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O quarto furtivo

CCS

Pendente em sonhos como num dorso de tigre, vejo sair pela fresta de seus dentes
uma mosca que se equilibra em seu minúsculo centro voador e leva consigo todo ar
voante a trepidar sob seu corpo pululante. O que é uma palavra? É a figuração da
vibração de suas asas dentro do meu pulmão. Sendo assim, como posso dizer a palavra
voar sem que isso seja, para mim, apenas uma estimulação subjetiva, dado que eu
não conheço inteiramente a sensação de voar? Meu não conhecimento sobre ela faz
exatamente com que ela voe dentro de mim e, através da subjetividade dela, eu possa
então, na magnitude da minha ignorância de voar, que agora me favorece, enfim dizê-
la. Ou seja, não é o conhecimento ou desconhecimento de uma palavra que me permite
usá-la – mas a permissão de que suas asas voadoras batam sobre meus estímulos nervosos,
entrelaçando o que eu sei com o que não sei, fazendo com que a trajetória de seu voo
seja o de uma montanha russa dentro do quarto vazio que sou quando tudo finalmente
se cala e deixa que ela se diga. Para ela, não importa se ela não se olhar no espelho antes
de sair de seu casulo – importa que talvez existam muitos casulos para ela sair e entrar
em outros, seja numa paz de rinoceronte seja numa pressa de menina nua que procura
suas roupas jogadas no chão quando é pega no flagra pelo frio que entra pela janela
esquecida aberta.

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Um batalhão de moscas que se esqueceu de onde veio entrou no quarto vazio das
palavras, que acabaram de sair de seu quarto coberto por cortinas que forravam não
só as janelas mas também o chão. O batalhão veio com um propósito: o de mentir em
rebanho, pois sozinhas elas não conseguem formar mentiras sólidas o suficiente. Quando
uma quer dizer que ama a outra, vem uma terceira e a puxa pela mão advertindo que,
para dizer aquilo, ela deve dizer com todo o esquecimento que ela pode atingir para
que o grau de mentira e de verdade esteja completamente descolorido e liquefeito; ela
esquece então de dizer o que ia dizer até que é engolida pela palavra que tinha acabado
de sair de seu quarto e que consegue ser mais esvoaçante do que um batalhão de moscas
pretende ser.

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No quarto, não há nada debaixo das cortinas que cobrem o chão, o que faria com que
qualquer pessoa que entrasse lá afundaria, pois se enganaria pela imagem marítima que se
espalha por cima do nada horizontal. É um quarto onde leis, subordinações ou quaisquer
tipo de rubricação não podem ser edificadas. Pela atmosfera do quarto, é bafejada sempre
a frieza das janelas octogonais para sempre esquecidas abertas, cujo vento trás resíduos
que se afundam sobre o nada engolidor; seu peso faz com que as cortinas aprofundem e
lesionem fatalmente um pouco mais a alma – o chão inexistente – do quarto vernacular.

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Abril 2018

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