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ÉTICA E O CONSTRUTO DAS HUMANIDADES

Thais Alves Marinho

“Para que serve a política?”, “para que servem os políticos?” essas são perguntas
frequentes entre os brasileiros habituados com os escândalos de corrupção; com as
rotinas de desvios; com o descaso dos representantes políticos para com os eleitores;
com os privilégios adquiridos pela classe política; entre tantas outras arbitrariedades do
mundo da política. Esse descrédito da política denuncia o esvaziamento de seu
propósito ético, e causa uma tensão entre o ser e o dever ser, entre os fatos e as normas.

A ética, enquanto conjunto de valores que visam ao bem-estar social, e que


orientam o comportamento dos homens em relação aos outros homens na sociedade em
que vivem, tem sido, portanto, deturpada pela classe política, especialmente no caso do
Brasil. Isso significa dizer que o imperativo exterior da ética, ou seja, a legalidade, não
está em harmonia com as exigências e práticas individuais, já que não temos uma
comunidade política sólida, que os indivíduos considerem e identifiquem como sendo
sua.

Segundo texto de Natália Paiva, divulgado pelo site da ONG de combate à


corrupção do país Transparência Brasil, dos 594 deputados e senadores em exercício no
Congresso Nacional, 190 (32%) já foram condenados na Justiça e/ou nos Tribunais de
Contas. As ocorrências se encaixam em quatro grandes áreas: irregularidades em contas
e processos administrativos no âmbito dos Tribunais de Contas (como fraudes em
licitações); citações na Justiça Eleitoral (contas de campanha rejeitadas, compra de
votos, por exemplo); condenações na Justiça referentes à lida com o bem público no
exercício da função (enriquecimento ilícito, peculato etc.); e outros (homicídio culposo,
trabalho degradante etc.).” (disponível em: www.transparencia.org.br).

A questão da corrupção está em evidência e aumenta o desencanto com a


política. Considerada como um dos maiores males da democracia, suas consequências
são nefastas. Shakespeare (1994), em “Medida por medida”, destacou essa
problemática, conforme o fragmento abaixo: Uma coisa é ser tentado e outra coisa é cair
em tentação. Não posso negar que não se encontre num júri, examinando a vida de um
prisioneiro, um ou dois ladrões, entre os jurados, mais culpados do que o próprio
homem que estão julgando. A Justiça só se apodera daquilo que descobre. Que importa
as leis que ladrões condenem ladrões?”
A corrupção indica que a política, enquanto uma ação social transformadora, não
tem sido gerida para atender à vontade do coletivo e sim às vontades individuais. Tal
ética da corrupção, também presente na política brasileira, não consegue, portanto,
oferecer ao indivíduo e aos grupos sociais uma base suficiente para superar sua própria
particularidade e agir em conformidade com a legalidade externa, representativa da
motivação de qualquer ação.

Segundo Lipovestsky (1989) em “A Era do Vazio”, na atualidade, que ele chama


de hipermodernidade, seguimos um ethos individualista e narcisista, essa nova ética é
indolor, porque foge da dor do dever, ou seja, “não ordena nenhum sacrifício maior,
nenhuma separação de si mesmo”. Não se trata do fim da moral ou da ética
propriamente dita, mas, sim, do fim do ideal de sacrifício, que fora forjado
especialmente com o surgimento do Estado Moderno, e consequentemente da ideia de
nação. O sacrifício individual ocorreria em prol da nação e da coletividade que ela
representa, mas nessa nova ética individualista não há sacrifício individual em prol da
coletividade, os indivíduos buscam satisfazer a si próprios.

