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VI Cultura e Memória

Golpe de 1964: Cultura e Memória


De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Anais

Recife
2014
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

COMITÊ CIENTÍFICO:

Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro. (UFPE)


Profa. Dra. Marieta de Moraes Ferreira. (UFRJ)
Profa. Dra. Regina Beatriz Guimarães Neto. (UFPE)
Profa. Marina Franco. (Instituto de Altos Estudios Sociales, Universidad Nacional de
San Martín, Buenos Aires, Argentina).
Prof. Dr. Antonio Paulo Rezende. (UFPE)
Profa. Dra. Heloisa André Pontes. (UNICAMP)
Profa. Dra. Isabel Guillen. (UFPE)
Profa. Dra. Dulce Pandolfi. (CPDOC)
Prof. Dr. Flávio Weinstein. (UFPE)
Profa. Dra. Carla Rodeghero. (UFRGS)
Prof. Dr. Severino Vicente. (UFPE)
Prof. Dr. Enrique Serra Padrós. (UFRGS)
Prof. Dr. Antonio Jorge Siqueira. (UFPE)
Profa. Dra. Cristhine Dabat. (UFPE)
Prof. Dr. Newton Cabral. (UNICAP)
Profa. Dra. Maria do Socorro Abreu e Lima. (UFPE)
Profa. Dra. Maria do Socorro Ferraz Barbosa. (Comissão da Verdade de Pernambuco)
Profa. Dra. Alcileide Cabral. (UFRPE)
Profa. Dra. Joana D´Arc. (PCR)
Prof. Dr. José Batista Neto. (UFPE)
Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (UFS)
Profa. Dra. Adriana Maria Paulo da Silva (UFPE)
Prof. Dr. Gilbraz de Souza Aragão (UNICAP)
Profa. Dra. Natália Barros. (UFPE)

COMISSÃO ORGANIZADORA:

Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro. (Coordenador) (UFPE)


Profa. Dra. Regina Beatriz Guimarães Neto. (UFPE)
Prof. Dr. Flávio Weinstein. (UFPE)
Prof. Dr. Antonio Paulo de Moraes Rezende. (UFPE)
Prof. Dra. Isabel Guillen. (UFPE)
Prof. Dr. Antonio Jorge Siqueira. (UFPE)
Prof. Dr. Renato Pinto. (UFPE)
Prof. Dr. Severino Vicente. (UFPE)
Prof. Dr. Pablo Porfírio. (UFPE)
Profa. Dra. Joana D’Arc (PCR)
Prof. Ms. Márcio Ananias (Doutorando UFPE)
Prof. Ms. Maria do Rosário da Silva (Doutoranda UFPE)
Prof. Ms. José Bezerra de Brito Neto (Doutorando UFPE)
Prof. Ms. Rômulo José F. de Oliveira Júnior (Doutorando UFPE)
Prof. Ms. Erinaldo Cavalcanti (Doutorando UFPE)
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Profa. Ms. Cícera Patrícia Alcântara Bezerra (Doutoranda UFPE)


Prof. Ms. Geovanni Gomes Cabral (Doutorando UFPE)
Arthur Gustavo Lira do Nascimento (Mestrando UFPE)
Joana Maria Lucena de Araújo (Mestrando UFPE)
Jônathas Cruz de Paula (Mestrando UFPE)
Tasso Araújo de Brito (Mestrando UFPE)
Luiz Felipe Batista Genú (Mestrando UFPE)
Camila Maria de Araújo Melo (Graduanda UFPE)
Clarisse dos Santos Pereira (Graduanda UFPE)

E56c Encontro Cultura e Memória (6. : 2014 abr. 22-25 : Recife).


[Caderno de resumos do] VI Encontro Cultura e Memória : golpe de
1964 : cultura e memória [recurso eletrônico] / Programa de Pós-
graduação em História. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2014.
1 CD-ROM.

1. Brasil – História – 1964-1985 – Encontros. 2. Brasil – Política e


governo. 3. Ditadura militar – 1694-1985. 4. História – Estudo e ensino. 5.
Educação e estado. I. Universidade Federal de Pernambuco. Programa
de Pós-graduação em História. II. Título.

981 CDD (23.ed.) UFPE (BC2014-036)


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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
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APRESENTAÇÃO

O VI Encontro da Linha de Pesquisa Cultura e Memória do Programa de Pós


Graduação em História da UFPE se apresenta como uma atividade consolidada.
Bianualmente, os professores/pesquisadores, os doutorandos, os mestrandos e os alunos
de iniciação científica que constituem esta linha de pesquisa se reúnem para a realização
do evento em que apresentam e debatem suas pesquisas mais recentes com toda a
comunidade. É também uma oportunidade de estreitar os laços acadêmicos, sobretudo
com outros pesquisadores de diversas IFES nacionais e mesmo de Universidades do
exterior. Este evento é realizado sempre no Campus da UFPE (Recife) como forma de
garantir uma efetiva participação dos estudantes da graduação em história, como
também de outras graduações principalmente da área das Ciências Humanas. Deve
destacar-se ainda que, ao final do evento, temos publicado livros com os principais
trabalhos apresentados. O VI Encontro que ocorrerá no período de 22 à 25 de abril de
2014 contemplará entre outros temas as pesquisas realizadas acerca do golpe militar e
civil de 1964.
Dessa maneira, um dos objetivos primordiais desse Encontro será debater e
divulgar a produção historiográfica dos docentes e discentes do PPGH da UFPE, da
linha de pesquisa Cultura e Memória nos últimos dois anos assim como de outras IFES.
Os Grupos de Trabalho abrangendo nove eixos temáticos, reunidos nesse caderno de
resumos, revelam a diversidade e a riqueza da produção historiográfica do Brasil na
atualidade. Vale destacar, que não apenas os professores que atuam nessa linha de
pesquisa, mas professores da linha de pesquisa Poder Político e Meio Ambiente, assim
como historiadores convidados de outras Universidades também apresentarão e
debaterão seus trabalhos. Há também um espaço para que doutorandos, mestrandos e
alunos de Pibic, da UFPE e de outras universidades brasileiras, exponham e discutam
suas pesquisas. Dessa maneira este Caderno de Resumos oferece um diversificado
painel da produção intelectual no campo da história no Brasil.

Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro


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CONFERÊNCIAS

Mesa 5: Homens e Mulheres em Tempos Sombrios: trajetórias e


memórias no Brasil da Ditadura Civil-Militar

CAMARADA JOANA ARRUDA: A MILITÂNCIA POLÍTICA DE TEREZA


COSTA RÊGO EM NOME DO AMOR

Adriano José de Carvalho


Universidade Federal de Pernambuco
adrianocarvalho.web@gmail.com

Dentre os vários nomes que formam a arte pernambucana na


contemporaneidade, uma pintora se destaca por suas grandes composições, repletos de
mulheres nuas, de meninas solitárias, de bichos e homens em total harmonia. Uma
historiadora, que por meio de sua arte, reflete criticamente sobre vários momentos
importantes da política brasileira. Estamos falando de Tereza Costa Rêgo: artista
plástica que, aos 84 anos, impressiona não somente pela sua pintura, mas também pela
sua vida.
Na produção pictórica de Tereza, encontramos referências à história, ao
feminino e à política. Esses três temas se relacionam mutuamente nas obras da pintora,
alguns inspirados ou influenciados por diversos fatos acontecidos em sua caminhada
existencial e que de algum modo repercutiram no processo de criação de sua poética.
Logicamente, não defendemos que há uma dependência extrema ou subordinação
absoluta da produção artística à história de vida do indivíduo, mas que o artista pode se
utilizar de sua própria história para a sua produção, elencando símbolos, sugerindo
temas, tecendo valores ou até mesmo se auto-representando na obra. Partindo desse
pressuposto, tentamos elucidar os passos dados pela artista, na figura militante da
camarada Joana Arruda, buscando entender o espaço da dimensão política na sua vida e,
consequentemente, a influência na sua obra.
Nascida em 28 de abril de 1929, na cidade do Recife, Terezinha, como foi
batizada, tornou-se a única filha dentre outros quatro irmãos de uma família rica e
tradicional. A menina viveu toda sua infância cercada de mimos e cuidados. Mas, ao
mesmo tempo, completamente isolada das outras crianças, sendo educada pelos moldes
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De 22 a 25 de abril de 2014
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tradicionais do seu núcleo familiar, para se tornar uma “moça de família”. Por
manifestar aptidão para a pintura, aos quinze anos de idade, ingressou na Escola de
Belas Artes de Pernambuco. Instituição que possibilitou à jovem Terezinha muito mais
do que sua formação artística. Tornou-se um espaço de convivência social com os
outros jovens artistas da cidade, criando laços afetivos e vivenciando a liberdade que
tanto almejava.
Quando completou 21 anos, foi direcionada por seus pais para um “bom
matrimônio”, tornando-se logo em seguida, mãe de duas meninas. No entanto, a vida de
casada não trouxe para Tereza a realização pessoal que ela esperava alcançar saindo da
casa paterna. Foi nesse período de tristeza e solidão que Tereza conheceu o dirigente
comunista Diógenes Arruda Câmara, membro ativo do PCB, presença frequente na
residência da pintora. Aos poucos foram se conhecendo, estreitando os laços afetivos,
aumentando os sentimentos mútuos e o desejo de estarem juntos. Em 1964, Tereza
assinou o seu desquite do primeiro casamento, podendo então seguir o seu novo
companheiro até a morte de Diógenes. Em nome do seu amor e de sua felicidade, a
referida pintora viveu todo o processo de perseguição, fuga, captura, tortura,
aprisionamento e exílio de seu companheiro, transformando-se clandestinamente na
camarada Joana Arruda.

Nasce a camarada Joana Arruda

“Eu sou mais Joana.


Eu acho que foi Joana que me fez, hoje.
A pessoa que sou, hoje, é mais Joana do que a primeira.”
Tereza Costa Rêgo1

Desde cedo, a política esteve presente na vida de Tereza. De modo passivo,


justificado pela sua condição de gênero e idade, a artista acompanhava as discussões
constantes na casa de seus pais sobre assuntos relacionados com a política brasileira.
Atenta e perspicaz como sempre foi, buscava entender a seu modo o que estava
acontecendo no mundo e qual a importância disso para as pessoas. Sua conscientização

1
Entrevista inédita da artista em 3 jun. 2013.
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política foi motivada inicialmente por seu irmão mais velho, Murilo2, fazendo com que
seu envolvimento político fosse crescendo aos poucos, mas sem assumir publicamente
adesão a qualquer partido. Sendo assim, a política assumia em sua vida uma posição
secundária, realidade que mudou drasticamente a partir do seu relacionamento com o
dirigente comunista Diógenes Câmara.
Em nome desse amor e de sua realização pessoal, Tereza abre mão da vida que
construíra até então, para adotar uma vida totalmente diferente. Renunciou ao conforto e
à segurança que o status social de “senhora de respeito” lhe proporcionava, para abraçar
todos os riscos e perigos que o relacionamento com um dirigente comunista poderia
acarretar. Os passos de Tereza modelaram-se ao caminho trilhado por Diógenes. As
escolhas, os valores, os interesses e as motivações da nossa pintora começaram a girar
em torno do universo de seu novo companheiro. Raul Córdula ressalta, de modo
poético, esse entrelaçamento de vidas, num texto publicado em 1985. Segundo ele,
Tereza viveu
mergulhada numa grande aventura de amor à humanidade, no Brasil, no
Chile, na Europa, na Ásia e no resto do planeta; rompida de sua identidade,
ela seguiu Diógenes Arruda Câmara, um dos principais dirigentes da
esquerda brasileira na sua luta pela libertação dos povos. [...] Por 15 anos a
sua vida foi Diógenes e a vida de Diógenes, o partido.3

Como o autor nos fala, a caminhada da pintora nesse momento é a caminhada de


Diógenes. Muito do caráter político que é atribuído à vida de Tereza torna-se um reflexo
do universo político do dirigente comunista. Num primeiro momento, poderíamos
pensar que a artista agiu de modo submisso, copiando as mesmas escolhas existenciais e
políticas de seu novo companheiro de vida. No entanto, acreditamos que essa postura
assumida por Tereza demonstra a sua autonomia em determinar as trilhas que desejaria
caminhar rumo à sua própria felicidade. Se a artista optou pelos mesmos ideais que
Diógenes, o fez de livre e espontânea vontade. Logicamente, olhando para o passado, a
artista percebe pontos positivos e negativos nessa absorção extrema da vida de seu
companheiro, nessa pseudo-dependência que alimentara do outro para dar seus próprios
passos. Como ela fala:

2
Murilo Barros Costa Rêgo seguiu a carreira política desde cedo, tornando-se deputado federal pelo
PTB, nos anos de 1963/64. Teve seu mandato cassado por Ato Institucional pelo regime ditatorial
militar, publicado no Diário Oficial da União em 10 de abril de 1964.
3
Panfleto impresso pela Câmara Municipal de Olinda em comemoração ao dia internacional da mulher,
em 1985.
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Diógenes não me deixou livre totalmente. Eu poderia ter feito a minha tese
sobre o iluminismo ou alguma outra coisa no campo das artes, mas tive que
fazer sobre a realidade do proletariado. Fiz porque o partido me pedia isto. 4

Nessa citação, visivelmente a artista reconhece as consequências negativas da


radicalidade de suas escolhas. Essas consequências atingem inclusive a sua produção
artística, pois como ela mesma declara noutro momento: “Eu pintava sazonalmente.
Não pintava profissionalmente. Até porque tinha que assumir as necessidades do
partido.”5 Interessante perceber que, mesmo Tereza não se vendo como uma pintora
profissional durante os 15 anos em que viveu com Diógenes, não parou de produzir, de
criar, de expor e comercializar, devidamente disfarçada como Joana Arruda. Foram
decisões tomadas conscientemente, escolhas medidas e assumidas. Tereza sabia que a
vida de Diógenes, desde cedo, era o partido e suas convicções políticas. Sabia que optar
por Diógenes era automaticamente optar também pela caminhada política. Sabia que
exigir de Diógenes uma renúncia extrema da política seria desfigurar completamente o
indivíduo por quem se apaixonara.
No mesmo período em que Tereza iniciava sua nova vida ao lado de Arruda, o
regime democrático brasileiro era esmagado pela opressão do regime ditatorial militar.
Partidos foram fechados, políticos perseguidos, mandatos cassados, grupos sociais de
ideologia marxista eram vigiados e punidos. Na lista dos dirigentes políticos que foram
perseguidos pela ditadura, constava também o nome de Diógenes, forçando-o a iniciar
um longo período de fuga, e posteriormente de exílio. Nesse contexto, Tereza poderia
renunciar a seu relacionamento com Arruda, por medo que sua vida corresse algum
risco. No entanto, em nome dos seus sentimentos e da sua felicidade, a artista decide
assumir uma trajetória de fuga e clandestinidade para ficar perto de Diógenes. Como ela
diz:
Eu me exilei por amor a ele. Eu tinha uma tendência de esquerda, sempre
tive, pelos meus irmãos, pela minha própria formação de artista, eu tinha
aquele desejo de liberdade, mas eu não era uma pessoa engajada num partido
político. Só fui me engajar depois que conheci Diógenes, mas eu acho que
apesar disso eu fui uma boa companheira dele, todo o tempo, até o dia em
que ele morreu. Larguei tudo, perdi minhas filhas no primeiro momento. Foi
muito difícil para mim. Ele ficou muito pobre. Porque eu era de família rica,
mas eu fui deserdada. Mas eu estava com ele, ele era funcionário do Partido,

4
Entrevista inédita da artista em 14 set. 2012.
5
Idem.
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então a gente vivia de um modo muito simples, mas tínhamos o essencial.


(CORTEZ, 2005, p. 283).

Para uma melhor compreensão desse período na trajetória biográfica de Tereza


faz-se necessário distinguirmos a situação da artista e a do seu companheiro frente à
ditadura. Diógenes foi um político atuante no PCB, que não tivera seu mandato cassado
quando do fechamento do partido comunista, porque tinha sido eleito pelo PSP. No
entanto, como defendia o partido, o comunismo e as ideias stalinistas, logo foi
perseguido pelos militares, tendo que se esconder temporariamente. Quando capturado,
foi preso e torturado, tornando-se um exilado político durante o regime ditatorial
militar. Já Tereza seguira seu companheiro nesse processo de fuga, prisão e exílio,
somente como sua companheira de vida, e não como um membro político que
oferecesse risco ao regime. Geralmente, nas suas entrevistas e nas breves apresentações
de sua vida, publicadas em catálogos ou reportagens, Tereza se apresenta ou é
apresentada como uma artista exilada pelo regime militar ao lado do seu companheiro
Diógenes Câmara.6 A própria pintora se autodenomina uma exilada política da ditadura,
não concebendo consideráveis diferenças entre clandestinidade e exílio, como podemos
perceber na sua resposta ao ser indagada sobre o tema:
[entrevistador: No período da ditadura, você seguiu Diógenes como exilada
ou como clandestina?] Na verdade eu sou exilada porque eu mudei de nome,
eu morava no exterior e não podia voltar. Agora essa coisa de exilada oficial
eu não sei. [...] meu nome era Joana. Joana Arruda. Quando eu vou pra Paris,
ou pra São Paulo ou para o Rio, eu sou Joana. As pessoas me chamam de
Joana. Eu respondo como Joana. Eu sou Joana. Quando eu vou pra cá, eu viro
outra pessoa.7

Entretanto, noutra entrevista, a pintora apresenta bastante clareza quanto à


realidade clandestina da camarada Joana, quando nos diz: “[entrevistador: Porque você
precisou mudar de nome se você estava legal no outro país?] Tereza: Eu não estava
legal. Eu era mulher de uma pessoa que estava legal. Eu era a mulher de Diógenes. Eu
tinha passaporte de Joana. Eu viajava como Joana”.8 Ou ainda, noutro momento:
[entrevistador: Porque você precisava assinar como Joana, se você era uma
artista exilada?] Tereza: “Porque eu não era Tereza, eu era Joana. Meu
passaporte era Joana. Eu tinha dois passaportes. Tinha o passaporte oficial, se
acontecesse alguma coisa, eu podia voltar para as meninas. Esse passaporte

6
Apresentamos como exemplo a reportagem: MOURA, Diana. Exposição Sete luas de Sangue no MAC.
In: JC On-line, Recife, 30 mar. 2011. Disponível em <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/artes-
plasticas/noticia/20 11/03/30/sete-luas-de-sangue-no-mac-542.php>. Acesso em 14 set. 2012.
7
Entrevista inédita da artista em 17 jun. 2013.
8
Entrevista inédita da artista em 3 jun. 2013.
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estava guardado. Mas, o que eu usava, viajava, a mulher de Diógenes, era


Joana.9

Com isto, aos poucos fomos percebendo que a nossa artista tivera seguido
Diógenes de modo clandestino, acobertada por documentos falsos, que lhe dava a
identidade de Joana Arruda. Visando a segurança de Tereza e de suas filhas, Diógenes
sempre evitou que ela fosse identificada pelos militares como sua companheira.
Justifica-se, assim, a viagem de Tereza para o exterior com outra identificação, para
manter a sua identidade real livre de qualquer suspeita. Como suas palavras bem
expressam, a mulher que viajava para o exterior, ao lado de Diógenes Arruda, não era
Tereza Costa Rêgo, mas, sim, Joana Arruda. Oficialmente, a pintora estava em outro
lugar, que não ao lado de um dirigente comunista. Ela não foi uma exilada, mas sim a
companheira de um exilado político, vivendo clandestinamente como outra pessoa.
Pelo cuidado que Diógenes sempre teve em livrar o nome de sua companheira
das ações do partido, ao contrário do que escreveu a pesquisadora da Fundação Joaquim
Nabuco, Semira Adler Vainsencher10, defendemos que Tereza nunca foi perseguida
diretamente pelo regime militar por causa de sua militância. Mas, sim, viveu todo o
período de perseguição de seu companheiro, acompanhando-o todo momento em nome
do seu amor e de sua felicidade.
Interessante notar que mesmo com todas as intempéries desse período, Tereza
não deixou de produzir e de expor a sua produção. Ela não se incomodava com a ideia
de atribuir a autoria de seus quadros a outro nome, pois o importante era a manifestação
de sua arte, e não necessariamente o reconhecimento de seu nome. Outrossim, a vida de
Tereza nesse período se adequara à caminhada política de Diógenes, ficando o ato de
pintar como algo esporádico, pois as atividades em prol do partido, do comunismo e da
luta contra o regime ditatorial falavam mais alto, ocupando boa parte de seu cotidiano.
De modo intencional, o próprio Diógenes fazia questão que a sua companheira nunca
estivesse envolvida em ações arriscadas do partido, evitando perseguições ou algum
outro perigo para ela e suas filhas. Geralmente, a camarada Joana ajudava na montagem
de disfarces de outros camaradas que precisavam viajar, como escrevem os jornalistas
Bruno Albertim e Olívia Mindêlo: “Nunca foi, aliás, a simples companheira de Arruda.

9
Entrevista inédita da artista em 26 out. 2012.
10
ADLER, Semira. Tereza Costa Rêgo. Disponível em: <http://www.caestamosnos.org/pesquisas_Sem
ira/pesquisa_semira_adler_Tereza_Costa_Rego.htm>. Acesso em: 1 jan. 2013.
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‘Eu era – e ainda sou – militante. Nunca participei de operações arriscadas. Era a
motorista do partido’, lembra. Outra de suas funções: disfarçar companheiros
clandestinos. Colocou muita peruca na cabeça de quem ia pro Araguaia.”.11

A clandestinidade em nome do amor

“A minha vida ficou ali.


A minha vida ficou várias vezes em vários lugares.
Fui deixando os pedaços e construía outra coisa.”
Tereza Costa Rêgo12

Durante nossa pesquisa encontramos algumas narrativas biográficas que


elucidam a trajetória de Tereza no exílio de Diógenes. Todavia, suas informações não
são uníssonas, havendo diferenças de um texto para o outro, principalmente sobre o
itinerário que a pintora realizou, de sua saída de Pernambuco, em 1965, até o seu
retorno, em 1979. São 14 anos vividos intensamente e que, aos poucos, vão se
mesclando em blocos mnemônicos, constituídos de fatos e personagens que marcaram
sua caminhada. A própria artista, ao falar desse período em suas entrevistas, apresenta
alguns lapsos de memória, alguns dados cronológicos ou espaciais que se chocam no
decorrer de seu discurso13. Mesmo com essas perdas ou trocas, omissões ou enxertos de
dados, a essência da mensagem é mantida. Ou seja, Tereza abre mão de sua antiga vida
aristocrática, passiva e confortável, para viver uma vida clandestina ao lado de
Diógenes. Uma caminhada difícil, mas emocionante. Uma vida cercada de renúncias,
mas repleta de realizações pessoais. Sendo assim, partimos dessas narrativas coletadas e
das nossas entrevistas com a pintora, para construir nossa própria visão desse itinerário
de amor.
Com a oficialização do seu desquite, Tereza decide ir morar no Rio de Janeiro e
depois em São Paulo, vivendo ao lado de Diógenes, que já estava sofrendo sérias

11
ALBERTIN, Bruno; MINDELO, Olívia. In: Tereza Costa Rêgo 80 anos: o tempo é aliado. In: NordesteWeb,
Recife, 26 abr. 2009. Disponível em: <http://www.nordesteweb.com/not04_0609/ne_not_
20090426a.htm>. Acesso em: 4 jul. 2013.
12
Entrevista inédita da artista em 26 out. 2012.
13
Dentre as narrativas biográficas coletadas durante a pesquisa, consideramos o conteúdo publicado na
dissertação defendida por Cristiana Arruda, em 2001, intitulada Brasil: Ame-o ou deixe-o: Les exilés
politiques brésiliens en France pendant le régime militaire – 1964 a 1979 – récits de vies, de maior
relevância e coerência entre os fatos. Neste trabalho encontramos uma entrevista concedida pela
pintora sobre sua vida nesse período.
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perseguições por causa de seu histórico político. Viveram escondidos, até que seu
companheiro foi capturado e preso. Nesse período foi seriamente torturado14, mas
permaneceu fiel aos camaradas e aos projetos do partido. Mesmo em meio à dor das
torturas permaneceu calado sobre o seu relacionamento com Tereza, evitando que ela
corresse algum risco, tornando-se inclusive uma possível moeda de troca entre os
militares e Diógenes. Podemos perceber esse medo de Diógenes nas palavras da própria
Tereza:
Aí, quando Diógenes foi preso ele sempre dizia pra mim: “se eu for preso,
você não me conhece, nunca me viu, nunca vai me visitar porque eu não vou
dizer nada sobre você, onde eu moro, não se preocupe. Você pode ter sua
vida absolutamente normal porque eu não direi nada sobre você, então, você
esqueça que eu existo porque eu não vou sair nunca da prisão. Eu mando
notícia pra você, mas não me procure, de jeito nenhum, porque aí eu tenho
medo que envolva você e suas meninas, e aí, eu não vou me perdoar”.
(ARRUDA, 2001, p. 59).

Nos dois primeiros anos em que esteve preso, a comunicação entre os dois se
dava por meio da filha do primeiro casamento de Diógenes, que servia como
mensageira, transportando pequenos bilhetes escondidos em seus cabelos. Após esse
período, Tereza não aguentou a distância, e decidiu assumir o risco, indo visitá-lo
constantemente no presídio Tiradentes. Em 1969, Diógenes segue para o exílio. A partir
daí, ambos iniciaram uma vida de itinerância até o ano de 1979, quando finalmente
retornam ao Brasil, pela aprovação da lei da anistia. É interessante distinguirmos os
países que serviram como morada (Chile, França e Portugal) daqueles que
simplesmente foram visitados esporadicamente pelo casal, cumprindo alguma missão
do partido comunista, como é o caso da Albânia e China.
Quando Diógenes foi liberto, ele e Tereza permaneceram alguns dias ainda em
São Paulo, tempo suficiente para o partido organizar a viagem deles para fora do Brasil.
Nesse período, não havia muitas opções para os militantes políticos que precisavam sair
do país e queriam continuar comprometidos com a causa socialista ou democrática,
locando-se em países próximos à sua terra de origem. Como Cortez nos aponta:

14
Diógenes Arruda apresentou as torturas que sofreu no período da ditadura, em carta escrita de
próprio punho, arquivada entre os documentos históricos do projeto “Brasil nunca mais”, organizado
pela Arquidiocese de São Paulo, disponível em
<http://www.dhnet.org.br/memoria/nuncamais/index.htm>. Dentre os diversos arquivos existentes
nesse acervo, podemos localizar a referida carta no Tomo V, Volume 1 - A tortura, nas páginas
numeradas de 722 até 738.
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[...] os nordestinos que perderam os direitos políticos ou estavam sob a


ameaça constante dos órgãos de repressão ou os que foram presos, torturados
e banidos do Brasil, encontraram como alternativa para recuperar a
identidade perdida, inicialmente, a saída para os países limítrofes como a
Argentina, o Uruguai e principalmente o Chile, os quais naquele momento
eram países com regime democrático. (COSTEZ, 2005, p. 164).

Sendo assim, o projeto inicial do casal era se estabelecer na Argentina, mas


acabaram seguindo para o Chile, onde ficaram até a deflagração do golpe militar
também nesse país, após a morte de Salvador Allende, no ataque ao Palácio de la
Moneda. Para Tereza foi um período dificílimo, por estar se distanciando de suas filhas
e de seu país para viver clandestinamente num país desconhecido. Se a entrada foi
difícil, da mesma forma também foi a saída do Chile. A situação social do país já
indicava que em algum momento próximo o golpe seria deflagrado, mas todos no
partido acreditavam que demoraria um pouco mais. Com o assassinato de Allende, a
situação para os exilados tornou-se insustentável, sendo necessário fugir do país o mais
rápido possível. Como a artista nos relatou:
A gente deixou todos os livros, todos os retratos, todos os vestidos, todos os
sapatos, todas as camisolas, tudo. Eram Travassos e Jean Marcos, eram os
dois presidentes da UNE. Chegaram lá em casa e disseram: “o golpe está na
rua e vocês não podem ficar aqui. Vamos embora, agora.” “E vamos embora
pra onde?” “Não sei. No caminho a gente resolve.”
[...] Com duas calcinhas por dentro da roupa, com uma escova de dente,
deixei tudo. Retrato de família, carta, tudo. A minha vida ficou ali. A minha
vida ficou várias vezes em vários lugares. Fui deixando os pedaços e
construía outra coisa.15

Tereza necessitou abrir mão de coisas, pessoas e lugares para continuar sua
caminhada em busca da realização pessoal. Nesta fuga, Diógenes ficou na embaixada da
Argentina até o partido conseguir a sua transferência para outro país. Enquanto isso,
Tereza utilizou seu passaporte verdadeiro para migrar até a Argentina e depois para o
Brasil, onde ficou esperando a determinação para onde seu companheiro seguiria exílio.
Finalmente, Diógenes viaja para Paris, sendo acompanhado logo em seguida por sua
companheira de vida e de luta.
Ao contrário do que aconteceu no Chile, Tereza não necessitou usar a identidade
clandestina de Joana Arruda, na França, pois o casal gozava neste país de toda
documentação legal para permanecer e usufruir das oportunidades locais a que teve
acesso. Como ela nos atesta:

15
Entrevista inédita da artista em 26 out. 2012.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Mas aí, Diógenes já era exilado do governo francês. Então já tinha direito a
essas coisas. A gente já tinha passaporte, tinha toda a documentação francesa:
a carta de séjour. Tudinho. Eu fiz universidade, mas eu não era exilada, não.
Ele que era exilado. E aí, eu assinei o meu passaporte brasileiro de novo. Eu
usava o meu passaporte frio nas viagens, mas na França, eu era Terezinha
Barros Costa Rêgo (ARRUDA, 2001, p. 63).

Percebamos que, mesmo a nossa artista estando legalizada na França, nas


viagens clandestinas que fazia, acompanhando seu companheiro em missões oficiais do
partido a outros países, principalmente Albânia e China, Tereza utilizava o seu
passaporte falso. Dessa forma, a camarada Joana Arruda continuava viva e atuante em
prol do partido comunista, enquanto que a identidade de Terezinha continuava
salvaguardada para qualquer emergência. Como ela diz:
Ia com meu passaporte frio pra ir pra China ou pra qualquer outro lugar eu
usava. Mas quando chegava na França, eu usava o meu verdadeiro
passaporte. [...] E nisso a gente ficou, acho que cinco anos em Paris. Mas
nunca ficamos um mês, porque o partido deu pra Diógenes fazer a parte
internacional. A gente ia pra Portugal, pra Suécia, pra Alemanha, pra China
algumas vezes, pra Albânia quase toda semana. Então eu vivia com uma
malinha pronta. (ARRUDA, 2001, p. 64).

Nesse período, a vida de Tereza foi completamente imersa no universo político,


fazendo-se atuante em várias ações do partido. Seja acompanhando o exílio de
Diógenes, seja trabalhando em ações secundárias para o partido, seja participando como
ouvinte das articulações internacionais do partido, quando dava apoio ao serviço de
tradução do francês para o português, pois Diógenes não dominava o francês e achava
muito arriscado confiar somente nos tradutores oficiais. Toda essa realidade vivida fez
com que Tereza transportasse para várias obras um forte teor político, manifestando
principalmente as aspirações do povo brasileiro na sua série “Sete luas de sangue”,
como veremos mais adiante.
Após 14 anos de exílio, vividos intensamente por Tereza e Diógenes, surgiu a
oportunidade que eles tanto esperavam de retornar ao seu país de origem, por meio da
oficialização da Lei de Anistia, como ficou conhecida a Lei Nº 6.683, promulgada pelo
então Presidente da República, o General João Batista Figueiredo de Melo, em 28 de
agosto de 1979. A implantação dessa lei foi um forte sinal do processo de
redemocratização que o Brasil iniciara, mesmo ainda sob a égide da ditadura. A referida
lei garantia anistia a todos aqueles que tivessem cometido algum crime político aos
olhos do regime militar, no período entre 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979,
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

incorrendo na suspensão de seus direitos políticos, prisão e exílio. Na referida lei,


excetuavam-se os benefícios da anistia àqueles acusados como terroristas, ou seja, que
tivessem participado ativamente da luta armada.16
Protegidos pela nova lei, Tereza e Diógenes retornam imediatamente ao Brasil,
esperançosos em retomar suas vidas, seus projetos, seus sonhos. Infelizmente, poucos
dias depois da chegada, Diógenes foi acometido de um infarto fulminante, levando-o à
morte. Esse dia foi para Tereza o pior de sua existência. Viu-se sozinha. Desamparada e
desprotegida. Aquele que tinha sido a força motriz de suas lutas estava morto. A alegria
do retorno ao Brasil transformou-se em tristeza pela perda de seu amado. Todavia, a dor
que sentira na morte de Diógenes, fecundou uma nova mulher, corajosa, independente e
autônoma.
A partir da morte súbita de Diógenes, Tereza decidiu que seria o momento de
tomar a sua vida nas próprias mãos, dedicando-se exclusivamente ao desenvolvimento
de seu talento artístico e à consolidação de sua legitimação profissional. Inicia-se a
história da artista plástica Tereza Costa Rêgo. Uma história feita de tintas, lutas e
conquistas, imersa no cenário artístico pernambucano. A história de uma nova mulher
que traz em si as lembranças da Terezinha, exemplo de mulher aristocrática, submissa e
passiva aos ditames da sociedade. Mas também, uma mulher modelada pela força,
tenacidade e coragem da camarada Joana Arruda, que não mediu esforços na busca de
seus sonhos.

Uma experiência acadêmica em tempos sombrios

“Às vezes, essas coisas da minha vida passam assim.


E eu digo: ‘não fui eu, não! Não fui eu que tava lá, não!’
Aí, eu vejo uma foto. Aí, eu tava.
Aí, eu digo: ‘Olha eu aqui!’.”
Tereza Costa Rêgo17

A formação acadêmica tem uma marca constante na trajetória biográfica de


Tereza Costa Rêgo. A artista reconheceu desde cedo o valor do estudo para a conquista

16
BRASIL Presidência da República. Lei Nº 6.683 de 28 de agosto de 1979 (Lei da Anistia). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm>. Acesso em: 23 dez.2013.
17
Entrevista inédita da artista em 3 jun.2013.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

de seus ideais. Sabia que pela educação, a mulher teria mais possibilidades de vencer os
desafios sociais firmados pelo machismo. Soube aproveitar o período em que vivera na
casa de seus pais para concluir o magistério, o científico e ainda aprimorar sua formação
artística na Escola de Belas Artes de Pernambuco.
Quando estava em São Paulo, acompanhando clandestinamente Diógenes,
percebeu que seria o momento de aprofundar seus conhecimentos por meio da formação
superior, ingressando então no curso de bacharelado em História na Universidade de
São Paulo. Tereza nos diz que tinha consciência da importância desse curso para a sua
subsistência nesse difícil período, pois estava desquitada do seu primeiro marido, não
poderia contar com a ajuda dos seus irmãos e Diógenes já estava vivendo escondido dos
militares. Ela lembra que quando estava entrando em sala de aula para fazer a última
prova do curso superior, sua filha Maria Tereza avisa-lhe que Diógenes havia sido
capturado e que precisavam “limpar a casa”18 urgentemente. Mesmo abalada com a
notícia, movida pela consciência da importância do diploma para a vida de toda a sua
família, decidiu fazer a prova, e só depois ir para sua casa.
Já formada, manteve-se nesse período de crise financeira dando aulas de história
em turmas de preparação para o vestibular. Sobre sua experiência como professora, a
artista nos fala, com certa comicidade, não ter sido tão boa profissional, mas que
precisava desse trabalho para sobreviver enquanto Diógenes estava preso:
Eu era péssima professora. [risos] Sofri muito, porque eu nunca fui muito boa
em datas, e precisava ter todas aquelas datas na cabeça, fazendo paralelo
entre elas. Maria Tereza tinha pena de mim, porque ela tinha sido minha
aluna, e via como eu sofria. Além das datas, eu sempre falei baixo e sou um
pouco gaga. Foi um período muito difícil para mim, muito puxado. 19

Após algum tempo, Tereza soube aproveitar a oportunidade de estar residindo


em Paris para aprofundar sua formação acadêmica, ingressando na École des Hautes
Études em Sciences Sociales, onde apresentou o trabalho (memoire) “Formation du
Prolétariat Bresilien et de son Ideologie”, datado em 17 de novembro de 1979, tendo
como orientador o sociólogo professor doutor Pierre Vilar. Observando o título desse
trabalho, perceberemos que ele se aproxima muito mais do projeto de vida de Diógenes

18
Expressão “limpar a casa” foi utilizada para designar a destruição de qualquer indício de filiação ao
partido que pudesse ser utilizado pela força de repressão contra Tereza e suas filhas.
19
Entrevista inédita da artista em 14 set. 2012.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

do que mesmo do universo artístico de Tereza, comprovando a influência que este


exercia sobre a nossa pintora. Como ela mesma declara:
O meu diretor [orientador], na verdade, era Diógenes. Que viveu toda essa
história de anarquistas, da formação do partido comunista, como é que foi a
formação, pararara... O ‘velho’[apelido como Diógenes era chamado dentro
do partido] já chegava com o prato feito. Toda a direção, a formação, a
bibliografia. Eu tinha em casa os melhores mestres, não é? 20

Segundo Cortez, era comum entre os exilados do regime militar brasileiro o


aproveitamento do período que estavam na Europa para o desdobramento de sua
formação acadêmica. Além das tristezas e dificuldades que esses indivíduos
enfrentavam, alguns conseguiam usufruir de algum benefício que o momento presente
disponibilizava. Como ela escreve: “o interesse em estudar e aproveitar o período do
exílio para conseguir a titulação acadêmica é uma característica dessa geração de jovens
estudantes humanistas, socialistas, comunistas, de ex-militantes das organizações da
luta armada.” (CORTEZ, 2005, p. 211). Ou ainda,
[...] os refugiados políticos conviveram com essas duas situações que
refletem as duas faces de uma mesma moeda. De um lado, a situação barroca
da melancolia, do mundo em ruínas [...] e, do outro lado, usufruindo as
benesses do Primeiro Mundo, do meio acadêmico, da velha tradição histórica
e cultural. (CORTEZ, 2005, p. 191).

Tereza ainda viveu uma nova experiência na academia quando retornou ao


Brasil, em 1979. Residindo em Olinda, após a morte súbita de Diógenes e sem o
reconhecimento artístico local, a nossa pintora passou por sérias dificuldades
financeiras. Ao reencontrar seu velho amigo, o professor Armando Souto Maior,
professor da Universidade Federal de Pernambuco, o mesmo a convidou a ingressar no
mestrado. Além de dar continuidade à sua formação acadêmica, poderia se vincular ao
programa de bolsa que o curso disponibilizava aos seus alunos. Tereza ingressou no
referido mestrado, tendo como orientador o próprio professor Armando Souto Maior,
desenvolvendo uma pesquisa sobre a comunidade artística de Olinda. Como bolsista,
conseguiu se manter até ser contratada pela prefeitura de Olinda, para trabalhar na
comissão de cultura do município.

Referências:
ADLER, Semira. Tereza Costa Rêgo. Disponível em: <http://www.caestamosnos.org/

20 Entrevista inédita da artista em 3 jun. 2013.


VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

pesquisas_Semira/pesquisa_semira_adler_Tereza_Costa_Rego.htm>. Acesso em: 01


jan. 2013.

ALBERTIM, Bruno; MINDELO, Olívia. Tereza Costa Rêgo 80 anos: o tempo é aliado. In:
NordesteWeb, Recife, 26 abr. 2009. Disponível em:
<http://www.nordesteweb.com/not04_0609/ne_not_20090426a.htm>. Acesso em: 04
jul. 2013.

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Projeto A: conclusões da pesquisa Brasil: nunca


mais. Tomo V, vol.1 – A tortura. São Paulo: 1985. p. 722 – 738. Disponível em: <http:
//www.dhnet.org.br/w3/bnm/tomo_v_vol_1_a_tortura.pdf>. Acesso em: 10 mar.2013.

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Regime marcado por marcas da tortura. In:


Brasil: nunca mais. Petrópolis: Editora Vozes, 1985. p. 201 – 235.

ARRUDA, Cristiana. “Brasil: ame-o ou deixe-o”, les exilés politiques brésiliens en


France pendant le régime militaire – 1964 a 1979 – récits de viés. 2001. Dissertação.
Paris: Université Paris X – Nanterre, 2001.

BRASIL Presidência da República. Lei Nº 6.683 de 28 de agosto de 1979 (Lei da Anistia).


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm>. Acesso em: 23
dez.2013.

CORTEZ, Lucilli Grangeiro. O drama do barroco dos exilados do Nordeste. Fortaleza:


Editora UFC, 2005.

COSTA, Ana Alice Alcântara. Refletindo sobre as imagens da mulher na cultura


política. In: FERREIRA, Silvia Lúcia e NASCIMENTO, Enilda Rosendo (orgs).
Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: Editora da UFBA, 2002, p. 69
– 83.

FERREIRA, Silvia Lúcia, NASCIMENTO, Enilda Rosendo do (org.). Imagens da


mulher na cultura contemporânea. Salvador: UFBA/NEIM, 2002.

FERREIRA. Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória: histórias de vida,


histórias de sobrevivência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 25 – 77.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes Editora,


1989.

RÊGO, Tereza Costa. Tereza Costa Rêgo. Recife: Editora Publikimagem, 2009.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Mesa 5: Homens e Mulheres em Tempos Sombrios: trajetórias e


memórias no Brasil da Ditadura Civil-Militar

HOMENS E MULHERES EM TEMPOS SOMBRIOS: APONTAMENTOS


SOBRE TRAJETÓRIAS FEMININAS NO BRASIL DA DITADURA CIVIL-
MILITAR.

Natália C. S. Barros
Universidade Federal de Pernambuco
natibarros1@yahoo.com.br.

(...) Olhos tão habituados às sombras, como os nossos,


dificilmente conseguirão dizer se a luz
era a luz de uma vela ou a de um sol resplandecente.
Hannah Arendt.

Tempos Sombrios em um passado distante e recente

Men in Dark Times, livro da filósofa Hannah Arendt publicado em 1968 tem
como tema básico a preocupação com o totalitarismo, a revolução, a condição humana e
a violência, temas examinados a partir de fatos e situações concretas 21. No Brasil,
Homens em Tempos Sombrios, publicado em 1987, uma coletânea de artigos e ensaios,
apresenta evocações, depoimentos e uma visão de conjunto de trajetórias de sujeitos que
se moveram no mundo e foram afetadas pelo tempo histórico, a primeira metade do
século XX, com suas catástrofes políticas, seus desastres morais e seu surpreendente
desenvolvimento das artes e ciências. O tempo histórico, os “tempos sombrios”,
mencionado por Hannah Arendt no título deste conjunto de ensaios é emprestado do
poema “À posteridade de Brecht:

(...)
Gostaria de ser sábio.
Os livros antigos nos informam o que é sabedoria:

21
No Brasil, a publicação “Homens em Tempos Sombrios” (1987, Cia das Letras) é um texto que
apresenta um conjunto de ensaios sobre pessoas admiradas por Arendt, como Walter Benjamin, Karl
Jasper e Rosa Luxemburgo.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Evita os embates do mundo, vive tua curta vida


Sem temer ninguém
Sem recorrer à violência
Pagando o mal com o bem -
Não a satisfação do desejo mas o alheamento
Passa por sabedoria.
Eu não posso fazer nada disso:
Não há dúvida que vivo numa idade escura!
(...)
(BRECHT, B.)

Tempos Sombrios, uma alusão ao totalitarismo europeu, expressa um tempo


histórico de ódio, injustiça, enganos, tempos de arbitrariedades públicas, mas não
visível para alguns e nem percebido por todos. Os tempos sombrios são ambíguos,
tempos de cegueira, tempos em que as ruas são areias movediças. Um tempo em que a
realidade foi recoberta pela fala e pela confusão de vozes de duplo sentido, muito
eficiente, dos representantes oficiais que explicavam os fatos desagradáveis e justificam
as preocupações. Conforme Arendt,

“Se a função do âmbito público é iluminar os assuntos dos homens,


proporcionando um espaço de aparições onde podem mostrar, por atos
e palavras, pelo melhor e pelo pior, quem são e o que podem fazer, as
sombras chegam quando essa luz se extingue por “fossos de
credibilidade” e “governos invisíveis”, pelo discurso que não revela o
que é, mas varre para sob o tapete, com exortações, morais ou não,
que, sob o pretexto de sustentar antigas verdades, degradam toda a
verdade a uma trivialidade sem sentido”. (ARENDT, 1987, p.8).

A mirada da filósofa dá-se sobre a trajetória de sujeitos em uma época em que


muitos tiveram atitudes dúbias em relação ao mundo, posturas de conflitos com o
mundo e a esfera pública, fazendo uso da liberdade, condição da política, para se retirar
do mundo e de suas obrigações junto a ele. Segundo Arendt, uma retirada do mundo que
prejudica não necessariamente o indivíduo- pode até mesmo ser-lhe útil- mas, a cada
uma dessas retiradas, inter homines esse desinere, ocorre uma perda quase demonstrável
para o mundo, pois se perde o espaço intermediário específico e insubstituível que teria
se formado entre o indivíduo e seus pares.Os homens e mulheres dos ensaios
arendtianos, ao contrário, são indivíduos que mesmo com a existência no limite, se
mantiveram comprometidos com o mundo, obstinados na ação e no pensamento,
desafiando o medo e o afastando de seu aspecto escapista, fundamental para preservar a
liberdade e a política.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
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Tomamos de empréstimo do poeta e da filósofa a expressão Tempos Sombrios


para pensarmos um pouco sobre o passado recente do nosso país, particularmente a
trajetória de algumas militantes em confronto com o regime civil- militar instaurado no
Brasil entre 1964-1985. Quando no Brasil o âmbito público se obscureceu e o mundo se
tornou dúbio, quando muitas pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política, além
da consideração por seus próprios interesses vitais e liberdade pessoal, muitas mulheres
resistiram e se negaram a desprezar o mundo, o âmbito público e a politica. As
experiências de muitas destas mulheres estavam atreladas aos vários movimentos de
esquerda que, após o Golpe de 1964, começaram o debate sobre novas formas de fazer e
pensar a política. Sem dúvida, procuraram introduzir em suas práticas, questões
referentes ao indivíduo, à subjetividade e às chamadas minorias, o que os levava a
questionar profundamente as ideias e as práticas da esquerda considerada tradicional
(TELES; LEITE, 2013).
Entre 1964 e 1985 o país esteve sob um regime de exceção, fruto do Golpe Civil -
Militar, o qual restringiu a experiência democrática, cassou e perseguiu partidos
políticos, aumentou o poder do executivo, manipulou o judiciário e agiu, inúmeras
vezes, com extrema violência com seus opositores. Atualmente temos uma releitura e
uma rememoração deste período do Brasil, sobretudo pelo fato de estarmos vivendo 50
anos da tomada do poder pelos militares. Há uma vasta produção historiográfica e
política, a exemplo das Comissões da Verdade, dedicada ao tema, sobretudo no sentido
de uma política da reparação da violência cometida pelo Estado e /ou por seus agentes
durante a vigência desses tempos sombrios. A nossa proposta é apresentar elementos
que possibilitem a compreensão desta relevante parte de nossa história, abordando não
apenas os aspectos políticos e da repressão, mas também a vitalidade e criatividade da
resistência ao regime por meio da participação feminina na esquerda política. A
intenção é recolar o debate, apresentando por meio da abordagem de gênero e da
epistemologia feminista, as experiências, trajetórias e memórias que emergem da leitura
dos documentos e do campo historiográfico (SCOTT, 1989; RAGO, 1998;
BANDEIRA, 2012; TELES, 2013).
Os golpistas defendiam os interesses de indústrias e empresas multinacionais, do
latifúndio e investiam com truculência no combate a todos que aspiravam à liberdade e
à justiça sob o pretexto da ameaça do comunismo, destruindo as organizações sindicais
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e políticas da classe trabalhadora. A meta, baseada na doutrina de segurança nacional,


era eliminar e/ou destruir o potencial político revolucionário do inimigo interno, que
poderia ser qualquer pessoa ou grupos de pessoas que se encontrassem no meio do
povo. Invertia-se assim o princípio do estado de direito: Todo cidadão é inocente até
que se prove o contrário. Na ditatura militar, todo cidadão é suspeito até que se prove
sua inocência (TELES; LEITE, 2013).
Após o Golpe Civil Militar de 1964, a vida brasileira modificou-se substancialmente
em todos os seus setores. A junta militar passou a governar o país por decretos e Atos
Institucionais, que foram reduzindo e acabaram eliminando os direitos democráticos.
Em 9 de abril, o AI-1 – Ato Institucional nº 1- dava ao presidente poderes para decretar
estado de sítio, possibilitava a cassação de mandatos parlamentares e previa eleição
direta para outubro de 1965. Até lá, o governo seria chefiado por um militar escolhido
pela Junta. O escolhido foi o general Humberto de Alencar Castello Branco, que
inaugurou a longa série de generais-presidentes que governaria o país até 1985 (DEL
PRIORE, 1997). Os anos de governo dos militares representaram os mais cruéis e
difíceis para a arte e a cultura no Brasil. A censura foi implacável, retalhando, proibindo
e perseguindo os artistas e intelectuais que se opunham politicamente ao regime.
Conforme Del Priore, a ditadura militar encontrou a cultura numa fase de grande
agitação. Movimentos estéticos e políticos, como o Tropicalismo, liderado, entre outros,
pelos compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, propunham uma nova leitura e
interpretação crítica do país. Músicos como Chico Buarque, cineastas como Glauber
Rocha e Arnaldo Jabor e outros ganharam projeção tentando construir uma cultura de
oposição. O exílio e a censura foram alguns dos métodos empregados para fazer calar
essa cultura (DEL PRIORE, 1997).

Experiências Femininas e Resistência Política

No entanto, principalmente a partir dos anos 1970, algumas luzes começaram a


brilhar com mais intensidade e resistência por meio da emergência dos “novos
movimentos sociais”, que levariam à derrubada do regime e à construção da democracia
nos anos 1980. Encontramos na historiografia e nas páginas de revistas e jornais do
período as experiências de mulheres em busca de seus direitos, mobilizando-se pela
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transformação substantiva da vida cotidiana tanto quanto do imaginário social e da


cultura política vigentes no país. Além da militância na esquerda política, inclusive nos
movimentos armados, as demandas femininas por anistia, melhores salários, transporte,
creche e pelo direito ao próprio corpo, construíram novas concepções da política,
ampliando inclusive, por meio de novos regimes discursivos, a exemplo da imprensa
alternativa e feminista, a noção de direitos humanos e de que “o pessoal é político”
((TELES; LEITE, 2013).
Segundo Cristina Wolff, ao mesmo tempo em que, entre 1967e 1974, vários grupos
de esquerda buscavam uma revolução socialista e tentavam oferecer resistência armada
à ditadura, o mundo vivia a “revolução das mulheres” com o feminismo de “Segunda
Onda”, chamado assim para diferenciá-lo do movimento sufragista do início do século
XX (WOLFF, 2012). No Brasil, o feminismo fortalece a luta feminina pela garantia de
acesso das mulheres às profissões de classe média, às universidades e na reivindicação
por salários iguais aos dos homens, além de uma maior participação na política.
No entanto, com o país mergulhado em uma ditadura, com poucas possibilidades de
mudança social, discussão e debate, os movimentos de contestação ao regime estavam
mais preocupados com o que chamavam de “questões gerais” do que com os direitos
das mulheres. De toda forma, conforme Wolff, os avanços do feminismo, no Brasil e no
mundo, e as conquistas políticas das mulheres em vários países contribuíram para que
muitas brasileiras optassem por se engajar em organizações de resistência ao regime
ditatorial no país, inclusive, em movimentos que pregavam a luta armada (WOLFF,
2012).
Apesar do avanço historiográfico, é significativo problematizarmos a pouca
visibilidade feminina durante a ditadura militar no Brasil:

As armas e a guerra têm sido associadas à masculinidade. É como se a


violência fosse uma exclusividade masculina, uma forma de “provar que é
homem”, e como se as armas só pudessem ser usadas por homens. A
participação direta das mulheres em lutas violentas é geralmente esquecida,
dificilmente reconhecida. Entretanto, apesar disso, de alguma maneira, as
mulheres sempre estiveram envolvidas em guerras, revoltas e guerrilhas. E
muitas vezes pegaram em armas (WOLFF, 2012, p.423).

As mulheres que se integraram à luta armada romperam com preconceitos e


barreiras junto às famílias e à própria organização política de esquerda a que
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pertenciam. Conforme a historiografia que se debruça sobre o tema, a mulher militante


política nos partidos de oposição à ditadura militar cometia dois pecados aos olhos da
repressão: de se insurgir contra a política golpista, fazendo-lhe oposição e de
desconsiderar o lugar destinado à mulher, rompendo os padrões estabelecidos para os
dois sexos. A repressão caracteriza a mulher militante como “puta comunista”. Ambas,
categorias desviantes dos padrões estabelecidos pela sociedade, que enclausura a mulher
no mundo privado e doméstico (COLLING, 1997; SARTI, 2012). Não era fácil para as
mulheres serem tratadas como iguais, mesmo nas organizações que propunham a
construção de um “mundo novo” e um “homem novo”. A discriminação de gênero
podia vigorar até em movimentos ditos revolucionários. Houve organizações de
esquerda que relutaram para incorporar as mulheres nas ações militares por
considerarem que os homens estariam mais preparados do que elas. Segundo Amelinha
Teles e Rosalina Cruz Leite, não existe um levantamento do número de militantes das
organizações armadas, muito menos de mulheres que se integraram a esses movimentos.
Na publicação O perfil dos atingidos, há um cálculo de que aproximadamente 12% do
total de militantes das organizações de esquerda eram mulheres22. As mulheres atuaram
na definição das estratégias e nas ações militares, nas tarefas de observação,
levantamento de informações e preparação do apoio logístico. Lidaram com armas e as
usaram nos momentos necessários. Mas o comando ficou a cargo dos homens. Só
excepcionalmente ele coube a uma ou outra mulher. Um depoimento de Maria Augusta
Capistrano sobre a sua participação no Partido Comunista é enriquecedor sobre este
debate:

Eu sempre disse que o Partido Comunista não era uma passagem com um
capacho onde você deixava toda a sujeira da sociedade e entrava puro, porque
era comunista. Isso não existe. A pessoa é comunista como a pessoa é. Agora,
ela pode fazer uma revisão de sua educação. Mas não existe a condição de se
livrar de toda a carga da sociedade em que vive (CAPISTRANO, 1997, p.
357).

Tendo em vista a necessidade de darmos maior visibilidade as variadas e


complexas experiências femininas no contexto da ditadura militar, consideramos
pertinente a emergência de aspectos da vida política de mulheres como Maria Augusta

22
MITRA Arquidiocesana de São Paulo. Perfil dos atingidos. Projeto Brasil: Nunca mais. Tomo III.
Prtrópolis Vozes, 1998. Apud Teles;Cruz, 2012.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Capistrano, Clara Charf, Mércia Albuquerque23, Maria Celeste Vidal24 e Alexina


Crêspo25, militantes ativas e que iluminam aspectos fundamentais do mundo da política
em tempos sombrios. As narrativas que seguem abaixo são apontamentos, escritos de
aproximação no amplo campo historiográfico que avistamos e, no espaço deste texto,
centram-se principalmente na trajetória de Maria Augusta Capistrano, fazendo apenas
uma rápida menção a vida de Clara Charf.
As memórias de Maria Augusta Capistrano e Clara Charf foram acessadas por
meio das entrevistas concedidas a Revista Teoria & Debate da Fundação Perseu
Abramo (parte do projeto de resgate da memória da esquerda brasileira), reapresentadas
26
no livro Rememória: entrevistas sobre o Brasil do século XX . As duas mulheres
tiveram suas trajetórias entrelaçadas a de importantes líderes políticos, o que algumas
vezes ofuscou a relevância de suas próprias experiências e maneiras de lidar com o
campo da política. Maria Augusta Capistrano (Bananeiras- PB, 1918-) é conhecida por
antigos militantes como a companheira de David Capistrano, dirigente comunista
assassinado pela ditadura militar em 1974; Clara Charf (Maceió- AL, 1925-), aos 21
anos filiou-se ao Partido Comunista e em 1947 conheceu Carlos Marighella, líder
revolucionário com quem conviveu até seu assassinato pela ditadura militar em 1969.
No entanto, a leitura atenta dos depoimentos destas mulheres, evidencia a relevância de
sua participação política e as constantes rupturas dos lugares socialmente atribuídos ao
feminino. Ambas iniciaram a militância política no Nordeste do Brasil, região
historicamente marcada pelo autoritarismo e machismo, tornando a inserção na vida
pública mais desafiadora.
Maria Augusta Oliveira era estudante em 1945 e foi uma das pessoas que
organizou o Partido Comunista na Paraíba, era dirigente, responsável pela Comissão de
23
Advogada que defendeu mais de 500 presos políticos em todo o Nordeste no contexto da ditadura
militar, entre eles Gregório Bezerra e Abelardo da Hora.
24
Maria Celeste Vidal Bastos, professora primária, atuante nas Ligas Camponesas, em Vitória de Santo
Antão foi presa por tomar a rádio local e conclamar os camponeses a libertarem Miguel Arraes. Afastada
de suas três crianças, à época com idade entre 10 e 12 anos, foi estuprada várias vezes no translado do
interior à Casa de Detenção onde foi duramente torturada.
25
Alexina Lins Crespo de Paula era uma militante líder. Ela praticamente respondia pelas relações
internacionais das Ligas Camponesas, que agitou o Nordeste do final dos anos 1950 a meados de 1960.
Antes de 1964, chegou a negociar a entrada de armas no país e a manter entendimentos com líderes como
Fidel Castro e Mao Tsé-Tung, por achar que a guerrilha era a melhor forma de realizar a reforma agrária
em terras então dominadas econômica e politicamente pelos usineiros, que mantinham seus lavradores em
regime de semiescravidão.
26
MAUÉS, F; AZEVEDO, R. (Org.). Rememória: entrevistas sobre o Brasil do século XX. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 1997.
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Finanças. Na Constituinte de 1946 o partido a lançou candidata a deputada, junto com


outra mulher, Luiza Cleirot. Em suas memórias diz que deixou a escola formal logo
cedo e se envolveu com os movimentos políticos, percebendo os desafios a que se
propunha:

Li muito desde os 13 anos. Fui muito influenciada por Simone de Beauvoir.


Com seis irmãos e três irmãs, nunca quis seguir a vida das mulheres do meu
tempo. Só queria seguir a vida dos meus irmãos. Naquela época, se você
tivesse um interesse político e quisesse desenvolvê-lo, era necessário mesmo
que passasse a ter um comportamento semelhante ao dos rapazes. Se conformar
naquela coisa da mulher não dava (CAPISTRANO, 1997, p. 352).

A jovem militante conheceu o companheiro de lutas políticas e aquele com


quem construiria sua vida, atuando politicamente. Os irmãos e o pai de Maria Augusta
estavam imersos na política da Paraíba e foi nesta atmosfera, no contexto das eleições
de Pernambuco em 1946, que ela conheceu o líder comunista David Capistrano,
perseguido por Getúlio Vargas, mas eleito um dos deputados mais bem votados da
época:

Foi durante a campanha que conheci o David, e aconteceu esse


entrosamento. A gente não estava sabendo o que ia fazer. Isto porque
além de ter na Paraíba meu papel político definido, eu tinha uma
influencia muito grande de Simone de Beauvoir e, portanto,
casamento não estava nos meus planos de jeito nenhum. Casar, para
quê? A mulher ficava casada e o homem continuava solteiro,
vivendo... A mulher tinha de ter um filho todo ano, esse negócio todo.
Então eu tinha lá as minhas teorias que não tinham nada que ver com
o PC, nem com o marxismo, nem com nada. Era uma teoria extraída
da observação da própria situação da mulher na sociedade brasileira e,
como eu tinha essa abertura por causa do meu pai e meus irmãos, meti
a cara logo na política. Como eu não ia ser eleita, mas o David seria,
combinamos que terminada a campanha eu iria para Pernambuco com
ele (CAPISTRANO, 1997, p.354).

Entre 1958 e 1964, Maria Augusta viveu em Recife com seu companheiro David
Capistrano Costa, que atuou na política pernambucana e dirigiu os jornais "A Hora" e
"Folha do Povo". Com o golpe militar, o militante entrou na clandestinidade e asilou-se
na Checoslováquia, em 1971. Retornou ao Brasil em 1974, atravessando a fronteira em
Uruguaiana, Rio Grande do Sul, em um taxi. David Capistrano foi sequestrado no dia
16 de março de 1974, no percurso entre Uruguaiana e São Paulo.
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Nas memórias de Maria Augusta temos algumas percepções sobre as vésperas


do golpe, o clima político e os desafios postos aos militantes:

"Eu lia constantemente os jornais, principalmente o Diário de


Pernambuco e estava percebendo a movimentação da esquerda.
Quando David chegava em casa, colocava o pijama e ia para o portão,
eu ia atrás. Às vezes, ele dizia: "Eu não quero mais conversar sobre
política, não aguento mais." Mas eu insistia em perguntar se aquela
história de defesa da democracia, processo democrático, era pra valer,
se não existia nada além daquilo. Ele sempre respondia com outra
pergunta: "Que história é essa?" Para mim, porém, se eles não tinham
nada preparado para a defesa dessa tal democracia, estavam muito
mal, porque o golpe estava sendo preparado, e eles não estavam
acompanhando os movimentos do inimigo. Bastava ler os editoriais do
Diário de Pernambuco e Jornal do Commércio. Estava claro, para
quem lesse nas entrelinhas, que se preparava o golpe (CAPISTRANO,
1997,p.360).

A esquerda não se preparou para o golpe e a análise de conjuntura desta


militante não pesou no jogo político. O PC orientou seus quadros para uma passeata nas
ruas do Recife e não previu a violência que os aguardava. A historiografia sobre o
Golpe em Pernambuco reafirma as lembranças da militante. Conforme Fernando
Coelho, em Pernambuco, como nos demais estados, também não houve reação armada
contra o golpe. Nem a polícia militar fora preparada pelo governo estadual para uma
confrontação com o Exército, nem a população civil chegou a ser estimulada para
enfrentá-lo. Iniciada ostensivamente em 30 de março, com a prisão de centenas de
líderes e dirigentes das ligas camponesas, a repressão política tornou-se exacerbada e
abrangente após a queda do governo constitucional e a prisão do governador Miguel
Arraes (COELHO, 2004). Mudar a percepção dos relatos e aproximarmo-nos da
experiência feminina no limite daquela situação política parece-nos enriquecedor para a
construção da história:

No dia seguinte, o David saiu de casa naquele jipe, manso. Aí


começou o bafafá. Eu tinha tanta certeza do golpe que vivia com a
minha roupa e a dos meus filhos arrumadinhas: não deixava uma peça
suja. Por isso escapei. Pela manhã distribuí uma porção de roupas em
três sacolas, dei a cada um dos filhos a sua e peguei a minha e saí. Fui
em direção ao centro da cidade, para o Sindicato dos Feirantes.
Quando estava andando na rua, lá veio o David na maior placidez,
dirigindo aquele jipe. Perguntei o que eles estavam fazendo,
desfilando de jipe, enquanto havia um golpe na rua. Ele disse: “E você
e esses meninos?” Respondi: “Ah, me deixa, te manda.” Eu fui para o
Sindicato dos Feirantes, e lá encontrei aquele pessoal num fala-que-
fala. Tinha chegado uma petebista do esquema do Jango, do interior
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do Rio de Janeiro, para preparar a passeata e estava lá falando


abobrinha. (...) Argumentei que estavam loucos, não tinham armas
com que reagir ao golpe. Ele me acusou de pessimista. Pedi então a
palavra e fiz um discurso. Falei que ninguém estava preparado para a
luta armada, que o golpe estava ali, e que teríamos que saber recuar.
Os caras do partido diziam que a orientação era ir para as ruas em
passeata, e que Maria Augusta, mulher de David Capistrano não apita
nada (CAPISTRANO, 1997, p.361).

Maria Augusta Capistrano compreendia o perigo e sabia que os sindicatos


seriam cercados pelos militares. Acompanhada dos três filhos se recusou a ir para o
Sindicato dos Bancários e sair em passeata. Evitou assim de presenciar o cerco do
exército ao Palácio das Princesas e a morte dos dois estudantes – Jonas e Ivan- amigos
de seu filho David Capistrano Filho. Voltou para sua casa no bairro de Campo Grande,
mas acabou se hospedando na casa de uma vizinha. Viveu tempos difíceis, dependendo
da solidariedade de quem já tinha pouco. Dias depois, uns 20 dias depois do Golpe, foi
presa, vítima de uma emboscada:

Levaram a mim e ao Davizinho. As meninas ficaram. Cristina tinha 13


anos e a Carolina, 10. Fui colocada numa sala com outras mulheres na
Delegacia de Ordem Política e Social. Entre elas estavam a doutora
Naíde Teodósio, as secretárias de Habitação e de Educação do
governo Arraes, enfim todas as mulheres do tempo de Arraes e
também de outras linhas políticas. A Célia Lima... e a cada dia o grupo
aumentava: a Maria Celeste, que era do grupo de Julião (Francisco
Julião, líder das Ligas Camponesas), foi uma das mais torturadas.
Passei cinco dias nessa sala. E o Davizinho no meio dessa mulherada.
Eram mulheres da Liga Camponesa, mulheres de orientação de base,
algumas lideranças populares. Depois de cinco dias, pegaram todo o
grupo e levaram para a cadeia pública. Foi aí que me separaram do
meu filho e eu fiquei incomunicável. (CAPISTRANO, 1997, p.362).

O relato de Maria Augusta Capistrano nos apresenta o confronto, a perseguição,


o cerco do regime a um grupo de mulheres que atuavam no campo da política.
Apresenta a arbitrariedade do regime ao deter um adolescente e trata-lo como criminoso
e as famílias dilaceradas, separadas naqueles tempos. O filho de Maria Augusta ainda
foi levado para o Juízado de Menores e tanto ele quanto as duas meninas foram tratadas
pelo regime como subversivos e comunistas. O companheiro de Maria Augusto fugiu
para o Rio de Janeiro e ela ficou algum tempo em Pernambuco e depois teve que
transitar pelas cidades – João Pessoa, Campina Grande e, finalmente, Rio de Janeiro.
Durante a clandestinidade do marido, viveu como o nome de solteira, Maria Augusta
Oliveira e pode criar seus filhos, com uma pouca ajuda financeira do partido.
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Depois de 1974, quando seu companheiro foi morto, junto com vários líderes do
PC, ela passou a ter uma atuação mais visível no combate à repressão no Brasil.
Articulou –se no Grupo de Familiares de Presos Políticos, com o apoio da sociedade
civil, Associação Brasileira de Imprensa- ABI, CNBB e OAB. Foi uma liderança no
Movimento Pela Anistia e em Campinas convidada por Terezinha Zerbini atuou no
Movimento Feminino pela Anistia, mantendo contato com os membros de esquerda do
estado:

Lá no Rio eu estava ligada ao Movimento de Mulheres. Em São Paulo


me liguei no Centro da Mulher Brasileira. Foi aí que eu conheci o
Luiz Eduardo Greenhalgh, a Ruth Escobar... E começaram a acontecer
aquelas reuniões no Teatro Ruth Escobar, grandes assembleias. A
discussão era em torno da necessidade de um movimento de anistia
que abrangesse a sociedade e não fosse só ligado ao setor feminino.
Então surgiu a ideia do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA).
Participei dessas assembleias como membro provisório da Comissão
Executiva do CBA. Depois houve eleição e eu permaneci
(CAPISTRANO, 1997, p. 369)

No contexto de emergência do movimento pela anistia, a militante rompe com o


Partido Comunista, cujos líderes que estavam fora do país, preferem não apoiar o
movimento. A relação com o partido já era tensa, inclusive, em suas memórias, ela
desconfia que alguns integrantes do PC tenham entregado alguns companheiros,
inclusive seu marido que voltou em 1971 por conta própria, sem autorização do partido.
Após 45 anos com responsabilidade partidária e disciplina de militante, Maria Augusta
relata com positividade a sua ruptura com o PC e marca sua postura de mulher forte,
decidida e com clareza sobre sua trajetória política:

No movimento pela anistia, tive a maior participação possível. Sou


filha de uma família que vivia muito intensamente politica e
socialmente. Fiquei reprimida durante esses anos de ilegalidade e tive
oportunidade de voltar a ter uma participação política. Foi muito
gratificante. Eu estava numa posição em que estava livre para
raciocinar sobre o que estava acontecendo, a respeito dos acertos e dos
erros da política praticada pelo partido (CAPISTRANO, 1997, p.369).

Apesar da memória da esquerda, em alguns momentos, reconstruir a trajetória


desta militante com a identidade atrelada a de “mulher de dirigente político”,
percebemos na sua história de vida as marcas de um sujeito que não aceita estereótipos
e que se entregou ativamente ao mundo público, com uma visão crítica sobre a esquerda
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e em busca da liberdade. Muitas outras mulheres ligadas aos movimentos de oposição


ao regime militar atuaram ativamente, inclusive no campo da formação política,
pensando estratégias e articulando as ações nas cidades e no campo. Na verdade, desde
antes do Golpe, como percebemos por meio dos relatos de Maria Augusta Capistrano, o
mundo da política e os partidos políticos brasileiros tinham uma presença não
insignificante de mulheres em suas fileiras. A emergência do debate sobre mulheres e
ditadura militar no Brasil, principalmente a atuação das militantes de esquerda,
redimensiona o campo historiográfico, desnaturaliza percepções sobre o feminino e
problematiza as relações de gênero no âmbito da política.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia das


Letras, 1997;
BANDEIRA, Andrea. Resistência Cor de Rosa Choque: militância feminina no
Recife, nos anos 1960. Salvador, 2012. Tese;
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. RJ: Civilização Brasileira, 2009;
COELHO, Fernando. Direita, Volver: o golpe de 1964 em Pernambuco. Recife:
Bagaço, 2004.
COLLING, Ana Maria. As mulheres e a Ditadura Militar no Brasil.
http://ich.ufpel.edu.br/ndh/downloads/historia_em_revista_10_ana_colling.pdf.
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro, Rosa dos Ventos, 1997.
MAUÉS, F.; AZEVEDO, R. (Org.). Rememória: entrevistas sobre o Brasil do
século XX. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 1997.
ROLLEMBERG, Denise. “Esquerdas revolucionárias e luta armada”, in Jorge
Ferreira e Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da
ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Vol. 4. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2003;
RAGO, Margareth. Epistemologia, Gênero e História. In: PEDRO, J.; GROSSI, M;
(Org.) Masculino, Feminino, Plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998;
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SARTI, C. A. “O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma


trajetória”. Estudos Feministas. Florianópolis, maio-junho 2004, p.35-50. Disponível
em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2004000200003 Acessado em 07/04/2014;
TELES, Amelinha; LEITE, Rosalina Santa Cruz. Da Guerrilha à Imprensa
Feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São
Paulo: Intermeios, 2013;
WOLFF, Cristina Scheibe. Amazonas, Soldadas, Sertanejas, Guerrilheiras. In:
BASSANEZI, C; PEDRO, J. M. Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto,2012;
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GT1

O ANTICOMUNISMO NO A IMPRENSA: IGREJA CATÓLICA E GOLPE


CIVIL-MILITAR NA PARAÍBA (1962-1964)

Dmitri da Silva Bichara Sobreira


Universidade Federal da Paraíba
Dmitri_bichara@hotmail.com

Este texto é fruto do Trabalho Acadêmico de Conclusão de Curso (TACC) de


mesmo título que discute o posicionamento da Igreja Católica contra a ideologia
comunista, que ganhava espaço no Brasil na década de 1960, através das publicações do
jornal A Imprensa, de responsabilidade da Cúria Metropolitana da cidade de João
Pessoa. Desta forma entendemos o anticomunismo como uma cultura política, conceito
que, segundo Rodrigo Patto Sá Motta (2009), seria:

Conjunto de valores, tradições, práticas e representações


políticas, partilhado por determinado grupo humano, que
expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do
passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos
direcionados ao futuro. (2009: 21)

O anticomunismo na década de 1960 é fundamental para entender o golpe


civil-militar dado em 31 de março de 1964. Naquele ano, o então presidente João
Goulart dava margens, através de suas ações e discursos, para que os setores
conservadores da sociedade acreditassem que estava em execução um plano de golpe
comunista no país. Em seu governo, a esquerda tive grande liberdade para agir, criando
organizações (ou fortalecendo as já existentes) e realizando ações como greves,
passeatas e comícios, gerando uma perturbação na ordem social e política.
Diante de toda a movimentação da esquerda brasileira que, junto com as
propostas de Reformas de Base, ganhavam adesão de uma significativa parcela da
população, a direita conservadora atua no sentido de desqualificar as propostas
esquerdistas, relacionando-as ao comunismo, ideologia que dividia o mundo junto com
capitalismo na Guerra Fria. A grande maioria desses grupos recebia influencia do
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comunismo ou da teoria marxista, mas o que será relatado neste texto é um discurso de
desqualificação da esquerda feita de forma simplista, maquiavélica e mal fundamentada.
Na Paraíba na década de 1960, os principais grupos de esquerda a serem
combatidos eram os sindicatos, os estudantes (secundaristas e universitários),
organizações educacionais como a Campanha de Educação Popular (CEPLAR), os
membros da própria Igreja Católica, políticos do extinto Partido Comunista Brasileiro
(PCB) e as Ligas Camponesas. Veremos como o periódico católico de posiciona perante
cada um, fazendo do discurso cristão uma crítica a um posicionamento político.
No primeiro tópico discorreremos sobre os grupos urbanos e a organização
política do estado. Já na segunda parte faremos um relato sobre o discurso católico
contra os movimentos sociais do campo, em especial às Ligas Camponesas.

1. O anticomunismo na Paraíba: trabalhadores, padres esquerdistas e estudantes

Para analisar o anticomunismo na Paraíba na década de 1960 é preciso


retroceder um pouco mais no tempo e discutir a situação política que o estado vivia.
Segundo Monique Cittadino (1998) Pedro Gondim se elege governador em uma
conjuntura política no qual estava estrategicamente alinhado aos grupos de esquerda,
devido o movimento queremista e de sua proximidade ao movimento sindical crescente
na Paraíba, e aos grupos latifundiários da União Democrática Nacional (UDN), partido
que lhe deu apoio político em sua campanha.
Servindo aos interesses da classe conservadora, o A Imprensa segue seu plano
editorial de acordo com o plano elaborado pelos 50 principais jornais católicos
brasileiros, apresentando “[...] fatos, incoerências, falhas, insucessos do comunismo.
Confrontará os países democráticos com os países dominados pelo marxismo.”
(IMPRENSA... 17 de junho de 1962).
As esquerdas, que tanto defendiam a soberania nacional, para o jornal eram falsos
nacionalistas. Faziam uso dos órgãos estatais para o interesse dos comunistas de fora.

A Petrobrás transformou-se em casa de emprego e aos


nacionalistas não importa nada mais. Depois inventaram a
necessidade das relações diplomáticas com a União Soviética e
eles se aproximam dos cofres que lhes financiarão as novas
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mazorcas. [...] Eles querem reformar o rosto da nação, os


mascarados. (SCHIMITT, A Imprensa, 11 de março de 1962)

Não só a Petrobrás estaria infiltrada pelos comunistas, mas vários sindicatos na


Paraíba partilhavam dessa ideologia esquerdista de buscar melhores condições de
trabalho. Os principais sindicatos no estado estavam se articulando. Essa organização
gerava a quebra da ordem social, como era classificado pelos anticomunistas.
Os principais líderes sindicais, que antes exerciam sua representatividade política
através do extinto PCB, passaram a atuar em outros partidos. Apesar de importantes
figuras da política da Paraíba, como José Américo de Almeida, criticarem a cassação do
registro do PCB, para o periódico: “O que quer o comunismo ao organizar-se em
partido “legal” é manipular os sofrimentos coletivos como quem usa a matéria prima
para obter os mais variados produtos.” (ADVERTÊNCIA, A Imprensa, 13 de maio de
1962, p1). Com os políticos comunistas atuando nas demais legendas, coube ao padre
M. Batista de Medeiros alertar ao eleitor católico sobre os candidatos comunistas:

Pode um católico votar em candidatos apoiados por


comunistas?
Para que não pensem que estou agindo sob influxo de paixão
partidária, transcrevo para aqui e na íntegra, um documento
pontifício emanado há quatro anos, da Sagrada Congregação
do Santo Ofício:
“Foi consultada esta suprema Congregação se é lícito aos
católicos, na escolha dos representantes do povo DAR SEU
VOTO ÀQUELES PARTIDOS OU CANDIDATOS QUE,
EMBORA NÃO PROFESSEM PRINCÍPIOS OPOSTOS À
DOUTRINA CATÓLICA e até mesmo se digam cristãos,
todavia, de fato, SE UNEM AOS COMUNISTAS e, pelo seu
modo de agir, os favorecem (re tamen comunistis sociantur et
sua agendi ratione iisdem favent)” (MEDEIROS, 18 de agosto
de 1963, p. 1)

A Igreja Católica não era unânime no combate a influencia comunista na política


brasileira. Crescia dentro da instituição grupos de católicos engajados nos movimentos
populares. Os “padres comunistas” eram de conhecimento da Arquidiocese paraibana,
que procurou desqualificar a atuação desses indivíduos. Para os conservadores, não
havia possibilidade do catolicismo estar junto ao comunismo. O leitor, segundo o jornal,
deve ficar atento aos padres que professam a fé em nome do comunismo, pois eles não
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falam pela Igreja27. Mas o jornal não emitia apenas opiniões conservadoras radicais. O
periódico procura ponderar a atuação desses clérigos junto aos movimentos populares.
Esses indivíduos querem apenas um mundo mais igualitário, justiça social que o
capitalismo não pode dar.

Eles, os padres, não são comunistas, e agem, cremos, com a


melhor das intenções. Às vezes porém, na luta contra o
capitalismo maloquiano, tubarônico, parecem considerá-lo o
pior de todos os males, a causa única da miséria que campeia
no mundo – ocultando inconsientemente de certo, os males que
provém do comunismo materialista, totalitário, algoz de todas
as liberdades. (LIMA, A Imprensa, 23 de junho de 1963)

Diante do crescimento de vertentes sociais cristãs, a Igreja em determinados


momentos busca uma posição de cautela ao abordar esses grupos esquerdistas católicos,
diferente dos membros mais radicais, ligados diretamente à organizações conservadores,
como partidos ou grupos de latifundiários.
O comunismo não estava “camuflado” apenas na Igreja ou nos sindicatos. A
classe estudantil sofria, segundo o jornal, grande influencia da ideologia comunista.
Idealizando-se nas principais figuras comunistas da época, como Fidel Castro e Che
Guevara, os estudantes comunistas eram identificados primeiramente pela aparência. J.
Barreto relata uma experiência em um estabelecimento de ensino paraibano: “Outro dia
estávamos em um estabelecimento de ensino, quando entrou um efebo, com a barba
crescendo à Fidel Castro. Não o conhecíamos.” (BARRETO, A Imprensa, João Pessoa,
23 de junho de 1963, p. 1). Os estudantes, como os demais militantes de esquerda, eram
estereotipados. Suas vestimentas, a barba por fazer ou as palavras que utilizavam eram
dignas de alguém que idolatrava os comunistas de fora.
A aparência dos estudantes comunistas gerou uma comparação com os estudantes
norte-americanos. Segundo o jornal, o movimento estudantil norte-americano é
engajado nas causas que dizem respeito ao seu país, o perfil do estudante daquele país é
de um aluno primeiramente preocupado com os estudos, o que difere do estudante
brasileiro, que primeiro milita depois estuda. O movimento estudantil nacional é
formado por indivíduos que tem excessiva ligação com a política, tornando-o imaturo:

27
A Imprensa, 7 de abril de 1963, p. 2.
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Que são agitadas por estudantes “perpétuos”. Que revelam


inspirações comunizantes. Tais movimentos são provas de
imaturidade e fuga ao dever essencial. E são um grande
contrassenso, ridículo em grande estilo, quando envolvem
globalmente pré-adolescentes a adolescentes imaturíssimos.
(FRANTZ, A Imprensa, João Pessoa, 07 de outubro de 1962, p.
4)

Esses estudantes esquerdistas não estariam preocupados com a situação da classe


trabalhadora, ou dos menos favorecidos da sociedade, como aponta o autor, encaixando-
os no perfil do comunista padrão, aquele que só se interessa pelo caos social.
Mas a preocupação anticomunista não se limitava aos estudantes universitários ou
secundaristas que engrossavam as passeatas dos movimentos sociais. Existiam os
programas de educação popular que cresceram na década de 1960 no Brasil. A
Campanha de Educação Popular (CEPLAR) aqui da Paraíba, desempenhou papel
fundamental na educação de jovens e adultos no estado28.
A partir dos questionamentos sobre a sociedade brasileira e da ação junto às
comunidades carentes, surge a CEPLAR no ano de 1961. Tal entidade é fruto da junção
de dois fatores: a atuação dos estudantes e da JUC e do projeto lançado pelo governo do
Estado para a criação de um movimento de educação popular.
Com a adoção do método Paulo Freire, a CEPLAR ingressou no Plano Nacional
de Educação, do ministro Darcy Ribeiro, que visava melhorar o ensino primário no
Brasil. Com o aumento do financiamento, a entidade cresceu e trouxe para si os olhos
dos conservadores. Sua atuação junto às comunidades colocou seus membros em
contato com associações de trabalhadores e grupos religiosos, todos voltados para a
melhoria da condição de vida do povo. Classificada como comunista, agitadora e
deturpadora da ordem social pelo A Imprensa, a CEPLAR atuava junto à classe
trabalhadora através da educação.
Ligando os movimentos de educação popular com as experiências revolucionárias
em Cuba e nos demais países comunistas, o periódico buscou desqualificar o método

28
Segundo Maria das Dores Paiva de Oliveira Porto e Iveline Lucena da Costa Lage (1995) a CEPLAR
surgiu a partir da atuação da Juventude Universitária Católica (JUC) na crítica ao assistencialismo do
governo estadual. Traçou-se um plano de ação junto aos cursos da UFPB, ficando os estudantes da
Faculdade de Filosofia engajados na questão da educação dos bairros mais pobres da capital.
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educacional utilizado pela CEPLAR, pois era um meio de levar as ideias marxistas para
as camadas sociais mais baixas.

Por lá [Cuba] o movimento começou com as “educações


populares”. E este ensinamento das primeiras letras ia se
fazendo – pouco a pouco – a difusão das sentenças
comprometedoras do regime democrático. As frases todas
rumadas para o desencanto com as instituições livres, para que
todos fossem chegando à compreensão de que o problema
econômico do povo, pelo menos, só teria solução com o
comunismo. E essa convicção tanto se espalhou que o povo caiu
nas malhas da bolchevização, quase de olhos fechados.
(ATARAXIA, A Imprensa, João Pessoa, 23 de junho de 1963).

Visto o perigo para a democracia nacional dos movimentos de educação popular


como a CEPLAR, o jornal mostra uma alternativa para a sociedade, o trabalho de
educação dos párocos do estado. O Instituto Don Adauto ou o trabalho dos padres da
cidade de Alagoa Grande são exemplos de como não se precisa do método do Paulo
Freire para fazer um trabalho de educação de jovens e adultos das camadas mais baixas
da sociedade29.
Uma cultura política como o anticomunismo estava presente primeiramente na
classe conservadora, aquela que resguarda para si o poder econômico e político de um
Estado. Uma cultura política para sobreviver em uma sociedade precisa de força não só
na classe social em que se tem hegemonia, ela tem que ser legitimada entre as demais
classes no intuito de servir como base para conter movimentos que quebre o poder desse
grupo. E essa força não é apenas o discurso, práticas cotidianas, como a educação, são
fundamentais para consolidar a cultura política dando respaldo para a classe dominante.
Na Paraíba, a classe social dona da maior parte do poder econômico e político era
a elite agrária. Os latifundiários, que concentravam a maior parte da terra produtiva da
zona rural, eram contra os movimentos sociais no campo que eclodiam com as Ligas
Camponesas. E para poder conter o crescimento desse movimento era preciso também
desclassifica-lo.

2. O anticomunismo contra as Ligas Camponesas em favor da paz agrária

29
A Imprensa, 27 de outubro de 1963.
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Conta-se que o rei Alexandre certa vez prendeu um pirata e


perguntou-lhe com que direito vivia infestando os mares. “Com
o mesmo direito, respondeu o prisioneiro, com que V. M. vive
devastando o mundo inteiro. Mas porque faço isso num pequeno
navio, sou chamado salteador; V. M. porque o faz com armada
e exército, é considerado imperador”. O dinasta limitou-se a
rir, sentindo-se desarmado para castigar o pirata, e o deixou em
paz. (BARRETO, A Imprensa, João Pessoa, 10 de junho de
1962, p. 1)

É com essa analogia que o colunista descreve a situação agrária na Paraíba na


década de 1960. Os piratas seriam os proprietários de terra, “Todo o mundo vive com as
vistas sôbre êsses homens. Tôda a acusação de exploradores para eles.” (BARRETO, A
Imprensa, João Pessoa, 10 de junho de 1962, p. 1). E Alexandre, O Grande,
representaria os camponeses, trabalhadores rurais assalariados, que “Ninguém lhes
aponta os males. Ninguém se apercebe do que vivem praticando. O dinheiro lhes chega
às mãos (Deus sabe como), e não há quem diga que são exploradores.” (BARRETO, A
Imprensa, João Pessoa, 10 de junho de 1962, p. 1).
Pode parecer sem nexo colocar nessa analogia o poderoso conquistador
macedônico representando os camponeses, que lutavam não só por um pequeno pedaço
de terra para a sobrevivência, mas por igualdade e justiça nas relações de trabalho no
campo. Porém é assim que o discurso anticomunista do jornal vai ser pautado no âmbito
rural. A força que os camponeses estavam ganhando dentro do Estado deixava os
grupos latifundiários em alerta, se mostrando necessária uma desconstrução da luta dos
trabalhadores rurais em benefício da manutenção da estrutura agrária excludente em que
vivia a Paraíba. Assim, no meio da luta agraria, colocava-se o grande latifundiário como
vítima do camponês. Numa tentativa de desvirtuar a interpretação do leitor que passou a
ver o camponês como um inimigo que o governo reformista de Goulart estava criando.
O problema agrário no Estado é polarizado pelas Ligas Camponesas de um lado e
nos proprietários de terras, mais especificamente no chamado Grupo da Várzea ou bloco
agroindustrial, do outro. Esse último era um grupo político-econômico formado pelos
latifundiários e usineiros da chamada zona da várzea, ou zona da mata. Suas atividades
econômicas estavam estreitamente ligadas à exportação de produtos como a cana-de-
açúcar e seus derivados, abacaxi e à pecuária extensiva. A principal zona de influência
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desse grupo eram os municípios de Sapé, Marí, Mamanguape, Araçagi, Pilar, São
Miguel de Taipu, Santa Rita, Cruz do Espírito Santo e Caldas Brandão.
De acordo com Cesar Benevides (1985), a década de 1960 foi de mudanças na
estrutura agrária. Houve o início da mecanização do trabalho rural e o aumento da
quantidade de terras destinadas à prática da pecuária extensiva. O morador, que antes
trabalhava no latifúndio para poder morar e usufruir de um pequeno pedaço de terra,
era, como relata o autor, substituído pelo trabalhador sazonal.
Assim, as relações entre trabalhador e empregado no campo não eram
semelhantes às dos centros urbanos, pois a legislação trabalhista não havia chegado ao
âmbito rural. Antes da organização das Ligas Camponesas, as discursões políticas não
eram pautadas junto aos trabalhadores rurais. A falta de organização dos trabalhadores
rurais era um fator que contribuía para o atraso do campo.
O Grupo da Várzea controlavam a maquina administrativa do estado em favor da
manutenção de uma ordem no campo que favorecesse seus interesses. A falta de
organização dos trabalhadores rurais dava margem ao controle dos camponeses pelos
latifundiários fazendo deles dependentes econômicos e controlados políticos. Esta
organização social ficou conhecida como paz agrária, uma prática garantida pelo jogo
político do Grupo da Várzea que utilizava do Estado e da falta de organização do
camponês para a exploração máxima do seu trabalho.
A paz agrária englobava os dois principais partidos na Paraíba, o PSD e a UDN.
As duas agremiações sempre se entendiam quando era necessário manter seus interesses
comuns, na chamada “conciliação conservadora”. Todo o aparato repressivo do Estado
era utilizado para assegurar ao latifundiário o controle da terra e a subordinação do
camponês. Indivíduos comprometidos com a manutenção da ordem pública estavam a
serviço dos principais grupos oligárquicos gerenciadores da agroindústria. O camponês
se encontrava em uma situação de completo desamparo social por parte do governo, que
ainda agia contra sua integridade física sempre que era considerado necessário.
Devido essa situação de marginalidade social do trabalhador rural, grupos de
trabalhadores rurais nordestinos de organizaram nas Ligas Camponesas30. A tomada de

30
As primeiras Ligas Camponesas foram organizadas pelo Partido Comunista Brasileiro em 1947, mas
foram desativadas devido o partido ter sido colocado na ilegalidade. Mais tarde, no final da década de
1950, as organizações camponesas voltam em Pernambuco, no Engenho da Galiléia, tomando grandes
proporções por todo o nordeste.
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consciência de classe pelos camponeses trouxe para o debate não só as relações de


trabalho entre os camponeses e latifundiários, mas toda uma estrutura agrária elitista.
A luta do camponês tomou grande repercussão no meio urbano. Os seguimentos
de esquerda da sociedade apoiaram os camponeses inclusive as barbaridades cometidas
contra os camponeses, como os assassinatos. Toda essa movimentação surgida a partir
das Ligas fez com que o Grupo da Várzea entrasse em estado de alerta. O governador,
que estava politicamente localizado entre os trabalhadores organizados e os grandes
latifundiários (UDN), precisou se decidir por um lado, optando pelos conservadores.
Isso resultou numa intensificação do aparato repressivo contra os camponeses.
Mas a violência sobre o camponês não era só física. Muito se falava a respeito da
situação do campo. A imprensa passou a difundir ideias contra os camponeses,
desqualificando a causa agrária como “agitadora” e “baderneira”. O fato dos
camponeses reivindicarem uma nova organização da estrutura agrária, alicerçados pela
proposta de Reforma Social do presidente João Goulart, levou as classes conservadoras,
inclusive à alta cúpula da Igreja Católica, a acreditarem que as Ligas Camponesas eram
um dos meios de infiltração de ideologia subversiva no Brasil, visando uma Revolução
Comunista, ou mesmo porque elas eram uma forma de derrubar a paz agrária.
A desconstrução do A Imprensa contra as Ligas Camponesas começa a partir da
situação agrária dos países comunistas. Em uma comparação com os Estados Unidos, é
debatido o custo de vida e a produção do trabalhador comunista, o jornalista escreve:

Enquanto o trabalhador soviético consegue três ovos, 215


gramas de açúcar, 1400 de pão misto, 80 de manteiga, 200 de
carne e dois litros de leite, e na américa do norte 20 ovos, 4300
gramas de açúcar, 2500 de pão, 650 de manteiga, 1000 de
carne e 5 litros de leite.[...] De 1959 a 62, a produção agrícola
diminuiu até 20% em todos os países comunistas. Menos na
Polônia, que descoletivizou suas fazendas. Na Alemanha
Oriental faltam gêneros de primeira necessidade. Já quis pedir
empréstimo de bilhões a Bonn. Em Cuba a safra de açúcar
baixou 30%. Alimentos, objetos higiênicos, tudo foi racionado e
distribuído pelo governo. “Estamos envergonhados por não
termos cumpridos nossas promessas” – declarou Fidel Castro à
nação. Na China houve progresso; muito menor, porém do que
se prometeu. A fome mata milhões por ano. E milhares por mês
fogem para Hong Kong e Macau. – O quadragésimo propósito
soviético de alcançar a produção ocidental – e nunca
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conseguido – mostra a superioridade do sistema livre sobre o


comunista. (Meio século... 1 de julho de 1962, p. 6).

Esse discurso serve como desmotivação para o trabalhador camponês não se


engajar nas Ligas. A partir desses dados, o camponês tende a não se interessar por uma
luta que, supostamente, só trará malefícios para sua vida, preferindo manterem-se
alheios, já que o comunismo não trará benefícios para sua produção.
A reforma agrária, tão defendida pelas Ligas, não era condenado por completo
pela Igreja Católica. Só a partir do momento em que ela se vincula à ameaça externa
comunista o jornal passa a criticá-la. Ele demonstra em alguns pontos ser bastante
simpático às causas trabalhistas camponesas, apenas criticando o modo como eles estão
agindo. O jornal procura debater como pode ser feita uma reforma agrária pelos órgãos
federais sem dar margem a ideologias subversivas, e cobra uma atitude, pois: “As fôrças
do mal se congregam, disciplinadas e terríveis, e não lhes oferecemos um potencial de
resistência, suficiente para inutilizar-lhes o ímpeto e poder destruidor.” (Bases da
política, A Imprensa, 25 de fevereiro de 1962).
Como então resolver o problema do camponês sem dar margem à atuação
subversiva? A Igreja Católica, mais especificamente a Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), a partir do estudo da Encíclica “Mater et Magistra”, aponta
meios de como essa pode ser utilizada no meio rural:

1) Ação Católica Rural (JAC e Movimentos de Adultos) capaz


de preservar e desenvolver a doutrina cristã entre os
urbanizadores do campo.
2) Sindicalização rural visando dar aos lavradores o direito de
fazerem suas justas reinvindicações.
3) Frentes Agrárias, a exemplo das experiências do Paraná e
Rio Grande do Sul.
4) Movimento de Educação de Base (MEB) para dar melhor
formação aos jovens e adultos, pois não basta uma simples
recomendação econômica e técnica. (EPISCOPADO
APONTA... 25 de fevereiro de 1962, p. 8)
A Igreja tinha uma ligação com o problema no campo, apoia e mostra meios para
a sua organização. Ela tem apreço pela reinvindicação do trabalhador rural quanto às
melhorias de salário e das condições de trabalho em geral. O grande problema da
questão agrária é quando os camponeses vão reivindicar mudanças através de modos
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classificados como “violentos”. A solução cristã que a Igreja propõe (que ela chama de
“reforma agrária”) não pode dar margem a atitudes como a invasão das terras dos
latifundiários, que, segundo eles, é uma ação de violência e desrespeito à ordem pública,
que é inspirada nas ações de violência que instalaram o comunismo em Cuba31.

A reforma agrária verdadeira seria aquela que modificasse a


mentalidade retrograda de alguns proprietários. E que lhes
desse senso de justiça fundamentado na caridade cristã. Por aí
chegaríamos às metas da reforma satisfatória para as duas
classes. (BARRETO, A Imprensa, 2 de junho de 1963, p. 1)

Ou seja, para os católicos, toda a reivindicação camponesa deve ser feita desde
que não modifique a estrutura agrária vigente, que é excludente, elitista e violenta, mas
altere o comportamento e o pensamento do proprietário. Quando as lutas dos
trabalhadores do campo são pautadas para o fim do latifúndio, elas perdem toda a sua
legitimidade. E as Ligas Camponesas são contra o latifúndio. O problema não são os
trabalhadores rurais, sim as Ligas, formadas pelos agentes comunistas infiltrados.
Mas o que neste trabalho classifico como um sistema excludente, elitista e
violenta, o jornal entende como ordem. As invasões de propriedades na luta pela
democratização da terra, propostas que são direcionadas ao benefício da sociedade
como um todo, são consideradas apenas agitação e desordem:

Já estamos fardos dessas incursões das ligas camponesas, pelas


propriedades alheias. O ideal que o agitador Julião prega, não
é de reforma pacífica. Nada de reinvindicações de direitos por
meios legais, como devem ser as nossas vitórias democráticas.
O que o preocupa, em todos os momentos, são os expedientes
violentos. A confusão de quem espera tirar algum proveito aos
seus planos eleitoreiros. Eis o que é o programa das ligas
camponesas no nosso Estado e nos Estados vizinhos.
(BARRETO, A Imprensa, 14 de janeiro de 1962, p. 1)

Julião, ao qual o autor se refere é Francisco Julião32. Ele é colocado como o


personagem que mais incentiva a desordem das Ligas Camponesas, pregando a

31
A Imprensa, 18 de fevereiro de 1962, p. 2.
32
Foi um advogado e parlamentar pernambucano filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). Um dos
maiores responsáveis pela organização das Ligas Camponesas naquele Estado. Era favorável à atuação
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ideologia comunista. Para o jornal, “Quer Deus para si e o diabo para os outros” (A
denúncia... 15 de abril de 1962, p. 8), pois prega a divisão das terras, mas é dono de
uma vasta propriedade rural.
Nas comemorações de primeiro de maio o autor vai descrever como Julião
desvirtua o homem do campo para seus interesses particulares, modificando todo o
sentido de uma data comemorativa. O interesse de Julião é fazer da classe camponesa
massa de manobra para suas pretensões políticas comunistas.

Que confiança nos pode merecer a massa numerosa, guiada


pela bandeira de um Julião? Certamente ele não falará nessas
comemorações de 1º de maio. Aqui ou ali estará presente, não
para mostrar as possibilidades do nosso progresso, com o
trabalho dos operários; mas para pregar as suas ideias
revolucionárias, de agitador maníaco e desorientado para que
os que dele se querem aproveitar. E para dizer que o caminho
da salvação nacional é o da escravização soviética, sob as leis
draconianas, ora em vigor na infeliz república cubana.
(MENDONÇA, A Imprensa, 29 abr 1962, p. 1)

Desqualificar a figura de Francisco Julião era um dos meios de desarticular as


Ligas Camponesas, porém, em alguns momentos, seu discurso fica muito focado na
figura do político pernambucano. Não há, a partir do que era exposto nas páginas do
jornal, como analisar o motivo de nenhum membro ligado às Ligas Camponesas
paraibanas ser exposto no mesmo tom que se falava de Julião. Na verdade, nenhuma
figura de liderança das ligas na época, como o deputado Francisco de Assis Lemos ou o
camponês João Pedro Teixeira, é criticada pelo jornal. Sobre esse último, apenas após a
sua morte se manifestaram. Quando ocorreram manifestações de organizações populares
em João Pessoa devido seu falecimento, o jornal mandou sua palavra de piedade.
Mantendo a linha de repúdio à violência, o clero paraibano falou sobre o assunto
após essas organizações populares que protestavam contra o assassinato de João Pedro
questionarem de que lado a Igreja Católica estava.

das Ligas em favor da reforma do sistema agrário brasileiro. Com o golpe de 1964 teve seu mandato
cassado se exilando no México em 1965. (Fonte: CPDOC Fundação Getúlio Vargas:
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/francisco_juliao Acesso em: 07 de jun de 2013)
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Infelizmente esqueceram um ponto essencial, em suas


acusações. Quando condenaram fortemente (e o fizeram muito
bem), o sacrifício de uma vida, pelo fato de discrepância
ideológica, deixaram de se recordar os fatos mais horripilantes,
da mesma natureza, praticados recentemente, pelo barbado de
Cuba. Lá o monstro pode matar, porque certamente para esses
seus admiradores e partidários meridionais, predomina a
mesma convenção dos antigos batavos, que infestavam as
nossas terras: para lá da linha equinocial não existe crime!... O
paredon de Fidel Castro é apenas o patíbulo da legalidade,
para perder a quantos se tenham recusado a ser “patriotas”...
(Clerofobia... 8 de abril de 1962, p. 1)

O jornal procura, de alguma forma, justificar um crime, ou desqualificar o


protesto dos grupos populares de esquerda, como trabalhadores sindicalizados,
jornalistas, estudantes, políticos e artistas, que protestavam contra o assassinato do
camponês. A linha antiviolência seguida pela imprensa católica perde sua sustentação
com uma declaração em que a morte de João Pedro Teixeira não é nada perto do que
acontece no “paredon” de Fidel Castro.
Junto com o aumento da repressão do Estado aos camponeses, o jornal reforça sua
linha editorial favorável aos grupos latifundiários. Ela procura criar uma afinidade
política dentro da classe trabalhadora do campo com o grupo agroindustrial. Criando
uma separação de ideias entre o camponês comum e as Ligas Camponesas.
J. Barreto conta em uma de suas colunas, sobre um depoimento que escutou de
um agricultor da cidade de Guarabira sobre um latifundiário da cidade.

[...] colhi as mais interessantes revelações, da franqueza bem


característica do nosso matuto. Falou ele sobre o dr. Abdon
Miranda, respeitável senhor rural do município de Guarabira.
Um cidadão bom e muito compreensivo, ante as necessidades
do pobre. Suas terras sempre estão prontas para os que desejam
trabalhar. Não há restrições para pessoa alguma. Se mais
tivesse mais serviria. Não explora a necessidade de quem quer
que seja. Cobra o arrendamento de conformidade com a
produção do ano. Se o matuto nada fez, essa situação ingrata é
levada em conta – cristãmente – podemos dizer por aquele
cidadão de alma larga e sentimentos profundos de humanidade.
(BARRETO, A Imprensa, 5 de agosto de 1962, p. 1)
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É enaltecido o espirito de caridade cristã que deve prevalecer nas relações


trabalhistas e políticas. Aquilo que o “matuto” vê como bondade, uma análise mais
afastada daquela relação entre o trabalhador-patrão, é entendida como exploração.
O discurso católico prega o clima de paz entre os indivíduos no campo. Muitos
problemas precisam ser resolvidos na relação entre trabalhador e empregado no meio
rural, mas sem dar margem aos agentes do comunismo. Devendo ser vistos de cima para
baixo. A classe dominante tem de reavaliar suas atitudes e reformular sua relação com a
classe trabalhadora. O clima de agitação que os comunistas provocam não vai levar às
verdadeiras mudanças que o campo precisa. Para o jornal, os comunistas não desejam a
reforma agrária:

O que lhes interessa é a confusão. Que o país continue nessa


insatisfação, com as classes agitadas, vivendo a convicção
amarga de interesses prejudicados. Porque só há proveito para
os planos marxistas com a luta de classes. Num clima de
tranquilidade, o comunismo está morto. Sem qualquer motivo a
que se possa pegar, para os avanços premeditados. (O que
eles... A Imprensa, 16 de junho de 1963, p. 3)

A paz agrária, neste momento (1963) já está estava em crise. A atuação das Ligas
Camponesas colocava toda a classe conservadora em estado de alerta. A elite nacional
já começava a flertar com aqueles que sempre que necessário mostravam-se dispostos a
frear o avanço dos progressistas que pautavam mudanças sociais no Brasil: os militares.
Chegado o ano de 1964 na Paraíba, uma tragédia ocorrida na cidade de Marí, na
zona da mata paraibana, colocou novamente a violência no campo em discussão. O
episódio que ficou conhecido como “chacina de Marí”, ocorreu no dia 15 de janeiro e
envolveu no conflito camponeses e jagunços quando os primeiros teriam invadido uma
propriedade dos Ribeiro Coutinho, importante grupo usineiro do Estado. Cesar
Benevides (1985; 120) narra o ocorrido, mostrando que aqueles camponeses não
haviam invadido a propriedade dos Ribeiro Coutinho, eles estavam fazendo o preparo
da terra na propriedade de um senhor, Nezinho de Paula, na estrada que liga Marí à
cidade de Guarabira, quando um grupo invadira a propriedade em um jipe agindo com
agressão contra os camponeses. Entre as pessoas envolvidas na invasão estavam o chefe
de uma companhia agroindustrial de Sapé e membros da polícia militar do Estado.
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Do conflito resultou uma série de mortes que abalou o Estado, em sua maioria
homens ligados aos grandes proprietários rurais. Seguindo a linha dos principais jornais,
o A Imprensa, condenou o ocorrido, jogando a culpa da tragédia para o camponês, além
de aproveitar o incidente para renovar o discurso anticomunista no meio rural.

Não sei se estão olhando para essa vanguarda vermelha que se


levanta organizada pelos campos. Trata-se dessa nova forma de
organização comunista segundo o plano geral que deu bons
resultados na China. O plano de aproveitar toda a gente
disposta a um movimento de renovação, para sublevar as
massas, em direitura ao ponto final, onde seja possível os sobas
da russificação assumirem as rédeas do governo. [...]
Reparemos bem na organização que se forma, aqui ou acolá. Os
comunistas de primeira linha – de real confiança para o
partido, ou de gabarito, como se diz – não aparecem. Ficam de
fora, na direção geral, tangendo as massas para ganharem
terreno.
Não vamos pensar que Julião ou outros agitadores desse estofo
tenham prestígio para o partido comunista. São apenas
elementos de choque que prestam bons serviços para a causa da
russificação, mas sem nenhum compromisso dos mandões
soviéticos para serem aproveitados, depois de preparado o
banquete. É o contrário do que podemos dizer. Serão os
primeiros sacrificados. Irão para a depuração, na certa.
Consideramos esse trabalho das ligas a serem formadas no
interior. Nem um elemento do partido comunista propriamente
dito se acha filiado ao quadro dos novos componentes. Fazem
tudo – esses inspiradores vermelhos – mas nada de figurarem
no fim. Isto quer dizer que os nossos pobres rurícolas são
entregues à sua própria sorte, para todas as eventualidades da
causa que abraçaram. Serão apenas tropas de ocupação, mas o
resultado do fim ficará pra os comandantes colocados na
retaguarda bem distante do fogo. [...] O nosso Exército –
estamos certos – está bem a par deste expediente de
comunização na América Latina. O grande movimento dirigido
pela sagacidade da rapôsa mestra do Kremlin. (BARRETO, A
Imprensa, 26 de janeiro de 1964)

Diante do ocorrido em Marí, dois pontos importantes sobre o texto do autor é


passível de debate. O primeiro é como é colocada a ideia de manipulação dos
camponeses por parte dos supostos “agentes comunistas” através das Ligas
Camponesas. O colunista não tem noção (ou finge não ter) da consciência de classe que
o trabalhador rural tomou nos últimos anos. A classe camponesa mais uma vez é vista
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como massa de manobra de alguma força superior, a dos agentes comunistas, que quer
desvirtuar sua luta. E o segundo ponto vem para reforçar um fato que já era pauta no
periódico católico: a necessidade da presença dos militares para resolver a crise no país.
O ocorrido em Marí repercutiu por meses nos meios de comunicação do Estado.
No final do mês de março o governador Pedro Gondim reforçou o aparato policial na
Zona da Mata, área de grande conflito entre camponeses e jagunços, no intuito de
intimidar a atuação das Ligas. J. Barreto, que se tornou o porta-voz oficial do
anticomunismo do A Imprensa, vai novamente defender a estrutura agrária em favor dos
latifundiários, acusando de comunistas aqueles que subvertem essa ordem:

Diante da gravidade da situação, o governo do Estado tinha de


fazer que lhe ditava a sua consciencia de principal responsável
pela ordem pública. Urgia o cumprimento de um dever sagrado,
depois de uma extremada tolerância que infelizmente resultou
em prejuízo do povo. Das partes letigantes.
De outra maneira seria a caminhada apressada para a
anarquia – clima apetecido pelos agentes comunizantes, que
não estão reparando nos meios a serem usados, para chegarem
ao fim de seus planos. Quanto mais confusão, tanto melhor para
eles. A Paraíba – no plano geral, de sovietização nacional –
seria a cabeça da ponte, para a arrancada final por todo o país.
(BARRETO, A Imprensa, 22 de março de 1964).

Com o golpe civil-militar de março de 1964 os membros da Igreja foram


comemorar a tão aguardada intervenção militar que colocaria ordem no Brasil. Nos
arquivos da Cúria Metropolitana não constam exemplares do jornal católico pós-golpe,
porém é sabido que na Paraíba houve as Marcha da Família com Deus pela Liberdade
que agregavam todos aqueles que temiam pelos rumos que o país tomaria com Jango e
os comunistas. E restou aos camponeses a desarticulação política e a submissão às
práticas oligárquicas oriundas da república velha que existem até hoje.

3. Considerações finais

A cultura política anticomunista serviu para criar uma afinidade da sociedade civil
com as forças armadas para que ocorresse a retirada do presidente João Goulart do
poder. Após o golpe civil-militar de 1964 os comunistas foram perseguidos ao longo de
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todo o país sob as ordens do novo Estado de Segurança Nacional. O exercito invadiu as
organizações esquerdistas, prendeu seus membros e revirou seus arquivos. O poder
legislativo passou a cassar todos aqueles (políticos e funcionários públicos) que de
alguma forma estavam ligados a qualquer organização de esquerda.
A Igreja Católica e a população foram as ruas festejar a tomada de poder dos
militares e a restituição da ordem social do país, nas chamas Marchas da Família com
Deus pela Liberdade. Em cada pequena cidade da Paraíba houve uma movimentação
como essa, em agradecimento às forças armadas por afastar o perigo comunista do
Brasil. A fé e os valores morais, como a família, estariam salvos do comunismo,
classificado como ateu e intolerante pela direita conservadora.
Além de afastar o perigo de uma suposta “ditadura comunista”, os militares
fortaleceram ainda mais o poder das elites locais, desarticulou as organizações sindicais
e subjugou ainda mais os camponeses às velhas práticas da política oligárquica do início
do século XX. Os anticomunistas conseguiram estancar a luta por uma sociedade mais
justa e ajudaram a instalar o Estado de exceção mais violento da história do país.
4. Referências
4.1 Hemerográficas
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GT2

GILBERTO FREYRE E A COLABORAÇÃO INTELECTUAL COM O


REGIME CIVIL MILITAR: DEMOCRACIA E AUTORITARISMO

Jônathas Cruz de Paula


Mestrando em História – UFPE
jonathas.historia@gmail.com

I - 1964, o passado que não passou.


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O ano de 2014 marca os 50 anos do golpe civil e militar que derrubou o presidente
João Goulart e abriu caminho para a instauração de uma ditadura. Esse marco tem
provocado uma onda de revisitação a esse período da nossa história. Por todo o país são
realizados seminários, eventos e conferências sobre o golpe de 64 e seus
desdobramentos. As editoras, aproveitando-se desse momento, vêm abastecendo o
mercado editorial com inúmeras publicações e reedições de livros sobre o período da
ditadura33.
Nas principais emissoras de televisão, quase que diariamente são exibidas
reportagens especiais sobre o golpe de 1964, complementadas com testemunhos de
pessoas que vivenciaram aqueles acontecimentos. Nos jornais e revistas de grande
circulação, os editoriais e matérias especiais fazem da ditadura seu principal tema. Em
suas páginas, através de textos e imagens, 1964 vai sendo significado, explicado e
atualizado para o leitor. Há, nessas reportagens, verdadeiras batalhas de significação. O
sentido desse passado é disputado a cada matéria, a cada imagem, a cada palavra. Essas
batalhas de significação devem ser lidas segundo a inteligibilidade das lutas e interesses
políticos do presente.
Dessa maneira, os temas relacionados ao golpe e à ditadura civil militar têm
ocupado a centralidade do debate político da sociedade. O silêncio que por muito tempo
predominou sobre os anos da ditadura pouco a pouco vem sendo superado. Boa parte da
sociedade brasileira tem manifestado o desejo de passar a limpo esse capítulo da nossa
história. Parece haver um entendimento entre alguns segmentos sociais de que não
poderemos aprofundar e aperfeiçoar a nossa democracia enquanto as questões relativas
à ditadura permanecerem em aberto. Dentre essas questões, a que mais tem causado
polêmicas e discussões é aquela referente à participação civil no golpe e na ditadura
instaurada em 1964.
Em um livro publicado esse ano, os historiadores Jorge Ferreira e Angela de
Castro Gomes enfatizam, logo na introdução, o apoio e a participação da população das
grandes cidades e das lideranças civis no golpe que derrubou Jango. Através da análise
das revistas O Cruzeiro e Manchete, os autores demostram a centralidade e importância

33
No dia o7 de março de 2014, a sessão de literatura e mercado editorial do blog do Estadão publicou
uma lista com diversos livros lançados em 2014 sobre o movimento de 1964 e a ditadura civil militar.
Conf.: http://blogs.estadao.com.br/babel/o-golpe-de-1964-em-livros/ (acessado em 25/03/2014, às
23h35min).
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dadas pelas revistas, no calor da hora, à dimensão civil do movimento golpista,


chamado pelas revistas de “Revolução” em “defesa da ordem, da liberdade, da
Constituição, da democracia” (2014, p.14). A ênfase dada pelo livro à participação da
sociedade civil no golpe de 64 é, como os próprios autores declaram, uma reação ao
silêncio que essa questão estava envolvida, sobretudo a partir da década de 80, durante o
período de redemocratização.
O processo de redemocratização levou a sociedade a empreender construções de
memória que dessem conta da nova situação política do país. Afinal, o Brasil estava
saindo de um regime ditatorial e abraçando a democracia, era preciso ressignificar o
passado, reavaliar opções políticas e se enquadrar ao novo momento. Os diversos
grupos políticos que se confrontavam negociaram com o silêncio e o esquecimento e
construíram memórias que atendesse aos interesses e necessidades das novas
circunstâncias (REIS FILHO, 2004, p. 49).
Amplos setores da sociedade que apoiaram e legitimaram a ditadura, buscaram
nas construções de memória se eximir da responsabilidade, culpando unicamente os
militares pelos anos de arbítrio. Nessa memória, a colaboração civil do regime militar é
praticamente apagada. Há um silêncio sobre as Marchas da Família com Deus pela
Liberdade, sobre a colaboração de empresários34 e grupos de comunicação com os
órgãos de repressão.
Nessas construções de memória a ditadura é apresentada como algo alheio à
sociedade, como um fenômeno inventado pelos militares35. Nesse discurso, os militares
impuseram e sustentaram a ditadura apenas pelo uso da força. A sociedade nada mais
seria que uma vítima dos “gorilas” (REIS FILHO, 2000, p. 71).
Cinquenta anos depois daquele 1° de abril de 1964, a sociedade brasileira ainda
tem dificuldade de encarar esse aspecto de sua história. Esse artigo se insere nesse
debate. Analisaremos a colaboração intelectual do sociólogo pernambucano Gilberto
Freyre com o regime que se instaurou com a queda de Jango, atentando para as
representações e racionalidades articuladas por ele para justificar o golpe. Buscaremos
34
O documentário “Cidadão Boilesen”, do cineasta Chaim Litewski, mostra como o empresário Henning
Boilesen, presidente do grupo Ultra, colaborava ativamente com os órgãos de repressão, chegando a
participar de sessões de tortura.
35
É significativo o fato de que por muito tempo utilizou-se a expressão “golpe militar” e “ditadura
militar” para designar o período que vai de 1964 a 1985, na intenção de distanciar a sociedade civil
daquele regime.
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entender a construção do conceito de democracia em Gilberto Freyre e a forma como


essa construção foi apropriada pelos militares para dar legitimidade ao golpe político
que empreenderam.

II – Um discurso de Gilberto Freyre

O dia nove de abril de 1964 foi um dia incomum na cidade do Recife. A exemplo
do que já havia acontecido em outras capitais, foi realizada a Marcha Da Família Com
Deus Pela Liberdade em apoio ao golpe que destituiu o então presidente João Goulart.
Em plena quinta feira, o comércio, as indústrias, bancos e escolas fecharam as portas no
período da tarde para que as pessoas pudessem comparecer à Marcha. As empresas de
ônibus colocaram-se à disposição para transportar gratuitamente aqueles interessados
em participar do evento organizado pela Cruzada Democrática Feminina.
Conforme noticiou o jornal Diario de Pernambuco, cerca de 200 mil pessoas
compareceram à Marcha. Caminhavam lado a lado diversos segmentos sociais e
representantes das mais variadas categorias profissionais. Os participantes portavam
faixas e cartazes com agradecimentos às Forças Armadas por ter “livrado o país do
comunismo”36.
A Marcha percorreu diversas ruas da capital pernambucana, enquanto as pessoas
entoavam coros religiosos e cantavam o Hino Nacional, segundo registrou em suas
memórias o então Comandante do IV Exército General Joaquim Justino Alves Bastos
(BASTOS, 1965, p.371). Ao final da Marcha, houve uma concentração na Praça da
Independência, onde discursaram diversas personalidades militares e civis, entre elas
Amélia Molina Bastos, filha do General Justino Bastos e presidente da Campanha da
Mulher pela Democracia (Camde) e o sociólogo Gilberto Freyre.
A edição do dia 10 de abril do Diario de Pernambuco deu ênfase especial à
Marcha Da Família Com Deus Pela Liberdade, publicando em sua capa uma fotografia
na qual se vê uma multidão ocupando a Avenida Guararapes, seguida de uma legenda
na qual se exalta a grandeza da mobilização e “a firmeza das suas convicções

36
Diario de Pernambuco 10/04/1964
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democráticas e cristãs e integral repúdio ao comunismo”. A Marcha é apresentada


como a sendo “a maior concentração já realizada em praça pública, no Recife”37.

(Capa do Diario de Pernambuco, 10/04/1964 - Fundação Joaquim Nabuco/CEHIBRA)

Acima da fotografia, em destaque, pode-se ler a manchete: “Ato Institucional


assinado ontem a fim de consolidar a Revolução”. A montagem da capa do Diario de
Pernambuco é significativa. Nos jornais, a organização das imagens e dos textos não é
gratuita, ela carrega intencionalidades que evidenciam as opções editoriais do jornal
(DE LUCA, 2011, p. 140). Na capa do Diario, através da justaposição entre fotografia e
título, é feita uma associação entre a decretação do Ato Institucional e a Marcha da
Família. Dessa maneira, o Ato Institucional que tirou prerrogativas do Congresso e
instituiu a ditadura (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 385) aparece, nas páginas do Diario
de Pernambuco, legitimado pela “massa humana” que compareceu à Marcha.
Ainda no dia 10, foi publicado a íntegra do discurso proferido por Gilberto Freyre
na concentração da Marcha na Praça da Independência. O discurso foi acompanhado do
título “Brasil não admite noite terrível em que só brilham estrelas sinistramente

37
Diario de Pernambuco 10/04/1964
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vermelhas”. Completam a página fotografias dos oradores, assim como mais imagens da
multidão segurando faixas com declarações anticomunistas.
Gilberto Freyre inicia o discurso exaltando a “aliança profunda” das Forças
Cívicas e das Forças Armadas. O sociólogo pernambucano comemora a intervenção dos
militares e a justifica como uma obra de “salvação pública”, pois para ele o Brasil
estava ameaçado por “agentes comunistas a serviço de estrangeiros” que pretendiam
“corromper e desarticular a democracia brasileira” (FREYRE, 1964, p. 9).
Essa representação do golpe civil militar como uma intervenção à favor da ordem
foi amplamente difundida ao longo do regime. Nessa visão, a ditadura teria surgido para
salvar a democracia e os valores tradicionais de família, religião e direito (REIS FILHO,
2014, p. 48). Todos esses valores estariam ameaçados pelas ações de “subversivos” que
planejavam fazer uma revolução comunista no país. Antes do golpe, esses signos de
insegurança e medo foram articulados por diversos segmentos sociais que, por meio de
parte da imprensa, procuravam representar a revolução comunista como uma realidade
palpável e iminente (PORFÍRIO, 2009).
Assim, diante de uma multidão concentrada na Praça da Independência, Gilberto
Freyre atualiza o perigo e os riscos que a democracia brasileira corria antes da
intervenção das Forças Armadas. Essas seriam, conforme escreveu em um artigo no dia
5 de abril, uma força “suprapartidária” que desempenharia, na história da República
brasileira, um papel de mediação e apaziguamento de conflitos, intervindo sempre nos
momentos de crise. As Forças Armadas seria, portanto, a única capaz de agir “acima das
paixões do momento” e dos interesses sectários de grupos. Para Gilberto Freyre, ela
seria a força mais comprometida com os interesses do país38.
Voltando ao discurso, em um determinado momento, Gilberto Freyre faz
referência à relação da Praça da Independência com a defesa da liberdade e dos Direitos
Humanos. Faz menção à memória de Demócrito de Souza Filho, morto pelos agentes do
Estado Novo na mesma Praça, durante um comício a favor da redemocratização, em
1945. Desse modo, Freyre estabelece, em sua fala, uma relação de continuidade entre a
luta pela democracia em 1945 e o movimento de 1964. Ambos os movimentos estariam
à serviço da liberdade, da democracia e da dignidade humana.

38
Gilberto Freyre. Forças Armadas: uma força suprapartidária na vida pública brasileira. Diario de
Pernambuco, 05 de Abril de 1964.
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Uma preocupação recorrente no discurso de Freyre é a questão da identidade


nacional. Para o sociólogo de Apipucos, o avanço do comunismo colocaria em risco os
valores e tradições tipicamente brasileiras. Combater o comunismo seria, portanto, uma
questão de sobrevivência da nação. Gilberto Freyre nega aos derrotados pelo golpe de
1964 a qualidade de brasileiros: chama-os de “sub-brasileiros” e “antibrasileiros” que
estariam a serviço de “ideologias tirânicas, tão antibrasileiras quanto desumanas”.
Dessa maneira, o movimento de 1964 é apresentado como o salvador da identidade e
independência nacional (REZENDE, 200, p. 318).
Gilberto Freyre finaliza o discurso exaltando o caráter agregador do movimento
de 64. Ele reuniria, sob a mesma bandeira, homens e mulheres, jovens e velhos,
católicos e evangélicos, espíritas e umbandistas, etc. O movimento teria unido o Brasil e
essa união seria um exemplo ao mundo. Exemplo de união entre as forças militares e
civis, com ênfase especial à mulher brasileira. O “espírito, a graça e a energia da
mulher brasileira” seria a terceira força que se uniria à força militar e civil para salvar o
Brasil do comunismo e escrever um capítulo novo de sua história. Na Praça da
Independência, diante de uma multidão de pessoas, Gilberto Freyre projeta para o
futuro: “Os brasileiros de amanhã dirão dos de hoje: eles salvaram para nós o
Brasil...” (FREYRE, 1964, p. 11).

III – Democracia e Autoritarismo

A ditadura não se impôs apenas pela força. Desde os primeiros momentos, os


golpistas procuraram revestir de legitimidade o golpe de Estado que empreenderam
(REIS FILHO, 2014, p. 52). Nesse sentido, consideramos importantíssimo o estudo das
representações e racionalidades criados pelos golpistas no sentido de tornar socialmente
aceita a ideia de que a ditadura fora implantada para salvar a democracia. Essas
representações constroem uma realidade social, produzem sentidos, criam ordenamentos
e orientam formas de ser e estar no mundo (CHARTIER, 2002, p. 72). Analisar os
debates e as apropriações em torno do conceito de democracia nos momentos que se
seguiram ao golpe pode nos ajudar a compreender melhor essas representações.
Quando estudamos conceitos, corremos o risco de trata-los como algo dado,
naturalizando-os. Reinhart Koselleck alerta para a importância de se recuperar a
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historicidade dos conceitos e o papel das disputas de significação e as batalhas


semânticas. Além disso, Koselleck chama atenção para a necessidade de se
compreender os conceitos pelos usos que se faziam e os significados que lhes atribuíam
na época estudada (KOSELLECK, 2006, p. 103).
Em um artigo publicado em um seminário sobre os 40 anos do golpe, o
historiador Marcelo Ridenti afirma que não havia por parte das forças políticas que se
confrontaram antes e depois do golpe de 64, um compromisso com a democracia
(RIDENTI, 2004, p. 63). Os grupos políticos teriam apenas uma relação instrumental
com os valores e instituições democráticas, tendo o ideal de Revolução muito mais
legitimidade. Atribuir à democracia um valor absoluto nos anos 60 seria, portanto, cair
em um anacronismo. No entanto, a análise da documentação da época permite
questionarmos essa interpretação.
O golpe civil militar e a ditadura que se seguiu foram implantados sob a bandeira
da democracia. Nas representações criadas em torno do movimento de 1964, a ideia de
uma intervenção a favor da ordem e dos valores democráticos era a mais difundida. Foi
no ideal de democracia que a ditadura buscou legitimidade. Em seu discurso de posse
no Congresso Nacional, o Gal. Castelo Branco anuncia a “vocação de liberdade
democrática”39 do seu governo. Dessa forma, mesmo com a violência e os atos de
exceção como prática de governo, o regime se autonomeou democrático.
Essa construção do regime civil militar como uma democracia vai encontrar em
Gilberto Freyre um dos seus maiores teóricos e defensores. Em um artigo publicado no
Diario de Pernambuco quase um mês após o golpe, Freyre escreve que o ano de 1964
ficará marcando no calendário cívico do Brasil como um dos momentos decisivos no
desenvolvimento nacional. Esse ano marcaria a caminhada do país rumo a um sistema
político que ele nomeia como “brasileiramente democrático”40.
O regime recém instaurado deveria usar da firmeza para garantir a realização
dessa “vocação democrática”. Não seria tempo de “normalização” e “tranquilização",
mas de empenho para que haja uma renovação nacional. O grande desafio do
Movimento de 64, para o sociólogo pernambucano, era abandonar um tipo de

39
DISCURSO DE POSSE DO GAL. HUMBERTO DE ALENCAR CASTELO BRANCO NA
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA EM 15 DE ABRIL DE 1964. Disponível em:
http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/upload/documentos/50.pdf.
40
Gilbero Freyre. Um ano histórico para o Brasil. Diário de Pernambuco, 26 de Abril de 1964.
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democracia superado e construir uma nova democracia, uma democracia à brasileira.


Existe, ao longo de todo o texto, uma ênfase no adjetivo brasileira antes da palavra
democracia.
Um artigo de Gilberto Freyre publicado em uma revista nova-iorquina ajuda-nos a
compreender a construção desse conceito de democracia à brasileira. Embora escrito
em 1940, quando o Brasil vivia sob a ditadura do Estado Novo, esse artigo carrega os
elementos fundamentais da ideia do tipo de democracia que correspondesse às
necessidades brasileiras. Essa discussão foi atualizada por Freyre em seus escritos sobre
a ditadura civil militar, anos mais tarde.
Nesse artigo, Freyre analisa a situação da democracia na América, sob o ponto de
vista da integração do continente americano. Ele se coloca contra a ideia de
uniformização dos sistemas políticos dos países americanos, segundo o modelo da
democracia ortodoxa dos EUA. Para o sociólogo de Apipucos, propor uma única forma
de governo a todo o continente seria tão irracional quanto prescrever as mesmas
vestimentas ou o mesmo padrão alimentar para grupos que vivem em diferentes climas
(FREYRE, 2003, p. 46).
O sistema político de um país deveria ser baseado nas peculiaridades de suas
tradições, de sua formação histórica e de sua composição social e étnica. Segundo
Gilberto Freyre, a formação cultural e histórica brasileira não apontava para a adoção de
um modelo de democracia formal, inspirada no exemplo norte-americano.
Historicamente, o Brasil teria conseguido desenvolver-se em uma democracia social,
fundamentada na igualdade de oportunidades e relativa justiça social, sem
necessariamente adotar um modelo de democracia política. Em sua construção, o
sociólogo pernambucano aponta o exemplo do Império brasileiro, que, segundo ele,
apesar de não ser uma democracia formal, seria um exemplo de democracia social,
sendo considerada por alguns cronistas como uma democracia coroada.
Mesmo quando analisa a ditadura do Estado Novo, Gilberto Freyre não nega o seu
caráter brasileiramente democrático. Ele escreve que a Constituição de 1937 é um
exemplo bem acabado de adequação do modelo político às particularidades nacionais e
o fato de o Congresso ter sido abolido não contradiz as tradições democráticas do país,
pois a ideia de representatividade não teria raízes na nossa formação histórica.
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A democracia brasileira seria caracterizada por uma política de conciliação


nacional, de respeito à sua diversidade regional e às suas tradições. Ela se expressaria
em um governo central forte, capaz de conduzir com firmeza o desenvolvimento do
país, acomodando os interesses regionais. Ela seria marcada por um equilíbrio de
antagonismos, uma harmonização entre autoridade e liberdade (Idem, p. 52). Essa
noção de equilíbrio de antagonismo é basilar na interpretação de Gilberto Freyre sobre
o Brasil, transpassando toda a sua obra (ARAÚJO, 2005).
Em 1964, Gilberto Freyre atualiza o conceito de democracia à brasileira,
utilizando-o para representar o governo civil militar. Dentro desse conceito, os atos de
exceção do governo não o caracterizaria como uma ditadura, mas sim como uma
democracia genuinamente brasileira, baseada na autoridade e firmeza do governo
central capaz de conduzir o país rumo a integração e ao equilíbrio.
Em sua busca por legitimidade, a ditadura incorporou esses elementos da
construção de democracia de Gilberto Freyre. A democracia pregada pelo regime era
fundamentada no restabelecimento da autoridade e do equilíbrio nacional que estaria
ameaçados pelo avanço do comunismo. Nessa democracia, os valores da segurança
nacional, da ordem e do saneamento moral sobrepunham-se aos direitos políticos
individuais (REZENDE, 2001, p. 36). Os atos de exceção se justificariam dentro dessa
lógica.

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O PAPEL DO DOPS NA REPRESSÃO AOS ALEMÃES EM PERNAMBUCO


(1938-1945).
Juliana Ferreira Campos Leite
Graduada em licenciatura em História - UFPE
jullie.campos@gmail.com
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Resumo.

Considerado como momento fundamental para consolidação do Estado nacional,


o período denominado de Estado Novo teve como principal característica o
fortalecimento do poder executivo, objetivando uma centralização política que
possibilitaria assim uma intervenção efetiva por parte do Estado em questões sócio-
político-econômicas. Esse controle do governo se mostrava ainda presente na forma de
repressão a qualquer tipo de mobilização fora de seu controle. Partindo dessa
consideração, o presente trabalho busca discutir o papel da polícia política (DOPS) na
repressão aos alemães – considerados indivíduos potencialmente perigosos – no estado
de Pernambuco durante o Estado Novo. Recorremos, para esta análise, a um aparato
teórico referente ao “estado de exceção” e à “guerra civil legal”, proposto por Giorgio
Agamben, além da análise da documentação produzida pela DOPS nesse período:
prontuários sobre as instituições alemãs (Clube Alemão, Escola Beneficente Alemã),
relatórios de vigilância e documentos sobre o campo de concentração localizado em
Igarassu.

Palavras-chave: Estado-Novo, repressão, alemães.

Introdução

O presente trabalho busca realizar uma análise sobre a repressão exercida pelo
governo brasileiro aos alemães e teuto-brasileiros41 – sejam eles residentes ou
transeuntes no Estado de Pernambuco – durante o período comumente denominado pela
historiografia de Estado Novo.
Para a realização de tal análise, buscou-se compreender a lógica do Estado Novo
enquanto estado de exceção. O cerne da discussão situa-se em torno do que vem a ser e
como funciona o estado de exceção e como tal fato possibilitou ao Estado Novo um
maior controle sobre diversas esferas sociais, tendo a polícia política (DOPS) atuando
como engrenagem que visava um controle cada vez mais efetivo sobre o indivíduo.
A Delegacia de Ordem Política e Social agia como o principal órgão de
repressão utilizado pelo governo. Repressão tanto aos alemães quanto a qualquer
indivíduo que estivesse fora do padrão político-social estabelecido, criado como ideal
por esse Estado. O poder central entendia esses grupos como ameaça. Dessa forma, a
resposta estabelecida naquele momento pelo governo foi a repressão. A existência do
medo – muitas vezes gerado em situações similares – é algo a ser considerado e
41
Que ou quem é de origem alemã e brasileira. Disponível em:
<http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=teuto-brasileiro>. Acesso em 13/02/2014.
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refletido. Não o medo de um mais fraco pelo mais forte, mas o medo daquilo que não
se poderia controlar ou que não se enquadrava – por algum motivo – ao sistema político
vigente. O estado de exceção vigente vai possibilitar à DOPS executar uma permanente
vigilância aos alemães a prisões em casas de detenção e campos de concentração.
Com a instauração do Estado Novo em 1937, o levante comunista de 1935, o
levante integralista em 1938 e o desdobramento da Segunda Guerra Mundial reforçaram
a tendência à criminalização de toda e qualquer dissidência política em relação ao
governo. Juntaram-se assim aos comunistas, como alvo das ações repressivas, os
integralistas e os "estrangeiros nocivos", considerados difusores de "ideologias
exóticas" (PANDOLFI, 1984). E com o aparato jurídico possibilitado pelo estado de
exceção, o Estado consegue promover a extensão em “âmbito civil dos poderes que são
da esfera da autoridade militar em tempo de guerra, e, de outro, uma suspensão da
constituição ou das normas constitucionais que protegem as liberdades individuais”.
(AGAMBEN, 2004, p. 17). Realizava-se assim uma repressão de maneira legítima,
dentro do estabelecimento legal.
É importante salientar que a vigilância exercida pela DOPS referente aos
alemães precede o período da entrada do Brasil no conflito da Segunda Guerra Mundial
contra os países do Eixo. Documentos produzidos por informantes da DOPS mostram
que a polícia política já trabalhava em cima do armazenamento de informações sobre a
comunidade alemã em Pernambuco antes desse período, principalmente em Paulista,
devido à quantidade de estrangeiros – muitos deles alemães – na Companhia de Tecidos
Paulista, fábrica existente em Pernambuco (Paulista) e Paraíba (Rio Tinto), de
propriedade da família de origem sueca, os Lundgren.

DOPS como dispositivo de repressão

Criada em 23 de dezembro de 1935, pela Lei nº 71, a Delegacia de Ordem


Política Social tinha por função: proceder a inquéritos sobre crimes de ordem política e
social; exercer medidas de polícia preventiva e controlar serviços cujos fins estivessem
em conexão com a ordem política e social (SILVA, 1996). No início da década de 1940,
a delegacia política de Pernambuco estava sob a direção do então delegado Fábio
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Correia42 e era diretamente subordinada à Secretaria de Segurança Pública de


Pernambuco, que tinha à frente Etelvino Lins43 como secretário. Dentro do período de
1938 a 1945, foi responsável pela repressão às atividades consideradas subversivas pelo
Estado. Tratava-se de um órgão de controle e vigilância social visando o combate e
prevenção de crimes contra a ordem estabelecida. Logo, competia ao delegado da
DOPS, dentre outras questões:

V- Promover, durante o estado de emergência, as medidas consignadas no


at. 168 da constituição Federal a saber:
a) Detenção em edifício ou local não destinado aos réus de crime comum;
desterro por outros pontos do território nacional, ou residência forçada em
determinadas localidades do mesmo território, com privação de liberdade de
ir e vir;
b) Censura de correspondências e todas as suas comunicações orais e escritas;
c) Suspensão da liberdade de reunião;
d) Busca e apreensão em domicílio. (SILVA, 1996, p. 67).

A legislação criava mecanismos que transformavam a repressão aos alemães em


política pública, legalizando a ação repressora por parte do Estado. Outras questões
referentes aos tópicos acima, como desterro e residência forçada, a suspensão do direito
de ir e vir, censura e suspensão do direito de reunião, foram utilizadas pela polícia
política em Pernambuco para reprimir – dentre outros grupos – a comunidade alemã
existente na região. Relatórios de vigilância, apreensões de objetos pessoais, prisões de
indivíduos em casas de detenção e no chamado “campo de concentração” (PERAZZO,
1999) e censura foram realizados em nome da segurança nacional.
É importante salientar que a comunidade alemã era colocada como empecilho
para a construção da “brasilidade” pretendida no projeto de nacionalização de Vargas.
Tratava-se de uma comunidade fechada com seus hábitos e costumes. Não interagia
com a sociedade local. Por outro lado, existia a questão do “perigo alemão”. Essa ideia
de “perigo alemão” não foi criada no governo Vargas, mas de fato ela foi bastante

42
Fábio Correia de Oliveira Andrade foi designado pelo interventor no início da década de 1940 para
ocupar o cargo máximo da Dops no estado. LEWIS, Susan. Indesejáveis e Perigosos na Arena Política:
Pernambuco, o antissemitismo e a questão alemã durante o Estado Novo (1937-1945). Tese (Doutorado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
UFPE. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 165.
43
Com a implantação da ditadura Varguista em novembro de 1937, Etelvino Lins foi convidado a ocupar
a Secretaria do Governo de Pernambuco. Etelvino Lins assumiu de imediato o cargo, abandonando suas
funções na 1ª Delegacia Auxiliar. Permaneceu como secretário do Governo até dezembro de 1937,
quando foi nomeado secretário de Segurança Pública do estado. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/etelvino_lins>. Acesso em: 20/01/2014.
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explorada por ele. O “perigo alemão” estava relacionado ao medo de que a Alemanha
invadisse países latino-americanos e os anexassem, em caso da mesma sair vencedora
da guerra. Utilizaria para tal empreitada o apoio das colônias germânicas existentes
nesses países (PERAZZO, 1999). Logo, foi utilizado um discurso já constituído para
criar uma trama histórica que legitimasse as ações do governo. Durante o período da
Segunda Guerra, no imaginário social de uma maneira geral, os alemães eram
diretamente identificados como nazistas. Pouco era o discernimento sobre a colaboração
com o Terceiro Reich e o fato de simplesmente a pessoa ser natural da Alemanha. Para
a DOPS, os alemães eram taxados de nazistas e neles reverberavam as consequência
desse fato.
A DOPS atuava como a “força de repressão do Estado”, que tinha como
principal finalidade o controle do indivíduo considerado “potencialmente perigoso”
(CARNEIRO, 1998, p. 41). E os alemães eram colocados nessa posição. Assim, a
polícia política serviu como:
(...) instrumento viabilizador de um projeto político que é colocado à
sociedade como solução das crises engendradas nas estruturas político-
sociais. A justificativa para uso das medidas autoritárias tem seu alicerce na
“Desordem Social”, que passa a ser combatida com austeridade pelo governo
(SILVA, 1996, p. 67).

Esse discurso de que a desordem social deve ser combatida pelo governo em
defesa da segurança nacional será repetida como um mantra durante todo o período.
Essa é a maior justificativa do governo para toda questão da repressão; o mesmo
discurso que se repetirá na ditadura militar alguns anos depois.
Em 1937, houve o fechamento dos partidos políticos (ou qualquer atividade de
cunho político), incluindo o Partido Nazista, que possuía sede em algumas regiões do
país e que depois do decreto passou a funcionar clandestinamente (CAPELATO, 2012,
p. 132). Essa atitude foi entendida pelas autoridades alemãs como uma atitude ofensiva
por parte do governo brasileiro, criando uma situação incômoda entre os dois governos
(DIETRICH, 2005, p. 179). Em 1938, Vargas estabelece uma série de decretos,
chamados de “leis nacionalizadoras”, que afirmava ter como objetivo pressionar a
nacionalização dos estrangeiros. Os decretos leis não pararam, restringindo cada vez
mais as atividades dos imigrantes no país, como a organização da Seção Segurança
Nacional do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores, que tinha como
competência:
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(...) centralizar as questões relativas à Segurança Nacional, propor medidas


de propagandas e orientação dos cidadãos na direção do nacionalismo,
fiscalizar a atividade dos estrangeiros, (...) evitar atitudes agressivas e
ofensivas aos ‘súditos do Eixo’, vigiar autoridades consulares desses países,
fechar as entidades estrangeiras do Eixo, (...) prender aqueles que
demonstrassem simpatia para com os países e as causas do Eixo.
(PERAZZO, 1999, p. 72, grifo nosso).

A repressão tornou-se ainda mais efetiva após a entrada do Brasil na Segunda


Grande Guerra Mundial, em 1942, ao lado das forças Aliadas contra o Eixo. No início
de 1942 – 30 de janeiro – ocorreu o fechamento da sede do Clube Alemão de
Pernambuco e das demais instituições teutas do país44. É nesse período também que se
intensificam as prisões dos considerados “suspeitos” em casas de detenção, presídios e
no “campo de concentração”. Logo, os decretos-leis que a priori deveriam servir para
uma inclusão social, passam a ser uma exclusão da comunidade germânica na sociedade
brasileira. Dessa forma, os alemães passam a ser excluídos socialmente para serem
incluídos nos cálculos de governabilidade. De acordo com Agamben:
A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído
da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo
que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora da relação com a
norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da
suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta.
O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a
situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é
verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capare) e não
simplesmente excluída.” (2007, p. 25)

Nesse sentindo, a exclusão aos alemães ocorre de maneira a incluí-los à norma


estabelecida. Dessa forma, o governo brasileiro passou a conseguir estabelecer uma
ampla e bem articulada rede de controle sócio-político sobre esses alemães, além de
empreender um grande esforço na tentativa de exercer um controle mais efetivo na
regulamentação sobre a vida desse grupo da população nacional.

DOPS e o campo de Chã de Estevão.

A cidade de Paulista era a região de Pernambuco que tinha o maior número de


alemães devido à existência da Companhia de Tecidos Paulista, de propriedade da

44
Ofício do presidente do Clube Alemão e Beneficência de Pernambuco aos sócios do clube por ordem
da DOPS. Pernambuco, 30 de janeiro de 1942. Prontuário funcional. Fundo SSP nº: 29094 – DOPS.
Apeje.
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família sueca Lundgren. A fábrica dos Lundgren em Pernambuco empregava


trabalhadores estrangeiros, mas a maioria dos trabalhadores que atuavam em funções
técnicas em seções especializadas da companhia era alemã. Dessa forma, era realizada
pela polícia política uma associação entre a relação da família Lundgren e os alemães.
Fato fundamental para a existência de uma vigilância por parte da DOPS, antes mesmo
do início da guerra (LEWIS, 2005, p. 170). Sobre a relação social dos Lundgrens em
Paulista, Lewis afirma:
[...] que se estabelece, no caso da fábrica e da vila operária de Paulista,
envolvendo sob um mesmo controle centralizado a produção fabril, o
domínio da moradia e da cidade, a produção agrícola da retaguarda territorial
da fábrica e a circulação mercantil dos bens de consumo dos operários sob a
forma de uma feira administrada. Além disso, esta estrutura de relações
sociais contém a promoção e administração de atividades médicas, religiosas
e recreativas, e também uma numerosa milícia particular, garantido o
“governo local de fato” da companhia sobre estas múltiplas atividades (Lopes
apud LEWIS, s.d., p. 709).

O interventor de Pernambuco nesse período – Agamenon Magalhães45 – não


enxergava de maneira positiva essa questão, pois isso significava uma ausência do
poder público naquela região, possibilitando assim o predomínio da influência dos
Lundgren no poder local. Algo que claramente não agradava a um governo cuja
principal característica era a questão centralizadora, fato que explica o esforço da
família Lundgren na criação do campo Chã de Estevão
O “campo de concentração” de Chã de Estevão, no município de Igarassu (PE),
foi criado em vinte e dois de novembro de 1942 e tornou-se uma alternativa às casas de
detenção de internamento para os funcionários da Fábrica de Tecidos Paulista. Segundo
Susan Lewis:

Mas, que intenções moveram os donos da CTP a participar da criação e


manutenção do Campo Chã de Estevão? Ao que tudo indica, os propósitos
dos industriais estavam relacionados à proteção de seus funcionários
estrangeiros, pois, ao invés de serem recolhidos à Casa de Detenção no
Recife, tinham a chance de, mesmo prisioneiros, permanecer em casa com
suas famílias – esposas e filhos, quando autorizado pela DOPS –, recebendo
ajuda de custo para sustentá-las. As terras e as próprias casas eram de
propriedade dos Lundgren, os quais ainda contribuíam com as despesas do

45
Agamenon Sérgio de Godói Magalhães, pernambucano de Serra Talhada, assumiu o cargo de
interventor do Estado de Pernambuco em 3 de dezembro de 1937. Agamenon havia ocupado também o
cargo de ministro do trabalho, indústria e comércio do governo Vargas em 1934. Em janeiro de 1937,
assumiu interinamente o Ministério da Justiça. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/agamenon_magalhaes>. Acesso em:
20/05/2013.
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campo. Podemos supor que, diante de tal situação, havia um certo acesso e
controle da localidade por parte da família (LEWIS, s.d. p., 709).
Porém, é importante salientar que mesmo sendo o campo de Chã uma alternativa
ao presídio comum, os alemães estavam sob a vigilância da DOPS e precisavam seguir
suas determinações e viver através das suas proibições. Os alemães foram submetidos a
uma série de restrições em seu cotidiano: proibição de falar no idioma alemão, restrição
de direito de ir e vir, apreensão de vários objetos de cunho pessoal como cartas escritas
em alemão, aparelhos de rádio46, como prova das acusações de que esses indivíduos
eram nazistas e/ou espiões e anexados os prontuários da DOPS.
A DOPS ainda acumulava – além de objetos pessoais dos internos – uma grande
quantidade de documentos burocráticos sobre o campo: número de internos, controle de
autorizações de entradas e saídas (liberados, na maioria das vezes apenas em casos de
doença), medicamentos e artigos de primeiros socorros enviados pela cruz vermelha.
Muitos que se encontravam “internados” não sabiam qual era a acusação contra eles. A
DOPS possuía listas dos internos do campo com a data de entrada e o número dos
respectivos prontuários, alguns constavam observações ao lado dos nomes: ouvido/não
foi ouvido e casado/solteiro47. Assim, pode-se afirmar que havia um controle
permanente da polícia política referente ao campo e consequentemente um controle do
Estado sobre a vida daqueles que estavam presos no campo.
A historiadora Priscila Perazzo (1999) afirma que existiram outros campos de
concentração no território nacional, como por exemplo em: São Paulo, Minas Gerais,
Rio de Janeiro, Pará, Pernambuco. Essa foi a forma encontrada pelo Estado para afastar
do meio social aqueles que eram considerados “indesejáveis” e que colocavam em risco
a segurança nacional. No Estado de Pernambuco, alemães foram presos em casas de
detenção e outros submetidos a reclusão no campo de concentração com suas famílias.
Tudo sobre o olhar atento, a vigilância constante da polícia política. Mesmo sendo a
Companhia de Tecidos Paulista responsável financeiramente pela manutenção do
campo, todas as ações referentes ao campo precisavam passar pela aprovação e
autorização da DOPS. Até mesmo a saída de internos com problemas de saúde que
precisassem se deslocar para hospitais na capital deveria acontecer mediante uma

46
Documento sobre as proibições estabelecidas aos alemães. Prontuário funcional: 31.771. Apeje –
DOPS-PE.
47
Relação dos funcionários da fábrica de Tecidos Paulista que se encontram detidos. 16/11/1942.
Prontuário funcional: 31.771. Apeje – DOPS-PE.
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solicitação à DOPS e aguardar a liberação. Caso fossem liberados, precisariam ainda ser
acompanhados, ou melhor, escoltados durante o tempo em que permanecessem fora do
campo48.
Agamben (2004, p. 12) coloca “o campo de concentração e a estrutura dos
grandes estados totalitários do Novecentos” como paradigma da biopolítica moderna,
tendo o campo de concentração de Auschwitz como exemplo máximo de total controle
da vida do indivíduo. O Estado passou a deter o poder de deixar viver e fazer morrer.
Era a vida natural que passava a fazer parte dos mecanismos do poder, transformando a
política no que Foucault chamou de biopolítica. Através de uma “guerra civil legal”49, o
governo de Adolf Hitler conseguiu eliminar fisicamente muitos indivíduos considerados
– de alguma maneira – indesejáveis dentro daquele sistema político vigente. No caso de
Chã de Estevão não se pode falar que se tratava de um “campo ideal” discutido por
Agamben, do qual há submissão integral da vida nua. Muito longe disso. E a lógica do
seu funcionamento também está bem distante em relação ao campo de Auschwitz. A
historiadora Susan Lewis chega a afirmar que o termo campo de concentração para
denominar o campo de Chã de Estevão é inapropriado devido o mesmo se tratar apenas
de um campo de internamento. Mas, deixando a nomenclatura distante da discussão e
pensando no campo como paradigma da biopolítica, percebe-se que o controle da vida
dos homens e mulheres residentes em Chã de Estevão – mesmo não sendo submetido à
condição de não-humanos – estão imersos nos mecanismos e nos cálculos do poder
estatal.
Dessa forma, houve um duplo benefício para o Estado: por um lado, ele passou a
ter um controle mais contundente referente aos alemães daquela região, que eram em
sua maioria funcionários da Companhia e seus familiares. Muitos deles eram
recorrentemente denunciados – muitas vezes por populares insatisfeitos com a presença
estrangeira na região – como propagadores da doutrina nazista e espiões do Terceiro
Reich. Alguns constavam na chamada lista negra da DOPS 50. A região era intitulada
pela DOPS como perigosa devido ao grande número de “súditos do eixo” residentes na

48
Ofício nº 139. Prontuário funcional: 31.771. Apeje – DOPS-PE.
49
O termo “guerra civil legal” utilizado por Agamben, ocorre por meio do estado de exceção e possibilita
a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de qualquer cidadão que,
independentemente do motivo, não se integre ao sistema político.
50
Relatório ao Exmo. Snr. Cel. Secretário de Segurança Pública à respeito dos alemães: Kollnorgan e
Burr. Recife, 19 de janeiro de 1946. Prontuário funcional: 31.771. Apeje – PE.
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localidade por conta do trabalho na Companhia. Por outro lado, consegue diminuir a
quantidade de detentos presos nas casas de detenção, sem que tivesse ônus financeiro
para isso, uma vez que no acordo estabelecido por ambas as partes, todo custo com o
campo seria de responsabilidade dos proprietários da Companhia.

Considerações finais.
Durante o período do Estado Novo (ditadura civil-militar), o governo de Getúlio
Vargas foi marcado pela censura, repressão política e um elevado número de prisões dos
“inimigos” do governo. Eram elegíveis inimigos quaisquer outros grupos e ou
indivíduos cujas práticas o governo entendesse como uma ameaça (CARVALHO, 2002,
p. 109), cujas ações não se enquadrassem à norma estabelecida pelo poder estatal.
Vários alemães residentes no estado de Pernambuco, principalmente na capital Recife e
na cidade de Paulista, foram investigados, fichados pela polícia política e até mesmo
presos em casa de detenção e “campo de concentração” em nome da segurança
nacional. Tamanha repressão por parte do governo foi possibilitada pelo estado de
exceção que vigorava naquele momento e exercida pela polícia política – DOPS. Em
nome da defesa da nação, leis foram criadas e os direitos dessa população de origem
alemã foram minados a cada decreto-lei promulgado pelo Estado enquanto soberano.
Dessa forma uma nova ordem passou a ser estabelecida.

Fontes documentais:
Arquivo Público Estadual João Emerenciano. APEJE – PE.
Prontuários funcionais:
Documento do consulado alemão: Fundo/SSP nº: 29444 - Doc.: 390 até 530. 6º volume.
Clube Alemão: Fundo SSP nº: 29094 - Nº de documentos: 901.
Fábrica Paulista: Fundo SSP nº: 31.771 A - Nº de documentos: 245.

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A IMPRENSA PARAIBANA E O PERÍODO IMEDIATO DO PRÉ E PÓS-


GOLPE DE 1964
Luíza Paiva Duarte de Andrade Carneiro
UFPB
luizapdacarneiro@gmail.com

Compreender a imprensa de determinada época e lugar é compreender as


nuanças da opinião compartilhada pela maioria, sendo esta massificada ou não. A
imprensa pode partir de minorias com pouca representatividade hegemônica, como por
exemplo: Antonio Gramsci, intelectual socialista italiano, lançou em 1919 o jornal
L’ordine Nuovo, que “visava criar espaços para debater com maior liberdade a questão
do socialismo na Itália, tornando-se em pouco tempo, um forte instrumento de criação e
difusão da cultura (...)” (SIMIONATTO, 1995, p. 28) ou pode servir de instrumento
ideológico do Estado.
A imprensa oficial no Brasil só se introduziu no país em 1808, no ano da
chegada da família real portuguesa na colônia. Justamente por causa do atraso brasileiro
em adentrar na imprensa, o conceito de liberdade de imprensa também tardou em se
estabelecer. É comum em países pouco democráticos ou sob regimes ditatoriais a
imprensa ser mantida sob as rédeas do Estado. Isto ocorre por medida de “prevenção”
do mesmo, para que ideologias ditas subversivas não “contaminem” o povo em
detrimento do Estado. Disto, incorre no que conhecemos por censura. A censura de
imprensa no Brasil nasceu com o surgimento da própria imprensa.
No Estado Novo de Getúlio Vargas foi criado o DIP (Departamento de Imprensa
e Propaganda), que servia para propagar a política getuliana. Além disso, intervinha em
qualquer tipo de propaganda ou publicações que se opusessem ao regime, o que foi feito
com muita eficiência. Durante o governo de João Goulart (1961 – 1964), a
grande maioria da imprensa brasileira opôs-se ao presidente. Inclusive, quando Jango
foi deposto pelo golpe militar do dia 1º de abril de 1964, a imprensa vibrou e apoiou os
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militares nesta “empreitada anticomunista”, exceto alguns poucos jornais de esquerda,


tais como, Novos Rumos e Última Hora.

Papel das mídias como veiculadoras e formadoras de opinião

As relações entre Estado e Imprensa não são tão simples quanto parecem. Não é
simplesmente estar no poder que todos os veículos de comunicação darão ao governante
total suporte. Vejamos só a situação de Jango, que no seu último instante enquanto
chefe de Estado teve quase todos os meios de comunicação “exigindo” sua deposição. A
tradição da imprensa brasileira é conservadora e, como já disse, recente demais. Criar
um forte alicerce de esquerda enquanto se é um líder trabalhista e quando se pregam
reformas de base é realmente muito difícil quando, nas antípodas, aparecem líderes e
forças de tradição liberal, a qual tem muita força no Brasil.

Salientando o que anteriormente foi citado, embora haja inevitáveis reflexos e


incidências das relações entre os mecanismos de poder, a sociedade civil e as
“instituições de comunicação”, não se deve encarar a imprensa como organismo passivo
e submisso da força do Estado. Para ser compreendido, também se faz necessária uma
análise do mecanismo da imprensa em sua própria constituição. E o que é também de
grande importância é fato de que embora muito se fale do povo manipulável, não se
pode subestimá-lo e seus interesses também devem ser observados.

Cenário do Brasil pré-golpe: a difícil situação de Jango

De quem foi a “culpa” do golpe de 1964? A historiografia tradicional a atribui a


João Goulart, tendo sido ele incapaz de manejar e controlar os destemperos partidários
do país. Será mesmo justo culpabilizar uma única pessoa por uma transformação
política que caiu sobre o Brasil durante 21 anos? É ingênuo, ou, melhor dizendo,
tendencioso atribuir a João Goulart tamanha “responsabilidade.”
Jango assumiu o cargo de Presidente da República no dia 7 de setembro de 1961,
dias após a renúncia de Jânio Quadros e entrou em uma situação muito desfavorável.
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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Mesmo com essa a de conciliação de Jango, as esquerdas ortodoxas continuavam a


exigir do presidente as tão pregadas por ele reformas de base. Sem muito poder de
agilidade no governo diante de sua delicada situação político-institucional, Jango perdeu
visibilidade das esquerdas, sendo Leonel Brizola, seu cunhado e grande figura do PTB
em âmbito nacional, muito prestigiado pelos setores populares.
A segunda etapa do governo de Jango foi o retorno para o sistema
presidencialista. A situação político-econômica no país se agravava cada vez mais, e
Goulart atribuiu isto ao sistema parlamentarista. Após o plebiscito de 6 de janeiro de
1963 Jango passou a ter os poderes garantidos pelo sistema presidencialista, com grande
parcela de vitória. Ainda com o enorme descontentamento das esquerdas pela espera de
uma atitude do presidente em relação às reformas de base e às ditas políticas de
conciliação, Jango tomou a seguinte atitude (FERREIRA, 2003, p. 366):

Com as lideranças políticas no Congresso, o governo propôs a aprovação de


emenda constitucional que alterava o artigo 146 da Constituição – que exigia
o pagamento prévio em dinheiro para a desapropriação de terras – como
também a regulamentação do artigo 147 que tratava da desapropriação por
interesse social. Esse, sem dúvida, foi o ponto nodal de seu governo, pois,
para o sucesso da reforma agrária, o dispositivo que previa a indenização
prévia em dinheiro deveria ser suprimido. Pela proposta governamental, a
indenização ao proprietário seria com títulos da dívida pública. Pela primeira
vez, um presidente da República encaminhava ao Congresso Nacional um
projeto que visava alterar profundamente a estrutura agrária do país.

Como era de se esperar, a proposta de emenda teve ampla rejeição da direita


udenista. Os grupos esquerdistas saíram às ruas para pressionar o Congresso, liderados
por Leonel Brizola, com muitas ameaças de greve. Porém, “apesar da mobilização nas
ruas, a comissão parlamentar recusou o projeto de reforma agrária do PTB por sete
votos a quatro” (FERREIRA, 2003, p. 367). Foi neste ponto onde o PTB e o PSD
cortaram alianças.
Após essa significativa derrota do governo Jango, a sua situação tornou-se ainda
mais difícil. Mesmo assim, Jango “deu continuidade ao projeto desenvolvimentista”
(FERREIRA, 2003, p. 369). A tendência política da conciliação de centro-esquerda, que
não agradou nem à direita ortodoxa e às pequenas esquerdas radicais, levou Jango cada
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vez mais ao isolamento. Isto sem contar com a pressão militar para medidas mais
rígidas.
A situação de Jango era realmente muito difícil, não havia muito que ser feito
sem que gerassem insurreições em um dos lados do cenário político. De um lado,
propagadores do anticomunismo acusando-o todo o tempo de demagogo e golpista,
alicerçados pelos Estados Unidos da América. De outro, esquerdistas insatisfeitos com a
política de conciliação janguista, esperando e exigindo apoio imediato do presidente
para as lutas das classes populares. Diante de tantas incertezas e hesitações, Jango teria
que, definitivamente, por bem ou por mal, traçar um caminho. Citando Jorge Ferreira
(2003, p. 381):

Uma opção seria a de nada fazer até o final de seu governo, deixando o país
afundar no total descontrole monetário e financeiro, desmoralizando o projeto
reformista e a si mesmo; uma outra implicaria em aliar-se a PSD e a UDN,
aceitar as condições do FMI e implementar uma política conservadora à custa
de repressão ao movimento operário e do rebaixamento dos salários dos
trabalhadores; uma terceira incluiria apoiar incondicionalmente a Frente
Progressista de San Tiago Dantas, subordinando-se aos limites impostos às
reformas pelo PSD e afastando-se, definitivamente, dos grupos mais a
esquerda de seu próprio partido; por fim, aliar-se às esquerdas, acreditar nas
forças que elas diziam dispor e, embora contrariando o seu estilo, partir para
a radicalização e o embate. Essa última foi a sua opção.

Março de 1964 certamente foi o período mais difícil e turbulento do governo


Goulart. O governo de Jango anunciara um comício, que certamente fez tremer as bases
da direita. Jango assumiu a responsabilidade de embate prático e ideológico com a elite
conservadora do país (FERREIRA, 2003, p. 383): “No dia 13 de março, às 18:00 horas,
teve início o comício”. Em notícia do Jornal Correio da Paraíba, foi dito (ver Imagem
1): “Falando para uma massa de, aproximadamente, 150 mil pessoas, o presidente João
Goulart assinou, hoje, o decreto da SUPRA de desapropriações às margens dos eixos
rodoviários e dos açudes. O Presidente da república em seu discurso afirmou que estava
iniciada a Reforma Agrária, e que «os reacionários já não são mais donos da
democracia.»” Houve discurso de várias representatividades da esquerda, entre elas a de
Leonel Brizola.
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Segue transcrição parcial feita do importante e crucial discurso de João Goulart feito no
dia 13 de março:

[...] A democracia, meus patriotas, que êles nos desejam [...] é a


democracia do anti-povo, é a democracia da anti-reforma, é a
democracia do anti-sindicato, ou é aquela que melhor atinge aos seus
interêsses ou é a dos grupos que êles representam. A democracia que êles
pretendem é a democracia dos privilégios, é a democracia da intolerância. É a
democracia do ódio. [...] Ameaça à democracia, enfim, não é vir
confraternizar com o povo nas ruas. Ameaçar à democracia é esbulhar o
povo, é explorar seus sentimentos cristãos nessa mistificação da indústria do
anti-comunismo, insurgindo o povo até contra os luminosos ensinamentos do
inolvidável João XXIII que nos dizem, povo brasileiro, que a dignidade da
pessoa humana exige normalmente, como fundamento natural para a vida, o
direito ao uso da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de
conceder propriedades para todos. É dentro dessa doutrina que o Govêrno
Brasileiro vem procurando situar sua política social, particularmente no que
se diz respeito à nossa realidade agrária. [...] Apenas é de lamentar que
parcelas ponderáveis que tiveram acesso a instrução superior continuem
insensíveis, de olhos e ouvidos fechados a realidade nacional.

