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Análise Psicológica (1998), 2 (XVI): 249-254

A criança asmática: Relação e terreno


alérgico (*)

ANA MARIA PINA MARTINS (**)

«Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos


Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!»
Álvaro de Campos

A alergia é, para além do mais, um problema bem como a mais velha das tias maternas, sofreu
de identidade. Identidade enquanto rosto, lugar de asma até à adolescência. A outra tia sofre
de uma identidade que faz defeito pela existência também de eczema desde o nascimento, e dos
de uma indistinção que também se manifesta em cinco tios maternos apenas os três rapazes nunca
termos imunológicos. tiveram qualquer problema de tipo alérgico.
Apresentarei o caso de «Marco», criança de 6 Conjugado com este aspecto verificou-se para
anos, que sofre de asma e de dermatite atópica. a mãe de Marco, durante a sua gravidez, um
As patologias familiares constituem o terreno acontecimento que a pôs face a um conflito que
alérgico hereditário sobre o qual se vai desen- atingiu foros de uma situação de impasse. Aos 8
volver a alergia de Marco. De facto o seu único meses e meio de gestação sofreu um acidente de
irmão de 12 anos é também asmático. A mãe, viação que a colocou sob suspeita médica de
existência de um traumatismo craniano e na
eminência de ter de se provocar o parto para que
pudesse ser operada em seguida. Apesar de isto
(*) Comunicação apresentada no Simpósio «Psicos- não ter vindo a verificar-se dado as suspeitas não
somática e Psicologia da Saúde», do 1.º Congresso se haverem confirmado, a mãe de Marco viveu o
Nacional de Psicologia da Saúde realizado pelo final da gravidez e o próprio momento do parto
Instituto Superior de Psicologia Aplicada e pela
APPORT, em Lisboa, em Janeiro de 1994. sob forte receio de vir a ter uma criança que não
(**) Psicóloga Clínica. Instituto Superior de Psico- fosse saudável, ou de que o parto fosse prejudi-
logia Aplicada, Lisboa. cial para a sua própria saúde.

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Posta assim perante a contradição insolúvel de -lhe banho e dando-lhe de comer, indiscrimina-
ter que dar à luz, temendo sobretudo fazê-lo esta damente. Chegava a dar-lhe banho três e quatro
mulher vive uma situação que se reflecte no nas- vezes por noite pois tinha ouvido dizer que isso
cimento do bebé. Não faz a dilatação o que tra- ajudava as crianças a acalmar. Submetia-o no en-
duz a sua dificuldade em se separar da criança. tanto a esta hiper-estimulação que, de intrusiva,
De facto, embora fruto de uma gravidez de ter- não contribuía para ajudar Marco a desenvolver-
mo, a criança vem a nascer de parto distócico, se criando os seus ritmos corporais próprios, an-
por intermédio de cesariana. Marco nasce ciano- tes submetido às exigências da mãe que forma-
sado, com problemas respiratórios, necessitando vam a matriz do super-ego corporal, conforme
de reanimação. conceptualizado por Sami-Ali.
Ainda com poucos dias de vida é-lhe diagnos- Criou-se assim um impasse precoce em torno
ticada uma bronquite do tipo asmático. dos ritmos. Na dermatite atópica tudo se joga em
Assim as dificuldades respiratórias de Marco termos de ritmo. São crianças adaptadas a um
têm lugar neste momento inicial em que se joga ritmo que está em contradição com o seu ritmo
a primeira autonomia de respiração, que aqui põe pessoal.
problemas. O corpo não tem uma autonomia de Aos 6 anos de idade, a estabilidade do ritmo
funcionamento. Verifica-se uma dificuldade em nictemeral, bem como a termo-regulação, são
«ser», em «existir». A situação de impasse vivi- coisas que ainda levantam problemas para a
da pela mãe resultou para a criança neste impas- criança. Esta adormece algumas vezes durante o
se inicial entre «ser» e «não ser»: afinal, a inter- dia e acorda durante a noite para comer. Não
rogação fundamental da alergia. consegue além disso permanecer numa homeos-
Sob a particular herança de um terreno alérgi- tase de temperatura, tendo frio ou calor alterna-
co pode-se criar assim uma solução, também do damente.
tipo alérgico, para este problema inicial que resi- A mãe é a primeira organizadora dos ritmos
de nesta primeira contradição entre nascer e do bebé. A mãe de Marco transmitiu-lhe um
não-nascer. Face à presença desta fragilidade he- ritmo desadequado e excessivo que lhe viria a
reditária conjugam-se pois o terreno alérgico e a impor a necessidade de uma grande vigilância,
relação precoce da díade. com reflexos nas insónias que ainda hoje se veri-
A vida do bebé vai decorrer sob moldes de ficam.
onde se desprende uma perturbação dos ritmos, Entre os 3 e os 4 meses, período em que, de
biológicos e relacionais. Em consonância com o par com as modificações no mundo relacional do
seu receio de, (conforme palavras suas), «não sa- bebé (o aparecimento do primeiro sorriso, o
ber conseguir tratar de muitos filhos» como a sua desmame – que em Marco se verifica pouco an-
mãe fizera (é ela, como se disse, a mais nova de tes dos 4 meses), se modifica também a qualida-
uma fratria de seis), a mãe de Marco vivia com de do sono, iniciando-se a sua regulação com os
grande dificuldade os afazeres acrescidos da ritmos circadianos, e se encontra também em
casa e o facto de ter de dar também atenção ao constituição a sua personalidade imunológica,
filho mais velho, que a solicitava para o ajudar período pois de especial fragilidade, Marco é
nos trabalhos da escola. Conferia pois pouca colocado numa creche. Imediatamente se vão
atenção a Marco, pegando-o ao colo apenas para desenvolver os primeiros sinais de alergia cutâ-
o amamentar, embora, soubesse que o bebé apre- nea: um eczema, que se generaliza progressiva-
ciava esses momentos. Depois tentava que se mente a todo o corpo e que é de início diagnos-
fizesse o maior silêncio para que a criança per- ticado como urticária de origem nervosa, vindo
manecesse a dormir o máximo de tempo possí- depois a ser reformulado como dermatite atópi-
vel. ca. Na presença de uma contradição entre o
Verificou-se assim uma contradição entre as ritmo da criança e um ritmo estranho, que lhe é
possibilidades evolutivas do bebé e a actuação imposto (pelos diferentes cuidados e rotinas
materna, entre o corpo real do bebé e o corpo prestados nas creche).
imaginário da mãe. À fragilidade inerente a este período de vida
Durante a noite Marco acordava chorando alia-se em Marco a ausência da mãe, que deixava
constantemente ao que a mãe respondia dando- o bebé no estabelecimento durante quase doze