Segundo Émile Durkheim no livro “Da Divisão do Trabalho Social” (1979)


quando pensamos no bem estar da coletividade, estamos nos referindo a um ideal de
moralidade fundado no patriotismo, pelo menos, a partir da consolidação dos Estados
nacionais, desde o advento da modernidade, no século XVIII, que paradoxalmente é
caracterizada pela ideia de liberdade individual. Assim, a ética moderna tem exigido um
sacrifício de liberdade individual em nome da nação. Nada é mais moral do que morrer
pela pátria. O próprio objetivo do partido comunista europeu no fim do século XIX e
início do século XX era sacrificar uma geração inteira para findar com a sociedade de
classes, garantindo o bem-estar de todos e todas no futuro. Mas esse ideal de sacrifício
parece não constar mais na ética hipermoderna, como alerta Lipovetsky, não é mais uma
ideologia legítima, e perde seu rigor moral nas sociedades hipermodernas,
especialmente no Brasil.
O caso brasileiro de corrupção pode ser a expressão dessa ética narcísica. A
indignação com esse esvaziamento ético da política foi expresso nas manifestações
populares de junho de 2013 no Brasil e nas diversas manifestações de 2015 e 2016,
especialmente pela rejeição à presença dos partidos políticos durante as reivindicações.
Os partidos, aqui não são mais vistos como representantes de ações transformadoras da
realidade, que visam à coletividade, são associados à manutenção do poder e dos
interesses individuais da classe política.

Figura 1 - Fonte:http://hashtagnews.webs.com/apps/blog/categories/show/1688608-
comportamento

As manifestações ocorridas no Brasil desde 2013 levaram às ruas milhares de


indivíduos que queriam expressar sua insatisfação com as políticas públicas. Esses
cidadãos rejeitavam grupos de partidos políticos, inclusive gritando palavras de ordem:
"política NÃO!" ou "O povo unido não precisa de partido", entre tantas outras, em clara
demonstração de desprezo pelos partidos e pelos governos, pois não se sentem
representados por eles.

Para além dá ética e da moral, o caso do Brasil é elucidativo da compreensão


comum que temos da política. Ela é vista e empregada estritamente em termos da
atuação estatal ou partidária, por isso, as manifestações brasileiras voltavam seu foco
apenas ao governo e aos partidos, sem, no entanto, mostrar indignação com as
corrupções cotidianas do “jeitinho brasileiro”, por exemplo. Isso porque a compreensão
ordinária da política é bastante parcial, e por isso, não conseguimos entender com
facilidade a ética e a moral brasileiras.

Então, a política não se refere apenas ao plano institucional, como sendo as


diretrizes gerais que expressam os parâmetros dentro dos quais as ações de uma
instituição (seja o Estado, ou uma empresa, ou mesmo instituições religiosas, sindicais
etc.) e de seus integrantes devem se desenvolver no cumprimento de sua missão.
Tampouco refere-se somente a atuação dos partidos políticos, vistos como organizações
voluntárias de cidadãos com afinidades ideológicas e políticas, que visam à ocupar o
poder político em um determinado país politicamente organizado, buscando ou a
manutenção ou a transformação social.

Essas duas compreensões mais habituais de política são consequências de um


fato que torna a política muito mais relevante e presente na vida de todos nós. O fato de
os humanos serem seres sociais e inevitavelmente coordenarem relações sociais,
permeadas por assimetrias, portanto, poder. A política está em todas as dimensões da
vida social, organizando, direcionando, administrando o que somos, o que fazemos, o
que sentimos e o que pensamos. Nossa identidade é, portanto, indissociável das relações
sociais, políticas e de poder que travamos desde o nosso nascimento. Logo, ética e
sociedade são inseparáveis das dimensões históricas, filosóficas e políticas que a
perpassam.