Sabendo da influência da Igreja Católica no Brasil, Goulart apelava para a


doutrina Social da Igreja e no trecho seguinte trata do sentido e necessidade das
reformas, e em especial da referente à SUPRA51:

[...] Meus patrícios, a hora é das reformas! Reformas de estrutura, reformas


de métodos, reformas de estilos de trabalho e reformas de objetivos para o
povo. Já sabemos que não é possível progredir sem reformar, que não é mais
possível realizar com essa estrutura ultrapassada o milagre da salvação
nacional para milhões e milhões de brasileiros desta potentosa civilização
industrial porque dela conhecem apenas a vida cara, os sofrimentos e as
ilusões passadas. O caminho das reformas é o caminho do progresso e da paz
social. Reformar, trabalhadores, é solucionar pacificamente as contradições

51
A SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária) foi a primeira medida do Governo Jango favorável à
Reforma Agrária.
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de uma ordem econômica e jurídica inteiramente superada pela realidade dos


tempos em que vivemos. [...] E não se diga, povo brasileiro, que há meios de
fazer a reforma agrária sem mexer a fundo na nossa constituição. Em todos
os países civilizados do mundo já foi suprimido o texto constitucional que
obriga para desapropriações de interêsses sociais o pagamento prévio e em
dinheiro. [...]Hoje, o Govêrno reafirma seu propósito de lutar com todas suas
fôrças pela reforma da sociedade brasileira, pela pureza da vida democrática,
pela emancipação econômica, pela justiça social e ao lado do povo pelo
progresso do Brasil.

Depois desse dia, as esquerdas passaram a se sentir mais fortes e confiantes


frente à direita conservadora. Sentiram-se mais ativas e com poder de atuar, e de
acelerar as reformas de base, confrontando os reacionários. Porém, no dia 19 de março
de 1964, a direita mostrou sua força realizando a Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, uma manifestação, como tantas outras, da classe média e dos conservadores.
Infelizmente, a esquerda não deu o devido crédito para o perigo iminente do
“contragolpe” da direita.
Um evento aparentemente sem importância tornou-se o ponto crucial para a
reviravolta na estrutura política brasileira (FERREIRA, 2003, p. 387):

O ministro da Marinha, Sílvio Mota, proibiu a realização de um ato público


em que os subalternos da Marinha de Guerra comemorariam o segundo
aniversário de fundação da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais
do Brasil, com a presença de autoridades militares. Contrariados, eles
programaram um novo ato, agora no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de
Janeiro. De uma simples comemoração, o evento tomou rumos
reivindicatórios. [...] Sílvio Mota reagiu ordenando, no dia 24, a prisão de 12
dirigentes da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais. Depois, no dia
seguinte, data marcada para festejar a comemoração de fundação da entidade
no Sindicato dos Metalúrgicos, mandou prender outros 40 marinheiros e
cabos que organizaram o encontro. [...] indignados ficaram os oficiais da
Marinha quando as ordens de Goulart chegaram para que os marinheiros não
fossem atacados. O ministro da Marinha, sentindo-se desprestigiado,
renunciou ao cargo.
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Tendo a ordem do ministro da Marinha sido refutada pelo presidente, um grande mal
estar se instaurou nas Forças Armadas. Onde estava o sentido hierárquico das ordens?
“A maioria dos oficiais das três Forças, até então relutante em golpear as instituições,
começou a ceder aos argumentos da minoria golpista” (FERREIRA, 2003, p. 389). O
resultado é o que foi explicitado em comunicado oficial do Clube Militar:

[...] o Clube Militar não medirá esforços nem sacrifícios no sentido de


concorrer para o restabelecimento da disciplina e acatamento às autoridades e
às instituições. Esta é o final da nota divulgada pelo Clube Militar em
solidariedade à Marinha da Guerra.

A presença de Jango estava confirmada na festa de posse da Associação dos


Sargentos no Automóvel Clube. Embora os companheiros de Goulart o tivessem
aconselhado a não ir, em virtude dos recentes acontecimentos e da tensão que já estava
instaurada nas Forças Armadas, o presidente julgou que não poderia deixar de ir. Foi
noticiada a presença de Goulart no Automóvel Clube. Deveria Jango ter ou não ido? No
dia seguinte, sabia que o discurso que fez não conseguiu alterar o que já estava
iminente: o golpe. No histórico dia 31 o posicionamento reacionário dos jornais
surpreendeu o presidente. O estimado movimento das esquerdas tinha caído. Minas
Gerais estava em “pé de guerra”. O Jornal Correio da Paraíba publicou, um dia depois:

Apoiando integralmente o manifesto divulgado na madrugada de hoje pelo


governador Magalhães Pinto, os generais Carlos Luiz e Olimpo Mourão
Filho, comandantes de unidades federais sediadas em Belo Horizonte,
lançaram um manifesto Á Nação contrários ao Presidente João Goulart. [...]
Tropas do I Exército estão se deslocando para a fronteira de Minas Gerais. O
general Jair Dantas Ribeiro reassumiu às pressas, mesmo doente e demitiu
imediatamente os generais Carlos Luiz e Mourão Filho [...].

Como coloquei a priori, o Correio da Paraíba era o jornal paraibano mais


independente de ideologias dominantes. Certamente, este foi um dos poucos jornais
brasileiros que menos se exaltaram politicamente. Não deixava de fazer as publicações
das notícias, mas se privava de posicionamentos mais contundentes, especialmente
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neste período de grandes conflitos ideológicos.


João Goulart não poderia reagir, pois foi informado de que havia navios norte-
americanos apenas à espera de um chamado dos revoltosos militares se houvesse
alguma reação por parte do governo. Houve apelos por parte das Forças Armadas para
que Jango cedesse à direita, mas ele recusou. A esquerda quis reagir, mas Jango também
recusou, a impediu. “A perspectiva de invasão norte-americana, de guerra civil, de
secessão de mortes, aliás, muitas mortes, o horrorizava” (FERREIRA, 2003, p. 396). A
política reformista havia perdido.
Voltando à reflexão do início do quesito, João Goulart não foi o culpado pelo
golpe civil-militar de 1964. Se houve ou não parcela de culpa, é tendencioso atribuir a
uma única pessoa todo um abalo de estrutura de uma nação. Há de ser vista toda a
conjuntura que envolveu os dois eventos. Palavras de Foucault: “É preciso entender por
acontecimento não uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha, mas uma relação
de forças que se inverte” (FOUCAULT, 1990, p. 28)

Situação da Paraíba no conflito de 1964

Nesta época de intensos conflitos ideológicos, o governador da Paraíba era


Pedro Gondim. Pedro assumiu o governo em 1958 quando o então governador do
estado, Flávio Ribeiro Coutinho, afastou-se por causa de sua debilitada saúde. Em 1960,
assumiu por meios das eleições, tendo sua campanha principalmente sustentada pela
jovem esquerda paraibana, julgando-o mais aberto que o seu oposicionista Janduhy
Carneiro. O governo Gondim “representou o auge do populismo na Paraíba.” (NUNES,
2010, p. 286). Pedro Gondim manteve um governo neutro frente às mobilizações sociais
e populares que ocorriam no estado.

Juntamente com as forças populares de âmbito nacional, a Paraíba acompanhou


este ritmo de radicalização. A posição do governador passou a se tornar cada vez mais
delicada e, devido a suas ligações com as oligarquias locais, teve que frear sua política
conciliatória e ficou sem posição. Diante de contradições, ora apoiando, ora usando da
polícia contra as lutas populares, as críticas a Gondim tornavam-se cada vez mais
crescentes. Citando José Octávio de Arruda Melo (1976, p. 35):
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Pouco adiantava ao Governo explicar-se de público ou mesmo enviar seu


Secretário do Interior à API, o que várias vezes aconteceu. “As palavras do
jornalista são as palavras da Federação das Ligas Camponesas” 52. Dentro
desse quadro, não era de admirar que violências bem caracterizadas por
agressões e derramamento de sangue chegassem ao campo .

Acontecimentos políticos e sociais muito importantes dão as principais


características da Paraíba no referido momento político do estado, tais quais, por
exemplo, o assassinato de João Pedro Teixeira, fundador das Ligas Camponesas, em
Sapé; a chacina de Mari e a invasão da Faculdade de Direito. João Pedro era um forte
militante do campo na Paraíba e sua resistência e luta contra a elite latifundiária passou
a incomodar. Quanto à chacina de Mari, que ocorreu no dia 15 de janeiro de 1964, num
descampado entre as cidades de Sapé e Mari, de acordo com José Octávio de Arruda
Mello, foram oito mortos e quatro feridos. Na manhã seguinte do ocorrido, o
governador Pedro Gondim foi duramente repreendido e criticado pelos conservadores
udenistas. A invasão da Faculdade de Direito, por sua vez, foi um ocorrido que se deu
diante de um protesto contra a vinda do governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda.
Mais uma clara oposição entre a esquerda e a direita. A referida Faculdade, localizada
na praça João Pessoa, ao lado do Palácio do Governo, foi a base para o protesto anti-
lacerdista. Lá, via rádio, protestaram contra Carlos Lacerda e o então senador João
Agripino.

Em breve referência à esperada chegada de Carlos Lacerda a cidade de João


pessoa, um dos colunistas do Jornal Correio da Paraíba, Otávio Monjardin, sempre
muito satírico às situações políticas do estado, escreveu em sua coluna diária em 6 de
março daquele ano, 3 dias depois da invasão da Faculdade de Direito: “JOÃO PESSOA
viveu horas de “suspense”, como num filme de Hitchcock, esperando a chegada do
governador Carlos Lacerda, que afinal, não deu o ar de sua graça. Todos os habitantes,
prós e contras, viveram momentos de ansiedade, suspirando a última e única esperança
de um povo já sem fé e razão. Um grande medo ficou estampado no rosto dos tempos,
no coração de cada um. (...)”.
52
Coligido por Pedro Gondim em “Honra e Verdade”, A União Editora, 1964, p. 263, em nota da
Federação das Ligas Camponesas.
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Depois desses e de outros tristes abalos político-sociais na Paraíba, nota-


se um endurecimento e maior ligação do governo com as Forças Armadas: foi uma
aproximação de Gondim com os ideais do golpe de 1964. Para não perder forças em tão
frágil situação política, saiu do PSD e entrou na UDN. Tomar partido pela junta militar
foi essencial para Gondim se manter no poder do governo do estado assim que se deu o
golpe Mostrando-se favorável ao golpe, Pedro Gondim declara em notícia publicada na
coluna de política do jornal Correio da Paraíba: “o pensamento político de Minas
Gerais, hoje, como em 30, identifica-se com a vocação histórica do povo paraibano que
deseja, nêste episódio e sobretudo, o cumprimento das liberdades públicas,
consubstanciadas na defêsa intransigente do regime democrático”. Os que se opuseram
(como o então prefeito de Campina Grande, Newton Rique, em comício) foram
sumariamente perseguidos ou então depostos.

A Imagem 2 trata-se de uma notícia, também do jornal Correio da Paraíba,


sobre a Marcha da Família com Deus pela Liberdade que aconteceu no dia 8 de abril de
1964 na cidade de João Pessoa. Segundo a notícia, a marcha “saudava e exaltava a
grande vitória da Revolução Democrática de 31 de março. (...) A Marcha da Família
com Deus pela Liberdade foi uma festa cívico-religiosa jamais registrada na Paraíba”.
Antes e depois do golpe, as classes dominantes também se manifestaram em
organizações de direita, pró-lacerdistas e pró-golpe.

Panorama da imprensa paraibana: Jornal Correio da Paraíba

Farei neste último ponto um pequeno panorama da imprensa paraibana,


principalmente feita por recortes do Jornal Correio da Paraíba, focando em dois
colunistas os quais julguei mais importantes e interessantes para tratar o presente tema:
José Soares Madruga e Otávio Monjardin. Os principais jornais mais presentes e
atuantes na conjuntura tematizada no presente texto eram A União, criado em 1893, de
1908 e Correio da Paraíba, lançado em 1953. Segundo José Octávio de Arruda Mello,
até 1962 A União apoiava as Ligas Camponesas, mas, após este ano, este jornal
“endireitou-se”, juntamente com o governador Pedro Gondim. A União, sendo um
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jornal do estado, naturalmente era guiado pelos momentos do governo. O Norte, nos
idos do momento de tensão polícia de 1964, apresentava exaltada posição de direita.
Sobre O Norte, Fátima Araújo diz (1983, p. 119):

A ideologia do jornal O NORTE é a dominante, com requintes, muitas vezes,


de oficialidade, devido ao conservadorismo que apresenta em alguns de seus
editoriais. Através dessas peças opinativas, a linha do jornal apresenta-se
ambígua, não conseguindo, o leitor, identificar, com facilidade, o
posicionamento do órgão.

Quanto ao Correio da Paraíba, como pontuei a princípio, era o jornal mais livre
de ideologias dos setores conservadores e oligárquicos da Paraíba.
Otávio Monjardin, pseudônimo criado por Ipojuca Pontes, irmão de Paulo
Pontes, fazia de sua coluna “Espetáculos” um espaço para satirizar quaisquer lados
políticos. Tornou-se colunista do jornal Correio da Paraíba aproximadamente em 1962
e nos idos de 1964 foi, aos poucos, deixando de fazer publicações, que foram se
tornando mais brandas e menos ofensivas ao cenário político brasileiro. Ipojuca Pontes
foi Secretário de Cultura no Governo Collor e é um importante cineasta. José Soares
Madruga, por sua vez, foi diretor do Correio da Paraíba entre 1963 a 1971 e assinou a
coluna Diário da Política por 16 anos (ARAÚJO, 1983, p. 121). Em 1974 foi eleito
deputado estadual e deixou o jornal quando se tornou presidente da Assembleia
Legislativa. Segundo José Octávio de Arruda Mello, Madruga era um jornalista
equilibrado, que poucas vezes exaltou-se no ramo da imprensa. Faleceu em 1989.
Escolhi o Jornal Correio da Paraíba para dar embasamento a este estudo de
pequeno espaço de tempo (entre janeiro e abril de 1964), pois creio este ser o jornal com
maior expressão política, opinião compartilhada pela autora Fátima Araújo em seu livro
“História e Ideologia da Imprensa na Paraíba” (ARAÚJO, 1983, p. 121).
Vêem-se nas imagens 6, 7 e 8 exemplos de trechos da coluna de Otávio
Monjardin (ou Ipojuca Pontes). Geralmente, sua coluna era dividida em quatro partes: a
primeira contendo uma crônica, a segunda recebia o nome de Umas & Outras, a terceira
A Vida na Foto que, na maioria das vezes apresentava fotos de uma bela mulher e, por
último, a parte que se chamava De Tudo e De Todos. Ipojuca Pontes satirizava os dois
lados do panorama político nacional, tanto a política janguista quanto a direita udenista.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
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As imagens 9 e 10 são exemplos dos escritos de José Soares Madruga, em seu


Diário da Política. Pode-se dizer que sua coluna era divida em duas partes: a primeira
com um pequeno artigo intitulado e a outra com várias pequenas notas sobre a política
recente da Paraíba. José Soares Madruga assumia postura mais séria em relação aos
temas políticos, mesmo sendo ponderado e equilibrado em suas posições. Na 9 há
comentários acerca da dubiedade do governador Pedro Gondim em relação ao PSD e a
UDN. Na 10, comenta-se a respeito do polêmico discurso proferido por João Goulart no
dia 13 de março de 1964; “O Ponto de Cem Réis encheu-se ontem de comentários e
dêsses um não houve a repelir com veemência a fala presidencial. (...) apoiou as
esquerdas, queimou as esquerdas e quando precisa das esquerdas as esquerdas estão ali
a seus pés, com uma fieldade canina. (...) Porque não ficou dúvida – se Jango entender
de ser reeleito, está tudo perdido. Não há CL nem JK que o vença. E Jango falou num
dia de mau agouro – sexta-feira, 13!...”

Imagens Anexas
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Imagem 1: Notícia do Jornal Correio da Paraíba do dia 14 de março de 1964, capa.


Comício do dia 13 de março de 1964 do Presidente João Goulart e seu discurso na
íntegra.

Imagem 2: Notícia publicada no Jornal Correio da Paraíba no dia 9 de abril de


1964.
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Imagens 3, 7 e 8: Partes da coluna Espetáculos de Otávio


Monjardin (ou Ipojuca Pontes) do Jornal Correio da Paraíba. As
três são, respectivamente, dos dias 9 de janeiro de 1964, 15 de
março e 22 de março do mesmo ano.
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Imagem 9 e 10: Partes da coluna Diário da Política de José Soares Madruga


do Jornal Correio da Paraíba. Ambas são, respectivamente, dos dias 19 de
janeiro de 1964 e 15 de março do mesmo ano.

Referências

ARAÚJO, Fátima. História e Ideologia da Imprensa na Paraíba. João Pessoa: A


União, 1983.

FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: O tempo da


experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 (Col. “O Brasil Republicano”, vol. 3), p.
345-401.

______, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: O populismo e


sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 61-124.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder.


Rio de Janeiro: Graal, 1990.

MELLO, José Octávio de Arruda. Tensão Social e Revolução na Paraíba. João


Pessoa: 1976. (mimeo)

NUNES, Paulo Giovani Antonino. A quebra da ordem constitucional e a ditadura


militar no Brasil. In: ARAÚJO, E.M. N.;NÓBREGA, E. M. M.; SANTO NETO, M. G.;
BARBOSA, V; L.. (Org.). Historiografia e(m) diversidade: artes e artimanhas do
fazer histórico. 1 ed. Campina Grande: Editora da UFCG, 2010, v. 1, p. 278-294.

SIMIONATTO, Ivete. Gramsci sua teoria, incidência no Brasil, influência no


serviço social. Florianópolis: Ed. da UFSC; São Paulo: Cortez, 1995.
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DESTRUIÇÃO E MUDANÇA: AUGUSTO LUCENA E A TRANSFORMAÇÃO


DAS POSTURAS PRESERVACIONISTAS DO RECIFE NOS ANOS 1970.

Rodrigo Cantarelli
Fundação Joaquim Nabuco
rodrigocantarelli@gmail.com

Introdução
Prefeito do Recife durante dois momentos distintos, primeiro de 1964 a 1968 e
depois entre 1971 e 1975, Augusto Lucena teve o seu governo associado a grandes
transformações na cidade. Como “prefeito biônico”53, o apoio que Lucena recebe do
Regime Militar abriu caminhos para a realização de diversas intervenções no Recife
muito polêmicas e tidas por muitos intelectuais da época como desastrosas. Seu
discurso, enraizado pela busca de uma “modernização” do Recife, defendia a
erradicação da toda “velharia” presente na cidade, que, sob sua ótica, atrapalhava o
caminho do desenvolvimento.
As ações de Augusto Lucena, em ambas as gestões, provocaram impactos no
patrimônio cultural recifense. A abertura de vias, a descaracterização de monumentos e
a destruição de ambiências e edifícios históricos eram levadas a cabo sob o pretexto de
se criar um “novo Recife”, e assim foram destruídos ou descaracterizados diversos
edifícios significativos, como a Igreja dos Martírios, e pontes históricas, como a
Lasserre e da Boa Vista, além de serem mutilados, de forma irreversível, o Cemitério
dos Ingleses e os tecidos urbanos dos bairros de Santo Antônio e São José.
O mesmo Recife, que, na década de 1920, havia sido palco de um dos
movimentos preservacionistas pioneiros do Brasil, começou a repensar a preservação do
seu patrimônio através de novas esferas além daquela capitaneada pelo governo federal,

53
Durante o governo militar, diversos cargos eletivos passaram a ser nomeados pela ditadura, ficando
conhecidos como “cargos biônicos”.
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hegemônico naquele momento. Foram criados novos órgãos e leis com o objetivo de
resguardar para a posteridade o que ainda restava do patrimônio cultural da cidade.
Esse artigo tem por objetivo mostrar como a boa relação de Augusto Lucena
com os militares facilitou a tomada das decisões relacionadas ás intervenções nas áreas
históricas da cidade, em geral, contrárias às orientações técnicas do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Se por um lado as decisões defendidas pelo
prefeito eram tidas como as soluções ideais para “modernização” da cidade, por outro,
elas contribuíram para descaracterizar parte do seu acervo cultural. Pretende-se também
tecer a relação entre as destruições causadas nesse período e a adoção de medidas que
tinham como objetivo principal salvaguardar a herança cultural ainda existente.

1. Augusto Lucena e os discursos modernizantes do Recife.


Natural da cidade de Guarabira, no estado da Paraíba, Augusto da Silva Lucena
mudou-se para o Recife no final de 1937, a fim de fazer o curso complementar de
Direito no Ginásio Pernambucano nos dois anos seguintes. Diplomado em 1944 na
Faculdade de Direito do Recife, Lucena exerceu diversas atividades como advogado até
1948, quando começou a trabalhar no Polícia Civil de Pernambuco. Em 1955 entrou
para a vida pública, quando foi eleito deputado para a Assembleia Legislativa do estado,
sendo reeleito para o cargo nos pleitos seguintes de 1958 e 1962.
Militante do Partido Social Progressista (PSP), enquanto exercia o terceiro
mandato como deputado, Lucena candidatou-se em agosto de 1963 ao cargo de vice-
prefeito da capital, “sendo eleito em memorável pleito democrático” (PREFEITO, 1967,
s/p). O mesmo pleito elegeu para o cargo de prefeito o engenheiro Pelópidas da Silveira,
que foi preso em 2 de abril de 1964 em função do golpe militar e teve o seu mandato
cassado pela Câmara de Vereadores de Recife. A sessão, que contou com a presença de
vários políticos e lideranças militares como o General Justino Alves Bastos54, também
foi responsável por empossar Lucena no seu primeiro mandato como prefeito do Recife.
Em 1966, com a instauração do bipartidarismo, Augusto Lucena filiou-se à
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido que tinha como uma das finalidades
dar sustentação ao governo instituído a partir do golpe de 1964. Em 1968, ao fim do seu

54
O general, que havia assumido em 4 de setembro de 1963 o Comando do IV Exército, foi um dos
comandantes do cerco ao Palácio do Campos das Princesas em 1º de abril de 1964, sendo o encarregado,
no momento do golpe militar, da destituição do cargo do governador Miguel Arraes.
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primeiro mandato como prefeito, Lucena ocupou brevemente outros cargos políticos,
como o de vereador e deputado federal, no entanto, em 1971, foi designado pelos
militares para retornar ao cargo de prefeito do Recife, posto que ocupou até 1975. A boa
relação com os militares, que datava de décadas anteriores quando exerceu o cargo de
Promotor da Justiça Militar do Estado de Pernambuco, entre 1954 e 1955, rendeu a
Lucena a oportunidade de voltar à prefeitura do Recife, para finalizar os projetos que
havia dado início nos anos 1960.
Em ambas as gestões, Augusto Lucena usou como figura forte no seu discurso a
“modernização” do Recife através de mudanças na malha urbana da cidade, como a
forma de “sanar” os problemas da cidade. Donatella Calabi, ao discutir o “mito da
modernização” em capitais europeias (CALLABI, 2001), defende que esse tipo de
discurso sofre um grande reforço ideológico ao se usar um vocabulário da área médica.
Para a autora, a necessidade de operações como a retificação, o alargamento ou abertura
de vias é reforçada na medida em que são transformadas em “operações cirúrgicas”
através da adoção de termos tais como desventramento, saneamento e salubrificação,
dentre outros. Era uma cidade, vista como doente, que se pretendia curar.
No entanto, cabe destacar que esse discurso modernizante de Augusto Lucena,
onde os ideais de progresso foram traduzidos para uma transformação na estrutura física
da cidade, é um velho conhecido do Recife e de tempos em tempos reaparece como
forma de legitimar intervenções na cidade. A gênese dessa prática remete ao século
XIX, mais precisamente a gestão de Francisco do Rego Barros (1838-1842), conhecido
como o Conde da Boa Vista, que buscou afastar a cidade de sua imagem colonial. Foi
durante essa gestão, por exemplo, que tiveram início os aterros para abertura da Rua da
Aurora, foram construídos o Teatro Santa Isabel e a ponte pênsil da Caxangá, além de
implantada a iluminação pública a gás. No entanto, essas foram intervenções muito
tímidas se comparadas às que ocorreram no início do século XX.
Na virada do século, o discurso da reforma urbana é retomado e culmina com a
reforma do Porto e do Bairro do Recife, que teve início em 1909 e não se limitou apenas
a recomposição de fachadas ou à construção de alguns edifícios isolados, mas que levou
à demolição de quase todo o núcleo inicial da cidade. O Recife colonial desaparecia sob
a euforia da elite dirigente, que o via como um símbolo do atraso e da insalubridade, e
sob o lamento de uns poucos intelectuais. Alguns desses intelectuais, na década
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seguinte, se articularam e foram os responsáveis pela criação da Inspetoria Estadual de


Monumentos Nacionais de Pernambuco, primeiro órgão no estado encarregado da
proteção do patrimônio cultural pernambucano, e uma das primeiras instituições do tipo
em todo o país55.
Durante o Regime Vargas, o discurso de modernização do Recife, que
novamente se daria através de intervenções urbanas, retorna e é incorporada ao discurso
do prefeito Antônio de Novais Filho, nomeado para o cargo pelo interventor federal
Agamenon Magalhães em 1937. Parte do bairro de Santo Antônio foi remodelada para a
construção da atual Avenida Guararapes e da ponte Duarte Coelho, sendo sacrificados
diversos edifícios históricos, como a Igreja e o Quartel do Paraíso, a Igreja dos Ingleses
e o Sobrado do jornal A Tribuna, ambos na Boa Vista, na cabeceira da ponte recém-
construída.
Novais Filho pretendia realizar um plano de modernização para toda a cidade, e
para isso reinstituiu, em 1937, a Comissão do Plano da Cidade que tinha por objetivo a
elaboração de pareceres que subsidiassem a concepção dos planos de remodelação do
Recife. A diversidade de especialidades técnicas na Comissão e a presença do Instituto
Arqueológico, representado por Mário Melo, demonstrava uma preocupação particular
com o destino dos edifícios históricos da cidade. Ainda é de se destacar que o Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN, havia sido criado nesse mesmo
ano e, no ano seguinte, começou a sua política de tombamentos.
Diferentemente do que ocorreu no início de século, as remodelações no centro
da cidade não seriam mais tão livres e a questão da preservação dos edifícios históricos
passou a se fazer presente. Um caso que exemplifica essa questão é a demolição do
sobrado localizado na esquina das ruas da Aurora e Conde da Boa Vista, que ainda não
havia se tornado avenida. Construído para ser a residência do Barão do Beberibe, e
posteriormente transformado na sede do jornal A Tribuna, questionou-se, na época da
sua demolição se ele deveria ou não ser preservado pelo SPHAN, gerando um debate
entre aqueles favoráveis à preservação do edifício e os defensores da “modernidade”
que, apoiando o alargamento da via, sacrificaram o edifício.
Também nesse momento foi idealizada a abertura da Avenida Dantas Barreto,
projetada a partir do alargamento da Avenida Coronel Suassuna. Segundo Rosane

55
Para mais detalhes sobre o assunto ver CANTARELLI, 2012.
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Loretto, esse era um período no qual o urbanismo praticado Recife era o reflexo de
diversas influências oriundas do sanitarismo e do higienismo do século XIX, além dos
preceitos do movimento moderno. Para autora, isso se dava por três motivos principais:
“inadequação do emaranhado de vias às exigências de tráfego do início do século, os
problemas de salubridade e a feição colonial” (LORETTO, 2008, p.62).
Embora os projetos de construção dessa avenida fossem recorrentes nos planos
de reforma para os bairros de Santo Antônio e São José56 desde os anos 1920, as obras
tiveram início apenas em 1943, quando o primeiro trecho, ligando a Praça da República
à Igreja Matriz de Santo Antônio, foi aberto. As obras seguiram até 1959, quando foram
paralisadas, nas proximidades da Igreja do Carmo. Diversos motivos levaram a essa
paralisação, um deles foi a intensificação das discussões a respeito dos danos que a
intervenção estava causado nesse núcleo histórico da cidade.
A necessidade de se modernizar o Recife focando na urbanização dos espaços,
na construção de pontes e na abertura de vias é uma constante em todos esses discursos
citados e Augusto Lucena resgata isso para justificar as suas intervenções pela cidade.
Antônio Paulo Rezende destaca que
O discurso da modernização contagia o poder público. Mesmo adotando
práticas políticas conservadoras, era constante nas mensagens dos
governadores de Estado projetos e referências a atitudes administrativas
voltadas para a modernização, dentro das possibilidades da época.
(REZENDE, 1997, p. 37-38)
Político conservador, com fortes laços com o governo militar, Lucena ignorou as
novas questões urbanísticas que se apresentaram na época e resgata um discurso
autoritário, fundamentado em práticas já tidas por muitos como obsoletas, decidindo
levar adiante suas ideias intervencionistas. A abertura e o alargamento de vias eram
vistos como a solução para os problemas de fluidez no trânsito da cidade. Apoiado pelos
militares, Lucena, contrariando diversos pareceres técnicos, realizou, de forma
autoritária, inúmeras intervenções objetivando “sanar” os problemas do Recife e
erradicar toda “velharia” presente na cidade, que, sob sua ótica, atrapalhava o caminho
do desenvolvimento. Como se mostrou com o tempo, essas intervenções não resolveram
os problemas da cidade, porém, causarem prejuízos irreparáveis ao seu patrimônio,
como veremos a seguir.

56
Para mais detalhes sobre esses planos ver LORETTO, 2008.
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2. Os danos ao patrimônio cultural recifense.


Uma necessidade de “sanar” o Recife foi muito reforçada nos anos 1960 a partir
das grandes cheias que atingiram na cidade e foram usadas como justificativa para as
intervenções realizadas em alguns dos seus centros históricos57. Uma dessas cheias, a de
1965, foi responsável por inúmeros danos às pontes históricas, em sua maioria,
construídas em ferro no século anterior.
Num contexto mundial, o século XIX foi um período histórico de grande
popularização do uso do ferro nas obras de engenharia e arquitetura, uma vez que a
tecnologia industrial permitiu a exportação, da Europa para diversos lugares no mundo,
de estruturas e edifícios inteiros já prontos. O Recife foi, no Brasil, uma das cidades
pioneiras a usar dessa tecnologia, principalmente na construção de pontes. Ao longo
daquele século, diversas delas, como a Lassare, a da Boa Vista, a da Maxambomba e a
Princesa Isabel, foram construídas ou reformadas adotando estruturas metálicas e se
tornaram uma marca da cidade. A má conservação, as necessidades de alargamentos e a
falta de percepção do valor dessas estruturas como documentos de um período de
crescimento da cidade, fizeram com que muitas delas fossem substituídas ao longo dos
anos, sendo que, na segunda metade do século XX, poucas delas haviam sobrevivido.
Uma dessas sobreviventes era a Ponte Lassare, construída pela Companhia de Trilhos
Urbanos, em 1884, para dar passagem aos trilhos da maxambomba, ligando os bairros
da Capunga e da Madalena.
Anterior a Ponte Lassare, outra sobrevivente era a ponte da Boa Vista, que teve
suas obras iniciadas em 1874 por ordem do então governador da província, Henrique
Pereira de Lucena, o futuro Barão de Lucena. Projetada pelo engenheiro Francisco
Pereira Passos, a ponte, toda executada em ferro batido e fabricada na Inglaterra, foi
inaugurada em 7 de setembro de 1876, e, sem sombra de dúvida, é na cidade do Recife,
e talvez em toda a região, a mais importante obra de engenharia daquela época. Obra
ousada e de autoria de um técnico brasileiro, a ponte foi incorporada ao quadro urbano e
à paisagem recifense e se tornou, ao longo do tempo, a ponte mais conhecida da cidade.

57
Entendemos aqui que o Recife não é composto por apenas um centro histórico conformado pelos
bairros do Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista, mas também por outros núcleos históricos,
definidos a partir de bairros periféricos, como Apipucos, Poço da Panela, Capunga, Madalena, Várzea e
Caxangá, dentre outros.
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Ambas foram danificadas pelas cheias e, após a tragédia, uma equipe foi
designada para fazer um levantamento da situação das pontes da cidade, resultando na
demolição de quase todas elas58, que foram substituídas por novas estruturas em
concreto armado. O parecer final desse relatório também apontou que, no caso da ponte
da Boa Vista, deveriam ser feitos apenas alguns reparos emergenciais. Essa sugestão era
contrária à vontade de Augusto Lucena, que chegou a afirmar, em entrevista ao Diário
de Pernambuco de 31 de Julho de 1965, “ser mais importante se tornar a aumentar o
volume das despesas na erição de uma nova e moderna obra de arte59 do que despender
verbas para a restauração da intranquilizadora ponte”.
O chefe do 1º Distrito do SPHAN na época, o engenheiro Ayrton Carvalho, já
reconhecendo os valores patrimoniais de tal estrutura, em julho do mesmo ano, abriu o
processo 760-T-65, que objetivava o tombamento federal da ponte, a fim de garantir a
sua preservação e dar início às obras de reparo da estrutura. A obra de conservação, que
seria mais barata que a execução de uma nova ponte, foi bastante retardada, e essa
demora expôs a ponte da Boa Vista às cheias do ano de 1966, fragilizando ainda mais a
já danificada estrutura. O prefeito, que insistia na demolição, afirmava que após a última
cheia a ponte agora estaria condenada, propondo então uma mudança no seu sistema
estrutural, que ficaria completamente descaracterizado, perdendo as principais
características que davam valor a essa estrutura60.
Nesse ínterim, a ponte já se encontrava interditada há quase dois anos,
ocasionando muitos protestos para que ela fosse liberada para o tráfego. Augusto
Lucena, então, se aliou aos lojistas que passaram a pressionar o SPHAN para liberar as
obras pretendidas pela prefeitura, contrárias às determinações técnicas que buscavam
preservar as características estruturais da ponte. A Câmara de Dirigentes Lojistas do
Recife apoiava a obra, pois se dizia prejudicada com a interdição da ponte, e com isso
eles e a prefeitura começaram um trabalho de “conscientização” da população de que
não era importante a preservação da ponte, que a mesma estava atrapalhando o
“progresso” da cidade e, sem consultar o SPHAN, a prefeitura deu início à obra de
substituição da estrutura.
58
De todas as pontes históricas do Recife, a única ponte metálica que restou foi a 6 de Março, também
conhecida como Ponte Velha, que liga o Cais da Detenção à Rua Velha.
59
Termo técnico utilizado pela engenharia para se referir a estruturas tais como pontes e viadutos.
60
O processo de descaracterização da Ponte da Boa Vista foi discutido em CANTARELLI, 2006, a partir
de ofícios, relatórios e notícias de jornal encontrados no Arquivo Central do IPHAN, no Rio de Janeiro.
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Ayrton Carvalho, não convencido dessa situação, convida então o engenheiro


Joaquim Cardoso para dar um parecer sobre o caso. Após uma criteriosa análise da
situação da estrutura da ponte ele afirma que a mesma é perfeitamente restaurável e a
preservação da superestrutura metálica e de sua feição plástica jamais comprometeria a
estabilidade da ponte, sendo desnecessárias as obras descaracterizadoras já iniciadas.
No dia 05 de abril de 1967 Ayrton Carvalho envia um ofício à Prefeitura do
Recife solicitando a paralisação das obras, o que não acontece. Sem obter resposta
alguma, o SPHAN tenta embargar a obra, tendo o apoio do Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico de Pernambuco, assim como da Faculdade de Arquitetura e do
Instituto de Arquitetos do Brasil, não obtendo sucesso. O caso é encaminhado à justiça e
no dia 15 de junho daquele ano a obra enfim é embargada. Tardiamente, segundo
Ayrton, dado o avançado estágio das obras, que duraram 71 dias de “trabalho
ininterrupto, dia e noite”. Lucena, ciente que a intervenção que realizava na ponte era
contrária aos pareceres técnicos tratou de acelerar a obra, ao ponto de que quando,
enfim, o SPHAN conseguiu paralisá-la, já era tarde demais, e devido ao seu avançado
grau de descaracterização, a Ponte da Boa Vista já não merecia mais o título de
Monumento Nacional.
Essa intervenção, bem como todas as outras feitas na cidade, foi capitaneada
pela Secretaria de Viação e Obras Públicas, que acabou se tornando a secretaria de
governo mais importante nas gestões de Lucena. Os projetos viários eram o carro chefe
das ações de Augusto Lucena e foi a, suposta, necessidade de dar mais fluidez ao fluxo
motorizado que justificou as intervenções na malha da cidade. Nesse momento muitas
vias foram abertas e alargadas, ao prejuízo de inúmeras construções históricas, como o
Cemitério dos Ingleses, localizado na Avenida Cruz Cabugá. A origem desse cemitério
remonta a 1814, quando o então governador de Pernambuco demarcou aquelas terras
onde deveriam ser enterrados os súditos britânicos, que, não sendo católicos, não
poderiam ser enterrados nas igrejas católicas ou nos pequenos cemitérios a elas anexos.
O alargamento da Cruz Cabugá obrigou o recuo do portão frontal do Cemitério que
acabou por sacrificar toda a sua parte frontal, onde estavam localizados os túmulos mais
antigos.
A parte dessas intervenções pontuais em alguns monumentos da cidade, sempre
justificadas pela necessidade de se melhorar o fluxo de veículos, as grandes
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intervenções realizadas por Augusto Lucena se deram nos bairros de Santo Antônio e
São José. A primeira delas foi a abertura da Avenida Nossa Senhora do Carmo, iniciada
em 1966, que tinha por objetivo ligar o Pátio do Carmo à Avenida Martins de Barros,
antigo Cais do Colégio, sendo para isso sacrificadas as travessas do Carmo e do
Livramento, além de diversos sobrados edificados, em sua maioria, entre os séculos
XVII e XVIII. Pouco alardeada, essa obra foi o início das grandes intervenções no
tecido urbano desses bairros, que culminaram com a retomada do projeto de abertura da
Avenida Dantas Barreto, paralisada desde 1959.
As obras da Avenida foram retomadas em 1964, assim que Lucena assumiu o
cargo de prefeito, no entanto, trazendo a tona uma vasta gama de polêmicas, uma vez
que a Igreja dos Martírios estava no caminho da avenida. Tal edificação, construída pela
Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, composta por negros e crioulos, era um
raro exemplo da transição entre o Rococó e o Neoclássico em Pernambuco, onde a
exuberância da fachada contrastava com a simplicidade do seu interior.
Vinculado ao templo, além dessa importância material, outro valor, imaterial,
era de extrema relevância: a Procissão dos Martírios. Uma das mais populares, essa
procissão era a primeira a sair na cidade e marcava o início da quaresma e, ainda na
década de 1920 quando a imaterialidade do patrimônio sequer era discutida, o Inspetor
de Monumentos Anníbal Fernandes destacou a importância em se preservar não só a
Igreja dos Martírios, mas também a sua procissão.
Em 1969, com o fim da primeira gestão de Augusto Lucena, ocorreu uma
desaceleração na polêmica em torno da demolição da Igreja. Assumiu como prefeito
Geraldo Magalhães que chegou a solicitar a elaboração de uma nova proposta para a
avenida, visando poupar o templo. A ideia foi descartada por Lucena, que reacendeu a
polêmica assim que voltou ao cargo, em 1971, deixando claro que iria concluir a
Avenida da forma que foi prevista originalmente.
Augusto Lucena não chegou, em nenhum momento, a cogitar a permanência da
Igreja; estava determinado a abrir a Dantas Barreto a qualquer custo, chegando a sugerir
que uma cópia do edifício fosse feita noutro local. A irmandade mantenedora do templo
se mostrava contra a demolição do edifício e a polêmica tomou conta dos jornais da
época. Diversos intelectuais entraram na luta pela defesa do templo, como Mauro Mota,
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Gilberto Freyre61 e Benício Dias, deixando claro um interesse coletivo na preservação


do edifício e reconhecendo a sua importância para a cidade. O SPHAN, por fim, entrou
na disputa e os ânimos se acirraram com o tombamento do edifício em 1971.
A municipalidade não desistiu da ideia e, aliada a Arquidiocese de Olinda e
Recife, desativaram a Igreja contra a vontade da Irmandade dos Martírios, além de
proibir a realização da Procissão dos Martírios. Augusto Lucena chegou ao ponto de
isolar fisicamente o edifício, impedindo que o SPHAN tivesse acesso a ele e realizasse
alguns serviços de conservação necessários, uma vez que, depois da demolição de todos
os sobrados no seu entorno, o templo estava seriamente ameaçado de desabamento.
Rosane Loretto (2008) na sua pesquisa sobre o a demolição do templo chegou a
identificar ações de sabotagem feitas, clandestinamente, pela Prefeitura, o que
acarretaram na derrubada da torre da igreja.
Apesar das ações da Prefeitura, o templo continuava em pé. Segundo Loretto,
(2008, p.191), os esforços empreendidos por Lucena eram parcialmente frustrados, pois
nem ele conseguia a autorização para demolir a igreja, tampouco ela ruía por si só. A
permanência do templo passou a ser vista como uma afronta ao regime militar. À
medida que a abertura da Dantas Barreto era tida como uma grande obra do governo,
Lucena via a defesa pela preservação do monumento como uma tentativa de enfraquecer
o Regime, e até mesmo desautorizá-lo, chegando ao ponto de colocar em questão a
idoneidade do SPHAN de Pernambuco.
Por fim, após diversos pedidos insistentes, Augusto Lucena conseguiu que em
11 de abril de 1972 Emílio Garrastazu Médici assinasse o Decreto presidencial nº
70389, cancelando o tombamento da Igreja dos Martírios. Após o destombamento, a
igreja ainda passou algum tempo pé, e a sua demolição foi divulgada na imprensa como
um grande evento cívico, marcado para as 10h da manhã de 12 de janeiro de 1973,
finalizada com outro evento, às 9h da manhã do dia 28 do mesmo mês. Demolição que,
segundo o prefeito, dava início a um novo “estágio para o desenvolvimento do Recife”.
Loretto ainda destaca que a abertura da Dantas Barreto fez parte de um ideário
desenvolvimentista presente no imaginário da época, que, no entanto, era questionado
por boa parte da intelectualidade. A abertura da Avenida, que foi transformada num

61
Gilberto Freyre, ao longo do processo de abertura de avenida mudou de lado na discussão e passou a
ser favorável às demolições no bairro de São José.
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símbolo de progresso por alguns, foi uma das mais violentas intervenções sofridas nos
núcleos históricos do Recife, mutilando de forma definitiva o Bairro de São José num
momento em que a preservação não só dos grandes edifícios tomava vulto, mas também
quando já se vislumbrava a necessidade de preservação dos conjuntos urbanos, tema
que havia entrado de vez nas discussões patrimoniais.

3. As novas posturas preservacionistas.


A segunda metade do século XX foi bastante rica em termos de discussões a
respeito da preservação do patrimônio, uma vez que, com a incorporação de um
conceito antropológico de cultura ao discurso patrimonial, novas abordagens surgiram.
Muito incentivado pela UNESCO, nesse momento, o SPHAN começou a ampliar as
suas formas de atuação na proteção do patrimônio e buscou “reformular e reforçar sua
atuação, visando compatibilizar os interesses da preservação ao modelo de
desenvolvimento então vigente no Brasil” (FONSECA, 1997, p.142).
Esse modelo de desenvolvimento, citado por Maria Cecília Londres Fonseca, era
marcado por incentivos à industrialização, à urbanização das cidades e à interiorização.
A cultura havia adquirido um caráter mercantil e o patrimônio foi visto, então, como
uma forma de desenvolvimento para os estados mais pobres através do turismo. Nesse
contexto, então, foi criado em 1973 o Programa Cidades Históricas (PCH), que tinha
como um dos seus principais objetivos a recuperação e reativação econômica das
construções históricas do Nordeste.
Segundo Roberto Sabino, “a criação do Programa [Cidades Históricas] é um
elemento sintomático do interesse do regime militar no patrimônio como parte
integrante do grande programa de desenvolvimento do país” (SABINO, 2012, p.61) e
sua origem está atrelada a um processo de à regionalização da proteção do patrimônio
no Brasil, incentivada a partir de dois encontros realizados nas cidades de Brasília, em
1970, e Salvador, em 1971. Conhecidos como Encontro dos Governadores, essas
reuniões foram importantes na percepção da responsabilidade que os estados e
municípios da federação tinham na preservação do patrimônio brasileiro, e que
deveriam criar instituições e legislações próprias para receber recursos
financeiros à execução do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades
Históricas e, assim, utilizar os bens restaurados para atrair o turista e produzir
o retorno do capital aplicado (SIQUEIRA NETO, 2011, p.46).
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Para destinação de recursos, o PCH demandava a existência de um órgão que


fosse responsável pelo recebimento da verba e executasse as obras, além de uma
legislação complementar sobre o tombamento em nível estadual. A partir daí, então, foi
criada a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE)
em 197362, objetivando atender a exigências do PCH e habilitando o estado a receber
aportes financeiros destinados a recuperação de edifícios históricos. A legislação sobre
tombamentos só veio ao final da década, com lei nº 7.970, de 18 de setembro de 1979,
que institui o tombamento de bens pelo estado de Pernambuco.
A FUNDARPE, portanto, foi inicialmente criada apenas para receber verbas
federais e ser um instrumento para execução das obras de recuperação, fiscalizado pelo
SPHAN, feitas nos edifícios históricos, sem se preocupar, nesse primeiro momento,
com a proteção de novas edificações. Isso fica evidente quando vemos que as primeiras
intervenções realizadas pelo órgão se deram justamente em monumentos já
consagrados: a Igreja da Sé, a Igreja da Graça e o Palácio dos Bispos, todos em Olinda,
que teve seu Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico inscrito nos livros de
tombo do SPHAN em 19 de abril de 1968, e a Casa de Detenção do Recife63.
A concepção da FUNDARPE estava completamente alheia a todas as recentes
descaracterizações do patrimônio cultural no centro do Recife, já abordadas
anteriormente. O órgão foi criado com objetivos muito específicos, a fim de atender a
exigências do governo federal para alocação de recursos. No entanto, não se pode dizer
o mesmo em relação ao Plano de Preservação de Sítios Históricos da Região
Metropolitana do Recife, elaborado no mesmo período pela Fundação para o
Desenvolvimento da Região Metropolitana do Recife (FIDEM).
Por iniciativa da Secretaria de Planejamento, o Governo do Estado de
Pernambuco, através da FIDEM, desenvolveu, nesse período, um grande levantamento
a fim de identificar os mais diversos sítios históricos em Pernambuco passíveis de
preservação. Tendo como projeto piloto a Região Metropolitana do Recife, esse estudo

62
Criada como um órgão autônomo, em 1975 a FUNDARPE foi vinculada à Secretaria de Educação e
Cultura.
63
Embora, naquele momento, não fosse protegida por nenhuma esfera governamental a Casa de Detenção
fez parte do projeto, pois já estava desocupada e o governo de Pernambuco tinha a intenção de
transformá-la num centro de venda de artesanato, intervenção consonante com os objetivos do PCH de
incentivar o turismo.
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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

ficou conhecido como Plano de Preservação de Sítios Históricos: Região Metropolitana


do Recife, ou simplesmente PPSH/RMR, e foi publicado em 1978.
O propósito maior do Plano, que também defendia que a atitude preservacionista
devesse embasar a promoção do desenvolvimento socioeconômico, num discurso
alinhado com o do governo militar, era definir conceitos e proposições básicas acerca da
preservação dos sítios históricos da RMR, reconhecendo a necessidade de elaboração de
projetos específicos para cada um deles, a fim de caracterizar suas vocações e indicar os
elementos a serem preservados. Objetivando, ainda, localizar remanescentes da
ocupação humana com a presença de edificações típicas, preservadas ou não em relação
à concepção original, e que servissem como testemunho de épocas passadas.
Na introdução do PPSH/RMR, que cita os compromissos assumidos pelo
governo do estado nos encontros de 1970 e 1971, vemos claramente que ele se tratou de
uma reação às destruições recentes causadas nos sítios históricos do Recife:
O presente trabalho decorre do Plano de Desenvolvimento Integrado (PDI) da
RMR a cujos projetos setoriais se antecipa, devido à urgência em conter o
processo de destruição do patrimônio cultural metropolitano. De fato, a
partir do início do corrente século, ruíram, na Região, várias edificações, em
consequência do urbanismo demolidor e retificador, que pretendia
redesenhar as cidades, em função dos veículos automotores. (FIDEM,
1978, p.9) [grifos nossos]
O Plano chega a citar como exemplo demolições conhecidas da cidade, como a
dos Arcos de Santo Antônio e da Conceição, além da Igreja do Corpo Santo, todos eles
ocorridos na década de 1910 em função da reforma do Porto e da remodelação do
Bairro do Recife. Uma questão que salta diante dos exemplos citados é: que urgência
seria essa em conter demolições que, naquele momento, haviam ocorrido há mais de 60
anos? Fica claro que essa “urgência” da qual o plano fala estava relacionada às
demolições mais próximas, que haviam ocorrido há menos de 10 anos, levadas a diante
na gestão de Augusto Lucena, que tinha convicções muito firmes em relação à
permanência de edificações históricas e a necessidade de “fazer a cidade fluir”. O texto
prossegue reafirmando essa teoria:
Na realidade, esses monumentos não foram os alvos visados: quase sempre
faziam parte de conjuntos que deveriam ser sacrificados à sede de
progresso dos administradores de então; e eram justamente esses
conjuntos, sobretudo os urbanos, que, por sua forma e cor, caracterizavam a
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área. Cidades construídas em séculos, amputadas em anos, ao sabor de


experiências urbanísticas. Os conjuntos são destruídos aos poucos e menos
espetacularmente, do que os edifícios isolados. Por isso um plano destinado a
preservar o que restou, não poderia tardar mais (FIDEM, 1978, p.9). [grifos
nossos]
As intervenções de Augusto Lucena não são diretamente citadas, muito
provavelmente em função da proximidade da sua gestão e do ainda vigente governo
militar, que o apoiou, além do seu trânsito no meio político da cidade. No entanto, fica
claro nessas entrelinhas a crítica às suas “experiências urbanísticas” desastrosas.
Um fruto direto do PPSH/RMR foi a Lei municipal nº 13.957, de 26 de setembro
de 197964, assinada pelo prefeito Gustavo Krause, que absorveu os sítios históricos
delimitados pela pesquisa da FIDEM e instituiu, pela primeira vez no Recife, normas
gerais de proteção a “sítios, conjuntos antigos, ruínas e edifícios isolados, cujas
expressões arquitetônicas ou históricas tenham real significado para o patrimônio
cultural da Cidade do Recife”. Foram criadas as chamadas Zonas de Preservação (ZP)
da cidade, regulamentadas através de 16 decretos publicados ano longo de 1980,
fazendo do Recife uma das primeiras capitais, na esfera municipal, a implantar um
projeto para recuperação dos seus sítios históricos.

Considerações finais.
Existe uma coincidência temporal muito forte entre as ações de Augusto Lucena
e o surgimento de novas posturas preservacionistas em Pernambuco que ainda
demandam estudos mais aprofundados, não possíveis de serem feitos nesse artigo. O
período no qual Augusto Lucena geriu a cidade foi aquele no qual a municipalidade
estava fortemente ligada aos ideais do regime militar e, na maior parte desse tempo,
durante um dos momentos mais repressores do regime, quando a presidência estava
ocupada pelo General Emílio Garrastazu Médici. Lucena, usando de um discurso
autoritário, quis dar ao Recife os “ares de uma cidade moderna” e resgatou um discurso
atrasado, usando em momentos históricos anteriores, apoiado pelos militares.

64
No mesmo ano também foi criada a Fundação de Cultura da Cidade do Recife, através da lei nº 13.535,
de 26 de abril de 1979, que tinha como um dos seus objetivos “executar programas de recuperação e
preservação de documentos, sítios e monumentos históricos da Cidade do Recife”.
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Para levar adiante esse discurso, muitas ambiências e edifícios históricos foram
demolidos. A destruição desses monumentos e espaços urbanos pode, também, estar
relacionada à intenção de se destruir as memórias, a história e uma identidade agregada
a esses lugares, o que reforça o seu esquecimento. O Recife que talvez se quisesse
esquecer não era apenas um Recife “atrasado”, repleto de “velharias”, de ruas estreitas,
mas um Recife com espaços públicos ricos em convivência social e marcado fortemente
por ideais revolucionários.
A percepção do sonho de modernidade que existiu no Recife no começo do
Século XX, seguiu pelos anos 1940, retornou nas décadas de 1960 e 1970 (e,
infelizmente, ainda resiste) mostra que o desejo de intervir na cidade não foi inaugurado
nas gestões de Augusto Lucena, no entanto, ele foi responsável por uma das
intervenções mais violentas já realizadas no centro da cidade. Lucena, ao retomar esses
ideais sem questioná-los, ignorou toda uma discussão que já se fazia presente no
momento, argumentando que o planejamento da cidade não poderia mais ser visto a
partir de uma página em branco, havia a necessidade de preservar construções e espaços
que a formaram e a caracterizaram ao longo do seu processo de crescimento e expansão.
Como uma reação a essas destruições, em Pernambuco, pouco depois, surgiram
estruturas de proteção ao patrimônio que iam além da esfera federal, dominante desde a
década de 1930: a FUNDARPE e o PPSH/RMR. No entanto, é, no mínimo, curioso
perceber que nesse momento os dois grandes projetos capitaneados pelo Governo do
Estado, em prol da preservação do patrimônio, nasceram a partir de iniciativas
completamente diferentes e em secretarias distintas, quando deveriam estar ligados
desde a sua concepção. O PPSH/RMR foi de fato uma reação às destruições recentes,
indicando que o estado precisava se afinar com as discussões patrimoniais daquele
momento, ao passo que a criação da FUNDARPE, inicialmente, se deu para habilitar o
governo a receber recursos do PCH, sendo incorporada a essa iniciativa muito depois.

Referências
CALABI, Donatella. O papel de Paris na urbanística italiana do século XIX: o mito da
modernização. In: SALGUEIRO, Heliana Angotti (org.). Cidades Capitais do Século
XIX. São Paulo: EDUSP. 2001.
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CANTARELLI, Rodrigo. Contra a conspiração da ignorância com a maldade: a


Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais e o Museu Histórico e de Arte Antiga de
Pernambuco. Dissertação (Mestrado em Museologia e Patrimônio) – Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2012.
CANTARELLI, Rodrigo. De arruados dispersos a uma conformação singular:
diretrizes para o tombamento federal do bairro da Boa Vista. Trabalho de Conclusão de
Curso (Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2006.
FIDEM – Fundação de Desenvolvimento da Região metropolitana do Recife. Plano de
Preservação dos Sítios Históricos: Região metropolitana do Recife – PPSH/RMR.
Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1978.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/IPHAN, 1997.
LORETTO, Rosane Piccolo. Paraíso & Martírios: histórias de destruição de artefatos
urbanos e arquitetônicos no Recife. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento
Urbano) – Universidade Federal de Pernambuco, 2008.
PREFEITO Augusto Lucena. Boletim da Cidade do Recife, Recife, n. 63/169, [s. p.],
jan./dez. 1957/1967.
PREFEITURA transforma fisionomia urbana da capital pernambucana. Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 13 dez. 1967.
RECIFE quatrocentão ganha nova fisionomia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11
mai. 1967.
REZENDE, Antônio Paulo. (Des)Encantos Modernos: Histórias da cidade do Recife na
década de 1920. Recife: FUNDARPE, 1997.
SABINO, Roberto. Litígios Patrimoniais: as disputas pela representação do patrimônio
nacional (1967-1984). Dissertação (Mestrado em Museologia e Patrimônio) –
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2012.
SIQUEIRA NETO, Moysés Marcionilo de. Sob o véu do patrimônio cultural: uma
análise dos processos de tombamento em Pernambuco (1979 – 2005). Dissertação
(Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural) – Universidade Federal de
Pelotas, 2011.
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A DITADURA DO CONSERVADORISMO: OS USOS ESTRATÉGICOS DA


PRODUÇÃO PORNOGRÁFICA PELA DITADURA CIVIL-MILITAR
BRASILEIRA

Romulo Gabriel de Barros Gomes


Graduando– UFRPE
barros_romulo@hotmail.com

O presente trabalho dedica-se ao estudo da pornochanchada, gênero


cinematográfico brasileiro surgido nos anos de 1970 e 1980. As produções em questão
podem ser reconhecidas por seu baixo orçamento, pouca preocupação com o caráter
artístico, por seu conteúdo cômico, seu apelo sexual e sua grande bilheteria. Tais
características, a priori, não coadunam com a doutrina defendida pelos militares em seu
discurso oficial, notadamente conservador, defensor da dita moral e bons costumes.
Diante de tal incompatibilidade, porquê um governo com possibilidades institucionais e
(in)constitucionais permitiria a produção e exibição de tais filmes? Observa-se com a
análise fílmica, que o discurso veiculado pelas pornochanchadas não era de todo
contrário ao militar. Através do discurso estereotipado, machista, homofóbico e
misógino, as películas corroboravam com o conservadorismo vigente, constituindo-se
uma ferramenta doutrinária eficiente e considerada como desvinculada ao governo
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ditatorial. A ligação do governo, entretanto, pode ser observada no decurso da pesquisa;


esta apresenta-se de maneira tênue através da permissividade seletiva nos laudos
censórios e de maneira direta no que diz respeito à ligação da estatal EMBRAFILMES,
sócia das produções.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Normatização; Pornochanchadas;

1. INTRODUÇÃO

A ditadura civil-militar brasileira foi um regime singular, o que é facilmente


observável em contraste com as outras ditaduras do período. Esta não teve seu poder
concentrado simbolicamente apenas num líder, mas em instituições. Desse modo, todo
um aparato estatal foi montado para que a viabilidade do regime militar fosse alcançada.
Uma série de órgãos foi criada com tal finalidade, estes operavam muitas vezes
de maneira independente ou sem aval direto do presidente. Para além deste fato, na
tomada de decisões durante o regime, um generalato deveria ser consultado e poderia
tomar decisões antes mesmo do próprio presidente – como no caso da sucessão de
Castelo Branco em 1967, no qual o Costa e Silva foi escolhido em contradizendo a
vontade de Castelo. Estes exemplos dão mostra do quão independente em suas ações
poderia ser a rede que constituía os mecanismos repressão do governo.65
A máquina do estado de exceção, bem como suas metas e objetivos, foram
muitas vezes reformulados e contestados dentro da alta cúpula diligente. É possível que
se fale em “golpes dentro do golpe” como atesta Couto (2003), desse modo, observa-se
a alternância de linhas de pensamento nas duas décadas de vigência do regime.
É necessário desfazer-se de uma antiga linha de investigação acerca da temática.
Referimo-nos a alguns textos que retrataram o período da ditadura com certa
linearidade, uma linearidade muitas vezes reducionista. A ditadura, de modo geral,
tendeu a grandes reformulações. O plano inicial, que deveria ser lavado a cabo com o
golpe debelado em 1964, foi modificado uma série de vezes e altos postos de comando
foram trocados durante a vigência do governo em questão. Estas mudanças realizadas

65
Para maiores detalhes da estruturação da rede de repressão no regime civil-militar, ver: SILVA.
Marcília Gama. Informação, Repressão e Memória: A Construção do Estado de Exceção no Brasil na
perspectiva do DOPS-PE de 1930-1945. Tese de Doutorado. UFPE, Recife -PE, 2007
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no dito plano inicial do Estado de Exceção, acabaram por gerar um Estado de Anomia
no país.
“Estado de Exceção”, é o termo utilizado para designar um estado que diverge,
em seu ordenamento, do estado de normalidade política. O estado de exceção é,
entretanto, previsto na norma jurídica. Ele está inserido no códex das sociedades
democráticas e deve ser acionado em ocasiões nas quais a própria ordem democrática
esteja em perigo. Ou seja, suspende-se a ordem democrática, para que ela possa retornar
com segurança num momento posterior. À princípio este era o plano de parte do regime
brasileiro instaurado em 1964 ou, ao menos, o que declaravam publicamente –
embasados na lei, com os supracitados argumentos. Acontece, entretanto, que o estado
de exceção tomou uma configuração um tanto divergente do modelo legalmente
previsto, como veremos abaixo:

(Fonte: AGAMBEN, 2002, p.45, com adaptações)

Como observamos no esquema acima, regra democrática e estado de exceção


são conjuntos. O conjunto “regra” engloba o conjunto “exceção” e estes dois formam o
conjunto “estado de direito”. A alteração nesses planos provoca o que se chama de
Estado de Anomia. Neste caso, a exceção se torna mais perene que a regra. Foi o caso
da ditadura brasileira que, segundo o previsto na legislação, deveria apenas restaurar a
democracia pretensamente ameaçada, mas que instalou uma ditadura que durou 21 anos.
Qualquer acontecimento na história, por mais curto que seja, possui múltiplas
facetas e outras tantas possíveis interpretações historiográficas. A ditadura civil-militar
brasileira, entretanto, durante muito tempo foi fadada à uma observação maniqueísta –
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diríamos – a ditadura de uma direita golpista e uma esquerda militante, de uma linha
dura e uma linha moderada, de bons contra maus. Interpretação que não cabe mais à
história. Isto se aplica não só aos fatos ocorridos durante o regime de exceção, mas a
diversos outros objetos e recortes historiográficos.
As muitas nuances do jogo político ocorrido no tempo aqui analisado vêm à tona
com os estudos mais recentes, o merecido destaque deve ser dado à obra de Carlos Fico
que, sobre esta visão reducionista, comenta:

[...] clichês sobre o golpe de 64, os militares e o regime também vão sendo
abandonados, como a idéia (sic) de que só após 1968 houve tortura e censura;
a suposição de que os oficiais-generais não tinham responsabilidade pela
tortura e o assassinato político, a impressão de que as diversas instâncias da
repressão formavam um todo homogêneo e articulado, a classificação
simplista dos militares em “duros” ou “moderados” etc. Por tudo isso,
podemos falar de uma nova fase da produção histórica sobre o período.
(FICO, 2004: 30)

É com esta visão transmitida por Fico que pretendemos prosseguir com as
análises em nossa pesquisa. Refletiremos sobre um dos períodos mais contraditórios da
ditadura civil-militar, cuja historiografia destaca como sendo o que mais utilizou os
mecanismos ditatoriais, isto é, o período da abertura que vai dos anos de 1970 a 1980.
Neste estudo, toma-se como foco para a análise destes aspectos da ditadura civil-
militar a relação entre a produção cinematográfica e a sociedade civil-militar brasileira,
as relações dissonantes entre a censura e as produções fílmicas.
Para tal análise, elege-se como objeto as pornochanchadas, filmes eróticos com
baixo custo, forte apelo sexual e cômico que obtiveram grande sucesso entre o público
dos cinemas nacionais. A princípio, um regime castiço como aquele, não permitiria
tamanha afronta à moral e aos ditos bons costumes como os exibidos nos cinemas
brasileiros das décadas de 1970 e início de 1980. Por quais motivos então os filmes
foram produzidos e exibidos durante a ditadura?
Para pensar tal relação e a questão acima suscitada, traz-se à tona algumas
possibilidades sobre a produção e exibição destes filmes em nosso país: (1) os cineastas
da Boca do Lixo foram iconoclastas que desafiaram o sistema censório e repressivo de
então em nome de seus filmes. (2) O sistema, em vias de distensão, já não tinha mais
forças para proibir tal produção. (3) Pão-e-Circo, enquanto os expectadores se
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masturbavam nos cinemas, os militares tocavam seus projetos sem maiores


preocupações. (4) As pornochanchadas trariam benefícios financeiros ao governo. (5)
As pornochanchadas traziam em si toda a carga da cultura em que se inseriram,
moldando as relações sexuais expostas nas películas conforme as tendências normativas
do período e contribuindo, de tal maneira, para a contínua doutrinação de seu público.
Acerca da sobre a primeira hipótese, esta pode ser anulada se analisarmos o fato
de que as pornochanchadas mostraram-se uma empresa bastante lucrativa e, segundo a
crítica especializada, pouco preocupada com a qualidade artística de seus filmes. Como
atesta a matéria do Jornal do Commércio do 4 de abril de 1978, intitulada “O que
interessa é lucro; arte não”, que tece duras críticas à pobreza de roteiros e produção dos
filmes rodados em massa com o objetivo maior de angariar mais lucro possível,
conclusão que pode ser obtida se o leitor desejar assistir a alguns dos filmes e constatar
a atuação mecânica de boa parte dos integrantes, além dos cenários toscamente
executados e um sem números de clichês utilizados nos filmes, por exemplo.
Partamos, assim, para a segunda, esta anula-se pela razão de que o sistema de
repressão não foi desmontado durante a distensão. Mais do que nunca, este foi
necessário para concluir o projeto da “distensão lenta, gradual e segura” – como
denominado por Ernesto Geisel (COUTO, 2003), O Departamento de Ordem Política e
Social – DOPS, órgão responsável pela repressão, por exemplo, não foi extinto com a
redemocratização. Ainda foram atribuídas funções ao departamento até o ano de 2001,
como pode ser observado na Instrução Normativa Nº13 do ano de 2001.
A terceira hipótese, não é de todo falsa, apenas limitada. Além do desvio da
maior parcela da população dos assuntos politizados, o regime utilizou a
pornochanchada como ferramenta de doutrinação e perpetuação normativa, conforme se
observa ao analisar a relação entre a censura e estes filmes. Esta deve ser, por tanto,
somada à quarta e quinta hipóteses. Por fim, sendo quista pelas autoridades diligentes,
não poderia esta ser iconoclasta. Como foi dito, anulando a primeira premissa.
Nos resta pensar mais detalhadamente as duas últimas hipóteses. Para tal, será
necessário que discorramos de forma um tanto mais prolongada, como se verá nos
próximos tópicos.
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2. PORNOCHANCHADA E A EMBRAFILMES: DITADURA E


PORNOGRAFIA, SÓCIAS DE UMA EMPREITADA LUCRATIVA

A pornochanchada tem em sua origem e influência do cinema italiano. As


chanchadas – antecessoras de suas primas eróticas – remetem-se aos filmes populares e
de forte cunho humorístico produzidos em sequências de um, dois ou mais filmes, a
depender da repercussão e sucesso de bilheteria. Aponta-se para as décadas de 1940 e
1950 o surgimento e auge das chanchadas no Brasil (FILHO, 1995, p.67), a inserção das
cenas eróticas nas chanchadas deu-se nos anos de 1970, a partir de estratégias simples.
Da parte do público, para lograr êxito, os filmes se utilizam de sombras e luzes
muito mais para esconder a nudez dos corpos do que para mostra-la, resida talvez na
aura de mistério que gera e na expectativa da nudez de fato o atrativo para a grande
parcela da população que passa a se excitar, durante a exibição, tão somente com esta
espera. Outra estratégia passível de observação é a propaganda, estes filmes contavam
com títulos sugestivos e até mesmo se valiam das dificuldades em ultrapassar os
trâmites da censura para exibição das películas, como é o caso de “Coisas Eróticas”
(1982), que traz em seu anúncio, publicado no jornal Notícias Populares do dia 23 de
abril de 1984, os dizeres “Proibido e agora liberado por medida judicial” para atiçar a
chama do desejo pelo proibido no público, o que pareceu funcionar, dado que as filas na
estreia davam voltas no Cine Windsor em São Paulo segundo os relatos colhidos por
Denise Gondinho (2012).
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Da parte do estado, a pornochanchada surge no bojo da lei de incentivo ao


cinema nacional, decreto-lei Nº 862, de 12 de setembro de 1969, a mesma lei que cria a
Empresa Cinematográfica Brasileira – Embrafilmes, com o intuito de financiar a
produção cinematográfica nacional frente à produção internacional, notadamente à
produção norte americana que invadia os cinemas nacionais relegando os filmes
brasileiros aos espaços e horários menos prestigiosos de exibição. O que ocorre é que a
lei prevê o incentivo financeiro à produções nacionais, uma boa opção, portanto, seriam
as pornochanchada dado seu baixo orçamento, seria essa uma estratégia para aumentar o
número de produções beneficiadas pela lei de incentivo, mostrando estatisticamente a
sua eficácia com lucratividade do projeto, como atestam os números abaixo:

A Embrafilme investirá em até 30% de um orçamento de teto limitado, e terá


os direitos de distribuição para o cinema e televisão, no Brasil e no exterior.
Acoplada a essa operação, entra em cena o adiantamento sobre a renda de
filmes, de até 30% do orçamento. O produtor passa então a receber 60% do
orçamento do filme, e a Embrafilme garante para si uma participação
societária em todas as receitas auferidas durante a vida comercial de um
filme. Embrafilme garante para si uma participação societária em todas as
receitas auferidas durante a vida comercial de um filme. (AMÂNCIO, 2007,
p.177)
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A lucratividade da empresa parecia assegurada ao passar a ser sócia das


produções. Durante o período de vigência da lei, notou-se o acréscimo de 16% na
bilheteria do cinema brasileiro, ao passo que da norte-americana, um decréscimo de
1,6% (IDEM, p. 178). Desse modo, a Embrafilmes passa a se proteger dos danos
orçamentários, ora, se esta apenas emprestasse determinado valor aos produtores de um
filme e se este não conseguisse o retorno esperado em termos de bilheteria, seria muito
provável que não houvesse nenhuma possibilidade dos responsáveis honrarem tal
empréstimo, ficando o governo em prejuízo financeiro. A partir da estratégia adotada,
caso o filme não atingisse o sucesso esperado, não gerando porcentagem de lucro para a
Embrafilmes, esta teria pelo menos uma parcela da pouca bilheteria para cobrir a
porcentagem que empenhou para ser sócia da produção.
Mas o fracasso não era uma constante na exibição das pornochanchadas. A
Empresa Cinematográfica brasileira não só cobriu seus gastos, como também gerou
receita extremamente positiva em seu período de operação. Tal fato é passível de
observação se levarmos em conta os números de público dos filmes do período e outros
block busters mais recentes e de investimento milionário. É o caso de “Dona Flor e seus
Dois Maridos” (1973), que conquistou a média de 12,5 milhões de espectadores e “O
Senhor dos Anéis”(2001), apenas 5 milhões. (SIMIS, 2005)
O cinema nacional parecia estar em uma boa fase pelos números acima
explicitados e também de acordo com a crítica publicada nos jornais, como o texto
trazido no Jornal do Commércio do dia 17 de março de 1978, ocupando uma página
inteira com ricas ilustrações e curto texto, dentre estes, a manchete “Cinema nacional dá
prejuízo?” e sendo respondido mais adiante com os números do II Festival de cinema de
Curitiba realizado naquele ano. O festival atingiu o patamar dos 17.138 pagantes em
apenas duas semanas de exibição das películas brasileiras.
Que os jornais em muito contribuíam para a propaganda do cinema nacional, já
explicitamos. Tanto era que, até quando se propunha a fazer o papel de sua detratora, os
jornais pareciam alavancar as bilheterias. O fato de ambos os posicionamentos da mídia
refletirem-se positivamente nas bilheterias ser apenas coincidência ou uma estratégia
propagandística muito bem elaborada, não poderemos ter plena certeza da resposta. Mas
a dúvida, e não a certeza, é mais digna para a história. Desse modo, fiquemos com ela.
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No mais, que o decorrer do texto possa trazer ao leitor mais questionamentos acerca
disto, ao menos dizemos-lhe que fora esta nossa intenção.
Não só a mídia muitas vezes acariciava a produção nacional, mas também o
discurso oficial que, em relação às pornochanchadas, também se mostrava bastante
ameno. Tal fato pode ser observado a partir da análise do depoimento de Roberto Faria
(In: SIMIS, 2005), diretor da Embrafilmes por quatro anos e que afirma que “em relação
à censura, outro ponto sempre lembrado quando se fala de ditadura, a meu ver os filmes
eram auto-censurados, pois havia pouco conflito com a censura [...]”.
O grande carrasco da produção da pornochanchada no Brasil não foi a censura,
mas o cinema estadunidense. Com a permissividade da censura no fim do regime, fez-se
possível a exibição não só de “Coisas Eróticas”(1982), primeiro filme com cenas de
sexo explícito nacional, mas também de outros, como o japonês “Império dos Sentidos”
(1976) – exibido no Brasil em 1980, após extenuante luta judicial contra a censura –
além de outras produções eróticas internacionais massivamente produzidas na américa
do norte. Ao contrastar o aporte técnico dos filmes pornográficos estadunidenses com os
brasileiros a disparidade foi gritante. O produto brasileiro, menos atrativo em seus
aspectos técnicos, foi esquecido pelo público nacional que acorria às salas de cinema
para assistir as cenas de sexo das estrelas norte-americanas.

4. PORNOCHANCHADAS: NORMATIZAÇÃO DO DISCURSO MACHISTA

Para pensar a quinta e última hipótese, faz-se necessário desmistificar alguns


preconceitos em relação às produções fílmicas do gênero aqui analisado. O preconceito
intelectual relegou esta expressão cinematográfica ao hall das menos dignas em termos
artísticos e por conseguinte, menos selecionada dentre as opções de análise
historiográfica. Entretanto, evocamos as palavras de Ulpiano Bezerra de Menezes que,
ao tratar das imagens na história, pode nos ajudar a compreender que até a mais simples
das obras pode trazer em si mais informações que aparenta ou, em suas palavras: “O
visível é sintoma do invisível, e todo objeto, toda imagem, significam mais do que a
aparência e podem conduzir à circunscrição de um inconsciente coletivo, uma
cosmovisão, um espírito da época”. (MENEZES, 2011: 245)
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Elencados os argumentos contra ou a favor das hipóteses anteriores, faremos


agora a análise de algumas das produções do gênero para a discussão da quarta e última
premissa. Para tal, elencamos neste momento a película “19 Mulheres e 1 Homem”
(1977) de David Cardoso e “Coisas Eróticas” (1982), bem como os documentos gerados
pelo Departamento de Censura e Diversões Públicas – DCDP.
O primeiro filme, tratado com mais brandura, traz uma série de estereótipos de
uma sociedade misógina. O roteiro trata de um grupo de 18 universitárias e uma
professora que decidem viajar, para se aproveitar do grupo, o diretor da empresa de
ônibus contratada para a viagem, faz às vezes de motorista. No trajeto o grupo é
abordado por bandidos que fazem das alunas reféns. O motorista, antes um anti-herói
sexualmente mal intencionado, tenta salvá-las dos malfeitores. Nota-se uma trajetória
previsível para a trama, o personagem principal se arrepende de suas intenções sexuais
para com todas as 19 mulheres e diante das adversidades se apaixona apenas por uma.
A partir da sinopse acima exposta, é possível perceber que as relações são
pautadas num código ético, numa diretriz de comportamento machista. O personagem
principal é o legítimo representante do estereótipo do “macho alfa” – comportamento
desejável no princípio da vida sexual de um homem ocidental e de uma sociedade
militaresca como a brasileira – que ansiava por muitas mulheres para se aventurar, mas
não se apegar afetivamente a nenhuma delas.
Como no conteúdo da matéria que ocupa uma página inteira do Diário de
Pernambuco do dia 3 de agosto de 1977, cujo título, “Egoísmo de David Cardoso: ‘19
Mulheres e um Homem’”, já denota o desejo inconsciente – ou muito consciente – do
repórter, e talvez dos leitores do sexo masculino, em dividir com o protagonista seus
“bens”, como mostra também a primeira ilustração da matéria trazida abaixo.

(Fonte: Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE, Diário de Pernambuco, 3 de agosto de
1977)
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Na legenda da fotografia, diz-se: “David Cardoso (bem acompanhado), mas na


mira do revólver de Luiz Carlos Braga. Os signos do machismo utilizados com o
objetivo de proporcionar a atração do público masculino para o filme são explícitos. Na
imagem, nota-se homens vestidos – com exceção do macho-alfa que exibe seu peitoral
ostentado como símbolo de masculinidade – e mulheres seminuas, coisifica-se desta
forma o corpo feminino trazendo-o como atrativo sexual tanto dos personagens, como
dos expectadores da película.
Outra ilustração da matéria também dá mostras deste estereótipo, o personagem
principal é retratado com pouca roupa e em árdua luta com uma grossa serpente. A
imagem bem que poderia representar um outro momento do nosso “herói”, tomemos a
imagem como alegoria para a guinada da história quando, na luta contra os bandidos e
contra seu próprio pênis, ele vence a tentação dos pecados do sexo promíscuo e desejos
animalescos, que seriam representados pela da imagem da serpente, e de tal maneira se
redime.

(Idem)

Ante estas adversidades, ele logo assume seu papel mais maduro e também
desejável pelo código normativo patriarcal ao qual a sociedade civil-militar brasileira
atentava, o de provedor e protetor das mulheres, salvando-as dos verdadeiros detratores,
envolvendo-se emocionalmente com uma delas e com ela permanecendo fielmente até o
fim do filme. Mas como todo pecador consciente, resignado e obstinado, ele é tentado
por outras mulheres que reconhecem nele um ideal de parceiro, estas, num exemplo
extremado dos moldes comportamentais misóginos, são punidas com a morte inclusive.
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Notamos nestes elementos o apreço pelo princípio aventureiro do homem, mas


que logo deve ser substituído pela figura distinta e responsável de um cavalheiro solícito
à defender as frágeis damas que o rodeiam, constituindo laços monogâmicos e
resistindo às tentações até o fim.
Diante de um final politicamente correto, o DCDP abranda o crivo da censura
para com a da produção, faz as ressalvas necessárias e libera o filme como pode ser
visto no laudo de sua censura que afirma:

[...]Explora situações que envolvem sexo (relacionamentos


íntimos e estupro) e violência e, apesar de eximir-se de
apresentação de enfoques detalhados desses aspectos, em todo
seu decorrer exibe cenas revestidas de erotismo com exposição
gratuita e constante de mulheres semidespidas.
O tema e o conteúdo da película requerem um público
adulto, pelo que sugerimos a sua liberação para maiores de
dezoito anos. Concedendo-lhe, outrossim, chancelas de Boa
Qualidade e Livre para Exportação (BRASÍLIA, parecer
Nº2289/77, 1977

O mesmo não acontece com Coisas Eróticas. Segundo o censor responsável, o


filme não conteria uma mensagem socialmente benéfica, é o que se conclui ao ler a
descrição que o mesmo faz do conteúdo da obra:

Composto de três quadros, o filme mostra no 1º deles as


aventuras de um rapaz que se envolve intimamente e
simultaneamente com mãe e filha. No segundo, marido e mulher
recebem um casal para, juntos, participarem de novas
experiências sexuais. O último centra-se nas atividades sexuais
de um jovem, seduzido pela mãe e irmã de sua namorada.
A película ressente-se, tanto nos diálogos como no
conteúdo, de um argumento mais estruturado, deixando patente
propósitos bem definidos – a exploração grosseira do sexo –
denotando comportamentos que englobam a exibição das mais
diversas modalidades de práticas sexuais com o intuito
exclusivo de provocar erotismo no expectador.
Sob esse ângulo, são vizualizadas (sic) de modo excessivo
entre prolongadas e pormenorizadas, inclusive em closes,
situações de masturbação feminina e masculina, ejaculação,
“voyerismo”, sexo grupal, sodomia, cunilíngua, felação,
lesbianismo e uso de objetos fálicos.
Assim sendo, sugerimos a não liberação do filme e trailer.
(BRASÍLIA, Parecer Nº 4452/21, 1981, grifos nossos)
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Diante de elementos que não corroboravam com a normatização das relações


afetivas e sexuais condizentes com a moral e os ditos bons costumes prezados pelos
militares e legitimados pela sociedade civil, tais quais: relações incestuosas,
homossexuais e poligâmicas, entre outras, como aponta o próprio laudo e acentuamos
com nossos grifos, o filme “Coisas Eróticas” não mais interessava ao regime e este
poupou a tesoura da censura, não fez cortes, proibiu sua exibição por inteiro.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos filmes e documentos pertinentes a eles vem corroborando para a


tese do cinema como produção cultural influenciadora da dinâmica social, tal qual
afirmou Marc Ferro. Além disso, destacamos que

A leitura cinematográfica da história coloca para o historiador o


problema de sua própria leitura do passado. As experiências de
diversos cineastas contemporâneos, [...] demonstram, [...] que, o
historiador pode devolver à sociedade uma história da qual a
instituição a tinha despossuído. (FERRO, 1992, p.19)

Completamos o excerto acima afirmando que, de todo modo, durante os longos


anos este tipo de produção cultural-artística fora deixada de lado pela historiografia a
despeito de toda sua riqueza como fonte histórica. Concentramos, então, nossos
esforços para demonstrar a importância da compreensão deste fenômeno
cinematográfico e seu legado para a cultura. Neste caso, um legado misógino e
patriarcal que deve ser combatido e que só se pode fazê-lo à medida que a sociedade
passa a conhecê-lo na história e reconhecê-lo nas suas relações cotidianas. Desta
maneira, afirmamos que

[...] Qualquer saber sobre os costumes, principalmente o


histórico, deve ser expressão desta comunidade crítica, ou seja,
deve abrir para nós a possibilidade de interromper, rejeitar ou
interver as formas socialmente aceitas, dadas e tacitamente
aceitas como verdadeiras, justas, normais, evidentes, boas. Deve
pôs em suspeição nossos costumes, mostrar a possibilidade de
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serem diferentes do que são, à medida que já foram diferentes


algum dia. (MUNIZ, 2007, p.146)

Este é o intuito do nosso trabalho, fazer perceber as sutilezas de uma cultura


machista no que diz respeito à suas estratégias de normatização, controle dos corpos e,
assim, sua manutenção. Para que, desse modo, se combata a veiculação deste ideário
que tanto obstaculizou a construção de um estado de direito amplamente democrático,
abarcando todos os gêneros que para este convergem e neste devem conviver de
maneira equitativa.

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de Clóvis Marques. Petrópolis: Vozes, 1984.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.
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AMANCIO, Tunico. Pacto cinema-Estado: os anos Embrafilme. In: Revista ALCEU,
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BERG, Creuza. Mecanismos do Silêncio: Expressões artísticas e censura no regime
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BERNADET, Jean-Claud. Cinema Brasileiro, Propostas para uma história. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
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COUTO, Ronaldo Costa. História Indiscreta da ditadura e da Abertura: Brasil
1964-1985. 4° Edição, Rio de Janeiro: Record, 2003.
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FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista


Brasileira de História, São Paulo: v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.
FILHO, Valter Vicente Sales. Pornochanchada: Doce sabor da transgressão. In:
Revista Comunicação e Educação, São Paulo, n.31, p.67 a 70, 1995.
FOUCAULT, Michel. Of Other Spaces: Utopias and Heterotopias. 1984. Disponível
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FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. História e Imagens: iconografia/iconologia e além
IN: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. São
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QUADRAT, Samantha Viz. Ditadura, violência política e direitos humanos na
Argentina, no Brasil e no Chile. In: AZEVEDO, Célia; Ronald Raminelli (org.).
História das Américas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. P. 241-73.
SILVA. Marcília Gama. Informação, Repressão e Memória: A Construção do Estado
de Exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE de 1930-1945. Tese de Doutorado.
UFPE, Recife -PE, 2007
SIMIS, Anita. (Org.). Cinema e televisão durante a ditadura militar: depoimentos e
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VALE, Alexandre Fleming Câmara. No escurinho do Cinema: Cenas de um Público
Implícito. São Paulo: Annablume, 2000.
VALIM, Alexandre Busco. História e Cinema IN: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História.

EXCLUSÃO INCLUEDENTE: PRESOS POLÍTICOS E TRIBUNAIS


MILITARES EM TEMPOS DE DITADURA CIVIL MILITAR
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Tásso Brito66
UFPE
tasso.brito@gmail.com

Resumo: O objetivo do presente artigo é investigar quais os mecanismos usados pelo


regime civil-militar para a criação da figura do preso político. O preso político se
transformou em uma figura complexa do direito, na medida em que este se encontra
preso, mas sem está sujeito ao sistema prisional. Assim, através do processo 6486 da 7ª
Auditória Militar, no qual é indiciado Gregório Bezerra, Francisco Julião, Miguel
Arraes e outros, o presente artigo investigará como a justiça exclui estes homens para
incluí-los naquela sociedade. Valendo-nos das considerações de Walter Benjamin,
Michel Foucault e Giorgio Agamben vamos buscar refletir qual o papel da justiça neste
estado exceção, quais são seus efeitos nas vidas que pela justiça foram capturadas e
quem são aqueles que entram nos cálculos de governabilidade através de sua entrada no
tribunal militar. Ou seja, qual o papel que a justiça militar reservava ao preso político?

Palavras-Chaves: estado de exceção, Gregório Bezerra, justiça militar, Mércia


Albuquerque

I
O filosófo Walter Benjamin é enfático quando diz “A tradição dos oprimidos
nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.”
(BENJAMIN, 1994 p.226), as práticas de um estado exceção como no caso brasileiro
seriam endurecimento de práticas já existentes. Uma vez que este estado não seria o
rompimento das lutas e tensões que existiam antes deles, mas sim o acirramento destas,
na medida em que uma parcela da sociedade passa a exercer mais poder sobre outra.
Podemos compreender esta afirmação se passarmos a pensar sobre a vida de
muitos homens e mulheres antes do golpe civil militar, homens como Gregório Bezerra,
um dos líderes mais conhecido do Partido Comunista em Pernambuco. Sendo notória
sua posição de dirigente do partido, a suas ações eram constantemente vigiada pelo
Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE), mesmo quando

66
Mestrando no PPGH-UFPE, pesquisa financiada pela CAPES.
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este foi deputado federal, na década de 1940, sua vida era constantemente devassada por
policiais a serviço do DOPS.
Não sendo diferente a vida de outros membros do Partido Comunista ou que
eram nomeados de comunista por aquele órgão, eram vigiados e presos pelo governo
democrático então vigente. Na década de 1950, muitos membros do Partido Comunista
foram presos, depois de uma investigação empreendida pelo DOPS. Segundo Breyner
(1989), a operação policial e a prisão de vários membros do partido quase levou este ao
fim em Pernambuco.
A lei que vai servir de base de acusação para essas prisões durante o regime civil
militar não data do golpe de 1964, mas de 1953, a Lei de Segurança Nacional servirá de
base de acusação para os crimes considerados políticos pela ditadura civil-militar.
Então, podemos começar a pensar que as vidas desses homens filiados ao
Partido Comunista ou que eram denominados de comunistas pelos órgãos de repressão
já eram sujeitadas as práticas que comumente dizemos se tratar de um estado exceção.
Não que o período que existia antes do golpe de 64 fosse um estado de exceção, mas é
inegável que algumas de suas práticas eram tão autoritárias que muitas pessoas já
viviam em seus direitos em suspensão tal como será na ditadura que se seguiu no pós-
golpe. Eram práticas que foram muitas vezes exacerbadas pela ditadura, mas que já
existiam antes e por vezes existirão depois do fim da ditadura.
As leis e as aplicações delas que se seguiram no pós 1964 são a efetivação e
expansão de práticas já existentes na sociedade brasileira antes mesmo do golpe civil
militar. Recorrendo a Giorgio Agamben que diz:
Na sua forma arquetípica, o estado de exceção é, portanto, o
princípio de toda localização jurídica posto que somente ele abre
o espaço em que a fixação de um certo ordenamento e de um
determinado território se torna pela primeira vez
possível.(AGAMBEN, 2010, p. 21)
Podemos pensar, como este período antes de 1964 trazia práticas que seriam
territorializadas com a ditadura. E não criadas com o golpe, assim partimos para outra
noção sobre as leis, sobre a justiça e sobre o direito que não é a do contrato social
iluminista. As leis não são a pacificação do homem lobo do homem, mas sim fruto da
força, da guerra, do vencedor do conflito.
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O estado de exceção, principalmente o caso brasileiro, não é um estado que


decreta o fim das leis. Ele se faz valer de sua força para uma constante criação delas,
fazendo o executivo ter funções legislativas e criando leis ao seu bel prazer. Assim o
estado de exceção brasileiro se situa no lugar de indistinção entre a existência e a não
existência de legalidade, é desta zona de indistinção que o estado cria as regras e por
não sair desta zona é que podemos chamá-lo de estado de exceção. Esta zona é uma
zona ocupada através da força, tanto a força coercitiva quanto a força do
convencimento, estas que também são duas formas que o direito se exercer.
Tendo isso em mente podemos pensar como o sistema jurídico se exerce com e
na violência, assim não podemos cair na simplória critica do justo e injusto quando
tratamos dos sistemas de justiça. Principalmente ao pensarmos o sistema jurídico
brasileiro durante a ditadura civil-militar.
II
Gregório Bezerra foi um dos principais dirigentes do Partido Comunista em
Pernambuco, participou ativamente nos principais momentos do partido, militar
reformado, participou do levante comunista de 1935, foi deputado federal na década de
quarenta, antes do golpe atuava no campo junto aos trabalhadores rurais de
Pernambuco. Foi preso algumas vezes ao longo de sua trajetória de vida, sua prisão
durante os primeiros dias do golpe marcou a memória sobre o golpe na cidade de
Recife.
No bairro de Casa Forte, um dos mais tradicionais e elitizados da cidade,
Gregório com sessenta anos de idade foi torturado por membros do quartel
motomecanização. Enquanto era torturado, o tenente coronel Darci Villocq conclamava
o povo a agredir o seu prisioneiro, mas a população não atendeu a este chamado.
No dia 2 de Abril de 1964, Gregório Bezerra recebeu voz de prisão. Sua prisão
foi efetuada por um capitão da polícia militar (PM) de Pernambuco, sua ordem era
apresentar o preso ao Coronel da PM Ivan Rui, chefe de segurança do estado de
Pernambuco naquele momento. Sua prisão se deu no interior do estado. Quando este
estava sendo conduzido a Recife, no município de Ribeirão, encontram-se com um
destacamento do 20º batalhão de caçadores de Alagoas que retira a posse do detento do
oficial da PM. Então, Gregório Bezerra é trazido à Recife, mas não é apresentado mais
ao secretário de segurança do estado, ele foi levado ao comando do IV exercito.
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Se pensarmos que a polícia é a primeira instância da justiça, esta prisão já é


indiciaria do tipo de justiça aplicada naquele período, assim como as relações de força
entre os órgãos no interior do regime. Apesar da ditadura ser civil-militar, os órgãos
castrenses tinham força para agir a revelia dos demais órgãos do estado. Por isso a
prisão de Gregório foi consumada pelos militares do exército e não da polícia.
Três anos depois, ele ainda se encontrava sem uma acusação formalizada, porém
preso. Dentro de um senso da normalidade jurídica, isto seria impossível. O que sempre
era lembrado por sua advogada nos pedidos de habeas corpus, porém constantemente o
habeas corpus era negado. Em certo grau, isto se deu pelo redesenho dos quadros do
judiciário empreendido pelo executivo pós 64.
O AI-1 com seus expurgos puderam redesenhar os quadros de juízes pelo país,
alijando aqueles que eram tidos como contrários ao novo regime. Já o AI-2 modificara a
estrutura do Superior Tribunal Federal (STF), aumentando o número de cadeiras de
onze para dezesseis67 (MACIEL, 2006 p.16), o mesmo AI-2 ainda levava os
julgamentos de crimes contra a segurança nacional para a esfera da justiça militar,
fossem os réus civis ou militares.
O senso comum acredita que governos autoritários não precisam de aparelhos
judiciais. Mas, no Destacamento de Operação de Informação (DOI) do Exército havia
vários órgãos especializados e dentre as partes desta maquinaria existia uma assessoria
jurídica (FICO, 2001 p.124). Assim, podemos pensar que a questão judicial fazia parte
do rol de preocupações dos agentes da repressão. Anthony Pereira (2010 p.55) alerta
que o sistema judicial e a legalidade ditatorial não são meras fantasias, mas sim uma
“realidade virtual” que engendra práticas, inclusive as de força e arbitrariedades.
Assim, podemos perceber o esforço do regime para garantir a jurisprudência
almejada. A força jurídica não está na criação das leis, mas sim no preenchimento delas
por jurisprudências. Por isso, o constante esforço para conseguir ter um poder judiciário
favorável ao executivo ditatorial. Isto para além de mecanismos de exceção como a
polícia política ou a censura prévia que visavam garantir o funcionamento deste estado
de exceção.

67
Vale lembrar aqui que os ministros que ocupariam estas cadeiras foram indicados pelo poder
executivo, ou seja, pela ditadura vigente.
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Como lembra Foucault, os processos jurídicos também criam as verdades


(FOUCAULT, 2003), assim a captura de Gregório Bezerra é o início da transformação
de uma pratica em um crime aos olhos do estado estabelecido. Pois, as praticas de
Gregório só irão configurar crime na medida em que o maquinário judicial assim
nomeia.

III
A advogada de Gregório Bezerra durante boa parte do processo, Mércia
Albuquerque, teve sua vida profissional pautada na defesa de presos políticos. Gregório
foi o seu primeiro cliente, mas ao término da ditadura civil militar estima-se que ela
tenha defendido mais de mil presos políticos. Homens e mulheres que em sua grande
maioria foram julgados na 7ª auditória militar, que apesar de ser em Recife era
encarregada por julgar crimes ocorridos nos estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e
Rio Grande do Norte.
Para Anthony Pereira, os advogados de defesa foram capazes de pouco a pouco
criar uma nova jurisprudência para a lei de segurança nacional, assim ampliando os
limites da legalidade. (Pereira, 2010 p.211). Assim, talvez não se trate de procurar
vitórias judiciais, não que não houvesse, mas de pensar como as defesas foram criando
estes novos limites da legalidade.
Os advogados também tinham outras formas de ajudar seus clientes que muitas
vezes beiravam a ilegalidade ou eram de fato ilegais. Faziam parte de uma rede de
solidariedade que pregava muitas vezes o discurso dos direitos humanos, e através disso
encontravam justificativas para ações como ajudar em fugas de foragidos ou até mesmo
retirar da cadeia, manifestos de presos políticos que faziam greve de fome em São
Paulo68. Porém, estas ações por conta de sua própria natureza não foram tão
documentadas a não ser involuntariamente, quando um destes advogados era preso por
alguma ação que era considerada ilegal aos olhos da maquinaria jurídica e policialesca
do regime. Por isso, este artigo com pesar as ignorará, para focar nas ações legais.
Mércia ao defender Gregório se esforça para que este seja tratado como preso
político. O preso político é uma figura do direito que se encontra em uma dupla

68
Nove advogados chegaram a ser preso por levar a imprensa um manifesto de presos políticos que
faziam greve de fome em uma prisão de São Paulo em 1972.
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exclusão, estão excluídos da sociedade liberta e do sistema prisional mesmo estando


preso. Esta dupla exclusão são inclusivas, garantem um lugar único, inclui o preso neste
lugar, assim aqueles que são nomeados pela justiça de preso político ocupa este lugar
daquele que é preso, mas não está sujeito ao sistema prisional, ou seja são excluídos
para que possam ser incluído nos cálculos de poder de outra forma.
Assim, quando o diretor da Casa de Detenção Olímpio Ferraz obriga os presos
políticos a usarem o uniforme da penitenciaria, os advogados de defesa e seus clientes
se opõem a tal ato. Mércia Albuquerque, representando Gregório Bezerra e mais alguns
outros presos, encaminha uma denúncia ao IV exército que a acata. O diretor tenta
argumentar que esta é a regra da Casa de Detenção, porém o IV exército não aceita esta
argumentação, mantendo o direito dos presos políticos se vestirem como querem. Os
presos políticos na Casa de Detenção não tiveram no seu prontuário registrados atos
nomeados de indisciplina como a recusa de usar o uniforme69.
Pois, a construção de uma identidade de preso político era buscada por aqueles
homens acusados de subversão. Para Umberto Eco (1989, p.07) as vestimentas são uma
forma de comunicação não verbal, a recusa do uniforme pode ser entendido desta
forma. Pois, ao se recursar a usar o uniforme, podemos ler os presos dizendo que não
são presos comuns, que não estão lá como os outros.
Usar roupas comuns na prisão, enquanto que os presos comuns usavam
uniformes, foi uma das ferramentas encontrada para que a identidade de preso político
possa ser criada. Assim, como parece ser o desejo do IV exército, da advogada Mércia
Albuquerque e de seus clientes.
Além do não uso dos uniformes, os presos políticos ainda tinham o direito de ter
um espaço separado dos presos comuns. Ocupando a ala Sul da Casa de Detenção, os
presos políticos também se diferenciavam dos comuns por seu lugar de moradia dentro
da prisão.
Vale lembrar aqui que oficialmente o governo ainda não admitia a existência de
presos políticos. Mas, dentro da lógica de governabilidade o que relatamos aqui parece
apontar na direção que internamente o poder estatal admitia a existência do preso
político ou que o IV exército assim o fazia. Podemos pensar assim como era dinâmico o
69
No arquivo público estadual de Pernambuco, mais especificamente no fundo relativo aos prontuários
dos presos da Casa de Detenção não há registros de atos considerados de indisciplina, como a recusa do
uso do uniforme.
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regime, que hora aceitava a existência do preso político e hora negava a depender dos
interesses, das relações de força estabelecidas a cada momento. Por isso, que nunca
podemos olhar para o regime de forma monolítica, pois cada trama histórica faz emergir
novos sujeitos, sejam eles homens ou instituições.
Assim, podemos ver como além de ser excluídos da sociedade pela prisão, eles
também são excluídos do sistema prisional. Mas, esta dupla exclusão é o que garante a
entrada dessas vidas no sistema judicial, no próprio regime ditatorial ali implantado. É o
estado de exceção que assume esta força de alocação de cálculos sobre a vida, essa força
que permite a vida ou autoriza o seu sacrifício.

IV
Mas, a construção desta imagem, desta identidade de preso político, não é uma
construção do regime civil militar. Gregório Bezerra que foi preso algumas vezes,
sempre construiu para si esta identidade, posicionando-se sempre no lugar de preso
político. Ou seja, não se trata de uma construção iniciada com o regime iniciado em
1964.
Desta vez, o próprio Estado garantiu a existência de tal figura. Assim, podemos
pensar como a estrutura política jurídica dava conta de manter a existência de algo que
data de antes do golpe. O estado de exceção então vigente é algo que atua em dois
sentidos, no primeiro ele cria o novo para depois manter uma ordem que data de antes
dele mesmo. A implantação do estado de exceção vem como criação do novo na medida
em que rompe com o estado democrático então vigente, mas este novo existe para
conservar uma ordem política e social que se encontrava em xeque por novas forças e
novos agentes que emergiam da trama histórica dos período comumente chamado de
“período de experiência democrática”.
A busca de preservação da ordem, também se faz presente na acusação jurídica
que levava a cadeia os presos políticos. Gregório Bezerra e outros tantos foi acusado de
subversão da ordem com auxílio de potência estrangeira, não a ordem do estado
exceção, mas a ordem política e social do período anterior ao golpe. Não é de se
espantar que na sentença de Gregório o auditor militar relembre de ações como o
levante comunista de 35 e uma acusação de incêndio a um quartel do exército no estado
da Paraíba. Atos estes que Gregório já havia respondido e ou inocentado na justiça.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Estes atos foram levados em conta, mas formalmente não foram julgados pelo
processo 8868, no qual eram réus Gregório Bezerra, Francisco Julião, Miguel Arraes e
outros. Mas, desde sua captura Gregório era interpolado por esses atos, em seu primeiro
interrogatório o coronel Ibiapina o acusava de ter matado um oficial em 1935. Só depois
de várias perguntas sobre este suposto assassinato, o general Justino Alves Bastos
começar a interrogar Gregório a respeito de armamentos que supostamente estavam sob
a responsabilidade do interrogado.
Então, mais do que fundar o novo o regime tentava manter uma ordem. Por isso
que retornamos a tese de Walter Benjamin, o estado de exceção é a regra para aqueles
que detém menos força. Aqueles interessados em manter o status quo faziam o máximo
para manter a ordem, a própria prisão de Gregório aponta para esta direção. Como já foi
relatado no começo deste artigo, a prisão de Gregório foi tomada da policia militar pelo
exército, mas o 20º batalhão de caçadores encontrava-se auxiliado por José Lopes
Siqueira, dono da Usina Estreliana70 com seu grupo de homens armados, uma espécie
de milícia privada comumente chamada de jagunços. José Lopes ao ver Gregório queria
assassiná-lo, porém os membros do 20º batalhão resolveram levar o líder comunista a
presença do general Justino Alves Bastos, comandante do IV exército.
Este tipo de ameaça não era apenas dos civis, mas de militares também. Mas,
segundo Pereira (2010) e Montenegro (2012) localizar e colocar aqueles que foram
detidos na malha judicial era ter garantias da sobrevivência daqueles que foram detidos.
Assim, podemos pensar que a justiça militar era interessada em cria a figura do preso
político, mesmo depois de 69, quando ela tem o poder de condenar a morte, tal sentença
nunca foi executada, mesmo tendo alguns casos de condenação, como o caso de
Teodomiro Ramos71.
A justiça militar capturava vidas, transformava-as, colocava-as em cálculos de
governabilidade, mas não foi uma gestora de mortes. Outros órgãos estatais parecem ter

70
Antes do golpe houve uma chacina de cinco trabalhadores rurais daquela usina, durante um protesto
no qual eles tentavam fazer valer decisões da justiça do trabalho. Eles foram mortos pelos funcionários
de José Lopes Siqueira. Para mais detalhes ver Porfírio (2009)
71
Teodomiro aderiu ao movimento armado, comumente chamado de Guerrilhas Urbanas, na
operação que este foi preso ele matou a tiros um oficial do exercito e feriu outro. Seu crime foi
julgado e ele condenado a morte, mas tal sentença não chegou a ser executado. Seu relato se
encontra no arquivo Marcas da Memória – Memória da Anistia, no Laboratório de História Oral
e Imagem (LAHOI) UFPE.
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assumido esta função. Mesmo, quando o poder executivo militar atribui também a
justiça a gerência da morte dos detidos, esta nunca executou tal pena.
A justiça, assim como no Processo de Kafka, não tem um objetivo final. Esta
captura a vida para fazer dela coisa sua, sem oferecer outro fim a não ser a própria
captura da vida. Desta forma a figura do preso político é aquele que tem seu lugar
dentro do ordenamento do estado de exceção fixado como uma vida capturada.
E neste sentido a lei se confunde com a vida, numa vigência sem significado,
pura forma, o modo de viver que se impõe como lei tende a se dizer como vida e esta
capturada ou transformada nada pode dizer, está entregue aqueles dispositivos que a
transforma, no caso em tela a justiça militar.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
BRNJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume 1: Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.
BRAYNER, Flávio Henrique Albert. Partido comunista em Pernambuco: mudança e
conservação na atividade do partido comunista brasileiro em Pernambuco; 1956 -1964.
Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1989.
ECO, Umberto. O hábito fala pelo monge. In Psicologia do Vestir. Lisboa Assírio e
Alvim, 1989
FICO, Carlos. Como Eles Agiam. Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e
Polícia Política. Rio de Janeiro: Record, 2001
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro: NAU, 2003.
MACIEL, Wilma Antunes. O Capitão Lamarca e a VPR. Repressão Judicial no Brasil.
São Paulo, Sp: Alameda, 2006.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História e Memória de lutas políticas. In. Marcas da
Memória: história oral da anistia no Brasil. Recife: Editora da UFPE, 2012.
PERREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão: O Autoritarismo e o Estado de Direito
no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2010.
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POFÍRIO, Pablo. Medo, comunismo e revolução Pernambuco (1959-1964). Recife: Ed.


Universitária UFPE, 2009.

PEDRO NAVA (1903-1984) – MODERNISMO E SAÚDE NA ERA VARGAS

Vanda Arantes do Vale


Universidade Federal de Juiz de Fora, doutora pela UFMG
vandaval@acessa.com

Pedro Nava, como médico, teve longa e reconhecida carreira. Ao se aposentar,


em 1969, começou a redação de suas Memórias, publicando o primeiro volume,
intitulado Baú de ossos: memórias, em 1972. Seguiram-se Balão cativo: memórias 2
(1973); Chão de ferro: memórias 3 (1976); Beira-mar: memórias 4 (1978); Galo das
trevas: memórias 5 (1981) e O círio perfeito: memórias 6 (1983). Nava, nas Memórias,
ao reconstituir a trajetória de seus antepassados e a sua, traça um amplo painel da
sociedade brasileira, em seus diversos aspectos, de finais do século XVIII aos anos de
1940. O texto proposto destaca as Memórias naveanas como documentos para as
questões que envolvem a história da Saúde e das Doenças na Era Vargas (1930-1945).
O autor, na década de 1920, foi ativo participante do Movimento Modernista em sua
vertente mineira. Pertenceu à geração que via, na centralização do Estado, a
possibilidade de construção de uma nova nacionalidade, cujos alicerces seriam Saúde e
Educação. A vida profissional de Nava, iniciada em 1928 e reconstituída nas Memórias,
perpassa as questões que envolveram a atividade na Era Vargas. Busca-se a
identificação do papel do Estado como um dos elementos mais importantes do
Modernismo brasileiro.

Palavras-chave: Modernismo. Saúde. Doenças.

A proposta de nossa Comunicação – Pedro Nava (1903-1984) – Modernismo e


Saúde na Era Vargas – é identificar, na obra de Nava, ativo participante modernista, em
sua vertente mineira, como os princípios desse movimento se fizeram presentes nas
questões que envolvem Saúde e Doenças na Era Vargas (1930-1945). Apresentaremos
informações básicas da biografia do autor e de sua obra memorialística, fontes
documentais para nossa escrita, que trata a obra literária como documento inserido em
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seu contexto histórico, destacando-se que nossa preocupação é com as questões


pertinentes à História da Saúde e das Doenças. A proposta busca a identificação da
circulação social da obra literária, além de procurar responder às seguintes perguntas:
quem a escreveu e a que segmento social pertenceu? Como as questões sociais e
políticas foram percebidas pelo autor? (CANDIDO, 1976; BOURDIEU, 1982;
CHALHOUB, PEREIRA, 1998).
O texto a ser apresentado em abril de 2014, como Comunicação, no VI Encontro
Cultura e Memória. Golpe de 1964 (UFPE) tem como objetivo contribuir para o
entendimento das ações militares nas Políticas de Saúde no período de 1964-1984.
Essas políticas, em relação à Era Vargas, apresentaram continuidades e rupturas.
Ampliou-se a ação da Medicina previdenciária (trabalhadores rurais, domésticas e
autônomos), elemento de continuidade. Como ruptura, ocorreu no período a retração
governamental nos serviços público e a transferência de valores para a rede privada
(COSTA, 2012). As questões colocadas nos referidos períodos continuam em pauta nas
discussões sobre a questão nos dias atuais.
A característica específica dos textos naveanos é a memorialística. Nava
escreveu seis livros: Baú de ossos: memórias (1972); Balão cativo: memórias 2 (1973);
Chão de ferro: memórias 3 (1976); Beira-mar: memórias 4 (1978); Galo das trevas:
memórias 5 (1979); e O círio perfeito: memórias 6 (1983). Essa obra, dependendo das
edições, soma, aproximadamente, 2.500 páginas, e os livros foram lançadas no período
de 1972 a 1983. Pedro Nava escrevia as páginas iniciais do sétimo livro, intitulado Cera
das almas: memórias 7, quando de seu suicídio, em 1984 (VENTURA, 2004). Os
livros, lançados na década de 1970 e início da década de 1980, foram sucesso de crítica,
e o autor recebeu diversos prêmios e aplausos do público, como comprovam sucessivas
edições72. O período foi farto em publicações de Biografias e Memórias. Nas referidas
décadas, utopias do século XX, esperanças de construção de novas sociedades foram
derrotadas. Emerge com exacerbação e visibilidade o individualismo, a globalização e o
neoliberalismo (HUYSSEN, 2000). Os modernistas brasileiros, nascidos, em sua

72
Premiação em ordem cronológica: 1973 – Personalidade Global e Prêmio Luisa Cláudio de Souza;
1974- Prêmio Jabuti – Câmara Brasileira do Livro, Prêmio Fernando Chinaglia, Prêmio de Literatura da
Associação Paulista de Críticos de Arte; 1975 – Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal;
Personalidade Global e Literária (TV e Jornal O Globo; 1983 – Diploma de Homenagem Especial,
conferido pela União Brasileira de Escritores, em 1985, esse prêmio passou a ser denominado Prêmio
Pedro Nava, e, em 1984 – Prêmio José Olympio – Sindicato Nacional de Editores de Livros.
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maioria, na última década do século XIX e na primeira do XX, estavam saindo de cena
junto com suas utopias e deixando as memórias como rastros. Entre esses intelectuais,
destacou-se Nava, que escreveu suas Memórias depois de se aposentar como médico do
Serviço Público em 1969. Ele continuou com o consultório particular até 1983,
atividade em que foi reconhecido e referendado socialmente73.
Nos próximos parágrafos, buscaremos sintetizar aspectos relevantes da biografia
de Pedro Nava e pontuar elementos de seus livros, que foram essenciais para a escrita
deste texto. Nava inicia a obra Baú de ossos: memórias (1972, p. 13), apresentando-se
do seguinte modo:
EU SOU um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos
Matos Gerais. Se não exatamente da picada de Garcia
Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo velho Halfeld e
que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o nome de
Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade do
Juiz de Fora. Nasci nessa rua, no número 179, em frente à
Mecânica, no sobrado onde reinava minha avó materna. E nas
duas direções apontadas por essa que é hoje a Avenida Rio
Branco hesitou a minha vida. A direção de Milheiros e Mariano
Procópio. A da Rua Espírito Santo e do Alto dos passos.

A citação apresentada sintetiza o cenário da vida de Pedro Nava. A Avenida Rio


Branco – Juiz de Fora – aponta para as direções, de um lado, Belo Horizonte, e, do lado
oposto, para o Rio de Janeiro e Monte Aprazível (SP) – centros urbanos que
testemunharam as transformações socioeconômicas do Brasil na primeira metade do
século XX. O memorialista nasceu em Juiz de Fora (1903), era filho do médico cearense
José Nava (1876-1911), radicado na cidade, e Diva Jaguaribe, juiz-de-forana, filha de
família tradicional empobrecida, oriunda das zonas mineradoras (materna) e cearense
(paterna). Baú de ossos reconstitui a trajetória dos antepassados de Pedro Nava.
Reconstitui a mudança e a estadia da família no Rio (1909-1911) e retorno a Juiz de

73
1933 – membro da SMCRJ; 1936 – docente de Clínica Médica da Universidade do Brasil; 1941 –
Diretor do Hospital Carlos Chagas e membro do Conselho Editorial da Revista Médica Municipal; 1945 –
titular do IBHM; 1951– designado pelo MEC para estudar na Europa, a organização de clínicas
reumatológicas; 1952 – professor da Escola de Aperfeiçoamento da Policlínica Geral; membro fundador
da ABBR; 1956 – organizador do Serviço de Reumatologia – HSRJ; 1959 – catedrático de Reumatologia
da Escola Médica da PUC; 1961 – membro da ANM; 1969 – Professor Emérito da PUC; 1974 – Presidente
de Honra do X Congresso Brasileiro de Reumatologia; 1975 – Diploma de Honra ao Mérito da Associação
Médica de Minas Gerais e 1978 – Médico do Ano – Associação dos Médicos Escritores.
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Fora, além da mudança para Belo Horizonte, em razão da morte da avó materna, em
1913 (VALE, 2012a).
Na obra Balão cativo: memórias 2, Nava continua com a reconstituição de sua
vida em Juiz de Fora – cidade que se destacou pela sua industrialização, chegando até
mesmo a receber o epíteto de “Manchester Mineira” –, a instalação da família em Belo
Horizonte, os estudos no Colégio Anglo-Mineiro (1914-1915), onde se torna fluente em
inglês, e a transferência para o Colégio Pedro II, localizado na então capital federal
(1916). Em Chão de ferro, complementa a reconstituição da estadia no Rio e trata do
retorno para Belo Horizonte, onde ingressa na Faculdade de Medicina, em 1921. Os três
primeiros volumes das Memórias reconstituem práticas escravocratas, a transição para o
trabalho livre, o processo de urbanização e a visibilidade da medicina científica nas
preocupações do Sanitarismo. Trata-se de páginas que remetem ao processo de
Modernização na sociedade brasileira, no período de 1870 a 1920. Entende-se como
Modernização as transformações pelas quais passou a sociedade brasileira nesse período
e que buscaram adequar o país ao momento do capitalismo monopolista, que se
estendeu mundialmente. Essa Modernização tornou-se visível em distintos
acontecimentos: o processo de industrialização de Juiz de Fora (1870-1920), a Abolição
(1888), a Proclamação da República (1889), a inauguração de Belo Horizonte (1897) e a
fundação da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte (VALE, 2012b).
Em Beira-mar: memórias 4, deparamo-nos com a reconstituição minuciosa dos
acontecimentos da vida do autor como participante do Movimento Modernista, em Belo
Horizonte, e como aluno do curso de Medicina. Entendemos por Modernismo, no
Brasil, o conjunto de diversas críticas, propostas e ações (estéticas, políticas, religiosas,
educacionais, médicas, etc.) de grupos brasileiros que, na década de 1920, procuraram
apresentar caminhos e modelos para a construção de uma nova sociedade. Intelectuais,
no período, percebem-se como missionários modernos, cujas ações teriam sentido
pedagógico, e adotam a postura de condutores das massas na construção de uma nova
nacionalidade (BOMENY, 2001; LAHUERTA, 1997; VALE, 2012b). Nava e outros
jovens modernistas de Belo Horizonte destacaram-se em atividades diferentes na Era
Vargas. Transcrevemos, a seguir, um fragmento presente na obra Beira-mar (NAVA,
1978, p. 91-92) que corrobora nossa afirmativa e adianta aspectos que serão
aprofundados nesta comunicação:
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Só ele e eu? Não. Era enorme o grupo a que o Carlos me


apresentou. Era composto do próprio poeta, de dois moços da
casa da Madame – Francisco Martins de Almeida e Hamilton de
Paula e mais de Abgar Renault, João Guimarães Alves, Heitor
Augusto de Sousa, João Pinheiro Filho, dos irmãos Alberto e
Mário Álvares da Silva Campos, de Emílio Moura, Mário
Casassanta, Gustavo Capanema, Gabriel de Rezende Passos,
João Alphonsus Guimaraens e Milton Campos. O tempo traria
ainda para nossa convivência Dario Magalhães, Guilhermino
César, Ciro dos Anjos, Luís Camilo e Ascânio Lopes.
Escrevendo o nome desses amigos de mocidade e vendo o que
eles foram depois – não posso deixar de dizer do orgulho de ter
pertencido a grupo tão ilustre. Dele sairia, já nos anos vinte, a
contribuição mais importante de Minas para o Movimento
Modernista. Tínhamos o hábito de nos reunir na Livraria Alves e
principalmente no Café e Confeitaria Estrela. Daí, além do
pejorativo futuristas que nos davam os infensos, a designação de
Grupo do Estrela – como nos chamavam os indiferentes. Mas
tudo isto é uma longa história...

Os modernistas identificados por Nava tiveram destaque na vida social e política


na década seguinte, e as relações com os mesmos serão fundamentais na condução de
sua vida profissional. As páginas finais do livro destacam a formatura, a colação de
grau, ocorrida em janeiro de 1928, e a ida do escritor para Juiz de Fora o qual, naquele
momento, fora nomeado pelo presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos Andrada, pai
de amigos do escritor. A família de Nava passou por dificuldades financeiras com a
morte do pai; contudo, a mãe viu a formação profissional dos filhos como estratégia de
sobrevivência: desenvolveu atividades econômicas, teve o auxílio da família do marido
e empregou-se, por indicação política, como funcionária dos Correios, em Belo
Horizonte. Pedro era o filho mais velho e foi matriculado no Anglo-Mineiro, colégio
organizado pelos grupos progressistas de Belo Horizonte. O incentivo aos esportes,
notadamente o futebol, ao trabalho e ao domínio de inglês eram propostas educacionais
dos setores progressistas. O autor, nos dois anos de permanência no estabelecimento de
ensino, adquiriu fluência no idioma e fez laços de amizades com jovens de famílias
influentes no meio político (VALE, 2012b).
Nos livros Balão cativo e Chão de ferro, Nava reconstitui, minuciosamente, o
ensino e o ambiente escolar do Colégio Pedro II. Trata-se de um estabelecimento federal
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que preparava jovens de camadas mais favorecidas da sociedade para o ingresso nos
cursos superiores e, posteriormente, para a ocupação de cargos administrativos e
políticos. São textos documentais sobre as propostas do ensino, a valorização da
retórica, o domínio do francês, a leitura dos Clássicos e a adoção de princípios
positivistas no ensino das Ciências. O memorialista alarga o círculo de amizade com os
colegas filhos de políticos e intelectuais, aumentando também seu conhecimento por
intermédio do contato com os parentes paternos, ligados ao meio intelectual do Rio de
Janeiro. As páginas finais de Chão de ferro tratam do retorno de Nava a Belo Horizonte,
do ingresso na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, em 1921, e do ingresso no
Serviço Público, através de pedido de parentes paternos ao governo de Minas Gerais
(VALE, 2012b).
Beira-mar é uma obra que se constitui como um documento sobre o
Modernismo Mineiro e o ensino da Faculdade de Medicina. Os textos naveanos
apontam para as questões estéticas postas no momento e as questões relacionadas à
Saúde e Doenças na década de 1920. A Faculdade de Medicina de Belo Horizonte,
fundada em 1911, esteve entre as propostas modernizadoras nacionais, visíveis na
organização dessa cidade. No período, discutiu-se o ensino médico, de orientação
francesa, e a relação da profissão com o Estado, assunto aprofundado posteriormente.
Galo das trevas e O círio perfeito tratam da vida profissional de Pedro Nava em Juiz de
Fora, Belo Horizonte, Monte Aprazível e Rio de Janeiro, no período de 1928 a 1934. Os
três últimos livros são, especificamente, os usados como fontes para este texto (VALE,
2009).
A inadequação da República Federativa, que, em seus diversos aspectos,
conservara estruturas advindas do Império, fica evidente no período pós-guerra. Vale
lembrar que quatro movimentos, no ano de 1922, apontam para inquietações do período
e projetos futuros. O universo estético construído pelos postulados da Academia
Imperial de Belas Artes/Escola Nacional de Belas Artes foi questionado na Semana de
Arte Moderna de São Paulo; o Centro D. Vital, fundado por religiosos e leigos,
reunindo-se no Mosteiro de São Bento (RJ), buscou a formação de uma nova elite
católica combatente do Liberalismo, visto como obra do protestantismo norte-
americano, do Comunismo e da laicicidade. Um grupo de intelectuais e operários
fundou o Partido Comunista do Brasil (PCB), com propostas de Marx e Lênin, para a
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construção de uma nova sociedade. Jovens militares mostram o descontentamento de


setores do exército no movimento que ficou conhecido como Tenentismo. Críticas do
estabelecido e propostas de novos modelos foram presentes em discussões e escritos de
diversos setores sociais, constituindo o Modernismo (VALE, 2012a). Esse sentido de
Modernismo norteará nossas observações.
A urbanização e as epidemias, nas sociedades europeias industrializadas,
fizeram com que o papel do Estado se evidenciasse como organizador e mediador das
questões relacionadas com a saúde. O Estado financia pesquisas para as soluções desses
problemas e se fortalece a percepção de que o mesmo é o elemento capaz de administrar
as questões de saúde (HOCHMANN, 1993). O período de 1870 a 1914 caracteriza-se
por pesquisas e resultados que reforçam a crença na Ciência e suas “descobertas”. O
mundo que emergiu do conflito de 1914-1918 foi de desencanto com as propostas do
livre mercado, do individualismo e das democracias liberais. Novas leituras do
Nacionalismo foram feitas e novos papéis, atribuídos ao Estado. Fortaleceu-se a crença
no Estado como condutor e responsável pela vida de seus habitantes. A proposta de uma
nova sociedade, com a Revolução Russa de 1917, a vitória dos fascistas italianos, em
1922, e dos nazistas, em 1939, para a educação e saúde, significam novas propostas e
relações com o Estado (VALE, 2012b).
A descrença com o Liberalismo, o receio do Comunismo e a necessidade da
construção de uma nova organização social foram constantes em diversos segmentos
intelectuais e políticos, no Brasil, após o término da Primeira Guerra Mundial (1914-
1918). A degenerescência da população brasileira seria a explicação para os problemas
sociais e econômicos. O Brasil de fins do século XIX e primeiras décadas republicanas
foi palco de transformações, identificáveis no processo de industrialização de bens de
consumo, especialmente a têxtil: a transformação da força de trabalho em mercadoria
(assalariamento), tornando-a farta através da imigração; a criação de um mercado
interno, no caso, o café, gerando a necessidade e a capacidade de se importarem
alimentos, meios de produção e bens de consumo; as condições favoráveis de
financiamentos governamentais; os baixos salários; a isenção tarifária concedida à
importação de máquinas e equipamentos. Buscou-se a construção de uma sociedade
como se o Brasil fosse uma continuação da Europa.
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O marco simbólico da referida proposta é a adesão às inovações urbanísticas de


Hausmann (1809-1891) e da arquitetura do Ecletismo. A arquitetura eclética, tomando
formas do passado com materiais da industrialização, tais como ferro, estrutura
metálica, vidros, encanamento, entre outros, compunha o cenário urbano criado por
Haussmann, em Paris, entre 1853 e 1870. Esse modelo, que marcou o urbanismo do
século XIX, foi exportado pelo mundo e é ícone do capitalismo monopolista. A
Reforma Pereira Passos, ocorrida no Rio de Janeiro, no Governo Epitácio Pessoa (1903-
1906), pôs abaixo resquícios coloniais que adentraram pelo Império, excluindo a
população de baixa renda do centro da cidade, episódio que teve como consequência a
ocupação pela mesma das áreas junto das linhas férreas e morros. A atuação de
Oswaldo Cruz no combate às epidemias, bem como a construção de Belo Horizonte nos
moldes urbanísticos de Paris e Viena, são partes do universo simbólico do capitalismo
monopolista estendido mundialmente. Esse período recebeu o epíteto de Belle Époque,
quando se acreditou que a Ciência e a Industrialização levariam a humanidade a um
progresso contínuo.
No Brasil, tal como na Europa, a Belle Époque (1870-1914) foi plena de
contradições. Os primeiros anos da República foram conturbados por questões políticas,
econômicas e sociais. Se o início do conflito de 1914 explicita a crise do Liberalismo
para o Velho Mundo, no Brasil, a percepção de inadequação do modelo vigente se faz
de modo mais intenso após o final do mesmo, em 1918. Essas inadequações são
percebidas por novas questões colocadas nos cenários, nacional e internacional. Greves
operárias na década de 1910 assinalam o surgimento de incipientes forças sociais;
epidemias como a “Espanhola” põem a nu as questões sanitárias e a ineficácia do
modelo administrativo para tratá-las; a imigração, suspensa durante os anos do conflito,
e a derrocada da Europa trazem novas questões para a sociedade brasileira.
As discussões sobre a construção de um novo Estado e de uma nova
nacionalidade foram realizadas por diversos grupos ligados a diferentes atividades e
marcantes na década de 1920. Em comum, rechaçam a importação indiscriminada de
valores e hábitos europeus pela elite, o federalismo, e propõem um Estado centralizado,
guia de uma nova nacionalidade. Interessa-nos apresentar uma discussão e a ação de
médicos sanitaristas sobre a questão. Em oposição aos médicos do final do século XIX,
negam que o atraso e as questões de saúde do brasileiro estivessem enraizados em sua
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composição racial (VALE, 2009). Os problemas brasileiros seriam originários das


doenças e do isolamento entre as regiões. A frase de Miguel Pereira, proferida em 1916,
“O Brasil é um imenso hospital”, torna-se emblemática desse grupo de sanitaristas (SÁ,
2009). Em comum com os profissionais anteriormente mencionados, os sanitaristas da
década de 1920 continuaram as estratégias de lutas para a hegemonia da medicina
científica, em oposição e exclusão de outras práticas de cura. Conhecer e diagnosticar os
“sertões” foi uma constante no grupo (VALE, 2009).
Hochman (1993), na obra Regulando os efeitos da interdependência: sobre as
relações entre Saúde Pública e construção do Estado (Brasil 1910-1930) e em outros
textos, busca identificar os avanços das propostas de federalização nas discussões sobre
a saúde. Destaca os limites de intervenção da União na Constituição de 1891, quando
isso só seria possível pela solicitação dos estados. Observa que os problemas de saúde
tinham suas discussões em foros especializados, tais como a Academia Nacional de
Medicina e o Instituto Oswaldo Cruz. O órgão federal, Departamento Geral de Saúde
Pública (1897), tinha sua atuação limitada ao Distrito Federal e, no período de 1902-
1904, era dirigido por Oswaldo Cruz e teve suas ações expandidas na capital. Destaca a
fundação da Liga Pró-Saneamento do Brasil (1918), por Pena e Chagas, o apoio de
instituições como a Academia Nacional de Medicina, imprensa e intelectuais como
marco para o caminho da federalização. As discussões e propostas da Liga aglutinaram
forças que tiveram suas propostas incorporadas por Wenceslau Braz na criação do
Serviço de Quinina Oficial (1918), com atuação autônoma em relação ao Departamento
Geral da Saúde Pública. A criação do Departamento Nacional de Saúde Pública
(DNSP), em 1920, bem como os acordos com estados para profilaxia e endemias, são
marcantes no processo da federalização da saúde.
As especificidades de questões relativas à saúde como doenças e epidemias
tendem a romper fronteiras e reforçam a criação e adesão da ação cooperativa. A
reconhecida importância do tema por segmentos da sociedade faz com que os
“problemas de saúde se tornem públicos”, apontando para o Estado como “a
organização com poder de implementar, de forma coordenada, políticas de saúde em
todo território nacional” (HOCHMANN, 1993, p. 54). Ao se tornar questão pública, a
saúde exigiu respostas públicas. Por meio do DNSP, o poder público se fez presente
(acordos com estados) em quase todas as unidades da federação, sendo esta estrutura
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estatal e burocrática herdada por Vargas, quando da criação do Departamento Nacional


de Saúde (DNS), na organização do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930.
As observações de Hochmam (1993) levam ao entendimento de que as discussões, as
questões e a implementação de políticas relacionadas à saúde conduziram à percepção,
para segmentos da sociedade, da necessidade de fortalecimento e centralização
administrativa do Estado. Na Era Vargas (1930-1945), foram divergentes as opiniões de
como seriam realizadas essas ações. As questões que se fizeram presentes na
administração de Pedro Ernesto Batista, no Distrito Federal (1931-1935), evidenciam as
divergências e contradições entre os grupos que apoiaram a construção de um Estado
centralizador e com amplos poderes.
A trajetória política do prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto Batista (1884-
1942), foi reconstituída por Nava no livro O círio perfeito (1983). Nessa administração,
houve o ingresso do memorialista no Serviço Público da então capital federal (1933-
1969), sendo que o escritor registrou um texto documental sobre o período. Os estudos
sobre esse momento, nas questões de saúde, não são numerosos. Os aspectos
educacionais que envolvem a administração de Pedro Ernesto têm despertado maior
interesse nos estudos acadêmicos, notadamente a ação de Anísio Teixeira à frente da
Secretaria de Educação (VALE, 2009).
Pedro Ernesto nasceu na Bahia e concluiu o curso de Medicina na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, em 1908. O trabalho possibilitou-lhe o contato com setores
desfavorecidos da população e com pessoas influentes no mundo político, como o
médico Augusto do Amaral Peixoto e seus filhos, os oficiais da Marinha Augusto Junior
e Ernani, posteriormente genro de Getúlio Vargas, contatos que o inserem no mundo
profissional e o aproximam da família de Vargas (DICIONÁRIO..., 2001). Pedro
Ernesto, junto com os irmãos Peixoto, participou da oposição a Arthur Bernardes. A
prisão e morte de José Aníbal Duarte, primo de sua mulher, na repressão ao episódio
que ficou conhecido como “Dezoito do Forte”, levou-o ao aprofundamento, ao
envolvimento e à participação na vida política. Opositores ao governo foram ocultados
na Casa de Saúde. Como participante da Aliança Liberal, apoiou a candidatura de
Vargas e participou como chefe do corpo médico das tropas que, em Minas Gerais,
lutaram contra a posse de Júlio Prestes. O envolvimento na defesa militar da Aliança
Liberal deu visibilidade e espaço político a Pedro Ernesto para que fosse nomeado pelo
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chefe do governo Provisório para o cargo de diretor do Departamento Nacional de


Assistência Pública, em 1930 (TEIXEIRA, 2004).
A ação de Pedro Ernesto ficou submetida à autoridade de Francisco Campos
(1891-1968), primeiro Ministro da Educação e Saúde do Governo Vargas. Pedro
Ernesto, no período em que esteve à frente desse departamento, saneou as finanças e
diagnosticou problemas. Identificou que as reivindicações populares eram educação e
saúde. Posteriormente, foi nomeado Interventor do Distrito Federal (1932-1935),
indicado pelo grupo dos tenentes, e sua administração caracterizou-se pelas propostas
inovadoras em educação, saúde, pelo uso do rádio como veículo de propaganda
administrativa, pelo apoio aos grupos ligados ao samba e aos embates políticos entre os
grupos que apoiaram Vargas. Em educação, o nome e a atuação de Anísio Teixeira
como Diretor de Instrução aponta para diversas questões. Entre os vários aspectos que
envolveram as questões educacionais, destacamos os conflitos de propostas de extensão
do ensino público leigo por Anísio Teixeira, em oposição a grupos católicos, defensores
de escolas particulares e confessionais (VALE, 2009).
À época, para Diretor da Assistência Municipal, foi nomeado o médico Gastão
de Oliveira Guimarães. Nas visitas feitas aos diversos subúrbios, bairros e
aglomerações, Pedro Ernesto conheceu a situação de saúde da cidade e estabeleceu
contatos com as lideranças locais, o que lhe permitiu fundar o Partido Autonomista do
Distrito Federal. Os recursos para a execução de seus projetos, conhecidos como
Reforma Pedro Ernesto, vieram dos impostos de 25% sobre o jogo. Naquele período,
teve início a organização e construção dos serviços médicos e hospitalares da capital
federal. Ernesto foi eleito, indiretamente, em 1935, prefeito da cidade do Rio de Janeiro.
Crises entre o prefeito e o Partido Autonomista, aliadas à Intentona Comunista, levam a
caminhos que encerram sua carreira política. O projeto liberal-democrata de Ernesto
começou a se chocar com o de Vargas, que se encaminhava para o autoritarismo. O
apoio popular não impediu que o prefeito fosse preso em 1935, suspeito de
envolvimento com a Intentona, tendo sido absolvido e libertado em setembro de 1937.
Novamente, foi preso em novembro e libertado em janeiro de 1938. Retirou-se da vida
política, manifestando-se, em 1942, contra o Eixo. Faleceu no mesmo ano, aos 58 anos,
por problemas cardíacos (VALE, 2009).
Os serviços médicos hospitalares foram organizados de maneira regionalizada e
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centralizada. A organização abrangia: Pronto Socorro, Hospital Regional, Dispensário


Clínico e Hospital dos Incuráveis. A rede hospitalar, construída pelas propostas da
Reforma, ainda é referência no Rio de Janeiro: Hospital Miguel Couto (Gávea), Getúlio
Vargas (Penha), Carlos Chagas (Marechal Hermes), Rocha Faria (Campo Grande),
Jesus (Vila Isabel) e Paulino Werneck (Ilha do Governador). Os serviços médicos
seriam gratuitos aos que não estivessem inseridos no mercado de trabalho, e os
relativamente necessitados pagariam uma pequena taxa. O Serviço Social seria
encarregado de fazer a triagem para o atendimento na rede pública. O prefeito teve
apoio da população e, inicialmente, da imprensa; contudo, sofreu oposição de setores da
saúde, da educação e da política. Destacaremos, nos próximos parágrafos, as posições
de grupos médicos diante dessas questões (VALE, 2009).
As discussões realizadas pelos médicos a respeito do papel do Estado nas
questões de saúde foram destacadas por André Faria Pereira Neto (2001), na obra Ser
médico no Brasil: o presente no passado. O autor estuda as atas do Congresso Nacional
dos Práticos de 1922, no Rio de Janeiro. Três eixos temáticos nortearam esse encontro e
adentram as discussões nas décadas posteriores: a) os defensores da abordagem clínica;
b) os adeptos das especializações; e c) as relações da profissão com o Estado. Estão
presentes, nesse texto, a busca de estratégias que não ameaçassem o caráter liberal da
profissão. Os médicos aceitavam e defendiam a ação do Estado nas questões de saúde,
desde que confinada aos pobres (PEREIRA NETO, 2001). As publicações Brasil
Médico, Vida Médica, Imprensa Médica e o Boletim Médico Brasileiro são porta-vozes
dos médicos diante da Reforma Pedro Ernesto. Nas publicações mencionadas, os
médicos defendem a gratuidade aos indigentes. Cobram medidas severas e coercitivas
para categorizar os necessitados ou indigentes. Um mês após a edição do decreto que
norteou a Reforma Pedro Ernesto, a Imprensa Médica publicou um texto do Dr. Gastão
Pereira da Silva (apud TEIXEIRA, 2004, p. 71), do qual destacamos:

Para o clínico que pretende viver exclusivamente de sua


profissão, a atividade desta é quase impossível. Entretanto, todos
os dias abrem-se postos de emergência, ambulatórios, clínicas
especializadas e quejandas, que visam apenas roubar o cliente
do médico que o espera como o pão nosso de cada dia.
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O Sindicato dos Médicos propôs auxiliar o Estado na fiscalização quanto aos


indigentes. O Decreto nº. 5.046 instituiu a Delegacia Social, órgão responsável pelo
registro e matrícula dos necessitados, o que não minimizou os ataques de grupos de
médicos. No artigo intitulado “Retirada dos dez mil”, o Sindicato Médico Brasileiro
manifestou-se, abertamente, contra a Reforma implantada pelos Decretos nº. 4.252, nº.
4.397 e nº. 5.046. O autor do artigo, o Dr. Xavier do Prado, “ponderava que as consultas
haviam afastado um contingente considerável – 10 mil – de clientes dos consultórios
médicos” (TEIXEIRA, 2004, p. 76). Os médicos do Serviço Público eram nomeados
diretamente por escolha do administrador. Pedro Nava (1983, p. 481), na obra O círio
perfeito, relata como foi admitido no Serviço Público por Pedro Ernesto, a pedido de
Virgilio de Mello Franco:

Fui no dia seguinte ao velho Palácio da Prefeitura. Peitei um


contínuo, não mofei muito, fui recebido por Pedro Ernesto
Batista. Jamais esqueci esse nosso primeiro encontro. (...) Leu
com atenção toda a longa carta do Virgilio. Encarou-me
sorrindo e sem hesitação certificou que eu seria nomeado
médico auxiliar e que a Reforma sairia dentro de mês, mês e
meio. E quando eu ia abrindo a boca ele estendeu a mão me
interrompendo. Não me agradeça não, jovem colega. Agradeço
eu. Sim senhor, eu, porque graças a você vou ter a oportunidade
de prestar um serviço ao Virgilio – que é homem de pedir
raramente. Agradeço a você – muito obrigado. Riu mais,
levantou-se, levou-me até à porta com a mão passada no meu
ombro.

No episódio, observamos o testemunho de práticas antigas (relações de amizade,


clientelismo, entre outras) coexistindo com a busca da construção de uma nova
nacionalidade. Cumpre ressaltar que a reivindicação de concursos para a admissão
também esteve presente em alguns discursos médicos nas críticas a Pedro Ernesto. Nava
(1983, p. 415-416) afirma que os antagonismos entre os profissionais no ambiente dos
hospitais e postos de saúde:

Foram aumentados os quadros de serventuários subalternos,


burocráticos, enfermeiros e médicos. Essa majoração do
funcionalismo foi feita por nomeação e no quadro médico,
Pedro Ernesto, com sua experiência e a colaboração de Gastão
Guimarães, Alberto Borgerth, Celso Sá Brito, Vitor Cabral de
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Teive, Francisco de Bastos Melo – e Alcides Marques Canário –


saiu-se com rara felicidade. Salvo escassas e políticas exceções
o novo quadro compunha-se, na sua maioria, de profissionais
competentes dentre os quais o tempo iria fazer que se
destacassem realmente grandes clínicos, grandes cirurgiões e
grandes tocólogos. As chefias de serviço foram preenchidas com
o maior escrúpulo por internistas, operadores e parteiros com
capacidade de mando e preparo reconhecido. Entretanto o
quadro dos médicos antigos – quase todos admitidos por
concurso na década de 20 – não se mostrou lá muito satisfeito
com o que parecia uma invasão de protegidos na casa onde há
anos só entrava doutor depois de passar pela porta estreita das
provas de habilitação. Começou por isso uma guerra aberta ao
diretor e aos seus colaboradores imediatos. Os antigos
começaram a hostilizar os novos e os primeiros tempos da
reforma não foram de relacionamento agradável nos plantões em
que se juntavam esses dois grupos. Gastão Guimarães que se
gabava de “não se deixar montar” centrifugou os cabeças dessa
oposição para os hospitais periféricos, para o serviço externo das
ambulâncias ou para o degredo das ilhas – o que mais exacerbou
o elemento veterano contra o recente. Diga-se ainda que nessa
coisa andou também o saudosismo trabalhando contra tudo que
dependeu da Revolução de 30.

Na transcrição, percebemos uma amostragem dos conflitos entre os médicos. A


ação de Pedro Ernesto foi possível no governo Vargas em sua primeira fase (1930-
1934), quando houve uma busca de conciliar os vários grupos que apoiaram o
movimento de 1930. O declínio da atuação de Ernesto começa quando entra em colisão
com forças direitistas, que aumentaram seu espaço no período de 1934 a 1937 e
ascenderam no período de 1937 a 1945 – Estado Novo. O distanciamento fica mais
visível de abril de 1935 a abril de 1936. É o momento da formação de uma frente, na
imprensa, liderada pelo jornal O Globo, que fazia oposição a esse político. Somavam-se
imprensa, grupos de médicos, nomes do governo – a exemplo Francisco Campos – e a
cúpula da Igreja Católica (VALE, 2011). Concretizou-se o ocaso de Pedro Ernesto.
A administração de Pedro Ernesto concretizou reivindicações da década de 1920
quanto à presença do Estado nas questões de saúde e educação. A ascensão de Pedro
Ernesto foi possível no Governo Provisório (1930-1934). No período, o Tenentismo
teve espaço como uma “nova” força capaz de conter as “antigas” oligarquias. A
rearticulação das oligarquias (1934-1937), o cenário internacional, em que o
autoritarismo de direita se encontrava em crescimento, conflitos com interesses de
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grupos de médicos, a oposição católica e a escolha do Comunismo como sinônimo de


perigo à ordem, entre outros fatores, interromperam a trajetória política de Pedro
Ernesto (VALE, 2011).
Considerando-se a Era Vargas (1930-1945) como a concretização de diversos
postulados modernistas, os primeiros signos desse governo foram construções de
hospitais e escolas, instituições que, simbolicamente, significavam a presença do Estado
junto a setores excluídos economicamente e espacialmente no período anterior. A
administração de Pedro Ernesto foi uma amostragem de um novo momento para a
sociedade brasileira, suas ações marcaram o governo de Getúlio Vargas, tendo sido
desenvolvidas por esse político nos períodos posteriores. Trata-se de ações que foram
rearticuladas e apropriadas. O uso do rádio como instrumento de divulgação da
administração e contato com o povo foi usado por Ernesto e aprofundado por Getúlio. A
legislação sobre o trabalho, em favor do funcionalismo, insere a administração do
político no Trabalhismo, aprofundado na Era Vargas. As relações com sambistas e o
apoio às Escolas de Samba dizem das relações da cultura popular nas décadas
posteriores. A centralização administrativa e o Estado como responsável pela educação
e saúde foram defendidos e experimentados ao longo da década de 1920. As ações de
Pedro Ernesto buscaram concretizar tais propostas e construíram uma experiência
política, além de terem feito da educação e da saúde aspectos relevantes do movimento
que se denominou Modernismo.

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GT 3
TEP: A INVENÇÃO DE UM SERTÃO SOFRIDO E LENDÁRIO

Anderson Bruno da Silva Oliveira


Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (Mestrando em História)
professor.historia.bruno@hotmail.com)
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Resumo: Partindo de leituras de periódicos do fim da década de 40 do século XX sobre


a formação e organização do TEP, propomos problematizar seu papel discursivo na
formação da imagem do sertão sofrido e lendário do nordeste. Objetivamos, assim,
pensar as concatenações das casualidades que são formadoras do discurso de sofrimento
e lendas criadoras do sertão nordestino. Em nenhum momento buscamos relativizar o
acontecimento, mas perceber como o discurso da seca é apropriado pelo TEP, e quem
são os agentes intelectuais deste discurso, dando maior importância a publicação do
teatrólogo Ariano Suassuna, em sua peça, Uma mulher vestida de sol, que ganhou o
prémio de 1° lugar no concurso realizado pelo TEP em 1948.
Palavras-chave: TEP, sertão, discurso.

Inventar é o papel de qualquer dramaturgo, sua função é representar um


mundo imaginário, construir realidades, montar uma peça teatral é uma tentativa de
criação de um mundo supostamente inexistente; mas reconhecemos que muitas das
vezes essas criações estão sujeitas a fatores externos a imaginação do inventor, no caso,
do dramaturgo, é normal e até aceitável que peças de teatro tentem recriar um mundo
que já existe; tentar elaborar críticas ou até mesmo transformar o trágico em comédia,
assim opera o dramaturgo, como um verdadeiro inventor de realidades.

Pensando por estes meios somos encaminhados a algumas reflexões que


Ginzburg faz sobre o uso que a literatura faz do real, segundo ele a produção literária,
em nosso caso, a dramaturgia no teatro, utiliza de fatos, usos e práticas reais para
montar sua representação74, portanto, seria comum percebemos fatos corriqueiros e
contemporâneos na dramaturgia, mas que não passam de invenções da mente de
dramaturgo.

Essa questão posta entre o real e o imaginário tem levado muitos a perder o
controle de conceitos, no caso, um conceito chave para que possamos desenvolver bem
o nosso trabalho é saber definir a diferença que há entre a história e a literatura; na
segunda, muito embora se inspire na “realidade” não significa que reproduza o real tal
como foi75; da mesma forma como a primeira, os historiadores estão cientes que suas

74
Ver: GINZBURG, Carlo. A áspera verdade – Um desafio de Stendhal aos historiadores. In: O fio e
os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 174.
75
Realidade posta aqui está carregada de uma conotação relativa, pois este real depende diretamente do
discurso de uma época, as fontes, ou mesmo, as leituras das fontes estão passivas de subjetividades,
descontruindo a ideia de que essa realidade passada existiu tal qual está posta no relato da fonte; estando
ela ainda sujeita a construção narrativa de uma época e a um lugar social. Portanto, não podemos, e nem
temos essa pretensão de afirmar uma realidade absoluta e verdadeira, mas uma realidade como sendo uma
leitura de seleto rupo que a analisa e constrói essa narrativa. Ver: CERTEAU, Michel de. A escrita da
história. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
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fontes obedecem a uma ação produtiva, os documentos por eles consultados não são
reprodutores de realidades absolutas, mas frutos de relações e construções narrativas de
grupos que detinham o poder na época de sua produção.76

White tentando suprir as deficiências dessa situação que nos põe em muitas
das vezes a beira da falésia ao tentarmos nos situar, define a história como algo baseado
no real, e a dramaturgia no imaginário, porém ele salienta que a diferença entre ambas é
o conteúdo e não as formas. Sendo assim, a narrativa do historiador está próxima da
narrativa do dramaturgo, nos diferenciando apenas na operação que fazemos com as
fontes.77

Bem, na verdade não objetivamos com este texto uma discussão teórica
entre história e literatura, mas desejamos toma-la como objeto de pesquisa, no caso a
dramaturgia de Ariano Suassuna no TEP, por volta de 1948. Neste caso, vamos
problematizar o discurso regionalista que o TEP assumiu na dramaturgia de Ariano
Suassuna na peça que recebe o prêmio Nicolau Carlos Magno em 1947, Uma mulher
vestida de sol, esta peça nos dá indícios de como foi fomentado pelo TEP na figura de
Ariano Suassuna o discurso e a invenção de um sertão mítico e saudosista.

O TEP foi uma iniciativa de alguns estudantes da Universidade Federal de


Pernambuco, tinham a princípio o objetivo de trazer ao publico popular o teatro,
possibilitar a apreciação cultural para aqueles que a sociedade urbana capitalista tinha
posto na marginalização, sendo assim o TEP carregava a missão de promover uma
espécie de “educação artística” de seu público (TEIXEIRA, 2007. p. 112). Ariano
Suassuna também comungava com essa ideia de aproximação do popular no teatro,
assim ele desejava o teatro:

76
Mastrogregori nos disponibiliza uma reflexão sobre a construção da lembrança, em seu artigo ele nos
lembra que as fontes não foram e não são fabricadas sob uma lei de inércia, pelo contrário, há um intenso
jogo de interesse para a construção da memória. Ver: MASTROGREGORI, Massino. Historiografia e
tradição das lembranças. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da
historiografia. 1ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.
77
White os caminha por definições que diferencia o enredo histórico do enredo literário, mas sempre
afirmando que o historiador e o literato estão próximos quanto a narrativa. Ver: WHITE, Hayde. A
questão da narrativa na teoria histórica contemporânea. In: NOVAIS, Fernando Antonio; SILVA,
Rogério Forastieri da. (Org.) Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
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[...] quero fazer teatro como os clássicos faziam e não se faz mais hoje: teatro
com gente, para gente, com história de gente, que tenham princípio, meio e
fim. Um teatro que tenha coragem de juntar personagens diferentes,
investindo contra um falso entendimento da unidade de estilo. (SUASSUNA,
2008. p. 47)

Essa missão de educação artística encontrava na década de 40 no Recife um


opositor, Valdemar de Oliveira, que foi o criador do Teatro de Amadores de
Pernambuco (TAP), se opunha a essa posição do TEP, para ele, o TEP estava operando
de maneira contrária a arte teatral, politizar o discurso teatral era uma ofensa à arte:
“Para Valdemar de Oliveira, ao TEP dever-se-ia atribuir intenções políticas mais que
artística”78

As contradições entre o TEP e o TAP se encontravam em suas visões e


alvos da arte teatral, para Valdemar de Oliveira o repertorio deveria ser guiado
principalmente pelo apelo comercial e uma busca da erudição; no caso do TEP, a
escolha de repertorio parece apresentar uma conotação política, quando suas peças estão
dispostas a construções de imagens políticas questionadoras da realidade, nas palavras
de Hermilo Borba Filho é possível perceber esse apelo político “popular”:

Já não mais estamos na época da “torre-de-marfim”, na qual prevalecia a


concepção da arte pela arte. O artista não pode ficar indiferente às aspirações
da humanidade, ás lutas, ao sofrimento. Não pode ficar apático, fechado em
sua arte, burilando palavras e publicando coisas apenas eruditas, sem
finalidade. A função do artista, na hora que passa, é despertar nacionalidades,
lutar pelo oprimido, amenizar o sofrimento, expondo-o sem subterfúgio para
que mais facilmente sejam encontrados os remédios. (FILHO, 1980. p. 61)

Essa função política assumida pelo TEP proporcionava a criação de


repertórios que disponibilizassem a imagem crítica e reflexiva nos populares. Como o
acesso as artes eram limitadas ao publico popular, o TEP foi pensada como uma arte
ambulante, promovendo espetáculos populares em praças e em locais publico, porém
infelizmente, esse objetivo não foi totalmente alcançado, vistos algumas
impossibilidades que foram encontradas no decorrer do processo de popularização das
artes.
78
Cf: Jornal do Comércio. 24 de nov. de 1948. p. 12.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Este momento representa, verdadeiramente, um ponto de inflexão na


trajetória do TEP. Por um lado, vê esgotar-se, antes mesmo de concretizar-se,
sua proposta de levar teatro ao povo. A Barraca, oferecida pelas oficinas da
Marinha, estava longe de ter a praticidade e portabilidade que se imaginava e
queria. Instalada no Parque Treze de Maio, lá ficou anos a fio. O próprio
Parque, a despeito de ser publico, também não correspondia exatamente a um
largo de periferia. Cravado no coração da cidade, antes demandava que o
povo a ele ocorresse do que o inverso. Acima de tudo, porém, a isto se
resumiu o movimento de ir ao povo. Os espetáculos seguintes, todos eles,
tiveram por ambientes casas teatrais, sala de cinemas e até mesmo o Teatro
Santa Isabel – o reduto da burguesia do Recife, no dizer do próprio Hermilo.
(TEIXEIRA, 2007. p. 128)

Fracassada a ideia de politização do publico popular na pratica teatral por


questão de logística, o TEP não perdeu seu caráter popular inventivo nos textos, sua
preocupação com dramas regionais torna evidente numa publicação no Diário de
Pernambuco, na verdade, uma espécie de concurso de dramaturgia que oferecessem
uma inventiva narrativa regional do nordeste:

O teatro do estudante em cumprimento ao seu programa de melhorar e


difundir o gosto do povo pelo teatro lançou no ano passado, como é do
conhecimento de todos, em concurso de peças teatrais, com o intuito de
proporcionar uma oportunidade para aparecer os teatrólogos, estudantes do
Brasil.
Foi recomendado então, nas regras do concurso, que os autores pensassem
alto e livremente encarando os problemas, lendas e necessidades do povo
sem medo ou vergonha deles. A comissão julgadora foi o escritor Gilberto
Freyre, compondo-se do presidente e os seguintes membros: Hermilo Borba
Filho diretor do T.E.P., Alvaro Lins, Luiz delgado e outros.
O resultado a que chegou essa comissão foi o seguinte: 1° lugar: o acadêmico
de direito Ariano Suassuna, com a peça Uma mulher vestida de sol; 2° lugar,
o acadêmico José Moraes Pinho, da Escola Técnica de Comércio, com a peça
O poço; e 3° lugar, tendo obtido o número de pontos os mesmo, as peças a
volante, de José Rui Barbosa, alunos do colégio Nobrega e Primavera, dos
acadêmicos do Direito Vanildo Bezerra.
Dessas peças quase todas exploram as lendas, problemas e tipos rurais,
estando já algumas nas cogitações de conjunto teatrais do sul e do Recife,
para serem incorporadas ao repertório de 1948.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
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Os prêmios, que serão entregues em sessão pública do Teatro do Estudante,


são os seguintes: 1° lugar – Prêmio Nicolau Carlos Magno, doado pelo
escritos Pascoal Carlos Magno – Cr$ 4.000,00; 2° lugar – Prêmio Frederico
Garcia Lorca – Cr$ 2.000,00; 3° lugar – Prêmio Teatro do Estudante de
Pernambuco – Cr$ 1.000,00 a ser dividido entre os candidatos. 79 (Grifo meu)

Pensar e narrar os problemas, lendas e necessidades nordestinas eram


marcas do TEP, na verdade, esse relato nos põe no problema central que propomos.
Elaborar um discurso de uma região com dores, misérias, lendas e crendices era o
principal objetivo do grupo que montou o TEP, o TAP por sua vez, não vislumbrava
esse discurso, desta forma a escrita dramatúrgica assumia a função de dá identidade a
uma região, de inventar realidades e de construir verdades que se cristalizavam no
imaginário do publico que se dirigiam para assistir as invenções do TEP. Alertando para
o poder afirmador da escrita Albuquerque Júnior afirma:

A escrita não apenas diz algo, não apenas enuncia um objeto, um referente,
uma identidade ou recorte espacial; a escrita faz ver, ela ilumina dadas
regiões do sublunar, da empiria, fazendo-as ser vistas e ditas; constrói
figurações e configurações; nos ensina a olhar, dirige nossos olhos; define
contornos, desenhos; delineia paisagens, rostidades, corporeidades. A escrita,
a linguagem, o conceito, a metáfora, o tropos linguístico nos permitem dar
contornos ao que chamamos de realidade, de real, de concreto, de nosso
mundo. (ALBUQUERQUE Jr. 2013. p. 22-23)

Essa carga de afirmações e construção de espaço, práticas e formas estão


visíveis no texto premiado no concurso do TEP em 1948, em Uma mulher vestida de
sol, Ariano Suassuna nos permite visualizar alguns fatores implícitos na construção
discursiva do sertão em suas obras, elementos como a nostalgia, trauma e regionalismo.

A nostalgia é um sentimento bem plausível nos texto de intelectuais desta


época, o próprio Hermilo Borba Filho deixa perceber essa saudade que tem do passado,
eles se apresentam em seus textos com a tentativa de reprodução do tempo que se
passou, na verdade, suas narrativas são busca de um tempo que se perde
constantemente. O espaço das cidades que se modernizavam, o capitalismo e a

79
Cf: Teatro: concurso de peças do teatro do estudante. Diário de Pernambuco, Recife, p. 6, 16 de jan. de
1948.
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burguesia que desconstruía os velhos costumes e práticas, na verdade, o texto


dramatúrgico operava como (re)estabelecedor da antiga ordem que dominava uma
região. Narrar as questões de poceiros no sertão, a autoridade dos velhos coronéis,
reconstruir a relação de honra que tinha se perdido, era uma tentativa de busca do tempo
perdido, e assim fazia Ariano Suassuna.80

Propondo uma reflexão e ao mesmo tempo nos levando a compreender esse


sentimento em textos produzidos entre 1920-1950, Albuquerque Jr. se refere assim a
produção destes textos:

A nostalgia pelo retorno a essa ordem social, vista como menos violenta,
como mais harmônica e mais justa, será partilhada por setores das camadas
populares e das elites letradas, o que contribuiu para o encontro entre eles e
com esse encontro a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular.
Nessa ideia está implícita uma inegável saudade da ordem estamental anterior
e do paternalismo e patriarcalismo que a caracterizavam. (ALBUQUERQUE
Jr. 2013. p. 44)

A maioria dos fabricantes desta realidade sertaneja e nordestina são filhos


uma velha elite agrária seja do sertão, no caso de Ariano Suassuna, ou da Zona da Mata,
como é o caso de Hermilo Borba Filho. Eles, por sua vez, se debruçaram em uma
atividade de construção discursiva em seus textos, tomando posições contrárias ao
esquecimento, sua atividade como dramaturgos será uma espécie de trabalho de
preservação, catalogação e registro de um passado ideal.

Ariano Suassuna evidenciando esse sentimento nostálgico numa entrevista


concedida no dia 30 de setembro de 2000, aos editores do Caderno Literatura Brasileira,
expõe sua ação de combate à modernização e afirmação do sentimento nostálgico como
realidade ideal para o sertão.

80
A questão de terra de poceiros é o centro da narrativa do texto dramatúrgico de Uma mulher vestida de
sol, a luta entre Joaquim Maranhão e Antônio por um pedaço de terra deixa rastros para que possamos
perceber a construção de uma narrativa nostálgica do sertão. Ariano Suassuna elabora uma narrativa que
tenta chamar atenção a valores perdidos com a modernização, a questão da honra com a palavra de um
homem, elemento que valia muito mais do que a assinatura; a fé, como elemento estabelecedor da moral e
dos bons princípios, no caso do casamento as pressas de Rosa com Francisco, visto que não podiam fugir
sem se casar, e a antiga ordem vigente no sertão, uma ordem que sobrepujava o poder oficial de
delegados e juízes, sendo o coronel o referente de poder na região. Ver: SUASSUNA, Ariano. Uma
mulher vestida de sol. 3ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
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Acredito que esse processo [globalização] está sim, em curso. As pessoas


dizem até para mim que não adianta contestar, é um fato consumado. Mas eu
não sou derrotista, não. Sou sertanejo e, ainda que eu saiba que é uma luta
perdida, aí é que eu acho que temos de enfrentá-la. Nisso eu sou fiel ao
cavaleiro da triste figura. (grifo meu)81

Essa guerra contra a modernidade precisava se que homens com o teor de


determinação de um Quaderna, que mais que escrever um conto perfeito, tinha a
pretensão de reinstaurar a velha ordem que um dia reinou no sertão; Ariano Suassuna se
comporta como um Quaderna neste aspecto, seu objetivo é mais uma vez proclamar a
monarquia sertaneja, é (re)inventar o sertão saudosista que o mundo capitalista estava
acabando. No prefácio de Farsa da boa preguiça ele acusa a modernidade e o
capitalismo de destruir a verdade sertaneja e mesmo as formas que garantia a
sobrevivência do povo sertanejo, ao contar a história de um tio dele, ele narra como
duas empresas que se instalara em Taperoá para beneficiamento de algodão acabaram
com a economia local82. Desta forma, a representação dramatúrgica do sertanejo
obedecerá a uma contradição das posições e formas do homem urbano, sempre na
tentativa de um reestabelecimento da antiga ordem, se agora não mais possível no real,
tornaria possível na dramaturgia.

O nordestino será representado pelos personagens populares que antecedem a


emergência da sociedade urbano-industrial. A elaboração da ideia de cultura
nordestina me parece nascer entre outras coisas, da reação à emergência desta
nova realidade social e aos conflitos que a constituem. (ALBUQUERQUE Jr.
2013. p. 48-49)

Essa nostalgia se junta a traumas e memórias do inventor sertanejo para a


construção discursiva do sertão. Um acontecimento traumático sempre relatado nos

81
Cf: SUASSUNA, Ariano. Ao sol da prosa brasiliana: entrevista. 30 de setembro de 2000. Recife:
Caderno de literatura brasileira. Entrevista concedida aos editores do Caderno de literatura brasileira. p.
36.
82
No prefácio de Farsa da Boa preguiça Ariano Suassuna narra a história de seu tio que perdeu a maioria
de suas posses por causa de um empreendimento de beneficiamento de algodão que se instalou em
Taperoá, as duas empresas começou comprando algodão em caroços e depois passou, também, a comprar
algodão já beneficiado para a produção de tecido, suas ações pautada numa política de mercado
capitalista (re)escreve a prática econômica do sertão de Taperoá, resultando assim, a falência da maioria
das antigas elites agrária daquela cidade, inclusive, as economias do seu tio. Ver: SUASSUNA, Ariano.
Farsa e a preguiça brasileira. In: Farsa da boa preguiça. 10 ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p.
33-34.
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discursos de Ariano Suassuna83, a morte do pai é fundante nesta saudade inventiva do


sertão nordestino; seu pai que deixou uma imagem de homem sertanejo e homem
honrado, fecunda nas memórias do inventor com valores que deveriam ser repostos
numa sociedade que para ele estava em crise.

A memória do assassinato do seu pai, no dia 9 de outubro de 1930, retorna


na invenção do sertão, com traços que só a literatura tem a possibilidade de reconstruir,
pela sensibilidade de signos dispostos em sua construção, ela tem a sensibilidade para
sarar dores que o passado deixou. O fim da peça de teatro Uma mulher vestida de sol é
marcado por um ato de traição, a morte do jovem valente e determinado chamado
Francisco, por um homem sem hora e sem palavra, surge, por certo, da memória de um
homem covarde que matara seu pai pelas costas; na invenção sertaneja de Ariano
Suassuna, matar até é permitido, mas teria que ser feito por um homem com honra, e
nunca em forma de traição. Lembrar e recriar de maneira nostálgica o sertão foi uma
função terapêutica para o inventor, sua obra se comporta como analista que se debruça a
ouvir o acontecimento perturbador.84 Não pretendemos cair na sedução das
casualidades, e nem tomamos esse acontecimento nesta ótica, apenas tentamos
compreender como ele é reelaborado a partir das memórias do autor. O ato de rememora
justifica a construção saudosista e folclorista do sertão pelo TEP e por Ariano Suassuna.

Assim se configurava o TEP para Ariano Suassuna, numa oportunidade de


recriar o sertão nordestino pelas histórias do povo nordestino, seriam inventar um
espaço, práticas e modas, seu texto, Uma mulher vestida de sol recontava história de
amor, luta e morte sertanejas, frutos de saudade de um sertão nordestino que se perdia

83
O acontecimento ao qual nos referimos é relatado pelo Jornal da Manhã como uma traição, a morte de
João Suassuna, Deputado Federal pela Paraíba, em 1930, decorrente de intrigas que se instalara no norte
após o golpe de 1930. A morte do pai se configura em um trauma para seu filho mais novo, a
impossibilidade ter o pai de volta, leva ele a construir ou reconstruir um sertão ideal, o sertão in memória,
um sertão que a nova ordem política destruíra. Ver: O brutal assassinato do deputado João Suassuna.
Folha da manhã. São Paulo, p. 12, 10 de out. 1930.
84
O caráter terapêutico que tem a dramaturgia para Ariano Suassuna é evidente em sua nostalgia, a
tentativa constante de revisitar e reinventar é uma tentativa de reconstruir a memória, e o tempo passado.
A morte traumática do seu pai opera como elemento estimulante para uma continua recriação do sertão
em seu formato espacial, com suas práticas e crenças. Construindo uma reflexão sobre essa problemática
Dosse nos salienta desta revisitação ao acontecimento no discurso psicanalítico: “Seja paciente que
relembra ou analista que reconstrói, o tratamento analítico se move em direção à coerência de uma
narrativa tecida de vestígios mnésicos.” Cf: DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um
desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013. p. 109.
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com o passar do tempo, de uma realidade e pessoas que não mais existiam, numa
batalha constante com o tempo.