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horas diárias. Presa numa relação dual à mãe, a a figura materna. Verifica-se assim uma ausência
criança alérgica tem dificuldades em construir a de distância onde, à impossibilidade de ser dife-
sua alteridade dado que é esta que desempenha o rente, se sobrepõe a ilusão de «ser todos os ou-
papel de super-ego corporal, de onde releva o tros». A mãe referindo-se ao seu comportamento
corpo no seu funcionamento. Logo, a emergên- dizia: «Para ele era tudo um género universal».
cia da diferença vem precipitar a crise alérgica. O problema equaciona-se em torno do rosto
A relação com a mãe tem tanto mais relevân- como lugar da identidade; de uma não diferen-
cia quanto o pai é ausente. Angariador de vendas ciação em relação à figura materna, à qual todos
pelo país, o pai de Marco está pouco em casa e, os rostos são reduzidos. Daí a ausência de angús-
quando está, pouco se dedica ao seu filho, além tia face à presença do estranho: a projecção ate-
do facto de a sua presença ir ocasionar uma mo- nua a diferença; uma dupla identificação reduz a
dificação dos ritmos na vida da casa. um só elemento «eu» e «não eu»; a idealização
Com quase 8 meses de idade Marco começa a converte este «único objecto» em «objecto úni-
desenvolver asma. Por trás desta variabilidade co». Se apesar de tudo falharem estas defesas,
sintomática encontra-se afinal o mesmo funcio- confrontada com a diferença e numa impossibi-
namento psicossomático, a mesma dificuldade lidade de «ser», a criança alérgica reage com
da criança em saber o que ela é e o que não é. uma crise alérgica: equivalente somático de um
Concomitantemente, assinalando a mesma difi- distúrbio da identidade.
culdade de reconhecimento da alteridade, Marco Os desenhos de Marco ilustram esta proble-
não manifesta a angústia do estranho, angústia mática da identidade.
do 8.º mês segundo Spitz, e passa facilmente de Assim, a possibilidade da coexistência de
colo para colo sem expressar qualquer receio. contrários, pela redução da diferença, pode ex-
Mais tarde, em idade pré-escolar, chama indis- pressar a própria essência do funcionamento
tintamente «mãe» a todas as mulheres e, olhan- alérgico de que se vê exemplo no desenho da Fi-
do-se ao espelho diz «a mãe», funcionando como gura 1.
se não houvesse diferenças entre as pessoas. Há (A noite e o dia, o sol e as estrelas – além dis-
uma familiaridade geral porque todos são como so as estrelas são colocadas no dia e o sol na noi-

