas na legislação eleitoral, seja
em inelegibilidades, eleições indiretas ou fidelidade
partidária, propõe-se, na pesquisa, o recorte temporal
de 1969 a 1985. Como se colocou acima, em 1969 a
Emenda Constitucional 1 apresentou uma nova Consti-
tuição, e em 1970 veio a Lei Complementar 5 para alte-
rar o regime de inelegibilidades. Logo depois, começou
a época mais autoritária da ditadura militar, sendo esse
período relevante para a pesquisa, pois será possível
analisar a questão do TSE no auge da ditadura militar
brasileira.
Elegibilidade é o direito subjetivo público (ius
honorum) de disputar um cargo eletivo de representa-
ção política. Inelegibilidade, como conceito negativo, é
o que impede o cidadão que não preenche os requisitos
de elegibilidade de disputar o cargo, é o “estado jurídi-
co de ausência ou perda de elegibilidade” (COSTA,
2006, p. 217).
Assim é o sistema brasileiro, que limita o direito
de ser votado às pessoas que cumpram determinadas
condições fixadas na Constituição e na legislação infra-
constitucional (COSTA, 2006, p. 220), caracterizando a
inelegibilidade como efeito jurídico contrário à elegibi-
lidade. Ressalte-se que as inelegibilidades constituem
mecanismo contramajoritário de controle das eleições.
Esse tipo de mecanismo funciona como exceção ao
856 Maria Celina Monteiro Gordilho

princípio majoritário, pois busca impedir que a maioria


se exceda pela via democrática, distorça os valores
constitucionais e oprima as minorias.
Na época da ditadura militar, o regime legislati-
vo de inelegibilidades encontrava-se na Lei Comple-
mentar 5/70, editada para dar eficácia ao artigo 151 da
Constituição de 1967, alterado pela Emenda Constitu-
cional 1/69. Essa emenda constitucional foi promulga-
da pela junta militar, com o Congresso em recesso, no
período entre o governo Costa e Silva e a eleição de
Médici (FLEISCHER, p. 19), e trouxe outras alterações
na legislação eleitoral, como voto vinculado, a propor-
cionalidade de congressistas em relação ao eleitorado, a
nomeação de prefeitos das capitais estaduais e outras
cidades pelos governadores e a fixação do mandato do
Presidente da República em cinco anos (FLEISCHER, p.
21).
O artigo 151 da Constituição foi alterado algu-
mas vezes durante o período de regime militar. Na sua
redação original, determinava que lei complementar
estabeleceria os casos de inelegibilidade e os prazos de
sua duração, com vistas a preservar: I - o regime demo-
crático; II - a probidade administrativa; III - a normalidade e
legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do
exercício de função, cargo ou emprego públicos da adminis-
tração direta ou indireta, ou do poder econômico; e IV - a
moralidade para o exercício do mandato, levada em conside-
ração a vida pregressa do candidato.
A lei prometida que veio estabelecer os casos de
inelegibilidade foi a Lei Complementar 5/70, editada
no governo do presidente Médici. Foi posteriormente
revogada pela Lei Complementar 64/90, que é a lei que
está em vigor, atualmente, sendo sua mais recente alte-
ração a chamada Lei da Ficha Limpa, uma lei de inicia-
tiva popular cujo objetivo é tornar mais rígidos os crité-
rios de inelegibilidade.
Ressalte-se que a Emenda Constitucional 1/69,
que estava em vigor quando foi promulgada a Lei
Complementar 5/70, ao tratar das inelegibilidades,
 
A justiça diante das armas... 857

apresentava normas abertas que deveriam ser preser-


vadas por esse mecanismo, tais como “moralidade” e
“vida pregressa”. A interpretação desse tipo de norma
constitucional deve ser feita segundo princípios clássi-
cos e modernos de hermenêutica constitucional. Os
principais intérpretes da Constituição são os juízes,
quando aplicam a lei. São eles que vão criando juris-
prudência para melhor compreender as normas que
vêm do legislativo, em especial as normas abertas, cuja
interpretação demanda mais atuação do juiz.
A partir dessas considerações, propõe-se uma
pesquisa que investigue o papel do Tribunal Superior
Eleitoral durante o período da ditadura militar. Para
delimitar essa pesquisa, propõ-se o exame, com base na
sua jurisprudência, do papel do Tribunal Superior Elei-
toral no controle dos mecanismos eleitorais contrama-
joritários durante o governo militar. Destacam-se para
o estudo dois dispositivos que é possível que tenham
criado inelegibilidades casuísticas, feitas para atingir
desafetos políticos da junta militar: as alíneas b e n do
artigo 1º, inciso I, da Lei Complementar 5/70.
O problema central da pesquisa gira em torno
da seguinte indagação: como a atuação do Tribunal
Superior Eleitoral nos anos de chumbo da ditadura, em
relação ao sistema de inelegibilidades, impactou a pró-
pria história constitucional brasileira? Para chegar a
essa indagação, é necessário, previamente, percorrer
outros problemas, secundários. Acredita-se que a res-
posta a esses problemas possa complementar e auxiliar
na busca da resposta da indagação primária.
Os problemas secundários, portanto, são os se-
guintes: a) qual foi o impacto sobre o judiciário brasi-
leiro do sistema de exceção instaurado após 1964, con-
siderando a independência judicial? b) Como o TSE
interpretou nesse período as novas inelegibilidades
propostas na Lei Complementar 5/70, considerando as
cláusulas abertas da EC 1/69, tais como “vida pregres-
sa” e “moralidade”? c) Como era a relação entre o TSE
e o regime militar e como isso afetou o sistema eleitoral
858 Maria Celina Monteiro Gordilho

brasileiro no regime de exceção? d) Como foram utili-


zados os mecanismos contramajoritários de controle
das eleições no estado de exceção brasileiro? e) Como o
TSE interpretou as inelegibilidades do artigo 1º, inciso
I, alíneas b e n da Lei Complementar 5/70?
Pode-se partir de algumas hipóteses, as quais
poderão ser confirmadas ou refutadas na conclusão
final da pesquisa. Algumas hipóteses iniciais, pensadas
a partir dos dados colhidos até agora, podem ser resu-
midas nos seguintes itens: a) considerando a composi-
ção singular5 do TSE, formado por ministros com judi-
caturas curtas e advindos de outros tribunais superio-
res e da sociedade civil, o Tribunal conseguiu manter
sua independência do regime; b) o TSE contribuiu para
evitar arbitrariedades do regime militar no campo elei-
toral; c) os mecanismos contramajoritários de controle
das eleições acabaram por se voltar contra a própria
ditadura militar.
A pesquisa tem objetivos nítidos, que mostram
seu comprometimento com a ideia transicional de bus-
car a verdade do período da ditadura militar, de pes-
quisar esse passado que ainda não passou, de modo a
possibilitar alguma contribuição para a dimensão tran-
sicional da memória e da verdade, que hoje está pre-
sente na justiça brasileira. O objetivo geral da presente
pesquisa é realizar um estudo histórico-jurídico acerca
do tema das inelegibilidades em direito eleitoral na
época de ditadura militar, com foco na Lei Comple-

5 O Tribunal Superior Eleitoral compor-se-á, no mínimo, de sete


membros, escolhidos: I – mediante eleição, pelo voto secreto: a) três
juízes dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal; b) dois juízes
dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça; II - por nomeação
do Presidente da República, dois juízes dentre seis advogados de
notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Supremo
Tribunal Federal. Parágrafo único. O Tribunal Superior Eleitoral
elegerá seu Presidente e o Vice-Presidente dentre os Ministros do
Supremo Tribunal Federal, e o Corregedor Eleitoral dentre os
Ministros do Superior Tribunal de Justiça.

 
A justiça diante das armas... 859

mentar n. 5/70 e nas implicações sociais, políticas e


jurídicas nos 10 anos seguintes à sua promulgação, pe-
ríodo que engloba os governos Médici (“anos de
chumbo”) e Geisel, levando em conta a atuação do Tri-
bunal Superior Eleitoral na elaboração de jurisprudên-
cia a respeito do tema e de seu papel no tocante à dita-
dura.
Dentre os objetivos específicos da pesquisa, po-
de-se elencar: a) examinar a jurisprudência do TSE no
período de regime militar para compreender a inter-
pretação do Tribunal no tocante às cláusulas abertas
em matéria de inelegibilidades; b) avaliar o papel insti-
tucional do Tribunal Superior Eleitoral do período de
ditadura militar – a partir do perfil de seus membros,
da sua jurisprudência dominante e dos debates nas
sessões de julgamento – na manutenção da ordem de-
mocrática e no equilíbrio das eleições feitas durante o
regime de exceção; c) analisar a postura de ministros
do TSE da época estudada sobre combate à ditadura e
a atuação do TSE no período de exceção; d) correlacio-
nar a lei de inelegibilidades, um mecanismo contrama-
joritário de controle das eleições, e o regime de exceção
brasileiro.
Investigar o TSE no período da ditadura militar
requer, além de uma análise histórica do período, o
estudo da configuração do regime militar brasileiro e a
correlação existente entre poder judiciário e estado de
exceção. Assim, é preciso definir o estado de exceção,
para compreender o papel do TSE nessa configuração
política.
O estado de exceção é uma situação temporária
de restrição de direitos fundamentais e de concentração
de poderes nas mãos do Poder Executivo, principal-
mente. Seu perigo reside em se afastar do estado de
direito de tal maneira a se tornar um estado totalitário.
Para analisar o estado de exceção, três autores são ne-
cessários: Carl Schmitt, Walter Benjamin e Giorgio
Agamben. São autores que dialogam entre si
(SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 213), e da análise de
860 Maria Celina Monteiro Gordilho

suas teorias é possível apresentar um estrutura do es-


tado de exceção. Além desses autores, recorrer-se-á a
outros autores que estudaram o fenômeno, especial-
mente Hannah Arendt.
Ainda nessa perspectiva, propõe-se analisar o
regime militar brasileiro e sua institucionalização. É
sabido que a ditadura militar brasileira se diferenciou
de suas congêneres latino-americanas por não ser uma
total suspensão de direitos, eis que suas instituições,
tais como o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Su-
perior Eleitoral e mesmo o Congresso Nacional conti-
nuaram funcionando, ainda que com a liberdade tolhi-
da. Dessa forma, é importante analisar a configuração
política e jurídica do estado de exceção brasileiro, o que
vai contribuir para o melhor entendimento do papel do
TSE e a promulgação das leis das inelegibilidades no
período (PAIXÃO E BARBOSA, 2008, passim).
Quanto à história eleitoral do período da dita-
dura, o projeto será guiado por uma pesquisa feita pelo
cientista político David Fleischer, que escreveu sobre as
manipulações casuísticas do sistema eleitoral no perío-
do militar, e cuja análise delineou o tema dessa pesqui-
sa. Não se esquecerá da análise histórica feita por auto-
res clássicos do direito eleitoral (COSTA, 2006; PORTO,
1989; FERREIRA, 2005). Ainda sobre direito eleitoral, é
necessário tecer considerações sobre inelegibilidades
(COSTA, 2006; VELLOSO E ROCHA, 2006; BOTELHO,
1998), com pesquisa em monografias e demais textos,
de modo a demonstrar a importância e função do insti-
tuto para o sistema eleitoral e para a democracia.
Reconstruir a história da ditadura militar brasi-
leira é estudar a história do tempo presente, aquela na
qual o passado ainda não foi estabelecido como passa-
do (PEREIRA, 2008, passim). O regime militar brasileiro
ainda está presente, nas leis que ainda estão em vigên-
cia, nas instituições administrativas ainda existentes,
nas dúvidas históricas que ainda não foram soluciona-
das. Narrar esse passado é buscar dar-lhe um sentido,
de modo a possibilitar novos usos políticos desse pas-
 
