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40 anos depois

história e memória

Carlos Fico
Maria Paula Araujo
Org.
Disputas em torno da memória de 68
e suas representações
Maria Paula Araujo

1968 tornou-se uma data emblemática e simbólica no campo da cultura


e da política, não apenas para a geração que participou dos eventos daquele
ano, mas também para toda a mídia impressa, virtual e eletrônica, assim
como para a comunidade acadêmica e universitária. Ao longo de todo o
primeiro semestre de 2008 foram inúmeros os seminários e as publicações de
livros sobre o tema. No presente seminário, o Programa de Pós-Graduação
em História Social (PPGHIS/UFRJ) aproveita este momento para estimu-
lar uma reflexão crítica sobre o significado histórico da data. E refletir sobre
o seu significado histórico implica uma reflexão sobre a história e a memória
de 68. Ou seja, não apenas refletir sobre o que aconteceu, mas sobretudo,
problematizar a memória socialmente construída sobre 68. Tão importan-
te quanto a reconstrução histórica de 68 (procurando entender o proces-
so político que desencadeou os diversos “68” em várias partes do mundo,
com seus significados próprios e algumas convergências) é compreender a
memória sobre 68, seu conteúdo simbólico e imaginário e também sua força
identitária. 1968 é um ano mítico, fortemente simbólico que se tornou, em
todo o mundo, sinônimo de juventude e rebeldia. E é isso que eu gostaria
de discutir neste texto: o conteúdo desse mito e desse símbolo.
De uma forma geral, fala-se em “68” como se houvesse um significa-
do único dos eventos ocorridos nesse ano. Como se “68” representasse um
movimento unitário e homogêneo em várias partes do mundo. Mas na verdade
ocorreram diferentes tipos de movimentos políticos, com diferentes conteúdos.
E diferentes não apenas em função das diferentes realidades nacionais em que
eclodiam. Às vezes, num mesmo país, diferentes movimentos, com conteúdos
muito distintos (embora todos de formato contestatário e juvenil) se confron-
taram em 68. E todos eles reivindicam o signo do ano, o estigma de 68.
1968 é, portanto, sinônimo de multiplicidade e de disputas políticas.
Disputas essas que, de certa maneira, são reeditadas e ressignificadas nos
tempos atuais, em torno dos eventos de comemoração do ano.
No entanto, há uma memória sobre 68 que procura homogeneizar e
amalgamar estes diferentes conteúdos dando uma falsa ideia de que tudo que

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aconteceu naquele ano possuía uma racionalidade e uma articulação que na
verdade não havia. O ano de 1968 foi um palco de disputas por propostas
políticas, visões de mundo, padrões estéticos, comportamentais e paradig-
mas teóricos. Imaginar o ano com um único conteúdo e uma única memó-
ria é enfraquecer o combate político que foi travado e perder a riqueza da
experiência social. A construção de uma imagem unitária de “68” minimiza
as disputas políticas e estéticas que ocorreram em seu interior e procura fazer
crer num ano mágico e fantástico que juntava elementos díspares numa sín-
tese libertária. No entanto, recuperar essa dimensão de disputa, de dissen-
so, de fraturas internas, é recuperar o melhor do espírito de 68, ano em que
diversas propostas políticas, sociais e existenciais circularam e se confronta-
ram, produzindo inúmeros e diversificados “68”. Portanto, em certo senti-
do, mais do que celebrar ou comemorar 68, talvez seja importante “descons-
truir 68”, discernindo suas múltiplas e contraditórias vertentes.
O ano de 1968 é associado a diferentes processos políticos e sociais: ele
designa revoltas estudantis que ocorreram praticamente no mundo todo,
com diferentes conteúdos; mas faz lembrar também o movimento hippie
– com toda a sua postura anticonsumista, o slogan “Make love not war”, o
amor livre, o uso de drogas como forma de ampliar a percepção sensorial do
mundo. Estes dois caminhos nem sempre estiveram juntos; na verdade, po-
de-se dizer que estavam ligados a mundos diferentes, com paradigmas e ato-
res diferentes, muitas vezes críticos um em relação ao outro.
Vejamos uma das vertentes mais representativas de 68: as revoltas es-
tudantis. Explicar esse fenômeno, ainda hoje, não é fácil. A filósofa alemã
Hannnah Arendt (que nos anos 60 vivia nos EUA) apontou, no livro So-
bre a violência, que o traço comum entre os diferentes movimentos estudan-
tis que ocorreram praticamente no mundo todo era o desprezo pelas formas
tradicionais de fazer política. Para Arendt, a chave para a compreensão do
movimento de revolta juvenil do final dos anos 60 é o processo vivido, em
todo o mundo ocidental, de esvaziamento da ação política.
O traço crucial das rebeliões estudantis em todo o mundo é que elas são dirigidas em
todo lugar contra a burocracia dominante. Isto explica o que, à primeira vista, pare-
ce ser tão perturbador – que as rebeliões no Leste exijam precisamente aquelas liber-
dades de expressão e pensamento que os jovens rebeldes do Ocidente dizem despre-
zar como irrelevantes. (...) Os dissidentes e resistentes no Leste exigem a liberdade de
discurso e pensamento como condições preliminares para a ação política; os rebeldes