Esse pressuposto ultrapassa o empreendimento kantiano de tentar fundamentar a


possibilidade de um conhecimento inteiramente calcado na razão e, sobretudo, de uma
moral racional, regida apenas por nós próprios. Na perspectiva de Kant (2005) a pessoa
humana é a medida e a fonte do dever e dos próprios valores morais, seríamos
autônomos para perseguir o esclarecimento ético e moral. Mas, se a moral pode ser
fundamentada num princípio inteiramente a priori, e portanto, universal, o dever seria o
único motivador da vontade, e nesse caso, por que estamos aqui discutindo um cenário
generalizado de corrupção, como ocorre no Brasil? Será que todos e todas nós
padecemos do comodismo, do oportunismo, do medo ou da preguiça? Será que estamos
todos e todas (brasileiros e brasileiras) num estado de menoridade? Será que somos
incapazes de fazer uso de nosso entendimento sem a direção de outro indivíduo? Será
que somos culpados de nossa própria menoridade?
A menoridade de que fala Kant (2005) tem, portanto, uma imbricação ética: se
me eximo de minhas decisões, não deveria reclamar das consequências. Afinal, quem
abre mão de seu posicionamento ou de sua voz perde o direito às reivindicações. Então
por que estariam os brasileiros e brasileiras tão insatisfeitos com a corrupção e tão
dispostos a se manifestar?

Essa ética formal kantiana aparece vazia de conteúdo, já que não estabelece
nenhum bem ou fim que tenha que ser alcançado, que não nos diz o que temos que
fazer, mas apenas como devemos atuar, onde o que basta é a intenção, a coerência entre
a ação e a lei, e não o fim. Afinal, do que é apresentado como universal, obrigatório e
necessário, qual é a parte singular, contingente, e fruto de imposições arbitrárias?

A visão iluminista kantiana sobre a ética ao seguir leis imutáveis, como no


universo de Isaac Newton, acaba simplificando demais a realidade. O descaso iluminista
com a variedade e com as diferenças se mostrara empiricamente como um erro. Na
visão materialista, se ignorarmos as evidências empíricas não conhecemos a realidade, e
logo as evidências de desigualdades no mundo liberal iluminista diluem os ideais de
liberdade, igualdade e justiça, colocando em xeque a noção de ética desvinculada da
realidade material e mesmo cultural, defendida pelos iluministas.
Para além de concepções monoculturais e tendências homogeneizadoras que
cristalizam identidades, conflitos culturais e silencia vozes oprimidas, diversos campos
em nossa sociedade vêm se abrindo para um debate em torno da pluralidade cultural e
identitária. A ética e a moral seriam, nesse contexto, resultado de uma construção
dinâmica, individual e coletiva, a qual recebe uma contribuição de todas as instituições
sociais (família, estado, Igreja, escola, universidade...).

O problema ético não é, portanto, exclusivo da classe política, ela envolve uma
tensão sócio-histórica constante entre a legalidade (ordenamento jurídico que submete
ou coage o indivíduo ao dever ser) e a moralidade. A moralidade seria a expressão da
consciência do ser social, cuja identidade é construída de acordo com o equilíbrio dos
interesses e necessidades, com as possibilidades do agir, do pensar e do viver social
legalmente institucionalizados. Mas como essa moral (enquanto valores instituídos) é
aceita ou contestada?

Muitos teóricos têm se debruçado sobre essa questão.