A justiça diante das armas... 861

sado (LEVI, 2001, passim). Portanto, a pesquisa levará


em consideração o dever cívico do historiador de pro-
por essas narrativas, para evitar a imposição da memó-
ria sobre a história, recorrendo a Paul Ricoeur, Giovan-
ni Levi, entre outros autores que escreveram sobre a
relação memória e história.
Por fim, considerando que a escrita da história é
uma revisão da escrita da história, serão adotados os
textos de Carlos Fico, Elio Gaspari, Maria Helena Mo-
reira Alves e outros pesquisadores para compor, na
pesquisa, a narrativa histórica da época da ditadura
militar.
"O passado que não quer passar" é uma expres-
são do historiador alemão Ernst Nolte, em artigo sobre
revisionismo do extermínio judeu. Ele averiguou que o
passado -- especialmente o período da 2ª Guerra – tor-
nava-se cada vez mais vivo e ativo para o povo alemão.
A expectativa de Nolte, segundo o autor, é que esse
passado passe, para que o povo alemão possa dele se
apropriar historicamente, levando a Alemanha a uma
identidade mais positiva (p. 3).
Habermas, em contraposição, afirma que os his-
toriadores devem se apropriar criticamente do passa-
do, fazendo um bom uso da memória, "ante uma acei-
tação cega das tradições" (p. 4). O passado não é imu-
tável. Sempre pode ser estudado e revisto. Novas fon-
tes surgem, possibilitando novas visões sobre aconte-
cimentos passados.
Há negacionistas do holocausto. Também há
negacionistas da ditadura militar brasileira, ou os que
abrandam essa ditadura. Embora não seja possível
comparar os dois fatos históricos, dada a singularidade
do evento nazista (p. 4), o debate histórico sobre a ver-
dade e a prova e o princípio da realidade em história se
assemelha (p. 5). Se os historiadores buscam cada vez
mais provas do que ocorreu, é para rebater os negacio-
nistas, que se apegam às faltas de vestígios para corro-
borar sua negação dos fatos.
862 Maria Celina Monteiro Gordilho

A singularidade de alguns eventos históricos,


como os crimes contra a humanidade, interroga a tare-
fa do historiador diante desses acontecimentos (p. 7).
Para o autor, os historiadores precisam de novas técni-
cas de fora do mundo acadêmico para estudar os acon-
tecimentos singulares (p. 10), como filmes, artes ou
músicas. Essas modalidades podem se sair melhor na
luta entre memória e esquecimento.
Em texto para a revista Humanidades, Mateus
Henrique traz a relação entre história do tempo presen-
te e presentismo, termo cunhado pelo historiador Fran-
çois Hartog para denominar o tempo histórico onipre-
sente, e dilatado. A história do tempo presente teria
surgido na França, como uma resposta às teorias do
séc. XIX que delimitavam o passado e o presente. As-
sim, a história do tempo presente seria o estudo do
contemporâneo, centrado na memória e recorrendo aos
testemunhos orais.
A dilatação do tempo presente poderia gerar
confusão entre passado e presente. Mateus cita Ri-
coeur, para quem é necessário delimitar a diferença
entre história e os dias atuais (p. 59). Além disso, o pre-
sente não pode se tornar prisioneiro do passado, mas,
ao contrario, citando Todorov, memória e esquecimen-
to devem se colocar a serviço da justiça.
Mateus apoia-se em Paul Ricoeur para dividir o
tempo presente em duas categorias: tempo terminado
(história do passado próximo) e tempo inacabado (his-
tória contemporânea).
Começa, então, a relacionar história do tempo
presente face ao presentismo. O problema do presen-
tismo seria nos colocar como contemporâneos dos nos-
sos contemporâneos e a falta de divisão entre passado e
presente. O lado positivo, ao contrário, seria dialogar o
esquecimento com a memória e a discussão sobre
traumas da história -- como, por exemplo, a ditadura --,
o que daria espaço para as dimensões cívica e social do
historiador.

 
A justiça diante das armas... 863

Mateus afirma que quase não se estuda, no Bra-


sil, o período dos últimos 25 anos de história, que ele
denomina de história imediata. Ele coloca a ditadura
militar, que aqui nos interessa, como um passado que
ainda afeta o presente, um passado que continua atual
(p. 62). O historiador, para Mateus, teria dificuldade
em historicizar o presente. Isso não seria um sintoma
do presentismo, pois ainda falta ao presente uma análi-
se histórica que lhe coloque limites definidos, para evi-
tar colocar no presente períodos do passado como as
guerras mundiais do século XX (p. 63).
Ele finaliza seu texto dizendo que um dos desa-
fios da história do tempo presente é produzir uma his-
tória com novas narrativas, novas visões sobre o pas-
sado, o presente e mesmo o futuro. É talvez isso o que
a Comissão da Verdade venha trazer. Ao analisar e
reavaliar a história do período da ditadura militar, que
pode ser considerado um passado que ainda não pas-
sou, que ainda influencia o tempo presente, a Comissão
poderá propor novas narrativas, novos olhares sobe a
experiência, que -- espera-se – extrapolem o que já se
sabe e o que é ensinado em sala de aula. Essas novas
narrativas, além de mudarem nosso olhar para o pas-
sado, podem alterar nosso presente e a maneira como
enxergamos o futuro.
A pesquisa é eminentemente documental e bi-
bliográfica. Propõe-se fazer pesquisas em bases biblio-
gráficas, no acervo do Tribunal Superior Eleitoral, no
Arquivo Nacional, em bibliotecas, em jornais e na in-
ternet, de modo a juntar e organizar um acervo docu-
mental que embase a pesquisa e os objetivos. Assim,
procedimentalmente, procurar-se-á fazer pesquisa bi-
bliográfica e documental.
A pesquisa é, também, qualitativa, ao propor o
estudo e descrição de fenômenos históricos, afastando,
portanto, a análise de dados estatísticos. É uma pesqui-
sa exploratória, que busca construir hipóteses e tornar
explícito o problema. Procedimentalmente, sugere-se a
utilização de entrevistas semiestruturadas com alguns
864 Maria Celina Monteiro Gordilho

dos Ministros do TSE da época estudada, para que


transmitam suas experiências em relação ao tema
abordado e expliquem situações e histórias que sejam
relevantes para os objetivos da pesquisa. Outro levan-
tamento possível é a entrevista de pessoas que tenham
sofrido uma cominação de inelegibilidade pelo TSE,
para investigar como avaliaram aquele momento, den-
tro do contexto histórico da época.

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Os desafios
da Justiça de Transição no Brasil
O Estado, a legitimidade de suas ações e os
reflexos da legalidade autoritária
no Poder Judiciário

Natália  de  Souza  Lisbôa1  

Resumo: O presente trabalho propõe-se a analisar a


efetividade da Justiça de Transição no Brasil, sob o en-
foque do direito à memória e à verdade e identidade
constitucional, partindo da análise da Constituição da
República de 1988 e da realidade enfrentada atualmen-
te pelo Estado Brasileiro. Tem por objetivo realizar
considerações principalmente acerca do problema da
legitimidade para atingir as previsões constitucionais,
bem como as eventuais falhas que restaram perpetua-
das em seu texto, e como a atuação a partir da legali-
dade autoritária, especialmente em relação ao Poder
Judiciário, dificulta a concretização da Justiça de Tran-
sição brasileira.

1 Mestre em Direito e Garantias Fundamentais pela FDV/ES,

Professora Assistente no Departamento de Direito da Universidade


Federal de Ouro Preto – UFOP, Coordenadora do Projeto Assessoria
Jurídica Comunitária do Núcleo de Direitos Humanos da UFOP,
Professora Orientadora no Núcleo de Assistência Jurídica da UFOP –
NAJOP.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 869

Palavras-chave: Justiça de Transição; Constituição da


República de 1988; Legalidade Autoritária.

Abstract: This study intends to analyze the effective-


ness of Transitional Justice in Brazil with a main focus
on the right to memory and truth and constitutional
identity, based on an analysis of the 1988 Constitution
and the reality faced today by the Brazilian State. It
aims to make considerations mainly about the problem
of legitimacy implement constitutional provisions, as
well as about any remaining faults still present in its
text, and how the action from the authoritarian legality,
especially in relation to the Judiciary, hinders the
achievement of Transitional Justice in Brazil.
Keywords: Transitional Justice; 1988 Constitution of
the Federative Republic of Brazil; Authoritarian Legali-
ty.

Introdução

“Quem for contra a abertura democrática,


eu prendo e arrebento2”.
General Figueiredo

A Constituição de um Estado é considerada o


estatuto do governo, indicada como documento fun-
damental de escolhas axiológicas para certo povo em
determinado tempo e lugar. É a síntese da diversidade
de valores culturais e sociais, devendo buscar uma
homogeneidade entre eles. Além disso, é ela quem de-
fine as relações de poder e garante direitos fundamen-
tais de todos, uma vez que não há como garantir a li-

2 Declaração dada a jornalistas que, no início de seu governo,

perguntaram como ele enfrentaria os radicais contrários à abertura.


COLEÇÃO CAROS AMIGOS. A ditadura militar no Brasil: a história em
cima dos fatos. São Paulo: Caros Amigos Editora, (?). p. 363.
870 Natália de Souza Lisbôa

berdade individual sem que exista a liberdade do gru-


po.
A Justiça de Transição deve estar pautada na le-
gitimação da democracia, garantindo que os direitos
sejam protegidos e as necessidades das vítimas supri-
das, uma vez que se compõe de quatro dimensões fun-
damentais: “(i) a reparação, (ii) o fornecimento da ver-
dade e a construção da memória, (iii) a regularização
da justiça e o restabelecimento da igualdade perante a
lei e (iv) a reforma das instituições perpetradoras de
violações contra os direitos humanos3”.
A democratização pressupõe três fases4: a libera-
lização, a transição e a consolidação democrática.
O conceito de legalidade autoritária deve ser
compreendido dentro de um contexto político mais
extenso no qual ela realmente encontra-se inserida. Um
exemplo prático que pode ser dado é a promulgação de
diversos atos institucionais no período da ditadura
militar brasileira, quando a interpretação e a aplicação
das leis pelo “uso dos tribunais militares como instru-
mentos de ação judicial contra dissidentes e opositores
manteve o regime militar brasileiro numa trajetória
legalista, embora não constitucional.5”
Verifica-se, assim, que o princípio da legalidade
não pode, por si só, garantir o cumprimento da Consti-

3 ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. As dimensões da Justiça de


Transição no Brasil, a eficácia da Lei de Anistia e as alternativas para a
verdade e a justiça. In: A anistia na era da responsabilização: o Brasil em
perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça,
Comissão de Anistia; Oxford University, Latin American Centre, 2011.
p. 215.
4 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da

Constituição brasileira de 1988 In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir.


O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo,
2010. p. 66.
5 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o

estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e


Terra, 2010. p. 142

 
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 871

tuição pelo simples argumento de estar preservando a


segurança jurídica, e, especificamente na época supra-
citada, a segurança nacional, uma vez que, “como prin-
cípio, a legalidade de todo e qualquer Estado está liga-
da à sua capacidade de criar estruturas institucionais
que realizem a experiência social da liberdade6”.
Desse modo, a legalidade autoritária no Brasil
pode ser resumida nas seguintes características7: não
houve declaração de estado de sítio à época do golpe;
suspensão de partes da antiga Constituição e promul-
gação de uma nova em momento posterior; tribunais
militares usados para processar um grande número de
opositores e dissidentes civis e não totalmente segre-
gados do Judiciário civil; expurgos na Suprema Corte
com algumas remoções e aumento do número de juí-
zes, havendo expurgos limitados no restante do Judici-
ário; e revogação da inamovibilidade dos juízes.

A Constituição e a realidade do Estado brasileiro

A Constituição de um país é sempre a imagem


dos ideais de um povo que está localizado em um terri-
tório estabelecido em uma determinada época, tendo
significado de unidade. É na busca de homogeneidade
que a Constituição traz em seu texto a síntese da diver-
sidade entre valores sociais, culturais e políticos do
Estado.
A Constituição da República de 1988 surgiu em
um momento de abertura democrática, sendo vista
como a solução para que fossem efetivados todos os
direitos e garantias fundamentais que por tantos anos

6 SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In:


TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção
brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 246.
7 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de

direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.


