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Teresa Malatian
poucos pontos verdadeiramente importantes por que passou; mostrar como, sob a
pressão de que circunstâncias, o seu entusiasmo inicial teve de enfraquecer e inflectir
o traçado primitivo; por assim, a respeito de um homem de uma singular vitalidade,
esse problema das relações do indivíduo e da coletividade, da iniciativa pessoal e da
necessidade social que é, talvez, o problema capital da história (Prefácio à 1ª
edição,1945, p.11). A vida de Lutero nesta biografia não se desenvolve até sua morte
mas foi fechado em 1525, quando ocorreu o que Fèbvre denominou “recuo sobre si”,
“retirada” ou “refúgio em si mesmo”, conforme as diversas traduções possíveis da
palavra repli.
Hoje, oitenta anos decorridos , o debate ainda incide sobre as mesmas
questões metodológicas: a necessidade de escolhas na trajetória de vida , para a
composição do relato biográfico, como e quando iniciá-lo, o período a ser trabalhado
como relevante .
Marc Bloch igualmente se manteve próximo do gênero ao estudar Filipe II e o
franco-condado , pois ali abriu novos caminhos para a biografia ao se ocupar do papel
dos indivíduos, ainda que inserido no quadro das estruturas agrárias da sociedade
feudal. Em Apologie pour l’Histoire chegou mesmo a defender o papel dos indivíduos
na história como necessário e em L’étrange défaite refletiu sobre o papel do
testemunho, revelando-se assim um dos primeiros a preconizar o abandono do
estudo das personalidades de exceção e sua substituição pelas personagens
secundárias, consideradas mais reveladoras de uma época ou de um meio.
Não houve entre os Annalistas da primeira geração ruptura com o gênero
biográfico mas sim um ajuste da abordagem ao novo campo teórico e metodológico
que se abria para a temporalidade ampla, o econômico e o social. Recusaram os
exageros laudatórios do século XIX e buscaram adequar a biografia a paradigmas
historiográficos voltados para uma História objetiva , as mentalidades, os atores
coletivos, que no entanto reservavam um espaço e um protagonismo aos sujeitos
individuais.
Na geração seguinte, a de Braudel, a desconfiança em relação à história do
indivíduo foi o contraponto da postura que privilegiou as estruturas e a temporalidade
longa. Mesmo assim, seu estudo sobre o mundo mediterrâneo comportou a dimensão
individual da atuação de Felipe II como o espaço biográfico reservado à duração curta,
do evento, da história que se desenrola em velocidade maior que a das estruturas e
conjunturas.
Com os avanços da historiografia de base marxista e do estruturalismo na
universidade, o gênero biográfico teve seu espaço encolhido após a Segunda Guerra
Mundial. A ênfase na história serial só fez aprofundar nas décadas de 1960 e 1970 a
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que se possa escrever sobre ele, o trabalho crítico sobre testemunhos diferentes e
contraditórios para que se amplie o enfoque analítico e se possa alcançar tanto
aspectos desconhecidos de sua vida como ultrapassar sua opacidade para seus
contemporâneos e mais próximos.
Entre histórias de vida individuais e prosopografias (notícias biográficas
individuais que se confrontam para que mediante amostras se possam estabelecer
tipos, salientar traços comuns), o gênero se mantém próximo da literatura e por isto
mesmo a solicitar atenção redobrada do historiador. Da literatura, tem sido
incorporadas técnicas e recursos estilísticos como o flasback, inclusão de detalhes
pitorescos e da vida cotidiana, estilo cuidado, narrativa fluída, num diálogo com o
hipotético leitor, inspirado também pelo jornalismo. Nem é de se desprezar a prática de
deixar fluir a consciência do escritor na caracterização do personagem visando a
produção de um efeito de realidade . Aos historiadores, cabe o desafio de
eliminar a mescla entre biografia e romance, de estabelecer referências documentais e
empíricas seguras.
A prosopografia ou biografia coletiva tem sido praticada na historiografia
contemporânea como recurso para “definir uma população a partir de um ou vários
critérios e estabelecer, a partir dela, um questionário biográfico cujos diferentes
critérios e variáveis servirão à descrição de sua dinâmica social, privada, pública, ou
esmo cultural, ideológica ou política, segundo a população e o questionamento em
análise” (Charle, 2006). Inicialmente aplicado ao estudo das elites, o método
prosopográfico tem sido bastante frutífero também em estudos de personagens
retirados do anonimato para esclarecer dinâmicas entre grupos, classes sociais, redes
de sociabilidade. Neste sentido, o trabalho inovador de João J.Reis centrado na
construção de biografias coletivas de escravos e ex-escravos a partir da vida do liberto
Domingos Sodré ilumina o mundo social em que se moveram os personagens, suas
experiências e práticas culturais em meio às estruturas e instituições do mundo
escravista do Brasil no Segundo Reinado.
A biografia tem ocupado espaço crescente no cenário editorial breasileiro e não
só pelas traduções publicadas. Personalidades políticas, artísticas e midiáticas
fornecem inesgotável fonte para estudos realizados tanto por historiadores quanto por
jornalistas e escritores em geral, assim prolongando direcionamentos memorialísticos
de publicação de diários, autobiografias e correspondências. O público se torna cada
vez mais amplo e pronto a consumir histórias de vida romanceadas, escritas com
técnicas ficionais como diálogos imaginários. Personagens consagrados tem sido
biografados na esteira de efemérides e estudos abalizados passam por reedições
consagradoras de antigos e novos heróis .
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Referências
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