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do Ocidente vivem sob condições em que estas preliminares não mais abrem os ca-
nais para a ação, para o exercício significativo da liberdade.1

Em oposição a este jogo político moroso e viciado, os estudantes – tanto


das democracias ocidentais, como dos regimes socialistas do Leste Europeu
– levantavam a bandeira da ação direta. A valorização da ação direta sem in-
termediários, da democracia participativa, o culto à coragem e à ação mar-
caram uma boa parte dos movimentos políticos juvenis de 68.
Mas explicar por que esses movimentos de contestação surgiram, em
vários pontos do mundo, na mesma época, também é uma questão ainda
não resolvida. Para o jornalista Paul Berman, a rebelião estudantil mundial
foi produto de um novo tipo de liderança que se desenvolveu nas organiza-
ções juvenis de esquerda. Num livro intitulado Um conto de duas utopias: o
diário político da geração de 1968, Berman analisa a origem e trajetória das
lideranças políticas de 68 e mostra que elas eram, em sua maior parte, egres-
sas de partidos comunistas e socialistas. A maior parte delas havia militado
nos partidos tradicionais de esquerda e tinha rompido com eles (ou sido ex-
pulsa); expressavam, portanto, uma visão crítica em relação à esquerda tra-
dicional. Na Alemanha, em 1961, a ala estudantil do Partido Social Demo-
crata Alemão, considerada radical, intolerante e não cooperativa, foi expulsa
do partido. Em 1968, esses mesmos jovens lideraram o movimento estudan-
til alemão. Na França, entre 1965 e 66, o mesmo conflito se repetiu, tanto
no Partido Comunista quanto no Partido Socialista Francês, produzindo,
também lá, uma geração de jovens líderes e militantes egressos dos partidos
tradicionais de esquerda e violentamente críticos em relação a estes. Berman
salienta que esse processo ocorreu em muitos outros países, como a Itália, os
Estados Unidos, o México. Em todos eles, os jovens militantes foram con-
siderados radicais, inconvenientes e não cooperativos pelos militantes mais
velhos dos partidos comunistas e socialistas. Em contrapartida, os jovens ra-
dicais acusavam esses militantes de conservadorismo, imobilismo, passivida-
de e excesso de cautela.2 Na Europa, nos EUA e na América Latina forma-
vam-se grupos e organizações de esquerda críticos e dissidentes dos partidos
comunistas e socialistas. Essas novas organizações eram formadas sobretudo
por jovens, empenhados na construção de uma Nova Esquerda, com novos
valores e novas práticas. Estes calcavam-se na valorização da ação direta, do
1
ARENDT, Hannah. Sobre a violência.
2
BERMAN, Paul. A tale of two utopias: the political journey of the generation of 1968.