58
872 Natália de Souza Lisbôa

foram tolhidos dos cidadãos durante a ditadura mili-


tar, e também na proteção de novos direitos, como, por
exemplo, a previsão da função social da propriedade.
Ocorre que, hoje, o Estado brasileiro se encontra
cada vez mais em declínio em relação aos seus funda-
mentos ideológicos. A concentração do Estado em sua
forma mínima é uma exigência do neoliberalismo que
pode ser sentida principalmente pelos países mais po-
bres e sua população, uma vez que eles ainda depen-
dem de prestações básicas do Estado. Tal situação ain-
da é agravada porque, por muitas vezes, o Estado é o
único provedor a quem eles podem recorrer.
A atual estrutura da sociedade e a maneira que
os indivíduos estão vivendo hoje revelam diversas
mudanças, refletidas diretamente no aparelho estatal.
As pessoas estão mais preocupadas com o papel que
devem representar na sociedade, de acordo com sua
riqueza, prestígio ou poder, do que com a resolução
dos conflitos que as cercam. A sociedade, marcada pela
violência, abandona os instrumentos de solidariedade
social, preocupando-se apenas com o indivíduo e des-
confiando das ações coletivas, ainda como reflexo do
individualismo possessivo do início da era moderna.
Alguns conflitos da modernidade ainda estão penden-
tes, como conflitos entre raças, religiões e etnias, e pa-
rece que o Estado brasileiro, em todos seus poderes e
órgãos, não está tomando nenhuma decisão plausível
de efetividade na tentativa de solucioná-los.
A relação entre os indivíduos é de competição,
de poder. Seduzidos por uma segurança vendida pelo
mercado, somente são considerados socialmente inclu-
ídos os que são consumidores em potencial. Com isso,
cresce a sensação de individualização, o que acaba por
conduzir a uma perda das referências da conduta soci-
al, sendo o público cada vez mais dominado pelo pri-
vado.
Sendo assim, as crises de instabilidade podem
facilmente ser percebidas em vários âmbitos, pois elas
são generalizadas, atingindo, por exemplo, o campo da
 
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 873

moral, da política, do conhecimento, das instituições de


vida social e do Estado indistintamente.
É certo que quanto mais Direito, mais liberdade;
e dessa forma mais perto estamos de uma sociedade
racional. Mas surge com isso um problema: como che-
gamos a uma sociedade cheia de Direitos, mas sem
justiça? A perda da autonomia do Estado soa como
uma ameaça à sobrevivência do Direito, pois este tam-
bém fica sem efetividade frente à comunidade política
na qual está inserido. Assevera Eduardo Bittar:
O Estado encontra-se desafiado em sua concepção
de matriz, em sua determinação de estrutural, bem
como em sua capacidade de agir. A capacidade de
agir de um Estado pode ser medida, entre outros
instrumentos, pela sua capacidade de gerar o
atendimento de expectativas sociais. Não se duvi-
da de que o Estado tenha regras e normas para si,
o que se põe em questão é a capacidade destas re-
gras e normas se tornarem presentes, beneficamen-
te, na condução das políticas públicas, sobretudo
considerando-se os limites auto-impostos pelo Es-
tado de direito a si mesmo (o que significa agir
respeitando direitos fundamentais, punindo den-
tro dos limites legais etc.)8

O Direito é monopólio do Estado, resultado da


organização da força social de um tempo e lugar de-
terminados. Hoje o Direito não é mais exclusivamente
dependente da religião, mas é fruto de um processo de
aquisição dos anseios de justiça de uma sociedade, da
mesma forma que de anseios morais sob a ótica de uma
determinada ética social, como forma de evitar confli-
tos sociais.
O grande debate da pós-modernidade gira em
torno do discurso do erro da modernidade durante o
século XX, que foi marcado por profundas contradi-

8 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 384/385
874 Natália de Souza Lisbôa

ções. Foi um século de assinaturas de tratados de paz,


lutas pela defesa da dignidade da pessoa humana, mas,
por outro lado, junto com o fracasso da modernidade
vieram grandes guerras e a ampliação de desigualda-
des. A pós-modernidade encontra-se cercada por incer-
teza, insegurança e falta de garantia que podem ser
sentidas por toda a sociedade, bem como são reflexos
do comportamento dos Estados.
A questão é que, por diversas vezes, a Consti-
tuição da República de 1988 tem força apenas formal,
como documento, mas se apresenta vazia de conteúdo
sociológico capaz de trazer eficácia ao que nela está
determinado. Tal documento, uma vez que se mostra
sem valores identificáveis socialmente, está a um passo
de ser arbitrário, o que pode gerar violência e agravar a
luta de todos contra todos.
Para sobrecarregar a situação da realidade do
Estado brasileiro frente à Constituição em vigor, vê-se
que “a ‘constitucionalização’ de interesses momentâ-
neos ou particulares exige, em contrapartida, uma
constante revisão constitucional, com a inevitável des-
valorização da força normativa da Constituição”9. As-
sim, os interesses de uma parte da sociedade prevale-
cem sobre todos, impedindo que a Constituição, guia-
da pela sua força normativa – construída a partir de
pressupostos de conteúdo e práxis –, seja o verdadeiro
reflexo de sua sociedade e seu tempo.
No que tange à Justiça de Transição, a Consti-
tuição de 1988 ainda apresenta resquícios do poder
ditatorial comandado pelas Forças Armadas10, como

9 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre:


Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 21.
10 Nossos constituintes não conseguiram se desprender do regime

autoritário recém-findo e terminaram por constitucionalizar a atuação


de organizações militares em atividades de polícia (Polícia Militar) e
defesa civil (Corpo de Bombeiros), ao lado das polícias civis. As
polícias continuaram constitucionalmente, mesmo em menor grau, a
defender mais o Estado que o cidadão. ZAVERUCHA, Jorge. Relações
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 875

pode ser verificado no art. 14211, que determina que os


militares podem, constitucionalmente, não respeitar
ordens do Presidente da República com o pretexto de
manutenção da lei e da ordem:
A Constituição não define quem, nem quando a lei
e a ordem foram violadas. Na prática, termina ca-
bendo às Forças Armadas decidir quando houve
violação da lei e da ordem. E quem as violou. E o
que é mais grave: basta determinada ordem do
Executivo ser considerada ofensiva à lei e à ordem,
para que os militares possam constitucionalmente
não respeitá-la. Mesmo sendo o presidente da Re-
pública o comandante chefe das Forças Armadas.
Ou seja, a Constituição de 1988, tal como a anteri-
or, tornou constitucional do golpe de Estado, des-
de que liderado pelas Forças Armadas. Isso sim é
falta de lei e ordem12.

Com isso, conceitos extremamente vagos e de


difícil delimitação – lei e ordem, podem prejudicar o
alcance dos objetivos para manter a paz almejada pela
Justiça de Transição após um período tão grande de
conflitos, bem como instaurar novamente um período
ditatorial, mais uma vez forjando a legitimidade e a

civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In:


TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção
brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 55.
11 “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela

Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares,


organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria,
à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem.” Disponível em
http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.
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12 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da

Constituição brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O


que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p.
49.
876 Natália de Souza Lisbôa

proteção da lei e da ordem como interesse de toda soci-


edade.

O problema da legitimidade

As transformações do Direito realizadas por


mudanças principalmente nos fundamentos políticos e
econômicos do Estado têm suas consequências refleti-
das diretamente na sociedade. Os limites impostos pelo
positivismo normativista não mais se encaixam com o
universo jurídico influenciado diretamente pela pers-
pectiva liberal. Na tentativa de ampliar os paradigmas,
de um lado, esse pensamento não abre mão da ra-
cionalidade formal, considerando-a um pilar fun-
damental para a institucionalização da liberdade e
das garantias individuais no âmbito das socieda-
des de classe. De outro lado, contudo, está consci-
ente das limitações do positivismo como ideologia
– aquela que considera o direito justo independen-
temente de seu conteúdo, apenas e exclusivamente
porque ele permite a consecução de certos fins
considerados desejáveis a partir de determinados
procedimentos formais13.

Dessa forma, o Direito não pode ser legitima-


mente usado unicamente como instrumento para levar
à prática, por meio de providências concretas, as estra-
tégias requeridas quando esvaziadas de conteúdo soci-
ológico.
A questão que se coloca é que legitimidade e
justiça não são acopladas com muita facilidade. Tem-se
um elevado índice de corrupção, favoritismo, nepotis-
mo e tráfico de influências no Estado brasileiro, conflu-

13 FARIA, José Eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito

como instrumento de transformação social. São Paulo: Editora da


Universidade de São Paulo, 1988.p. 94.
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 877

indo na desigualdade social, como alerta Celso Fer-


nandes Campilongo:
A desigualdade do contexto social transfere para
os “direitos” extra-estatais a violência que a carac-
teriza. Ao lado da legalidade estatal passam a con-
viver, em perigosa simbiose, as “legalidades” dos
morros controlados por traficantes, dos grupos de
extermínio e de outras máfias de uma sociedade
em crise.14

Pelo emprego do Direito e a associação entre


técnica, saber e poder, o Estado tem tido mais controle
e dado menos liberdade aos indivíduos. Disso decorre
o problema do direito não ser realizado por um poder
legítimo15 ou atribuir simbolicamente efeitos diversos
do que os necessários para a resolução das crises atra-
vessadas pelos cidadãos em um determinado momento
histórico. Dentro dessa perspectiva, Habermas indica a
utilização do poder para a realização dos pressupostos
jurídicos, uma vez que:
Com muita freqüência [sic] o direito confere a apa-
rência de legitimidade ao poder ilegítimo. À pri-
meira vista, ele não denota se as realizações de in-
tegração jurídica estão apoiadas no assentimento
dos cidadãos associados, ou se resultam de mera
autoprogramação do Estado e do poder estrutural
da sociedade; tampouco revela se elas, apoiadas

14 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São


Paulo: Max Limonad, 2000. p. 60
15 “Um aspecto peculiar no pensamento de Hannah Arendt, a esse

respeito, é que o conceito de poder não admite a adjetivação, a


expressão poder legítimo é redundante, pois que o ‘poder’ ilegítimo
não é poder mas comumente quer referir-se a fenômenos
completamente diversos: são eles a força individual ou vigor
(strength), a força (force) e a violência (violence).” ADEODATO, João
Maurício Leitão. O Problema da Legitimidade – No Rastro de Hannah
Arendt. São Paulo: Forense Universitária, 1989. p. 172.
878 Natália de Souza Lisbôa

neste substrato material, produzem por si mesmas


a necessária lealdade das massas16.

A crise do Estado de Direito, principalmente na


sua esfera política e social, é refletida na crise de legi-
timidade que acaba por ser reconhecida socialmente
mais pela utilização reiterada de determinados proce-
dimentos do que propriamente pelo exercício legítimo
das atividades constitucionalmente previstas para os
poderes que genuinamente têm o ônus da realização
jurídica de acordo com as aspirações sociais.
Por meio disso, a legitimidade garantida somen-
te pelo procedimento, sem ter um alicerce socialmente
construído, resultará somente no atendimento dos inte-
resses das classes política e economicamente dominan-
tes, pela colocação de um caráter simbolicamente legí-
timo para uma manobra jurídica que é vazia de legiti-
midade nos seus desígnios. Com isso, corrobora-se a
lição de Bourdieu, para quem:
A legitimidade, que se acha praticamente conferi-
da ao direito e aos agentes jurídicos pela rotina dos
usos que dela fazem, não pode ser compreendida
nem como efeito do reconhecimento universal
concedido pelos ‘justiciáveis’ a uma jurisdição que,
como que a ideologia profissional do campo dos
juristas, seria o enunciado de valores universais e
eternos, portanto, transcendentes aos interesses
particulares, nem, pelo contrario, como efeito da
adesão inevitavelmente obtida por aquilo que não
passaria de um registro do estado dos costumes,

16 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade.


2. ed. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003. vol. I. p. 62.

 
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 879

das relações de força ou, mais precisamente, dos


interesses dos dominantes17.

