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exercício de escrita a partir da experiência extensa-intesiva da obra

"ARA MAINO'ī - Oferendas Coreográficas para quarta feira”

No encalço do deus de pés alados começou a minha jornada que se deu início às
oito horas da manhã da quarta-feira do dia quatro de outubro de 2017. Compareci
ao encontro da abertura do trabalho das oferendas coreográficas no Marco Zero
da cidade de São Paulo em frente à Catedral da Sé. Lá onde a ficção São Paulo foi
inaugurada. Onde a história e a estória dessa cidade começaram. Lá também, foi
onde começou a jornada coreográfica que iria dezesseis horas a dentro da cidade,
do tempo, dos símbolos, dos mitos e de todas as ficções. | que religião que é? né
religião não, é teatro | Ao longo das 7 oferendas, vaguei por sensações,
cansaços, entusiasmos, demandas, jogos e olhares. O tempo, kronos, tornou-se
kairos, o momento indeterminado do que chamamos tempo em que algo especial
acontece, o lugar da experiência. Uma espécie de deriva guiada, um estar na
cidade descolado da própria cidade. Ao anoitecer eu podia sentir os efeitos dessa
entrega para a rua. O tempo já não me estruturava, eu habitava, simplesmente. O
tempo da cidade, o clássico tempo do trabalho, em uma cidade como São Paulo,
que se propõe a conduzir e não ser conduzida, é comumente o tempo
estruturado, a divisão inventada para o trabalho-produção, o trabalho-sofrimento,
o tempo da hora do rush, dos fluxos dos agentes trabalhadores do capitalismo
nosso de cada dia. ARA MAINO’ī habita a cidade, mas não habita esse tempo.
Antes o tempo de quem vive na rua do que o de quem passa pela rua. Assim como
no simbólico bastão de Hermes, a cidade parecia ser uma base reta, concreta e
direta, enquanto o tempo serpenteava ao redor do bastão, na cabeça das cobras
ondulantes, seduzindo a cidade para abrir-se ao movimento circular. A experiência
à qual me propus me colocou nesse lugar, estar na cidade, no tempo da
experiência, da abertura para o acontecimento. Assim, eu me tornei um
espectador-não-esperador, não esperava ser entretido ou ansiava por virtuoses
artísticas. A experiência em si tornava-se a obra, e a obra tornava-se experiência
em si. A minha posição e a minha presença como contemplador daquilo tudo era
serena, e eu esquecia do tempo por ter me tornado parte dele. Eu tinha a calma
escondida dos habitantes da praça. | esse canto é para arejar, esse canto é
para organizar | Conheci o que os olhos e os sentidos deixam passar, uma outra
camada da ficção cidade, uma história que está nos mesmos lugares pelos quais eu
passo mas que pede uma outra atitude ante os elementos que compõe a
metrópole. Conheci o Mercúrio-menino da Praça da República, o Zumbi dos
Palmares em frente a Bolsa de Valores, aos pés do qual vi mãos erguidas ao céu
como antenas, buscando captar alguma coisa que parecia ter sido esquecida no ar.
Conheci a bola, objeto máximo do jogo, do homo-ludens, dos brincantes e
arruaceiros da cidade, que destilam a peste da comunicação, do entusiasmo. A
palavra que mais ecoa nas minhas ações pós-jornada coreográfica é o entusiasmo. |
as trevas nada podem contra o poder do entusiasmo e do amor | Era
lancinante a tensão constante entre aquilo tudo. Momentos em que as oferendas
pareciam uma ingenuidade ante a crueza da rua, das fumaças, do concreto e dos
rostos descrentes dos passantes; e que alegria entender a potência da ingenuidade,
ou melhor, do entusiasmo que, em tempos de testas franzidas, suspiros de
cansaço e descrença na vida, parece uma ingenuidade. A cada nova oferenda, um
reencontro com os sete, uma nova intimidade com aquelas sete figuras que
mutavam-se e encorpavam os mitos, os símbolos e as criações humanas,
misturadas, emboladas, comidas e vomitadas para serem comidas de novo. Mito
na nossa língua pode ser história, mentira ou um grande herói, e Hermes era tudo
isso nessas horas vagando pela cidade ao encontro dos coreocoros. De um lado os
ofertantes, e de outro nós; um agrupamento temporário, uma resistência
também, uma comunidade momentânea e instantânea, o público. Eu e alguns
companheiros de jornada, fomos nos aproximando e nos comunicando ao longo
do trajeto. Mercúrio ia aos poucos tecendo sua rede de comunicação entre cada
um de nós, em uma conversa no almoço, no trânsito entre os sítios e durante as
oferendas. Fomos nos tornando velhos novos conhecidos no parâmetro da
duração da experiência, do tempo do estar. ARA MAINO’ī passou com as
bênçãos de Hermes e cultivou o encontro, a troca. Na volta pra casa as coisas iam
se apagando aos poucos. Alguns flashes ainda iluminavam a memória da minha
cabeça cansada que já não se preocupava em organizar ou controlar o
pensamento. Dormi e não lembrei de sonho algum ao acordar, mas não pude
deixar de sentir aquela sensação de que o dia anterior poderia não ter passado de
um sonho, uma ilusão, uma mágica.

As terras de Sampã estão mais arejadas e aradas pelos vôos de Mercúrio nos
corpos de vocês.

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