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radicalismo, do confronto – elementos que pareciam se contrapor às rígidas
estruturas hierárquicas e burocráticas dos partidos políticos (inclusive dos
comunistas e socialistas) e dos grandes sindicatos.
No entanto, estes dois pontos em comum levantados por autores tão
diferentes como Hannah Arendt e Paul Berman talvez não sejam suficientes
para criar uma identidade profunda entre os movimentos. Estamos, na ver-
dade, no reino das diferenças. Como escreveu Octavio Paz em seu livro Pos-
data, “a universalidade do protesto juvenil não impede que este assuma ca-
racterísticas específicas em cada região do mundo”.3 Nesse livro Paz faz uma
tipologia dos movimentos estudantis de 68, estabelecendo fortes relações
entre o que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, em contraposição aos
países da Europa do Leste e da América Latina. Para ele, no Ocidente, os
jovens se rebelaram contra os mecanismos da sociedade tecnológica, contra
um mundo de “objetos que se gastam assim que são possuídos”: “En el se-
no de la sociedad más avanzada del mondo, los Estados Unidos, los jóvenes
se preguntan sobre la validez y el sentido de los principios que han fundado
a la edad moderna”.4 Por outro lado, nos países do Leste Europeu, a revol-
ta juvenil apresentou outras bandeiras, ausentes do movimento do Ociden-
te: principalmente as bandeiras do nacionalismo e da democracia. Naciona-
lismo frente à dominação e ingerência soviética nestes países e democracia
frente às burocracias comunistas dirigentes. Octavio Paz assinala a bandei-
ra da democracia como uma das diferenças mais importantes entre os movi-
mentos juvenis do Leste e do Ocidente europeus:
Es revelador que esta ultima aparezca como la reivindicación inmediata y primordial
de los jóvenes en el Este: la democracia, esa palabra que ha perdido casi todo su mag-
netismo en Occidente.5

Para Octavio Paz, o descrédito em relação à democracia, no mundo oci-


dental, era um “sintoma desolador”. Paz sublinha que, quaisquer que sejam
as limitações da democracia ocidental (burocracias partidárias, monopólios
da informação, corrupção etc.), não há vida política sem liberdade de críti-
ca e sem pluralidade de opiniões e de associações.

3
PAZ, Octavio. Posdata.
4
Ibidem.
5
Ibidem.

20
Toda dictadura, sea de un hombre o de un partido, desemboca en las dos formas pre-
dilectas de la ezquizofrenia: el monólogo y el mausoleo. México y Moscú estan llenos
de gente con mordaza y de monumentos a la Revolución.6

Para Octavio Paz o movimento dos estudantes mexicanos – assim co-


mo dos estudantes latino-americanos – apresentou maior afinidade com os
movimentos da Europa do Leste pois levantava, como principais bandeiras
políticas, o nacionalismo e a democracia. A bandeira do nacionalismo era
levantada contra o imperialismo norte-americano e a democracia era a prin-
cipal bandeira política contra as ditaduras militares ou, no caso do México,
contra a dominação do Partido Revolucionário Institucional (o partido de-
corrente da Revolução Mexicana que, ao longo das décadas, consolidara-se
no poder e tornara-se burocrático, autoritário e violento). Em 1968, o mo-
vimento estudantil dos países da América Latina era um movimento essen-
cialmente reformista e democrático, apesar de alguns de seus dirigentes per-
tencerem à extrema esquerda.
Assim, Octavio Paz vê, nas revoltas estudantis de 1968, dois movimen-
tos de conteúdos distintos. Um que se desenvolveu no interior de socieda-
des de abundância da Europa Ocidental e dos Estados Unidos e que colo-
cava em xeque os próprios princípios desta sociedade: progresso, consumo,
sucesso; e outro, nos países do Leste Europeu e da América Latina, para os
quais os slogans de maio de 68 pareciam distantes, que eram fundamental-
mente marcados pelo nacionalismo e por lutas pela democracia e contra di-
taduras militares.
O maio francês é o símbolo maior do primeiro tipo de movimento clas-
sificado por Octavio Paz. Foi lá que os acontecimentos chegaram mais lon-
ge: ocupação de universidades e de fábricas; greves; manifestações e con-
frontos com a polícia; barricadas nas ruas. Slogans até então incompatíveis
com a dura dinâmica da ação política eram escritos nos muros de Paris:
“A imaginação no poder”; “Um, dois, três, mil Vietnãs”; “É proibido proi-
bir”. A discussão política travada a partir do maio francês empreendeu uma
transformação importante na própria concepção de política: a introdução
da subjetividade na política, a politização das emoções e dos sentimentos, a
problematização das relações familiares, amorosas e sexuais. O movimento fe-
minista francês teve um papel fundamental nisso. Para Hobsbawm, este foi