O poder não consegue atingir legitimamente os


objetivos que são constitucionalmente designados para
que possam ser por ele cumpridos, criando novas rea-
lidades por intermédio da manifestação simbólica e
velada dos interesses escusos que teimam em circundar
o campo jurídico para que este seja destituído de sua
função eficaz.
O cumprimento da força normativa atual e a
superação do significado simbólico que perpassa o es-
quecimento sobre os fatos ocorridos no período da di-
tadura militar brasileira, se dará pela efetivação do di-
reito à verdade e memória a partir da organização do
processo da Justiça de Transição pelo Estado, precipu-
amente pelo Poder Judiciário.
Numa palavra, legados estruturais à parte, a exce-
ção brasileira de hoje não só não é mero decalque
da anterior, mas a excede em esferas inéditas de
tutela, embora sua genealogia remonte àquela ma-
triz do novo tempo brasileiro. Um capítulo inédito,
portanto, das afinidades eletivas entre capitalismo
e exceção.18

Portanto, verifica-se que a legitimidade continua


tentando manter suas bases na legalidade autoritária,
no conceito de poder, e “levemos em conta uma das
características mais decisivas da ditadura brasileira:
sua legalidade aparente ou, para ser mais preciso, sua

17 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz


(português de Portugal). 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p.
242.
18 ARANTES, Paulo Eduardo. 1964, o ano que não terminou. In: TELES,

Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira.


São Paulo: Boitempo, 2010. p. 224.
880 Natália de Souza Lisbôa

capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparên-


cia19”.
Com isso, está impedindo que as ações de reco-
nhecimento da verdade e da memória sejam levadas a
frente, para evitar atuais e futuros danos àqueles que
não se encontram protegidos pela ordem constitucional
e legal imposta, demonstrando expressa falta de com-
prometimento histórico.

Poder Judiciário

O Poder Judiciário encontra-se não só vinculado


à Constituição da República ao cumprimento de suas
determinações, bem como é ele quem é competente
para realizar o controle de constitucionalidade dos atos
de outros poderes. O Supremo Tribunal Federal, guar-
dião da Constituição, deve prezar também pelo desen-
volvimento da Constituição da República do Brasil
para garantir a eficácia dos direitos, aqueles cujo reco-
nhecimento a sociedade tanto almeja. Segundo Celso
Fernandes Campilongo,
Há quem veja no Judiciário uma importante ins-
tância de reconhecimento e legitimação dos novos
movimentos sociais e critique esse desprezo. Há,
de outra parte, quem, sem abandonar por comple-
to a esfera institucional, a entenda limitada e in-
corrigivelmente viciada.20

O Poder Judiciário está à frente do que deve ser


feito para que as escolhas determinadas na Constitui-
ção sejam concretizadas. Foi esperada por muitos anos

19 SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In:

TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção


brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 251. (grifos do autor)
20 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São

Paulo: Max Limonad, 2000. p. 64.

 
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 881

a reforma do Poder Judiciário, mas que no final restou


demonstrado que trouxe poucos avanços, ainda exis-
tindo restrições à democracia nos tribunais brasileiros.
É pela realização do controle de constitucionali-
dade que o Poder Judiciário analisa se uma norma in-
fraconstitucional está de acordo com o texto constituci-
onal. Assim, é mediante o exercício da jurisdição cons-
titucional que será realizada a interpretação das nor-
mas constitucionais de maneira definitiva, sempre em
busca da garantia da supremacia da Constituição, pois:
A jurisdição constitucional é, como qualquer juris-
dição, execução de normas. (...) Tem os seus limi-
tes onde já não podem ser aplicadas normas jurídi-
cas. A jurisprudência ultrapassa os seus limites
quando queira ir, sem autorização especial, além
da interpretação e aplicação do direito vigente.21

O controle de constitucionalidade brasileiro é


realizado de forma mista, uma vez que o Poder Judici-
ário pode ser provocado por via de ação ou por via de
exceção. Dessa maneira, além do Supremo Tribunal
Federal, todos os órgãos do Poder Judiciário exercem a
jurisdição constitucional, decidindo acerca da constitu-
cionalidade de determinados atos jurídicos.
A primeira forma de controle de constituciona-
lidade, por via de ação no controle concentrado, pode
ser efetuada por meio de ações movidas por autorida-
des com legitimidade determinada pela Constituição
ou nas leis que tratam especificamente do assunto. A
competência para o processamento e julgamento das
ações de controle de constitucionalidade também está
fixada pela Constituição e nas leis, cabendo ao Supre-
mo Tribunal Federal julgar nas hipóteses de contrarie-
dade à Constituição da República, e, aos Tribunais de

21 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra:

Almedina, 2008. p. 28.


882 Natália de Souza Lisbôa

Justiça dos estados, as respectivas ações contra leis que


não obedeçam ao disposto nas Constituições estaduais.
Cada ação do controle concentrado tem um ob-
jeto diferenciado: Ação Direta de Inconstitucionalidade
Federal, em sua forma comissiva ou omissiva, trata da
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal
ou estadual em relação à Constituição Federal, sendo
que a Ação Direta de Inconstitucionalidade Estadual é
relativa à lei ou ato normativo estadual ou municipal
contra a Constituição Estadual; Ação Declaratória de
Constitucionalidade decide sobre lei ou ato normativo
federal em contrariedade com a Constituição Federal;
Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva Fe-
deral examina decreto interventivo da União nos Esta-
dos, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interven-
tiva Estadual, por sua vez, analisa a constitucionalida-
de de decreto interventivo dos Estados nos Municípios;
e, por fim, a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental analisa lei ou ato normativo federal, es-
tadual ou municipal em face da Constituição Federal.
Por seu turno, no controle difuso a constitucio-
nalidade é analisada incidentalmente dentro de uma
ação que não tem como objetivo principal a realização
do controle de constitucionalidade, e sim a resolução
de um conflito de direito material entre as partes a par-
tir de um caso concreto. A declaração de inconstitucio-
nalidade realizada pelo controle difuso terá efeito so-
mente entre as partes. Dessa forma,
ao intérprete da Constituição cabe assegurar a efe-
tividade do processo de criação democrática do di-
reito. A função do tribunal constitucional não é ga-
rantir direitos (liberais) nem definir uma ordem de
valores (comunitária), mas é especificamente zelar
para que a criação do direito, em primeiro lugar, se
realize segundo os critérios estabelecidos pela co-

 
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 883

munidade e, em segundo lugar, ocorra de modo


democrático22.

O próprio tribunal criado para ser o guardião da


Constituição, o Supremo Tribunal Federal, descumpriu
seu papel institucional de protetor no julgamento da
ADPF 153/DF, uma tentativa do Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, para identificar o
conteúdo da interpretação a ser dada ao disposto no §
1º do artigo 1º da Lei de Anistia, que determina a con-
cessão de anistia a todos que, em determinado período,
cometeram crimes políticos, seria estendida, segundo
esse preceito, aos crimes conexos – crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou pratica-
dos por motivação política pelos agentes públicos res-
ponsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicí-
dio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade,
lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor
contra opositores políticos ao regime militar, podendo
ser entendida como aqueles “de qualquer natureza re-
lacionados com crimes políticos ou praticados por mo-
tivação política”.
Às vezes, perdemos a capacidade de enxergar o
caráter absurdo de exceção que sela o destino do
nosso país. Como se não bastasse o fato do Brasil
ser o único país da América Latina onde a Lei de
Anistia vale para acobertar crimes contra a huma-
nidade, como o terrorismo de Estado, a tortura e a
ocultação de cadáveres, o único país onde as For-
ças Armadas não fizeram um mea-culpa sobre o re-
gime militar, onde os corpos de desaparecidos
ainda não foram identificados porque o Exército

22 LEITE, Roberto Basilone. Hermenêutica Constitucional como processo

político comunicativo: a crítica de Jürgen Habermas às concepções liberal e


comunitarista. In: LOIS, Cecília Caballero (org). Justiça e Democracia:
entre o universalismo e o comunitarismo: a contribuição de Rawls, Dworkin,
Ackerman, Raz, Walzer e Habermas para a moderna teoria da justiça. São
Paulo: Landy Editora, 2006. p.220
884 Natália de Souza Lisbôa

teima em não dar tais informações, descobrimos


que, caso a anistia contra tais carrascos seja sus-
pensa, ministros do STF estariam dispostos a con-
denar também militantes da luta armada contra o
regime militar por assassinato e tortura23.

A função do controle de constitucionalidade não


trata da assunção pelo Poder Judiciário de um posto de
legislação concorrente, mesmo que ele seja assim as-
sumido tacitamente. Importa em fraude quando não
são devidamente justificadas a todos os cidadãos quais
foram as posições tomadas em nome do interesse pú-
blico, garantindo o direito à verdade e à memória.
Numa perspectiva ainda mais ampla, partindo
da internacionalização da proteção dos direitos huma-
nos e a atuação do Poder Judiciário, verifica-se que o
Supremo Tribunal Federal apresentou-se, na decisão
supracitada, como um óbice ao atendimento das di-
mensões fundamentais da Justiça de Transição, deven-
do ser analisado que:
Não se deve pelo apego ao litígio defender posi-
ções contrárias aos Direitos Humanos pelo simples
fato de paixão ou apego a estrita legalidade ou
formação ideológica, o compromisso de todos os
agentes estatais é para com o interesse público, in-
teresse este que somente pode ser conhecido
quando se ouve de fato o próprio público e que
coincida com o atendimento à efetividade da dig-
nidade humana, ao se ter em conta tais premissas,
quem sabe se possa almejar uma atividade estatal
comprometida com a concretização dos direitos
humanos24.

23 SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In:


TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção
brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 243/244.
24 SANTOS, Alberto Silva. A internacionalização dos Direitos

Humanos e o Sistema Interamericano de Proteção. Belo Horizonte:


Arraes Editores, 2012. p. 152.

 
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 885

Ainda nessa ótica da internacionalização, é im-


portante ressaltar o Sistema Interamericano de Prote-
ção, que em nenhum momento tenta ser superior à so-
berania dos Estados signatários de sua Convenção,
apenas tenta proteger de forma mais ampla; como no
caso 11.552, Julia Gomes Lund vs. República Federativa
do Brasil, demanda apresentada pela Comissão Inte-
ramericana de Direitos Humanos perante a Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha
do Araguaia, que contava com os requerimentos no
sentido de que se declarasse a responsabilidade do Es-
tado brasileiro pela violação dos direitos estabelecidos
nos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personali-
dade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integrida-
de pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias
judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expressão) e
25 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, em conexão com as obrigações pre-
vistas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e ga-
rantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar dis-
posições de direito interno) da mesma Convenção.
Ainda solicitou à Corte que ordenasse ao Estado a ado-
ção de determinadas medidas de reparação, compensa-
ção e de não repetição pela detenção arbitrária, tortura
e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre mili-
tantes do PCdoB e camponeses da região do Araguaia,
ocorridos durante os anos de 1972 a 1975 no contexto
da ditadura militar implantada no país entre 1964 e
1985.
Dessa forma, entende-se que
O Sistema Interamericano não se situa em face da
Soberania Estatal, mas ao lado desta, numa inter-
seção com ela. Resta o Sistema Interamericano legi-
timado pela nobreza do fim ao qual se destina, re-
conhecido historicamente. Sua adesão pelos Esta-
dos revela o exercício de um dos mais importantes
atributos da Soberania e que a justificam, inclusi-
ve, ou seja, a adesão ao Sistema Interamericano
demonstra a preocupação do Estado em promover
886 Natália de Souza Lisbôa

o fim ao qual se destina, qual seja a dignidade da


pessoa humana25.

A sentença da Corte Interamericana de Direitos


Humanos dada em 24 de novembro de 2010, com o
prazo de cumprimento dos pagamentos ordenado de
um ano, apesar de reconhecer a importância das medi-
das tomadas pelo Estado brasileiro, declarou que estas
não eram suficientes para reparar os danos sofridos
pelas vítimas da Guerrilha do Araguaia.
É preciso sedimentar o entendimento que a ju-
dicialização da repressão por intermédio de um Poder
Judiciário confiável foi utilizada para garantir a perpe-
tuação, nos regimes ditatoriais, da aparência externa,
mesmo que simbólica, da legalidade almejada.
Assim, “sem ignorar o fato de que a mudança
de um regime político para outro é algo extremamente
complexo, caracterizado por déficits entre normas,
princípios e realidade e frequentemente marcado por
inúmeras dificuldades – o sistema judicial existente,
por exemplo, costuma ser fraco, corrupto ou ineficien-
te26”, tem-se que a atuação do Poder Judiciário brasilei-
ro durante a ditadura militar foi muito mais eficaz –
partindo da premissa de eficácia como face da legali-
dade autoritária para garantia do cumprimento das
necessidades do período ditatorial – em comparação
com seu desempenho atual para cumprir as dimensões
da Justiça de Transição, por causa dos reflexos da lega-
lidade autoritária ainda existentes.