Assim, prefiro as histórias sejam dessas histórias sem dono que ocorrem
mundo e receberam na sanção coletiva o batismo nordestino. Através delas,
procuro absorver o espírito ao mesmo tempo trágico e cômico de meu povo,
criando um ângulo novo para olhar o espetáculo do mundo. Quando mais
humana e coletiva sejam as histórias, quanto mais vivos os personagens,
tanto maior o número de pessoas, seja em quantidade seja em qualidade, será
afetado por elas. Uma arte que, sem concessões de qualquer espécie, atinja
profundamente tanto o público comum que vai ao teatro ver espetáculo, como
o rapaz pobre da torrinha, que vai ali em busca de alguma coisa que lhe é
quase tão necessária quanto o sono, será sempre superior aquela que só atinja
um outro. (SUASSUNA, 2008. p. 48)

Aproximar do povo, escrever sobre o povo sertanejo, pensar as


problemáticas do povo, mas, na verdade, inventar um espaço ideal a vista do inventor é
o que fez Ariano Suassuna no TEP e em outras peças posterior ao TEP. Ele não só
tratou sem vergonha os problemas, as lendas e as necessidades do povo sertanejo, como
pedia o TEP, mas ele inventa um espaço com dores, crenças pautadas no catolicismo
mestiço85; reelabora as necessidades do povo, e não deixa de rememorar um lugar ideal,
o lugar de suas saudades, a Taperoá ideal, o mundo ideal, o sertão de Ariano Suassuna.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da


cultura popular (nordeste – 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Fortaleza: ABC Editora, 2002.

DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador:


entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

85
Catolicismo mestiço é um conceito usado por Euclides da Cunha ao tentar definir as práticas religiosas
sertanejas, conceito este que está implícito em toda obra de Ariano Suassuna. Cf: CUNHA, Euclides da.
Os sertões. Fortaleza: ABC Editora, 2002. p. 116.
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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

FILHO, Hermilo Borba. Teatro: arte do povo. In: Arte em Revista. Ano II, n° 3. São
Paulo: Kairós, 1980.

GINZBURG, Carlo. A áspera verdade – Um desafio de Stendhal aos historiadores.


In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.

MASTROGREGORI, Massino. Historiografia e tradição das lembranças. In:


MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. 1ª ed.,
2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

________ . Ao sol da prosa brasiliana: entrevista. 30 de setembro de 2000. Recife:


Caderno de literatura brasileira. Entrevista concedida aos editores do Caderno de
literatura brasileira.

________ . Farsa e a preguiça brasileira. In: Farsa da boa preguiça. 10 ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2013.

________ . Uma mulher vestida de sol. 3ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

TEIXEIRA, Flávio Weinstein. O movimento e a linha: presença do Teatro do


Estudante e d’O Gráfico Amador no Recife (1946-1964). Recife: Editora
Universitária UFPE, 2007.

WHITE, Hayde. A questão da narrativa na teoria histórica contemporânea. In:


NOVAIS, Fernando Antônio; SILVA, Rogério Forastieri da. (Org.) Nova história em
perspectiva. São Paulo: Cosac Naify
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NARRATIVAS VISUAIS:
CIRCULAÇÃO E RECEPÇÃO DAS XILOGRAVURAS DE J. BORGES NA
DÉCADA DE 1970

Maria do Rosário da Silva


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE
transilin@yahoo.com.br

A arte é algo que se vê, se dá simplesmente a ver, e, por isso mesmo, impõe
sua ‘específica’ presença.
(Georges Didi-Huberman)

Foi na década de 1970 que a xilogravura emergiu como artefato vinculado às


técnicas de ilustração da capa de folhetos de cordel e passou a ser significada como
parte do repertório narrativo dos folhetos, entrando, portanto, no rol das artes
consideradas emissoras de signos da tradição, visto que suas origens estavam associadas
ao chamado “Romanceiro Popular do Nordeste”.86 Significada como objeto do mundo
da cultura popular, a xilogravura, congregava elementos de uma estética nacional
popular,87 que permitiu sua circulação88 entre diferentes espaços como exposições de
arte, livros, catálogos, jornais, revistas e televisão.
Alguns anos antes, precisamente em meados da década de 1960, quando se
tornou imperioso amortecer os custos da produção de folhetos, José Francisco Borges89
havia ingressado no ramo da ilustração, e assim passou a produzir xilogravuras. Em
pouco tempo, sua fama de xilogravador espalhou-se entre os poetas, seus pares,
companheiros no trabalho de ler e vender folhetos em feiras e mercados.

86
Ariano Suassuna usa, frequentemente, em seus escritos a expressão Romanceiro Popular do
Nordeste, que, segundo ele, reúne a poesia improvisada dos cantadores de repente e a literatura de
cordel. Cf. Suassuna (1974, 1986).
87
Nos anos 1970, a noção nacional popular esteve vinculada ao debate político e intelectual acerca da
cultura e da identidade nacional. A problemática do popular e do nacional perpassa diferentes épocas
e diferentes perspectivas teóricas. Sobre o tema, ver Ortiz (2006).
88
Compreende-se como a trajetória das imagens xilográficas como artefato produzido, guardado,
distribuído, comprado, manuseado, arquivado e manipulado.
89
Prefere usar seu nome abreviado, J. Borges; nasceu em Bezerros/PE em 20 de dezembro de 1935. Na
década de 1960, depois de desenvolver várias atividades agrícolas e comerciais, começou sua carreira
no ramo da literatura de folhetos, primeiro como vendedor, e posteriormente como autor, editor e
xilogravador.
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Na época, a composição xilográfica não era amplamente aceita como ilustração


para capa de folheto, a maioria dos autores e leitores cultivava certo fascínio pelas
imagens da indústria cinematográfica, amplamente usadas, como ilustração dos
folhetos. Durante quase três décadas, as fotografias reinaram absolutas. Quando a
xilogravura emergiu, não foi bem recebida pelo público acostumado aos retratos. Liêdo
Maranhão de Souza (1981, p. 15), pesquisador preocupado com os modismos e as
mudanças nas chamadas manifestações folclóricas, escreveu que, mesmo parecendo
muito antiga, “a xilogravura ou gravura de madeira, hoje muito ‘badalada’ pelo público
e por um comércio sofisticado de arte, nunca teve na realidade em todo o período de sua
história [do folheto], o prestígio e a popularidade das chamadas gravuras de zinco,”
pois, anteriormente, as gravuras preferidas eram “desenhos rabiscados a lápis, [...]
cartões postais e fotografias de artistas de cinema” (SOUZA, 1981, p. 15).
O trecho acima evidencia que a xilogravura, em relação ao clichê de zinco,90 foi
percebida, inicialmente, como ilustração esteticamente rústica e artesanal; mas em
pouco tempo, tornou-se mais representativa de uma determinada visão do Nordeste do
Brasil91 do que outros tipos de ilustração (SOUZA, 1981). Como essa leitura das
xilogravuras tornou-se lugar comum?
Para responder a essa pergunta, necessário se faz ir ao encontro da trajetória do
artista Borges, que, ao longo de sua vida, vendeu, escreveu, editou, imprimiu e ilustrou
folheto de cordel. Quando começou a produzir xilogravuras em dimensões, suporte e
possibilidades de uso diferente da capa de folhetos, ele recebeu incentivos. Também foi
visto como responsável pela descaracterização da linguagem gráfica dos folhetos, por
criar modismos para agradar e deslumbrar turistas (SOUZA, 1981), como por quebrar a
unidade narrativa entre o folheto e a xilogravura. No entanto, duas décadas após, passou
a ser identificado como “um dos artistas mais talentosos da xilogravura no país” (O
REI..., 2002, p. 2).
O que aconteceu nesse intervalo de tempo que modificou o estatuto do artista
Borges? Como e por onde circularam suas xilogravuras na década de 1970? Como
foram expostas e publicadas? Neste artigo, procura-se narrar o que Borges chamou de

90
Placa para impressão, com imagens ou palavras gravadas em relevo, para ser usada na impressão em
prensa tipográfica.
91
Sobre o uso do termo como recorte geográfico naturalizado, ver Albuquerque Júnior (1999).
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92
“movimento das gravuras” (informação verbal) e os enredos da recepção93 de sua
arte. O relato autobiográfico de Borges acerca de sua produção artística indicou
surpreendentes caminhos; em correlação com textos jornalísticos e outras publicações,
ofereceu indícios sobre os modos de circulação e recepção na relação com a cultura

92
J. Borges em entrevista concedida a Maria do Rosário da Silva em Bezerros, PE, 21 de março de 2012.
93
Recepção compreendida como a relação entre produtores e receptores das imagens xilográficas por
meio de negociações de sentidos e significados.
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gráfica94 e a cultura visual95 vigente no período. As xilogravuras borgeanas em


circulação na década de 1970 são testemunhas de uma relação social (BAXANDALL,
1991). Sendo assim, busca-se entender as condições visuais e comerciais nas quais a
produção de Borges encontrava-se inserida. Na época, ele pertencia a uma geração de
artistas que precisaram lidar com a supressão das liberdades individuais e com
mudanças no âmbito da arte de fazer, que desenharam formas novas e novos modos de
produção.
Na construção narrativa deste artigo, procurou-se combinar testemunhos
escritos, visuais e orais, buscando seguir sinais, rastros e registros acerca dos modos de
circulação e recepção da obra xilográfica borgeana. Em entrevista, Borges contou que
entrou no campo da produção de xilogravuras independente da capa de folheto,
incentivado pelo artista plástico Ivan Marquetti.96 Eis como ele narra parte de sua
trajetória: “Comecei a fazer gravuras maiores a pedido de Ivan Marquetti [...] Depois
Ranulpho me convidou para trabalhar na Galeria [...] Realmente, foi ele [Marquetti] que
me levou para Ariano Suassuna. Entre sonoras gargalhadas, concluiu: “Ariano, me deu
o nome de melhor gravador popular do Nordeste, o povo acreditou, e eu cresci.”
(Informação verbal). 97
Nessa passagem Borges evocou como sua rede de relações pessoais e artísticas
delineou-se, cujo primeiro cliente, admirador e incentivador foi responsável por fazer a
ponte entre Borges e a lista de outras pessoas, que, ao longo da década, não parou de
crescer, tais como Ariano Suassuna98, Carlos Ranulpho99, Eduardo Galeano100, entre
outros.

94
Usada aqui a noção cultura gráfica em consonância com Roger Chartier (2007a), quando chama a
atenção para as diferentes formas de escrita e a pluralidade de usos dos impressos.
95
Sobre o desafio historiográfico acerca da noção cultura visual, cita-se Kern (2010); Knauss (2006);
Menezes (2003).
96
Artista plástico carioca que viveu em Olinda/PE no início da década de 1970. Participou de exposição
na Galeria Ranulpho em 1973.
97
J. Borges em entrevista concedida a Maria do Rosário da Silva em Bezerros, 21 de março de 2012.
98
Escritor, dramaturgo e poeta paraibano, vive em Pernambuco desde 1942. Na década de 1970, lançou
o Movimento Armorial, cuja bandeira era constituída pela defesa da noção cultura popular do
Nordeste brasileiro.
99
Marchand pernambucano e proprietário da Galeria Ranulpho. Borges manteve contrato de
exclusividade com essa galeria por aproximadamente dois anos (1973-1975).
100
Escritor, jornalista e historiador uruguaio. Nos anos 1990, Borges ilustrou um livro dele, As palavras
andantes (GALEANO, 2007).
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O repertório de histórias da literatura de folhetos, desde o começo, orientou


Borges na criação de suas cenas xilográficas. Nessas cenas ele narra histórias. Suas
narrativas mantêm estreita relação com sua experiência de vida. Sobre a fonte de suas
histórias, podemos escrever que ela se encontra ao alcance de suas mãos, porque ele
transita entre o camponês quase sedentário, que não tem gosto em arredar os pés de sua
casa, e o viageiro que não teme se aventurar por terras distantes nas asas do Pavão
Misterioso (BENJAMIN, 1994). Com estiletes, facas, goivas, madeira, tinta e papel,
Borges desempenhou seu papel de narrador.
As xilogravuras borgeanas apresentam duas áreas: a barra101 e o desenho ou
composição.102 Como ele procede? O primeiro gesto de Borges, quando grava, é
reservado à barra – área de aproximadamente 3 cm na base da cena –, destinada,
inicialmente, ao título da obra e ao nome do artista. Mas a barra tem outras serventias,
por exemplo, por ser traçada na base da composição, serve para demarcar a ordem dos
elementos proposta pelo autor. Sendo assim, a barra fixa e orienta a posição vertical ou
horizontal da composição, e a disposição dos desenhos define os elementos à esquerda e
à direita no impresso. Em síntese, astuciosamente, a barra demonstra e defende uma
autoria, e a composição corresponde à disposição dos desenhos na madeira, cuja
intenção é suscitar uma narrativa.
As xilogravuras de Borges raramente precisam de retoques, mas quando
considera necessário, ele usa caneta hidrográfica nos desenhos já impressos. Quando
concebe seus desenhos-narrativas, não costuma fazer rascunhos. Ele desenha à mão
livre, com lápis grafite direto na superfície da madeira. Borges gosta de aproveitar cada
pedacinho da madeira; tentando evitar desperdícios, seus desenhos abarcam todo o
espaço disponível. Geralmente, o título antecede o desenho.
Na década de 1970, foram duas as condições de comercialização que
esquematizavam o tema da composição borgeana: i) criação por encomenda que
abarcou certa variedade de suporte: capa de folheto, livros e discos, convites, rótulos e
cartazes; e ii) criação livre direcionada à clientela das exposições e galerias de arte.

101
José Costa Leite e Dila, artistas contemporâneos de Borges, não costumam usar o recurso da barra.
102
Aqui, usada a noção de composição em consonância com a noção criação poética, que, segundo
Chartier (2007a, p. 33) implica um trabalho de rememoração que permite “a busca da matéria [res] e
sua formatação (collectio) em nova composição”. Nesse sentido, a composição borgeana toma a
madeira como suporte privilegiado de suas inscrições.
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Nesse caso, Borges escolhia os temas em consonância com diversas circunstâncias: suas
escolhas e os recursos disponibilizados pela sociedade.103 Para cumprir sua tarefa, ele
manejava os materiais e os recursos culturais de seu tempo. Um quadro de intenções
humanas. Caso o tema caísse no gosto dos clientes e houvesse uma procura, ele podia
desenvolver variações temáticas.
Os personagens da obra de Borges foram classificados pelo pesquisador Antônio
Augusto Arantes (1982) em três eixos temáticos: i) personagens fantásticos; ii)
personagens de folhetos de cordel e iii) personagens emblemáticos da cultura
nordestina. No entanto, classificar a obra de Borges com base nos personagens pode
revelar-se insuficiente diante das mais de cinco mil matrizes. Por isso, propomos uma
análise baseada em séries temáticas.
Na década de 1970, os desenhos de Borges encontravam-se inseridos em uma
determinada visualidade, em um ambiente cultural emissor de variadas imagens, cujo
lugar de destaque pertenceu à imagem veiculada pelo aparelho televisor.104 O que
vemos nas xilogravuras borgeanas? O que elas testemunham a respeito da visualidade105
partilhada pelo autor? Consideramos que, ao olhar para as xilogravuras de Borges,
somos remetidos a uma textualidade, a uma narratividade, pois as histórias contadas na
madeira mantêm correlação com o repertório literário dos folhetos posto que o objeto
xilogravura reclame uma atenção visual específica porque é uma superfície a ser olhada.
A xilogravura de capa exerce a função de tornar visível/legível a inteira
superfície do texto para o qual ela serve de síntese; mesmo para as pessoas que não
decifram letras, ela evoca uma cognoscibilidade que ultrapassa a linearidade da leitura.
Entre a xilogravura capa de folheto e a xilogravura emoldurada, há uma continuidade
narrativa, possível, porque remete ao mundo visível e ao ato de ler palavras e imagens.
Na consecução deste arquivo, escolhemos um conjunto documental da obra de
Borges produzida no decurso da década de 1970. Apesar de ser parte da história recente,
os documentos que possibilitam contar histórias sobre Borges se encontram dispersos

103
Referimo-nos ao conceito de energia social, noção-chave à compreensão do processo de circulação
entre o mundo social e as obras estéticas. Sobre o conceito, ver Chartier (2007b).
104
Sobre a história da televisão no Brasil, ver Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010).
105
Conceito usado em consonância com Ulpiano Menezes (2003, p. 12), “como uma dimensão
importante da vida social e dos processos sociais”.
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em arquivos públicos e particulares. Procedemos perseguindo alguns indícios pescados


nos testemunhos de Borges.
Em sua autobiografia, ele relata que tinha já dois livros publicados por pessoas
letradas, mas não se refere aos títulos. Em entrevista, confessa que passou por um
desgosto porque suas xilogravuras não foram divulgadas na abertura da versão
censurada da novela Roque Santeiro. Esses indícios direcionaram nossas buscas nos
arquivos. No Arquivo Público de Pernambuco, garimpamos notas106 publicadas no
Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco, jornais diários com ampla circulação no
Estado. Nesse mesmo arquivo, localizamos o folheto A fabulosa estória de Roque
Santeiro e de sua fogosa viúva, a que era sem nunca ter sido,107 escrito por Mário Lago
108
(1975) com o objetivo de divulgar o lançamento da novela, importante em nossa
pesquisa por ter possibilitado a divulgação de quatro xilogravuras de Borges.
Lendo as notas publicadas na impressa, pudemos reunir informações sobre os
meios de divulgação e circulação das xilogravuras de Borges no período em questão. O
primeiro álbum, lançado em 1972, recebeu o título A vida do Padre Cícero gravada por
J. Borges (Figura 1).

Figura 1 – A vida do Padre Cícero gravada por José Borges

Fonte: Borges (1972).

106
Na linguagem jornalística, nota é um gênero de notícia que se apresenta na forma de um texto breve,
cujo objetivo é a informação rápida e precisa.
107
No percurso da pesquisa, encontramos dois exemplares no acervo de folhetos do Arquivo Público de
Pernambuco, sob o número de referência: F869.0(81)-91.
108
Mário Lago nasceu no Rio de Janeiro em 1911 e faleceu em 2002. Foi advogado, poeta, radialista,
compositor e ator. Ficou conhecido por sua carreira na teledramaturgia brasileira, atuando em várias
novelas produzidas pela Rede Globo.
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O cuidadoso projeto gráfico foi realizado pelo gravador Gilvan Samico e o


processo de impressão pela Tipografia Marista em parceria com a Universidade Federal
de Pernambuco. O uso do Papel Kraft (também chamado de papel pardo), as dimensões
do álbum, 17x16 cm, e o modo de apresentação das 18 xilogravuras inéditas, talhadas
em tacos de imburana nas dimensões de uma capa de cordel (10x16 cm), evocavam,
propositadamente, a estética dos folhetos.
Em 1974, Borges teve seu segundo álbum publicado. Este guarda certas
diferenças em relação ao primeiro; nele as xilogravuras foram apresentadas com base
em outra materialidade: também impressas em Papel Kraft, mas com moldura em papel
linho na cor branca. Esse formato sugere que as xilogravuras poderiam ser usadas
individualmente como objeto decorativo, podiam ser enquadradas e talvez ornamentar
residências e escritórios dos possíveis compradores. O luxuoso álbum, impresso pela
Editora Guariba em capa dura no formato envelope, coberta em tecido linho, foi
elaborado para ser exposto em galerias de arte.
Esses dois álbuns têm algo em comum: Borges e sua obra foram apresentados ao
público leitor-expectador pelo escritor Ariano Suassuna. No segundo álbum, Suassuna
foi responsável pela escolha das dez obras mais representativas da produção de Borges,
também pela descrição e ordem de apresentação no álbum. Nesse ponto, cabe uma
pergunta: Quem era o apresentador de Borges? Ariano Suassuna, 109 professor
universitário e criador do Movimento Armorial, portanto, alguém investido de
autoridade para anunciar e classificar o trabalho de Borges. A apresentação elaborada
por Suassuna, quando lida em correlação com os escritos acerca do Movimento
Armorial,110 ajuda a entender como algumas obras podem congregar representações
coletivas do passado. 111
O primeiro álbum, A vida do Padre Cícero, gravado por José Borges, oferece
aos leitores-expectadores um exercício biográfico-visual, porque, em uma sequência de

109
Sobre Ariano Suassuna e o Movimento Armorial há uma vasta produção bibliográfica. Consultar, entre
outros, Maria Thereza Moraes (2000).
110
Lançado oficialmente em Recife em 18 de outubro de 1970 na Igreja de São Pedro dos Clérigos. Duas
publicações são fundamentais na compreensão das noções armorial e cultura brasileira articuladas por
Suassuna. (1974; 1976/2003): O Movimento Armorial (1974) e A onça castanha e a ilha Brasil (2003).
111
Na história de Pernambuco, três momentos históricos significativos se cruzam na perspectiva de
pensar uma identidade para o Brasil e para os brasileiros, abarcando como princípio valores regionais e
tradicionais: o primeiro denominado de Escola do Recife no século XIX; o segundo é o Movimento
Regionalista, que tem seu começo na segunda década do século XX, e o terceiro é o Movimento
Armorial de 1970. Suassuna tornou-se herdeiro e crítico das duas experiências anteriores à de 1970.
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18 xilogravuras,112 ele pretende representar cronologicamente acontecimentos


fundamentais na trajetória do Padre Cícero.113 Letras e desenhos não se separam, juntos
contam uma história cuja leitura torna-se mais fácil quando a decifração parte de cada
título. Parece-nos que Borges oscila entre o autor e o artista, sente necessidade das
palavras para contar; nessa obra elas são desenhadas como parte da composição, e,
como de costume, não foram colocadas na barra. Elemento presente, mas reservado,
nesse caso, à assinatura do autor. Cada título foi inscrito em letra maiúscula na parte
superior da composição. Do ponto de vista estético, ousamos afirmar que Borges quase
não se afastou dos moldes de capa de folhetos.
Borges selecionou acontecimentos biográficos que lhe permitissem contar uma
história acerca do Padre Cícero. Essa série de xilogravuras abarcou quatro eixos
narrativos ligados ao personagem principal. Na narração de Borges, religião e cangaço
misturaram-se nas imagens gravadas. As narrativas biográficas elaboradas por Borges
geralmente começam pelo aprendizado das letras. Era uma vez um personagem que,
antes de tudo, esteve na escola. Sem escola, sem a pouca leitura, o próprio Borges não
se tornaria autor de folhetos; considerando sua trajetória, ele colocou a escola como o
primeiro lugar dos aprendizados, onde o padre foi um menino de calça curtas
aprendendo letras e números (Figura 2). Na organização cronológica das imagens, o
artista atualizou a narrativa dos folhetos que contavam histórias sobre os milagres,
prodígios e castigos do emblemático padre sertanejo.

Figura 2 – O Padre Cícero na escola

112
Os títulos atribuídos por Borges são: 1. Padre Cícero na escola; 2. Ordenação do Padre Cícero. 3.
Chegada do Padre Cícero em Joazeiro. 4. Primeira missa do Padre Cícero. 5. Comunhão da Beata. 6.
Padre Cícero aconselhando noivos. 7. Chegada de Lampião em Joazeiro (nesta há uma inversão, a
barra foi localizada na parte superior e o título na base da xilogravura). 8. Confissão de Lampião com
Padre Cícero. 9. Lampião falando com o Padre Cícero. 10. Lampião em palestra com Padre Cícero. 11.
Lampião em defesa a Joazeiro. 12. O romeiro que roubou a faca e confessou ao Padre Cícero. 13. O
Padre Cícero e as emas. 14. A prostituta arrependida aos pés de Padre Cícero. 15. Beatas em orações.
16. Benção das seis. 17. Padre Cícero entrega a carta de poder a Frei Damião. 18. Imortais pelo bem e
pelo mal, Lampião e Padre Cícero.
113
Cícero Romão Batista, nascido em 24 de março de 1844 no Crato/CE. Faleceu em 20 de julho de 1934
em Juazeiro do Norte/CE. Sacerdote católico ordenado em 1870, conhecido pelos devotos como Padre
Cícero ou Padim Ciço. Figura de grande prestígio e influência na vida social, política e religiosa no
Nordeste do Brasil (cf. LIRA NETO, 2009).
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Fonte: Borges (1972).

O primeiro álbum de Borges, o artista usa dispositivos de fragmentação para


sugerir uma forma de leitura. Nas xilogravuras um a seis, o personagem principal é o
padre no exercício de ações basilares como estudar, celebrar missas e aconselhar fiéis.
Nas xilogravuras sete a onze, Borges inseriu um segundo personagem, Lampião, que em
visita a Juazeiro, depois de passar pelo ritual da confissão e receber as bênçãos do
padre, figura como personagem que exerce importante papel. Dois verbos indicam
como ocorreu o encontro entre o padre e o cangaceiro: falar e palestrar. O título destas
xilogravuras parecem muito próximos: Lampião falando com Padre Cícero (Figura 3) e
Lampião em palestra com Padre Cícero (Figura 4); no entanto, apresentam significados
ambíguos.

Figura 3 – Lampião falando com Padre Cícero Figura 4 – Lampião em palestra com Padre Cícero

Fonte: Borges (1972). Fonte: Borges (1972).

O ato de falar foi usado no sentido de apresentação, cumprimento, pedido de


autorização, é o começo de uma conversa, por isso o padre domina a cena com sua
figura gravada em negro e de frente para o espectador; já o cangaceiro, aparece de
perfil, com a arma colada ao corpo. Há um distanciamento entre os personagens, apesar
do longo braço do padre, eles se comunicam pelo aperto de mãos.
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No entanto, na cena em que eles palestram, Borges colocou o padre e o


cangaceiro em condição de igualdade, palestrar foi usado para indicar diálogo ou acordo
quanto ao assunto tratado. Os personagens foram desenhados sentados, ambos de perfil
ou em igualdade de condições, palestrando como dois grandes amigos. Enquanto
Lampião palestra gesticulando com as mãos, o padre pondera, pousando sua mão na
perna do interlocutor. Gesto de concordância ou sinal de quem esperava sua vez no
debate.
Lampião sai de cena na xilogravura doze para dar lugar aos acontecimentos
cotidianos e extraordinários que atravessaram a vida do padre; o arrependimento de um
ladrão e de uma prostituta, que funcionaram como prova de poder e de santidade; o
cuidado com os animais sertanejos; as beatas em oração e as bênçãos das seis evocam o
cenário cotidiano no qual o padre viveu. As duas últimas xilogravuras colocaram diante
do expectador a figura de Frei Damião, que, por meio de uma carta, seria o legítimo
herdeiro da missão do Padre Cícero. Na última xilogravura, Lampião e Padre Cícero
(Figura 5) são apresentados como imortais, “pelo bem e pelo mal”. Como ícones da
cultura sertaneja, os dois personagens olham diretamente para o expectador. Nessa
xilogravura é Lampião quem toca o Padre Cícero como se estivesse apresentando-o
diante do público.
Figura 5 – Imortais pelo bem e pelo mal Lampião e Padre Cícero

Fonte: Borges (1972).

O que chama a atenção nessa primeira publicação de Borges é a proximidade


com a estética das capas de folheto. Na narrativa construída, Borges oferece ao
leitor/expectador uma história com personagens principais e secundários conectados
pelos temas: religião e cangaço. A mudança de destinatário se apresenta de modo sutil e
a modalidade de inscrição, o suporte de divulgação não ultrapassa a forma impressa do
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folheto. O álbum não é mais uma publicação autoral, fundamentado na arte de fazer do
autor, mas um empreendimento comercial que pressupõe tanto a intervenção como a
“influência de pessoas formadas” (BORGES, 2002, p. 258) e a circulação em lugares
distintos da feira e do mercado. Considerando os limites deste artigo, preferimos cotejar
apenas alguns aspectos dos textos escritos por Ariano Suassuna (1972a) com o objetivo
de apresentar Borges, “o maior gravador popular do Nordeste”.
O texto do primeiro álbum foi composto apenas por dois parágrafos. Neles
Suassuna escreveu que Borges era poeta e autor de folhetos, e que se tornara gravador
para ilustrar seus próprios livrinhos. Liêdo Maranhão, Gilvan Samico, José Maria e Ivan
Marquetti foram louvados, porque eles seriam responsáveis pela “revelação [de Borges]
ao mundo da arte brasileira e nordestina” (1972a).
Na segunda apresentação, após tecer os mesmos elogios, acrescentando apenas
algumas palavras, Suassuna (1973) explicou como escolheu e organizou os 10 melhores
trabalhos do artista. Não ofereceu muitos detalhes, mas explicou que dividiu essa
amostragem em três grupos. O primeiro seria “constituído pelas gravuras em que a
preocupação documental” teria prejudicado “um pouco a qualidade plástica”
(SUASSUNA, 1973). O segundo, “apesar da presença do documento, por assim dizer
‘folclórico’, era superior em “qualidade plástica” (SUASSUNA, 1973) sem cair nos
114
perigos de se apresentar como produto “turístico” (SUASSUNA, 1973). Já o terceiro
grupo, destacava-se porque, “a imaginação criadora” do artista teria atuado livremente,
“criando gravuras que nos deixam a todos nós orgulhosos de pertencer ao mesmo chão
cultural dele, este Nordeste sofrido e agreste que tanto nos marcou de uma vez para
sempre” (SUASSUNA, 1973).
No primeiro grupo, classificado como o “menos bom”, Suassuna incluiu quatro
xilogravuras: Satanás e o homem da cruz, O vendedor de Torrado, Ladrões de Galinha
e os Machadeiros (Figuras 6, 7, 8 e 9). O que ele chama “preocupação documental”
relaciona-se com o desejo de Borges de representar cenas do cotidiano, cenas em que se
comunicam representações iconográficas difundidas como portadoras de imagens do
Nordeste, de certo modo, desgastadas e criticadas pelo uso folclórico e turístico, na
concepção armorial de Suassuna.
114
No texto, Suassuna, também explicou que estavam usando as palavras folclórico e turístico, apesar
de ter horror a elas, com o objetivo de mostrar como “os artistas verdadeiros e grandes, como J.
Borges, são incorruptíveis”.
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Figura 6 – Satanás e o homem da cruz Figura 7 – O vendedor de torrado

Fonte: Borges (1973). Fonte: Borges (1973).

Figura 8 – Ladrões de galinhas Figura 9 – Os machadeiros

Fonte: Borges (1973). Fonte: Borges (1973).

Para compor o segundo grupo, Suassuna escolheu duas xilogravuras: A matuta


velha e As rendeiras (Figuras 10 e 11); apesar da temática do cotidiano, foram
destacadas do primeiro grupo, pois seriam esteticamente superiores. Na primeira, o
destaque estava na “composição simétrica de grandes chapados de negro e branco”; na
segunda a “bela forma do preto” dominava a composição (SUASSUNA, 1973).

Figura 10 – A matuta velha Figura 11 – As rendeiras

Fonte: Borges (1973). Fonte: Borges (1973).


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O terceiro grupo, interpretado por Suassuna, como “o melhor”, abarca três


xilogravuras: Caçador de onça, Lobisomem, e Briga do cachorro com a onça (Figuras
12, 13 e 14). Suassuna numerou e distribuiu essas 10 xilogravuras considerando sua
experiência com textos teatrais; as “três melhores” (1973) funcionaram como pontos
altos que remetem ao clímax na narrativa do teatro. O caçador de onça congregaria o
primeiro ato sugerindo o enredo. O lobisomem, segundo ato, estabelece um elo entre as
primeiras e as últimas xilogravuras. A Briga do cachorro com a onça fecha as cortinas e
remete ao universo narrativo dos folhetos.

Figura 12 – Caçador de onça Figura 13– Lubisomem

Fonte: Borges (1973). Fonte: Borges (1973).


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Figura 14 – Briga do cachorro com a onça

Fonte: Borges (1973).

Essas três xilogravuras são as preferidas de Suassuna, consideradas “três pontos


altos da gravura brasileira, não somente da gravura ‘popular’, porque essas distinções
entre ‘artistas eruditos’ e ‘artistas populares’ só valem para os casos médios.”
(SUASSUNA, 1973). Essa preferência talvez possa ser explicada porque, nessas três
xilogravuras, Borges explorou temas armoriais. Suassuna (1973) confessou que
admirava “vê-lo interpretando ao seu modo, assuntos que já ‘furtei’ do universo da arte
popular nordestina”.
Uma coincidência, no entanto, teria afetado o autor armorial: as semelhanças
entre uma cena de seu livro A pedra do reino (SUASSUNA, 1972b) e a xilogravura O
caçador de onça. Quaderna, personagem do livro de Suassuna, para afirmar sua
valentia, mata uma onça, entre duas pedras, sendo uma delas a pedra do reino. Segundo
Suassuna, nem Borges conhecia o livro quando fez a gravura, nem ele conhecia a
gravura quando escreveu o livro. Essa junção imagética foi para Suassuna motivo de
orgulho e prova de que tanto sua literatura quanto a arte de Borges tinham como base
uma fidelidade ao povo e ao Nordeste do Brasil115.
Portanto, as xilogravuras borgeanas circularam em consonância como o interesse
visual116 do presente da produção, sendo assim, elas estiveram em relação com projetos
que buscavam a realização de uma síntese entre o passado e o presente do Brasil. Se por
um lado, evocavam intenções tradicionais com imagens chapadas e em preto e branco,
115
Para além da publicação desses álbuns, dois eventos de abrangência nacional possibilitaram a exibição
das xilogravuras de Borges: i) a exposição arte do cordel (1974) realizada em São Paulo, Rio de Janeiro e
Brasília pelo marchand Carlos Ranulpho; e ii) a abertura da novela Roque Santeiro pela TV Globo
(1975).
116
O conceito de intenção conforme articulado por Baxandall (2006, p. 81) aplica-se mais as obras do
que aos produtores, pode ser compreendido como “uma construção mental que descreve a relação de
um quadro com seu contexto”.
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por outro lado, estiveram inseridas entre as coloridas e movimentadas imagens da


televisão, que os recursos tecnológicos levavam a todos os lares, em que um aparelho de
televisão reinasse na sala de visitas emitindo imagens dicotômicas entre o rural e o
urbano, o arcaico e o moderno, o atraso e o desenvolvimento.
Em resumo, as formas de publicação e os modos de circulação das xilogravuras
borgeanas colocam em cena três elementos: i) o estatuto de artista ocupado por Borges
no cenário cultural em Pernambuco; ii) as redes de relações institucionais, comerciais e
artísticas, nas quais ele esteve incluso; iii) os meios de circulação e recepção de sua
obra. Sobre as redes de relações, é preciso considerar que a aguda consciência de
Borges acerca das normas e possibilidades do vivido, permite-nos lembrar, que as trocas
estabelecidas entre o artista e os espaços de circulação de seu trabalho não ocorreram
apenas como uma apropriação unilateral e ingênua. A visualização de brechas entre as
estratégias e as táticas permitiu sutis e variadas negociações. Bailando, insinuando-se
por entre frestas e portas, Borges, aprendeu as regras do jogo da circulação, da
comercialização e da recepção de sua arte. Nesse jogo inscreveu seu nome, definiu seu
estilo e contou sua história.

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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

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FOTOJORNALISMO E NARRATIVAS VISUAIS: FOTOGRAFIAS DE ALCIR


LACERDA NA REVISTA MANCHETE, ABRIL DE 1964
Aryanny Thays da Silva
Mestranda em História Social – PPGH- UFF
aryannyt@gmail.com

Na construção do artigo propõe-se um exercício de análise de algumas


fotorreportagens publicadas na Revista Manchete, em abril de 1964, de autoria do
fotógrafo Alcir Lacerda. A partir do mapeamento dos temas fotografados, chaves
temáticas foram elaboradas no intuito de perceber no contexto brasileiro do período as
especificidades e/ou regularidades em que Pernambuco é representado em relação à
ditadura civil-militar; assim como os espaços e sujeitos retratados nas fotografias.
Adotando a trajetória do fotógrafo mencionado acima como referência, objetiva-se
refletir sobre as fotorreportagens como matizes sociais do período estudado.
No primeiro momento será traçado um esboço biográfico do sujeito fotógrafo,
para compor de forma breve os espaços de sociabilidade em que Alcir Lacerda
inscreveu sua experiência e apontar sua inserção na fotografia. Pretende-se que tal
panorama coloque em evidência o modo pelo qual o fotógrafo, como sujeito histórico,
participa ativamente do processo de construção de sentidos efetivado por meio da
imprensa ilustrada.
Posteriormente, uma discussão que aborde a noção de fotografia pública, que
parte igualmente das fotorreportagens publicadas na Manchete, será desenvolvida. Para
firmar a compreensão de que as experiências materializadas nas imagens constituem
uma memória pública dos eventos registrados, na medida em que assumem funções de
representar formas de poder na cena pública.
Por fim, a análise das chaves temáticas tem por finalidade ressaltar como o
fotojornalismo participa na construção da História contemporânea, ao dimensionar a
prática fotográfica como elemento da experiência histórica.

A figura do fotojornalista, inserido na esfera de suas relações sociais e de sua


prática fotográfica, inscreve significado na experiência social vivida. A partir da sua
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trajetória, seus projetos, estratégias e campos de possibilidade (VELHO: 1994)


visualiza-se como se constrói seu capital simbólico na atividade exercida. De modo que,
este atua como um mediador cultural, entre aquilo que fotografa e o mundo dos
acontecimentos factuais:
Alcir Lacerda (1927-2012) nasceu no Engenho Concórdia em São Lourenço da
Mata, cidade metropolitana do Recife. O interesse pela fotografia surgiu na juventude:
começou a fotografar com uma Rolleiflex emprestada de uma vizinha, e seus primeiros
cliques foram feitos nos jogos de futebol nos bairros vizinhos e nas festas de aniversário
de amigos. A partir de então, Alcir Lacerda foi chamado com frequência para registrar
eventos comemorativos.
Por volta de 1949 começou a trabalhar na JM Monteiro - empresa encarregada
por elaborar cópias heliográficas e fotoestáticas – tendo assim seu primeiro contato com
o laboratório de fotografia, ao revelar seus próprios filmes foi aperfeiçoando sua técnica
fotográfica. A opção pela profissão de fotógrafo, nesse momento, já se realizava
plenamente na vivência de Alcir Lacerda.
Na década de 50 integrou o Foto Cine Clube do Recife, de Alexandre Berzin117.
Para Alcir Lacerda, Berzin foi um importante mestre do saber fotográfico e a instituição
criada por ele abriu a oportunidade de divulgação da arte fotográfica realizada no
Estado. Já em 1957 passou a fazer fotografia científica para a Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), registrou através de microscópios os doentes e cadáveres - o que
possibilitou sua nomeação como técnico no laboratório da biblioteca da Faculdade de
Medicina.
Nesse mesmo ano e acumulada sua experiência fotográfica, funda juntamente
com Clodomir Bezerra a ACÊ Filmes, agência que seria responsável por criar um
acervo visual extenso e que deixa entrever nuances da história recente da sociedade
pernambucana. Apesar de vinculados ao universo jornalístico, juntos produziram no
espaço da ACÊ Filmes fotografias de cunho essencialmente social, menos política em
seu estado latente e mais direcionada a vida cultural e cotidiana do Recife.

117
Fotógrafo letão independente que desenvolveu seu trabalho no Recife entre 1928 e 1979,
produzindo imagens que registravam, em grande parte, aspectos culturais de Pernambuco.
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A inserção no fotojornalismo se efetivou na década de 1960, quando passou a


fotografar para a Revista Manchete118, antes já tendo realizado trabalhos como free
lancer para o Diario de Pernambuco; Jornal do Commercio; Estado de São Paulo;
Revista Fatos e Fotos; Cruzeiro e Placar, entre outras. Foi na ACÊ Filmes que
inicialmente se instalaram as acomodações da sucursal da Manchete sob a direção do
jornalista Fernando Cascudo.
A partir desse momento o fotógrafo passou a viajar o norte-nordeste fazendo
uma quantidade variada de fotorreportagens sobre temas políticos e sociais, como a
ditadura civil-militar e o desenvolvimento do Recife; e também os encantos daquilo que
merecia ser visto segundo os interesses da agência jornalística a que estava vinculado.
Para além do exercício de repórter fotográfico em que esteve envolvido, produziu
simultaneamente imagens publicitárias e artísticas no cenário pernambucano.
A delimitação da trajetória de vida do fotógrafo esboça o caminho profissional
percorrido por Alcir Lacerda e aponta para a realização de uma prática social vivenciada
dentro de um lócus de produção em que a fotografia assumiu um importante valor na
sua experiência enquanto sujeito.
Para o escopo das reflexões aqui pretendidas vale salientar que o trabalho de
Alcir Lacerda para Manchete, no que diz respeito ao Estado de Pernambuco e a
produção de notícias sobre este na década de 1960, é bastante significativo no papel de
noticiar os eventos considerados importantes naquele período para o público leitor em
contexto nacional.
Trazendo sua carteira de trabalho assinada por Adolfo Bloch, Lacerda ficava
disponível para cobrir junto a jornalistas os acontecimentos de interesse da revista. O
processo de elaboração de uma notícia acontece diante de uma série de olhares que são
negociados, desde o ato fotográfico a escolha final das fotografias que serão publicadas
e da narrativa construída. Assim, tal qual coloca Jorge Pedro Souza, “as notícias são
socialmente construídas e constroem socialmente a realidade” (SOUZA, 1997).

118
A Revista Manchete foi um periódico publicado entre os anos 1952 a 2000 pelas Bloch Editores do
empresário Adolfo Bloch, imigrante russo naturalizado brasileiro. Em pouco tempo a revista alcançou
um nível de circulação nacional considerável que desbancou a Revista Cruzeiro do patamar de
publicação mais lida de sua época. Seu editorial era inspirado na revista francesa Paris Match de
concepção moderna e que trazia na linguagem fotojornalística seu principal substrato.
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No conturbado ano de 1964, em que deflagra o golpe civil-militar, fotógrafos


foram às ruas e registraram centenas de imagens que tornaram visíveis episódios do
processo ditatorial no exercício do poder. Lacerda participa ativamente junto a esses
fotógrafos que munidos de suas máquinas fotográficas se lançaram no redemoinho dos
acontecimentos. Nesse caso, o fotógrafo direciona seu olhar para a construção de uma
narrativa que responda as relações de poder, aqui sublinhadas, pela atuação da Revista
Manchete, na cena política brasileira.
Esse contexto põe em destaque a relação existente entre a imagem fotográfica e
política, que segundo a historiadora Ana Mauad, “está na base da condição histórica do
dispositivo fotográfico, como um importante meio de representação social, e da
fotografia como prática de produção de sentido social” (2013, p.1). A noção de
fotografia pública permite pensar exatamente essa relação de produção de fotografias
que exercem um papel político no espaço público.
No caminho apontado por Mauad (2012), esse conceito abarca a ideia de que as
imagens fotográficas fornecem visibilidade ao espaço público. Mas notabilizam-se,
sobretudo, pelo lugar político que assumem na sociedade. Essas imagens constituem,
nesse argumento, tanto as que são agenciadas pelo Estado, por agências fotográficas
independentes, também por agências de notícias empresariais e movimentos sociais
organizados.
A compreensão desse conceito põe em perspectiva os modos pelos quais as
fotografias inscrevem sentido nos processos em que participa nos espaços sociais.
Como essas imagens podem incorporar tensões, significar disputas de poder e
caracterizar elementos do político. E, principalmente, constituem uma memória pública
que projetada no tempo histórico narra uma versão dos acontecimentos registrados.
A experiência fotográfica é marcada desde os oitocentos por projetos em que a
fotografia é privilegiada enquanto reserva documental, projetada sobre os interesses de
instituições públicas, inquietações de cunho político, relacionadas a empreendimentos
acadêmicos e engajamentos sociais. Marcadas pela aproximação da fotografia como
verossimilhança do real, pelo dever de memória e também pela compreensão da
imagem como instrumento de observação das relações sociais visualiza-se seu potencial
papel de representação do político nos espaços de sociabilidade.
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Assim, as narrativas fotográficas que ganham espaço na imprensa ilustrada


assumem a “sua feição pública, que remete a formação da opinião pública e a
elaboração dos sentidos compartilhados no espaço público da cultura da mídia que já se
configurava nas primeiras décadas do século XX” (MAUAD, 2013, p. 13). As imagens
que aqui serão analisadas seguem esse mesmo processo de comunicação e formulação
de opiniões que perpassam a construção de sentidos na sociedade, de modo que uma
versão dos acontecimentos é elaborada nesse contexto.
Nesse sentido, compreende-se que as fotorreportagens de autoria de Alcir
Lacerda na Manchete estão voltadas para o registro de ações políticas e estratégias de
poder onde o espaço público surge como elemento privilegiado. A fotografia pública
“provém do espaço comum, do common space, no qual as manifestações comunitárias,
populares, coletivas se revelam. É a imagem que dá rosto a multidão e que distingue o
homem comum; mas é também a imagem do controle social e da vigilância” (MAUAD,
2013, p.15).
A partir dessas considerações, e ressaltando o ano de 1964, como emblemático
na conjuntura nacional, assim como para Pernambuco, um conjunto de três
fotorreportagens foi escolhido pelo diálogo com um dos principais eventos naquele ano,
o golpe civil-militar que instaurou um regime autoritário no país.
Algumas observações são importantes: as fotografias, em todas as matérias
selecionadas, são de autoria de Alcir Lacerda, como já mencionado anteriormente.
Embora os créditos fotográficos não estejam presentes nas publicações, sabemos por
pesquisas anteriores119 que o mesmo pode ser remetido ao fotógrafo. Dessas três
fotorreportagens, duas foram elaboradas em parceria com o jornalista Fernando
Cascudo, na época chefe da sucursal da Manchete em Pernambuco. Podemos inferir que
a fotorreportagem sem menção do autor também seja resultado da parceria entre ambos,
pois se encontra no mesmo editorial de outra matéria de Fernando Cascudo, como se
verificará a seguir.
É interessante notar a prática de não mencionar o profissional, principalmente o
fotógrafo, mas, por vezes o jornalista, que a Manchete realizava. Diferentemente de
outras revistas, como O cruzeiro, que valorizava os jornalistas e fotógrafos com as
119
Realizadas ainda na graduação enquanto pesquisas de iniciação científica como integrante do
Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (LABHOI-UFF), sob a
orientação da Prof.ª Ana Maria Mauad.
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referidas menções autorais, na Manchete esse modelo nunca foi efetivamente


valorizado. As fotorreportagens são as seguintes: A prisão de Arrais [sic] em
Pernambuco, 18 de abril de 1964, n°626; Dom Hélder no Recife, 25 de abril de 1964,
n°627; Pernambuco comemora a vitória, 25 de abril de 1964, n°627.
Para finalidade do artigo, e na intenção de melhor problematizar as fotografias,
elaboramos duas chaves temáticas de análise que abarcam todas as fotorreportagens a
partir do tema da ditadura. A primeira, intitulada “Representações sobre o regime civil-
militar”, procura perceber como se constrói uma imagem desse governo autoritário para
Pernambuco. A partir do olhar do fotógrafo e das intenções que sublinham a linha
editorial e o posicionamento político da Manchete no cenário de 1964.
A segunda chave temática, “Os espaços e os sujeitos” busca sinalizar quais
lugares e eventos estão sendo colocados em evidência nas imagens, além de perceber
como os sujeitos atuam e são representados nos registros fotográficos. As reflexões
sobre as duas propostas de leituras procuram inscrever sentido no quadro histórico
mencionado, ao construir uma narrativa visual que coloca Pernambuco na cartografia
dos acontecimentos em 1964. Projetam também o Estado na rede de interesses e ações
do governo recém-instalado.
Em as “Representações sobre o regime civil-militar”, visualizamos um
panorama do regime implantado, em abril de 1964. Iniciado pela prisão do então
governador Miguel Arraes, em Pernambuco, deposto pelas forças militares que haviam
executado o golpe. Na fotorreportagem “A prisão de Arrais [sic] em Pernambuco”,
composta por quatro fotografias, três tratam do momento em que foi efetuada a prisão
no Palácio das Princesas, sede do governo do Estado.
Os significados que podem ser inferidos ao se deter sobre essas imagens, nos
informam elementos básicos do movimento em causa naquele momento. Isso porque, a
notícia da prisão de Miguel Arraes, dado o fato de ele ter se recusado a renunciar, é de
extrema relevância, pois o seu governo representava uma ameaça, segundo os
conservadores de direita. Sendo o próprio considerado por muitos um comunista, devido
a suas alianças com figuras ligadas ao Partido Comunista. Nesse sentido, a foto seguinte
da matéria, complementa a construção de sentido pretendida. A fotografia, que ocupa
toda a página, traz a imagem de Gregório Bezerra, importante comunista no nordeste,
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responsável pelo sindicato rural da cidade de Palmares, que matinha alianças e relações
políticas com o governador Arraes.

Figura I - A prisão de Arrais [sic] em Pernambuco, 18 de abril de 1964, p.24-25, n°626.

O leitor dessa fotorreportagem, de circulação nacional, e que, certamente


compreendia o delicado momento que passava o país e o fervilhar dos acontecimentos
no Estado de Pernambuco, imputado o medo de um perigo comunista que rondava a
população, respiraria aliviado diante da constatação de tais eventos. Desse modo, nessas
primeiras imagens, se representa a ação contudente e necessária que se constitui no
golpe em primeiro de abril. A prisão de Arraes e Gregório Bezerra encerra uma
justificativa para a intervenção política, local e nacional.
“Os espaços e os sujeitos” nesse conjunto de imagens participam na composição
das informações que estão sendo dadas a ver de forma muito concisa. Miguel Arraes e
Gregório Bezerra, sujeitos principais nos registros, pontuam e caracterizam a ação dos
demais envolvidos na fotografia. Os outros índividuos, em sua maioria, policiais
fardados, do IV Exército, aparecem na execução de suas tarefas ou mesmo apenas
figurando nas imagens sem nenhum comprometimento. Vemos também nas imagens da
prisão de Arraes alguns parlamentares, segundo a legenda que segue na fotografia, que
atuaram na missão de fazê-lo renunciar.
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Sobre esse episódio o fotógrafo Alcir Lacerda relata em entrevista, o que vimos
materializado em suas imagens. Percebe-se que o fotógrafo é uma figura totalmente
implicada no processo de gestão dos acontecimentos. Suas vivências, resignificadas
pelo trabalho de memória, mesclam-se com as fotografias produzidas e publicadas, de
modo a tecer um laço entre a oralidade e a visualidade:

Ai eu fiquei parado lá, voltei e botei o filme dentro do sapato, já era noite.
Quando chegou lá uma comissão com deputados e os políticos eram
exatamente da Revolução, a turma da Revolução, Coronel e os outros. E eu
entrei no meio e consegui entrar, fiquei debaixo das escadas do Palácio,
ouvindo todas as conversas. Ele queria que o Arraes pedisse demissão, mas
ele disse que não, que tinha sido eleito pelo voto do povo. Quando foi lá pras
10 horas da noite eles prenderam Arraes, desceram as escadas e eu fotografei
ele dentro de um carrinho, um Volks branco. Aí, corri lá pra o Jornal do
Commercio e revelei minhas fotos, fui pro Aeroporto, dei o passageiro, liguei
pra Manchete no Rio de Janeiro. O passageiro tal, vôo tal, aí saiu. Estava
esperando só esta foto pra sair a revista. 120

Refletindo, como sugere Mauad, no “argumento da foto que faz a história”


(MAUAD, 2008), a deposição seguida da prisão de Miguel Arraes, e a fotografia do
Gregório Bezerra aditada a mesma matéria sugere uma homogeinização do caráter
político de diferentes níveis da sociedade e daquelas responsáveis pelo poder público.
Segundo o historiador Pablo Porfírio,
essa estratégia de colocar no mesmo campo de ação diferentes setores sociais
procurava fortalecer a ideia de que uma revolução comunista estava muito
próxima, minimizando as diferenças entre os modos e a intensidade como
diferentes parcelas da sociedade – camponeses, intelectuais, integrantes do
PCB, do PTB, das ligas camponesas, dos sindicatos e do próprio governo
Arraes – pensanvam e desejavam uma mudança social (PORFÍRIO, 2009,
p.138).

Há em Pernambuco, desde a década de 1950, uma intensa mobilização social,


tanto de direita, como na esquerda, assim como acirradas disputas de poder na arena
política que passam a ser urdidas através de alianças variadas entre partidos opostos.
Como exemplo, seria elucidativo citar, o apoio que o PSD forneceu a candidatura à
governador de Miguel Arraes em 1962 pela Frente do Recife organizada naquele ano.
O contexto político e social na sociedade pernambucana, não se diferenciava por
completo das vivências dos outros Estados da nação, havia uma pauta em comum nas

120
A documentação oral contém duas entrevistas (1h20m) com Alcir Lacerda, realizadas por Aryanny
Thays da Silva nos dias 08 e 16 de setembro de 2009, para o projeto Memórias do Fotojornalismo
Contemporâneo, coordenado pela Prof.ª Ana Maria Mauad.
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reivindicações externadas. Entretanto, para lembrar a afirmação de Antônio Calado,


Pernambuco era naquele período “o maior laboratório de experiencias socias e o maior
produtor de ideias do Brasil” (CALLADO, 1980). Onde poderíamos enquadrar a
atuação das ligas camponesas, lideradas por Francisco Julião; a mobilização dos
sindicatos rurais, tal qual o de Palmares, conduzido por Gregório Bezerra e com mais de
35 mil membros, além da atuação da igreja católica nessa mesma conjuntura de
reformas sociais . Desse modo, era possível supor e sugerir que um processo
revolucionário estava próximo.
A fotorreportagem publicada no dia 18 de abril na Manchete, “A prisão de
Arrais [sic] em Pernambuco”, narra visualmente a retomada do poder, de forma
simbólica, pelas forças do IV Exercíto. Já que com a prisão de um governador que
representava uma ameaça a manuenção do Estado, e de um comunista, líder do maior
sindicato rural de Pernambuco, a ordem social poderia ser readiquirida, não mais
subvertendo a dinâmica social vigente.
As duas fotorreportagens seguintes, ambas publicadas na edição de número 627,
cerca de uma semana apenas após a matéria discutida acima, reporta aos leitores do país
alguns dos eventos que, segundo os interesses da Manchete, mereciam destaque. Assim,
Pernambuco aparece em evidência em dois momentos singulares naquela semana após a
deposição de Miguel Arraes do cargo de governador do Estado.
A primeira fotorreportagem aborda a chegada de “D. Hélder em Recife” para
assumir o comando do Arcebispado de Recife e Olinda. Trata-se de uma matéria
pequena, de meia coluna, com duas fotografias de tamanho médio, e um pequeno texto
informativo sobre a recepção a D. Hélder no aeroporto dos Guararapes.
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Figura II – D. Helder no Recife, 25 de abril de 1964, p.35, n° 627/ Reprodução em tamanho maior da
segunda fotografia na matéria ao lado.

“Os espaços e os sujeitos” visualizados nessas imagens interagem entre si. O


espaço público, dimensionado pelas imediações do aeroporto Guararapes, aparece
tomado de pessoas curiosas e na expectativa de receber D. Helder, que na época já
possuia destaque no país por suas ações frente a igreja católica. Esse prestígio justifica a
multidão, no entanto se juntarmos esse fato aos demais episódios que vinham ganhando
forma nos meses, e até nos anos posteriores, considerando a relação dos católicos com
os embates travados pelas reformas sociais, podemos apontar algumas ideias relevantes.
Os indivíduos nas imagens, constam de alguns padres, percebidos pela
indumentária característica. Mulheres, bem vestidas, possivelmente de classe média
alta, representantes da ala feminina católica, defensoras dos valores da família. E
militares, que dado o teor dos acontecimentos em abril de 1964, compõem grande parte
das publicações, e por conseguinte das fotografias na imprensa ilustrada. Nesse sentido,
aproximações e distanciamentos podem ser pensandos sobre as maneiras de “representar
o regime civil-militar” a partir da vinda de D. Helder para ocupar o cargo de arcebispo
de Recife e Olinda.
As lutas por demandas sociais naquele período partiam de variados setores da
sociedade, desde a comunidade religiosa, passando pelas ligas camponesas, até ser parte
do discurso de camadas da população pequeno burguesa em Pernambuco. A realização
no Estado de diversos encontros com propostas de reforma e desenvolvimento tinham
forte participação popular e denotavam as lutas políticas em voga.
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No contexto de atuação católico podemos destacar o I Encontro de Bispos do


Nordeste, realizado em Campina Grande, sertão paraibano, em 1956. Este tinha o apoio
da recém-criada Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que apresentava
como secretário e um dos fundadores, Dom Hélder. Segundo Aguiar, o encontro teve “o
papel de abrir o caminho das discussões posteriores sobre questões sociais para
religiosos e leigos”, considera também que o mesmo “assentou as bases do pensamento
católico sobre assuntos sociais, no Brasil” (AGUIAR, 1983, p.156).
Esse evento firmou algumas considerações básicas, como uma proposta de
colonização, que visava à permanência dos nordestinos em suas regiões de origem. O
evento também marcou a formulação de outra frente de ação “para neutralizar a
liderança esquerdista, especificamente a dos comunistas, na luta por reforma social”
(AGUIAR, 1983, p.160:).
O aspecto interessante a se fazer notar é a estreita cooperação entre o Estado e a
Igreja na promoção da doutrina social, os bispos acreditavam que o governo federal era
o principal poder capaz de gestar os “problemas” do Nordeste. Esse argumento destaca
dois elementos fundamentais que se entrelaçam e dão suporte ao significado da
narrativa proposta na fotorreportagem acima.
Primeiramente, o diálogo estabelecido entre a Igreja católica e o Estado, na
década de 1950 até meados de 1960, é algo que se organiza justamente nas
circunstâncias do debate em torno das reformas sociais, incluindo a agrária, e de
projetos desenvolvimentistas, voltados para a industrialização. A criação do Movimento
de Educação de Base – MEB elucida bem as afirmações acima. Instituído com o
objetivo de “alfabetizar o povo, no intuito de torná-lo mais consciente de sua
dignidade”(AGUIAR, 1983, p.175), o movimento recebia recursos federais, e por
decreto poderia funcionar em todas as regiões subdesenvolvidas no país.
O apoio que D. Helder forneceu a Celso Furtado na Operação Nordeste e na
criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - Sudene121, permite
igualmente pensarmos as intricadas teias políticas traçadas no calor dos acontecimentos
naquele período. Por outro lado, as ações levadas a cabo pela comunidade católica,
como o MEB ou os sindicatos rurais cristãos, arregimentados por padres nas zonas
121
Tratou de uma política implantada no Governo Kubitschek com o intuito de gerir novas ações para o
Nordeste. A Sudene ficaria responsável pelo investimento e implantação dessas políticas na região
nordestina.
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rurais, funcionam com o fundamento de barrar o avanço do comunismo. Os projetos e


investimentos feitos por líderes religiosos católicos, do qual D. Hélder representa,
estavam em defesa dos valores ocidentais cristãos, imbuídos em um discurso de
mudança e transformação.
Assim, quando visualizamos D. Hélder reunido em um palanque junto com o
General Alves Bastos, comandante do IV Exército (ver Figura II), podemos demarcar
algumas questões para compreensão. A primeira, diz respeito ao apoio que foi dado ao
golpe em 1º de abril pela Igreja católica. Ainda que a relação entre o regime implantado
e a Igreja comece a se desfazer alguns meses depois, estando o próprio D. Hélder no
centro das críticas e oposição ao autoritarismo e repressão ao governo, no momento em
que se efetiva a intervenção militar, a Igreja e esse aparato comungam dos mesmos
ideais.
Outra questão é que a vinda de D. Helder para Pernambuco, que era o centro
nervoso de uma possível revolução comunista, parece significar uma ação intensiva e ao
mesmo tempo preventiva de resguardar a família, a religião e a democracia. Nesse
sentido, a fotorreportagem vincula ambas as propostas, dando um sentido de
continuidade ao exercício da democracia que se pensava naqueles dias.
A última fotorreportagem analisada, também do dia 25 de abril de 1964, intitula-
se “Pernambuco festeja a vitória”. Nessa matéria as fotografias dominam a narrativa
proposta, somando-se um total de cinco imagens em três páginas. Tratam basicamente
dos festejos realizado pela vitória do movimento revolucionário e da escolha do general
Castelo Branco para presidente da República, segundo informa um pequeno texto
informativo na segunda fotografia da publicação.
Visualizando “os espaços e os sujeitos” nessas fotografias percebemos o quanto o
espaço público ganha importância nas manifestações de ruas, torna-se um local festivo e
vibrante pela comemoração dos sujeitos. Mas, principalmente, assume uma função
política ao comportar um movimento organizado pela sociedade que evidencia o apoio
que grande parcela desta forneceu ao golpe civil-militar.
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Figura III – Pernambuco comemora a vitória, 25 de abril de 1964, n° 627, p.36-37.

Desse modo, as ruas do centro do Recife foram tomadas por milhares de pessoas,
como vemos na fotografia maior. Trata-se da Rua Conde da Boa Vista122, importante
via de tráfego e comércio na cidade, que neste dia recebeu a celebração em Recife do
que já ocorria em outras capitais do país: comemorações pelo fim da “ameaça
vermelha” e de exaltação da democracia.
Segundo informações do Diario de Pernambuco, cerca de 200 mil pessoas
participaram desse evento. Embora a Revista Manchete não se refira a tal como a
“Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, cruzando as informações nas
bibliografias referentes, percebemos que se trata do mesmo acontecimento, que foi
noticiado apenas alguns dias depois pela Manchete.
Os sujeitos presentes nas imagens constituem um amplo quadro da sociedade que
colaborou na consolidação do regime: militares, latifundiários, estudantes, a classe
média, setores da igreja católica e protestantes. Todos esses grupos de alguma maneira
contribuíram para a tomada do poder e a legitimação do regime.
Sobressai-se nas fotografias a imagem da mulher que aparece em destaque em três
dos cinco registros publicados. A atuação das mulheres nesse período foi bastante
característica, através da Cruzada Democrática Feminina, muitas marcharam pelas ruas
do Recife carregando cartazes que faziam referências a reformas cristãs, a manutenção

122
Na época ainda era considerada rua. Passou a categoria de Avenida apenas na administração de
Pelópidas da Silveira, a partir do seu alargamento, em 1976.
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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

da ordem, além de agradecimentos a intervenção militar ocorrida: como aponta um dos


cartazes “O Brasil agradece as Forças Armadas”.

Figura IV – Pernambuco comemora a vitória, 25 de abril de 1964, n° 627, p.38/ Reprodução em


tamanho maior da primeira fotografia da matéria, p.36.

Na fotografia em que aparece uma jovem senhora ajoelhada no chão (Figura IV),
durante a manifestação, rezando o terço em plena rua, aponta o simbolismo existente
nesse elemento. Em um país marcadamente católico naquele período, o terço surgia
como um emblema “mobilizador e legitimador” que se tornou “a materialização
simbólica do anticomunismo expresso na oposição “terço versos foice e
martelo””(Simões, 1985, p.106).
As “representações sobre o regime civil-militar” inscritas nessas imagens, quando
inquiridas, articulam sentidos em que o discurso para a intervenção militar se legitima,
pois as narrativas visuais colocam os sujeitos como defensores da pátria contra o perigo
do “caos comunista”. A comemoração de amplos setores da sociedade cria uma rede
que se propõe a conservação do status quo, operando assim como base de apoio aos
militares. O mais significativo nessa fotorreportagem é o quão ela deixa entrever a
adesão social que fincou o golpe em 1° de abril, em nome da preservação dos valores
democráticos e cristãos que estariam sob risco.
Por fim, interessa dimensionar, de modo mais coeso, o posicionamento político da
Manchete nesse período discutido. Diante das fotorreportagens acima analisadas vemos
que o jornalismo praticado por essa revista não se coloca em oposição aos eventos
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noticiados. Bloch, soberano maior na Manchete, era grande amigo e patrocinador de


Juscelino. Vendo que este não teria condições de voltar ao poder após os militares
assumirem o governo, ele se engaja no projeto militar. Segundo Silvana Louzada:

Sem se colocar contra a ditadura, mantém sua amizade com um Juscelino


proscrito. Está é a postura que vai acompanhar a trajetória de Manchete, onde
é permitido arcar com as consequências de ser fiel a um inimigo da ditadura
sem no entanto deixar de apoiá-la (LOUZADA, 2004).

Essa relação com os “vitoriosos do golpe”, em períodos futuros, trará bons frutos
para Bloch, também porque a ditadura instalada necessita modelar a nação de acordo
com seus projetos políticos, ao que a imprensa ilustrada convém prontamente.
No que diz respeito ao trabalho do fotógrafo dentro desse contexto, vemos que o
mesmo atua na concepção de um registro que possa ao mesmo tempo informar as
nuances dos eventos fotografados, na mesma medida em que articula essa proposta aos
vínculos políticos que perfazem o agenciamento das notícias na Manchete.

Considerações finais

A trajetória aqui percorrida procurou evidenciar o modo pelo qual o


fotojornalismo participa na construção da História contemporânea. A partir das chaves
temáticas analisadas, percebemos como as experiências históricas, materializadas nas
fotorreportagens, fornecem uma condição de legitimação aos acontecimentos
configurados pela lógica da imprensa ilustrada.
Nesse sentido, os registros fotográficos discutidos apontam como o movimento
de intervenção militar e posteriormente o regime adotado foi validado no próprio tecido
social através de um conjunto de ações inscritas na trama histórica. De tal forma que as
imagens conformam o registro documental de muitas dessas ações, que projetadas no
tempo histórico, acabam por reforçar a ideia de perigo e a necessidade de um regime de
exceção.
Procurou-se aqui trilhar o caminho das narrativas fotográficas, de modo que o
processo de construção histórico-social do golpe civil-militar de 1964 pudesse apontar
vestígios, rastros e elementos, de luz e sombra, as experiências sociais desse período.
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O RECIFE EM MOVIMENTO: AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS


CINEMATOGRÁFICAS EM PERNAMBUCO

Arthur Gustavo Lira do Nascimento


(Mestrando em História / UFPE)

Resumo: Este trabalho se propõe a contribuir com o debate sobre a relação História e
Cinema, a partir da análise dos primeiros filmes produzidos em Pernambuco. Nestas
experiências cinematográficas, a cidade surge como personagem principal, exaltando o
aspecto moderno face ao impacto da revolução industrial e o desenvolvimento do
capitalismo. Porém, as novas paisagens são também retratos das ruínas da velha cidade.
O cinema tornava-se uma nova forma de representação da vida urbana. Utilizando os
conceitos de imagem, representação e modernidade, com base em autores como Marc
Ferro, Roger Chartier e Jacques Le Goff, este trabalho pretende explorar as primeiras
filmagens pernambucanas como representações sociais do Recife na década de 1920.
Palavras-chave: Cinema Silencioso, Recife, Moderno.

As experiências vividas ao longo do século XX marcaram com um novo ritmo a


sociedade contemporânea. A revolução industrial e o desenvolvimento do capitalismo
trouxeram novas formas de viver e conviver aos quais os homem tiveram de se adaptar,
criando novas formas de representações. A velocidade tornou-se um elemento
importante deste novo século. Máquinas, energia elétrica, meios de comunicação e
transportes imprimiam aos homens um dinamismo diferente daquele do século passado.
Novas impressões, novas técnicas, novos hábitos, novas sensibilidades. Não por
um acaso esse cenário convivia também com o nascimento do cinematógrafo dos irmãos
Lumière, surgido em finais do século XIX: uma máquina que traria uma nova
compreensão de imagem para a sociedade do século XX. Segundo a socióloga Anita
Simis, “o Brasil ficou a par das possibilidades que a invenção do cinema podia realizar
já em 1896 (quase meio ano depois que os irmãos Lumière inventaram e patentearam o
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cinematógrafo), quando chegava ao Rio de Janeiro um aparelho, denominado


omniographo” (SIMIS, 2008, p. 17). O cinema logo se tornaria uma das expressões
mais simbólicas desse novo ritmo.
A dois mil e trezentos quilômetros do Rio de Janeiro, quase duas décadas depois
da chegada do omniographo na capital federal – no ano de 1918 – a vinda do italiano
Ugo Falangola trouxe novos ares para a cidade do Recife. O italiano trouxera consigo
uma câmera da Inglaterra e fundou, junto ao seu conterrâneo, J. Cambiere, a primeira
empresa cinematográfica do estado: a Pernambuco-Film (1920). O início da década de
1920, marcado pelo ritmo frenético que as novas tecnologias impunham às principais
cidades do mundo, a provinciana cidade do Recife era movida pelo seu desejo de
modernização e de fazer cinema, transformando o ambiente cultural da urbe.
Buscamos utilizar o cinema seguindo os novos caminhos de abordagens
promulgados pela Escola dos Annales, onde o cinema aparece tanto como objeto quanto
como fonte sobre a história. Destacam-se aqui as considerações do historiador francês
Marc Ferro (2010), segundo o qual, fica claro que o papel do cinema nas sociedades
modernas é um instrumento peculiar para se compreender a mentalidade e suas
construções sociais. Propomos assim, a análise historiográfica do cinema como fonte,
método e também objeto de estudo.123
As primeiras experiências cinematográficas pernambucanas imprimiram uma
nova concepção da cidade do Recife: em movimento. Uma representação da
modernidade no cotidiano dos cidadãos recifenses124. Prevaleceram nos primórdios os
filmes naturais, depois, especialmente com o desenvolvimento do Ciclo do Recife, a
produção de longas metragens ficcionais.
Em ambas as categorias, a cidade surge como personagem principal, exaltando o
aspecto moderno face ao desenvolvimento industrial. O sonho provinciano da
modernidade, querendo se equiparar às grandes capitais do mundo. Porém, as novas

123
Os discursos políticos que envolvem a esfera cinematográfica são de extrema relevância: segundo as
perspectivas de Marc Ferro, “(...) desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que
o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço (...)”. FERRO, Marc.
Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010, p. 16.
124
Para Roger Chartier, o real é a forma com que a realidade é construída, em sua obra, através do texto.
[dê uma relida em Chartier, a coisa é um pouco mais complexa do que isso] Aplicam-se aqui as propostas
teóricas do historiador francês, observando o papel do cinema na construção de representações sociais.
CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre Práticas e Representações. Tradução: Maria Manuela
Galhardo. Lisboa, Difel/Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. 1988, p. 23-24.
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paisagens são também retratos das ruínas da velha cidade. O cinema tornava-se uma
nova forma de representação social e também uma zona de conflito.
Nas sombras da velha cidade se desenvolveria o novo: as imagens selecionam
uma fragmentação do real, ideologicamente construído. É travada uma luta constante
contra os fantasmas da velha província. Segundo Paulo da Cunha Carneiro Filho: “não
há cidades sem ruínas. Sem restos que antecipem a sua decadência ou que a preparem
para a transformação. Nem há representações da cidade moderna sem os sentidos
múltiplos e às vezes antagônicos da decrepitude” (CUNHA FILHO, 2010, p 60).
A alteridade entre o novo e velho foi pejorativamente associada ao par
moderno/antigo. Estes conceitos foram alterados com o tempo. Em História &
Memória, o historiador francês Jacques Le Goff se atem a estudar as metamorfoses e
significados da antítese antigo/moderno apontando suas principais querelas.
A disputa entre antigo/moderno assume em diversos momentos posturas
diferentes. Durante a antiguidade, o antigo significa aquilo que pertence ao passado, o
surgimento do termo “moderno”, no baixo latim, como aponta Le Goff, significa
“recente” (LE GOFF, 2013, p. 162). Durante a Idade Média, o termo “moderno” nos
aparece como uma negação ao antigo, relacionado às culturas pagãs. Já no
Renascimento, esse termo se transfigura e o moderno passa a exaltar o antigo, neste
caso a cultura clássica. Com a Revolução Industrial, surgem três novos polos de
evolução e conflito relacionados ao termo moderno: o primeiro relacionado aos
movimentos literários, artísticos e religiosos, denominados de “modernistas”; em
seguida, as distâncias entre os países desenvolvidos e países atrasados, que nos
engrenam no problema da “modernização”; e por último, um conceito ligado ao campo
da estética, mentalidades e dos costumes, a ideia de “modernidade”.
As novas experiências do século XX trouxeram à tona o boom da modernidade.
É comum pensar o moderno como um momento de ruptura com o “velho”, negando-o, e
em alguns casos, destruindo o passado, associando-se ao novo e ao progresso. Para Le
Goff, os termos “novo” e “progresso” vão além do moderno. O “novo significa um
esquecimento, uma ausência de passado” (LE GOFF, 2013, p. 166), no sentido de algo
que acaba de nascer. O moderno também se encontra com a ideia de “progresso”, um
substantivo que arrasta a concepção de moderno. O progresso é associado à evolução
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positivista. Com o desenvolvimento do capitalismo, as novas tecnologias assumem um


caráter de progresso e modernização125.
O “moderno” na virada do século assumiu uma postura de negação e destruição,
como um rompimento com o passado. É neste cenário que encontramos as principais
capitais brasileiras no início do século XX: uma zona de conflito com as velhas
tradições e especialmente com as estruturas urbanas do passado. Era necessário
expurgar as heranças coloniais e construir uma nova cidade.
O Recife, especialmente no caráter urbano, se desenvolveu em detrimento das
tradições. Novos comportamentos e hábitos foram surgindo, criando novas imagens da
cidade. Desde a segunda metade do século XIX, as principais fotografias retiradas do
Recife apontavam para a questão da “novidade”, sobrepondo-se ao antigo. Em seu
respeitável trabalho, Gilberto Ferrez (1988) nos dirige para esta questão. Historiador,
neto do fotógrafo Marc Ferrez, Gilberto realizou estudos sobre a iconografia brasileira.
Em Velhas fotografias pernambucanas 1851 – 1890 dirige seu trabalho a Pernambuco,
através de grandes fotógrafos como Augusto Stahl, Guilherme Gaensly, João Ferreira
Vilela, Mauricio Lamberg e o seu avô, Marc Ferrez. Neste catálogo, predominam as
imagens do Porto do Recife, alusões claras ao fator de progresso e natureza privilegiada;
do desenvolvimento urbano do Bairro do Recife, através das pontes e principais ruas da
cidade, dando ênfase aos grandes casarios.

125
É importante destacar que para Le Goff “(...) quando, no século XIX, o substantivo [progresso]
engendra um verbo e adjetivo – “progredir”, “progressista” –, “moderno” é de certo modo excluído,
desvalorizado”. Pois, a dinâmica da concepção “progressista” é outra, ficando o termo “moderno”
associado apenas ao substantivo “progresso”. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2013, p. 167.
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Imagem 1 - JOÃO FERREIRA VILELA (c. 1865): Vista do casario do bairro do Recife, de onde vê o Hotel d'Europe
e o Grande Hotel de l'Univers, no cais do arsenal da Marinha

O Recife se reconstruía para o novo. Da ruína encontramos o significado para o


novo, o moderno. Segundo Paulo Cunha: “A destruição avança sobre a velha cidade,
mas com o sentido alterado: a ruína é o signo do renascimento, do novo tempo”
(CUNHA FILHO, 2010, p. 69). Não existe o moderno sem a alteridade. O Recife se
reconstruía não só em reformas urbanas, mas também em imagens. Era preciso criar
uma imagem de cidade apta aos novos tempos. Prevaleceu em finais do século XIX o
trabalho dos fotógrafos nessa construção imagética do Recife, que renascia das cinzas
como uma fênix, sobre as ruínas de seu passado.
Com a chegada do século XX, a febre de progresso cada vez maior fez com que
as demandas técnicas e artísticas se modificassem. Nesse contexto o cinema ganha força
e forma no cenário mundial como uma nova impressão da imagem, dessa vez em
movimento. Se por um lado a velocidade foi um símbolo deste “novo” século, nada
poderia relevar mais sua impressão do que o cinema. A velocidade era grande força
motriz da modernidade, dos transportes às comunicações126.
Era preciso experimentar todas as sensações privadas do ser moderno, andar nos
novos veículos, olhar as novas artes, promover os novos modos. Mas a cidade precisava
estar apta a receber esse espírito moderno. A década de 1920 no Recife é considerada
por muitos pesquisadores um momento decisivo para se compreender essas (des)ilusões

126
A velocidade do trem é que causara espanto dos espectadores do experimento dos irmãos Lumière,
fazendo com que todos se retirarem da sala apavorada durante a primeira exibição de imagens em
movimento do mundo.
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da vida na contemporaneidade127. Em As Cidades Enquanto Palco da Modernidade - O


Recife de Princípios do Século, o historiador Flávio Weinstein Teixeira nos remete às
alterações que esse novo cenário promoveu, dos melhoramentos materiais aos hábitos e
comportamentos. Sobre os aspectos urbanos do Recife, Teixeira nos aponta que:

A modernidade impunha desde a necessidade de se ter um porto


modernamente aparelhado e ampliado nas suas dimensões, de se dispor de
uma ampla rede de esgotos sanitários e fornecimento de água encanada, de se
poder trafegar por ruas largas, calçadas e iluminadas, até o desejo de se
mostrar elegante, ou freqüentar os cinemas – que por essa época começam a
proliferar – e, mais tarde, reunidos nos cafés e confeitarias, comentar sobre a
admirável interpretação dos atores ou sobre a extraordinária produção ora em
cartaz. (TEIXEIRA, 1994, p. 41)

Outros trabalhos foram também significativos ao apresentar a década de 1920


como palco da modernidade, é o caso da tese de Sylvia Costa Couceiro: Artes de viver a
cidade: conflitos e convivências nos espaços de diversão e prazer do Recife nos anos
1920. Couceiro nos revela que mudanças no Recife a partir da década de 1910,
sobretudo no espaço urbano, acabaram por resultar mudanças na forma de “viver a
cidade”. Um dos fatores significativos é o ritmo mais acelerado, como a chegada da
eletricidade que trouxera novos hábitos e aparelhos para a vida doméstica. Esses novos
ritmos imprimem mudanças no modo de viver e de se divertir (COUCEIRO, 2003, p.
7).
A cidade tornou-se um novo espaço: dentro dela, cresce o número de salas de
cinema, teatros, cafeterias e novos ambientes de lazer. Um complexo conjunto de
relações sociais é dado, trazendo diferenciadas experiências de vida. Não por um acaso,
os espaços e objetos culturais da cidade são reformulados. O cinema passa a retratar a
cidade em movimento, sob a dinâmica dos conceitos de modernização do período. As
imagens do século XIX ganham velocidade, exprimindo novas sensibilidades e
representações que resultam novas maneiras e sociabilidades.
O Recife se movimenta em um novo ritmo e nele se destacaram novos
movimentos culturais. Neste cenário, a década de 1920 trouxe também revoluções
significativas para a sétima arte. Com a consolidação das salas de exibição no Recife,
nasce durante esta década os primeiros focos de se produzir cinema na cidade, como é o

127
Cf. REZENDE, Antônio Paulo. (Des)Encantos Modernos: Histórias da cidade do Recife na década de
1920. Recife: FUNDARPE, 1997.
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caso da Pernambuco-Film. Esse é o prelúdio para a formação do Ciclo do Recife, um


dos principais ciclos regionais do cinema silencioso no Brasil.
Ao trabalharmos com o início da produção cinematográfica em Pernambuco é
comum atentarmos para o Ciclo do Recife, um movimento que marcou a história da
cinematografia local. Pioneiro dos filmes de enredo no Estado e um dos ciclos regionais
mais produtivos do início do século XX no Brasil, produzindo treze longas-metragens
em aproximadamente oito anos.
Para além dos ficcionais, este período também foi marcado pelas produções
documentais. Nelas se destacavam aspectos da cidade: urbanos, políticos e/ou culturais.
Na verdade, as primeiras produções pernambucanas começam com os filmes naturais,
ofuscadas muita vezes pelo “brilho” das produções ficcionais do Ciclo do Recife. Antes
da criação da Pernambuco-Film, houve pequenos focos de realizações no estado,
datadas ainda na década de 1910. Dentre eles estão os “Naturaes” Pathé (1910),
supostas imagens silenciosas realizadas pela administração do Cine Pathé, que eram
exibidas antes das sessões; o Pernambuco-Jornal (1916-1917), cinejornais atribuídos ao
produtor europeu “Leopoldis”, um pseudônimo do napolitano Italo Majeroni; e o curta-
metragem silencioso Três meses em Pernambuco128 (1917), filme produzido pela
Empresa Pinfildi, exibido no cine teatro Espéria, São Paulo, em 04 de Dezembro de
1917.
Esses são os primeiros registros daquilo que iria se disseminar na década
seguinte. Segundo Luciana Corrêa de Araújo “ao longo da segunda metade dos anos
1920 houve uma expressiva produção cinematográfica em Pernambuco, onde foram
realizados mais de 40 filmes, entre longas e curtas-metragens, filmes de enredo (ficção)
e naturais (não ficção)” (ARAÚJO, 2013, p. 94-95).
Dentre as produções naturais desde período, podemos destacar: Carnaval
Paraibano e Pernambucano (Valfrido Rodrigues, 1923), Pela saúde (A. Grossi, 1924),
[Filmes do interior do estado de Pernambuco] (Empresa Cinematográfica Norte do
Brasil/Aristides Junqueira), Pernambuco Journal (Aristides Junqueira, 1924), Recife no

128
Este documentário foi catalogado pela Filmografia da Cinemateca Brasileira, porém trata-se de um
filme desaparecido. Os indícios de sua existência fazem parte do trabalho do pesquisador Jean-Claude
Bernardet, sobre a produção nas primeiras décadas do século XX, tendo como referência as publicações
do jornal O Estado de São Paulo. Provavelmente trata-se de uma realização de outro estado, mas feita em
Pernambuco. BERNARDET, Jean-Claude. Filmografia do cinema brasileiro, 1900-1935, jornal O Estado
de São Paulo. São Paulo : Comissão Estadual de Cinema, 1979.
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Centenário da Confederação do Equador (Pernambuco-Film, 1924), Pernambuco e sua


Exposição de 1924 (Pernambuco-Film, 1925), Inauguração da Vila da Estância
(Pernambuco-Film, 1925), O 3º aniversário do governo Sergio Loreto (Aurora-Film,
1925), Hospital do Centenário (Aurora-Film, 1925), As grandezas de Pernambuco
(Olinda-Film, 1925), Carnaval Pernambucano de 1926 (Aurora-Film, 1926), Aspectos
de Goiana (Goiana Filmes, 1927), A chegada do Jahú a Recife (Aurora-Film, 1927) e O
Progresso da Ciência Médica (Liberdade-Film, 1927).
O predomínio de películas da Aurora-Film nos revela o importante papel que a
produtora desempenhou no Ciclo do Recife, junto também da empresa de Ugo
Falangola e Jota Cambière, que atuou na primeira metade da década, sendo o principal
antecessor da grande fase do período silencioso129. A falta de informação sobre o
período, em especial sobre os produtores italianos130, nos insere num campo que ainda
vive sobre grandes discussões, pouco explorado no que diz respeito às primeiras
realizações do cinema em Pernambuco.
Lucila Bernadet destaca que inicialmente encontramos várias formas de
produção: 1) Amadores cujo hobby era produzir filmes domésticos, esse tipo de
produção possibilitou, por exemplo, que membros do Ciclo do Recife, vindos de classes
mais populares pudessem comprar as máquinas daqueles que haviam “enjoado da
brincadeira”; 2) Letreiros anunciando as próximas atrações cinematográficas, alguns
cineastas se mantinham às custas desse tipo de trabalho; 3) Letreiros de propagandas
variadas; 4) Cinejornal de atualizadas, como é o caso da Pernambuco-Jornal; 5)
Documentários Isolados; e 6) Documentários mais consistentes e consolidados, no qual
se insere o trabalho da Pernambuco-Film (BERNARDET, 1970, p. 64-66).

129
Sobre a Pernambuco Filmes e da Aurora Filmes, a pesquisadora Lucilla Ribeiro Bernardet nos chama
atenção para o conflito que há entre as fontes sobre suas fundações. Segundo ela, ora a fundação da
Pernambuco se apresenta como 1920, ora dois anos depois. O mesmo acontece com a Aurora Filmes,
onde ora o início das atividades é datado de setembro de 1922, ora de 1923. Porém, a autora ressalta que
nenhuma das diferenças entre as datas, parece alterar significativamente a imagem que pode ser traçada
sobre o andamento do Ciclo. BERNARDET, Lucilla Ribeiro. O cinema pernambucano de 1922 a 1931:
primeira abordagem. São Paulo, 1970, p. 15.
130
Segundo Paulo Carneiro da Cunha Filho: “Há muito pouca informação sobre J. Cambière, mas sabe-se
que Falangola nasceu na Itália em 1879, tendo desembarcado no Porto de Santos aos 25 anos, em 1904.
Trabalhou um período no La Settimana Del Fanfulla, jornal de imigrantes fundado em 1893 em São
Paulo. Falangola acaba por se fixar no Recife, onde casou e passou a fazer cinema, criando a Pernambuco
Film, cuja vinheta de abertura mostrava a própria filha, Adriana Falangola Benjamin, aos seis anos de
Idade. CUNHA FILHO, Paulo Carneiro da. A utopia provinciana: Recife, cinema, melancolia. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 2010, p. 44.
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Não há registros em imagens do Naturaes Pathé, do Pernambuco-Jornal ou da


película Três meses em Pernambuco. O trabalho sobre estes materiais é fundado nas
referências bibliográficas ou da imprensa. Um dos poucos filmes sobrevivente, Veneza
Americana (1925) é uma combinação de dois filmes produzidos pela Pernambuco-Film:
Recife no Centenário da Confederação do Equador (1924) e Pernambuco e sua
Exposição de 1924 (1925), dirigidos por Falangola e Cambière131.
Durante esse período inicial da trajetória do cinema pernambucano, o incentivo
do governo estadual serviu como um estímulo para impulsionar as primeiras produções
pernambucanas ao mesmo tempo em que servia como uma propaganda política. O filme
Pela saúde (1924), realizado pelo cinegrafista pernambucano A. Grossi foi o primeiro
filme natural patrocinado pelo governo Sérgio Loreto. Nele se registravam eventos
comemorativos do primeiro aniversário da gestão, transcorridos em outubro de 1923.
“Pela saúde dedicava-se a mostrar o ‘progresso dos trabalhos de profilaxia no estado,
sob a direção do Dr. Amaury de Medeiros’, com imagens de obras de higiene pública na
capital e em cidades do interior, além de registrar a inauguração do Departamento de
Saúde e Assistência” (ARAÚJO, 2013, p. 96).
Porém, o maior investimento para o cinema quanto propaganda política foram as
realizações de 1924. O segundo aniversário do governo de Loreto foi comemorado junto
ao centenário da Confederação do Equador. Fazendo uma analogia das lutas
republicanas com o discurso da modernidade conservadora: “que ao mesmo tempo
procurava enaltecer o glorioso passado pernambucano de lutas e afirmar os progressos
contemporâneos (...)” (ARAÚJO, 2013, p. 96). As comemorações que tiveram início em
2 de Julho foram acompanhadas pelos cineastas da Pernambuco-Film132.
Os dois anos da administração de Sérgio Loreto também foram comemoradas
durante a Exposição Geral de Pernambuco, realizada entre os dias 18 de Outubro e 16
de Novembro de 1924 marcaram outro momento decisivo do carro-chefe dos festejos
governamentais, gerando o segundo longa-metragem da Pernambuco-Film e também a
parte final de Veneza Americana.

131
O filme se encontra na Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) junto ao setor de audiovisual e está
disponível para consulta.
132
O cineasta Aristides Junqueira também lançou no Pernambuco Journal (1924) cenas da festividade.
Na Quinta-feira, 16 de Outubro de 1924, os jornais anunciavam a exibição no Cine Royal das 9 partes do
“Recife no centenário da confederação do Equador” (A Provincia, 16 de Outubro de 1924, p. 3).
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ISBN: 978-85-415-0440-9.

Os encantos da Veneza Americana e da propaganda pelo cinema: os filmes


financiados pelo governo Sergio Loreto em Pernambuco (1922-1926), recente trabalho
da pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo faz uma longa análise fílmica do Veneza
Americana, utilizando também textos históricos e periódicos da época, mostrando a
importância do estímulo oficial na cinematografia local e como os filmes se tornavam
estratégias de propaganda, tendo como cenário Pernambuco da década de 1920.
Segundo Araújo:

Das cinco partes que compõem a cópia de Veneza americana, as duas


primeiras são dedicadas às obras do Porto, à atracação do [transatlântico]
Gelria e à visita do governador Loreto ao paquete. A Terceira Parte mostra a
inauguração da Avenida Beira-Mar, em Boa Viagem, enquanto a Quarta
Parte começa registrando os novos bondes da Pernambuco Tramways para
logo em seguida retornar a aspectos ligados ao Porto. A Exposição Geral de
Pernambuco é tema da Quinta Parte, que termina com o desembarque de
políticos no cais do Porto, sequência final do filme (ARAÚJO, 2013, p. 104).

Neste filme, a cidade surge em movimento. O desenvolvimento urbano e


principalmente dos meios de transportes tornam-se um emblema da modernização. No
início do século XX, as empresas de transporte Pernambuco Tramways e da Great
Western ganharam proeminência no estado. Enquanto que a Great Western operava
ligando o Recife ao Agreste, a Pernambuco Tramways era responsável pelo transporte
urbano. Além dos serviços terrestres, Pernambuco passou a se destacar ao longo da
década também na questão marítima. O Porto do Recife, que enfrentara uma crise no
final do século anterior, ressurgia como uma das principais propagandas do Governo do
Estado nos anos 20.
O governo de Sérgio Loreto se empenhou em significativas mudanças no cenário
urbano de Pernambuco, como a reforma do Porto do Recife, a drenagem e urbanização
de algumas áreas e a abertura de uma via que ligava o centro do Recife a Boa Viagem.
Sobre a modernização sofrida pelo Recife durante a década de 1920, a historiadora
Sylvia Costa Couceiro destaca:

A modernização do Porto, a reforma urbana do Bairro do Recife, as


melhorias nos serviços de abastecimento d'água e o Plano de Esgotamento
Sanitário do engenheiro Saturnino de Brito fizeram parte de um rol de
melhoramentos empreendidos nessa fase, assim como as reformas realizadas
durante o governo Sérgio Loreto nos anos vinte, tais como: embelezamento
das Praças do Parque Amorim, da antiga Campina do Bodé, depois chamada
de Praça Sérgio Loreto, reformas no Largo da Encruzilhada, urbanização do
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Derby, construção de mercados públicos, e a abertura da Avenida de Boa


Viagem, dentre outras (COUCEIRO, 2003, p. 7).

Durante o filme Veneza Americana, podemos observar algumas das principais


realizações do Governo de Loreto. Apresentado como o segundo filme da produtora, os
letreiros inicias afirmam a intenção do filme: “destinado a attestar, ainda mais, a
grandeza do Estado de Pernambuco, que sob beneficio impulso de administradores
criteriosos marcha seguro no caminho do progresso para alcançar o lugar que lhe
compete ao lado dos mais prosperos Estados da União.” A exaltação de Pernambuco,
se configura desde o início uma formação da propaganda política, isto pois, ao longo da
película, podemos observar que o “desenvolvimento do Estado” está estritamente ligado
às políticas do governador Sérgio Loreto.
Os letreiros continuam a exaltação, comparando ao recente passado de atraso ao
qual Pernambuco havia sofrido: “O pernambucano que, tendo deixado a sua terra ha
vinte annos, voltasse hoje ao Recife, ficaria perplexo deante do espectaculo grandioso
que se lhe apresentaria á vista ao penetrar no porto”.
Além de principal personagem de Veneza Americana, o Porto do Recife também
foi um dos maiores carro-chefe da propaganda do Estado. As imagens do filme iniciam
com a vista para o porto do Recife, colocando a câmera num veículo sob os trilhos sob
os arrecifes, acompanhando o movimento em direção ao antigo farol. Um novo letreiro
surge anunciando: “Julgaria que o tivessem levado, por engano, a uma cidade
desconhecida, quando de longe avistasse o bello caes e os grandes armazens, em cuja
frente estão atracados os navios de qualquer tonelagem, desde os pequenos costeiros,
até os grandes transatlânticos”.
Seguem as imagens do porto destacando as grandes embarcações. Essas tomadas
são um prelúdio para a chegada do transatlântico Gelria, do Lloyd Real Hollandez, com
13.868 toneladas e com 27 pés de calado, que entrara no porto e no decorrer da cena se
aproxima cada vez mais do cais. Os letreiros ressaltam que este era o primeiro paquete
de grande tonelada que veio a atracar no cais do Recife, desmentido as falsas profecias
de que o Governo não conseguiria concluir com sucesso as obras.
No ano de 1908, um contrato de melhoramento do Porto havia sido assinado
pelo governo federal, ficando a reforma a cargo da companhia francesa Société de
Construction Du Port de Pernambouc. Para receber o Porto, “(...) o Estado empreendeu
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uma grande reconstrução urbana do centro do Recife e dos distritos portuários a fim de
dar, justamente, melhor acesso às docas. Avenidas foram alargadas, mocambos
arrasados e eliminadas outras estruturas que atrapalhavam o tráfego”. Com os efeitos da
I Guerra, a construção foi paralisada até 1920, quando o Estado assumiu a
responsabilidade do projeto, atendendo aos pedidos dos comerciantes e exportadores
(LEVINE, 1980, p. 83).
Esse fato é mencionado na segunda parte, ao ressaltar que administração da
reforma a partir de abril de 1922 ficou a cargo do governo. Sob a direção do Cel.
Francisco Thaumaturgo de Faria, auxiliando pelo Dr. José Alves Villela, secretário da
repartição e Astor Nina de Carvalho, chefe de trafego e movimento. Esta segunda parte
do filme, ainda exaltando o Porto, lembra que há poucos anos, o porto do Recife mal
podia abrigar os pequenos costeiros nacionais. Sob a situação do porto em finais do
século XIX, Robert M. Levine nos revelava:

A ineficiência a cada dia pior do porto do recife agravava o engarrafamento


econômico causado pela falta de uma grande rede interna de transportes,
moderna e integrada, a serviço da região. Por volta de 1870, era aparente que
a baía de Recife não podia acomodar – por muito rasa – os 200 e 400 navios
que frequentavam o Atlântico e o litoral brasileiro. Embora simétrica,
defendida por arrecifes e de extensão adequada, sua profundidade de sete
metros na maré cheia forçava os navios maiores a ancorar fora da barra, o que
exigia o uso de diques flutuantes e ferry-boats para carga e descarga e para o
embarque e desembarque de passageiros (LEVINE, 1980, p. 82).

Porém após a reforma, por seu intenso movimento, o Porto tornou-se o terceiro
maior da Republica. A chegada do Gelria até o cais comprovaria o sucesso do
empreendimento, acabando com as dificuldades destacadas por Levine e tornando-se,
segundo a própria película, um motivo de orgulho para os pernambucanos.
A sequência do filme nos mostra o desenvolvimento das obras complementares
do Porto, ainda não concluídas, sob administração direta do Estado: a construção dos
armazéns, dado pela necessidade grande intensidade do movimento comercial; o
trabalho nas pedreiras de Comportas, que é trazida por uma estrada de ferro de 21 km
até o Recife, imagem presente na película.
No dia 20 de Outubro ocorre a inauguração da estrada para autos na Avenida
Beira Mar, ainda em construção, continuação da linha de bonde que levava até a Ilha do
Pina. O Governador do Estado, demais autoridades, representantes da imprensa e outros
convidados aparecem tomando bondes especiais da Pernambuco-Tramways na Av.
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Alfredo Lisboa, rumo à Boa Viagem. Aparecem nas imagens o Dr. Arthur Smith,
superintendente da Pernambuco Tramways e o Dr. Carlos Machado, diretor da
Tramways e da Great Western, ambos acompanhando a comitiva. O recurso usado pelos
cineastas italianos utiliza as filmagens tomadas de dentro dos bondes, na perspectiva de
quem está dentro do veículo, aumentando assim o dinamismo da imagem que segue
sobre os trilhos, até o Pina, de onde partem a Praia de Boa Viagem de automóvel.
A quarta parte de Veneza Americana é justamente focada no transporte, dando
ênfase aos serviços das linhas urbanas da Pernambuco-Tramways. Nele aparece um
bonde da linha “Várzea” visto de frente, sob a perspectiva, provavelmente, de outro
veículo que o acompanhará. Nota-se a estratégia exaltada pelos diretores em expor as
imagens em múltiplas perspectivas, obversando formas variadas de movimento,
acompanhando as máquinas e veículos modernos. Podemos perceber que esses recursos
são utilizados especialmente para destacar a dinâmica deste momento.
Durante a quinta parte, destinada à Exposição Geral de Pernambuco de 1924,
nota-se esta estratégia no parque de diversões instalado na Praça do Derby. A película
ressalta as mais modernas máquinas de diversão presentes no evento. A inserção do
controlador da câmera nas máquinas – como o Aeroplano, Roda Gigante e Túnel do
Amor – busca experimentar e trazer para o espectador as emoções dos brinquedos,
acompanhando a dinâmica da máquina.
O desenvolvimento do Estado era o grande personagem da Exposição e também
da película. Enquanto que as fotografias destacavam as novas projeções urbanas, através
do cinema, a década de 1920 também explorou o movimento, a velocidade e o
dinamismo como símbolo da modernidade. O cinema pernambucano tornou-se uma
forte propaganda do governo de Sérgio Loreto, como um mecanismo de difusão do
discurso político. Além disso, exprimiam-se através das imagens os desejos e sonhos de
uma cidade que buscava a modernidade.
Enquanto que no Rio de Janeiro, junto às comemorações do centenário da
Independência, em 1922, o Governo Federal buscou “conferir uma identidade moderna
ao Brasil por intermédio dos filmes” (MORETTIN, 2011, p. 139), em 1924, segundo
nos revela Luciana Araújo, “o governo estadual de Pernambuco iria adotar estratégia
semelhante, estimulando a realização de filmes naturais que valorizassem aspectos da
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modernização do Recife e do estado, e ressaltassem em especial o papel das obras e


ações empreendidas por Loreto” (ARAÚJO, 2013, 98-99).
As imagens construídas por Falangola e Cambière constituem uma representação
desse desenvolvimento proclamado pelo estado. É importante perceber que essas
imagens extirpam qualquer sinal daquilo que não eram convenientes as propostas
políticas: o velho, o insalubre, as mazelas sociais. As películas da Pernambuco-Film
foram pioneiras em realizações de um cinema propagandístico, ao qual o próprio
governo continuaria com a Aurora-films. Nesse cenário, a Pernambuco-Film também
foi a primeira produtora a se consolidar quanto ao fazer cinematográfico, do qual
destaca Bernardet:

Era mais sólida porque era vinculada direta ou indiretamente ao governo para
algumas produções; e também aceitava encomendas de particulares. Atendia,
portanto, a uma demanda, orientava seu trabalho em vista das condições
locais, e tinha uma base suficiente (financiamento e mercado de consumo)
para investir com segurança em equipamentos, pessoal, estúdio, laboratório,
drogas, e compra de filme virgem [..]. Era uma empresa muito bem formada,
com uma estrutura técnica que possibilitou, por exemplo, o seu grande filme
Veneza Americana, feito para divulgar as grandes obras do governo Sério
Loreto, ser exibida no Rio de Janeiro em Maio de 1925, com benevolência
por parte da crítica. (BERNARDET, 1970, p. 96)

Em 1925 a Aurora-Film adquire todo o equipamento da empresa de Ugo


Falangola e J. Cambière, o que marca o encerramento das atividades da Pernambuco-
Film (BERNARDET, 1970, p.11-12). A Pernambuco-Film encerra sua atividade
quando os filmes de enredo do Ciclo começam a ganhar destaque. Os anos de 1925 e
1926 foram o auge do movimento, produzindo seus principais enredos, como: Aitaré da
Praia (1925) e A Filha do Advogado (1926). O sucesso do Ciclo do Recife rendeu uma
matéria na revista carioca Para Todos133, em 17 de Janeiro de 1925.
O Recife era o personagem principal tanto nas produções da Pernambuco-Film,
quanto da Aurora. Apesar do foco dado ao gênero ficcional, a Aurora Filmes também
participou da produção de filmes naturais. O governo de Sérgio Loreto que
encomendava películas à Pernambuco-Film, vai, a partir de 1925, fazer solicitações à
Aurora Filmes. Dentre uma das teorias sobre a troca nas produtoras, está a levantada por

133
Criada em 1918, na Capital Federal, a revista semanal ilustrada “Para Todos” funcionou até 1932,
tinha seu conteúdo voltado para o cinema, se destacando no cenário nacional. A revista também publicava
matérias sobre os principais acontecimentos sociais e políticos. Nos anos 20 o cinema foi o grande
referencial de disseminação dos novos costumes.
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Lucilla Ribeiro Bernardet que envolve a possível relação pessoal entre Gentil Roiz e o
governo, visto que o mesmo era amigo do Dr. Amauri de Medeiros, genro do
governador (BERNARDET, 1970, p. 69).
Novas produtoras surgiram ao longo do desenvolvimento do Ciclo, como a
Vera-Cruz-Film, Planeta-Film, Veneza-Film, Olinda-Film e Goiana-Film. Porém, não
obtendo um mesmo destaque que as suas antecessoras. A própria Aurora chega a passar
por duas diferentes administrações antes de encerrar suas atividades em 1926. Além da
extrema precariedade técnica e total instabilidade econômica e a falta de mercado
interno no período, fazem os filmes terem pouca circulação, dificultando as produções
locais que não tinham retorno algum. O Ciclo do Recife foi marcado por sucessivas
falências, quase que a cada filme, e contínuos fracassos nas tentativas de exibição fora
de Pernambuco (BERNARDET, 1970, p. 9).
Poucos filmes tiverem a chance de sair do estado, o que marca um destaque
significativo de produções como Veneza Americana, que em maio de 1925 foi exibido
na Capital federal; e A Filha do Advogado, exibida em 1926 também no Rio de Janeiro,
e em São Paulo. Os dois filmes podem ser considerados as grandes produções do
período, um no gênero natural e o outro filme de enredo, significativos marcos do
cinema pernambucano.
Após os trabalhos realizados pela empresa de Falangola e Camibière, a Aurora
filme também fez algumas películas destinadas a propaganda governamental como O 3º
aniversário do governo Sergio Loreto (1925), Carnaval Pernambucano de 1926 (1926)
e A chegada do Jahú a Recife (1927). É importante perceber o teor do conteúdo de cada
filme: realizações governamentais, aspectos culturais, desenvolvimento da aviação e da
medicina. Infelizmente, o único que sobreviveu ao tempo foi o filme do Jahú, exaltando
a chegada do aeroplano no Recife, saudado pelos cidadãos recifenses. A partir de sua
difusão, o transporte aéreo seria extremamente explorado também pelas imagens
cinematográficas e fotográficas, representado como um grande aspecto dessa
modernidade.
Através do cinema conseguimos observar o Recife como um palco da
modernidade, elemento que também pode ser notado partindo de outras abordagens,
como é o caso dos trabalhos de Silvia Costa Couceiro e Flávio Weinstein Teixeira.
Partimos da cinematografia pela necessidade de preencher uma lacuna dada aos estudos
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sobre a produção de filmes documentais no período, visto as dificuldades de


preservação e regaste das películas. Reconhecemos também a pujança dessa nova
expressão visual no início do século XX.
Não foi surpresa que assim como em diversas cidades do mundo a força que o
cinema tomou, alavancou a atenção das esferas políticas. Era necessário explorar todas
as possibilidades dessa nova arte. Atravessando a reconstrução dessas imagens, seja na
revisão deste acervo ou na leitura que nos dê indícios de suas montagens, a cidade pode
ser vista em movimento, transitando entre sensações, memórias e histórias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Luciana Correia de. Os encantos da Veneza Americana e da propaganda


pelo cinema: os filmes financiados pelo governo Sergio Loreto em Pernambuco
(1922-1926). Estud. hist. (Rio J.) vol.26 no.51 Rio de Janeiro Jan./June 2013, p. 94-95.

BERNARDET, Jean-Claude. Filmografia do cinema brasileiro, 1900-1935, jornal O


Estado de São Paulo. São Paulo : Comissão Estadual de Cinema, 1979.

BERNARDET, Lucilla Ribeiro. O cinema pernambucano de 1922 a 1931: primeira


abordagem. São Paulo, 1970, p. 64-66.

COUCEIRO, Silvia Costa. Artes de viver a cidade: conflitos e convivências nos


espaços de diversão e prazer do Recife dos anos 20. Tese de Doutorado em História -
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003.

CUNHA FILHO, Paulo Carneiro da. A utopia provinciana: Recife, cinema,


melancolia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010.

FERREZ, Gilberto. Velhas fotografias pernambucanas 1851 - 1890. Rio de Janeiro:


Campo Visual, 1988.

FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.


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LEVINE, Robert M. A velha usina: Pernambuco na Federação brasileira, 1889-


1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

MORETTIN, Eduardo. “Cinema e Estado no Brasil” – A Exposição Internacional


do Centenário da Independência em 1922 e 1923. Novos Estudos – Cebrap, n. 89,
mar 2011.
SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo, Annablume, 2008.

TEIXEIRA, Flávio Weinstein. As Cidades enquanto palco da modernidade. O


Recife de princípio do Século. Recife, Dissertação de Mestrado em História. UFPE.
CFCH. 1994.

O MERGULHAR NAS RAÍZES: A TRAJETÓRIA INTELECTUAL E PESSOAL


DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO.

Raquel Silva Maciel


Graduanda na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e Bolsista do
Programa de Educação Tutorial (PET/História-UFCG)
E-mail: quequelpb@hotmail.com
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Regina Coelli Gomes Nascimento


Prof. Dra. na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e Tutora do Programa
de Educação Tutorial (PET/História-UFCG)
E-mail: reginacoelli2@yahoo.com.br

Neste artigo analisamos a trajetória de Luís da Câmara Cascudo, nascido em Natal no


ano de 1898 e falecido em 1986. Para isso, problematizamos elementos de caráter
biográfico, que articulem a formação intelectual com o percurso pessoal desse pensador
brasileiro. Com relação a sua produção, devemos considerá-la importante no tocante ao
aspecto quantitativo e qualitativo, tendo em vista que publicou mais de 150 obras entre
essas as de cunho memorialístico, folclorista, histórico e outros, que possibilitaram a
formação de uma carreira intelectual extensa. No tocante à qualidade dessas produções,
observamos que essas o levaram a um reconhecimento no plano nacional e
internacional, fato relevante se considerarmos que ele foi um estudioso nordestino que
nasceu, viveu e produziu fora do eixo Rio-São Paulo. Câmara Cascudo, em seus
trabalhos direcionados principalmente a aspectos da cultura popular, perpassou por
vários domínios do saber, o que evidencia a sua multidisciplinaridade. Esse ensaio
promove a discussão em torno da trajetória de Cascudo, a partir da análise de escritos
biográficos como os realizados por Diógenes da Cunha Lima (1998), Zila Mamede
(1970) e Gildson Oliveira (1999), bem como com base em uma revisão historiográfica
de produções sobre essa figura.
Palavras-chave: Câmara Cascudo, produção, biografias.

Na crônica intitulada “Natal Vista por Anna Maria Cascudo”, publicada no


Diário de Natal em 16 de dezembro de 1984, a filha de Luís da Câmara Cascudo, sujeito
de nosso estudo, reflete sobre lembranças dos tempos de outrora, recordações
impossíveis de serem esquecidas. Assim concluí “Como será uma vida sem passado?
Uma árvore sem raízes?” (OLIVEIRA:1999:104).
É a partir dessa indagação, que o nosso ensaio se inicia. Em uma tentativa de
mergulhar nas raízes daquele estudioso, que tanto procurou as origens da cultura
popular brasileira, sobretudo a nordestina. Com isso, buscaremos relacionar a trajetória
pessoal desse intelectual com seu percussor pelo mundo da escrita, acreditando que em
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determinados momentos essas se cruzam, influenciando e modificando os rumos desse


sujeito.
O Brasil, no início do século XX, foi marcado pela efervescência de um período
denominado de “modernidade”. Esse viria a provocar grandes rupturas na sociedade
desse momento histórico. Influenciada por valores que provinham de países
industrializados, essa condição moderna modificava comportamentos sociais, esquemas
econômicos e políticos e alterava a paisagem brasileira.
Nesse contexto, o cenário rural do norte134 passou a se constituir com a presença
de elementos ‘intrusos”, como as usinas que vinham a substituir os engenhos, até então
símbolos daquela sociedade eminentemente elitizada, aristocrática e proprietária de
terras e escravos. É nesse modelo de família patriarcal que Câmara Cascudo135 possui
suas raízes. Proveniente do interior norte-rio-grandense, seu avô materno era um
fazendeiro de poderio econômico, e o avô paterno era integrante do Partido
Conservador, que entre outros defendia politicas que não afetassem seus privilégios
enquanto elite local.
Com a decadência desse modelo de sociedade, os descendentes dessas famílias
perceberam que a rede de relações sociais construídas no período anterior e o prestígio
familiar que possuíam, poderiam lhes conceder benefícios como a manutenção de bens
e a concessão de empregos públicos. Essa foi à alternativa encontrada por Francisco
Cascudo, pai de Luís da Câmara, e inúmeros outros indivíduos de famílias
aristocráticas. Esse se tornou chefe de polícia no interior do Rio Grande do Norte, sendo
posteriormente transferido para Natal, cidade onde Câmara Cascudo nasceu em 30 de
dezembro de 1898. Em 1900 é exonerado da Guarda Nacional, tornando-se um
comerciante na capital norte-rio-grandense. (GOMES: 2009)
A imagem construída para Francisco Justino de Oliveira Cascudo, nas biografias
relacionadas a Câmara Cascudo, é a de um homem envolvido politicamente, de
prestigio social e importância econômica. Esse é para Cascudo, um símbolo de
autoridade e respeito. Já com relação à Ana da Câmara Cascudo, sua mãe, nos raros

134
Para Durval Muniz a ideia de “Nordeste” só surgiu a partir da década de 1990 proveniente de
inúmeros discursos que respaldaram a sua “invenção”. Até então essa região era denominada de
“norte” e seus habitantes “nortistas”. Cf. ALBUQUERQUE, JR. (2009)
135
O “sobrenome” Cascudo refere-se a devoção ao Partido Conservador que o avô paterno de Luís da
Câmara, Antônio Justino de Oliveira possuía.. Cf CASCUDO. (1968)
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momentos em que é citada nos escritos biográficos, é apresentada a partir da figura “(...)
da mãe, a mulher bondosa, religiosa, recatada ao lar, simples, carinhosa, obediente,
conformada com seu lugar (cozinha, igreja, criança e roupa).” (GOMES: 2009:192).
A imagem evidenciada nas biografias que Cascudo construiu para a sua mãe, iria
influenciar posteriormente a construção da representação feminina nas suas obras.
Reservando para as mulheres o espaço que a sua figura materna ocupava. Assim,

o sujeito feminino, gestado na produção discursiva de Câmara Cascudo, será


elaborado a partir das imagens cristalizadas de mulheres em relação ao
casamento e à maternidade, estando sempre inseridas no interior da família
sob o julgo do patriarca ou de um outro homem de seu clã. (OLIVEIRA:
2005:02)

É nessa cidade que Cascudo nasce, vive e produz. A infância de Cascudo foi um
período conturbado do ponto de vista pessoal. Já em relação a sua formação intelectual,
é apontada por muitos pesquisadores como um momento decisivo na escrita que viria a
realizar posteriormente. Essa fase foi marcada pelo enfrentamento de:

(...) problemas de saúde, como ele mesmo descreve, e quase sucumbiu em


decorrência de grave enfermidade, apesar de cuidados esmerados como filho
único do casal Ana Maria da Câmara Cascudo e Francisco Justino de Oliveira
Cascudo, rico comerciante e coronel da Guarda Nacional. (OLIVEIRA:
1999:18)

Foi em uma tentativa de curar essas enfermidades, que Cascudo foi com sua mãe
para o sertão da Paraíba e do Rio Grande do Norte entre os anos de 1910 e 1913136. Lá
conheceu personagens que protagonizariam seus escritos posteriores, além do vasto
conhecimento/experiência adquirido acerca da cultura popular sertaneja, que culminaria
em obras de grande relevância, entre essas “Vaqueiros e cantadores” produzida em
1922 e publicada em 1939. Estudiosos das obras cascudianas, alertam para o fato de
como esse acontecimento se torna base para as suas pesquisas posteriores. Assim

136
Sobre a presença de Cascudo no Sertão Cf. FARIAS. (2001)
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o tempo que passou no campo marcou sua vida e é registrado, nos prefácios e
biografias, como a época áurea e inspiradora de suas obras. Essa época é
retratada em diversas obras e assume um caráter definidor quando ele pensa a
cultura, pois sempre parte desse mundo de sua lembrança de infância.
(GOMES:2009:195).

É a partir de sua vivência no Sertão que Cascudo tem contato com os costumes
dessa região através das vaquejadas, dos cantadores e contadores de histórias, dos
gestos, das festas e da alimentação. Experiência que influenciaria ao longo de sua
produção e construiria a concepção cascudiana de cultura popular.
Infância triste, em oposição ao “brasileiro feliz”137 que viria a se formar
posteriormente. Marcada pelas “(...) limitações de seu corpo pela doença – não correr,
saltar, pisar na areia, andar descalço, subir em árvores – levaram-no a uma vida
reclusa.” (GOMES:2009:194) As biografias aqui analisadas, apontam esse momento
como decisório na trajetória intelectual de Câmara Cascudo, momento solitário que lhe
enveredou ao mundo da leitura. A imagem desse sujeito é construída “(...) a partir da
figura de erudito, do homem voltado para os livros e as letras desde a infância, quando
ao invés de brincar como as outras crianças, voltava-se para a leitura de revistas, de
álbuns de gravuras e de viagens (...)” (COSTA: 2011).
Prática de leitura que foi incentivada pelos pais, sobretudo pelo Coronel
Francisco Cascudo que construiu uma biblioteca para Cascudinho, evidenciando o
poder aquisitivo daquela família. Essa era formada por livros raros importados da
Europa, revistas Tico e Teco e outras publicações que logo passaram a fazer parte das
madrugadas de leitura do pequeno Cascudo.
O cenário de sua infância é o Sertão “(...) ingênuo, crédulo e místico, não
corrompido pela cidade (...)” (GOMES:2009:196) Concepção que poderia suscitar um
pertencimento desse intelectual a corrente regionalista, mas que é contrastado pelo fato
de Cascudo escrever obras a exemplo de Joio, que evidenciam o seu cosmopolitismo.
Assim, o Sertão em seus escritos é representado pelo passado, pela infância, tempo
mítico que não volta mais.

137
“Cascudo era feliz por trabalhar com prazer, feliz com o resultado do seu esforço, feliz por gostar das
pessoas, feliz por ser professor. Feliz porque amava imensamente a vida, que celebrava nos bares e
pensões alegres da Ribeira.” (LIMA: 1998:12).
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

O início de sua vida intelectual ocorre em um momento que para Araújo (2006),
é marcado justamente por essa interação ou contradição entre o passado e o presente
(moderno). O ano de 1918 é atribuído como marco inicial de sua carreira, a partir da
publicação de uma crônica no jornal A Imprensa, periódico que é fundado pelo Coronel
Francisco Cascudo em oposição aos oficiais Diário de Natal e A República. O texto
fazia parte de um coluna intitulada Bric-à-Brac, na qual Câmara Cascudo tecia críticas
literárias a autores nacionais e internacionais.
Posteriormente, em 1921, Cascudo escreve o livro Alma Patrícia. Essa se refere
a um autor natalense, o que para Oliveira evidencia a importância de tal obra por ser
pioneira, já que no início do século XX várias cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e
a própria Natal viviam uma espécie de Belle Époque tardia, período de
“afrancesamento” dos costumes, leituras e pensamentos. Assim, “Cascudo, morando
numa cidade pequena do Nordeste, embora estudasse autores europeus, não se deixou
influenciar por tais costumes, que alcançavam até a maneira afrancesada de vestir, ainda
que vivêssemos nos trópicos.” (OLIVEIRA: 1999:35).
Característica que o aproxima de tantos outros intelectuais, como Euclides da
Cunha e Lima Barreto, que procuraram abordar temáticas nacionais em detrimento ao
estrangeirismo que “contaminava” o brasileiro. Assim, podemos identificar a década de
1920, como o período de adesão desse escritor ao movimento modernista, que entre
outros valores enaltecia o próprio Brasil, sendo posteriormente na opinião de alguns
biógrafos o “(...) homem que descobriu a alma do povo brasileiro” (OLIVEIRA:
1999:44) que enaltecia o “(...) sertão onde o Brasil se esconde e se mostra” (NEVES:
2002:75). Aquele que valorizava o homem considerado “normal”, o homem ordinário
na concepção certeauniana (CERTEAU:2008) com todas as particularidades de seus
gestos, alimentação, danças, canções e práticas.
Porém, apesar de enaltecer essas figuras populares e comuns, na trajetória
intelectual de Cascudo consta a dedicação à produção de biografias e crônicas
relacionadas a velhas figuras daquela região, como homens da elite letrada, políticos e
fazendeiros. Além desses sujeitos, temos aquelas obras dedicadas a personagens da
monarquia portuguesa, como os intitulados Conde d’Eu e O Marquês de Olinda e seu
tempo.
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Relações como essas, que viriam a atravessar toda a trajetória pessoal e


intelectual de Câmara Cascudo. Assim, o endereço Avenida Junqueira Alves, 377,
Ribeira, Natal foi ponto de encontros ilustres entre Cascudo e Heitor Villa-Lobos, Rui
Barbosa, Monteiro Lobato, Luiz Gonzaga e inúmeros outros sujeitos que enalteciam a
imagem do “provinciano incurável”.138 Além desses, temos aproximações não só
intelectuais, mas também pessoais de Cascudo com escritores como José Américo de
Almeida, Gilberto Freyre139 e Mário de Andrade140. Possuindo esse último, grande
influência nas obras cascudianas, a exemplo de “Vaqueiros e Cantadores” obra de
consagração do escritor potiguar. Carlos Drummond de Andrade também estabeleceu
uma relação muito próxima com o chamado por ele “Mestre Câmara Cascudo”
oferecendo a esse o poema “Poesia até agora” em 1971.
Logo o reconhecimento nacional seria acompanhado de uma valorização no
plano internacional. Assim, além das presenças já citadas, o intelectual norte-rio-
grandense “recebia, todos os dias, cartas de estudiosos dos mais variados países,
pedindo artigos, indicações bibliográficas e informações sobre como adquirir suas
obras.” (OLIVEIRA:1999:63). Tornando-se um dos nomes reconhecidos mundialmente
no tocante a estudos de cultura popular.
Suas obras eram provenientes das inúmeras pesquisas que fazia, sobretudo das
de cunho etnográfico. Viajava não só pelo Brasil, mas também a países de outros
continentes como Europa e África. Nesses, frequentava espaços nos quais podia ter
contato com as mais variadas manifestações populares, obtendo material riquíssimo
para seus escritos seja através das práticas alimentares, das danças e festas típicas, das
vestimentas, dos gestos, das cantorias ou dos mitos e lendas. Cascudo, ao trabalhar com
esse tipo de pesquisa, se encantava com objetos, costumes e indivíduos considerados
naquela época como subversivos e imorais.

138
Câmara Cascudo como os escritos biográficos apontam se considerava um provinciano por
excelência. Aspecto interessante se considerarmos a importância que ele adquiriu nacionalmente e
internacionalmente através de seus escritos, mesmo situado fora do eixo Rio-São Paulo. Ele estaria “(...)
arraigado nas dunas de sua cidade Natal, que jamais cedeu ao canto de sereias que o instavam a trocar
as margens do Potengi pelos grandes centros (...)” (NEVES:2002:65).
139
Sobre a relação intelectual e pessoal entre Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, seus distanciamentos e
aproximações. Cf. FERREIRA. (2008).
140
Câmara Cascudo manteve ao longo de sua vida uma aproximação pessoal e intelectual com o poeta
modernista, Mário de Andrade. Relação que pode ser evidenciada nos encontros entre esses e nas
inúmeras correspondências trocadas ao longo de décadas. Cf. MORAES. (2010).
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Essa relação de Cascudo com uma inserção no ambiente de pesquisa remete a


sua atuação não só enquanto estudioso da cultura popular, mas também nas outras
“carreiras” que exerceu. Quando atuou como repórter em Natal, Cascudo por vezes
frequentou becos, botecos e zonas, tendo contato com prostitutas, amantes e bêbados,
buscando capturar informações que viessem a serem publicadas em sua coluna. Essa
aproximação com o seu objeto de estudo, seja com as práticas culturais ou com os
acontecimentos policiais, evidencia o trabalho desse intelectual respaldado naquilo que
o campo antropológico141 tanto valoriza: a vivência.
Os escritos biográficos aqui estudados evidenciam que apesar de receber
constantemente visitas de cidadãos como presidentes da República, governadores do
Estado e prefeitos de cidades, Cascudo em alguns momentos parecia optar pela
companhia dos homens comuns, daqueles sem grande prestígio na sociedade. Ele “(...)
preferia mil vezes receber Chico Pescador, que o divertia contando aventuras
“mentirosas e deliciosas” que enfrentava no mar, a receber um cidadão formal,
engravatado.” (OLIVEIRA:1999:101).
O contato com políticos da época retrata que mesmo se considerando um sujeito
apolítico, ele mantinha simpatia por determinados governos, a exemplo de Sílvio Pizza
Pedroza com quem mantinha uma antiga amizade, prefeito de Natal entre os anos de
1946 e 1951 e governador do Rio Grande do Norte nos anos de 1951 a 1956. Portanto,
verificamos que Câmara Cascudo, apesar de se dizer desinteressado com os meandros
políticos, demostrou através de seu círculo de amizades, seu apoio ao movimento
Integralista142 e a não oposição ao Golpe Militar de 64143 sugerem certo envolvimento
político.

141
As pesquisas etnográficas que Cascudo realizou para a confecção de obras tais como: “A História de
nossos gestos”, “História da Alimentação no Brasil” e “Rede-de-dormir” evidenciam o uso desse
estudioso de diferentes concepções teóricas, entre essas a antropologia social inglesa e a antropologia
cultural norte-americana.
142
O movimento Integralista surgiu nas primeiras décadas do século XX e sua ideologia reunia princípios
voltados para o cristianismo, nacionalismo, indianismo, estatismo e respeito aos direitos humanos, sob
o lema de "Deus, Pátria e Família". No Rio Grande do Norte esse movimento foi fundado por Plínio
Salgado em 1932 e contou com inúmeros adeptos entre eles Câmara Cascudo. Esse movimento buscava
como o próprio nome suscita integrar na Pátria Brasileira. Cf. RAMOS. (2001).
143
A não oposição ao Golpe Militar de 64 assim como sua participação no movimento Integralista são de
certa forma silenciados nos estudos biográficos consultados. É necessário destacar que o sentimento
anticomunista é apontado como o principal motivo para a não objeção de Cascudo a ditadura, porém
ele é apontado como um dos que abrigou em sua residência sujeitos perseguidos pelos militares.
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A relação política de Cascudo com algumas formas de governo ,é destacada por


Durval Muniz, ao analisar uma aproximação entre a formação discursiva sobre a
cultura popular em Câmara Cascudo e nos pesquisadores ibéricos dessa temática. Esse
historiador brasileiro evidencia que muitas são as similitudes entre esse etnólogo
potiguar e os estudiosos espanhóis. Tanto na forma como enxergam o passado, sendo
esse um momento glorioso e que por isso deve ser redescoberto, revivido e reencarnado
(ALBUQUERQUE, JR.: 2003), quanto na concepção do povo enquanto uma entidade
marcada essencialmente pela religiosidade e por uma espécie de “saudosismo
monárquico” que entra de acordo com a posição pró-monárquica de Cascudo.
Assim, mais uma vez podemos perceber uma importante ligação entre a vida
pessoal e a trajetória intelectual desse sujeito, pois “como era de se esperar ao
escrever sobre outros, Cascudo termina por escrever muito sobre si mesmo e suas
formas de ver e dizer a realidade.” (ALBUQUERQUE, JR.:2003:04). Nesse caso,
observamos que suas posturas políticas e religiosas viriam a influenciar a sua
aproximação com as teorias folclóricas de estudiosos espanhóis. Com isso para além
de uma identificação teórica, há uma identificação pessoal.
A produção intelectual de Luís da Câmara Cascudo perpassou por diferentes
campos e temáticas. Há obras de cunho memorialístico, etnográfico, histórico144 e
outros que revelam o ecletismo desse erudito. Em relação a sua aproximação com o
campo da História, é possível perceber que Cascudo possui uma concepção histórica
tradicional, amparada na noção de que documentos oficiais correspondiam a uma
“verdade”, eram fontes neutras, imunes aos interesses humanos e que falavam por si.
Assim, não é necessária a opinião dos historiadores, já que suas interpretações
poderiam retirar a pureza desses documentos. Há em seu pensamento uma noção
romântica da História enquanto campo do saber, que permite o retorno do passado
através da consulta as fontes oficiais.
É interessante notar que para Cascudo, através da História “(...) os
acontecimentos humanos podem ser eternizados.” (COSTA:2011:07). A partir disso
podemos indagar: O que seria digno de ser eternizado? Para ele assim como para

144
Cascudo publicou em periódicos como A República artigos voltados para o campo histórico entre
esses: “A função dos Arquivos”, “História e Estória” e “História e Historiadores”. Além desses temos
obras de cunho histórico como: “A História do Rio Grande do Norte”, “Os holandeses no Rio Grande do
Norte” e “História da Cidade do Natal”.
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outros historiadores metódicos, nem todos os fatos deveriam ser memoráveis. Dedicava
suas narrativas históricas a importância de acontecimentos como eventos políticos, a
exemplo das invasões estrangeiras, e a feitos dos chamados “grandes homens” como
eclesiásticos e estadistas.
Como fica evidente, a concepção teórica de Cascudo em relação à História é
múltipla. Não há só uma escola teórica que ele siga. Em suas obras históricas temos
abordagens de diferentes perspectivas, ele “(...) mesclou concepções de história que
vão desde a Antiguidade Clássica, como as concepções de Heródoto, até a moderna”
(COSTA: 2011:02).
A aproximação com esse campo do saber não se reflete apenas em parte de sua
produção, mas também no exercício do magistério enquanto professor de História do
Brasil no Atheneu Norte-rio-grandense. Profissão essa, que de acordo com seus
biógrafos sempre exerceu145, seja em sala de aula ministrando disciplinas em colégios e
universidades ou como professor de muitos que iam lhe consultar em sua residência.
De acordo com Fernando Luís, filho de Cascudo, “alguns chegavam em caravanas,
procedentes do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador. Teve época que era
preciso telefonar para marcar entrevista (...)” (OLIVEIRA: 1999:97).
Como foi dito, Cascudo acreditava que os documentos forneceriam aos
historiadores o suficiente para conhecer o passado e revivê-lo. Porém, mesmo
concebendo essas fontes como espaços neutros e puros, ele por volta da década de
1970, operou uma “(...) escrita da história interessada e endereçada ao futuro.”
(COSTA: 2011:11) de modo que futuros historiadores encontrassem nos escritos de
Cascudo o seu ponto de partida.
De modo semelhante, Cascudo já com 70 anos, opera a construção de seus
escritos memorialísticos146 através de omissões, silenciamentos e seleções de materiais,
personagens e acontecimentos. Se a História para esse erudito era um meio de
rememorar fatos dignos de serem lembrados, suas autobiografias também apresentam
uma seleção do que deve ser esquecido e o que deve ser evocado. Fato que evidencia a

145
O magistério não teria sido uma escolha natural, teria ocorrido por necessidade. Apesar dos escritos
biográficos afirmarem que o seu ingresso no Atheneu Norte-rio-grandense ocorreu através de concurso
Gomes sugere que ele teria contado com o apoio politico para ocupar tal cargo. (GOMES: 2009).
146
São escritos de memórias de Cascudo: “O tempo e eu”, “Pequeno Manual do doente aprendiz: notas
e imaginações”, “Na ronda do Tempo” e “Ontem: imaginações e notas de um professor provinciano”.
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construção pelo próprio Câmara Cascudo de seu lugar de memória, respaldado na


autoridade que já possuía no Brasil e em outros países. Esse escrevia

suas memórias para que estas tivessem sua assinatura e o peso de sua
autoridade intelectual, como se assim fosse possível preservar sua imagem
do atrito do tempo, garantir sua própria marca autoral na fixação de sua
trajetória como homem e intelectual e revestir com sua própria autoridade
de etnógrafo nesses anos já respeitado nacional e internacionalmente na
versão que dá de si mesmo. (BETI: 2001:05-06).

Assim, o momento que Cascudo escreve suas memórias é um período no qual ele
já tinha grande reconhecimento por sua trajetória intelectual, portanto os constrói a
partir de como gostaria de ser visto e lembrado. Esse movimento poderia suscitar um
desejo em Cascudo de não ser esquecido, de permanecer vivo, de ser digno de
evocação pela posteridade, de ser como os “grandes homens” de seus escritos
históricos.
Quase duas décadas após iniciar a escrita de suas memórias, Câmara Cascudo
falece em 30 de julho de 1986, aos 88 anos. É anterior a esse momento que a cidade de
Natal passa por uma espécie de monumentalização (NETO:2009) desse intelectual,
intensificado após a sua morte e culminando na comemoração de seu centenário de
nascimento em 1998. Seu nome batiza ruas, estabelecimentos comerciais, instituições
públicas e particulares, memoriais e outros espaços147 que servem para exaltação de
Cascudo.
Cascudo é transformado em um monumento natalense. É através desse
movimento que ele se torna “(...) um sujeito privilegiado, de modo que constantemente
são criados lugares para perpetuar sua importância, recordá-lo e evocar sua atividade
intelectual.” (NETO:2009:28) conseguindo através disso se perpetuar no tempo e ser
erguido como personagem destacado do cenário local e nacional. Esse processo de
monumentalização de Cascudo não é um processo isento de intencionalidades. O

147
Em Natal podemos citar: a Rua Câmara Cascudo, o Museu Câmara Cascudo mantido pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Biblioteca pública Câmara Cascudo, Instituto Ludovicus
destinado a pesquisas sobre esse escritor e o Memorial Câmara Cascudo. Outras cidades brasileiras
também possuem espaços que levam o nome de Câmara Cascudo como a Praça Câmara Cascudo em
Santo André (SP).
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desejo de criar lugares de evocação da figura desse etnógrafo parte não só do próprio
Cascudo, que ainda em vida constrói memórias selecionadas, mas também é forjado
por indivíduos pertencentes à elite letrada e politica daquela cidade.
Cascudo, diferente de tantos outros estudiosos, conheceu o sucesso ainda em
vida, mas ele assim como outras figuras de importância nacional e internacional obteve
após a sua morte certo movimento de exaltação mais grandiosa que aquela que
alcançou ao longo de sua trajetória intelectual. Assim, o centenário de nascimento de
Cascudo é um momento importante para analisar a proporção de homenagens que esse
sujeito adquiriu.
Em 1998, a Câmara dos Deputados realizou uma sessão solene em homenagem
a Cascudo. Segundo Oliveira (1998), essa foi uma das maiores homenagens que
Cascudo pode receber, sendo marcada pela presença de figuras próximas ou não ao
etnógrafo. Houve ainda homenagens de espaços, como o TST (Tribunal Superior do
Trabalho), a ABL (Academia Brasileira de Letras) que também realizou reunião na
qual homenageava a esse pesquisador contando com presenças como Raquel de
Queiroz e Celso Furtado que evidenciaram a contribuição de Cascudo para a cultura
brasileira, os Correios que lançaram selo comemorativo e a construção de espaços já
citados para exaltação dessa figura ilustre.
Porém, acredito que as homenagens que mais sensibilizariam Câmara Cascudo
seriam aquelas confeccionadas pelos sujeitos que produziam a cultura popular, tão
estudada e valorizada por ele, além das reverências prestadas nos ambientes de
expressão dessa. Assim, temos alguns cantadores populares148 de diferentes estados
incluindo o Ceará, Paraíba, Pernambuco e o próprio Rio Grande do Norte, que através
do verso e da viola eternizaram a figura desse “provinciano incurável”, ao “professor
jagunço” foram dedicadas composições ritmadas nas cantorias e escritas nos cordéis.
Outra homenagem que teria provocado a comoção de Cascudo, partiu de uma
das festas mais populares do Brasil, o carnaval. No ano de seu centenário, ele foi tema
de um dos blocos de rua de Natal intitulado Bicho-papão. No Rio de Janeiro ele foi
citado por algumas escolas de samba como a G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro em
1999 que teve como enredo “Salgueiro é Sol e Sal nos Quatrocentos Anos de Natal”

148
Alguns daqueles “homens normais” que prestaram homenagem a Cascudo no centenário de seu
nascimento foram: Patativa do Assaré, Celestino Alves, Sebastião Dias e outros.
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tratando da capital potiguar e consequentemente reverenciando Cascudo. Mais recente


temos a G.R.E.S Unidos de Vila Isabel em 2014 com o enredo “Retratos de um Brasil
plural” que fez referência a esse estudioso da cultura popular.
A partir disso, podemos perceber nas homenagens citadas, reverências a
Cascudo que partiam tanto de setores da elite intelectual, política e econômica do país e
das instituições que esses integravam quanto dos “homens normais”, cantadores,
cordelistas e pescadores que circulavam por espaços e mantinham práticas que refletiam
o objeto de estudo que encantou esse pesquisador.
O ensaio aqui realizado pretendeu promover reflexões acerca da trajetória
intelectual e pessoal de Luís da Câmara Cascudo, acreditando que em determinados
momentos da vida desse estudioso, essas se cruzam e acabam por estabelecer relações
de influência. Entre as aproximações que podemos citar, observamos como a infância
de Cascudinho é apresentada nos escritos biográficos e memorialísticos, como uma
fase determinante na sua carreira enquanto pesquisador, já que promoveu o seu
direcionamento ao mundo dos livros formando desde cedo o gosto pela leitura
incentivada pelos pais, sobretudo por Francisco Cascudo.
Além disso, esse momento é marcado pelo contato do pequeno Cascudo com
aquilo que seria o seu objeto de estudo posterior, a cultura popular. Assim, foi no
espaço do Sertão do Rio Grande do Norte e da Paraíba que ele conheceu os sujeitos
simples: vaqueiros, cantadores, rezadeiras, pescadores, contadores de estórias e outros
que protagonizaram suas obras futuras e teriam todo o apreço desse etnógrafo. É lá
também que através de sua experiência observa e participa de festas e costumes
tipicamente populares.
A estrutura familiar a qual pertencia também marcou de forma decisiva a
representação de alguns sujeitos em suas obras, a exemplo da figura feminina que
aparece nos seus escritos como um sujeito que atua de forma semelhante ao papel que
sua mãe desempenhava no seio familiar.
A concepção de História e a construção de suas memórias, revela ainda mais
uma aproximação entre o percussor pessoal desse sujeito e o seu caminho intelectual.
Cascudo, assim como considerava importante a escrita de narrativas históricas
selecionadas que relembrassem fatos merecedores de evocação, acreditava que através
da seleção de suas recordações poderia construir lembranças que o igualasse aqueles
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sujeitos dignos de reconhecimento. Analisando as autobiografias de sua autoria, é


possível verificar como esse empreende uma seleção de sujeitos e acontecimentos que
construíram sua trajetória. Fato que suscita a preocupação de Cascudo em relação ao
quê e a quem seria associado seu nome, pois naquele período já tinha se consolidado
através de suas obras, sendo reconhecido nacional e internacionalmente.
Outra aproximação entre a vida intelectual e pessoal de Cascudo, é no tocante
as concepções teóricas que esse adota para suas formulações de cultura popular. Ao se
aproximar de estudiosos espanhóis, ele acaba por revelar que essa proximidade refere-
se muito mais a suas ideologias religiosas e políticas particulares do que a uma
similitude de pensamentos teóricos.
Por fim, como foi discutido, há também uma grande influência das relações
pessoais de Cascudo na elaboração de algumas de suas obras destinadas a valorização
de figuras de apreço desse pesquisador, como sujeitos da elite letrada, religiosa e
política bem como na construção de espaços destinados a exaltação desse monumento
natalense. Portanto, podemos concluir como em diferentes momentos da vida de Luís da
Câmara Cascudo seu percurso intelectual se cruzou com questões pessoais, através de
influências significativas que determinariam e modificariam o caminho que esse sujeito
trilhou ao longo de seus anos de vivência e aprendizado.

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De 22 a 25 de abril de 2014
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linguagens. São Paulo: PUC-SP, Junho de 2002. pp. 65 a 86.
OLIVEIRA, Gidson. Câmara Cascudo: um homem chamado Brasil. Brasília:
Brasília Juridica, 1999.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

OLIVEIRA, Guiseppe R. P. L. de. A imagética Feminina na Obra de Luís da


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ENTRE TINTEIROS E PALANQUES: A TRAJETÓRIA INTELECTUAL E


POLÍTICA DE ARNOLD FERREIRA DA SILVA (1912-1952)
Juliano Mota Campos
Mestrando em história Universidade Estadual de Feira de Santana
julianouefs@hotmail.com

RESUMO

No presente estudo buscaremos compreender a partir da trajetória intelectual e política


de Arnold Ferreira Silva (1912-1952), o cenário sociocultural de Feira de
Santana.Enquanto problemática, buscamos analisar em que medida as produções
intelectuais de Arnold Silva possuíam relação com a política credenciando-o ao hall das
figuras de prestígio tanto no executivo (prefeito e intendente municipal) quanto no
legislativo(vereador e presidente do conselho municipal), mesmo em um período
longo e de significativas transformações sociais, econômicas e culturais para a
população nãoapenas feirense, mas baiana e brasileira. Utilizamos como fontes para o
nosso estudo o Jornal Folha do Norte, periódico de propriedade da sua família, folhetim
em que predominaram suas produções (crônicas, editoriais, colunas e notas
judiciais), mas também o jornal Folha da Feira que destacava a participação deste
“autodidata” nos grêmios lítero-dramáticos enquanto escritor, palestrante e ator,
além de atas da sociedade “Montepio dos artistas Feirenses”, “Santa Casa de
Misericórdia” (na qual foi provedor), nos processos crimes, no qual atuou como
rábula e nas poesias de seus conterrâneos. Acreditamos que esse conjunto de
documentos nos auxilie a traçar seus campos de atuação.
Palavras chaves: trajetória intelectual, política, cultura.

INTRODUÇÃO

Comercial Cidade de Feira de Sant'Anna,Bahia, inicio do século XX. Os sinos


badalavam na catedral de senhora Santana, ora para anunciar quem se finou (faleceu),
ora para as missas e festejos religioso-sociais que ocorriam também nos coretos, vitrine
das filarmônicas. Quase no fundo desta igreja havia uma ferrovia que transportava gado
vindo de outros lugares e o descarregava em seu próprio curral (para a venda na atual
região denominada abrigo do nordestino), em alguns momentos de descuido esses
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garrotes escapavam do local e circulando pelas ruas da Cidade acabavam provocando o


corre-corre nas ruas e oferecendo uma distração para quem estava abrigado. A
“aristocracia feirense” reunia-se em torno das praças deleitando-se em leituras de
jornais como “O progresso”, “O feirense” e a “Folha do Norte” e na sede deste, na
esquina da antiga Rua do Meio, atual Sales Barbosa, com a Benjamin Constant, para
discutir política e assuntos diversos do cotidiano.
Essa é a atmosfera social vivida na infância por Arnold Ferreira da Silva,
protagonista do presente estudo. Buscaremos analisar parte da trajetória política e,
sobretudo intelectual deste sujeito sem formação escolar básica em instituição formal de
ensino, que segundo o memorialista feirense Gastão Sampaio vindo de uma família de
origem humilde, viveu em Feira de Santana, Bahia, entre 1894 á 1965. Enquanto
problemática, buscamos compreender em que medida as produções intelectuais de
Arnold Silva possuíam relação com a política credenciando-o no hall das figuras de
prestígio tanto no executivo quanto no legislativo, mesmo em um período longo e de
significativas transformações sociais, econômicas e culturais para a população não
apenas feirense, mas baiana e brasileira. Ainda enquanto inquietações, queremos
verificar a partir de sua trajetória quais foram os instrumentos utilizados para construir
sua própria caminhada e em que medida esta trajetória pôde contribuir para mudanças
na sociedade feirense.
O presente artigo é o resultado parcial da pesquisa de mestrado, sendo por isso
necessário resaltar que as questões ainda estão sendo respondidas, muito provavelmente
outras poderão surgir e algumas podem ficar sem uma resposta definitiva. Esta
produção não tem a intenção de esgotar a discussão em torno do tema, mas proporcionar
uma análise sob outro prisma no tocante ao objeto de estudo em questão, haja vista que
até então na pujante e crescente historiografia feirense o olhar para Arnold silva sempre
foi nos trabalhos acadêmicos como “apenas” importante figura política sem maiores
destaques para sua produção intelectual bem como sua presença nos diversos setores
culturais da citadina sertaneja.
É justamente um olhar unificado e não fragmentado desse objeto que buscamos
uma vez que ele viveu as mais importantes transformações sociais ocorridas na Feira na
primeira grande fase da República. Com esse estudo esperamos contribuir com um olhar
mais amplo sobre o objeto de pesquisa não o limitando a questões apenas políticas-
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partidárias ou de cunho econômico, evitando “perder de vista” outras questões de ordem


cultural principalmente no campo da sociabilidade em uma cidade que por ser o
principal entroncamento rodoviário do norte-nordeste, a maior do interior do estado é
um dos importantes palcos dos acontecimentos históricos do Brasil.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS


É adequada e vital para esse estudo a noção de “trajetórias”. A história de uma
pessoa não se constitui como uma linha reta e uniforme, formada por eventos que se
sucedem um ao outro, sem um vínculo com um todo social. Por mais peculiaridades que
pareçam existir na vida de um indivíduo, este é caracterizado por trajetórias, por
constantes metamorfoses e alterações que, por sua vez, estão envolvidas num contexto,
do qual não pode ser desvinculado149. Tal como afirma Levi, qualquer que seja a sua
originalidade aparente, uma vida não pode ser compreendida unicamente através de seus
desvios e singularidades, mas, ao contrário, mostrando e que cada desvio aparente em
relação às normas ocorre em um contexto histórico que o justifica.
No tocante aos estudos de imprensa Tânia Regina de Luca150 (2005) pondera que
jornais e revistas não são, no mais das vezes, obras solitárias, mas empreendimentos que
reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna projetos coletivos, que agregam
pessoas em torno de ideias, crenças e valores que se pretende difundir a partir da palavra
escrita. Assim, é também instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na
vida social. Deduz-se que, de uma forma geral, para a triagem do que seria divulgado na
Folha do Norte, levavam-se em consideração as relações profissionais e particulares e
as afinidades político-ideológicas entre colaboradores e diretores. As decisões a
propósito do que publicar, da natureza dos conteúdos, da ordem a ser estabelecida na
disposição das notícias no papel, passavam sempre pelo crivo das ideias políticas
comungadas pelo grupo que produzia o hebdomadário. Toda organização gráfica e a
linguagem utilizada estavam relacionados à linha ideológica praticada pelo jornal. E
tudo isso era pensado, inclusive, supondo-se o público possível.

149
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In. FERREIRA, Marieta de M. e AMADO, Janaína. (Orgs.) Usos e
Abusos da História Oral, 8ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2006. Pág: 189.
150
LUCA, Tania Regina de. Historia, dos, nos e por meio dos periódicos. In: Fontes Históricas. Rio de
Janeiro: Contexto, 2005.
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ARNOLD, ENTRE TINTEIROS...


Feira de Santana vivia um processo lento de urbanização151, em fins do século XIX
e principalmente nas primeiras décadas do século XX, a paisagem rural era ainda
marcante, a cidade pequena carecia de uma infraestrutura urbana básica, mais eficiente,
que pudesse atender as necessidades de toda população. Fazendas e pequenas povoações
cercavam este território bem como os vaqueiros e as feiras que se confundiam em um
som pluralmente tão singular, formando uma civilização do pastoreio. Assim como a
massa populacional que possuía parca instrução, quando não analfabeta, este juvenil
aspirante a intelectual, que não cursou ensino superior inicia seu caminho pela escrita
como secretário do jornal “Folha do Norte”152 , no momento de sua fundação em 1909.
Com a morte de Tito Ruy Bacelar , em 1910, o semanário se tornou propriedade
dos irmãos Arnold, Dálvaro e Raul Silva, sendo que o caçula destes – o jovem Arnold -
com o pseudônimo de Gil Moncorvo começa a escrever notas sociais e policiais. Com o
tinteiro sobre a mesa, escreve quatro crônicas nominadas de Effigies (todas no ano de
1912), e nelas descreve a si enquanto hábil comerciante, eloquente e um pseudo
revolucionário político :
É de ver a loquacidade com que, no balcão, prova a superioridade
do artigo, o desejo de bem servir ao freguez153 lucrando quase
nada. Fala, discute, compara, convence.
Às vezes, entretanto, desvia o olhar das vitrinas, das fazendas,das
fitas e vara a alta região política.
Vê, então, tanta lepra a corroer caracteres, tanta miséria e tanta
deshonra que se revolta e que se exalta ... : “ si eu fora um soldado
com o exercito revollucionaria isto!
Uma revolução fragorosa elle teria, entretanto si podesse. E, á
acção terrifica do seu poder, o mundo todo, um dia, despertaria
surpreso, attonito ante guerridas hostes conduzindo berrantes
estandartes de guerra, e runfos tonitroantes de tambores, e violento
clangorar de clarins, tudo gritando a “superioridade dos seus artigos
de negocio “ o seu “ desejo de bem servir ao freguez”. Sim. Porque

151
Ver SILVA, Aldo José Morais. Natureza Sã, Civilidade e Comércio em Feira de Santana. Elementos para
o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia (1833-1927).Dissertação de Mestrado,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, 2000.
152
Este jornal tinha como proprietário Tito Ruy Bacelar ex-intendente de Feira de Santana. Conforme o
memorialista Gastão Sampaio, este seria padrinho de Arnold Silva.
153
As passagens referentes as crônicas são com o português arcaico de Portugal.
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esta Effigie é, antes de tudo, dum negociante intelligente, que


comprehende a propaganda como alma do negócio.154

Em suas primeiras produções, este escritor apresenta intimidade com as letras,


carisma e habilidades como negociador, virtudes que no futuro lhes serão úteis enquanto
gestor da urbe feirense. A criticidade utilizando a ironia como recurso de linguagem
também fazia parte de sua escrita ao comentar em outra coluna Bric-á-Brac, publicada
apenas em algumas edições durante o ano de 1914, assuntos políticos, culturais,
religiosos, de repercussão local e também internacional:

Retribuindo, pela imprensa, votos de boas-festas aos seus amigos e


conterrâneos o exmo.Sr.Dr. Governador do Estado155 julgou
conveniente declarar que, no balanço de seus haveres
particulares,acaba de verificar, após dois annos de governo, um
saldo de oitenta e tantos mil reis. Depois disto já se não pode
contestar a influencia preponderante da cinematographia na
sociedade actual156.

A doutrina de Monroe é elástica. Mas o diabo é que, si a


poucharem muito, a droga é capaz de rebentar157

Mesmo com limitações na sua formação escolar básica, Arnold demonstrava certa
proximidade com intelectuais franceses, algo que para a sociedade do período
demonstrava grande conhecimento, pois eram poucos aqueles que possuíam acesso a tal
literatura e raros os que reproduziam este tipo de conteúdo em artigos jornalísticos,
como foi o caso deste pensamento utilizado ao final da coluna citada anteriormente: “O
trabalho intellectual é o melhor remedio contra os desgostos da vida; não ha magoa que
não se acalme com uma hora de leitura, Montesquieu”158
A partir de 1918, Arnold começa a escrever alguns editoriais para o jornal do
qual ele se tornaria proprietário no ano de 1922. Nesse contexto os ideais de
modernização difundidos pelos republicanos estão em voga na América, inclusive no
Brasil, sendo que sobre este Rinaldo Leite (1996) ressalva que as elites aspiravam ao
modelo urbano da cidade europeia, numa tentativa de moldar os padrões tanto estéticos

154
Folha do Norte, 24/08/1912. n°133, p. 02
155
O Governador citado é José Joaquim Seabra.
156
Folha do Norte, 10/01/1914, n°204, p. 01.
157
Folha do Norte, 24/01/1914, n°206, p. 01.
158
Idem
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quanto comportamentais da população, tentando apagar ou excluir o que não convinha


com tais ideais e pudesse romper com cenas de civilidade no cenário social. Por isso a
busca e desejo159 por mudanças na cidade não é apenas material, mas também nas
relações de sociabilidade. Notam-se esses valores no editorial denominado: “ Curraes
aos bois” :
Deixando de parte água, luz e esgottos, os três problemas
essenciaes da remodelação material da cidade, - e dizemos
remodelação material porque tambem pedem estudo problemas
de remodelação moral e intellectual- na urbe que se modernisa e
corrige, há muito ainda por fazer. Um novo carcere é obra
inadiavel. Impõe-se. Não devemos por mais tempo offerecer ás
vistas dos nossos visitantes, como o matadouro da praça Dr.
Remedios Monteiro, tão deploravel attestado da pessima
comprehensão que temos dos deveres da solidariedade
humana.E não somente um novo carcere. A Feira deve a maior
parte da sua prosperidade ao boi, - “o boi, o rijo operario, esse
animal antigo, que faz florir a vinha e faz nascer o trigo “- como
lá disse o poeta160.

Arnold Silva era um intelectual que possuía profundo interesse pela preservação
das memórias do passado de Feira de Santana. Silva lançou na Folha do Norte a coluna
“Vida feirense” que, segundo Ana Angélica Morais (1998: 12), existiu de 1923 a 1952,
lembrando também que, a princípio, a coluna se chamava “Crônica feirense” e que
Arnold Silva a assinava com o pseudônimo de Gil Moncorvo. Nessa seção do jornal ele
organizou registros sobre a história da cidade, anotando eventos e datas que marcaram a
trajetória histórica feirense. Apresentou dados aos quais teve acesso principalmente em
arquivos de Feira de Santana e de Salvador. Sobre esta coluna, Morais afirma que:

Arnold Silva foi, no jornal, além de fundador, diretor durante


muitos anos (1923-1952), jornalista e escritor de crônicas e contos.
Durante esse período, escreveu cerca de 250 crônicas-relatos,
publicadas semanalmente. Ele dedicou uma boa parte de sua vida
(três décadas) à pesquisa sobre o município e a cidade de Feira de
Santana, visitando, cotidianamente, os arquivos públicos e
particulares, as bibliotecas municipal e nacional, os grêmios

159
Ver: OLIVEIRA. Ana Maria Carvalho dos Santos. Feira de Santana em tempos de modernidade:
olhares, imagens e práticas do cotidiano. (1950-1960). Recife: UFPE, 2008. Pág: 45 e 46. A
professora Ana Maria Carvalho apresenta a preocupação das autoridades na mudança da condição de
Feira de Santana , enquanto cidade de bases agrárias para uma urbe civilizada.
160
Folha do Norte, 11/05/1918. p.1
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literários, as filarmônicas, cartórios, batistérios e demais órgãos


públicos de Feira de Santana e de outras capitais. Além dessa
coluna, ele também escrevia editoriais e contos (MORAIS, 1998,
P.34).

... ARTES
O envolvimento de Arnold em outros segmentos artístico-culturais evidenciou-
se muito antes do seu ingresso na vida política, principalmente através de Grupos
Lítero-Dramático. Segundo Aline Aguiar Santos (2012:72) estes, através de atividades
diversas (recitais de poesias, saraus, conferências e apresentações dramatúrgicas),
assumiam uma ação pedagógica, seja pelo uso “das belas letras” ou “pela arte
dramática”, além de proporcionarem momentos de descontração e a difusão de uma
perspectiva cultural, promoviam a difusão de hábitos e costumes contribuindo para
afirmar os valores progressistas, morais e civilistas em Feira de Santana. Nos encontros,
faziam recitais de poesias, também chamados de “a hora literária”, palestras, concursos
de poesias e, de vez em quando, algumas encenações teatrais. Geralmente os conteúdos
dessas ações culturais giravam em torno de temáticas sobre a moralidade, o civismo, a
cidadania, a civilidade e o progresso importantes para o momento de tentativas de
transformação urbana vividas por Feira de Santana. O jornal Folha do Norte traz a
participação de Arnold nesse grupo:

Os sabbados do” Gremio Rio Branco”


Reorganisou-se, reabriu suas salas e está em pleno
desenvolvimento o “Gremio Rio Branco”, excellente ponto de
reunião proveitosa e utilissimo centro de instrucção, que alguns
conterraneos nossos offerecem á mocidade feirense.Mantendo
uma pequena e escolhida bibliotheca, sustentando cursos de
inglez, francez, portuguez, arithmetica, geographia e historia, o
Rio Branco abriu, entre os intellectuaes da terra, uma serie de
conferencias e palestras sobre assumptos varios.
No proximo sabbado é provavel que o nosso companheiro de
redacção Arnold Silva relate cousas da Feira (suas datas, seus
pro- homens, sua imprensa).161

161
Folha do Norte 21/12/1918, n°455.
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Outro grupo Lítero-Dramático que ganhou destaque nesse período foi o Taborda,
segundo Maria Izabel Sampaio (2000:46) foi o que mais tempo atuou na cidade,
desenvolvendo suas atividades desde 1906 até 1934. O Taborda, por sua vez, era um grupo
dramático amador, assim como o Grêmio Rio Branco, composto por pessoas notáveis da
elite feirense, realizando suas reuniões no Cine-Teatro Santana, no qual também encenavam
vários espetáculos. O jornal Folha da Feira dá destaque a homenagens feitas pelo grupo ao
então deputado constituinte, revelando a participação deste membro do parlamento no
grupo:

Gremio Taborda

Será realizado definitivamente no proximo dia 17 do corrente, o


grande festival dramatico do applaudido Gremio Taborda, desta
cidade, sendo enscenado, a rigor, o drama intitulado O FILHO DO
ADULTÉRIO, e a interessante revista de costumes regionaes, “
NOITE DE SÃO JOÃO” ou “ MORENA FLOR DO
SERTÃO”.Esse festival que será em homenagem ao insigne
deputado feirense Arnold Silva, ex-elemento de valor desse gremio,
promette o maximo esplendor possivel162.

Todos esses grupos atuavam com o intento de promover o desenvolvimento


sociocultural da urbe, defendendo o ideal de civilização e progresso, pois era necessário
reeducar os costumes e modelar os hábitos na tentativa de forjar uma identidade que se
aproximasse da urbanidade, em contraposição às características provincianas rurais,
pelo menos era o que almejava parte da elite de Feira de Santana.
Arnold Silva também se envolveu com a musicalidade local já que exerceu as
funções de presidente das filarmônicas: Euterpe Feirense (1927) e a 25 de Março, além
de orador oficial desta, propagandeando-a e evidenciando os seus problemas em seu
periódico163. Essas instituições sociais (sinônimos de poder e/ou status) eram locus de
relações sócio/politicas, por meio de atividades socioculturais foram expandidos os
propósitos políticos dos grupos dirigentes da cidade e se articulavam com outras várias
instituições. Podemos perceber indícios de que as instituições dialogavam entre si e que
Arnold teve participação na maioria delas através da:

162
Folha da Feira 08/10/1934, n°313, p. 04
163
Folha do Norte, 06/10/1923, p.1 – Crônica Feirense – “A Sociedade 25 de Março festeja a
reorganização de sua banda musical, dissolvida, nove meses antes, por medida de caráter disciplinar”
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Acta da sessão do conselho administrativo da sociedade monte


pio dus artistas feirenses em 25/07/1919.
Presidencia do Sr. Arnold Silva
O expediente constam do seguinte: officio do secretario do
Gremio Rio Branco, desta cide convidando a direcção desta
sociedade para a sessão de posse da nova directoria do referido
gremio; officio da secretaria do apostolado da oração; circular
do primeiro congresso dos trabalhadores bahianos; officio da
secretaria Soc. Phil. 25 de março – convite para a sessão de
posse de sua nova directoria.164

E PALANQUES.
A condição de jornalista e dono de um dos veículos de informação mais
importante da urbe nas primeiras décadas do século XX privilegiou a imagem de Arnold
Silva, mas o fato de ter se casado duas vezes com as filhas do coronel Bernardino da
Silva Bahia, e deste veículo atender a interesses da classe dominante e do governo
projetou-o ainda mais para a vida política, sucedendo assim seu sogro na chefia do
executivo municipal, logo após o segundo mandato (1959-1962). Na condição de
político comungou com as mudanças e ideais de modernidade vividos pelo Brasil e não
de forma diferente por Feira de Santana, representado por uma série de obras de
infraestrutura, ações administrativas e que tiveram como marco a inauguração do prédio do
Paço Municipal, em 1926, conforme ele mesmo relataria em um discurso baseado nas suas
primeiras gestões na intendência de Feira de Santana:

Se nada fez de útil, meu governo, pelos menos concorreu para que
Feira obtivesse esses três poderosos elementos de vida, de
progresso, de civilização: - posto de profilaxia rural, luz elétrica,
Escola Normal; pelo
menos promoveu e manteve uma política de congraçamento, de
tolerância e de paz; pelo menos se traçou normas de severa
honestidade em todos os departamento da administração; pelo
menos defendeu na medida de suas forças,a integridade territorial
do município; pelo menos conservou e aumentou a quilometragem
das estradas de automóveis; pelo menos regularizou e melhorou o
principal comércio da terra, instalando uma balança, a maior do
Estado e uma das maiores do país, para pesagem do gado vivo;
pelo menos pagou em dia a todos os funcionários, atendeu em dia a
todos os compromissos da comuna; pelo menos elevou a receita
média do município; pelo menos não transmite encargos não lega
dívida, não arrola credores, deixando a Feira livre, desembaraçada,

164
Livro n°02 de ata do conselho administrativo da sociedade Montepio dos artistas feirenses, p. 85.
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financeiramente independente; pelo menos concluiu, mobiliou e


inaugurou a nova sede do governo local, porventura melhor, a mais
bela e mais suntuosa das sedes de governos comunais da Bahia.165

Conforme o próprio candidato afirma em sua explanação e corroborado por Kleber


Simões (2007: 55), o prédio inaugurado atendia a padrões arquitetônicos arrojados para
o período e serviu às autoridades e à sociedade feirense, como símbolo inequívoco da
entrada da “Princesa do Sertão” nos salões da modernidade. Tamanha é a força
simbólica deste edifício para a construção de uma representação da Feira progressista,
que virou referência para aferir o grau da urbanidade que a cidade atingiu. Arnold,
herdando os princípios da ação política do coronel Bernardino Bahia, assim como
participação na criação e comércio de gado da família, firmando-se como um ator
político também de forte influência na cidade, chamado igualmente de coronel,
carregando o atributo da continuidade da política do seu sogro e ao começar sua carreira
política em 1924 iniciou também a construção da chefia de um grupo político ligado ao
Partido Republicano da Bahia. Notícias e ilações que seu próprio periódico expôs:

[...] Discípulo de Bernardino Bahia, sucedeu-lhe nos comércios


públicos e comerciais. De uma figura inteligente e pobre,
tornou-se um ―business man‖ do nosso interior, com o mais
acertado conhecimento de pecuária e negócios locais que se
possa imaginar. Não fez conhecidos, fez prosélitos amigos.166

Esse homem, também de negócios, criou na cidade de Feira de Santana,


conforme Kelman Conceição (2012), em 1º de maio de 1927 o Banco de Crédito
Agrícola Popular. Uma cooperativa de crédito popular e agrícola, de responsabilidade
limitada e forma anônima, nos termos do Decreto n. 1637 de 5 de janeiro de 1907, com
sede na Rua Bernardino Bahia, número 2. Tinha em seu corpo diretivo além de Arnold
Ferreira da Silva, Carlos Rubinos da Silva Bahia (cunhado de Arnold Silva e filho de
Bernardino da Silva Bahia) e Eduardo Fróes da Motta, membros dos setores dirigentes
na cidade e ligados às atividades comerciais de grande vulto. A iniciativa da instalação
de um banco de crédito na cidade ou mesmo de uma sociedade de agricultura, nos
mostra que esse grupo dominante, estava inserido no contexto de expansão do

165
Discurso feito com o objetivo de alavancar sua campanha eleitoral nos anos 50, reproduzido na
Folha do Norte de 09/08/1958, p,01.
166
Folha do Norte, 01/01/1944. Nº 1799, p.1.
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capitalismo, e buscava aparentemente criar condições favoráveis a seus negócios e


manter a ordem material da cidade. Os indícios de seu funcionamento são de até meados
da década de 1930. Na Folha do Norte, o banco divulgava-se como um instituto que:

[...] recebe dinheiros tanto de sócios como de estranhos e abona juros em


conta corrente imitada, em conta-corrente de movimento e em depósitos a
prazo fixo. Faz empréstimos, descontos, hipotecas, cobranças e todas as
transações peculiares aos institutos de crédito popular, cujo fim geral é
operar mediante uma taxa módica, aproximando, em colaboração direta,
os que dispõem de economias e os que delas carecem para o
desenvolvimento do trabalho honesto. 167

Além de vereador e presidente do conselho municipal (1928 a 1930) um dos


órgãos mais importantes da administração local, responsável pelas finanças e
viabilização da execução de importantes obras e ações públicas, Arnold destacou-se
também como deputado constituinte, e nesse momento já gozava de muito prestígio
junto à comuna feirense, como relata a Folha da Feira:

Homenagem da Feira ao deputado Arnold Silva

Vêm de há muitos mezes, a porfia ,as apreciações tracejadas sem


apparato de fascinação, destituídos de adjectivos pomposos porem
cheias de expressões sinceras, em torno do illustre conterraneo Arnold
Silva, nome feito nos prelios da imprensa, á mercê de sua dedicação,
ás lides da política pela sua disciplina, á justa do commercio pela sua
operosidade e inteligência, e, neste momento, elevado ás cumiadas da
representação da Bahia , na Assembleia Nacional, a installar-se a 15
do corrente, na capital da Republica168.