Ibidem.
6

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o aspecto mais transformador e de maior impacto dos movimentos de 68. O
historiador inglês chamou este processo de “revolução cultural”.7
Comparações também podem ser estabelecidas com os diferentes movi-
mentos dos Estados Unidos, onde coexistiam – não necessariamente em har-
monia – a campanha contra a guerra do Vietnã, as manifestações públicas
onde eram rasgadas as cartas de convocação para a guerra, os movimentos
Black Power e os festivais de rock que prenunciavam a Era de Aquarius. Mais
do que todos os outros, foram os movimentos juvenis dos EUA que abriram
caminho, nas décadas seguintes, para os movimentos de autodeterminação:
como os movimentos de mulheres, de negros, de homossexuais.8
No Brasil, o movimento estudantil de 1968 foi um movimento essen-
cialmente contra a ditadura militar. As lutas estudantis e o processo de ra-
dicalização política que culminaram em 68 começaram alguns anos antes,
mais especificamente em 1966, quando ocorreram violentos confrontos en-
tre estudantes e tropas policiais, no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Be-
lo Horizonte e outros estados. No Rio, o episódio que ficou conhecido co-
mo o “Massacre da Praia Vermelha” foi o marco inaugural desse processo.
Os estudantes haviam ocupado a reitoria da antiga Faculdade de Medicina
da Universidade do Brasil (atual UFRJ) e foram encurralados e espancados
pela polícia. A partir deste episódio os estudantes cariocas e de outros esta-
dos prepararam-se para enfrentar a polícia nas ruas. Até 1968, o confronto
e a radicalização política nas ruas foram aumentando. Esse processo culmi-
nou com o assassinato do estudante secundarista Edson Luís. As manifesta-
ções em protesto contra a morte do estudante tornaram-se, no Brasil, a re-
presentação e o símbolo principal de 68. O enterro do jovem no Cemitério
São João Batista em Botafogo, a missa de sétimo dia, na Candelária, vigia-
da e reprimida no final por tropas policiais a cavalo e, mais do que tudo, a
Passeata dos Cem Mil. Realizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, a
passeata reuniu não apenas estudantes, mas artistas, intelectuais, funcioná-
rios dos escritórios do centro, donas de casa. A passeata foi pacífica e não en-
controu resistência policial, transformando-se num dos maiores símbolos de
68. Podemos dizer que algumas manifestações políticas marcam determina-

7
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos.
8
É importante lembrar das diferentes vertentes do movimento negro norte-americano que se desen-
volveram na década de 1960: Luther King, Malcolm X., os Panteras Negras; assim como o episódio
de Stonewall, símbolo do movimento gay, e o Women’s Liberation Movement. V., de minha autoria,
A utopia fragmetada. Novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970.

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das conjunturas: o movimento pré-64 pode ser representado pelo Comício
da Central – a imagem mais forte da campanha pelas reformas de base e do
próprio governo de João Goulart; a campanha pela anistia, já na década de
1970, será o símbolo maior da retomada da luta política contra a ditadura;
o comício da Candelária pelas eleições diretas (o comício das “Diretas já!”)
assinalará, na década de 1980, o início do processo de redemocratização po-
lítica do país. As conjunturas políticas têm as suas marcas e referências prin-
cipais, seus símbolos e imagens. A Passeata dos Cem Mil é, seguramente, o
principal símbolo de 68 no Brasil e a famosa foto de Evandro Teixeira é uma
de suas imagens mais fortes – de certa forma, a marca e o registro imagético
da “geração 68” no Brasil.
Mas este movimento estudantil, embora radicalizado politicamente, era
conservador em termos de costumes. O homossexualismo era visto com
desconfiança, assim como o uso de drogas, encarado como “desvio pequeno
burguês”. O depoimento do historiador Daniel Aarão Reis, na época impor-
tante líder estudantil, é revelador:
O homossexualismo era visto com muitas reservas. Nos congressos estudantis da épo-
ca, seguramente não rolava droga, pelo menos não abertamente. Mesmo as drogas le-
ves, como a maconha, eram vistas com muita severidade. A própria música popular
brasileira, que era mais prezada, era a música popular de protesto, mais politizada.
(...) A grande maioria da militância de esquerda era muito resistente a questionamen-
tos heterodoxos. No seio das organizações revolucionárias, isso era muito claro. Nós
não permitíamos homossexualismo e drogas.9