A ética da mercadoria, denunciada por Karl Marx (1996) durante o


desenvolvimento do liberalismo, cria um paradoxo baseado no fetiche da mercadoria.
Ou seja, a mercadoria, vista apenas em sua relação com outras mercadorias (baseada no
valor de troca), oculta as relações sociais por trás de sua produção, baseadas em relações
assimétricas entre burgueses e proletários. Essa ética ou moral burguesa baseada na
“aparência objetiva” é estruturalmente constitutiva do capitalismo e se torna uma
motivação para as ações sociais. Por um lado, temos uma ética imanente ao mercado,
teorizada e difundida pela economia política, expressão objetiva do fetichismo da
mercadoria. Nessa acepção, em “A Ideologia Alemã” (1982), Marx afirma que a
ideologia seria a fonte de motivação da ação pré-determinada pela ordem social, pela
ética coletiva (como na acepção hegeliana), que retira do individuo sua possibilidade de
resistência aos ditames da sociedade (alienação). Por outro lado, a conduta dos
indivíduos segue a crítica, considerada como experiência motivadora da ação política
(invertendo a moral kantiana). Logo, a motivação do agente revolucionário, assentada
não apenas na privação e na vivência da desigualdade social, mas, sobretudo na
experiência e no exercício reiterado da crítica sobre justiça social.
O funcionalista Émile Durkheim, por outro lado, entende que, muito embora
tenhamos uma consciência individual1, à medida que somos socializados adquirimos
uma consciência coletiva por meio da coerção social. Assim, nossa consciência
individual é moldada segundo a moral coletiva, seguindo o imperativo dos fatos sociais,
independente das manifestações individuais. Nessa acepção, os fatos sociais exerceriam
poder sobre nossa consciência individual, moldando nossas vontades, desejos e
pensamentos segundo os arbítrios morais da sociedade a que pertencemos.

Nesse pensamento holista a moral não seria algo oriundo da vontade divina ou
de qualquer forma de razão universal a priori, como em Kant e diversos outros filósofos
e teólogos. A origem da moral, em vez de partir de uma ética da utilidade ou do
interesse, como pressupunham os utilitaristas como Hobbes, Spencer, Bentham e James
Mill, ou de uma ética do dever ou do bem, como o idealista Kant, estaria, segundo
Durkheim, no conjunto das interações e representações sociais elaboradas ao longo da
história. Para Durkheim, uma regra moral é uma regra de conduta pré-estabelecida e que
se manifesta imediatamente às consciências, sem que muitas vezes o indivíduo se dê
conta disso ou questione longamente acerca do que deve fazer; em cada circunstância a
regra moral deve impor-se com toda clareza, dispensando qualquer mediação. Assim, a
moral é um dever, porque é um “imperativo social”, é a sociedade (enquanto sujeito sui
generis) que ordena ao indivíduo agir de tal ou qual maneira. Desse modo, a sociedade
torna-se a única fonte capaz de conter substância ética e moral. As ações são, portanto,
ditadas pelo agir da maioria (no caso do Brasil marcado pela corrupção). Sendo assim, a
possibilidade do dever ser limita-se à imitação do poder hegemônico seguindo o status
quo vigente. Quem ousar ir contra a racionalidade do imperativo social empreenderá
ações individuais subjetivas, patológicas, anômalas, minoritárias, fadadas ao fracasso.
Seriam as crenças, práticas e representações, como também as leis, normas e
regras sociais que constituem os elementos éticos e dinamizadores do funcionamento do
corpo social.

Já para a sociologia compreensiva de Max Weber (2002), que defende uma


atitude antipositivista nas ciências sociais, cada indivíduo constrói seus próprios
sentidos, e a si mesmo, à medida que se estabelecem as relações sociais. Tal
reciprocidade das ações sociais permite a construção de consenso e ordem. Para Weber
1 A consciência individual para Durkheim refere-se à forma particular de pensar e enxergar o mundo de
cada pessoa, essa visão seria específica para cada indivíduo e estaria relacionada às características
psíquicas e, por isso, seria objeto de estudo da psicologia, não da sociologia.
(2002) os homens são dotados de vontade e buscam ordenar a realidade em que vivem,
dando significado aos acontecimentos do mundo e à própria ação. Criam ou aderem a
valores que não tem validade fora da história (contexto), os homens, então, criam
cultura. Ao contrário de Durkheim (1979), Weber (2002) não pensa que a ordem social
tenha que se opor e se distinguir dos indivíduos como uma realidade exterior a eles.
Weber acredita que as normas sociais se concretizam exatamente quando se manifestam
em cada individuo sob a forma de motivação.