Um importante aliado de Arnold Silva durante a velha república fora Eduardo


Fróes da Motta, no entanto, apresentaram-se em lados adversários após o golpe do
Estado Novo. Segmentos políticos em Feira de Santana dividiram-se entre os que
apoiavam Vargas, sob a liderança de Eduardo Fróes da Motta, que permaneceu a favor
do regime varguista, e os que foram contra Getúlio Vargas, sob a liderança de Arnold
Silva. Líderes como Arnold Silva, que ocupava o cargo de deputado estadual pelo PSD
na época do golpe, perdeu seu mandato (1937) e ficou sem ocupar um cargo político,

167
Folha do Norte, 08/10/1927.
168
Folha da Feira 06/11/1933. n°266, p. 01.
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sem, contudo deixar a política partidária. Segundo SILVA (2012: 118) em 31 de janeiro
de 1941, ele mudou-se para Salvador, onde residiu durante um tempo, para administrar
a Empresa de Carnes Verdes da Bahia, que sucedeu à Empresa Amado Bahia S. A.
Juntamente com Arnold Silva, estiveram João Martins da Silva e João Marinho Falcão,
todos na posição de sócios-gerentes.
Através do semanário Folha do Norte, Arnold Silva, continuou no jogo político
marcando suas posições e escrevendo sobre o cotidiano, a história e a memória da
cidade, caracterizando desta forma uma segunda fase de sua intelectualidade só que a
serviço da política, mais tarde partidária, anti-varguista e udenista. A Princesa do Sertão
passava nesse momento da década de 1940 por uma fase de transição entre o rural e o
moderno, conforme afirma o poeta e intelectual Eurico Alves:
Até a quarta década de século metamorfoseava-se a velha cidade
provinciana, em lenta sugestão de capital minúscula. Em 1940, daí
para frente, todavia, operou-se repentina transformação aqui na
vida urbana. Como seguro petardo de progresso da noite para o dia,
o comércio sacudiu a cidade (...). O tempo mudou as fácies de
minha cidade. (BOAVENTURA, 2006, p.47).

Em 1945, a pedido do coronel Juracy Magalhães , Arnold retorna a vida política


partidária em campanha a deputado federal e a favor da candidatura de Eduardo Gomes
para Presidente da República, fazendo parte da comissão do comitê instalado em Feira
de Santana, não conseguindo êxito no pleito eleitoral. Paralelamente a este retorno
político, o intelectual feirense continua a dar ênfase na coluna da vida feirense aos
acontecimentos que marcaram não apenas o passado, mas aos fatos que marcavam uma
era de progresso no centro nervoso da vida urbana e o fervilhar de suas atividades
econômicas, políticas e culturais, o nascimento de um novo momento social, conforme
segue a nota: “Inaugura-se nesta cidade o Cine-teatro Iris e assenta-se a primeira pedra
do novo edifficio da Sociedade Filarmonica Euterpe Feirense.169”
A imagem de Arnold enquanto importante político feirense, consolidada
principalmente nas décadas de 40 e 50 do século XX, foi construída a partir de sua ação
nos diversos segmentos da cultura e arte local, principalmente com atuação enquanto
rábula na Comarca de Feira de Santana, haja vista que, para atuar enquanto defensor no
período inicial da república, era necessário ser considerado pela sociedade a que

169
Folha do Norte, 02/04/1949, n °2073, p.01.
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pertencesse,uma pessoa idônea e ter pleno conhecimento da legislação em vigor. O


jornal Folha do Norte relata em uma coluna denominada “Tribunal do Pequeno Jury”, a
atuação de Silva como defensor de dois casos de pessoas pobres:
Julgou-se, em primeiro logar, o réo preso Firmino Fellipe de
Carvalho, accusado de haver, há seis mezes, no districto desta
cidade, ferido com uma enxada a Maria Ignez e por tal
pronunciado no art. 303 do Cód. Penal. Defendido pelo nosso
companheiro de redação Arnold Silva foi unanimemente
absolvido. Em seguida passou a ser julgado o réo afiançado,
João Maia Sobrinho, pronunciado no mesmo artigo do Cód.
Penal por ter, há mezes, no districto de Santa Barbara, devido a
questões de amores, ferido a João Ribeiro Nunes.
Tendo o réo apenas 19 anos o juiz nomeou-lhe curador o Sr.
Arnold Silva, que obteve do Jury a absolvição do criminoso por
3 votos contra 1.170

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos iniciar uma análise da ação e atuação desse sujeito não só no âmbito
político como também no âmbito econômico, e principalmente social e cultural (as suas
relações com instituições tais como filarmônicas, Santa Casa de Misericórdia e
montepio) pois, conforme Anderson dos Santos (2009), para os homens de elite “as
filarmônicas, e demais associações locais mostravam-se como termômetros de seu
prestigio e de sua popularidade” são peças importantes para compreender as
especificidades dos sujeitos políticos e perceber suas relações com a sociedade.
Os relatos dos memorialistas nos tem propiciado uma visão do período
estudado, apresentando as suas impressões e suas representações da sociedade em
que viveram. Eurico Alves Boaventura, por exemplo, escreveu muitos poemas, artigos
compilados vários deles na obra A paisagem urbana e o Homem: Memória de Feira de
Santana, que nos tem permitido um olhar sobre o cotidiano de Feira de Santana no
período proposto. Sua visão dessa cidade era marcada pela nostalgia e pelo
saudosismo de um lugar já transformado em virtude da urbanização que havia

170
Folha do Norte, 26/10/1918, nº 447, p.2. Podendo ser encontrado o Processo-crime no Centro de
Documentação (CEDOC) da Universidade Estadual de Feira de Santana: estante 02, caixa 34, documento
582.
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destruído as principais características da cidade, como a feira local e a importância do


vaqueiro como elemento do município.
Ao utilizar o periódico jornal Folha do Norte (1912/1952), o único a ter
exemplares seriados desde 1909, período de sua fundação e, por pertencer ao grupo
familiar/político do nosso objeto de estudo é o locus por excelência dos registros
intelectuais (principalmente as crônicas e editoriais) de quem nos debruçamos. Estas são
importantes para a pesquisa porque apresentam a sua percepção sobre as mudanças
sociais ocorridas no espaço em questão, bem como inicialmente tem evidenciado
interesses, negociações, relações de força, motivações pessoais ou coletivas na
construção dos diversos segmentos da política, cultura, arte e filantropia da cidade de
Feira de Santana.
Aparentemente ao nos depararmos com a figura de Arnold Silva, nos é
passada uma primeira impressão de que se tratando de um coronel do sertão/agreste
nordestino, tendo o ápice de sua força política na república velha, fosse alguém rude,
patriarcal, violento ou “coisa que o valha”, mas no diálogo com as fontes percebemos
que sua identidade não é fixada nesse modelo estanque e engessado de líder político,
que o trato com as letras não é um detalhe mínimo nas relações de poder, e que a
multiplicidade de papeis e diversidade de produções construídas por ele conforme o
contexto sociopolítico em que estava inserido, mostra-nos a fluidez de sua identidade.
Esse intelectual de direita, um homem das artes e letras, político com interesses
capitalistas, escreveu um capítulo longo na história da Feira de Santana, composto por
muitas interrogações que no decorrer da pesquisa buscaremos responder entre os
tinteiros e palanques, ou ao menos na arte da escrita por um ponto de segmento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In. FERREIRA, Marieta de M. e AMADO, Janaína.


(Orgs.) Usos e Abusos da História Oral, 8ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2006.
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BOAVENTURA, Eurico Alves. A paisagem urbana e o Homem: Memória de Feira de


Santana. Organizado por Maria Eugenia Boaventura: UEFS, 2006.
LUCA, Tania Regina de. Historia, dos, nos e por meio dos periódicos. In: Fontes
Históricas. Rio de Janeiro: Contexto, 2005.
MORAIS, Ana Angelica Vergner de. Sant’Anna dos Olhos D’Água: resgate da
Memória cultural e literária de Feira de Santana (1890-1930). UFBA, 1998.
(Dissertação de Mestrado)

OLIVEIRA. Ana Maria Carvalho dos Santos. Feira de Santana em tempos de


modernidade: olhares, imagens e práticas do cotidiano. (1950-1960). Recife: UFPE,
2008.

LEITE, Rinaldo. E a Bahia civiliza-se: ideais de civilização e cenas da anti-civilidade


em um contexto de modernização urbana, Salvador, 1912-1916. Salvador: dissertação
de mestrado: UFBA.
Santos, Aline Aguiar Cerqueira dos. Diversões e civilidade na “Princesa do Sertão”
(1919-1946). Dissertação (Mestrado em História)– Universidade Estadual de Feira de
Santana, Programa de Pós-Graduação em História, 2012.

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(1892-1912). Monografia de especialização em Teoria e Metodologia da História. Feira
de Santana:UEFS, 2000.

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Palacetes: o cotidiano das filarmônicas de Santo Amaro da Purificação – Bahia (1898-
1932). Feira de Santana, UEFS, 2009.

Simões, Kleber José Fonseca. Os homens da Princesa do Sertão: modernidade e


identidade masculina em Feira de Santana (1918-1928) Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2007.

SILVA, Kelman Conceição. QUEM MANDA NA FEIRA? Política, classe e rearranjos


de poder em Feira de Santana na Era Vargas (1930 – 1945). Dissertação de mestrado.
Programa de Pós Graduação em História Regional e Local – Uneb – Santo Antônio de
Jesus, 2012.

SILVA, Aldo José Morais. Natureza Sã, Civilidade e Comércio em Feira de Santana.
Elementos para o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia
(1833-1927).Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia, 2000.
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NOS ACORDES DA LEGIÃO: JUVENTUDE, POLÍTICA E URBANIDADES


(ANOS 1980)

Raimundo Nonato Lima dos Santos


Universidade Federal do Piauí – UFPI / Mestre em História do Brasil – UFPI
raimundolima2011@ufpi.edu.br / robsonlim@ig.com.br

Renato Russo e a Legião Urbana


Renato Russo morreu no dia 11 de outubro de 1996, à 1h: 15min., sozinho, no
seu apartamento na rua Nascimento Silva, no bairro Ipanema, zona sul do Rio de
Janeiro, por problemas decorrentes do vírus HIV. Tinha Aids desde 1990 e, ao contrário
de Cazuza, nunca admitiu publicamente ser portador dessa doença. No entanto, no seu
último disco – A Tempestade – traduziu poeticamente a sua dor, especialmente na letra
da música “A via láctea” (CONVERSAÇÕES, 1996; DAPIEVE, 2006).
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Todos os grandes jornais do Brasil se mobilizaram para produzir matérias sobre


a vida e morte desse cantor de rock. O telejornal de maior audiência do Brasil – Jornal
Nacional, da TV Globo – reservou metade de sua programação à trajetória artística
desse roqueiro. Houve até uma polêmica na redação desse telejornal, se valia ou não a
pena reservar tanto tempo da programação a um cantor. A decisão foi tomada pela alta
hierarquia da TV Globo. Com a aprovação do diretor de Jornalismo da emissora,
Evandro Carlos de Andrade, o editor-chefe Mario Marona decidiu que se produzisse
uma grande matéria sobre Renato Russo e a Legião Urbana e, ele próprio, pesquisou
imagens de arquivo para ilustrar essa trajetória artística (DAPIEVE, 2006).
A polêmica na redação do Jornal Nacional teria sido iniciada por Lilian Witte
Fibe, que fazia par com William Bonner na apresentação desse telejornal. Ao que
parece essa jornalista não gostava do estilo musical desse recém-defunto e, por isso,
desconhecia a importância deste, para o cenário musical brasileiro. Além da decisão já
tomada pelo alto escalão da TV Globo o que pesou na reserva de metade de tempo desse
jornal televisivo foi a expressiva discografia da legião Urbana e os altos números que a
acompanhavam171.
A banda de rock Legião Urbana que tocava para meia dúzia de pessoas, no início
de sua formação em Brasília em 1982, passou para a marca de um público de 60 mil
pessoas, num único show. Como o ocorrido na Casa de Shows Jockey Club Brasileiro,
na Gávea, no Rio de Janeiro, no mesmo dia da morte de Cazuza, por complicações
decorrentes da Aids, no dia sete de julho de 1990 (DAPIEVE, 2006).
Em meio a todos esses números não havia como negar a importância de Renato
Russo e da Legião Urbana para o cenário musical brasileiro. Ele foi considerado um
guru (mesmo contra sua vontade), o maior interprete da juventude brasileira das décadas
de 1980 e 1990. Era um mito vivo. E, após sua morte, sua legião de fãs continuou lhe
rendendo “honras e glórias”. Essa “fé” em Renato Russo e na Legião Urbana se
perpetuou e continua viva com as novas gerações. Fato corroborado pelos inúmeros
eventos/shows que acontecem todo ano, em todo o Brasil, comemorando o seu

171
“A expressiva discografia do Legião Urbana inclui: Legião Urbana (1984), 550 mil cópias; Dois (1986), 1,1
milhão de cópias; Que país é este (1987), 770 mil cópias; As quatro estações (1989), 1,1 milhão de cópias; V (1991),
465 mil cópias; Música para acampamento (1992), 270 mil cópias; O descobrimento do Brasil (1993), 430 mil
cópias; Por enquanto (uma retrospectiva, em seis CDs), 20 mil cópias; A tempestade ou O livro dos dias (1996), 400
mil cópias. Renato gravou ainda dois trabalhos solo: The Stonewall celebration concert (1993), cantado em inglês,
que vendeu 200 mil cópias; e Equilíbrio distante (1995), interpretado em italiano, 550 mil cópias”. (grifos do autor)
(CONVERSAÇÕES, 1996, p. 11).
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aniversário em 27 de março e, lembrando-se de sua morte em 11 de outubro. Sem falar


da expressiva discografia póstuma172 que é consumida religiosamente pelos antigos (que
foram contemporâneos a Renato Russo) e novos fãs (que só conheceram Renato e a
Legião Urbana por meio de uma memória herdada [POLLACK, 1992] de seus pais,
amigos mais velhos, além de discos e vídeos173).
Renato Manfredini Júnior nasceu no dia 27 de março de 1960, às 4 horas da
manhã, na clínica Santa Lúcia, bairro Humaitá, no Rio de Janeiro. Era filho do
paranaense e economista do Banco do Brasil, Renato Manfredini e da pernambucana
Maria do Carmo Manfredini, uma professora de inglês. Em 1962 nasceu sua irmã
Carmem Teresa. A família Manfredini – oriunda de Sesto Cremonese, perto de Milão,
norte da Itália – morava numa casa avarandada na rua Maraú, bairro Bananal, Ilha do
Governador (DAPIEVE, 2006).
Os Manfredini eram uma típica família de classe média urbana – num país ainda
predominantemente rural e com altos índices de pobreza – que tentava sobreviver em
meio ao excêntrico e meteórico governo de Jânio Quadros (ele governou o Brasil por
apenas seis meses, de janeiro a agosto de 1961) e ao conturbado mandato de João
Goulart. A infância de Renato Manfredini Júnior se deu na tempestuosa década de 1960,
com a crise da Democracia, o golpe militar em 1964 e a implantação de uma ditadura
civil-militar que perdurou até o ano de 1985.
No período mais tenso da ditadura civil-militar – com a implantação do Ato
Institucional nº 5 (AI-5) em 1968 que dava plenos poderes ao presidente, como fechar o
Congresso Nacional, ampliar a censura e perseguir, sem restrições, todos os opositores
do governo; com a intensificação da oposição ao regime militar, a partir de 1969, por

172
Foram lançados oito discos póstumos: Uma outra estação, gravado de janeiro a junho de 1996 concomitante às
gravações do CD A Tempestade (julho de 1997); O último solo, terceiro disco solo, póstumo (novembro de 1997);
Mais do mesmo, antologia com 16 músicas (março de 1998); Acústico MTV (gravado em janeiro de 1992, mas só
lançado em outubro de 1999); Renato Russo (antologia da série Bis – junho de 2000); Como é que se diz eu te amo
(álbum duplo ao vivo – março de 2001); Presente (“com Renato Russo e convidados, em gravações de variadas
épocas” e também com superposições posteriores. Inclui o áudio de três entrevistas – março de 2003); As quatro
estações ao vivo (“gravado no Palestra Itália, estádio do Palmeiras, em São Paulo, nos dias 10 e 11 de agosto de 1990,
exceto a faixa “Se fiquei esperando o meu amor passar”, gravada no Mineirinho, em Belo Horizonte, no mesmo mês.
Lançado em duas versões, uma simples, outra dupla, em março de 2004”) (DAPIEVE, 2006, p. 176-179).
173
Além de matérias jornalísticas que constantemente são exibidas na TV temos conhecimento de cinco grandes
produções audiovisuais que contam a trajetória de Renato Russo e da Legião Urbana: o programa especial Por toda
minha vida/ Renato Russo da TV Globo (2007); o programa especial da TV Globo Legião Urbana e Paralamas do
Sucesso juntos (exibido em 1988 e lançado em DVD e CD em 2009); o Concerto Sinfônico Legião Urbana ao vivo,
gravado no Rock in Rio, produzido por MZA Music, Artplan e TV Globo (2011); o filme Faroeste caboclo de René
Sampaio, inspirado na música homônima de Renato Russo, produzido pela Europa filmes (2013) e o filme Somos tão
jovens de Antonio Carlos da Fontoura, produzido pela 20th Century Fox (2013).
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meio da formação de grupos armados como Vanguarda Armada Revolucionária –


Palmares (VAR-Palmares), Aliança Libertadora Nacional (ALN) e o Comando de
Libertação Nacional (COLINA) (SKIDMORE, 1998) – o pai de Renato Júnior saiu do
Brasil para fazer um curso nos Estados Unidos. Assim, a família Manfredini passou
uma temporada, de 1967 a 1969, em Nova York. Período importante para dona Maria
do Carmo, professora de inglês, e para seus dois filhos, Renato e Carmem Teresa, que
estavam em idade de alfabetização. De volta ao Rio de Janeiro Renato Júnior prossegue
seus estudos na filial da Cultura Inglesa. Quando os Manfredini se mudaram para
Brasília em 1973, Renato passou de aluno a professor da Cultura Inglesa. A
desenvoltura na língua dos Beatles e de Elvis Presley levou o professor Renato de
apenas 17 anos a ser escolhido para discursar para o príncipe Charles, da Inglaterra, em
sua visita oficial ao Brasil, em 1978 (DAPIEVE, 2006).
Renato morou em Brasília de 1973 a 1984 na Super Quadra Sul 303. Na capital
federal se formou em Jornalismo (passou no Vestibular de Comunicação do Ceub
[Centro de Ensino Universitário de Brasília] em 1977), foi repórter, locutor de rádio
(1983) e lecionou inglês na Cultura Inglesa. Numa entrevista à jornalista Sônia Maia, da
revista Bizz, especializada em Rock, em abril de 1989 Renato Russo comentou a sua
efêmera e traumática experiência como locutor de rádio em 1983. Perguntado se tinha
oportunidade de colocar no ar suas músicas preferidas, ele foi enfático ao responder que
Nunca!!! Eles me despediram. Era hipertriper careta, um emprego mesmo.
[...] O primeiro bloco que eu fiz era sobre os filmes dos Beatles. Então
começava com “Hard Day’s Night”, depois “Help”... mas eles não deixaram.
E aí eu fui despedido. Acho até que nem foi por causa disso. É que eu era
meio rebelde, ficava dando muitas sugestões, mudava as listas – eu ia até a
discoteca e trocava tudo! (CONVERSAÇÕES, 1996, p. 106-107).

Apesar dessa rebeldia juvenil, no que auge dos seus 23 anos, forjados nos
chumbos da Ditadura, Renato apresentava-se, segundo fontes biográficas
(CONVERSAÇÕES, 1996; DAPIEVE, 2006; RUSSO, 2000) como um bom menino.
Na escola, tanto no Rio de Janeiro quanto em Brasília, era bem quisto por “todos”.
Chegou a homenagear suas professoras de alfabetização do Colégio Olavo Bilac, onde
estudou na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, na letra da música “O descobrimento
do Brasil” (1993), do disco homônimo: “[...] A professora Adélia,/ a tia Edilamar/ e a
tia Esperança” (LEGIÃO URBANA, 1993. Faixa 6). Segundo o jornalista Arthur
Dapieve (2006) o Colégio Marista, em Brasília, confiava tanto em Renato que lhe
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enviava as provas para responder em casa no período de 1975 a 1977, quando ele estava
de tratamento contra a doença epifisiólise que lhe furtou o andar por um ano e meio.
Nesse período traumático da vida de Renato ele passou a ler de tudo e a ouvir
muito rock. Era apreciador dos escritores românticos e dos poetas ingleses, tendo
preferência por Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade. Dessas intensas
leituras surgiu o “Russo” de seu nome artístico em homenagem aos seus pensadores
favoritos, o matemático e filósofo inglês Bertrand Russel, o também filósofo Jean-
Jacques Rousseau e o pintor primitivista Henri Roussau, ambos franceses. Na música, a
sua formação clássica que herdou do pai, ouvindo Schubert, Rachmaninoff, Purcel, Eric
Satie e o seu favorito Wagner se desenvolveu em paralelo à audição de Beatles, Elvis
Presley, Bob Dylan, muito rock progressivo e depois o rock punk.
Nos anos 1970 o Brasil e o mundo foram abalados pela crise do petróleo. A
Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), no final de 1973,
quadruplicou o preço do barril. Essa crise do capitalismo promoveu a alta da inflação, a
queda na produção, aumento do déficit da balança comercial e um alto índice de
desemprego, levando o mundo a uma grave recessão. Houve uma ampliação da
desigualdade social (no Brasil e no mundo) e da distância entre os então chamados
países de Primeiro (como EUA e Inglaterra) e Terceiro Mundo (como Brasil e
Argentina). Foi nesse contexto de crise econômica mundial que surgiu dois estilos
musicais, entre outros, o rock progressivo e o punk rock.
O estilo progressivo tornou-se uma das bases do experimentalismo do rock,
fazendo fusões da música erudita com o jazz e promovendo o desenvolvimento da
eletrônica musical com o uso de sintetizadores. Entre os grupos que se destacaram, na
configuração inicial desse movimento, estão o Genesis e o Pink Floyd.
O estilo punk foi o mais radical e corente com aquele período. Isto é, expressava
o descontentamento de jovens pobres, ou até mesmo de classe média, com a realidade
triste em que viviam. O movimento punk, idealizado por Malcom McLaren, pregava o
primitivismo do rock e das atitudes. Ou seja, bastariam três acordes, com uso de
guitarra, baixo, bateria, vocal e amplificadores baratos para se fazer uma revolução
musical que implicaria em mudança comportamental. A bricolagem (faça você mesmo)
identificava os jovens desse movimento que, de forma agressiva, por suas roupas
rasgadas e atitudes firmes, inspiradas nas principais bandas como Sex Pistols, The
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Clash, The Damned, Buzzcoks e Ramones, procuravam subverter a ordem com um


movimento contracultural que utilizava o som e suas ideias como armas contra o
sistema capitalista (BRANDÃO, 2004).
No período de hibernação forçada de Renato, por causa da epifisiólise, ele criou
uma banda fictícia de rock, a 42nd Street Band, na qual o vocalista (ele próprio) se
chamava Eric Russel. Nome inspirado nos seus pensadores favoritos, comentados
anteriormente.
Segundo o jornalista Arthur Dapieve (2006), a 42nd Street Band foi um ensaio
para a formação da primeira banda, real, de Renato – o Aborto Elétrico. Essa banda foi
gestada dentro do contexto de vivência de Renato com a “turma da Colina”. A Colina
foi o nome dado a quatro prédios construídos para abrigar professores e funcionários da
UNB, na Asa Norte de Brasília. Neste espaço frequentavam os filhos de diplomatas
brasileiros e estrangeiros, de professores universitários e de demais funcionários
públicos. Alguns destes, que formavam a turma da Colina, são conhecidos atualmente
no cenário musical brasileiro, como os filhos de diplomatas brasileiros Fernando Ouro
Preto (o Dinho, vocalista do Capital Inicial), Eduardo Villa-Lobos (o Dado, que junto
com Marcelo Bonfá e Renato Russo formaram o núcleo sólido da Legião Urbana), e os
filhos de militares Herbert Viana e Renato Rocha. Herbert é o vocalista dos Paralamas
do Sucesso e na época foram os padrinhos que lançaram a Legião Urbana. Renato
Rocha (Negrete ou Billy) participou das primeiras formações da Legião Urbana,
permanecendo até o lançamento do terceiro disco em 1987. Saiu por desentendimentos
com o grupo (DAPIEVE, 2006).
Com a turma da Colina Renato Russo ouvia muito rock progressivo e depois
punk rock, cujos discos importados ele conseguia com professores de inglês e com
amigos que viajavam para a Europa e traziam as novidades encomendadas por Renato e
sua turma. Esse grupo de amigos, adolescentes de classe média, procurava seguir um
comportamento que eles consideravam punk: invadiam festas e tocavam suas músicas,
sem pedir licença; usavam roupas rasgadas; pintavam o cabelo; usavam acessórios
excêntricos (correntes e alfinetes por todo o corpo, etc.); faziam pichações e dançavam
rock desordenadamente. Num contexto de Ditadura Civil-Militar essas ações resultavam
quase sempre em prisões. Esses adolescentes não chegaram a sofrer torturas e/ou
assassinatos porque eram filhos de militares e/ou de diplomatas. Porém, mesmo assim,
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sofriam humilhações e perseguições. O clima era tenso e pavoroso. O medo era não só
da polícia, mas também da sociedade conservadora e reacionária que não permitia
“esquisitices” e comportamentos fora da ordem. O próprio Renato Russo, numa
entrevista à revista Bizz em maio de 1989, comentou a dificuldade de se viver nesses
“tempos de repressão”.
Era tão louco, nem eles sabiam o que era. Implicavam com todo mundo.
Era a época da redemocratização. A Colina, que era nossa base bem no
comecinho, era também a residência dos professores da UNB – gente de
esquerda que não podia falar... E volta e meia vinham as joaninhas – não,
nem joaninhas, era veraneio mesmo. Essa história de “Veraneio Vascaína” é
por causa disso. Eles entravam na universidade, aquelas coisas de bater em
estudante etc. O nome Aborto Elétrico é justamente porque eles inventaram,
em 68, os cassetetes elétricos que davam choque. Numa dessas batidas, uma
menina que estava grávida, nada a ver com a história, levou uma tal daquelas
cacetadas e perdeu a criança! Coisa de mau gosto! Então, Aborto Elétrico era
o que representava a música da gente. Agora, a repressão existia em vários
níveis, em todos os lugares. Tinha de se ter muito cuidado com o que se
falava – não podia falar mal do governo, nada. Nem bzzzzzzzz. E era só
verem um grupo de jovens juntos que vinham estragar, tipo desmanchar
prazer. (CONVERSAÇÕES, 1996, p. 119).

Como podemos perceber nesse depoimento de Renato Russo, a banda punk rock
Aborto Elétrico surgiu em 1978 como uma resposta contra a repressão civil-militar que
a turma da Colina vivenciava em Brasília. A formação da banda se deu a partir do gosto
musical comum de três amigos pelo Sex Pistols. Renato amava o baixista dessa banda,
Sid Vicious. Foi dessa forma que encontrou o seu guitarrista André Pretorius, filho do
embaixador da África do Sul no Brasil. Isto é, Renato quando o viu próximo do bar
Taberna em que estava com amigos em Brasília, acho-o parecido com o Sid Vicious.
Logo fizeram amizade e decidiram formar uma banda inspirada no Sex Pistols. Em
1978 começaram os ensaios da banda punk rock Aborto Elétrico (em vários locais, um
deles foi um puxado da embaixada da África do Sul) com Renato Russo no baixo,
André Pretorius na guitarra e Felipe Lemos (o Fê, filho de professor universitário) na
bateria.
A primeira apresentação do Aborto Elétrico ocorreu em janeiro de 1980, num
pequeno bar chamado “Só Cana” de Gilberto Salomão em Brasília. O trio de roqueiros
punks não se incomodou com a estrutura do bar, pois o que mais importava naquele
momento era ter um espaço para se apresentar e alguém que pudesse ouvir suas
histórias, seus sonhos juvenis. Lá, encontraram esse “porto seguro”. Ficaram tão
entusiasmados com a primeira apresentação que se anestesiaram da dor física naquele
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dia em meio a muitas adversidades – o baterista Felipe Lemos estava com caxumba e
febre de 40 gruas e o guitarrista André Pretorius acabou cortando os dedos nas cordas
do seu instrumento ao tocar, pois havia perdido a paleta.
O “sangue, suor e dor” da primeira apresentação pareceu ter valido a pena. A
pequena plateia, depois de ter ouvido o pequeno repertório de cinco músicas, pediu bis.
No dia seguinte o boca a boca divulgou o sucesso daquele show, especialmente em
escolas privadas de classe média, como os colégios Objetivo, Elefante Branco e Marista
(CONVERSAÇÕES, 1996).
Apesar do sucesso inicial, a efêmera trajetória do Aborto Elétrico foi cheia de
altos e baixos. A banda teve vários fins e recomeços. O fim definitivo ocorreu em março
de 1982 quando Renato Russo brigou com Felipe Lemos por causa da música Química.
Sozinho, Renato Russo virou o Trovador Solitário. Abria as apresentações das
bandas nos shows e recebia muitos elogios e críticas. Porém, o “Trovador Solitário” não
ficou sozinho por muito tempo. Numa festa conheceu Marcelo Augusto Bonfá. E, juntos
– no segundo semestre de 1982 – formaram uma nova banda – a Legião Urbana. Renato
no baixo, Bonfá na bateria e o guitarrista geralmente era convidado.
A primeira apresentação da Legião Urbana ocorreu em 5 de setembro de 1982 na
cidade mineira de Patos de Minas. Era um festival de rock realizado no Parque de
Exposições da cidade. Outra banda brasiliense que se apresentou nesse festival “Rock
no Parque” foi a Plebe Rude. A Legião tinha apenas alguns meses de existência e para
aquele primeiro show contava com Renato no baixo, Marcelo Bonfá na bateria, Eduardo
Paraná na guitarra (ele foi convidado para ficar fixo na banda, mas logo saiu por
diferenças técnicas: ele era instrumentista profissional ao contrário de Renato e
Marcelo) e Paulo Paulista Guimarães no teclado. O batismo da Legião nesse primeiro
show foi tenso. Apesar de estarem participando de um festival de rock, o público
daquela cidade interiorana não estava acostumado com aquele tipo de música e muito
menos com o comportamento punk daqueles jovens roqueiros.
Logo quando chegaram à cidade, os roqueiros brasilienses sofreram uma forte
vigilância tanto da polícia quanto da sociedade conservadora. E, mesmo com a abertura
política – a Anistia e o freio na Censura –, ficou muito constrangedor o fato de um
evento patrocinado pela Prefeitura Municipal de Patos de Minas estar recebendo artistas
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cujas letras de suas músicas faziam críticas ásperas ao sistema de governo vigente, bem
como aos valores sociais até então predominantes.
Apesar dessa tensão inicial, a Legião Urbana não se furtou ao sucesso e
continuou sua trajetória. O “improviso” do primeiro show cedeu espaço para uma
melhor qualidade técnica e organizacional. Assim, a turma da Colina organizou em abril
de 1983 um Festival de Rock em Brasília no Auditório da Associação Brasiliense de
Odontologia (ABO). Nesse festival se destacaram quatro bandas – Legião Urbana, (que
já contava com a participação fixa de Dado Villa Lobos), Plebe Rude, XXX e Capital
Inicial (ainda sem Dinho Ouro Preto nos vocais).
Depois do sucesso na ABO a Legião Urbana fez várias apresentações em
Brasília e em outras cidades. No meio dessa escalada ascensional, Renato Russo cortou
os pulsos, depois de uma longa bebedeira. E, para piorar, perdeu parte dos movimentos
das mãos, por um período, impedindo-o de tocar baixo. Para solucionar esse problema
Marcelo Bonfá convidou o baixista Renato Rocha (Billy ou Negrete) que passou a fazer
parte da banda. A Legião virara um quarteto. No meio de três homens brancos, de classe
média alta, estava um negro, “careca”, filho de militar, de classe média baixa e vindo de
uma região suburbana (São Cristovão) do Rio de Janeiro (CONVERSAÇÕES, 1996;
DAPIEVE, 2006).
A banda havia completado sua formação – pelo menos até 1987, quando Renato
Rocha saiu da Legião e se consolidou o trio que permaneceu junto até o fim com a
trágica morte de seu vocalista.
Das muitas viagens da Legião, a que foi mais significativa foi sua chegada em
São Paulo, no período de 1983 a 1984. Foi nesta grande cidade brasileira que os
legionários perceberam que eram rebeldes sem causa em Brasília. Isto é, os jovens de
São Paulo já tinham adquirido independência (tão sonhada pelos brasilienses), pois
trabalhavam desde cedo, moravam sozinhos, casavam, faziam sexo livremente.
Diferente do que ocorria em Brasília. Os “punks de verdade” de São Paulo assustavam a
Legião. Também ocorreu em São Paulo a consciência do porquê do nome Legião
Urbana. Ou seja, o contato com a metrópole os fez perceberem empiricamente a
grandiosidade dos problemas urbanos e sociais – na década de 1980, o Brasil tornou-se
predominantemente urbano e intensificou-se o processo de verticalização das capitais;
houve um inchaço populacional que não foi acompanhado satisfatoriamente por um
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planejamento administrativo municipal, estadual ou federal, resultando na deterioração


das condições de vida devido aos graves problemas de infraestrutura urbana (SANTOS,
2007; CARVALHO, 2009) – que se faziam presentes em todo o Brasil. Perceberam
também que todos eram oriundos de grandes cidades brasileiras. Portanto, toda sua
bagagem cultural era urbana. O próprio Renato Russo explicou em entrevista que a
denominação da banda, inicialmente, tinha mais um cunho emocional e místico. Isso
ocorreu
Porque eu nunca percebi nossas letras como uma coisa urbana. Era, mas
eu via mais como uma coisa emotiva. [O nome da banda fora dado] Por causa
da turma e porque éramos da cidade. Eu sempre inventava nomes para a
turma. [...] E eu nunca tinha percebido o lance da cidade mesmo,
desemprego... Isso me espantava muito. Agente morava bem [em Brasília] e
em São Paulo fomos para lá no bas-fond mesmo, na sujeira.
(CONVERSAÇÕES, 1996, p. 125).

Nas viagens ao Rio de Janeiro, a Legião Urbana alcançou sua sagração. Depois
de muitas apresentações e da circulação de fitas demo por rádios FM cariocas a banda
assinou contrato musical com a gravadora EMI-Odeon, apadrinhada pelo produtor
musical e jornalista José Emídio Rondeau. Em 1984 – no auge da campanha Diretas já
que reivindicava o retorno do voto universal para presidente da República – a Legião
Urbana gravava o seu primeiro LP homônimo.
O disco fora lançado no começo de 1985, mas sua repercussão só ocorrera no
segundo semestre desse ano. Era um disco bastante político, coerente com o momento
histórico em que vivia o país. Isto é, estava acabando a Ditadura Militar, depois de 20
anos, e começando um governo civil do presidente José Sarney174. Era quase impossível
a juventude – especialmente a engajada politicamente – não gostar daquelas letras
críticas de Será, A dança, Geração Coca-Cola, O Reggae, entre outras.
O sucesso da Legião Urbana (550 mil cópias vendidas do primeiro disco)
superou as expectativas da gravadora EMI-Odeon. A banda mudara definitivamente de
Brasília para o Rio de Janeiro em 1985. E, assim, a banda e seu vocalista foram
arregimentando uma legião de fãs que assiduamente frequentava seus shows e consumia
seus discos e suas ideias. Renato Russo tornou-se “quase sem querer” um guru da

174
Apesar da expressiva mobilização popular, a campanha Diretas já não obteve êxito. As eleições de janeiro de
1985 ainda foram indiretas. Porém, a luta não foi em vão. O candidato da oposição ao governo militar, Tancredo
Neves, venceu as eleições. Mas não pode tomar posse devido a uma doença que lhe levou à morte. Assumiu então o
seu vice José Sarney, governando de 1985 a 1989.
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juventude “intelectualizada” das décadas de 1980 e 1990. E são justamente as suas


ideias, contidas em suas letras, que discutiremos no próximo tópico.

A Legião jovem, política e urbana


A década de 1980 se configurou como um período conservador, apesar da
abertura política promovida pelo presidente Ernesto Geisel (1974-1979). Esse
reacionarismo político e social, herdeiro do regime militar brasileiro, não era
compartilhado pela maioria dos jovens. Estes, por sua vez, também herdeiros dos “anos
de chumbo” (resistência política do movimento estudantil e de grupos armados), ainda
lutavam por direitos políticos e sociais e levantavam bandeiras universais de
preservação do meio ambiente e o desarmamento nuclear. O Brasil e o mundo ainda
vivia o clima tenso da Guerra Fria que ficou mais tempestuoso com o governo do
presidente estadunidense Ronald Reagan (1981-1988). Este ex-ator de cinema
implementou uma política que ampliava as ações conservadoras, anticomunistas,
armamentistas e de intervenção na política interna dos países latino-americanos
(BRANDÃO, 2004).
Foi nesse período de transição da Ditadura para a Democracia, nos anos 1980,
que a banda Legião Urbana se configurou como uma das principais intérpretes da
juventude brasileira destacando os aspectos políticos e urbanos que a envolviam. E, para
além dos rótulos – juventude engajada, alienada, desbundada, etc. – que identificavam
os jovens dos anos 1960 e 1970, a Legião Urbana, por meio de suas músicas,
representou uma juventude múltipla que rompia a mera classificação etária e se
autoconcebia, consciente ou inconscientemente, como “[...] uma experiência cultural e
social em contínua transformação” (SILVA, 2013, p. 15). Os quatro discos dessa banda
de rock (Legião Urbana, 1985; Dois, 1986; Que país é este, 1978/1987; As quatro
estações, 1989) discutiam temas que eram comuns a todos os jovens daquela época e
também questões universais e atemporais como o amor e o conflito de gerações. Os
principais temas discutidos eram a alienação adolescente, o consumismo, amizade
“colorida”, briga entre amigos e entre namorados, dúvidas em relação à sexualidade,
descoberta e (auto) repressão da sexualidade não- heterossexual, relacionamento
homossexual, amor platônico, decepção amorosa/ fim de romances, crise existencial,
pressão social sobre estudantes/ aprovação no vestibular, solidão/ depressão/
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desconfiança no outro, vício em drogas/ abstinência forçada (por falta de dinheiro),


monotonia e delitos juvenis, a normalidade das contradições da vida, sede de liberdade,
suicídio, conflito de gerações, desagregação familiar, espiritualidade.
Essa radiografia da juventude despertou uma legião de fãs que se viu
representada naquelas letras ora ásperas, ora sentimentais, ora espirituosas. Os jovens
viviam tempos de alienação promovidos pela indústria cultural que a cada dia ofertava
“novos produtos”, especialmente com o avanço tecnológico-informacional gestado na
década anterior. Essa alienação e o consumismo desenfreado foram poetizados por
Renato Russo em músicas como A dança e Geração Coca-Cola. Nesta última, Renato
afirmava que “Desde pequenos nós comemos lixo/ Comercial e industrial” (LEGIÃO
URBANA, 1985. Faixa 6) e, n’A dança diz que
Não sei o que é direito/ Só vejo preconceito/ E a sua roupa nova/ É só uma
roupa nova/ Você não tem ideias/ Pra acompanhar a moda/ Tratando as
meninas/ Como se fossem lixo/ Ou então espécie rara [...] Que é só um
objeto/ Pra usar e jogar fora/ Depois de ter prazer./ Você é tão moderno/ Se
acha tão moderno/ Mas é igual a seus pais/ É só questão de idade/ Passando
dessa fase/ Tanto fez e tanto faz. (LEGIÃO URBANA, 1985. Faixa 2).

Apesar de ter escrito essas letras de músicas quando ainda era um adolescente,
demonstrava bastante maturidade, principalmente ao afirmar que essa alienação juvenil
(preconceito, consumismo, falta de alteridade, artificialismo das relações humanas) “É
só questão de idade/ Passando dessa fase/ Tanto fez e tanto faz”. Ou seja, a juventude
estaria mais frágil em relação aos processos dominantes do sistema capitalista, mas
bastaria estudar um pouco mais e fazer o “dever de casa” – como é dito na música
Geração Coca-cola – ou perceber empiricamente com a “escola da vida”, ao longo do
tempo, para descobrir esse sistema de dominação capitalista e lutar contra ele.
Essa “questão de idade” também remete ao conflito de gerações, onde o jovem
“Se acha tão moderno/ Mas é igual a seus pais”. A maturidade de Renato ao discutir
temas sociais e pessoais em suas letras se ampliou com a paternidade no final dos anos
1980 (Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá também se tornaram pais nesse mesmo
período). A música Pais e filhos (LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 2) tornou-se o hino
de pais e filhos que viviam em constantes conflitos de gerações. A paternidade de
Renato e de seus companheiros Dado e Bonfá lhe fez versar profundamente sobre a
desagregação familiar (pais separados, filhos que moram em casa de parentes ou na rua,
falta de diálogo) e a cobrança exagerada dos pais sobre os filhos (e vive-versa) que pode
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levar a consequências trágicas, como o suicídio da parte mais fraca – os filhos (mas que
também pode ser os pais “Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo/ São crianças
como você”). O jovem pai Renato Russo fez seu sermão providencial que acabou
virando uma ladainha entre os seus legionários – “É preciso amar as pessoas/ Como se
não houvesse amanhã/ Porque se você parar para pensar/ Na verdade não há”.
Os conflitos envolvendo os jovens não ocorriam apenas entre gerações
diferentes e no âmbito familiar. As contendas faziam (e ainda fazem) parte do universo
juvenil. Em alguns casos começava com uma amizade “colorida”. Isto é, amigos
começavam a namorar e, por vários motivos, como falta de companheirismo e traição,
perdiam o amor e a amizade, fato discutido em algumas músicas de Renato como Ainda
é cedo: “Uma menina me ensinou/ Quase tudo que eu sei/ [...] Eu só queria estar ali/
Sempre ao lado dela/ [...] Mas egoísta que eu sou/ Me esqueci de ajudar/ A ela como ela
me ajudou/ E não quis me separar/ [...] Sei que ela terminou/ O que eu não comecei/”
(LEGIÃO URBANA, 1985. Faixa 4).
Nessas brigas entre amigos e/ou namorados falava-se tudo, até os segredos,
como o medo de revelar uma possível homossexualidade: “E o que ela descobriu/ Eu
aprendi também, eu sei/ Ela falou: “Você tem medo”. Aí eu disse: “Quem tem medo é
você”./ Falamos o que não devia/ Nunca ser dito por ninguém”
Essas dúvidas em relação à sexualidade, a descoberta e (auto) repressão da
sexualidade não heterossexual, bem como os relacionamentos homossexuais foram
discutidos em músicas como Soldados, Teorema (LEGIÃO URBANA, 1985. Faixa 9 e
10), Daniel na cova dos leões, Quase sem querer (LEGIÃO URBANA, 1986. Faixa 1 e
2) , Maurício, Meninos e meninas (LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 8 e 9). Nessas
músicas Renato faz uma autobiografia (assim como em todas as outras músicas), que
por meio de sua poesia, promovia a identificação dos jovens heteros e não
heterossexuais.
Sobre as dúvidas juvenis em relação à sua sexualidade, Renato afirmava que
“Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto/ Tenho medo e eu sei porquê:/ Estamos
esperando.” (Soldados In: LEGIÃO URBANA, 1985. Faixa 9) “Faço nosso o meu
segredo mais sincero/ E desafio o instinto dissonante. A insegurança não me ataca
quando erro/ [...] E o teu medo de ter medo/ Não faz da minha força confusão./ [...]
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Mas, tão certo quanto o erro de ser barco/ A motor e insistir em usar os remos,/” (Daniel
na cova dos leões In: LEGIÃO URBANA, 1986. Faixa 1).
Quando chegava a maturidade juvenil e se esvaiam as incertezas quanto à
sexualidade não heterossexual, ainda restava o medo de encarar a sociedade
conservadora dos anos 1980 e as desilusões amorosas. Aos homossexuais cabia se
esconderem e/ou procurar guetos no Brasil ou até mesmo em outros países, como na
cidade de São Francisco nos Estados Unidos.
A cidade de São Francisco era o reduto dos homossexuais175 e para lá se
dirigiam todos (que tinham condições financeiras) aqueles que queriam amar livremente
meninos e meninas, sem o preconceito da sociedade. Por isso os jovens homossexuais
abastados do Brasil falavam em suas conversas privadas que “Às vezes faço planos/ Às
vezes quero ir/ Pra algum país [EUA/São Francisco] distante/ Voltar a ser feliz”
(Maurício In: LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 8) ou “Quero me encontrar, mas não sei
onde estou/ Vem comigo procurar algum lugar mais calmo/ Longe dessa confusão e
dessa gente que não se respeita/ Tenho quase certeza que eu não sou daqui [não se
refere apenas ao espaço/Brasil, mas também à sua condição de homossexual]/ Acho que
gosto de São Paulo/ Gosto de São João/ Gosto de São Francisco [não refere-se apenas
ao santo, mas também à cidade de São Francisco nos EUA] e São Sebastião/ E eu gosto
de meninos e meninas” (Meninos e meninas In: LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 9).
Essa interpretação da juventude brasileira também se dava no âmbito político.
Isto é, a Legião Urbana também ficou marcada por suas músicas com muito críticas
político-sociais. O rock dos anos 1980 tornou-se o principal meio de expressão dos
jovens, especialmente com o freio na censura no começo desta década. Por meio deste
veículo de comunicação a Legião Urbana falava de (quase) tudo: Campanha das Diretas
já, Desconfiança na redemocratização (Será, Por enquanto, Tempo Perdido, Andrea
Doria, Há tempos); Consumismo, alienação (A dança, Geração Coca-cola);
Perseguição policial a militantes políticos (Petróleo do futuro, 1965/ Duas tribos);
Colonização cultural dos EUA, corrupção, revolução burguesa juvenil (Geração Coca-

175
“Durante a 2ª Guerra Mundial, todo militar americano [EUA] suspeito de homossexualidade era encaminhado a
São Francisco, onde era avaliado por uma junta que decidia o seu futuro na instituição. Entre 1941 e 1945, quase 10
mil militares gays e lésbicas foram dispensados na cidade. Muitos ficaram por lá mesmo, formando a base da colônia
gay. Houve mais uma grande migração, nos anos 70, quando a região da rua Castro ficou conhecida mundialmente
como o cacófato "a Meca Gay". Hoje, a população homossexual da cidade é de 15%, maior do que qualquer
metrópole americana”. (URBIM, 2009).
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cola, O Reggae, Que país é esse?); Desigualdade social, uso de drogas na adolescência
(O Reggae, Índios, Faroeste caboclo); Guerras, política intervencionista do presidente
estadunidense Ronald Reagan (Soldados); Exploração do trabalho nas fábricas, injusta
justiça do trabalho, degradação ambiental (Fábrica); Discussões teóricas
descontextualizadas (Conexão amazônica); Racismo, falta de políticas públicas para
pobres, inflação (Faroeste caboclo); Juventude perdida, desnorteada, crise de
paradigmas (O Reggae, Tempo perdido, Andrea Doria, Índios, Depois do começo, Há
tempos, Eu era um lobisomem juvenil); Perseguições, prisões, torturas e assassinatos a
militantes políticos (1965/ Duas tribos).
A influência punk de Renato Russo e da Legião Urbana foi diminuindo ao longo
da década de 1980. Porém, o engajamento político não deixou de existir. Mudou apenas
a forma de se expressar – de uma linguagem mais direta e áspera como em Geração
Coca-cola para um estilo mais metafórico como em Há tempos e Quando o sol bater na
janela do teu quarto (LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 1 e 4).
Como dito anteriormente, Renato Russo auto-recepcionava suas músicas como
algo emotivo. Só com a primeira viagem da Legião Urbana no começo dos anos 1980 a
São Paulo foi que ele percebeu suas letras como essencialmente urbanas. Isto é, o ethos
urbano pulsava nas veias de Renato – e sua turma da Colina em Brasília – e refletia em
suas letras. A partir desse meio urbano ele fez diversas composições discutindo
juventude e política e chegou a focar especificamente na questão citadina ao discutir
temas como desigualdade social, uso de drogas na adolescência, violência policial,
chacina de adolescentes (O Reggae, Faroeste cabloco, Mais do mesmo); violência
urbana e sua banalização, a justiça desigual do Estado (Baader-Meinhof Blues);
espetacularização de acidentes de trânsito, burocracia excessiva no atendimento médico
(especialmente público) (Metrópole); cidades visíveis, sensíveis e imaginárias (Música
urbana 2); Tráfico de drogas, abstinência em drogas (forçada por falta de dinheiro),
depressão (Conexão amazônica, Faroeste cabloco); poucos espaços de sociabilidade
juvenil em Brasília (Tédio [Com um T bem grande pra você]); Espaços de sociabilidade
juvenil em Brasília, inflação, espetacularização da violência urbana, falta de políticas
públicas para a população pobre citadina (Faroeste caboclo); segregação urbana:
“morro” X “asfalto”, articulação dos espaços urbanos: amizade entre um negro pobre da
favela e um branco rico do “asfalto” (Mais do mesmo); problemas de infraestrutura
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urbana: abastecimento irregular de energia elétrica e água encanada (Eu era um


lobisomem juvenil).
O ethos urbano nas letras de Renato Russo fazia uma gradação das cidades
visíveis, sensíveis e imaginárias (PESAVENTO, 2007). O Brasil na década de 1980
havia se configurado como predominantemente urbano. Essa urbanidade não era
representada apenas na concretude das ruas, praças e construções, mas também (e
principalmente) nas relações sociais vividas nesses espaços. Essa vivência se exprimia
por meio de cheiros, imagens, sabores, contatos físicos e sons. E foi justamente esse
som da música urbana que a sensibilidade poética de Renato Russo representou.
Renato Russo e a Legião Urbana foram os filhos da revolução da juventude
engajada, punk e citadina dos anos 1970 e 1980. O fim da ditadura civil-militar e o
processo de redemocratização brasileira influenciaram esses jovens roqueiros de
Brasília. Assim, por meio da música, do rock, eles construíram um perfil, múltiplo, da
juventude brasileira destacando as suas ações políticas e seu ethos urbano.

Bibliografia
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juventude. – 2 ed. reform. – São Paulo: Moderna, 2004. (Coleção Polêmica)
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Disponível em http://letras.mus.br/legiao-urbana Acesso em 22/03/2014
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Disponível em http://letras.mus.br/legiao-urbana Acesso em 22/03/2014
LEGIÃO URBANA. Que país é este – 1978/1987. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1987.
Disponível em http://letras.mus.br/legiao-urbana Acesso em 22/03/2014
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). – 3
ed., 2ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2008. (Repensando a História)
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, sensíveis Cidades, Cidades


imaginárias. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 27, n. 53 de Junho de 2007. Disponível
em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
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RUSSO, Renato. Renato Russo de A a Z: as ideias do líder da Legião Urbana.


Coordenação editorial: Simone Assad. Campo Grande: Letra Livre Editora, 2000.
SANTOS, Raimundo Nonato Lima dos. História, memória e identidade na cidade de
Timon-MA na década de 1980. Teresina: UFPI, 2007. (Dissertação de Mestrado do
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SILVA, Paulo Ricardo Muniz. Cajuína e coca-cola: identidades e estéticas juvenis em
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SKIDMORE, Thomas E. Uma história do Brasil. – 4 ed. – São Paulo: Paz e Terra,
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A ARTEVIDA ATREVIDA DA PERNAMBUCÁLIA: TRAVESSIAS E


TRAVESSURAS DA VANGUARDA EM RECIFE – 1967/1968176

Felipe Pedrosa Aretakis177


Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
felipe_aretakis@hotmail.com

Constatamos (sem novidade) o marasmo cultural


da província. (Por que insistimos em viver há dez
anos da Guanabara e há um século de Londres?
Por fidelidade regionalista? Por defesa e amor às
nossas Tradições?) (Trecho do 1° Manifesto
Tropicalista Nordestino, abril de 1968)

Por toda iniciativa de cultura “não oficial”,


descomprometida com a política cultural
dominante. (Trecho do 2° Manifesto Tropicalista
Nordestino)

Entre fevereiro e março de 1968, enquanto o jovem JMB178 ensaiava as


primeiras linhas e entrelinhas dos manifestos que lançariam a Pernambucália,
escrevendo um artigo para o Jornal do Commercio no qual comentava o lançamento do
primeiro LP individual de Caetano Veloso (BRITTO, 2004, p. 329), Nelson Motta e
Torquato Neto, respectivamente, publicavam no Rio de Janeiro dois ensaios-gozação
transformando a Tropicália em Tropicalismo. O momento em movimento. No dia 5 de
fevereiro de 1968, o jornalista Nelson Motta, guru cultural da classe média sulista,
lançava em sua coluna Roda Viva, do jornal Última Hora: A Cruzada Tropicalista.
Este bestialógico, como assim o chama o próprio Motta, foi fruto de uma
conversa instigante um dia antes de seu lançamento, no bar Alpino em Ipanema, com
Glauber Rocha, Cacá Diégues, Gustavo Dahl e Luiz Carlos Barreto. Toda a trupe do
Cinema Novo. Entusiasmados com o bom momento crítico-criativo de uma parcela da
cultura nacional, estes intelectuais-artistas começaram a conjecturar “uma espécie de
batizado modernista, uma festa tropical, uma gozação com o nosso mau gosto,
cafajestice e sensualidade, com nossa exuberância Kitsch” (MOTTA, 2009, p. 168) que
pudesse identificar aquele momento. Então, como uma gozação à preferência estética

176 Artigo escrito para apresentação no Grupo de Trabalho 3 do VI Encontro cultura e memória: golpe de
1964: cultura e memória.
177 Discente do programa de pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de
Pernambuco referente ao semestre letivo 2014.1.
178 Sigla para Jomard Muniz de Britto, metonimicamente apelidado de O famigerado.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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dos nacionalistas e tradicionalistas, Motta publicou o ensaio em sua coluna e


ironicamente marcou a festa de lançamento do Tropicalismo.
Propagandeando a inovação estética promovida pelo filme Bonnie and Clyde
(Arthur Penn), que à época fazia grande sucesso na Europa, o jornalista carioca estendia
a influência daquele kistch cinematográfico à moda, à música, à decoração, às comidas e
aos hábitos brasileiros. E seguia comentando:

Os anos 30 revivem em força total. Baseados nesse sucesso e também no


atual universo pop, com o psicodelismo morrendo e novas tendências
surgindo, um grupo de cineastas jornalistas, músicos e intelectuais resolveu
fundar um movimento brasileiro mas com possibilidades de se transformar
em escala mundial: o Tropicalismo. (MOTTA, 1968, p. 1)

O exagero da perspectiva mundial do movimento tropicalista seria mais tarde,


quando do exílio de Caetano e Gil na Inglaterra, levado a sério pelos críticos nacionais.
No entanto, o mais importante desse trecho do manifesto é a adoção da radicalidade da
antropofagia cultural oswaldiana como forma criativa de nós mesmos, sem preconceitos
estéticos, assumindo nossas contradições, nossas idiossincrasias culturais. “Assumir
completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem
estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo
universo que ela encerra ainda desconhecido” (1968, p. 1).
Já, o ensaio publicado por Torquato Neto, comentava e complementava aquele
publicado anteriormente por Nelson Motta. Em, Tropicalismo Para Principiante, o
intelectual-artista piauiense apresenta como fazendo parte do tropicalismo os nomes de
Caetano Veloso, Rogério Duarte, Gilberto Gil, Nara Leão, Glauber Rocha, Carlos
Diégues, Gustavo Dhal, Antônio Dias, (inesperadamente consta na lista) Chico
Buarque179, Valter Lima Jr e José Carlos Capinam. Elegendo ícones nas diversas searas
do cenário artístico nacional, como uma espécie de mistificação pau-brasiliense, neo-
romântica e carnavalizada, Torquato Neto interpreta o Tropicalismo como um
movimento super-pra-frente. “Um mais um são três” festejava a vanguarda.

179 O nome de Chico Buarque surge nesta lista com certa estranheza, haja vista o relato dado por
Caetano Veloso, em seu romance autobiográfico, no qual mencionava o desinteresse do jovem Chico
(presente na primeira reunião em 1966) sobre a renovação musical pretendida pelo grupo baiano
(VELOSO, 2008, p. 127). Episódio este confirmado pelo próprio Chico Buarque, em entrevista concedida
para montagem do filme-documentário Tropicália (2012), em que o intelectual-artista confirmava seu
desinteresse por aquela reunião e pela temática em discussão. Entre outros motivos, Chico Buarque
afirmava não se lembrar muito bem da mencionada reunião, pois estava alcoolizado.
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Imersos numa cultura hegemonicamente esquerdista, desenvolvida pela


ideologia pecebista nos Centros Populares de Cultura (CPCs)180, a ruptura estética
proposta pelos tropicalistas frequentemente foi encarada como uma adesão explícita à
indústria cultural norte-americana. Alienante e alienígena181. No entanto, enquanto arte,
a Tropicália promovia a pesquisa estética que pudesse adentrar em outros níveis da
estrutura social do país. E a forma já havia sido registrada no manifesto antropófago por
Oswald de Andrade: “A alegria é a prova dos nove” (ANDRADE, 1928, p. 3). Assim, a
carnavalização tropicalista despontava para Torquato Neto como uma provocação
contundente contra a burguesia nacional. Diria ele, então, no final do seu ensaio:

O que, no fundo, é uma brincadeira total. A moda não deve pegar (nem
parece estar sendo lançada para isso), os ídolos continuarão os mesmos –
Beatles, Marilyn, Che, Sinatra. E o verdadeiro, grande Tropicalismo estará
demonstrado. Isso, o que se pretende e o que se pergunta: como adotar
Godard e Pierrot Le Fou e não aceitar “Superbacana”? Como achar Felinni
genial e não gostar de Zé do Caixão? Por que o Mariaaschi Maeschi é mais
místico do que Arigó? (NETO, 1968, p. 1)

Perguntas como estas feitas por Torquato Neto objetivavam mostrar o quão
contraditória era nossa concepção cultural. Tropicalistas é o que somos e o que não
somos. Se a retórica anti-imperialista professada pelos comunistas procurava encontrar
ícones nacionais que enaltecessem nossa “cultura oficial”, por vezes ofereciam
alternativas que escamoteavam nosso subdesenvolvimento. Os intelectuais nacionalistas
elegantemente não queriam ser identificados como cafonas (FAVARETTO, 2007, p.
115). A par de nossas contradições (para não falarmos em preconceitos) intra e
intersociais, expostas na Cruzada Tropicalista, no dia 8 de fevereiro de 1968, três dias
após o lançamento do ensaio no Última Hora, a coluna Quatro Cantos do Correio da
Manhã, assinada por Cícero Sandroni, anunciava por meio de uma pequena nota de

180 Os CPCs, como o próprio nome menciona, eram centros populares organizados por representantes
nomeados e votados da seção de cultura do Partido Comunista Brasileiro (PCB), originalmente, oriundos
da UNE. Sua função era levar a ideologia socialista de forma pedagógico-cultural às classes ditas
alienadas (RIDENTI, 2010, p. 73).
181 Sobre o posicionamento sectarista da esquerda nacionalista da época, Sérgio Paulo Rouanet chegou
mesmo a comentar, em 1988, estendendo uma análise crítica sobre a obra de Renato Ortiz, A moderna
tradição brasileira, que o modelo nacional-popular da década de 1960 era baseado num “historismo de
esquerda”. Ou seja, uma concepção conservadora, “caracterizada pela rejeição do universal e pela
exaltação d[e] um particular que se enraíza, direta ou indiretamente, numa individualidade coletiva: uma
época, uma raça, um elemento, uma cultura” (ROUANET, Apud. RIDENTI, 2010, p. 82).
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canto de página, a adesão de Caetano Veloso ao Tropicalismo. Em linhas curtas escrevia


o colunista:

Caetano Veloso, o hippie de Santo Amaro da Purificação, resolveu aderir ao


Tropicalismo, lançado pelos cineastas Glauber Rocha e Cacá Diégues. Já no
próximo dia doze, Caetano promete trocar os seus camisolões pelo terno
branco e sapatos de duas cores para comparecer ao coquetel de Gente Nova,
Nova Gente, no Drugstore, onde será lançado oficialmente o tropicalismo.
Sobre a sua nova indumentária, comentou Caetano:
- Esta é a roupa de que eu estava precisando!
Estava mesmo Caetano?182

O adjetivamento de Caetano Veloso como hippie possivelmente indicava a


incompreensão por parte de Sandroni sobre o salto estético musical promovido pelos
baianos ainda na apresentação do III Festival da Música Popular Brasileira. Vale
ressaltar que tal epíteto foi largamente utilizado pela imprensa, tanto quanto pelos
censores da ditadura, para identificar os tropicalistas e outros desbundados como
cidadãos “fora do eixo padrão” ou possíveis “subversivos”.
Como registrado no texto do colunista, o Tropicalismo estava para ser lançado
oficialmente no dia 12 daquele mesmo mês, no entanto só viemos encontrar outra
referência ao tal coquetel de lançamento na coluna Quatro Cantos no dia 16 de
fevereiro. Nesta oportunidade, o autor informava ao leitor o seguinte texto: “E por fim
apareceu o tropicalismo. Muita gente pensa que o movimento é o fim. Mas não é não. É
apenas o começo”.183 Apesar de inicialmente prometida na coluna de Nelson Motta, a
festa de lançamento do movimento nunca aconteceu. Segundo Motta, “a coluna teve
grande repercussão e surpreendentemente foi levada a sério, comentada acaloradamente
contra e a favor em outros jornais, no rádio e na televisão, que passaram a se referir ao
movimento de Gil e Caetano como tropicalismo” (MOTTA, 2009, p. 169). Em outras
palavras, a “moda” pegou.
A transformação da pesquisação (Tropicália) em movimento (Tropicalismo) de
fato não foi o fim da arte em processo. Não poderiam adivinhar nem os tropicalistas
baianos, nem o colunista Sandroni que o tropicalismo muito em breve seria
ressignificado em Pernambuco. No dia 19 de abril de 1968, abrindo a vernissage da
exposição individual do artista natalense Marcos Silva, na galeria Varanda, em Olinda,

182 Correio da Manhã (RJ). 08/02/1968. Tropicalismo.


183 Correio da Manhã. (RJ) 16/02/1968. Tropicalismo.
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os intelectuais-artistas Jomard Muniz de Britto, Celso Marconi e Aristídes Guimarães


lançaram o 1° Manifesto Tropicalista Nordestino: Porque Somos e Não Somos
Tropicalistas (TELES, 2000, p. 112).
Este manifesto apesar de ter sido assinado pelos três intelectuais citados no
parágrafo anterior foi idealizado e redigido apenas pelo professor Jomard Muniz de
Britto e pelo músico Aristídes Guimarães (BRITTO, 2004, p. 329). Celso Marconi, à
época, era o principal colunista do caderno de cultura do Jornal do Commercio, amigo
em comum de Britto e Guimarães, logo, um grande vetor para as publicações
tropicalistas. Por isso, justiçado com sua assinatura no primeiro manifesto. No dia
seguinte ao lançamento de Porque somos e não somos tropicalistas, o primeiro
Manifesto Tropicalista Nordestino foi publicado na íntegra no Jornal do Commercio.
Marconi, então, introduzia os nove pontos reivindicados pelos tropicalistas da seguinte
forma:

O manifesto tropicalista, lançado ontem à noite, na Galeria Varanda, em


Olinda, durante a “vernissage” da individual de Marcos Silva, artista Processo
do Rio Grande do Norte, e depois debatido na festa “tropicalista”, realizada
no bar do Alves, na Encruzilhada, é o seguinte […]. 184

Por entre parágrafos que constatavam, recusavam, lamentavam, comprovavam,


afirmavam e reconheciam, os tropicalistas disparavam ataques contra aqueles que
identificavam como “a retaguarda” cultural no Estado. Nos cinco primeiros parágrafos
do manifesto, os tropicalistas escolhiam o alvo de suas críticas e justificavam sua
postura de enfrentamento. Entre alguns intelectuais-artistas regionalistas e tantos outros
personagens da esquerda festiva, implosões comportamentais e ideológicas foram
suscitadas em prol da artevida atrevida185. Nos pontos 1 e 5 do manifesto os autores
apontavam:

1. Constatamos (sem novidade) o marasmo cultural da província. (Por que


insistimos em viver há dez anos da Guanabara e há um século de Londres?
Por fidelidade regionalista? Por defesa e amor às nossas tradições?)

5.Afirmamos: “Dessacralizando e corrompendo a esquerda festiva, o


tropicalismo investe e arrebenta, explode e explora os seus adeptos tanto

184 Jornal do Commercio (PE). 20/04/1968. Porque somos e não somos tropicalistas.
185 Recorte poético de Wilson Araújo de Souza.
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quanto os seus atacantes”. (Quá, quá, quá, para os que “não nos
entendem”...)186

Sofisticadamente, sem mencionar nomes, os tropicalistas investiram diretamente


contra a hegemonização dos cargos políticos e espaços de pesquisa destinados a
produção e disseminação da cultura regionalista. Da mesma forma, projetaram a
desarticulação da retórica esquerdista do fazer artístico. Visando a constante pesquisa
da arte, numa insistente experimentação, desafiaram a acomodação intelectual dos
regionalistas por “tudo que for legitimamente novo” (BRITTO, 1992, p. 79). Sem
mistificações e idolatrias propugnavam: “A vanguarda contra a retaguarda! A loucura
contra a burrice! O impacto contra a mediocridade! O sexo contra os dogmas! A
realidade contra os suplementos! A radicalidade contra o comodismo!” (1992, p. 80).
Amantes das contradições e das fricções intelectuais, os tropicalistas
pernambucanos procuravam deslocar as vivências provincianas de nossa sociedade
lusotropicalizada em direção à modernidade diluidora de posições. Para essa travessia
lançaram mão da razão antropofágica oswaldiana, dando vida à Pernambucália. Uma
espécie de “radicalidade plurisensorial. Cartografia dos desejos de desprovincianização
sóciocultural” (BRITTO, 1994, p. 112). As travessuras, então, tomaram conta dos
principais pontos de socialização da cidade frequentados pela juventude pra frentex.
Segundo o jornalista José Teles, os agitos tropicalistas em Recife aconteciam ora
na casa de algum dos famigerados e “desbundados”, como por exemplo, as festas na
casa do jornalista Marconi, ora nos bares e botecos de Olinda e similares da Avenida
Conde da Boa Vista. Algumas dessas festas também aconteciam na própria
universidade e até na TV. Na televisão, Teles se refere ao programa de auditório
apresentado, em 1968, por José Pimentel (o Jesus da Paixão de Cristo do Recife)
chamado Convocação Geral. O programa era transmitido pela TV Jornal, associada do
Jornal do Commerio, e como o próprio nome dizia, convocava os jovens e grupos de
vários segmentos estéticos e culturais para se apresentarem ao público pernambucano
(TELES, 2000, p. 127-128).
No dia 30 de abril de 1968, Caetano Veloso e Os Mutantes desembarcaram no
Recife para fazerem seu primeiro show na cidade. Caetano veio acompanhado de sua
esposa Dedé Gadelha e o show com Os Mutantes seria realizado no dia 2 de maio no

186 Jornal do Commercio (PE). 20/04/1968. Porque somos e não somos tropicalistas.
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Sport Clube do Recife. No dia primeiro de maio, o Jornal do Commercio noticiava a


chegada dos tropicalistas polemizando dois comentários feitos pelo músico baiano:
“Tropicalismo é um movimento que vai vingar, pois é de rebeldia a tudo que é
quadrado” e “Não entendo muito de tropicalismo”187.
A aparente contradição se explica, pois ao dizer que desconhecia ainda o que
seria tropicalismo, Veloso se referia ao termo dado ao movimento criado pelo jornalista
do Última Hora, Nelson Motta. Por outro lado, ao comentar que o tropicalismo era um
movimento de rebeldia contra o quadrado, o baiano mantinha-se coerente com o
momento de ruptura estética que vivenciava e não com o movimento de consumo que
surgiria. Ou seja, toda aquela verve experimentada por Caetano Veloso, entre 1967 e
1968, ainda se configurava como uma travessia.
Mesmo após a apresentação dos tropicalistas na Festa da Rainha dos Calouros
do Nordeste, realizada no Sport Clube do Recife, o casal baiano permaneceu no Recife
por mais alguns dias, enquanto que Os Mutantes seguiram em viagem para cumprir
agenda de shows. Nestes dias que estiveram na cidade, Dedé e Caetano foram
recepcionados pelo jornalista do JC, Celso Marconi, que os introduziu no círculo de
intelectuais-artistas da vanguarda local (TELES, 2000, p. 111). Àquela altura o primeiro
manifesto tropicalista nordestino já havia sido lançado. Celso Marconi e Jomard Muniz
de Britto, então, aproveitando a presença de Caetano Veloso no Recife, trocaram
experiências sobre o Tropicalismo e o Tropicalismo Nordestino com o baiano.
Assim, a presença de Caetano Veloso e Dedé, mais tarde acrescentada da de
Gilberto Gil, foi imprescindível para o fortalecimento do lançamento do desbunde local.
Por toda sua força de imagem e criação explorada pela mídia nacional, os tropicalistas
baianos aceitaram assinar o 2° Manifesto Tropicalista Nordestino. Não sabemos ao
certo a data de lançamento deste, porém sabemos que o manifesto foi lançado durante a
vernissage da exposição individual do artista plástico Raul Córdula, numa sexta-feira na
Oficina 164188 (BRITTO, 1992, p. 81).
O Inventário do Nosso Feudalismo Cultural era maior em tamanho de
proposições e análise sociocultural, bem como mais crítico do que o manifesto lançado
anteriormente. Como diria José Teles: “O Inventário não apenas mexia na ferida da

187 Jornal do Commerio (PE). 01/05/1968. Caetano contra o quadrado.


188 Segundo nossa revisão bibliográfica o 2° Manifesto Tropicalista Nordestino deve ter sido lançado no
dia 3 de maio de 1968.
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tradição, ele enfiava o dedo nela, sem dó nem piedade, questionando entidades
intocáveis como o Conselho de Cultura e Academias” (TELES, 2000, p. 114). O mais
interessante neste processo de instalação do ethos experimentalista sobre a cultura
regional, foi o rápido crescimento do movimento e a adesão por parte de intelectuais-
artistas de outros estados. Tanto assim que Marcus Vinícius num artigo publicado na
Revista de Cultura Vozes, em 1972, comentava o seguinte sobre os assinantes do
segundo manifesto:

Uma espécie de frente ampla de artistas nordestinos, radicados ou não no


Nordeste. Assinaram-no artistas dos estados envolvidos com o tropicalismo
na região: de Pernambuco, Jomard Muniz de Britto, Aristides Guimarães e
Celso Marconi; da Paraíba, Marcus Vinícius (este pernambucano, mas
radicado em João Pessoa), Carlos Aranha e Raul Córdula; o Rio Grande do
Norte, Dailor Varela, Alexis Gurgel, Falves da Silva, Anchieta Fernandes e
Moacyr Cirne; pela Bahia, Caetano Veloso e Gilberto Gil. (VINÍCIUS, Apud.
TELES, 2000, p. 114)

Segundo Jomard Muniz de Britto, a forte presença de intelectuais-artistas


potiguares no Tropicalismo Nordestino deve-se à simultaneidade do lançamento deste
movimento de vanguarda em Recife e de outro movimento de vanguarda em Natal: o
Poema-Processo. Em entrevista concedida ao historiador piauiense Aristides Oliveira,
Britto revela a parceria entre o Tropicalismo Nordestino e o Poema-Processo, à época:

67, 68. Esse binômio... é um marco da explosão do Tropicalismo e que


coincidiu... isso não está registrados nos livros que existem por aí. A única
pessoa que já falou nisso foi eu, os livros famosos sobre o Tropicalismo não
falam nisso. Então, eu queria colocar isso, que houve uma coincidência da
explosão do Tropicalismo... agora eu vou usar um jogo de palavras... com a
implosão do Poema-Processo. […] Mas vamos usar uma palavra corriqueira,
houve uma coincidência histórica factual entre o surgimento do Poema-
Processo, que não foi só em Natal, no Rio Grande do Norte, ecoando e
dialogando com Pernambuco e a Paraíba, mas também com Rio de Janeiro e
São Paulo [...] (REVISTA DESENREDO: ENTREVISTA, 2012, p. 2)

No Inventário do Nosso Feudalismo Cultural é possível perceber que o teor das


reivindicações se alternavam entre as proposições explicitamente políticas, fossem elas
ao sabor dos clamores estudantis ou mesmo em defesa da autonomia institucional da
SUDENE, ou àquela alternativa comportamental e estética mencionada no primeiro
manifesto. As linhas questionadoras do segundo manifesto expunham de forma
sucessiva e pontual uma lista das contradições de nossa pretensa “regionalidade”. Desta
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forma, os tropicalistas partiam em ataque a “retaguarda” a partir de três linhas


argumentativas que dão ao final da leitura do manifesto um sentido cumulativo de suas
ideias.
No primeiro tópico, O algo a mais que os simples rótulos não dizem, os
tropicalistas movidos pela superação da hegemonia exercida pelos regionalistas no
campo cultural da cidade definiram de forma maniqueísta o tropicalismo e o que
chamavam de a “tropicanalha”. Segue na íntegra esta parte do texto:

O que é tropicalismo: posição de radicalidade crítica e criadora diante da


realidade brasileira hoje; vanguarda cultural como sinônimo de militância, da
instauração de novos processos criativos, da utilização da “cultura de massa”
(rádio, TV, etc.) com a finalidade de desmascarar e ultrapassar o
subdesenvolvimento através da explosão de suas contradições mais agudas;
“ver” com olhos “livres”.

O que é tropicanalha: atitude conservadora e purista em face da cultura e da


realidade brasileira hoje; retaguarda cultural significando alheamento, de
tentar dar respostas passadas aos problemas, revelando o passadismo através
da nostalgia, do donzelismo, do pitoresco, do cartão postal, da carência de
informação, contribuindo assim para uma perpetuação do
subdesenvolvimento; enxergar com viseiras e preconceitos. (BRITTO, 1992,
p. 81)

Atrelado ao possível dogmatismo vanguardista dos tropicalistas estava a


necessidade de descaracterizar a pesquisa artística como cultura oficial de Estado.
Contra todos os conformismos, os desbundados do abismo global pernambucano
propunham a experimentação. Desnordestinação da arte. Para os tropicalistas a aldeia
global oferecia a oportunidade de novas informações que contribuíam para produção de
novas identidades. Contra a pernambucanidade, o lusotropicalismo, os saudosismos
coloniais e as identidades ensimesmadas, a pesquisa fenomenológica do ser sendo.
Assim como menciona o professor Jomard Muniz de Britto para pesquisa que se propõe
moderna:

Tudo, fenomenologicamente, aprece em tensão: flutuante ou angustiante do


menino do Rio às meninas da rua. Tudo sendo tensão no escrevivendo, no
cinevivendo, cenavivendo. Fora da nova ordem mundial. Tornando-se tensão
(quase sempre) homoerótica. Tornando-se tensão pansexual. O fenômeno
coletivo-carnavalizador implode com suas hierarquias e epifanias, suas
desmontagens e desestruturações, desmantelando todos os ranços e resquícios
do academicismo. A pesar de fortes. (BRITTO, 1994, p. 113)
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No segundo tópico, Vamos soltar o tigre das perguntas, os tropicalistas


interpelam boa parte dos emblemas da Intelligentsia oficial do Estado. Mostrando-se
claramente contra a cultura oficial, a ditadura, a censura, a delação intelectual, o acordo
MEC-USAID, a ocupação da SUDENE pelos agentes da Aliança Para o Progresso,
entre outras contradições. Por exemplo, disparam no primeiro e segundo parágrafos do
manifesto:

Por que os departamentos de cultura de nossas “Universidades” não ouvem os


estudantes na programação de suas promoções? Pode haver reforma
universitária sem a participação efetiva dos estudantes? Pode existir
universidade livre num país sem liberdade? Onde encontra a Imprensa
Universitária justificativa para suas publicações? Correspondem elas aos
interesses das classes estudantis e intelectuais? Foi realmente “Extinto” o
acordo “Mec-Usaid”, ou apenas ficou mais disfarçado? Até quando os
representantes da cultura oficial se utilizarão dos cargos que ocupam com o
objetivo de promoção pessoal? Por que o dedodurisno (da queimação pessoal
e profissional) em todas as repartições públicas, especialmente na Sudene?
Por que não foram ouvidos os técnicos da Sudene em seu parecer contrário à
“Cruzada ABC”?

Já que nenhum serviço prestam à coletividade, por que não se “Extinguem”


os Conselhos de Cultura e as Academias de Letras? O que se pode esperar de
certos grupos teatrais que se afirmam confirmam como “propriedades
privadas”, casas de fula ou beltrano? Por que alguns jovens artistas ainda
persistem numa política de completa subserviência aos industriais-artistas e
aos intelectuais conselheiros, comprometidos com o poder constituído?
(1992, p. 81-82)

Tais perguntas corroboravam para o entendimento do próprio título do manifesto


que identificava a cultura pernambucana como um inventário privado da herança
político-cultural de algumas famílias da açucarocracia. Por fim, os tropicalistas
fechavam o 2° Manifesto Tropicalista Nordestino pontuando suas prioridades enquanto
novo movimento insurgente no Recife. Em, Debaixo das perguntas e longe do
feudalismo, os tropicalistas nordestinos incentivavam toda cultura dita não-oficial, o
“Poder Jovem” dentro da perspectiva da renovação por tudo que fosse novo e a trans-
historicidade da vanguarda cultural em busca de novos padrões comportamentais (1992,
p. 82-83).
Diante de tamanha combatividade da vanguarda cultural, os intelectuais-artistas
regionalistas não aceitaram passivamente os ataques e acusações dirigidos aos seus. Por
ora da iminente perda de poder, alguns representantes regionalistas e outros defensores
da “boa conduta”, logo, passaram a responder as fustigações tropicalistas em público.
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Então, os dois maiores jornais de circulação do Recife (Jornal do Commercio e Diário


de Pernambuco) serviram como porta-vozes para o pinga-fogo intelectual que se
intensificou a partir do lançamento do segundo manifesto tropicalista nordestino.
O tropicalista Marcus Vinícius havia nomeado diretamente os opositores do
desbunde em Recife no seu artigo publicado, em 1972, na Revista de Cultura Vozes.
Segundo sua relação, as forças que se uniram contra o avanço da vanguarda na capital
foram: o professor e escritor Ariano Suassuna, o compositor Capiba, os maestros Clóvis
Pereira e Cussy de Almeida, o artista plástico Ricardo Brennand, o jornalista Ricardo
Noblat entre outros (TELES, 2000, p. 128). No entanto, as constantes intimidações,
críticas e tentativas de deslegitimação do movimento tropicalista em artigos publicados
principalmente no Diário de Pernambuco, não refrearam os desbundados.
Quase uma semana após a passagem de Caetano Veloso, Dedé Gadelha e
Gilberto Gil pelo Recife, Marcus Vinícius de Andrade (compositor), Carlos Antônio
Aranha (Cineasta) e Raul Córdula (artista plástico) lançaram em João Pessoa mais um
manifesto. No dia 10 de maio de 1968, por meio de um show-debate na Faculdade de
Filosofia da Paraíba (UFPB), foi lançado o 3° Manifesto Tropicalista Nordestino,
intitulado: Nosso Tropicalismo ou Vamos Desmascarar o Nosso Subdesenvolvimento
(2000, p. 112).
Dois dias após este lançamento, o Jornal do Commercio de 12 de maio de 1968,
noticiava por meio do jornalista Celso Marconi e do fotografo Vladimir Barbosa, no
caderno de cultura, a seguinte manchete: “Tropicalistas querem desmascarar
subdesenvolvimento”. Ao lado desta, a foto de Vladimir Barbosa que apresentava os
vários debatedores interessados nas proposições tropicalistas. O segundo parágrafo da
introdução da reportagem sintetizava para o leitor a ideia central proposta no show-
debate:

Alguns problemas-chaves do movimento tropicalista foram lançados à


discussão , não só pelos expositores – Córdula, Jomard Muniz, Aranha, Willis
Leal – como por alguns debatedores, entre eles o da significação precisa do
movimento, que para os paraibanos é “uma atitude ética, uma política
cultural” e não “proposição estética”.189

189 Jornal do Commercio (PE). 12/05/1968. Tropicalistas querem desmascarar subdesenvolvimento.


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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Baseados na frase proferida por Caetano Veloso, “nego-me a folclorizar meu


subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas” (VELOSO, 2008, p.
202), os tropicalistas paraibanos acionavam por sua vez mais uma dobra do tropicalismo
nordestino. Enquanto os dois manifestos anteriores combatiam incisivamente o uso de
aspectos pitorescos na construção do fazer artístico, a exemplo, do passadismo estético e
comportamental regionalista, e em conseqüência a institucionalização desta vertente
como cultura oficial, o terceiro manifesto tropicalista nordestino indicava a necessidade
de deslocamento da dimensão puramente estética para dimensão da política cultural.
Por isso, já no título do manifesto a preocupação dos paraibanos em não somente
repercutir o tropicalismo do grupo baiano, a priori, um salto estético em retomada da
linha evolutiva da MMPB, mas em ressignificar o movimento a nível de discussão de
política cultural. Contra as identificações da pesquisa cultural como fonte de
oficialização de políticas públicas, mas a favor das políticas públicas de fomento das
pesquisas culturais. Então, trazia Celso Marconi em sua publicação do JC a seguinte
discussão:

Dos debates ficou, mais ou menos claro, que os tropicalistas são, no


momento, internacionalistas, sem negar o nacionalismo, pois tal como
afirmava Oswald de Andrade - é necessário aplicar o antropofagismo, isto é,
não ter medo da cultura estrangeira, pois o que devemos fazer é consumi-la.

O regional já está até no nosso subconsciente, não havendo perigo de que


possamos traí-lo, pois ele se imporá por sua força intrínseca. O regional é o
que há de particular em nós; entretanto não podemos temer confrontá-lo com
o que há de regional em outros povos. Ou mesmo com o internacionalismo de
povos desenvolvidos, como o inglês e o norte-americano.190

Desta mesma forma, entre outras discussões avatares pontuadas no show-debate


da UFPB, o artista plástico Raul Córdula enfatizava a adoção da modernização em sua
seara de expressão artística “referindo-se às novas posições assumidas pela pintura, que
a cada dia vai abandonando a maneira clássica da utilização dos instrumentos plásticos
para assumir os elementos da técnica moderna, inclusive técnica publicitária”191. Por
outro lado, o cineasta e músico Carlos Aranha saindo em defesa da adoção da guitarra
elétrica como mais um instrumento de embelezamento harmônico, “frisou que negar o

190 Idem.
191 Idem.
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som da guitarra seria o mesmo que não utilizar o refrigerador, o ar condicionado, porque
são instrumentos inventados no estrangeiro”.192
O 3° Manifesto Tropicalista Nordestino fechou então o ciclo de publicações de
manifestos por parte dos intelectuais-artistas que escreviveram, em 1968, a
Pernambucália. As travessias e travessuras carnavalizadoras do provincianismo
regionalista continuaram durante todo ano. Os enfrentamentos nos artigos jornalísticos
incendiavam cada vez mais os ânimos dos representantes dos dois veios em tensão. Seja
a contragosto dos regionalistas e outros conservadores, seja a deleite dos tropicalistas.
Entre agressões físicas e desmoralizações públicas, as fricções provocadas pelo
surgimento da vanguarda estética no Recife pluralizou identidades, despertou o
desolhar, provocou novas sensações, ressignificou o tropicalismo e agitou a cidade.
Tudo por infidelidade regionalista. “Por quê não? Por quê não? Por quê não?”
(VELOSO, 1967).

192 Idem.
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MOVIMENTAÇÕES DO TEATRO NA BAHIA

Anne Alves da Silveira


Universidade Federal da Bahia
anne_1526@hotmail.com

A década de 1950 na Bahia distinguiu-se por ter sido um período de grande


efervescência e transformações culturais. A fundação da Escola de Teatro em 1959 e a
intensa busca por uma arte nacional que se valha da língua do povo brasileiro
proporcionaram a profissionalização dos atores e permitiram maior discernimento à
cerca dos problemas nacionais. A valorização nacional em detrimento ao imperialismo
estrangeiro não significa o desligamento por completo das influências externas, mas
pretende criar uma arte que abarque a linguagem do país, buscando aproximação com o
público.
À nacionalidade da linguagem artística agregava-se preocupação com o
público. Com objetivos distintos, artistas, empresários e produtores culturais
desejavam expandir o mercado consumidor para além do público construindo
e, assim, atingir os estudantes e se possível, as massas. Nessas circunstâncias,
a intelectualidade envolvida com a produção e a difusão da arte engajada
visava não apenas conscientizar as massas, como se argumentou, mas
também conscientizar a si mesma acerca de amplos fenômenos da sociedade
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capitalista e de problemas específicos à realidade nacional (SOUZA, 2007: p.


8).

A Bahia de 1950 a 1960 recebeu diversos profissionais estrangeiros. Tais


presenças podem ter favorecido a valorização da cultura afro-brasileira. Intelectuais
como Pierre Verger, auxiliaram na reflexão sobre a cultura baiana e devido ao projeto
desenvolvido pelo Reitor Edgar Santos (que buscava tornar Salvador uma cidade
cultural) o contato com estrangeiros foi favorecido. Durante sua regência, Edgar Santos
articulou diversas parcerias tanto com os EUA quanto com a Europa, a fim de promover
palestras e exposições, entre outros eventos. “Esse processo de autodescobrimento do
potencial criativo e cultural baiano contou, segundo ratifica Antônio Albino Canelas
Rubim, com contribuição dos olhares estrangeiros” (ARAUJO, 2012: p. 49).

Entre as discussões e produções artísticas forma-se a pedagogia da estética, com


intuito de conscientizar a classe média e de baixa renda, esta última em situação de
miséria, expondo as problemáticas sociais e formando uma frente nacional-popular.
Grupos como Arena, Oficina e Centro Popular de Cultura da União Nacionais dos
Estudantes (CPC da UNE) foram pioneiros em fomentar discussões em prol de uma arte
genuinamente brasileira.
No percurso da década de 1950-1960, o Brasil passa por diversas crises e
alterações que influenciam as transformações artísticas. Surgem diversas opiniões que
caracterizam a produção dramaturga nacional, dentre as quais prevalece o constante
desejo dos grupos de teatro em apontar os problemas atuais dentro do parâmetro de
identidade cultural, questionando a política aplicada, a falta de solução aos problemas
existentes e a grande presença de influencias estrangeiras, ainda que não seja
homogênea a ideia de uma cultura mais nacional. A forma como essa cultura foi
cultivada gerou intensa discussão entre as classes artísticas (músicos, atores, artistas
plásticos, literários e outros).
O posicionamento político influenciou a organização do movimento cultural, ou
seja, as organizações sociais, políticas e econômicas, e a proximidade de alguns artistas
com movimentos esquerdistas possibilitaram uma face diferente aos que seguiam
posicionamento direitista, que em grande maioria voltaram sua arte para o mercado
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industrial, sem qualquer preocupação com as problemáticas sociais, tendo como


principal intuito a venda de sua arte. Não significa que os artistas voltados às questões
sociais não buscavam vender sua arte, porém se preocupavam em vender uma arte capaz
de abordar as demandas sociais.
As discussões a respeito dos problemas sociais, antes da instalação do golpe,
produzidas pelos grupos de Teatro Arena, Teatro Oficina e os CPC, tanto na Bahia
quanto em outras sedes espalhadas pelo país, geraram críticas às estruturas técnicas do
teatro (cenário, espaço cênico, textos e outros), favorecendo o amadurecimento dos
trabalhos produzidos no Brasil. Em alguns momentos as discussões se aproximavam das
teses de Gramsci, quando relacionavam a construção da cultura mais politizada e
popular, porém “não havia uma teoria que orientasse as atividades culturais da época”
(In: SOUZA, 2002. p. 15), segundo Ferreira Gullar. No CPC da Bahia, fundado em
1962, artistas geniais como Tom Zé, Capinam, Gal Costa e Caetano foram atraídos, e
levantaram as discussões sobre arte e política. Instalado num pequeno espaço, o CPC
baiano seduziu diversos estudantes da Universidade da Bahia, apesar da ligação com o
PCB. Não existiu uma atuação contundente na esfera político-partidário, ainda que
houvesse uma identificação ideológica do grupo com os princípios do PCB e existisse
uma ligação próxima com os sindicatos do Estado (ARAÚJO, 2012: p. 38).

Os estudantes valeram-se da linguagem teatral para a promoção e difusão de


debates e informações em varias cidades da Bahia. Tal como em outros estados, o CPC
na Bahia foi muito importante na construção do teatro engajado. Não que o CPC tenha
criado o teatro engajado, mas por meio dele ganhou novas características, novos espaços
e novos públicos. O CPC foi desarticulado com a instalação da Ditadura Civil Militar no
ano de 1964, antes mesmo do movimento concluir seu projeto de conscientização do
público, contudo deixou um imenso legado aos futuros teatrólogos.

TEATRO E IMPRENSA NOS FINAIS DE 1960

O teatro existente em plena Ditadura Civil Militar traz consigo pesadas


características do teatro engajado, desenvolvido na década anterior. O revés gerado com
a saída de Edgar Santos, o fechamento do CPC e a instalação da Ditadura geraram
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estagnação no desenvolvimento e amadurecimento do teatro baiano. O desejo de uma


arte social está entranhado nas veias dos artistas da década de 1960-1970, herdeiros do
pensamento da frente nacional-popular, envolvidos num sistema repressor. Essa
situação deu novas motivações para que a arte engajada não morresse. O anseio de
desenvolver trabalhos que exponham os problemas sociais e possuam estética de
qualidade, tornou-se perceptível durante o V Festival Nacional de Teatro dos
Estudantes, realizado em 1968, e organizado pelo Embaixador Pascoal Carlos Magno.
Na coluna escrita por Sóstrates Gentil é elaborada crítica ao desenvolvimento da arte
social de pouca qualidade:
Vislumbramos uma preocupação pela arte social que denuncie um estado de
coisa, mas acreditamos se uma denúncia malbaratada e por isso requer uma
discussão mais no sentido de se obter uma reformulação que permita uma
melhor colocação da arte social no nordeste brasileiro a partir mesmo de seus
problemas. (GENTIL. Jornal da Bahia, Salvador, 13.02.1968)

A aspiração de produzir arte engajada transcorre com ação do Governo no


intuito de controlar as atuações. A perseguição e a censura são instrumentos usados
pelos órgãos responsáveis pela conservação da moral e do bem estar social. Em janeiro
de 1968 o presidente Costa e Silva anuncia a reabertura do órgão responsável pela
censura, que atua com divergências e leva preocupação aos artistas.
Um ano paradoxal para os baianos, 1968, inicia com grande incentivo devido a
projetos desenvolvidos pelo Governo Luís Viana Filho (1967-1971), pelo Departamento
de Ensino Superior e Cultura (DESC), e pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC), que
propiciam promoção ao patrimônio cultural na Bahia. Durante um primeiro momento de
sua gestão, Luís Viana Filho incentivou, através de auxílios financiamentos, a criação
de peças, a construção e reforma de pequenos teatros (tanto em Salvador quanto nas
cidades interioranas), investiu na recuperação do telhado do Teatro Vila Velha (TVV) –
referencia do teatro soteropolitano – e promoveu concursos e festivais. Tais benefícios
não vieram com perseguições e/ou censura, sendo de grande importância no seu
governo. Nas colunas do A Tarde são notáveis as perspectivas para o ano que se inicia.
O que vale é já termos uma casa de espetáculos, embora limitada a certos
grupos sociais, restando-nos a esperança de termos à frente do Departamento
da Educação Superior da Secretaria da Educação um Luiz Henrique Dias
Tavares. Aliás, demonstrações do seu desejo em ajudar ao teatro baiano, têm
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sido dadas por Luiz Henrique, ajudando aos grupos não somente na
montagem de peças, como também para instalação de teatrinhos, como é o
caso do Teatro Experimental de Feira (TEF). (BARRETO, Francisco. jornal
A Tarde, Salvador, 03.01.68)

Apesar da aparente tranquilidade vivida pelos artistas do Estado da Bahia, o


teatro durante a gestão de Luiz Viana Filho, no final da década de 60, viveu momentos
de perseguições e censuras. O Estado sofreu com tais censuras, pois muitas peças
externas chegavam já censuradas. No mês de janeiro iniciam-se entre membros dos
grupos de teatro, cinema e música de todo o país, as discussões sobre a censura. Nesse
primeiro momento, tanto no Jornal da Bahia quando no A Tarde, é possível perceber a
dicotomia entre a classe artística nos depoimentos dados logo após a divulgação sobre a
censura do Presidente Costa e Silva. Em depoimento dado no dia 11 de Janeiro de 1968
ao Jornal da Bahia, Ariovaldo Mattos afirmou que “só admito a censura para menores
quando é feita por psicólogos”. Valter da Silva alegou: “não compreendo nem admito
limites á pensamento e no sentimento quando transmitidos em obra de arte”, e David
Salles sugere que “ela veio em boa hora, sendo uma medida consequente do Governo
que escolherá sabiamente os representantes da censura, com a mentalidade aberta para o
século XX”.
O mês de fevereiro surge com novas perspectivas sobre a censura. As ações em
meio cultural desenvolveram diversas críticas condenando o efeito da censura em todo o
país. Nesse período acontece, no solo do Rio de Janeiro, o V Festival Nacional de
Teatro dos Estudantes, com a atuação plena do órgão de censura e repressão da classe
teatral. Exemplo de obra censurada foi “O Evangelho segundo Zebedeu” de César
Vieira, que foi proibida de participar do evento, mas insistiu e levou o teatro Arena da
Guanabara a ser alvo de tiros e pedras. Na coluna de Vieira Neto é transmitido
insatisfação ocorrida em tal evento, segundo o olhar de Francisco Barreto:
Diz o Barreto, que é de lamentar que tal fato ocorra justamente no Rio de
Janeiro, uma cidade civilizada, e com a presença de 41 delegações de
estudantes vindo dos mais afastados rincões do Brasil, para realizar um
Festival de Teatro, tão elogiado e aplaudido, sob a sábia orientação de
Pascoal Carlos Magno. Tais atos de vandalismo – prossegue Francisco – só
sevem para excitar cada vez mais o povo, gerando insatisfações, criando
muitas vezes uma publicidade negativa em torno de uma obra medíocre, o
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que convenhamos, não é o caso de “O Evangelho Segundo Zebedeu”.


(NETO, Vieira. A Tarde, Salvador, 16.02.1968)

Como foi dito inicialmente, nesse primeiro momento a Bahia não foi palco de
intensas perseguições e censuras, mas também sofreu com a atuação do órgão de
censura, pois às peças externas ao Estado já chegavam censuradas. No mês de fevereiro
foi iniciada uma verdadeira caça às peças, e as insatisfações mobilizaram a organização
de uma greve em prol da reformulação da lei da censura. Havendo divergência ainda
sobre esse aspecto, muitos membros da classe artística defendiam o fim completo da
censura, enquanto outros buscavam a reformulação. O que todos compreendiam é que
as perseguições às obras estavam exacerbadas. É sobre a cobertura realizada pelos
jornais A Tarde e Jornal da Bahia, acerca destes temas, que surge este trabalho.
****
A imprensa sempre teve um papel importante na sociedade, pois auxilia na
construção da “realidade” na qual o individuo se circunscreve. Essa construção pode ser
influenciada conforme as nuançais políticas, sociais, econômicas e culturais. Ao longo
da história vemos o quão à imprensa pôde auxiliar no desenrolar de um fato histórico,
como na popularização de Vargas, ou impopularidade de Goulart. Não é dito que há
uma uniformidade nas informações circuladas, mas existem diversos conflitos nas
publicações, conforme as ideias defendidas nos editoriais e os interesses por trás das
informações. As informações difundidas nesses meios de comunicação são responsáveis
(direta ou indiretamente) na construção ideológica dos leitores, conforme os fatos
apontados.
O advento do golpe civil-militar colocou a imprensa num cenário importante para
a história do Brasil, pois criou defensores e opositores ao Presidente João Goulart.
Antes da ascensão do golpe podemos perceber a construção da realidade de forma
distinta, ao analisar o mesmo contexto social. Dá-se isso devido a linhas ideológicas e
políticas distintas, tanto do jornalista quando da editora. Durante o período em que se
configurava a preparação para o golpe, há diversos jornais que irão investir em pesadas
propagandas contra a política de Goulart. “A publicidade e a imprensa de forma geral,
agiram no sentido de não deixar dúvidas dos riscos que a população ‘ordeira e pacífica’
correria diante do ‘perigo comunista’” (SILVA, 2011: p. 76). Existiam também
imprensas que defendiam com veemência a política de Goulart, se diferenciando dos
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jornais já mencionados, como a Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia, que em suas


edições buscavam apontar as problemáticas atuais e os possíveis futuros problemas,
caso o golpe acontecesse. Dessa forma os jornais A Tarde e Jornal da Bahia seguiam
posicionamentos opostos.

Em salvador, os dois jornais de maior circulação falavam sobre o assunto e


mantinham posicionamento definidos e opostos. O jornal A Tarde colocava-
se sempre em postura de desacordo ao presidente Goulart e aos anseios
democráticos que corriam o país. Já o Jornal da Bahia mantinha
continuamente uma postura de apoio ao governo. (ARAUJO, 2012: p 31-32).

Essa divergência entre o JB e o A Tarde não se apresentava somente nas


discussões políticas, podendo ser observada nos assuntos relacionados à cultura e
problemas sociais. O assunto de maior importância durante o ano de 1968 entre os
atores, diretores e produtores de todo o país, era a censura, havendo divergência entre a
própria classe em relação aos benefícios e malefícios da censura. Sobre essa temática o
Jornal da Bahia fez amplas coberturas sobre as discussões e manifestações, incluindo
comentários e críticas sobre a censura no Brasil, que em alguns periódicos ganham
destaques. Além dos artigos que normalmente ocupavam o caderno 2, haviam também
notas tanto na capa quanto em outras partes do primeiro caderno.
O A Tarde também reportou sobre as movimentações e o impacto da censura nos
movimentos culturais. A diferença está no espaço destinado para tais coberturas. O mês
de fevereiro foi marcado por manifestações dos artistas contra a censura, chegando a
ocorrer greve entre a classe artística na Guanabara, porém mesmo durante esse período,
o movimento do teatro contra a censura, não recebeu nenhum destaque pelo jornal, o
que não descredencia as reportagens realizadas, mas permite observar que não era
objetivo do A Tarde privilegiar as articulações dos artistas.
É importante frisar que os autores dos artigos produzidos nas colunas sobre
críticas teatrais dos jornais em questão, são produzidos por pessoas envolvidas no
mundo da arte, como diretores e produtores. Francisco Barreto e Vieira Neto são os
críticos que mais aparecem no jornal A Tarde durante o período da pesquisa e estão
simultaneamente desenvolvendo alguns trabalhos, a exemplo, o espetáculo “Uma Obra
do Governo” que entrou em cartaz no mês de abril de 1968 de Dias Gomes e dirigida
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por Álvaro Guimarães, foi produzida por Vieira Neto. No Jornal da Bahia, Sóstrates
Gentil, responsável por maior parte dos artigos destinados ao tema Teatro, dirigiu em
abril a peça “O Santo Inquérito” de Dias Gomes, além de produzir e dirigir outras peças
ao longo do ano.
Há alguns periódicos do Jornal da Bahia, que apresentam críticas elaboradas por
figuras como: Glauber Rocha, Jerônimo Almeida, Joselito de Abreu e Josué Montello,
que também estão envolvidos com o movimento cultural, mas não necessariamente com
o teatro e que em algum momento teceram tanto sobre obras teatrais quanto sobre fatos
que estão em destaque, como o artigo Não há Escolha, de Joselito de Abreu, em que é
feito uma resenha da peça “A Escolha”, de Ariovaldo Matos sob a direção de Orlando
Sena. Nesse texto é criticado o roteiro da peça, a atuação dos atores, a direção e a
produção. É construída também uma análise relacionando o personagem com todo o
contexto circunscrito:
Tancredo é um homem de origem humilde que enriqueceu às custas de
expedientes os mais diversos é um tipo que saiu da miséria sem conseguir
desvencilhar-se dos traumas que a sociedade lhe impôs. Seus desabafos
repetidos, a desdita que sofreu antes de ficar rico e a vingança que impinge a
seres nos quais enxerga sua antiga origem pode ocorrer a um outro “nouveau
riche (ABREU, Joselito de. Jornal da Bahia. 26.04.1968)

Devido ao apoio dado no primeiro momento do Governo de Luís Viana Filho ao


desenvolvimento cultural, foram encenadas muitas peças consideradas pelo Censor
Federal como improprias ao consumo social na Bahia. Trabalhos como: “Uma Obra do
Governo”, adaptação do texto “O bem Amado” de Dias Gomes e dirigida por Álvaro
Guimarães, realizam análise da vida política nacional; e “A Escolha” de Ariovaldo
Matos, dirigida por Orlando Sena, conta a vida de um homem que enriqueceu valendo-
se de meios ilegais e não superou o trauma da pobreza.
Nos dois jornais é possível encontrar propagandas a respeito das peças, do
momento em que são iniciados os ensaios e das apresentações ao público. As
propagandas tem local fixo no A Tarde, que exibe uma tabela com a programação
cultural de Salvador, além de divulgar os trabalhos em alguns tópicos das colunas de
Vieira Neto e Francisco Barreto. O JB não tem um espaço reservado para as
propagandas, porém não é difícil descobrir as atividades culturais, já que são reservadas
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várias páginas para manifestações culturais, onde se encontram informações sobre os


movimentos artísticos. O A Tarde assume um caráter prático, pois em um único espaço
pode-se identificar as atividades mais relevantes ocorrendo na cidade.
Há divergências também quanto às críticas, ainda quando os dois jornais
assumem a defesa de uma mesma obra, se as peças possuíam assuntos polêmicos, a
exemplo de “Uma Obra do Governo” ou “A Escolha”, as críticas elaboradas para o
Jornal da Bahia vão além das técnicas dos atores ou do domínio do diretor e do autor,
enquanto no A Tarde, segue-se uma linha bastante técnica. Tal fato é pontuando na
tabela seguinte:

Uma Obra do Governo A Escolha


Jornal da Bahia A montagem feita por No plano de profundidade
Álvaro Guimarães foge a psicológica, de
toda problemática colocada estruturação dos
pelo autor. A própria personagens
denominação dos (principalmente o Tancredo
personagens fixa-as num da impressionante criação
clima bem interiorano. de Lourival Pariz), da
Utilizando as personagens análise crítica de uma
tal qual pensou Dias realidade social sob um
Gomes – dentro da prisma essencialmente
estrutura psicológica e inteligente. “A escolha”
conforme o meio que supera muito dos trabalhos
circunda, Álvaro ultimamente tão badalados
Guimarães transportou-se no sul do país.
para um outro mundo, Tecnicamente a peça é,
corrompido e degenerado e sem dúvida, de difícil
outras vezes apequenado encenação, especialmente
por mazelas de prazeres e porque repousa,
luxurias. Extrapola a basicamente, num único
realidade artística da farsa personagem, os demais
e cai numa “pep-art” funcionando de suporte ao
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recomendável. (GENTIL, de acentuação dos


Sóstrates, 30.04.1968) conflitos, embora
permanecendo passivos,
apenas acessórios, já que a
iniciativa, quase sempre
agressiva, é
constantemente do
personagem central.
(ALMEIDA Jerônimo,
20.04.1968)
A Tarde Não conseguiu ele [Álvaro Já afirmamos antes e não
Guimarães] neste temos nenhuma dúvida em
espetáculo manter do ratificar as nossas palavras,
primeiro ao fim a mesma foi este o melhor trabalho
linha de direção segura do encenador Orlando Sena
honesta e limpa desviando- que está se revelando como
a com cenas eróticas, o mais dinâmico do ano,
ousadas procurando efeitos com o maior número de
e resultados que achamos espetáculos já montado na
dispensáveis quando em Bahia. “A escolha” é uma
trabalhos realizados por boa peça uma grande
diretores do seu gabarito. representação, com ótimos
(BARRETO, Francisco. desempenhos individuais
08.04.1968). no seu único ato
(BARRETO, Francisco.
24.04.1968)

É possível perceber que além da análise técnica encontrada nas colonas sobre
teatro no JB, é feito um estudo dos problemas e/ou qualidade da obra, pontuando as
características “psicológicas” dos personagens e as discussões principais do texto. Em
alguns artigos são feitas comparações aos problemas sociais, é o caso da crítica de
Jerônimo Almeida sobre a peça “A Escolha” apontada na tabela acima descrita.
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Em comum nas obras trazidas para análise, temos que ambas sofreram medida
repressiva da Censura Federal e, por motivos divergentes, conseguiram permanecer em
apresentação sem cortes por tempo limitando ou realizando pagamento de multa. As
divulgações sobre a censura de ambas as obras foram feitas em jornais opostos. O
Jornal da Bahia divulgou nota sobre a censura da peça “A Escolha”, esta localizada no
caderno 1 e ocupando uma parte significativa da folha. Na reportagem são dadas as
informações básicas da obra (nome, autor), descritos os principais acontecimentos sobre
o fato e exploradas as opiniões do autor e diretor sobre o acontecimento. O A Tarde
começa sua coluna apresentando a peça “Uma Obra do Governo”, citando no texto
exposição que será realizada em Feira de Santana, e, em pequenos tópicos, redigindo
sobre assuntos culturais. No final da coluna, é separado pequeno espaço para abordar o
problema vivenciado pelo grupo em relação à censura.
No ano de 1968 percebe-se a continuação do problema iniciado em 1964, com o
Golpe Civil-Militar que encheu as ruas de medo. Surge a insatisfação, em seguida o
processo de resistência que leva a sobrevivência da arte engajada. A censura não surgiu
em 1968, mas ganhou configuração nesse período. Inicialmente a censura foi vista com
ambiguidade para alguns, mas com o tempo tornou-se imenso problema. A arte entrou
em processo de maturação simultaneamente com a repressão, e todos os
questionamentos iniciados na década de 1950, interrompidos no inicio de 1960, foram
cultivados novamente com o olhar experiente do tempo. A década de 1960 terminou,
deixando para o futuro uma vasta herança cultural.
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NETO, Vieira. A Tarde, Salvador, 16.02.1968

TEATRO DE CULTURA POPULAR (TCP): PRODUÇÕES E VIVÊNCIAS NO


RECIFE DO INÍCIO DA DÉCADA DE 1960

Luiz Felipe Batista Genú


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
felipegenu@hotmail.com

RESUMO
Este artigo procura oferecer um panorama de algumas atividades do Teatro de
Cultura Popular (TCP), ligado ao Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife.
Dentro dessa perspectiva procuramos destacar as discussões em torno do fazer teatral
que norteavam a produção do TCP, bem como as relações dessa produção com o
momento social e político vivido em Pernambuco no início da década de 1960 – até o
golpe civil-militar de 1964. É nosso objetivo ainda analisar os efeitos que o
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envolvimento com o TCP – considerado por parte da crítica da época um teatro político
ou de propaganda comunista – produziu na trajetória de alguns dos seus integrantes
durante os anos em que o grupo esteve ativo e após a sua dissolução devido ao golpe de
1964. Em nossas reflexões dialogamos com a noção de “ideias-força” – ideias capazes
de influenciar as interpretações feitas sobre uma peça teatral numa dada temporalidade –
apresentada por J. Guinsburg e Rosângela Patriota.
Palavras-chave: Teatro; Cultura; Popular.

ABSTRACT
This article seeks to provide an overview of some activities from the “Teatro de
Cultura Popular (TCP)”, connected to the “Movimento de Cultura Popular (MCP)”.
Within this perspective, we intend to highlight the discussions around the scenic
tendencies that guided the production of TCP, as well as the connections between this
production and the social and political moment lived in Pernambuco in the early 1960s
– until the civil-military coup of 1964. It is also our goal to examine the effects that the
involvement with the TCP – sometimes referred by some of the critics of the period as a
political theater and other times as a communist propaganda theater – produced in the
career of some of its members during the years when the group was active and after its
dissolution, due to the 1964 coup. In our reflections, we dialogued with the notion of
"ideias-força" – ideas that could affect the interpretations made about a theatrical play in
a given temporality – presented by J. Ginsburg and Rosângela Patriot.
Keys words: Theater; Culture; Popular.
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Introdução
Durante a segunda metade da década de 1950 e o quatriênio inicial da década de
1960, a insatisfação crescente de alguns setores sociais – especialmente estudantes,
profissionais liberais e trabalhadores rurais e urbanos – com o status quo econômico,
político e social de Pernambuco, impulsionou a formação de uma coalizão político-
partidária denominada Frente do Recife. Esta, no nível político, se opunha a forma
como as oligarquias agrárias, representadas principalmente pelo PSD193, conduziam a
política do estado. Embora a configuração partidária da Frente do Recife não tenha se
mantido a mesma ao longo de sua existência194, é possível verificar que três partidos
desempenharam o papel central nessa frente oposicionista: PTB, PSB e PCB195.
Observa-se a partir de 1958, com a campanha eleitoral de Cid Sampaio para o
governo de Pernambuco, a intensificação da polarização política no estado. A sua
vitória na eleição para o governo de Pernambuco, com o apoio das Oposições Unidas,
indicou que o discurso e as práticas das esquerdas ganhavam espaço naquele momento.
Tendência reforçada pela eleição de Miguel Arraes para o mesmo cargo, em 1962. Por
outro lado, na medida em que se acirravam as disputas entre os partidos políticos,
crescia a mobilização popular e por extensão suas reivindicações.
Entre os movimentos populares no estado à época, pode-se destacar as Ligas
Camponesas que, em 1959, por meio da articulação política de um dos seus líderes,
Francisco Julião, conseguiu a desapropriação das terras do engenho Galiléia em favor
dos trabalhadores foreiros daquela propriedade – primeira decisão desse tipo ocorrida
no Brasil. Essa vitória deu fôlego para que esse movimento expandisse sua atuação para
outras regiões de Pernambuco e também outros estados. Essa movimentação político-
social verificada em Pernambuco chamou a atenção, inclusive, da imprensa norte-
americana196 preocupada, sobretudo a partir da Revolução Cubana de 1959, com o

193
Partido Social Democrata (PSD). Fundado em 1945.
194
Em 1958, com o objetivo de disputar as eleições para governador do estado, a Frente do Recife (PTB,
PSB, PCB) formou as Oposições Unidas - coligação partidária que incluiu ainda a União Democrática
Nacional (UDN). Já nas eleições de 1962, as Oposições Unidas não contaram com o apoio da UDN. Em
seu lugar, conseguiram compor uma aliança com uma dissidência do PSD, partido tradicionalmente
ligado às oligarquias agrárias.
195
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Comunista
Brasileiro (PCB).
196
O jornalista norte-americano Tad Szulc publicou no jornal The New York Times dois artigos, nos dias
31/10/1960 e 01/11/1960, nos quais destacava a atmosfera favorável a uma revolta no nordeste brasileiro
devido à pobreza da região e a suposta atuação de pessoas ligadas ao comunismo.
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perigo de expansão do comunismo pelo continente americano (PAGE, 1972), afinal,


desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética
disputavam estrategicamente e por meio de conflitos indiretos, zonas de influência pelo
mundo, no que ficou conhecido como Guerra Fria.
Assim, é perceptível que entre o final da década de 1950 e o início da década
seguinte, Pernambuco era palco de acirrada disputa política e ideológica com
repercussões na imprensa nacional e internacional. No entanto, não era apenas no
campo da política que se projetavam significativas manifestações e disputas. No plano
da cultura, intelectuais e artistas como Audálio Alves, Ariano Suassuna, Abelardo da
Hora, Francisco Brennand, Germano Coelho, Gilberto Freyre, Hermilo Borba Filho,
Luiz Marinho; – por meio de suas encenações teatrais, artigos na imprensa, publicações
de livros, exposições de pinturas e esculturas – não só movimentavam o campo
artístico-cultural da cidade do Recife como a transformavam num centro de atração para
artistas e intelectuais de outras partes do país.
Ainda no que se refere à temática da cultura no início dos anos 1960 no Brasil é
válido destacar, como aponta Heloísa Buarque de Hollanda, que os temas da
modernização, da fé no povo e do nacionalismo, ganham foco em produções artístico-
culturais de diversos campos, como o cinema, o teatro e a poesia, e “informam a
urgência de uma arte participante e a crença no alcance revolucionário da arte e da
palavra poética” (2007, p. 139).
Voltando-se para o teatro nesse período, o crítico J. Guinsburg e a historiadora
Rosangela Patriota assinalam que aparece então uma dramaturgia – principalmente com
o Teatro de Arena de São Paulo – interessada em redimensionar o fator nacionalista
presente em textos teatrais desde o século XIX de acordo com a situação vivenciada nas
décadas de 1950 e 1960. Nesse sentido, “o nacional tornou-se nacionalismo crítico,
entendido como capaz de refletir, à luz de uma perspectiva crítica, as condições de vida
e de luta da população” (GUINSBURG; PATRIOTA. 2012, p. 142). Por essa razão, os
autores destacam o nacionalismo crítico, a liberdade e a identidade nacional como sendo
as ideias-força – aquelas ideias capazes de nortear as reflexões sobre o teatro em uma
dada temporalidade, ideias que sintetizaram dinâmicas e processos plurais – do teatro
brasileiro no período que compreende o fim da década de 1950 até a década de 1970.
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Entra em cena o TCP


É no cenário descrito anteriormente que é criado o Teatro de Cultura Popular
(TCP), inicialmente chamado de Teatro Experimental de Cultura (REIS; REIS, 2005, p.
48). O TCP compunha a divisão de teatro do Movimento de Cultura Popular (MCP) –
fundado em 1960 durante a gestão de Miguel Arraes na prefeitura do Recife. O MCP foi
um órgão técnico-administrativo que reuniu intelectuais e artistas de diversas áreas –
e tendências políticas – e auxiliou a prefeitura do Recife no desenvolvimento e
aplicação de iniciativas voltadas para a área social e cultural da cidade, em que se
destacou a campanha de alfabetização de crianças e adultos. Mais tarde, com a chegada
de Miguel Arraes ao governo do estado, em 1963, o MCP expandiu as suas atividades
para o âmbito estadual, como demonstra o Serviço de Assistência Itinerante (S.A.I),
coordenado pelo MCP e responsável por levar assistência médica e sanitária a
população do interior197.
O crítico teatral – contemporâneo ao TCP – Joel Pontes, afirma que aquele
grupo consistia no “conjunto de amadores, ao redor de Luiz Mendonça, jovem diretor
[...], a encenar autores pernambucanos, entre os quais Luiz Marinho, cujo drama A
derradeira ceia foi lançado pelo (Teatro) Experimental, e outras peças pelo TCP”
(1966, p.118). Sobre as motivações presentes na fundação do grupo, o próprio Luiz
Mendonça (1968, p.149) escreveu que:

O Teatro de Cultura Popular não nasceu por acaso: resultou da cristalização


de várias experiências anteriores que visavam, antes de mais nada, a uma
renovação do teatro. Renovação em todos os sentidos, principalmente no de
fazer um teatro mais amplo e aberto, que o tirasse do tradicional Teatro Santa
Isabel, onde os preços da entrada e a obrigatoriedade do uso do paletó o
tornavam proibido para o povo e restrito a uma pequena elite financeira.

O parágrafo supracitado integra um artigo, no qual o diretor argumenta que o


TCP aparece numa conjuntura onde numerosos empreendimentos teatrais anteriores
haviam se comprometido com a renovação do Teatro em Pernambuco, processo que
incluía, entre outros pontos, a elaboração de iniciativas visando o aumento da

197
APEJE. Acervo DOPS-PE, prontuário funcional nº 1501-D, fundo: 29.841.
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acessibilidade da população aos espetáculos – com destaque para o pioneirismo do


Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP)198.
Além da acessibilidade aos espetáculos, a proposta artística do TCP propunha a
elaboração de uma “[...] cultura para a emancipação do povo”199. De acordo com
depoimento de Germano Coelho, um dos criadores do MCP e seu primeiro presidente, a
intenção era criar um teatro “que se tornasse a voz dos oprimidos” (2012, p. 68). Dessa
maneira, impulsionados pelo apoio institucional – que lhes trouxe o amparo material – o
TCP inaugurou dois novos espaços para a encenação de peças teatrais na sede do MCP,
no bairro de Casa Amarela, no Recife: o Teatro do Povo (uma arena com arquibancada
coberta por uma lona de circo, com lugar para 500 pessoas) e a Concha Acústica do
Arraial do Bom Jesus – que comportava em torno de 3 mil pessoas – (REIS; REIS,
2005, p.48). Seguindo seu objetivo de levar teatro às populações que não podiam
frequentar o teatro de Santa Isabel e por se tratar de um grupo em formação, o TCP
dividiu esses novos espaços com outros grupos que aceitavam o convite – e o desafio –
de encenar peças teatrais para uma população pouco acostumada a esse tipo de
espetáculo.
Recorrendo mais uma vez ao relato memorialístico – logo um discurso que antes
de ser uma reprodução exata do acontecimento contém reelaborações da realidade
vivida – de Luiz Mendonça, encontramos alguns nomes dos grupos que aceitaram esse
convite, bem como encararam as dificuldades existentes nesse momento inicial dos
trabalhos, em 1961. Por exemplo, para a inauguração do Teatro do Povo foi convidado
o Teatro de Amadores de Caruaru, que apresentou a peça “Eles não usam black-tie”.
Luiz Mendonça narra que apesar da alta expectativa criada em torno dessa inauguração
e do cuidado na escolha do texto apresentado, o público reagiu negativamente à peça.
Segundo afirma Mendonça, além da superlotação, o público não tinha o hábito de
acompanhar uma trama única – com exposição, desenvolvimento e conclusão –
acostumado que estava à espetáculos variados e de cenas curtas (1968, p. 152).
O Teatro Adolescente do Recife, dirigido por Clênio Wanderley, também se
apresentou no Teatro do Povo e mais uma vez o público não gostou do que viu. A

198
Sobre o TEP ver: TEIXEIRA, Flávio Weinstein. O Movimento e a Linha. Presença do teatro do
estudante e do gráfico amador no Recife (1946 – 1964). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007.
199
Panfleto da peça “Julgamento em Novo Sol”. APEJE. Acervo DOPS-PE, prontuário individual nº
15.923, fundo SSP: 22017.
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insatisfação da audiência foi sentida ainda em outras duas montagens com o elenco do
TCP, que na época ainda se chamava Teatro Experimental de Cultura: “Chapeuzinho
Vermelho”, texto de Paulo Magalhaes, e “A derradeira ceia”, escrita por Luiz Marinho.
Sobre essa primeira temporada no Teatro do Povo, Luiz Mendonça conclui que, apesar
da importância da experiência adquirida, “ainda não sabíamos para onde sair. Tínhamos
o apoio do governo e casas de espetáculos. Mas não sabíamos como agir. O repertório
continuava ainda um problema grave [...] Voltamos às reuniões internas de pesquisa e
debates” (1968, p. 153).

O contato com o Teatro de Arena de São Paulo

Não obstante o TCP tenha procurado agregar às suas encenações manifestações


folclóricas populares como o reisado, o pastoril, o bumba meu boi – que serviam como
forma de aproximação com o público – além de textos teatrais voltados para o público
infantil, como “A Volta do Camaleão Alface” de Maria Clara Machado, podemos
observar que temáticas como o latifúndio, a exploração do camponês e do operário, o
analfabetismo, eram trazidas para o primeiro plano de boa parte das montagens
realizadas pelo grupo.
Essa perspectiva social arraigada ao projeto artístico do TCP ao mesmo tempo
em que afastou alguns de seus membros fundadores – como Hermilo Borba Filho e
Ariano Suassuna – insatisfeitos com a maneira como esse projeto foi posto em prática,
favoreceu a aproximação com o Teatro de Arena de São Paulo. O Arena de São Paulo
em sua primeira visita ao Recife, em 1961, além de encenar na Concha Acústica do
Arraial do Bom Jesus a peça “Revolução na América do Sul” – texto de Augusto Boal e
direção de José Renato – ofereceu um seminário de dramaturgia dirigido por Augusto
Boal e um laboratório de interpretação, orientado por Nelson Xavier e Milton
Gonçalves (REIS; REIS, 2005, p. 51). Dois integrantes do Teatro de Arena de São
Paulo, convidados a trabalhar no TCP, permaneceram no Recife após o fim da
temporada do grupo na cidade: Ded Bourbonnais e Nelson Xavier. No tempo em que
morou no Recife, Nelson Xavier acumulou ainda o cargo de correspondente teatral do
jornal Última Hora Nordeste.
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Além da troca de experiências e a chegada de dois novos membros ao grupo, o


convívio com o Teatro de Arena de São Paulo motivou a montagem pelo TCP da peça
“Julgamento em Novo Sol”, escrita por cinco autores200 e que aborda a disputa entre
trabalhadores rurais e latifundiários pela posse da terra. A estréia da peça ocorreu em
1962, sob a direção de Nelson Xavier, no Teatro de Santa Isabel. Nessa ocasião também
o nome Teatro de Cultura Popular foi adotado em definitivo. O sucesso das encenações
de “Julgamento em Novo Sol” – inclusive quando encenado em outros espaços além do
Teatro de Santa Isabel – foi seguido pela montagem, no mesmo ano, de mais um texto
de Luiz Marinho, chamado “A Incelença”. Foi com esses dois espetáculos –
“Julgamento em Novo Sol” e “A Incelença” – mais a peça infantil “A Volta do
Camaleão Alface” que o TCP viajou em fevereiro de 1963 para temporadas em Brasília
e no Rio de Janeiro201.
Concomitante às encenações no Teatro de Santa Isabel e na sede do MCP, no
bairro de Casa Amarela, o TCP procurou aproveitar os espaços que existiam na cidade
do Recife para desenvolver atividades artísticas junto à população. Isso foi possível a
partir do uso dos Centros e Praças de Cultura e dos Centros Educativos Operários.
Desse trabalho resultaram oito grupos de teatro amador compostos por alunos dos
referidos centros e filhos de operários que eram assistidos por diretores e técnicos do
TCP (Mendonça, 1968, p. 157). Ainda em 1963, o Teatro de Arena de São Paulo voltou
ao Recife para encenar sua adaptação da peça “O melhor Juiz, o Rei”, de Lope de Vega,
e novo seminário de interpretação foi oferecido pelo ator Juca de Oliveira.
Quando o MCP mobilizou seus esforços em torno da campanha de alfabetização,
o TCP – animado pela perspectiva de que a formação cultural e educacional de um
povo, para além da alfabetização, “se faz com meios de cultura, baseados em fatos
sociais e tradições populares desse mesmo povo, para que ele possa melhor identificar-
se com suas formas populares de arte e com a realidade brasileira atual”202 – juntou-se a
essa campanha. Nesse sentido, o TCP desenvolveu dois espetáculos em um ato: “A

200
Augusto Boal, Benedito Araújo, Hamilton Trevisan, Modesto Carone e Nelson Xavier.
201
APEJE. Hemeroteca. Última Hora Nordeste, 01/02/1963, p.02.
202
Declaração assinada por Luiz Mendoça em 27/02/1964. Arquivo do DOPS-PE. Prontuário Funcional.
Nome: Movimento de Cultura Popular. Nº Doc.: 1501-D. Data: 1964 - 1980. Fundo: 29.841. Delegacia de
Ordem Política e Social (DOPS). APEJE.
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estória do Formiguinho e sua porta”, texto de Arnaldo Jabor adaptado por Luiz
Mendonça, e “Paixão e morte do vaqueiro Manoel Onofre”, escrito por José Wilker203.

O TCP sob a vigilância da Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco

É possível perceber, baseado no que foi escrito anteriormente, que não só


Pernambuco, como o Brasil de uma forma geral vivia um momento de movimentação
política, social e cultural ímpar entre as décadas de 1950 e 1960. Esse período foi
marcado também pelo sentimento de anticomunismo, expressado em discursos e
práticas que circulavam em jornais, programas de rádio e televisão, bem como em
panfletos distribuídos nas ruas que visavam à construção do medo em relação à
propagação da ideologia comunista. É tangível a presença de grupos em Pernambuco
que procuravam incitar o medo do comunismo na sociedade, alertando que os
comunistas eram numerosos e se preparavam para aplicar um golpe de estado que
suspenderia as liberdades das quais desfrutavam os cidadãos. Utilizavam-se para tanto,
de uma estratégia que “homogeneizava diferentes parcelas da sociedade e as nomeava
como comunistas” (PORFÍRIO, 2009, p. 99).
Nesse sentido, alguns intelectuais, artistas e movimentos que defenderam a
importância do papel social e/ou político da arte durante esses anos foram classificados
como comunistas e subversivos; independente de serem ou não filiados a partidos de
esquerda ou ao Partido Comunista. Entre os diversos efeitos ocasionados por essa
rotulação indiscriminada de artistas e movimentos artísticos como comunistas, estavam
as investigações empreendidas por órgãos oficiais como o Departamento de Ordem
Política e Social de Pernambuco (DOPS – PE.), das quais se tornaram alvos.
No acervo do DOPS-PE estão localizados numerosos prontuários resultantes das
investigações promovidas por delegacia em Pernambuco. Entre esses prontuários há um
prontuário funcional do MCP204, que data de 1960 a 1984, ou seja, mesmo após a
extinção daquele movimento – em abril de 1964 – os agentes prosseguiram com a
anexação de documentos a respeito do movimento ou de seus integrantes. Entre outros
documentos, há uma lista com o brasão da secretaria de Ordem Pública do Estado,

203
Idem.
204
Arquivo do DOPS-PE. Prontuário Funcional. Nome: Movimento de Cultura Popular. Nº Doc.: 1501-
D. Data: 1964 - 1980. Fundo: 29.841. Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). APEJE.
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datada de janeiro de 1961, onde constam os nomes, a nacionalidade, o estado civil e a


profissão dos sócios fundadores do MCP. Professores, teatrólogos, escultores, pintores,
jornalistas, estudantes, enfim, todos os signatários da carta de fundação do MCP estão
registrados. Alguns destes chegaram a ser alvo de investigações mais detalhadas, como
foi o caso de Germano Coelho e Luiz Mendonça que possuem também prontuários de
investigação individual.

Sobre o TCP, essa vigilância é evidenciada pelos materiais de divulgação dos


espetáculos produzidos pelo grupo e que foram recolhidos pelos agentes. O valor desse
material para os agentes do DOPS deve estar ligado aos detalhes oferecidos sobre o
grupo no texto ali impresso. Tomando como exemplo o programa da peça infantil “A
volta do Camaleão Alface”, observamos que nele constam, além da proposta cênica do
grupo, os nomes de todos os envolvidos na montagem. Desde o elenco de atores, até a
equipe técnica.

O prontuário de investigações número 17.800 apresenta um relatório, elaborado


por agentes da 2ª seção do Quartel General da 2ª Zona Aérea, que versa sobre um ex-
integrante do TCP que é indicado como um “elemento comunista”. Escrito a partir das
informações reunidas pelo informante B-2, esse relatório traz o seguinte texto: “O Sr.
Luiz Mendonça, ex-diretor da divisão de Teatro do extinto Movimento de Cultura
Popular e seguaz da linha Pequim, encontra-se trabalhando em emissora de TV carioca
[...] integra o grupo Decisão (teatro) no Rio de Janeiro”205.

No referido relatório o uso do termo “linha Pequim” é elucidativo no sentido de


exemplificar as classificações construídas e às quais foram submetidas, pelos agentes do
DOPS, as pessoas ligadas ao TCP – nesse caso comunistas sob a orientação chinesa do
comunismo. Vale ressaltar que Luiz Mendonça não era membro do Partido Comunista.
Outro aspecto presente no documento – assim como no prontuário funcional do MCP –
é a continuidade da vigilância após a extinção do TCP, já que no relatório consta que as
informações colhidas pelo informante B-2 foram enviadas no dia 18 de maio de 1965.

Por fim, algumas considerações.

205
Arquivo do DOPS-PE. Prontuário Individual. Nome: Luiz Mendonça. Nº Doc.: 17.800. Data: 1965 -
1967. Fundo23.865. Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). APEJE.
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Esse artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a trajetória do Teatro de
Cultura Popular (TCP) – desenvolvida em parceria com o Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Pernambuco – que busca investigar as múltiplas
relações entre o fazer teatral do TCP e o presente vivido pelos integrantes do grupo, ou
seja, o início da década de 1960 no Brasil. O intento empreendido ao longo das páginas
desse artigo foi o de oferecer ao leitor um panorama das atividades do (TCP). Panorama
que, apesar de suas limitações, procurou abranger os debates, as tensões e as intenções
envolvidos na formação e na atuação do grupo, bem como os intercâmbios de
experiências entre o TCP e outros grupos de teatro, como o Teatro de Arena de São
Paulo. Lembrando que, para pensar o teatro sob uma perspectiva da História é preciso
considerar o fato teatral como “uma rede extensa e complexa de relações dinâmicas e
plurais que transitam entre a semiologia, a história, a sociologia, a antropologia, a
técnica e a arte, a representação e a política” (PARANHOS. 2012, p. 09), procuramos
ressaltar as relações entre a produção do TCP com o momento social e político vivido
em Pernambuco no início da década de 1960 – até o golpe civil-militar de 1964.
Nesse sentido, é importante observar que o TCP estava inserido numa dinâmica
teatral local que, como aponta Milton Baccarelli, era marcada pela presença de grupos
amadores que por meio “do palco, souberam expor e defender suas ideias artísticas,
políticas, religiosas ou sociais” (1994, p.17). Não obstante as raízes amadoras em
comum com outros grupos teatrais pernambucanos, pode-se perceber que o TCP
possuía entre as particularidades que o distinguia dos outros grupos, as suas ligações
institucionais com o MCP e, consequentemente, com as forças políticas que apoiavam o
governo municipal e, a partir de 1963, estadual de Miguel Arraes. Essa relação
institucional com o governo de Miguel Arraes inseria o TCP no cenário das disputas
políticas e sociais travadas no estado à época, além de reverberar no projeto artístico
desenvolvido pelo grupo e nas análises e criticas feitas à época sobre o trabalho do
grupo.

Bibliografia Consultada
BACCARELLI, Milton. Tirando a máscara: Teatro pernambucano, 20 anos de
repressão. Recife: FUNDARPE, 1994.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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GT 4
Escritos dos alfabetizadores: as cartas dos professores do Mobral 1970-
1980

Bianca Nogueira da Silva Souza


Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Doutoranda em História.
E-mail: bia_nog@hotmail.com

Ceará, 26 de Novembro de 1971


O dia começa cedo no Sítio açude Uruburetama. Nas primeiras horas da manhã
já se está de pé. A vida é dura e o trabalho é pesado. Os desafios para a sobrevivência
são muitos: o que comer, o que beber, o que vestir, são preocupações constantes entre
os habitantes desse lugar esquecido pelo desenvolvimento.
Com toda a simplicidade que lhe é peculiar, a dona de casa, Maria Furtado
Viana, escreve mais uma carta. Numa folha papel, arrancada aleatoriamente do seu
caderno de anotações, usando uma caneta ela registra:

Quero vos dar meus sincéros agradecimentos por está (embora com muito
sacrifício) ganhando esses 70 contos que muito embora muito poquinho já
me serva para ajudar a crear meus filinhos que são nove e sabe Deus como
crio com a horrível caristia de tudo, ainda não sobrou nem para eu limpar
minha classe. Mais a Deus querer, possa ser que ainda venha um bom
aumento, e eu melhore tudo em minha classe, e possa comprar até uns
banquinhos porque os alunos são 30 e os bancos que tenho são poucos. Como
tambem: para comprar o Querosene pois moro fora da Cidade dois
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De 22 a 25 de abril de 2014
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Quilômetros e não tem Luz. Confiada em Deus e no vosso bom coração


espera essa melhora a mais humilde de vossas servas.
Fonte INEP – Arquivo Mobral, Cx 126, n°54.

Essas linhas tinham um destino ousado. Estavam endereçadas a Emílio


Garrastazu Médice, militar, presidente da república entre os anos de 1969 a 1974. Dona
Maria fazia parte do grupo de pessoas que, em troca de alguns cruzeiros, trabalhava na
alfabetização de jovens e adultos no Ceará. Como alfabetizadora, afirmava que sua
missão era levar as pessoas de sua comunidade das “trevas do analfabetismo” para a
“luz do conhecimento”.
O trabalho dessa dona de casa e alfabetizadora não era raro. Milhares de pessoas
aderiram ao projeto desencadeado pelo governo federal a partir da lei 5.379 de 15 de
dezembro de 1967 que criou o Mobral – Movimento Brasileiro de Alfabetização. Esse
programa propunha a alfabetização de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa
humana a adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua
comunidade, permitindo melhores condições de vida" (Mobral, 1973, p. 9). Com um
caloroso discurso e metas ousadas, o Mobral afirmava no momento de sua criação que
erradicaria o analfabetismo no país em dez anos206.
Essa carta chama a atenção por diversos aspectos. A primeira delas é a possibilidade de
lermos o Mobral suas ações e perspectivas a partir da narrativa dos alfabetizadores que
compuseram um dos maiores programas de educação de massa realizado no Brasil.
Conhecer suas necessidades “embora muito poquinho já me serve para ajudar a crear
meus filinhos que são nove”, anseios em torno de uma melhoria de vida através do
trabalho “Mais a Deus querer, possa ser que ainda venha um bom aumento”, seus
desafios cotidianos na esfera educacional nas regiões mais inóspitas do Brasil “Como
tambem: para comprar o Querosene pois moro fora da Cidade dois Quilômetros e não
tem Luz”.
A carta de dona Maria aponta ainda outras duas características comuns aos
alfabetizadores do Mobral: a) o despreparo na formação pedagógica dos sujeitos que se
habilitavam a ensinar a ler e escrever e, b) a disposição em lidar com a desafiadora
estrutura do programa, precária em muitas cidades brasileiras, especialmente nas
pequenas cidades do campo.
Cartas como essas são mais comuns do que alguns historiadores poderiam supor. Elas
eram frequentes e resistiram ao tempo, foram produzidas nos quatro cantos do país e
arquivadas pelo Mobral-Central órgão sede no Rio de Janeiro que gerenciava todo o
movimento e seus trabalhos pedagógicos e sociais.

Aspectos gerais das correspondências

206
Embora tenha sua criação datada de 1967 só em 1970 é que o Mobral inicia efetivamente suas
atividades de alfabetização prevendo seu fim em 1980 com o índice de 100% de alfabetização entre
pessoas em idade escolar.
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Atendendo aos limites desse texto fiz a escolha por 54 (cinquenta e quatro)
cartas, todas escritas a punho pelos alfabetizadores do Mobral num recorte temporal que
vai de 1971 a 1980, período que compreende a fase inicial do programa, sua expansão e
declínio.
A produção desses escritos era estimulada pela obrigatoriedade que os
professores tinham em prestar contas periodicamente de suas ações e resultados. Essa
produção era acompanha pela constante supervisão de pessoas que a nível municipal,
estadual e nacional solicitam essas “cartas-relatórios” que tinham como destino a
coordenação geral do Mobral- RJ.
As cartas em questão davam detalhes de como estavam às aulas, a assiduidade
entre os alunos, os eventuais desistentes e as dificuldades de cada região para manter
regularmente os cursos. A janela de comunicação entre as comunidades rurais e urbanas
do país com as instâncias centrais do Mobral estava aberta através das cartas. Diante
disso os alfabetizadores não se furtavam de apresentar suas adversidades cotidianas e
pedir providências:

“Eu caminho 7 quilometros de peis para ir trabalhar ja estou cansada. Preciso


de uma orientação pra vê a quem posso pedir uma ajuda para comprar um
transporte. A comissão municipal eu não pesso mais, porque não da mesmo.
Somos 129 alfabetizadoras 20 Mobral no meu município de Tucano. Todas
temos vontade de arranjar merenda e outras coisas para a escola. Mas a
comissão municipal não dá”. Oriente-me por favor responda-me, para
melhorar a situação minha, e de meus alunos que sofrem tanto. Escrevem no
chão em cima de uma esteira quase no escuro, sem ter roupa, sem ter
merenda, sem ter mesa, sem ter quadro de giz.
Antonia Ferreira dos Santos, Poço Redondo, município de Tucano-BA. Fonte
INEP – Arquivo Mobral, Cx 126, n° 305.

Foi com essa oferta de educação, muitas vezes precária como no caso de
Tucano-BA, que o Mobral estendeu uma grande lona sobre o Brasil e chegou a todos os
municípios do país207. De acordo com o próprio Movimento

O Brasil é ocupado pelas equipes, palmo a palmo. Por isso, o Mobral é


excepcional instrumento de pesquisa geral, porque penetra nos lugares mais
remotos, em missão apostólica. Milhares de professores e de escolas foram a
máquina de alfabetização – exemplo para o mundo
BRASIL-MOBRAL, 1975 P.5

A presença física de um órgão ligado ao governo Federal e a assídua


comunicação via cartas, permitiu um maior acompanhamento do cotidiano das cidades
pelo governo militar, fator de relevância no período em questão.

207
Segundo dados do Mobral-central o Brasil tinha nos anos de 1970, cerca de 3.953 municípios. Todos
alcançados pelo Mobral.
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Um outro aspecto curiosos nas correspondências era que, embora o destino fosse
o Mobral-Central no Rio de Janeiro, muitas dessas cartas estavam endereçadas
nominalmente a sujeitos específicos, autoridades nacionais da época como os
presidentes do Mobral (Arlindo Lopes Correia e Mario Henrique Simonsen) e os
presidentes da república do período (Médice e Ernesto Geisel).
No feixe documental aqui recortado, encontrei a representação de 9 (nove)
estados brasileiros208 a partir de pequenas cidades/sítios/engenhos da zona rural de cada
região. Lugares pequenos e pobres, marcados singularmente pela privação de recursos e
conhecimento científico e pela abundancia de esperança, cansaço e em muitos casos
consonância com o regime civil-militar.

Análise da escrita
Um importante aspecto a ser considerado no estatuto da escrita de cartas é a
identidade do seu autor. Essa identidade se dá a perceber, dentre outros aspectos, pelos
traços deixados no próprio documento.
As cartas escritas pelos alfabetizadores do Mobral apresentam, do ponto de vista
material algumas dessas marcas que auxiliam no processo de análise e estudo daquele
contexto histórico. Todas são escritas a próprio punho, algumas à caneta outras a lápis.
Em papel pautado ou em papel jornal elas são produzidas artesanalmente num esforço
de narrar um cenário social, educacional e por que não político dos mais diversos cantos
do Brasil.
Segundo a historiadora Ângela de Castro Gomes “a escrita de si assume a
subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem, construindo
sobre ela a ‘sua verdade’ (2004, p. 14). Nas “verdades” dos escritos epistolares dos
alfabetizadores do Mobral, percebo uma forte presença da oralidade transcrita e desvios
grosseiros na norma padrão da lingua, revelando um despreparo para o ofício que
desempenhavam e marcas de uma inabilidade na escrita. Na carta escrita por outra
alfabetizadora, por exemplo, é possível ler “em primeiro lugar meus agradicimentos.
que aqui vai tudu bem granças a Deus e agora quero falar sobre meus 70 alunos
imcruzivel eles gostam muito quando eu vou expl-orar = o cartaz só prá depois eu e
eles tombem discutir sobre o assunto” (Ana Soledade, São Francisco, MG. Fonte INEP,
Cx 126, n°310 e 311).
Uma análise minuciosa do ponto de vista da linguagem colocaria numa fase
inicial de alfabetização muitos dos autores das cartas encontradas, desafiando os dados e
a credibilidade dos resultados ostentados pelo Mobral ao longo dos seus dez anos de
trabalho209.

Sobre os sujeitos autores

208
Os Estados em questão são: Bahia, Pernambuco, Sergipe, Santa Catarina, Ceará, Paraíba,
Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte.
209
De acordo com números do próprio Mobral o índice de analfabetismo no Brasil teria caído de 33,6%
em 1970 para 25,5% em 1980 a partir do seu trabalho. O que manteve um grande número de brasileiros
na categoria de analfabetos.
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Cartas são documentos que intrigam os pesquisadores quanto à possível


identidade do autor. Encontro nesse conjunto de epístolas alguns indícios de quem são
os sujeitos históricos que produziram esses escritos: mães (geralmente de muitos filhos),
donas de casa, trabalhadores rurais, jovens e velhos desempregados que vem no Mobral
a chance de conseguir algum sustento familiar, em terras escassas de oportunidades.
Homens e mulheres entre 15 e 58 anos de idade que compõem um universo de milhares
de alfabetizadores que, a partir do ideário criado pelo governo militar, estimavam a
alfabetização de todo o país.
No Mobral a presença feminina é mais latente. Das 54 cartas em análise, apenas
6 foram escrita por homens, o que pode ser um forte indício da feminização do Mobral
entre os alfabetizadores. Embora não seja interesse desse texto aprofundar essa questão
do ponto de vista das relações de gênero, considero salutar lembrar que no Brasil o
magistério principalmente no nível da educação básica foi/é um espaço amplamente
ocupado por mulheres210.

O conteúdo das cartas


As cartas produzidas pelos professores e professoras do Mobral apresentam
alguns tons de uniformidade do ponto de vista da estrutura narrativa. Geralmente são
abertas com um cabeçalho indicando o local de onde escrevem “Fazenda Santa Maria,
15-7-80”, “Russas 15 de julho de 1980”, “Sabiaguaba 15-7-80”, “Serra Branca 23 de
11 de 1975” uma expressão de saudação e pronomes de tratamento, geralmente marcada
de grande reverência as autoridades a que se remetem “ilustríssimo senhor presidente
do Mobral, como vai vossa alteza?” “presada equipe do Mobral, cordiais
saudações” “excelentíssimo senhor prezidente da república” “presado comiçao do
Mobral”. Algumas, destoando da formalidade, esboçam um tom de maior intimidade
com seu provável leitor “Querido Arlindo Lopes” “Caros amigos da equipe do
Mobral” “prezadoso diretores”.
Outro aspecto também comum ao conjunto de cartas em análise é a presença de
pelo menos um parágrafo ou nota de agradecimento. Nesse ponto da narrativa o Mobral
é apresentado como uma “graça vinda dos céus”, formada por homens de “tão bom
coração” que mesmo o povo “não merecendo” é dividida com todos os brasileiros.
Os parágrafos de agradecimento não esporadicamente mostram uma grande
reverência e referência aos líderes nacionais, procedimento que era estimulado pelas
ações nacionalistas e propagandistas do regime militar e seus usos midiáticos:

210
Para o aprofundamento da questão sugerimos: ALMEIDA (1996) e LOURO (1997).
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“No primeiro dia de aula fiz a entrega aos alunos de um jornal no qual vinha
uma foto do presidente Médice isto nos enriqueceu mas para a palestra de
porque foi criado o Mobral, quem o trouxe e o que visa acabar no Brasil”
Francisca Adelino, Mina Bodó. Fonte INEP – Arquivo Mobral, Cx 126,
n°226 .

Em alguns trechos fica claro a visão que os alfabetizadores tinham do programa


como um todo, apesar de suas limitações e problemas nas esferas locais que
enfrentavam: “Em primeiro lugar envio um abração a todos que formam o Mobral
Central (...) Pois seio que são pessôas muito importantes. que trabalham com essa
maravilhosa aula, êste maravilhoso plano”. Fonte INEP – Arquivo Mobral, Cx 126,
n° 294.
Após esse trecho inicial as cartas geralmente ganham um caráter reivindicatório.
As necessidades eram muitas e a realidade desafiava a permanência continuidade das
aulas. Pedidos de diversas ordens são colocados: emprego, aumento salarial, melhores
estruturas (cadeiras, mesas, querosene, lampião, material escolar, merenda, transporte
até os locais de aula) e melhores condições de trabalho.
As cartas ainda traziam um parecer de como andava o desempenho dos alunos
do ponto de vista pedagógico ao longo do processo formativo. Apesar do discurso de
precariedade e dos inúmeros pedidos de ajuda para a manutenção das aulas, boa parte
dos alfabetizadores afirmam nas cartas ter um bom desempenho entre seus alunos.
Considerando esse aspecto é possível ler em algumas delas:

“sobre meus alunos, acho que estão rendendo muito bom, nos estudos. São
ótimos”. Fonte INEP – Arquivo Mobral, Cx 126, n°326.

“O Mobral veio me encinar; mas nunca pencei que fosse tão bom. Grasças a
deus que os meus alunos são bons. Já tenho 17 aluno meu que não sabia nada
mas tinha uma vontade especial para eu lhes ensinar cuidei muito dele foi
alfabetizado. Grasças a deus e o Mobral”. Fonte INEP – Arquivo Mobral, Cx
126, n° 319.

Uma outra marca curiosa desses escrito é a presença de versos, poesias e letras
de músicas e desenhos produzidas por alunos e alfabetizadores. O tema principal dessas
produções é o cotidiano da roça e o Mobral que ora é elogiado, ora é criticado pela
precariedade, como na carta a seguir é destacado:
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“Trabalham na roça para comer


quando a safra acaba só falta morrer.
Me chamo Antonia Ferreira
professora do Mobral.

Quero lhe pedira ajuda


sei que isso é normal.
Para comprar um transporte
um jipe ou um animal.

Desculpe os meus versinho


se não saíram bonzinho.
Pois não sou castro Alves
nem nunca tive anelzinho
mas de cinco em cinco mezes.
Do Mobral tomo cursinho”.

Outro elemento comum nas cartas é o balanço apontando a assiduidade dos


alunos matriculados e possíveis desistência no curso. As principais causas que
provocariam essa evasão, apontadas pelos alfabetizadores são: cansaço da jornada de
trabalho, doenças, problemas de visão.
As cartas geralmente encerram com um pedido de desculpas pelos erros e
limitações na escrita e pelos “aborrecimentos” numa referência as solicitações que são
feitas.

Espaço de experiência e horizonte de expectativa no Mobral


No livro Futuro Passado, o historiador alemão Reinhart koselleck apresenta “espaço de
experiências e horizonte de expectativa” como categorias tangíveis ao tempo histórico.
Koselleck sugere-nos nesse texto que, ao tematizar um dado tempo histórico é preciso
lançar mão de uma abordagem teórica, pois as fontes históricas sozinhas mostram-se
insuficientes para esclarecer a questão. Para tanto, ele criou as categorias espaço de
experiência e horizonte de expectativa. Essas são ao mesmo tempo categorias formais
que possibilitam a interpretação da história feita, ou seja, categorias analíticas definidas
posteriormente pelo historiador, e determinações históricas que orientam e são
orientadas por ações concretas.
Entendo por espaço de experiência o passado tornado atual, na perspectiva de que no
espaço do presente convivem simultaneamente diversos tempos anteriores preservados
na memória e incorporados no cotidiano. Já o horizonte de expectativa é o que no
presente é voltado para o futuro. São cálculos, esperanças e angustias voltadas para o
que ainda não foi vivido, para as experiências que ainda não podem ser observadas. O
tempo histórico seria então, fruto da tensão entre experiências e expectativas; tensão
essa que pode ser analisada através da relação histórica entre passado e futuro.
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Trago esses elementos para pensar algumas angustias que estão presentes nas cartas em
análise em relação ao tempo além de problematizar o legado que o Mobral acabou
construindo sobre si.
Sobre o primeiro aspecto, observo nas cartas que os alfabetizados estão preocupados em
superar o passado e o presente iletrado, difícil e hostil e vêem na educação a forma para
fazer um novo presente e um novo futuro, por isso, afirmam com tanta veemência que
estão “contribuindo para o crescimento do Brasil” afinal estariam “tirando nossa
cidade/país da escuridão da ignorância”. Para eles o prestigio social do seu trabalho
era grande, pois o sujeito alfabetizado se tornaria uma “criatura útil a família, a
sociedade e a nação” (n°227/228) e não a vergonha para sua gente.
Outra razão para a valorização e preservação das aulas de alfabetização entre os
mobralenses está possibilidade de voto. Essa prática traduzia-se num forte elemento de
auto-estima e de participação ativa na vida social e política. Por isso, em muitas
situações o apelo a continuação do programa é solicitado afinal traria a “melhoria da
auto-estima na população rural (153-154)”.
É perceptível, nos documento até aqui coletados que havia uma peculiar atenção
com os sujeitos recém-alfabetizados, pois eles se constituíam em eleitores e por isso o
assédio sobre eles era maior. Durante o curso de alfabetização, que durava cinco meses,
os alunos recebiam orientações no sentido de “se alistarem ao movimento e fazer valer
o seu voto”.
Cientes desse potencial, o governo militar se preocupa com possíveis desvios
dessas orientações e alerta:

Anteriormente a revolução de 64, houve um movimento regional


de alfabetização, no Nordeste (...). Logo após o termino dos
cursos, os comunistas distribuíram entre os recém-alfabetizados,
literatura ideológica de fácil leitura, com o objetivo de
comunizá-los.
É possível que as esquerdas procurem infiltrar-se no próprio
Mobral, isto é, entre os elementos executores do plano de
alfabetização, como, também que, aproveitem os recém-
alfabetizados, principalmente nas regiões rurais, onde existe
dificuldade de obtenção de material de leitura (...).211

Com essa preocupação o Serviço Nacional de Informação (SNI) mantém-se


atento as ações educativas realizadas bem como se utiliza delas para a construção de
uma legitimidade.

Um parêntese, uma conclusão


Toda retórica ufanista do Mobral não lhe trouxe um positivo legado, não pelo menos do
ponto de vista lexical. O termo “Mobral” ganhou ao longo dos anos uma conotação

211
Presidência da República, Serviço nacional de Informação. Documento n° 1038, de 10 de outubro de
1972. Fonte: Arquivo Dops-PE. Pasta: Mobral
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pejorativa, passou a ser associado ao analfabetismo, a incapacidade intelectual, a


ingenuidade e despreparo.
O que teria provocado tal ressignificação? Acredito que o uso das cartas dos
alfabetizadores para o estudo aprofundado dessa temática pode não apenas responder tal
questão quanto complexificar as análises sobre a estrutura educacional brasileira no
período da ditadura militar no Brasil.

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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

PARÂMETROS CURRICULARES DE HISTÓRIA DO ESTADO DE


PERNAMBUCO: CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO ENSINO DE
HISTÓRIA REGIONAL NOS ANOS INICIAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Danielle da Silva Ferreira


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural
de Pernambuco. Bolsista na Coordenação de Aperfeiçoamento em Pessoal de Nível
Superior – CAPES
daniellesilvaferreira@hotmail.com

Muito se discute sobre perspectivas de mudança e novos olhares sobre a história


ensinada. Tais discussões emergiram em essência e com mais ressonância no Brasil
depois da abertura política nos finais dos anos 1980. A implementação legal de tais
mudanças entra de forma mais contundente a partir da promulgação da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional – LDB – em 1996. A LDB teve uma importância
significativa ao colocar a História como disciplina legalmente instituída não só para os
anos finais, como também para os anos iniciais do Ensino Fundamental, ao passo que
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tira da organização curricular a disciplina de “Estudos Sociais”, inserida nos currículos


escolares ainda no período da Ditadura Militar. Essa mudança pediu também uma nova
configuração nos conceitos trabalhados em sala de aula, pois História e Estudos Sociais,
apesar de erradamente muito se acreditar que em certa medida essas disciplinas se
entrecruzariam, seguem propostas de formação social e didático-pedagógica diferentes.
Para que essas mudanças saíssem do campo dos discursos legais e teóricos e
passassem a fazer parte das designações das práticas docentes certamente podemos
afirmar foi preciso iniciar um caminho que ainda está sendo percorrido. Os diálogos
estabelecidos entre História e Educação, promovidos a partir do interesse maior dos
pesquisadores em abordar temas que unissem as duas áreas, a abertura de novos
programas de pós-graduação que discutem temas ligados a elas e a ampliação dos
eventos acadêmicos ligados à atuação das universidades e das associações nacionais e
regionais cada vez mais se consolidam como espaços de trocas de experiências e
saberes e discussão da nova realidade sobre o ensinar de história.
Fugindo de pressupostos que defendiam uma formação histórica econômica ou
relacionados a questões de doutrinação cívica e ainda apresentavam a história como
disciplina de conhecimentos prontos e acabados, com fins de prestação de
avaliações/exames de cunho memorialístico, o atual ensino de História propõe-se a não
apenas acúmulo de informações. A história no âmbito escolar hoje encara o educando
como sujeito construtor da História, promovendo um ensino inteligível e conceitual
onde o educando possa manipular dados, fazer comparações, levantar hipóteses,
observar continuidades e descontinuidades históricas no seu cotidiano, problematizar as
situações, desenvolver habilidades e capacidades relacionadas à construção de uma
consciência histórica.
Assim, pensar questões que oportunizem o processo educativo guiado pelas
perspectivas contemporâneas relacionadas ao ensino de história implica considerar a
inserção de novos temas/abordagens no contexto escolar igualmente sem deixar de
mencionar o diálogo entre o conhecimento produzido pela historiografia e aquilo que se
determina enquanto conhecimento histórico escolar. Para isso é preciso considerar que
um dos instrumentos mais contundentes do processo educativo: o currículo. Como
instrumento de poder, este tem o papel de balizar os conteúdos a serem ministrados em
salada de aula. O currículo não se constitui sozinho, pois emerge de perspectivas
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fundadas dentro e fora do ambiente escolar em associação ao que se pensa como


disciplina e cultura escolar. Por isso devermos encara-lo como determinante naquilo que
se leciona ou não.
Nesse sentido, entrando em consonância com as perspectivas de ensino atual já
abordadas, propomo-nos a pensar o lugar da História Regional no Ensino de História
nos anos iniciais, guiando nossas análises a partir do seguinte questionamento: O que é
História Regional/Local para os Parâmetros Curriculares de História – Ensino
Fundamental e Médio (2013)? Como são apresentados os conteúdos referentes à
História Regional/Local? Quais são os objetivos/orientações dadas no documento?
Uma das grandes preocupações no Ensino de História contemporâneo é a
introdução dos estudos de História Regional nos anos iniciais da escolarização básica.
Tal discussão visa garantir a implementação de práticas de ensino que garantam ao
aluno perceber-se como voz ativa do processo de construção histórico-cultural do seu
lugar em articulação com outros sujeitos, tempos e lugares. Este entendimento perpassa
também a forma como são apresentados os direcionamentos curriculares para o trabalho
com essa temática. Entendemos aqui o currículo como constituído em movimentos e
diálogos com a cultura escolar e outras culturas, instrumento de poder que indica os
conteúdos e temáticas a serem contemplados para determinada disciplina. Utilizamo-nos
de Graça Filho (2009), Correia (2002) e Barros (2013) para compreender o
engendramento das perspectivas sobre o regional.

Uma mirada sobre a História Regional

A historiografia contemporânea abre a possibilidade de fuga de estudos


macroespaciais, contemplando pesquisas sobre grupos sociais mais localizados, com
problematizações especificas. Esses estudos são orientados pelos recortes dados a partir
das escolhas dos próprios pesquisadores, norteados por critérios antropológicos,
culturais, políticos, sociais. Para nós os estudos regionais investigam um conjunto de
características comuns a um dado grupo, sem que este esteja atrelado necessariamente a
um recorte político ou administrativo. Tais características não são estáticas, se
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estruturam e se manifestam a partir de um sistema que se movimenta e que, através de


critérios eleitos pelo pesquisador, é possível perceber elementos sócioculturais que
singularizam práticas sociais em comum.
Ao estudar o que se chama de História Regional, refletimos em uma pluralidade
e porque não dizer ambiguidade de sentidos, corolário da amplitude de perspectivas
historicamente atribuídas ao Regional e ao Local. Não podemos esquecer que estudando
a História como “a ciência dos homens no tempo”, da forma como Marc Bloch
denominou, também estamos situando-a em um dado espaço. Dito isso é possível
conferir um importante diálogo interdisciplinar entre História a Geografia para
pensarmos o espaço, não somente enquanto elemento físico ou político, mas o seu
espaço social, constituinte da ideia de região que precisamos.
Pensar a região é importante na medida em que definimos o nosso recorte de
pesquisa. Assim região para nós é um sistema histórico-cultural dotado de dinâmica
própria – expressões culturais, normas, rituais – relacionado a uma rede de sistemas
pares ou mais amplos. Essa região cara a História Regional é selecionada pelo
historiador, mas não pode ser compreendida como isolada, pois a todo o momento
estabelece diálogos e é transpassada por outros múltiplos espaços. Nesse sentido, o
historiador regional desenha as fronteiras daquilo que ele indaga, considerando critérios
socioculturais para essas indagações. (GRAÇA FILHO, 2009)

Estabelecer um recorte, enfim, é definir um “recorte historiográfico”- um


território a partir do qual o historiador, como ator sintagmático viabiliza um
determinado programa. É a partir desta operação – seja ela orientada por um
grande recorte no espaço físico, pelo recorte regional, pelo recorte da serie
documental, ou simplesmente pela análise de uma única fonte – que o
historiador deixa as suas marcas e as de sua própria sociedade, redefinindo de
maneira sempre provisória este vasto e indeterminado espaço que é a própria
Historia. (BARROS, 2013, p. 163)

Por vezes encontramos conflitos de nomenclatura: História Regional, História


Local ou ainda Micro-História212. Sobre o cunhar local ou regional Barros (2013) nos

212
A Micro-História não é uma abordagem ou um recorte, mas uma escala de observação, que se refere à
forma como o pesquisador observa e o que ele observa. Ela pode estar associada a uma prática social
especifica, a apreciações microlocalizadas de aspectos da vida “ou a qualquer outro aspecto ou
microrrecorte temático que o historiador considere revelador com relação aos problemas sociais ou
culturais que se dispôs a examinar” (Barros, 20013, 180). Nesse caso a pesquisa não está preocupada com
definições localistas como a de região, o que acontece na História Regional/Local, porque e partir da
definição do seu objeto de pesquisa, o pesquisador busca seus dados através de uma microobservação,
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diz que essas duas denominações – Local ou Regional – são características de países
com dimensões continentais como é o caso do Brasil. O autor afirma que por aqui os
estudos locais foram considerados, por muito tempo, os devotados a instâncias como
municípios, bairros, grupos quilombolas ou indígenas, enquanto os estudos regionais
contemplavam regiões administrativamente maiores – estados, províncias. Em países
menores, como é o caso da França berço dos estudos sobre História Local com Pierre
Goubert, não há necessidade de diferenciar local e regional já que o próprio espaço
nacional é restrito e distinguir estudos locais de estudos regionais não caberia para a
historiografia do país.