As organizações de esquerda que lideravam o movimento tinham, em


comum com seus pares das sociedades mais abastadas, a postura crítica e
desconfiada em relação ao Partido Comunista (e eram, da mesma forma,
objeto de desconfiança e de hostilidade por parte do PC), mas estavam sub-
metidas a estruturas leninistas. As organizações de esquerda dissidentes do
PCB que lideraram as manifestações estudantis de 68 eram ainda organiza-
ções de rígida estrutura hierárquica, com centralismo democrático, e seriam
fatalmente classificadas como stalinistas por seus contemporâneos de Nan-
terre ou de Paris. Aliás, o movimento estudantil brasileiro foi chamado de
stalinista por outros jovens, militantes de outros tipos de movimentos.
Embora a marca mais forte de 68 no Brasil tenha sido dada pelo movimen-
to estudantil e pela luta contra a ditadura militar, pelas bandeiras naciona-
9
Depoimento de Daniel Aarão Reis. Acervo Memória do Movimento Estudantil. V. ARAUJO, Maria
Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias.

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listas e democráticas (assumindo a classificação de Octavio Paz), ocorreram,
na contramão dessa vertente mais poderosa, movimentos como que “dissi-
dentes”, mas que também reivindicam para si o espírito de 68. Um destes
movimentos foi o Tropicalismo.
O Tropicalismo foi um movimento artístico surgido no Brasil, no final
dos anos 60, que propunha uma revolução na linguagem da arte e era extre-
mamente crítico da maneira com que a esquerda compreendia e praticava a
arte. As esquerdas pretendiam imprimir à arte a missão de conscientização
política; a arte era vista como um instrumento da revolução. Os tropicalistas
se insurgiam contra essa postura que acusavam de “instrumentalizar” e em-
pobrecer a arte. Uma “arte revolucionária”, para eles, não era aquela que fa-
zia propaganda da revolução, mas sim aquela que fazia uma revolução em
sua própria linguagem. Combatiam também a forte presença do nacionalis-
mo nas manifestações artísticas e culturais de esquerda. Muitas vezes os tropi-
calistas acusavam os artistas de esquerda de serem “stalinistas” e estes os acu-
savam de “formalismo” e “vanguardismo”. Este debate animou os anos 60 e
um de seus marcos foi o conflito entre Caetano Veloso e o público do Festival
Internacional da Canção, em 1968, composto principalmente de estudantes,
que vaiou furiosamente a música É proibido proibir, defendida por Caetano.
O público que lotava o Maracanãzinho desejava ouvir canções de protesto
explícito e de denúncia contra a ditadura; a canção de Caetano não se enqua-
drava neste perfil e foi vaiada. Em resposta, Caetano declarou, num discurso
inflamado, que o público era stalinista em estética e em política:
(...) Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) Que juventu-
de é essa? (...) Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e es-
pancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles (...) O problema é o seguinte:
vocês estão querendo policiar a música brasileira. (...) se vocês, em política, forem co-
mo são em estética, estamos feitos!10

O nome da música vaiada, É proibido proibir, evocava exatamente um


dos principais slogans dos muros de Paris durante o Maio francês.
O processo político vivido no Brasil ao longo de 1968 foi abruptamente
interrompido pela promulgação do Ato Institucional no 5. O AI-5 decretou
o “estado de sítio” no país e estabeleceu leis especiais para o exercício do po-
der fora dos marcos do estado de direito. Entre as várias medidas repressivas
estava a proibição de qualquer tipo de reunião e manifestação política. Logo
10
O vídeo e o texto integral do discurso de Caetano podem ser vistos no YouTube.