FIGURA 1

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FIGURA 2

te) e em que Marco introduz no entanto a possi- constituem pois tentativas de solução do impas-
bilidade da diferença, apesar da simetria. se. Há um impasse que se revela cada vez que a
Já em psicoterapia comigo, em seguida a um criança repete a problemática do nascimento, ca-
sonho em que vê uma bruxa/cegonha que vinha da vez que tem uma evolução em relação a esta
de França e que o queria levar, Marco faz outro problemática.
desenho (Figura 2). Marco tem a possibilidade de viver dois tipos
Desencadeara na véspera uma forte crise alér- de funcionamento mental: reage ao conflito seja
gica. Em seguida a ter, noutra altura, sonhado pela expressão do imaginário, de que é exemplo
que eu e a mãe nos afastávamos numa carroça o desenho anterior (Figura 3), seja pelo recalca-
ficando ele sozinho, Marco fez o desenho da Fi- mento, de que é exemplo outro desenho (Figura
gura 3. 4).
E diz «sou eu, não se vê porque estou na bar- Tratando-se portanto daquilo que Sami-Ali
riga da mãe». Acontecera na véspera nova crise define como uma patologia mista. Verifica-se
alérgica, embora menos acentuada. para além disto em Marco a possibilidade de
A criança refere estes sonhos como tendo-lhe passagem da alergia a um estado vizinho da hi-
causado bastante perturbação. Estes pesadelos pomania (que também integra a contradição), em
constituem tentativas para sair do impasse. Tra- que Marco pode manifestar um nível projectivo
ta-se de dois sonhos de nascimento. Dá-se assim muito mais acentuado.
nestes sonhos, simultaneamente, um reequacio- Equacionando-se à volta do «ser» e do «não
nar do problema, bem como uma tentativa de ser», a alergia pode, como vimos em Marco, ma-
elaboração desta problemática do nascimento. nifestar-se de diversas formas podendo, como

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FIGURA 3

FIGURA 4

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neste caso, a dermatite atópica alternar com a as- Sami-Ali, M. (1970). De la projection. Une étude psy-
ma, ou ainda o funcionamento alérgico passar a chanalytique. Paris: Payot.
Sami-Ali, M. (1974). L’espace imaginaire. Paris: Galli-
apresentar características hipomaníacas, com o mard.
mesmo fim último de integrar o contraditório. Sami-Ali, M. (1984). Le visuel et le tactile. Essai sur la
Assim se torna impossível a atribuição de um psychose et l’allergie. Paris: Dunod.
sentido ao órgão atingido pelo sintoma alérgico Sami-Ali, M. (1990). Imaginaire et pathologie. Une
pois, qualquer que este seja, o que está em causa théorie de la psychosomatique. Revue Française de
Psychanalyse, 3, 761-766.
é um mesmo processo global, mais fundamental,
em termos de um questionamento sobre a identi-
dade. RESUMO
A evolução psicossomática na alergia pode,
como aqui veio entretanto a acontecer, permitir a Relata-se o caso clínico de uma criança com asma
confrontação progressiva com a emergência da alérgica.
Efectua-se uma abordagem compreensiva através
diferença e com uma situação triangular e in-
do modelo multidimensional de somatização proposto
flectir assim a patologia para um contexto edi- por Sami-Ali.
piano. Mas a impossibilidade de uma solução Palavras-chave: Avaliação psicológica, estudo de
pode levar a que se desenhe uma solução de to- caso, asma, alergia, psicossomática.
nalidade psicótica, com total confusão sujeito/
/objecto.
ABSTRACT

Clinical report on a case study of a child with a


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS psychosomatic disorder: bronquial asthma.
The main focus of this paper is on an approach ba-
Campos, A. (1980). Poesias. Lisboa: Edições Ática. sed on the Sami-Ali´s somatization multidimensional
Gouthier, J.-M. (1993). L’enfant malade de sa peu: model.
Approche psychosomatique de la dermatite atopi- Key words: Psychological assessment, case study,
que. Paris: Dunod. asthma, allergy, psychosomatic.

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