Pensar esses nuances possíveis entre o “local” e o regional constitui apenas


uma proposta, um exercícios de imaginação historiográfica, já que
frequentemente, entre nós, “História Local” e “História Regional” são
expressões empregadas de maneira quase sinônima. Uma vez que temos a
dispor de nossa linguagem historiográfica as duas expressões, o que não
ocorre a Historiografia de outros países, podemos tirar partido dessa
duplicidade de designações, fazer delas um instrumento para nos
aproximarmos de uma maior complexidade relacionada aos diversos objetos
historiográficos possíveis” (Barros, 2013, 183)

A História Local foi marcada no Brasil pelo diletantismo, como destaca Correia
(2002), motivo pelo qual conferiu-se durante muito tempo, especialmente pelos
historiadores acadêmicos, a ela pouco crédito diante do panorama historiográfico. Não
que ela fosse trivial, mas porque seus produtores não dialogavam efetivamente com os
métodos instituídos pela produção histórica acadêmica. Essa característica de “não
profissionalismo” foi peculiar a História Local produzida no Brasil. Tal escrita era
desprovida de conjecturas e escolhas teórico-metodológicas, suas fontes de acesso
muitas vezes restrito devido ao caráter pessoal que possuam, portando, em geral,
inacessíveis ao historiador profissional. Nesse contexto, críticas a História Local tomam
fôlego ao observar que esta por muito tempo transitou pelo caminho da linearidade e do
Positivismo, privilegiando uma visão romântica da realidade local, logrando de forma
cronológica e ascendente fatos e sujeitos de destaque.
Entretanto, esse panorama diletante toma um caminho diferente de forma mais
acentuada nas décadas de 1970 e 1980, com as novas perspectivas teórico-

admitindo detalhes que antes não eram contemplados, fazendo uso e de investigação intensiva de
documentação.
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metodológicas alicerçadas no dorso da Nova História Cultural. Historiadores


acadêmicos observaram na História Local passagens e caminhos ainda não percorridos e
também direcionam empreendimentos investigativos para estuda-la, utilizando-se de
métodos legitimados na historiografia para produzir suas pesquisas neste âmbito
(CORREIA, 2002). Essa ampliação também se traduz na adoção de métodos e
perspectivas da história acadêmica na produção da História Local por não profissionais.
Essa ampliação por qual a História Local passou a inseri-la dentro de um
relacionamento esteiro com a História Regional por alagar suas fronteias é não limita-la
a um parâmetro administrativo, por isso não podemos separa-las, mas considerar que
ambas as abordagens historiográficas seguem orientações teórico-metodológicas que se
entremeiam, embora possuam especificidades. Dessa forma, apesar da necessidade de
escolha delimitação para fins didáticos de pesquisa, os espaços não se fecham em si
mesmo, eles mantem relações com outros diversos conjuntos espaciais, de diferentes
maneiras.
O intuito aqui não é delinear aspectos que as distanciem História Local e
História Regional, mas concebe-las como abordagens especificas que habitantes a
mesma atmosfera, alimentadas pelo mesmo sustento, a partir de uma interface mesma
social, onde sejam realizados intercâmbios e cultivos de valores culturais e humanitários
e compartilhamento de experiências sociais, caracterizando nossa abordagem de
História Regional, onde o local também é contemplado,

Parâmetros Curriculares de História – Ensino Fundamental e Médio:


Algumas considerações sobre a abordagem da História regional

Pensemos o currículo como uma entidade política, que baliza os conteúdos a


serem abordados, engendrado pela cultura escolar em diálogo com demais culturas e por
perspectivas de definição do que seja disciplina escolar.
Os Parâmetros Curriculares de História – Ensino Fundamental e Médio – são
orientações inseridas nos Parâmetros para a Educação Básica no Estado de Pernambuco
de 2013, portando um dos documentos mais recentes no estado para “orientar o
processo de ensino e aprendizagem e também as práticas pedagógicas nas salas de aula
da rede estadual de ensino” (PERNAMBUCO, 2013, p. 10). Foi um documento
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pensando para contemplar as novas urgências da sociedade pernambucana, elaborado a


partir de intenso diálogo entre a comunidade acadêmica, especialistas em educação das
secretarias municipais e estadual, bem como os professores da rede de ensino público.
Uma das prerrogativas do documento é apresentar perspectivas teóricas que
possam fazer parte do processo de ensino aprendizagem mediado pelos professores da
rede, para isso propõe uma discussão sobre ‘Escola, sujeitos e saberes” onde contempla
o real sentido do currículo. Nesse tópico o documento assume a posição de que

“A História como componente curricular escolar, não é uma instancia


burocrática e repetitiva de transmissão de saberes prontos e acabados,
elaborados por especialistas, mas um espaço em que busca respostas
formuladas de formas diversas, com base nas relações entre alunos,
professores e conhecimentos. (Idem p.21)

Num histórico sobre o ensino de História no Brasil intitulado “Ensinar e


aprender História” o documento cita importantes marcos para a constituição da
disciplina “História” como ela é entendida hoje, como também para a configuração da
educação e do processo educativo implementados hoje no país. Cita a extinção das
disciplinas de Estudo Sociais e Moral e Cívica, assim como Organização Política e
Social (OSPB) e os Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB), a ampliação dos cursos
de formação de professores e as políticas públicas de universalização do livro didático.
Destaca os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) (1998) como fundadores
de uma nova política educacional no país e documentos que orientam em primeira
instância a organização curricular por meio de eixos temáticos contemplando os
conteúdos de História Local e do Cotidiano, Organização dos Grupos Sociais, História
das Organizações Populacionais entre outros. Estes são os primeiros indícios de
apontamentos sobre a História Regional/Local nos documentos curriculares de maior
dimensão. Entendemos este documento, citado pelos Parâmetros Curriculares de
Pernambuco, como prerrogativa inicial para a contemplação posterior de tal temática no
documento do estado.
A obra organiza sua proposta diante de “núcleos conceituais e temáticos”,
sistematizados a partir de importantes referenciais para a formação do pensamento
histórico, com orientações sobre aquilo que se espera que seja apreendido pelos alunos
durante o processo de ensino e aprendizagem. Esses núcleos foram pensados também
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em função da formação da ideia de sujeito de consciência histórica, perspectiva tão


preconizada hoje no Ensino de História.
Podemos destacar que as perspectivas regionais estão contempladas em muitos
nos eixos conceituais. Destacamos as formas como o termo regional é contemplado em
cada um deles:
1 - “Sujeito Histórico: Identidade e diversidade”: Propõe como expectativa de
aprendizagem que o aluno reconheça o papel dos mulheres, indígenas e africanos em
diversos âmbitos, incluindo o regional;
2- “Tempo”: Indicações de comparação das permanências e transformações
ocorridas no espaço em diversos âmbitos contemplando o regional;
3 - “Fontes Históricas”: O regional é contemplado na comparação de fontes
arqueológicas e de patrimônio histórico, na preservação de fontes e de seu papel na
escrita da história desse regional. O documento sugere ainda que o aluno possa
identificar a existência de espaços de preservação da memória a nível regional;
4 - “Cidadania e participação social e política”: É proposto que o aluno possa
valorizar os direitos sociais dos membros do seu grupo de convivência, que ele possa
conhecer os grupos de resistência social da região, avaliar e se posicionar diante dos
movimentos políticos do seu lugar.
Verificamos que todas as orientações sobre a perspectiva regional perpassam toda
a formação intelectual escolar do educando. Tais perspectivas começam a ser abordadas
ainda nos anos iniciais, onde os alunos começam a familiarizar-se com os fundamentos
do conhecimento histórico escolar, e ao longo da sua trajetória escolar vão
sistematizando os temas, compreendendo e aprofundando significativamente conceitos
relacionados à história.
Observamos que o documento curricular entende a História no prisma regional
como uma trama que perpassa cada indivíduo, uma trama que antes não dava voz aos
sujeitos que fazem parte da constituição histórica do lugar (VEYNE, 2008) e que é
constituída e constitui o grupo social de pertença. Nessa compreensão a história é tecida
todos os dias, foi e é vista por muitos como instigadora, motivadora das mais diferentes
indagações, pois as peculiaridades socioculturais e condicionantes do fazer-se de cada
lugar dão a estas características únicas, muito diferente de olharmos para a história pelo
ponto de vista das ações históricas generalistas, que homogeneízam as ações humanas.
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Nesse sentido pudemos observar que o documento que orienta a educação escolar
em Pernambuco faz indicações significativas para a valorização das diversas vozes que
articulam a formação do processo histórico regional, destacamos algumas expectativas
de aprendizagem propostas no documento: “Identificar os diversos grupos sociais,
culturais, raciais, étnicos que constituem e que participaram da formação e
transformação de diferentes espaços sociais, que constituem a localidade; Compreender
numa perspectiva crítica e histórica, os diferentes significados de identidade,
diversidade solidariedade e cultura”, dentre outras.
Consideramos este documento como um balizador das expectativas de
aprendizagem, instrumento de acompanhamento, avaliação e diagnóstico do processo
escolar que apresenta-se como uma importante referência para orientar o processo de
ensino e aprendizagem em Pernambuco, no sentido de contemplar as particularidades
dos grupos regionais na conjuntura escolar, a construção histórico-identitária regional e
a formação da percepção de sujeito histórico não só no regional, mas em perspectivas
históricas mais amplas, perspectiva tão preconizada no contexto do Ensino de História
para os anos iniciais hoje.

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Diego Gomes dos Santos
Universidade Federal Rural de Pernambuco
diego-recife@hotmail.com

Resumo
Este trabalho tem por proposta realizar uma investigação histórica sobre a política
cultural para o patrimônio de Pernambuco, durante o período de 1979 a 1985, a fim de
compreender as concepções de patrimônio e, consequentemente, memória e identidade
que foram construídas nos primeiros anos de funcionamento do Sistema Estadual de
Tombamento criado pela Lei nº 7980/79, de 18 de setembro de 1979. A escolha do
recorte temporal se da pelo fato de que é nesse período que ocorreu quase a metade dos
processos de patrimonialização dos bens tombados que hoje fazem parte do universo
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patrimonial no estado de Pernambuco. E também porque é nesse período que há uma


política cultural de “pedra e cal”, ao valorar bens culturais relacionados ao período
colonial e de estética barroca, e que, de certa forma, ainda reflete nos dias atuais uma
concepção de patrimônio “autenticamente” pernambucano. Ao entender, assim como
Lia Calabre (2009) políticas culturais como um conjunto de ações elaboradas e
implementadas de maneira articulada pelos poderes públicos dentro do campo do
desenvolvimento simbólico, falar em patrimônio cultural pernambucano implica
compreendê-lo como produto dos significados e valores atribuídos pelos membros da
comunidade imaginada (ANDERSON, 2008) chamada Pernambuco a um determinado
bem cultural que, portanto, vem a ser considerado importante para a constituição da
memória social e para a identidade cultural pelas qualidades que lhes são outorgadas.

Palavras-chave: Política cultural, Memória, Patrimônio cultural.

Quando o campo do historiador é o patrimônio cultural


As políticas de preservação do patrimônio cultural são, desde inicio do século
XX, objetos de estudos acadêmicos nos cursos de graduação e pós-graduação das
Ciências Humanas no Ocidente. No caso especial do Brasil, o campo do patrimônio
cultural foi exclusivo aos arquitetos desde as primeiras ações de preservação na década
de 1920.
Só a partir da década de 1980 que no Brasil outros cientistas passaram a
participar de forma mais efetiva sobre o processo de patrimonialização. Como no caso
dos historiadores brasileiros que deixaram de ser meros “historiógrafos do patrimônio” -
responsáveis apenas pela coleta de informações descritivas do bem patrimonial como
datas, genealogia de seus antigos proprietários e feitos de relevo associados a ele -, e
passaram a denunciar, dentro da ordem patrimonial, as estratégias e intencionalidades
no processo complexo e, muitas vezes conflitante, que é a constituição do patrimônio
cultural. A partir desse momento,
os organismos do Patrimônio passaram a ser objetos de pesquisa histórica,
eles próprios fontes potencializados para o entendimento de políticas
culturais e publicas, para a percepção de valores culturais e representações
sociais. (MARTINS, 2012: 283).

Essa contribuição dos historiadores foi importante e acarretou algumas


mudanças no estudo sobre o patrimônio cultural no Brasil e que merecem ser elencadas
neste artigo.
A primeira mudança foi que nos primeiros estudos na área, acreditava-se que os
valores culturais do patrimônio emanavam do próprio bem, que ele, o patrimônio, era o
próprio passado, a cultura e a memória da sociedade a qual pertencia. Sem considerar
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que os valores que o patrimônio representa não são inerentes a ele, mas que lhe são
atribuídos por agentes respaldados pelo Estado e baseados em critérios técnicos,
científicos e, sobretudo, políticos, pois o processo de patrimonialização é uma prática
social (ARANTES, 1989: 41).
Falar em patrimônio implica ter presente os princípios básicos da sua
construção social, ou seja, compreendê-lo como produto dos significados e
valores atribuídos por um grupo a esse bem cultural que, portanto, vem a ser
considerado patrimonial pelas qualidades que lhes são outorgadas. Os
significados atribuídos nutrem-se de memória, de história e de conflitos.
(GONZALEZ, 2012: 07).

A segunda mudança, e aqui se reconhece a contribuição também dos


antropólogos, é que os patrimônios ditos culturais são inventados pelo Estado para criar,
em vários termos, representações de uma dada identidade, de um dado passado, de uma
dada versão da cultura, da memória e de outros valores.
Nos dias de hoje, os discursos sobre patrimônio enfatizam seu caráter de
construção ou invenção, derivado das concepções antropológicas de cultura,
que passa a ser tomado como um sistema simbólico, como estruturas de
significados pelas quais os homens orientam suas ações. (OLIVEIRA, 2008:
135)

Nesse sentido, os patrimônios culturais são verdadeiras máquinas de


representação, em vista que “a representação não é uma copia do real, sua imagem
perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele”. (PESAVENTO,
2012: 40). Ou seja, o patrimônio não é o simples reflexo da cultura, da memória ou de
outros valores que ele mobiliza, mas elemento que os constitui e, ao mesmo tempo, é
constituinte deles.
Vale ressaltar que os patrimônios culturais, por serem máquinas de
representação, são trabalhados nos processo de diferenciação e disputas sociais,
construídos dentro das relações de poder, ao mesmo tempo em que as produzem. Já que,
“qualquer patrimônio, mais que simples documento de um tempo passado, participa na
construção de referências às identidades individuais e coletivas – nacionais, regionais,
locais, étnicas, sexuais, raciais ou de gênero” (NETO, 2011: 26).
Nesse sentido, o patrimônio cultural não apenas é uma “herança cultural”, mas é
apresentado também como um “espelho” ou “alegoria” de identidade social, no
momento que ele é utilizado para representar os elementos culturais que define um
“nós” que nos diferencia de um determinado “eles”. Tal pensamento se manifesta em
uma perigosa máxima que incentiva desde o imperativo da preservação, até a perigosa
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concepção em que tornou o “patrimônio sinônimo de vínculo social” (POULOT, 2009:


26).
Outra mudança importante na compreensão do processo patrimonialização é que
aqueles que detêm o poder simbólico de selecionar qual bem cultural será digno ou não
de ser reconhecido no universo patrimonial e, consequentemente preservado para as
gerações futuras, controla a dialética do lembrar e esquecer da memória social, inerente
a todas as sociedades. Nesse quesito, Le Goff (1990) afirma que,
a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade,
individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades hoje, na febre e na angustia. (476).

Vale ressaltar que esse processo não ocorre sem conflitos, visto que há disputas
simbólicas entre os setores da sociedade para legitimar uma dada versão do passado, da
identidade, da cultura, enfim, de um determinado fragmento da memória, ou melhor, de
uma representação da memória a partir dos bens patrimoniais. Pois, “[...] o campo do
patrimônio apresenta-se como um espaço de conflitos e interesses contraditórios”
(ABREU, 2009: 38). Até porque “o que para uns é patrimônio, para outros não é. Além
disso, os valores sociais mudam com o tempo” (FUNARI & PELEGRINE, 2006: 10).
É importante frisar também que o processo de patrimonialização sempre parte do
tempo presente. Ao lançar o olhar sobre o passado, ele possui o desejo de perpetuar
determinadas representações da cultura e da memória para as gerações futuras. Visto
que, “o patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em certificar a
identidade e em afirmar valores, além da celebração de sentimentos, se necessário,
contra a verdade histórica.” (POULOT, 2009: 12).
E, por fim, a última contribuição dos historiadores a ser destaca neste artigo é
que o campo do patrimônio cultural sempre recebeu contribuições da história. Pois,
[...] vale ressaltar que, no campo do patrimônio, a história sempre esteve
presente, fosse como disciplina subsidiária, fosse como metodologia de
investigação – voltada para a produção de conhecimento sobre o patrimônio
cultural –, fosse ainda como narrativa para a atribuição de valor de
patrimônio a subsidiar a sua gestão (CHUVA, 2012: 13).

Hoje, reconhece-se que é imprescindível para o estudo acadêmico sobre esse


campo uma investigação na perspectiva histórica. Em vista que, o processo de
conceituação do patrimônio cultural – o que seja ou o que constitui o patrimônio
cultural -, é mutável de acordo os valores sociais e culturais de cada sociedade, e no
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qual a dimensão tempo e espaço conta. Já que realizar uma investigação sobre este
processo é identificar a maneira na qual a sociedade em estudo constrói seu patrimônio
em um determinado espaço e tempo. (POULOT, 2009).
Assim, segue-se neste artigo uma perspectiva que acompanha algumas
mudanças críticas ocorridas desde a segunda metade do século XX no modo de pensar o
campo do patrimônio cultural entre os historiadores. Ao acreditar que escrever sobre as
políticas culturais para o patrimônio cultural é investigar, a partir de uma perspectiva
histórica, os interesses, as demandas e as razões que selecionaram determinados bens
como representativos ou não para o presente, colocando em questão o que do passado
nos foi oferecido e quem este passado deseja representar. Pois, “a política, como de
resto toda vida social, é uma rede de sentidos.” (PACHECO, 2008:175).
Portanto, para a análise do processo de valoração dos bens culturais que foram
eleitos para constituir o universo patrimonial pernambucano durante o período de 1979
a 1985, aprecia-se neste artigo, primeiro, como o patrimônio cultural se transformou em
elemento essencial, no nível simbólico, para a construção das identidades nacionais. E,
posteriormente, para outras identidades, como as locais. Merecendo, inclusive, ser
inserido nas políticas culturais elaboradas pelo Poder Público. Em seguida, para não
ficar apenas em uma analise macro das políticas culturais em Pernambuco, irá ser
investigado como estudo de caso o processo de Tombamento do terreiro Obá Ogunté,
um dos primeiros terreiros de xangô do Recife e representante das religiões de matrizes
africanas, em 1985, por ter sido um caso excepcional na política cultural para o
patrimônio pernambucano. A fim de, na exceção, encontrar a regra.

O patrimônio como política cultural no Brasil: uma narrativa de “Pedra e Cal”


Não é novidade que “patrimônio”, hoje, é uma categoria “nômade” (CHOAY,
2001). A palavra está entre as que são utilizadas com maior frequência no cotidiano das
pessoas e que não para de ser requalificada por diferentes adjetivos – além dos já
consagrados histórico e artístico –, fala-se em genético, natural, ambiental,
arqueológico, museológico, arquivístico, cultural, etc. Processo esse que “parece não
haver limite” (GONÇALVES, 2009: 25). O que levou alguns estudiosos que
dissertaram sobre o assunto a denunciar um verdadeiro “culto ao patrimônio”
(HARTOG, 2013) ou, em outras palavras, uma “inflação patrimonial” (CHOAY, 2001).
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Vale lembrar que etimologicamente, a palavra patrimônio tem sua origem na


Antiguidade e vem da expressão latina patrimonium, que, de acordo com o direito
romano, significava naquela época o conjunto de bens que deveria ser transmitido dos
pais para os filhos, bens “vislumbrados não segundo seu valor pecuniário, mas em sua
condição de bens-a-transmitir”. (POULOT, 2009: 16). O patrimônio então estava
associado à noção de propriedade e de herança paterna. Hoje, atribuísse ao patrimônio,
denominado cultural, uma nova concepção de herança, não mais familiar, mas agora
cultural “a ser conservada, tomando as providencias para sua manutenção e
transmissão” para as gerações futuras da humanidade como afirmar Dominique Poulot
(2009).
A noção moderna de patrimônio enquanto testemunho ou representação do
passado surgiu com a Revolução Francesa no século XVIII quando os revolucionários,
ao utilizarem a metáfora da herança, transferiram o conjunto de bens materiais da esfera
privada que pertenciam a aristocracia e a Igreja para a esfera pública com a criação da
nova entidade chamada nação. A partir de então, a expressão patrimônio veio designar o
conjunto de bens oficialmente protegidos e “(...) que participam da construção do
sentimento de pertencimento, das identidades e da continuidade da experiência social”
(ARANTES, 2008: 01) sendo associados ao processo de formação dos Estados-nação.
Nesse sentido, o patrimônio cultural protegido pelo Estado representa uma
coletividade a partir do seu conjunto de bens culturais materiais (atualmente também
imateriais) ao está atrelado os processos de formação dos Estados nacionais e,
consequentemente, das identidades nacionais. O fenômeno de associação entre o
patrimônio cultural e a formação das novas nações se expandiu para o restante do
Ocidente a partir do século XIX e que ainda vem sofrendo modificações em pleno
século XXI.
No Brasil, a preocupação com a manutenção de uma cultura material que
servisse como patrimônio cultural da nação teve início na década de 1920 quando foram
criadas as Inspetorias Estaduais de Monumentos Nacionais em Minas Gerais (1926), na
Bahia (1927) e em Pernambuco (1928)213. Elas tinham em comum a pretensão de

213
O estado de Minas Gerais, com a cidade histórica de Ouro Preto, assim como os da Bahia e
Pernambuco, situados dentro do ciclo do couro e algodão, e o do Rio de Janeiro, centro político na época,
eram considerados nas primeiras décadas do século XX os estados que possuíam as principais cidades
históricas do Brasil e, por isso, mereciam atenção especial dos órgãos de preservação do patrimônio.
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proteger os monumentos históricos nacionais em seus respectivos estados, contudo,


agiam de forma isolada como todas outras ações culturais realizadas durante a
oligárquica República (RUBIM, 2007: 14). Desse modo, não conseguiram ganhar
destaque no cenário nacional e efetuar uma política cultural para o universo dos bens
patrimoniais nacionais. Prontamente, essas inspetorias seriam substituídas pela
Inspetoria dos Monumentos Nacionais, criada em 1934, pelo folclorista e diretor do
Museu Histórico Nacional (MHN), Gustavo Barroso. Sendo está última Inspetoria,
desativada logo depois, em 1937, quando se tem inicio a uma política cultural para o
patrimônio cultural a nível nacional.
Foi apenas durante a ditadura varguista, com a contribuição do movimento
modernista da Semana de 22, que a nação e a identidade nacional compuseram as
políticas de Estado. Havendo, de fato, a institucionalização da preservação cultural com
a elaboração de uma legislação especifica para a proteção do patrimônio nacional a
nível federal. Era criado, enfim, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN) e, a partir do Decreto-Lei nº 25 de 1937, o instrumento do tombamento, ainda
em vigor, para selecionar, organizar e proteger o patrimônio histórico e artístico no
território nacional.
Os primeiros anos de funcionamento do SPHAN tiveram como desafio para seus
integrantes, liderados pelo seu diretor geral Rodrigo de Melo Franco de Andrade, a
missão de criar uma mentalidade patrimonial entre os membros da comunidade
brasileira. Como aponta a historiadora Lucina Lippi Oliveira (2008),
num primeiro momento –fase heroica – da política de preservação, a equipe
do Sphan atuava acima dos interesses particulares ou do governo, em nome
dos interesses nacionais, sendo interprete ou porta-voz da sociedade ainda
desorganizada. (125).

Desde então, o órgão se tornou um modelo de gestão na América Latina para as


políticas voltadas para o patrimônio; e as discussões em torno do tema e os órgãos
voltados para sua proteção ampliaram-se (FUNARI & PELEGRINI, 2006).
Pernambuco, apesar de figurar entre os estados mais privilegiados pelas políticas
preservacionistas do SPHAN nos primeiros anos de funcionamento do órgão federal214,

214
Isso aconteceu, em boa parte, graças a colaboração de Gilberto Freyre, nomeado delegado regional,
representando o estado de Pernambuco e colaborando com a eleição de seu patrimônio. É importante citar
também que foi Gilberto Freyre convidado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do SPHAN, a
escrever uma matéria sobre os mocambos de Pernambuco na primeira edição da Revista do SPHAN.
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só vivenciou uma nova ação para a preservação do patrimônio cultural a nível estadual a
partir da década de 1970 quando houve um primeiro momento de descentralização das
políticas de preservação do patrimônio no território brasileiro, com a criação pelo
governo federal do Programa de Reconstrução das Cidades Históricas (PCH), instituído
em 1973.
O PCH, como ficou conhecido, tinha como objetivo criar infraestrutura
adequada ao desenvolvimento e suporte de atividades turísticas e ao uso de
bens culturais como fonte de renda para regiões carentes do Nordeste,
revitalizando monumentos em degradação. (FONSECA, 2005: 143).

O PCH atuou em nove cidades da região Nordeste, entre elas Recife, na qual foi
formado um grupo dentro da Delegacia Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN215), em Pernambuco que apoiou o programa. Foi graças às
atividades e, sobretudo, aos recursos provenientes do PCH que foi possível, ainda em
1973, a criação da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
(FUNDARPE). Posteriormente, com a Lei n. 7.790 de 1979 e o Decreto 6.239 de 1980
– instrumentos que juntos FUNDARPE, ao Conselho Estadual de Cultura e a Secretaria
de Cultura, Turismo e Esportes (SECULT) -, possibilitaram a criação do Sistema
Estadual de Tombamento.
Vale ressaltar que, apesar da descentralização com a introdução de novas
agências governamentais para eleger seus próprios bens patrimoniais a nível local, a
maioria dos estados brasileiros continuou com uma política cultural para o patrimônio
que já vinha sendo prática desde os primeiros anos do IPHAN, no momento em que
eram selecionados como dignos de serem reconhecidos como bens patrimoniais apenas
igrejas barrocas, fortes militares do período do Império, casarões coloniais, etc. Essa
política cultural, por optar pela preservação de um patrimônio cultural “[...] de cultura
branca, de estética barroca e teor monumental”. (RUBIM, 2007: 17), ficaria, a partir da
década de 1980, conhecida como uma política de “Pedra e Cal”.

O caso do Tombamento do terreiro Obá Ogunté: uma ação pioneira


O Sistema de Tombamento do Estado de Pernambuco é composto pela
Secretaria de Cultura, Turismo e Esportes (SECULT) que exerce a função de Órgão

215
Por uma questão didática, iremos utilizar esse termo a partir de agora. Visto que essa instituição
mudou várias vezes de nomenclatura.
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Gestor, pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC) como Órgão Executor e pela
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) como Órgão
Técnico. Sendo o governador de Pernambuco responsável pela Homologação do
Tombamento do bem através de Decreto com publicação no Diário Oficial do Estado.
De acordo com o decreto-lei de 1937, que instituiu o instrumento legal do
tombamento no território brasileiro, “o tombamento de coisa pertencente à pessoa
natural ou à pessoa jurídica de direito privado se fará voluntária ou compulsoriamente”
(BRASIL, 1937). Se voluntária, caberia aos agentes das agencias governamentais
analisar o bem em in situ. Se compulsória, haveria um vasto processo de disputa entre o
proprietário e os agentes governamentais sobre a condição do bem cultural em processo
de tombamento. Qualquer pessoa poderia, ainda hoje o é, elaborar um requerimento
pedindo o tombamento de um bem mesmo não sendo o proprietário.
Essa rápida exposição sobre o processo de tombamento no Brasil é fundamental
para se ter mente como funciona o Sistema Estadual de Tombamento em Pernambuco,
visto que a Lei n. 7.790 de 1979, que criou o sistema, segue os mesmos passos
descritos, de forma aqui simplificada, no decreto-lei de 193.
Sobre a política cultural para o patrimônio cultural em Pernambuco, de acordo
com as nossas investigações, dos 63 bens patrimoniais inscritos nos livros de Tombo216
do Sistema Estadual de Tombamento de Pernambuco durante os anos de 1979 a 2012,
apenas o Terreiro Obá Ogunté ou Sítio de Pai Adão, um dos primeiros terreiros de
xangô do Recife, inscrito no Livro dos bens móveis de valor arqueológico, etnológico,
histórico, artístico ou folclórico, em 1985, é representante das matrizes africanas no
universo patrimonial pernambucano.
Esse fato pode parecer, hoje, até alarmante, se considerarmos que o conceito de
patrimônio cultural atualmente é demasiado abrangente. Contudo, para aqueles que
atuavam no campo do patrimônio no estado de Pernambuco nos primeiros anos da
década de 1980 a solicitação para o tombamento do Sítio de Pai Adão foi, no mínimo,
216
São eles: I – Livro de tombo dos bens móveis de valor arqueológico, etnológico, histórico, histórico,
artístico ou folclórico do Estado de Pernambuco; II – Livro de tombo de edifícios e monumentos isolados
do Estado de Pernambuco; III – Livro de tombo de conjuntos urbanos e sítios históricos do Estado de
Pernambuco; IV – Livro de tombo de monumentos, sítios históricos e paisagens naturais do Estado de
Pernambuco; V – Livro de tombo de cidades, vilas e povoados do Estado de Pernambuco.
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estranha.
Tudo começou no dia 12 de janeiro de 1984, no Recife, quando o antropólogo e
pesquisador Raul Lody encaminhou ao então secretario de Turismo, Cultura e Esportes
do Pernambuco, Francisco A. Bandeira de Mello, o pedido de tombamento do Sítio de
Pai Adão. Dando inicio, assim, ao processo de tombamento nº103. No documento,
escrito em duas páginas, o antropólogo, de antemão, reconhece que sua proposta de
tombamento é diferente das demais já ocorridas no Estado. E por isso, se vê na
necessidade de explicar em qual categoria a sua proposta se encaixaria e como deveria
ocorrer o exame técnico para que o bem cultural em questão fosse devidamente
reconhecido como patrimônio cultural pernambucano.
Caracteriza-se o referido tombamento como de cunho etnográfico e
paisagístico, compreendendo conjunto de bens patrimoniais que necessitam
de tratamentos particulares, empregando metodologias atípicas aos trabalhos
de tombamento histórico e ou artístico. (Biblioteca da Fundarpe, processo de
tombamento nº 103, p. 01).

É interessante destacar que para o interessado, sua proposta de tombamento seria


diferente da praticada pelo Sistema Estadual de Tombamento. Raul Lody chega a criar
uma nova categoria de tombamento, denominado por ele como “tombamento
etnográfico”. Segue mais um trecho do pedido tombamento no qual ele disserta sobre
seu entendimento do que era um “tombamento etnográfico” e suas implicações no bem
que queria vê ser tombado pelo Poder Público:
O tombamento etnográfico no caso de um terreiro de Xangô, envolve
aspectos do sagrado, da memória africana adaptada e dinamizada no processo
sócio-cultural; as construções-templos, construções-habitações e temas
relacionas à filolatria. Dessa forma, alerta-se para as seguintes questões:
quais os caminhos que este tombamento devera seguir? De que maneira a
ação do Estado no ato de tombar não se reverta em imobilidade sócio-cultural
do terreiro de Xangô? Como respeitar e refletir sobre a cultura do cotidiano
do terreiro de Xangô? Enfim, como agir e, principalmente, selecionar em
comum acordo com as pessoas do terreiro o que dever/a ser tombado no
elenco de bens moveis e imóveis, de modo que o reconhecimento do valor e
da importância de bem tombado não assuma postura de interferência à
dinâmica natural do Xangô, enquanto polo de memória e da ação do homem
afro-brasileiro. (Biblioteca da Fundarpe, processo de tombamento nº 103, p.
01).

Raul Lody não apenas propõe uma nova ótica sobre o instrumento legal do
Tombamento, como também se vale de sua posição enquanto antropólogo para reforça
seu pedido de Tombamento do terreiro ao utilizar o conceito antropológico de cultura.
Visto que, o Sítio de Pai Adão não possuía as características estéticas, já que não
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detinha um teor monumental, e muito menos históricas, representava um passado


colonial do Brasil que muitos desejam esquecer, para os agentes do Sistema Estadual de
Tombamento.
Reforço novamente a significativa ação do Estado através da sua Secretaria
de Turismo, Cultura e Esportes, reconhecendo o Xangô enquanto instituição
cultural que inclui de maneira decisiva a memória do homem pernambucano,
inequívoco entendimento da cultura vista pelos conceitos antropológicos, de
forma abrangente, incluindo manifestações materiais e imateriais de uma
sociedade. (Biblioteca da Fundarpe, processo de tombamento nº 103, p. 02).

O antropólogo, certo de que seu “tombamento etnográfico” era avançado para a


política cultural para o processo de valoração, preservação e promoção dos bens
patrimoniais pernambucanos, conclui no seu pedido que, se reconhecido o Sítio de Pai
Adão, seria atingido, enfim, o real objetivo das políticas de preservação do patrimônio
cultural em Pernambuco.
Senhor secretário, assim coloquei aspectos que julgo oportuno considerar
nesse momento de inicio de tombamento, de modo que a ação do Governo do
Estado de Pernambuco nesse trabalho pioneiro passa verdadeiramente atingir
a sua dimensão real, reconhecendo, valorizando e preservando expressões
culturais das camadas populares. (Biblioteca da Fundarpe, processo de
tombamento nº 103, p. 02).

O pedido de tombamento do Sítio de Pai Adão causou estranhamento entre os


técnicos da Fundarpe. Após localizarem o terreiro, realizarem um levantamento
histórico sobre a prática do “Xangô” em Pernambuco e da importância simbólica do
Sítio de Pai Adão para os praticantes da religião no estado, os técnicos da Fundarpe
lançaram severas crítica sobre a situação de conservação do conjunto arquitetônico que
compõe o terreiro. Sendo o aspecto físico, até aquele momento, um dos elementos
essenciais para que um bem fosse tombado ou não.
As instalações físicas do terreiro em muito pouco diferem dos mocambos que
se espalham pelos subúrbios recifenses. O prédio onde se situam os espaços
destinados ao culto é composto por construções de época e materiais
diversos: paredes em taipa e em tijolo, cobertas em telhas canal e Francesa,
numa mistura que demonstra a precariedade construtiva decorrente
principalmente da falta de recursos dos que compõem o terreiro. (Biblioteca
da Fundarpe, processo de tombamento nº 103, p. 07).

O teto do salão das danças ruiu, o da capela encontra-se escorado, algumas


parede no salão de entrada, cozinha e salão de danças apresentam rachaduras
consideráveis, o piso em cimento também esta bastante danificado, enfim,
todo o prédio necessita de serviços urgentes de consolidação de parede,
reboco, reconstituição de cobertas e piso, alem de serviços gerais e limpeza.
(Biblioteca da Fundarpe, processo de tombamento nº 103, p. 09).
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Apesar de vários fatores técnicos e científicos, na época, contribuíssem para o


não tombamento do Terreiro Obá Ogunté, a própria Fundarpe recomendou o
tombamento do bem cultural para o Conselho Estadual de Cultura. E aqui cabe destacar
que a proposta de tombamento elaborada por Raul lody não foi uma prática social
isolada e muito menos sua aprovação, visto que no mesmo ano, a nível nacional, houve
o tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador, Bahia. Era a
primeira vez que a tradição afro-brasileira obtinha o reconhecimento oficial do Estado
Nacional.
Segue na resolução da Fundarpe sobre o tombamento do Terreiro Obá Ogunté
ou Sitio do Pai Adão, os argumentos para sua aprovação enquanto digno de fazer parte
do universo patrimonial de Pernambuco:
Na perspectiva de se discutir o tombamento de um terreiro de Xangô é
interessante refletir sobre alguns pontos menos comuns para fundamentar
uma analise mais acurada. Quando o Estado pretende, hoje uma atuação mais
democrática e pluralista e se propõe a ampliar sua interferência na proteção
dos bens culturais, é indispensável levar-se em conta a questão da
diversidade. As observações feitas por um antropólogo, a propósito do
tombamento de um terreiro de candomblé, na Bahia, são também muito
oportunas para registrar aqui: “existem tradições dominantes mais
legitimadas pelas elites. Em relação a estas, dificilmente surgem maiores
polemicas ou duvidas. Os problemas se complexificam quando se passa a
disucitir e levar emconta costumes e valores dos grupos e segmentos sociais
que ocupam posições subordinas e hierarquicamente inferiores na
sociedade... (Biblioteca da Fundarpe, processo de tombamento nº 103, p. 29).

Esse trecho denuncia que no processo de patrimonialização estão envolvidos não


apenas critérios técnicos e científicos, mas, sobretudo políticos. É interessante também
destacar como o tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca possibilitou vários
pedidos semelhantes e abriu o debate político sobre as ações das agencias
governamentais no processo de reconhecimento dos bens culturais enquanto patrimônio
cultural dos grupos sociais denominados minorias. A preservação dos bens culturais de
tais grupos, mais do que incentivar uma nova política cultural para o patrimônio cultural
pernambucano, permitiu a participação de tais grupos na construção de suas próprias
representações através do tombamento, nas mais variadas causas e fatores.
Apesar do tombamento do Sítio do Pai Adão ter o potencial imensurável para
atualizar não apenas o conceito de patrimônio cultural pernambucano, mas também do
que se representa por cultura da comunidade imaginada Pernambuco. Logo, a Fundarpe
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voltou suas atenções novamente às edificações de pedra e cal e outras de caráter mais
monumental.
Conclusão
É notório que há, no pedido de Raul Lody, uma preocupação em atualizar o
conceito de patrimônio cultural em nível teórico e no plano prático reinventar o
tombamento e a narrativa hegemônica da identidade e do passado que era praticada em
Pernambuco até então. De certa forma, posteriormente, as preocupações do interessado
no tombamento do Sítio de Pai Adão teria suas demandas atendidas na Constituição
Federal de 1988, quando há, enfim, a expansão do conceito de patrimônio cultural com
o artigo 216.
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referencia
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: I. as formas de expressão; II. os
modos de criar, fazer e viver; III. as criações cientificas, artísticas e
tecnológicas;IV. as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V. os conjuntos urbanos e
sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e cientifico. (BRASIL, 1988).

Contudo, como é típico das políticas culturais no Brasil, houve uma


descontinuidade, após o processo de tombamento do Sítio de Pai Adão, o processo de
atualização das políticas preservação do patrimônio em Pernambuco.

Referências Bibliográficas

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FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política
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POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente. São Paulo: Estação
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Fontes
Biblioteca da Fundarpe: Processo de tombamento nº 103 – Terreiro de Obá Ogunté.
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ENSINO DE HISTÓRIA DURANTE A DITADURA MILITAR: IMPACTOS E


REFLEXOS DA REFORMA DE 1971
Quésia Ramos Silva
Graduanda do curso de História da Universidade Federal de Pernambuco
quesia1808@hotmail.com
RESUMO
O artigo tem por objetivo analisar os impactos no ensino de história no Brasil durante a
ditadura militar (1964-1985). Com a edição da Lei 5692/71, foram suprimidas as
disciplinas História e Geografia do currículo do então criado I Grau e, em seu lugar,
foram instituídos os Estudos Sociais. Buscaremos, também, identificar os motivos e as
consequências das chamadas “licenciaturas curtas” e suas representações na função do
professor de História nas turmas de I Grau. Essas licenciaturas curtas tinham por
objetivo formar profissionais que atendessem aos objetivos da reforma educacional dos
“donos do poder”. Constatamos que a ligação entre os Guias Curriculares e os livros
didáticos também contribuíram para o controle ideológico do Estado sobre o que
deveria ser ensinado nas escolas. No intuito de esclarecermos tais inquietações, foi feita
uma pesquisa qualitativa que utilizou como procedimento metodológico uma pesquisa
bibliográfica para que, à luz de alguns autores, pensássemos o processo de
desqualificação do professor e do ensino de ensino de História durante o governo
ditatorial militar.
Palavras-chave: Ensino de História, Estudos Sociais, Ditadura civil militar.
Introdução
Em 2014 faz 50 anos do período de governo ditatorial militar no Brasil ocorrido entre os
anos de 1964 a 1985. Durante esse tempo vimos mudanças importantes em nossa
sociedade como o Ato Institucional de número 5. O AI 5 concentrou poder nas mãos do
Presidente da Republica e marcar a fase mais truculenta dessa governo.
Nessa ocasião da nossa história, muitos escritores afirmam que todas as medidas
tomadas tinham por objetivo atender ao binômio de Estado Nacional e ao projeto de
desenvolvimento econômico. E não podemos falar em desenvolvimento econômico sem
falar em educação escolar.
Quando refletimos sobre a constituição no ensino de história no Brasil
percebemos que aqui ela também foi fruto de conflitos ideológicos. E que, no período
estudado, ela foi usada como forma de legitimar as ideias vigentes. Mas, para que serve
o ensino de história? E quais os motivos para tanta preocupação por parte dos
governantes? Segundo a reflexão de Maria Inês Lemos Soares, o ensino de História: “
pode mostrar ao homem que ele é capaz de mudar a sua própria história, mesmo que
não seja um herói. Aí ele é levado a pensar sobre si mesmo e sobre as injustiças que o
cercam” (LAGÔA. 1991, p.15)
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

São inúmeras as tentativas de retir do ensino de história e de seus professores o


teor crítico e reflexivo. Portanto, é objetivo desse artigo investigar as mudanças e
objetivos da reforma educacional de 1971 que abalou o processo de
ensino/aprendizagem de alunos e professores de História.
História do Ensino de História no Brasil
O ensino de história, enquanto disciplina autônoma escolar surge no século XIX, na
França. E, de acordo com Elza Nadai (1988), esteve ligada aos movimentos históricos
de laicização da sociedade e de construção das nações modernas. Desse modo, o ensino
de história é reflexo de tensões e conflitos históricos instituintes da sociedade moderna.
No Brasil, a criação do Colégio Dom Pedro II no Rio de Janeiro foi importante
para a implantação do ensino de história. Sobre esse fato Nadai afirma
No Brasil, sob influência do pensamento liberal francês e o bojo do
movimento regencial, após a Independência de 1822, estruturou-se no
Município do Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II (que durante o Império
funcionaria como estabelecimento-padrão de ensino secundário, o mesmo
ocorrendo na República, sob denominação de Ginásio Nacional) e seu
primeiro Regulamento, de 1838, determinou a inserção dos estudos históricos
no currículo, a partir da sexta-série. (NADAI, 1993, p.145-146)
Esse Colégio juntamente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a
partir da década de 1840, foram relevantes para a constituição da história enquanto
disciplina escolar. O primeiro por ser responsável por disseminar as tendências
educacionais para o resto do país, e o segundo por desejar escrever a história oficial do
país. Os dois, juntos, contribuíam para a construção da identidade nacional.
(FONSECA, 1998, p, 52).
É oportuno mencionar que a história ensinada, no Brasil, sofreu forte influência
da história francesa. Segundo Haidar (1972, p. 99), citado por Nadai (1993), o então
secretário e ministro do Estado da Justiça do Império afirmou, em 1830, que se buscou
fora a experiência que não tínhamos e que a escolha pelo modelo francês se deu pelo
fascínio que as ideias, instituições e costumes desse país exerciam sobre o Brasil.
A princípio, o ensino de História, no Brasil, foi quase que domínio
exclusivamente da história europeia ocidental. Um exemplo dessa influência está no
fato de que, durante muito tempo, se usou, no Brasil, as traduções dos compêndios
franceses e até mesmo os originais na ausência das traduções. A história do Brasil, por
sua parte, era ministrada como simples complemento da “verdadeira” história da
civilização. Importante lembrar que, durante o período colonial quase não se falava em
ensino, pois quem tinha dinheiro mandava seus filhos estudarem na Europa. As poucas
instituições de educação no Brasil-Colônia ficaram a cargo das ordens religiosas; logo,
o acesso à educação era limitado.
Desse modo, em um primeiro momento, o ensino de história no Brasil tinha por
função disseminar a moral religiosa católica, civilizar e constituir a identidade nacional
e a cidadania. Para Batista Neto (2000) tal fato proporcionou um arranjo em duas
vertentes diferentes, no ensino de conteúdos históricos: uma sagrada e a outra profana
ou civil. Na primeira, os fatos eram regidos pela ótica religiosa, já na segunda, os fatos
eram marcados pela ação do Estado.
A continuidade do processo apontará para a conquista paulatina do espaço
escolar por uma História que se constituía como disciplina autônoma, leiga e
“científica”. Nesse sentido, ele deixou de valorizar o estudo dos fatos bíblicos
para preocupar-se em transmitir conteúdos relacionados com a formação das
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civilizações (História da Civilização) e da nação (História do Brasil)


(BATISTA NETO, 2000, p. 18).
Com a República, o civismo e a identificação com a história europeia,
(especialmente a francesa) foram intensificados. Desse modo, a História Universal,
ensinada no Brasil teve seu foco na Europa onde se buscaram ideias e exemplos que
contribuíssem para o pensamento nacional e republicano. Nessa perspectiva, a História
Pátria estudava as biografias de heróis nacionais, batalhas e data comemorativas.
É importante ressaltar que a partir de 1930 temos uma mudança na ordem social
advindas da urbanização e da industrialização. O Estado centraliza sua política e atribuí
à mesma uma função ressignificada.
A partir da década de 1930, várias mudanças aconteceram na área da educação.
Foi criado durante o governo de Getúlio Vargas o Ministério da Educação e Saúde
Pública e em 1938 foi instituída a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD). É
importante frisar que foi com a Constituição Nacional de 1934 que a educação passa ser
laica, direito de todos e dever da família e do Estado217.
O que o Governo de Vargas buscou com essas políticas foi integrar e centralizar
em nível nacional o processo de educação no país buscando fortalecer a União, em
detrimento, das liberdades regionais. Criou-se assim, a ideia de formação nacional,
como fruto de contribuições pacificas das diversas etnias existentes no país. Segundo
Nadai (1993) o surgimento dos elementos da História cordial foi obra de um passado,
no processo da constituição da nação, sem conflitos.
Antes das reformas de 30 e 40 a História do Brasil era apenas apêndice da
História Universal como bem afirma Fonseca.
Foram as reformas do sistema de ensino nas décadas de 30 e 40 que
promoveram a centralização das políticas educacionais e colocaram o ensino
de História no centro das propostas de formação da unidade nacional,
consolidando-a, definitivamente, como disciplina escolar. A partir desse
momento, não mais deixaria de haver programas curriculares estruturados
com definição de conteúdo, indicação de prioridades orientação quanto aos
procedimentos didáticos e indicação de livros e manuais. (FONSECA, 1998,
p. 52).

Ditadura Militar e o Ensino no Brasil


Após a II Guerra Mundial e durante a Guerra Fria o alinhamento do Brasil com os
Estados Unidos foi se tornando cada vez mais definido. Os norte-americanos
propagavam a Doutrina de Segurança Nacional que pretendia “proteger” a sociedade
dos comunistas (os de dentro do país foram chamados de inimigos internos). Tais
comunistas almejariam destruir, segundo o governo norte americano, a democracia e o
sistema capitalista. Foi sob essa influência que os militares brasileiros fundaram a
Escola Superior de Guerra.
Após o conturbado mandado político de Jango e temendo, uma possível aliança
do Brasil com os comunistas, setores da direita brasileira com apoio dos EUA
destituíram João Goulart e, no dia 31 de março de 1964, inicia-se o governo ditatorial
militar no Brasil.

217
Informações obtidas em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=2&Itemid=171
e http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-historico. Acesso em: 13 mar. 2014.
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Durante 21 anos os brasileiros viveram um período marcado por violência e


controle (de todas as espécies) por parte do Estado em nome da Defesa da Segurança
Nacional e de um Projeto Desenvolvimentista.
Entretanto foi no governo do presidente Costa e Silva no ano de 1968 que foi instaurado
o Ato Institucional número 5 (AI 5). Esse Ato endureceu a perseguição a todos que
fossem contrários a “Revolução Brasileira”. Seu artigo 5º afirma que
Art. 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa,
simultaneamente, em: (Vide Ato Institucional nº 6, de 1969) I - cessação de
privilégio de foro por prerrogativa de função; II - suspensão do direito de
votar e de ser votado nas eleições sindicais; III - proibição de atividades ou
manifestação sobre assunto de natureza política; IV - aplicação, quando
necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b)
proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado. 218

Desse modo, entre as resoluções do AI 5 encontramos: poder quase ilimitado conferido


ao Presidente da República, caça aos direitos políticos, suspensão do direito de habeas
corpus e censura prévia à imprensa e à produção artística, literária e científica.
Com esse cenário não é de estranhar que a educação brasileira também tenha
passado por mudanças radicais, principalmente as intituladas Ciências Humanas.
Com o intuito de atender ao binômio da Segurança Nacional e do avanço
desenvolvimentista, a estrutura educacional foi modificada. Era interesse dos nossos
governantes que o país deixasse o aspecto agrário para avançar na industrialização. Para
tal industrialização era necessária uma mão de obra qualificada.
Para que fosse possível a qualificação de mão de obra a fosse possível era
fundamental o avanço no grau de escolaridade dos brasileiros. Em nível de ensino
médio, optou-se pelo ensino profissionalizante. Segundo Fonseca (2012, p. 23),
enquanto as escolas públicas se voltaram para um ensino técnico de baixa qualidade, as
instituições de ensino particulares ofereciam cursos noturnos que atendiam aos
trabalhadores e que não necessitavam de alto investimento, como magistério e
contabilidade.
A autora também chama nossa atenção ao mostrar que a educação brasileira mantinha
forte ligação com investimentos externos e acordos que serviram para consolidar os
ideários do governo militar que eram, os já citados, segurança nacional e o projeto
desenvolvimentista.
O papel da educação assim como as metas para o setor, estabelecidas pelo
Estado Brasileiro a partir de 1964, estiveram estritamente vinculados ao
ideário de segurança nacional e de desenvolvimento econômico. O projeto
delineado nos Planos e Programas de Desenvolvimento, na legislação e nas
diretrizes governamentais representa o ideário educacional de diversos
setores internos e externos. No plano interno, temos a continuidade de
experiências visando à elaboração de políticas e de tecnologia educacional,
como, por exemplo, as Forças Armadas através da Escola Superior de
Guerra, e os empresários através do IPES. No plano externo, há um
estreitamento dos vínculos com organismos internacionais como USAID,
além da OEA e Unesco. (FONSECA, 2012, p.19)

218
Ato Institucional nº 5. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm. Acesso 15 de março
de 2014.
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O acordo conhecido como MEC/ USAID mostrou o alinhamento político e ideológico


da educação brasileira com os Estados Unidos.
Com o surgimento da necessidade de aumento da escolaridade dos trabalhadores para
abastecer as indústrias, cria-se uma grande demanda por profissionais qualificados para
formar os futuros técnicos. Devido à urgência de tais profissionais conclui-se que não
haveria tempo para uma formação completa. E com base no AI 5 é autorizado em18 de
abril de 1969 o Decreto-Lei nº 547 que traz em seu primeiro artigo
Art. 1º As Escolas Técnicas Federais mantidas pelo Ministério da Educação e
Cultura poderão ser autorizadas a organizar e manter cursos de curta duração,
destinados a proporcionar formação profissional básica de nível superior e
correspondentes às necessidades e características dos mercados de trabalho
regional e nacional.219
A legislação emitida trouxe lucros expressivos para as empresas privadas de educação,
já que, serão elas que se incumbirão das licenciaturas de formação curta. Esses cursos
comprometem a formação da criticidade do professor, pois sua formação foi pensada
apenas para atender as necessidades de criação de mão de obra e não de cidadãos
críticos.
Também não podemos esquecer do Decreto lei de nº 869 de 1969 que torna obrigatório
o ensino de Educação Moral e Cívica em todos os graus e modalidades. O segundo
artigo do decreto relaciona os objetivos da nova disciplina
Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem
como finalidade: a) a defesa do princípio democrático, através da preservação
do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade
com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b) a preservação, o
fortalecimento e a projeção dos valôres espirituais e éticos da nacionalidade;
c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade
humana; d) o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos
grandes vultos de sua historia; e) o aprimoramento do caráter, com apoio na
moral, na dedicação à família e à comunidade; f) a compreensão dos direitos
e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-político-
ecônomica do País; g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades
cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva,
visando ao bem comum; h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao
trabalho e da integração na comunidade. Parágrafo único. As bases
filosóficas de que trata êste artigo, deverão motivar: a) a ação nas respectivas
disciplinas, de todos os titulares do magistério nacional, público ou privado,
tendo em vista a formação da consciência cívica do aluno; b) a prática
educativa da moral é do civismo nos estabelecimentos de ensino, através de
tôdas as atividades escolares, inclusive quanto ao desenvolvimento de hábitos
democráticos, movimentos de juventude, estudos de problemas brasileiros,
atos cívicos, promoções extra-classe e orientação dos pais. (DECRETO LEI
Nº 869, 1969)220

Para os alunos de II grau era obrigatório, além de Moral e Cívica, curso


curricular de Organização Social e Política Brasileira (OSPB). Além disso, foi algo
comum à confusão entre os conteúdos de História do Brasil com os de Moral e Cívica.

219
Decreto Lei Nº 547 de 18 de abril de 1969. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del0547.htm. Acesso em: 15 de mar. 2014.
220
Texto integral em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=195811. Acesso
em: 16 mar. 2014.
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Reforma educacional de 1971 e a desqualificação do professor de História


A reforma educacional do ano de 1971 parece ter consolidado todas as mudanças
ocorridas anteriores na educação brasileira. Com a lei nº 5.692 de Diretrizes e Bases
para o I e II graus buscaram concretizar os objetivos do Governo Militar de forma que o
ensino atendesse aos interesses do desenvolvimento econômico.
Com a reforma de 71, a estrutura de ensino foi remodelada com grande impacto sobre as
denominadas Ciências Humanas. Em nome de um modelo desenvolvimentista, a
formação profissional técnica se sobrepõe a formação geral do aluno. As disciplinas de
caráter humanístico não atendiam a educação a serviço da economia e do mercado e,
por isso, tiveram sua carga horária reduzida e seus conteúdos diluídos em uma nova
disciplina.
É, então criada, a matéria Estudos Sociais com o intuito de fundir as disciplinas
de História e Geografia no curso de I grau. Mas, em verdade, seus objetivos iriam muito
além. Segundo Thais Nivea, eles se propõem a rever o papel do homem na história,
articulando-o à perspectiva do regime.
Segundo as determinações do próprio Conselho Federal de Educação a
finalidade básica dos Estudos Sociais seria ajustar o aluno ao seu meio,
preparando-o para a ‘convivência cooperativa’ e para suas futuras
responsabilidades como cidadão no sentido do “cumprimento dos deveres
básicos para com a comunidade, com o Estado e a nação”. Nessa concepção
os homens não aparecem como construtores da História; ela é conduzida
pelos “grandes vultos”, cultuados e glorificados como os únicos sujeitos
históricos. (FONSECA, 1998, P. 57, 58).
Com a implantação do Estudos Sociais surgiu um novo problema: a falta de professores
que atendessem as necessidades para ensino dessa matéria. Para isso, foi implantado o
curso de licenciatura curta em Estudos Sociais em nível superior.
Dessa maneira, o ensino da 1ª à 4ª série seria feito por professores polivalentes e
o de 5ª à 8ª série seria feito por professores com formação específica, porém curta. É
importante lembrar que os diplomas obtidos por meio de licenciaturas de curta duração
tinham prioridade sobre os de História e Geografia. Era também garantido aos referidos
profissionais a possibilidade de ministrar aulas nas disciplinas de Moral e Cívica e
OSPB.
Selva Guimarães, citando Déa Fenelon, explica a função e as limitações do
professor de Estudos Sociais, formado de forma aligeirada.
[...] o professor idealizado para produzir esse tipo de ensino
deverá, portanto, ser submetido a um treinamento generalizante
e superficial, o que conduzirá fatalmente a uma deformação e a
um esvaziamento de seu instrumental científico. Não há que
pensar em fornecer-lhe elementos que lhe permitam analisar e
compreender a realidade que o cerca. Ele também não precisa
refletir e pensar, deve apenas aprender a transmitir. (FONSECA,
2012, p.29).
Portanto, a falta de elementos para desenvolver a criticidade na formação dos
professores será retransmitida aos alunos. Déa Fenelon (1985, p.96) acrescenta ainda
que a desqualificação da formação implicará na desvalorização da profissão, deixando
subentendido a trivialidade que era o dever de ensinar.
Como forma de controlar o quê e como seriam ensinados os conteúdos em sala de aula
foi implantado o programa curricular onde os livros didáticos passam a ser
confeccionados em larga escala, mas seus conteúdos serão uniformes, garantindo que o
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professor apenas reproduzisse o que lia. Nesse sentido, a História ensinada será a dos
heróis, e da elite política, combinada a um patriotismo exacerbado.
Os Guias Curriculares “auxiliariam” os professores na medida em que informava quais
os conteúdos deveriam ser trabalhados e qual deveria ser sua metodologia. Esse fato
aliado à formação precária do professor esvaziou e descaracterizou a função do ensino e
do professor de História nas instituições de ensino.
Mas, em meados de 70 e mais profundamente na década de 80, veremos lutas
fundamentais para mudanças na forma de conceber o ensino de história no Brasil. Um
ótimo exemplo foi a luta de historiadores e geógrafos que acarretou o fim dos Estudos
Sociais e a retomada da autonomia dessas duas disciplinas no currículo escolar, assim
como a revisão feita dos conteúdos dos livros didáticos.
Considerações Finais
O caminho que levou a constituição do ensino de História enquanto disciplina
escolar no Brasil foi tortuosa, repleto de conflitos e muitas vezes se confundiu com a
própria História do Brasil.
Vimos que o interesse acerca dos conteúdos ensinados em sala de aula foi algo
recorrente em nossa história. Um dos primeiros conflitos aconteceu entre a história
sagrada e a profana, com o predomínio da segunda. A história profana se tornou laica,
científica e nitidamente francesa.
No que tange ao ensino de História do Brasil, a princípio serviu de apêndice da História
Universal e será usada durante a Ditatura Militar para desencadear o ufanismo e a
exaltação dos heróis da pátria.
Refletir sobre o ensino de História no Brasil é importante, pois, nos permite pensar o
papel que essa disciplina desempenha sobre nossa sociedade. Não foi à toa que a
reforma de 1971 mexeu, não só na grade curricular nas Ciências Humanas nas escolas,
mas também, com a formação dos professores instalando uma formação curta e que
atendesse as “necessidades” do mercado.
Outro agravante causado pela (des)qualificação aligeirada foi a completa dependência
por parte do professor sobre o material didático. Com o tempo de formação reduzido o
curso não lhe fornecia ao professor subsídios para reflexões. Esse fato piorou, ainda
mais, com o surgimento dos Guias Curriculares que invés de orientar serviu para
controlar a prática do professor sobre o que deveria ser ensinado nas escolas.
O Regime Militar chegou ao fim e seus métodos no ensino de história foram
amplamente combatidos. Contudo, o que percebemos é que muitas de suas práticas
continuam impregnadas em nossa sociedade, uma vez que, não é raro vermos
professores de história do século XXI com metodologias do século XIX.
Referência bibliográfica
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ESCOLA POLITÉCNICA DA PARAÍBA EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR

Rafael Porto Ribeiro221


Aluno PIVIC/CH/UFCG / UFCG
rafaelporto2@otmail.com

Fábio Ronaldo da Silva


Doutorando em História pelo PPGH/UFPE
fabiocg@gmail.com

Rosilene Dias Montenegro


Doutora em História
rosilenedm@hotmail.com

A década de 1960 é para a sociedade ocidental um marco das mudanças culturais. No


Brasil essa década é marcada pelo golpe militar de 1964, que instalou um regime
ditatorial que durou 21 anos. Durante essa época, a prática da censura e da perseguição
política se tornou “comum”, e direitos como a garantia fundamental à liberdade de
expressão foram criticamente aviltados. A censura à expressão, atingia principalmente
os meios de comunicação, como jornal, rádio e televisão, impondo diversas regras e
permitindo a publicação apenas daquilo que era favorável ao regime militar. Mídias de
circulação nacional e local eram censuradas igualmente, e rapidamente a mentalidade
dominante na mídia passava a ser pró-regime – quisessem os jornalistas ou não. É nesse
contexto que iremos analisar, através de métodos da história oral, o discurso de ex-
alunos da Escola Politécnica da Paraíba, uma das primeiras instituições de ensino
superior de Campina Grande. Nosso objetivo é conhecer e analisar como esses ex-
alunos perceberam o turbilhão político do país, e como entendiam o regime militar e
quais memórias das influências desse regime em seus cotidianos. Tinham simpatia pelo
regime? Percebiam as questões de limitação, censura, autoritarismo inerentes à
ditadura? Sentiam-se reprimidos? Havia alunos e professores apoiando o regime

221
Aluno PIVIC pelo Projeto Memória da Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Campina
Grande sob a orientação da profa. Dra. Rosilene Dias Montenegro. Vigência 2013-2014
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militar? A oposição ao regime trouxe consequências irreparáveis para algum aluno?


Como essas questões influenciaram o funcionamento da Escola Politécnica em termos
administrativos e em termos das relações entre alunos, funcionários e professores?
Essas são as questões que apresentaremos no presente estudo em que história oral e
memória se constituem os meios de registro e conhecimento dessa história na
Politécnica.

Palavras-Chave: Ditadura Militar, Memória, Ciência e Tecnologia.

A partir de 1964, com o golpe militar que depôs no Brasil o Presidente da República,
João Belchior Marques Goulart (João Goulart), todo veículo de informação que quisesse
continuar existindo teve que passar por reformulações que permitissem a ampla
veiculação de propaganda pró-regime ditatorial. Em Campina Grande, Diário da
Borborema222, jornal local e de tiragem diária, criado em 02/10/1957, pelo império
empresarial Diários Associados, limitou-se a comunicar, sem questionamentos ou
críticas, as ações do governo federal. Tal posicionamento foi comprovado a partir das
pesquisas no acervo do dito jornal realizadas pelo Projeto Memória, documentadas em
artigos e outras produções dos pesquisadores do projeto.
Passavam-se as informações como se todas as ações do governo fossem meramente
técnicas, ações naturalmente decorrentes do ato de governar – como se nenhum golpe
tivesse acontecido, como se o fluxo do poder jamais tivesse sido modificado e não
existissem as disputas em torno da construção política do país e a democracia como
ideal e prática de humanização e justiça social. O Diário da Borborema, assim como
grande parte da mídia223 informava sobre uma revolução e não de um processo ditatorial
que se instalava no país.
(...) tendo os meios de comunicação sob controle, e ainda por
cima, contando com a preciosa colaboração da TV Globo, os
órgãos de repressão empreenderam esforços no sentido de
popularizar a imagem do governo mediante a cooptação de
antigos participantes da luta armada. A estes caberia denegrir o
esforço revolucionário dos militantes da esquerda e,
simultaneamente, exaltar o governo apresentado como
progressista. (AQUINO, 2012, p. 246)

É justamente após os eventos de 1964 que vamos perceber, no Diário da Borborema,


um enfoque maior na Escola Politécnica da Paraíba, fundada em 1952. Notícias eram
veiculadas frequentemente sobre vários aspectos da Politécnica, indo da solenidade de

222
A primeira edição do Diário da Borborema foi publicada em 02 de outubro de 1957 com sete cadernos
e 56 páginas. O periódico já nasceu pertencendo à cadeia dos Diários e Associados e esteve em circulação
até 01 de fevereiro de 2012.
223
A grande imprensa sofria censura da ditadura, ou corroborava com as ações do governo. Vamos ver,
por exemplo, jornais de circulação nacional trazendo as seguintes manchetes: "Fugiu Goulart e a
democracia está sendo restaurada" (O Globo, 02/04/1964); "Feliz a nação que pode contar com
corporações militares de tão altos índices cívicos" (O Estado de Minas, 05/04/2013) ou Congresso
concorda em aprovar Ato Institucional" (Jornal do Brasil, 09/04/1964), mas, apesar disso, alguns jornais
alternativos que não concordavam com o poder vigente passaram a surgir, sendo o Pasquim (1969 a
1988) um dos periódicos mais importantes que surgiu naquele período.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

formatura de uma turma até a instalação do primeiro IBM 1130, primeiro computador a
ser instalado em uma instituição do Norte-Nordeste. É importante mencionar aqui que,
foi no período em que Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque esteve na direção dessa
Escola (1964-1971), que houve a primeira expansão da instituição com a criação de
novos cursos de graduação e, também, de cursos de pós-graduações e vários convênios
firmados entre instituições nacionais e internacionais.
Considerada as dimensões da influência da ditadura militar localmente, podemos
questionar também a influência dessa ditadura nos próprios cidadãos de Campina
Grande224, e mais precisamente, nos alunos da Escola Politécnica, que estavam sob os
holofotes da mídia e do governo militar, uma vez que faziam parte de uma instituição de
ensino superior de história tão rica. Tal história “rica” da construção, fundação e
administração da Escola Politécnica será discutida posteriormente.
O próprio fato de se estudar numa instituição de ensino superior em Campina Grande já
fazia dos alunos indivíduos de interesse para a mídia e o governo, já que até então, não
havia nenhuma instituição similar na cidade.

1- Apresentando a Escola Politécnica

A criação de uma instituição de ensino superior em Campina Grande era uma cara
aspiração das elites campinense, idealizada pelo segmento intelectual e de profissionais
liberais de Campina Grande, na década de 1950 (LOPES, 1989). Um dos principais
motivos para a implantação do ensino superior na cidade era atender aos estudantes
campinenses e da região, filhos e/ou membros das elites político-econômicas, que
desejavam construir na cidade condições de oferecer formação escolar e profissional em
nível superior. Na ausência do ensino superior na cidade, os jovens das famílias
abastadas e a de classe média tinham que se deslocar para outros Estados ou regiões. A
essa razão soma-se a necessidade das elites campinenses de criar lugares de atuação
profissional e trabalho para os seus filhos.
Na cidade, as opções para a colocação profissional para as elites se limitavam ao
comércio e a política. Os poucos profissionais liberais, engenheiros, médicos,
advogados, ocupavam as também poucas colocações de emprego nas áreas da saúde,
ciências jurídicas e ensino. Áreas cada vez mais demandadas, apresentando carência de
profissionais para atender essas demandas.
O governador do Estado (1951-1956) o escritor e também político José Américo de
Almeida incentivou e apoiou a criação de instituições de ensino superior. Projeto que
esperava se constituir um das marcas de seu governo. Como de fato o foi. Todavia, para
se tornar realidade esse projeto político enfrentou importantes obstáculos. Pois, embora
a conjuntura política no Estado da Paraíba fosse bastante favorável à criação de
instituições de ensino superior, havia choque de interesse entre as duas mais importantes
elites do Estado, a da capital João Pessoa e a de Campina Grande, polo comercial
algodoeiro. Essas disputas tendiam a apequenar as propostas tocantes à educação.
Os relatos de fundadores da Escola Politécnica sobre as dificuldades enfrentadas pelo
grupo fundador dessa instituição são taxativos quanto a interferência dos divergentes
interesses políticos. O engenheiro Químico, fundador e professor da Escola Politécnica,
José Marques de Almeida Jr, chamado de Dr. Zezé Marques, recordando as discussões,

224
Na época, Newton Rique, Prefeito de Campina Grande, deu declarações informando ser contrário ao
golpe e, pouco tempo depois ele foi cassado.
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tensões e dificuldades para a criação da primeira instituição de ensino superior em


Campina Grande com projeto de formação na área técnica, em particular, de
engenheiros, afirma:

O general Oliveira Leite queria um curso [em nível] médio em Campina


Grande. Desse modo argumentei que, um curso médio já existia no SENAI
e o que queríamos era uma Escola [em nível] Superior. Ele se opôs por que
batalhava a criação desta mesma Escola em João Pessoa (Entrevista cedida
ao Projeto Memória em 2004, p.11).

O caminho empreendido pelos fundadores foi árduo, todavia bem estruturado. Os


fundadores da Escola Politécnica conseguiram transformar a ideia inicial de criação de
uma escola de nível superior em projeto consistente, convincente e pertinente de uma
escola de caráter técnico-científico para a formação de graduados em Engenharia Civil,
que segundo Edvaldo de Souza do Ó (s/d), era uma proposta do Governador José
Américo de Almeida.
Os argumentos foram seguros e unânimes, passando-se logo a outra sugestão,
que foi a da criação de uma Escola Politécnica, começando com o curso de
Engenharia Civil. Aceita unanimemente essa ideia, designou-se uma
comissão constituída dos senhores José Marques de Almeida Jr., Giuseppe
Gióia, Austro de França Costa e Antônio da Silva Morais, para
posteriormente se reunirem e redigirem um convite a todos os técnicos do
Estado, solicitando-lhes a presença a uma reunião, em que o assunto fosse
mais largamente debatido. (DO Ó, s/d.: 25)

Antônio Ildefonso de Albuquerque Melo, ex-professor e pioneiro da Politécnica,


também relata como foi o processo de criação da Escola em Campina Grande e as
dificuldades advindas da capital para que a instituição não fosse criada em uma cidade
do interior.
Escola Politécnica resultou de uma conversa entre um pessoal de Campina
Grande com o governador José Américo de Almeida, da qual houve o
entendimento prévio, mas havia uma disputa muito grande com João Pessoa.
Havia um general225 que queria ser o chefão e achava que Campina Grande
não era digna de ter uma Escola de Engenharia, desejando que esta fosse
criada em João Pessoa. Naquele tempo, existiam diversos órgãos filiados a
Engenharia de Produção Mineral que funcionavam realmente. Hoje, o Brasil
é um caos, não tem mais uma organização das carreiras de Engenharia.
Antigamente havia uma densidade relativa de técnicos em Campina Grande
e, por conta disso, era perfeitamente viável a criação de uma Escola
Politécnica, bem como a criação de uma Escola de Economia. Nessa época,
existia muito despeito de João Pessoa com Campina Grande, tudo que era
para Campina Grande era difícil, mas José Américo comprometeu-se e
cumpriu. (Entrevista cedida ao Projeto Memória em 2004, p. 05)

A Escola Politécnica da Paraíba foi então criada com o curso de Engenharia Civil. Mas
devido as questões de ordem burocrática junto ao Ministério da Educação, seu
funcionamento só foi autorizado em 14 de julho de 1953, através do Decreto Federal de
nº 33.286, aprovado pelo presidente Getúlio Vargas.

225
O general que o entrevistado esta se referindo é o general Oliveira Leite, que foi contrário a criação da
Escola Politécnica, propondo a criação da Escola de Química.
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foi criada em [19]52, mas só teve vestibular em [19]54, quer dizer a primeira
turma entrou, foram nove [lapso de memória do prof. Lynaldo pois foram
oito] alunos que entraram no começo de 54. Muitos professores que tinham
assinado como possíveis titulares de disciplinas eram pessoas que moravam
em João Pessoa e depois não demonstraram maior interesse, até porque os
salários eram muito baixos. (ALBUQUERQUE, 2005, 03)

O primeiro vestibular da Politécnica ocorreu em 1954, e o reconhecimento do curso em


outubro de 1958, ainda neste último ano, se formou a primeira turma de engenheiros
dessa Escola.
No ano de 1973, através da Resolução de número 12 do Conselho Universitário, de
02/08/1973, há uma reformulação da estrutura acadêmica da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) e, a partir da aprovação da Portaria R/DP 280, de 25/06/1973 o
Ministério da Educação e Cultura promulga pelo Decreto de número 73.701, de
28/02/1974, foi criado o Centro de Ciências e Tecnologia, ocorrendo a fusão da Escola
Politécnica e a Faculdade de Ciências Econômicas como campi da UFPB. Em 2002, a
UFPB cederia quatro dos seus seis campi para a criação da Universidade Federal de
Campina Grande (UFCG), de acordo com a Lei de número n°. 10.419, de 09.04.2002.

2- Memórias e histórias

Os entrevistados aqui citados falaram sobre sua vida e cotidiano quando alunos da
Escola Politécnica da Paraíba. Essas entrevistas foram realizadas no decorrer do ano de
2013 pelos integrantes do Projeto Memória, Raquel Guedes e Rafael Porto. As
entrevistas são o resultado de mais um ciclo de atividades do Projeto Memória, que
incluiu também o levantamento de dados sobre ex-alunos(as) e ex-funcionários(as) da
Escola, bem como o indexamento de arquivos relacionados ao período de
funcionamento da Escola (1952-70). Quando perguntados sobre a percepção deles sobre
a ditadura, encontramos respostas variadas, que têm seus motivos ainda indefinidos,
mas ainda assim, possíveis de serem traçados.226
A primeira fala a ser analisada, será a da depoente A.M.V., ex-aluna do curso de
Engenharia na Escola Politécnica, a respeito do contexto histórico pré-ditadura, A.M.
nos explica que:
[nós, o Brasil] Estávamos no governo de Jango, era um governo socialista e
todo estudante que não fosse comunista era imbecil sabe? Você não podia ser
de direita, os estudantes. Os professores eram todos de direita né? E todo
mundo era a favor da Reforma de Base e todo mundo lutava pelo povo na
universidade, o slogan era ‘O Povo na Universidade’. (Entrevista cedida ao
Projeto Memória em 06/05/13)

Essa fala representa a posição dos estudantes da época em relação às políticas no país
pré-ditadura: uma adesão às medidas de caráter populista e enfáticas na reforma da
educação brasileira. Ao chegar a ditadura, não é de se espantar que os movimentos
estudantis se tornassem um dos maiores críticos ao novo sistema imposto.

226
Todas as entrevistas utilizadas no trabalho tiveram sua gravação e publicação permitidas pelos
depoentes.
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Já sobre o período após o golpe de 1964, A.M.V. Nos fala sobre as medidas tomadas
pelo exército para manter o controle sobre a população:

Houve repressão porque era uma coisa muito calada, ninguém sabia, era no
cochicho que agente falava ‘fulano foi preso’, ‘sicrano desapareceu’. Você
tava conversando em um papo assim, no intervalo de aula, aí chegava um
cara e se metia no papo sem ninguém chamar sabe? Aí, a gente foi
descobrindo que aquilo eram pessoas infiltradas. Na minha turma tinham
cinco militares, um major, dois tenentes e um sargento, quatro... A gente não
podia dizer nada, não se falava de política, acabou-se. (Entrevista cedida ao
Projeto Memória em 06/05/13)

A força da repressão é evidente nesse trecho da fala da entrevistada, que ainda comenta
sobre as medidas tomadas contra os funcionários da Politécnica, alegando que o foco
mesmo estava nos estudantes. A entrevistada também fala sobre a fiscalização dos
militares em todos os âmbitos das práticas na Escola, de aulas práticas às viagens
estudantis, tudo precisava passar primeiro pela aprovação do exército.
É interessante notar também que a depoente foi a primeira mulher a se formar em
Engenharia na Escola Politécnica, curso reservado, culturalmente, apenas ao sexo
masculino. E ela própria se define como uma mulher “pioneira”. O fato dela se mostrar
contrária à ditadura desde o começo reforça a sua definição.
O professor E. P. (2004) que diz que a Escola só não fechou porque contou com ajuda
da comunidade empresarial.
A Escola Politécnica não fechou graças ao apoio de empresas da cidade, da
Federação das Indústrias e a Associação Comercial, mesmo assim nós nos
cotizávamos para comprar material de expediente, (...) para manter a Escola
Politécnica funcionando. Nós fazíamos questão que nossos alunos soubessem
disso, que eles estavam fazendo prova com papel comprado pelos
professores, que o mimeografo não parava de produzir material didático
porque os professores davam dinheiro para comprar extenso e álcool e o que
precisasse [ser comprado]. (Entrevista cedida ao Projeto Memória em
29/04/2004)

Buscando fazer a relação dos depoimentos com outras fontes, recorremos a uma notícia
publicada no Diário da Borborema de 01/04/1964: “Alunos da Politécnica decidem, em
Assembleia, entrar em greve para apoiar o presidente Jânio Quadros”. E em seguida há
o texto: “Segundo Gil Teixeira Filho, presidente do Diretório Acadêmico da Politécnica
o movimento paredista será uma manifestação da greve geral decretada pela UNE em
sinal de protestos contra a crise atual e contra a crise nascida de uma política dirigida
por maus brasileiros”.
Segundo Giovani (2009, p. 10), “o setor estudantil também foi muito perseguido. As
direções das entidades estudantis, tanto secundaristas como universitárias, sofreram
intervenções. Também houve perseguição a professores universitários e expurgos no
aparelho estatal”.
O professor E. P. relembra um pouco sobre a experiência de participar do Movimento
Estudantil da Escola Politécnica.

(...) entrei em [19]63 e, na época, quem já estava no Movimento Estudantil


filtrava muito os que pretendiam entrar. Os que chegavam eram observados
muito tempo até merecem a confiança de participarem do Movimento
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Estudantil, mas nós o fizemos, e acho que fizemos bem, fizemos com lisura,
com espírito público, com patriotismo, lutávamos pela melhoria de qualidade
de ensino. Nós também não colocávamos a administração como inimiga,
apenas somos de lados opostos. Havia um entrosamento muito grande entre
os alunos e a administração, o Diretório Acadêmico apoiava muito a
administração da antiga Politécnica até para fortalecimento, porque havia o
preconceito contra a Escola Politécnica, principalmente quando ela começou
a fazer parte da Universidade Federal da Paraíba. A Politécnica sempre foi
discriminada. Ou a gente se unia ou então simplesmente o projeto podia falir.
(Entrevista cedida ao Projeto Memória em 29/04/2004)

O Golpe fora dado três meses depois que Lynaldo Cavalcanti foi nomeado
diretor da Escola Politécnica. E, ao contrário do que afirma o professor, Lynaldo
Cavalcanti, por um tempo, não era bem quisto pelo Diretório Acadêmico que o via
como alguém da “direita”.
Antes de Lynaldo, Edson Pereira afirma que o ex-diretor Antônio da Silva Morais era
mais preocupado em fazer a Escola funcionar com o curso de Engenharia Civil e, em
alguns momentos, a instituição acabava se mostrando apolítica.

Dr. Morais, assim como os demais administradores e professores, sentia que


a situação da Escola Politécnica era frágil e se fragilizaria mais ainda se
pendesse para esse ou aquele grupo político, então tentavam efetivamente
manter uma posição equilibrada de quem quer manter a instituição apolítica.

Usando as falas agora de outro entrevistado, J.S.R., veremos outra perspectiva da


ditadura militar, oriunda de um contexto mais recente que fala anterior, já que esse
entrevistado fala de suas vivências após entrar na Escola, a partir de 1972, enquanto que
A.M.V. entrara na escola 10 anos antes.
Questionado sobre a situação do ensino durante a ditadura, J.S.R. comenta:

Tínhamos uma série de restrições com relação... Eu não sei se foi ditadura, se
foi golpe militar... Teve, na minha opinião, algumas coisas positivas para o
país, em termos de se reestabelecer a ordem, porque na época estava uma
bagunça (...), nós podemos questionar como a ordem foi colocada, como a
ordem foi imposta (...) Mas no período da ditadura nós tivemos alguns
avanços em termo de país. (Entrevista cedida ao Projeto Memória em
29/04/13)

O depoente, inclusive, conhecia pessoalmente Lynaldo Cavalcanti, um dos personagens


principais nos primeiros anos de Escola Politécnica, e afirma:
Conheci o professor Lynaldo pessoalmente. Na época que eu era estudante de
graduação ele era diretor da antiga Escola Politécnica, depois na época que eu
estava fazendo o doutorado, o meu orientador, o professor, eu vi que ele tinha
um bom relacionamento com ele, e eu conheci o Lynaldo pessoalmente. (...)
Não tive tanta proximidade com o Lynaldo não. Mas de fato que ele
influenciou de alguma forma na minha vida ele influenciou, porque ele
influenciou no ambiente que eu estava. Onde eu estava estudando, onde eu
estava obtendo minha formação profissional. Fatalmente alguns traços dele
deve ter batido. (Entrevista cedida ao Projeto Memória em 29/04/13)

Percebe-se pela fala do entrevistado que, apesar de ter conhecido pessoalmente uma das
personalidades por trás da fundação da Escola Politécnica, ele julga a influência de
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Lynaldo como impossível de se evitar, como se todas suas práticas políticas fossem
naturais, e os eventos que levaram a Poli à sua posição na época foram se sucedendo
naturalmente. Talvez seja essa a impressão deixada pela imprensa que foi obrigada a se
calar sobre as práticas do governo: de que os movimentos políticos e o rumo do país
estavam fluindo de maneira natural, e que na verdade não haveria outra maneira senão
essa. Sabemos que a mídia é formadora de opinião; e se tal assunto é “esquecido” pela
mídia, lentamente as informações sobre tal assunto passam a cair no esquecimento. Note
inclusive que o entrevistado não comenta sobre as práticas de Lynaldo para movimentar
a Escola nos primeiros anos de fundação, justamente porque veicular a informação de
um indivíduo driblando o sistema da ditadura significava uma dura repressão a todos os
envolvidos no jornal que o fizesse.
É importante notar que até os estudantes mais alinhados à política da ditadura ainda não
concordavam com as práticas brutais militares, e mesmo sobre as falas relacionadas a
um período mais “brando” da ditadura (se comparado a outros períodos da ditadura),
como o fim dos anos 70.
J.S.R. também fala um pouco sobre a economia durante a época da ditadura, “você não
sabe o que é dormir hoje com R$ 1.000,00 reais e amanhecer com um e qualquer coisa.
E mudavam simplesmente os nomes das moedas ou coisa parecida, mas a inflação
continuava do mesmo jeito”.
O depoente mostra conhecimento sobre a grave crise econômica que o Brasil estava
passando, e que a ditadura pouco mudou a situação. Esse mesmo depoente afirma, em
tempos depois, que “não houve derramamento de sangue” entre as transições dos
governos, da república para a ditadura, e de volta à república. Ele não comenta nada,
porém, sobre o derramamento de sangue durante esse governo, e esse comportamento
também é esperado: Alegar a existência de tortura, para os que viveram a época, ainda é
traumático, e bastante complicado também, já que não havia provas o bastante para se
afirmar tal coisa – lembre-se que a mídia era proibida de comentar o assunto.
No ano de 1999, quando completava-se 20 anos de anistia a Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) produz um documento para retração formal e publica a todos integrantes
punidos por medidas excepcionais e arbitrárias do regime militar227.
A repressão política na UFPB deixou provas inquestionáveis que estão
agregadas ao processo: são os ofícios reservados de número 05 - Gabinete do
Reitor Guillardo Martins Alves, de 25 de fevereiro de 1969, dirigido aos
diretores de todas as unidades da UFPB, dando conta das punições aplicadas a
85 alunos e ex-alunos, e pedindo cumprimento e o de número 03/881/69 do
mesmo Reitor, de l de fevereiro de 1969, dirigido ao General Vinitius Notare,
Comandante da Guarnição Federal, informando das providências tomadas -
exoneração do Coordenador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, e não
renovação dos contratos de inúmeros professores desse mesmo instituto, da Escola
politécnica de Campina Grande, da Faculdade de Ciências Econômicas de
João Pessoa, da Faculdade de Ciência Econômica de Campina Grande, da Escola
de Engenharia, além do sustamento, para averiguação, do pagamento de salário
de professores dessas mesmas unidades, como também da Escola de Agronomia do
Nordeste e do Instituto Central de Física. São 29 professores atingidos. Completa
o ofício, a informação sobre a dissolução dos Diretórios Central e Acadêmicos
e a nomeação dos respectivos interventores228.

227
É importante relembrar que, a partir de 1974 a Escola Politécnica passa a ser campi da UFPB,
conforme mencionado anteriormente.
228
http://www.ufcg.edu.br/prt_ufcg/assessoria_imprensa/mostra_noticia.php?codigo=15315
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Através da interpretação das falas dos entrevistados é que podemos obter algumas
respostas sobre o tempo do regime militar e sua influência na vida cotidiana do cidadão.
Mais do que nunca é necessário prezar pela memória (e também pelos motivos que nos
levam ao “esquecimento”), pois só assim, com a análise dos trechos do passado, é que
podemos evitar que tamanho ataque à democracia e aos direitos humanos se repita
novamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esses relatos contribuem para que possamos conhecer um pouco mais a influência da
ditadura militar na vida dos brasileiros e, sendo mais específico, como esse processo
ditatorial vai interferir em vários ambientes, em específico, o educacional.
Durante o governo de Costa e Silva (1967-1968) a ditadura militar impôs a Reforma
Universitária no intuito de acabar com as atividades estudantis subversivas.
Essa Reforma implantada durante a ditadura no Brasil produziu um novo paradigma na
educação superior no país, passando a existir uma padronização no sistema acadêmico
em todas as instituições de ensino superior, dentre os quais destacamos a introdução de
vestibular unificado e classificatório, dedicação exclusiva dos docentes, criação de
departamentos, adoção de regime de créditos, pós-graduação dividida em dois
momentos, isto é, mestrado e doutorado, dentre outras diretrizes.
O processo ditatorial no Brasil acabou, mas ficaram as cicatrizes, assim como os
prejuízos causados pelo sistema ditatorial que afetou, dentre outras instâncias, muitas
instituições de ensino superior. Possivelmente, a Escola Politécnica da Paraíba sofreu
bem menos intervenção, opressão e repressão do que, por exemplo, a UNICAMP, USP
ou UFMG mas, mesmo em menor grau, a vivência em um sistema opressor muitas
vezes não será percebida apenas nos depoimentos, como os mostrados ao longo deste
artigo, mas também no olhar, nos silenciamentos ou nos suspiros quando feitas
determinadas perguntas para alguns dos depoentes trazidos aqui. Tais atos, na maioria
das vezes, nos traz mais angustia do que o falado, pois são memórias que,
provavelmente, não se transformarão em palavras, talvez para que, desta forma, o
sistema opressor nunca voltem a acontecer novamente.
Analisar as opiniões e situações contemporâneas à Escola e à ditadura é esclarecedora
no que se refere aos pontos de vista que cada grupo social, por meio de representantes,
tinha sobre o golpe e sobre suas políticas de caráter opressivo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.
AQUINO, Rubim Santos Leão de.Um tempo para não esquecer(1964-1985). Rio de
Janeiro, Consequência, 2012.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales – 1929 – 1989: A revolução Francesa da
Historiografia. Tradução de Nilo Odália, São Paulo: Editora Unesp, 1991.

LOPES, Stênio. Escola Politécnica de Campina Grande – Uma Experiência de


Desenvolvimento Tecnológico do Nordeste. Campina Grande, Editora Tecnal: S/D.

NUNES, Paulo Giovani Antonino. Os Movimentos Sociais, o governo Pedro Gondim


e o Golpe Militar na Paraíba. IN. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE
HISTÓRIA – Fortaleza, 2009.

Ó, Edvaldo de Souza do. Politécnica: Primeira Escola Superior de Campina Grande.


Campina Grande: Editora Campina Grande Ltda.

Acervo de entrevistas realizadas pelo Projeto Memória da Ciência e Tecnologia em


Campina Grande
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DAS “SUBVERSÕES” DOCENTES NAS TRAMAS DE “CLIO”: ENSINO DE


HISTÓRIA, PROFISSÃO DOCENTE E DITADURA MILITAR EM CAMPINA
GRANDE (1964-1985)229
Ramon de Alcântara Aleixo
PPGE/UFPB
amon_alcantara@hotmail.com.

Na contramão da ordem instalada no país em abril de 1964 muitas foram as


formas de contestação, cooptação e “subversão” testadas, consentidas e reprimidas
àqueles/as que, de alguma forma, se obliteraram aos corolários de “segurança” e
“desenvolvimento” nacional assegurado como trunfo pelos feitores e apoiadores do
golpe.
Todavia, das muitas nuanças que circundam as múltiplas formas de contestação
e subversão à ordem instituída, objetivo que compreende o nosso estudo, a atuação
docente constitui-se por certo numa das mais importantes formas de atuação
“clandestina” ao ideário ufanista-desenvolvimentista que perpassava as discussões do
Brasil de norte a sul e, por conseguinte, mimetizava-se nos debates e embates no âmbito
escolar.
Valendo-se da criticidade inerente aos traços de Clio, musa da História,
professoras puderam questionar a ordem instituída, driblando e fabricando no âmbito
dos espaços previamente circunscritos para os seus saberes-fazeres cotidianos, outros
passos que, cerceados pelo “estado de segurança nacional”, alteraram de forma profícua
as relações ensino-aprendizagem, currículo e cotidiano do ensino de História
(FONSECA, 2003).
Sabemos que a articulação institucional do governo militar nacional em torno da
desarticulação da criticidade “lacerante” aos olhos dos burocratas militares e seus
corolários civis, foi incisiva, bem como a perspectiva “desenvolvimentista” que ensejou
as transformações curriculares. Nesse contexto, tendências foram redefinidas e por sua

229
O presente texto consiste num recorte da dissertação de mestrado intitulada “DAS REPRESENTAÇÕES
DOCENTES NAS TRAMAS DE MNEMÓSINE: Cartografias de “sedição” e “sedução” nos caminhos e
atalhos da História da Educação na ditadura militar (1964-1985)”, sob orientação do professor Dr.
Iranilson Buriti e defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da
Paraíba em 2013.
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vez geraram aceitação, contestação e “subversão” às mais variadas esferas constituintes


dos espaços escolares.
Entretanto faz-se necessário retomarmos alguns pontos que possibilitem ao/a
presente leitor/a a configuração socioeducacional tecida e entretecida nos “cotidianos
ordinários” protagonizados por essas professoras que aqui damos a ler.
A presença do civismo no ensino brasileiro evidencia-se de forma perene ao
longo da tessitura da História da Educação nacional, figurando entre os elementos
constitutivos de nossa educação ao longo de períodos como o Estado-Novo (1937-1945)
e a ditadura civil-militar (1964-1985).
O que objetivamos tecer ao longo desse estudo é que a “invenção” do civismo
no âmbito da História da Educação nacional não se faz de forma única e absoluta por
parte dos militares e civis instalados no poder a partir de 9 de abril de 1964. Pelo
contrário, evidenciamos um traço nítido dessa história que é também memória a
apropriação por parte dos militares e corpo técnico educacional do ideário ufanista e
desenvolvimentista que asseguraram a “legitimação” das arbitrariedades impetradas
intra e extramuros escolares a partir da madrugada daquele 30 de março:

Com o golpe militar de 1964, o Estado passa a se preocupar enormemente


com a necessidade de revigorar o ensino de educação cívica sob a ótica da
doutrina de Segurança Nacional, tendo como contrapartida a
descaracterização e o esvaziamento do ensino de História nas escolas de 1º.
Grau (FONSECA, 2003, p. 36).

A colonização tecida pelas malhas de poder a partir da montagem de um aparato


burocrático evidencia o processo de docilização daqueles corpos insurretos, bem como a
necessidade de tornar proeminente a agência dos professores/as que deveriam se
“engajar” de forma mais sistemática na “salvaguarda” dos ditames da “moral e dos bons
costumes” exacerbados a partir de abril de 1964.
A presença nos currículos nacionais da disciplina denominada “Educação Moral
e Cívica – EMC” resultou da Lei nº. 4.024, Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, aprovada em 1961 (BRASIL, 1961). Destarte, a nova configuração impingida
à referida disciplina evidencia-se de forma sistematizada a partir das estratégias
referendadas pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG),
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na elaboração do anteprojeto da criação da referida disciplina aprovada pelo Decreto-lei


869, de dezembro de 1969, ápice da repressão sob a égide do AI-5230.
Reconfigurando os novos contornos impostos a sua socialização (ou imposição?)
ao evidenciar em seus quadros esquemáticos as atribuições de uma Comissão Nacional
da Moral e do Civismo para assegurar a sua “aceitabilidade” por entre os corpos
“indóceis” a agitarem a unidade nacional. Dentre as atribuições do referido Comissão,
destacamos:
Colaborar com o Conselho Federal de Educação na elaboração dos currículos
e programas básicos de Educação Moral e Cívica; fixar medidas específicas
referentes à Educação Moral e Cívica extra-escolar; colaborar com as
organizações sindicais de todos os graus para desenvolver e intensificar as
suas atividades relacionadas com a Educação Moral e Cívica; influenciar e
convocar à cooperação, para servir aos objetivos da Educação Moral e
Cívica, as instituições de órgãos formadores de opinião pública e de difusão
cultural, inclusive jornais, revistas, teatros, cinemas, estações de rádio e de
televisão, entidades esportivas, de recreação, de classe e órgãos profissionais;
articular-se com as autoridades responsáveis pela censura, no âmbito federal
e estadual, tendo em vista a influência da Educação assistemática; e implantar
e manter a doutrina de Educação Moral e Cívica [...], articulando-se para esse
fim com as autoridades civis e militares de todos os níveis do governo (A
UNIÃO, 1970).

Observa-se, assim, que as atribuições da referida Comissão ultrapassam e muito


as incursões de uma “simples” disciplina a figurar no cenário nacional os ideários do
civismo e da moral. Longe disso, constitui-se naquilo que Certeau (1994) denomina
como uma “vitória do lugar sobre o tempo”; ou seja, a visibilidade que a instituição de
um lugar por um “sujeito” de querer e poder possibilita atuar na preparação das suas
expansões futuras, obtendo para si uma independência em relação à variabilidade das
circunstâncias.
Ao deslindar o parecer federal que institui a referida comissão evidencia-se o seu
papel moralizador e porque não docilizador das diversas instituições que compõem os

230
A atuação do Estado autoritário, instalado em abril de 1964, configura-se mediante a instituição dos
chamados Atos Institucionais. Tais Atos consistiam em mecanismos jurídicos com vistas a manter a
“legitimidade” da Constituição Federal de 1946 mediante as ações de consolidação do estado de exceção.
Dentre os Atos Institucionais impetrados, destaca-se, pelo caráter coercitivo, o Ato número cinco. O AI-5
incorporou as disposições dos Atos anteriores, com o agravante de não ter limite de prazo para a sua
vigência; decretou o recesso do Congresso Nacional e dos órgãos legislativos estaduais e municipais por
quase um ano; suspendeu, por dez anos, os direitos políticos de vários parlamentares; determinou
profundas restrições às ações do judiciário e aboliu o habeas corpus para os crimes políticos (ALVES,
2005, p. 128-135).
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espaços escolares, tais como sindicatos, entidades esportivas, órgãos de comunicação e


difusão cultural. Suas ações passam a ser articuladas com os ideais da Comissão
Nacional de Moral e Cívica, que, por sua vez, era atrelada aos órgãos de censura do
país. A apropriação pelo Estado dessas instituições evidencia a perspectiva colonizadora
dos pretensos corpos insurretos que viessem, ou estivessem a pulular nos espaços
educacionais.
O panoptismo evidenciado por essas práticas de imposição representam uma
imposição pela vista, dando a ver as mais variadas e minúsculas redes de
interdependência, de “subversão” e contestação nos interstícios da sociedade
amordaçada:

Seria legítimo definir o poder do saber por essa capacidade de transformar as


incertezas da história em espaços legíveis. Mas é mais exato reconhecer
nessas “estratégias” um tipo específico de saber, aquele que sustenta e
determina o poder de conquistar para si um lugar próprio. De modo
semelhante, as estratégias militares ou científicas sempre foram inauguradas
graças à constituição de campos “próprios” (cidades autônomas, instituições
“neutras” e “independentes, laboratórios de pesquisa “desinteressados” etc.).
Noutras palavras, um poder é a preliminar deste saber, e não apenas o seu
efeito ou seu atributo. Permite e comanda as suas características. Ele se
produz aí (CERTEAU, 1994, p. 100).

O ensino de História, cujo objeto é explicitamente citado no Decreto 68.065/71,


vai sendo colonizado pelos “princípios norteadores da Educação Moral e Cívica”
(BRASIL, 1971). De um lado, os professores de História e Geografia ou Estudos
Sociais passam a se deparar com a imposição de ministrar essas disciplinas. Por outro
lado, as instituições escolares, obrigadas legalmente a cumprir o programa fixado pelo
Conselho Federal de Educação, diminuem a carga horária de História e Geografia,
cedendo espaço na grade curricular da escola para as duas disciplinas obrigatória:
Educação Moral e Cívica e OSPB.

A perseguição às disciplinas a que mais sofreu foi a História porque é uma


disciplina social, de grande avanço, de questionamentos seríssimos e que não
aceitava o que vinha de cima, não é? Através das lições que eram de Moral e
Cívica. Então, a História não vai sofrer no período de 1960 a 1964. Ela vai
até quando realmente acaba o regime militar (AMORIM, depoimento: [abr.
2012]).
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Se a ordem e a moral instituídas com vistas a eliminar as divergências no interior


do debate educacional brasileiro, a dedicação especial ao ensino de Moral e Cívica
cumpria a tarefa de reduzir os conceitos de moral, liberdade e democracia aos de
civismo, subserviência e patriotismo. Além disso, há uma simplificação da formação
moral à mera docilização dos corpos, à repressão do pensamento no livre debate de
ideias e ao culto aos heróis e das datas nacionais.
Entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, o governo federal decretou
uma série de leis nacionais instituindo comemorações cívicas em estabelecimentos de
ensino e repartições públicas. Em 1971, foi decretada a Lei 5.700 (BRASIL, 1971),
constituída de quarenta e cinco artigos dispondo sobre a forma e a apresentação dos
símbolos nacionais, bem como as penalidades impostas a quem desrespeitasse a
legislação referente aos símbolos.
No cerne da refiguração curricular e da cultura escolar em debate, a Reforma
Educacional do ensino de 1º e 2º grau, legitimada pela lei 5.692 (BRASIL, 1971), é
apresentada pela imprensa oficial paraibana como a grande renovação nas políticas
educacionais até então gestadas. O engenheiro José Carlos Dias de Freitas, na ocasião
Secretário de Educação do governo Ernani Sátyro, apresenta-se como o porta-voz do
crescimento e desenvolvimento paraibano através da “revolução” do ensino.
De acordo com a Reforma de 1971, a organização curricular a nível de primeiro
grau passa obrigatoriamente a conter um núcleo comum e uma parte diversificada. O
núcleo comum passa a ser constituído de Comunicação e Expressão, Estudos Sociais e
Ciências, além de Educação Moral e Cívica (obrigatória desde 1969), Educação
Artística, Educação Física, Programa de Saúde e Ensino Religioso. As disciplinas
História e Geografia passam a fazer parte de outra disciplina, qual seja, Estudos Sociais.
Esta nova organização curricular consolida Educação Moral e Cívica e as outras
disciplinas obrigatórias no artigo 7º da Lei nº. 5.692 (BRASIL, 1971), ao mesmo tempo
que efetivamente descaracteriza o ensino de História e Geografia no 1º grau que, por
força da lei, se transforma em ensino de Estudos Sociais. No nível do 2º Grau, admite-se
o tratamento de História e Geografia como disciplinas, desde que diminuída a sua
“duração e intensidade”, pois as disciplinas de formação especial deveriam ter duração
superior às disciplinas de formação geral.
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Segundo o Conselho Federal de Educação, o ensino de História deveria visar “ao


ajustamento crescente do educando ao meio cada vez mais amplo e complexo, em que
deverão não apenas viver mas conviver, dando-se ênfase ao conhecimento do Brasil na
perspectiva atual do seu desenvolvimento” (BRASIL, 1969).
Observa-se, assim, a tentativa de simplificar o campo de discussão do
conhecimento histórico em meio à cruzada cívica no interior das escolas.
Problematizando o parecer supracitado, observamos, em primeiro lugar, o
“ajustamento” do/a educando/a ao meio, numa clara evidencia da colonização preterida
por essa perspectiva; em segundo lugar, “viver e conviver” deveria adensar os espaços
anteriormente ocupados pela subversão.
Configura-se, assim, a perspectiva colonizadora dessa política educacional, bem
como a diluição das discussões da História em meio a um conjunto de saberes que
visava o ajustamento das mentes sediciosas.
Do contrário, como explicar a edição pelo presidente Médici, em 1969, de uma
Convenção sobre Ensino de História firmada entre as três nações latino-americanas no
início dos anos 1930? Vejamos o documento:

Art. 1º. Efetuar a revisão dos textos adotados para o ensino em seus
respectivos países a fim de depurá-los de tudo quanto possa excitar, no ânimo
desprevenido da juventude, a aversão a qualquer povo americano [...]. Art. 3º.
Fomente em cada uma das Repúblicas Americanas o ensino de História das
demais; procure em que os programas de ensino e os textos de História não
contenham apreciações hostis para outros países ou erros que tenham sido
evidenciados pela crítica; não julguem com ódio ou se adulterem os feitos na
narração de guerras ou batalhas cujo resultado haja sido adverso, e destaque
tudo quanto possa contribuir construtivamente à inteligência e cooperação
dos países americanos (BRASIL, 1969).

É significativo que um documento firmado no início dos anos 1930 seja editado
no Brasil em 1969. Perscrutando as suas páginas, observamos a tônica da “depuração”
dos temas da História de tudo aquilo que poderia provocar a aversão a outros povos
americanos. Ainda mais significativa é a declaração dos Estados Unidos, preocupados
com o ódio entre as nações americanas. Previam eles, já na década de 1930, a
contestação da cultura ianque na segunda metade dos anos 1960 no universo escolar-
juvenil?
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Não esqueçamos que um dos pontos atacados pelos/as estudantes/as, nas greves
de 1967, residem justamente na contraposição ao acordo MEC-USAID, bem como a
influência estadunidense no deslindar dos eventos políticos após 1964. Sob gritos
entoados de “um, dois, três, americano não tem vez”, o movimento estudantil
questionava a ditadura e a sua interseção nos diversos espaços da vida cotidiana.
Contando com o apoio dos estudantes secundaristas, representados em Campina, pela
arena de debate e embate no Colégio Estadual da Prata, os/as estudantes paralisaram as
atividades, povoando as ruas, praças e chegando, até mesmo, a acampar em frente à
reitoria da Universidade Regional, a URNe na oposição às políticas educacionais e a
tentativa de desmantelamento da resistência ao regime.

No Colégio Estadual de Campina Grande, que conta com o maior número de


estudantes da cidade, o movimento teve ampla repercussão, com a saída dos
estudantes da sala de aula. Inúmeros estudantes irromperam-se nas salas de
aula convocando os indecisos e refratários a aderirem ao movimento grevista
[...]. Por outro lado, à noite de ontem o pátio do Colégio Comercial
Municipal, foi invadido pelos estudantes do Colégio Estadual, Alfredo
Dantas e PIO XI que, aos gritos de “abaixo acordo MEC-USAID incitaram
os seus colegas à greve (DIÁRIO DA BORBOREMA, 1967, p.3-4).

A intensificação e radicalismos típicos dos anos 1960 chegaria ao ápice nesta


mesma noite, quando os/as estudantes/as empreenderam, segundo o jornal
supramencionado, uma caçada à dois norte-americanos, que na ocasião passavam pela
Praça da Bandeira. Os objetivos da perseguição não chegaram a se consumar, tendo em
vista o abrigo dos estadunidenses em um estabelecimento comercial da cidade. Com a
chegada da polícia há a dispersão dos estudantes e os dois norte-americanos que lá
estavam conseguiriam, neste dia, saírem são e salvos.

O ponto culminante do movimento, na noite de ontem, foi uma verdadeira


caçada humana empreendida contra dois norte-americanos, que foram
surpreendidos em uma das ruas da cidade. Os referidos cidadãos,
conseguiram refugiar-se no Cisne Lanches, acossados pela onde de
estudantes que, a todo custo queriam retirá-los do local. Somente com a
intervenção da polícia, os grevistas dispersaram-se, sendo os norte-
americanos, retirados do local em viaturas da rádio patrulha (DIÁRIO DA
BORBOREMA, 1967, p.4).

A saga contra o “imperialismo ianque”, utilizando a terminologia do período,


continuaria nos dias seguintes, quando da queima da bandeira norte-americana em plena
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Praça da Bandeira. Com a chegada da polícia, alguns estudantes foram presos e levados
à sede do II Exército na cidade. Aos que, no momento, conseguiram escapar, foi
empreendida uma caçada pelos órgãos de repressão, que culminou com a prisão de
alguns outros na rodoviária da cidade.

A concentração pública teve o seu encerramento por volta das doze horas e
trinta minutos, quando os estudantes ostentaram uma bandeira norte-
americana, que recebeu o repúdio da multidão, sendo logo em seguida,
rasgada e queimada pelos estudantes. Enquanto o símbolo dos Estados
Unidos incendiava-se, suspenso por uma vara, toda a multidão composta de
estudantes e elementos de várias classes sociais, entoavam o hino nacional
brasileiro, até a bandeira queimar-se por completo (DIÁRIO DA
BORBOREMA, 1967, p. 4).

Explica-se, assim, a preocupação de ambos os governos na tentativa de


colonização da massa de insurretos nas “subversões” praticadas. Assentando-se nesta
perspectiva fazia-se necessário cercear os movimentos que eclodiam e se multiplicavam
por cissiparidade.
À Educação Moral e Cívica caberia promover os “valores” constituídos em
pilares pelo regime, dentre os quais ressaltamos:

A preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos


da nacionalidade; o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de
solidariedade humana; o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições,
instituições e aos grandes vultos de sua história; o preparo do cidadão para o
exercício das atividades cívicas com o fundamento na moral, no patriotismo e
na ação construtiva visando o bem comum; o culto da obediência à Lei, da
fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade (A UNIÃO, 1972).

Após o AI-5, atores sociais são exilados das ruas e praças enquanto arena de
debates e espaços de oposição ao regime. Desertificadas, ouve-se apenas o baralho da
turba intimidando os/as protagonistas de outrora. A política adentra os espaços dos
lares, como visto no capítulo anterior. Outro espaço de exílio da esperança e que merece
nossa atenção, consiste nas salas de aula, aqui problematizadas pelas culturas escolares
do Colégio Estadual da Prata.
Retirada das ruas por força do AI-5, a juventude conflui aos espaços escolares. O
que não significa a ausência de vigilância e docilização vigente nesses espaços; mas que
aponta a capacidade múltipla que perpassa a suas redes de significação e conhecimento,
na medida em que o ato de consumo consiste numa própria poética que, apesar de se
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inscrever nas interfaces relacionais de poder e dominação, escampa a suas amarras


através do seu processo de fabricação de outros sentidos e significações às quais não
foram previamente preparados para estes/as.
Essa outra produção, poética, mas “cor de muralha” que se metamorfoseia por
entre as suas táticas e astúcias, possibilitou a estas professoras a “subversão” por entre
seus quadros esquemáticos, a partir da sua utilização para outros fins que não os das
instituições colonizadoras preconizaram (CERTEAU, 1994).
Nos espaços-tempos determinados para o seu “domínio” as professoras puderam
atuar na dessacralização contextual, ressignificando-o a partir do que Foucault (2001)
denomina de heterotopias: espaços reais que configuram passos de “subversão”,
“contestação” ou “inversão” diante da “impossibilidade” evidenciada pela categoria
“utopia”.
Nesse entremeio, a então professora de História do Colégio Estadual da Prata,
Martha Lúcia Ribeiro Araújo, “subvertia” a ordem institucional, invertendo passos e
espaços previamente delimitados aos seus saberes-fazeres cotidianos; a qual “restava”
atuar na configuração de uma heterotopia de desvio (FOUCAULT, 2001). Criou, assim,
um corpo a corpo, sem a visão globalizante que a instituição de um lugar próprio
evidencia, jogando com o tempo e suas sortes e seus azares, numa outra operação que
não deixou rastros aos olhos inspetoriais, salvo a sua condição de memória inscrita nas
tramas da história:
Nas aulas desse período eu acho que com a relação às universidades nós
tivemos sorte no nosso curso [referência ao curso de Estudos Sociais ofertado
pela então Universidade Regional do Nordeste, atual UEPB] porque os
professores eram engajados e de uma certa forma eram engajados e de uma
forma ou de outra, utilizando de mil subterfúgios, eles se contrapunham a
tudo aquilo. E nós lá [referência ao Colégio Estadual da Prata] tentávamos
fazer a mesma coisa, não é. Com muito mais limitação, com medo, mas os
conteúdos mais críticos eram uma forma que você tinha que utilizar
determinadas metáforas. Então, de uma certa forma estava mais ligada aos
conteúdos de [História] Geral. E então pra mim era mais fácil. Porque eu
podia criticar, mostrava essa visão mais conservadora. Mas dentro de um [...]
de um outro universo, não é. De outra época. Então era [...]. Mas, em cima
disso saiam discussões ferrenhas. Os alunos não eram tolos. Como não são
tolos, não é. Então, eles compreendiam que por trás daquilo. Quando eu
falava na repressão. Quando eu falava nos inquisidores: “Professora, parece
até hoje!”. E a gente deixava passar (ARAÚJO, depoimento: [abr. 2012]).

Nesse cenário, situamos a atuação da professora Leonília Amorim que durante


os “anos de chumbo” pode “subverter” seus/as alunos/as através das redes minúsculas
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de saber-poder que a possibilitaram re-inventar a ordem instintuinte, refigurando a pedra


de mármore em que se havia inscrito àquela memória coletiva afeita ao processo
desenvolvimentista nacional:

Quando eu ingressei especificamente no segundo grau, éramos [sic] assim. A


gente dava [sic] o conteúdo que tinha no livro. A gente fugia de dizer que o
comunismo era isso. Era maravilhoso, era bacana, era legal, não é? Só
quando a gente veio para o ensino na universidade mesmo, fazer o curso
superior é que a gente cria um espírito mais livre de criticidade. Mas mesmo
assim com medo! [...]. Então a gente se reunia sim pra discutir dentro de uma
linha crítica pra puder passar ou não pra o aluno. Mas a gente tinha que saber
a parte crítica, não é? E se passasse, passasse com muito cuidado. Como hoje
você está dentro de uma sala de aula você diz assim: “olhe, existe [sic] duas
teorias para explicar o mundo. A teoria criacionista e a evolucionista”. Então,
você é evolucionista. Mas você tem que dizer as duas correntes, entende?
Então a gente saía por aí. A história saía por aí! A gente chegava na classe e
dizia: “Olhe, o mundo hoje. A América Latina do período da gente. A
América Latina está vivendo um período assim militarista. Um período assim
de ditaduras. Mas há a outra corrente também. A corrente que foi presa,
perseguida”. Agora a gente não dizia se estava do lado da corrente de lá ou de
cá. Porque se a gente fosse abertamente dizer que as ditaduras eram erradas,
que aquilo era um absurdo, que os militares eram verdadeiros milicos. Porque
a gente só chamava dentro das atitudes comunistas assim só chamava de
milico [...]. Mas a gente dentro de sala de aula mesmo agente saía pela
tangente. (AMORIM, depoimento: [abr. 2012]).

A fala, instrumento-mór do saber-fazer cotidiano docente, configura-se como


categoria de primaz importância na apropriação, produzindo, assim, práticas de sentido
que se interceptam às relações entre texto, impressão sempre diferenciadas por
determinações sociais:

O professor de História tem ele sempre...Ele tinha sempre um momento


pra...Você não explica uma revolução francesa sem tocar nas faces, nas
conquistas e nas derrotas. Então, o mundo contemporâneo se você...você fala
na idade média você vai ter que mostrar a estrutura fundiária, o peso dessa
estrutura pra toda a sociedade, não é? Então, ela não precisa empregar a
palavra “marxista”, “modo de produção” pra dizer isso...Você diz com
palavras simples quem era que tinha e quem não tinha. E como quem não
tinha suportava aquele peso da ganância do lucro ao próprio nascimento da
burguesia [...]. As coisas não são assim dentro de uma prensa que ninguém
saiba. Principalmente a palavra! [ênfase]. A palavra vai em todo lugar.
Precisa você dar uma entonação. Ela tem recepção. Então, uma boa
entonação tem uma recepção que ninguém avalia o peso. É com a palavra. É
com a voz que o homem tem que viver e conviver com as contradições e
aplaudir os triunfos, não é [...]. A fala é o instrumento ideal para nossa
libertação e pra nossa conscientização que afinal de contas é a libertação
(SILVA, depoimento: [abr. 2012]).
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Destarte, a “subversão” exercida por estas professoras no grande contingente de


“sedicioso/as” a confrontar-se com a ordem imposta em abril de 1964 acabou por
evidenciar, aos olhos do poder institucional militar, a necessidade de maior pulverização
dos mecanismos disciplinadores/ cerceadores das liberdades democráticas que
encontravam no saber-fazer docente importante espaço a balizar seus passos de atuação
bricoladora, tática e astuciosa.
A reação institucional viria, por sua vez, atrelada à intensificação do
cerceamento balizado pela então Comissão Especial de Educação Moral e Cívica que,
reconhecendo as dificuldades que a docilidade daqueles “corpos insurretos”
evidenciava, aponta no parecer abaixo as “causas”, a la pragmatismo norte-americano,
os culpados e as medidas para uma maior eficácia da nova ordem curricular imposta:

Juntamente com ecos positivos, têm chegado ao CFE rumores de reações


negativas, que geram sérias apreensões. As causas desse insucesso parcial,
que há de ser superado, deverão ser procuradas, em lugar, pelos responsáveis
pela direção dos estabelecimentos de ensino. O despreparo de muitos
professores convocados de inopino, e a improvisação ocorrente em
circunstâncias que tais, explicarão grande parte do problema emergente (A
UNIÃO, 1972, p. 3, grifos nossos).

O recrudescimento por parte dos órgãos educacionais se deu a partir da overdose


de nacionalidade, apropriada pelos corolários civis do regime para a atenuação das
heterogeneidades e insurreições preconizadas nos espaços escolares confluindo para a
criação dos famigerados Centro Cívicos que, normatizados por docentes afeitos ao
ideário do regime, atuavam como espécie de catalizador das pluralidades e “subversões”
supostamente presentes nos “antros de subversão” em que pareciam se transformar o
espaço escolar “infestado de comunas” aos olhos do poder institucional militar.
Dessa feita, conferiria aos Centros Cívicos a defesa da “moral” e dos “bons
costumes”, bem como a obliteração da “perturbação” da “paz” nacional evidenciada
através de manifestações políticas “não-autorizadas”, “provocativa” ou “subversiva”,
conforme expressa o documento:

Art. 1º: comete infração disciplinar o professor, aluno ou empregado que [...]
III- Pratique atos destinados à organização dos movimentos subversivos,
passeatas, desfiles ou comícios não autorizados ou dele participe; IV-
Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua
material subversivo de qualquer natureza; V- Use dependência ou recinto
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escolar para fins de subversão ou praticar ato contrário à moral ou à ordem


pública (A UNIÃO, 1972, p. 5-7).

No Colégio Estadual da Prata, confluência da resistência campinense,


observamos a impetração desses disciplinamentos a partir da instituição do Centro
Cívico local, incumbido de realizar eventos disseminadores do ideário do regime, com
direito inclusive a inspeção “amistosa” do major Câmara, chefe da II Divisão do
Batalhão do Exército em Campina Grande:

[...] Porque tinha o Centro Cívico também. Inclusive, lá no Estadual [da


Prata] até o comandante ia assistir as festinhas lá do Centro Cívico, não sabe.
Que era de Moral e Cívica. Os professores faziam assim [...] determinadas
palestras é [...] dança, essa coisa. Ele saia do quartel, Major Câmara e ia
assistir no Colégio Estadual. Foi uma pessoa que passou muito tempo aqui.
Deixou uma marca muito forte, não é. Entre professores, entre estudantes.
.Então, o setor de Moral e Cívica. De moralização da pessoa particular dessa
cadeira de Moral e Cívica. Ela fazia também apresentação teatral. As datas
eram também comemoradas, não é. Então isso havia no Colégio Estadual.
Havia a programação feita por essa cadeira pra louvar o regime. Era uma
programação de louvação [...]. De forma indireta havia oposição. Porque a
pessoa tava [sic] doente. Não ia assistir, não é. Então são diversas formas de
se contestar, de protestar qualquer coisa (SILVA, depoimento: [abr. 2012]).

Nesse contexto, faz-se necessário a apropriação dos suportes que configuram, os


cotidianos escolares como forma de deslindar a trama em questão, qual seja, a
ressignificação da legislação educacional ao longo da ditadura militar através das
atuações docentes.
Dentre estes artefatos, destacamos os diários de classe encontrados no chamado
“arquivo morto” do Colégio Estadual da Prata. Sob as lentes do cotidiano escolar, este
suporte pode ser considerado como institucional, no sentido que não comportaria erros,
“desvios”, não aceitando qualquer uso diferente daquele indicado. Todavia, se
questionarmos o uso para além de sua perspectiva passiva, será que conseguiríamos
encontrar evidências de “subversão” nesses documentos?
Faz-se necessário compreender este espaço como lugar, ou seja, espaço
apropriado pelo oficial, em que cada um vira ninguém ou todos, ou melhor, um número,
uma nota, um conceito.
As professoras, ao nele escrever os dados “solicitados”, aparentemente, se
submete inteiramente aos limites daquele lugar, pois está, também, apropriada por uma
forma de consumir e de executar ordens. Nesse sentido, poderíamos dizer que elas
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constituem um dos fios das redes microbianas de poder, pelas quais este existe
encarnado em cada sujeito.
Se admitirmos as ideias de Certeau, quando diz que toda prática é, também,
“uso” que os praticantes fazem dos produtos colocados para consumo em seu cotidiano,
vamos perceber que é possível encontrar muito mais nos diários de classe.
Em um período de intensa repressão a qualquer atitude que “subvertesse” a
ordem instintuinte, a apropriação docente dos diários em questão deve ser interrogada
em meio às práticas e evidências orais. Nos diários de classe aqui em questão, nos
interessa muito mais do que nele está “registrado”, colonizado, inscrito; mas a
problematização dos usos, do consumo que se fazia deles nos interstícios da vida
escolar.
As aulas sobre a “segunda guerra mundial” eram, certamente, apropriadas pela
professora Josefa Gomes como espaço de analogia entre períodos históricos diferentes,
visando a “passagem” das mensagens que se queriam contestar. A fria observação
apropriada em seu diário esconde diversas práticas de consumo, apropriação e
ressignificação dentro da sala de aula.
FIGURA 1 – Diário de Classe da Professora Josefa Gomes de Almeida e Silva
Ano letivo de 1978

Fonte: “Arquivo Morto” do Colégio Estadual da Prata.


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Essa metamorfose por entre as páginas dos diários evidencia a pluralidade de


usos, apropriações e ressignificações que perpassam o trabalho docente. Podemos dizer
que a professora Josefa Gomes metaforizava a ordem dominante, fazendo-lhe funcionar
em outro registro. Permanecia outra, no interior do sistema que assimilavam e que a
assimilava exteriormente. Modificava-o sem deixá-lo:

[...] tinha que usar metáfora mesmo e, por exemplo [...]. Por exemplo, assim
[...]. Tá falando sobre Hitler, né. Então quando a gente dava uma aula sobre
nazismo, Alemanha nazista. Então, eu mesma lembro que eu aproveitava pra
dar muito ênfase à questão da ditadura, né. Mostrar pra os meninos que este
sistema ditatorial, o nazismo, faltava a questão da liberdade que não existe. A
violência, tá, tá, tá. Então essa metáfora era justamente utilizar outro [...]
outro fato histórico em outro tempo. Mas eu lembro que eu dava muita
ênfase, adorava falar de Hitler porque eu estava falando (risos). Na verdade
eu estava falando do sistema. Mas [...] eu queria que os meninos entendessem
isso, né (SILVA, depoimento: [abr. 2012]).

Assim sendo, vamos compreendendo que o “currículo real” das escolas vai
sendo trançado tanto pelo “currículo oficial”, que dentro dela chegava por ações
governamentais, como também pelo currículo cotidiano que vai sendo criado a cada
momento, pelos praticantes da escola, no uso que circula naquele espaço-tempo, a partir
de suas tantas vivências em tantos outros cotidianos e das relações que o cotidiano
escolar estabelece com estes por meio de diversos conhecimentos, que entram na escola
encarnados nesses próprios praticantes.
Naquilo que se queria ou se dizia “estático, reprodutivo e homogêneo” uma
pluralidades de atuações vão se entretecendo e refigurando estéticas, memórias,
histórias e trajetórias dos mosaicos identitários que aqui nos dispusemos a oferecer uma
leitura.
A ação “subversiva”, afinal vitoriosa, possibilitada pela atividade bricoladora
inerente às suas “maneiras de fazer” evidencia-se através da urdidura de suas tramas
cotidianas a vivacidade que tece e entretece as trajetórias da História da Educação ao
longo de período fulcral na configuração histórica nacional.

REFERÊNCIAS E FONTES

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964/1984). Bauru:


EDUSC, 2005.
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A UNIÃO. João Pessoa: Acervo Waldemar Duarte, 1964-1985.

BRASIL. Decreto Federal nº. 65.815, de 8 de dezembro de 1969. Promulga a


Convenção sobre o Ensino da História. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Poder executivo, Brasília, DF, 1969. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/d65814.htm. Acesso em: 23
set. 2013.

______. Decreto nº. 68.065, de 1971. Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e
Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades dos
sistemas de ensino do país, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder executivo, Brasília, DF, 1971.

______. Lei Federal nº. 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o
ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder executivo, Brasília, DF, 1971.

______. Lei Federal nº. 5.700, de agosto de 1971. Institui datas de comemorações
cívicas em estabelecimentos de ensino e repartições públicas. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder executivo, Brasília, DF, 1971.

______. Lei nº. 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da


Educação Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil., Poder
executivo, Brasília, DF, 1961.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Michel de Certeau.
Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.
DIÁRIO DA BORBOREMA. Campina Grande: Arquivo da Biblioteca do Curso de
Comunicação Social da Universidade Estadual da Paraíba, 1964-1985.

DIÁRIOS DE CLASSE. Campina Grande: Arquivo morto do Colégio Estadual Dr.


Elpídeo de Almeida – Estadual da Prata, 1976-1979.

FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos.


Estética: literatura e pintura, música e cinema. v. 3. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e Prática de Ensino de História.
Experiências, reflexões e aprendizados. Campinas: Papirus, 2003.

ENTREVISTAS TEMÁTICAS

AMORIM, Leonília. Leonília Amorim: depoimento [abr. 2012]. Entrevistador: Ramon


de Alcântara. Campina Grande: 2012. Suporte digital MP3 e MP4.

ARAÚJO, Martha Lúcia Ribeiro. Martha Lúcia Ribeiro Araújo: depoimento [abr.
2012] Entrevistador: Ramon de Alcântara. Campina Grande: 2012. Suporte digital MP3
e MP4
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SILVA, Josefa Gomes de Almeida e. Josefa Gomes de Almeida e Silva: depoimento


[abr. 2012]. Entrevistador: Ramon de Alcântara. Campina Grande: 2012. Suporte digital
MP3 e MP4.

GT 5

CORPOS DE PAPEL E TINTA: A REPRESENTAÇÃO DA


MELINDROSA NA IMPRENSA REVISTEIRA EM “TEMPOS
EUFÓRICOS.” (RECIFE DÉCADA DE 1920)

Alexandre Vieira da Silva Melo*


Universidade Federal Rural de Pernambuco
alexandremelo@live.com

RESUMO
Objetivamos com este trabalho investigar as mudanças relacionadas aos modos de
representar os corpos femininos pela imprensa recifense dos anos 1920,
especificamente, os das chamadas “Melindrosas”. Procedemos por meio da análise de
textos, imagens e anúncios publicados na revista A Pilhéria, e historicizamos as suas
formas de sociabilidades e representações, embasados conforme propõe a Historia
*
Mestrando em História Social da Cultura Regional
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Cultural, baseados no conceito de representação, defendido por Roger Chartier, e no


conceito de gênero de Joan Scott. Conhecidas pelos cabelos curtos, maquiagem forte,
por andarem sozinhas e desafiarem anteriores regras sociais, as Melindrosas
constituíram-se interessantes personagens, que traduziam desejos de liberdade nos anos
1920, ao se portarem e vestirem-se de maneira diferente da esperada. Através da análise
de sua representação, observamos como a ressignificação das noções de masculinidade
e feminilidade estava presente em todos os contornos dos seus corpos. Observamos
ainda, como o discurso do “estar na moda” revelava desejo de ascensão social e ainda a
predominante exploração do corpo feminino nas campanhas publicitárias em tempos de
acentuadas transições nos modos e nos costumes de sociabilidade.

PALAVRAS-CHAVE: Relações de Gênero; Melindrosas; Revistas.

Introdução
“naquela época recuada, bem raras as senhoras que iam fazer compras. O lar
ainda tinha um tanto de clausura e nem tudo ficava bonito para “uma mulher
direita”. O andar de loja em loja era uma dessas ações que não lhe
“assentavam”. E quando o faziam prescindiam do marido, do pai ou de uma
parenta já velha.” (SETTE, 1981, P. 28-29)
Dos recônditos do lar, às ruas e lojas. Das cozinhas e sala de estar, aos cinemas e
sorveterias. Das aulas de piano, às noites dançantes de charleston e Fox-trot, na Bijou.
Da passividade aparente das sacadas dos sobrados, aos flirts escancarados nas esquinas
da Rua Nova... Cada vez mais intensos e movimentados, os espaços de sociabilidades
abriam-se mais, proporcionando à presença feminina nas urbes do inicio do século XX
maior atividade e fluxo. As elegantes moças passaram a aparecer desacompanhadas de
maneira mais frequente, percorrendo ambientes outrora majoritariamente ditos como
masculinos. Seria pretenso erro de nossa parte afirmar que em períodos anteriores ao
século XX inexistissem atividades femininas nas ruas das cidades, ou que nenhuma
delas saísse às ruas, contudo, nos primeiros decênios desta centúria, maximiza-se esta
experiência, e tornava-se mais perceptível no âmbito da sociedade, de tal forma a gerar
estranheza inclusive a cronistas como Mário Sette.
Alguns historiadores e historiadoras costumam atribuir aos anos 1920 a
esplendorosa época das transformações sociais urbanas, um marco, quase “gênesis” da
modernização das cidades brasileiras. Contudo, esquivamos-nos desta assertiva em
partes. Recife não viveu “anos loucos” tal como Paris, mas os seus momentos de
“euforia” não devem ser ignorados, ou mesmo considerados inexistentes. Tomando
estes cuidados, aqueles que estudam a década de 1920 adentram conscientes a este
universo da pesquisa histórica, problematizando de forma mais sensata os documentos
desta época. Nós historiadores/as tendemos a atribuir - até mesmo de forma
inconsciente - ao nosso recorte de pesquisa, como sendo ele a “origem de...”, contudo,
acreditamos ser mais sensato olhar para esta época como um tempo de maior
visibilidade e evidência nas modernizações urbanas e uma etapa marcante no que
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concerne às reconfigurações sociais. A partir de fins do século XIX até meados do


século XX, uma variedade de produtos e processos chegavam em ritmo desenfreado ao
cotidiano das pessoas, principalmente nos Estados Unidos e nos países mais
industrializados da Europa. Datam desta época os automóveis, o telégrafo, o cinema, o
telefone, a iluminação elétrica, os refrigerantes, sorvetes, a televisão, a anestesia, a
Coca-Cola, além de uma ampla gama de eletrodomésticos que pouco a pouco foram
anexando-se à vida das pessoas, principalmente nos ascendentes centros urbanos.
(SEVCENKO, 1998, P. 10) Na segunda década do século XX, a maioria destas
novidades já fazia parte do cotidiano das pessoas que residiam nas urbes. Como
podemos observar, os anos 1920 não foram o inicio de tudo. Eles não criaram a mulher
moderna, por exemplo, mas foi nesta década que as chamadas melindrosas evidenciam-
se, e por esta razão, atemo-nos a eles.
Pensamos então, alegoricamente este recorte temporal como “Tempos
Eufóricos”, assim como os define a historiadora Tânia Luca: Período marcado pela
intensificação do impresso periódico nas principais cidades do país, resultado, entre
outros, de um momento de aceleração da modernização dos meios de produção da
imprensa por meio de tecnologias. (LUCA, 2005, P. 121) Recife não ficou de fora, pois
a cidade contava com numerosos títulos jornalísticos e revisteiros. A imprensa
pernambucana fazia-se presente no cotidiano desde as camadas médias urbanas, até as
camadas trabalhadoras menos favorecidas. Neste universo midiático, entretanto,
podemos destacar a importância das revistas para um estudo histórico cultural das
sociabilidades urbanas. Um gênero deste tipo de publicação que nos chama atenção são
as “revistas ilustradas”, ou “de variedades”, publicações que buscavam de tudo um
pouco e cujo eclético objetivo era consolidar-se, atingindo o maior público de leitores
possível. “A locução adjetiva “de variedades” é aplicada para dar conta de uma gama
extremamente diversa de situações.” (LUCA, 2005, P. 121) Entre as décadas de 1920 e
1930, alguns títulos ganharam destaque na cidade do Recife, como: A Pilhéria (1921 a
1932); Revista da Cidade (1926 a 1929); Rua Nova (1924 a 1926); Revista de
Pernambuco (1924 a 1926) e Pra Você (1930 a 1933).
De fácil leitura e com um visual mais requintado que o dos jornais, elas
chamavam atenção do público tanto por seu tamanho reduzido, quanto pela sua
diagramação, reservando amplos espaços para as imagens. Estas publicações agradavam
a diversos tipos de leitores/as, e nelas evidenciam-se costumes característicos desta
época. Por suas páginas tratarem de “futilidades” e de hábitos cotidianos, como festas,
passeios e fofocas em ambientes como confeitarias, cafés e cinemas, estas fontes trazem
uma visão diferenciada da dos jornais, que abordam muito mais fatos políticos e
econômicos. Ao utilizarmos esta documentação, observamos mais de perto estas visões
do cotidiano da camada média urbana recifense, focando-nos na insistentemente
apresentada e representada melindrosa.
A cidade está ligada intimamente à escrita. Nas cidades produzem-se
documentos: inventários, ordens, certidões, jornais, revistas, pensamos então, pois que,
construir cidades, é também construir memórias. (ROLNICK, 1995, P.17) O ambiente
urbano configura-se como basilar para o desenvolvimento do comportamento das
melindrosas, pois as ruas eram o palco de atuação das personagens, e por meio de
documentos da imprensa, podemos resgatar um pouco destas memórias.
As Melindrosas e o Recife
As melindrosas, hoje conhecidas apenas pela caracterização em bailes no
carnaval, estiveram presentes no dia-a-dia das sociedades recifense dos anos 1920. Sua
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origem é incerta, sabe-se, contudo, que a personagem já existia na Inglaterra durante o


pós I Guerra, conhecida pelo nome de flapper girl. (BONADIO, 2007, P.131) Flapper
era uma expressão usada para definir mulheres emancipadas, que dançavam e usavam
roupas da moda. Segundo pesquisa de Maria Cláudia Bonadio, uma definição para o
termo, encontrada no dicionário Webster New Explores,
descreve-a como “jovem mulher dos anos 1920 que
demonstra liberdade em relação às convenções e condutas”
(BONADIO, 2007 P. 132) Concordamos com a autora ao dar
credibilidade a esta definição, visto diferenciar a flapper da
new woman, nomenclatura que é muito mais ligada às
mulheres envolvidas em lutas políticas e sociais, caso que não
nos parece característica marcante das melindrosas
brasileiras.
Na França, encontramos as garçonnes, alcunha
atribuída, principalmente por conta de serem consideradas
“masculinizadas” visto adotarem a moda dos cabelos curtos.
A expressão brinca ao atribuir terminação feminina à palavra
“garçon” que quer dizer, “menino”. O termo fortaleceu-se
ainda mais com o romance de Victor Margueritte, “La Garçonne”231, escrito em 1922,
que aborda a história de uma jovem mulher traída pelo seu companheiro, que decide
levar a vida intensamente e à sua maneira, conquistando independência financeira,
buscando a liberdade sexual e moral, para só depois, buscar uma união estável e
igualitária. (SPILBORGHS, 2007, P. 25) As garçonnes dos “anos loucos” franceses,
tinham como característica marcante “comportamentos sexuais e sociais extremamente
liberais.” (BONADIO, 2007, P.133) Fato que também as distinguiam das flappers.
Mesmo com singularidades de uma região para outra, este estilo de vida parecia
saltar da ficção para a realidade, e rapidamente espalhou-se pelo mundo, por meio do
acelerado processo de modernização das comunicações e dos meios de transporte. A
personagem e se fortalece nos Estados Unidos, graças ao cinema e a imprensa, e chega
aos centros urbanos da América Latina. No Brasil, elas ficaram conhecidas por
“melindrosas”, principalmente por serem consideras mulheres armadilhas, belas, e
perigosas aos homens por seus encantos, fato este que as fez também serem chamadas,
não comumente, de “mariposas”, ou “borboletas”, por frequentarem muitas flores
(homens) levianamente. (MEDEIROS, 2010, P. 107)
A moda melindrosa espalhou-se pelas principais cidades do Brasil. Sabemos que
nem as flappers, nem as garçonnes, nem as melindrosas podem ser observadas de forma
homogênea entre si, cada sociedade as criou mediante suas singularidades culturais,
contudo observamos como traziam algumas características comuns entre elas, e que as
diferenciavam das outras mulheres: Com uma aparência
bem trabalhada, usavam cabelos curtos, com cortes “a la
garçonne” acabando nas orelhas e com a nuca raspada,
maquiagem forte, saias pouquíssimo abaixo ou mesmo por
cima do joelho, lábios pintados de vermelho em forma de
coração, braços à amostra, depilavam-se, faziam
sobrancelhas, pernas, usavam pequenos chapéus estilo
clochê e sapatilhas de amarrar. Além disso, seu

231
No Brasil, “A Emancipada.”
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comportamento era diferenciado, pois fumavam, dirigiam, dançavam ritmos quentes,


andavam frequentemente sem a presença masculina do pai, ou irmão, frequentando
chás, magazines, confeitarias, cafés, e festas, além de ousarem lançar flirts232
insinuando-se aos homens.
Diferentemente da imprensa revisteira, onde encontramos constantemente
melindrosas em suas páginas, na impressa jornalística recifense, poucas são as menções
a elas. Entretanto, no jornal “A Província”, evidenciamos algumas passagens em que a
figura é o foco. Em tons críticos, vemos a posição conservadora do corpo editorial do
periódico. A exemplo, citaremos duas matérias. Uma das primeiras menções às
melindrosas que encontramos, data de 1919. A Província publica matéria extraída da
Unided Press, de título “As Mulheres e o Cinema” onde visualizamos opiniões de
algumas personalidades da época acerca do tema. O escultor Louredo Taft dissertando
sobre a influência que o cinema exercia sobre as mulheres, afirma ao jornal:
“[...] elas admiram as artistas formosas na tela e depois vão para casa postar-
se diante do espelho horas e horas[...] resulta naturalmente que apuram os
movimentos, os gestos, o andar, tornam-se finas, adquirem maior vivacidade
[...] todos estes hábitos, poses e especialmente o vestuário característico das
artistas exercem muitas vezes uma influência prejudicial e até fatal sobre as
mulheres novas”
Na mesma matéria, encontramos outra opinião, desta vez, defendida por Indiana
Gyberson, que observou:
“[...] o cinema é que está modelando esses tipos admiráveis de beleza natural
– os novos lindíssimos tipos americanos [...] no fundo, que é que elas (as
melindrosas) imitavam? A rainha do cinema, que estava em moda.”

Entendemos que o cinema influenciou de forma marcante o desenvolvimento do


comportamento das melindrosas brasileiras, conforme a crítica publicada, contudo, o
posicionamento mais conservador dos responsáveis pelo periódico salta à vista, pois
lhes incomodava estes novos
comportamentos da juventude. O
impressionante equipamento que “dava
vida” às imagens, fez parte do cotidiano
da cidade do Recife durante toda década
de 1920. As salas eram bastante visitadas
pelas camadas médias urbanas, e também
por pessoas de outros estratos sociais.
Com a entrada a baixo custo, e diversão
garantida, o cinema configurava-se em
signos do anseio por alcançar a vida
moderna. Ele contribuiu para mudar
hábitos da sociedade recifense. (ARRAIS, 1998, P. 51) Os frequentadores e
frequentadoras das movimentadas salas, eram tantos que se aglomeravam às portas para
comprar um bilhete que dava acesso ao fantástico mundo cinematográfico, conforme

232
Para definir flirt, usaremos as palavras de Almeida Garet: “To flirt é um verbo inocente que se conjuga
ali entre os dois sexos, e não significa namorar — palavra grossa e absurda que eu detesto —, não
significa «fazer a corte»; é mais do que estar amável, é menos do que galantear, não obriga a nada, não
tem consequências, começa-se, acaba-se, interrompe-se, adia-se, continua- se ou descontinua-se à vontade
e sem comprometimento”. GARRET, Almeida Viagens na Minha Terra
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descreveu o cronista Mário Sette sobre a euforia que se sentia ao passar na frente do
Cine Pathé, em Recife:
Convidativo, confortável, vistoso, tipo dos do Rio de Janeiro, Êxito
formidável. Revolucionou o Recife inteiro. Quer nas vésperas, quer à noite
cheiíssimo. As calçadas ficavam tomadas e os bondes passavam a custo.
Comprar um bilhete significava uma vitória. (SETTE, 1981, P. 110)
Mas voltemos aos periódicos. Observamos agora, a diferença do discurso proferido
pelos colaboradores do jornal A Província, e os da revista de variedades e chistes, “A
Pilhéria”: Em A Província de 28 de setembro de 1924, encontramos um texto curioso,
assinado por Alvear de Thales, de título: “A dissolução da sociedade”, e que aqui
trazemos um trecho:
“devassos são os pais que, admiram as filhas quando bem decotadas e semi-
nuas, devassas são as filhas que procuram captar para seus corpos no footing
[...] os olhares dos almofadinhas233.”
Alvelar preocupava-se em silenciar os corpos femininos. Esta posição de silêncio por
séculos relegada ao corpo das mulheres, é assunto que nunca deixou de estar em pauta.
Contudo, mesmo diante de tantas mazelas atribuídas equivocadamente à
responsabilidade das mulheres durante a história, seu corpo, sua beleza não deixaram de
ser objeto de desejo masculino. “O corpo feminino [...] é onipresente: no discurso [...]
quadros, esculturas, cartazes que povoam as nossas cidades.” (PERROT, 2003. P 13) E
isso inclui os escritos da imprensa. Diferentemente de A Província, em A Pilhéria,
número 94, de 1923, observamos uma opinião bastante positiva, escrita em versinhos,
acerca das melindrosas. A opinião de Jeff, em resposta à coluna “Perguntas de Mutt e
respostas de Jeff” diz o seguinte:
Mutt, as nossas melindrosas,
São irmãs puras das rosas
Nascidas entre boninas;
Todas elas tem pra mim
O perfume do jasmim
Nas verdejantes campinas.
Jeff.

233
Uma figura também de extrema relevância no universo dos anos 1920 foi a do almofadinha. Estes
andavam pelas sombras das melindrosas, bem vestidos, com ternos engomados, eram rapazes modernos,
que aos poucos foram criando também um estilo próprio. Os almofadinhas lançavam olhares, cortejavam,
se barbeavam bem, perfumavam-se, desenhavam seus bigodes pequenos usavam calças mais apertadas e
curtas atreviam-se a dançar os mais diversos estilos (coisa impensável a um homem comum da época) o
momento da dança e do footing eram oportunidades ideais para o bom flirt com uma melindrosa.
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Enquanto no primeiro, predominam críticas e posicionamentos mais


conservadores em relação a este novo comportamento, no segundo, encontramos
escritos mais leves, em tom de exaltação. Esta é uma característica de A Pilhéria: Ora
em momentos de exaltação às novidades, ora de críticas, inclusive às melindrosas.
Diante da exaltação e da crítica, observamos como o corpo detinha esse poder, quase
que mágico exercido sobre os homens. (visto ambos os documentos serem escritos
majoritariamente por homens). Se levarmos em consideração a leitura como um ato
concreto, em que ocorre o processo da construção de sentidos por leitores com
competências específicas, conforme destaca Roger Chartier, perceberemos como estes
editores empenhavam-se em propagar suas ideias em relação às melindrosas para a
sociedade por meio destes escritos. O texto não é unicamente o seu conteúdo
semântico, o texto não é unicamente formado por palavras depositadas nos objetos
manuscritos ou impressos, ele é carregado de intencionalidades, e o leitor, de igual
forma, não é uma massa de cera mole onde se inscrevem o
conteúdo destes textos lidos, pois as formas com as quais
ele se apropria do texto são histórica e socialmente
variáveis. (CHARTIER, 2002, P. 25 – 26) A incidência do
comportamento melindrosa, na mulher urbana, faz-nos
perceber o desejo de distanciar-se de uma aparência
provinciana, ao buscar vestir-se com algo que a
identificasse como moderna. E aí vem outra característica
marcante envolvendo as melindrosas e a imprensa: A sua
ligação com a publicidade. São vários os anúncios de
produtos em que encontramos figuras com características
de melindrosas. Neste processo, “o discurso publicitário
[...] investe na mulher como consumidora em potencial,
dirigindo-lhe a maior parte das mensagens, elegendo-a
como a compradora oficial.” (OLIVEIRA, 2002. P. 4)
Como também observamos, principalmente nas revistas, os anúncios são variados, e vão
desde artigos de vestuário, como o de “A deusa da moda”, reproduzido acima, (A
Pilhéria nº165 - 1924) quanto de produtos de beleza, equipamentos para o lar, e
anúncios de filmes em cartaz na cidade.
O que podemos concluir é que, mesmo com a crítica dos tradicionais, as
melindrosas cresceram, e passaram a aparecer frequentemente na cidade, como
evidenciamos nas colunas sociais de A Pilhéria. O hábito de ao cair da tarde, entre as 16
e 17 horas, principalmente aos sábados, praticar o footing, era característico. A
juventude dirigia-se aos numerosos chás e confeitarias da cidade e encontravam-se Um
dos pontos mais mencionados em nossos documentos, chama-se Confeitaria Bijou, que
se situava na Rua Nova, bairro de Santo Antônio, em Recife. A presença das
melindrosas era uma constante na casa de chás, não apenas nas tardes de sábado, mas
também em outros dias e horários conforme descrito em A Pilhéria nº 99 de 1923:
“Rua Nova. Três Horas. Na Bijou
As melindrosas voejam docemente,
E, além dos “almofadas”, muita gente...”
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A sociedade reunia-se a dançar Fox-Trot, tomar chás, sorvetes, e flirtar. O


footing, era como se chamava a caminhada ao ar livre, o passo frenético que desbravava
as ruas. A caminhada era importante
no cotidiano urbano dos anos 1920,
pois servia para a exibição de roupas
especiais, e namoros. As senhoritas
levam os seus corpos a exibirem suas
toilletes novas pela cidade. Era o
footing um hábito, ao mesmo tempo,
fútil e importante sinônimo de saúde e
de vida. Foram com estes passos, que
os citadinos e citadinas construíram
simbolicamente os espaços de sua
cidade, e seus caminhos ficaram
registrados nas páginas das revistas.
Um dos trajetos preferidos dos
amantes da caminhada era percorrer a Rua Nova, atravessando a ponte da Boa vista
(imagem de 1929 reproduzida acima) e alcançando a Rua da Imperatriz até a Praça
Maciel Pinheiro; ou ainda, ao revés, tomavam a Rua Cabugá até chegar a Praça da
Independência. Enfim, eram muitas as opções de caminhos e todas bastante
frequentadas pelos amantes do footing, o que acabou tornando esta área da cidade
bastante movimentada, inclusive ao entardecer, quando a circulação dos carros, bondes
e estudantes intensificava-se. Mas não apenas encontramos melindrosas nos footings e
nas casas de chás. Elas também frequentavam festas, como por exemplo, o Chá
Dançante oferecido por A Pilhéria, em 1924, ou mesmo em partidas de futebol, como a
mencionada em A Província de 11 de outubro de 1921.
As pictóricas Melindrosa
A melindrosa representada nas páginas das revistas por meio das charges, apesar
de ser uma personagem bastante estereotipada, não se tratava integralmente de uma
figura fictícia, seus atributos eram cuidadosamente construídos espelhando-se no que se
desenvolvia no seio da sociedade moderna urbana. Entretanto, as suas características
viram-se intensificadas e multiplicadas na ponta dos lápis dos ilustradores, por vezes,
beirando o exagero. “A ilustração com ou sem fins comerciais, tornou-se parte
indissociável dos jornais e revistas e os historiadores incubaram-se de transformá-la em
outro fértil veio de pesquisa.” (LUCA, 2005, P. 123)
As ilustrações assimilavam vários modelos de mulher moderna, unindo-as em
uma figura pictórica denominando-a, por fim, de melindrosa. Rosiane Dourado se
expressa bem ao definir esta forma de representação destas mulheres:
“A melindrosa enquanto representação gráfica era uma caricatura da “nova
mulher”, mas, uma caricatura que realçava primordialmente as virtudes da
“mulher moderna”, tornando-a ainda mais graciosa e conferindo-lhe muito
mais liberdade do que ela poderia desfrutar na vida prática.” (DOURADO,
2005, P. 99)
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

Como podemos observar nas imagens já


elencadas neste trabalho, as revistas de variedades
tornaram-se pequenas galerias de arte, onde artistas
expressavam-se por meio de seus desenhos. A
melindrosa consolidava-se como uma de suas figuras
preferidas. Segundo o cronista Álvaro Moreyra, é ao
traçado do carioca J. Carlos que é atribuída a “invenção”
da melindrosa. (MOREYRA, 1991, P. 28) Entretanto,
muitos artistas por todo Brasil presentearam a
posteridade com desenhos de suas flappers girls,
inclusive chargistas pernambucanos como Zuzu
(pseudônimo de José Borges da Silva) e Jota Ranulpho,
que colaboraram em algumas publicações em Recife,
inclusive em A Pilhéria.
As pictóricas melindrosas eram construídas com
traços soltos, simbolizando a leveza, mas também
esboçavam sensualidade com o olhar. À primeira vista, lembram mocinhas ingênuas,
mas basta observar seus lábios grossos e em forma de coração - mui bem pintados em
vermelho - que se sente certo ar de indiferença, mas uma indiferença misteriosa que
atrai. A ambiguidade é o predicado mais presente nas ilustrações das melindrosas.
As revistas, em relação aos jornais, possuíam melhor resolução gráfica para
fotografias e imagens, além de uma periodização mais espaçada, possibilitando assim,
um conteúdo melhor trabalhado em relação à imprensa diária. A modernidade trouxe
consigo a melhoria do suporte gráfico, e desta forma, a figura do caricaturista ganhava
maior relevância dentro do universo dos periódicos. Incumbido de seduzir o público por
meio de seu trabalho, o ilustrador tornava-se figura chave nas revistas do período,
alguns deles tornaram-se tão relevantes que assumiram posição de prestígio dentro das
redações, tal como a direção artística. Escreve sobre isso, Ana Luiza Martins:

“Numa ordem aproximada da colocação destes profissionais do traço,


sucedem-se com forte presença nas páginas revisteiras, o caricaturista, o
ilustrador artístico, o artista da propaganda, e o fotógrafo, responsáveis pelo
acurado registro crítico de quem viveu e documentou a época com talento e
sensibilidade.” (MARTINS, 2003, P. 71)

Observa-se como no Brasil, um país com poucos leitores na época abordada, o


uso da imagem potencializava a absorção das informações pelo público. Estas mesmas
imagens são indícios privilegiados e carregam muito das histórias de um tempo. O
humor era bastante enfocado pelos artistas que usaram a ponta do lápis para expressar
suas ideias por meio de desenhos.
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Em relação a sua identidade visual, a Pilhéria variou bastante durante os anos em

que esteve em circulação. A princípio, observou-se uma tendência maior na utilização


de fotografias de mulheres da elite recifense ou atrizes famosas, contudo, a partir de
meados de 1925, mais comum eram as charges e lustrações em suas capas. Exemplo
abaixo: à esquerda capa de 1925 e à direita, A Pilhéria em 1929. E as melindrosas
sempre presentes.
A Revista da Cidade, por outro lado, investiu bastante em fotografias, de
“flagrantes” da vida no Recife. O uso da fotografia foi bastante importante nas revistas
do inicio do século, e concorriam diretamente com os desenhos em suas páginas. É
certo que a fotografia origina-se do desejo de um individuo em preservar um momento
congelado em uma imagem, representando seu aspecto “real” em um tempo e lugar,
fornecendo aos espectadores ausentes, um testemunho visual da cena. (KOSSOY, 2012,
P. 38-39) Temos consciência de que, tal como outras fontes históricas, as fotografias e
desenhos são representações e não se constituem como verdade sobre uma época.
Contudo, sua análise auxilia na reconstrução histórica da memória dos indivíduos e de
seu entorno sociocultural. Ao obervarmos as melindrosas caminhando nas ruas,
fotografadas e publicadas nas revistas, percebemos como a ilustração fotográfica
ajudava com cenas do cotidiano das pessoas, urbanismo, paisagens, ou imagens de
pessoas de destaque na sociedade, e até mesmo na definição de capas, influenciando
os/as leitoras, de certo modo. “A categoria fotográfica, até então indefinida, assumiu
foros profissionais, encontrando no periodismo o espaço adequado de colocação”.
(MARTINS, 2003, P. 75) Peter Burke ressalta que, com o advento da fotografia,
proporcionou-se um número maior de imagens de pessoas comuns, e desta forma mais
indícios e novas fontes históricas passiveis de investigação surgiram, de forma a auxiliar
o historiador na interpretação de um tempo, tomando-se os cuidados necessários nesta
tarefa. (2004)
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A nós, pesquisadores culturais e sociais deste tempo, restaram estes indícios


magníficos, que nos auxiliam a montar este enorme “quebra-cabeças” histórico. As
notícias, charges, e fotografias da sociedade, publicadas nas páginas hoje amareladas, ao
serem analisadas, nos fazem concluir como a representação apresentada exerceu sobre
os outros sujeitos a supremacia, passando a ditar, ou mesmo impor uma concepção de
valores, normas de comportamento e papeis sociais (PESAVENTO, 2008, P. 41-42) O
historiador deve encarar os documentos e fontes históricas não como imagens da
verdade, mas sim como representações do fato histórico, ou seja, indícios que ocupam o
lugar, que substituem, que representam o passado. “A Realidade do passado só chega ao
historiador por meio das representações.” (PESAVENTO, 2008, P.42) Contudo, um
risco que corremos ao investigar a história por meio dos periódicos é o de buscar nestes
documentos exatamente o que se quer confirmar. Cabe então ao pesquisador não usar
estas fontes como meros instrumentos justificadores de suas suposições, mas analisá-los
com olhar crítico e aguçado, enxergando nas minúcias e entrelinhas os fios tênues que o
conduzem ao saber e ao fazer historiográfico.
Por fim, observamos como o cenário urbano consolidou-se como o ambiente
mais propício ao desenvolvimento do periodismo nos primeiros anos republicanos, e de
como Recife não ficou de fora deste momento. “Velocidade, mobilidade, eficiências e
pressa tornaram-se marcas distintivas do modo de vida urbano e a imprensa, lugar
privilegiado da informação e sua difusão, tornou-se parte ativa nesse processo de
aceleração” (LUCA, 2005, P. 137). A imprensa periódica “seleciona, ordena, estrutura e
narra, de uma determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar até o
público.”(LUCA, 2005, P. 139), os que se posicionaram à frente destes veículos de
comunicação tendiam a se tornarem detentores do poder simbólico sobre seus
leitores/as, que embriagados/as com o fascinante mundo apresentado pela publicidade,
seja em anúncios, ou até mesmo por meio de filmes, mergulham a obedecer aos
reclames, seja de forma consciente ou inconsciente. Reflexo desta situação, os corpos
femininos (e masculinos) modificaram-se, submetendo-se a gestão social imposta pelos
que detinham este poder. Como resultado, maiores liberdades, sim, acontecerem, mas
atrelado a elas, surgem também novas responsabilidades para eles, nas mais diversas
instancias, que apenas comprovam o que “o corpo não cessa de ser (re)fabricado ao
longo da História.” (SANT’ANNA, 2005, P. 12)

REFERENCIAL
Fontes:
A Pilhéria nº 99 - 1923
A Pilhéria nº 164 - 1924
A Pilhéria nº 204 - 1925
A Pilhéria nº 219 - 1925
A Pilhéria nº 386 - 1929
A Pilhéria nº 94 - 1923
(Edições digitalizadas e disponíveis no site da Fundação Joaquim Nabuco – Recife:
http://www.fundaj.gov.br; e também no site Domínio Público, do Governo Federal
http://www.dominiopublico.gov.br )

A Província 01 de dezembro de 1919


A Província 11 de outubro de 1921
A Província 28 de setembro de 1924
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(Edições digitalizadas e disponíveis na Hemeroteca Digital do site da Fundação Biblioteca


Nacional – Rio de Janeiro: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx )

Revista da Cidade nº 175 - 1929


Revista da Cidade nº 176 - 1929
(Edições digitalizadas e disponíveis no site da Fundação Joaquim Nabuco – Recife:
http://www.fundaj.gov.br; e também no site Domínio Público, do Governo Federal
http://www.dominiopublico.gov.br )

Bibliográfico:

ARRAIS, Raimundo Perreira. Recife, Culturas e Confrontos. Natal: EDUFRN, 1998.