O sentido das ações sociais é compreendido por diversos agentes da sociedade e,


portanto, cria-se uma expectativa de ações com a probabilidade de que se aja
socialmente de uma forma indicável pelo sentido. Essa previsibilidade dos sentidos
possibilita regularidades empíricas, porque os indivíduos formam relações sociais.
Assim, não existem individualidades históricas nas formações sociais como: Estado,
Igreja e mesmo a corrupção, como na perspectiva de Durkheim (1979). Estas seriam o
resultado de entrelaçamentos e desenvolvimentos de ações específicas de pessoas
individuais, que só existem enquanto existir a probabilidade de indivíduos agirem dando
sentido a sua existência. Logo, as instituições não são individualidades históricas,
surgiram porque existem ações de indivíduos que as corroboraram.

Desse modo, a indignação dos brasileiros quanto à ética na política seria uma
hipocrisia, já que a corrupção seria uma ordem legitimada nas ações cotidianas dos
indivíduos brasileiros. O brasileiro tem noção clara dos comportamentos éticos e morais
adequados, mas vive sob o espectro da corrupção. Se o país fosse resultado dos padrões
morais que as pessoas dizem aprovar, pareceria mais com a Escandinava do que com
Bruzundanga.” (corrompida nação fictícia de Lima Barreto). O distanciamento entre
“reconhecer” e “cumprir” efetivamente o que é moral constitui uma ambiguidade
inerente ao humano, por que as normas morais são criadas pelo homem, que concede a
si mesmo a lei à qual deve se submeter.

Dentro dessa lógica, isso ocorre porque a regra moral, ao contrário da lei formal,
não teria validade universal, sua obrigatoriedade está circunscrita numa lógica social
que seria particular a cada indivíduo ou grupo, de acordo com as relações sociais
travadas por estes ao longo de suas vidas. A corrupção e a malandragem não seriam
simplesmente singularidades inconsequentes de todos os brasileiros e brasileiras. Seria
um modo profundamente original e brasileiro de viver, e às vezes, sobreviver, em um
sistema no qual o privado nem sempre dialoga com o público, e as leis formais da vida
pública nada têm a ver com as boas regras da moralidade costumeira que governam a
nossa honra, o respeito e a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes e aos
compadres. É ai que reside o distanciamento entre aquilo que é considerado correto e
aquilo que efetivamente é praticado como correto.

No caso do Brasil, como bem salienta Roberto DaMatta, no livro “O que faz o
brasil, Brasil?” (1997), o que faz com que esses sentidos éticos baseados na “cultura do
jeitinho” se atraiam legitimando uma ordem baseada na malandragem, seria o costume.
Essa tradição seria uma peculiaridade da construção da identidade brasileira, que oscila
entre os valores discriminatórios e autoritários na política e na economia desde a
colonização do país, e a alegria carnavalesca no dia a dia, vencendo todas as
possibilidades com o jeitinho “malandro” carioca, ou “metido” do sulista, “preguiçoso”
do baiano, enfim, do jeitinho brasileiro. Seria um modo pacífico e até mesmo legítimo
de resolver a distância entre a moral e as leis formais. A junção entre as duas ocorreria
pela apropriação pessoal sobre os parâmetros do que é legal, nesse sentido a frase “Você
sabe com que você está falando?” seria elucidativa, ela torna um ato ilegal, legal
moralmente e, portanto, superior à lei, já que a pessoa seria uma autoridade. É uma
forma cínica, que expressa o gosto pelo grosseiro e pelo desonesto, diante da
dificuldade de juntar a lei com a realidade social diária (moral)

Assim, como afirma Weber (2002), os participantes de uma ação social podem
pautar suas condutas por uma ordem costumeira, porque ela estabelece um padrão de
comportamento e se manifesta como obrigatória. Assim sendo, existe a probabilidade de
que em grau considerável a ação social se oriente por essa ordem tradicional. Essa regra
moral, em determinados contextos, como o brasileiro, teria mais força, do que aquela
que se baseia apenas em motivos racionais de finalidade, como as leis formais. Esse
parece ser o caso do “jeitinho brasileiro”.