25 SANTOS, Alberto Silva. A internacionalização dos Direitos


Humanos e o Sistema Interamericano de Proteção. Belo Horizonte:
Arraes Editores, 2012. p. 155.
26 MEZZAROBBA, Glenda. O que é justiça de transição? Uma análise

do conceito a partir do caso brasileiro. In: SOARES, Inês Virgínia


Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.) Memória e verdade: a
justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte:
Fórum, 2009. P. 41.

 
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 887

Busca da identidade constitucional

Destarte, o grande desafio é conseguir uma in-


tegração social legítima com o Direito, e não só ter um
ordenamento jurídico pronto para atender as exigên-
cias estruturais do sistema econômico. Para que isso
ocorra, o sistema de direitos deve ter em sua origem
uma estrutura normativa legítima. O problema reside
em como examinar a legitimidade dessas pretensões de
validade no âmbito do Direito, uma vez que ele está
localizado entre a validade das normas e a facticidade,
que é a coação de sanções exteriores27:
Enquanto, no sentido de validade de convicções
ligadas à autoridade, a facticidade e a validade se
fundem, na validade jurídica ambos os momentos
se separam um do outro – a aceitação da ordem ju-
rídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos
sobre os quais ela apóia a sua pretensão de legiti-
midade28.

Dessa forma, os destinatários das normas não


podem indagar sobre a validade delas para que pos-
sam ser obedecidas, cabendo à facticidade a realização
da integração entre a sociedade e o Direito. O direito
positivo ainda carrega a característica de modificabili-
dade, pela qual as normas têm duração até que ve-
nham a ser declaradas sem efeito. Essa característica
justifica-se para evitar que as normas sejam apenas

27 JUSEFOVICZ, Eliseu. Democracia e Legitimidade à luz da teoria


habermasiana In: LOIS, Cecília Caballero (org). Justiça e Democracia: entre
o universalismo e o comunitarismo: a contribuição de Rawls, Dworkin,
Ackerman, Raz, Walzer e Habermas para a moderna teoria da justiça. São
Paulo: Landy Editora, 2006. p. 153.
28 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade.

2. ed. tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro, 2003. v. I, p. 59.
888 Natália de Souza Lisbôa

frutos de decisões arbitrárias com duração eterna, per-


dendo assim a possibilidade de integração material.
Outrossim, a positividade do direito deve ser re-
flexo de uma vontade legítima, manifestada por cida-
dãos politicamente autônomos, sem estar carregada de
qualquer tipo de arbitrariedade nessa declaração. A
liberdade comunicativa dos cidadãos não pode ser to-
talmente substituída por um direito coercitivo, deven-
do ser mediada por procedimentos jurídicos para a
prática dessa autodeterminação organizada.

Considerações finais

Neste contexto de sociedade, todas as normas


jurídicas devem ser elaboradas baseadas na democracia
como forma de garantir a liberdade, executada por
meio de um processo político fundamentado na forma-
ção da vontade comum de todos os cidadãos.
A partir da opção pelo exercício efetivo da cida-
dania, observando o projeto democrático elaborado
além dos conceitos e buscando sua efetividade real,
serão realizados os sustentáculos do Estado brasileiro,
baseados na soberania popular e nos direitos e garanti-
as fundamentais constitucionalmente previstos.
Assim, uma vez que os instrumentos normati-
vos expedidos pelo Poder Executivo – com poderes
extraordinários conferidos pelos já citados Atos Institu-
cionais, e também pelo Poder Legislativo – para garan-
tir a aparência de legalidade a seus atos, alcançassem o
objetivo maior de controle durante o período ditatorial,
fez-se imperiosa uma grande colaboração por parte do
Poder Judiciário29. Tal fato é reforçado com o entendi-

29 “Apesar de um grande número de promotores e juízes civis ter

participado dos julgamentos por crimes políticos, o Judiciário


brasileiro, durante a transição para a democracia, raras vezes foi
culpado por seu desempenho durante o governo autoritário.”
(PEREIRA, 2010. p. 241)

 
Os desafios da Justiça de Transição no Brasil 889

mento de que as forças armadas, isoladamente, não


conseguiriam perpetrar a repressão30 e realizar a coleta
de informações que estivessem em desacordo com o
pensamento do governo à época.
Para a formação da consciência e proteção da
dignidade da pessoa humana é indispensável o conhe-
cimento dos erros praticados durante a ditadura mili-
tar. Apesar disso, verifica-se que a grande resistência
em lidar com os problemas do passado encontra-se no
funcionamento geral das instituições, do Judiciário e do
sistema político como um todo, estando o país muito
atrasado na concretização da Justiça de Transição.

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BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais?
Coimbra: Almedina, 2008.

30 “Segundo uma estimativa citada com frequência, 50 mil pessoas


foram presas por motivos políticos em algum momento do regime, e
20 mil delas talvez tenham sido torturadas. Um número aproximado
de 10 mil pessoas partiu para o exílio, a maioria tendo retornado após
a aprovação da anistia, em 1979”. PEREIRA, 2010. p. 118.
890 Natália de Souza Lisbôa

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-


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ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado auto-
ritário da Constituição brasileira de 1988 In: TELES, Edson;
SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasi-
leira. São Paulo: Boitempo, 2010.
Simbolismo democrático
vs. realidade autoritária
Notas sobre a política criminal brasileira

Thayara  Castelo  Branco1  

Resumo: Trata-se de uma análise sobre a política cri-


minal brasileira frente ao Estado Democrático de Direi-
to (formal e simbólico?). Problematizou-se a transição
entre a Ditadura Militar (com sua Política de Segurança
Nacional) e a Democracia (com seu sistema de segu-
rança pública e a política de tolerância zero).
Palavras-chave: Democracia; política criminal; ditadu-
ra militar

Resumen: Este es un análisis acerca de la política


criminal brasileña contra el Estado Democrático
(formal y simbólico?). Aquí, se ha problematizado la
transición entre la dictadura militar (con su Política de
Seguridad Nacional) y la democracia (con su sistema
de seguridad pública y la política de tolerancia cero).
Palabras-clave: Democracia; política criminal; dictadu-
ra militar;

1Advogada. Mestra e doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS.


Bolsista CAPES/FAPERGS.

In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Simbolismo democrático vs. realidade autoritária 893

1. A ditadura militar brasileira e a política de


Segurança Nacional

No século XX o Brasil enfrentou dois períodos


autoritários: o Estado Novo e o Regime Militar, propri-
amente dito. Aquele foi marcado por uma ditadura
centralizada em Getúlio Vargas, que estimulava a mo-
bilização plena das massas. Com o governo de Vargas
(1950/1954), o golpe militar de 1964 começa a ser con-
solidado. O mandato foi de defesa do nacionalismo
econômico, aumentando a indisposição com setores
mais conservadores ligados aos capitais internacionais,
já em íntima aliança com a doutrina que se forjava na
Escola Superior de Guerra. Sem apoio da esquerda,
essa política abriu a porta para ações golpistas, que
tiveram êxito somente em 19642.
De 1956 até 1964, o País viveu ainda a “demo-
cracia” com ameaças constantes dos setores golpistas
aglomerados em torno da Escola de Guerra.
Enfim, em 1964, instaura-se o regime militar ple-
no, hierarquicamente controlado pela própria organi-
zação militar. Tanto o Estado Novo quanto o regime
militar tinham como focos a supressão das liberdades
individuais bem como as perseguições políticas3. Fo-
ram vinte anos de avanços e retrocessos: de 1964 a
1967, o presidente Castelo Branco exerceu uma ditadu-
ra temporária; de 1967 a 1968, o Marechal Costa e Silva
tentou governar dentro de um sistema constitucional;
de 1968 a 1974, o país esteve assolado por um regime

2 COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Doutrina de segurança nacional e

subjetividade. In:_. Clínica e política: subjetividade e violação dos


direitos humanos. Rio de Janeiro: Te corá, 2002. p. 26.
3 AMBOS, Kai; ZILLI, Marcos; MONTECONRADO, Fabíola Girão;

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Anistia, justiça e


impunidade: reflexões sobre a justiça de transição no Brasil. Belo
Horizonte: Fórum, 2010. p. 135.
894 Thayara Castelo Branco

ditatorial severo; de 1974 a 1979, o movimento começa


a perder força e a declinar4.
O ano de 1968 foi marcado pela supressão de di-
reitos e liberdades civis. Com a edição do Ato Instituci-
onal n°5, estava estabelecida a “linha dura” ditatorial: o
terrorismo de Estado. Este se fortaleceu com um aparato
repressivo altamente rigoroso, seguindo a linha da polí-
tica de Segurança Nacional5. O foco era garantir o desen-
volvimento econômico - com a internacionalização da
economia brasileira – e eliminar todas as formas de
oposições internas que tentassem atrapalhar o anda-
mento das coisas.
O cenário social desse período era de persegui-
ções, torturas, mortes e desaparecimentos de opositores
políticos, tendo como centro a Escola Superior de
Guerra. Foi firmado um novo conceito de defesa naci-
onal: a luta contra o inimigo interno!6 A ideia do extermí-
nio era clara, combatendo o mal social e as forças inter-
nas de agitação em nome da “segurança nacional”.
“Todo este aparato visava a disseminação do medo, a
imobilização e o silenciamento de toda a sociedade.
Demonizar os inimigos do regime e convertê-los em
inimigos da pátria, da família e da propriedade servia a
dois objetivos: isolá-los e justificar o rigor da repres-
são”  7.

4 AMBOS, Kai ... Anistia, justiça e impunidade: reflexões sobre a

justiça de transição no Brasil. p. 144.  


5 COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Doutrina de segurança nacional e

subjetividade. p. 29.
6 COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Doutrina de segurança nacional e

subjetividade. p. 31.
7 KOLKER, Tania. A tortura e o processo de democratização brasileiro.

In:_. Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos.


Rio de Janeiro: Te corá, 2002. p. 39.  

 
Simbolismo democrático vs. realidade autoritária 895

2. A política de Tolerância Zero no Brasil: Made in


USA

Se antes os inimigos eram as “forças internas de


agitação”, passada a ditadura, estabelecido o Estado
Democrático de Direito, pergunta-se: quem são os inimi-
gos atuais? Qual(is) a(s) ideologia(s) de controle?
A partir da década de 70, diante da crise soci-
al/econômica do capitalismo pós-industrial, surgiu nos
Estados Unidos a “Teoria das janelas quebradas”, desen-
volvida pela direita punitiva norte-americana. A justi-
ficativa do movimento era deter os “suspeitos de sem-
pre” para não cometerem algo mais sério, combatendo
rigorosamente as condutas anti-sociais (vagabunda-
gem, mendicância, prostituição). Nesse contexto de
“Lei e Ordem”, em Nova Iorque, Rudolph Giuliani
trabalhou uma lógica belicista de guerra à delinquência
de rua, à pichação, etc; varrendo as ruas de pequenos
delinquentes e fortalecendo uma nova criminalização
da marginalidade e da pobreza. A política de “Tolerân-
cia Zero” foi e é vista como "incarceration mania", a mu-
dança do welfare state para o penal state8.
O discurso penal dos EUA a partir de 1980 é
simplista: mais penas para prover mais segurança; os
delinquentes não merecem garantias; guerra à criminali-
dade. Fica evidente a identidade do poder bélico com o
poder punitivo na busca do inimigo9.
O discurso do autoritarismo norte-americano é
o mais difundido no mundo. Seu “simplismo popula-
resco” é facilmente propagado, rentável, satisfatório
para as classes médias e absolutamente eleitoreiro. A
ideologia instala-se no resto da América, porém sua

8 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na

sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.


9 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de

Janeiro: Revan, 2007. Pp. 64-65.