BONADIO, Maria Claudia. Moda e Sociabilidade: Mulheres e consumo na São Paulo
dos anos 1920. São Paulo: Editora Senac, 2007.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004
CHARTIER, Roger. A História Cultural Entre Práticas e Representações. 2ª Edição,
Lisboa: DIFEL, 2002.
DOURADO, Rosiane de Jesus. As Formas Modernas da Mulheres Brasileira:
Décadas de 20 e 30 do Século XX [dissertação] Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade
Carioca do Rio de Janeiro; 2005
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In:PINSKY,
Carla Bassanezi (Org). Fontes Históricas. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
MARTINS, Ana Luiza. Da Fantasia à História: Folheando Páginas Revisteiras.
História, 2003.
MOREYRA, Alvaro. A Cidade Mulher. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1991 p 28
MEDEIROS, Hugo Augusto Vasconcelos. Melindrosas e Almofadinhas: Relações de
Gênero no Recife dos anos 1920. In Revista Tempo e Argumento [online] UDESC
volume 02 número 02 jul/dez. 2010.
OLIVEIRA, Iranilson Buriti de . Educando pela Roupa: A Educação do corpo através
da moda no Recife dos ano 20. In Anais do II Congresso Brasileiro de História da
Educação. Natal, 2002

PERROT, Michelle. “Os Silêncios do Corpo da Mulher”. In MATOS, Maria Izilda


Santos de; SOIHET, Rachel. (orgs) O Corpo Feminino em Debate. São Paulo: Editora
Unesp.2003
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008
ROLNIK, Raquel. O que é Cidade? São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.
SANT’ANNA, Denize Bernuzzi. (org) Políticas do Corpo. 2ª Ed. São Paulo: Estação
da Liberdade, 2005
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. Revista
Educação & Realidade. Porto Alegre, vol 20, nº2, jul/dez. 1995
SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. Recife: Fundação de Cultura Cidade do
Recife, 1981
SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio Republicano, Astúcias da Ordem e Ilusões do
Progresso. In SEVCENKO, Nicolau; NOVAIS, Fernando A. (org) História da Vida
Privada no Brasil vol 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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SPILBORGHS, Mariana Alza. Moda, Beleza e Sociedade: Um Estudo da Ilustração no


Brasil Através da Revista "Careta", 1920 e 1950. [trabalho de conclusão de curso]
Florianopolis, Universidade do Estado de Santa Catarina, 2007

MULHERES EM CENA: CONSIDERAÇÕES SOBRE


REPRESENTAÇÕES FEMININAS NO CINEMA NACIONAL

Amanda Alves Miranda Cavalcanti


Universidade Federal de Pernambuco – Gtemp CNPq. Graduanda em História.
amandacavalcanti1@hotmail.com

Anderson Carlos Meira Rodrigues


Universidade Federal de Pernambuco -Gtemp CNPq. Graduando em História.
andersonmeira.r@uol.com.br

Natália Conceição Silva Barros


Universidade Federal de Pernambuco - Gtemp CNPq. Doutora em
Históriagrupotempopresente@gmail.com

1. Introdução

Em 2013, iniciou-se no Colégio de Aplicação um projeto denominado O


Passado em cena: representações da história no Cinema Nacional234, que tinha como
interesse a produção de análises críticas de filmes que retratam a Ditadura Civil-Militar
do Brasil, produzidos nas décadas de 1990 e 2000. Dessa forma, este projeto propôs-se
contribuir para o debate acerca do Golpe - levando em consideração que em 2014 este
período histórico será bastante problematizado em razão dos 50 anos da trama golpista -
gerando subsídios para o ensino de História e inserindo novas perspectivas teóricas
neste campo de pesquisa, a exemplo dos estudos de gênero. Inserido nesta pesquisa
maior, este artigo pretende ressaltar a participação feminina na resistência política
contra o regime por meio da análise dos filmes: “Lamarca: o capitão da guerrilha” e “O
que é isso Companheiro?”, tomando as produções cinematográficas como
representações de um passado histórico.
Com a abertura política ocorrida na década de 1980, percebemos o grande
interesse da produção cinematográfica em retratar o Regime Civil-Militar instituído no
Brasil. Muitas são as interpretações deste momento político, e muitas são as

234
Esse projeto tem como coordenadora a professora do Colégio de Aplicação Natália Barros, que
atualmente vêm desenvolvendo pesquisas que envolvem a temática de gênero e Ditadura Militar. Projeto
registrado na coordenação de pesquisa e extensão do Colégio de Aplicação – CE – UFPE.
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representações dos sujeitos que atuaram na época. Eis que surge um problema muito
comum para os filmes denominados históricos: a cobrança do público em encontrar
neles a verdadeira versão do passado. Nesse sentido, representar um momento recente
na História do Brasil que trouxe muitas dores e perdas em um filme é ter que conviver
com cobranças que tratam deste conflito entre ficção e realidade. E é nessa atmosfera
em que os filmes analisados neste artigo estão inseridos, atravessando as barreiras da
realidade e da ficção.
Portanto, acreditamos que a produção fílmica utilizada como fonte
historiográfica pode ser encarada como uma representação de um determinado passado.
Ou seja, os filmes históricos, não exprimem uma verdade absoluta ou um produto
fidedigno de um pensamento contemporâneo sobre o fato histórico (COLLING, 1997).
Cremos que esta demonstra uma possibilidade de como uma narrativa histórica pode ser
contada, observando sempre as posições políticas que ela representa. Nesse sentido,
temos que ficar atentos para não entendermos estas representações como ingênuas e sem
sentido, pois elas estão imersas num contexto e são determinadas por interesses de
grupos que as construíram. No caso das representações elaboradas pelos filmes
analisados, devemos percebê-las como imagens cheias de sentido, conduzidas por
grupos que, inseridos em um contexto específico (anos após o período de
redemocratização brasileira), buscaram retratar o Regime Civil-Militar como um
momento histórico de muita tensão, que abalou as conjunturas políticas, sociais e
culturais do país e que deve ser sempre relembrado e discutido.
Ainda pretendemos analisar as representações femininas nos filmes propostos,
buscando tecer uma análise a partir do conceito de gênero, não reproduzindo os
estereótipos construídos sobre as atuações das mulheres no mundo social – como
indivíduos restritos ao espaço doméstico com pouca atuação pública e política – e as
encarando como sujeitos que tiveram grande participação em momentos históricos de
tensão no Brasil, como foi o Regime Civil-Militar, atuando, muitas vezes, na liderança
de movimentos políticos que buscavam a democracia.
2. A militância feminina em tempos de ditadura: a análise dos filmes “O que isso
Companheiro?” e “Lamarca: o Capitão da guerrilha”
Durante muito tempo, diversos grupos sociais foram escondidos e subjugados da
História oficial, desconsiderados e tendo as suas ações minimizadas, a exemplo dos
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operários,camponeses,escravos e mulheres. Já no final do século XX, percebe-se uma


abertura nos portões da Academia impulsionando novas metodologias e abordagens, e
dando possibilidade para a pluralização dos objetos de pesquisa fazendo com que
muitos desses personagens tornem-se sujeitos históricos. Neste artigo, pretendemos
ressaltar a atuação feminina na História, dando a ela a devida relevância e reforçando o
campo acadêmico da História das Mulheres.
As mulheres, na maioria das vezes, tiveram a sua participação ocultada e
minimizada nos movimentos históricos, sendo representadas como limitadas e
enclausuradas no espaço privado e doméstico, ou atuando no espaço público como seres
desvirtuados e “pecadores”. Isto é, quando representadas como “donas do lar”, elas
foram caracterizadas como sujeitos subjugados aos homens e contando com apenas uma
única alternativa na vida: casar-se e ter filhos. Já com relação às mulheres que foram
apresentadas pela literatura com alguma participação no meio público, foram
representadas como indivíduos “impuros”, ou mesmo como putas. De modo geral, essas
histórias estigmatizadas sobre o feminino foram contadas por homens (e consentidas por
todos), narrativas que persistiam em diminuir e silenciar as mulheres, articulando,
assim, uma prática social e uma história que delimitaram uma hierarquização dos
gêneros, apresentando o homem como “superior”.
Como já dito, pretendemos analisar a participação feminina durante a Ditadura
Civil-Militar, através da observação de filmes, não reproduzindo um discurso que trata
da dicotomia entre os sexos, nem persistindo em tratar das hierarquias entre eles, e sim,
trabalhando os gêneros masculino e feminino numa relação igualitária. Sobre esta
questão, Ana Maria Colling, em seu artigo As Mulheres e a Ditadura Militar no
Brasil,destaca que: “Falar de mulheres não é somente relatar os fatos em que elas
estiveram presentes, mas é reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos.”
(COLLING, 1997. p. 2)
Para abordarmos esta perspectiva relacional entre homens e mulheres
pretendemos trabalhar com o conceito de gênero, que vai além da questão dicotômica
que trata do sexo (feminino e masculino), como já dito - visto como algo biológico e
natural do ser humano - percebendo o homem e a mulher como construções sociais, que,
sempre que possível, podem ser remodeladas. (TELES; LEITE. 2013) Esta perspectiva
de análise de gênero tem como interesse teorizar e questionar os papéis sociais
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atribuídos ao feminino e ao masculino, resultantes de uma invenção cultural, política e


social. Portanto, buscamos romper com as análises cristalizadas da participação delas
na História, as dando a devida importância.
Partindo da premissa de que Há muito mais histórias na História - frase assinada
por blogueiras feministas em um texto virtual denominado, O silêncio da nossa
história235–narrar a participação feminina na militância política durante a Ditadura
Civil-Militar é tratar não só de mulheres que tiveram suas vidas marcadas pela esquerda
comunista, vivenciando a clandestinidade e a militância armada, mas também é falar de
mulheres que sofreram o desaparecimento de seus filhos e militaram contra a repressão
política da ditadura em favor da busca de seus entes queridos e problematizaram as
questões das prisões indevidas e dos Direitos Humanos.Ou seja, como afirma
LuisMaklouf Carvalho: As mulheres estão presentes em todos os espaços “Amando,
sofrendo, guerreando, participando, às vezes na linha de frente, às vezes nos
bastidores.” 236
O Brasil durante as décadas de 1960 e 1970 se inseria em tempos turbulentos e
confusos, já que se iniciava uma política ditatorial e coercitiva, promovida através do
Golpe Militar dado em 1964, que retiraria da população seus direitos civis e políticos,
transformando o cidadão brasileiro suspeito até que se prove o contrário
(CARVALHO, 2002). Com o passar dos anos chegaram às prisões, as torturas, os
desaparecimentos de pessoas, sem que a população no geral tenha total ciência do que
se passava no país, pois a imprensa estava censurada e as informações que chegavam
aos ouvidos do povo brasileiro eram aquelas que serviam para maquiar o clima de
ditadura que pairava no Brasil da época.
Porém, em meio a tantos golpes e facadas, não podemos nos esquecer do
desenvolvimento científico e tecnológico que invade o Brasil a galopes, promovendo
enormes mudanças de comportamento que se insere desde o âmbito privado – com a

235
Blogueira feminista. O silêncio da nossa história. Disponível em:
<HTTP://blogueirafeminista.com/2011/02/o-silencio-da-nossa-historia/>.In: TELES, Amelinha; Leite,
Rosalina Santa Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no
Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013.
236
CARVALHO, LuisMaklouf. “Mulheres que foram à luta armada.” Marie Claire. Ed. Abril, set. 1996.
Disponível em: <HTTP://juntosomos-fortes.blogspot.com.br/2010_06_13archive.html>.In: TELES,
Amelinha; Leite, Rosalina Santa Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo
pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013.
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família brasileira passando por transformações que abalaram toda uma conjuntura social
- ao público. Isso acontece por vários motivos, já que as mulheres agora têm o direito
de experimentar o prazer sexual sem a preocupação de terem uma gravidez indesejada
com o advento da pílula anticoncepcional, podendo, portanto, ter o direito ao orgasmo e
a escolha de tornar-se mãe. (TELES; LEITE. 2013) Além disso, elas passam a se inserir
no mercado de trabalho e na vida pública, competindo com os homens às vagas nas
empresas e fábricas brasileiras, se retirando, aos poucos, do lar, espaço a elas destinado.
Ganhando as ruas, as mulheres ingressavam naquele momento para o cenário público,
lutando em favor de garantias próprias por meio de atitudes reprováveis para a
sociedade machista da época237, muitas delas, inclusive, ingressando para a militância
política, tomando, muitas vezes, a frente de lideranças armadas.
Neste artigo analisamos as representações de três personagens femininas que se
dedicaram a militância política em filmes produzidos nas décadas de 1990 e 2000. No
filme “O que é isso companheiro?”, investigamos as personagens Maria (Fernanda
Torres) e René (Cláudia Abreu), em “Lamarca: o capitão da guerrilha”, no qual
podemos perceber a atuação a guerrilheira Clara (Carla Camurati).
2.1 Mulheres também pegam em armas: as militantes do filme “O que é isso
Companheiro?”
Tendo sido lançado em 1997, o filme O que é isso Companheiro procura retratar
aspectos da luta armada existente no Brasil durante o Regime Civil-Militar iniciado em
1964. Com a direção de Bruno Barreto, o aspecto central do filme é o sequestro ao
embaixador dos Estados Unidos no Brasil em 1969. Esta película é uma releitura de um
livro escrito por Fernando Gabeira que leva o mesmo título, lançado em 1979238.
O filme O que isso companheiro, contou com atores como Pedro Cardoso
(Fernando), Selton Melo (César), Luiz Fernando Guimarães (Marcão), Fernanda Torres
(Maria), Cláudia Abreu(Renée) dentre outros. O começo da história se dá quando
Fernando e César explicam a um amigo suas decisões de seguir para a luta armada
através do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Após seu ingresso nesta

237
Segundo Ana Maria Colling a mulher militante política, que se insurgia contra a política golpista e
fazia oposição ao lugar destinado à mulher era encarada pela política repressora como a Puta Comunista.
(COLLING, 1997. p. 7)
238
Segundo Denise Rolemberg, o livro “O que é isso companheiro” vendeu mais de 250.000 exemplares
e contou com 40 edições, e o filme de Bruno Barreto veio com a intenção de consolidar a obra do
jornalista.
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vida clandestina, era comum na guerrilha armada, Fernando e Cesar passariam a se


chamar Paulo e Oswaldo. Já na primeira ação do grupo armado mostrado no filme,
Oswaldo foi preso e passaria por torturas para revelar informações do MR8. Já Paulo
continuaria no movimento cada vez mais respeitado por suas ideias, sendo a maior delas
o sequestro do embaixador americano (Charles Burke Elbrick) em troca de alguns
presos políticos. Esta ação emblemática da organização foi baseada na empreitada
promovida por Fernando Gabeira, que neste filme é representado pelo personagem
Paulo.
Para a ação, o MR8 age em parceria com outro grupo de guerrilha o ALN (Ação
Libertadora Nacional), que teve como grande participante o famoso guerrilheiro Carlos
Marighela, e que surge de uma divisão do velho Partido Comunista do Brasil.
A ALN ganhou projeção dentro e fora do país, em setembro de 1969, ao
sequestrar, justamente com o MR8, o embaixador norte americano no Brasil,
por cujo o resgate foram libertados 15 prisioneiros políticos e divulgado um
manifesto (BRANDÃO; DUARTE,1987, p. 94).
Como neste artigo iremos tratar das representações femininas no filme,
escolhemos tratar aqui de duas personagens: Maria (Fernanda Torres) e Renée (Cláudia
Abreu). A primeira delas é a companheira Maria, apresentada aos mais novos
integrantes do MR8 como a líder do movimento, a qual possui um timbre de voz seguro
e demonstrava experiência em organizações armadas. Ainda nestas primeiras cenas
também aparece Renée, nome que receberia pelo grupo. Podemos comparar estas duas
representações femininas, de modo que, enquanto Maria é representada como alguém
forte e segura, principalmente, por está na liderança, a personagem Renée é retratada
como uma figura tímida e insegura. Para exemplificarmos esta característica, notamos
que, na primeira missão do grupo, no assalto a um banco, Renée é retratada como uma
garota que, apesar de ter executado sua ação de maneira esperada, ainda não parecia
estar totalmente segura de seus atos, diferente da “experiente” Maria.
Durante o desenrolar do filme, quando surge a ideia do sequestro ao embaixador
norte americano, Renée terá a incumbência de adquirir informações sobre os horários
cotidianos do diplomata com o interesse em sequestrá-lo. Para este ofício, ela se passa
por uma interiorana perdida no Rio de Janeiro, que buscava trabalhos domésticos. Esta
estratégia tinha o intuito de seduzir o segurança da residência do embaixador, utilizando
de seu charme e poder de sedução, para conquistar todas as informações que desejava.
Esta situação nos chama atenção, pois esta personagem é a representação de uma
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ISBN: 978-85-415-0440-9.

militante do MR8 chamada Vera Silva Magalhães,que não se sentiu bem retratada no
filme, sobretudo, pelas características “vulgares”de Renée ao se insinuar ao segurança,e
por ter sido retratada como uma mulherzinha frágil. Segundo Vera “(...) isso não
aconteceu, houve um flerte e nada mais (...)” (AGUIAR, 2007.p. 189). Além disso,
Vera também argumenta que no filme os personagens militantes foram representados
“como pessoas estúpidas, quase bárbaras, enquanto o torturador é humanizado. Isso me
incomoda. Quem foi torturada fui eu, não foi o senhor Bruno Barreto.” (AGUIAR,
2007.p. 189)
Sobre esta questão da humanização do torturador, utilizando a ideia de Daniel
Arão Reis Filho introduzida no texto “Esquerdas revolucionárias e luta armada” de
Denise Rolemberg, tanto a obra de Gabeira quanto a de Bruno Barreto narram histórias
que tiveram grande aceitação do público por retratar um caráter de conciliação entre
militantes e militares. “O reencontro de 1979 e dos anos seguintes criou um fosso entre
o passado e o futuro, como se para fazer este fosse preciso esquecer aquele.”
(ROLEMBERG, 2009. p. 77)
Percebemos ainda que, durante todo o filme, a personagem em questão é
representada com um comportamento seguindo os padrões de feminilidade da época,
mesmo atuando como guerrilheira, já que é retratada lavando as roupas do embaixador
(já no cativeiro), e quando encarregada de cuidar de um ferimento na cabeça do mesmo
(lesão ocorrida durante a ação do sequestro). Além disso, a garota que possuíatodos os
“dotes” dito acima, também mostra ter certa intelectualidade destacável, já que é
representada como alguém que fala inglês fluentemente, que se comunica com o
embaixador no cativeiro. Vale ressaltar, que apenas Renée e Paulo tinham esta
qualificação dentro do grupo.
Contrapondo-se à Renée estava à guerrilheira Maria, líder do MR8 que ensinou
os novos recrutas da guerrilha a atirar, demonstrando um grande domínio das armas.
Ademais, Maria, cuidava da disciplina dos treinamentos que, com certeza, parecia com
um treinamento militar, sempre com a preocupação de ter um grupo coeso e focado,
inclusive, tendo uma linguagem dura quando havia erros no treinamento. Diferente de
René, Maria não era nada doce. Sempre dura, ela não tinha “dotes convencionais” para
uma mulher. Apesar de toda esta liderança e dureza, é bastante interessante o respeito
que Maria possuía pelos antigos guerrilheiros, não apenas por medo mais também por
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sua história. Se o relacionamento de Maria com os outros guerrilheiros do MR8 era em,
alguns momentos, intransigente com os antigos membros da ANL, convidados para
operação do sequestro, a situação não era a mesma. Neste momento, tanto Maria quanto
os outros integrantes do MR8, tornam-se subjugados aos membros da ANL, que desde o
primeiro momento se colocam em tom de dureza, ameaçando até assassinar aqueles que
por ventura viessem a ter vacilâncias em relação a alguma ordem.
Com a perda da liderança é perceptível que Maria começa a mudar. Na ocasião,
estando na categoria de mais uma subordinada, ela passa a ser representada com
características mais “femininas”, ou seja, conforme o senso comum, “torna-se mais
sensível”. Outra situação de relevância é a representação da personagem como uma
grande ponte entre as ordens dos líderes da ANL para com os companheiros do MR8.
Maria reconhece as qualidades do companheiro Paulo (tão criticado por não possuir
aptidões de tiro), sobretudo por sua boa escrita e pela ideia de ter sido ele o principal
idealizador do sequestro. Com ele, Maria vive um pequeno romance, não apresentado
no filme como enredo principal. O interessante a destacar é que no primeiro beijo entre
Paulo e Maria, a guerrilheira se mostrava assustada, dando a impressão que seria
alguém que nunca imaginaria ter aventuras amorosas, ou seja, seu foco sempre esteve a
cargo do movimento de resistência. Sendo assim, Bruno Barreto apresenta esta mulher
dura e rígida, líder de uma militância política, amolecendo ao longo do filme,
demonstrando, através do romance com Paulo, a face de uma mulher que também se
emociona e mostra fragilidades. A forte guerrilheira iria quebrar uma das regras do
movimento ao revelar seu verdadeiro nome ao companheiro Paulo: Andreia. Após o
sequestro e a libertação do embaixador, o grupo se dissolve. No entanto, Maria e Paulo,
continuam se encontrando até o momento que são capturados pelos militares,
ocasionando a separação do casal só terminada com a extradição deles para Argélia, em
uma outra ação de sequestro e troca de alguns presos políticos.
Os casos de René e Maria, apesar de diferentes, demonstram grande importância
no filme. Enquanto a primeira é retratada como alguém doce, de fita no cabelo e
inexperiente, embora corajosa, Maria é tratada como uma típica militante política,
focada em um objetivo maior. Por exemplo, enquanto Renée lia revista sobre o
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“Woodstok”239,não se desprendendo totalmente dos gostos da juventude da época,


Maria estava mais preocupada com as projeções políticas do Brasil e com os novos
esconderijospara o grupo. Outra situação relevante é a observação de Renée com
relação à esposa do embaixador, pois ela declara que se tratava de uma “Diva”,
alegando que ela era muito bela, resvalando num comportamento “pequeno burguês”.
Portanto, as representações femininas no filme “O que é isso Companheiro?”
mostram personagens com características bastante diferenciadas e até mesmo
dicotômicas, mas que se entrelaçam e dialogam, já que são duas militantes que lutam
pelos mesmos princípios revolucionários e fazem parte de um importante movimento
político armado, o MR8, contra o regime.
2.2A Maria Bonita240do VPR: a militante do filme “Lamarca: o capitão da
guerrilha”
Lançado em 1994, o filme “Lamarca: a história de um guerrilheiro”241, dirigido
por Sergio Resende, tem por objetivo retratar a vida na ilegalidade de Carlos Lamarca,
um militar que resolveu fazer oposição a ditadura instaurada no Brasil entre os anos de
1964 a 1985. Carlos Lamarca (Paulo Betti) era um militar respeitado (grande atirador)
até o momento que furtaria armamentos do exército brasileiro transportando para o
grupo de guerrilha Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Segundo Wilma Antunes
Maciel (MACIEL, 2006), autora do livro “O Capitão Lamarca e a VPR” - que destaca a
participação desse velho militar-militante no grupo da VPR - que teria surgido em São
Paulo, por alguns ex militares que foram vitimados de seus cargos no evento do Golpe
de 1964. Neste filme temos a figura de Clara242 (Carla Camurati), militante da VPR,
companheira de esconderijo de Lamarca, que acaba se envolvendo amorosamente com
o mesmo. A figura de Clara, desde o primeiro momento, demonstra alguém que
subvertia a moralidade, já que Lamarca era casado e possuía uma família, refugiada em

239
Festival de música com o público jovem ocorrido dos EUA contra a intervenção norte americana no
Vietnã, o qual foi uma das maiores representações da contra cultura no período.
240
Estamos nos referindo à lendária Maria Bonita, esposa do cangaceiro Lampião, que bravamente lutava
ao seu lado pelos sertões nordestino.
241
O filme foi baseado no livro biográfico sobre este mesmo revolucionário escrito por José Emiliano e
Miranda Oldack.
242
Clara é a representação da história de Iara Iavelberg, psicóloga, esteve ligado ao movimento estudantil.
(TELES; LEITE. 2013) Conforme a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Iara foi membro de
movimentos tradicionais de guerrilha como a VPR (Vanguarda Popularrevolucionária), o MR8
(Movimento Revolucionário 8 de outubro), POLOP (Organização Revolucionária Marxista Política
Operária), dentre outros. Disponível em: http://www.comissaodaverdade.org.br/caso_integra.php?id=6.
Acesso em: 11/02/2014.
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Cuba. Além disso, Clara se mostra com hábitos bastante diferenciados dos
convencionais para uma mulher de seu tempo. Fumante compulsiva, cabelos
provocantes, um jeito autônomo que tentava se mostrar como alguém forte, a qual não
tinha reservas para falar de sexo, Clara, consegue seduzir o famoso capitão da guerrilha.
É importante ressaltar, que o filme mostra claramente as tentativas de Carlos Lamarca
em se esquivar desse romance, talvez, por achar que isso apenas atrapalharia a guerrilha
e os mecanismos de luta. Muito embora, uma das funções de Clara fosse a de fingir que
era a esposa de Lamarcapara não levantar suspeitas entre as vizinhanças dos inúmeros
locais que serviram para que os militantes se escondessem. Isso fica bem caracterizado
por Ana Maria Colling: “(...) a mulher, militante política é encarada como ser desviante,
não a mulher normal e desejada. Esta estava no espaço a ela destinado. No santuário do
lar, cuidando do marido e dos filhos” (COLLING, 1997. p. 7).
Ainda nesse aspecto de subversão de costumes, Clara não estava nem um pouco
apegada ao santuário do lar, uma vez que, no filme é perceptível o desprendimento da
personagem com uma possível família, já que em uma das cenas ela relata que teria sido
casada, porém nunca teria tido filhos. “Houve mulheres que se afastaram de seus
companheiros/maridos para irem à luta e outras os escolheram na própria luta armada.”
(TELES; LEITE 2013, p 31). Além disso, podemos comparar a personagem em
questão com outra: a “esposa oficial” de Carlos Lamarca, Marina (Deborah Evelyn).
Apesar de uma participação relativamente pequena, a personagem demonstra ser uma
senhora do lar, alguém de vida convencional que vivia para zelar por sua família, além
deser fiel ao marido. A respeito da obediência nos chama atenção, por exemplo, a ida de
Marina e filhos para Cuba a mando de Carlos Lamarca que pretendia dar segurança a
sua família contra qualquer represaria do Regime. Ainda comparando Marina com Clara
percebemos que embora ambos tenham conquistado Carlos Lamarca vemos formas de
se relacionar bastante diferentes. Enquanto Marina é uma figura submissa ao marido,
Clara não possuía esta mesma característica com Lamarca, pois iniciava discussões e
aversões a algumas ordens do seu parceiro como, por exemplo, sua ida a Bahia (onde
foi assassinada243) local onde Lamarca se refugiou pela última vez antes da sua morte.

243
Iara, representada no filme como Clara morreu em agosto de 1971, em um apartamento na Bahia.
Segundo a Comissão da Verdade de São Paulo, Iara foi assassinada por militares, embora na época tenha
sido enterrada no setor de suicidas do Cemitério Israelita do Butantã. . Disponível em:
http://www.comissaodaverdade.org.br/caso_integra.php?id=6. Acesso em: 11/02/2014.
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É importante frisar a relação de Clara com os outros militantes. Ela era protegida
pelo grupo, embora devamos considerar que poderia representar “a primeira dama da
guerrilha”. Percebemos que apesar de toda a importância para VPR, Clara, jamais
poderia ser interpretada como uma protagonista, ou seja, o seu papel no filme é
subvalorizado. No entanto, notamos que a ação de Clara vai além de uma militância
contra um regime opressor, já que a personagem representa uma revolucionária de uma
época, alguém que escolheu lutar contra os “tabus” impostos pela mulher no período. O
filme deixa subentendido ao público que ela teria se envolvido no passado com o
personagem, Zequinha (Eliezer de Almeida), o qual militou com Lamarca o ajudando
no interior da Bahia, além de ter sido executado junto com o capitão: “Seus corpos
foram expostos na cidade e chutados em campo de futebol, para que isso servisse de
exemplo ao povo (...)” (MACIEL, 2006, p.120). Durante o filme, Zequinha leva o jantar
de Lamarca onde o capitão estava escondido na mata, o personagem baiano pergunta
por Clara e revela que a conheceu em algum momento da sua vida, em 1968 (a história
do filme se passa em 1971). Podemos deduzir que Clara era uma militante já experiente
que, diferente do capitão, possuía ideais antigos da esquerda. Já Lamarca, embora tenha
sido ilustre guerrilheiro, torna-se opositor do regime por questões menos políticas e
mais sociais, algo bem demonstrado no filme.
A trajetória de mudança de Lamarca é marcada pela iniciativa de ousar
pensar por si mesmo, questionar e se indignar com as condições de vida
dentro do próprio Exército, sensibilizando-se ainda com a dura realidade do
seu país. Então, resolveu agir, abandonando uma carreira que poderia lhe
trazer seguranças e vantagens pessoais (MACIEL, 2006, 117).
Conclusão
Ao analisar esses filmes produzidos na década de 1990, período em que o Brasil
se reestruturava e “solidificava” a democracia (ou pelo menos o desejo dela),
percebemos que, embora passássemos por uma abertura política, na qual se venerava a
liberdade e a democracia, no âmbito cultural, ainda estávamos presos às amarras de uma
sociedade historicamente patriarcal e conservadora, cujos valores foram formados desde
sua colonização. Inserida neste contexto, a representação do feminino na produção
cinematográfica nesta década, ainda parecia muito tímida e sem muita expressão,
retratando a mulher como personagem coadjuvante em histórias contadas
essencialmente por homens, algo bem constatado neste artigo.
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Nesta lógica, procuramos construir, com o auxílio da produção historiográfica da


atualidade, uma história que dá respaldo aos personagens silenciados até o momento.
Em tempos em que os direitos humanos são resgatados, somada a releituras no campo
historiográfico e aos estudos sociais no âmbito geral, no teatro da história,entram em
cena personagens que foram levados ao ostracismo ou papéis de figurantes, sendo
rechaçados e relegados à coxia. Hoje, estes novos protagonistas “desarrumam” a
história, procurando ter espaço no palco das narrativas históricas podendo ser escritas
com uma diversidade de fontes.
Nesta perspectiva, nosso maior objetivo, neste artigo, ao analisar as
representações do feminino no Cinema Nacional é contribuir para a ampliação dos
estudos históricos, buscando a construção de possibilidades e interpretações sobre os
assuntos que envolvem a problemática.
O caráter de construção da história nos permite desconstruir e
reinventar a história, inclusive o papel dos homens e das
mulheres na sociedade. Assim a história passa aser vista como
um campo de possibilidades para vários sujeitoshistoricamente
constituídos; lugar de lutas e de resistências. (COLLING, 1997,
p.9)

Referências

AGUIAR, Marco Alexandre. V. 35 (2007): ago./dez. História e Imprensa – artigos


Imprensa, Cinema e Memória, os filmes Lamarca e O que é isso Companheiro? Na
Folha de S. Paulo N' O Estado de S. Paulo e no Jornal do Brasil.

BRANDÃO, Antônio Carlos e DUARTE, Milton Fernandes. Brasil Nunca Mais.


Petrópolis, Vozes, 1987.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
COLLING, Ana Maria, A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro, Rosa dos Ventos, 1997.

GUERRA, Vanessa Calvo. WOODSTOCK EM REVISTA: Jornalismo cultural e


contracultura Centro.

MACIEL, Wilma Antunes. O capitão Lamarca e a VPR: repressão judicial no Brasil.


São Paulo: Alameda, 2006.
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ISBN: 978-85-415-0440-9.

Nacional Estadual da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. Disponível em:
http://www.comissaodaverdade.org.br/caso_integra.php?id=6. Acesso em: 11/02/2014.

ROLLEMBERG, Denise. “Esquerdas revolucionárias e luta armada”, in Jorge Ferreira e


Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX. Vol. 4. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2003.
TELES, Amelinha; LEITE, Rosalina Santa Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a
construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo:
Intermeios, 2013.

Relações de gênero, mulheres e a luta armada nas telas


brasileiras
Diego Uchoa de Amorim*
Resumo: Neste breve artigo pretende-se analisar a representação do guerrilheiro Thiago
no filme Cabra-Cega (Toni Venturi, 2005) a partir do prisma das relações de gênero,
procurando dar inteligibilidade à construção dessa personagem em relação à
representação de guerrilheiros em outros filmes sobre a Ditadura civil-militar brasileira.
Na primeira parte do texto será feita uma discussão sobre os estudos de gênero, da
História das mulheres e do conceito de gênero utilizado. Posteriormente, um balanço
historiográfico dos trabalhos recentes acerca do tema da participação das mulheres e das
relações de gênero na luta armada no Brasil durante a Ditadura civil-militar, também, se
fará presente com a finalidade de discutir os principais pontos levantados neste debate.
Ao fim, tentaremos trazer novas perspectivas e contribuições para as interpretações
acerca das representações inseridas nos filmes sobre a ditadura no Brasil, que vêm
sendo realizadas por algumas teses e dissertações, filmes que são partes desta verdadeira
“luta de memórias” que se iniciou ainda nos anos 1970. Com isso, a intenção é inserir
essa ótica de análise que, na maioria das vezes, acaba ficando restrita a um nicho

*
Graduando em História (Universidade Federal Fluminense - UFF)
e-mail: uchoa.amorim@gmail.com
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acadêmico, não provocando constantes revisões das premissas das demais áreas de
pesquisa.

Palavras-chave: Representação, Gênero, Luta armada.


"Uma história que seja destinada apenas para judeus, (ou afro-americanos, ou
gregos, ou mulheres, ou proletários, ou homossexuais) não pode ser uma boa
história, embora possa ser uma história confortadora para aqueles que a praticam."
(Eric Hobsbawm)
1. Introdução

É difícil, ao se propor falar de gênero e história das mulheres, não se referir às


mudanças marcantes ocorridas no mundo, principalmente, no final do século XX cujas
raízes encontram-se nas décadas de 1960/70. Sandra Pesavento, em trecho muito claro,
aponta para alguns episódios desse momento:
com a crise de maio de 1968, com a guerra do Vietnã, a ascensão do
feminismo, o surgimento da New Left, em termos de cultura, ou mesmo a
derrocada dos sonhos de paz do mundo pós-guerra. Foi quando então insinuou
a hoje tão comentada crise dos paradigmas explicativos da realidade,
ocasionando rupturas epistemológicas profundas que puseram em xeque os
marcos conceituais dominantes na História. (Pesavento, 2004, 8)
Essa “crise dos paradigmas explicativos da realidade” consistiu, em sua
essência, na descrença que as grandes narrativas teóricas – marxismo e estruturalismo –
pudessem dar conta da complexidade da sociedade que então se apresentava. A
proclamada crise dos Estados-nação, a mudança na atuação dos movimentos sociais e a
erupção de novas reivindicações que se mostram – muitas vezes – distantes das
militâncias tradicionais de esquerda, cujo um dos exemplos mais importantes são as
feministas, os movimentos homossexuais, e os movimentos negro, são sinais claros
dessa transformação. Isso tudo não passaria batido pelos trabalhos acadêmicos em
várias partes do globo...
Dentro desse turbilhão, uma das militâncias que ganharam força na década de
1970 foi a feminista. Com a maior inserção das mulheres nos ambientes acadêmicos
junto com a demanda por novas perspectivas teóricas que lidassem com a diferença da
experiência história desses sujeitos em relação aos homens por parte das feministas,
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surgiu, primeiramente, o campo da História das Mulheres244. Com o passar do tempo e o


amadurecimento das militantes e pesquisadoras(es) em relação às simplificações que
acabavam nascendo com o uso da categoria “mulheres”, caindo, às vezes, num
essencialismo que ia de encontro com a proposta de mostrar o “caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (SCOTT, 3, Último acesso
em 15/12/2013) e sua associação com as relações de poder entre homens e mulheres,
passou-se a preferir, então, o uso do conceito “gênero”.
Atualmente, os trabalhos mais citados pelas(os) pesquisadoras(es) que trabalham
com história das mulheres e relações de gênero, Joan Scott, Judith Butler, Thomas
Laqueur e Linda Nicholson, escolhem esse caminho, historicizando e desnaturalizando
tanto “as diferenças sexuais”, quando as representações que se constroem a partir da
percepção destas diferenças e seus usos245.
Dessa forma, o conceito de gênero aqui utilizado segue estas novas proposições
e consistirá numa ferramenta com o intuito de auxiliar na análise das representações das
relações de poder entre homens e mulheres a partir das suas diferenças sexuais. Porém,
atentando para não cair numa saída pós-estruturalista que descarte a realidade fora do
discurso, tentando, assim, “ligar construção discursiva do social e construção social do
discurso” (CHARTIER, 1995, 44).
2. As mulheres e as esquerdas armadas no Brasil: libertação ou submissão?

A modernização pela qual o Brasil passou nos anos 1950/1960, principalmente a


partir do governo JK, acabou proporcionando uma inserção das mulheres no âmbito
público maior em relação ao que se observava desde o início do século XX. A sua
participação no mercado de trabalho e nas universidades aumentava. Além disso, o
clima provocado pelas transformações era de intensa agitação cultural e política.
Problematizavam-se questões como o sistema capitalista, as estruturas familiares,
relações pessoais, entre outros. Em meio a todo esse debate, as mulheres se
posicionaram, seja em favor de medidas reacionárias como um golpe militar para salvar

244
Para uma explicitação da história da história das mulheres e das relações de gênero, ver: SOIHET,
Rachel e PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de
Gênero. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 54, p. 281-300 – 2007, pg. 285.
245
Para mais informações acerca do da trajetória do conceito de gênero ver: PEDRO, Joana Maria.
Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na análise histórica. IN: HISTÓRIA, SÃO PAULO,
v.24, N.1, P.77-98, 2005.
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a família e a pátria da ameaça comunista246, ou ingressando nas organizações de


esquerda247.
Essa participação política das mulheres durante os anos 1960, e, também, a sua
participação nos movimentos armados de resistência248 ao regime militar na década de
1970, chegam a nós a partir de pesquisas acadêmicas e, também, pelas memórias das
mulheres militantes lançadas na década de 1990. O tom comum que perpassa uma boa
parte dos textos consiste na exposição de uma mulher combativa na arena política, livre
– sexualmente ou das imposições de pais ou maridos –, e longe dos estereótipos comuns
da sociedade, à época resumida à tríade mãe, esposa e dona de casa. Ou seja, temos uma
representação que aponta para uma libertação, para uma “nova mulher”, que longe das
associações comuns ao lar e a maternidade, tomaram o controle de seus próprios
caminhos, saindo da posição de inferioridade que estavam expostas devido às relações
de gênero do período. Cabe perguntar, aqui, qual seria o sentido dessa representação?
Em artigo recente sobre a militância dessas mulheres nas lutas armadas, a
pesquisadora Natalia Bastos assinalou:
A valorização da participação feminina de esquerda no movimento político dos
anos 1960 e a depreciação, e até mesmo o silenciamento, da participação das
mulheres em apoio ao golpe de 1964 e ao regime por ele instaurado devem ser
compreendidos à luz desta ‘batalha’ pela memória, que configura na
demonização da ditadura militar e dos grupos que a apoiaram. (BASTOS,
2008, 50)
Assim, é a partir dessa “luta de memórias”, que teve início logo no período de
abertura do governo Geisel, que essa representação se torna mais inteligível. Não menos
importante, contudo, é averiguar como se deu de fato essa experiência militante das
mulheres no interior dessas organizações atentando para as implicações das relações de
gênero ali contidas. E, mesmo que não sejam muitos, hoje temos alguns trabalhos que
ajudam nessa empreitada.
Nesse mesmo artigo, Natalia Bastos, fazendo uso da literatura de memória
publicada nos anos 1990 e da história oral, traz algumas evidências. Segundo a autora, a

246
Para consulta de um exemplo da participação das mulheres no apoio ao golpe, ver: CORDEIRO,
Janaina Martins. Direitas em Movimento: A Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no
Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
247
BASTOS, 2008, 45-46.
248
Sabendo dos debates recentes acerca do caráter de resistência ou não desses movimentos, cabe deixar
claro que consideramos as organizações da luta armada como resistência seguindo os apontamentos de
Marcelo Ridenti: ”O fato é que se instalou um regime militar no Brasil, e naquela conjuntura a ação dos
grupos armados tomou a forma de resistência contra a ditadura, mesmo que o projeto guerrilheiro fosse
anterior a ela e não pretendesse ser só uma resistência” (RIDENTI, 2010, 64).
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partir de 1961 observa-se o surgimento de inúmeras organizações armadas que se


pretendiam lançar como alternativa a postura tida como “conformista” do PCB.
Baseadas nas experiências cubanas e chinesas, a atividade revolucionária e guerrilheira
se tornava o paradigma de militância política junto com o foquismo – em oposição a
uma postura altamente intelectual e pouco ativa –, Che e Mao se tornaram referências.
Ainda segundo Bastos, a composição dos grupos armados era marcada por
jovens universitários ou recém-ingressos que, junto com poucos estudantes do ensino
médio, formavam cerca de metade do percentual, sendo a outra metade composta por
militantes experientes e trabalhadores. Seguindo os estudos de Ridenti, Bastos considera
o número entre 15% e 20% de participação das mulheres, o que, na sua visão, chama
muito atenção se levarmos em conta o grau de submissão desses sujeitos na sociedade
da época e na associação muito forte entre mulher-privado e homem-público. Com esses
dados, contudo, alerta a pesquisadora que não podemos cair na armadilha de pensar
numa formação de “consciências feministas” através dessas experiências...
Primeiramente, pelo fato de que as questões hoje consideradas feministas não
eram pautas dessas organizações de maneira direta. Nas entrevistas analisadas por
Natalia Bastos fica claro que todos os esforços de reuniões teóricas e de estratégias de
atuação deveriam ser concentrados no fazer a revolução socialista (BASTOS, 2008, 58).
E, também, pelos inúmeros indícios que apontam para uma reprodução, no interior
dessas organizações, de relações de gênero que viam como “naturais” das mulheres
aspectos inferiorizados na construção desse novo homem revolucionário, além de deixar
as tarefas domésticas dos “aparelhos” sob responsabilidade das mulheres e ser mais
difícil para elas alcançarem postos de comando. Segundo Bastos:
Já Vera Sílvia Magalhães, que também ocupou cargo de direção na Dissidência
da Guanabara, ressalta que as mulheres, em geral, não ocupavam funções de
destaque na hierarquia das organizações. Vera assinala que muitas mulheres
integravam o quadro de ‘aparelho’, ou seja, não eram designadas para tarefas
nas ruas. Lembra como era difícil integrar a liderança de uma organização
revolucionária. “Eu era a única mulher no meio de sete homens. Fiz um puta
esforço para chegar lá [na direção]. A minha militância política foi uma
batalha, porque, além de tudo, havia o preconceito machista.” Vera destaca que
algumas mulheres que ocuparam papéis de liderança possuíam posturas
masculinizadas, eram agressivas nos debates políticos e precisavam falar
duramente para serem ouvidas. Avalia que era respeitada no grupo por se
mostrar uma pessoa ríspida e determinada. (BASTOS, 2008, 62)
Escrevendo sobre a construção da moral desse novo homem na ALN e no
movimento armado revolucionário argentino PRT-ERP, Lilian Back destaca que
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algumas características foram eleitas como estruturais nessa nova moral. A “iniciativa”,
a frieza na luta, a habilidade no manuseio de armas e a coragem, eram os atributos
valorizados (BACK, 2001, 5-6). Isso se relaciona direto à participação das mulheres
nessas organizações, uma vez que as características historicamente ligadas ao mundo
feminino, numa perspectiva de longa duração, contrastam com essas. Segundo Rachel
Soihet, pode-se encontrar desde Rosseau e Diderot saberes e representações que
apresentam o homem ligado à “coragem e a razão”, e a mulher à “beleza e ao
sentimento” (SOIHET, 1997, 3-4).
Miriam Nascimento, em texto sobre as relações de gênero nas esquerdas
armadas no Brasil, também vai ao encontro desses apontamentos. Além de ser mais uma
a assinalar a participação quase exclusiva das mulheres nos afazeres domésticos dos
“aparelhos”, também destaca a utilização das associações do mundo feminino como a
maternidade e a sujeição da mulher ao marido contra os militantes nos momentos de
tortura por parte da repressão. Em poucas linhas, a autora resume suas reflexões dizendo
que:
muitas mulheres sofreram preconceito no interior das organizações e
realizaram tarefas “tipicamente femininas”. Outras chegaram à direção de
organizações e tiveram que se “masculinizar” para chegar lá e manter-se. A
manutenção das construções de gênero pôs a segurança de alguma delas em
risco, especialmente em tarefas de “levantamento” de informações para futuras
ações. E, ainda, que tais construções de gênero eram compartilhadas tanto por
grande parte dos militantes como pelos responsáveis pelas torturas, numa
mostra de que a sociedade como um todo compartilhava tais culturas em
relação a “papéis” e funções específicas para homens e mulheres.
(NASCIMENTO, 2012, 13-14)
Com os apontamentos dessas pesquisas, observa-se que essa memória de
libertação das mulheres em oposição às mães, esposas e donas de casa devem ser vistas
dentro do contexto de construção dessa representação, uma vez que a dinâmica das
relações de gênero influenciou diretamente a atuação das mulheres dentro dessas
esquerdas. Responsáveis pelos afazeres domésticos, expostas a perigos quando iam
levantar informações e a tipos de torturas específicas, essas mulheres tiveram suas
atuações inferiorizadas em relação aos homens devido às hierarquias de gênero
historicamente construídas. E nos filmes sobre a ditadura que fazem parte da “luta de
memórias” acerca da participação desses grupos armados e da sociedade na ditadura,
como essas relações de gênero são representadas?
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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

3. Cabra-Cega e a construção de uma representação mais humana do


guerrilheiro

Em sua dissertação de mestrado, Marcia de Sousa Santos analisa as


representações da tortura e dos guerrilheiros em alguns filmes que tratam do regime
militar. Ela aponta que, prioritariamente, os filmes tendem a abordar o movimento mais
explicito de resistência ao governo autoritário, a esquerda armada, e o período de auge
da atuação dessas organizações: 1969-1971249.
Entretanto, a autora atenta para o fato de que as representações do guerrilheiro
não são homogêneas, sendo possível identificar peculiaridades entre elas. Nos filmes, o
guerrilheiro pode aparecer tanto como um mito-herói quanto um militante mais
“humanizado” e complexo.
Embora nossa preocupação seja o guerrilheiro Thiago, do filme Cabra-Cega,
que segundo a historiadora se encaixa no segundo perfil, cabe alguns breves
comentários acerca da representação da figura do guerrilheiro Carlos Lamarca no filme
Lamarca (1994), também analisado por Marcia Santos.
O filme de Sérgio Rezende, Lamarca, escolhe concentrar o enredo nos dois
últimos anos de vida do guerrilheiro Carlos Lamarca, interpretado por Paulo Betti,
desde o momento em que ele “radicaliza” a sua posição e escolhe o caminho da luta
armada, enviando sua mulher e seus dois filhos para Cuba. Após desertar do Exército
em 1969, ele se liga a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e passa a comandar
assaltos e sequestros para viabilizar a “verdadeira revolução” brasileira. Nos planos do
filme, aparece como “vítima” de uma perseguição pessoal do delegado Flores, antes
mesmo de ser um dos maiores perseguidos nacionais com o agravante de ser traidor da
bandeira. O filme acompanha essa trajetória até o momento da sua morte.
Neste filme, a representação de Carlos Lamarca deixa ver um herói a partir da
exacerbação de algumas características. São elas: a frieza na hora da tomada de
decisões, o “autoritarismo” observado na imposição da sua vontade acima de algumas

249
A historiadora, apoiada nas reflexões de Daniel Aarão, entende que essa ênfase na luta armada esteja
ligada ao fato de muitos sujeitos ligados a essas organizações e a setores de esquerda hoje se encontrem
ligados a setores do governo e ocupando cargos de “formadores de opinião”. (SANTOS, 2009, 40)
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decisões tomadas pelo grupo, e o domínio da razão com suas falas quase panfletárias250.
Ele só “erra” uma vez. E esse erro é provocado pelo amor. Segundo Santos:
Reforçando o aspecto individualista do protagonista, outra cena em flashback
demonstra um único momento de fraqueza de Lamarca, porém com a intenção
de ressaltar o seu lado amoroso, em relação a Iara Iavelberg (interpretada por
Carla Camurati). Questionado por um companheiro, que reclama da presença
de sua amante nos treinamentos na mata de Jacupiranga (afinal, todos os
guerrilheiros haviam deixado seus familiares para trás) (...) Quando Lamarca
erra e demonstra fraqueza, erra por amor. E, mais uma vez, toma uma atitude
individualista perante o grupo. (SANTOS, 2009, 47-48).
Fazendo uma análise fílmica251 a partir das relações de gênero, não é difícil
identificar que a construção da figura do herói-guerrilheiro Lamarca no filme se dá a
partir da exacerbação de aspectos tidos, social e historicamente, como masculinos. E, de
forma não surpreendente, quando é consensual perante seus pares o “erro” de Lamarca,
este está ligado ao amor a sua mulher, a militante Iara Iavelberg...
Dessa forma, observa-se que a construção da representação do herói Lamarca se
dá pela acentuação de características tidas como masculinas, enquanto características
tidas como femininas são associadas a “erros” ou não são representadas – como no caso
em que Lamarca decide sem titubear o não justiçamento do embaixador252 –, o amor e a
indecisão na tomada de decisões. A valorização da figura desta personagem, assim,
assinalada no filme como representante da sociedade brasileira na dura batalha de
resistência ao regime militar se apresenta como um “machão”. Frieza, firmeza na
tomada de decisões, posturas autoritárias, domínio da razão e habilidade no manejo de
armas são trazidas de forma quase essencializada na figura do homem guerrilheiro.
Já o outro tipo de representação do guerrilheiro que Marcia Santos aponta é
encontrado em Thiago, interpretado por Leonardo Medeiros, protagonista do filme
Cabra-Cega, do diretor Toni Venturi e do roteirista Di Moretti. Segundo a autora,
Thiago não é representado com um herói mítico das esquerdas que resistiu de maneira
corajosa à ditadura, mas sim, como um homem que, experimentando os anos mais duros
da repressão a essas organizações, vivia intensas angústias, conflitos e fraquezas
pessoais.

250
SANTOS, 2009, 45-46.
251
A abordagem teórico-metodológica presente nas análises aqui feitas sobre os filmes têm suporte na
metodologia desenvolvida por Marc Ferro. Ver: FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro Paz e
Terra, 1992.
252
Sobre este episódio, ver SANTOS, op. cit, 45.
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Aqui, se seguirá as reflexões da historiadora nesse sentido, entendendo a


representação de Thiago com um guerrilheiro “mais complexo e humanizado”. Porém,
algumas observações devem ser feitas do ponto de vista das relações de gênero que o
filme deixa transparecer. Mesmo Thiago sendo representado de maneira mais humana,
se afastando de caricaturas como a do protagonista de Lamarca, pode-se identificar que
essa humanização se dá pela aproximação gradual dessa personagem ao mundo
feminino. “Humano”, assim, significa a possível identificação em Thiago de aspectos
tidos como masculinos e femininos, ao invés da exacerbação de aspectos de um só
campo, daí a complexidade da personagem.
O filme de Toni Venturi tem como contexto o ano de 1971, quando as
organizações de esquerda viviam os tempos mais difíceis da repressão do aparato
ditatorial. Thiago, comandante de um grupo da esquerda armada, após ser ferido à bala
numa emboscada dos militares, é levado à casa de Pedro, o aparelho urbano da
organização. Nesse período de recuperação, ele vai ser “cuidado” pela militante Rosa,
encarregada de tratar dos seus ferimentos e das suas necessidades. Durante esse tempo
de convívio, as duas personagens vão se aproximando, culminando num caso entre os
dois. Durante a trama, Thiago vai tendo maior contato com outros lados da vida, do
mundo e dos sentimentos. O filme, que explora o clima de tensão e confinamento vivido
pelos integrantes da esquerda armada naquele período, é considerado o melhor filme
sobre a temática e levou cinco prêmios no Festival de Cinema Brasileiro de Brasília.
Nele, Thiago não aparece representado como aquele guerrilheiro que detém o
domínio racional da situação da atuação das esquerdas, se aproximando no começo da
trama daquela imagem de “jovem inconsequente” construída por algumas memórias
lançadas nos anos 1980. O seu cotidiano no aparelho urbano, contudo, é marcado por
um paradoxo: ao mesmo tempo em que ele se encontra privado de atuar na ação armada
devido a um ferimento à bala, ele tenta, nas suas ações cotidianas dentro do
apartamento, continuar com a sua constante vigilância e “atividade”.
Isso, se adotarmos um prisma de análise de gênero, acaba nos levando a uma
afirmação da sua atividade. Essa postura de fazer ações corriqueiras parecer quase ações
de guerrilha em campo de batalha pode ser vista como uma preocupação de explicitar
essa atividade mesmo em um momento difícil. A atenção aqui se deve para o fato de
que a dicotomia atividade/passividade tem sido relacionada, historicamente aos homens
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e às mulheres, seja do ponto de vista sexual ou do domínio do espaço público. Ou seja,


essa atenção por parte da personagem pode ser entendida como uma afirmação da sua
masculinidade num contexto em que ela se apresentava totalmente “castrada” da
possibilidade de atuação num espaço público, no caso, no combate a ditadura.
Algumas cenas do filme explicitam essa atividade guerrilheira de Thiago a todo
o momento dentro do aparelho. Logo no começo do filme, a “neurose” do guerrilheiro
ferido aparece quando ele se dirige ao banheiro e, assim que ouve alguns barulhos na
casa, começa a demonstrar uma preocupação exagerada com a segurança, quase
injustificável, uma vez que era apenas a presença de Pedro, dono do apartamento que
servia como aparelho, que causara os barulhos. Numa cena posterior, quando Thiago vai
pegar comida na geladeira, a sua ação fica ainda mais evidente. Preocupado com a
possibilidade de estar sendo vigiado pela janela da cozinha, o guerrilheiro vai rastejando
armado pelo chão do cômodo até a geladeira, onde pega um queijo e uma maçã. Em
outra sequência, da mesma natureza, transparece a total tensão que um simples ato de
escovar os dentes ganha em razão do toque da campainha pela sua vizinha, a idosa Dona
Nenê, interpretada por Bri Fiocca. Isso mesmo, escovar os dentes, pegar comida na
geladeira e ir ao banheiro se transformam em ações perigosíssimas no cotidiano de
Thiago. No continuar do filme, até o toque do telefone será motivo para o guerrilheiro
apontar uma arma para o aparelho...
Um ponto importante, também, ligado à atividade de Thiago dentro da
organização armada é o constante nervosismo com o seu afastamento das ações diretas.
Isso acaba fazendo com que algumas de suas falas ganhem tons “irracionais”, já que
parecem totalmente inconsequentes. Em diálogo com o experiente militante Mateus,
interpretado por Jonas Bloch, o seu desejo de voltar a “ativa” é facilmente visto como
desprendido de qualquer possibilidade concreta, visto que, naquele momento, a
repressão aumentava cada vez mais sobre as organizações clandestinas e Thiago ainda
estava bastante ferido. Durante o filme, essa postura volta a parecer em inúmeros
momentos, inclusive, com a especulação da sua parte de criar uma nova célula para
continuar a luta.
Não são apenas, porém, pontos ligados à atividade em oposição à passividade
que indicam esse lado masculino de Thiago. A sua falta de sensibilidade e o tom
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autoritário de suas falas também indicam essa acentuação de aspectos historicamente


associados à figura do homem.
As cenas iniciais em que ele dirige a palavra à militante Rosa, interpretada por
Débora Duboc, são marcadas por um tom de voz rude e por um tom autoritário em
relação à sua companheira de organização. Em outras cenas, a sua falta de sensibilidade
ganha força, como no diálogo com Pedro quando o dono do apartamento conta o
episódio em que Dona Nenê teve um problema cardíaco e foi socorrida por ele,
recebendo uma reação totalmente indiferente, e até grosseira, por parte de Thiago. Na
ocasião da morte de Dona Nenê, essa insensibilidade fica mais clara quando ele não
compreende a explicação da morte dada por Rosa. A “solidão”, na cabeça do
guerrilheiro, não causa a morte de ninguém.
Mas, durante a trama observa-se que esse Thiago frio, neurótico com a
segurança, e autoritário em algumas falas vai se “desarmando”, como assinala Marcia
Santos. Duas personagens, porém, parecem ser as grandes responsáveis por essa
mudança na perspectiva de Thiago, que volta a se preocupar mais com aspectos da sua
vida pessoal em detrimento das dificuldades da luta armada – mesmo que não
completamente – e se mostra menos “paranoico” com a sua estadia no aparelho. Estas
personagens são a militante Rosa e a vizinha mais velha Dona Nenê.
A primeira é primordial nessa transformação de Thiago e merece uma análise
mais precisa. Militante do quadro da organização, ela é escalada para cuidar dos
ferimentos do protagonista e servi-lo no que for necessário. Tal observação aqui é
essencial. Lembrando-se das pesquisas de Bastos e Nascimento, temos que as mulheres,
no cotidiano dos aparelhos, acabavam sendo encarregadas dos trabalhos tipicamente
domésticos como limpeza, alimentação e o cuidado com a casa, trabalhos que dentro do
sistema de hierarquias e valores das organizações de esquerda, como também já visto,
não eram os mais valorizados. De maneira similar, a personagem Rosa é de forma quase
“natural” a responsável pelas tarefas domésticas do apartamento de Pedro – como a sua
tarefa de providenciar uma cortina para colocar na cozinha como medida de segurança,
além do preparo da comida e outros afazeres do lar.
Outra característica dessa personagem que interessa a uma análise que atente
para as representações significadas pelas relações de gênero é o fato de Rosa ser
construída a partir da explicitação das suas preocupações com os aspectos emocionais
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da vida como os relacionamentos amorosos e os sentimentos das outras pessoas, como a


solidão que matou Dona Nenê. Essa particularidade acaba colaborando para a
cristalização do senso comum – que acaba justificando uma série de hierarquias de
gênero –, que associa as preocupações com o âmbito privado e o sentimentalismo
apenas a mulher, tendo como contraponto, o homem representado como expoente da
racionalidade e das grandes causas.
Esse tipo de movimento que favorece a essêncialização fica reforçado quando,
durante o filme, o processo de humanização de Thiago vai se construindo
principalmente com a aproximação do guerrilheiro com Rosa – e, também a Dona Nenê.
Não é difícil perceber que, após as cenas de diálogos mais apurados entre os dois e o
aumento do afeto entre as personagens, Thiago cada vez mais vai diminuindo aquela
neurose com a segurança – embora ela permaneça em algumas cenas – e a ansiedade
exagerada para voltar às ações diretas para se preocupar com aspectos tidos como
sentimentais e referentes ao âmbito privado da sua vida.
Mas, não é só a militante Rosa a mulher que vai acabar sendo a responsável por
“humanizar” o guerrilheiro. Dona Nenê, aqui, também tem um papel de destaque.
Fugida da ditadura franquista junto com o marido após perder o filho pela repressão,
Dona Nenê acaba tendo uma aproximação com o guerrilheiro depois de alguns
primeiros contatos frustrados. Essa proximidade chega ao ponto de Thiago, ignorando
as regras de segurança – conforme sua própria fala –, ir jantar em sua casa. A partir daí,
é criado um vínculo entre os dois personagens que acaba fazendo com que o
guerrilheiro perceba pontos mais sensíveis presentes na realidade de diferentes regimes
ditatoriais, além de construir uma relação de amizade antes impensada pelo
protagonista.
Mais uma vez, pode-se perceber que aspectos tidos como “femininos”, como o
cuidado com questões mais íntimas, são apresentadas de forma mais clara apenas nas
personagens mulheres favorecendo a associação direta da mulher com tais adjetivos.
Uma cena que ilustra essa dicotomia entre questões masculinas e femininas em relação
às ditaduras é um diálogo entre Thiago e Dona Nenê, após o jantar e ainda na casa da
espanhola. Trocando experiências sobre a ditadura no Brasil e na Espanha de Franco,
Thiago demonstra todo o seu “racionalismo” dizendo que os contextos são muito
diferentes, mesmo que os regimes possam ser de exceção. Já Dona Nenê, alerta o jovem
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que em situações extremas como estas, tanto na Espanha quanto no Brasil, “as perdas
são as mesmas”... Essas falas se encaixam perfeitamente nas representações e
construções de saberes de longa duração entre os mundos masculino e feminino, onde o
racional tem endereço certo no primeiro sexo e as emoções no último.
Assim, a “humanização” de Thiago identificada por Sousa Santos, através dessa
análise sob o prisma das relações de gênero, se torna inteligível uma vez que o
guerrilheiro vai se aproximando de Rosa e Dona Nenê durante a trama, ambas
construídas como pessoas extremamente sensíveis e atentas para questões emocionais e,
até, existenciais. As caracteristicas masculinas de Thiago começariam a se mesclar com
as dessas duas personagens tirando o guerrilheiro de uma posição mais próxima dos
mitos-heróis de filmes como Lamarca, e tornando-o mais complexo, em resumo, mais
“humano”.

4. Conclusão

Após mergulhar em alguns estudos acerca da atuação das mulheres nas ações
armadas no Brasil e dos usos das representações de gêneros para a hierarquização dos
membros dessas organizações, acarretando na posição inferior ocupada pela mulher no
interior dessas organizações e analisar a representação do guerrilheiro Thiago no filme
Cabra-Cega, podemos fazer algumas reflexões conclusivas.
Sobre a participação das mulheres na luta armada contra a ditadura, seguindo as
autoras apresentadas, podemos ver que a confluência de dois fatores parecem ter
favorecido a posição que estas mulheres encontraram nessas organizações. Primeiro, foi
o conjunto de características valorizadas na moral desses grupos, que acabaram
privilegiando aquelas que historicamente são associadas ao sexo masculino.
Imprescindível, contudo, é deixar claro que somente isso não pode ser apontado como
fator responsável pelas hierarquias desiguais que se construíram entre homens e
mulheres nas guerrilhas, uma vez que existiam – e existem! – mulheres que tinham estas
características ainda mais explícitas do que em muitos homens. Porém, o que as
pesquisas apontam é que mesmo apresentando tais qualidades, muitas mulheres tiveram
que se “masculinizar” para ganharem prestigio ou, simplesmente, era ignorada a
existência de coragem ou frieza necessária para as ações diretas pelo simples fato da
militante ser mulher.
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O segundo fator foi a continuidade das distribuições de tarefas entre homens e


mulheres, extremamente desiguais, no interior dessas esquerdas. Dentro do aparelho,
esperava-se das mulheres a execução das tarefas domésticas e, na maioria das vezes,
utilizava-se a representação sensual da mulher para a obtenção de informações e
privilégios nas formulações de estratégias dos grupos. O resultado disso acabou sendo a
exposição ainda maior ao perigo e a posição inferior dentro dos quadros em que estas
mulheres estavam inseridas. Quadro que se distancia daquela memória de libertação
construída, principalmente, na década de 1990.
Sobre a representação do guerrilheiro no filme Cabra-Cega, aquele caráter
“humano” de Thiago, apontado por Marcia Santos, se visto do prisma de uma análise de
gênero, como feito acima, nos leva a observar que o seu processo de humanização foi se
acentuando conforme a aproximação de aspectos do mundo feminino, maior
sensibilidade e preocupação com a vida privada, por exemplo. Concomitantemente,
como observado, esse processo vai se reforçando conforme a aproximação das
personagens Rosa e Dona Nenê. Ambas mulheres...
Dessa forma, se o filme contribui para a construção de uma memória que se
afasta dos estereótipos apresentados em outros filmes, como Lamarca, saindo daquele
herói-guerrilheiro típico, apresentando um guerrilheiro mais humanizado253, o mesmo
não se pode dizer se olharmos a associação de aspectos como sensibilidade, valorização
da vida privada e menor primazia da “razão” à mulher. Pois, é justamente a
aproximação progressiva de Thiago em relação às personagens de Rosa e Dona Nenê
que fomenta a maior humanização da personagem durante o longa-metragem.
Essencializando, de certa forma, estas características ao sexo feminino, como se elas
não pudessem ser encontradas em homens que não tenham contatos e relações com
mulheres, contribuindo para uma naturalização dessas ligações diretas que acabam

253
“Enfim, o filme Cabra-Cega propõe uma leitura cinematográfica da luta armada significativamente
diferente dos filmes anteriormente analisados. O guerrilheiro não é apresentado de forma simplista e
monolítica, como costumava predominar nas representações cinematográfica sobre o tema. Ele não deixa
de ser o protagonista da trama, de ter o seu papel político valorizado nas telas, mas não é mais o
guerrilheiro-herói, impecável em suas atitudes, com discursos didáticos e altamente convincentes, que
possui uma visão madura e total discernimento sobre o momento histórico do qual participa. Sobressai-se
o lado humano desse guerrilheiro, que comete erros, que se angustia com as escolhas feitas, que ora está
convencido das causas políticas pelas quais está lutando e ora está em busca dos afetos e da vida
particular perdidos.” SANTOS, op. cit, 75.
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legitimando uma série de formas de violência simbólicas, físicas e morais às mulheres


até os dias de hoje.
Assim, neste breve artigo tentou-se trazer uma análise da representação do
guerrilheiro no filme Cabra-Cega de modo a promover reflexões e um diálogo com
outros trabalhos já feitos sobre o tema nos programas de pós-graduação. Mostrando que,
embora muitos argumentem o contrário, é possível fazer análises a partir de um
arcabouço teórico de gênero que não digam respeito apenas a um campo de
conhecimento específico. Mesmo que requeira, sem dúvida, maiores esforços da parte
dos pesquisadores, esse esforço é justificado em prol do compromisso com o
conhecimento histórico e com as inúmeras lutas dos movimentos políticos que estão
ocorrendo pelo mundo. Não poderiam ser mais atuais, logo, as palavras de Hobsbawm...

Bibliografia:
SOIHET, Rachel e PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das
Mulheres e das Relações de Gênero. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.
27, nº 54, p. 281-300 – 2007.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.
SANTOS, Marcia de Souza. A ditadura de ontem nas telas de hoje: representações da
ditadura militar no cinema brasileiro contemporâneo. (Dissertação de mestrado,
Universidade de Brasília, 2009)
NASCIMENTO, Mirian Alves do. Relações de gênero e a participação das mulheres
na Nova Esquerda no Brasil (1964-1979). Disponível em:
(http://www.encontro2012.historiaoral.org.br/site/anaiscomplementares#M) Último
acesso em 17/12/2013.
SOIHET, Rachel. Violência simbólica: saberes masculinos e representações femininas.
IN: Revistas Estudos Feministas, Florianópolis, v.5, n. 1, 1997.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Disponível em:
(http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=2&v
ed=0CDEQFjAB&url=http%3A%2F%2Fdisciplinas.stoa.usp.br%2Fpluginfile.php%2F
6393%2Fmod_resource%2Fcontent%2F1%2FG%25C3%25AAnero-
VI Cultura e Memória
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Joan%2520Scott.pdf&ei=vZawUq_XIcXJkAfjtoHQBg&usg=AFQjCNF9R4lLc5ntrRt0
gN-hixYtcop-Nw&sig2=u2Tc-GfJvJhPzraTP59Pew) Último acesso em 15/12/2013.
BASTOS, Natalia de Souza. Perdão então, eu sou gente para mais além do meu sexo: A
militância feminina em organizações da esquerda armada. IN: Gênero, Niterói, v.8,
n.2, p-43-71. sem. 2008.
BACK, Lilian. Moral revolucionário e a construção do “homem novo” na esquerda
armada revolucionária. IN: Anais ANPUH, São Paulo, Julho 2001.
CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólicas. IN: Cadernos
Pagu, (4) 1995: pp. 37-47.
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro Paz e Terra, 1992.

Revolução Sessentista: os desdobramentos da moda feminina brasileira


em 1960.
Ewennye Rhoze Augusto Lima
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

(Bacharelanda, UFCG, ewennye@hotmail.com)

Raquel da Silva Guedes


(Bacharelanda, UFCG, raquel.silva.guedes@gmail.com)

Elton John Silva Farias


(Mestre em História pela UFCG e Professor em História na UFRN)

1. Introdução.

Infelizmente o estudo da indumentária tem sido pouco contemplado nas pesquisas


históricas – muitas vezes tido como uma ‘futilidade’, é renegado por muitos
pesquisadores, pois estes não a consideram como uma expressão verossimel do contexto
historico. Para além, alguns autores consideram a moda como uma expressão puramente
elitista elitista.
Desta forma, este trabalho propõe demonstrar que além do estudo da moda ser
importante para as ciências humanas também o é para a sociedade, tendo em vista que o
vestir não se resume a uma classe social. Por isto, através do período ditatorial brasileiro
podemos perceber como a indumentária foi uma forte representação daqueles que
lutavam por revoluções políticas, sociais e culturais.
Diante do que propomos, organizamos este artigo cientifico em pontos que
perpassam o estudo da moda nas ciências humanas e a importância da moda no período
do Golpe Militar Brasileiro – onde neste dividimos em subtópicos, observando
primeiramente o contexto histórico nacional e conseguinte como a moda foi uma
representação deste período. Por fim, concluímos o nosso estudo com as considerações
devidas.
Sendo assim, esperamos contribuir não só para os estudos historiográficos, mas para
uma nova concepção social – mesmo sendo extremamente mutável a moda foi e é uma
expressão de alegria, dor, coragem e sufrágio, como podemos perceber através da
Ditadura Brasileira.

2. A moda nas ciências humanas.

“O conceito de moda, como sequência de variações constantes, de caráter


coercitivo, é empregado pelos estudiosos da sociologia, da psicologia social
ou da estética em dois sentidos. No primeiro, mais vasto, abrange as
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transformações periódicas efetuadas nos diversos setores da atividade social,


na política, na religião, na ciência, na estética – de tal forma que se poderia
falar em modas políticas, religiosas, cientificas e estéticas, etc.” (MELO E
SOUSA, 1987, pp.19)

Gilda de Melo e Sousa, quando escreveu esse parágrafo na introdução de ‘O


Espírito das Roupas’, apresenta um questionamento múltiplo, que até hoje tem sido
uma proposição para a historiografia que poderia se tornar uma proposição mais
enfática para a historiografia, haja vista que poucos são os historiadores de formação
que se debruçam sobre o tema: o que é moda? Esta pergunta muitas vezes é respondida
pela sociologia ou pela filosofia de modo que autores como Maria das Graças Setton,
Pierre Bourdieu e Gilles Lipovétsky pensam a moda como um fator importantíssimo
para o estudo das questões sociais: “[...] a moda atua sobre as exterioridades, sobre as
facetas de nossa vida orientadas para a sociedade. Completa a identidade social dos
agentes. A obediência à moda exprime um jogo entre os indivíduos e as forças
socializadoras exteriores” (SETTON, 2010, pp. 123), ou seja, os campos em que a moda
tem a possibilidade de exercer o seu poder são tanto os espaços físicos que o individuo
esta inserido como as peculiaridades da vida social, respaldando a identificação que os
indivíduos possuem para com a sociedade. Seguir esta moda significa estar numa
relação de dominação entre a sociedade e o indivíduos conscientemente.
Pierre Bourdieu é tido como um dos maiores sociólogos do século XX. Suas
produções, desde a década de 1960, vêm criticando as ferramentas de reprodução das
desigualdades sociais. Além disto, o mesmo é percussor em temáticas como a moda –
acerca desta, Bourdieu pondera que observá-la como uma prática cultural nos possibilita
entender o diálogo entre o individuo e a sociedade, tendo em vista que o autor mensura
a mesma como uma visão legitima de um gosto individual num meio onde há uma luta
pela imposição de uma tendência, assim como também há uma disputa pela autoridade
através de um poder simbólico no mundo social – inclusive Pierre enfatiza que o
segredo deste poder estaria no prestigio e/ou honra associado as relações sociais
capitalizadas (SETTON, 2010, pp. 123).
Entendendo esta prática cultural compreenderíamos por tabela a relação entre o
mundo material e o mundo simbólico, assim como os recursos que os grupos sociais
usam para se diferenciar uns dos outros (SETTON, 2010, pp.121). A moda, seus meios
de socialização e maneiras de controle seriam práticas pelas quais se manteriam coesos.
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ISBN: 978-85-415-0440-9.

A nossa escolha por participar de algum destes grupos, como salienta Bourdieu, jamais
seria neutra ou neutralizada, tendo em vista que tais escolhas são fruto do meio e da
estrutura social em que vivemos – e assim, buscaríamos nos identificar com nossos
“pares”. Desta forma, perceberíamos a moda a partir das considerações deste autor
como mais um fator que subjulga os indivíduos numa sociedade capitalista, classista e
que é profundamente excludente.
Já Maria da Graça Jacintho Setton, socióloga e docente da USP, observa a
importância da moda através de três perspectivas: a) o processo de socialização que a
moda promove entre os indivíduos através da sociologia da cultura254; b) em seguida, a
autora pondera que através do conceito de habitus255 é possível observar a moda como
um diálogo entre os indivíduos e/ou os grupos com a sociedade, resultando na expressão
destes; c) por fim, Setton também pontua que a ideia de distinção é fundamental para
compreender a moda tendo em vista que, além de socialização, existe uma classificação
hierárquica dos grupos sociais promovida por tal identificação.
Para além da sociologia, o filosofo francês Gilles Lipovétsky prontificará nas
obras ‘Os Tempos Hipermodernos’ (2004), ‘O Luxo Eterno’ (2003) e ‘A Era do Vazio’
(1983) a densa ligação entre moda e modernidade, até a atualidade, criando a partir
destes estudos o conceito de hipermodernidade, ou seja, como a nossa sociedade pós-
moderna perde o interesse nas instituições morais, sociais e políticas ao mesmo tempo
em que supervaloriza uma sociedade hedonista que convive com inúmeros

254
Raymond Williams, em texto de 1981, assim define a sociologia da cultura: “dentro das categorias
tradicionais, a sociologia da cultura é encarada como uma área ambígua. Nas listagens mais comuns de
campos da sociologia, ela é incluída, quando isso acontece, como um dos últimos itens: não apenas depois
do material mais consistente sobre classes, indústria e política, família ou crime, mas também como um
tópico de variedades depois das áreas mais definidas da sociologia da religião, da educação e do
conhecimento (...). A moderna convergência, incorporada pela sociologia contemporânea da cultura, é de
fato uma tentativa de reelaborar, a partir de determinado conjunto de interesses, aquelas idéias gerais,
sociais e sociológicas, nas quais foi possível conceber a comunicação, a linguagem e a arte como
processos sociais marginais e periféricos ou, quando muito, como secundários e derivados. Uma moderna
sociologia da cultura, quer em estudos que lhe são peculiares, quer em suas intervenções numa sociologia
mais geral, preocupa-se acima de tudo em investigar, ativa e abertamente, a respeito dessas relações
possíveis e demonstráveis. Como tal, ela não só está reelaborando sua própria área, como propondo novas
questões e novas evidências para o trabalho geral das ciências sociais”. Cf. WILLIAMS, 1992, pp. 09-10.
255
O conceito pode ser entendido da seguinte maneira, para Setton: “conceito capaz de conciliar a
oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais. Capaz de expressar o diálogo, a
troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades. Habitus é
então concebido como um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições
estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em
condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir
cotidiano”. Cf. SETTON, 2002, p. 63.
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antagonismos, plenamente representada pela moda (LIPOVÉTSKY, 2003, pp. 18-21).


Todavia, a obra que desejo ressaltar para este trabalho é ‘O Luxo Eterno’, na qual o
autor estabelecerá uma espécie de “arqueologia do luxo” da qual se extrai a percepção
de que, ao decorrer da História, este foi sendo estabelecido como símbolo de distinção
social, acentuado o desejo dos indivíduos assim como das classes sociais, o que acirrava
a disputa por um lugar de destaque – o de desfrutar ou possuir este “luxo”. Deste o
maior símbolo seria a moda e a modernidade, com suas efemeridades.
Diante de tantos autores apresentados, faz-se necessário que para além do estudo
teórico observemos a moda e sua relevância nos momentos tidos como históricos, a
exemplo do Golpe Militar de 1964.
3. A importância da moda na Revolução Sessentista256.

3.1 A Ditadura escancarada.

O tiro de Getúlio Vargas frustrou a nação brasileira. Antes de sua misteriosa morte,
Vargas obtinha uma forte articulação política e um plano de governo
desenvolvimentista com ênfase na indústria e nos investimentos para o mercado interno
e externo. Juscelino Kubitschek, sucessor presidencial, deu continuidade ao trabalho de
crescimento industrial e econômico, construiu Brasília em seu plano de governo
intitulado de “50 anos em 5”, mas esqueceu da camada dos trabalhadores que tinham
um piso salarial baixo e passavam por grandes dificuldades financeiras. Em 1961 Jânio
Quadros assumiu a presidência, tratava-se de um populista que possuía como vice-
presidente João Goulart, este assumiu a presidência em menos de nove meses devido a
renuncia do então presidente em ofício por grande pressão exercida pelo Congresso
Nacional devido a sua aproximação com segmentos políticos ditos revolucionários.
João Goulart não se encontrava no Brasil quando a ordem de sua deposição foi
lançada pelos manifestos organizados por militares. A reinvindicação popular fez com
que Jango, exercesse seu papel de presidente, desde que o regime parlamentarista fosse
adotado, nesses termos, o então presidente governou por dois anos a máquina nacional,
até que em março de 1964, a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil
realizou uma assembleia no Sindicato Metalúrgico para debater a situação do governo e

256
Termo utilizado por alguns autores para nomear o Golpe Militar Brasileiro de 1964.
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sobre as revoltas das marinhas internacionais. Deu-se a partir de então o início da


mobilização do Golpe Militar.
Por outro lado, as camadas populares atuavam fazendo mobilizações devido ao
descaso com que a saúde, educação e o trabalhador eram tratados pelo governo.
Marchas, sindicatos, reuniões eram realizadas em prol de tentativas de uma melhoria.
Assim, a população e determinados setores do governo nacional apoiados pelos
militares passaram a cogitar a deposição de Jango da presidência. Desde então, a
situação apenas piorou, foi promovida mobilizações em comícios presidenciais, a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que levou as ruas de São Paulo cerca de
500 mil pessoas contrárias a Jango, e nos dias seguintes rompimentos de outros
membros eleitorais com o presidente, entre eles os representantes de Minas Gerais que
mandou todas as suas frotas militares em marcha para o Rio de Janeiro.
Desta maneira, no dia Primeiro de Abril, Jango decide abandonar a presidência por
tamanha pressão e exila-se no Uruguai em dias seguintes, enquanto isso assume o poder
presidencial o presidente da câmara dos deputados Ranieri Mazilli. A partir desse
momento, instala-se no Brasil uma época de forte repressão aos inimigos e a oposição
militar.
Inicialmente, os militares não dominaram abertamente o governo, eles foram a
passos lentos dominando todas as instâncias do governo. O primeiro militar a tomar a
frente presidencial foi Castelo Branco, em seu governo os trabalhadores foram mais
atingidos pela ditadura, o Ministério da Educação e Cultura teve que atuar sobre ordens
militares, modificando sua elaboração de ensino, excluindo a disciplina de História e
Filosofia do ensino regular, e generais foram colocados nas universidades para garantir
a não rebelião estudantil.
As correntes que estavam sendo colocadas na população geraram conflitos,
denuncias, insatisfação e rebelião da sociedade. Para manter a população no eixo, Atos
Instituicionais foram criados pelos militares de maneira que pudessem manter a
população e os membros da oposição inertes a reações. O mais rude de todos foi o Ato
Instituição número 5, criado sob comando de Artur da Costa e Silva, a partir deste, era
possível que o presidente, fechasse o Congresso, a Assembleia Legislativa e Câmaras
Municipais, suspender por dez anos o direito político das pessoas, demitir funcionários
públicos e decretar estado de sítio.
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Foi sob este Ato que a repressão se intensificou, com a não aceitação popular e os
ditos inimigos do estado a solta, cassadas foram efetuadas, prisões, torturas, exilamentos
e mortes se tornaram a realidade do país. As práticas de tortura eram lançadas com
choques, pau de arara, violência física, moral, estupro seguido de morte. Muitas pessoas
desapareceram nesta época, foram perseguidas, estiveram sob custódia em quanto o
governo tirava o foco do país para a Copa do Mundo.
Em 1969 Costa e Silva sofre um derrame cerebral e afasta-se do seu cargo, uma
junta provisória foi montada até que as eleições indiretas fossem efetuadas e nesta foi
escolhido Emílio Médici que fez a economia do país andar enquanto ainda praticava
uma tortura a oposição mais disfarçada. Com o fim de seu mandato, Ernesto Geisel, este
responsável pela gradativa abertura política nacional diante de todos os impasses
econômicos que a ditadura deixou ao Brasil. Em seu mandato, Geisel passou a escolher
indiretamente governadores, senadores, não tomou medidas drásticas diante da greve
dos metalúrgicos em São Paulo, revogou o AI-5 e determinou a extinção da censura no
Brasil.
João Batista Figueiredo, aprovou a Lei de Anistia, permitindo que os exilados
retornassem ao Brasil, a população ganhou mais voz e passou a intensificar os protestos,
greves e violência as entidades civis. A mobilização popular em massa resultou no
movimento das Diretas Já que reivindicavam as eleições diretas no país. Uma nova fase
estava sendo iniciada no país.

3.2 Moda e revolução.

A década de 1960 foi marcada pelos movimentos revolucionários em vários


países do mundo. Assim como as artes, a moda se apresentou como uma legitima
representação do momento vivido, transformando os trajes em um idioma democrático,
onde os indivíduos se expressavam de forma pugente. Em relação a isto Chataignier
(CHATAIGNIER, 2010, pp.138) menciona:

“Um dos pontos mais intrigantes dos anos 1960 referia-se ao novo mercado
da moda, que, por muito tempo, atrelava-se ao modelo de alta-costura e á
elite socioeconômica, representada por mulheres maduras e ricas. Desde os
sessenta, no entanto, o surgimento do prêt-á-porter, o pronto pra usar,
possibilitou a mudança radical da moda, cuja imagem central passou a girar
em torno do universo da juventude.”
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Através desta menção podemos observar questões fundamentais para o


entendimento das modificações que houveram; primeiramente podemos perceber que o
bem vestir, a partir da década de 1960, não se resumo mais ás mulheres da elite, mas
este ato passa a alcançar uma parcela maior da população com o advento do pronto para
usar, que seriam as peças advindas de uma linha de produção. Desta forma, as peças
que anteriormente eram feitas por costureiras e alfaiates, voltadas para as senhoras,
passaram a ser produzidas para as jovens que ansiavam por novos tempos. Além do
pronto para usar, as moças de classe média também frequentavam botiques (pequenos
estabelecimentos onde a dona era quem atendia e dava as dicas de moda) e ainda faziam
uso de pequenas costureiras, que se locomoviam até as casas das clientes.

Tema: Eva Tudor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila, Lara e Norma Bengell liderando passeata em 1968.
Em uma década rica em estilos, cores e estampas, a palavra de ordem para este
período passa a ser ‘jovialidade’. Nesses novos tempos a juventude de fato se manifesta
e se impõe, revindicando mais liberdade. Um exemplo dessa necessidade de liberdade
foi a minissaia – importada de Londres, se adaptou as pernas brasileiras e se tornou um
sucesso nacional. As estampas geométricas, curvilíneas e ultracoloridas transformavam
minissaias e minivestidos em peças alegres, chamativas e expressivas. Além do
comprimento e estampas, os tecidos e os modelos também eram modificados – a força
estudantil impetrava o jeans como sua farda.
Mulheres jovens que buscavam mudanças, mas também sonhavam – e entre seus
inúmeros sonhos, estavam os que a corrida espacial fomentara. A ideia de futuro fazia
com que looks inusitados surgissem, como os macacões de malha, as calças mais
apertadas e ate mesmo os zíperes. Novos materiais como plástico, acrílico, placas de
metal e arame passaram a fazer parte dos modelitos mais ousados. O viver na terra
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passou a ser questionado e o desejo de ir para o espaço e se afastar desta realidade tão
dura encantava algumas cabecinhas.
Dentre as contestações feitas através das roupas, o movimento Hippie foi uma
nova maneira de vestir, falar, dançar e pensar. O autor BRAGA (2007, pp.89) pontua:
“A Rebeldia foi a ordem da época, e a semelhança das roupas impedia classificar as
pessoas em diferentes [...]. Esses jovens se rebelavam contra a vida de seus respectivos
pais, contestando-os e agredindo-os com um visual inusitado. Eram os hippies [...]”. Os
hippies eram contestadores por não fazerem parte de uma sociedade consumista,
criticando as guerras e pregando a paz nos bordados de suas roupas, nos cabelos longos
e despenteados e nas bocas de sino.
4. Conclusão

Para além de um mero tecido que cobre o corpo, a indumentária é uma arte, uma
maneira de expressar-se em si mesmo. Prova cabal foram todos os estilos que
emergiram na década de 1960 – um período conhecido pela repressão, mas também
lembrado pelos movimentos a favor da liberdade, da pluralidade, do feminismo e da
paz. Uma década onde as pessoas vestiram o que lhes representava e foram as ruas
contra os ditadores e as ditaduras.
Por isso faz-se necessário que haja o reconhecimento da moda como uma
expressão legitima de resistência a ditadura e seus carrascos. Por fim, parafraseio Zuzu
Angel, que na década de 1970 se tornou um exemplo de como a alienação, através do
sofrimento que a ditadura causou, se transformou em militância nas passarelas: “Roupa
não tem importância. Moda tem. É um documento histórico. É criação e liberdade.”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MULHERES E FEMINISMO NAS PÁGINAS DO JORNAL OPINIÃO

Ana Maria Barros


Professora do Departamento de História da UFPE
E-mail: annamar_pe@yahoo.com.br

Fernanda Rocha da Costa


Aluna do 5° Período de História/Bacharelado da UFPE
E-mail: fernandarochaibura@gmail.com

Yndiara Maria da Silva


Aluna do 5° Período de História/Bacharelado da UFPE/ Bolsista PROAES
E-mail: yndiara_silva@hotmail.com

Resumo: A pesquisa, “Mulheres e Feminismo nas Páginas do Jornal Opinião”,


coordenada pela Professora Ana Maria Barros, do Departamento de História da UFPE,
tem por objetivo lançar um olhar sobre o recrudescimento do feminismo a nível
mundial na década de 1970, assim como a atuação das mulheres brasileiras, diante da
censura, prisões e suspensão dos direitos políticos, durante o período ditatorial
(1964/1985). Além do Jornal Opinião, órgão pertencente à Imprensa Alternativa,
pretende-se utilizar os relatos dessas mulheres, que tiveram atuação no movimento. A
história Oral, antes vista com certa desconfiança pela Academia, hoje vem ganhando
grande destaque e credibilidade pois, através de relatos pessoais e histórias de vida,
podemos construir as muitas histórias e memórias de uma sociedade. É a história dentro
da história. Em pesquisa preliminar, vê-se que, em meados da década de 1970 renascia
o feminismo e com ele o desejo de mudança, no que dizia respeito ao papel da mulher.
Era a revolução dos costumes. Revolução contra o machismo, o papel subalterno da
mulher dentro e fora do lar. Era a mulher, provando a sua capacidade de ler, agir e
reinventar seu papel tanto o cenário político, quanto tomar as rédeas da própria vida. E a
mulher brasileira não fugia à essa luta.
Palavras-chave: Mulher; Ditadura; Mídia alternativa;

WOMEN AND FEMINISM IN THE NEWSPAPER'S OPINION PAGES


Abstract: The research, "Women and Feminism in the pages of the Newspaper
Opinion", coordinated by Professor Ana Maria Barros, the history Department of UFPE,
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aims to launch a look at the resurgence of feminism globally in early 1970, as well as
the performance of Brazilian women, in the face of censorship, imprisonment and
suspension of political rights, during the dictatorial period (1964/1985). In addition to
the Opinion Journal, organ of the Alternative Press, is to use the reports of these
women, who had expertise in motion. Oral history, before vista with some suspicion by
the Academy today is gaining great prominence and credibility because, through
personal stories and life stories, we can build the many stories and memories of a
society. Is the story within the story. In preliminary research, it is seen that in the mid-
1970 was born again the feminism and with it the desire for change, in what concerned
the role of women. It was the revolution of manners. Revolution against the machismo,
the subordinate role of women within and outside the home. It was his wife, proving his
ability to read, Act and reinvent their role both the political scenario, as taking the reins
of life itself. And the Brazilian woman didn't run to this fight.
Keywords: Woman; Dictatorship; Alternative media;
Introdução
A estratégia de ouvir atores ou testemunhas de determinados acontecimentos,
não é novidade. Heródoto, Tucídides e Políbio, historiadores da Antiguidade já
utilizavam esse método para escrever sobre os acontecimentos de sua época.
O relato pessoal deixou de ser visto como algo exclusivo do seu autor, sendo
capaz de transmitir uma experiência coletiva, uma visão do mundo que se torna possível
em determinada configuração histórica e social. Surgiram novos objetos e os
historiadores se interessaram pela história do tempo presente, os costumes, a vida
cotidiana, a família, temas que podem ser apreendidos através da metodologia da
história oral. A história oral, sempre foi, com a utilização de entrevistas, um caminho
deveras importante para se conhecer e registrar, as múltiplas possibilidades que se
manifestam e dão sentido á forma de vida e escolhas dos diferentes grupos
A entrevista, na história oral, deve ser vista como um ‘’documento-
monumento’’, segundo a definição de Jacques Le Goff. O monumento, como é sabido,
tem como característica a intencionalidade, uma vez que é construído para perpetuar a
memória de algum acontecimento ou indivíduo. É essa a idéia trazida para o
documento-monumento, cuja produção resulta das relações de força que existiam e
existem nas sociedades que o produzem. Assim, o pesquisador que trabalha com a
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referida ferramenta, como fonte, deve ser capaz de analisar as condições de sua
produção, desmontá-las para utilizá-las com pleno conhecimento de causa. A utilização
das fontes orais nesse sentido não é simples, tanto sua produção, como sua analise,
precisam de uma preparação consciente e aprofundada. Essa será a nossa intenção,
quando, no decorrer do trabalho, fizermos a análise dos fatos, através das entrevistas,
artigos e documentos privados dessas mulheres que, no período em análise, os
governos militares (1964-1985), tiveram ação importante e, até mesmo as que não se
tornaram grandes heroínas, mas que, a partir da sua luta, passaram a representar
milhares de outras mulheres que, mesmo sem grande atuação, contribuíram para a
formação da imagem feminina da época.
Mulher, Sexualidade e Feminismo
O movimento feminista que nos propomos estudar, é a expressão da exigência
de uma mudança qualitativa, na situação da mulher na sociedade, que vai ter sua
expressão maior a partir da década de 1960. Sendo tratada, ao longo da história, como
propriedade do homem, pai ou marido, a mulher vai emergir na sua plenitude, para
exigir o lugar a que tinha direito na sociedade. O movimento feminista, que vai
eclodir, principalmente no ocidente, vai ser pleno de contradições, tendo, contudo,
sempre um ponto em comum: a revolta contra a opressão da mulher. Para as facções,
como o ‘’New Feminism”257, a bandeira de luta não se limitava aos direitos civis da
mulher, mas, também á sua liberação, em um sentido mais amplo, ou seja, da abolição
de todos os tabus sexuais; abolição dos papeis sexuais impostos á mulher pelo sistema;
abolição da família nuclear; abolição da responsabilidade exclusiva dos pais e
participação igualitária dos dois nas decisões da família, devendo haver a interferência
jurídica em caso de conflitos, participação política e enfim, a abolição do
patriarcalismo, ou seja, da hegemonia masculina. Nos Estados Unidos, surge, no

257
É uma filosofia que enfatiza a crença em uma integral complementaridade de homens e mulheres,
ao invés de a superioridade do homem sobre a mulher ou as mulheres sobre os homens. Novo
feminismo, como uma forma de feminismo da diferença , apóia a idéia de que homens e mulheres têm
diferentes pontos fortes, perspectivas e papéis, ao defender pela igualdade de valor e dignidade de
ambos os sexos.
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momento que nos ocupamos, sob a liderança de Betty Friedan 258, o ’’consciousness-
raising259’’(o despertar da consciência). A partir desse principio, grupos eram formados
com seis a oito mulheres, que se reuniam para conversar sobre a extinção da sociedade
patriarcal, a dissolução da família nuclear, o fim dos tabus sexuais, etc. Essas ideias,
foram ganhando cada vez mais espaço, até se espalhar pelo mundo. Friedman
salientava que, o sistema patriarcal acabava por fazer da mulher um objeto de
exploração em dois níveis: o da produção de trabalhos domésticos, não remunerados e,
o da reprodução dos filhos, que garantia o fornecimento da mão de obra para o
capitalismo. Assim, as mulheres só poderiam ser livres quando fosse abolido, dentro do
sistema, o poder patriarcal.
No que diz respeito ao Brasil, destaca-se, neste contexto, a atuação de Danda
Prado que nasceu em São Paulo, Capital, em 24 de outubro de 1929. Cursou Pedagogia
e fez pós-graduação em Psicologia Educacional, na USP. Foi militante nos movimentos
feministas no período da ditadura e lutou pela libertação da mulher do patriarcalismo.
Em 1979, Danda Prado retorna ao Brasil, indo morar no Rio de Janeiro, onde
vai articular vários grupos que tinham como objetivo, alçar a bandeira do feminismo. O
Coletivo Mulheres, passa a ser um lugar, onde as militantes feministas, encontravam
espaço para seus debater seus problemas. O Coletivo Mulher será responsável pela
fundação de outros grupos feministas e, pelo Jornal O sexo finalmente Explicito,
também chamado pelas feministas de Nosso Boletim de Campanha, cujas matérias
tinham, como principais bandeiras de luta, a legalização do aborto, a obrigação, pelo
Estado, de distribuição dos medicamentos contraceptivos. Havia ainda, uma

258
Betty Naomi Goldstein, mais conhecida como Betty Friedan, foi uma importante ativista dos Estados
Unidos no século XX.Participou também de movimentos marxistas e judaicos. Em 1963, publicou o livro
"The Feminine Mystique" ("A Mística Feminina"), um best-seller que fomentou a segunda onda
do feminismo, abordando o papel da mulher na indústria e na função de dona-de-casa e suas
implicações tanto para a sobrevivência do capitalismo quanto para a situação de desespero e depressão
que grande parte das mulheres submetidas a esse regime sofriam.

259
É uma forma de ativismo político, popularizado pelas feministas dos Estados Unidos no final
dos anos 1960. É uma forma de chamar a atenção de um grupo maior de pessoas em alguma causa
ou condição.
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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

preocupação por parte do Jornal, com a inserção de temas referentes á sexualidade e


reflexões acerca de problemas políticos e sociais (Opinião. Nº 12, 22/01/73).
Assim, mesmo sem existir ainda no Brasil, nos anos sessenta, um movimento
feminista, a exemplo do que havia na Europa e Estados Unidos, já se percebia após o
golpe militar de 1964, um clima de discussão e reflexão sobre a condição da mulher, e
nos anos 1970 tomou forma, onde se expressavam em pichações, panfletos , artigos de
jornais, faixas, manifestações publicas,a insatisfação das mulheres e denuncias sociais.
Como forma de divulgar, colocando em discussão para a sociedade a situação de
discriminação sofrida pela mulher, os jornais da Imprensa Alternativa, como o Opinião,
o Movimento, Nós Mulheres, Brasil Mulher, etc., tinham uma preocupação de trazer
exemplos de mulheres que, de uma forma ou de outra passavam por situação de
humilhação e constrangimento, a exemplo dos dois casos que citamos abaixo.

Lindonéia: o peso de uma vida.

Lindonéia e, Domitila de Chungara, são duas mulheres, cujas vidas vão ser
mostradas pelos Jornais Nós Mulheres e, Brasil Mulher, ambos, exemplos de
jornais, assim como o Opinião260, da chamada Imprensa Alternativa. Os exemplos
dessas duas mulheres, nos mostram, como os jornais feministas, discutiam temáticas
como a sexualidade feminina e, como a sociedade enxergava o problema.
Lindonéia é uma mulher que, como muitas outras no Brasil, que saem de suas
cidades, em busca de uma vida melhor, na cidade de São Paulo. O que difere Lindonéia,
da grande maioria das mulheres, é que, pela terceira vez, ela estava sendo internada
pelo seu esposo, em um Hospital Psiquiátrico do Estado de São Paulo. O marido

260 O jornal Opinião informa aos leitores que, o movimento feminista tem inicio no ano de
1848, nos Estados Unidos, sendo, sua a maior preocupação, até 1920, a luta pelos direitos civis. A
luta inicial, vai culminar com a conquista do voto pelas mulheres.
Ele afirma que, a contra-revolução das mulheres, em seus primórdios, tem como causa
principal as questões referentes à superestrutura do sistema patriarcal, que relega a estrutura
familiar e a sexualidade. Com isso, fica de lado a estrutura familiar e a sexualidade da mulher.
Segundo Millet, até mesmo nos países que viveram revoluções sociais, os fundamentos da família
continuaram os mesmos.
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alegava. como causa da internação, problemas sexuais, ou seja, Lindonéia era


considerada pelo mesmo como frígida, além de ter uma sexualidade doentia, uma vez
que, ficava excitada, quando via, na rua, homens mais novos e mais bonitos que o seu
marido. No hospital, Lindonéia, após alguns minutos de entrevista, foi diagnosticada
como psicótica maníaco-depressiva.

Lindonéia, dona de casa, esposa e mãe, começou a apresentar os problemas


sexuais, alegados pelo marido, após ser obrigada a conviver com o mesmo, que,
apesar de ser um homem bom, ela não o desejava, passando a sentir com o correr do
tempo, até mesmo repulsa por ele. A índole de mulher séria e bem casada, afastava a
possibilidade de uma separação, além da certeza de que, sozinha, não conseguiria
trabalhar para sustentar uma filha nascida do seu matrimônio. Como se pode observar,
tais pensamentos que atormentavam a pobre mulher, refletiam a educação sexista
proveniente da sociedade patriarcal em que estava inserida.
Após ser internada, Lindonéia passou a receber choques elétricos e soníferos,
sendo mesmo aventada a possibilidade de ser retirada a parte do seu cérebro, “afetada
pela doença”. Em seus momentos de lucidez, entre as doses dos medicamentos, ela
repetia: “ ainda não tentaram ver as coisas do meu ponto de vista”. O quanto, desse
“ponto de vista”, perguntava o jornal, era deixado de lado ? Com certeza, não somente,
em relação à sua sexualidade, mas também a vários outros fatores necessários a uma
vida em sociedade, que fosse prazerosa. . Seria ela culpada, de não conseguir atender
ao modelo de mulher, que a sociedade lhe impunha? A que tipo de imposições
psicológicas, teria sido ela submetida? A própria Lindonéia, nos dá seu depoimento:

A gente não deve ser aventureira, diz, e admite que ficou doente assim, de
remorso, porque, quando estava grávida da filha, desprezava o marido na
cama, rejeitava-o toda noite, ele que é tão bom pra mim...Agora, eu não
rejeito mais ele, não, que sou esposa e cumpro o que se deve fazer, toda vez
que ele quer[...] Mas deixar o Dito eu não deixava, nem trair ele, não posso.
Não é por causa de pecado, que pra mim isso de pecado já era, mas é que ele
não merece. Gosta tanto de mim, que culpa ele tem de eu não ter atração?[...]
Mulher tem que amar o homem que casou[...] Mulher que casa e não atrai o
marido é que tem toda culpa. Depois, como é que eu posso querer ficar com
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fama de mulher que não presta, que larga o marido? A gente não deve ser
aventureira.(Brasil Mulher apud TELES; LEITE, 2013, p.211)

Domitila de Chungara: o sexo como obrigação

A matéria publicada no Brasil Mulher número 1, relata a história de Domitila261,


na época presidenta da Associação das Donas de Casa dos Mineiros de Cataví, na
Bolivia e que, mesmo exercendo uma posição de liderança, confessava ser uma mulher
submissa na sua vida privada. Em entrevista dada ao jornal, Domitila fala de sua vida
sexual, como sempre submissa ao seu marido, nunca tomando a iniciativa no que dizia
respeito ao sexo, normalmente submetida a surras e a relações sexuais brutalizadas,
sendo simples objeto do desejo do seu marido.
Na mesma entrevista, Domitila mostra que tem clareza a respeito das relações
entre homens e mulheres, descrevendo que, no seu país, a Bolívia, tinha-se como
norma que os maridos batessem em suas mulheres. Isso, no entanto, não se restringia ás
classes baixas, mas, ocorria em todas as esferas da sociedade. Domitila, se mostrava
porem, otimista quanto à liberação da mulher; afirmando que, essa emancipação estava
acontecendo de forma lenta, mas, segundo ela, já havia alguns pontos onde podia ser
observada essa mudança. Em outras famílias, já se podia observar que os maridos já
auxiliavam as mulheres nos afazeres domésticos. Na esfera sexual, Domitila dá o
exemplo do seu próprio casamento. Onde antes, apanhava, caso se negasse a ter
relação sexual, hoje, havia o diálogo.
Apesar de todas as mudanças que Domitila afirmava ter observado, algumas
marcas não poderão ser apagadas. o que fica evidente nesse trecho da entrevista:

Brasil Mulher: Você chega a tomar a iniciativa no ato sexual?


Domitila: Não, porque não gosto do ato sexual. Submeto-me a
ele como uma necessidade por estar casada, mas não me agrada.
Brasil Mulher: Porque não lhe agrada o ato sexual, Domitila?

261
Lider sindical e feminista, autora de uma auto-biografia de grande repercussão intitulada, “Se me
deixarem falar”
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Domitila: Creio que, pelo fato de ter sido “violada”262 por meu
marido antes de casar-me. Nem sequer eu sabia quem estava me
“violando”, pois foi no escuro. Porém, ele contou para sua mãe e
ela falou com a minha família no sentido de se fazer o
casamento. Mas, inicialmente, o nosso casamento não passou
de uma união consentida. Só três anos depois, quando eu já
estava pra dar a luz ao meu primeiro filho, foi que meu marido
tomou a iniciativa de legalizar nossa união.(Brasil Mulher apud
TELES; LEITE, 2013, p.215)
Esse relato nos faz pensar quantas outras Domitilas existiam e ainda existem
mundo a fora?
Mulher e Família
No ano de 1975, o Senado estuda novo projeto do Código Civil, tendo como
objetivo, aprimorar o status jurídico da mulher. A grande questão que se colocava era
que, a mulher era solicitada a todo a momento como força de trabalho, mãe ou eleitora
porem, a igualdade que devia ser-lhe assegurada pela Constituição, se opunha ao
Código Civil. No seu artigo 1603, o Código estabelecia que, a direção dos assuntos
familiares estava nas mãos do marido, que devia contar com a colaboração da esposa, e,
em havendo divergências nas decisões a serem tomadas, prevaleceria a vontade do
marido. Por outro lado, de acordo com a Constituição, a direção da sociedade conjugal
cabia a ambos os cônjuges, que a exerceriam de acordo com as necessidades e
interesses do casal e dos filhos. Se, houvesse divergência, prevaleceria então, a decisão
judicial. Alguns integrantes da comissão do Senado, se puseram contra essa medida de
igualdade, mas a realidade é que a mulher já estava imersa no mundo do trabalho,
acontecimento que aumentou progressivamente, desde o ano de 1940, quando o total da
população economicamente ativa feminina, correspondia a 12,4% enquanto em, 1969
já representava 33,4%.
Essa situação, como trabalhadora, não vai mudar a situação da mulher, dentro do
lar, pois, ao chegar em casa, depois de um dia de trabalho, ainda enfrenta outra jornada,
que é a de arrumar e cozinhar para o marido, também trabalhador igual a ela, mas que,
ao chega em casa, espera que tudo esteja limpo e que o jantar esteja na mesa. Essa

262
Deve-se ler violentada, pois, evidentemente, se trata de má tradução.
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realidade era vivida pela maioria das mulheres, como foi relatada por Danda Prado em
carta á amiga, Yara Gouvêia263. Para Danda, mais do que igualar as condições de
acesso ao trabalho assalariado, era necessário socializar o trabalho doméstico,
reconhecendo o seu valor. Na sua carta, Danda ainda chama a atenção, para a
feminilidade compulsória da mulher, garantida através de investimentos precisos:
Desde que nasce, a menina é educada em casa e na escola para incumbir-se
desses serviços domésticos. Cada um de seus gestos é socializado, para, que
mais tarde seja uma esposa. Os brinquedos que lhe dão, a roupa com que a
vestem e que dificulta sua expressão corporal, sua linguagem corrigida a cada
instante, porque uma-menina-não-fala-assim, a ajuda que deve prestar ao
irmãozinho, a “faceirice” que deve cultivar para arrumar namorado, etc.
Os exemplos são infinitos.
Quando atinge a idade em que deve escolher seus estudos, é orientada para
aqueles que servem também a uma esposa.
Assim, o conhecimento de línguas pode ajudar ao marido, mais tarde. Ser
dentista ou farmacêutico, profissões que exercem em casa. Professora,
psicóloga, para auxiliar sua função de mãe.
Todas as revistas lhe darão conselhos de como agradar aos outros e, assim, a
um possível marido.
. A senhora não trabalha?Não, sou dona de casa.(Jornal do Brooklin-
SP,PRADO; Danda13/8/78)

Mulher e Imprensa
Diversas revistas de caráter nacional, pertencentes á chamada grande
imprensa, tiveram artigos e matérias censuradas, por tratarem ou darem espaço á
questão da mulher. Como exemplo, temos a revista Realidade, que teve sua edição de
número 10, totalmente censurada por ter dedicado a edição inteira à problemática
feminina: “A mulher brasileira de hoje”, dizia a manchete da revista. O jornal
Movimento teve na sua 45ª edição, alguns artigos vetados, por trazer um dossiê sobre

263
Yara Gouvêa, brasileira, codinome Sônia, foi importante quadro no exílio, representando as
organizações da resistência à ditadura diante dos organismos internacionais a partir de Genebra e,
depois, em Argel, encarregada da publicação do boletim da Frente Brasileira de Informação (cuja sigla,
repleta de ironia, é FBI), criada para denunciar prisões, tortura e mortes aos organismos de direitos
humanos. Formada em Letras e com pós-graduação na Sorbonne (Universidade de Paris), dedicou vários
anos de sua vida profissional ao ensino universitário (Argélia e Marrocos) e ao ensino fundamental,
criando uma escola bilíngüe na qual introduziu experiências pedagógicas inovadoras. Trabalhou na
Embaixada do Brasil em Marrocos. Colabora com a Fundação João Mangabeira do Partido Socialista
Brasileiro (PSB) na organização de seus seminários de capacitação.
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“O trabalho da mulher no Brasil”. Como vemos, todos os órgão da imprensa que


tratavam da problemática feminina com seriedade, sofriam sanções, porém, aqueles que,
nas suas propagandas mostravam a mulher como objeto sexual, projetando uma imagem
feminina de futilidade e vazia, sem opinião ou vontade; esses tinham toda a cobertura
dos órgãos encarregados da censura aos meios de comunicação. A Revista Manchete, da
Editora Bloch, veiculou o seguinte anúncio, de uma empresa sul-africana, fabricante de
joias de diamantes. (Opinião, 08 de out. 1973)
Para você que sempre telefona,
na hora de maior movimento no
escritório, avisando que o
dinheiro acabou.
Que acha os programas de
televisão horríveis, mas não
perde um capítulo da novela.
E vive brigando com a
Empregada mas não manda ela
embora.
Para você, estes diamantes.
Assim como eles, você nunca vai
Mudar.(Opinião, PINHEIRO,1973,p.
2)
.
No entanto, nem todas as brasileiras, se encaixavam no perfil descrito pela
propaganda veiculada na Manchete. No período autoritário, as mulheres foram ás ruas a
para exigir liberdade política, não só para elas, mas para seus filhos, maridos e para
toda a sociedade. Vão tomar decisões pela causa que acreditavam. Inserem-se na luta
pelos direitos democráticos, quebrando preconceitos e barreiras, colocadas muitas
vezes, pelos próprios companheiros. Muitas foram silenciadas pelo Estado, sendo seus
nomes ainda hoje citados como exemplos de luta e de abnegação,
São estas mulheres, que sonhavam com uma vida melhor, com mais direitos
políticos e sociais para elas e para suas irmãs, como as feministas, mas também aquelas
que, extrapolando esse estágio, lutaram por mais liberdade e direitos democráticos num
período de exceção, que queremos, na nossa pesquisa, conhecer.
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Referências Bibliográficas
ROSA, S. O; Mulheres ditaduras e memórias. “Não imagine que precise ser triste para
ser militante”. São Paulo: Intermeios, 2013
TELES, Amelinha; LEITE, R.S.C. Da guerrilha à imprensa feminista, a construção do
feminismo pós-luta armada no Brasil(1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013
PEDRO, J.M. “Os feminismos e os muros de 1968, no cone sul”. In: Clio, revista de
pesquisa histórica. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2009.
PINHEIRO, A.L.M. “A imagem da mulher nos anúncios” in Opinião, Rio de Janeiro,
p. 02, 08 a 15 de out. de 1973
MOREIRA, Rita. “Um misógino consciente?” in Opinião, Rio de Janeiro, p.22, 22 a 29
de jan. de 1973
PONTES, N.B. “Opressão e Liberação” in Opinião, Rio de Janeiro, p.22, 22 a 29 de jan.
de 1973
MUNERATO, Elice. “A igualdade e o novo código” Opinião, Rio de Janeiro, p.04, 19
de set. de 1975
ALBERTI, Verena. “Histórias dentro da história”, São Paulo, Editora Contexto, 2006.
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O RETRATO DA MILITÂNCIA FEMININA NA DITADURA CIVIL-MILITAR


BRASILEIRA: A CRIAÇÃO DE REPRESENTAÇÕES NO CINEMA DAS
DÉCADAS DE 1990 E 2000

Gilvânia Cândida da Silva


(Universidade Federal Rural de Pernambuco - Gtemp CNPq. Graduanda em História,
gil.nd93@gmail.com).

Natália Conceição Silva Barros


(Universidade Federal de Pernambuco - Gtemp CNPq. Doutora em História
grupotempopresente@gmail.com)

O presente trabalho tem como proposito a análise crítica de filmes com a temática da
Ditadura Civil-Militar no Brasil; selecionados, em especial, a partir do seu ano de
lançamento, entre as décadas de 1990 e 2000. A abordagem utilizada tem como
prioridade a identificação e o exame das opções de representação feminina oferecidas
nessas obras. De modo que, a partir da perspectiva de gênero, seja possível compreender
a que perfil de feminilidade as personagens são enquadradas. Nesse sentido, serão
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extraídas as interpretações dadas pelos textos de referência em relação à ação feminina


e, assim, confronta-las com a forma como são retratadas nas criações fílmicas eleitas.
As lentes teóricas utilizadas deverão, pois, demonstrar a função representativa que tais
exposições têm no tempo presente. Tanto no que concerne a marginalização, quanto à
romantização das atividades das mulheres militantes.
Palavras-chave: Ditadura; Cinema; Mulheres.

Durante mais de duas décadas, entre 1964 a 1985, o Brasil viveu sob um governo
Militar. A esse respeito, segundo ROLLEMBERG (2003), a Ditadura Civil-Militar264
foi um golpe contra sujeitos que desejavam transformar seu país num lugar de igualdade
entre todos. Neste tempo, o sentido da palavra liberdade minguou na mente dos que
acreditavam num país diferente daquele que se apresentava, tais indivíduos planejavam
instituir o socialismo. Contrariando-os, os militares foram vitoriosos em seu projeto
contra revolucionário, posto que, o povo estava alheio às questões políticas que moviam
os militantes, almejando não a Revolução, mas apenas o essencial à vida: os
revolucionários eram, pois, poucos e à parte da população.
Sendo este um dos mais marcantes períodos na História do país, é natural que a arte
tenha se lançado em significar e ressignificar os grandes e pequenos eventos que
moviam o cotidiano das pessoas. Sobre isso, o cinema se destaca, logo após a música,
como a categoria artística que mais cedeu às gerações seguintes interpretações sobre
tudo que aconteceu. Nessa medida, o cinema funciona como um catalizador de inúmeras
funções representativas e, para cada uma, existe a produção de distintos sentidos. Com
isso se quer dizer que, entre outras coisas, através de uma obra fílmica o individuo
exercita faculdades intelectuais, produzindo, a partir das representações, uma realidade
aquém da que se apresenta no dia-a-dia. Por conseguinte, isso agrega novos paradigmas
ao modo como uma população enxerga a si e aos demais.
Sabendo disso, aqui serão analisados filmes que contam a história da Ditadura na
perspectiva de “quem acaba de se liberta dos grilhões”, uma vez que foram produzidos
após a queda do Regime. Entretanto, esse não é o objeto central desse estudo, o governo

264
É “Civil-Militar” na medida em que, segundo CARVALHO (2002), a sociedade civil apoiou o golpe,
acreditando ser a solução para as moléstias sociais e econômicas que “o movimento socialista estava em
vias de instalar no país”. Lembremos que nessa época a antiga União Soviética era sinônimo de pobreza e
caos político-social.
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dos militares funcionará como cenário para que seja possível acessar um pequeno grupo
de indivíduos: as mulheres militantes pró-revolucionárias. Sobre elas, o que se quer
alcançar é o modo como o cinema as representa e, consequentemente, lhe atribuiu
significado na História dessa geração do Brasil.
MAS, O QUE SE QUER DIZER COM REPRESENTAÇÃO?
Ao utilizar o termo representação é primordial que primeiro sejam estabelecidas
fronteiras semânticas sobre tal termo – isso garante, por conseguinte, a integridade do
sentido do texto. Porquanto, a palavra autoriza grande número de interpretações e, de
acordo com o contexto em que está inserida, pode ter vários significados. Assim, para a
tarefa de definir qual acepção será utilizada aqui, recorre-se a Dominique Santos em seu
texto “Acerca do Conceito de Representação” (2011); nele pode-se encontrar diversas
análise de inúmeros autores a respeito do vocábulo.
Contudo, o significado que mais se mostrou pertinente à tarefa proposta é, na verdade,
uma compilação de dois autores. O primeiro, Roger Chartier, a partir de seu conceito de
representação social, concebe dois sentidos ao termo. Para ele, a representação: 1)
exibe um objeto ausente que é substituído por uma imagem capaz de reconstituir na
memória; 2) a representação exibe uma presença, como a apresentação pública de algo
ou alguém (CHARTIER, 1990 apud SANTOS, 2011, p. 35).
Já o segundo autor, Guilherme de Ockham, a partir da obra de Abbagnano, diz que:
Em primeiro lugar, designa-se com este termo aquilo por meio do qual se
conhece algo; nesse sentido, o conhecimento é representativo, e representar
significa ser aquilo com que se conhece alguma coisa. Em segundo lugar, por
representar entende-se conhecer alguma coisa, após cujo conhecimento
conhece-se outra coisa; nesse sentido, a imagem representa aquilo de que é
imagem, no ato de lembrar. Em terceiro lugar, por representar entende-se
causar o conhecimento do mesmo modo como o objeto causa o conhecimento
(ABBAGNANO, 2007, p. 853).
Segundo a mescla das duas ideias, chega-se à suma de que representação é, portanto, “o
modo com o qual se conhece alguma coisa ausente, a partir de uma imagem que a
reconstitui na memória, de modo que, ao significar-se gera, então, conhecimento”.
O QUE FAZ DO CINEMA FONTE HISTÓRICA?
Ao tratar das fontes históricas, é desejável fugir da visão positivista do “documento
oficial” em apoio à outra forma de compor a historiografia. Esta é herança, sobretudo,
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da Escola dos Annales, graças a qual se tornou válido utilizar “qualquer vestígio ou
qualquer evidência – dos objetos da cultura material às obras literárias, das séries de
dados estatísticos às imagens iconográficas, das canções aos testamentos, dos diários de
pessoas anônimas aos jornais” (BARROS, 2012, p.141). Os historiadores fizeram-se,
pois, cada vez mais hábeis ao executar uma de suas principais atividades, a saber,
traduzir as implicações de discursos nas relações de poder num preciso tempo e povo.
Para tal se faz necessário, antes de tudo, apurar o que transforma um filme em objeto de
exame histórico. Logo, deve-se entender que:
[...] é menos importante saber se tal ou qual filme foi fiel aos diálogos, à
caracterização física dos personagens ou a reproduções de costumes e
vestimentas de um determinado século. O mais impotente é entender o
porquê das adaptações, omissões, falsificações que são aparentadas num
filme. Obviamente, é sempre louvável quando um filme consegue ser “fiel”
ao passado representado, mas esse aspecto não pode ser tomado como
absoluto na análise histórica de um filme (NAPOLITANO, 2005, p.237).
Isso não significa, porém, que seja prudente negligenciar aspectos que fazem parte da
linguagem fílmica - esta estruturada a partir de elementos como: cenários, figurinos,
planos, sequências, diálogos, entre outros. Ou seja, a utilização de um filme como fonte
requer a avaliação criteriosa dos pontos que apoiam a linguagem da produção. De modo
que, doravante sejam acessíveis à compreensão as representações concebidas nele.
À vista disso, o “não dito” também se coloca como discurso, isso no que diz respeito às
adaptações, omissões e falsificações. Uma vez que:
Nos filmes históricos, essa questão é crucial, pois o importante não é apenas
o que se encena do passado, mas como se encena e o que não se encena do
processo ou evento histórico que se inspirou o filme. Não se trata de cobrar
do diretor a fidelidade ao evento encenado em todas as suas amplitudes e
implicâncias, mas de perceber as escolhas e criticá-las dentro de uma
estratégia de análise historiográfica (NAPOLITANO, 2005, p.275, grifo do
autor).
Isto é, o plano estético revela muito sobre a função representativa do cinema e, por isso,
deve-se procurar compreendê-los enquanto produto artístico, assim como se enxerga um
quadro, uma música ou uma escultura. Nessa direção, o autor acrescenta ainda:
O que importa é não analisar os filmes como “espelho” da realidade ou
como “veículo” neutro das ideias do diretor, mas como o conjunto de
elementos, convergentes ou não, que buscam encenar uma sociedade, seu
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presente ou seu passado, nem sempre com intenções políticas ou


ideológicas explícitas (idem. p.276, grifo do autor).
O cinema, todavia, utiliza a História como molde para construção de seus enredos e
estes se propõem, por sua vez, tocar a subjetividade, as emoções de seus espectadores.
Porque mesmo tendo caráter documental, o propósito de um filme está em provocar os
mais variados sentimentos de quem o assiste. Dessa forma, seu fim se ergue a partir dos
modos e meios com os quais a linguagem cinematográfica é alicerçada.
Enfim, MORETTIN (2003) defende que as obras fílmicas só se firmam como fontes
históricas na medida em que o historiador consegue apreender o discurso produzido
sobre a sociedade representada, indicando suas ambiguidades, incertezas e tensões.
Assim, a dimensão do cinema como fonte repousa não nele em si, mas na forma como
se aborda seu conteúdo representativo. Caso contrário, não existem condições concretas
para trata-lo, de fato, como ponto de ancoragem para pesquisa historiográfica.
GÊNERO: OS PERFIS DE FEMINILIDADE
Graças ao poder da passagem do tempo, o qual fixa os eventos históricos e impossibilita
sua mudança, é possível definir os perfis de feminilidade de outrora com maior
domínio. E isso se viabiliza através do exame dos papeis sociais de gênero. Papeis estes
que, entendidos como atreladores dos comuns, se realizam por intermédio de deveres e
ações próprios de um sexo. Nesse sentido, ao efetuar a associação de um dos sexos
biológicos ao que seria seu correspondente papel social, surge o que se pode chamar de
gênero265. Que nada mais é do que “uma categoria usada para pensar as relações sociais
que envolvem homens e mulheres, relações historicamente determinadas e expressas
pelos diferentes discursos sociais sobre a diferença sexual” (GROSSI, 1998, p. 5).
Partindo dessa ideia, o perfil de mulher que se deseja nas décadas que se seguiu à
Ditadura Civil-Militar era o da “santa do lar”. Aquela mulher que vivia em prol dos
filhos, do marido e dos afazeres domésticos, que era submissa, recatada e religiosa.
Nessa medida, a mulher militante era uma aberração social, pois colocava em risco a
integridade da base de uma comunidade, a saber, a família. Assim,
a mulher militante política nos partidos de oposição à ditadura militar
cometia dois pecados aos olhos da repressão: de se insurgir contra a política
golpista, fazendo-lhe oposição e de desconsiderar o lugar destinado à mulher,

265
Sobre a História de Gênero, ver: “Mulheres” de Michelle Perrot e “História das Mulheres” de Joan
Scott. (Ambos constam nas referências)
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rompendo os padrões estabelecidos para os dois sexos. A repressão


caracteriza a mulher militante como Puta Comunista. Ambas categorias
desviantes dos padrões estabelecidos pela sociedade, que enclausura a mulher
no mundo privado e doméstico (COLLING, 1997, p. 8, grifo do autor).
Contudo, as mulheres que entravam na luta pró-revolucionária precisavam ainda
enfrentar o preconceito dentro das organizações. Elas tinham que provar que sua
condição de mulher não as impedia de atuar nos grupos e que eram tão preparadas
quantos os homens para executar tarefas. Nesse propósito, diz TELES (2013), muitas se
masculinizavam, entretanto, pouquíssimas conseguiam chegar a altos postos de
comando. Isso ocorria pelo simples fato de que para as organizações a questão de
gênero não era pauta significativa de suas discussões. Sua função era, pois, fazer a
revolução e os homens eram os mais hábeis para tal objetivo. Repensar o lugar das
mulheres e, também, dos homens na estrutura social ficou a cargo das próprias
militantes.
Esse quadro posto, é possível dizer que as mulheres militantes viviam um duplo conflito
de papéis. Se por um lado, não atendiam as características que as “mulheres de bem”
deveriam demonstrar, e por isso eram rechaçadas pela sociedade, por outro, também não
se enquadravam no tipo de pessoa que a militância precisava, ou seja, não eram homens.
COLLING (1997) acrescenta, ainda, dizendo que “para quem ousa atravessar as
barreiras que socialmente foram construídas entre os sexos resta à desqualificação como
individuo desviante. Para a repressão, a mulher militante é sempre promíscua”.
Dado esse passeio na realidade vivida pelas mulheres militantes, a seguir, buscar-se-á
demonstrar se elas foram retratadas nesses termos, isto é, se as personagens expressão
aquela realidade de conflito, ou se estão mais ligadas ao tempo presente. Visto que,
sendo uma leitura do passado através das lentes éticas dos direitos humanos, que se
afirmaram mais fortemente após a queda do Regime, é possível que haja resquícios
dessa visão no modo como foram representadas. Mais ainda, por intermédio dessa
investigação preliminar, serão também apontados os sentidos dos papeis de retratação
sociais dados a cada um delas.
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO CINEMA BRASILEIRO
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.

À vista do que já foi exposto, finalmente, serão avaliadas as representações que os


filmes selecionados266 criaram acerca das mulheres militantes pró-revolucionárias, para
com isso atestar semelhanças e contrastes sobre os papéis e perfis sociais dados às
personagens das tramas.
Corpo em Delito
No ano de 1990, Nuno César Abreu lançou seu filme Corpo em Delito. Uma obra que
retrata a atuação de médicos legistas que fraudavam, como morte natural, laudos de
óbitos de presos políticos que foram assassinados sob tortura. Athos Moreira Brasil
(Lima Duarte) é um desses médicos corruptos. Filho de militar, ele tenta publicar a obra
literária e política de seu pai, a quem considera um herói nacional. Porém o destino
prega-lhe uma grande peça, sua única filha, Silvia (Dedina Bernardelli), se enveredando
na luta guerrilheira armada. Nesse meio tempo, Athos conhece a artista de cabaré
Tana267 (Regina Dourado), uma mulher visceral que almeja os prazeres da vida, mas só
encontra a frigidez e frieza em seu peculiar relacionamento com o médico.
No que concerne à atuação militante, no filme destacam-se a representação de três
mulheres distintas. A primeira é Silvia, como já seria esperado. Ela é uma moça
visivelmente de classe média, muito bem trajada com roupas de tecidos finos, cores
suaves, com certo toque de romantismo e modos polidos. Apesar de seu marido a ter
influenciado, contra a vontade de seu pai, foi sua mãe268 quem a introduziu nas pautas
políticas da esquerda. E, uma vez dentro, Silvia serviu à causa até sua morte - após a
tortura na prisão comum e, em seguida, sua reclusão no hospital psiquiátrico.
Mesmo não havendo muitas cenas que foquem a atuação de Silvia, é possível notar que
sua função representativa conversa de modo íntimo com a retratação do perfil mais
simbólico e comum de militante. O que se quer mostrar é uma mulher rica, bem
educada, que deseja mudar o quadro sócio-político de seu tempo. Ou seja, o tipo de
figura mais recorrente entre os militantes de esquerda. O que, porém, não reduz sua

266
É necessário deixar claro que tal seleção não foi efetuada sumariamente, ela nasceu de uma lista de
filmes que foram assistidos e analisados previamente – desses escolhemos os que mais se adequavam a
nosso propósito de análise.
267
Apesar de ter grande importância em relação ao desenrolar da trama, não colocamos Tana entre as
personagens abordadas pela ocasião dela não ter qualquer relação com os movimentos de esquerda, nem
tão pouco de direita.
268
Não abordamos mais profundamente acerca dessa personagem, primeiro, porque ela não está presente
no filme, existe apenas uma menção a sua figura na cena que retrataria seu enterro, segundo, porque
acreditamos estar claro que seu poder representativo está no fato de que por intermédio dela Silvia
ingressou na luta de esquerda.
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importância. Visto que, ela denota o que há de mais forte entre esses sujeitos: a coragem
e o imenso desejo de fazer, de fato, a mudança em prol do povo.
Atendendo a outro sentido, a segunda mulher examinada não tem nome. Na verdade,
sua força representativa está no fato dela ser uma vítima em reboque à outra vítima.
Essa simples senhora negra (Edyr de Castro) se veste com modestas roupas e demonstra
pouca instrução. Ela vai à procura do Dr. Athos com a esperança de achar, pelo menos,
o corpo de seu marido desaparecido. O qual, por completo engano dos militares, foi
torturado e morto pela repressão que o confundiu com o real “subversor”.
Nesse quadro, a anônima mulher se coloca como importante à função representativa na
medida em que, pinta o retrato de um grupo pouco posto em voga nos filmes acerca da
Ditadura, a saber, as pessoas torturas e mortas, mas que não possuíam qualquer ligação
com o movimento militante pró-revolucionário. Ou seja, mesmo não sendo uma mulher
militante, a personagem representa algo muito maior do que ela própria, posto que,
poderia ser um marido, ou um filho – um homem – no lugar dessa personagem. Assim,
ela é a luz que aclara mais um grupo que foi vitimado pela ação do Regime repressor.
Por fim, a terceira personagem (Dira Paes) também não recebe nome, mas tem grande
força representativa. Ela se comporta como uma menina ingênua que, mesmo correndo
risco de vida ao ser caçada pela repressão, vive intensamente um romance com seu
companheiro de esconderijo, e provável de guerrilha (Renato Borghi). Nas poucas cenas
em que é retratada, ela demonstrou ser alegre, vibrante, romântica, ligada a natureza,
assim como, de personagem forte. Seu figurino se destaca pela simplicidade e desleixo
de quem busca o conforto caseiro, além disso, seus cabelos lisos, negros e compridos
marcam e se harmonizam com o corpo de moça da personagem.
Em linhas gerais, o poder representativo dessa personagem repousa em dois pontos
distintos. O primeiro diz respeito ao fato dela retratar que mesmo em fuga, escondidos e
sob a aflição da prisão anunciada, os guerrilheiros tinham momentos de esperança, onde
demonstravam afeto entre si, e por que não, também se alegravam e divertiam-se. Com
isso não queremos amenizar o sofrimento vivido por eles, mas olhar a situação com
outros olhos, atestando que, sim, havia vida na clandestinidade. Depois, a personagem
encarna os militantes extremamente jovens, ingênuos, que ingressaram na luta em busca
de um mundo melhor, porém não tinham maturidade para mensurar as consequências
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das ações de oposição. Isso é percebido no momento em que a personagem anônima se


deixa ser vista por Athos e revela-se pouco preocupada com a segurança própria.
Ação entre amigos
Ação entre amigos é um filme de drama e ação ficcional, dirigido por Beto Brant e
lançado no ano de 1998. A obra conta a história de quatro amigos de personalidades
distintas - Miguel (Rodrigo Brassalto), Paulo (Heberson Hoerbe), Elói (Sérgio
Cavalcante) e Osvaldo (Douglas Simon) - ex-militantes que veem seu passado de
tortura ressurgir naquilo que deveria ser um fim de semana dedicado à pescaria. Isso
aconteceu graças a Miguel que, tomado pelo sentimento de vingança, ao longo de anos
arquitetou o assassinato do militar que comandou sua tortura e provocou a morte de sua
mulher que estava grávida. No filme, portanto, a ditadura é coadjuvante, o diretor
buscou trazer à tona os conflitos pessoais dos personagens.
Lúcia (Melina Athís), a esposa de Miguel, teve uma aparição bastante curta, porém
significativa, ao longo do filme. Ela era uma mulher muitíssimo jovem, que
demonstrava personalidade forte e sensibilidade, tanto no que diz respeito à Revolução,
quanto no sentido afetivo, de fato. A caracterização da personagem é um elemento
secundário em sua composição, os gestos corporais, tom de voz, e expressões faciais
atesta muito mais sua força representativa. O corte e volume de seu cabelo, por outro
lado, são sintomáticos porque transmitem a ideia de uma Lúcia de “alma rebelde”. Em
linhas gerais, se pode dizer que Lúcia é uma jovem revolucionária forte, determinada,
estratégica, sensível, apaixonada pela luta e pela vida; o que pode distingui-la das outras
é apenas o fim que a Ditadura deu em sua história.
O drama da militante começa, pois, na noite anterior ao assalto que poria fim a sua
atuação na guerrilha armada. Após revelar a Miguel que estava grávida, Lúcia e ele
decidem que vão ter o bebê longe do foco do conflito, que iriam atuar em outras tarefas
da Organização. Contra a vontade do parceiro, a guerrilheira opta por ir à ação de saque
a um banco, no dia seguinte. Contudo, a moça foi capturada pelos militares na saída do
banco. Lúcia foi barbaramente torturada e morreu em decorrência do uso da “coroa de
cristo”, um aparelho de metal similar à coroa de espinhos, mas que esmaga o crânio.
Tendo em vista esse quadro, é possível apontar duas funções representativas agregadas
à figura de Lúcia. Primeiro, ela representa, como qualquer outro torturado, o poder de
destruição da Ditadura - um Regime capaz de liquidar com qualquer um que represente
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oposição. Segundo, e mais importante, a militante representa as vítimas fatais que


estabeleceram a ponte entre o passado de repressão e o presente de justiça. O que se
quer dizer é que, os mortos são o combustível da busca pelo direito à reparação e
retratação do Governo com os que ainda vivem, assim como, são a expressão
permanente do sofrimento que ligam os dois tempos históricos, isso simultaneamente.
Cabra-cega
Dirigido por Toni Venturi e lançado no ano de 2004, Cabra-cega é um filme que retrata
os conflitos internos de uma organização armada dos anos 70, cujo nome não é
revelado. No enredo, após ser baleado numa tentativa de fuga, Tiago (Leonardo
Medeiros) se refugia no apartamento do arquiteto Pedro (Michel Bercovitch) sob a
tutela de Rosa (Débora Duboc). Mateus (Jonas Bloch), por sua vez, atua como um chefe
operacional, protegendo e articulando os demais guerrilheiros de acordo com as ordens
superiores da organização. Ali, recluso, Tiago é atormentado pelas lembranças do
tiroteio que levou a militante Bárbara (Odara Carvalho) à prisão e o fez fugitivo da
polícia. Nesse meio tempo, ele conhece Dona Nenê (Bri Fiocca), uma imigrante
espanhola a quem teve o único filho – revolucionário – morto pela repressão Franca.
Entre as mulheres, a personagem Rosa é a mais emblemática na obra. Em sua
caracterização foram usadas roupas de tons claros e/ou neutros, com cortes que
desenham a silhueta e marcam decotes em versões comportadas, seus cabelos sempre
bem penteados, eram longos e com franja alinhada. Associado a isso, seu modo de falar
sereno, com tom ameno e subordinado compunham uma jovem mulher doce e calma,
prendada nos trabalhos domésticos e que possui certo ar de ingenuidade e recato.
Apesar de toda essa “áurea” de fragilidade, Rosa é determinada, focada em suas tarefas
junto à luta armada e que acredita na vida além da guerrilha. Filha de pai comunista,
desde muito cedo aprendeu com ele os princípios e deveres da missão revolucionária.
Na organização, sua função era abrir contato entre Thiago e o mundo externo, além de
reprimi-lo em seus excessos e impulsos que ameaçavam, assim, a segurança dos demais
membros. Nesses termos, Rosa é uma figura muito curiosa, visto que ela é a mescla de
vários perfis de feminilidade. Ao mesmo tempo em que demonstrar ter iguais dotes de
uma típica mãe de família, em seu trato com o meio doméstico, ela é centrada, feroz e
decidida na atuação enquanto guerrilheira.
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Bárbara é, pois, outra representante da fibra feminina retratada na produção de Venturi.


Ela tem poucas aparições ao longo do filme, porém sua função representativa é
imensamente importante. Mesmo encenando poucos momentos, a personagem é
construída a partir de um figurino composto por roupas de tecido grosseiro, modelo reto
e cor neutra, seus cabelos são longos, de corte sem forma e desalinhados. Nessa medida,
parece ser desejável que ela se assemelhe a figura masculina, demonstrando bravura e
agilidade física. Para esse fim, a personagem tem voz firme, gestos de força e olhar
sereno. Assim, com tais características, ela é o contraponto em relação à figura de Rosa.
Como mencionado anteriormente, Bárbara é capturada no tiroteio onde Tiago é atingido
pelo disparo que o manda para reclusão no apartamento de Pedro. Nessa cena,
fragmentada em lembranças que atordoam o jovem, Bárbara tem tantas habilidades com
as armas quanto ele. Entretanto, em um golpe de má sorte, a guerrilheira recebe um tiro
na perna e é capturada pela polícia. A partir daí, a militante sofre flagelações em
consecutivas cessões de torturas, as quais são encenadas com extremo realismo.
Demonstrando, dessa forma, que não havia piedade com as prisioneiras pelo fato serem
mulheres, muito pelo contrário, elas eram submetidas a torturas sexuais, estupros e
mutilações, conforme diz TELES (2013).
Dona Nenê, no entanto, encena outro importante papel representativo. Com refino e
bom gosto, a personagem é uma jovem senhora de carregado sotaque espanhol, cujo
vestuário é composto majoritariamente por peças pretas ou de cores escuras, de tecidos
finos, adornada com joias de belo design. Sempre bem penteada e maquiada, seu olhar e
voz são tranquilos e suaves. E, assim como Rosa, ela se enquadra perfeitamente na
figura angelical de mãe zelosa, pois todos os seus gestos transmitem calma e mansidão.
Na história, quando é procurada pelo filho – militante da esquerda espanhola - Dona
Nenê recusa-se a dar-lhe guarida, temendo represálias do governo. Por conseguinte, dias
depois ele foi executado pela repressão do ditador Francisco Franco. A partir desse
quadro, as características de criação da personagem tem o intuito de demonstrar o
sofrimento de uma mulher que carrega sobre si a responsabilidade pelo assassinato de
seu único filho.
Próximo ao fim do filme, Dona Nenê morre de causas naturais. E, numa conversa entre
os personagens Tiago e Rosa, a senhora é descrita por ele como vibrante, falante e
alegre, já Rosa revela o sofrimento, a solidão e a triste da imigrante. Ao refletir segundo
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tais atribuições, pode-se entender que a personagem funciona como a personificação do


sofrimento da perda e a energia da vida, simultaneamente. Em outro sentido, Dona Nenê
representa as dezenas de famílias que tiveram seus entes mortos ou, torturados e presos
pela Ditadura. Ela é, portanto, a face do drama doméstico da luta armada; o que atesta
sua importância.
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Hoje
Hoje, filme dirigido por Tata Amaral, foi lançado no ano de 2011. Ele conta parte da
história de Vera (Denise Fraga), uma ex-militante anistiada que recebe do governo
brasileiro, no ano de 1998, uma reparação financeira pelo desaparecimento e morte de
seu marido, Luiz (César Troncoso), também comunista. Hoje é uma obra minimalista e,
ao mesmo tempo, riquíssima em detalhes que, além dos conflitos pessoais de Vera,
discute a pauta do anistiamento de ex-presos políticos. Isso se dá na perspectiva dos
anistiados, na medida em que eles, representados por Vera, têm que lidar com o fato de
que, primeiro, a revolução não vingou e, segundo, o dinheiro que recebem para
reconstruir suas vidas vem à custa da morte ou do sofrimento daqueles que amam. A
fim de retratar esse duplo conflito, a diretora criou um clima de instabilidade no espaço
restrito do apartamento, onde os poucos personagens interagiam em diferentes
tonalidades de emoção com a protagonista.
Vera tem um conjunto de características físicas e psíquicas que a faz ser percebida em
seus distintos momentos de conflito. Ela é uma miscelânea de sensualidade, medo,
raiva, doçura, remorso e culpa. Uma mulher visceral, mas que habita um corpo magro,
trajado com um vestido florido de algodão, calçada com sapatilhas e cujo cabelo
encaracolado revela a mocidade de um rosto pouco marcado pelos anos. Delatora de
seus companheiros de organização, debaixo de forte tortura Vera acabou revelando o
esconderijo do grupo que, entre os presentes, estava seu marido. Após isso, nunca mais
ela soube notícias de Luiz, o qual foi dado como morto, sendo declarada oficialmente
viúva. Anos depois, então, o Estado julga e concede o pagamento de quantia que
repararia financeiramente a perca do marido e a tortura sofrida pelo casal.
O valor representativo de Vera está justamente nesses vários conflitos pessoais que ela
herdou de seus anos de militância. A ex-revolucionária retrata o pós-luta dos
guerrilheiros que sobreviveram à repressão, pessoas flageladas física e mentalmente,
que todos os dias precisam superar os traumas para conseguir viver. Mais do que isso,
Vera em certa medida representa aqueles que no passado delataram seus iguais e, agora,
convivem com a culpa de terem traído a Revolução. Em outro sentido, o filme também
quer suscitar e responder a grande pergunta: “O que aconteceu com os revolucionários
depois do Regime”?
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após essa análise, finalmente, nos deparamos com um modo de representação que foge
completamente a visão dual estabelecida previamente, a saber, se nos filmes
selecionados as militantes pró-revolucionárias foram retratadas como heroínas ou se
atendiam ao papel marginal. Como resultado, encontramos mulheres que obedecem a
um perfil muito mais complexo, sobrepondo essa trivialidade dicotômica. Com isso
queremos atestar que, as personagens escapam de forma brilhante a qualquer polaridade
exacerbada, elas se mostram, simultaneamente, marginais e heroínas, em outros termos:
humanas. As atuações, para essa tarefa, buscam mais fortemente revelar e interrogar os
conflitos subjetivos, em detrimento da tarefa de responder a alguma questão que esteja
além da intimidade.
A partir disso, quando confrontamos as obras de uma década com a outra, é possível
encontrar muito mais semelhanças do que diferenças. Cabe dizer que existe uma
tendência representativa entre as produções. Isso se dá pelo fato de que, em todos os
filmes examinados, a Ditadura é sempre secundarizada, o que há em foco é a relação
íntima dos personagens com os eventos traumáticos da repressão. O que se pode ver é:
sujeitos que, em diferentes estágios e de diferentes maneiras, precisam lidar com suas
angústias e medos, em prol de uma causa maior do que eles próprios. Essa causa pode
ser a Revolução, ou mesmo a força de retomada à vida.
Já no que concerne a representatividade feminina, propriamente dita, são recorrentes as
personagens encenadas como mulheres de fibra, fortes e capazes de lidar com os
percalços da vida revolucionária. Como dito antes, elas retratam a condição de
instabilidade humana, pois são plurais em sentimentos e estados emocionais. Mas, mais
do que isso, as mulheres dos filmes analisados, cada qual a sua maneira, são resultado
daquela forma moderna de enxerga-las como sujeito de ação e mudança. E isso ocorre
mesmo quando elas estão em papeis coadjuvantes. Assim sendo, em nenhuma das obras
encontramos qualquer indicio do conflito acerca da função social feminina, como
apontado por COLLING (1997).
Em outro sentido, tanto os homens quanto as mulheres atuam em pé de igualdade. Não
sendo possível apontar grande distinção entre o que poderia ser papel feminino ou
masculino, isso na perspectiva de gênero. Mas ao contrário, as mulheres guerrilheiras
demonstram extremo poder de atuação armada, equiparando-se aos demais membros de
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seus respectivos grupos. Na realidade, em nenhum dos filmes a questão de gênero é


tomada como pauta, contudo, não há também nada que possa remeter a uma retratação
sexista.
À vista de tudo isso, ratificamos a importância da utilização dos filmes como fonte
histórica, usados com o propósito de entender os papéis de representatividade dos
indivíduos na sociedade em que vivem. Compreender isso é perceber a força do
discurso e, mais ainda, é alcançar as bases das relações de poder social. Porquanto, o
modo como se representa um ente pode atender a duas funções, primeiro, à
manifestação deste ente - entendida como a possibilidade de rememoração - e, depois,
sua significação – concebida como modo de criação de paradigmas. Em outros termos,
discurso é poder coercitivo. E, ao apreender essa máxima, sabemos como nasce a ideia
que nos remete ao modelo de mulher militante que todos esses filmes testemunham.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2007. p. 1015.
 BARROS, J. D. TEORIA DA HISTÓRIA: A Escola dos Annales e a Nova
História. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 411.
 CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos, 1997.
 GROSSI, M. P. Identidade de Gênero e Sexualidade. Antropologia em
Primeira Mão. Florianópolis, p. 1-18, 1998. (versão revisada - 2010)
 SCOTT, J. HISTÓRIAS DAS MULHERES. In: BURKE, P. (Org.) A
ESCRITA DA HISTÓRIA: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP,
1992. p. 63-96.
 MORETTIN, E. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro.
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289.
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 PERROT, M. Mulheres. In: ______ Os excluídos da história: operários,


mulheres e prisioneiros. 1ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
 ROLLEMBERG, D. Esquerdas Revolucionárias e luta armada. In: FERREIRA,
J.; DELEGADO, L.A.N. (Org.). O Brasil Republicano. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 41-91. (4° Volume).
 SANTOS, D. V. C. ACERCA DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO.
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 TELES, A.; LEITE, R. S. C. DA GUERRILHA À IMPRENSA FEMINISTA:
a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). 1ª ed.
São Paulo: Intermeios, 2013.
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MULHERES TAMBÉM BRINCAM CARNAVAL: POR UMA HISTÓRIA DE


MULHERES NA FOLIA

Juliana Dias Palmeira


(UFRPE, Mestranda, julianadias.pesquisa@hotmail.com)

Ricardo de Aguiar Pacheco


(UFRPE, Doutor, ricardopacheco@ded.ufrpe.br)

Resumo: Devido às transformações ocorridas no campo historiográfico na segunda


metade do século XX houve a incorporação de inúmeras alternativas de métodos,
fontes, temáticas e objetos à análise histórica. Neste texto toma-se o carnaval e as
mulheres como temáticas que ganharam espaço após a virada cultural da história, e aqui
busca-se versar sobre o estabelecimento e a importância dessas temáticas enquanto
objeto de análise, contextualizando as formas como ambos os temas foram vistos por
parte de pesquisadores que os contemplaram. Em seguida faz-se uma revisão
bibliográfica dos estudos que realizam o diálogo entre essas temáticas e percebe-se que
são poucos os estudos que contemplam a mulher atuante na festa carnavalesca. Então, o
objetivo do artigo é fazer uma discussão elencando as possíveis contribuições à
historiografia resultantes desse encontro entre as análises da história do carnaval e a
história das mulheres, propondo que o espaço de debate sobre mulheres no carnaval seja
ampliado.
Palavras-chave: Carnaval; mulheres; historiografia.

O carnaval como objeto e observatório das tramas da história

A festa tomada como objeto da historiografia parece ser comum em dias


atuais. É possível encontrar vários trabalhos historiográficos que contemplem essa
temática. Porém nem sempre foi assim. Essa postura de assumir a festa como algo
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possível de ser historicizado ocorreu depois das transformações ocorridas dentro da


ciência histórica chamada por autores como Peter Burke (2008) de virada cultural.
Antes, as festas populares, em particular o carnaval, eram territórios dos
folcloristas e românticos no fim século XVIII e início do XIX, que o viam como
manifestação cultural que deveria ser resgatada, onde consideravam cultura como o
conjunto de ações ligadas a arte, a literatura ou a música elaborada em dada sociedade
(BURKE, 2010). Depois outras áreas do saber começaram a entrar nesse campo, como
por exemplo, a antropologia ou a sociologia.
Só na segunda metade do século XX é que a história passou a se ocupar das
festas, passando a reconhecer que através delas era possível apreender as diversas
dimensões sociais. Essa virada cultural da história se caracteriza pela incorporação do
conceito antropológico de cultura, que implica num complexo de conhecimentos,
crenças, costumes, ou qualquer outra competência adquirida por indivíduos dentro de
sua sociedade. Para Geertz conceito de cultura é

“(…) é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max


Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo
essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência
interpretativa, à procura do significado” (2008, p.4).

Nesse sentido, a palavra cultura contém as variadas possibilidades de


realização humana, estando relacionada às produções como práticas de representações,
simbolizações e significações.
Seguindo os caminhos abertos pela história cultural o interesse estar em
perceber o carnaval, e a participação das mulheres nesta festa popular que toma as ruas
da cidade, como uma manifestação da cultura neste sentido antropológico, ou seja,
como um conjunto de práticas e representações que dão sentido ao mundo social.
Dentre os estudos desenvolvidos sobre a temática do carnaval é possível
encontrar várias maneiras de enxergar a festa: seja como festa da inversão, na qual Júlio
Caro Baroja (2006) coloca o carnaval como uma oposição à quaresma ou ainda o Peter
Burke (2010) que o põe em oposição ao cotidiano, se configurando como uma válvula
de escape para garantir o controle social; seja como noção de resistência apresentada
por Emmanuel Le Roy Ladurie (2002), que considera o carnaval como possibilidade de
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transformação social; Mikhail Bakhtin (1987) o carnaval é tratado como espaço de


igualdades, para ele o carnaval não se assistia, se vivia, e tinha importância fundamental
na vida do indivíduo medieval, pois era uma manifestação que se colocava como oposta
as festas oficiais, onde estas sim, eram as responsáveis pela manutenção da ordem, da
tradição e do poder, enquanto o carnaval era responsável pela liberação.
Abordando o contexto nacional o antropólogo Roberto Da Matta e a
socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz veem o carnaval enquanto elemento da
identidade nacional, e assim acabam por conferir ao carnaval uma essência única,
ignorando a sua historicidade ao versar sobre a busca por uma identidade brasileira
comum a todos os brasileiros. Já autoras como Rachel Soihet (2008), Maria Clementina
Pereira Cunha (2001) e Rita de Cássia Barbosa de Araújo (1996) pensam um carnaval
de múltiplos sentidos, e o interesse delas está em localizar os conflitos, as mudanças, as
tensões e diálogos entre os sujeitos participantes da festa, uma vez que o carnaval,
“resulta das relações sociais urdidas no cotidiano, criadas no exercício diário da
convivência e no partilhar de experiências comuns na família, na vizinhança, no
trabalho, no lazer, na vida religiosa, social e política” (1996, p. 360).
O contributo dessas análises do carnaval para a história está em ir além das
lembranças cristalizadas pelos antigos foliões ou memorialistas, ou seja, cabe à história
fazer interpretações do que foi naturalizado. Como diria Cunha (2001) é preciso ouvir
os ecos do passado em busca de outras sonoridades.
O carnaval como acontecimento histórico deve ser percebido em seus
múltiplos sentidos, pois que para cada espaço, tempo e sujeitos, ele tem significados
diversos. Então é preciso tomar a festa como construção e invenção do social, dando
atenção aos conflitos e tensões simbólicas, bem como das práticas e representações dos
diversos atores sociais envolvidos nessa folia.

As mulheres se tornam personagens no relato histórico

Do mesmo modo que o carnaval, as mulheres só passaram a aparecer na


história enquanto objeto recentemente. É na década de 1970 na França, e antes ainda em
1960 nos Estados Unidos, que as mulheres conquistam seu espaço dentro da narrativa
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De 22 a 25 de abril de 2014
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histórica, uma vez que vários fatores científicos, sociológicos e políticos permitiram a
sua emergência enquanto objeto.
Observando esses fatores quanto à questão científica percebe-se uma crise
dos grandes paradigmas explicativos e uma renovação dos contatos disciplinares nas
décadas 60-70, que colaboraram para a formação de novas questões e para implantação
de novos objetos e metodologias. Já os fatores sociais tem haver com a presença das
mulheres nas universidades, seja como estudantes ou como docentes na década de 1970
que tornou possível um maior diálogo sobre questões femininas na academia. E os
fatores políticos estão relacionados ao movimento de liberação das mulheres que a
princípio não estava ligado aos estudos históricos, mas sim à busca de legitimar a
inclusão feminina e na desnaturalização da universalidade masculina (PERROT, 2008).
Até antes da chamada virada cultural as mulheres não estavam incluídas no
domínio do relato histórico, elas “(…) ficaram muito tempo fora desse relato, como se,
destinadas à obscuridade de uma inenarrável reprodução, estivessem fora do tempo, ou
pelo menos, fora do acontecimento” (PERROT, 2008, p. 16). As mulheres estavam
fadadas ao silêncio que fora concebido por razões acadêmicas passadas que não
valorizavam o povo, as minorias, os ditos excluídos da sociedade nas narrativas. E por
elas estarem pouco presente no espaço público, território de análise de maior interesse
do historiador tradicional.
As transformações da historiografia que culminaram nas revisões das
antigas correntes ou na criação de outras, junto com a interdisciplinaridade entre
ciências, compuseram o campo da história das mulheres, o silêncio enfim fora rompido.
E as formas de dar vozes a essas personagens variavam segundo as transformações que
ocorreram dentro do próprio campo.

A história das mulheres mudou. Em seus objetivos, em seus


pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos papéis
desempenhados na vida privada para chegar a uma história das
mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política,
da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres
vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas
múltiplas interações que provocam mudança (PERROT, 2008,
p. 15).
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No alvorecer dos estudos sobre a história das mulheres percebe-se uma


gama de transformações nas categorias analíticas quanto a esse objeto de estudo. As
categorias mulher, mulheres e gênero contribuíram para o debate a cerca da inclusão das
mulheres na historiografia, sendo utilizadas segundo preceitos de determinados grupos
sociais ou de pesquisa.
Nota-se que esse movimento dentro da academia, inicialmente se confunde
com uma necessidade de luta por direitos por parte das mulheres, principalmente através
dos movimentos feministas. No movimento feminista é possível identificar algumas
fases chamadas de “ondas” que favoreceram a construção dessas categorias. Em fins do
século XIX e início do XX ocorria a “primeira onda” feminista que estava ocupada em
garantir direitos políticos, sociais e econômicos às mulheres. Nessa “primeira onda” a
categoria “mulher” fora utilizada para se opor a palavra “homem”, que implicava na
generalização dos indivíduos (PEDRO, 2005). Inicialmente aparece nos estudos
históricos como afastada da categoria de “homem” em oposição a uma história
tradicional que colaborava com o silêncio feminino. Uso de “mulher”, neste caso,
reafirma uma identidade feminina distante da de homem. Porém essa categoria não era o
suficiente pertinente para contemplar as diferenças identitárias existentes dentro do
próprio grupo mulher. Louise Tilly afirma que

Ainda que definidas pelo sexo, as mulheres são algo mais do


que uma categoria biológica; elas existem socialmente e
compreendem pessoas do sexo feminino de diferentes idades, de
diferentes situações familiares, pertencentes a diferentes classes
sociais, nações e comunidades; suas vidas são modeladas por
diferentes regras sociais e costumes, em um meio no qual se
configuram crenças e opiniões decorrentes de estruturas de
poder (TILLY, 1994, p. 31).

O fato de possuírem uma identificação quanto ao sexo não as tornam iguais,


então, era preciso reconhecer as variadas identidades a que as mulheres estavam
sujeitas. Propôs-se então o uso da categoria “mulheres” que passou a ser utilizada nos
estudos históricos como tentativa de abarcar essas multiplicidades de identidade, e que
visava tornar as mulheres presente na história geral, reconhecendo que a condição
feminina era uma construção social e histórica. Grupos de pesquisadores reconheciam e
operavam com a categoria mulheres, pois acreditavam na capacidade contestadora da
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universalidade masculina e que era possível interferir no modo de pensar da história


tradicional.
Porém, outros grupos ainda achavam inadequada a abordagem pela
categoria mulheres. Consideravam-na uma abordagem descritiva, que não conseguia ir
muito além de um relato sobre a submissão feminina. Acusaram-na de não conseguir
fazer uma transformação na historiografia tradicional por ter sido localizada como
história temática, sem interferência na grande história. Assim, os insatisfeitos
intelectualmente com a categoria de mulher/mulheres propuseram uma teorização dos
estudos sobre as mulheres a partir do conceito de gênero.
A chamada “segunda onda” feminista surge na segunda metade do século
XX, que ampliando o debate sobre as mulheres, dedicou-se à luta pelos direitos ao
corpo e ao prazer, e ainda contra o patriarcado, que segundo Saffioti significa “relações
hierarquizadas entre seres socialmente desiguais” (2004, p.119). Devido aos novos
objetivos, é nesse momento que a categoria de gênero foi pensada e implantada pelo
feminismo e pelos grupos de pesquisadoras/pesquisadores nos EUA.
Neste debate passa-se a pensar no conceito de gênero como algo que
pudesse dar mais credibilidade as pesquisas e ampliar o alcance analítico dos objetos.
Era uma tentativa de se legitimar dentro do campo da história.

O termo “gênero” faz parte da tentativa empreendida pelas


feministas contemporâneas para reivindicar um certo terreno de
definição, para sublinhar a incapacidade das teorias existentes
para explicar as persistentes desigualdades entre as mulheres e
os homens (SCOTT, 1995 p. 85).

Robert Stoller, na área da psicanálise, foi um dos primeiros a utilizar a


palavra gênero, em 1968 por ocasião da publicação do livro Sex and Gender. Nesse
texto ele buscou conceituar gênero como uma identidade a ser escolhida,
independentemente do sexo, entendido como um dado puramente biológico. Joan W.
Scott em 1980, ao retomar a discussão do Stoller sobre a diferença entre gênero e sexo,
termina articulando-a a noção de poder. Na intenção de contribuir com a teorização do
gênero e consolidar o uso da categoria como importante para a análise da história, Scott
define gênero como “elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas entre os sexos” (1995, p.86).
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Tanto a Scott quanto a Louise Tilly concordam que o conceito de gênero


contribui para esvaziar o determinismo biológico e, junto com Natalie Zemon Davis,
admitem que não se deve buscar uma história isolada para as mulheres, como se
houvesse um espaço à parte onde elas atuaram, ignorando as relações entre mulheres e
homens, reafirmando, assim, uma noção de que a história das mulheres é menor que a
história geral, ou que o conhecimento sobre elas em nada mudaria o todo.
Assim, Nathalie Davis dizia em 1975: penso que deveríamos
nos interessar pela história tanto dos homens quanto das
mulheres, e que não deveríamos trabalhar somente do sexo
sujeitado, assim como um historiador de classe não pode fixar
seu olhar apenas sobre os camponeses. Nosso objetivo é
compreender a importância dos sexos, isto é, dos grupos de
gênero no passado histórico. Nosso objetivo é descobrir o
leque de papéis e de simbolismos sexuais nas diferentes
sociedades e períodos, é encontrar qual o seu sentido e como
eles funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la
(SCOTT, 1995, p. 72).

Gênero funciona como uma categoria analítica capaz de solucionar esses


problemas. Critica as abordagens descritivas por serem pouco operantes, pois elas não
dizem muito sobre os porquês das relações terem sido construídas como tal, ou como
funcionam e como se transformam. Mas ainda assim reconhecem sua importância, nem
que seja pelo fato de ter evidenciado as experiências das mulheres.
Segundo Scott (1995), para que a categoria de gênero tome esse potencial
analítico com força suficiente para questionar é preciso ter cuidado para não ocorrer em
relatos apenas descritivos, ou fazer da palavra gênero apenas um sinônimo para
mulheres sendo apenas associado ao estudo que se refere a elas. Ela elenca algumas
posturas que considera mais coerentes para as análises: partir de uma explicação
baseada no significado, procurando entender as representações; buscar romper com as
descrições rígidas que levam a uma cristalização do acontecimento, como sendo algo
dado; ampliar a visão que se tem do gênero para além das relações de parentesco
incluindo também o mercado de trabalho, a educação, a política.
Joan Scott baseia-se nos pós-estruturalistas para desenvolver suas pesquisas
no campo do gênero. Antes disso, em conjunto com Louise Tilly, escreveu o livro
Woman, Work and Family em 1987 com base na História Social. Mas por acreditar que
essa forma de abordagem reduz a ação humana em detrimento da economia, ela rejeita a
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história social como abordagem, e assume o pós-estruturalismo. Ela encontrou nessa


abordagem, proposta por Jacques Derrida e Michel Foucault, uma possibilidade de
enxergar as mulheres como sujeitos da história e gênero como uma categoria analítica.

Para Scott, as teorias da linguagem empregadas pelos pós-


estruturalistas ajudam a pensar “como as pessoas constroem
significados”, “como a diferença (e, portanto, diferença sexual)
opera na construção do significado” e “como as complexidades
dos usos contextuais abrem caminho para mudanças no
significado” (PINSKY, 2009, p.167).

Essas criações de significados entre os gêneros, baseados na diferença e na


hierarquia, são os meios por onde se instituem as relações de poder, e os interesses que
norteiam a construção dos significados são produzidos discursivamente. Scott pretende
assim analisar os processos de construção e legitimação desses significados, e acredita
que “a desconstrução é o método mais indicado para criticar, reverter e deslocar as
oposições binárias, revelando, com isso, o seu funcionamento, expondo os termos
reprimidos e desafiando o status natural da dicotomia dos pares” (PINSKY, 2009, p.
170).
Ainda discutindo os conceitos e usos de gênero, tem-se Judith Butler, no
campo da filosofia, que inova em sua análise, tomando outra postura em relação à
discussão proposta por Joan Scott ou por Louise Tilly. Butler, também com tendência
pós-estruturalista, visa desconstruir os conceitos rígidos e universalizantes, bem como
romper com a noção das relações binárias. Até mesmo a relação gênero e sexo é
desconstruída em sua discussão por considera-la determinista.

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição


cultural de significado num sexo previamente dado (uma
concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo
de produção mediante o qual os próprios sexos são
estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura
como o sexo para a natureza; ele também é o meio
discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou um “sexo
natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”,
anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a
qual age a cultura (BUTLER, 2008, p. 25).
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Butler (2008) não reconhece o sexo como dado natural, ou biológico. Para
ela, é o sexo também algo construído culturalmente. E também vai de encontro à ideia
de que gênero possa ser apenas uma decorrência do sexo, denunciando um caráter rígido
do entendimento de gênero enquanto definidor de uma identidade resultante de um
sexo. Sua tese é a de que o conceito de gênero é performático, ou seja, ele passa a ser
entendido como performances sociais, onde a teatralização dos gestos ou palavras criam
uma realidade.
A crítica feita à estratégia do pós-estruturalismo observa uma deficiência de
ferramentas para alcançar os objetivos propostos quanto à análise das práticas dos
sujeitos históricos, notado uma contradição existente no objetivo de analisar as ações se
elas são concebidas como discursos. Louise Tilly, que se situa no campo da história
social, é uma das que criticam o pós-estruturalismo, e rebate com a mesma acusação de
negação do sujeito:

A ênfase colocada no método e no texto (seja de um enunciado


formal, de uma "linguagem" ou de oposições binárias utilizadas
pela língua corrente) me parece subestimar a ação humana e
fazer pender a balança na direção de uma super-estimação da
coerção social. […] Scott preconiza um método que coloca
radicalmente em questão não somente as relações de poder, mas
também a existência de um mundo real e a possibilidade de
descrevê-lo e explicá-lo (TILLY, 1994 p. 50).

Os historiadores da cultura não ignoram a análise das relações de poder


baseadas nos discursos ou nas estratégias de nomeação, a objeção está apenas no
método da desconstrução. A história cultural ao assumir o estudo de gênero como uma
categoria analítica ofereceu outros métodos e ferramentas de pesquisa capazes de
observar níveis mais sutis da dinâmica social como o campo das representações sociais
(CHARTIER, 1991). Ampliaram os tipos de fontes para análise de representações e
relações entre gêneros, como diários, cartas, testemunhos, mídias impressas, e ainda
através de discursos de outros, onde o interesse se concentra nas práticas, nas
significações, e nas tensões no cotidiano dos sujeitos históricos.
Essas reflexões sobre o uso de mulheres ou gênero enquanto categorias
analíticas da história sugerem muitas possibilidades de análise. É necessário tomar uma
decisão de acordo com o interesse do estudo. Então, a partir desse encontro com as
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experiências das mulheres no passado, tenta-se apresentar uma interpretação crítica,


levando em consideração suas atuações, suas diferenças identitárias e suas concepções
de si e do mundo, lembrando sempre das questões discursivas e construídas, mas não
ignorando a realidade do acontecido.

Diálogos entre o carnaval e as mulheres

A temática do carnaval unida à categoria de gênero ou de mulheres ainda é


pouco abordada pela historiografia por motivos do começo tardio dos estudos sobre
mulheres na história, mas também pelo tardio interesse pelo carnaval que, tomado pela
história tradicional como uma manifestação menor ligado às práticas populares, também
demorou a aparecer como tema de estudos. Os trabalhos publicados que fazem essa
articulação são, na sua maioria, capítulos de um trabalho mais amplo, ou artigos em
revistas científicas.
Maria Isaura Pereira de Queiroz é uma antropóloga que trabalhou os festejos
carnavalescos no Brasil no Livro Carnaval brasileiro: o vivido e o mito, e reservou um
espaço para a discussão das mulheres na festa. No livro ela chega à conclusão de que
sua participação fora limitada e restrita. No Entrudo, ainda que houvesse uma espécie de
contato maior entres os gêneros, tudo era realizado sob a vigilância dos pais. E no
chamado carnaval burguês, que identifica como o carnaval com base no carnaval
europeu, à mulher é legado o papel de espectadora do espetáculo elaborado pelos
homens.
Na historiografia encontram-se estudos sobre o carnaval, desde o entrudo
aos carnavais de hoje. Caroline Pereira Leal dedica-se a temática das mulheres unida ao
carnaval em Porto Alegre tanto na dissertação como na tese. Em ambos os trabalhos, ela
se ocupa de observar a participação e os papéis das mulheres na festa carnavalesca, bem
como as transformações ocorridas nas formas de permissão da participação feminina.
Na dissertação, intitulada As Mulheres no Reinado de Momo: lugares e
condições femininas no carnaval de Porto Alegre (1869-1885) de 2008, o recorte
temporal está entre os anos de 1869 a 1885, focando no Entrudo a importância e os
papéis dessas mulheres na festa. Ela defende a ideia de que mesmo com o desejo das
elites em realizar a moralização da festa, expurgando a brincadeira do Entrudo, as
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mulheres de sua forma agiram para se manter atuantes na festa. Partindo do princípio
que era o entrudo uma festa onde a participação das mulheres era garantida e sua
liberdade, ainda que limitada, era exercida, as mulheres não aceitaram perder o espaço
de atuação e tornarem-se simples espectadoras dos espetáculos elaborados pelos homens
com a intenção de moralizar o carnaval considerado “licencioso e bárbaro” que era o
entrudo e conceder a cidade de Porto Alegre os ares modernos. E nessa situação, Leal
busca apresentar a tomada de atitude dessas mulheres insatisfeita com o novo papel e
que tenta assumir o lugar de atuação, inclusive mantendo a brincadeira do entrudo nos
bailes.
Na tese, defendida em 2013, Leal dá continuidade a pesquisa, que intitulada
Festas Carnavalescas da elite de Porto Alegre: Evas e Marias nas redes do poder
(1906-1914) foca nessa significação dos papéis das mulheres de elite no carnaval
moralizado, pois acusadas de serem mantenedoras do Entrudo, carnaval bárbaro e
licencioso, tornou-se preciso recolocá-las em outro espaço dentro da ordem
carnavalescas, representadas agora pelas Sociedades Carnavalescas, agremiações
formada pelas elites. Nesse segundo ciclo das Sociedades Carnavalescas, a autora
observou transformação na participação feminina, que agora possuía mais destaque, só
que sob a condição de uma boa conduta. Agora elas estavam sendo usadas para o
reforço de um bom comportamento, de onde advinham as representações sob os
símbolos de Evas e Marias.
Cristiana Schettini Pereira, historiadora que atua na área de estudos de
gênero, e que em alguns textos procurou associar essa temática ao carnaval, observou a
participação das mulheres no carnaval carioca em fins do século XIX, principalmente
nas Grandes Sociedades Carnavalescas, tipo de agremiação que consistia em tomar para
si uma função pedagógica de moralização e civilização do carnaval. Nesse contexto,
essa agremiação que insistia em ser predominantemente masculina, delegou às mulheres
“de família” o papel de espectadoras bem comportadas, no sentido de conferir a
agremiação o status de luxo e elegância. Esses atributos luxuosos também eram
exibidos na ornamentação dos carros e nos desfiles, em conjunto com os elementos
luxuriosos onde havia a exposição de mulheres que, nesse caso, eram utilizadas como
elementos animação da festa e de uso para os homens. Nesse caso, a intenção da autora
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é analisar a diversidade dos papéis e representações do feminino na festa, e como elas,


em suas variações, respondiam a essas funções.
Ao se dedicar ao tema do carnaval carioca entre da Belle Époque a Era
Vargas, Rachel Soihet (2008) opta por uma narrativa que entende o carnaval mais por
uma força transformadora e geradora de mudanças sociais que por válvula de escape,
que promove uma teatralização da inversão com fins de manutenção da ordem. Também
observa a existência de uma circularidade cultural, que ela entende como a
movimentação entre diferentes segmentos sociais, de baixo para cima, e de cima para
baixo. E pensando dessa forma, a historiadora, identifica essas transformações sociais
também na questão do público feminino. Ela percebe, através das representações
femininas nos jornais e na literatura da época, que existe uma tendência em afirmar as
teorias da fragilidade moral feminina, que implica em seu caráter infiel, desonesto e
dissimulado. Logo, pensa-se na indecência que é o carnaval para essas mulheres, e na
necessidade de mantê-las afastadas dessas práticas ou da vigilância necessária à qual
devem ser submentidas. São mulheres que longe de seus guardiões, pais, maridos,
irmãos, se perdem nos considerados “caminhos sórdidos” da festa, e que em troca
perdem a honra, um bom casamento, e às vezes até a vida.
Soihet (2008) sente nessas representações uma espécie de misoginia, onde
só se olha para esse suposto mau caráter feminino, e não enxergam o lado das mulheres
diante das práticas autoritárias masculinas. Porém, a historiadora também apresenta a
existência de representações mais brandas dos segmentos populares, nas quais os
homens não reagem com tamanha violência ao abandono ou traição feminina, e sim
com o choro. Homens que preferem deixar as mulheres livres para viverem outras
experiências ao perceberem que já não são interessantes para elas. Com esse dado, ela
chega a entender que nas camadas populares, a rigorosidade em torno do
enquadramento feminino não era tão forte. E por acreditar na circularidade cultural
acredita que essa postura circulou até os segmentos mais abastados da sociedade,
promovendo mudanças sociais.
A historiadora Zélia Lopes da Silva procurou preencher esse vazio que há
na historiografia sobre a participação das mulheres nas festas carnavalescas. Através de
vários artigos, ela escreve sobre a trajetória de acesso ao espaço do carnaval por parte
do elemento feminino entre as décadas de vinte e trinta do século XX, ora na cidade do
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Rio de Janeiro, ora na cidade de São Paulo. Ela entende que, a bibliografia especializada
ao retratar o carnaval como predominantemente masculino quanto a questão de atuação
e organização da festa nos espaços tanto público como privado, e delegar às mulheres a
função de coadjuvante, o fez de forma exagerada. Embora admita que esse exagero
possa decorrer da carência de fontes sobre a participação feminina, para além da própria
situação em que essas mulheres se encontravam quando se pensa em sua circulação ou
nos papéis definidos pela sociedade, ela acredita ser possível transpor essa barreira da
invisibilidade feminina explorando fontes diversificadas. Ao explorar essas fontes, ela
busca interpretar que apesar das regras rígidas de comportamentos impostas às mulheres
dos diversos segmentos sociais, o carnaval possibilitou, ainda quando tentou-se
moraliza-lo, novas experiências a partir de padrões de valores diferentes, onde as
imagens positivas ou não atingiam igualmente as mulheres da elite até as populares.
Olga Rodrigues de Moraes Von Simson estudou a presença feminina no
carnaval, percorrendo o caminho do Entrudo até as Escolas de Samba no Rio de Janeiro,
e em São Paulo. Seu interesse é mostrar qual o papel do elemento feminino na criação,
organização e manutenção dos festejos carnavalescos, acreditando ter sido as mulheres
um elemento indispensável nos festejos momescos, porém levando em consideração as
diferentes camadas sociais, os deferentes tipos de folguedo e os diversos tempos.
O livro Sem elas não haveria carnaval: mulheres do carnaval do Recife das
autoras Claudilene Silva e Ester Monteiro de Souza enfoca a participação das mulheres
na organização das agremiações que fazem a folia no carnaval recifense desde a
segunda metade do século XX até os dias atuais. Baseadas metodologicamente na
história oral, as autoras colheram 30 depoimentos de mulheres atuantes no carnaval da
cidade como corpus documental para a realização da pesquisa. São depoimentos de
mulheres que ocupam posição de liderança nas mais diversificadas agremiações da
cidade, onde relatam as suas experiências e práticas dentro desses espaços.
Esse livro desempenha uma função social bastante referenciada ao longo do
texto pelas autoras: “dar voz aos sujeitos como protagonistas de suas histórias” (Ester,
2010, p. 21). Ou seja, tentar dissipar os silêncios e a invisibilidade das mulheres na
participação do carnaval. O texto busca clarificar que apesar da situação de
silenciamento em que se encontravam as mulheres elas sempre tiveram sua parte na
colaboração da festa, desde a época do entrudo, e de como esse espaço aos poucos
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foram sendo ocupados. Porém o enfoque do texto está nas carnavalescas do século XXI,
com relatos que versam sobre as próprias vivências e papéis, e deixam escapar os
movimentos do cotidiano, para além dos dias de festas na rua como: as tensões ou os
momentos de solidariedade; a organização do trabalho; a mistura com os espaços da
família e da religião; o enfrentamento dos preconceitos e o ganho de respeito dentro da
agremiação.
Em seu conjunto, estes estudos mostram que apesar das mulheres terem sido
mantidas fora do relato historiográfico durante muito tempo, isso não implica que eram
inativas. Ainda que nas sombras e sem plateia, elas eram atuantes dentro de suas
possibilidades transformando o contexto em que estavam inseridas. Hoje, sendo a
historiografia atenta a essas personagens, é perceptível o aumento de trabalhos que
contemplem as mulheres em seus fazeres em inúmeros espaços e tempos conferindo-
lhes atuação. Esse debate deseja se inserir neste movimento historiográfico de visualizar
a mulher como grupo social que vivencia o carnaval, como sujeito histórico que opera
os códigos culturais de sua época para brincar o carnaval, para vivenciar a folia.