Em 2006, o IBOPE divulgou uma pesquisa acerca da opinião do eleitor


brasileiro sobre corrupção e ética, com o objetivo de tentar entender se os problemas
éticos enfrentados pela sociedade brasileira estão concentrados nos “políticos” ou se há
uma cultura na sociedade que avaliza a corrupção. Foram apresentados aos pesquisados
13 atos de corrupção, incluindo: dar uma “gorjeta” para se livrar de uma multa, sonegar
impostos, receber benefícios do governo sabendo que não tem direito a eles, adquirir
documentos falsos para obter algum tipo de vantagem, pedir mais de um recibo por um
mesmo procedimento médico para obter mais reembolso do plano de saúde, comprar
produtos que copiam os originais de marcas famosas, sabendo que são piratas ou
falsificados, fazer ligação clandestina ou “gato” de TV a cabo do vizinho, entre outros.
Os resultados mostraram que 69% dos eleitores brasileiros já transgrediram alguma lei
ou descumpriram alguma regra contratual de forma consciente e intencional, para
adquirir ganhos materiais, sendo que 75% afirmaram que cometeriam algum dos 13 atos
de corrupção avaliados pelo estudo se tivessem oportunidade.

Fonte: http://reinehr.org/sociedade/saude-dasociedade/corrupcao-na-politica-
eleitor-vitima-ou-cumplice

O combate à corrupção no Brasil é um dos temas mais discutidos da atualidade.


É consenso entre a população, que até se organizou reivindicando melhorias políticas,
como nas manifestações de junho de 2013 e as de 2015. No entanto, apesar do apelo
lógico e racional-legal dessas reivindicações, a superação da corrupção parece uma
utopia diante do caráter estrutural de tais práticas na vida cotidiana brasileira, já que os
brasileiros não compreendem a separação entre público e privado.

No caso do Brasil, as ações políticas parecem se pautar num sentido costumeiro


e tradicional, mas são ditadas pelos hábitos, que se tornam o receituário de condução
das ações, sem, no entanto, atingir um plano de consciência das próprias ações. Desse
modo, como indica Clifford Geertz, no livro “A interpretação das Culturas” (1998), a
cultura não deve ser vista como um padrão concreto de comportamento – costumes,
usos e tradições, e sim como um conjunto de mecanismo de controle – planos, receitas,
regras e instruções. O homem, segundo as acepções de Geertz (1998), é, portanto, o
animal mais dependente de controles extragenéticos que regulam o seu comportamento.

Nessa concepção de homem, a cultura é enfatizada como mecanismo de


controle, se baseia na afirmação de que se o homem não fosse dirigido por padrões
culturais, o mundo seria um caos de atos sem sentido e de explosão de emoções. Assim,
a cultura é uma condição essencial para a existência do homem e medeiam suas ações
com a natureza, com os outros seres humanos, e com o mundo dos objetos.

O que implica o reconhecimento da importância das ações e experiências dos


indivíduos na análise sobre a ética, afinal, os indivíduos atuam em meio a práticas e a
conflitivas relações de poder, produzindo, rejeitando e compartilhando significados. A
cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea, tornando-se elemento
chave no modo como o cotidiano é configurado e modificado.

Assim, para pensarmos a questão ética no Brasil, é preciso pensar sobre a


instituição própria de transmissão de cultura, a escola. É nessa instituição que ocorre a
difusão do que mais significativo culturalmente a humanidade produziu às novas
gerações. Por muito tempo, foi a escola a responsável por levar adiante a utopia
iluminista de que uma sociedade ética seria aquela que defende a ideia de igualdade e
do direito de todos e todas à educação e à escola, e de que isso, bastaria para garantir o
progresso da civilização.