896 Thayara Castelo Branco

funcionalidade é diferente. Enquanto os EUA fazem


dele uma empresa, desviando recursos da assistência
social para o sistema penal e contribuindo para ameni-
zar o desemprego, na América Latina, o sistema penal
controla precariamente desempregados, torna-se bru-
talmente violento e as polícias autonomizadas sitiam os
poderes políticos10.
O Brasil, então, absorveu completamente os ide-
ais da política criminal norte-americana e estruturou
sua guerra nacional contra o(s) inimigo(s).
Fortalecemos o discurso da emergência dos riscos. É
essa insegurança social e mental, difusa e multiforme,
que o novo discurso dos políticos e da mídia fisgou.
Sob o amparo do medo, todos os tipos de lesão acabam
sendo abarcados pelo controle penal. É fomentada a
expansão penal à criminalidade de rua e de sangue, em
decorrência da legitimidade que os meios de comuni-
cação de massa fornecem aos movimentos de lei e or-
dem e às políticas de tolerância zero, como também ao
controle repressivo é auferido o papel de tutela de bens
transindividuais afetados pelos riscos catastróficos11.
Verdadeira caça às bruxas!

3. O Estado Democrático de Exceção

Parece que o sonho da real consolidação do Es-


tado Democrático de Direito após a ditadura e da “su-
posta” transição democrática foi adiado.
Cada vez mais se aumenta a tensão entre a ma-
ximização do Estado Penal e a minimização do Estado Social
numa lógica de eficientismo que se sobrepõe à demo-
cracia. Essa visão salvacionista leva a um fundamenta-
lismo punitivo (como o religioso, político), que agudiza

10 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. p. 73.  


11WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos
Estados Unidos (a onda punitiva). Rio de Janeiro: revan, 2003. P. 30.

 
Simbolismo democrático vs. realidade autoritária 897

significativamente os déficits de construção da cidada-


nia. O que chama atenção é que este Estado criminaliza-
dor é socialmente sustentado não só por setores conser-
vadores, mas por setores progressistas (por exemplo,
movimentos feministas), vez que todos parecem sedu-
zidos pelas promessas ilusionistas do aparato punitivo
e repressor12.
Estamos diante de uma situação esquizofrênica:
de um lado, vigência de uma democracia (simbolica-
mente reconhecida), com discursos de fortalecimento do
Estado Democrático de Direito, de exaltação dos Direitos
Humanos e garantias fundamentais; do outro, um agi-
gantamento do Estado Penal militarizado, que se enca-
minha para um Estado de Exceção, justificado para pro-
teger a sociedade de bem e defender a democracia.
Deslocam-se todas as responsabilidades para o âmbito
penal, estabelecendo o paradigma de segurança como
técnica normal de governo.
Um dos pontos mais complexos é a aceitação e a
legitimação da sociedade. O Estado violento, que du-
rante a ditadura foi amplamente rechaçado, é visto hoje
como bom e necessário. A sensação de insegurança
provoca um movimento apoiador do Estado neo-
autoritário, ou seja, todas as formas de neutralização e
controle do “inimigo” são válidas para garantir a “se-
gurança”. Aqui sim, tem-se um grande problema a ser
enfrentado: os microssistemas penais (individuais) que
(re)legitimam e fortalecem o Estado de Exceção.
Importa aqui expor, resumidamente, os esclare-
cimentos de Rui Cunha Martins13, que alerta que tanto
o eixo ditatorial quanto o democrático designam um
sistema complexo, plural, de mecanismos de ação, fun-

12 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X


cidadania mínima – códigos da violência na era da globalização. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003. P. 26
13 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – the brazilian

lessons. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. pp. 105-114.


898 Thayara Castelo Branco

ções ideológicas e experiências históricas concretas,


agregando-se de forma dinâmica, rompendo com a
lógica temporal da linearidade e com a ideia de transi-
ção. A historicidade desse relacionamento incorpora a
possibilidade de aquisição de elementos de um pelo
outro, entendendo a ditadura e a democracia como
patrimônio em que ficam em cada época disponíveis
para uso. O fato de um sistema democrático fazer uso
de mecanismos constantes da ditadura quer dizer que
ele se dispõe a trabalhar com formas ditatoriais, não
podendo dizer que estas se democratizaram, mas en-
tendendo que existem fascismos (punitivos, sociais, infor-
mativos) em ambientes democráticos. Enfim, a fronteira da
ditadura e democracia não é dada pela sucessividade
do tempo histórico, mas pelas decisões políticas.
Os Estados estão cada vez mais incapazes de
prover reformas estruturais; a comunicação de massa
está empenhada em propagandas escandalosas; e para
culminar, “o poder planetário fabrica inimigos e emer-
gências – com os consequentes Estados de Exceção – em
série e em alta velocidade”14.
Bravamente insiste Vera Andrade15: é preciso
dizer não ao genocídio em marcha e perceber que a vio-
lência visível é apenas a sintomatologia das invisíveis.
Trata-se de deslocar a lupa da rota punitiva e de ressal-
tar a importância da construção de um espaço público
politizado pela via social, sustentado pelas Declarações
Internacionais de Direitos Humanos e conducente a
uma construção positiva da cidadania.

14 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Pp. 15-16.


15 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X
cidadania mínima. pp. 28-29.

 
Simbolismo democrático vs. realidade autoritária 899

4. Angústias “finais” que permanecem...

As angústias só aumentaram. Diante das estru-


turas evidentes, tenho profundo receio dos discursos
velados e das violências “não-visíveis”, internas, silen-
ciadas e, ao mesmo tempo, absolutamente escancara-
das. Estou convencida de que estamos vivendo uma
época de discursos acalorados sobre Direitos Huma-
nos, mas também, uma época de sociedade violenta,
senão genocida.
O Estado que antes matava era deveras comba-
tido. Hoje o Estado que não aniquila, ou que ao menos
não neutraliza o indesejável socialmente reconhecido,
não serve. Isso fomenta discursos políticos e sociais,
uma mídia espetaculosa e cruel e, sobretudo, práticas
de controle social absolutamente abusivas e negadoras
do Estado de Direito.
Concordo com Rui Cunha Martins sobre a con-
taminação e o diálogo – inevitável entre os dois regi-
mes (patrimônios) políticos - só não sei se realmente
ainda vivemos numa Democracia, e que só tenha “pul-
sões” autoritárias. Grande dúvida!

Referências

AMBOS, Kai; ZILLI, Marcos; MONTECONRADO, Fabío-


la Girão; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Anis-
tia, justiça e impunidade: reflexões sobre a justiça de
transição no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal má-
ximo X cidadania mínima – códigos da violência na era
da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Doutrina de segurança
nacional e subjetividade. In:_. Clínica e política: subjeti-
vidade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro:
Te corá, 2002.
900 Thayara Castelo Branco

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem


social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Re-
van, 2008.
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – the
brazilian lessons. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal.
Rio de Janeiro: Revan, 2007.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da
miséria nos Estados Unidos (a onda punitiva). Rio de Ja-
neiro: revan, 2003.

 
Símbolos de violência
no “trote” universitário
Corrente e saudação nazista

Thelma  Yanagisawa  Shimomura  

Introdução

O presente artigo tem como objetivo discutir a


partir da análise de duas fotos, o aparecimento de sím-
bolos de violência durante o ‘trote’ universitário ocor-
rido na Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Minas Gerais (FDUFMG), no dia 15 de março de
2013. Essas fotos foram postadas em redes sociais e
rapidamente repercutiram nacionalmente, causando
indignação e notas de repúdio de Movimentos Sociais e
de alguns órgãos ligados à própria UFMG, como a re-
presentação discente da FDUFMG dos cursos de Direi-
to e Ciências do Estado. Em uma das fotos, aparece
uma caloura com a pele pintada de preto e com as
mãos atadas por uma ‘corrente’, que é puxada por um
veterano. Ela também expõe uma placa pendurada no
pescoço com a inscrição “caloura Chica da Silva”, em
alusão à famosa ex-escrava que viveu em Diamanti-
na/MG, no período colonial. Na outra foto, aparecem
três veteranos, sendo que um deles ostentava um bigo-
de postiço similar ao de Adolf Hitler. Eles ‘brincavam’
com um calouro pintado de marrom que tinha sido
amarrado com fita adesiva a uma pilastra. Essa ‘brin-
cadeira’ consistia em gesticular a saudação nazista pe-
902 Thelma Yanagisawa Shimomura

rante o calouro imobilizado (TRAJANO; FREITAS,


2013, p. 01).
Frias (2013), no artigo intitulado “Todo trote é
aceitável desde que seja divertido para quem assiste?”,
diz que o trote tem função de dar boas-vindas aos ca-
louros e promover a integração deles com os veteranos.
Mesmo que algumas vezes haja festas, palestras e ou-
tras atividades, para algumas pessoas, infelizmente, se
não houver jogos de humilhação com os calouros, essas
atividades não seriam consideradas como trote.
A imprensa veiculou que os envolvidos no trote
da FDUFMG justificaram a ação como apenas uma
“brincadeira”, evidenciando dessa forma, a banalização
de práticas de violência (AZEVEDO et al, 2013, p. 01).
Pressupondo que calouros e veteranos tenham conhe-
cimento do sofrimento ocorrido nos períodos históricos
decorrentes da escravidão no Brasil e do nazismo na
Alemanha, percebe-se, portanto, a necessidade de re-
flexão sobre o processo educacional nas instituições de
ensino e nas famílias, para um entendimento mais am-
plo do ocorrido. Porém, estes assuntos não serão abor-
dados, como também, a especulação sobre o processo
jurídico. Cabe aos envolvidos passarem pelo devido
processo legal e serem responsabilizados na devida
proporção do que fizeram. Nesse artigo, propõe-se
uma conexão entre a aparição dos símbolos de violên-
cia no trote e o tema direito à memória e à verdade. Os
fatos registrados nas fotos serão aqui analisados como
um sintoma social. Sabendo que após três meses, esta
mesma instituição sediou o “Congresso Internacional
Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de
1988”, haveria alguma ligação entre esses distintos te-
mas?
Inicialmente, será abordado o conceito psicana-
lítico de Recalque e como esse mecanismo pode ser
entendido coletivamente diante de regimes represso-
res; depois será abordada a repressão militar na UFMG
e FDUFMG durante o período ditatorial e; em seguida
será apresentado o conceito de Justiça de Transição, as
 
Símbolos da violência no “trote”universitário 903

Comissões de Reparação no Brasil e dois tipos de repa-


ração para crimes contra a Humanidade, a responsabi-
lização judicial e os lugares de memória.

1. Recalque

No livro “Vocabulário da Psicanálise” encontra-


se a definição de recalque como:
Operação pela qual o sujeito procura repelir ou
manter no inconsciente representações (pensamen-
tos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. O
recalque produz-se nos casos em que a satisfação
de uma pulsão – suscetível de causar prazer em si
mesma – ameaçaria provocar desprazer relativa-
mente a outras exigências. O recalque é patente na
histeria, mas ocorre também na psicologia normal.
Pode ser considerado um processo psíquico uni-
versal, na medida em que estaria na origem da
constituição do inconsciente como campo separa-
do do resto do psiquismo. (LAPLANCHE, 2001, p.
430)

KEHL (2013) no artigo “A verdade e o recalque:


os crimes do Estado se repetem como farsa”, contex-
tualiza como o processo de recalque foi descoberto por
Freud e como a psicanálise surgiu como tentativa de
reverter seus sintomas patológicos. No século XIX, a
sexualidade, principalmente para as mulheres, era du-
ramente reprimida por imposições morais da nova
classe europeia emergente. Freud cria a hipótese de
que as crises de conversão das histéricas são tentativas
de dizer com o corpo, a verdade que este estava impe-
didas de recordar em pensamento ou de falar. Então, a
conversão seria a tentativa de expressar pelo corpo os
fragmentos recalcados de lembranças e/ou fantasias
sexuais interditadas, que não conseguiam outra forma
de expressão a não ser se tornando um sintoma. Além
da conversão, Freud também observou o mecanismo
de compulsão à repetição.