Por uma história das mulheres na folia

Além dos motivos relacionados ao recente aparecimento na historiografia do


carnaval e das mulheres, o próprio carnaval fora concebido como uma festa masculina,
o que poderia ter encoberto a participação feminina. Quanto à questão do carnaval como
festa masculina, em Burke (2010) observa-se uma representação do carnaval como um
homem, o deus Momo, jovial, gordo, guloso e beberrão. É certo que Burke (2010) narra
o contexto europeu do século XIX, diferente do que se apresenta no Brasil. Porém isso
não impede de tentar-se localizar o que dessa representação pode ter sido incorporada à
realidade brasileira.
Na literatura carnavalesca, tanto acadêmica ou romântica, ver-se um
carnaval considerado parvo, arruaceiro, perigoso, onde os exageros são cometidos,
como o deus momo de Burke (2010). Pensando nesse perfil masculino essencializado
do carnaval, logo pode-se considerar que ele estaria oposto ao perfil considerado
legítimo para as mulheres. Então esse dito caráter permissivo e licencioso do carnaval
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afastava as mulheres de “família” da festa, mais isso não implica que elas não estavam
lá, no meio da folia.
Como visto nos estudos citados, as mulheres estão presente na festa desde o
chamado entrudo, manifestação identificada como carnaval e herdada dos colonizadores
portugueses. Nas ruas, nos bailes, nos carros alegóricos, há também essa presença
feminina. De diferentes idades, classes sociais, e ocupando diversas funções no carnaval
elas estão lá, ainda que nas sombras ou na invisibilidade. Então é preciso perceber essa
presença, visualiza-las em seus movimentos e trajetórias, enxergar seus momentos de
tensões e conflitos, resistências e astúcias.
Com o campo da história das mulheres a passividade atribuída a elas foi
desconstruída, pois que como atores sociais, elas contribuíram para a formação da
sociedade a partir de seus desejos e interesses, assim como por meio de suas relações
com a família, o trabalho, a política, ou o lazer. Essas relações e desejos podem ser
alcançados através da análise do carnaval, assim, comportamentos e práticas das
mulheres na folia em muito podem contribuir para a compreensão da realidade social,
ainda que através de uma brincadeira.

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EXÍLIO E O CONTATO COM OS DEBATES FEMINISTAS


KARLA DANIELA GOMES DA SILVA
Universidade Federal de Pernambuco
Karlagsilva2013@gmail.com
Resumo:
O presente artigo dedica-se a debater a experiência de militantes exiladas, e seus
primeiros contatos com debates enquanto um grupo. Tomando como base a experiência
de vida de Cristina Buarque, integrante do grupo trotskista na época, o trabalho trata de
como a militância, e a situação política do país, não permitia a essas mulheres muito
espaço para que se organizassem nem pensassem enquanto um grupo distinto. Foi então
na situação do exílio, que muitas encontraram tempo e espaço para se voltarem para
essas questões, e até mesmo ter o primeiro contato com elas.
Palavras Chave: Feminismo; Exílio; Grupos de Mulheres em Paris.
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A instauração da ditadura Civil-militar brasileira marcou fortemente as gerações


que vivenciaram tal experiência, e ainda mais aqueles que carregaram e até hoje
carregam as marcas deixadas por esses anos de repressão. A América latina encontrava-
se num período de bastante efervescência e movimentação, e no Brasil a situação não
era diferente, com a retirada do presidente João Goulart do poder, uma junta militar
instaurou-se no governo do país, implementando e se edificando em um sistema de
segurança nacional, que visava proteger e diminuir a ameaça comunista, sendo esta uma
preocupação bastante latente no continente principalmente após a consolidação do
governo comunista cubano.
Logo esse sistema demonstraria sua força, e o nível de organização que o
formara marcando principalmente militantes contrários ao golpe, não sendo
infelizmente necessário enumerar as ações que desde aquele período já se fazem
conhecidas, e que ainda chocam pela brutalidade com a qual foram cometidas. No
entanto mesmo em um cenário de forte repressão e perseguição, a presença e ação de
alguns grupos foram importantes para a resistência.
Tinha-se então um cenário bastante masculino até então, onde a mulher assumia
normalmente um papel secundário, e com papeis e ações devidamente programados
pelas normas morais que regiam aquela sociedade. Com isso, sua presença no espaço
público, no mercado de trabalho, nas instituições de formação superior, era uma
presença bastante peculiar. Para exemplificar esta situação, pode-se pensar um pouco
em relação ao nível escolar de muitas mulheres, onde a formação superior, apesar de ser
um motivo de preocupação e orgulho para muitas famílias, não era algo exigido
socialmente dessas mulheres, que deveriam cumprir seu papel na sociedade dedicando-
se ao papel de esposa e mãe.
Essa movimentação quanto à conquista de um novo espaço, já ocorria em ações
particulares de mulheres que desejavam transitar em outro âmbito, e que paralelo ao
plano de formar uma família, incluíam entre seus planos alguns outros objetivos. Assim
mesmo sendo esse período tão conturbado, representou à mulher a conquista de um
espaço público que ainda lhe era estranho, uma vez que esta ainda desempenhava a
maior parte de suas atividades e papel dentro do âmbito familiar, enquanto cabia aos
homens o espaço público. Com os inúmeros casos de prisões e desaparecimentos de
seus parceiros, recaia então para as mulheres esse papel de sustentação da família, e
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logo aumentou cada vez mais sua presença no mercado de trabalho, uma vez que as
empresas e indústrias sentiam cada vez mais a necessidade de mão de obra, mesmo que
esses empregos não representassem as melhores condições de trabalho, assim como
passou a acentuar-se tanto o anseio quanto a presença feminina dentro de universidades.
Partindo de um registro oral de Cristina Buarque, atual Secretária da Mulher do
Estado de Pernambuco, e de seu relato das experiências que carrega do período citado, o
presente trabalho se utilizará então destas experiências, com ponto de partida tanto para
analise da condição da mulher nesse período, assim como para analisar o contexto que
foi a experiência do exilio a muitas mulheres, e as consequências que se seguiram a
isso. Iniciando nossa analise, entendendo o ambiente no qual as mulheres circulavam, e
o como todo o contexto influenciava na sua colocação diante da sociedade.
A inquietação diante desse cenário partirá de diversos grupos que se
mobilizaram da maneira que puderam através de passeatas, de atos de protesto, de
organizações mais elaboradas. A luta armada pode ser um exemplo emblemático, de
como não se estava apática diante dessa situação, e não apenas a luta armada, mas
aqueles que não partilhavam da ideia de usar a força bruta, encontravam outra forma de
resistir ao aparelho de opressão organizado pelo estado.
A partir de organizações religiosas, mais engajadas em questões sociais, através
do movimento estudantil, ou por influencia de algum parceiro, ou membros da família,
as mulheres adentravam no meio político. A participação de Cristina, por exemplo, se
inicia pelo movimento estudantil, pelo qual tinha acesso a debates de cunho mais social,
e acesso também a leituras e ideias que esperançavam em uma nova organização da
sociedade, diante dos problemas com os quais esta se defrontava, principalmente entre
os grupos de orientação esquerdista.
Tanto a participação quanto à militância de muitas mulheres destinava-se a
questões de ordem social e política, mas já se colocava em questão também questões
pontuais a mulher, como a lei do divórcio, que mobilizou as mulheres em prol desta
causa. No entanto, esta mobilização não representava ainda a organização das mulheres
enquanto um grupo. Essas mulheres ainda não encontravam um espaço prodigo para
debates específicos sobre a mulher.
Apesar do espaço que as mulheres adquiriram nesse período, sua militância e
organização não se dava enquanto uma classe, um grupo. Essas mulheres adentraram as
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organizações de esquerda, e dentro dessa ideologia faziam parte de um grupo, de uma


massa, tendo como bandeira a luta de classes, e as causas sociais. Muitas questões ainda
eram colocadas para as mulheres, e muitas militantes enfrentaram dilemas, assim como
abriram mão de muitas coisas para participarem desse meio político.
Levando em consideração de que todos os espaços que adquiriram essas
mulheres, ainda se deparavam com problemas comuns, alguns persistentes até hoje, que
é a dupla jornada de trabalho, uma vez que essas mulheres, além do emprego, ainda
tinham de lidar com a jornada de trabalho dentro de casa, com os afazeres domiciliar e o
cuidado para com os filhos. E algumas mulheres, revelam serem questões como estes
motivos de debates internos com seus companheiros, uma vez que mesmo que não
houvesse toda uma politização na causa feminista, mas elas enxergavam e
principalmente sentiam que as diferenças e os dilemas eram ainda maiores para elas,
que tinham ainda de provar e impor sua participação e atuação na vida pública, e para
sociedade.
As marcas deixadas por esse período para as mulheres são profundas, pelo
momento de descobrir qual era seu papel, e onde este se encaixava em todo aquele
contexto. As situações para mulheres casadas e solteiras apresentavam-se de maneiras
distintas, mas esbarravam em alguns pontos, mesmo que estas optassem por algumas
escolhas diferentes, ainda assim, novamente se encontravam em determinados pontos.
Uma distinção interessante, colocada por uma militante¹, é o fato de quando mulher era
sozinha, ou seja, era solteira, e estava dentro desses partidos, tinha a voz para decidir e
recuar no momento em que quisesse e sentisse que não dava mais. No entanto, para as
mulheres casadas com militantes, o contexto era outro, estas estavam na maioria dos
casos imbuídas de uma obrigação de seguir seus maridos, onde quer que fossem,
precisavam acompanhá-los por diversos motivos de lealdade e de responsabilidade
enquanto esposa.
Voltando-se ao depoimento de Cristina Buarque, é possível fazer uma
construção do cenário, no qual a mulher se inseria naquele momento. Mesmo que
aquele contexto fosse de uma maior atuação feminina em organizações políticas, sua
participação nesses movimentos e organizações ainda era vista de uma forma
“pequena”, segundo Cristina. Ainda havia todo um machismo, e um moralismo, onde o
papel da mulher ainda estava muito ligado à família, a maternidade, e isso se fez
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presente até mesmo das organizações de esquerdas. Era ainda bastante enraizado o
pensamento de que tipos de profissões estavam destinados às mulheres, e que profissões
destinavam-se aos homens, e o fato das mulheres transgredirem essa barreira,
obviamente representa uma grande passo, mas muitos outros ainda estavam por fazer.
Mesmo dentro das organizações de esquerda as mulheres sofriam com situações
dentro destes, que a colocavam em figuras de segundo valor, uma vez que
desempenhavam papéis considerados pequenos dentro dos próprios partidos, ações
secundárias, funções que iam desde panfletagem, a cozinharem para os companheiros, e
abrigarem em suas casas pessoas refugiadas. Deixando para algumas mulheres um gosto
amargo do segundo plano.
“Enfim, para que gritar, o primeiro prazer desce pela boca e pode até
ser recompensador o sorriso de grandes heróis após um ragu bem apreciado,
não é assim, minhas caras guerreiras de Atenas?” (COSTA, 1980, p.231)
Assim como o engajamento dessas mulheres, partia de um ideal revolucionário,
até “romântico” segundo Cristina, de quem queria por em prática a revolução, e efetivar
o contragolpe. O que fica latente nesse período, é que os debates e reivindicações
relacionadas ao gênero, não se faziam presentes nesse período, havia sim um
engajamento, mas por causas comuns a todos, que se houvesse beneficio que não fosse
especifico. Havendo assim uma sensação de igualdade entre homens e mulheres, para
Cristina no contexto da repressão, no sentido de ser que as ações truculentas e violentas
por parte do Estado, destinadas tanto a homens quanto a mulheres, no exercício dos
confrontos e agressões físicos, homens e mulheres sentiam as dores e os horrores nas
mesmas proporções, não havia nesse momento distinção entre eles.
Essas mulheres então sentem uma repressão por diversos agentes e fatores, e que
até se projetarão em ações particulares na busca por seus objetivos. E o contexto do
país, não permitia muito espaço para organização e reivindicações, e logo se sentiu a
necessidade de sair do Brasil devido à forte repressão, e para muitos a alternativa mais
segura era a fuga, o exílio do país. E muitas mulheres fizeram esse mesmo caminho,
partindo para acompanhar seus companheiros, ou fugindo por serem alvos de
perseguição. Nesse contexto, optei por dedicar minha pesquisa aos primeiros contatos
das militantes, no contexto do exílio, relevando a importância dos grupos que se
formaram em Paris, para os debates de questões relacionados à mulher, saíssem de um
ambiente intimista, e adentrassem de vez o espaço público, de fato. Apontando a
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relevância que teve para muitas mulheres essa experiência, que apesar de deixar marcas
traumáticas em alguns sentidos, pôde trazer também a muitas um novo vigor, no sentido
de trazer a estas uma nova militância, por causas agora tão próxima as suas realidades.

O Exílio
Pela proximidade, os países da América Latina foram os que inicialmente mais
receberam exilados políticos, e o Chile, uma vez iniciado o governo de Salvador
Allende, foi um dos países latino-americano que mais recebeu exilados, sendo este pelo
menos o primeiro destino de refugio. Foi dessa forma que ocorreu também para Cristina
Buarque, que saiu do país já sendo caçada, assim como seu companheiro, que já havia
sido preso uma vez, partem então para o Chile, e lá ela deu a luz ao filho.
“Então a experiência, é uma experiência de grande solidão o exílio,
por que é, pode ser que o exílio em Portugal não seja isso, mas o exílio na
Alemanha era, tava impedida de entender a televisão, por que eu não entendia
a língua, eu tava impedida de entender o jornal por que eu não entendia, eu
não conseguia ler, eu não conseguia falar com uma vizinha, eu não conseguia
saber comprar direito” (Depoimento colhido em uma entrevista com Cristina
Maria Buarque, Recife, 2014)
A primeira sensação do exilado é a do impacto, de mudar de país, e ter de
adequar-se a outra cultura, outra língua, outros hábitos. Muitas mulheres
experimentaram a solidão, devido ao fato de terem novamente de limitar-se ao ambiente
doméstico, muitas agora eram mães, e tinham de assumir novamente a rotina domiciliar.
É nesse contexto que muitas vivenciam um machismo mais forte por parte de seus
companheiros, postura que não foi tão exposta por eles no Brasil, devido à diferença de
circunstancias. Enquanto os militantes voltavam a trabalhar, e a sua atividade de
organização política, as mulheres sofriam novamente a restrição do espaço público, que
se refletia na dificuldade em enfrentar as mudanças.
Mesmo diante de dificuldades, aos poucos esses exilados tentaram reerguer-se
novamente e tentar colocar a vida outra vez no eixo, mas o golpe chileno desfez esses
planos. O golpe do General Pinochet, alterou novamente a vida cotidiana e política
desses brasileiros, que vivenciaram novamente as tensões de um golpe, marcados
principalmente por já terem voltado a militância, e terem alimentado as esperanças que
ainda lhes restavam quando deixaram o Brasil, durante o governo de Allende. Os novos
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destinos de exílios variavam, alguns seguiram para Cuba, mas a maioria seguiu para a
Europa.
O exílio sempre parecia mais duro para essas mulheres, que tiveram de
conquistar esses espaços novamente, praticamente sozinhas. Elas sentiam a necessidade
de ter a liberdade de ir e vir, o que não lhes era fácil no ambiente totalmente
desconhecido que agora se encontravam. As mulheres tiveram de conquistar novamente
sua “autonomia” a passos lentos. “Às vezes creio até, exílio/independência
conseguimos a duras penas e sem Pedro I.” (COSTA, 1980, p. 232).
No relato de muitas mulheres, o exílio significava um resignificação de quem se
era, e isso era ainda mais latente para mulheres que além de estarem em outro país,
assumiam uma nova identidade, mulheres que viviam na clandestinidade. E nesses
relatos, a situação se torna ainda mais angustiante, por serem mulheres que tinham de
deixar de lado suas referencias, família, seu passado, que tinham de assumir um novo
nome e uma nova vida. Estas conviviam com a angustia de se distanciar um pouco mais
de quem se era, todas as vezes que tinham de assumir uma nova identidade.
A clandestinidade no Brasil era uma coisa, por que ainda se tinha conhecimento
para lidar com as novas situações, mas fora do país era totalmente diferente. E para
muitas esse distanciamento ficava mais latente, cada vez que sua nova identidade não
era questionada. Tanto o exílio quanto a clandestinidade, são situações extremas, que
exigem posturas extremas dessas pessoas que a vivenciaram, são situações onde de
qualquer maneira, deixa-se um pouco de lado quem se é, para lutar pela própria
sobrevivência, e muitas vezes se descobre uma força sobre maneira para resistir a tudo
isso.

Grupo Latino-Americano de Mulheres (1972-1976) e o Círculo de Mulheres


Brasileiras em Paris (1975-1979)
A partir de 1968, depois do AI 5, mais brasileiros deixaram o país, e isso
intensificou ainda mais o fluxo de exilados que se refugiavam em Paris, e nesse grupo
havia um número considerável de mulheres, composto tanto de militantes, como de
mulheres que acompanhavam seus parceiros, assim como daqueles oriundos do Chile,
que partiram desse país, depois do Golpe de Pinochet. Sendo então a maioria dessas
pessoas militantes de esquerda, influenciados por uma ideologia marxista, que lhes
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cobrava certa disciplina quanto à militância, um exemplo disso, é a cobrança quanto à


participação nas reuniões do partido assim que conseguiam se organizar minimamente
no novo país.
E isso se fez logo presente quando esses homens conseguiram determinada
estabilidade no exílio, uma vez que voltaram a militar, e a participar das reuniões, mas
nesse sentido, deixaram para as mulheres não mais o espaço de militância, mas o espaço
limitado do meio doméstico. E foi justamente nesse contexto de distanciamento com a
militância política de suas organizações, e diante das adversidades com as quais se
deparavam no exílio, que a busca pela aproximação com pessoas que fossem do mesmo
país de origem era algo constante, e assim, grupos iam se formando dessas mulheres,
que desejavam de algum modo sentir-se próximas do Brasil, e encontravam essa via
através do contato com outros brasileiros.
A busca por essa proximidade não era algo que acontecia apenas no exílio
europeu, mas dava-se nos diversos casos de pessoas que se viam praticamente sozinhos
eu um país que não era o de origem, e a formação desses grupos é registrada em vários
países. Para as mulheres, a formação de grupos de exiladas, teve uma importância
peculiar e particular a elas. Esses encontros permitiam as exiladas particularmente, um
ambiente diferente do qual se colocavam no Brasil, pois abriam um novo espaço de
debate para as mulheres, que nesses encontros tanto podiam entrar em contato com
outros brasileiros, como começaram de certa forma, se organizar para pensarem
enquanto um grupo.
Os grupos europeus marcavam, pela influencia que traziam sobre questões
feministas que já fomentavam na Europa, abriam então espaço para as exiladas
pensarem questões relacionadas à mulher. A existência de grupos de exilados foi de
extrema importância, principalmente por trazer o debate ao ambiente público. O “Grupo
Latino Americano de Mulheres”, foi um desses grupos, que criavam um ambiente de
discussão marcando pela reunião das exiladas, para conversas informais, a respeito das
experiências de cada uma, e debate então os pontos incomuns. Fundado por Danda
Prado, uma ex-militante comunista, e para quem o exílio foi uma escolha, de certa
maneira esta rompeu com os padrões, e com o que lhe era colocado dentro do grupo.
Cabe ressaltar a importância desses encontros, principalmente por que o
ambiente das organizações políticas dessas mulheres, também não favorecia a
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organização. Dentro da organização comunista, não havia espaço para reivindicações


especificas de grupos, e ainda menos para as questões relacionadas às mulheres, uma
vez que esse partido tinha como raízes o marxismo em sua forma mais dura, e as
questões das mulheres para eles significavam tanto um desvio de atenção do partido, um
desvio pequeno-burguês, assim como um estrangeirismo, devido a influencia exterior.
Segundo o discurso comunista, as reivindicações de todos os grupos seriam atendidas
com a Revolução, todas as necessidades estariam sanadas.
E logo os homens demonstraram-se contrários a esses encontros, no exterior,
bastante imbuídos desse machismo que partilhavam dentro do partido, chegando so
ponto de a Frente de Brasileiros no Exílio, ameaçar retirar o apoio às famílias daquelas
mulheres que continuassem a participar desses encontros. O principal argumento para
essa postura agora, era de que essas reuniões, esses grupos não iriam contribuir para a
luta que se travava no Brasil.
Ainda assim, essas mulheres mantiveram seus encontros, e a organização destas
foi tamanha, que chegaram a publicar boletins, onde debatiam suas questões, e tentavam
levar o debate mais além de seus círculos de conhecimento. O depoimento de uma das
militantes desse período marca bem o quão importante eram esses encontros para as
militantes, para mulheres que viviam a solidão do exílio, que sentiam a solidão
domiciliar, e que encontraram nesses grupos, outras que partilhavam dos mesmos
anseios e angustias.
“[...] era lindíssimo você ver então pessoas que nunca na vida
tinham falado em público, nunca tinham dado uma aula, nunca tinham
realmente se manifestado como seres humanos e que de repente começavam
a falar [...] Havia temas que me interessavam mais, temas que me
interessavam menos, mas o que me interessava fundamentalmente era ver
como nós éramos parecidas; era a gente ver como nossa dor, enfim como a
nossa... como nosso inconsciente tinha sido forjado da mesma maneira.
Idades inteiramente disparatadas, formações inteiramente disparatadas e
aquele negócio sagrado, aquela hora era uma vez por semana... eu acho que
se fosse toda noite a noite haveria gente toda noite, porque o importante era
aquele encontro.” (PINTO, 2003, pág. 53)
As edições do Boletim “Nosotras” resistiram até 1976, ano de sua última
publicação. Era um boletim, produzido e publicado, com o lucro de suas vendas. Neles
as mulheres publicavam os principais debates que tinham dentro do grupo, e
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demonstravam também a influencia que recebiam dos movimentos feministas europeus


e norte-americanos. Um apontamento importante a se fazer, é que o grupo era formado
por mulheres latino-americanas, e que no contexto desses debates, começaram a
perceber as diferenças que permeavam elas, das europeias, e das norte-americanas.
Nesse grupo, as diferenças que se apresentavam as latino-americanas auxiliaram para
que elas assumissem outra postura, e para que reformulassem suas demandas, e mesmo
que tenham bebido da influencia europeia, já não absolviam tudo sem antes uma
pequena reflexão de todo o contexto.
O “Nosotras” não era o único boletim produzido por esses grupos, o “Agora é
que são elas”, foi outro tipo de publicação que tratava das questões relacionadas a
mulher, e aos seus principais debates. Esses jornais tinham como proposta, levar a
outras mulheres essas discussões e demonstrar que elas não estavam sozinhas diante dos
problemas e dilemas que se apresentavam.
O grupo mesmo com toda sua efervescência ideologia, encerrou suas atividades
em 1976. Mas seu termino não significou o fim dessa movimentação feminina, uma vez
que outros grupos se organizavam na Europa, e a troca de experiências, e debates não se
limitava mais aos grupos, mas agora assumiam proporções maiores, conversando entre
os grupos. A própria Cristina, se reporta a uma comunicação delas, com outras mulheres
no contexto do exílio, e logo depois com mulheres que se encontravam no Brasil, e
através destas trocavam experiências sobre o que estava acontecendo, e sobre os debates
que vinham surgindo. E nesse sentido, outro grupo de mulheres foi de extrema
importância para levar os debates do âmbito interno, para o meio público.
O “Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris” trazia agora, um grupo a uma
influencia política de esquerda, mais ligada ao debate sobre as questões de classe. Mas
dentro desse contexto, sua luta por um reconhecimento, ou por uma maior reflexão das
mulheres enquanto um grupo era ainda maior, deixando claro, sua ligação maior com o
feminismo europeu. Nesse grupo as mulheres tinham contato com debates como a lei do
aborto, que já era tema bastante discutido em alguns países que essas mulheres foram
exiladas, sobre os métodos contraceptivos, com questões relacionadas ao trabalho, ao
direito ao uso do corpo. Eram temas que tocavam especificamente as mulheres. Nesse
sentido o Círculo de Mulheres em Paris, partia da luta de maior autonomia para as
mulheres, e agora ainda mais engajadas com os ideários marxistas, mas de certa
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maneira, partindo de sua própria interpretação dessa ideologia, e tentando fazer-se


elemento autônomo nesse processo.
Uma questão fundamental para a importância desse grupo, foi o fato dele
estimular a criação de um espaço pública de reflexão mais amplo para as mulheres, e
não apenas de reflexão. Estimulavam também o intercâmbio de informações, com o
grupos no Brasil. E deve-se aqui fazer m distinção destes. No Brasil, o contexto
político, cobrava dessas mulheres outros tipos de engajamento, uma militância em
instâncias mais sociais. As conversas sobre questões relacionadas à mulher,
principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde esses grupos se organizaram
primeiro, ainda permeavam um ambiente muito intimo e reservado, até mesmo
fisicamente, uma vez que os encontros que se faziam no Brasil, se davam no ambiente
doméstico, em encontros com características de sarais.
O que não anula a importância desses encontros, uma vez que foi através deles
que leituras fundamentais foram feitas, e eram justamente esses grupos que trocavam
debates com aquelas que ainda se encontravam exiladas. Já em Paris, o Círculo de
Mulheres, trazia estas para outros contextos além do domiciliar, os encontros se faziam
em bares, e nem sempre no mesmo, promovendo assim um debate mais aberto de
questões como o aborto, o método contraceptivo entre outros.
Um debate acompanhou a luta e organização dessa mulheres, e fomentava-se
também como um debate interno desse grupo. Haviam militantes partidária da ideia de
que o feminismo deveria estar associado a luta de classes, e que esses dois fatores
deveriam convergir. E havia aquelas, que defendiam que o movimento feminista fosse
entendido como um movimento libertário das mulheres que estava ligado a questões
específicas a estas como o corpo, a sexualidade e ao prazer. Mesmo assim, os debates
feministas não deixavam de lado totalmente suas influências marxistas:
“Ninguém melhor que o oprimido está habilitado a lutar contra sua
opressão. Somente nós, mulheres organizadas autonomamente, podemos
estar na vanguarda dessa luta, levando nossas reivindicações e problemas
específicos. Nosso objetivo ao defender a organização independente das
mulheres não é separar, dividir, diferenciar nossas lutas das lutas
conjuntamente de homens e mulheres travam pela destruição de todas as
relações de dominação da sociedade capitalista”. (PINTO, 2003, pág. 54)
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Numa luta encabeçada por mulheres que se encontravam aqui, a lei da anistia,
muitas delas quando retornaram ao Brasil, estavam agora imbuídas de um ideal
feminista, que também se debatia e já se fazia presente no Brasil, mas com maior força
na Europa. Mesmo assim, no Brasil, já se fazia presente a organização e atuação de
grupos de mulheres, que tinham como propostas as causas feministas. A própria
Cristina Buarque quando retorna do exílio, volta para dentro do “Ação Mulher”, um dos
grupos que se formou aqui no Brasil, grupo que se formou mais especificamente no
Recife.
A discussão entre as propostas feministas e a luta de classes, acompanhou
durante muito tempo, essas mulheres, que enfrentaram oposição até mesmo de grupos
formados por mulheres aqui no Brasil , mas que estavam bem mais engajadas com as
causas sociais, do que as questões feministas.
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Conclusão:
Para conclui todo o trabalho, ressalto novamente, a importância que acredito ter
essas mulheres exiladas, e toda sua movimentação no exterior, sua inquietação quanto a
sua condição, para que questões hoje tão primordiais fosse colocadas em pauta, num
período em que até então tal possibilidade nem era considerada.
Essas mulheres que assumiram a militância, abriram caminho para um espaço
até então majoritariamente masculino, e que relegava a mulher, um papel secundário e a
sombra dos feitos dos homens. Não permitindo que estas assumissem então o controle
cobre suas próprias ações. A Ditadura Civil-Militar pode ter sido um período de
extrema violência, e disso não posso duvidar, mas não há de se negar, que justamente
esse contexto que permitiu espaço, mesmo que isso possa assumir um contexto até
casual, para que as mulheres conquistassem um grau maior de independência.
A educação, o trabalho, a militância, foram conquistas fundamentais para essas
mulheres, que tinham agora maior autonomia quanto a suas escolhas. E considero então,
o exílio, para aquelas que o vivenciaram, uma parte fundamental de experiência, não
apenas experiências ruins, que ainda assim, de uma forma ou de outra nos deixam
algum aprendizado. Mas me refiro ao fato, de vivenciarem na Europa, um debate que
não se fazia em território brasileiro.
Dessa maneira, percebo que muito ainda se tem a debater sobre as questões
relacionadas à mulher nesse período, uma vez que mesmo passado os anos de repressão
da Ditadura, a repressão contra a mulher, ainda é uma permanente até os dias atuais,
mesmo que muito já se tenha conquista, deixando assim espaço para próximas
pesquisas. Mas ressaltando o quando os círculos de debates que se formaram em Paris, e
em outros países de exílio, foram importantes para que essas mulheres pudessem criar
um espaço de debate, primeiramente mais confortável a elas, uma vez que permitia um
espaço de igualdade ou grande proximidade quanto as experiências delas, segundo, um
espaço onde o foco fosse justamente suas dores e sofrimentos, fossem suas
reivindicações, suas questões, foi um espaço para que firmassem sua própria identidade
e sua própria causa pela qual se engajar.
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Referências Bibliográficas:
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Abramo, 2003.
GIANORDOLI-Nascimento, Ingrid Faria. Mulheres e Militancia: encontros e
confrontos durante a ditadura militar / Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento, Zeidi
Araújo Trindade, Maria de Fátima de Souza Santos (orgs). Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2012.
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Costa, Maria Teresa Portiuncula Moraes, Norma Marzola, Valentina da Rocha Lima
(orgs). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CAMARGO, Ayla. Nas origens do movimento feminista “revisitado” no Brasil: o
Círculo de Mulheres de Paris. In: Anais do I Simpósio sobre Estudos de Gênero e
Políticas Públicas, ISSN 2177-8248, 2010, Universidade Estadual de Londrina.
ABREU, Maira. Nosostras: feminismo latino-americano em Paris. Dissertação.
Unicamp. São Paulo, 2010.
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BASTOS, Natalia de Souza. O Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris: Uma


Experiência Feminista no Exílio. In: Usos do Passado, XII Encontro Regional de
História. ANPUH-RJ, 2006. Rio de Janeiro.
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FEMINISMO NO BRASIL DOS ANOS 70:


AS LUTAS POR DEMOCRACIA, JUSTIÇA SOCIAL E DIREITOS
DA MULHER

Larissa Graciete de Freitas Santos


Universidade Federal de Pernambuco
Larii.fs.ls@gmail.com

Resumo
O presente artigo pretende analisar uma trajetória que levou à consolidação do
movimento feminista de segunda onda no Brasil, apontando para sua especificidade a
partir da ligação do movimento feminista com o movimento de mulheres das classes
populares, compreendendo organizações de bairro e de trabalhadoras. O texto analisa o
seu desenvolvimento dentro do contexto da Ditadura Civil-Militar como um elemento
que vai moldar essa segunda fase do feminismo brasileiro. Desse modo, perceber como
a mulher passa a se apropriar de um espaço por excelência masculino, o espaço público,
buscando participar das lutas gerais do povo e buscando uma democracia que também
se baseie na igualdade de gênero.
Palavras-chave: Feminismo de segunda onda no Brasil; movimento de bairro de
mulheres; movimento de trabalhadoras.
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Paralelamente ao cerceamento das liberdades de expressão e de mobilização


social, o feminismo de segunda onda no Brasil vai encontrando seu espaço e diante
dessa ausência de liberdade o movimento vai adquirindo feições próprias que o faz
diferenciado do feminismo internacional. As experiências das mulheres que lutaram nas
esquerdas contra o regime militar, assim como as experiências das mulheres exiladas
contribuem para o surgimento de um feminismo que apresenta características
peculiares, sendo por meio da transgressão da ordem estabelecida que essas mulheres
passam a questionar o seu lugar e o seu papel na sociedade. Ao lado desse rompimento
de valores se agrega ao movimento feminista brasileiro o sentimento de justiça social
representado na aproximação desse movimento com o movimento de mulheres de classe
popular, em seus bairros e em seu ambiente de trabalho. O momento da Ditadura Civil-
Militar ilustra bem o rompimento da tradicional divisão dos espaços público e privado
como espaços naturais ao homem e naturais à mulher, respectivamente, quando estas
últimas saem às ruas chegando a um lugar de igualdade com relação os homens.
Para montar um quadro que explique o contexto em que o movimento
feminista de segunda onda no Brasil vai se formando e se consolidando foi feito uso de
uma entrevista como uma das bases para a construção deste artigo. A entrevista foi feita
com a atual secretária da mulher do estado de Pernambuco, Cristina Maria Buarque1,
que participou do movimento estudantil, foi integrante do grupo trotskista J. Posadas e
foi exilada quando caçada pelo decreto-lei n° 477. Cristina é um exemplo daquelas
mulheres que lutaram contra a ditadura e foram exiladas, deixando crescer dentro de si
os questionamentos acerca da posição da mulher na sociedade e que a partir de suas
experiências e do contato com as ideias feministas passam a se declarar como tal e a se
unir em suas organizações em prol das questões das mulheres. Como meio para esboçar
a peculiaridade do feminismo brasileiro em sua influência sobre as organizações
femininas de bairro e de trabalhadoras foram utilizados aqui como exemplos materiais
como uma ata de reunião da Associação de Donas de Casa de São Paulo, e folhetos do
Movimento Feminino pela Anistia do Rio de Janeiro e do Centro de Cultura Operária de
São Paulo, divulgados por esses tipos de organizações. A intenção é fazer perceber ao
longo do texto como a mulher vai conquistando o espaço público e a partir disso se
conscientizando, em sua inquietação, de que era preciso lutar contra sua condição de
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opressão e submissão, o que vai abrir as portas para a entrada do feminismo de segunda
onda no país.
A década de 1960 se caracterizou pela emergência de problematizações que
iriam além das questões econômicas, ou seja, passou-se a entender que as contradições
sociais não são necessariamente causadas por contradições econômicas. Outras relações
de poder estariam em jogo e a compreensão dessa dinâmica trouxe à superfície outras
demandas, trazendo a emergência das questões raciais, do movimento de homossexuais
e o feminismo, além de tantos outros temas debatidos. Os movimentos que marcaram a
época “trazem o individual para o campo político, tornando-o coletivo, demonstrando
que o ser social não se esgota na experiência de sua classe”. (ALVES; PITANGUY,
2003, p. 58.).
Dentro disso, personagens esquecidos pela história, como o caso das mulheres,
passam a rever sua posição diante da sociedade e a buscar por sua afirmação. O
feminismo de segunda onda passa a tratar de questões que vão além da busca por
direitos civis, passando a envolver a questão do corpo, além de colocar nesse momento
a discussão sobre a opressão da mulher, sua condição de submissão diante do homem,
entendendo que esta se justifica dentro de um processo histórico e de construção
cultural.
O período que precede a Ditadura Civil-Militar no Brasil foi marcado por forte
efervescência cultural, por movimentos sociais e políticos que pretendiam inserir na
vida pública e política, por meio de conscientização, grupos marginalizados nesse
ambiente. Este é um momento que proporciona, mesmo ainda com dificuldades e
preconceitos, à mulher seu espaço como indivíduo atuante fora das fronteiras de seus
lares. O ano de 1964 transforma esse quadro de mobilizações com seu cenário de
repressão, prisões, tortura, principalmente depois do “golpe dentro do golpe” ocorrido
em dezembro de 1968. Sabemos que a ditadura cerceou direitos, reprimiu duramente
movimentos de oposição, entre tantas outras medidas em nome da ordem e da proteção
da moral e dos valores, contra a “subversão comunista”. O papel da mulher continuava
diante da sociedade a ser o da mulher dona de casa, dedicada à família e submissa ao
homem. A atuação fora deste espaço poderia causar estranhamento à sociedade,
passando a moral da mulher que ultrapassasse tal barreira a ser questionada. No entanto
temos a entrada de mulheres, mesmo em número menor em relação aos homens, em
organizações de resistência, manifestações e atos públicos contra o regime. Podemos
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dizer assim que este é mais um momento em que surge uma consciência de que a
mulher pode, assim como os homens, participarem das decisões que dão rumo ao seu
mundo, quando estão em posição de certa igualdade ao homem. Cristina lembra que o
momento da ditadura foi um momento diferente para as mulheres e também para os
homens:
“Nesse momento da ditadura, para as mulheres eu acho, que foi
um momento diferente dos homens, porque? Na ditadura os homens perdiam
o seu lugar no espaço público, no espaço de serem políticos, né? Eles ‘tavam’
interditados. Pra nós mulheres era justo o diferente, nós entrávamos num
outro espaço que não era só o da nossa casa, então isso aí era gozar de um
tipo de liberdade, era gozar de estar em algum lugar que a gente pensava que
ia decidir o mundo, ia decidir a política, ia decidir o poder, era um lugar onde
o risco não era diferenciado, tá certo? Porque quando vinha a polícia ela
vinha com tudo por cima de homem, por cima de mulher, era igual, então não
tinha ninguém pra te proteger, você era a coitadinha que... não! Você mesmo
que tinha que se proteger, você mesmo que tinha que correr, você mesmo que
tinha que criar suas defesas, e aí dava uma situação de maior igualdade com
os homens, né?”

Mas aqui também temos problemas quando dentro das organizações que
participavam elas ainda sentiam certa distância com relação aos homens no sentido de
que ainda estavam em posição inferior. Quando perguntada sobre como ela percebia a
posição das mulheres dentro dos grupos que militavam, Cristina observa que eram “um
pouco menores” e acrescenta que “pela esquerda você devia militar para ajudar o seu
companheiro militar também”, e apontado a posição secundária da mulher, fala que o
momento de efetiva igualdade era na “hora do ataque”. De qualquer modo as mulheres
conquistam sua posição como sujeito político quando ingressam na militância em
oposição ao regime, ou quando pegam em armas, entrando na luta armada para fazer a
revolução acontecer.
Cabe aqui problematizar as relações de gênero dentro das organizações de
esquerda, visto que daqui saíram muitas militantes que vão se integrar à discussão
feminista, pois muitas se encontravam em um espaço que apesar de promover igualdade
às relegava a uma posição de inferioridade com relação aos homens, o que levava ao
questionamento desse relacionamento. Cristina observa o moralismo dentro da
organização em que participou, o grupo Totskista J. Posadas:
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“Uma coisa engraçada que acontecia nesse partido é que você não
podia dormir com o namorado, então os partidos eram muito moralistas, tá
certo? Então, e eram muito... no fundo esse moralismo era uma hipocrisia,
porque todo mundo dormia com o namorado, claro que a gente dormia com o
namorado.”

A princípio não havia distinção entre homens e mulheres dentro dessas


organizações, sendo ambos iguais na luta, mas percebemos a presença do machismo em
exemplos como este citado e também quando vemos que pouquíssimas mulheres
alcançavam postos de comando dentro dessas organizações e sua atuação ficava restrita
à atividades das quais mulheres participariam de acordo com a sua capacidade.
Esse tipo de distinção, que obviamente não vem somente de dentro dessas
organizações, levou as militantes a buscar a aproximação com o ideal masculino de
militante, negando a sua condição de mulher dentro dessas organizações na tentativa de
que por meio da sua “assexualização” elas se igualassem aos companheiros militantes,
havendo também a questão de que se fazia um esforço por parte das(os) militantes em
não se envolverem afetivamente por causa da luta.2
Apesar das diferenças, sentidas por algumas mulheres, a questão da condição
da mulher não era algo que estava na pauta de discussões dessas organizações, pelo
menos até o final da década de 1970, quando o assunto começa a ser mais difundido.
Isso acontecia porque tanto as militantes mulheres, como os homens, estavam focados
na luta contra o regime e contra o sistema capitalista. As mulheres entravam nessas
organizações políticas em nome de um ideal político coletivo. Colling (1997, p.48)
lembra que a decisão dessas mulheres em entrar para a militância política demonstra a
vontade de se tornarem protagonistas ativas da história, buscando uma sociedade mais
justa. Cristina lembra que não sentia, naquele momento de luta contra o regime militar e
de luta contra o sistema capitalista, a necessidade de lutar pelos direitos das mulheres,
pois para ela as demandas, que seriam a questão do divórcio e ainda havendo aquelas
que tinham uma vida além da doméstica que era a vida de militância, estavam
satisfeitas. Ela diz que o sentimento que se tinha era de fazer a revolução acontecer:
“Eu ‘tava’ vivendo o período da revolução romântica, da
revolução de Che Guevara, eu era a própria, tá entendendo? Era o símbolo
daquela jovem revolucionária que não tinha medo de nada, que tinha um
companheiro que amava muito, que queria fazer a revolução, mudar o mundo
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(...). Mas o grande impacto foi o exílio, veio rápido, veio quatro anos depois
já não mais pensando assim.”

Cristina afirma o foco dado à ditadura e diz que isso vai se reverter com o
exílio a partir da obtenção de uma visão mais crítica sobre a situação da mulher:
“Aqui no Brasil a gente ‘tava’ em plena ditadura, então tinha um
inimigo que fazia com que nós homens e mulheres estivessem muito juntos e
como revolucionários com aquele romantismo. Quando chegou lá não era
bem assim que a banda tocava, não havia essa igualdade, e os homens
exigiam pra si a sua liberdade pública finalmente. Para que você tenha
liberdade pública com um filho você vai ter que ter quem cuide dos seus
filhos e quem cuidava de seus filhos eram as mulheres, e isso era fácil esse
passo, era uma tradição, e aí as mulheres começam.”

Contudo, apesar dessas questões, essa experiência de militância contra o


regime militar foi fundamental para o despertar das militantes no que concerne à sua
condição de mulher. Primeiramente porque a militância representou uma transgressão à
ordem estabelecida, a própria Cristina afirma “eu quebrei todos os parâmetros, eu fazia
o curso de engenharia, eu militei, fiz o diabo!”. Mulheres como Cristina rompem com o
ideal de mulher dona de casa, esposa e mãe para assumirem lugares e atividades que por
excelência pertenciam aos homens. Sentindo os obstáculos dentro das organizações,
com relação aos papéis de comando, ou a participação em algumas ações, para algumas
militantes até a falta de discussões sobre as mulheres, assim como enfrentando o
preconceito perante a sociedade, tal experiência contribui para a problematização da
questão da desigualdade de gênero. A militância na esquerda, assim como a experiência
de muitas exiladas políticas, são dois fatores contribuintes para a consolidação das lutas
feministas no Brasil dos anos 1970.
Antes de consolidado o debate feminista no Brasil, a Europa e os Estados
Unidos já estavam à frente. O movimento feminista europeu representou um grande
contribuidor para a entrada do feminismo de segunda onda no Brasil através do contato
das exiladas políticas com as leituras que faziam e manifestações que ocorriam.
Contudo, cabe dizer que não só foi pela experiência do exílio que o feminismo aqui
entra. Cristina recorda que antes mesmo da volta das exiladas ao Brasil as mulheres que
aqui ficaram já estavam discutindo sobre a condição da mulher em cima de “O Segundo
Sexo” de Simone de Beauvoir, lembrando que as mulheres que voltam do exílio são um
reforço, mas que o feminismo já começa com as mulheres de esquerda.
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Algo que sempre vem à memória de Cristina quando ela conta a sua
experiência no exílio, particularmente na Alemanha, pois no Chile ela ainda milita em
prol da revolução, era a vontade de continuar a luta contra a ditadura, quando ela
combina fugir com o marido, apontando que enquanto as mulheres no Brasil estavam
conquistando espaço na luta contra a ditadura, no exílio acontece o contrário:
“Os homens lá são recebidos pelo próprio patriarcado dos países
onde a gente ia, então as mulheres deviam ficar em casa, tomando conta dos
meninos, e os maridos ‘vai’ pro trabalho e ‘começa’ a militar lá naquele país,
então isso foi um choque, eu acho, pras mulheres como um todo, pra mim foi
um enorme choque, eu já vinha desde treze anos trabalhando, tanto militando,
como eu era muito pobre, então eu trabalhava.”

Ela sente o impacto do exílio quando se depara com a impossibilidade de


militar, assim como de trabalhar e estudar:
“Quando chego no exílio não, agora vou ter que ficar tomando
conta do meu filho que eu tinha tido no Chile, e não vou mais trabalhar
porque é o meu marido que vai trabalhar, é o meu marido que vai estudar, é o
meu marido que vai fazer tudo, que vai militar e eu vou ficar dentro de casa,
porque o sistema não tinha creche pra o menino e os homens também não
tem essa cabeça de dividir, nem os revolucionários tem essa cabeça de dividir
nada. Então acho que pras mulheres o exílio foi um impacto nesse sentido.”

De qualquer forma tal experiência apontava para uma maior conscientização


dessas mulheres. Muitas entram em contato com as leituras, mobilizações e ideias
feministas e vão trazer muito dessa experiência para as mulheres no Brasil. Cristina toca
nesse ponto quando diz que a experiência foi um choque, nesse sentido das limitações
que as mulheres passavam, mas que por outro lado vão ter uma aproximação muito forte
com o movimento feminista.
As influências do movimento feminista vão penetrando nas organizações de
esquerda e nesse momento as militantes passam a desenvolver o que se chama de “dupla
militância”, onde ao mesmo tempo se envolvem nas lutas das suas organizações e se
envolvem no movimento feminista. No entanto se deparam com um obstáculo dentro de
suas organizações, pois dentro da esquerda, não em sua totalidade, havia uma rejeição
das pautas feministas vistas como um desvio “pequeno-burguês”. O objetivo da
esquerda era o de romper com o regime e a ordem capitalista, o que saísse dessa linha
era considerado como um desvio perigoso e desnecessário à luta que estavam fazendo.
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Dessa maneira isso constituiu um dos caminhos que levaram à mudança de


engajamento dessas mulheres para a luta propriamente feminista. Não se encontrava
espaço para suas demandas específicas, essas mulheres por vezes se sentiam oprimidas
dentro desses movimentos, coisas que levam a uma mudança de postura. Além disso,
temos também a repressão às organizações de esquerdas, levando essas mulheres a
buscarem outros caminhos com a dissolução destas.
Dentro desse contexto vemos surgir no Brasil um tipo de feminismo por vezes
chamado “feminismo revisitado”, já dentro do processo de distensão “lenta, gradual e
segura”. Isso significa que o feminismo dos anos 70 no Brasil é caracterizado pela
associação entre as mulheres do movimento feminista e as mulheres que se organizavam
em movimentos de bairros, tornando o movimento feminista brasileiro de segunda onda
peculiar frente ao movimento de outros países.
Nesse período mulheres de camadas populares passam a se organizar diante de
seus problemas cotidianos e das dificuldades econômicas pelas quais elas e suas
famílias passavam. Unem-se, por exemplo, em Associações de Bairro, de Donas de
Casa, em Clubes de Mães. Esses grupos não tinham um cunho especificamente
feminista, lutavam por melhores condições de vida, mas o contato entre essas mulheres
e a aproximação com as mulheres do movimento feminista, ou pelo menos a
identificação com o discurso feminista como estímulo para o levantar dessas mulheres à
luta, trazem à tona a reflexão do papel e direitos das mulheres. Mas não só se voltam
para suas questões específicas, como também se unem na luta pela redemocratização do
país.
Ilustrando de forma breve as ações desses grupos de mulheres populares temos
um boletim informativo da Associação de Donas de Casa de São Paulo 3, que foi criada
em 1968, onde se encontram as discussões do encontro ocorrido nos dias 1 e 2 de março
de 1978, sendo discutidos temas como as creches, o custo de vida, a mulher que
trabalha fora e reivindicações para o bairro. São destacados o despertar das mulheres e a
importância da ação destas para a melhoria de seus bairros e condição de vida, e logo na
primeira página do boletim há a menção ao Dia Internacional da Mulher:
“O que chamamos hoje ‘DIA INTERNACIONAL DA MULHER’
deve ser um dia no qual os acontecimentos, as vitórias, as derrotas, as metas a
alcançar são discutidos junto, pelas mulheres, em todos os lugares onde elas
se encontram”.
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Neste boletim também há ao fim uma nota de apoio das mulheres ao


movimento pela Anistia. Dois anos antes (1976) houve uma reunião no dia 23 de julho,
na Paróquia de Santo Antônio, no Burgo Paulista, onde foram discutidos os problemas
das periferias e o tema da saúde.
O movimento feminista aqui vai se consolidando, principalmente tendo como
marco o ano de 1975 declarado pela ONU como o Ano Internacional da Mulher. Com
isso toma impulso o surgimento de grupos efetivamente organizados, além de jornais
feministas como o Brasil Mulher e o Nós Mulheres. Os dois jornais são exemplos que
ilustram os dois lados da luta feminista: o primeiro tinha um discurso mais voltado para
as lutas gerais, as lutas democráticas, já o segundo estava mais voltado para as questões
feministas. Surgem também no Rio de Janeiro e em São Paulo grupos de consciência
como o Centro da Mulher Brasileira e o Centro de Desenvolvimento da Mulher,
respectivamente. O feminismo brasileiro para além da luta pela anistia, pela
redemocratização, se volta para as questões do corpo4, para a participação política,
dentre outras demandas que muitas vezes vão se atrelar às lutas das mulheres das classes
populares. O que acontece aqui, em suma, é um direcionamento do movimento
feminista que age em prol das lutas pela democracia, das lutas por justiça social e das
lutas específicas das mulheres, buscando seus direitos e igualdade.
O movimento pela anistia tem seu início com a participação de mulheres com a
criação do Movimento Feminino pela Anistia. O movimento, apesar do nome, não se
declarava como um movimento de cunho feminista, mas feminino, mesmo que se
aproximando das feministas com o estabelecimento de alianças com jornais feministas,
por exemplo. (VARGAS, 2008 p.8).
No Congresso Nacional pela Anistia ocorrido em São Paulo, em novembro de
1978, o MFPA do Rio de Janeiro contribuiu com um folheto intitulado “Participação
Político-Social da Mulher no Brasil (a experiência de 1964)”,5 escrito no mês anterior,
onde se relata a participação das mulheres em lutas sociais e políticas. Nesse folheto é
interessante notar que apesar de ser um movimento que se propõe a lutar pela anistia
não só tem um discurso voltado para essa questão, mas há um questionamento acerca da
situação da mulher na sociedade brasileira de modo que há uma intenção de
conscientização da mulher. É apresentada como proposta específica do MFPA do Rio
de Janeiro o “processo de reeducação política da mulher”, assim como uma “campanha
de esclarecimento da população sobre o que se entende por anistia”.
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De maneira geral este folheto ilustra bem o pensamento crítico que começa a
crescer em torno da participação política das mulheres, das questões do trabalho, da sua
posição na sociedade. O grupo não se declarava como feminista, mas sim um grupo
feminino, nisso residindo sua defesa dos direitos da mulher. Isso fica claro quando são
colocados temas em discussão como a submissão da mulher ao homem, característica da
sociedade patriarcal brasileira, a sua exclusão das decisões políticas porque ficam
isoladas em seus lares, a inferioridade de seu trabalho vistos na baixa remuneração e
numa renda vista somente como complementar, o que justifica essa baixa remuneração,
ainda quanto ao trabalho denuncia a falta de creches e a dupla jornada de trabalho,
dentre outros temas abordados. Em um ponto do texto há também uma crítica quanto a
falta de engajamento das mulheres na luta por melhores condições de trabalho que se dá
por sua condição de “obediência e subordinação” já considerando como “uma conquista
lhe terem ‘dado’ um emprego, contribuindo assim, com sua alienação, para sua maior
exploração”, no entanto este é um cenário que se encontrava em mudança. É importante
para finalizar dizer que é destacada a importância da luta das mulheres pela anistia
como forma de “consciência política do coletivo”, não é somente uma luta de “mães,
irmãs, filhas, amigas ou solidárias” pela justiça, mas no sentido de que a luta dessas
mulheres se insere em uma luta geral. Nisso temos um exemplo característico do
feminismo brasileiro, ou dessa consciência que está se despertando do “ser mulher”, que
vai se moldando dentro das circunstâncias vividas no país.
O feminismo brasileiro de segunda onda é diferenciado porque se consolidou
em meio à uma conjuntura política, econômica e social que direcionou sua luta para
além das questões das mulheres. Diferentemente do que aconteceu fora do Brasil, o
movimento de mulheres feministas, que se iniciou com mulheres das camadas médias e
intelectualizadas do país, se alia ao movimento de mulheres de camadas populares, o
que justifica a expressão “movimento feminista e de mulheres”, sendo tal articulação
movida pela luta pelo bem-estar social.6. Segundo Cynthia Sarti (2004, p. 41), o
feminismo nesse momento, como ideologia, fica restrito, pois a prioridade naquele
momento era o combate ao autoritarismo e as desigualdades da sociedade brasileira,
deixando em segundo plano a problemática feminista.
Com o processo de abertura já consolidado, as exiladas políticas retornam ao
país, muitas agora declaradamente feministas, fortalecendo o movimento brasileiro. No
início dos anos 80 o feminismo participou intensamente do processo de
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redemocratização do país, e Cristina Buarque diz que também “a volta dos exilados
reforça a luta pela democracia”. É nessa década que finalmente o movimento se vê
consolidado como força política e social. Também é característica do momento uma luta
mais direcionada para as questões de gênero, com atos públicos, congressos, as
discussões sobre corpo e sexualidade, a formação de ONGs e pesquisas acadêmicas
sobre mulheres.
Cristina lembra que a discussão sobre as mulheres mais especificamente vai se
dar mais fortemente na volta do exílio, “depois de 78 no Brasil, e na volta do exílio que
é 79 pra algumas”. Ela retornou do exílio no ano de 1981 e chegando ao Brasil ela
participa do grupo Ação Mulher, criado no Recife em 1978, e lembra também de outros
grupos criados na década de 80 como a Casa da Mulher do Nordeste, criada em 1980, o
SOS Corpo, criado em 1981 e o Centro das Mulheres do Cabo, criado em 1984, além da
criação de várias ONGs. Juntamente com o processo de redemocratização, Cristina fala
que passa a surgir a proposta de criação do conselho nacional da mulher.
Trabalhadoras urbanas e rurais reunidas também passaram a questionar sua
posição, enquanto mulheres, dentro do local de trabalho e das organizações sindicais e a
reivindicar a incorporação de suas demandas nas pautas de discussão, visto que as
reivindicações dos trabalhadores acabavam se restringindo ao cotidiano dos homens.
Nesse período o movimento feminista também se aproxima do movimento de
trabalhadoras nas associações profissionais e nos sindicatos. Passou-se a questionar a
posição de poder que os homens tinham dentro das indústrias e organizações sindicais
com o pouco espaço que as mulheres tinham quanto a participação ativa nos postos de
decisão dessas organizações, dentre outras demandas como a incorporação das
discussões do cotidiano do trabalho, a desvalorização do salário, de assistência à
trabalhadora gestante, da violência no local de trabalho, a falta de creches, a falta de
profissionalização, a dupla jornada de trabalho. Temas como a reflexão do cotidiano
doméstico e do trabalho são pontos que levam à discussão da divisão sexual do trabalho
e a relação de poder na representação sindical, levando-se em consideração a revisão de
como são exercidos seus papéis dentro do ambiente doméstico e fora dele. (GIULANI,
2004 p.650).
O discurso feminista tem grande influência na mudança de percepção dessas
mulheres. Paola C. Giuliani (2004, p.650) dá um exemplo de um discurso da
coordenadora da Comissão Nacional da Mulher da CUT, em 1989, onde esta reconhece
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a contribuição do feminismo para as trabalhadoras, quando o feminismo passa a


questionar as relações de gênero, ou mais especificamente, no que se refere ao ambiente
de trabalho, quando toca em assuntos como salários menores, a dupla jornada de
trabalho, a falta de assistência às mulheres trabalhadoras no tocante à construção de
creches, tendo o feminismo desse modo colaborado para mostrar a realidade das
trabalhadoras.
Em um texto do Centro de Cultura Operária de São Paulo, ilustra-se as
demandas e dificuldades das mulheres trabalhadoras. Intitulado “Nunca houve tantas
mulheres na luta”7 apresenta-se a participação das mulheres nas lutas dos anos 1980 em
busca de sua emancipação, a denúncia de que a igualdade entre homens e mulheres
perante a Lei não retrata a realidade das mulheres, apontando para a desigualdade no
trabalho, dentro de suas próprias casas, pois é a elas que é atribuído o trabalho de cuidar
da casa, de seus maridos e filhos, e ainda sofre preconceito e oposição da família e do
patrão criando impedimentos para sua participação em reuniões e manifestações. Há um
trecho em que se revela a influência do feminismo na luta pelos direitos dessas
mulheres:
“Não foi por acaso que sob esse sistema capitalista é que surgiu há
um pouco mais de um século o movimento feminista, um movimento
democrático que luta pelos direitos da mulher (...). Lutam também contra as
idéias atrasadas que existem há séculos e que consideram a mulher inferior. E
as mulheres vêm provando que são tão capazes quanto os homens de lutar
para se libertar e para libertar toda a sociedade.”

Frases encontradas no texto como: “A luta do povo é também a luta das


mulheres – participe do movimento por melhores salários”, ou “apoio à greve dos
metalúrgicos”, são exemplos da busca da mulher para se tornar um sujeito político
ativo, fazendo parte do processo de lutas gerais, assim como de suas lutas específicas.
Sobre isso, o texto “A Mulher do Lar”8, também do Centro de Cultura
Operária, deixa claro o apoio das mulheres às lutas gerais do povo. Além de falar sobre
a importância das creches para as mulheres trabalhadoras e do que elas esperam com a
Constituinte, no caso o “direito da mulher ao trabalho; o direito da mulher à
profissionalização; equiparação salarial entre homens e mulheres; creches gratuitas nos
locais de moradia e trabalho; direito da mulher à maternidade consciente”, o texto
aponta que não só as questões específicas das mulheres as interessam, mas também o
que o povo quer, já em um momento de redemocratização do país essas mulheres
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pedem: “liberdades políticas; fim de todo o aparelho repressivo; fim da Lei de


Segurança Nacional; direito de livre organização partidária; anistia ampla, geral e
irrestrita”, dentre outras demandas.
Desse modo foi sendo despertada nas mulheres brasileiras a consciência de que
havia a necessidade de afirmarem sua própria identidade rompendo com os papéis e
modelos comportamentais os quais lhes eram atribuídos pela sociedade. Mulheres que
transgridem a ordem estabelecida lutando contra a ditadura, e aquelas que buscam o
direito por melhores condições de vida para si e suas famílias são exemplos de mulheres
que passam a conquistar um espaço que há muito lhes foi negado. O contexto político,
econômico e social da Ditadura Civil-Militar contribuiu para a reflexão e
questionamento de seu papel na sociedade e de sua condição de submissão. Dentro
disso o feminismo de segunda onda vai encontrando lugar nas mulheres que integravam
os grupos de esquerda e nas mulheres que foram exiladas. Os grupos de mulheres que se
organizavam em seus bairros e de mulheres trabalhadoras mesmo que não se
declarassem feministas, foram influenciadas pelas ideias de liberdade e busca por
direitos e participação política que estavam presentes no discurso feminista. Desse
modo há uma aproximação entre o movimento feminista e o movimento de bairro de
mulheres e trabalhadoras na busca por justiça social, por democracia e por seus direitos
específicos, o que dá uma tonalidade diferenciada ao movimento feminista brasileiro da
década de 1970. Nota-se que não só o movimento feminista se voltou para as causas
gerais, como também esse outro grupo de mulheres, não ficando suas demandas restritas
às questões femininas. Em um momento em que o Brasil começa a passar pelo processo
de abertura política estas levantam a bandeira da luta pela democracia e por justiça
social. O feminismo de segunda onda no Brasil, portanto, vai se configurando a partir
das inquietações dessas mulheres que partem em busca de sua afirmação.

NOTAS
1
BUARQUE, Cristina Maria. Cristina Buarque (depoimento, 2014). Recife,
LAHOI/DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA-UFPE, 2014. Entrevista concedida a Karla
Daniela Gomes da Silva e Larissa Graciete de Freitas Santos.
2
Ana Maria Colling explica a busca por um ideal masculino de militante através da
negação da sexualidade pelas militantes de esquerda, mas também aponta que isso
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envolvia um esforço tanto de homens como de mulheres em não se envolverem para o


foco da luta não ser desviado.
3
Associação de Donas de Casa. Boletim informativo. São Paulo, Associação de Donas
de Casa, 1978. Acervo Maria do Socorro Abreu e Lima. LAHOI-UFPE
4
Cynthia Sarti em “O feminismo brasileiro desde os anos 70: revisitando uma
trajetória” lembra que as questões sobre o aborto e a sexualidade, dentre outras
questões, vão ser feitas em discussões privadas, em “pequenos grupos de reflexão”.
Sobre isso Colling afirma que a discussão sobre a sexualidade irá demorar um pouco
para deixar de ser tabu.
5
Movimento Feminino pela Anistia. Participação político-social da mulher no Brasil (a
experiência de 1964). Rio de Janeiro, Movimento Feminino pela Anistia, 1978. Acervo
Maria do Socorro Abreu e Lima. LAHOI-UFPE
6
Sarti fala sobre o caráter dos movimentos sociais urbanos no Brasil que tem por
característica o contato com os moradores das periferias pobres, dirigindo a demanda
destes ao Estado.
7
Centro de Cultura Operária. Nunca houve tantas mulheres na luta. São Paulo, Centro
de Cultura operária, S/D, p. 4. Acervo Maria do Socorro Abreu e Lima. LAHOI-UFPE
8
Centro de Cultura Operária. A mulher do lar. São Paulo, Centro de Cultura Operária,
1980, p.4-5. Acervo Maria do Socorro Abreu e Lima. LAHOI-UFPE

Referências Bibliográficas
ALVES, Bianca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo:
Brasiliense, 2003.
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.
CELESTINO, Gabriela Santetti. Da resistência às ditaduras ao feminismo no Cone Sul
– Razões e rupturas, processo de afastamento das mulheres das organizações de
resistência. In: Simpósio Nacional de História – ANPUH, 27., 2013, Natal. Anais...
Natal, 2013.
GIULIANi, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira.
In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
2007.
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KREUZ, Débora Strieder. Memórias do feminismo na Ditadura Civil-Militar brasileira:


alguns apontamentos. In: Encontro Regional Sul de História Oral, 7., 2013, Foz do
Iguaçu. Anais... Foz do Iguaçu, 2013.
PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-
1978). Revista Brasileira de História. São Paulo, v.26, n° 52, p. 249-272 - 2006
SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma
trajetória. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12 n.2, maio-agosto, 2004,
pp. 35-50.
VARGAS, Mariluci Cardoso. O Movimento Feminino pela Anistia como partida para a
redemocratização brasileira. In: Encontro Estadual de História – ANPUH-RS, 9., 2008,
Porto Alegre. Anais... Porto Alegre, 2008.
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MEMÓRIAS DA RESISTÊNCIA À DITADURA CIVIL-MILITAR: A


ATUAÇÃO FEMININA NO MOVIMENTO ESTUDANTIL UNIVERSITÁRIO
EM PELOTAS/RS NO PERÍODO DA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL
(1977-1985)

Luisiane da Silveira Gomes


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Luisiane.gomes@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar o ressurgimento do movimento estudantil


na cidade Pelotas durante o processo de redemocratização do Brasil (1977-1985). Para
tanto, o mesmo girará em torno das memórias de atuação de mulheres no movimento
supracitado, o qual mostrou-se suficientemente organizado para promover
manifestações contrárias às políticas adotadas pelo regime militar, bem como a
recuperação das liberdades democráticas.
Nosso recorte temporal faz alusão ao período compreendido entre a transição da
ditadura civil-militar para a democracia, abordando, sobretudo, os anos de 1977 a 1985.
O ano que dá início à pesquisa é marcado pelo ressurgimento das lutas estudantis em
quase todas as partes do país, pois neste mesmo ano o presidente Geisel outorgou um
conjunto de leis que visavam garantir a maioria da ARENA no pleito eleitoral no ano
seguinte. O referido conjunto de leis ficou conhecido como “Pacote de Abril” e resultou
na organização do Dia Nacional de Lutas, que foi marcado para o dia 19 de maio
daquele ano.
Ao abordarmos o tema, enfatizamos a atuação do movimento estudantil na
cidade de Pelotas ao fazer frente à ditadura civil-militar, uma vez que aquela cidade
possuía um movimento bastante ativo compreendendo os estudantes das duas
instituições de ensino superior, a UFPel e a UCPel269, e, além disso, ao optarmos por
trabalhar com uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, saindo do eixo Rio-São
Paulo e das principais capitais brasileiras, percebemos determinadas especificidades em
relação à Pelotas e ao seu notável conservadorismo, percebido na atuação de uma

269
Universidade Federal de Pelotas e Universidade Católica de Pelotas, respectivamente.
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pequena elite política local. Todavia, a mesma cidade apresentou uma atmosfera de
efervescência juvenil e cultural, apresentando assim, um interessante paradoxo.
A escolha do tema consiste em refletir, através das memórias de atuação de ex-
militantes do movimento estudantil pelotense, acerca da inserção feminina em espaços
majoritariamente masculinos e quais posições elas ocupavam no seio desse movimento.
Essas militantes ousaram ao romper com o padrão estabelecido à época, já que ao
iniciarem sua atuação no campo político estavam adentrando em um espaço público
historicamente dominado por homens, enquanto que às mulheres cabia o espaço
privado, agindo assim no interior da casa, assumindo apenas o espaço doméstico
(FERREIRA, 1996; GOLDENBERG, 1997; COLLING, 1997; ROVAI, 2013). A
década de 1960 foi marcada pela reviravolta comportamental que veio reivindicar um
novo estilo de vida, diferente daquele adotado, defendido e valorizado pelo sistema
ocidental, pondo em xeque os valores tradicionais e, buscando novas formas e novos
canais de expressão. Dentre eles, despontou a liberação sexual, que buscava quebrar
tabus e estabelecer novos valores.
A pílula anticoncepcional significou uma revolução no campo da sexualidade
feminina, porém, para os mais conservadores, ela era vista como símbolo da
promiscuidade. A partir daí, começou a ocorrer uma mudança comportamental por parte
das mulheres, pois a instituição do casamento passa a ser questionada, a moda
acompanha as transformações, criou-se o biquíni e a minissaia. Entretanto, tais
transformações não atingiram todas as mulheres da mesma maneira.
No que tange à participação de mulheres no movimento estudantil em Pelotas
detectamos que esse binômio espaço público (masculino) versus espaço privado
(feminino) (FERREIRA, 1996) aliado ao conservadorismo presente na cidade, como já
mencionado, foram um dos responsáveis pelo restrito número de militantes pelotenses
que assumiram cargos de liderança dentro do movimento estudantil da cidade, devido,
sobretudo, à repressão da própria família. Ao analisarmos material 270 correspondente às
composições de chapas que concorreram às eleições para o Diretório Central dos
Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), percebemos que
somente no ano de 1984 uma mulher chegou à presidência do DCE desta instituição
(VECHIA, 2010).

270
Material este, gentilmente, cedido pelo professor Renato Della Vechia, em novembro de 2011.
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Tal fato pode ser explicado pela representatividade que determinados cursos
possuíam dentro das instituições de ensino; no caso da UFPel, o curso de Agronomia
configurava como o principal expoente de lideranças estudantis, já que a grande maioria
daqueles que ocuparam a presidência do DCE da referida instituição eram oriundos
deste curso, no entanto, o curso mencionado era constituído em grande maioria por
homens, por essa razão a participação de mulheres com cargos relevantes era quase
nula. Já na UCPel, os cursos que se destacavam eram as Engenharias e a Medicina,
contudo, o curso que havia maior representatividade feminina era o de Serviço Social.
Aqui percebemos que a participação feminina era consideravelmente maior, contudo,
não houve nenhuma chapa comandada por uma militante.
Com isso, para o desenvolvimento desta pesquisa utilizamos a metodologia da
História Oral, a qual nos possibilitou o diálogo com as mulheres que militaram no
movimento estudantil universitário na cidade Pelotas no período da redemocratização.
Segundo Marieta Ferreira (2002), na segunda metade do século XIX, as fontes orais não
eram consideradas qualificadas para serem usadas como ferramenta histórica, somente
no século XX é que esse tipo de fonte foi restaurado pelos historiadores que defendiam
a validade do estudo do tempo presente. Contudo, alguns historiadores ainda acreditam
que a história oral e seu uso como ferramenta de pesquisa não seja legítima, pois como
aponta Portelli (2000) “as versões das pessoas sobre seu passado mudam quando elas
próprias mudam”. Percebemos com essa afirmação que a memória não é estática, uma
vez que ela está sempre mudando de acordo com as experiências adquiridas durante a
vida, buscando novas resignificações a partir dos acontecimentos que se concretizaram,
possibilitando novas concepções e interpretações do mesmo.

“ABAIXO A DITADURA!” – O MOVIMENTO ESTUDANTIL E A LUTA


CONTRA O REGIME MILITAR

O Movimento Estudantil é um campo fértil para o entendimento da luta pela


democracia no Brasil, sob esse signo, nasce a União Nacional dos Estudantes (UNE),
em agosto de 1937, após a realização do I Conselho Nacional de Estudantes no Rio de
Janeiro. Na década de 1940, a entidade teve importante papel na luta contra o fascismo,
encabeçando campanhas pela declaração de guerra às potências nazifascistas, assim, o
ano de 1942 foi marcado pela primeira grande passeata realizada pelos estudantes, a
qual tinha por objetivo pressionar o governo Vargas a “tomar partido publicamente em
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favor dos Aliados e contra a Alemanha e a Itália” (ARAUJO, 2007, p. 35). Mais tarde,
lutaram pelo fim do Estado Novo e pela redemocratização do país.
Albuquerque afirma que o movimento estudantil sempre foi bastante ativo e
sempre marcou sua presença no cenário político latino-americano, desde o início do
século. Para ele, “o meio estudantil não constitui uma base para um movimento social,
mas o movimento estudantil pode ser um elemento fundamental num movimento dessa
natureza”. O autor acredita que o meio estudantil aparece nesse cenário como o único
setor das camadas médias urbanas organizado politicamente (ALBUQUERQUE, 1977,
p. 69). A autonomia que o movimento estudantil possuía é outro fator que chama a
atenção, pois o próprio movimento se orientava e agia politicamente. Assim,
No movimento estudantil, ao contrário (do movimento sindical), a autonomia
interna permitiu aos estudantes definir suas próprias reivindicações e, na
prática, nada impedia suas organizações de formular, ao mesmo tempo
reivindicações econômicas, políticas ou culturais. (...) o movimento não
encontrava dificuldades em engajar-se nos movimentos políticos, nem em
mobilizar suas bases em consonância ou em oposição a projetos
governamentais de mobilização popular. (ALBUQUERQUE, 1977, p. 71)
A União Nacional dos Estudantes (UNE) foi uma das primeiras vítimas do golpe
civil-militar, pois sua sede no Rio de Janeiro foi invadida e incendiada por policiais à
paisana, assim como as principais lideranças do Movimento Estudantil acabaram presas
e muitas entidades estaduais estudantis foram fechadas. Neste momento, a principal luta
estudantil intensificou-se em favor de uma Reforma Universitária, sendo que esta
implicava, dentre outras coisas, na extensão do ensino público e gratuito e na cogestão
nas faculdades, medidas inaceitáveis pelo governo militar; e o fim dos acordos MEC-
USAID, assim como contra a lei criada para reorganizar as instituições estudantis. Neste
sentido, visando controlar as entidades estudantis, foi promulgada em novembro de
1964, a Lei nº 4.464/64, conhecida também como Lei Suplicy de Lacerda271, cuja
autoria foi do então Ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda. Segundo a lei, as
entidades estudantis seriam reestruturadas, uma vez que a UNE e as Uniões Estaduais
dos Estudantes (UEEs) foram fechadas e acabaram sendo criados o Diretório Nacional
dos Estudantes (DNE), com sede em Brasília, e os Diretórios Estaduais dos Estudantes
(DEEs).
Lei n° 4.464/64 (outubro de 1964) – conhecida como Lei Suplicy de
Lacerda, em “homenagem” ao então ministro da Educação. Determinava a

271
Para maiores informações acerca da Lei Suplicy de Lacerda, ver
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=4464&tipo_norma=LEI&data=19641
109&link=s (acesso em 12 de julho de 2013).
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proscrição das entidades estudantis existentes e a criação de outras sob o


controle do Estado através das Instituições de ensino. O funcionamento da
UNE estava proibido. Os diretórios centrais de estudantes estariam
subordinados às direções das universidades. Os centros acadêmicos seriam
substituídos por “diretórios” acadêmicos, também sob controle das
respectivas direções das faculdades. Os regimentos das entidades deveriam
ser submetidos aos Conselhos Departamentais, Conselhos Universitários ou
ao Conselho Federal de Educação. (BORTOT; GUIMARAENS, 2008, p. 16)
A assinatura, a partir de junho de 1694, de convênios entre o Ministério da
Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID)
gerou intensas manifestações estudantis. Tais convênios visavam firmar acordos de
assistência técnica e cooperação à educação brasileira, bem como implantar o sistema
norte-americano de educação desde o ensino primário até o ensino superior. Com isso, a
educação teria um viés tecnicista, isto é, a educação seria voltada para o
desenvolvimento econômico do país, para tanto, seriam criados cursos
profissionalizantes que gerassem mão de obra especializada, ao passo que as áreas das
ciências humanas cairiam em detrimento. Além disso, outro acordo previa a
privatização do ensino, especialmente o superior, fazendo com que o mesmo fosse
rentável. Ao todo foram firmados 12 de acordos, sendo o último deles assinado no ano
de 1976.
O ano de 1968 foi marcado pelo auge nas lutas estudantis Brasil afora e o
estopim para a intensificação dessas lutas foi a morte do estudante secundarista Edson
Luis de Lima Souto em 28 de março no restaurante Calabouço, localizado no Rio de
Janeiro. Mais tarde, o episódio que marcou o início de inúmeras manifestações
estudantis e populares acabou culminando numa imensa manifestação contra a ditadura,
a qual ficou conhecida como a “Passeata dos Cem Mil”, que ocorreu no Rio de Janeiro e
contou com a participação de inúmeros estudantes, artistas, intelectuais e a população
em geral. No entanto, para dar cabo ao alto grau de insubordinação política, o governo
militar editou o Ato Institucional nº 5 e tal medida conferia poderes extraordinários ao
presidente da República. Durante esse período, assistimos o recrudescimento da
repressão policial contra as manifestações públicas de repúdio ao regime militar, em
consequência disso, aqueles manifestantes, em grande parte estudantes, tidos como
“subversivos”, foram caçados e muitos deles acabaram presos, torturados e, em casos
extremos de uso da violência por parte do Estado, acabaram sendo mortos. Para aqueles
que conseguiram escapar a salvo da repressão, restava apenas a clandestinidade. Fábio
Marçal escreve,
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As disputas e embates diretos, neste momento, eram algo que fortificavam o


Movimento Estudantil, pois a cada ato de desobediência (mobilizar-se em
torno dos seus ideais era ser desobediente), certificava-se de que era possível
enfrentar o regime, principalmente se fosse extrapolado o limite da legalidade
(aliás, boa parte das lideranças estudantis via na ilegalidade a única
possibilidade de luta). Neste sentido, as mobilizações se sucedem, bem como
se sucede a brutalidade com que o governo às reprimia. (MARÇAL, 2006, p.
83)
Em outubro deste mesmo ano, foi realizado, de forma clandestina, o XXX
Congresso da UNE. O evento contou com a presença de cerca de 700 delegados
estudantis vindos de todos os pontos do país e o mesmo aconteceu num sítio em Ibiúna,
no interior de São Paulo. A polícia acabou descobrindo sobre o evento e prendeu quase
todos os participantes, dentre eles Luís Travassos (AP), Vladimir Palmeira (DI-GB) e
José Dirceu (DI-SP) impedindo que a realização do congresso, que foi organizado pela
UEE-SP. Em abril do ano seguinte, sob rígida clandestinidade, o congresso foi realizado
num sítio no Rio de Janeiro com a presença restrita de delegados, cerca de apenas 100
delegados. Neste congresso foi eleito para a presidência da UNE, Jean Marc Van Weid
(AP), porém a instituição perdeu muito da sua força política e muitos estudantes se
desvincularam do movimento estudantil para militar em grupos clandestinos de luta
armada.
De acordo com Daniel Aarão Reis Filho, “fechou-se a cortina, começaram os
anos de chumbo” (FILHO REIS, 2004, p. 41). Durante a década de 1970 houve um
esvaziamento do movimento estudantil devido ao recrudescimento da repressão policial.
As universidades, lugares onde pulsava o espírito de luta, acabaram se tornando espaços
de medo e desconfiança, já que havia policiais infiltrados (ou não) percorriam
constantemente os espaços comuns de convivência dos estudantes, os próprios alunos
delatavam os colegas, assim como professores “progressistas” acabaram sendo
expurgados (tal política já havia sido posta em prática em 1964). Segundo afirmação de
Bortot e Guimaraens, “os corredores da USP eram assépticos, pareciam hospitais”
(BORTOT; GUIMARAENS, 2008, p. 29). Muitos estudantes migraram para a luta
armada, pois acreditavam que esta seria a única maneira possível de continuar a luta
contra a ditadura. Para Marcelo Ridenti, o movimento estudantil foi um dos principais
expoentes de quadros para os grupos de esquerda, assim como para os grupos que
aderiram à luta armada.
Foi notável a presença de estudantes nos grupos de esquerda em geral (906;
24,5% do total de 3.698 processados, com ocupação conhecida, por ligação
com grupos de esquerda), e particularmente naqueles que pegaram em armas
(583; 30,7% dos 1.897 denunciados por vinculação com organizações
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guerrilheiras urbanas típicas). Isso reflete a extraordinária mobilização


estudantil, sobretudo nos anos de 1966 e 1968. (RIDENTI, 1993, p. 115)
Assim, no decorrer dos primeiros anos da década de 1970 a UNE perdeu
significativamente a influência no meio estudantil, uma vez que restringia-se apenas à
alguns estudantes clandestinos. A ditadura acabou derrotando o movimento estudantil,
que se reestruturaria novamente em meados de 1976.
AS MULHERES CONTRA A DITADURA NA PRINCESA DO SUL

Após a desarticulação do movimento estudantil em consequência do AI-5, é


somente em meados de 1976 que começam a surgir algumas manifestações isoladas em
determinadas cidades. Ademais, foi somente no ano seguinte que a mobilização
estudantil atingiu outro patamar, pois ocorreram manifestações em praticamente todos
os estados do país, além disso, movimento estudantil se aliou a outros setores e
movimentos sociais, intensificando sua luta promovendo greves, passeatas e
manifestações públicas contra o governo militar. Muitas destas manifestações eram de
cunho econômico e político, pois os estudantes lutavam pelo aumento do número de
vagas nas universidades públicas, mais verbas para a educação, melhorias nos
Restaurantes Universitários, bem como, pediam o fim das prisões, das torturas, dos
assassinatos, lutavam pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e pelo fim da ditadura civil-
militar.
Em Pelotas, os estudantes manifestavam contra o “Pacote de Abril” em frente ao
prédio da faculdade de Direito (UFPel), quando a polícia cercou o local onde se
encontravam os estudantes, uma vez que estes foram avisados com antecedência que
não seria permitido a realização de discursos. No entanto, um estudante toma a
iniciativa e intenciona de escrever a palavra “liberdade” na terra, assim, inicia
escrevendo um “L”, outros estudantes também fizeram o mesmo escrevendo “LIBER”.
Porém, é neste momento que o estudante de Direito João Carlos Gastal Júnior, levanta-
se e afirma que liberdade não se pede, se conquista, tal ato foi o suficiente para a prisão
do estudante.
[...] Às oito horas da manhã – momento marcado para o início da
concentração estudantil – a praça Ferreira Viana, do Direito, tinha o mesmo
aspecto de um dia normal de aulas. Parecia que a manifestação marcada havia
sido adiada. Mas, uma hora depois, a situação já era outra. Centenas de
estudantes e dezenas de policias vigiavam-se mutuamente. A manifestação
começava, com os primeiros cânticos, sem intervenção policial.
Porém, à primeira tentativa de discurso, o estudante de Direito João Carlos
Gastal Júnior não conseguiu repetir a palavra liberdade pela segunda vez: foi
detido pela Brigada Militar e conduzido num automóvel “Opala” para a
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Delegacia do Primeiro Distrito e, dali, para o Quartel da Brigada. Eram


9h30min. Foi o momento forte e mais delicado da concentração. Depois
disso, os manifestantes ficaram mais preocupados em trazer Gastal Júnior de
volta, do que qualquer outra coisa, embora continuassem cantando. [...]
(Diário Popular, 20 de maio de 1977, p. 6)
Este episódio supracitado marcou a retomada das lutas estudantis contra a
ditadura, com isso, trataremos de abordar a seguir acerca da militância feminina no
movimento estudantil na cidade de Pelotas. Para tanto, é necessário entender como esta
cidade se constituiu, para então compreendermos as suas especificidades. Assim, em
fins do século XVIII começaram a se estabelecer nas margens do Arroio Pelotas e do
canal São Gonçalo as primeiras charqueadas do cearense José Pinto Martins, fazendo
surgir com isso os primeiros indícios de povoação nesta região. Ao longo dos anos, a
indústria do charque foi responsável pelo enriquecimento dos charqueadores,
favorecendo um próspero crescimento econômico e cultural à cidade. Ao passo que se
criou também, em consequência dessa riqueza, uma elite conservadora que durante
muitos anos atuou ativamente na política e na vida social de Pelotas. A partir da década
de 1950, a elite pelotense entra em declínio em decorrência da modernização e
reestruturação capitalista do Estado, fazendo com que a economia se deslocasse para o
norte e para a região metropolitana de Porto Alegre.
Nas décadas seguintes, principalmente entre os anos de 1970 e 1980, a cidade
começou a ficar movimentada devido ao crescente aumento de jovens oriundos de
várias partes do Estado, e também do país, que foram em busca do diploma no ensino
superior, este fenômeno deu à Pelotas a característica de “cidade universitária”. Isso
gerou um intercâmbio de ideais não somente políticos, mas também culturais e sociais
entre os jovens.
A participação de mulheres no movimento estudantil em Pelotas possibilitou a
essas militantes adentrar em um mundo majoritariamente dominado pelos homens,
assim, elas romperam com o padrão estabelecido, o qual consistia em estabelecer às
mulheres apenas acesso ao mundo privado, o mundo da casa e do íntimo. De acordo
com Ana Rita Duarte (DUARTE, 2007, p. 1), elas subverteram ao costume estabelecido
a partir do momento que começam a realizar ações públicas de resistência à ditadura.
Para Marta Rovai, a História Oral tem desempenhado importante papel para o
conhecimento de grupos excluídos dos registros oficiais e “inscrever no relato
historiográfico vozes múltiplas e silenciadas” (ROVAI, 2013, p. 4). Portanto, no caso
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especifico das mulheres, os relatos orais se apresentam como meio para que elas sejam
incluídas na chamada “grande história”, em que geralmente estiveram invisíveis.
Utilizando a ideia da invisibilidade, já que ao analisarmos materiais alusivos ao
movimento estudantil na cidade, bem como as próprias entrevistas, fica nítido que as
mulheres raramente chegaram a ocupar cargos de destaque no interior deste movimento.
Para melhor compreensão, algumas entrevistas foram realizadas com determinadas
militantes, sendo que apenas uma delas teve participação mais significativa dentro do
movimento estudantil em Pelotas, já que foi escolhida para compor uma chapa que
concorreu às eleições ao DCE da UFPel, assim como o da UCPel, na qual ocuparia o
cargo de vice-presidente. Na fala da entrevistada, percebemos que apenas os homens se
destacavam dentro do movimento, a estes cabia o uso da palavra, assim,
[...] geralmente quem mais falava, quem mais se destacava, geralmente, era
mais os homens, até porque já era aquilo de praxe e isso a gente não muda de
hora pra outra, tanto é que a gente teve presidentes, diretores de DAs e DCE
quase sempre homens. Eu não me lembro que candidata mulher, afora eu que
fui da Católica, foi cabeça de DCE aqui em Pelotas. E no movimento como
um todo. (Duca Lessa em entrevista em 24/02/14)
Segundo Marieta Ferreira (FERREIRA, 2002, p. 314), na segunda metade do
século XIX, as fontes orais não eram consideradas qualificadas para serem usadas como
ferramenta histórica, somente no século XX é que esse tipo de fonte foi restaurado pelos
historiadores que defendiam a validade do estudo do tempo presente. Porém, ainda
existem alguns historiadores que acreditam que a história oral e seu uso como
ferramenta de pesquisa não seja legítima, pois como aponta Portelli (PORTELLI, 2000,
p. 298) “as versões das pessoas sobre seu passado mudam quando elas próprias
mudam”. Percebemos com essa afirmação que a memória não é estática, ou seja, ela
está sempre mudando de acordo com as experiências adquiridas durante a vida,
buscando novas resignificações a partir dos acontecimentos que se concretizaram,
possibilitando novas concepções e interpretações do mesmo. Ferreira descreve,
A memória é também uma construção do passado, mas pautada em emoções
e vivências; ela é flexível, e os eventos são lembrados à luz da experiência
subsequente e das necessidades do presente. (FERREIRA, 2002, p. 321)

De acordo com a mesma autora, existem duas vertentes de trabalho possíveis


dentro da história oral, a primeira delas refere-se ao uso da história oral e trabalha
prioritariamente com os depoimentos orais como instrumento para preencher as lacunas
deixadas pelas fontes escritas. Esse tipo de ferramenta é comumente utilizada nos
estudos das elites, das políticas públicas implementadas pelo Estado, bem como na
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recuperação da trajetória dos grupos excluídos, cujas fontes são escassas. Quando
utilizados para recuperar a história dos excluídos, “estes depoimentos orais podem
servir não apenas a objetivos acadêmicos, como também construir-se em instrumentos
de construção de identidade e de transformação social.” (FERREIRA, 2002, p. 327).
Aqui percebemos a importância da realização de um roteiro consistente de entrevista
com vistas a conduzir os depoimentos, bem como fazer o levantamento de fontes extras
para poder assim, garantir o máximo de veracidade e de objetividade.
Já a segunda vertente é aquela que privilegia o estudo das representações e
atribui um papel central às relações entre memória e história. Nesta vertente, não é
necessário o uso de roteiros para as entrevistas, pois estas não são voltadas para a
checagem da veracidade dos fatos ou mesmo a utilização de outras fontes para a
comprovação dos elementos obtidos nos depoimentos, pois acredita-se que as distorções
da memória se constituem em recurso e mão representam um problema (FERREIRA,
2002, p. 327-328).
Quando se escolhe trabalhar com o plural, ou seja, quando se escolhe utilizar a
história oral como método de pesquisa, é necessário levar em conta que não haverá
apenas uma versão do fato relatado ou uma verdade absoluta e, não cabe ao pesquisador
julgá-los (ALBERTI, 2004, p. 12).
Benito Schmidt aponta a segunda metade do século XIX como marco inicial do
interesse dos autores pelo fenômeno da memória, estes foram motivados pelas
transformações ocorridas na Europa ocidental, especialmente pelos processos de
industrialização e urbanização. Segundo o autor, a análise da memória iniciou-se como
um campo da psicologia, pois os estudos tinham como objetivo situar as lembranças em
alguma área específica do cérebro. Um dos pioneiros a escrever matérias sobre o
assunto foi Henri Bergson, este publicou em 1896 a primeira edição de “Matéria e
memória”, que trazia os estudos realizados em pacientes com amnésia, afasia, cegueira
psíquica e outros distúrbios. Para este autor, existem duas formas de memória, a
memória hábito e a memória representação, a primeira definição está relacionada a
repetição, já a segunda, está ligada às representações, (SCHMIDT, 2006, p. 90).
Nesse contexto de industrialização e urbanização da Europa, a sociologia
aparece para responder aos anseios desta nova sociedade em desenvolvimento, assim, o
sociólogo Maurice Halbwachs interessa-se pelos estudos relacionados à memória como
um meio de explicar determinados problemas de sua época. Para ele, a memória é um
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fenômeno social, pois ela só se caracteriza pela reconstrução do passado através dos
grupos sociais do presente, com isso, ele defende que a memória se configura pelo
coletivo e que a memória individual inexiste. Ele completa ainda dizendo que a
memória individual seria apenas um “ponto de vista sobre a memória coletiva”
(HALBWACHS, 1990 apud SCHMIDT, 2006, p. 92). Fernando Catroga vai ao
encontro de Halbwachs quando ele afirma que a memória “nunca será um mero registro,
pois é uma representação afetiva, ou melhor, uma re-presentificação, feita a partir do
presente e dentro da tensão tridimensional do tempo” (CATROGA, 2001, p. 46).
Assim, os sujeitos que vivenciaram situações históricas parecidas ou ainda,
aqueles que compartilharam o mesmo espaço social estão inclinados a ter depoimentos
similares sobre o passado, estabelecendo a “fronteira do dizível e o indizível”
(POLLAK, 1989, p. 8), para completar, Portelli (PORTELLI, 1996, p. 59) afirma que “o
principal paradoxo da história oral e das memórias é, de fato, que as fontes são pessoas,
não documentos (...)”.
De acordo com a mesma autora, existem duas vertentes de trabalho possíveis
dentro da história oral; a primeira delas refere-se ao uso da história oral e trabalha
prioritariamente com os depoimentos orais como instrumento para preencher as lacunas
deixadas pelas fontes escritas. Esse tipo de ferramenta é comumente utilizada nos
estudos das elites, das políticas públicas implementadas pelo
Partes dessas memórias muitas vezes acabam sendo pouco conhecidas, as quais
através da História Oral temos a oportunidade de situá-las quanto ao seu pertencimento
individual ou coletivo na sociedade. Michel Pollack trabalha com um conceito
importante para o entendimento desse projeto, pois ele trabalha com as memórias
subterrâneas, ou seja, estas são memórias ligadas àqueles grupos marginalizados. De
acordo com Pollak,
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações
do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes:
partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações, etc. A
referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das
instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo,
sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis (POLLAK,
1989, p. 7).
Estas entrevistas iniciaram no ano de 2011 em decorrência do Trabalho de
Conclusão de Curso da autora, iniciamos entrevistando Renato Della Vechia, professor
de Ciência Política da UCPel, e ex-militante do movimento estudantil pelotense. Renato
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teve seu nome escolhido como depoente em virtude de sua trajetória dentro do M.E e
também pelo seu trabalho como pesquisador acerca do ressurgimento do referido
movimento no estado do Rio Grande do Sul, no período da redemocratização do Brasil.
Além dele, entrevistamos duas irmãs que militaram neste movimento, no período
referenciado, assim como mais duas ex-militantes. A primeira mulher à ser entrevistada
foi Rosane Brandão, que foi estudante de História na UFPel e por já ser mãe de dois
filhos não militou organicamente no movimento, mas em várias manifestações ocorridas
na cidade ela esteve presente, assim como, estar inteirada dos principais acontecimentos
deste. Terezinha Brandão, a segunda da nossa lista a conceder entrevista, iniciou sua
militância já no primeiro ano de faculdade, no curso de Serviço Social na UCPel. Vera
Lopes iniciou sua militante já na sua época de secundarista, no período que antecedeu o
golpe civil-militar em 1964, algum tempo mais tarde, ao se mudar para o Rio de Janeiro
onde cursou a faculdade de Direito da UERJ, continuou a militância no movimento
estudantil, no entanto, ao perceber o recrudescimento da repressão, começou a atuar
somente como jornalista profissional durante as manifestações. Ela voltou para Pelotas
no ano de 1978 e ingressou logo em seguida no curso de Ciências Sociais da UFPel,
porém não configurava como militante orgânica do movimento por também já ser mãe.
A última entrevistada foi Duca Lessa, dentre as entrevistadas, ela foi a militante que
mais se destacou dentro do movimento estudantil em Pelotas. À época, Duca cursava
Direito na UFPel e Jornalismo na UCPel, mas não concluiu nenhum dos cursos.
Um dos principais pontos destacados nestas entrevistas foi a questão do
preconceito sofrido pelas mulheres enquanto militantes, especialmente quando a
repressão partia da própria família. De acordo com os depoimentos, ao se tratar de uma
sociedade machista e conservadora, a mulher que se dedicava à militância era “mal
vista”, já que comumente esta estava exposta, estava se inserindo num espaço público,
que por sua vez, era masculino.
[...] Mas o finco familiar, de fato, o que ocorre, [...] primeiro, esse tipo de
movimentação, movimento social, movimento sindical e Movimento
Estudantil, no geral da sociedade, existe uma idéia de deslegitimar sempre
[...] no meio familiar, época de Ditadura Militar, a coisa era complicada, por
dois motivos: primeiro, pelo como vão ver essas meninas e, segundo, a
questão da repressão mesmo, que era power na época, uma repressão bastante
complicada e que isso, óbvio, freava bastante as mulheres de participar. [...]
(Rosane Brandão em entrevista em 29/11/11)

[...] as famílias não concordavam muito, eles achavam que a gente era
maluco, que talvez a gente usasse droga, que a gente não conseguir nunca
sair da faculdade e que a gente era uma cambada de louco. Se eles pudessem,
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eles encerravam a gente, porque a gente recebia a toda hora mensagenzinhas


“olha, tua filha tá fichada no DOPS e a qualquer hora...” (Duca Lessa em
entrevista em 24/02/14)

[...] A questão das mulheres, ela tinha alguns elementos. Primeiro óbvio que
numa sociedade onde ela tem na sua estrutura social preconceitos, [...] de
alguma maneira isso influenciava no movimento, mas influenciava em
diversas esferas. Influenciava por que os pais eram contrários a participação
das filhas mulheres, por que os pais controlavam os horários que as filhas
mulheres chegavam em casa, o que não era o mesmo controle para os
homens. Então, eu acredito que o machismo, não vou dizer que não existisse,
mas não havia de uma forma clara, explícita, a preocupação de dificultar
mulheres de entrar. (Renato Della Vechia em entrevista em 24/11/11)

Em 31 de março 1981 aconteceu um episódio na Casa do Estudante, onde a mãe


de um aluno do curso de Medicina Veterinária que estava com a perna quebrada foi
impedida de entrar, uma vez que a entrada de mulheres na mesma era expressamente
proibida. Tal fato foi o estopim para a mobilização estudantil, que reivindicava moradia
gratuita também para mulheres. A Casa do Estudante foi invadida pelas mulheres do
movimento estudantil pelotense, as quais foram apoiadas pelos grupos femininos de
Santa Maria e Porto Alegre. Após essa mobilização começaram a ser feitas algumas
mudanças, pois um dos andares da casa foi designado às mulheres.
Eu estava com a minha filha com quase nove meses na barriga, não sabia o
que eu fazia, mas a gente subiu as escadas, invadiu e a partir dali nunca mais
a casa do estudante foi só masculina, foi casa para mulheres também. (Duca
Lessa em entrevista em 24/02/14)

Ao analisarmos as entrevistas, nas quais nos baseamos no modelo apresentado


por Miriam Goldenberg, onde ela, ao trabalhar com militantes do PCB nos aponta dois
modelos diferentes de ser mulher militante. Assim, o primeiro exige da mulher a
abnegação da sua individualidade, bem como sexualidade, em prol de um todo, no caso
dessas mulheres, o partido, estando estas próximas do papel tradicional feminino em
que a mulher poderia ser considerada hierarquicamente inferior ao marido no interior da
casa. Já o segundo modelo, pode ser pensado como estando mais próximo das ideias
difundidas pelo movimento feminista e também pela psicanálise, onde se busca a
igualdade entre homens e mulheres, defendendo-se o controle feminino sobre a sua
própria vida e sexualidade (GOLDENBERG, 1997, p. 8). Percebemos com isso, que
nossas entrevistas se encaixam perfeitamente neste segundo modelo, pois elas não
tiveram que abdicar de sua própria individualidade em razão de sua militância no
movimento estudantil.
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MULHERES DE LUTA: ORGANIZAÇÃO E CONQUISTAS DOS


MOVIMENTOS DE TRABALHADORAS CANAVIEIRAS EM PERNAMBUCO
(1980-1988)

Marcela Heráclio Bezerra


Mestra em História pela UFPE/ Técnica em Assuntos Educacionais do IFPE
marcelaheraclio@yahoo.com.br/marcelaheraclio@ipojuca.ifpe

Em Pernambuco, o sindicalismo rural, constituiu-se como um movimento de


trabalhadores que lutava contra os efeitos do capitalismo, não se opondo a ele de
maneira revolucionária. Como projeto da classe trabalhadora rural, promovia uma série
de ações capazes de construir a consciência sindical e política dos canavieiros. (ABREU
E LIMA, 2005. p. 216).
O sindicalismo rural até o inicio dos anos 1980, não possuía um direcionamento
politica de acolhimento e valorização das trabalhadoras rurais. A participação das
mulheres no movimento não era estimulada pelos sindicatos de trabalhadores rurais,
tampouco pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco - FETAPE.
O ideal era que canavieiras centrassem suas atividades nas igrejas e na base do
movimento sindical.
Em virtude das relações de gênero vivenciadas na zona canavieira, às mulheres
eram destinados o trabalho realizado no ambiente doméstico, a limpeza e conservação
da casa, a preparação das refeições e a manutenção da roça familiar, da qual as famílias
tiravam seu sustento, ora consumindo os alimentos ora comercializando parte da
produção doméstica, evitando-se a todo custo o assalariamento das trabalhadoras
canavieiras, salvo na companhia dos maridos e filhos, devido os possíveis
comportamentos desrespeitosos cometidos pelos empregadores e prepostos dos
engenhos.
As mulheres acordam às 4 horas, no mais tardar. [...] O marido vai para a
roça e ela fica em casa cuidando do almoço, das crianças, dos animais
pequenos. Abastece a casa de água e muitas vezes, às 10 horas, bota o
almoço pronto na cabeça e caminha 6, 8 quilômetros, para entregá-lo ao
marido e filho que estão trabalhando na roça. Isso só para evitar que eles
diminuam o tempo de trabalho no campo. Quando chega na roça, continua
trabalhando. Se tiverem plantando, ela planta, se tiverem colhendo, ela colhe
enquanto os filhos e o marido estão comendo. (ALMEIDA, 1995, p. 69-70).
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Contudo, o crescente assalariamento das trabalhadoras canavieiras na produção,


verificado ao longo do decênio de 1980, e as pressões exercidas pelos movimentos de
trabalhadoras rurais no Estado, além de toda uma movimentação de mulheres na luta
por direitos, levaram a uma mudança de posicionamento do movimento sindical, que
passou a acolher as trabalhadoras em seus quadros, dificultando, contudo, o acesso das
mulheres aos cargos de dirigentes sindicais.

Isso é particularmente exato no que respeita às mulheres, porque raras são as


suas representantes na cúpula sindicais; além disso, elas muitas vezes não se
acham organizadas para a militância de base. Toda a orientação sindical,
ademais, é masculina. A garantia única das mulheres no sentido de que os
seus interesses serão levados em conta é organizarem-se como operárias e
como mulheres. (ROWBOTHAM, 1983. p. 160-161).

Até então, as trabalhadoras canavieiras filiadas aos sindicatos de trabalhadores


rurais eram, na sua maioria, viúvas, separadas ou solteiras, que trabalhavam em regime
permanente nas usinas. Essas mulheres, no entanto, eram discriminadas dentro dos
sindicatos, local culturalmente reservado aos homens, pois muitas vezes não sabiam ler
e escrever, como analisado anteriormente. (ABREU E LIMA, 2005. p.191).
A partir de 1984, em decorrência das pressões exercidas pelos movimentos de
mulheres trabalhadoras rurais do Sertão Central de Pernambuco para inserir entre as
ações políticas do sindicalismo rural a valorização das trabalhadoras rurais e a efetiva
sindicalização das mesmas, os sindicatos e a FETAPE passaram a promover a
associação sindical das trabalhadoras rurais. ( CONTAG, 1984).
As trabalhadoras canavieiras da zona da Mata de Pernambuco, outrora preteridas
em determinados âmbitos de atuação e representação política, inclusive no movimento
sindical, passaram a desenvolver, a partir de 1986, discussões trabalhistas atreladas a
uma série de questionamentos sobre os papéis da atuação das mulheres na sociedade,
conscientizando-se da dupla exploração que sofriam; além da exploração pelo capital
nas relações de trabalho, eram oprimidas, inclusive pelo movimento sindicalista, frente
a sua representatividade na instituição classista. (ROWBOTHAM, 1983. p. 159).

 O Movimento de Mulheres Trabalhadoras rurais em Pernambuco


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A predominância do sindicalismo rural em privilegiar as questões trabalhistas,


sem considerar os demais anseios dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, motivou
discussões profundas sobre a organização e as formas de atuação dos sindicatos.
Uma contradição marcante do movimento sindical foi a não valorização da
mulher trabalhadora. A despeito da presença das canavieiras nas lavouras açucareiras
quer na condição de dependentes dos maridos quer como trabalhadoras assalariadas, a
plena inclusão das mulheres canavieiras nas atividades políticas desenvolvidas nos
espaços dos sindicatos, até meados da década de 1980, não se constituía como prática
corrente do movimento. (ABREU E LIMA, 2005. p. 208).
Ao focar as ações da instituição no direcionamento das dificuldades encontradas
nas relações de trabalho vivenciadas na zona canavieira, sobretudo nas questões
relacionadas à remuneração e ao conflito entre classes patronais e trabalhadores, as
especificidades concernentes ao trabalho feminino e as opressões de gênero vivenciadas
pelas mulheres canavieiras não eram questões discutidas nos sindicatos, que não
percebiam ou não desejavam atender a outras demandas da classe trabalhadora, entre
elas as especificidades femininas.
Considerando-as incômodas e até certo ponto secundárias, as demandas das
trabalhadoras, inerentes às mulheres, mas também para toda a classe trabalhadora, uma
vez que a extensão do período de tempo da licença maternidade, a extensão da
estabilidade da mulher gestante, as pausas ao longo do horário de trabalho para
amamentar os filhos menores de 6 meses, entre outras reivindicações consideradas
específicas às mulheres canavieiras, contribuíam para garantir níveis dignos de
reprodução da mão-de-obra trabalhadora, o movimento sindical não buscou discutir e
encaminhar essas reivindicações pois acreditavam na possível divisão e
enfraquecimento da luta sindical com o desvio do foco de atuação para as problemáticas
consideradas femininas.
A FETAPE e os sindicatos eram considerados espaços de atuação política
“naturalmente” masculinos, avessos à natureza feminina e um considerável número de
mulheres não se sindicalizava, mesmo atuando como trabalhadoras rurais. (PÓLO
SINDICAL SERTÃO CENTRAL, 2004. P. 25).
Por sua vez, as feministas brasileiras que se associaram às esquerdas
remanescentes dos “anos de chumbo” passaram a articular as discussões sobre a
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exploração da classe trabalhadora à questão da opressão de gênero imposta às mulheres.


(SOUZA-LOBO, 1991. p. 225).

O movimento feminista em países como o Brasil, não pode escapar dessa


dupla face do problema: por um lado, se organiza a partir do reconhecimento
de que ser mulher, tanto no espaço público como no privado, acarreta
consequências definitivas para a vida e que, portanto, há uma luta específica,
a da transformação das relações de gênero. Por outro lado, há uma
consciência muito clara por parte dos grupos organizados de que existe no
Brasil uma grande questão: a fome, a miséria, enfim, a desigualdade social, e
que este não é problema que pode ficar fora de qualquer luta específica.
(PINTO, 2003. p. 45).

As feministas defendiam as liberdades democráticas e a não hierarquização das


discussões sobre a exploração de classe e a opressão de gênero. Contudo, “[...] Alguns
setores das esquerdas posicionaram-se contra esse tipo de discussão, que segundo eles,
poderia dividir o movimento e enfraquecer a luta de classes.” (ABREU E LIMA, 2005.
p.201). Encaravam-nas como defensoras de interesses burgueses, alheias às
“verdadeiras” necessidades das mulheres trabalhadoras.
Nesse contexto foram criados em Pernambuco os movimentos de mulheres
trabalhadoras rurais. Estes contribuíram para o fortalecimento da mobilização rural
feminina para a conscientização política e criticidade das mulheres, enquanto
representante autêntica das classes trabalhadoras e para as discussões sobre as
discriminações de gênero vivenciadas pelas trabalhadoras, enquanto mulher.
O trabalho de mobilização ocorreu graças à disposição e ao empenho das
assessoras sindicais e das próprias trabalhadoras rurais. O programa de rádio “A voz do
trabalhador rural”, também contribuiu para reunir as trabalhadoras através da
divulgação das reuniões e dos assuntos a ser discutidos durante as reuniões.
O número reduzido e, em certos momentos, a ausência das mulheres nas
atividades sindicais, nos encontros de trabalhadores rurais e nas assembleias salariais
passou a ser questionado, de maneira mais efetiva, através do Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Sertão Central (MMTR-Sertão Central), criado em 1982, pelas
assessoras sindicais Vanete Almeida e Hauridete Lima dos Santos.
A primeira reunião ocorreu no município de Caiçarinha da Penha, em dezembro
de 1982. Nesse encontro, cerca de 8 a 10 mulheres discutiram sobre a região do
semiárido, o fenômeno da seca, o sertão central. Também foram problematizadas
questões relativas à vida das trabalhadoras, as experiências no ambiente doméstico, o
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casamento, as relações familiares e as condições de trabalho. (PÓLO SINDICAL


SERTÃO CENTRAL, 2004. P. 139-140).
Nos anos seguintes, ainda no período de organização do movimento, o grupo
passou a agregar trabalhadoras rurais de outras comunidades, fato que contribuiu para o
reconhecimento público do movimento e o crescimento político do mesmo. Pouco a
pouco, novas temáticas passaram a ser discutidas, entre elas a estruturação do
sindicalismo rural e a constituição do movimento de trabalhadoras como ações inerentes
à formação política das mulheres.
As coordenadoras do movimento propunham a socialização das experiências de
vida das trabalhadoras e as discussões sobre a saúde e as formas de obter o acesso desse
serviço, direitos trabalhistas, organização sindical e a valorização das mulheres nos
espaços de trabalho e representação política. As relações de gênero impostas às
mulheres não eram discutidas de maneira objetiva, ainda que fosse presente em distintos
âmbitos da vida da trabalhadora rural, pois além desse assunto não ser difundido no
meio rural, havia o receio de que essa discussão fragilizasse o movimento. (ABREU E
LIMA, 2005. p.204).
Em virtude do prolongamento do período de estiagem, iniciado em 1979, as
dificuldades das famílias trabalhadoras rurais avolumavam-se e intensificavam-se,
sobretudo devido a políticas públicas ineficazes para combater os problemas de
abastecimento alimentar, o fornecimento de água e a empregabilidade da população
atingida pela seca.
Diante desse contexto, a busca por emprego e formas de promover a manutenção
familiar nas áreas rurais estimulava a migração dos “chefes de famílias” para áreas
urbanas do município ou para outros Estados. Não obstante, as mulheres tornavam-se as
únicas responsáveis pelo sustento dos filhos, sendo obrigadas a mobilizar-se
politicamente para ser incluídas nas frentes de serviço abertas pelo Estado, posto que,
dada a condição da mulher na zona rural, o emprego feminino assalariado não era uma
prática frequentemente realizada.
Em 1983, em virtude necessidade material das “viúvas da seca”, o MMTR –
Sertão Central iniciou uma campanha para que os sindicatos de trabalhadores rurais
pressionasse as autoridades públicas a empregar as mulheres. Graças à organização e a
obstinação das mulheres e das assessoras sindicais compromissadas com a valorização
do trabalhado feminino, houve a superação dessa condição e a inserção das
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trabalhadoras rurais nas frentes de emergência. (Pólo Sindical Sertão Central, 2004. p.
24).
Com efeito, por meio do alistamento das mulheres realizado pelos sindicatos, as
trabalhadoras conseguiram ter o direito de empregar-se nas frentes de emergência. Para
que o trabalho feminino fosse reconhecido e valorizado, as mulheres decidiram exercer
as trabalhar separadamente dos homens, formando grupos de trezentas, quatrocentas e
até de quinhentas trabalhadoras.
Diante dessa conquista, o MMTR – Sertão Central iniciou a organização do o 1º
Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central, nos dias 15 e 16 de
dezembro de 1984, com o apoio do sindicato de trabalhadores rurais do Sertão Central e
da FETAPE.
Cartaz 1 – Cartaz do 1º Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais Sertão
Central. 1984.

Fonte: Acervo da FETAPE

As discussões realizadas durante o evento propuseram o levantamento e a


análise das dificuldades vividas pelas mulheres no ambiente doméstico e nas relações de
trabalho como forma reconhecer/interferir na sua condição enquanto mulher e
trabalhadora, considerando os problemas específicos de cada participante e as questões
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coletivas concernentes a elas. A principal deliberação do encontro foi buscar a


organização do movimento de mulheres trabalhadoras em outros municípios do Sertão e
das demais regiões de Pernambuco. (PÓLO SINDICAL SERTÃO CENTRAL, 2004. P.
51).
Em 1985, durante a eleição indireta do primeiro presidente civil do Brasil, após
21 anos de Regime Militar, os movimentos de trabalhadores intensificaram suas lutas,
promovendo congressos em prol dos direitos antes negados pelos militares: autonomia
sindical, liberdade de expressão, modificações no sistema de previdência social,
aumento salarial real.
Nesse contexto, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura –
CONTAG realizou o 4º Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais. No encontro, a
presidente do sindicato de Itapetim, Maria Ferreira Lima de Souza, conhecida como D.
Lia, apresentou a proposta de aumentar a participação das mulheres no movimento
sindical. Propôs incentivar os encontros específicos de mulheres e a formação de
lideranças femininas para assumir as atividades tanto na base quanto na direção dos
movimentos de trabalhadores rurais.
Essa ação, promovida pelo Polo sindical do Sertão-Central, significou o avanço
da problematização das questões específicas das mulheres e a força do MMTR – Sertão
Central, pois sem contar com a colaboração da FETAPE, o movimento conseguiu
reproduzir e distribuir milhares de cópias das propostas. (PÓLO SINDICAL SERTÃO
CENTRAL, 2004. P. 26-27).
As propostas foram aprovadas por unanimidade pela assembleia, representando
vitórias consideráveis para as trabalhadoras rurais. As reivindicações propunham,

[...] que a mulher rural integrada no regime de economia familiar fosse


reconhecida como trabalhadora rural, eliminado-se a discriminação de
considerá-la como doméstica ou dependente; e que os sindicatos deviam
encaminhar e coordenar programação específica dirigida para as mulheres,
entre outras. Conclamou, ainda, o movimento a denunciar o projeto
governamental de planejamento familiar, entendido como controle da
natalidade bem como a garantir a participação da mulher trabalhadora rural
em todas as fases da Assembléia Constituinte Nacional. (ABREU E LIMA,
2005. p. 206.)

A imagem reproduzida pelo cartaz do 4º Congresso da CONTAG e pelos demais


documentos produzidos ao longo do evento, conforme demonstra a figura 1, remete-se
para a escultura “O Trabalhador e a Mulher Kolkosiana”, construída em 1937 por uma
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das mais célebres escultoras da antiga União Soviética, a artista russa Vera Ignatyevna
Mukhina, proeminente nome da arte realista socialista. Na imagem de um homem
aparecia segurando seu martelo enquanto a mulher com a mulher empunha a foice,
ambos celebrando o ideal socialista.272

Figura 1 – Resoluções do 4º Congresso da CONTAG para as


trabalhadoras rurais 1985.

Fonte: FETAPE

272
Com 24 metros de altura, 75 ton-monumento, a mais célebre obra de arte de Vera Mukhina, o trabalhador
monumento gigante e Mulher Kolkhoz, foi feita de chapa de aço inoxidável sobre uma armação de madeira, as
placas ligadas por um método inovador de soldadura por pontos. Uma mão de cada figura tem, respectivamente,
um martelo e uma foice, os dois instrumentos se juntam para formar o martelo e foice símbolo da União Soviética.
Disponível em: <http://malomil.blogspot.com.br/2012/01/era-o-seu-nome.html>. Acesso em: 30 jun. 2012, às 15
horas.
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De imediato, a aparência física de ambos os personagens desperta o interesse


para a figura. A representação dos corpos da trabalhadora e do trabalhador rural,
semelhantes quanto a estrutura muscular dos personagens, transmite uma idéia de força
para quem olha a imagem.
O modo de apresentar a imagem feminina, descaracterizada dos trajes habituais,
sem o lenço na cabeça, com os cabelos soltos, trajando roupas não usuais e com um
chapéu tipicamente masculino, parece ser outro recurso utilizado para assemelhar
trabalhadores e trabalhadoras.
Apresentar a trabalhadora e o trabalhador rural, de mãos dadas, unidos em uma
mesma luta e vestidos com trajes semelhantes, demonstrou o interesse da CONTAG em
afirmar a proeminência da questão de classe no movimento trabalhista rural e a ausência
discriminação entre homens e mulheres.

 A organização dos movimentos de trabalhadoras rurais canavieiras da Zona da


Mata de Pernambuco

Os movimentos de mulheres trabalhadoras rurais não seguiram, no entanto, a


mesma dinâmica em todos os lugares. Foram sendo criados a partir das necessidades e
dentro das peculiaridades de cada região. Dado o nível de exploração das mulheres
canavieiras, os primeiros grupos de trabalhadoras rurais floresceram somente a partir de
1985, nos municípios de [...] Moreno, Amaraji, Escada, Vitória de Santo Antão,
Jaboatão, Barreiros, Rio Formoso, Palmares, Água Preta, Vicência, Igarassu, Nazaré,
São Lourenço e Paudalho. (ABREU E LIMA, 2005. p. 208).
Em 1986, na perspectiva de fortalecer o movimento de mulheres trabalhadoras
rurais da região, realizou-se entre o 1º Encontro Regional das Canavieiras. Entre os dias
22 e 23 de março, reuniram-se no município de Carpina, 45 mulheres representantes de
21 sindicatos.
No 1º Encontro de Trabalhadoras Rurais Canavieiras, apoiado pelos sindicatos
da Zona da Mata e pela FETAPE, foram discutidos assuntos referentes ao papel da
mulher na família, sua condição de trabalhadora rural assalariada e a importância da
sindicalização feminina. A partir dos questionamentos “Quem sou eu?” e “Quem somos
nós?”, as trabalhadoras reconstruíam e socializavam suas trajetórias de vida e de
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trabalho, identificando junto às demais mulheres, a existência de dificuldades, práticas e


experiências cotidianas semelhantes.
Nascidas e criadas na palha da cana, as trabalhadoras apontaram a dupla jornada
de trabalho (casa/lavoura), o preço da diária paras as mulheres, o não pagamento de
salário e o descumprimentos dos demais direitos trabalhistas para com as mulheres
gestantes e a ausência de creches para as crianças, como os principais problemas vividos
na zona canavieira.
Na opinião das trabalhadoras, os períodos destinados as palestras, conversação e
troca de experiências trouxeram um enriquecimento significativo para as mesmas.
“agradeço a todas que me informaram bastante, coisas que até aqui eu não conhecia. E
fico agradecendo muito pela bondade de todas, que me informaram muitas coisas sobre
a parte do trabalho, sobre a parte do corpo da gente [...].” (FETAPE, 1986).

Figura 2 – Relatório do 1ª Encontro das Trabalhadoras Rurais da Zona


Canavieira de Pernambuco. 1986.

Fonte: FETAPE
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A imagem do relatório do encontro, onde a trabalhadora rural dividiu


espaço com a plantação da cana-de-açúcar, representava a realidade do período,
onde de maneira progressiva, a lavoura canavieira absorvia todo o espaço possível.
Na primeira imagem, a extensão da área de plantação da cana era limitada
pelo batente da casa da trabalhadora. A representação do segundo plano, no
sentido mais simbólico, a imagem sugere uma visão do quintal da trabalhadora a
partir do olhar do observador dentro da residência. Ao fim do encontro, foram
criados grupos de trabalho para a organização do 2º Encontro Regional das
Canavieiras, que se concretizou em 1987, com a participação de mais de cem
mulheres. (ABREU E LIMA, 2005. p. 208).
Entre os dias 11, 12 e 13 de dezembro de 1987, o movimento das mulheres
trabalhadoras rurais consagrou-se com a realização do 1º Encontro Estadual das
Mulheres Trabalhadoras Rurais de Pernambuco. O encontro realizado na cidade
de Olinda, contou com a participação de duzentas e vinte mulheres, número
significativo para o movimento.

Figura 5 – Relatório do 1º Encontro Estadual de Mulheres Trabalhadoras


Rurais
Pernambuco
1987.
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Fonte: FETAPE.

Apesar das diferentes existentes nas relações de trabalho desenvolvidas pelas


trabalhadoras rurais nas regiões do Estado – na Zona da Mata predominava o trabalho
assalariado e no Agreste e Sertão a agricultura familiar - a partir do diálogo e da
percepção dos aspectos comuns a todas elas, quais sejam a falta de terra para os
agricultores, os baixos salários, a exploração capitalista, a necessidade da sindicalização
feminina, a violência contra as mulheres, produziu-se um documento com os problemas
comuns a maioria das trabalhadoras rurais, na condição de mulher duplamente
discriminada, pelas relações de gênero e pela exploração das classes patronais
oligárquicas.( FETAPE, 1987. p. 49-51).
Durante o encontro, as relações de trabalho, de exploração social, de
discriminação de gênero e de organização sindical, de cada região, foram apresentadas.
As trabalhadoras tomaram conhecimento das semelhanças e diferenças dos municípios e
propuseram fortalecer a rede de apoio entre os movimentos de mulheres em
Pernambuco.
As principais propostas discutidas pelas trabalhadoras e discriminadas no
relatório de conclusão do encontro, eram relativas ao acesso à terra por parte dos
trabalhadores e trabalhadoras rurais, à igualdade salarial, entre homens e mulheres,
durante a realização das mesmas tarefas, à intensificação da sindicalização feminina e à
luta por uma previdência social mais justa.
O 1º Encontro Estadual marcou outra conquista importante para os movimentos
de mulheres trabalhadoras. Pela primeira vez, a FETAPE reconhecia a existência e a
força dos movimentos femininos de trabalhadoras rurais.
Através da ação político-educativa dos movimentos de trabalhadoras rurais, as
mulheres passaram a acreditar em sua capacidade política e criadora, começaram a
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valorizar suas práticas cotidianas, reconhecendo como importantes as trocas de


experiências com as demais companheiras, como demonstra o depoimento de Inês
Paulino, trabalhadora de Cacimbinha em Serra Talhada,

O Movimento serve para a gente se desenvolver e entender muitas coisas.


Para a gente ter esperança de que com esse trabalho melhora a situação do
salário e de muita coisa. Aprendi a me desenvolver mais, participar junto,
aprendi a falar, aprendi a amar mais as companheiras, a me comunicar, a
saber que somos iguais e muitas, muitas coisas. Me sinto feliz, porque antes
disso eu era lesa, para mim eu estava passando pela vida e não vivia, porque
não andava, não conhecia ninguém, não tinha amiga, minha amiga era o cabo
da enxada e hoje, eu tenho amigas e me sinto muito feliz. Para mim o mundo
existia mas nada havia, não tinha futuro.(PÓLO SINDICAL SERTÃO
CENTRAL, 2004. P. 67).

 Considerações finais

Ao ressaltar as práticas femininas, inseridas dentro de um contexto de


superexploração classista e eivadas por relações de gênero, buscou-se compreender os
comportamentos das canavieiras - ações, omissões - a partir das condições
socioeconômicas vivenciadas por elas.
Com efeito, o trabalho buscou evidenciar as estratégias utilizadas para a
formação dos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais, as ações empreendidas
pelo movimento a favor da valorização das mulheres e a consequente influência política
das assessoras mais comprometidas com a conscientização politica das trabalhadoras, na
mobilização dos movimentos de mulheres canavieiras.
Através das análises desse elemento, comprovou-se a presença e participação
das canavieiras na construção dos processos históricos, afastando-as da “tradicional”
visão de que as mulheres agiam com passividade frente os confrontos sociais. A
despeito de haver pessoas, de ambos os sexos, menos propensos ao embate político, o
trabalho realizado permitiu o reconhecimento das trajetórias de vida das canavieiras,
contribuindo para a visibilidade histórica das trabalhadoras.
Através das reuniões e dos encontros de mulheres trabalhadoras, estas
socializavam experiências de vida, se solidarizavam umas com as outras devido aos
semelhantes problemas enfrentados no ambiente do trabalho e nas relações famílias. Os
eventos possibilitavam às mulheres, sobretudo, comunicar-se, expressar-se, falar sobre a
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condição da mulher trabalhadora rural, através do compartilhamento de histórias de


vida.
As mulheres canavieiras ao propor discussões relativas às condições adversas do
cotidiano, os problemas enfrentados na relação conjugal e a opressão de gênero imposta
à elas tanto no ambiente do trabalho quanto no interior das famílias, assumiam um
posicionamento politico diante descriminação vivenciada na Zona canavieiras.
Pouco a pouco, ao longo dos anos 80, no bojo do processo da retomada dos
espaços políticos pelos movimentos sociais, os movimentos feministas e os movimentos
de mulheres trabalhadoras passaram a incluir na pauta de discussões, questionamentos
relativos à valorização do trabalho feminino, a valorização das mulheres nos espaços
sindicai, a opressão de gênero e a exploração de classe que recaiam sob as trabalhadoras
e a inclusão de direitos referentes às mulheres gestantes nas reivindicações trabalhistas
apresentadas pelo sindicalismo rural.
Graças ao posicionamento político e a obstinação das assessoras sindicais, as
campanhas salariais passaram a reivindicar a aprovação e o cumprimento de direitos
fundamentais para as famílias canavieiras como a licença da mulher gestante, a
estabilidade empregatícia após o parto, o salário família e o salário maternidade, pausas
de 30 minutos para cada turno de trabalho para amamentar os filhos menores de 6 meses
e a aposentadoria rural.

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SEXUALIDADE, IDENTIDADE E POLÍTICA EM TEMPOS FINAIS DE


DITADURA: UM ESTUDO A PARTIR DO JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA
(1978-1981)

MARCIANO VIEIRA DE ANDRADE


Programa de Pós-Graduação de Mestrado em História do Brasil (UFPI)
marcianodm@gmail.com

Este trabalho busca analisar a redefinição de identidades homossexuais no Brasil no


final da década de 1970, a partir de um estudo do jornal Lampião da Esquina.
Analisamos como se buscou positivar nas páginas do mensário a imagem dos sujeitos
designados como homossexuais no período final da ditadura militar em contraposição a
uma imagem depreciativa desses sujeitos vigente na época. Também analisamos como a
redefinição identitária proposta pelo jornal foi atravessada por um paradoxo que tem
sido apontado por autores do campo dos estudos de gênero como um dos problemas
marcantes do feminismo, que é a essencialização da identidade em nome da qual são
operadas as reivindicações políticas, nos permitindo, assim, estabelecer uma relação de
proximidade entre os discursos de afirmação homossexual no período trabalhado e
discursos existentes no feminismo. Buscamos ainda, mostrar como a identidade
lampiônica esteve atravessada por relevantes tensões acerca do que significava ser
homossexual.

Palavras-chave: Identidade sexual; feminismo; poder.

A homossexualidade é um campo que tem sido até então, conforme constata


James Green (2012), pouco explorado pelos historiadores, especialmente quando nos
voltamos para temas e problemas relacionados ao século XX, de modo que parece haver
dentro dos departamentos de história uma “resistência para levar a sério pesquisas sobre
a homossexualidade senão aquela de uma época distante” (GREEN, 2012, p.66)
Partindo da constatação dessa carência no campo da História é que buscamos com nossa
pesquisa contribuir para ampliar o leque de possibilidades investigativas da produção
historiográfica no Brasil, especialmente no que se refere às manifestações da
homossexualidade ao longo do século XX. Dentro desse recorte nos chama atenção o
tema dos movimentos e práticas de assunção homossexual no país que surgiram no final
da década de 1970 e com um personagem marcante nesse processo, o Lampião da
Esquina.
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Trata-se de um mensário em formato tablóide, que atual entre 1978 e 1981,


surgido tanto como parte das produções intelectuais que a historiografia denominou
como “imprensa nanica ou alternativa” do período da ditadura, como parte do contexto
marcado por um processo militância afirmativa em favor da homossexualidade no
Brasil nos anos finais da década de 1970, e que exerceu um significativo papel histórico
ao buscar a mobilização da sociedade brasileira da época para uma ampla discussão e
reflexão sobre os sentidos das múltiplas experiências vividas por sujeitos designados
como homossexuais.
Desse modo, o presente artigo tem como proposta mostrar como o Lampião da
Esquina buscou, dentro do contexto assinalado, uma redefinição da identidade
homossexual na medida em que buscou legitimar uma imagem positiva desta em
contraposição a uma imagem depreciativa sustentada por vários discursos e saberes
vigentes na época. Ao mesmo tempo buscamos analisar, como a redefinição identitária
proposta pelo jornal foi atravessada por um paradoxo que tem sido apontado por autores
do campo dos estudos de gênero como um dos problemas marcantes do feminismo e
que está relacionado com um processo de essencialização da identidade em nome da
qual são operadas as reivindicações políticas. Desta forma, esperemos poder contribuir
para um possível diálogo entre os estudos da homossexualidade e os estudos feministas
no Brasil. Além disso buscamos mostrar como a identidade “lampiônica” esteve
atravessada por interessantes tensões no que se refere ao que significava ser
homossexual, especialmente no que se refere a questão da relação que envolvia
homossexualidade e efeminização.
*
A década de 1970 é um período marcante da história do país, tanto por envolver a
fase mais dura e repressiva do regime militar instaurado em 1964, como também por
englobar a chamada fase de “distensão” da ditadura, que ficou marcada pelo
ressurgimento das mobilizações políticas e sociais contra o autoritarismo do governo e
as contradições sociais vividas pela sociedade da época. Um dos episódios marcantes
desse período foi o surgimento de novas formas de ativismo político cujas idéias não
mais se resumiam ao “paradigma clássico de desejos de luta baseado exclusivamente no
conceito de luta de classes” (SILVA, 1998, p. 89).
Surgiram, nesse contexto, as primeiras mobilizações em torno da questão do meio
ambiente, bem como dos os movimentos ligados as chamadas “minorias sociais”
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(mulheres, negros, indígenas e homossexuais), definindo assim um processo político


marcado sobretudo por uma defesa da identidade como base de contestação social.
Dessas minorias, a formação dos primeiros grupos organizados que tinham como
proposta central de sua luta o combate ao preconceito e a discriminação dos
homossexuais na sociedade, foi um dos principais agentes responsáveis por uma
redefinição da identidade homossexual no Brasil no período em questão.
Mas, o próprio surgimento de uma militância homossexual não pode ser tomado
como fator isolado nesse processo, pois sua formação se articula com outros fatores que
atravessaram a condição histórica vivida pela homossexualidade no país na década de
1970. Segundo James Green, o surgimento de uma militância gay no Brasil no final da
ditadura foi antecipado e fruto de um processo que incluiu: o crescente espaço social
conquistado por homossexuais desde a década de 1960 nos grandes centros urbanos,
especialmente Rio de Janeiro e São Paulo; a difusão de idéias a partir do movimento
gay internacional; o desenvolvimento de uma crítica no Brasil ao machismo e à
homofobia e influência dos movimentos políticos e sociais de esquerda sobre os
principais lideres; e por fim a consolidação de uma nova identidade “entendida” – o
homossexual que buscava relações sexuais igualitárias – no seio das classes médias
urbanas (Cf.: GREEN, 2000, p. 396).
Outro fator que antecipou e contribuiu para a formação dos movimentos de
militância homossexual no período, foi o surgimento em meados da segunda metade dos
anos 70 de uma imprensa homossexual. Tratava-se de publicações surgidas no contexto
da chamada imprensa “alternativa” ou “nanica”, e que tinham como foco central a
defesa e valorização de uma identidade homossexual assumida.
Segundo Bernardo Kucinsk, havia no Brasil da ditadura duas classes de jornais
alternativos. De um lado aqueles que tinham suas raízes nos ideais de valorização do
nacional e do popular dos anos 50 e no marxismo vulgarizado dos meios estudantis nos
anos 60; de outro lado, aqueles cujos criadores buscaram rejeitar a primazia do discurso
ideológico da esquerda e voltaram-se à crítica dos costumes e à ruptura cultural. Esses
últimos, “investiam principalmente contra o autoritarismo na esfera dos costumes e o
moralismo hipócrita da classe média” (KUCINSK, 1991, p. XV).
Nessa ultima corrente podemos destacar aqueles que, em reação ao dogmatismo
dos grupos de esquerda e sua moral conservadora, pregaram a importância do prazer.
Estes se singularizavam em relação aos demais jornais alternativos de caráter político
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que não refletiam uma visão libertadora, mesmo que fragmentada, nos campos da vida
pessoal e do prazer (KUCINSK, op. cit., p. 82). É nesse grupo que encontramos os
jornais que buscavam a partir de uma critica do machismo e do conservadorismo moral
da sociedade brasileira positivar uma imagem do homossexual em contraposição aos
discursos e saberes vigentes na época, representado pelos segmentos conservadores da
sociedade, que a negativava.
Entre esses jornais pode-se destacar a figura do Lampião da Esquina, um
mensário – com redação instalada no Rio de Janeiro, mas que contava com uma equipe
editorial também em São Paulo – produzido por um conselho editorial assumidamente
homossexual e que “foi de grande importância na medida em que abordava
sistematicamente, de forma positiva e não pejorativa, a questão homossexual nos seus
aspectos políticos, existenciais e culturais.” (FRY & MACRAE, 1983, p. 10).
*
O Lampião da Esquina, não foi o pioneiro como forma de publicação gay no país.
Segundo Edward MacRae, “entre a década de 1960 e inicio dos anos 70, chegaram a
circular cerca 27 publicações gays no Brasil” (MACRAE, 1990, p. 69). No entanto, o
Lampião da Esquina, ou o Lampião, como ficou conhecido273, se distinguia de seus
antecessores que tecnicamente possuíam um caráter mais artesanal, mimeografados ou
fotocopiados, distribuídos de mão em mão, pelos próprios editores em pontos de
encontros de homossexuais, como festas, bares, saunas, etc., além disso, dispunham de
escassos recursos financeiros.
O Lampião além de trazer uma maior qualidade técnica de edição, e poder
garantir de forma independente um número considerável em suas primeiras tiragens –
chegando a dez mil exemplares –, apresentava um corpo editorial experiente no ramo
jornalístico – como Aguinaldo Silva que foi um dos principais colaboradores do
Opinião e fundador e conselheiro do Movimento – e acentuadamente intelectualizado. Já
na primeira edição do jornal – a edição número zero, de abril de 1978 e que tinha um
caráter experimental – o mensário trazia em seu conselho editorial nomes destacáveis
dos meios intelectuais da época. Além de Aguinaldo Silva, pode-se destacar o
antropólogo Peter Fry, o cineasta e crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, o pintor e
273
Na verdade, em sua primeira edição, a número zero, de abril de 1978, o jornal era intitulado somente
como Lampião. O nome Lampião da Esquina só apareceria em sua segunda edição, a edição número 01,
de maio a junho de 1978, para diferenciá-lo, segundo MacRae, de uma editora paulista chamada
“Lampião”, que já existia antes.
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escritor Darcy Penteado, além de intelectuais ativistas da época, como João Antonio
Mascarenhas e João Silvério Trevisan.274 Esse considerado alto nível intelectual e
profissional dos membros do jornal acabou, no entanto, dando “ensejo a alguns de seus
detratores a chamá-los de elitistas.” (MACRAE, op. cit., p. 72)
Um dos acontecimentos que pesou no surgimento da idéia de criação do jornal foi
a visita feita em fins de 1977 pelo editor da Gay Sunshime Press, de São Francisco,
Winston Leyland, com a finalidade de coletar material que serviriam para a publicação
de uma antologia de literatura gay na América Latina. Segundo James Green, a visita de
Leyland,

Catalisou o grupo de intelectuais que se encontrou com ele. Eles decidiram


formar uma cooperativa editorial e publicar um jornal para homossexuais que
seria um veículo para a discussão sobre sexualidade, discriminação racial,
artes, ecologia e machismo [...] O jornal foi batizado de Lampião da
Esquina275, um título sugestivo da vida gay de rua, mas que aludia também a
figura do rei do cangaço. (GREEN, 2000, p. 430)

Mas o que buscava esse jornal? De que forma buscou uma redefinição da
homossexualidade? Que implicações essa redefinição traria para as próprias idéias
defendidas pelo jornal e para a relação entre ele e os diversos sujeitos ao qual buscava
mobilizar ou representar? São essas questões que a partir de agora buscaremos focar.
Em sua primeira edição, a número zero, o jornal traz um ensaio editorial intitulado
“Saindo do gueto”, onde apresentava seu projeto político. Como sugere o próprio título:
“Saindo do gueto”, visava-se em primeiro lugar romper com isolamento dos sujeitos
que partilhavam uma experiência de ser homossexual confinada aos espaços restritos a
esses sujeitos social e moralmente discriminados – como bares, saunas, praças
especificas, etc. Para o projeto lampiônico era preciso “dizer não ao gueto, e em
conseqüência, sair dele.” Por outro lado, buscava-se criticar e desconstruir uma imagem
negativa e depreciativa acerca do homossexual difundida e sustentada pelos saberes
médicos, religiosos, jurídicos e jornalísticos vigentes na época. Segundo o editorial da
edição número zero, o que se buscava era

274
Os outros nomes que fizeram parte do conselho editorial do Lampião da Esquina, na época de sua
fundação são: Adão Costa, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt, Gasparino
Damata. [Cf.: Lampião, n. zero, abril de 1978, p. 2.]. Sobre a ausência de mulheres, Trevisan explica que
“as mulheres (artistas e jornalistas) contatadas, no período, negaram se terminantemente a colocar
seus nomes no jornal. Daí porque a equipe era toda constituída de homens.” (TREVISAN, 2011, p. 342)
275
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(...) destruir a imagem padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele
é um ser que vive nas sombras, que encara sua preferência sexual como uma
espécie de maldição, que é dado aos ademanes e que sempre esbarra, em
qualquer tentativa de se realizar mais amplamente enquanto ser humano,
neste fator capital: seu sexo não é aquele que ele desejaria ter . (Lampião da
Esquina, 1978, p. 2)

Para acabar com tal imagem padrão, o projeto enfatizava que era preciso mais que
soluçar uma opressão “nossa de cada dia”, no qual o homossexual era vítima, ou ainda,
apenas buscar “válvulas de escape”, mas sim, conscientizar a sociedade sobre a
discriminação sofrida por uma “minoria oprimida” por sua orientação sexual – os
homossexuais. Ou seja, era preciso lembrar “que uma parte estatisticamente definível da
população brasileira, por carregar nas costas o estigma da não-reprodutividade numa sociedade
petrificada na mitologia hebraico cristã deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma
minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz.”
Assim, para os editores do Lampião da Esquina era preciso dar voz a essa minoria
oprimida, reivindicando a ela não apenas a possibilidade de um “assumir-se” e “ser
aceito”, mas nas palavras do próprio jornal, resgatar em nome desta a uma condição que
“todas as sociedades construídas em bases machistas lhe negou: o fato de que os
homossexuais são seres humanos e que, portanto, têm todo o direito de lutar por sua
plena realização, enquanto tal.”
Podemos dizer, portanto, que o Lampião da Esquina buscou uma redefinição da identidade homossexual, construindo o que

poderíamos chamar de um “orgulho de ser” para os indivíduos que podiam ser definidos nessa categoria: os homens e mulheres que

desejavam sexual e afetivamente outros do mesmo sexo. De certo modo, a atuação do mensário numa redefinição identitária reforça

para nós a idéia defendida por Woodwar, segundo a qual


“as identidades adquirem sentido por meio da
linguagem e dos elementos simbólicos pelos quais elas são representadas”
era um processo que envolvia a redefinição de
(WOODWAR, 2000, p. 8). No caso do Lampião, esse
toda uma rede discursiva em torno do que era ser homossexual.
Nessa luta o discurso, para retomarmos uma
expressão de Michel de Foucault, não era apenas a tradução de uma luta, mas era aquilo
próprio por que, e pelo qual se lutava, era o poder da qual se queria apoderar
(FOUCAULT, 1999, p. 10).
A positivação de uma identidade homossexual no Lampião da Esquina passava, na verdade, por vários eixos. Em primeiro

lugar, desconstruir as concepções que representavam o indivíduo considerado homossexual de forma depreciativa. Os principais

alvos eram as concepções médicas e científicas em geral que viam na homossexualidade uma doença, uma anomalia do corpo ou da

mente; a moral religiosa que definiam a homossexualidade como um pecado e perversão da moral; e as representações do

homossexual na mídia, em especial na imprensa policial, que comumente mostravam a homossexualidade


num enredo que
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envolvia um mundo de promiscuidade, criminalidade e delinqüência. Contra esses discursos o


jornal trazia ensaios, artigos e reportagens onde buscavam criticar e desmistificar as bases que sustentavam tais discursos.

Em segundo lugar, passava pela denuncia da violência e da discriminação existente nos vários setores da sociedade contra

os homossexuais. Em terceiro, buscava-se tornar visível a homossexualidade enquanto condição natural da vida humana e social,

através da divulgação dos circuitos de sociabilidades da vida homossexual – bares, saunas, discotecas, eventos culturais – nas

grandes cidades brasileiras (principalmente rio ou São Paulo, mas havia frequentemente divulgação de outras cidades brasileiras,

tanto no eixo sul-sudeste,como também no nordeste, e até na região norte); através de entrevistas de personalidades famosas

assumidas como homossexuais (Clodovil, Lecy Brandão, Ney Matogrosso; além de outros); e da publicação de reportagens e

ensaios que tinham como tema as diversas manifestações da homossexualidade – literatura, cinema, teatro, dança, música.

Em quarto lugar, buscou-se resgatar uma cultura homossexual existente e discriminada na sociedade, através da divulgação

de produções artísticas produzidas por homossexuais ou que tinham a homossexualidade como tema, resgatando assim outra

homossexualidade: intelectualizada e culturalmente produtiva.

Em quinto, era preciso dar voz a homossexualidade, não apenas através das publicações dos editores e colaboradores do

jornal, mas também, de um espaço aberto a opiniões de seus leitores, processo que se dava numa seção de cartas intitulada “Cartas

na Mesa”, criando assim, num contexto ainda marcado pelo autoritarismo político da ditadura, um espaço aberto de diálogo entre o

jornal e a sociedade.

Em sexto lugar, era preciso articular a luta pela causa homossexual com as demandas de outros movimentos sociais da

época. Como o próprio texto editorial enfatizava, pretendia-se também “


ir mais longe, dando voz a todos os grupos
injustamente discriminados – dos negros, índios, mulheres, às minorias étnicas do Curdistão:
abaixo os guetos e os sistemas de párias!”. Assim a luta dos homossexuais deveria fazer parte
de uma luta maior, a luta de todos os grupos discriminados por uma sociedade autoritária e
discriminadora. Tendo essa proposta, o Lampião da Esquina publicou diversas matérias,
artigos e ensaios sobre a luta política das mulheres, e também, em menor número sobre
a luta contra o preconceito racial, sobre a questão ambiental e também sobre a questão
indígena. Por essa perspectiva podemos afirmar, conforme José Luis P. Rodrigues que o
jornal, em princípio, buscava mais uma identificação com aquele que o lia, do que
defender uma identidade monolítica (RODRIGUES, 2007, p. 74).
Por fim, a redefinição da homossexualidade pelo Lampião da Esquina, passava pela defesa da homossexualidade enquanto

condição humana, e, por conseqüência, pela defesa do ato de assumir-se como principal pré-requisito para se lutar contra a opressão.

Pois,
Mais do que uma opção do individuo, uma das definições mais recorrente no jornal
era a de que a a homossexualidade era uma condição natural, uma essência, ou ainda,
uma verdade que cada indivíduo carregava consigo e que parte da sociedade buscava
silenciar.
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Nesse ponto, um dos ensaios que traduz bem essa questão no Lampião da Esquina
é o ensaio de Darcy Penteado publicado na edição número 02, de 25 de junho a 25 de
julho de 1978, intitulado “Homossexualismo: que coisa é essa?”. Nesse ensaio,
Penteado, questiona a visão da homossexualidade defendida pela medicina e pela
psiquiatria que a classificava como anormalidade ou distúrbio (orgânico ou psíquico) do
indivíduo, ou ainda de certas perspectivas sociológicas que reforçavam essas posições.
Criticando isso, Penteado defende o caráter humano da homossexualidade, ou do
homossexualismo, que para ele é uma

(...) condição humana. E como tal, mesmo sendo atributo de uma minoria,
está exigindo o seu lugar atuante numa sociedade, com o direito a uma
existência não mistificada, limpa, confiante, de cabeça levantada. Porque só a
tolerância, como foi dada até agora, não obrigado! É muito pouco! (Lampião
da Esquina, junho/julho 1978: 2)

Sendo condição humana naturalmente dada, uma verdade encravada na carne, a


homossexualidade precisava ser assumida. A prática de assunção, o assumir-se, nesse
processo ganhava um papel de imprescindível importância. Em outro ensaio da mesma
edição, intitulado “Assumir-se? Por quê?”, de João Antônio Mascarenhas, o ato de
assumir-se é definido como um “processo natural de aceitar com naturalidade a
condição de homossexual”. Segundo Mascarenhas, mesmo que se tratasse de um ato
que pudesse trazer uma série de desvantagens e riscos para aquele que se assumia, por
outro lado, se constituía num “ato essencialmente político, através do qual o indivíduo
reconhece-se como integrante de um grupo oprimido, primeiro e indispensável passo
para lutar contra a opressão” (Lampião da Esquina, junho/julho 1978, p. 2). Nesse
processo se o assumir-se se tornava pressuposto básico de ação política, criticava-se por
outro lado o enrustido ou o não assumido, pois segundo Mascarenhas, “quem teme
defender-se, pelo receio de identificar-se, não se encontra preparado para se fazer
respeitar”. (ibid.)
*
Pelo exposto até aqui, podemos perceber que a defesa da homossexualidade,
enquanto condição humana que precisava ser assumida e se fazer respeitar por aqueles
que dela fazia parte, foi um dos pressupostos centrais defendidos pelo Lampião da
Esquina. No entanto, um corolário importante pode ser identificado a partir do discurso
da autoafirmação identitária. Trata-se de um paradoxo que se constitui a partir do
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momento em que se por um lado o discurso lampiônico questionava os discursos e


saberes que reforçavam a idéia de que a heterossexualidade era a essência da
sexualidade humana, a nossa condição humana em termos de sexualidade e desejo,
contribuindo dessa forma para a consolidação de um questionamento acerca da
sexualidade enquanto construção social, simbólica e cultural, por outro lado, terminava
reforçando o fundamento essencialista da identidade, na medida em que “naturalizava-
se” e “essencializava-se” a homossexualidade.
A redefinição da identidade homossexual buscada pelo Lampião da Esquina teve
como um de seus corolários o reforço de um ideal de naturalização ou de
essencialização da identidade, ou seja, da identidade como uma verdade cravada na
carne que precisa ser assumida e revelada, de um “eu interior” que é preciso ser
conhecido, assumido e defendido como princípio de prática política.
Na verdade esse paradoxo parece constituir-se num problema não apenas do
Lampião da Esquina, ou dos movimentos de autoafirmação homossexual da segunda
metade do século XX, mas um fato comum em nossa modernidade no que diz respeito
aos movimentos identitários, sejam os movimentos pela igualdade de gênero, pela
igualdade racial ou pela igualdade étnica. Nesse contexto, um dos pontos centrais da
crítica recente nos estudos de gênero – por recente, tomamos aqui a produção
intelectual das ultimas três décadas - tem consistido em apontar como esse problema se
constituiu num fenômeno intrínseco aos discursos de grande parte do movimento
feminista desde longa data. No livro Only Paradoxes to Offer (1996), a historiadora
norte-americana Joan Scott, ao analisar o movimento feminista francês do longo do
século XIX, aponta que as reinvidicações em nome da igualdade e da cidadania das
mulheres criaram uma situação paradoxal que se arrasta dentro do movimento até os
dias atuais. Segundo Scott,

Não obstante, as feministas desafiaram a prática de excluir mulheres da


cidadania, argumentando que não havia ligação nem lógica nem empírica
entre o sexo do corpo e a aptidão pelo engajamento político, e que as
diferenças de sexo não sinalizavam maior ou menor capacidade social,
intelectual ou política. Seus argumentos (...) também eram paradoxais, isto é,
a fim de protestar contra as várias formas de segregação que lhes eram
impostas, as mulheres tinham de agir em seu próprio nome, invocando, dessa
forma, a mesma diferença que procuravam negar. (2002, p.18)
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Segundo Scott, embora as feministas divergissem entre o dilema que residia no


questionamento de que seriam as mulheres iguais ou não aos homens, qualquer das
posições defendidas terminava por atribuir identidades fixas e análogas a homens e
mulheres, endossando a “premissa de que pode haver uma definição oficial e autoritária
de diferença sexual” (ibid.)
Outra crítica ao feminismo quanto a questão – e bem mais contundente do que a
de Scott – encontramos em Judith Butler. Semelhante a critica de Scott, Em seu livro
Gender Trouble (1990), Butler aponta que o problema do feminismo foi o de presumir
que “existe uma identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que não
só deflagra os interesses e os objetivos feministas no interior de seu próprio discurso,
mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação política é almejada”
(BUTLER, 2013, p.18). Segundo a autora esse procedimento faz parte de um raciocínio
fundacionista da política da identidade cujo pressuposto é o de “supor que primeiro é
preciso haver uma identidade, para que os interesses políticos possam ser elaborados”
(ibid., p. 205). Para ela, o principal problema que isso acarreta é o de que ele termina
fixando, naturalizando e universalizando uma identidade das mulheres anteriormente
aos processos históricos que a constituem. Quanto a isso, a autora faz os seguintes
questionamentos:

Existiriam traços comuns entre as “mulheres”, preexistentes à sua opressão,


ou estariam as “mulheres” ligadas em virtude somente de sua opressão? Há
uma especificidade das culturas das mulheres, independente de sua
subordinação pelas culturas masculinistas hegemônicas? (...) Existe uma
região do “especificamente feminino”, diferenciada do masculino como tal e
reconhecível em sua diferença por uma universalidade indistinta e
conseqüentemente presumida das “mulheres”? (ibid., p. 21)

Para Butler é impossível separar a noção de “gênero” das interseções políticas e


culturais em que é produzida e mantida. Caso contrário, terminamos por
descontextualizar a especificidade do que é feminino, ao mesmo tempo em que, separa-
se analítica e politicamente essa especificidade da “constituição de classe, raça, etnia e
outros eixos de relações de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como
tornam equívoca a noção singular de identidade.” (ibid.) identidade para Butler é ao
mesmo tempo histórica e relacional.
Por outro lado, Butler nos alerta que esse princípio, além de ensejar uma
naturalização da identidade, carrega o problema pelo fato de que esse “nós” nunca
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ocorre sem um processo de construção de “efeitos de fronteiras” no interior da própria


categoria representada. No caso do feminismo, a autora alerta que “o “nós” feminista é
sempre e somente uma construção fantasística, que tem seus propósitos, mas que nega a
complexidade e a indeterminação internas do termo, e só se constitui por meio da
exclusão de parte da clientela, que simultaneamente busca representar.” (ibid., p. 205)
Voltando ao Lampião da Esquina e aos discursos de autoafirmação homossexual
no período, a construção de um orgulho de ser para os homossexuais, teve, conforme
analisamos a contrapartida de uma essencialização da identidade homossexual, da
construção da identidade enquanto natureza e uma verdade comum que uniria diferentes
sujeitos de gênero, raça ou classe. A homossexualidade não vai se referir apenas a uma
prática sexual, mas a um sujeito histórico, psicológico e culturalmente especifico. Alem
dos ensaios já abordados que sustentam nossa tese, podemos encontrar essa definição do
homossexual como sujeito especifico em outros artigos e ensaios. Um exemplo é o
ensaio publicado na edição numero zero, da autoria de Darcy Penteado, intitulado “Eu
criei a arte-erótica homossexual” (p. 3), onde o autor busca reconstituir uma breve
antologia de artistas que no Brasil trabalharam pictoricamente o erotismo homossexual
para em seguida reivindicar para si uma verdadeira originalidade ao proclamar-se como
o verdadeiro criador de uma arte erótico-homossexual no Brasil: “E não tenho dúvidas:
"inaugurei" o gênero no Brasil” (p.3). Ou seja, a homossexualidade não era apenas uma
sexualidade, uma prática ou um desejo, mas uma cultura especifica que era preciso
resgatar.
*
A constituição de uma identidade afirmativa para homossexuais pelo Lampião da
Esquina, não seria atravessada apenas pelo problema da essencialização, mas – na
medida em que toda construção identitária envolve uma demarcação de fronteiras –
também por tensões ou querelas em torno do próprio ser homossexual. Uma dessas
tensões ou querelas estava profundamente relacionada ao debate em torno dos
homossexuais efeminados.
A união das diversas formas de ser homossexual em torno de uma luta contra o
preconceito e a discriminação, era um dos pressupostos principais defendido pelos
criadores do Lampião da Esquina. No entanto, podemos identificar em vários discursos
lampiônicos uma posição de receio ou de crítica em relação aqueles que carregavam o
estigma da feminilidade: a “bicha-louca”, o “travesti” e o “transexual”.
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Num artigo publicado na edição número 04, de agosto a setembro de 1978, da


autoria de João Antônio Mascarenhas, intitulado “Sobre tigres de papel”, encontramos
uma crítica a efeminização dos homossexuais. Para Mascarenhas,

O sujeito pintoso (...) interiorizou os valores machistas, e os interiorizou a tal


ponto que passou a considerar que, por ser homossexual, precisa dar
bandeira, mostrar a todos que constitui parte de um grupo anatematizado. O
estigmatizado curva-se ante o opressor e passa a julgar-se obrigado a usar a
marca que o ferreteador escolheu para ele.
O travesti, então, leva essa atitude ao paroxismo, chegando a submeter-se a
operações cirúrgicas para ocultar a identidade. (Lampião da Esquina,
junho/julho 1978:9)

Os criadores do Lampião da Esquina nunca foram cultores do estilo “gay-macho”,


comum nos Estados Unidos, mas em parte refletiam a nova identidade homossexual em
voga no período que tinha como um de seus traços, o se contrapor ao estigma
historicamente construído em torno do homossexual, em que homossexualidade e
feminilidade constituíam uma relação necessária. Essas manifestações de receio ou
critica aos tipos efeminados no mensário suscitou da parte de muitos leitores do
Lampião da Esquina, a acusação de valorizar um ideal de identidade homossexual
excludente que terminava por deixar de fora uma homossexualidade subalterna e
efeminada. Exemplo dessa tensão, pode se vê na carta de J. C. L276, de Recife (PE),
publicada na edição anteriormente citada, a número 4, intitulada “O povão, onde está o
povão?”:

Vou ser franco: não gostei do jornal de vocês. Digo isso porque não acho
que ele seja um jornal de toda a classe. É meio metido a intelectual, tem
pretensões. (...) Mas e o resto? E o povão? Eu acho que vocês deveriam
fechar mais com o bicharéu, para não parecer muito elitista. (...) Onde estão
os travestis: Por que não tem um no conselho do Lampião? Só tem professor
e artista? Que democracia é essa de vocês, onde o povo também não vota?
(Lampião da Esquina, junho/julho 1978: 19)

Embora se torne inegável a presença dessa posição de receio em relação a certas


manifestações do que se definia por homossexualidade, especialmente os efeminados, é
preciso também enfatizar que essa postura não era unânime no mensário e que isso
também não implicou numa exclusão desses sujeitos em suas páginas.

276
Era comum leitores assinarem suas cartas apenas com a abreviação de seus nomes ou através do uso
de pseudônimos, o que nos permite intuir que muitos receavam se assumir publicamente, ou serem
associados ao um universo homossexual.
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Na conclusão de sua dissertação Márcio Bandeira, por exemplo, afirma que a


identidade defendida pelo Lampião se transformou “numa cadeia estanque que deixava
para fora de suas fronteiras, todas as experiências de figuras que não correspondiam ao padrão
construído: a bicha-louca, a lésbica, o travesti e o transexual, por exemplo” (BANDEIRA, op.
cit., 120). Essa nos parece ser uma conclusão demasiadamente simplista – a própria dissertação
de Bandeira evidencia a existência da manifestação de múltiplas homossexualidades nas páginas
do Lampião da Esquina – e que não dá conta das múltiplas produções discursivas existente no
jornal, que estão repletas de tensões, ambigüidades e paradoxos. Em virtude disso, acreditamos
ser um exagero apontar no jornal uma recusa plena desses sujeitos, fato que se reforça
não apenas pela defesa de uma política de coalizão que visava unir todos os
homossexuais, mas também pelo fato de que em vários momentos o jornal buscou,
através da publicação de cartas, como também através de ensaios, artigos e reportagens,
dar visibilidade a estes sujeitos, especialmente travestis e transexuais, e a discriminação
e o preconceito por eles sofridos.
*
Em primeiro lugar é preciso considerar que nosso propósito não consiste em
criticar a defesa de uma autoafirmação identitária da homossexualidade defendida pelo
jornal, assim como não foi objetivo de autoras como Scott e Butler criticarem a luta
encabeçada pelo feminismo. O que se buscou aqui foi levantar questões problemáticas –
que envolve os avanços, mas também os limites – inerentes a um discurso em que a
identidade é o eixo da prática política. Questões essas que nos coloca diante do dilema
da possibilidade ou não de podermos pensar a política sem necessariamente recorrer há
um sujeito universal e transcendente cujo fundamento (uma identidade, essencializada e
naturalizada) escapa aos processos históricos que o tornam inteligível.
Além disso, é preciso frisar que o papel do Lampião da Esquina numa redefinição
da identidade homossexual se constitui num tema que ainda oferece significativas
possibilidades de estudos, uma vez que diz respeito a um processo complexo carregado
de paradoxos, tensões, ambigüidades e contradições, e que ainda necessitam de estudos
aprofundados. Por outro lado, torna-se necessário colocar que esse é um caráter que
envolve não apenas as dimensões aqui estudadas, mas outras, como por exemplo, as
relações do jornal com a esquerda política da época, com a militância homossexual e
com os outros movimentos considerados de minorias, especialmente o feminismo, com
quem o jornal manteve significativo diálogo, nem sempre harmônico. Problemáticas
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que por seu turno exigem um maior espaço de análise. De todo modo, esperamos ao
menos ter contribuído mesmo de forma sucinta, para o entendimento de um objeto
histórico de importância inquestionável na história da sexualidade no país e quem
conforme assinalou José Augusto Heren, “é, antes de tudo, um manifesto vivo da
recente história do Brasil.” (HEREN, 2008, p. 218)

Referências Bibliográficas

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Esquina colocou as Cartas na Mesa. Dissertação (Mestrado em História), São Paulo:
PUC/SP, 2006.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.:
Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense,
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HEREN, José Augusto de C. O armário invertido: comunicação e discurso sob a luz de
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KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas revolucionários: nos tempos da imprensa
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LAMPIÃO DA ESQUINA. Rio de Janeiro, ano I, número 02, de 25 de junho a 25 de
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MULHERES, GÊNERO E IDENTIDADE ÉTNICA

Maria Jorge dos Santos Leite


Doutora em Educação Brasileira - UFC
Profª do Instituto Federal do Sertão/IF- Campus Salgueiro
e-mail: mariajorge.santosleite@yahoo.com.br

Resumo

Este trabalho faz parte de uma pesquisa que venho desenvolvendo há mais de dez anos
na comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, localizada no município de
Salgueiro, Sertão Central de Pernambuco, da qual resultaram minha dissertação de
mestrado e tese de doutorado, ambas na Universidade Federal do Ceará/UFC. A
comunidade foi fundada do final do século XVIII para o início do século XIX por seis
negras -possivelmente escravas fugitivas- que ficaram conhecidas como as “seis
crioulas”. Essa singularidade histórica fez com que aquela comunidade ficasse
conhecida como um lugar “mulheres fortes”, que ainda hoje lutam pela defesa de seus
direitos. O referido trabalho tem como objetivo analisar a importância da mulher
negra na história de Conceição das Crioulas, na construção da identidade étnica e nas
relações de gênero que ali se desenvolvem. A metodologia utilizada foi a pesquisa de
campo, através da investigação qualitativa, na modalidade etnográfica, acrescida de
uma discussão teórica.

Palavras-chave: mulher, gênero e identidade étnica.