No entanto, numerosos estudos e pesquisas têm envidenciado como essa


perspectiva termina por veicular uma visão homogênea e padronizada dos conteúdos e
dos sujeitos presentes no processo educacional. Aos “outros”, os “diferentes” – os de
origem popular, os afrodescendentes, os pertencentes aos povos originários, os rappers,
os funkeiros etc. – mesmo quando fracassam e são excluídos, ao penetrarem no universo
escolar (e mesmo nos espaços ocupados por aqueles que se adequam aos padrões da
monocultura, como shopping centers, aeroportos, universidades, entre outros espaços
sociais das elites) desestabilizam sua lógica e instalam outra realidade sociocultural,
gerando, mal-estar, tensões, conflitos.

Seria essa utopia da monocultura que sustenta a ética “burguesa” fundada no


fetiche da mercadoria, da meritocracia e na noção de que os “diferentes” e a
desigualdade são imbricações da menoridade (no sentido kantiano) que o indivíduo
insiste em perpetuar. Não considera, portanto, as implicações sociais, políticas e
econômicas na coercitividade dos fatos sociais, tampouco, o sistema de controle da
cultura e a produção de sentidos e significados sociais presentes no ordenamento da
sociedade.

A versão monocultural de ética e igualdade ainda está muito arraigada, como


bem retrata, Max Gonzaga, em uma música de 2004, que discute a postura ética da
classe média sobre a realidade atual. Por isso, é preciso questionar, desnaturalizar e
desestabilizar essa realidade. Mas, também é preciso favorecer o processo de reinventar
a cultura, analisando os desafios que uma sociedade globalizada, excludente e
multicultural impõe para a ética.
Classe Média – Max Gonazaga (2004)

Sou classe média/Papagaio de todo telejornal/Eu acredito na imparcialidade da revista semanal/Sou


classe média/Compro roupa e gasolina no cartão/Odeio "coletivos"/E vou de carro que comprei a
prestação/Só pago impostos/Estou sempre no limite do meu cheque especial/Eu viajo pouco, no
máximo um pacote CVC tri-anual/Mas eu "to nem ai"/Se o traficante é quem manda na favela/Eu não
"to nem aqui"/Se morre gente ou tem enchente em Itaquera/Eu quero é que se exploda a periferia
toda/Mas fico indignado com estado quando sou incomodado/Pelo pedinte esfomeado que me estende
a mão/O pára-brisa ensaboado/É camelo, biju com bala/E as peripécias do artista malabarista do
farol/Mas se o assalto é em Moema/O assassinato é no "Jardins"/A filha do executivo é estuprada até o
fim/Ai a mídia manifesta a sua opinião regressa/De implantar pena de morte, ou reduzir a idade penal/E
eu que sou bem informado concordo e faço passeata/Enquanto aumenta a audiência e a tiragem do
jornal/Porque eu não "to nem ai"/Se o traficante é quem manda na favela/Eu não "to nem aqui"/Se
morre gente ou tem enchente em Itaquera/Eu quero é que se exploda a periferia toda/Toda tragédia só
me importa quando bate em minha porta/Porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de vida

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.

E. DURKHEIM. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,


1989.

KANT, Imamnuel. Resposta a pergunta: Que é esclarecimento? Textos Seletos.


Tradução Floriano de Sousa Fernandes. 3 ed. Editora Vozes: Petrópolis, RJ. 2005. Pg.
63-71.

LIPOVETSKY, Gilles, A Era do Vazio. Lisboa: Relógio D’Água, 1989.

M. WEBER. Ensaios de Sociologia. São Paulo: LTC, 2002.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 3a edição, São Paulo, Ciências
Humanas, 1982.

MARX, Karl. As crises econômicas do capitalismo. São Paulo, Ched Editorial, 1982.

MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Nova
Cultural, 1996. vol. 1.

SHAKESPEARE, W. Comédias e sonetos. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.

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