 
904 Thelma Yanagisawa Shimomura

Uma situação é compulsivamente repetida co-


mo tentativa inconsciente de promover em ato o que
foi ‘esquecido’. O neurótico traz à consciência, de ma-
neira enviesada, uma cena, uma fantasia ou um pen-
samento, que ficaram recalcados. E para sair desse ciclo
-vicioso de esquecimento e sintoma, Freud propôs a
psicanálise, que através da fala do paciente, torna pos-
sível revelar a verdade psíquica que foi silenciada. Ao
expressar a fantasia que foi recalcada o neurótico con-
segue se libertar das repetições sintomáticas. Ou seja, a
elaboração do trauma faz com que o neurótico consiga
evitar a compulsão à repetição.
Ainda no artigo de KEHL (2013) é apresentado
um paralelo entre a repetição do sintoma neurótico e as
repetições de fatos violentos e traumáticos nas socie-
dades governadas com base na supressão da experiên-
cia histórica. Nos regimes autoritários há um silencia-
mento imposto com restrição ao direito à informação
numa tentativa de ocultar as violações, abusos e vio-
lências do Estado contra os próprios cidadãos e por
isso
A elaboração dos crimes contra a humanidade nos
regimes totalitários depende do acesso a informa-
ções, mesmo às mais tenebrosas, mesmo àquelas
capazes de desestabilizar o poder e que, por isso,
se convencionou que deveriam ser mantidas em
segredo. Se o reconhecimento dos fatos que um dia
se tentou apagar não costuma trazer boas notícias,
em contrapartida, a supressão da verdade histórica
produz sintomas sociais gravíssimos - a começar
pela repetição patológica de erros e crimes passa-
dos. Corre-se o risco de que o apagamento rápido
e forçado dos crimes da ditadura militar seja simi-
lar aos efeitos perversos do esquecimento dos cri-
mes ocorridos no período da escravidão (KEHL,
2013, p. 01).

Além disso, em culturas autoritárias, ocorre o


processo de internalização da violência social, pois nes-
tas sociedades há a permissão para que uma minoria

 
Símbolos da violência no “trote”universitário 905

possa agredir, enquanto a maioria dos indivíduos é


obrigada a conter as suas agressividades, vivendo sob a
"mais-repressão". Há uma proibição para reagir aos
desagravos sofridos. O indivíduo tem de conter sua
agressividade protetora (ligada à preservação da vida)
e submeter-se à violência daqueles a quem a sociedade
permitiu violentá-lo. A violência de Estado é utilizada
para a manutenção de um tipo submisso de indivíduo.
Essa violência se manifesta de forma materializada na
destruição corporal (tortura, encarceramento e morte)
e, também, nas representações simbólicas que regurgi-
tam na vida mental, individual e coletiva, como experi-
ência traumática de horror. (CANIATO, 2008, p. 18).
Nas fotos, pode-se inferir que os crimes contra a
Humanidade ainda não foram elaborados socialmente
e que as atitudes e os símbolos de violência mostrados
representam uma compulsão à repetição e à internali-
zação da violência social. O simbolismo de dois calou-
ros supostamente restritos de suas liberdades (uma
acorrentada e o outro amarrado) no “Território Livre
José Carlos da Mata Machado”, contradiz a história de
luta contra a Ditadura, não só dos Mata Machado (José
Carlos e o professor Edgar1) como também de outras
pessoas que se indignaram com a repressão ditatorial.
Numa tentativa de elaborar o acontecido, faz-se neces-
sário resgatar a história de violações dentro da própria
FDUFMG. O “Congresso Internacional Justiça de Tran-
sição nos 25 anos da Constituição de 1988” parece ser
uma oportunidade para sensibilizar os estudantes so-
bre o abuso de violência estatal contra, principalmente,
o movimento estudantil durante o regime ditatorial.

1Para um aprofundamento sobre a vida de José Carlos e Edgar da

Mata Machado, sugiro o livro “Zé – José Carlos Novais da Mata


Machado, uma reportagem” de Samarone Lima. Belo Horizonte: Maza
Ed., 1998.
906 Thelma Yanagisawa Shimomura

2. Repressão Militar na UFMG e FDUFMG

O ambiente acadêmico era incisivamente moni-


torado na UFMG e na FDUFMG durante a Ditadura.
No artigo “Os olhos do regime militar brasileiro nos
Campi: As assessorias de segurança e informações das
universidades”, Rodrigo Patto Sá Motta (2008) fala co-
mo funcionavam as Assessorias Especiais de Segurança
e Informações (AESI) durante o regime militar. As AE-
SIs eram subordinadas a Divisão de Segurança e In-
formações (DSI) do Ministério da Educação e Cultura
(MEC), órgão supervisor, que, por sua vez, era subor-
dinada ao Serviço Nacional de Informações (SNI).
Ao realizar sua pesquisa, Motta (2008) constatou
o desaparecimento de muitos documentos produzidos
por essas Assessorias e que houve destruição proposi-
tal, pois as Universidades ocupavam lugar fundamen-
tal no planejamento estratégico dos militares, por seu
papel na formação das futuras elites e de técnicos. Por
isso o regime militar precisava obter a cooperação dos
dirigentes universitários aproveitando-se que as Uni-
versidades, como instituições públicas, encontravam-se
dentro da estrutura do próprio Estado. Na UFMG, das
três pessoas que chefiaram as AESI, duas eram juristas.
Mas, Motta (2008) não revela seus nomes.
Na UFMG a documentação indica que houve al-
guma indefinição no momento de criar a AESI. De
início, a Reitoria nomeou um professor para o car-
go (16/3/1971), porém, poucos meses depois (ju-
nho de 1971) foi indicado o Procurador Jurídico da
Universidade como responsável, sob a alegação de
que o primeiro desistira para realizar pós-
graduação no exterior. No início de 1973 foi nome-
ado um técnico da área jurídica da UFMG para
chefiar a AESI, pois o Procurador não poderia
mais acumular os dois cargos. Este funcionário,
cuja nomeação a Divisão de Segurança e Informa-
ção (DSI) levou quatro meses para liberar

 
Símbolos da violência no “trote”universitário 907

(1/4/1973), permaneceria à frente do órgão até sua


extinção (MOTTA, 2008, p. 35).

Desta forma, ainda segundo Motta (2008), as


AESI universitárias atuaram principalmente: na contra-
tação de funcionários, barrando a entrada de docentes
considerados de esquerda; no controle de manifesta-
ções e ações políticas planejadas pelas lideranças estu-
dantis, desde passeatas até solenidades de formatura;
na aplicação mais intensa das punições previstas na
legislação autoritária, como o Decreto nº 477/68 que
controlava a circulação internacional de docentes; e na
disseminação de material de propaganda produzido
pelo governo.
O controle exercido por meio das AESI universi-
tárias ocorreu tanto nos casos previsíveis (atividades
de natureza associativa e política no interior dos campi)
como afetou atividades ligadas à natureza da vida uni-
versitária: pesquisas, eventos científicos e cerimônias
acadêmicas. Existem exemplos dos mais diversos: pro-
ibição do Coral da UFMG (Ars Nova) de participar em
festival de corais no Chile, pois era governada pelo
socialista Salvador Allende; cancelamento de seminá-
rios de natureza acadêmica, devido à presença entre os
conferencistas de intelectuais oposicionistas (como o do
professor da faculdade de Direito, Edgar da Mata Ma-
chado) ou possuidores de ficha “suja” junto aos órgãos
de informação; proibição de eventos organizados pelas
entidades estudantis, como a Semana da Independên-
cia preparada pelo Diretório Central dos Estudan-
tes/UFMG em setembro de 1972.
A interferência nas cerimônias de colação de
grau constituiu situação peculiar, pois foram se trans-
formando em eventos de natureza política quando
turmas de formandos escolhiam como paraninfos inte-
lectuais oposicionistas, ou professores punidos pelo
Regime Militar. Num momento de censura aguda, a
intenção dos estudantes era mesmo usar a cerimônia
para protestar contra a ditadura.
908 Thelma Yanagisawa Shimomura

Em outro artigo, “Incômoda Memória: Os ar-


quivos das ASI universitárias”, Rodrigo Patto Sá Motta
(2008) mostra que no início dos anos 70, com o declínio
do estado autoritário e o início da transição democráti-
ca, o destino dos arquivos das ASI (Assessoria de Segu-
rança e Informação) ou AESI (Assessoria Especial de
Segurança e Informação) passou a causar preocupações
aos gestores do sistema de informações, uma vez que
poderiam revelar o que se desejava esconder. Desde
1975, apareceram as primeiras denúncias sobre a exis-
tência de critérios ideológicos na contratação de profes-
sores, apresentadas em eventos como os da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), porém
essas denúncias ficavam restritas ao espaço dos even-
tos científicos e aos círculos acadêmicos.
Em 1977, a imprensa paulista publicou peque-
nas notas e cartas de professores, que denunciavam a
existência de tais práticas na Universidade de São Pau-
lo (USP), e por isso o reitor daquela universidade foi
chamado a depor em Comissão de Investigações da
Assembleia Legislativa de São Paulo. Em seu depoi-
mento, o reitor não fez revelações sobre a ASI e tam-
bém não haviam provas concretas de sua existência.
Nesse momento, não se sabia muito sobre a atuação
das Assessorias, sequer seu nome correto. No ano de
1978, publicaram-se textos jornalísticos mais consisten-
tes sobre a existência dos serviços de segurança univer-
sitários. No ano seguinte, 1979, os responsáveis das ASI
encontraram motivos mais sérios para preocupação,
pois se tornaram alvo dos setores organizados da co-
munidade universitária, em meio a campanha pela re-
democratização das instituições de ensino superior e
por reparações aos perseguidos políticos. É difícil dizer
qual grupo começou primeiro a reivindicar a extinção
das ASI, o movimento docente ou o estudantil, pois
manifestações de ambos apareceram quase simultane-
amente.
Durante o I Encontro Nacional de Associações
Docentes, realizado em fevereiro de 1979 na cidade de
 
Símbolos da violência no “trote”universitário 909

São Paulo, entre os pontos aprovados para a pauta de


lutas destacavam-se a democratização e o fim do “con-
trole ideológico” nas universidades, mais precisamente
a extinção das Assessorias de Segurança e Informação.
A proposta de extinguir as ASI foi reafirmada nos en-
contros seguintes dos professores universitários e apre-
sentada diretamente aos reitores por algumas associa-
ções docentes. Para uma melhor compreensão desse
quadro, é importante destacar que, nos anos iniciais de
luta contra as ASI, os agentes das denúncias e campa-
nhas tendiam a ver os arquivos e documentos essenci-
almente como prova da repressão. Além disso, deseja-
va-se anular ou desativar as ASI, e assim garantir a
liberdade no interior dos campi. Porém, quanto ao des-
tino a ser dado aos arquivos das ASI não se tinha muita
clareza. Poucos foram os membros da comunidade
universitária que defendiam a preservação desses
acervos em benefício da memória e do conhecimento.
Motta (2008) explica que no contexto inicial das
lutas pela redemocratização, a preservação da memória
para futuros estudos sobre o autoritarismo era um te-
ma secundário, e isso é compreensível em função da
presença de temas mais urgentes em pauta. No contex-
to da disputa pelo destino dos arquivos das ASI, ocor-
reram casos comprovados de destruição. Tem-se notí-
cia de apenas duas administrações universitárias que
preservaram integralmente os acervos: UFMG e UnB.
No segundo semestre de 1986, os respectivos reitores,
Cid Veloso e Cristovam Buarque, encaminharam os
arquivos aos órgãos das universidades mais adequados
para receberem sua guarda, com o compromisso de
que seriam utilizados por pesquisadores e por pessoas
em busca de reparação judicial. Não se sabe o motivo
desses arquivos ainda se encontrarem nessas institui-
ções em 1986, mas permitiu aos reitores recém-
empossados a oportunidade de conservá-los e destiná-
los a órgãos de memória. Em despacho anotado à mar-
gem de um dos informes produzidos pelo SNI sobre a
“abertura” do arquivo AESI/UFMG, um anônimo
910 Thelma Yanagisawa Shimomura

agente de informações fez o seguinte registro, prova-


velmente no início dos anos 1980: “[...] determinou-se o
recolhimento dos arquivos das ASI universitárias, mas,
devido à reação do então diretor da DSI/MEC, a or-
dem não foi cumprida a contento, o que veio resultar
em problemas em PE, Maranhão e agora, soube-se,
BH/MG.” Tais arquivos guardam, de fato, memória
incômoda para vários dos protagonistas, tanto para
agentes da repressão e da administração universitária,
como para militantes políticos e pessoas vigiadas.
Percebe-se nesses dois artigos de Mota que pon-
tos obscuros envolvendo juristas e a FDUFMG ainda
permanecem sem conhecimento público e que há a
possibilidade de realização de pesquisas nos documen-
tos da AESI/UFMG que possivelmente revelariam al-
gumas das incômodas verdades.