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depois, em fevereiro de 1969, foi promulgado o Decreto-lei no 477, que le-
vava a ação repressiva para dentro das universidades. O decreto proibia qual-
quer tipo de associação de estudantes e professores e estabelecia punições su-
márias – como a expulsão da universidade para quem o infringisse. O AI-5
foi, assim, um ponto final na ebulição política de 68 no Brasil.
O ano de 1968, portanto, representa movimentos muito diferentes en-
tre si, com ramificações independentes e às vezes opostas. No entanto, quando
se fala em 68 se cria uma imagem unitária, de um ano com uma simbologia
única, um “espírito de 68” que condensaria todas as formas e propostas re-
volucionárias vividas, forjando uma imagem de “revolução total”, absoluta,
que não corresponde à realidade.
Essa visão tem aparecido na mídia impressa e televisiva, em retrospecti-
vas e documentários sobre o tema, e em quase toda a literatura recentemente
lançada para comemorar os 40 anos de “68”. E esse é um ponto interessan-
te para reflexão. A visão construída pela mídia e pela literatura recente sobre
1968 tende a minimizar as diferenças entre os eventos que ocorreram e a sa-
lientar as semelhanças entre eles; é nessa operação que se constrói a imagem
de um ano mítico, unitário, metáfora não apenas de toda a turbulenta déca-
da de 1960, mas da própria utopia do século XX.
Em 1968 coexistiram diferentes formas de ação política, quase sempre
condicionadas às realidades nacionais nas quais nasciam, mas não apenas.
Algumas vezes essas formas eram também condicionadas por classe social,
gênero, questões étnicas, inserção intelectual. E justamente por serem vá-
rios 68, seus desdobramentos são igualmente variados e não conduzem para
uma única decorrência. Os “legados” de 68 também são variados e, muitas
vezes, opostos entre si. O culto à ação, apontado por Hannah Arendt, pro-
duziu e desenvolveu propostas políticas que se sustentavam no voluntarismo,
cultuavam a coragem e o imediatismo e valorizavam a violência como for-
ma de ação política legítima. Desse caminho se desenvolveram, sobretudo
na América Latina, as propostas de luta armada. A “imersão geral na luta ar-
mada”, para usar a expressão do historiador e ex-militante Jacob Gorender,
que se espalhou a partir do final dos anos 60 pelo Brasil, Argentina e Uru-
guai, entre outros, é, sem dúvida, um dos legados de “68”.
Outra vertente, decorrente sobretudo dos movimentos norte-america-
nos, abriu caminho para os movimentos de autodeterminação e de minorias
políticas. Esse outro legado, bastante diferenciado do anterior, ganhou fôle-
go mundial com o crescimento de movimentos como o dos negros, o femi-

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nista, o dos homossexuais, dos índios, dos imigrantes etc. Esse outro lega-
do de 68 foi o que teve, talvez, maior impacto e penetração nas sociedades
ocidentais.
Já na Europa, movimentos que criticavam a razão, o progresso e a lógica
capitalista – principalmente como os que foram vividos na França e na Itá-
lia – abriram espaço para discussões mais profundas sobre as formas dissimu-
ladas de exercício de poder e de opressão, alargando o campo para os movi-
mentos de defesa das diferenças, trazendo à tona o tratamento de doentes,
loucos e incapacitados: o movimento antimanicomial é um dos desdobra-
mentos destas colocações.
As consequências de 68 são, portanto, também elas, muito diferentes,
em função dos diferentes tipos de movimento com que se articulam. Não
há um único 68, como também não há um único legado.
É importante desconstruir esta imagem de “revolução total” inclusive
para que as novas gerações compreendam que, em cada país ou em cada ci-
dade, em cada momento e em cada época, cada grupo social ou cada gera-
ção faz a política possível, aquela necessária e exigida por seu tempo, que
cada uma delas constrói um pouco da história dos homens e das mulheres
interessados e comprometidos com diferentes perspectivas de mudança e de
transformação.
É importante relembrar, celebrar e entender os eventos deste ano tão
carregado de significados. É importante, sobretudo, compreender o simbo-
lismo de “68”, sua carga de metáfora de lutas, projetos, sonhos e utopias.
Mas, para as novas gerações, mais importante do que comemorar 1968,
é compreender as necessidades de 2008. E estabelecer nexos profundos en-
tre os anseios daqueles que viveram 1968, 1977, 1945, 1964, 1985, 1988,
entendendo, como sugeriu Hannah Arendt, que é a atividade política que
nos faz cidadãos de um tempo.

referências bibliográficas
ARAUJO, Maria Paula. A utopia fragmetada. Novas esquerdas no Brasil e no mundo
na década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
__________. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Ja-
neiro: Relume Dumará, 2007.
ARENDT, Hannah. (1969) Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1994.

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BERMAN, Paul. A tale of two utopias: the political journey of the generation of 1968.
Nova York: Norton, 1996.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
PAZ, Octavio. Posdata. México: Siglo XXI, 1970.

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