3. Justiça de Transição

A justiça de transição envolve um conjunto de


medidas que permitem a superação de um regime au-
toritário para que se construa uma ordem democrática
e garantidora de direitos humanos. A ONU (em seu
Relatório S/2004/16 do Conselho de Segurança) define
a justiça de transição como o conjunto de medidas e
mecanismos associados à tentativa de uma sociedade
de lidar com um legado de abusos em larga escala no
passado. Dentro de tais mecanismos, pode-se falar em
busca pela verdade, reformas institucionais, expurgos
no serviço público, reparações às vítimas e julgamentos
individuais de abusos cometidos no período autoritá-
rio.2

2 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de et al. Cartilha Justiça de

Transição, 2014. Para melhor compreensão do presente artigo, optou-


se por inserir parte do conteúdo da cartilha no momento da revisão.

 
Símbolos da violência no “trote”universitário 911

4. Comissões de Reparação

Abrão e Torelly (2012) apontam duas Comissões


de Reparação no Brasil: a Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos, que funcionou entre
1995 a 2007, e a Comissão de Anistia, de 2001 até os
dias atuais. A reparação por parte do Estado consiste
no reconhecimento da existência das vítimas, das suas
narrativas e que cometeu graves violações contra os
direitos humanos. Ao desfazer as narrativas oficiais
sobre os crimes de Estado contra os resistentes políticos
da ditadura, as comissões efetivam o direito à verdade
diante das violações de direitos humanos. Nesse pro-
cesso de reparação produz-se um acervo de testemu-
nhos e de registros de violência que compõem os ar-
quivos das duas Comissões de reparação. Desta feita,
as comissões iniciaram a implantação de projetos de
resgate da memória histórica das vítimas. Coletiva-
mente, contribui para a elaboração das atrocidades
desse período de abuso de poder do Estado.

5. Reparação de Crimes contra a Humanidade

O Estatuto de Roma da Corte Penal Internacio-


nal, ratificado pelo Brasil em 2002, em seu artigo 7º de-
fine como crimes contra a Humanidade, entre outros,
assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou
transferência forçada de uma população, encarcera-
mento, tortura, violação ou violência sexual, desapare-
cimento forçado e a perseguição de um grupo ou cole-
tividade que possa ser identificado, por motivos políti-
cos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou
de gênero. O Estado pode ser responsabilizado quando
há uma linha de conduta que implique o cometimento
múltiplo dos atos mencionados contra uma população
civil, de conformidade com a política de um Estado ou
de uma organização que ataca para promover essa po-
912 Thelma Yanagisawa Shimomura

lítica (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2002.


DECRETO Nº 4.388).
O sistema jurídico é um importante mecanismo
de reparação, porém não deve ser utilizada de forma
isolada. No Brasil, há o agravante de que a punição dos
crimes durante o período de ditadura militar ficou
comprometida pela própria interpretação da Lei de
Anistia do Brasil (ABRAÃO e TORELLY, 2012, p 10-
47). Então, apesar do Brasil ter-se comprometido inter-
nacionalmente na investigação e punição dos crimes
contra a humanidade, a responsabilização criminal in-
dividual desses atos no período referente à Ditadura
não ocorreu. Foram realizadas tentativas de reparação
jurídica no âmbito internacional, destacando-se o caso
de Olavo Hansen, da “Guerrilha do Araguaia” (Gomes
Lund e outros) e de Vladimir Herzog. Porém, Lei da
Anistia foi o obstáculo alegado pelo Estado brasileiro
para a não investigação e punição dos responsáveis por
violações graves aos direitos humanos. A Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos (CIDH), órgãos das
Nações Unidas e outros organismos universais e regio-
nais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-
se sobre a incompatibilidade das leis de anistia com o
Direito Internacional e as obrigações internacionais dos
Estados. No Peru (Caso Barrios Altos e Caso La Cantu-
ta) e Chile (Caso Almonacid Arellano e outros), a
CIDH sentenciou a invalidade dos decreto-leis de “au-
toanistia”, por implicar a denegação de justiça às víti-
mas, bem como por afrontar os deveres do Estado de
investigar, processar, punir e reparar graves violações
de direitos humanos que constituem crimes de lesa-
humanidade (PIOVEZAN, 2009, p. 181). Em 2010 essa
mesma Corte condena o Brasil, no caso Gomes Lund,
pelo desaparecimento forçado de cerca de 70 pessoas e
reafirma a invalidade da Lei de Anistia brasileira.

 
Símbolos da violência no “trote”universitário 913

6. Lugares de Memória

No artigo “A Memória e seus abrigos: conside-


rações sobre os lugares de memória e seus valores de
referência”, Soares e Quinalha (2011) refletem sobre a
importância da memória para lidar com as graves vio-
lações de direitos humanos e, em especial, com o lega-
do de violência deixado pela ditadura militar brasilei-
ra. Dentre diferentes objetos da memória coletiva, os
momentos de extrema violência e de violação sistemá-
tica de direitos humanos se apresentam como uma
perspectiva privilegiada para compreender as caracte-
rísticas e dilemas essenciais dos processos de rememo-
ração, desta forma:
[...] esses episódios [I e II Guerras Mundiais, regi-
mes fascistas, Apartheid na África, as ditaduras
militares na América Latina, etc.] são lembranças,
incômodas a toda a humanidade, que atingiram
um ápice de horror e barbárie, qualitativa e quanti-
tativamente, diferentes do que se vira até então.
Por constituírem situações-limite, convocam, ao
mesmo tempo em que dificultam, o ato de consti-
tuição da memória. Com efeito, a natureza inten-
samente traumática desses conflitos de alto poten-
cial de desagregação social coloca, aos que sobre
ele se debruçam, o desafio da representação do ir-
representável; para os que sofreram diretamente
esses traumas, a recordação significa reviver a ex-
periência da dor (SOARES e QUINALHA, 2011, p.
255).

Soares e Quinalha (2011) pontam também que


as lembranças precisariam ser representadas para aces-
sar o presente. E a memória coletiva não é apenas com-
posta por lembranças individuais, sendo um campo de
permanentes disputas simbólicas em torno de versões e
fragmentos sobre o passado, bem como de suas rela-
ções com o presente. Em alguns casos, como no perío-
do pós-ditatorial brasileiro, chega-se a falar em uma
“guerra de memória”, pois há uma briga com o passa-
914 Thelma Yanagisawa Shimomura

do de várias formas. Uma delas é queimando ou es-


condendo provas documentais; criando silêncios em
vários sentidos, reais ou metafóricos. O objetivo maior
de enfrentar um passado bloqueado e liberá-lo para
acesso da memória é a elaboração dessas experiências,
mediante a construção coletiva. Com efeito, em se tra-
tando da memória dos crimes contra a humanidade, tal
qual a repressão política da ditadura brasileira, intensi-
fica-se a tensão entre a memória e o esquecimento, so-
bretudo porque, nessas situações, este último é comu-
mente instrumentalizado como estratégia de poder, a
fim de garantir a perpetuação de determinada ordem e
a impunidade dos que cometem esses crimes.
A construção de memoriais, a proteção de um
espaço como lugar de memória, o estabelecimento de
datas comemorativas, a formação de museus com te-
mas que busquem prevenir a repetição das atrocidades
ou outras formas de homenagem de vítimas são inicia-
tivas de memorialização. Os atos de memorialização
são de grande importância para a sociedade por repre-
sentarem o reconhecimento público do legado de vio-
lência (ou do passado violento). O Lugar de Memória
é um espaço concebido para cumprir uma função espe-
cífica no Estado democrático, com a participação da
sociedade. Mas, para ser considerado bem cultural,
deve exercer as funções democráticas atribuídas a essa
categoria de bens. Assim, por exemplo, no caso de
eventual tombamento de um DOI - CODI, far-se-ia a
adaptação dessa delegacia em um Memorial, como já
ocorreu em São Paulo na construção do Memorial da
Resistência. Esses Lugares de Memória atingem tam-
bém o Estado que por meio de sua implantação e ges-
tão, expressa pública e oficialmente seu repúdio às vio-
lações cometidas por seus agentes.

 
Símbolos da violência no “trote”universitário 915

Conclusão

A partir da análise da importância da memória


coletiva para a não repetição das violações dos Direitos
Humanos, e em especial no que tange a justiça de tran-
sição, aponta-se a necessidade de criação e a concepção
de Lugares de Memória na Faculdade na Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais, como também
investigações por uma Comissão de Memória e Verda-
de interna de documentos do ASI/UFMG, entrevistas
com professores, alunos e funcionários que vivencia-
ram o período da Ditadura Militar. Outra tarefa impor-
tante seria a de tornar públicas ações de pessoas liga-
das à FDUFMG que contribuíram com o regime mili-
tar. No ‘Panteão dos sábios’, 2º andar – abaixo do Terri-
tório Livre, há o busto de Pedro Aleixo, antigo profes-
sor da casa, que atuou junto ao regime militar. No 16º
andar do prédio da pós-graduação há o auditório Fran-
cisco Luís da Silva Campos, autor do preâmbulo do
Ato Institucional nº 1, fato pouco divulgado dentro da
FDUFMG.
Desde o início da tarde de terça-feira, 7 de abril, o
jurista Francisco Campos estava no gabinete do
general. Autor da Carta de 1937, último instru-
mento ditatorial da República brasileira, Chico Ci-
ência era um mineiro miúdo, autoritário, brilhante
e extrovertido. [...] Reunido com Costa e Silva e
um grupo de generais, Francisco Campos captou
neles uma vontade de praticar a violência política,
inibida pelo escrúpulo de atropelar a Constituição.
Agitado, andando de um general para outro, ati-
rou: “Os senhores estão perplexos diante do na-
da!”. E deu uma aula sobre a legalidade do poder
revolucionário. Era o que eles precisavam ouvir.
Perguntaram-lhe do que precisava para redigir
uma proclamação: “Papel e máquina de escrever”,
respondeu. (GASPARI, 2002, p. 123)

Entre os jovens estudantes da FDUFMG, alguns


conhecem a história de José Carlos da Mata Machado.
916 Thelma Yanagisawa Shimomura

O 3º andar, lugar onde são realizadas festas e também


onde ocorreu o trote, leva seu nome. Também há, me-
recidamente, placas de homenagens com seu rosto bo-
nito em vários cantos desta faculdade. Mas, dos outros
resistentes, pouco se sabe. E, a história dos colaborado-
res da Ditadura que passaram pela FDUFMG - alguns
homenageados - não foi devidamente investigada e
revelada. Quem sabe poderiam ser encontrados regis-
tros nos arquivos da ASI? Desta feita, uma Comissão
de Memória e Verdade interna poderia recolher infor-
mações através de pesquisa de documentos, como
também realizar entrevistas, dando voz àqueles que
foram silenciados pelo medo de serem perseguidos
pelo Estado.
A aparição dos símbolos de violência no trote,
então, pelo diálogo com a psicanálise e ampliando para
o conceito de Memória Coletiva, é interpretado como
uma compulsão à repetição do material violento que
ainda não foi elaborado e, ao mesmo tempo, também
uma tentativa de elaboração e reparação com o passa-
do. A aparição dos símbolos de violência revela que
história de violação dos Direitos Humanos não foi su-
perada.
Para isso, faz-se necessária a desconstrução de
uma verdade monolítica, do silenciamento imposto, a
revelação das violências encobertas e a sensibilização
das novas gerações sobre os abusos de violência estatal.
É pela abertura para a escuta de ‘verdades’, reconhe-
cimento da pluralidade, elaboração do passado e apro-
priação da própria história que se pode construir algo
novo e sair do ciclo vicioso de repetições de situações
traumáticas.

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