Conceição das Crioulas: uma história de mulheres

Conceição das Crioulas localiza-se no município de Salgueiro, Sertão Central de


Pernambuco e os seus habitantes, ali, se constituem, hoje, numa comunidade277

277
Entendo por comunidade um conjunto de indivíduos que partilham um território geográfico e um
certo grau de interdependência, o que lhes proporciona a razão para viverem na mesma área. Acrescento,
ainda, a ideia segundo a qual a noção de comunidade inclui um sentimento muito forte de pertencimento e
compromisso mútuo, baseado em uma herança cultural, compartilhada em vários aspectos. Ademais, a
vida em comunidade pressupõe, também, experiência em comum e uma relativa interdependência. É
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quilombola. A história dessa comunidade é contada a partir da memória oral de seus


habitantes, segundo a qual foi “no tempo dos reis” que chegaram à região alguns
negros e negras, possivelmente fugindo da escravidão. Esse grupo de negros e negras –
embora na memória de seus habitantes apenas as negras tenham se destacado na
fundação da comunidade, ficando conhecidas como as “seis crioulas”- arrendaram
uma porção de terras equivalente a três “léguas” em quadra onde iniciaram um trabalho
no cultivo e fiação de algodão; o produto era vendido na cidade de Flores, no sertão
do Pajeú. Católicas fervorosas, as crioulas teriam feito uma promessa à Nossa Senhora
da Conceição de construir uma capela caso conseguissem se tornar donas das terras em
que trabalhavam. Alcançada a “graça”, ergueram a capela, dando origem ao
povoamento.

Considerando-se descendentes dessas “seis crioulas”, que possivelmente eram


escravas fugitivas, ou negras libertas, os habitantes de Conceição das Crioulas
empreenderam, a partir de 1987, um processo de mobilização interno em busca de
evidências históricas(documentais ou relatos orais) e elementos culturais que lhe
conferissem uma identidade quilombola. Iniciava-se, a partir daquele momento, uma
série de ações que levariam à organização de um movimento social quilombola
naquela comunidade.

As origens históricas da comunidade de Conceição das Crioulas são fortemente


marcadas por uma história de lideranças, excepcionalmente, uma liderança de mulheres,
"as seis crioulas". A tradição oral é enfática em apontá-las como mulheres fortes e
resistentes que, desafiando os padrões sociais da sua época, exerceram grande
influência sobre seu grupo, na coordenação dos trabalhos, no plantio e colheita do
algodão, no firme propósito de adquirirem a posse legal da terra, através da compra.

Esse evidente protagonismo feminino em Conceição das Crioulas motivou a


abordagem das relações de gênero neste trabalho. Isto será feito juntamente com a
análise da história de algumas mulheres, cujos nomes são bastante recorrentes na
comunidade e do perfil político de outras mulheres que na atualidade são consideradas
lideranças do movimento quilombola.

Gênero e etnia

A noção de gênero se baseia nas diferenciações entre os sexos. Sendo o gênero


definido como uma construção social, histórica e cultural das diferenças baseadas no
sexo. Trata-se de um conceito relacional porque o “ser mulher” e o “ser homem” se
definem por mútua oposição, inscrevendo-se pois, numa relação de poder.

O termo “gênero” pode ser compreendido como,

nesta perspectiva, portanto, que uso o termo comunidade, para me referir aos habitantes de Conceição das
Crioulas, que não só ocupam o mesmo espaço físico, mas, também, participam da construção coletiva de
uma mesma história e de uma mesma luta.
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a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe,


um grupo, uma categoria. a representação de uma relação(...) o gênero
constrói uma relação entre uma entidade e outras entidades
previamente constituídas como uma classe, uma relação de
pertencer(...) Assim, gênero representa não um indivíduo e sim uma
relação, uma relação social; em outras palavras, representa um
indivíduo por meio de uma classe (LAURETIS, 1994, p. 210).

As relações de gênero se estabelecem dentro de um sistema hierárquico que dá


lugar às relações de poder, nas quais a mulher não é simplesmente diferente do
homem. A diferença de poder torna possível a ordenação da existência em função do
masculino, em que a hegemonia se traduz em um consenso generalizado a respeito da
importância da supremacia do homem nas relações familiares, sociais, políticas e
econômicas. Tais relações refletem concepções de gênero internalizadas por homens e
mulheres e faz com que o machismo, geralmente atribuído aos homens, não constitua
“privilégio” destes, fazendo parte também do comportamento de algumas mulheres.

O conceito de gênero traz a compreensão de que ninguém é naturalmente homem


ou mulher, pois estes significados são socialmente construídos através do processo
educacional que molda as identidades de sexo e gênero. Nesse sentido, a construção e
as expressões da masculinidade e da feminilidade são variáveis e plurais no espaço
(conforme a classe social, religião, etnia, região) e no tempo (conforme a época
histórica e a fase da vida individual). Assim, feminilidade e masculinidade não têm
significado fixo: são representações sujeitas a disputas políticas pela atribuição de
significados(CARVALHO,s/d).

Se em Conceição das Crioulas as histórias são escritas no feminino (SOUZA,


2006) e as ações das mulheres negras têm notória visibilidade, qual a participação
masculina na construção dessas histórias? Quando e onde a presença dos homens se faz
visível? Como se desenvolvem essas relações entre eles e elas? Para tentar encontrar
respostas para tais questões é preciso recorrer sempre às histórias do passado, tão
presentes na memória da comunidade.

A resistência à expropriação das terras das crioulas foi um dos fatores que
contribuiu para a instituição de lideranças. Curiosamente, os nomes que aparecem como
sendo de lideranças que se destacaram na fundação de Conceição das Crioulas e na luta
pela recuperação da terra são quase todos de mulheres. Os quilombolas lembram,
frequentemente, de: Chica Ferreira, Mendencha Ferreira, Francisca Presidente,
Francisca Macário, Maria Solano, Isabel Coração, Romana, Martinha, Sabrina, Maria
Rosa, Rosa Ferreira, Antônia Carneiro, Matilde, Januária e Agostinha Caboclo.

Os primeiros nomes citados pertencem às fundadoras da comunidade- as “seis


crioulas”-, os demais às suas descendentes. Não consta nos registros escritos, nem na
oralidade, que junto com as seis pioneiras tenham vindo alguns homens. Se eram
casadas, tinham filhos, a história tratou de esquecer. Mas, a presença masculina não
tardaria ser percebida, como registrou a antropóloga Vânia Fialho Souza, em relatório
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que realizou sobre a comunidade, com base no depoimento de um morador do sítio


Garrote Morto278:

O nome “Conceição” é justificado porque chegou um homem


chamado Francisco José que também tinha escapado de uma guerra e
trouxe com ele a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Ao se
encontrar com as crioulas, “fizeram a junção”, fizeram a capela e a
padroeira ficou sendo Nossa Senhora da Conceição e o nome
“Crioulas” porque foram as mulheres que compraram[a terra]
(SOUZA, 1998, p. 19).

O depoimento é esclarecedor e aponta para uma possível chegada masculina à


comunidade posterior à chegada das “seis crioulas”. A referência ao nome de Francisco
José é bastante recorrente, sempre que alguma pessoa fala na imagem da padroeira
refere-se a ele como o responsável por trazê-la até a localidade. Há muitas divergências,
entre os quilombolas de Conceição das Crioulas, em relação a origem desse homem,
conforme depoimento de Aparecida Mendes Silva. Trata-se de um negro que veio da
Bahia; para outros, como dona Liosa, ele teria vindo de Portugal em data não
especificada.

O que interessa para a compreensão das relações de gênero é que, ao “fazer a


junção” com as crioulas, Francisco José já encontrou as mesmas estabelecidas, situação
que dificultaria o estabelecimento de relações com base na “dominação masculina”.
Certamente passou a viver na condição de “acolhido” e “parceiro” na construção da
capela e em outras atividades de trabalho. Suas possibilidades de se impor sobre essas
mulheres eram mínimas: “foram elas que compraram a terra”; as diferenças de sexo e
sexualidade tornaram-se nulas. Essa situação pode ter contribuindo para compor as
bases de uma comunidade matriarcal, fugindo aos padrões do patriarcalismo da época.

Reconhecer que Conceição tem suas raízes fincadas na matrilinearidade, deve-


se ao fato de que a maioria das pessoas engajadas no movimento sociopolítico
quilombola da comunidade se reconhece na tradição pautada por relações de
parentesco consanguíneo e, portanto, acredita ser descendente das “seis crioulas” - as
fundadoras - e das outras mulheres que deixaram ali suas “marcas” na história. Assim,
a luta pela terra, uma das maiores bandeiras do movimento, é construída com base
nas representações sociais da história de luta de algumas mulheres. Entre elas,
Agostinha Cabocla, que aparece como pertencente ao núcleo de descendência, a partir
do qual constituem os elementos centrais do processo que vincula os quilombolas à
terra, nas representações coletivas.

Na luta contra a expropriação das terras das crioulas os únicos nomes de homens,
sempre lembrados em Conceição das Crioulas, são o de Antônio Domingos, Antônio
Andrelino(seu Totô) e Luiz Simão. Mesmo assim, são colocados como coadjuvantes,
sendo os companheiros de Agostinha Caboclo nas viagens em busca de recuperar a
posse da terra. Pelo menos são essas as impressões que temos ao conversar com
moradores e quando entramos em contato com os jornais produzidos pela comunidade
em que fazem circular ideias, valores, imagens e tradições.

278
Garrote Monte é a denominação de um dos sítios que compõem a comunidade quilombola de
Conceição da Crioulas.
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A esse respeito Souza (2006) escreveu o seguinte:

Circular a imagem forte de Agostinha Caboclo é investir na força da


tradição das fundadoras, é construir uma imagem da comunidade que,
em sua singularidade tem a força de mulheres como Agostinha. Uma
mulher forte e singular, pois além de liderar dois homens na defesa
pelos direitos da comunidade, nunca se casou, não teve filhos; ou seja,
escolheu a atuação política, o envolvimento com as causas
comunitárias, recusando-se a seguir o “destino biológico” do “ser
mulher”, negando, portanto, a instituição social do casamento e seu
corolário, a maternidade enquanto locus do feminino (SOUZA, 2006,
p.64).

A menção ao nome de Agostinha Caboclo é recorrente e ela aparece como uma


das principais lideranças de Conceição das Crioulas. As homenagens rendidas a ela
mostram o perfil de uma mulher batalhadora que não media esforços para defender sua
comunidade; mas revelam também que ela não lutava sozinha, tinha sempre ao seu lado
homens, igualmente lutadores, que comungavam dos mesmos ideais seus.

(...) Agostinha era mulher forte e dedicada na luta da comunidade.


Sempre esteve ao lado de Antônio Adrelino (Totô) e Luiz Simão ,
viajando muitas vezes ao Recife, até Brasília para defender os direitos
da comunidade. Era solteira e nunca teve filhos. Muito respeitada por
todos(as), muito religiosa, sempre procurava dar conselhos aos mais
jovens dizendo o melhor caminho a seguir, pois muitas coisas de ruim
que poderia ter acontecido na comunidade, graças aos seus conselhos
foram evitados279(JC,2003).

(...) Agostinha Cabocla mulher corajosa e cheia de estratégias que


lutou incansavelmente contra a invasão de nossas terras, inclusive
para defender o documento (registro) de nossas terras , que devido ao
seu grande valor era bastante perseguido pelos fazendeiros. Uma
estratégia usada por ela para esconder o documento era colocá-los em
cabaças e entregar a uma pessoa de sua confiança, porque ela sabia
que se os invasores pegassem-no podia falsificá-lo ou até mesmo
destruí-lo280(JC,2004).

Essas narrativas que reconhecem a participação masculina na luta pela terra,


mas coloca sempre a figura feminina em destaque - neste caso Agostinha - são parte
das estratégias de construção da identidade quilombola, onde a história das “seis
crioulas” e suas descendentes faz muito sentido.

Em Conceição das Crioulas o papel da mulher é assegurado na descendência. É


"nelas que tudo começa": a fundação da comunidade (incluindo a compra da terra), a
origem do nome, a defesa do território frente às “invasões” das quais resultaram
expropriações; elas também estão presentes na execução e perpetuação de determinadas
práticas ou atividades culturais como os ofícios de benzedeira e parteira e na produção
de trabalhos artesanais. As mulheres que se dedicam a essas atividades dizem ter
aprendido com suas mães ou avós.

279
Jornal Crioulas: a voz da resistência. Ano 3, nº 8- agosto de 2003, pág 7
280
Jornal Crioulas: a voz da resistência. Ano 2, nº 6- dezembro de 2004, pág 7
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Reportando-me ao passado, através das representações reproduzidas pelos


narradores da história de Conceição, alusivas às mulheres que exerceram liderança
naquela comunidade (principalmente as seis crioulas), faço também uma imagem de
como seriam essas mulheres: percebo-as como mulheres fortes, determinadas e
lutadoras. Mulheres que não estavam muito apegadas aos ideais da sociedade de sua
época, a qual reservava à mulher apenas o direito à vida do lar, ao casamento e aos
filhos como fruto dessa união. O Senhor Antônio Andrelino Mendes(seu Totô)
relembrando o que ouvira falar sobre as primeiras famílias que chegaram a Conceição
das Crioulas, fala de uma mulher para quem os valores morais e padrões sociais do
passado não tinham muita importância: “era Chica Ferreira, foi uma das primeiras a
chegar aqui, ela veio grávida de Ana Ferreira, o pai ninguém sabe quem é. Ana Ferreira
depois se casou com Chico Gomes”281.

Observem-se, neste trecho, dois pontos significativos nessa perspectiva de


análise em que se chama a atenção para o lugar de algumas mulheres na história de
Conceição: em primeiro lugar, o nome do pai "ninguém sabe" e, em segundo lugar, a
prevalência do sobrenome materno (de Ana), mesmo se tratando de uma mulher que se
casou.

Sobre Romana, outra mulher apontada como pioneira na povoação de Conceição


das Crioulas, o Senhor Antônio Andrelino Mendes(seu Totô) fez a seguinte afirmação:
“Romana se deitou com branco e com índio e teve filho em tudo quanto é lugar282”.

Ao se tornarem mães solteiras, em épocas em que a instituição do casamento era


“sagrada”, as mulheres negras de Conceição das Crioulas demonstraram ser
desafiadoras de padrões diante do conservadorismo que a sociedade em que viviam
lhes impunham. Dona Isaura, ao falar de sua história de vida, acrescenta mais um relato
sobre essas mulheres:

(....) Eu nasci no dia 11 de agosto de 1917, faça a conta. Nunca fui


casada, tive um fio de um homem ele era da famia Carvalho e depois
me juntei com outros. Tive muito fio mas Deus tirou, ficou só quatro,
minha fia que é dona dessa casa, que o marido deixou e eu vivo com
ela, outro que mora em Serra Talhada e outros que foram embora pra
São Paulo e nunca mais tive notícia [ chora ao lembrar dos filhos] .
Conceição das Crioulas tem esse nome porque era das crioulas, por
que tinha era índio , aqui era dos índios. Eu sou fia, que minha vó era
caboca, caboca braba foi pegada a dente de cachorro . que ela dichi
[disse] assim, ó meus fios eu só casei com seu pai porque me botaram
os cachorro, mas se não fosse eu não tinha casado, minha mãe nem era
daqui era de um lugar chamado Chabiuncá num sei onde fica, meu pai
era daqui... Minha mãe era caboca do cabelo escorrido que fazia
gosto... Eu trabaiava na roça, a vida nossa era na roça, fazia saco, fazia
esteira, fazia tudo... Antigamente era 9 noite de novena e nós
dançava a noite todinha [risos], tinha o baile dos negros e bailes dos
brancos, mas eu dançava no que tivesse mió [melhor] naquele que

281
Depoimento do Senhor Antônio Andrelino Mendes, prestado ao Projeto Comunidades Quilombolas,
da UFPE/FACEPE - 1997.
282
Depoimento do Senhor Antônio Andrelino Mendes, prestado ao Projeto Comunidades Quilombolas,
da UFPE/FACEPE - 1997.
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tinha pessoas.... [risos deixando entender que eram pessoas que lhe
interessavam283] ( ISAURA, 2006).

Dona Isaura, que se identifica como “caboca” mas também se reconhece como
tendo uma ancestralidade negra, ao contar sua história, revela questões muito
significativas: primeiro, que ser negra em Conceição das Crioulas significa também
estar aberta para assumir outras identidades, devido a proximidade com as aldeias
indígenas da região; segundo, que suas ancestrais indígenas (o caso de sua avó) foram
vítimas de agressão e submissão do machismo predominante no passado. No entanto,
assim como Romana e Chica Ferreira, dona Isaura também desafiou os padrões sociais
tornando-se mãe solteira e depois unindo-se a outros homens sem o casamento, uma
instituição muito valorizada há até bem pouco tempo no sertão nordestino; também
revela-se uma pessoa que, na juventude, divertia-se e era feliz.

No final da década de 1980, os ideais defendidos pelo movimento negro em


geral, começaram a penetrar na comunidade e a provocar transformações na forma de
ver o mundo ou no pensamento de negras e negros em Conceição das Crioulas. Nesse
momento, aqueles que tradicionalmente já lutavam pela recuperação da terra das
crioulas, suas antepassadas, alegando ser um direito de herança seu, passaram a
entender que, de qualquer forma, a terra lhes pertencia, pois eram descendentes
daquelas crioulas que provavelmente eram escravas fugitivas, o que lhes abria a
possibilidade de serem classificados como comunidade quilombola, e como tal, o artigo
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal lhes
assegurava o direito à posse da terra.

A comunidade começou a passar por intensas inquietações que vieram provocar


grandes transformações no modo de pensar daquela gente. Assim, começou-se a se
estruturar uma nova luta em defesa da propriedade da terra. Uma luta que passou a
contemplar a valorização do “ser negro”, em um contexto, até então, extremamente
adverso e, muitas vezes hostil, a essa condição; iniciava-se, assim, a construção de uma
identidade negra, processo em meio ao qual surgia também a necessidade de se
estabelecer a quem seria, ou não, conferida a identidade de quilombola. Desse modo,
fatos antes negados, como a descendência de negros escravos, passaram a ser
valorizados por aqueles que, dentro de um processo de conscientização, aos poucos, iam
se identificando como quilombolas, dando, assim, legitimidade ao movimento.

Esse movimento foi se espalhando, gradativamente, pela vila e pelos vários


“sítios” que, no conjunto formam aquilo que se conhece como área quilombola de
Conceição das Crioulas. Foi se construindo, ali, a comunidade e se distinguindo como
grupo étnico. Negras e negros, na maioria jovens, começaram a participar das
discussões, a mudar seu pensamento e, como eles mesmos afirmam, a "aceitar melhor
sua negritude".

283
Depoimento citado por Maria Aparecida de Oliveira Souza.In: SOUZA, Maria Aparecida Oliveira. AS
MULHERES, A COMUNIDADE DE CONCEIÇÃO E SUAS LUTAS: as histórias escritas no feminino-
Dissertação de mestrado. Brasília, UNB: 2006(mimeo).
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Esse momento de “aceitação” se impõe a um longo passado de “ negação”,


segundo os quilombolas, motivada pela discriminação sofrida pela comunidade:

Durante muito tempo, o povo da comunidade quilombola de


Conceição das Crioulas foi discriminado e boa parte manipulado pelos
ditos “ poderosos” , os brancos. Foram mais de dois séculos de
dominação e negação da história de um povo que resistiu a diversas
formas de violência e agressão.

Desde de muito cedo fomos ensinados a negar a nossa cor e nos


aceitar como “moreninhos”, escondendo nossas raízes ancestrais.
Tudo isso porque ser negro era feio, era sinônimo de escravidão. E
quem quer ser feio? Escravo?284(JC, 2003).

Nesse momento de aceitação e valorização da negritude, de politização dos


sujeitos, poderiam surgir lideranças tanto masculinas como femininas. Mas, “por
coincidência”, ou para não fugir à tradição, o comando dessa nova luta - pelo menos a
princípio - foi delegado a uma mulher, a professora Givânia Maria da Silva. Nesse
movimento a participação dos homens é bastante significativa, pode-se citar, por
exemplo, Andrelino Mendes, Francisco Mendes , Antônio Mendes e Adalmir José
como os mais atuantes. Os conflitos relacionados à questão de gênero parece não existir,
ou pelo menos são desnecessários no discurso político.

Givânia é sempre lembrada não só como iniciadora do movimento quilombola,


mas por sua trajetória de vida e participação na política:

Givânia foi a primeira mulher de Conceição das Crioulas a ter curso


superior e envolver-se diretamente na política partidária. Por
indicação das lideranças da comunidade, foi candidata a vereadora,
sendo eleita duas vezes consecutivas. Ela também é integrante da
CONAQ ( Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas).
Através de sua atuação, tem conseguido divulgar a causa quilombola
em todo país, bem como sensibilizar os governos (municipal, estadual
e federal) e ONG´s de todo Brasil a investirem da comunidade(JC,
2005)285.

O “investimento” a que se refere a matéria do jornal “Crioulas” são as parcerias


firmadas entre a comunidade, os órgãos estatais e as ONGs para implantação, ali, de
projetos e políticas públicas voltados para a questão étnico-cultural ou geração de renda,
tendo Givânia como intermediadora. Assim, a identidade quilombola e,
consequentemente, a constituição do movimento quilombola, também vão se
delineando nessas parcerias.

A liderança de Givânia é reconhecida e legitimada na comunidade e fora dela.


Vejamos alguns depoimentos: “Hoje, quem mais atua em Conceição das Crioulas é
Givânia286”(MENDES, 2001) . E, ainda, “Givânia foi a primeira pessoa a sair e
conhecer a história dos negros. Ela participou de um encontro no Maranhão, onde tem

284
Jornal Crioulas: a voz da resistência. Ano 1, nº 3 novembro de 2003, pág 8
285
Jornal Crioulas: a voz da resistência. Ano 3, nº 8- agosto de 2005, pág 7
286
Depoimento do quilombola Andrelino Antônio Mendes, em entrevista feita por mim, em 07/04/01
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um movimento negro também, e lá ela teve apoio deles e, daí para cá a luta não parou
mais287”( SILVA, 2000). “Givânia dá visibilidade à questão quilombola, nos informa de
tudo e é uma pessoa que a gente sabe que não vai se vender288” (MENDES, 2010).

Há oito anos Givânia deixou a comunidade para mora em Brasília. Mas, se,
enquanto morava em Conceição das Crioulas, Givânia protagonizou a cena política do
movimento ali estabelecido, agora que está em Brasília, em espaços mais amplos,
através dos cargos que ocupa[no Incra]289, encaminha (pode encaminhar) as demandas
dos quilombolas através de um diálogo mais próximo com os representantes do Estado.
Além de enfrentar o embate político com parlamentares conservadores que no
Congresso Nacional tentam impedir o avanço das conquistas do movimento quilombola.

A atuação de Givânia em órgãos públicos nacionais, como o INCRA,


proporciona a ampliação dos “campos políticos” dos quilombolas de Conceição das
Crioulas e dá visibilidade pública ao movimento. Se por um lado, essa situação
favorece as “negociações” com as entidades governamentais na defesa dos direitos
quilombolas, ampliando as possibilidades de diálogo entre o movimento e o Estado, por
outro, tanto acirra os conflitos em nível local como provoca a reação dos partidos
conservadores de direita; criando, assim, obstáculos ao movimento.

A visibilidade do nosso movimento quilombola provoca reação nos


ruralistas que praticam ações para prejudicar a gente. Os fazendeiros
sempre disseram que Conceição das Crioulas era um curral eleitoral,
mas agora nos temos nossas ferramentas (as leis). Nós temos sofrido
ataques dos ruralistas e do DEM, antigo PFL, eles entram com ações
de inconstitucionalidade de nossos direitos. O DEM e o PMDB são
publicamente contra os movimentos sociais290( SILVA, 2010)

Com essa declaração o jovem Adalmir define claramente quem são os


“inimigos” do movimento quilombola, contra os quais precisam usar as “armas” de que
dispõem: as leis. Nesse embate cabe a Givânia, que está em Brasília, o enfrentamento
direto aos “inimigos” para garantir os direitos instituídos.

Estando na capital federal, Givânia está envolvida no contexto das


discussões parlamentares sobre a legislação que regulamenta os direitos dos
quilombolas. Assim, ela informa aos habitantes de Conceição das Crioulas e das outras
comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil as dificuldades, os avanços e as
conquistas do movimento no campo dos direitos, como destaca o relato a seguir:

Existe um projeto do deputado Valdir Colado (PMDB-SC), que


propõe sustar o decreto nº 4887 (de 25 de novembro de 2003), que
regulamenta o procedimento de regularização fundiária dos
quilombos. Isso suspenderia, em tese, toda a política de regularização,
porque ficaríamos sem essa atribuição e sem a definição dessa

287
Depoimento da quilombola Maria Valdeci da Silva, em entrevista feita por mim, 20/01/00
288
Depoimento do quilombola Antônio Mendes, em entrevista feita por mim, em 29/01/10
289
Givânia foi subsecretária das comunidades tradicionais da Secretaria Especial de Promoção de
Políticas da Igualdade Racial, durante a gestão de Matilde Ribeiro e, atualmente, Coordenadora Geral
de Regularização de Território Quilombola do INCRA,
290
Depoimento de Adalmir José da Silva, liderança quilombola, em entrevista feita por em 28/01/10
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política. Estamos subsidiando os líderes do governo e das bancadas


para que eles possam entender a nocividade desse projeto. E a outra
questão é o estatuto da igualdade racial, que alguns deputados
afirmam que até votariam agora, desde que se retirasse a questão
quilombola. Mas entendemos que o estatuto perderia o sentindo se
fosse votado sem o tema quilombo. Estamos nessa luta oferecendo ao
governo os argumentos necessários para que essa política já
desenhada não desapareça do estatuto. Seria um retrocesso291(SILVA,
2008).

A atuação de Givania, enquanto integrante de um órgão governamental - INCRA


- responsável pela política de regularização das terras quilombolas, e como militante do
movimento negro nacional, tem grande importância política para o movimento
quilombola de Conceição das Crioulas, ao mesmo tempo em que confere a ela o status
maior liderança da comunidade.

Observe-se nesse caso, portanto, mais uma vez a presença da mulher, como
expressão de liderança em Conceição das Crioulas, corroborando, assim, com o
pensamento de Maria Aparecida Oliveira Souza, segundo o qual o movimento de
Conceição das Crioulas é construído a partir de “histórias femininas”(SOUZA, 2006).

Conforme afirmei anteriormente, Givânia está morando em Brasília mas a luta


política na comunidade de Conceição das Crioulas conta com a atuação de outras
lideranças masculinas e femininas. Entre as últimas se destacam: Aparecida Mendes,
Márcia Jucilene, Maria Diva e outras. Na impossibilidade de analisar aqui o perfil
pessoal e político de todas essas mulheres, refiro-me apenas à primeira , Aparecida
Mendes Silva, que já ocupou o mais importante cargo político da comunidade: a
coordenação da AQCC.

O quilombola Raimundo Antônio da Silva reconhece o poder político das


mulheres e identifica em Aparecida Mendes uma certa hegemonia em relação às outras:

Nas reuniões as mulheres sempre estão na frente. Basta dizer que tem
uma mulher em Conceição, como Lia (Aparecida Mendes), por
exemplo, que pra falar com ela é a coisa mais difícil do mundo,
porque ela vive viajando. Eu considero isso importante, porque se as
mulheres não fizessem isso o movimento ia abaixo, porque os homens
não se envolvem muito292”(SILVA,2009).

Para o quilombola citado, a participação das mulheres quilombolas nas


atividades políticas é bem superior à dos homens, nos sindicatos rurais do sertão, hoje,
cerca de 70% das filiações são de mulheres. Esta situação parece não incomodar o
agricultor que também reconhece a fragilidade da participação masculina no
movimento quilombola. A história de luta de Aparecida, ao que me parece, faz parte de
uma tradição familiar. Seu discurso revela o carinho e a influência recebidos de sua avó
Firmiana, conhecida por Ana Belo, de 85 anos.

291
Givânia em entrevista ao Diário de Pernambuco. Disponível no site:
http://www.diariodepernambuco.com.br/2008/11/20/politica7_0.asp
292
Depoimento do quilombola Raimundo Antônio da Silva, citado por Souza( 2006, p,114).
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(...) Ana Belo é minha vó, a minha vozinha querida e ela é uma
pessoa insistente nas coisas que faz, é uma pessoa assim, com quem
me inspiro para lutar, geralmente quando estamos quase fraquejando
ela é uma das pessoas que a gente procura pra conversar e pra se
fortalecer e, apesar dela ter 85 anos e saber que a luta não é fácil, ela
nunca desestimula, ela ta sempre nos incentivando a ir à frente apesar
das dificuldades293(SILVA, 2004).

A participação diferenciada de algumas pessoas – principalmente Givânia e


Aparecida - no processo de organização política pode ser compreendida com maior
clareza associando-se, por exemplo, histórias e biografias. Refiro-me , a principio, a
Givânia que, não por acaso, se tornou uma liderança. Conforme referência anterior,
nasceu em Conceição, viveu ali sua infância e adolescência, transferindo-se
posteriormente para a cidade de Salgueiro, onde deu continuidade aos seus estudos.
Formou-se em Letras, em 1994, e, na sua trajetória de vida, nesse outro contexto,
engajou-se em movimentos e organizações como: atividades sindicais, militância
política no PT, atuação no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e no Movimento
Negro Unificado, ocupando hoje cargos importantes no Governo Federal. Tudo isso
sem se desligar de Conceição das Crioulas e semeando ali, os ideais defendidos por
esses movimentos.

Essa liderança de Givânia pode ser analisada de diversas maneiras: a sua


capacidade de comunicação que lhe revela como "liderança nata", a sua formação
educacional (primeira pessoa da comunidade a ingressar num curso superior) e a sua
inserção nos movimentos já mencionados que lhe dão subsídios para discutir os
problemas sociais brasileiros, também vividos pela comunidade de Conceição das
Crioulas. Essa visibilidade política de Givânia, extensiva a outras lideranças, lhes
proporciona a possibilidade de abertura de novos espaços em que possam construir
seus campos políticos, sem os quais suas ações seriam invisíveis.

A atuação de Givânia, bem como de outros membros da comunidade, foi


fundamental para o despertar desse movimento social de luta pela terra, pelos direitos
e valores étnicos e culturais em Conceição das Crioulas. É dentro dessa luta que se
efetiva a liderança das mulheres, reafirmando, assim, uma tradição de mais de
duzentos anos: "O poder da mulher negra em Conceição das Crioulas."

Esse “poder” da mulher negra de Conceição das Crioulas desestabiliza a ideia


hegemônica de patriarcado segundo a qual,

(...) o poder natural dos homens como “indivíduos” abarca todos ao


aspectos da vida civil. A sociedade civil (como um todo) é patriarcal.
As mulheres são submetidas aos homens tanto na esfera privada
quanto na pública; de fato, o direito patriarcal dos homens é o
principal suporte estrutural unido as duas esferas de um todo social. O
direito masculino de acesso aos corpos das mulheres é exercido tanto
no mercado público quanto no casamento privado, e o direito
patriarcal é exercido sobre as mulheres e seus corpos de outras formas
além do acesso sexual direto( PATEMAN, 1993, p. 167).

293
Depoimento da liderança quilombola Maria Aparecida Mendes Silva , citado por Souza (2006,p. 94)
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Não com a mesma visibilidade de Givânia, Aparecida Mendes Silva também


vem se revelando uma liderança excepcional. Ex-coordenadora da Associação
Quilombola de Conceição das Crioulas - AQCC, ela é no momento a mulher com maior
poder político em Conceição das Crioulas. Praticamente analfabeta até a idade adulta -
a exemplo de outras brasileiras - Aparecida retornou à escola depois de casada e com
uma filha já crescida. Hoje é estudante do Curso de Licenciatura em História da
Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central de Pernambuco (FACHUSC), em
Salgueiro, onde não desperdiça uma oportunidade de abrir um debate acerca da questão
quilombola e ressaltar a importância do aprendizado para a sua formação: “perdi muito
tempo de minha vida sem entender o que ocorria em minha volta, sem ter coragem de
falar, hoje eu compreendo melhor e quero aprender sempre mais, quero ser
doutora294”(SILVA, 2010). Ali ela encontra muitos interlocutores, uns contra outros a
favor, mas o que importa para ela é o caráter político da discussão.

Nas entrevistas que fiz com as lideranças masculinas, e nas muitas conversas
informais que tivemos, sempre fizeram questão de enfatizar que não existem disputas
políticas em torno da questão de gênero em Conceição das Crioulas. Ao contrário,
dizem sentirem-se felizes com esse diferencial, pois não é comum na sociedade.

Esse ponto de vista não é unânime entre todos os homens. Como é de se esperar,
diante da heterogeneidade que marca a composição da sua população, nem todos os
habitantes de Conceição das Crioulas reconhecem o tradicional poder de liderança das
mulheres; principalmente aqueles que não se consideram “quilombolas”, como o Senhor
Manuel Leite, ao afirmar: “nunca alcancei esse tempo de muié mandano aqui não. A
orde é dos home! Onde diabo é que muié governa nada? Então num tinha home nesse
tempo? Eu acho que era assim mermo! Num vê falar nas crioulas? Então num tinha
homem! Hoje as que quere mandar num dá certo” 295(LEITE, 2000).
Considerações finais
Não se pode negar que é reveladora a iniciativa das mulheres de Conceição das
Crioulas em diversos momentos da história da comunidade, principalmente, hoje, na
liderança de um movimento político tão complexo. Vejo-as como a evidência da
importância das mulheres e suas posições de sujeitos na estrutura social.
No entanto, apesar de todo protagonismo da mulher negra de Conceição das
Crioulas não posso afirmar que as “seis crioulas” e suas descentes mais próximas -
mulheres desafiadoras de padrões sociais do seu tempo e guerreiras na defesa de seu
território - tivessem implícita na sua luta qualquer ideologia feminista ou coisa do
gênero. A conclusão a que chego, a partir das representações dos informantes, sobre as
mulheres que lideraram no passado, é que estas defendiam os direitos de um grupo que
tinha o seu território ameaçado por "pessoas vindas de fora", não se constituindo,
naquele momento, nenhum movimento feminista, com os significados impressos, por
exemplo, às experiências de movimentos de mulheres, na sociedade brasileira dos
últimos vinte anos.
Ao analisar a atuação política de Givânia Silva, Aparecida Mendes e outras
mulheres, na atualidade, e comparando-a com aquela exercida por Agostinha e suas
antecessoras – as seis crioulas-, constatei diferenças significativas. Até porque, trata-

294
Depoimento da liderança quilombola Maria Aparecida Mendes Silva, durante um evento na
FACHUSC, março de 2010.
295
Depoimento do Senhor Manuel Leite, em entrevista feita por mim, em 06/09/00.
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se, hoje, de uma nova luta, que assume novas características, com dimensões mais
amplas, dentro de uma sociedade que se também se transformou com o passar do
tempo. E, nesse percurso, as ações de homens e mulheres, ali, se transformaram. Em
primeiro lugar, porque passaram a se perceber como negros e negras, rompendo, assim,
com uma tradição secular, de negação da negritude por motivo de medo ou vergonha,
enquanto hoje é motivo de orgulho; segundo porque, ao assim se perceberem, passaram
a lutar por direitos específicos do povo negro. Nesse contexto os discursos e as ações
feministas fazem todo sentido.
Referências bibliográficas
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Brasília: Senado Federal, 2006
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LEITE, Maria Jorge dos Santos. CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS: terra, mulher e
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PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
SOUZA, Maria Aparecida Oliveira. AS MULHERES, A COMUNIDADE DE CONCEIÇÃO E
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SOUZA, Vânia Rocha Fialho de Paiva (antropóloga responsável). Projeto
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QUILOMBOS- identidade étnica e territoriadedade. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
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ACENDENDO AS LAMPARINAS: ELUCIDAÇÕES A RESPEITO


DO MOVIMENTO LGBT E SUAS CONQUISTAS ENTRE 1978 E
1983
Thais Barbosa de Siqueira Cavalcanti296
Maria Júlia Parente Félix297

RESUMO

Em 1968, quando a sociedade brasileira acreditava que estava próxima de um possível


retorno ao regime democrático, o governo militar golpeia-a com o famoso e mais duro
Ato Institucional: o AI-5. No entanto, surpreendendo uma possível lógica de repressão,
bem no princípio dos anos 70, a comunidade LGBT - aliada ao movimento feminista e
minorias - ganhou voz e cara: jornais, peças de teatro, músicas e artistas apareciam aos
montes abraçando a causa "guei". Nosso trabalho, com base em jornais (em especial o
"Lampião da Esquina"), revistas, biografias e documentários, busca mostrar um pouco
dessa "saída do gueto" do movimento LGBT, sem, claro, deixar de comentar as pesadas
repressões e consequências que sofrera neste período.

296
Graduanda em Bacharelado em História pela Universidade Federal de Pernambuco
297
Graduanda em Bacharelado em História pela Universidade Federal de Pernambuco
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Palavras-chave: Ditadura Militar Brasileira, Brasil, Movimento LGBT, Movimento


Gay.

ABSTRACT

In 1969, when the Brazilian society believed it was close to a possible democratic
return, the military government striked it with the famous and hardest Institutional Act
(AI): AI-5; However, surprising a possible repression logic, near by the 70's, the LGBT
comunity, - allied to the feminist movement and other minorities - gained a voice and a
face: newspapers, plays, songs and artists appeared to embrace the gay cause. Our
paper, based on newspaper (Especially "Lampião da Esquina”), maganizes, biographies
and documentaries are looking to show this LGBT "out of the ghetto" movement,
without, of course, stop commenting the heavy repression and consequences that this
movement suffered during this period.

Keywords: Brazilian Military Dictatorship, Brazil, LGBT Movement, Gay Movement.

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata da ascensão do movimento LGBT entre os anos de 1978 e


1983, período em que as mobilizações na luta pelos direitos dos homossexuais se
intensificaram. Ressaltando que a disseminação dos ideais dos ativistas da causa,
através de publicações e ações organizadas por estes, ocorreram devido ao
abrandamento da repressão por parte do governo no período citado.
É fato conhecido que os movimentos estudantil e sindical, por exemplo, eram
supervisionados de forma rigorosa pelo governo militar, mas pouco se sabe sobre a
questão dos marginalizados pela sociedade. Assim sendo, a escolha desse tema veio a
partir de indagações pessoais a respeito da situação das minorias, em especial, a minoria
gay.
Com a pretensão de não restringir o movimento a um contexto, uma vez que o
alcance de seus ideais tornaram-se maiores do que o esperado pelos pequenos grupos de
militantes, procuramos trazer uma análise política e social do movimento, além de
reflexões acerca da sexualidade e da questão de gênero no Brasil.
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ACENDENDO AS LAMPARINAS: ELUCIDAÇÕES A RESPEITO


DO MOVIMENTO LGBT E SUAS CONQUISTAS ENTRE 1978 E
1983

DO ARMÁRIO PARA AS RUAS: A LUTA DOS OPRIMIDOS CONTRA OS


OPRESSORES
Em 1964, o então presidente João Goulart e Leonel Brizola anunciavam as
reformas de base possuindo “mais palavras do que atos”, como dito pelo ex-presidente
da república, Fernando Henrique Cardoso, em entrevista a respeito dos cinquenta anos
do Golpe de 64. As propostas apresentadas por Jango foram usadas pela elite militar
como pretexto para chegar ao poder temendo a instauração de um governo totalitário
comunista que só seria evitado com a destituição do atual presidente, dando assim início
à Ditadura Militar.
Para entendermos melhor o que aconteceu durante o período ditatorial, é
necessário que se tenha um conhecimento prévio a respeito não só da política como
também de como podemos reconhecer, em termos teóricos, o governo militar. Os
próprio militares denominaram sua ascensão ao poder como Revolução de 64, porém
esse termo é empregado comumente pela direita, visto que a denominação correta é
golpe, posto que há uma diferença clara entre os termos. Para ser uma revolução é
preciso que haja uma mudança radical desde as estruturas mais básicas, enquanto que o
golpe de Estado consiste apenas na mudança de uma elite para outra, sendo assim não
podemos considerar a ascensão militar como revolucionária.298

298
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. 20ª ed.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 605-606.
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Ao procurar a respeito da palavra “política” que passou a ser usada de forma


mais ampla a partir da obra de Aristóteles, denominada Política, percebe-se que a
mesma foi empregada para se referir a obras de estudos relacionados com qualquer
assunto do Estado, porém na modernidade, com o surgimento de termos como “ciência
política”, “doutrina do Estado” etc., a palavra perdeu seu significado e passou a ser
utilizada somente para se referir às atividades estatais.
Ao analisarmos o conceito de política é notável a ligação que possui com o
conceito de poder, dado que a definição de poder está relacionada à subordinação de um
ser a outro, sendo que essa subordinação não é apenas privilégio do poder político,
sendo usada também pelos poderes paterno e despótico. Dessa forma o poder político
torna-se apenas uma forma de poder do homem sobre o próprio homem, mas o que o
diferencia é o fato de ter a permissão de usar a força física como forma de coerção, ao
contrário do poder econômico e ideológico, por exemplo. Contudo, apesar de usar a
força, ele não se restringe apenas a isso, seguindo algumas características como a
universalidade que permite que os governantes tomem decisões legítimas que serão
impostas para toda a sociedade relacionadas à distribuição e destinação dos recursos
(não somente econômicos); exclusividade que detém a autoridade de não permitir a
formação de grupos armados, subjugando-os, além de vigiar as infiltrações, ingerências
ou agressões de grupos políticos externos; e por fim temos a inclusividade que se refere
à possibilidade de intervir de todas as formas nas atividades dos membros do grupo,
levando-os para um fim desejado ou não-desejado. 299
Todavia, ao analisarmos o governo durante o regime militar, surge a pergunta de
como o classificaríamos. Segundo Bobbio (1999), de acordo com as obras clássicas a
respeito do que seria o bom governo e o mau governo, temos as seguintes definições: a
primeira forma de diferenciá-los seria através das leis, pois enquanto que o bom
governo as segue, o mau as ignora, seguindo apenas a vontade do governante; a segunda
teria relação com a forma como os governantes se relacionam com os governados, uma
vez que o bom governo se preocupa em exercer seu poder em benefício público,
enquanto que o mau pensa em interesses alheios.
Um governo que segue as leis à risca será justo já que estas impedem que os
governantes sigam a própria vontade na hora de tomar decisões, porém um governo que

299
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 957.
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segue essa linha corre o risco de não perceber os casos excepcionais que precisam ser
analisados de forma especial, mas o inverso também acontece porque uma sociedade
sem leis fixas torna-se desordenada, pois fica sem ter uma base para se guiar e acaba
seguindo cegamente às ordens do governante.
Os militares ao imporem suas vontades à população não levando em
consideração seus desejos, seguindo as leis quando estas lhes eram favoráveis, sendo
extremamente repressores com toda e qualquer forma de oposição ao regime, agindo
apenas em benefício da classe dirigente, dentre outros atos, faz com que coloquemos a
ditadura militar como um mau governo. E esse mau governo, até certo ponto foi
favorável à questão dos homossexuais, pois a prioridade era combater os que se
mostravam contrários ao regime, que não se importaram com essa minoria que no início
não apresentava um engajamento político relevante o suficiente para ser supervisionada.
Contanto que continuassem em espaços fechados, vivendo na clandestinidade, só
aparecendo durante o período carnavalesco – onde os homossexuais gozavam de uma
semiliberdade – eles poderiam continuar com seus atos “subversivos”.300
As razões que levaram o movimento homossexual a participar mais ativamente
da vida política brasileira foram ao poucos sendo acumuladas, mas podemos apontar
como estopim o término do governo Médici somado à abertura “lenta, gradual e segura”
empreendida no governo Geisel; a criação do jornal Lampião da Esquina e o
surgimento do SOMOS: Grupo de Afirmação Homossexual – originalmente chamado
de Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais –, que apareceram graças ao
abrandamento da censura; e finalmente, temos a aproximação com os movimentos
feminista, negro e índio, principalmente com o feminista que levantava questões a
respeito do patriarcado, da rigidez dos papeis e gênero e aos costumes sexuais
tradicionais, que terminou confluindo para os mesmo propósitos do movimento
homossexual a partir de 1978.
O Lampião, jornal abertamente feito para e por homossexuais, trazia um claro
cunho político, além da pretensão de tirar os “gueis”301 do gueto, enquanto que o
SOMOS articulava reuniões com homens e mulheres homossexuais e incentivava por
300
GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São
Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 399.
301
O termo aportuguesado pela comunidade homossexual já existia, mas foi popularizado através das
publicações do Lampião, visando alcançar a adesão dos homossexuais das classes mais baixas que
desconheciam termos estrangeiros ou mesmo brasileiros, como “entendido”, usados para colocar em
desuso palavras como “bofe” e “bicha”.
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meio do Lampião a criação de outros grupos a favor da causa gay que também
contribuíram para que houvesse maior adesão à causa. Em 1979, a organização de um
debate com as minorias proposto pela USP e que contou com a participação de diversos
ativistas dos movimentos negro, feminista, indígena e homossexual, com membros do
Lampião e do SOMOS compondo a mesa. O debate se mostrou benéfico para o
movimento homossexual que pode expor seu engajamento político, surpreendendo tanto
os ouvintes como os ativistas dos outros movimento que nunca ouviram falar dessa
militância gay.302
No dia 16 de dezembro de 1979 houve o Encontro Nacional do Povo Gay, tendo
como objetivo organizar e expor os ideias que o movimento propunha. Esse encontro
contou com a participação de vários grupos ativos que apresentaram propostas a serem
debatidas, evidenciando a rápida ascensão do movimento e o aprofundamento deste na
esfera política.303
Se a década de 70 foi marcada como o início da luta das minorias, a de 80 pode
ser considerada como a que teve o maior número de marcos históricos para os
movimentos, em particular o movimento gay. O I Encontro Brasileiro de
Homossexuais, que teve sua cobertura feita pelo Lampião304, ocorreu em abril de 1980,
e teve diversos assuntos discutidos e problematizados como “A questão lésbica”, "O
machismo entre homossexuais", "Papéis sexuais", "Michês" e "O travesti e a repressão".
O Encontro teve bons resultados, pois o movimento homossexual se consolidou e
reorganizou os interesses dentro do grupo, como foi o caso das lésbicas que se viam
melhor representadas pelo movimento feminista e por isso acabaram se desligando do
grupo SOMOS, criando o grupo Lésbico-feminista305. Nessa década também houve uma
petição iniciada pelo Grupo Gay da Bahia para que a homossexualidade, na época
também chamada de homossexualismo, fosse tirada da lista de doenças do Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).
A dissolução do SOMOS, por causa de conflitos ideológicos internos, e o fim do
Lampião da Esquina fez com que o movimento gay perdesse seus maiores

302
Lampião da Esquina, ano 2, n. 10. Rio de Janeiro, março 1979, p. 9.
303
Lampião da Esquina, ano 2, n. 20. Rio de Janeiro, janeiro 1980, p.7.
304
Lampião da Esquina, ano 2, n. 24. Rio de Janeiro, maio 1980, p. 3 e segs.
305
ZANATTA, Elaine Marques (1997). Documento e identidade: o movimento homossexual no Brasil na
década de 80.
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incentivadores na luta por seus direitos, além de propostas feitas por partidos políticos a
respeito das mudanças que seriam implementadas na sociedade para que houvesse
adesão das minorias. O Partido dos Trabalhadores, por exemplo, propunha levar a
questão da homossexualidade para a classe trabalhadora e alegava que esta era a única
classe que tinha interesse em fazer uma verdadeira revolução social, coincidindo assim
com os desejos da militância homossexual.
Outro fator determinante foi o surgimento da AIDS no Brasil em 1982, que foi
definida como uma doença trazida pelos gays, apesar da doença também ter sido
detectada em hemofílicos heterossexuais infectados por transfusões sanguíneas ou
relações sexuais desprotegidas. As primeiras mobilizações para combater a epidemia
foram lideradas por militantes homossexuais, por causa da demora do governo em
tomar providências, e essas mobilizações não se restringiam apenas no âmbito solidário,
como também solicitavam resoluções por parte do poder público.
A partir desse momento, o movimento gay mudou seu foco. Se antes a principal
preocupação de seus ativistas era com a reforma total da sociedade, agora os principais
pontos defendidos diziam respeito aos direitos civis e à luta contra a violência e a
discriminação, o que tornou o movimento mais simples e organizado.

A EPISTEMOLOGIA DA OPRESSÃO – MINORIAS E MACHISMO


A palavra homossexual – usada pela primeira vez na Europa em 1869 em defesa
aos sodomitas perseguidos na Prússia – é a junção da palavra grega “homo” que
significa “igual” ou “semelhante” com a palavra latina “sexus” referente à sexo, mas
essa não é a única forma de se referir a homens que sentem atração por outros homens,
também pode-se usar os termos “sodomia” fazendo clara referência à Sodoma, cidade
bíblica destruída por Deus por causa de suas práticas profanas ou “uranismo” que vem
de Urânia, outro nome da deusa Afrodite. No caso da homossexualidade feminina,
utiliza-se o termo sofismo, originado do nome da poetisa Sappho, que vivia na Ilha de
Lesbos onde tinha relações com várias mulheres, e é do nome dessa ilha que o termo
“lésbica” surge.
Definindo assim a historicidade do termo homossexual, partimos para o objeto
deste trabalho: estudar o movimento LGBT durante a ditadura não significa somente
estabelecer relações de causa-efeito entre o primeiro e a segunda, mas também
destrinchar o histórico desta e de outras chamadas “minorias” que lutam pelos seus
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direitos até hoje. Mas antes, que é a minoria? Este termo é densamente utilizado
principalmente a partir da década de cinquenta – quando o estudo a respeito destes
grupos sociais começou a ser priorizado, até os dias de hoje. É necessário que
analisemos o termo para então seguirmos com nosso comentário sobre o movimento
LGBT.
A minoria, e, naturalmente, sua relação com a chamada maioria está ligada às
manifestações de poder. Ao longo dos tempos, questões culturais, econômicas e
políticas, que se sobrepõem uma sobre as outras, contribuem para a construção e
imposição dos chamados “modelos sociais”, que estão presentes em todos os ramos e
aspectos que, juntos, culminam na sociedade. Assim, indivíduos que não condizem, não
concordam, não acatam ou se encaixam com tais requisitos, são julgados como
“diferentes” (no sentido negativo do termo), e estão sujeitos à exclusão e repúdio pela
camada majoritária. É uma das razões pelas quais, no século passado, temos registros de
homossexuais – tomados como subversivos à sociedade, eram sujeitos à prisão,
internação em manicômios e outras sanções306. Não obstante, se são minoria e estão à
margem, subentende-se que estes indivíduos não desfrutarão dos mesmos direitos e
tratamentos daqueles que cumprem com o que lhes é imposto. Assim, trata-se de um
grupo de indivíduos em desvantagem.307 No Brasil, retrata-se tal processo de exclusão e
contato a partir do momento em que os homossexuais saem das casas de seus familiares
em busca de melhores condições de convivência que encontrarão, futuramente, na vida
noturna – daí o crescimento dos estabelecimentos voltados para este público.
Convém ao nosso pensamento tomar o machismo como fator principal para a
formação destas minorias. Temos aqui uma sociedade que, até hoje, herda muito do

306
“[...] os loucos de rua, mendigos, bêbados, homossexuais, prostitutas e “xangonzeiros”, muitas vezes,
foram encaminhados aos manicômios e às prisões a fim de serem legitimados nestes lugares como
pessoas inferiores, tendo em vista o bem da ordem social. [...] Durante o Estado Novo, [...], as diretrizes
tomadas pelos governantes continuaram a ser nada favoráveis às pessoas internadas nos manicômios,
cada vez mais superlotados.” (MIRANDA, Carlos Alberto Cunha, “A Utilização da Convulsoterapia nos
Hospitais Psiquiátricos nos anos 30, 40 e 50”)

307
GREEN, N. James; TRINDADE, Ronaldo (Org.) Homossexualismo em São Paulo e outros escritos.
São Paulo, Editora UNESP, pág. 56
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pensamento machista que atravessa os séculos, que foi potencializado pelo avanço
científico do século XIX, principalmente no que se diz à Psicanálise. Freud, ao escrever
a obra intitulada “Três ensaios sobre a teoria da Sexualidade” (1905) constrói a ideia de
que há determinados “critérios de normalidade” estabelecidos e dogmatizados nas
culturas através dos tempos, e a questão da sexualidade está, naturalmente, inserida
nestes critérios. Assim, a homossexualidade é tomada como “sexualidade desviante”,
libidinosa e pervertida – pensamento que é amplamente rebatido graças aos estudos
mais atuais - cabe a nós citar, por exemplo, Foucalt308, que retrata muito bem este
pensamento de “sexualidade desviante” de Freud como uma forma de controlar os
indivíduos. Esta forma de controle é tamanha, que associa-se a ideia de gostar de uma
pessoa do mesmo sexo como abdicar de sua masculinidade ou feminilidade – daí que
surgem os chamados “ativos”, “passivos”, “bichinhas”, “bofes”, termos pejorativos para
determinar quem cumprirá o papel de homem e de mulher numa união homoafetiva.
Desta forma, construiu-se a ideia de heteronormatividade309 – que exige, na formação
de casais, o cumprimento obrigatório do papel de homem e mulher pelos indivíduos –
suprimindo a homossexualidade, “errônea”. Não obstante, convém dizer que, ao
mergulharmos ainda mais profundamente na história das sociedades, a relação
homoafetiva era tomada como algo natural para o desenvolvimento do homem grego
(aliás, os termos homo e heterossexual eram desconhecidos ao vocabulário da língua
grega)310.
Munidos destes questionamentos, vimos que esta minoria, antes imóvel em
quesitos políticos, passa a se conscientizar da própria situação – a de marginalidade.
São, os homossexuais, vistos de forma desigual e encurralados nos becos dos próprios

308
FOUCALT, Michel. História da Sexualidade : Volume I – A Vontade de Saber, Rio de Janeiro,
EDIÇÕES GRAAL Ltda.

309
– Termo criado por Michael Warner em 1991, na sua obra “Introduction: Fear of a Queer Planet”, que
veio a ser largamente adotado e alvo de debates e livros a respeito do discurso de gênero. Cathy J. Cohen
define a heteronormatividade como “a prática e as instituições que legitimam e privilegiam a
heterossexualidade e relacionamentos heterossexuais como fundamentais e ‘naturais’ dentro da
sociedade”. (2005)

310
– LINS, Navarro Regina. A Cama na Varanda, Edição Renovada e Ampliada, 2007, Editora Best
Seller, Rio de Janeiro, pág 214
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mundos - Ora, não serão incomodados, desde que não incomodem ninguém. O que os
fazem inferiores, questionam-se: gênero? Sexualidade? É a partir desta discussão a
respeito da condição sexual que se agitarão as causas gays no Brasil – a chamada
Primeira Onda311, num total de três, do movimento LGBT.
O Lampião da Esquina refuta a questão do gênero ao utilizar-se do termo
“guei”, não apenas para simplificar ou aportuguesar o termo inglês, mas para
desmistificar termos pejorativos que contribuem para a própria opressão, e, assim, tirá-
los do gueto, dar-lhes voz independentemente de esquerda ou direita. Aliás, a princípio,
o jornal se chamaria “Esquina”, já que tal local era uma espécie de ícone da periferia na
qual os homossexuais (bissexuais, travestis e outras minorias marginalizadas)
circulavam. No entanto, já haviam registrado uma mídia escrita com este nome, assim,
optaram por “Lampião” – devido a (má) iluminação das esquinas. Mas, durante a edição
do logotipo do jornal, surgiu a ideia de “brincar” com outro Lampião: Virgulino
Ferreira da Silva, o Rei do Cangaço e tido como maior ícone do machismo brasileiro na
época. Assim, já desde o título, tínhamos um jornal que prezava pela sátira e afronta aos
ideais de gênero.312
Em pleno período de ditadura militar, tais afrontas poderiam representar até
mesmo risco de vida para aqueles que escreviam o jornal – no entanto, vemos que o
desejo pela liberdade de expressão grita mais alto que o medo dos militares. A Primeira
Onda do movimento LGBT será ousada e corajosa ao questionar o gênero e o
preconceito em pleno período de repressão, quebrando aos poucos com o machismo que
está presente na mentalidade de, até mesmo, aqueles que o combatem – é, sim,
praticante e vítima machismo, um homossexual que permanece no “gueto” por medo de
ser reprimido e condena outros que o façam; é, sim, praticante e vítima do machismo a
mulher que arranja o casamento da filha quando o seu próprio também foi arranjado; é
machismo quando boa parte da sociedade da época acusa os homossexuais por trazer a
AIDS para o Brasil quando nem mesmo eles – que se consideram superiores – se
previnem e acabam por espalhar a doença também; ou quando um soldado do exército é
afastado de suas obrigações por gostar ou se apaixonar por um colega de profissão.

311
– FACCHINI, Regina. Histórico da Luta LGBT no Brasil, CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP – Nº
11 : Psicologia e Diversidade Sexual, 2011
312
- Entrevista com Aguinaldo Silva ao canal Resistir é Preciso, no Youtube.
http://www.youtube.com/watch?v=2z9uyCRF7ic (acessado em 18/03/2014)
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Assim, o discurso da chamada Primeira Onda vai preparar o terreno para a


Segunda, que, já munida dos argumentos contra a desigualdade de gênero e machismo,
trará à tona novas questões que devem ser levadas em consideração, como já detalhado
anteriormente.

CONCLUSÃO

Apesar de seus avanços – a segunda e terceira ondas com suas propostas, e


direitos que virão, sim, a ser conquistados, a questão gay ainda é tabu. O preconceito é
visível no cotidiano da sociedade brasileira e assusta, muitas vezes, o nível de
calamidade e agressividade com a qual os indivíduos são atingidos e, em muitos casos,
assassinados. A mídia principalmente no fim da primeira década do século XXI, trouxe
muito mais em pauta assuntos relacionados ao movimento LGBT e sua expressão,
direitos e lutas. Filmes, novelas, livros, documentários e entrevistas voltados para este
público é notoriamente acessível – não só isso, nota-se uma busca pelo fim da
segregação entre mídias voltadas para o grupo hétero e o grupo homossexual – porque
segregar, se todos são iguais e devem conviver em paz? É a nova busca: já saídos dos
guetos, procuram agora se inserirem e inserir indivíduos de diferentes grupos sociais.

BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos


Clássicos. 20ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
Política. 11ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-jacques; VIGARELLO, Georges. História do
Corpo. Vol. III. As mutações do olhar: o século XX. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
FACCHINI, Regina. Histórico da Luta LGBT no Brasil, CADERNOS TEMÁTICOS
CRP SP – Nº 11 : Psicologia e Diversidade Sexual.
FOUCALT, Michel. História da Sexualidade : Volume I – A Vontade de Saber, Rio de
Janeiro, EDIÇÕES GRAAL Ltda.
FREUD, Sigmund. “Um Caso de Histeria, Três Ensaios sobre Sexualidade e outros
trabalhos”, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud, Volume VIII.
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GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do


século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
GREEN, N. James; TRINDADE, Ronaldo (Org.) Homossexualismo em São Paulo e
outros escritos. São Paulo, Editora UNESP.
LINS, Navarro Regina. A Cama na Varanda, Edição Renovada e Ampliada, 2007,
Editora Best Seller, Rio de Janeiro.
MIRANDA, Carlos Alberto Cunha, A Utilização da Convulsoterapia nos Hospitais
Psiquiátricos nos anos 30, 40 e 50.
ZANATTA, Elaine Marques (1997). Documento e identidade: o movimento
homossexual no Brasil na década de 80.
Lampião da Esquina (Vários Colaboradores).

PRODUZINDO CENAS, CONSTRUINDO MEMÓRIAS: O CINEMA E OS


DISCURSOS SOBRE A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO PERÍODO DA
DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA
Tatianne Ellen Cavalcante silva
Licenciatura em História- UFCG
E-mail: tatianneecs@gmail.com

(Orientador) Prof. Dr. Antônio Clarindo Barbosa de Souza


Unidade Acadêmica de Historia – UAHIS- UFCG
E-mail: veclanu@yahoo.com.br

RESUMO:
O presente artigo pretende analisar como o cinema capta as memórias através da
produção discursiva das mulheres militantes no período de ditadura civil-militar
brasileira. Para tanto se faz necessário problematizar a produção cinematográfica como
um divulgador de memórias coletivas e refletir sobre a construção da memória de
mulheres que militaram neste período, a partir do cinema. A abordagem centrada no
campo das relações gênero se faz necessária, pois busca pensar as mulheres como
sujeitos ativos deste processo e as especificidades na participação destas na luta contra o
sistema ditatorial vigente entre 1964 e 1985. Estes aspectos serão visualizados no
documentário, Vou contar para meus filhos, de Tuca Siqueira.
Palavras-chave: Memórias, Gênero, Cinema.

1. INTRODUÇÃO

Na década de 1960, a Segunda Guerra Mundial já havia acabado e deixado de


herdeira a Guerra Fria. O mundo ainda estava ideologicamente dividido entre dois
sistemas político-econômicos, Socialismo e Capitalismo. Os adventos tecnológicos se
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desenvolviam cada vez mais e se alastravam o número de bombas nucleares em poder


das nações, os conflitos ficavam no plano das ideologias e no desenvolvimento de
poderosas armas de extermínio em massa, os Estados Unidos da América e a União
Soviética, traçavam suas estratégias para ganharem cada vez mais aliados.
O ano era 1964, o então presidente do Brasil, João Goulart começava a sofrer
acusações de tramar um golpe de esquerda e tornar o Brasil um país comunista, em 19
de março a ala conservadora da classe média organizava uma manifestação, A Marcha
da Família com Deus pela Liberdade, se mostrando contrária as ideias que vinham
sendo expostas pelo presidente em comício realizado no dia 13 de março de 1964
conhecido como Comício das Reformas, o discurso proferido pelo mesmo consistia em
anunciar os planos para as Reformas de Base313, o que traria ao país grandes
transformações econômicas, nas estruturas agrárias e na educação.
O Brasil neste momento tinha um presidente com ideias socialistas, e uma crise
começava a se anunciar, os partidos de direita como, a União Democrática Nacional
(UDN) e o Partido Social Democrático (PSD) mostravam-se contrárias as ideias do
presidente e junto a estes partidos estavam os militares, empresários, banqueiros e a
igreja católica. O clima de grande tensão se alastrava pelo país e no dia trinta e um (31)
de Março as tropas de Minas Gerais e São Paulo, saem às ruas. Com receio de uma
guerra civil o então presidente do Brasil refugiar-se no Uruguai.
Já era madrugada e o escuro desta noite anunciava como seriam os próximos
vinte e um (21) anos no maior país da América latina. Estava instaurado o golpe civil-
militar brasileiro, que tem seu primeiro ato no poder dia nove (9) de abril, com o decreto
do AI-1 - Ato Institucional de Nº1, que cassa mandatos de políticos opositores ao
regime militar e tira a estabilidade de funcionários públicos.
É deste período que durou vinte e um (21) anos da história do tempo presente do
Brasil que este trabalho se propõe a investigar. O foco não está nas questões econômicas
e políticas, mesmo estas estando no plano de fundo desta narrativa, os olhares da
pesquisa estão voltadas para as memórias de militância expostas por mulheres que
participaram da mesma, para estas, se apresentam em duas faces, uma contra o sistema
313
Segundo Ferreira (2014) as Reformas de Base são um “conjunto de iniciativas como as reformas
bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e universitária. Sustentava ainda a necessidade de estender
o direito de voto aos analfabetos e às patentes subalternas das forças armadas, como marinheiros e os
sargentos, e defendia-se medidas nacionalistas prevendo uma intervenção mais ampla do Estado na vida
econômica e um maior controle dos investimentos estrangeiros no país, mediante a regulamentação das
remessas de lucros para o exterior ”
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ditatorial ao qual o país estava submetido e outra contra os estereótipos, estigmas e


aprisionamentos impostos aos seus corpos.
Com a deflagração do golpe militar, os rumos no país começam a se modificar.
Ideologicamente o governo militar estava voltado para o imperialismo econômico e
recebe grande apoio dos Estados Unidos da América. Atitudes de autoritarismo são
tomadas pelo governo e a repressão já presente no Ato Institucional de Nº1, se torna
ainda mais violenta nos atos que se sucedem, sobretudo, no mais ostensivo deles que
veio em 1968, o Ato Institucional de Nº 5.
Da tomada do poder pelos militares até 1968 várias manifestações encabeçadas
pelo movimento estudantil foram realizadas, mas com a instituição do AI-5, jovens em
sua maioria estudantes, professores, políticos e todos aqueles que se posicionassem de
maneira contrária ao governo, estavam suscetíveis a prisões e na obscuridade dos seus
porões os militares iniciavam as práticas de tortura.
Neste período, tais práticas se passam despercebidas da maior parte da
população, os jornais de oposição são silenciados, no teatro, no cinema, nas músicas
tudo era dito em metáforas as resistências se faziam presentes na arte de protesto e
quando se desconfiavam do teor das palavras, as mesmas eram censuradas. Falar
abertamente das atrocidades que aconteciam em nosso país, só foi possível nos anos que
se seguiram ao fim deste sistema. E um veículo muito importante para a popularização
dos acontecimentos desse período, foi o cinema de caráter documental. Estes em sua
maioria contam com a narrativa de participantes do período da ditadura militar, com
olhares sobre diversas temáticas.
Diante deste contexto o presente trabalho tem como objetivo analisar como o
cinema capta as memórias através da produção discursiva das mulheres militantes no
período de ditadura civil-militar brasileira. Para o melhor enriquecimento desta analise
se faz necessário problematizar a produção cinematográfica como um divulgador de
memórias coletivas e refletir sobre a construção da memória de mulheres que militaram
neste período. Esta discussão se pauta na analise do documentário Vou contar para meus
Filhos de direção da cineasta Tuca Siqueira, onde é relatado o reencontro de 21
mulheres, ex-militantes e ex-presas políticas, que foram detidas na Colônia Penal do
Bom Pastor.
Ao direcionar o olhar para estas discussões, se faz necessário pensar o cinema
enquanto fonte e como este adentra o campo da historiografia, compreendendo as
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“marcas da memória” na produção cinematográfica, por conseguinte, há necessidade de


reflexão a respeito dos discursos existentes na linguagem cinematográfica,
compreendendo a tentativa de construção da memória de um período a partir das
narrativas das presas políticas. Neste contexto é possível perceber como as resistências
se fazem presentes nas falas das entrevistadas.

2. “MARCAS DA MEMÓRIA” NA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA


A História para ser pensada enquanto ciência no século XIX fora nomeada de
historiografia positivista, elencando um conjunto de fontes possíveis de ser utilizadas
para o conhecimento da história. Estas fontes estão sempre pautadas em documentações
oficiais, produzidos pelos órgãos do Estado e registrados em cartórios.
Estes paradigmas colocados pela História Positivista começam a ser
questionados e revistos pela Escola dos Annales, que a partir dos anos de 1920
começam a traçar novos caminhos e possibilidades para a ciência histórica.314 Uma
destas seria a utilização do cinema como fonte.
Estes novos caminhos foram se alargando ao longo do século XX e é na década
de 1970 que temos com maior emergência a utilização do cinema como fonte histórica.
Tendo como um dos mais importantes nomes no desenvolvimento de análises quanto a
este encontro do cinema e da história, Marc Ferro. Não apenas dentro da perspectiva de
“História do Cinema” ou a “Historia no Cinema”. Ferro chega a pensar em uma relação
Cinema e História de forma tão imbricada que passa a nomeá-la de “Cinema-História”.
Vertente está também defendida por Jorge Nóvoa.315
Neste artigo, porém utilizamos a vertente defendida por José D’Assunção Barros
(2008, p.9) “[...] no qual Cinema e História são contrapostos como identidades
específicas e onde se busca mostrar que conexões e implicações se estabelecem [...]”
Por entendermos que o cinema utiliza-se de uma linguagem própria assim como a
história também o faz.

314
BURKE, Peter. Os fundadores: Lucien Febvre e Marc Bloch. In: A Escola dos Annales- 1929-1989:
A Revolução Francesa da Históriografia. Tradução de Nilo Odália. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
315
Para mais informações consulte: NÓVOA, Jorge. Apologia da relação cinema-história. In. Cinema-
História: teoria e representações sociais no cinema. Org. NÓVOA, Jorge e BARROS, José D’Assunção.
2ª ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
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O cinema será utilizado como fonte histórica e a metodologia de leitura desta


estará pautada na Análise de Discurso. Para tanto, “Chamaremos de discurso um
conjunto de enunciados que se apóiem na mesma formação discursiva” (Foucault, 1986,
p.135). Que nos leva a pensar a emergência da produção documental com este tema, no
ano de 2011 quando já se fazia vinte e seis anos do fim da ditadura civil-militar.
O filme então não será visto nas lentes de uma obra de arte como nos pede Ferro
(1992, p. 85)
O filme, aqui, não é considerado do ponto de vista semiológico. Não se trata
também de estética ou história do cinema. O filme é abordado não como uma
obra de arte, porém como um produto, uma imagem-objeto, cujas
significações não são somente cinematográficas. Ela vale por aquilo que
testemunha.
O documentário – Vou contar para meus filhos de Tuca Siqueira – faz parte do
projeto Marcas da Memória. Projeto este que se insere na Comissão de Anistia, criada
em 2001 e que contrariamente ao que se pensa da Anistia, que traria consigo o
esquecimento, neste caso trouxe seu contra senso, a memória. O texto de apresentação
do Projeto Marcas da Memória traz que o mesmo:
“expande ainda mais a reparação individual em um processo de reflexão e
aprendizado coletivo, fomentando iniciativas locais, regionais e nacionais que
permitam àqueles que viveram um passado sombrio, ou que a seu estudo se
dedicaram, dividir leituras de mundo que permitam a reflexão crítica sobre
um tempo que precisa ser lembrado e abordado sob auspícios democráticos.”
O projeto supracitado divide-se em quatro eixos para dar conta de tal expansão,
temos então dentro deste: Audiências públicas, História oral, Chamadas públicas de
fomento à iniciativa da sociedade civil e Publicações. A produção em questão está
dentro do projeto tendo sido contemplado pelo terceiro tópico - Chamadas públicas de
fomento à iniciativa da sociedade civil.
O documentário tem como principal objetivo captar as memórias destas
mulheres sobre o período de ditadura, para construir a memória nacional sobre tal
período. Não sendo este uma produção isolada, já que junto ao projeto em que o
mesmo é vinculado há a produção de outros filmes, bem como a publicação de livros
contendo artigos que vissem analisar o período e dossiês sobre mortos e desaparecidos
políticos.
A produção cinematográfica foi pensada em dois momentos, o primeiro busca
mostrar o reencontro de vinte e uma (21) ex-militantes, que ficaram presas nos anos de
ditadura civil-militar na Colônia Penal do Bom Pastor na cidade do Recife. As cenas se
iniciam no aeroporto, pois estas mulheres já não moravam mais na cidade supracitada.
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Anos sem se ver e a emoção do reencontro traz a tona um jogo de lembranças dos anos
convividos. Junto a isto, se dá a revisitação da Colônia Penal onde ex-militantes se
conheceram e dividiram a vida, resistiram e lutaram pelo que acreditavam ser uma
melhor forma de viver.
No segundo momento este, conta com entrevistas de vinte e uma (21) ex- presas
políticas. As entrevistas giram em torno de questões centrais da vida pessoal anterior a
militância, a entrada da militância, a detenção e as torturas, a prisão no Bom Pastor e a
construção destas mulheres enquanto sujeito nos anos subsequentes ao fim da ditadura.
Nos relatos de memória feitos por estas mulheres, é possível perceber a
construção da memória coletiva. Os depoimentos se entrelaçam ao falarem sobre si
também estão falando das outras que compartilharam da mesma vivência e que assim
passaram a fazer parte da vida uma da outra.
Isto não quer dizer que todas expressam, lembrem e sintam as mesmas coisas
quanto ao período que estiveram presas. Pois, o lembrar, traça ligações entre passado e
presente, de forma a se referir às suas vivências no período de militância e de prisão no
Bom Pastor, a partir de conceitos e vivências adquiridas posteriormente ao
acontecimento que se propõem narrar, quanto a isto Barros (2009, p. 37) nos afirma
que:
A Memória, portanto, já não pode mais nos dias de hoje ser associada
metaforicamente a um “espaço inerte” no qual se depositam lembranças,
devendo ser antes compreendida como “território”, como espaço vivo,
político e simbólico no qual se lida de maneira dinâmica e criativa com as
lembranças e com os esquecimentos que reinstituem o Ser Social a cada
instante.
Pensar os lugares da memória provoca um amplo debate pelas possibilidades
que a mesma traz para a discussão, dentre elas o lembrar e o esquecer. No tocante ao
lembrar, Rosa (2013, p.97) - a partir da discussão de Halbwachs sobre memória coletiva
-, nos traz que “[...] lembrar não é reviver. Lembrar é repensar e mesmo reconstruir com
imagens e ideias de hoje, as experiências do passado.” Desta forma pensamos na
memória não como algo estático, fixo e sim como algo em constante construção. A
memória estaria assim sempre em movimento entre o passado e o presente.
Este movimento efetuado pela memória fica expresso nas falas da ex-militantes
que a todo tempo lembram-se do período de ditadura civil-militar, mas estão sempre
expressando suas impressões sobre suas ações na militância a partir de resultados que
estas vieram ter nos anos 2000, por exemplo. Eles elementos são percebidos ao
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compreender a vivência destas mulheres no Bom Pastor, onde as resistências são


expressas nas falas das presas ao (re)pensar sua trajetória de vida, antes e durante o
período do regime militar e sobretudo, o que vieram a tornar-se após o enfrentamento de
tantos percalços, em prol da causa que levantaram.
3.LEMBRANÇAS E RESISTÊNCIAS: construção de memórias na Colônia Penal
do Bom Pastor.
A Colônia Penal do Bom Pastor é assim nomeada em decorrência da ordem
religiosa que no ano de 1943, assumiu a responsabilidade pela educação e
disciplinarização das presas políticas. A Ordem Nossa Senhora da Caridade do Bom
Pastor, não era de caráter punitivo, seus ideais eram promover a educação, dentro desta
a educação religiosa, o papel das freiras, não era para ser de carcereira e sim de
educadora dos preceitos católicos e o desenvolvimento de um oficio, para que as
internas ao saírem da reclusão possam conseguir desenvolver alguma atividade lucrativa
para seu sustento, por isso aprendiam a fabricar biscoitos caseiros, costurar, bordar, bem
como atividades de limpeza, cozinha e lavanderia.

Dentro desse contexto sócio- educativo é que as militantes em questão iram ficar
presas por alguns anos. Porém antes de serem levadas a Colônia Penal, as mesmas
passaram por outros espaços destinados a prisão por questões políticas, como no DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social) e no DOI-CODI (Destacamento de
Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna).

O período que as mesmas passaram nesses dois órgãos – DOPS e DOI-CODI –


que em sua maioria são entre um (01) a (03) meses, tempo este suficiente para deixar
marcas físicas e simbólicas, nestas mulheres, que foram torturadas, sendo despidas,
postas no pau - de - arara, recebendo choques elétricos, pancadas em várias partes do
corpo, depondo a qualquer horário principalmente durante a madrugada, sofrendo
sessões de afogamento. Em decorrência das longas horas de tortura, algumas dessas
mulheres perdiam o controle do próprio corpo, ficando ainda mais vulneráveis as
pancadas que os militares exerciam sobre seus corpos, como afirma Maria do Socorro
Diógenes, ex-militante do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) no
documentário Vou contar para meus filhos.316
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A transferência a Colônia Penal do Bom Pastor trazia a estas mulheres um pouco


de paz em meio a tanta violência. Como já foi dito anteriormente a ordem religiosa que
dirigia a Colônia não tinha caráter punitivo e dentro deste espaço os militares não
exerciam a prática da tortura. Para depor estas mulheres eram levadas ao DOPS, ou ao
DOI-CODI de Recife que funcionava no quartel do Quarto Exército, onde muitas vezes
voltavam a serem torturada.

O período em que as presas políticas ficaram na penitenciária do Bom Pastor vai


de 1969 a 1979, nestes dez anos, 24 presas passaram por esta. Em alguns períodos eram
apenas duas ou três presas políticas e estas conviviam com presas comuns. O grupo era
sempre diversificado, algumas participavam da mesma organização política contra a
ditadura, mas não se conheciam, passando a se conhecerem dentro da prisão.

O cotidiano na Colônia Penal se esmiúça entre companheirismo, solidariedade e


resistência entre as presas, que buscavam se reinventarem dentro das possibilidades
existentes. O fato de serem de partidos de esquerda não implicava homogeneização das
ideias, pois, estas eram de organizações diferentes, com ideias diversas, mas que na
busca pelo que acreditavam ser um mundo melhor. A partilha das mesmas dores,
causadas pelas torturas e pela reclusão, fizeram estas se unirem estabelecendo uma
potencialidade positiva de vida.
As marcas do período de prisão são mesclas de momentos de violência e
poéticas de vida, como traz Maria do Carmo Tomaz, ex-militante do PCR (Partido
Comunista Revolucionário), presa entre dezembro de 1973 a junho de 1975 e de junho a
dezembro de 1977, “quando eu estava entrando no Bom Pastor, estava passando a
novela “Carinhoso” e foi esse som que ficou gravado na minha memória, a música era
“Carinhoso” que era a música da novela” dentre tantos espinhos flores conseguiam
brotar. Nos dias de reclusão que se sucederam, se fazia necessário ocupar o corpo e a
mente, estas se revezavam nos cuidados com a limpeza e arrumação do ambiente.

Atividades como pintar, ler, conversar, praticar ginásticas e dar aulas, traziam
fugas mentais daquele espaço delimitado onde as mesmas estavam presas. As
resistências se faziam presentes das formas mais sutis possíveis, ao serem afetadas pela
reclusão a que estavam acometidas, pelos espaços limitados e pela violência a qual
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estavam vulneráveis, estas criavam e “criar é resistir”, segundo nos traz Deleuze (2004),
quanto a estas artes de criar dentro da Colônia Penal do Bom Pastor, nos conta Maria do
Socorro Diógenes:
“Quando eu entrei pro PCBR e entrei na clandestinidade eu já estava
no terceiro ano de faculdade e no curso de letras eu estudava português e
francês. E eu era apaixonada pela língua francesa. E na prisão você sabe,
você fica meio sem fazer nada, né... Sem uma atividade, então eu resolvi da
aula de francês pra elas, então eu ensinava, treinava conversação, né.”

O discurso central trazido pelo documentário nos remete à história dos


sobreviventes do holocausto ocorrido na Segunda Guerra Mundial, onde a memória e o
esquecimento travavam campos de batalhas mentais e ao mesmo tempo precisam um do
outro para existir como na fala de Flávia Schilling 317:
“Pois nada mais difícil que trabalhar com as memórias: incompletas,
coletivas, mutantes. Campo de luta constante. Nada mais fácil do que dizer:
deixe para lá, esqueça, viva o presente: o passado não existiu, tudo é apenas
presente. Viva o presente plenamente, esqueça o passado e esqueça,
principalmente, que pode haver algum futuro de repetição do medo. O
mandato é esse: esqueça. Daí deriva que lembrar, o ato de lembrar, o gesto de
lembra é uma das formas contemporânea de resistência.”

Desta forma, presente e passado se cruzam, o que é lembrado e contado tem um


porquê de estar sendo feito, trata-se de contar para as novas gerações um período
obscuro e por muito tempo silenciado. É o medo do desconhecimento de uma parte da
história do país, que faz com que muitas destas mulheres venham a público narrar suas
histórias e reassumir o papel de militante que outrora fora contra o sistema político
instalado no país e no momento de suas narrativas se põe contra a possibilidade de uma
repetição do passado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tais abordagens, o cinema entra como um meio para a captação de
memórias, sendo uma das formas mais democráticas e eficazes de popularizar as
narrativas sobre os acontecimentos do período da ditadura civil-militar.
A memória em seu movimento entre a necessidade de lembrar, para contar para
seus filhos, como traz o título do documentário, transmitir as vivências e as lutas para as
futuras gerações, de modo a não deixarem que no país se instale outra vez um sistema
político que cesse da população o direito a cidadania e que use da violência como forma
317
Este trecho encontra-se presente na apresentação da Terceira parte do livro da autora Susel Oliveira da
Rosa, Mulheres, ditadura e memória.
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para se instalar e permanecer no poder. E em contrapartida necessidade de esquecer


mesmo que por momentos, para conseguir dar continuidade à vida, sem amarguras ou
julgamentos.
Através das entrevistas podemos perceber o quanto estas mulheres se
reinventaram como cidadãs e como mulheres. Buscando o mundo com mais afeto,
solidariedade e estabelecendo novas formas de lutar pelo que acreditam ser um mundo
melhor e mais justo.
REFERÊNCIAS

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tempo e espaço. MOUSEION, vol. 3, n.5, Jan-Jul/2009. p. 35-67.

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memória e reparação coletiva para o Brasil. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/nph/arquivos/Projeto_Marcas_da_Memria_-_TEXTO.pdf. Acesso:
02/02/2014.
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Fundação Getúlio Vargas. Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC). Disponível em:
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s_de_base. Acesso 02/02/2014.

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representações sociais no cinema. (Org.) _____ e BARROS, José D’Assunção. 2ª ed.
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ser triste para ser militante”. São Paulo, Intermeios, Fapesp, 2013.

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Feminina do Recife: dinâmica e compreensão do perfil da mulher no cárcere.
(Monografia), Faculdade Integrada do Recife. Direito Penal e Segurança Pública, 2009.
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SOIHET, Rachel e PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das


mulheres e das relações de gênero. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27,
nº 54, p. 281-300, 2007.
Vou Contar para meus filhos. (Brasil, 2011) Direção: Tuca Siqueira. Produção:
Hamilton Filho, Luisa Malu. Roteiro: Tuca Siqueira. Distribuidora: Cabra Quente
filmes. Gênero: Documentário. Duração: 24 min.
WOLFF, Cristina Scheibe. Feminismo e configurações de gênero na guerrilha:
perspectivas comparativas no Cone Sul, 1968-1985. In: Revista Brasileira de História.
São Paulo, v. 27, nº 54, p. 19-38, 2007.

PENSANDO NA DITADURA SOB OS OLHARES DA MODA: ZUZU ANGEL E


SUA MODA-PROTESTO.
Iranilson Buriti de Oliveira318
Stephanie Dianny Pereira de Araújo319
Thalita Mariana Moura Ribeiro320

RESUMO

A época da Ditadura Militar Civil destaca-se dentre as lutas democráticas, as injustiças e


as dores morais, mentais físicas, também a resistência. Neste artigo especificamente
analisaremos a resistência simbólica feminina, através do desfile protesto elaborado por
Zuzu Angel que por meio da moda e das modalidades da beleza, deu visibilidade à
318
Professor Associado II da Universidade Federal de Campina Grande. Possui dedicação exclusiva da
UFCG. Foi coordenador do Curso de Mestrado em História da UFCG. Faz parte do quadro de
avaliadores institucionais e de curso do BASIs/INEP/MEC. Autor de livros didáticos na área de História.
319
Graduanda do curso de Bacharelado em História pela Universidade Federal de Campina Grande;
Integrante do grupo de estudo "História das Práticas e Saberes Médicos". - LATTES/UFCG.
320
Graduanda do curso de Bacharelado em História pela Universidade Federal de Campina Grande;
Integrante dos grupos de estudos "Laboratório de Pesquisas em Urbanidades" e "História das Práticas e
Saberes Médicos". - LATTES/UFCG.
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questão dos horrores viabilizados pela catástrofe da Ditadura que matou seu filho e logo
mais supostamente também a mataria.

Palavras-Chave: Ditadura; Zuzu; Moda-protesto.

ABSTRACT

The period of Civil Military Dictatorship stands out among democracy fights, injustices,
moral, mental, physical pain and also the resistance. In this article we will look
specifically the woman's symbolic resistance trough the parade protest prepared by
Zuzu Angel that through fashion and modalities of beauty, gave visibility to the issue of
horrors enabled by the catastrophe of Dictatorship that killed his son and soon also
supposed to kill her.
Key-words: Dictatorship; Zuzu; Fashion protest.

Zuzu – Uma mulher entre tecidos, dor e injustiças.


Em meio a um turbulento momento da história brasileira, que foi a Ditadura
Civil Militar, entra em cena uma mulher de figura peculiar, reinventando a ideia de
moda vinculada com as questões políticas e sociais, que assolavam a trajetória
brasileira. Mulher essa, que se chamava Zuleika de Souza Netto, nascida em Minas
Gerais, mãe de três filhos (Stuart Edgard Angel Jones, Hildegard Angel e Ana Cristina
Angel Jones), divorciada de um casamento com um norte-americano de nome Norman
Angel Jones e que tinha como característica um dom especial: a arte e costura.
Tendo como lugar de ascensão profissional o Rio de Janeiro, Zuzu Angel, como
era carinhosamente chamada, costurava sob os reflexos da Alta-Costura. Porém, as
vestimentas criadas por ela não copiavam desta Alta-Costura estrangeira, como é o caso
das costuras vindas de Paris, mas imprimia em suas artes caracteres que representavam
seu país, bordados voltados á temáticas da flora e fauna brasileira, assim como o
cangaço, grande característica no Nordeste brasileiro.
Zuzu Angel teve a properidade de sua moda em um momento que o Brasil
estava passando por um processo de recrudescimento do Regime Militar no Brasil. A
estilista, que com o tempo passou a ter sua arte reconhecida no exterior, não era muito
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atenta à realidade da situação política e social que o Brasil passava em plena ditadura.
Porém no ano de 1971 em plena ascensão do governo do presidente Emílio Garrastazu
Médici (1964 a 1974), que teve por característica a criação do Órgão Repressivo a
grupos de Esquerda, do também, Serviço Nacional de Informação (SNI), do
Departamento de Ordem Política e Social (Dops), como do Departamento de Operações
Internas e Centro de Defesa Interna (Doi-Codi), ou seja, os “porões de ditadura”, em
que todos se valiam da tortura, tanto psicológica como física, dos presos detidos por
eles, a vida de Zuzu teve uma reviravolta bastante significativa. Após o
desaparecimento do seu primogênito, Stuart Angel, militante do Movimento
Revolucionário 8 de outro ( MR-8), passa a ser uma anti-militarista ferrenha.
A forma pela qual Zuzu Angel usa para protestar, e reivindicar a angustia que
passava, foi refletida em seus desfiles e coleções que tinham a marca de protesto com
sua expressão de agonia e pânico, por não saber do paradeiro de seu filho. Através de
um telefonema anônimo, Zuzu fica sabendo que seu filho havia sido morto pelos
militares do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) e que o tinham torturado na
Base Aérea do Galeão. Saber se seu filho estava vivo ou morto passa ser sua principal
meta desde então.
Para saber o paradeiro de seu filho, Zuzu utiliza-se de todos os recursos
possíveis: peregrinação em órgão públicos específicos de poder, indagações a generais e
outros integrantes do regime, apelos a pessoas de destaque no Brasil e no exterior (pelo
fato de seu Stuart possuir dupla nacionalidade, sendo filho de um norte-americano com
uma brasileira), apelos a anistias internacionais. Quando, por um telefonema de Alex
Polari Alverga, companheiro de seu filho na prisão, Zuzu recebe a verdadeira
confirmação da morte de seu filho, onde foi torturado até a sua morte.
Utilizar-se da moda como forma de reivindicar as questões políticas e sociais de
um meio, foi uma forma inovadora, cuja a qual ninguém havia usado desde então. A
mensagem que Zuzu vinha trazer, com o seu desfile de 1971 em Nova York (que ficou
conhecido como o Desfile Protesto) na casa do cônsul brasileiro, teve como principal
questão a oposição ao Regime Militar.
Sua coleção, que teve o tema do Desfile Protesto, passou a se chamar:
“Internacional Dataline Collection III – Holiday and Resort”. Desfile esse que, como
mencionamos acima, foi em 13 de setembro de 1971, na casa do cônsul brasileiro em
Nova Iorque. A nossa estilista trazia em suas obras a sua dor e angustia em expressão de
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criatividade artística, ao elaborar vestimentas de constatação política ou de crítica,


denunciando o regime administrativo que dominava o Brasil, com suas práticas e
torturas e represálias intensas.
Assim, há a desmistificação de que a moda é algo alienado, abrindo uma nova
possibilidade de vestuário e moda servindo de manifestação política e ideológica.
Interessante, pois, o fato que Zuzu faz de suas obras a tela para seus protestos, em que
seus bordados traziam a dor de uma mãe que não tinha o corpo de seu filho para ser
velado, as faixas pretas que circundavam as cinturas de suas modelos, representava o
luto de um mãe que perde seu filho.
Os pássaros de seus bordados, que antes eram livres e coloridos, agora estavam
engaiolados. Todos que estavam presentes em seu desfile ficaram impressionados com a
realidade vivida por Zuzu. O desfile se faz notar em vários jornais internacionais da
época. Porém, devido à censura, nenhuma das informações de cunho político chegam a
território brasileiro. Havia, apenas, menção as questões sobre moda e estilo de Zuzu.
A questão da moda, como meio de personificar questões relacionadas a
mudanças políticas e sociais, nos faz lembrar a subjetividade do corpo feminino como
vetor de uma resignificação ao longo da história, trazendo que a beleza sempre foi algo
que mexeu com a questão da moda, pois “a beleza está para o feminino assim como a
força está para o masculino, atravessa séculos e as culturas”. (SANT’ ANA, 2002)
A moda sempre esteve vinculada com a ideia de beleza, é para tanto que no
século XVII vemos o surgimento de aparelhos corretivos da postura, que sugere uma
ótima posição estrutural, e caracteriza-se em ser um instrumento de ortopedista. A
exemplo desses aparelhos corretivos temos as panóplias corretoras, que se mostram
como sendo parte integrante da vestimenta cavalheiresca, e de correção estrutural:
“A primeira vista, o instrumento corretor possui somente virtudes
– de ‘aliviar’ e de ‘ajustar’ – funcionando no sentido de prolongar
o gesto que ajuda a restituir alguma estética perdida. Ele remete a
uma tática corolária de sua sutileza: dispositivo encarregado de
retificar ou de sustentar estruturas disformes, ele supõe uma
referencia normativa” 321

321
VIGARELLO, Geoges. Panópilas Corretoras. Balizas para uma história. In: Políticas do Corpo:
Elementos para uma história das práticas corporais. 2,e.d- São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
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Fazendo esse pequeno referencial da moda no período do século XVII é


perceptível que ela, a moda. sempre esteve ligada a questão da estética e dos bons
hábitos. Porém, em pleno período de Regime Militar no Brasil, com uma sociedade que
ainda respirava ares de conservadorismo, podemos destacar mulheres que iam de
encontro a ideais, como é o caso de Zuzu Angel e seu modo de produzir suas
vestimentas.
As cores eram intensas, as estampas eram cada vez mais evidentes, sempre
olhando por um lugar nacionalista, evidenciando a cultura brasileira e o que se tinha de
mais belo nela. Interessante pensar que Zuzu era uma mulher que refletia seus
sentimentos naquilo que ela produzia, como foi o caso do momento da morte de seu
filho e seu Desfile Protesto. Mas havia outras mulheres que traziam em suas
vestimentas, em sua maquiagem, sua ressignificação daquilo que era belo.
“A partir dos nos 60, uma imagem começa a se tornar frequente
nas revistas femininas: aquela de uma bela mulher sob a ducha,
seminua, olhos fechados, mãos e braços envolvendo seu próprio
corpo, sugerindo o prazer de estar consigo.”322
As revistas que traziam os conselhos de beleza eram defensores dessa suavidade,
e o prazer do embelezamento. Os manuais de embelezamento começavam a serem
escritos por aqueles considerados novos profissionais da beleza: as modelos, com
referencias àquelas vinda do exterior, esteticistas e esportistas. Tinha-se menos enfoque
com a dignidade moral, e tudo se podia em nome da beleza e bem estar. Sendo assim, “é
preciso conhecer explorar, tocar o próprio corpo, com amor e respeito, para torná-lo
autêntico e natural” (SANT’ANA, 2002). Mas como fazer tudo isso em meio a uma
sociedade que ainda se mantinha conservadora, e em um sistema de Regime Ditatorial?
Artistas á exemplo da Marilyn Monroe, com sua sensualidade a flor da pele, de
curvas generosas e lábios provocantes, e a famosa Brigitte Bardot, com seu jeito
escandalosamente sensual na maneira de se vestir e comportar, viriam a influenciar a
mulher daquela época, inclusive as mulheres brasileiras.
Tendo essa perspectiva em mente, de progresso e de modernização a qual
compunham a história brasileira da época. Pensaremos aqui como de maneira singela

322
SANT’ ANA. Cuidados de si e embelezar feminino: Fragmentos para uma história do corpo no Brasil.
In. Políticas do corpo: Elementos para uma história das práticas corporais. 2,e.d- São Paulo: Estação
Liberdade, 2005.
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Zuzu inovou, trouxe à mulher (não só a brasileira, visto que a estilista era de plenitude
internacional) novos pensamentos referentes ao modo de se vestir: que seria muito mais
sensual, acompanhando o estilo das artistas aqui mencionadas, e posteriormente, com
uma reflexão, inclusive, política. Para tanto fora necessário um modo de produzir moda
diferente, de chamar a atenção de suas espectadoras e em detrimento à Ditadura (que é
nosso enfoque): se fazer entender.
Uma análise historiográfica referente aos olhares de Zuzu Angel.
Neste artigo, pensamos a permanente e inquietante interrogação sobre a
possibilidade de ir do discurso ao fato, visto que temos como pretensão analisar o
discurso da Zuzu Angel relativo às referências eventuais de perversidade e injustiças
que preencheram a história da Ditadura Civil Brasileira, possuindo como fonte a análise
da indumentária planejada pela estilista como forma de representar sua indignação
perante o vivido, o que obriga a pôr em causa a ideia de fonte enquanto testemunho de
uma realidade e de que se esta seria mesmo instrumento de mediação.
Visto que a “leitura é prática criadora, atividade produtora de sentidos
singulares, de significações de modo nenhum redutíveis às intenções dos autores de
textos” (CHARTIER, 1990, p. 123). E levando-se em consideração que a moda e,
posteriormente, a indumentária é pensado aqui neste artigo como um texto, visto,
sentido, vivido e desejado: Zuzu Angel teve como intenção principal a de produzir
sentidos em suas peças, pelo qual se faz necessário para analisar a realidade pensada por
ela através das suas representações de múltiplos sentidos. De chamar a atenção de seu
público alvo que eram as autoridades políticas, da imprensa e, da população para
atenderem à Ditadura que estava havendo no país, mas que nem todos participavam
dela, pois permaneciam ignorantes haja vista que percebemos através do trabalho
historiográfico hoje tão bem elaborado referente a época que inclusive a própria mídia
estava sendo controlada.323
Porém, o mundo da leitura não é feito de liberdade e neste período
especificamente a historiografia o apresenta com a liberdade ainda mais limitada. A
apropriação resulta do encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Os textos

323
Para mais informações ler: BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi,
2009. 176p.
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não possuem um sentido estável, isso é certo. Contudo, seu significado é construído no
terreno da negociação entre a proposição do autor e apropriação do leitor.
Tendo em vista esta perspectiva, pensamos a simbologia presente nos modelos
de Zuzu Angel como um meio de atingir a apenas aqueles que lhes era desejável, pois
não eram todas as camadas das população que tinham acesso ao vestuário elaborado por
ela, assim como,através da análise das fontes que nos foi permitida, dentre as quais a
monografia de Carla Lacerda324, pudemos perceber que os militares já estavam se
colocando em observação perante as atitudes da estilista, porém não quanto a referência
de seu trabalho, visto que não parecia uma ameaça. Daí que este seria um ótimo método
para ela reivindicar e de ser ouvida.
Portanto, nossa análise apoia-se na interpretação de Chartier, a qual diz que para
“cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou
existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado aos
textos de que se apropria” (CHARTIER, 1996, p. 20). Neste sentido, era plausível que
os militares e aqueles que estivessem associados a estes não entendessem de moda e
posteriormente deixassem passar a informação livremente sem perceber que havia
denúncia naquela. Haja vista que como dito, estes militares já haviam colocado Zuzu
em observação, pois ela tentou várias vezes denunciar a Ditadura, porém sem muito
sucesso, então pensou ela utilizar daquilo que lhe proporcionava o pão de cada dia, seu
trabalho, como meio para atingir seus objetivos tão amplamente já difundidos nesse
artigo.
Como já possivelmente visualizado, estamos pensando as ideias de Zuzu
enquanto protesto através de alguns conceitos que são fundamentais para o nosso trajeto
teórico-metodológico, dentre os quais iremos dialogar com os pensamentos
historiográficos de Roger Chartier, quanto ao que se diz respeito à representação, leitura
e apropriação.
Como diz Chartier, os textos não têm sentido estável, universal, imóvel, mas são
construídos na negociação entre uma proposição (do autor) e uma recepção (do leitor),
no encontro entre as formas e os motivos que lhes dão sua estrutura e as competências

324
LACERDA, C. D. L. MODA COMO FORMA DE PROTESTO EM DESFILE DE ZUZU
ANGEL: Nova York, setembro de 1971. 2011. 51f. Monografia (Especialização) – Universidade Federal
de Juiz de Fora. Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes e Design. Juiz de Fora, 2011.
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ou as expectativas do público que deles se apropriam. É pertinente destacar que a leitura


tem uma história e que a significação dos textos depende das “capacidades, das
convenções e das práticas de leitura próprias às comunidades que constituem, na
sincronia ou na diacronia, os seus diferentes públicos” (CHARTIER, 2006, p.35).
Nesse lugar metodológico, tanto os textos quanto os discursos não são vistos
como objetos que revelam uma realidade que se encontra oculta sob eles, mas
constituem, eles próprios, modos de expressão da linguagem e do pensamento, sistemas
construtivos das realidades, sendo, portanto, produtos materiais da mediação entre as
realidades pessoais e sociais.

E para dar conta da circulação de informação posterior ao lançamento da


coleção, lançamos mão do que Chartier denominou de apropriação325 dos discursos, no
sentido hermenêutico, ou seja, a apropriação consiste no que os leitores

[...] fazem com o que recebem, e que é uma forma de invenção, de criação e
de produção desde o momento em que se apoderam dos textos ou dos objetos
recebidos. Desta maneira, o conceito de apropriação pode misturar o controle
e a invenção, pode articular a imposição de um sentido e a produção de
novos sentidos” (CHARTIER, 2001b, p.67).

A construção de sentidos das modalidades do ato de ler e de escrever é resultante


do encontro de dois mundos: o “mundo” do texto e o “mundo” do leitor. Portanto, o
conceito de apropriação possibilita ao leitor, em grande medida, interpretar a
multiplicidade de sentidos que ocorrem na recepção de um discurso, representando o
intervalo entre o objeto “original” e as suas reescrituras, as suas ressignificações, o que
permitiria ao leitor pensar o que todos aqueles símbolos estavam querendo dizer?
Chartier define o conceito de apropriação a partir do objetivo de elaborar
[...] uma história social das interpretações, remetidas para as suas
determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e
inscritas nas práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo
atenções às condições e aos processos que, muito concretamente, determinam
as operações de construção do sentido (na relação de leitura, mas em muitas
outras também) é reconhecer [...] que as categorias aparentemente mais

325
Roger Chartier tomou de empréstimo o conceito de apropriação de Michel de Certeau.
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invariáveis devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias


históricas. (CHARTIER, 1989, p.27)
Tendo esses pensamentos em mente, Zuzu Angel pretendia para seus leitores
que fosse possível num futuro próximo que eles “inventaram, se (re)construíram,
(re)educaram o seu olhar, se lançaram numa viagem em busca de novos significados
tanto para o texto lido quanto para si, pois cada ato de leitura é, para o leitor, um
momento de 'criação secreta e singular'” (CHARTIER, 2001, p.214).
Ou seja, segundo as fontes que eram as indumentárias elaboradas pela estilista e
análise delas segundo o pensamento crítico que envolve o de Chartier: Entendemos que
as intenções de Zuzu eram de representar através da Coleção International Dateline
Collection e de alguns símbolos presentes nela, a sua história de dor, além de que com a
leitura e entendimento do público quanto aos estes símbolos pudessem se sensibilizar e
partilhar um pouco com ela deste sentimento e, assim apropriassem destas informações
e as perpetuassem em conjunto numa possível liberdade futura maior, aquilo que tanto a
estilista lutou, e morreu lutando, para expressar.

Pensando o Desfile-Protesto – Análise da resistência simbólica feminina.


É a partir da análise da coleção intitulada International Dateline Collection que
foi apresentada ao público estadunidense em seu Desfile-Protesto que gostaríamos de
formular as propostas e hipóteses essenciais que estão na base de um trabalho
empenhado, sob diversas formas, na história da resistência brasileira.
Ao nos depararmos com a moda-protesto de Zuzu Angel, vemos uma moda
repleta de ressignificações, mostrando que a vestimenta também pode ser usada como
forma de protesto, e símbolo de uma angústia. Com a fotografia mostrada abaixo, que
foi justamente do desfile ocorrido em Nova Iorque nos Estados Unidos, percebemos que
a modelo traz uma vestimenta que evidencia a cor preta, nos chamando a atenção a gola
do vestido, a faixa que circunscreve sua cintura e a faixa em seu braço, todas da cor
preta.
Além do preto, outra cor preponderante é o branco, formando o jogo do xadrez.
O luto nessa imagem é exposto aos espectadores, mesmo que ninguém conheça a
história de Zuzu, e sua tristeza com a morte de seu filho. Lançando aos espectadores,
ditos aqui enquanto leitores de uma representação simbólica de dor e injustiça, a sua
história e a da Ditadura.
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Ilustração 1 – Desfile da coleção International Dateline Collection, de 1971. Crédito: Acervo


Instituto Zuzu Angel.

Também podemos perceber que a modelo desfila de modo suave, com uma
maquiagem leve, sem muitos excessos, o que passa a ser um diferencial na moda de
Zuzu, em que as cores se faziam mais que presentes, mas nas roupas, chamando a
atenção dos espectadores especificamente para este local.
Outra grande questão que podemos analisar nessa foto, é a ousadia das pernas de
fora, e do decote bastante profundo (para os padrões morais da época). Observemos
também, que esse tipo de vestimenta, com um decote avantajado e a saia acima do
joelho, era uma inovação nas décadas de 60 a 70, em que a “libertação do corpo sedutor
se faz bastante presente nesse período, como se a mulher desse momento pretendesse
passar uma mensagem”. (SANT’ANA, 2002).
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Ilustração 2 - As baianas de Zuzu Angel, da coleção International Dateline Collection, de 1972 -


Crédito: Acervo Instituto Zuzu Angel.
Nesta segunda foto vemos a moda protesto nos cintos repletos de patuás,
medalhas e peixes (pensamos este último quanto a sua referência ao cristianismo, visto
que o peixe é um símbolo dessa religião). Ou seja, as vestimentas que Zuzu produzia
antes dos ocorrido com seu filho eram recheada de cores vibrantes, babados, balanços e
se caracterizava em ressaltar a imagem do povo brasileiro, sua cultura, sua fauna e flora
e, mesmo após a morte de Stuart, ela não esqueceu ou deixou de lado essa identidade
brasileira, ela aperfeiçoou para seus novos objetivos: para mostrar a todos como estaria,
segundo sua visão, o Brasil ditatorial.
Voltando a análise da foto, percebemos que as modelos estão com a “barriga de
fora”, e os decotes são também aproveitados, sem tornar a vestimenta algo vulgar e
chamativo para o promiscuo.
Se pensarmos numa perspectiva da historiografia da moda antes mesmo ao
período pelo qual estamos analisando já podemos entender um pouco esse novo quadro
dito moderno que as roupas da Zuzu traduziam, e que por exemplo, o próprio Eric
Hobsbawm pensou um pouco do que foi o desenrolar da moda nos anos de 1880 aos
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pré-1914 (como ele mesmo menciona). Quando ele diz que “o desaparecimento das
armaduras e tecidos e barbatanas que encerravam o corpo feminino em público já era
antecipado pelas roupas soltas e flutuantes, popularizadas no final do período, pelas
vogas do esteticismo intelectual da década de 1880, do art-nouveau e da alta-costura
pré-1914” (HOBSBAWN, 1988).
Essa inovação no conceito de moda, como podemos analisar nas palavras de
Hobsbawn, não foi algo repentino. Como se de uma hora para a outra, os conceitos
formadores da noção de vestimenta obtivessem seu progresso. Foi algo gradativo, e o
mais importante é que essa “modernização” se deu através da mudança da condição
feminina ao longo dos tempos. Em momentos que as mulheres foram deixando o espaço
privado, da vida na casa se restringindo ao cuidado com a família, para o espaço
público, na sua ida ao mercado de trabalho e sua inserção na vida pública.326
A moda deixa de ser um lugar de “silêncio” para torna-se um agente falante.
Uma voz feminina, uma demonstração do anseio da mulher de não ser sempre chamada
de: “sexo frágil” ou “o segundo sexo” como é dito nas falácias populares. Ela, a moda,
perpassa por caminhos da fala feminina.
E assim fez Zuzu, uma mulher que não só se utilizou da moda para mostrar essa
mudança no cenário feminino. Mas também mostrou a sua indignação e repulsa á um
Estado Ditatorial e despótico, encharcado de sangue e mortes em suas mãos. Onde uma
de suas mortes foi a de seu filho.

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GT 6

ENTRE LA MEMORIA Y LA HISTORIA: POLÍTICAS PÚBLICAS


EN TORNO AL PASADO RECIENTE EN URUGUAY

Ana María Sosa González


Pós doutranda UFPel327

327
Doctora y Magister en Historia por la Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul,
PUCRS. Profesora post-doctoranda del Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural da Universidade Federal de Pelotas –UFPel- Brasil, por el Programa Nacional de Post Doctorado
Institucional de la Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -PNPDI/CAPES-.
Desenvuelve el Proyecto sobre "Políticas Públicas de Memoria: ciudadanía y usos del pasado en el
ámbito del Mercosur", junto al sub-proyecto "Memoria y Políticas de Memoria: Patrimonialización y
memorias traumáticas en el ámbito del Mercosur (1984-2011). Curriculum completo: http://lattes.cnpq.br/
7567936924117809
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anasosagonzalez@gmail.com

RESUMEN

En los últimos años, se vienen generando un conjunto de acciones que reivindican el


derecho a la memoria y la lucha por la verdad en los países latinoamericanos que se
vieron afectados por la violación sistemática de los derechos humanos durante las
dictaduras de las décadas de 1960, 1970 y 1980. Recientemente estos Estados, y entre
ellos Uruguay, en respuesta a las diversas reivindicaciones de sectores políticos y de
organizaciones de la sociedad civil plantean una serie de políticas públicas de memoria
con la finalidad de dar a conocer los dolorosos episodios de las dictaduras y concientizar
a la población sobre los mismos.
A través de esta presentación se pretende generar una discusión sobre lo que implica
trabajar con estas memorias dolorosas, cómo se construye la Historia y el relato
histórico testimonial en estos países a luz de un pasado que “no pasa” y una historia que
no todos reconocen propia.

Palabras clave: políticas públicas de memoria, pasado reciente, Uruguay.

Introducción
Trabajamos en este proceso de restitución simbólica,
en este presente que se hace historia con vínculos,
con relaciones, a sabiendas de que nuestros pasados
traen demandas que no caducan.
(SECRETARIA DE DERECHOS HUMANOS PARA EL
PASADO RECIENTE, 2013).
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Así invitaba en diciembre de 2013 la Secretaría de Derechos Humanos para el


Pasado Reciente de la Presidencia de la República Oriental del Uruguay a la
presentación de su informe anual de actividades correspondiente a la gestión 2013.
Esta invitación recoge el espíritu de las propuestas e iniciativas que desde el
Estado se vienen implementando en relación a los Derechos Humanos y especialmente a
la memoria del pasado reciente en Uruguay.
En este ámbito, del mismo modo que otros países latinoamericanos se
encuentran re-visitando su historia vinculada al pasado reciente, específicamente, a los
episodios relacionados con las Dictaduras cívico-militares de la región, en los años
1960, 1970 y 1980, Uruguay ha fortalecido su compromiso con la memoria de dicho
pasado a través de una serie de políticas públicas de memoria.
Por políticas de memoria se entiende “las formas de gestionar o de lidiar con ese
pasado, a través de medidas de justicia retroactiva, juicios histórico-políticos,
instauración de conmemoraciones, fechas y lugares, apropiaciones simbólicas de
distinto tipo”. Aunque también comprende las “’grandes ofertas de sentido temporal’, o
las narrativas más generales que proponen marcos institucionales” y al hacerlo
construyen temporalidades, marcando continuidades y rupturas. Estas “políticas de
memoria no son sólo las políticas oficiales, aunque estas tengan mayor capacidad de
brindar marcos colectivos para la sociedad en su conjunto, sino también aquellas que los
diferentes actores despliegan en el espacio público” (RABOTNIKOF, 2007, p. 260-
261).
De este modo en Uruguay, el Museo de la Memoria, los memoriales328 y las
marcas de memoria vinculadas a episodios de la dictadura, se entienden como políticas
de memoria en la que no es sólo la acción del Estado la que las concreta sino que va

328
En Uruguay, la construcción de estos espacios o lugares de memoria comienza en 2001, cuando se
produce la Inauguración Oficial del Memorial en Recordación de los Detenidos Desaparecidos, en el
Parque Vaz Ferreira, ubicado en el Cerro de la capital: Montevideo (sobre la ladera del punto natural más
alto de la ciudad), un barrio obrero de larga historia y tradición militante. Un dato interesante es que dicha
acción se produce bajo el gobierno de los llamados partidos tradicionales o históricos, en este caso
durante la presidencia de Jorge Batlle (del Partido Colorado), siendo además el primer presidente que
reconoció desde el Estado la comisión de delitos violatorios de los derechos humanos. El memorial
construido en la pendiente del cerro con vista a la bahía del Rio de la Plata, es de hormigón, acero
inoxidable y vidrio, en cuyas paredes se colocaron 174 nombres de uruguayos desaparecidos durante la
dictadura. La obra se dispone de tal manera que es posible caminar entre los muros vidriados dejando al
visitante ante el silencio y la reflexión. Para obtener más información, ver:
http://municipioa.montevideo.gub.uy/node/171
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acompañada de una intensa actividad (en algunos casos sostenidas por muchos años) de
organizaciones sociales que reivindican dichos espacios/marcas, instituyéndolos.
Se trata de un proceso de (re)-construcción pública de dicha memoria –
generalmente de ritmos variables y conflictivos-, que se materializa en la instalación de
memoriales y museos, junto a otras acciones tales como reapertura de Archivos,
creación de Comisiones (para la Paz, de Derechos Humanos, Comisiones Especiales,
etc.), que documentan, recuerdan y materializan episodios claves de esos sucesos,
contribuyendo a la patrimonialización de esa memoria, en el marco de determinadas
políticas públicas que se orientan hacia la defensa del “derecho de memoria”, de los
derechos humanos y de la democracia. Con ellos se busca promover la reflexión pública
sobre los procesos históricos que se narran y generar intercambios que fortalezcan la
promoción de los derechos humanos y civiles. Por otra parte, lo que se da a conocer, se
muestra y evoca a través de diversos tipos de testimonios representa una memoria
traumática, un deseo de concientizar, que obedece al mismo tiempo a sucesivos
reclamos de diversas organizaciones y sectores de la población y a acciones que el
Estado uruguayo en los últimos diez años viene emprendiendo a través de una serie de
políticas públicas en torno a ese pasado.
Revisitar un pasado –antes silenciado o negado- no es tarea fácil, ni para la
sociedad que se lo propone, ni para los gobiernos que deben lidiar con dichos procesos
siempre acompañados de conflictos, intereses, juegos políticos, verdades que no han
sido develadas entre otras cosas.
En el Cono Sur, las dictaduras de las décadas de 1960, ’70 y ’80 representan un
quiebre, son un divisor de aguas de tiempos que aún no se han superado. Las
organizaciones civiles y personas víctimas de violaciones a sus derechos en aquel
período, continúan reivindicando sus derechos, reclaman verdad y justicia, reparaciones
(simbólicas o económicas), realizan nuevas denuncias, solicitan investigaciones. Por
esta razón en Uruguay se creó una Comisión Especial para recibir las denuncias del
período, que
desde 2010 resolvió 366 casos y otorgó 277 reparaciones económicas a
familiares y víctimas de terrorismo de Estado. Entre 2010 y lo que va de
2013, la Comisión Especial otorgó 318 reparaciones simbólicas a través del
documento, mientras que otras 161 personas fueron reparadas en salud. Hasta
la fecha se llevan resueltos 366 casos. Durante ese período las reparaciones
económicas totalizaron 277: 78 niños nacidos en cautiverio o permanecidos
detenidos con sus padres más de 180 días, 148 familias de víctimas fallecidas
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o desaparecidas, 45 personas que sufrieron lesiones gravísimas y 6 niños


desaparecidos. (El País, 10 de enero de 2013).

Por otra parte, desde los años 1980, un importante número de investigaciones
sobre el pasado o “historia reciente” viene adquiriendo importancia a través de los
procesos de testimonialización que se vienen suscitando en sociedades con experiencias
traumáticas recientes. De este modo, la historia testimonial gana espacios en el ámbito
académico (FERREIRA y SOSA, 2012).
Asimismo, las investigaciones realizadas desde diversas áreas del conocimiento
de las ciencias sociales han contribuido a estos procesos de reivindicación memorial y,
en varios casos con las investigaciones que llevan adelante las Comisiones estatales.
Parece entonces, que están dadas ciertas condiciones sociales y políticas que han
puesto en marcha un proceso de reivindicación de memoria del pasado reciente, que
exige verdad y justicia, y por sobre todas las cosas su más amplia difusión por diversas
vías.
Así se produce un proceso de reconquista y reconstrucción de la memoria
silenciada en épocas de la dictadura, se genera una interesante oportunidad no solo para
los investigadores de esta temática, sino especialmente para que los propios Estados y
sus ciudadanos, comprendan y profundicen más aún sobre los complejos mecanismos
de construcción de memoria colectiva, así como también los de olvido colectivo,
permitiéndose una instancia de cuestionamiento a un pasado en que la violación
sistemática a los derechos humanos y el terrorismo de Estado es tomado como centro de
la cuestión, en medio de conflictos, disputas y “guerras de memoria”.
Con la asunción al poder en varios países de grupos opositores al régimen
dictatorial de entonces se viene procesando una serie de quebrantamientos de aquellos
“pactos de silencio”, lógicamente, obligando a hacer nuevos pactos, ya que en esta
selección se están silenciando otras memorias; tal como ha sucedido a lo largo de la
historia, se ponen acentos en unos aspectos dejando otros de lado, de acuerdo a
demandas sociales, pugna de grupos, intereses políticos, etc. (SOSA, 2011: 341)
Se produce entonces, una nueva valoración y discusión del pasado asumiendo
protagonismo otros actores político-sociales. Al mismo tiempo este proceso somete al
investigador a una responsabilidad y acción que no debe ignorar. El hecho de estar
trabajando con fuentes donde gran parte de ellas no habían podido ser explicitadas, y
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colocándolas en un lugar destacado fruto de un ambiente favorable y receptivo a los


testimonios otrora ocultos, le da un poder de acción, que deberá manejar con un gran
compromiso ético y académico ya que seguramente suscitará efectos que no podrá
detener, pero que sin embargo de alguna manera contribuyó a generar.
Por otra parte, el Centro Cultural y Museo de la Memoria –MUME-, los
memoriales y las marcas de memoria vinculadas a episodios de la dictadura, permiten
una visualización de episodios antes silenciados e incluso negados, al mismo tiempo
que difunde ciertos testimonios con propósitos concientizantes y reflexivos. En el caso
del MUME se presenta como una “nueva” institución a la que se le atribuye
significados, finalidad y usos nuevos en el edificio en el que se decide su instalación.
Esto implica que los espacios en los que se instalan los “museos de memoria”
adquieren significado no por su valor estético ni representativo para el conjunto de la
sociedad que lo eleva a esa categoría, sino por su intención de generar una
identificación, un conocimiento referido a un pasado silenciado, por trascender la
materialidad y propiciar la reflexión y toma de conciencia.
Asimismo, dichos espacios museales, memoriales y marcas de memoria,
contribuyen a un proceso de patrimonialización de las memorias dolorosas referidas a la
última dictadura, proceso entendido como la construcción de un discurso político que
intenta instituir la importancia de determinado bien, material o inmaterial (también
llamado intangible). Esto implica tener presente los principios básicos de la
construcción social del patrimonio, producto de los significados y valores atribuidos por
un grupo a un “llamado” bien cultural, considerado patrimonial por las cualidades
otorgadas. Significados que se nutren de memoria, de historia y de conflictos. Como
dice Llorenç Prats, (2005: 19-20) “se trata de la puesta en valor o activación” marcando
así la diferencia entre ambos conceptos, el primer término referido al valor, o acto de
valorar de una sociedad sobre determinado bien cultural, el segundo vinculado a la
dependencia que los procesos de patrimonialización tienen de los poderes políticos –
también públicos- y de la propia sociedad, en los procesos de negociación que confieren
valor patrimonial a un bien. Para Prats esa activación tiene que ver con los discursos
que dan base a esa selección de los elementos integrantes de la activación, el orden de
esos elementos (equivalente a la construcción de las frases del discurso) y la
interpretación, utilizada por el autor como “carácter meramente instrumental dentro de
un discurso pre-establecido” para diferenciarla de la interpretación misma que genera el
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discurso y direcciona la gestión patrimonial, en la cual los poderes siempre están allí,
definiendo el terreno y las reglas de juego. Para el autor son esos discursos la columna
vertebral de las activaciones patrimoniales por la gran importancia que tienen para el
poder político, en la medida que cumplan con el objetivo de alcanzar el mayor grado de
consenso posible para que parezca legitimado y conforme a la realidad socialmente
percibida (PRATS: 2005, 20-21).

Memoria e historia: la difícil tarea de trabajar con los testimonios del período
ditactorial.
Testimonios que aportan a la Historia, que representan memorias de distintas
características, que combaten el olvido a través de su difusión, contribuyen a dar a
conocer episodios silenciados al mismo tiempo que se intenta elaborar un relato,
unificador, coherente y de continuidad propia de la Historia como disciplina ocupada en
crear una narrativa que haga el pasado inteligible.
La memoria siempre fragmentada y pluralizada, se aproxima a la Historia por su
“ambición de veracidad” (Ricouer, 2000), pero la memoria no es la historia, sino objeto
de ella, siendo pasible de manipulación política e ideológica, y campo de disputas y
tensiones. Asimismo Paul Ricoeur (2000) cuestiona si no sería conveniente una
negociación entre la memoria y el olvido, advirtiendo la existencia de un período de
reserva a la espera de poder ser comunicado, al mismo tiempo que existe un olvido por
destrucción de los vestigios. De este modo, los archivos, las memorias, y en este caso el
testimonio, como denuncia específica de hechos sucedidos en determinado período, son
una manera de evitar no sólo la destrucción de los vestigios sino propiciar su difusión y
proponer medidas compensatorias de diversa índole a las víctimas de las acciones de los
derechos humanos cometidas por el Estado durante la dictadura.
El actual Decano de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de
la Universidad de la República –UDELAR-, el Dr. Álvaro Rico es quien dirige el
equipo de historiadores en las investigaciones que viene realizando el Estado a través de
la Secretaría de Derechos Humanos para el Pasado Reciente desde 2005. En entrevista
reciente Rico hace referencia a los trabajos publicados como resultado de dichas
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investigaciones, su impacto, su utilidad y las tensiones que ha generado la investigación


con los grupos de familiares de detenidos desaparecidos329.
En dicha nota explica que los cinco tomos de la investigación publicados hasta el
momento, cuentan con gran difusión y tienen libre acceso por internet, quedando a
disposición de todo público trabajos que comúnmente permanecen sólo para consultas
académicas. Además destacó que "si bien las investigaciones tienen el objetivo de la
verdad sobre el fenómeno de la desaparición forzada de personas, porque ese fue el
acuerdo con la Presidencia de la República, los resultados aportan más allá de las
desapariciones forzadas: aportan sobre el período dictatorial" (RICO, 2013). A lo que
agrega que con estas investigaciones se realiza una reconstrucción histórica del período
dictatorial
haciendo énfasis especialmente en la reconfiguración del Estado bajo
un formato dictatorial o autoritario; reconstruye la vinculación sobre el
aparato de Estado y las fuerzas de seguridad; reconstruye sobre la
lógica represiva de ese Estado, con datos que tienen que ver con la
infraestructura que sostuvo esa lógica represiva del Estado (desde las
sedes carcelarias para la prisión legal o clandestina de los detenidos
hasta la presupuestación que ese Estado requirió para el sostenimiento
de una política sistemática de represión); ilustra sobre el vínculo que
el Estado entabló con la sociedad en general, no solo contra los
opositores o luchadores; el sistema de vigilancia generalizado que el
régimen dictatorial uruguayo implantó durante 12 años y sobre el
exterminio físico de una parte de esa población militante, o grupos
opositores y clandestinos (RICO, 2013).

A este punto hay que agregar la dificultad que se le presentó al equipo al


comienzo de las investigaciones por la falta de fuentes, ya que las mismas además de
estar dispersas y fragmentadas en las diversas reparticiones del Estado, no todas las
instituciones estatales se mostraron dispuestas a prestar colaboración en un inicio, por lo
que Rico destaca como hecho sobresaliente el momento en que se entregó los archivos
de la Dirección Nacional de Información e Inteligencia (DNII, que depende del
Ministerio del Interior) a la Secretaría de Derechos Humanos para el Pasado Reciente de
Presidencia, cediendo su uso al equipo coordinado por Rico durante cinco años,
resaltando que este acto forma parte de la "voluntad política" que se sostiene desde 2005
cuando el Poder Ejecutivo, encabezado por el entonces presidente Tabaré Vázquez, les
dio el "privilegio" de habilitarles "de manera restringida una fuente documental como la
que representaba el archivo constituido desde la Comisión para la Paz" (RICO, 2013).

329
Ver: http://www.uypress.net/uc_46079_1.html
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Por otra parte Rico destaca "la relación del equipo con el uso responsable de la
información y con los funcionarios que custodian esa información" (RICO, 2013) y, en
ese sentido, el aprendizaje que supuso para el equipo trabajar con información
clasificada con criterios propios de la fuerza policial y militar, hacer uso de la misma,
manteniendo un régimen de confidencialidad.
A la pregunta que le realizan a Rico en la entrevista citada sobre si el tener
acceso a dichos archivos generó tensiones con el grupo de Madres y Familiares de
Detenidos Desaparecidos, contesta:

Es uno de los temas más difíciles... encontrar un punto de equilibrio,


considerando la sensibilidad y el lugar que cada uno ocupa. Nuestro
lugar como equipo universitario de investigación no es un término
medio, está en tensión permanente; pero no podemos ocupar ni el
lugar de la víctima o del familiar de la víctima, ni del Estado que
encarga la investigación. […] Hay que mantener un equilibrio
prudencial entre las distintas partes, para que la investigación tenga los
mejores resultados, entre los cuales está tener objetividad en el manejo
de la información y en la escritura de esta información (RICO, 2013).

Y luego agrega:

La exigencia de los familiares es entendible, es compartible y es


permanente. El familiar reclama que se le informe en primer lugar y
de manera completa la información que se posee y también reclama la
investigación realizada por ellos mismos, en una desconfianza -
entendible también- en la mediación efectuada por el profesional y
cómo este interpreta y concluye sobre esos datos. Sin duda, al
investigador se le escapa una parte de la trama, en especial la
vinculada a fechas, al funcionamiento de las organizaciones, a las
amistades y jerarquías dentro de esas organizaciones; y muchas veces
el familiar, que pudo haber formado parte de las organizaciones, se
considera 'mejor entendido' para interpretar lo que dicen los
documento. […] Para resolver de alguna manera esos puntos de
tensión con los familiares, nosotros informamos de manera regular
cuando ingresamos a un archivo, así como los avances que tenemos y
construyendo un vínculo informativo de ida y vuelta permanente
(RICO, 2013).

En este sentido se presentan situaciones delicadas, conflictos y tensiones que


demandan una posición clara por parte del investigador y una ética y cuidado particular
debido al tipo de información que maneja y a la existencia de personas directamente
involucradas (afectiva e institucionalmente) que aún viven, reclaman, sufren, dependen,
cuestionan y se ven afectadas por dichas informaciones.
Al mismo tiempo es de sumo valor contar con los testimonios orales tomados en
los primeros años al finalizar la dictadura (1985 y 1986) en que las víctimas y familiares
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investigaron e hicieron denuncias ante las comisiones parlamentarias, hasta votada la


Ley de Caducidad330, "testimonios orales que fueron por aquellos años las únicas
fuentes documentales sobre lo ocurrido en dictadura" (RICO, 2013) a diferencia del
momento actual en el que hay voluntad política de investigar y una mayor coordinación
entre los archivos regionales, lo que ha permitido otros avances y conocimiento al
respecto.
Por otra parte en la página electrónica de la Universidad de la República, se
expresan varias cuestiones de la especificidad y delicadeza de este tipo de investigación
histórica:

En un sentido amplio, estas investigaciones resultan peculiares en muchos


sentidos. Uno de ellos, es que sentó el precedente de ser la primera vez que un
gobierno de la República encomienda a dos equipos universitarios
(arqueólogos e historiadores) para que, sobre la base de documentos e
informaciones oficiales, investiguen los crímenes cometidos por el mismo
Estado en su pasado reciente, bajo dictadura. Esto no solo genera un
antecedente inédito en la materia sino que promueve una responsabilidad ética
que tiene que ver, entre otros aspectos, con la necesaria independencia
intelectual y técnica del equipo universitario en relación con las necesidades
gubernamentales y del poder político en general, el manejo responsable de la
documentación consultada, la confidencialidad respecto al trabajo y sus
resultados, la insistencia en la necesidad de revisar repositorios documentales
de origen militar, la necesaria preservación de la intimidad de las víctimas y de
sus familiares e, incluso, el cuidado en los usos del lenguaje y fotos para la
331
descripción e ilustración de situaciones traumáticas. […]

330
Es el nombre genérico con el que se la menciona habitualmente. La ley 15.848 de diciembre de 1986
de la Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado –nombre correcto de la misma- ha sido la gran traba
para llevar adelante las investigaciones y el proceso de reconstrucción histórica y de reparación a las
víctimas. En disconformidad con esta Ley se realizó una campaña de recolección de firmas para
derogarla. En abril de 1989, luego de que más de un 25% de la ciudadanía uruguaya habilitara con su
firma el plebiscito para derogar dicha ley, se llevó a cabo el referéndum, con el triunfo del llamado "voto
amarillo" (por el color de la papeleta) con un margen de 57% contra 43% a favor del “voto verde", lo que
significó no derogar la ley de caducidad, episodio que se repetirá en 2009, bajo la presidencia de Tabaré
Vázquez, cuando se vuelve a plebiscitar en las elecciones nacionales confirmando la vigencia de la ley:
47,98% votaron a favor de habilitar la enmienda para incorporar la anulación parcial de la ley a la
Constitución, la enmienda propuesta se dio por rechazada, ya que necesitaba más de 50% de los votos
emitidos para ser aprobada. En 2010 el Frente Amplio, partido de gobierno (que fuera prohibido durante
la Dictadura) presentó un proyecto de ley interpretativa de la Constitución que en los hechos anulaba los
artículos 1°, 3° y 4° de la Ley de Caducidad. La Cámara de Diputados lo aprobó con el voto favorable de
50 diputados del partido. En 2011 el proyecto de ley fue aprobado con modificaciones por el Senado, por
lo que fue necesario que volviera a la Cámara de Diputados donde, esa vez, no obtuvo los votos
suficientes para su aprobación definitiva. Finalmente el 27 de octubre de 2011, el Parlamento aprobó la
Ley N° 18.831 de restablecimiento de la pretensión punitiva para los delitos cometidos en aplicación del
terrorismo de Estado hasta el 1° de marzo de 1985, catalogando además dichos delitos de lesa humanidad.
A esto hay que agregar que en 2011 la Corte Interamericana de Derechos Humanos solicita a Uruguay
eliminar los obstáculos que impiden las investigaciones y enjuiciamientos entendiendo que se violaban
los acuerdos de Derechos Humanos firmados por el país.
331
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
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Memoria e Institucionalidad en Uruguay: los aportes desde la investigación


histórica y las reparticiones estatales.

Como fuera dicho existe en Uruguay una serie de políticas públicas de memoria
que se orientan a la búsqueda de la verdad y justicia, investigaciones y reparaciones de
diversa índole. Pero todo este proceso tuvo avances y retrocesos, según el Informe
Anual realizado por Amnistía Internacional Uruguay, en 2011 se
hizo pública la sentencia de la Corte Interamericana de Derechos humanos en
la que se ordena a Uruguay a eliminar los obstáculos que bloquean las
investigaciones y los enjuiciamientos por violaciones de derechos humanos
cometidos durante los años de gobierno cívico militar […].
En octubre se aprobó la ley que, en la práctica, anula los efectos de la ley de
caducidad de la pretensión punitiva del Estado de 1986 y revocaba las normas
sobre prescripción que habrían impedido que las víctimas presentaran
querellas.
En junio, el presidente Mujica dictó un decreto que revocaba las decisiones de
presidentes anteriores sobre qué casos de presuntas violaciones de DDHH se
podían investigar. Este decreto abrió la posibilidad de que se reabrieran
alrededor de 80 casos. En octubre se formularon denuncias en nombre de más
de 150 sobrevivientes de tortura (AMINISTÍA INTERNACIONAL
URUGUAY, 2011)332.

Luego agrega que en diciembre de 2011 se reconocieron los restos del maestro
Julio Castro y en marzo de 2012 en cumplimiento con la sentencia de la mencionada
Corte Interamericana el Estado uruguayo reconoce su responsabilidad en la desaparición
forzada de María Claudia García de Gelman, y en ese mismo mes aparecen los restos
que fueran luego reconocidos como los de Ricardo Blanco (todo esto también
detalladamente documentado en el Informe Anual de 2012 de la Secretaría de Derechos
Humanos para el Pasado Reciente, y mencionado en la página web de la Universidad de
la República - UDELAR). Igualmente, el informe de Amnistía aclara que “seguirá
monitoreando las políticas del Estado para el cumplimiento de los derechos a la
memoria, la verdad, la justicia y la reparación, para garantizar que el Uruguay cumple
con sus responsabilidades” (AMINÍSTIA INTERNACIONAL URUGUAY, 2011).
Por su parte la Secretaría de Derechos Humanos para el Pasado Reciente –
SDDHHPR-en su Memoria Anual de 2013, resalta que la “colaboración del equipo en
las respuestas a Oficios Judiciales enviados a la Secretaría de Derechos Humanos para

332
Ver más en: https://amnistia.org.uy/
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el Pasado Reciente continúa siendo una de las tareas centrales de este período”,
destacando los avances en dichas respuestas y advirtiendo que hubo un
aumento en las solicitudes referidas a personas que sufrieron la prisión política,
manteniéndose, igualmente los pedidos de información sobre detenidos-
desaparecidos, asesinados políticos, torturas, centros clandestinos y unidades
militares que funcionaron como lugares de detención (SDDHHPR, 2013, p.
5)333.

Y luego el documento agrega que el “equipo ha culminado la primera etapa de


confección de fichas sobre asesinados políticos que refiere al período 1973-1985” y que
“la cantidad de asesinados políticos confirmados a la fecha de este informe, asciende a
123, en tanto que se continúa investigando la situación de otros 24 casos” (SDDHHPR,
2013, p. 7). Por otro lado establece que se
continúa incorporando información proveniente de los distintos archivos que
siguen siendo relevados, tanto para la actualización de las Fichas Personales
como de Contextos represivos y de desaparición de las personas.
1) En este sentido, la cantidad de detenidos desaparecidos confirmados hasta
la fecha asciende a 178.
2) Se trabaja en la comprobación de denuncias de 40 casos de desaparición
forzada realizadas a la Comisión para la Paz que no fueron calificadas por
falta de pruebas.
3) Se trabaja en la investigación de 11 nuevas denuncias de desaparición.
(SDDHHPR, 2013, p. 7).

Por su parte la Universidad de la República –UDELAR- mantiene desde 2005 un


Acuerdo General de Cooperación con la Presidencia de la República sobre el tema
“Derechos Humanos y detenidos-desaparecidos”, en el que se establece que la
UDELAR
aportará los equipos ‘que por su especialización e idoneidad contribuyan
significativamente a la determinación de los hechos averiguados’.
Así se constituyó el Grupo de Investigación en Antropología Forense (mayo
2005) y el Equipo de Historia (setiembre 2005), radicados en la Facultad de
Humanidades y Ciencias de la Educación334.

333
En dicho documento se explica la estructura de los informes que elaboran el equipo de historiadores: 1
- Un informe técnico-pericial que da cuenta del contexto en el que ocurrieron y se desarrollaron los
hechos (contexto de detención, reclusión y muerte, según corresponda), resumiendo la información que
luego se amplía en la ficha personal. 2 - Ficha personal con los datos de la víctima (en caso de que se trate
de un detenido-desaparecido o asesinado político). 3 - Documentación hallada en los distintos archivos
(Fichas patronímicas confeccionadas por los distintos servicios de inteligencia o fichas prontuariales de
otras reparticiones). 4 - Documentación relacionada con el operativo de detención, reclusión, desaparición
y/o muerte, según corresponda. 5 - Organismos de seguridad del Estado intervinientes (SDDHHPR, 2013,
p. 5).
334
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente Es necesario destacar que la
página no ha sido actualizada desde setiembre de 2011, en entrevista realizada al Dr. Álvaro Rico en
noviembre de 2013 se menciona que estaría pronto para su publicación en 2014 los nuevos resultados de
las investigaciones realizadas. Ver: http://www.uypress.net/uc_46079_1.html
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La página electrónica de la Universidad también explica que durante estos años


ambos equipos han desarrollado sus investigaciones para la Presidencia de la República
en tres etapas de trabajo:
La primera etapa (2005-2007) en la que se presentan los 4 tomos de la
Investigación Histórica sobre Detenidos Desaparecidos, coordinada por el Prof. Álvaro
Rico y el 5º tomo con los resultados de la Investigación Arqueológica sobre Detenidos
Desaparecidos realizada por el Grupo de Investigación en Antropología Forense
(GIAF) de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación coordinado por el
Prof. José López Mazz.
La segunda etapa (abril de 2009 a febrero de 2010) en la que por Resolución
Presidencial, la Secretaría de Seguimiento de la Comisión para la Paz fue reforzada con
la integración, entre otros, de los Doctores José López Mazz y Álvaro Rico (en
representación de la Universidad y coordinadores de los equipos de investigación).
La tercer etapa (marzo de 2010 hasta el presente), en la que se incorpora los
resultados de las etapas de trabajo anteriores, las continúa y actualiza con nuevas
búsquedas, con la localización de restos de personas detenidas desaparecidas, revisión
de nuevos archivos y difusión de información y documentación inéditas.
Asimismo aclara que en diciembre de 2010 se suscribió un nuevo Convenio de
Cooperación sobre Derechos Humanos y Detenidos Desaparecidos, que enfatiza que
ambas partes (la Presidencia de la República y la Universidad) son
movidas por la necesidad de continuar el abordaje y eventual solución de las
cuestiones pendientes en el ámbito de las violaciones a los derechos humanos
perpetradas durante la dictadura y convencidas que la determinación de la
verdad de los hechos ocurridos constituye, por un lado, una reparación
impostergable que se debe a las víctimas, a sus familias, a la sociedad toda, y
por otra, una condición ineludible para asegurar a las generaciones venideras
un futuro de paz, acuerdan suscribir el siguiente convenio 335.

Los resultados de las investigaciones han sido publicados en diversos momentos


entre 2007 y 2011. Asimismo destaca que

uno de los resultados prácticos más significativos de las investigaciones


históricas se relaciona con la incorporación de la documentación e información
que contienen los libros a la mayoría de las causas judiciales en curso sobre la
violación de los derechos humanos durante las dictaduras, tanto en nuestro país
como en la República Argentina, así como su inclusión en las denuncias
penales entabladas ante la justicia por familiares de las víctimas y

335
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
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organizaciones de derechos humanos sobre casos de personas detenidas


desaparecidas y asesinadas por razones políticas336.

Por otra parte, agrega que los archivos, repositorios documentales o depósitos de
documentos consultados por el Equipo de historiadores desde el inicio de su trabajo
“suman un total de: 25 (17 de ellos, estatales)”, continuando incluso el trabajo
comenzado en el primer período, por lo que se volvió a consultar y revisar archivos de
la Dirección Nacional de Inmigración, de la Cancillería y de la Secretaría de
Seguimiento de la Comisión para la Paz “a los que se sumaron, por primera vez, otros 5
archivos a los que se tuvo autorización y acceso para la revisión de nueva
documentación”337 (estos son los del Ministerio de Defensa Nacional, los del Ministerio
del Interior y de la Suprema Corte de Justicia).

Más allá de esta enumeración de actividades y resultados, lo que aquí se constata


es no sólo el avance en las investigaciones, sino la colaboración de las distintas
reparticiones del Estado para proveer datos vinculados a los procesos judiciales, así
como la apertura de nuevos archivos que traen más información para los casos en
cuestión. En este sentido la página electrónica mencionada destaca que

la documentación permite la reconstrucción de los contextos represivos; las


formas operativas y su secuencia cronológica; los organismos intervinientes y
su coordinación; los responsables institucionales y métodos empleados; el
estudio de las etapas por las que transitó la transformación del Estado uruguayo
en sentido autoritario y totalitario durante la dictadura. Ello constituye una
fuente documental importante para los familiares de las víctimas y, también,
para los investigadores académicos que estudian comparativamente la historia
reciente de nuestro país y de la región del Cono Sur de América Latina y que
pueden referirse o citar dicha documentación en sus propios trabajos
interpretativos sobre el período histórico338.

Finalmente, en lo que respecta a los aportes de las investigaciones, se expresa


que
se trata de estudio documentado que aporta al conocimiento del carácter
complejo, fragmentado y traumático de nuestro pasado reciente. No resulta
ocioso el advertir que esta tarea de reconstrucción de la verdad histórica le
pertenece al conjunto de la sociedad uruguaya y, por supuesto, no se resuelve
ni se agota con la finalización de una etapa de la investigación histórica por
parte del equipo universitario. Dicha investigación, por otra parte, no admite
“puntos finales”, siempre es parcial e incompleta.

Por último, se destaca el aporte de las investigaciones arqueológicas, que hasta


el momento han permitido localizar e identificar los restos de cuatro ciudadanos

336
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
337
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
338
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
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uruguayos detenidos-desaparecidos en el país (ellos son los de: Ubagesner Chávez Sosa,
Fernando Miranda, Julio Castro y Ricardo Blanco Valiente).

En relación a los archivos con los que el equipo de historiadores viene


trabajando hasta el momento, además de los veintidós del Uruguay, mantiene contacto
permanente con el archivo de la Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia
de Buenos Aires (DIPBA), el Archivo Nacional de la Memoria (Argentina), el Archivo
del Terror (Paraguay), el Programa de DDHH de Chile y la Comisión por la Verdad de
Brasil, en una investigación conjunta sobre la muerte del expresidente Joao Goulart en
Argentina.

En este sentido Rico aclara que si bien la “investigación es histórica, no


criminalística, podría afirmarse que esta fragmentación del conocimiento es un efecto
más de la lógica represiva del terrorismo de Estado" (RICO, 2013) presente hasta el día
de hoy. Por último expresa que además de los avances en la coordinación de archivos,
se destaca los cambios que representan las denuncias colectivas como en la causa
Morgan y en la denuncia de 28 expresas políticas por violencia sexual durante la
dictadura. Esto "también cambió la lógica de la justicia para investigar las denuncias"
(RICO, 2013).

Algunas reflexiones finales

Tal como se expresó el Estado uruguayo ha impulsado investigaciones sobre los


episodios de la dictadura última pasada, mostrando un compromiso con dicha memoria
a través de diversas políticas. Como se ha observado no fue un camino lineal y de
consenso político y de la sociedad en general, sino que tuvo marchas y contra-marchas a
lo largo de los años. Si bien este proceso enfrentó conflictos y disconformidades de
diversa índole, lo que ha quedado en evidencia es que esa/s memoria/s han tomado
estado público incitando no sólo a nuevas denuncias, sino a una toma de conciencia y
conocimiento que ya no es posible detener. Es en este sentido que se considera que se
está además frente a un proceso de patrimonialización de lugares de dolor, junto a una
puesta en valor de un pasado reciente y traumático, proceso que obliga a rever y
reformular las antiguas conceptualizaciones sobre el patrimonio. El mismo presenta
características y especificidades de lo que podría denominarse un “nuevo” tipo de
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patrimonio, lo que una vez más obliga a ampliar y problematizar el concepto a la luz de
los nuevos discursos que activan dicho patrimonio –en el sentido que Llorenç Prats lo
coloca-.
Por otro lado, en la medida que este proceso se amplía y gana espacios no sólo
en el ámbito académico, sino de la sociedad, se atienden reclamos de víctimas (aunque
muchos de ellos se consideren no contemplados aún), se abren diversos espacios de
escucha para quienes fueron testimonio y/o víctimas de aquel período, permitiendo la
difusión de información antes silenciada y negada y especialmente permitiendo que las
generaciones posteriores, se concienticen frente a estos temas para que no vuelva a
ocurrir, y así sensibilizar y promover los derechos humanos en su más amplia expresión.
Por último se considera interesante la reflexión de Rico en esa dirección, en la
que se busca trascender lo estrictamente vinculado al período:

Si el Uruguay, que bajo la dictadura fue el mayor país con presos políticos en
el mundo, no se vincula con el Uruguay que hoy tiene una altísima población
carcelaria donde las generaciones jóvenes son la nutriente principal, como lo
fueron durante la dictadura, entonces no es ni comprender la dictadura ni el
presente de los uruguayos si no establecemos ese hecho como problema, no
como descripción. […] Si no, cómo se explica que en una sociedad
'integradora', como se la definió desde la excepcionalidad, se haya incorporado
en algún momento de su historia reciente el discurso del 'enemigo político' y la
necesidad de asesinar y desaparecer a ese enemigo político (RICO, 2013).

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SECRETARÍA DE DERECHOS HUMANOS PARA EL PASADO RECIENTE.
Memoria Anual 2013. Texto que en breve quedará disponible en la página electrónica
de la Presidencia de la República, y ha sido facilitado a la autora por su Directora
Graciela Jorge el 20 de marzo de 2014.

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“SONHOS NÃO ENVELHECEM”: Memória Social e movimento estudantil


fortalezense durante a ditadura militar.

Athaysi Colaço Gomes


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Universidade Estadual do Ceará (UECE)


athaysicolaco@gmail.com

A partir da década de 60 do século XX, o Brasil vivenciava uma intensa


agitação política gerada pelas disputas políticas e ideológicas entre os setores
conservadores e as classes reformistas de tendência comunista. Diante desse quadro
político tenso, eclode em 1964, no Brasil, um golpe militar apoiado pelos grupos sociais
abastados que tentavam, segundo seu discurso, proteger a soberania nacional e afastar
os “invasores anarquistas” que tentavam destruir a nação brasileira. Houve, a partir de
então, uma intensa mudança na política nacional. Os governos militares intervinham
diretamente na sociedade brasileira a fim de controlar as manifestações contrárias ao seu
regime autoritário e consolidar a hegemonia militar no quadro político brasileiro. Vários
políticos de tendência esquerdista foram afastados de seus cargos de governo e foram
criados órgãos de repressão que atendiam a prática da censura e da tortura
institucionalizada. As manifestações contrárias a essa forma de governo, tais como
passeatas, greves, discursos exaltados em lugares públicos, eram duramente reprimidas
e a produção cultural do período foi submetida a uma análise prévia de seu conteúdo
para garantir que não veiculavam ideias consideradas subversivas. O Ceará não
constituiu uma exceção e aderiu às reformas propostas nacionalmente. O então
governador do Estado, Virgílio Távora, seguia a tendência conservadora e governava
com o apoio das elites locais, tendo inclusive demitido alguns de seus auxiliares de
governo por estes serem suspeitos de terem ligações com os ideais comunistas, que
eram considerados pelos governantes como sendo nefastos à sociedade cearense,
reforçando seu ideal centralizador. Virgílio Távora aderiu à política nacional que
prezava pela supressão das liberdades civis, pela constante censura aos meios de
comunicação, pela perseguição aos opositores e pela prática da tortura como formas de
manter a “ordem” e garantir a “segurança nacional”. Entenda por esses termos:
Manutenção de um poder autoritário e controle das massas oposicionistas.
Contudo, essas reformulações políticas não foram aceitas passivamente pela
população cearense. A cidade de Fortaleza durante a década de 60 do século XX foi
palco de constantes conflitos violentos envolvendo os militares e os estudantes
universitários, que possuíam maior participação numérica nesses conflitos, tendo os
centros acadêmicos ou diretórios estudantis como palco das tomadas de decisões e
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estruturação dos mecanismos de ação da luta contra a ditadura. O movimento estudantil


cearense já era articulado antes mesmo do golpe, os estudantes reivindicavam melhorias
na educação cearense e após o golpe de 64 à essas pautas específicas do movimento
juntaram-se as pautas de contestação da ordem opressora do regime militar. A análise
dos movimentos de contestação da ditadura militar ocorridos em Fortaleza visa quebrar
a análise hegemônica das ações ocorridas nas regiões Sul e Sudeste. A capital cearense
protagonizou importantes acontecimentos nesse período histórico, mostrando que a
articulação dos movimentos defensores da democracia era bastante ativa na região.
Estudantes, professores, profissionais liberais, operários, dentre outros
segmentos sociais, engendravam uma resistência ao golpe que tinha ceifado as
esperanças de reformas sociais suscitadas no governo do ex-presidente João Goulart.
Logicamente, um momento tão marcante e traumático, para a História Fortalezense e
para os sujeitos contemporâneos a esse período marcou, profundamente as recordações
e os discursos memorialistas. Surge, então, a necessidade de se analisar as memórias e
os discursos de personagens históricos que ousaram contestar com ações “subversivas”
a crescente consolidação da ditadura e ousaram rebelar-se contra os militares mesmo
diante de uma forte repressão.
As conquistas sociais, principalmente na área trabalhista, e a crescente
mobilização do então presidente João Goulart, em defesa das chamadas reformas de
base eram entendidas pela elite brasileira como nocivas aos seus interesses político-
sociais, juntamente com a ameaça do avanço comunista na América Latina e o exemplo
vitorioso de revolução dado por Cuba. Nesse contexto de forte tensão social e de jogo
de interesses diversos, os militares apareceram como “redentores” da pátria e os únicos
com respaldo suficiente para liderar um golpe que impedisse a pretensão das esquerdas
em construir o socialismo no Brasil. Assim pensavam os setores sociais que defendiam
a necessidade de um golpe intervencionista, sem analisar as implicações que tal ato teria
para a política nacional em longo prazo, muito menos as arbitrariedades que seriam
cometidas em nome da segurança nacional.
Em Fortaleza, quando ocorreu o golpe, a intervenção militar foi rápida e
logo no dia 01 de abril de 1964 demonstrava a pretensão de realizar uma “limpeza
política” na cidade, cassando mandatos de políticos identificados com a esquerda e
perseguindo até obter a prisão de líderes políticos também esquerdistas, principalmente
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ligados ao histórico Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sobre isso Airton de Farias
nos revela que:

Estudantes realizaram passeatas e concentrações na Praça José de Alencar,


dissolvidas pelo exército - as sedes das entidades estudantis seriam invadidas
pelos golpistas, seus dirigentes destituídos e substituídos por “estudantes
democratas”-, trabalhadores do porto do Mucuripe, da Rede Ferroviária e do
Departamento de Telégrafos e Correios iniciaram greves, logo
desmobilizadas pelos militares com a prisão dos principais líderes e
intervenção nos sindicatos, a rádio Dragão do Mar, pertencente ao deputado
federal e aliado de Jango, Moisés Pimentel, foi fechada por estar
conclamando os civis a resistirem ao golpe, a sede da FALTAC (Federação
das Associações de Lavradores e Trabalhadores agrícolas do Ceará)[...] foi
saqueada pelo exército, a sede do PCB, o escritório 25 de Março, foi
arrombada e praticamente destruída, sendo apreendida farta “documentação
subversiva”, homens da Polícia Militar passaram a patrulhar as principais
ruas e praças da capital visando “manter a ordem” (2007, p. 51).

O golpe militar foi sendo construído ao longo dos mais de 20 anos de


vigência e à medida que se preconizava garantir a permanência desse regime autoritário
e eliminar a oposição de forma indiscriminada, o aparelho repressor do Estado se foi
moldando e procurando meios de se fazer legal, mas desde a sua implantação
percebemos o seu caráter opressor e cerceador. As reações sociais contrárias ao golpe
também não tardaram a acontecer e as disputas políticas transformaram-se em disputas
de espaços.
O movimento estudantil secundarista fortalezense teve um importante papel
nessa disputa por espaço político e na luta por legitimidade dos movimentos
contestadores da ditadura civil-militar. Os integrantes do movimento estudantil
secundarista demonstraram empenho e uma forte capacidade de mobilização social nas
manifestações de protesto que tomaram as ruas de Fortaleza. Mesmo que a luta fosse
sendo amadurecida com o decorrer do tempo e as posições políticas ainda não
estivessem bem delineadas, a oposição à ditadura aglutinava estudantes. O agente
facilitador dessa contestação e por que não afirmar o berço da experiência política era,
sobretudo, a família nuclear. As discussões políticas travadas em casa e o
posicionamento dos pais interferiam fortemente na forma como aqueles estudantes
percebiam os últimos acontecimentos da história do Brasil, isso fica claro na fala dos
entrevistados.
As discussões familiares, militâncias dos pais foram decisivas para que
esses estudantes desenvolvessem, ainda que de forma embrionária, uma conscientização
sobre o que ocorria no seu país naquele momento. O impacto dessa iniciação nos
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assuntos políticos é marcante para a decisão de partir para o enfrentamento da ditadura


através da participação no movimento estudantil. A repressão era tão forte que discutir
política publicamente era arriscado, então a casa, o lar da família, representava um dos
poucos espaços onde se podia conversar sobre o que acontecia no país de forma mais
tranquila, daí então os entrevistados ressaltarem a importância das discussões dentro de
casa como norteadoras de suas futuras posições políticas. Ainda que indiretamente, a
formação política familiar interferia na forma como esses jovens percebiam e
interpretavam a situação política do país, sem deixar de reconhecer a autonomia do
sujeito social. As primeiras referências sobre o que era legal ou ilegal politicamente se
constituíram dentro de casa e com grande influência da percepção dos pais a respeito do
golpe.
Outro espaço importante para a formação política juvenil foi a escola. O
ambiente escolar tornou-se facilmente o principal meio de sociabilidade dos jovens, foi
lá que as primeiras experiências sociais eram formadas. A escola era uma micro
representação da sociedade e, como tal, exercia uma influência enorme na vida das
pessoas. As vivências escolares influenciavam fortemente a percepção social dos
indivíduos e, logicamente, os professores possuíam enorme importância nesse processo.
A esse respeito Maria do Carmo Serra Azul 339nos conta:

Quando houve o golpe militar, eu tinha 12 anos e estudava em colégio de


freira, no Imaculada Conceição e eu lembro que na época um padre passou
nas salas do Imaculada e começou a mostrar o genocídio que os militares
estavam fazendo com os indígenas. Então ele levava fotos de índios
mutilados, assassinados para poder tomar as terras deles. Nessa época, a
gente já ficou chocado com a questão indígena. No colégio que eu estudava,
o Imaculada, as freiras eram ligadas à ditadura mesmo. E tinha um padre que
era capelão que admirava o Che Guevara, ai as freiras expulsaram ele do
colégio, ai nós fizemos um protesto lá, ninguém assistia missa que não fosse
com o padre que tinha saído. Porque no colégio tinha filhas de militares, de
governador e o nosso grupo fazia o contra ponto.

A fala de Maria do Carmo é reveladora quanto à multiplicidade de vivências


proporcionada pelo ambiente escolar. Em tempos de ditadura, a luta pelo domínio dos
espaços sociais, públicos e privados, visava garantir a legitimidade do golpe e seu
respaldo diante da sociedade, qualquer afronta a essa tentativa era duramente reprimida.

339
Maria do Carmo Serra Azul: Estudante secundarista da Escola Normal e militante
da Ação Popular (AP). Entrevista realizada em 15/05/2013. Atualmente, é diretora do
Sindicato dos Aposentados Fazendários do Ceará.
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A convivência com a diversidade, já que na escola encontravam-se apoiadores,


simpatizantes do regime ditatorial bem como contestadores, facilitava aos estudantes
secundaristas experimentar, já na escola, os sentimentos de uma disputa que era
presenciada nas manifestações. Dessa forma, as estratégias usadas na escola para
garantir o direito à expressão, a identificação dos grupos segundo seus posicionamentos
políticos e a necessidade de se lidar com um poder institucionalizado, no caso a direção
da escola comandada pelas freiras simpatizantes da ditadura, proporcionavam aos
estudantes secundaristas uma experiência que contribuía para a organização dos
movimentos de contestação à ditadura, realizados nas ruas. A escola possuía então uma
dupla função: era um lugar de experiência e um lugar de disputa. Sua importância foi
sempre destacada pelos entrevistados como sendo o local de iniciação na militância
política, principalmente através do grêmio estudantil. Em tempos de ditadura, a
liberdade de ação política era bastante restrita, ainda mais se essa ação fosse
desencadear em questionamentos da ordem política militar, portanto, foi nesse sentido
que se produziu o conflito entre os estudantes contrários à ditadura e à direção das
escolas, não raramente apoiadora do golpe militar. Para os estudantes, obter sucesso nas
ações realizadas dentro da escola significava um passo importante na sua luta de
enfrentamento da ditadura e uma preparação para a luta mais incisiva que era travada
nas ruas quando havia o confronto com as forças repressoras.
As ações eram, quase sempre, organizadas pelo grêmio da escola onde se
concentravam os estudantes contrários ao golpe militar. É curioso notar que o grêmio
funcionava como um mecanismo institucional de representação dos interesses dos
estudantes subordinado à direção da escola. Era o elo entre os estudantes e a direção,
sua função, portanto, era legal e legítima. Contudo, quando se instaurou o governo de
exceção essa lógica foi alterada, pois legalidade e legitimidade existiam apenas dentro
dos marcos, delimitados pela ditadura, para assegurar os seus interesses. A lei e a ordem
eram de posse exclusiva dos militares. Já prevendo um possível uso dos grêmios como
instrumento de contestação da ditadura, algumas escolas proibiram a existência do
grêmio cujo caráter legítimo foi ceifado em nome da manutenção da ordem nacional.
Além do grêmio estudantil de cada escola, os estudantes secundaristas se
reuniam em um importante órgão de representação estudantil: o Centro dos Estudantes
Secundaristas do Ceará (CESC). A entidade era responsável pela confecção das
carteiras estudantis dos estudantes secundaristas e recebia financiamento do governo.
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“O CESC era a entidade secundarista, ele que fazia as carteirinhas, por isso que ele
tinha recurso, aí usava o recurso pra comprar spray, pra panfletar a cidade toda,” assim
revelou Maria do Carmo. A existência de uma entidade como o CESC e o certo grau de
liberdade que ele possuía foram fundamentais para a articulação das ações do
movimento estudantil secundarista, porque a partir dele os estudantes de diversas
escolas secundaristas organizavam suas ações contestadoras à ditadura militar.
Percebendo isso e objetivando desarticular o movimento estudantil, os agentes da
repressão ocuparam a sede da entidade em 1967 e realizaram infiltrações de estudantes
a serviço da ditadura, para obterem informações a respeito das ações realizadas no
CESC e dos seus líderes estudantis. No fatídico ano de 1968, a sede do CESC foi
retomada por estudantes secundaristas ligados à Ação Popular (AP) 340 em uma
manifestação conjunta com os alunos do LICEU. Todavia, a chapa eleita em 1968 não
ficou muito tempo no comando da entidade secundarista, pois, após a decretação do Ato
Institucional nº 05 (AI-5), o CESC foi relegado à clandestinidade e perdeu o
financiamento, que era essencial para a manutenção das ações do movimento estudantil.
E quais ações poderiam ser feitas na escola mesmo diante do olhar sempre
vigilante da direção? As ações feitas na escola visavam escancarar as arbitrariedades
cometidas pela ditadura civil-militar bem como exercer um papel de conscientizar os
estudantes para a realidade política nacional. Nas palavras de Helena Serra Azul341:”Eu
comecei a participar do Grêmio, eu tenho impressão que isso foi em torno de 1965, ai
nós fazemos um jornal contra a ditadura”. Francisco de Assis Francelino342 também
comentou a criação dos jornais: “nós tivemos ainda no movimento secundarista jornais,
nós elaboramos jornais e pregávamos nas paredes das escolas”. Maria do Carmo falou

340
Organização política esquerdista oriunda da Igreja Católica.
341
Militante da Juventude Estudantil Católica enquanto estudante secundarista.
Militante da Ação Popular (AP) quando ingressou no curso de Medicina na
Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é professora do Curso de Medicina na
referida Universidade e filiada ao PC do B. Entrevista realizada em 14/05/2013.
342
Francisco de Assis Francelino Alves: Militante secundarista, pelo colégio Júlia
Jorge, e universitário na Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Atualmente, é professor
aposentado, do Curso de Filosofia, da Universidade Federal do Ceará; professor adjunto
nível XII, do Curso de Filosofia, da Universidade Estadual do Ceará e membro do
Comitê de Ética em Pesquisa Científica do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do
Ceará (IFCE). Entrevista realizada em 14/05/2013.
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das ações no Colégio Imaculada: “O que a gente fazia mais era ir às salas, aí dizia, o que
era a ditadura, que era ligada ao imperialismo americano, que a infelicidade todinha era
culpa da ditadura”. Os três depoimentos apontam para o sentido da narrativa,
fornecedora de informações sobre as ações dos militares. Em um contexto de censura
prévia das informações veiculadas, o esforço dos estudantes em escrever sobre a
ditadura representava uma tentativa de socializar a informação com outros estudantes, a
fim de driblar o silêncio imposto aos meios de comunicação. A partir do acesso à
informação sobre as torturas, prisões arbitrárias, ilegalidade das ações dos militares,
esperava-se conseguir mais companheiros para o movimento e deslegitimar a imagem
de “ordem e progresso” na nação que os militares se esforçavam para consolidar.
Contudo, mesmo o simples ato de elaborar um jornal que circulasse apenas no território
escolar não escapou da repressão. Os jornais eram retirados dos murais das escolas ou
das paredes onde eram fixados pelos estudantes, ficando apenas informações e notícias
que enaltecessem a ditadura civil-militar. Não era preciso sair às ruas para vivenciar o
clima de tensão instaurado no país.
O ambiente escolar tornou-se um meio de tensão constante, de embate de
ideias, visto que ações feitas visando denunciar os crimes cometidos pela ditadura
encontravam a resistência da direção da escola e de alunos simpatizantes do golpe
militar.
As entrevistas realizadas permitiram inferir que havia um clima de disputa
política dentro da escola. Se os alunos realizavam ações para criticar o autoritarismo
político vigente, a instituição escolar rebatia essas ações com um discurso oposto no
intuito de deslegitimar a ação dos estudantes. O professor era tido, dentro do sistema
educacional, como aquele a quem se devia respeito e admiração, sendo por vezes
considerado superior em relação aos seus alunos. Era a relação aprendiz x mestre muito
presente no ambiente escolar. Os depoimentos foram relevante para compreender que,
através das ações do movimento estudantil secundarista, os estudantes identificavam os
discursos realizados como “verdadeiros” ou “falsos”, não mais apenas pelo status que o
seu interlocutor ocupava na hierarquia escolar, mas sobretudo de acordo com seu
posicionamento político, sendo necessária uma intervenção dos estudantes para
assegurar seu espaço nessa disputa. A reação estudantil era crucial nesse ambiente de
conflito a fim de garantir representação, mesmo diante da figura de um professor.
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O movimento secundarista era mais forte nas instituições públicas. Os anos


de 1967 e 1968 foram considerados pelos entrevistados como o biênio de intensa
disputa política e de radicalização de ambos os lados. As instituições escolares foram
realizando ações graduais na tentativa de controlar os estudantes. A ditadura civil-
militar foi estruturando seu aparato repressor de acordo com a conjuntura dos
movimentos contrários ao golpe, então à medida que as ações do movimento estudantil
foram se tornando mais intensas e numerosas, os militares intensificaram a repressão às
ações e a perseguição aos líderes. As escolas uniram-se diretamente às forças
repressivas e contavam com a presença de policiais a fim de intimidar os estudantes e
evitar mais manifestações. As ações feitas dentro da escola acabaram se tornando
insuficientes diante das pretensões do movimento dos jovens que iam ganhando às ruas
em grandes passeatas.
Mas a escola não perdia seu epíteto de lugar de disputa, mesmo com o
movimento de massas ganhando as ruas e contando com a presença forte dos estudantes
secundaristas. O embate na escola possuía uma simbologia de contestação mais direta
para esses estudantes, porque o ambiente escolar fazia parte do seu cotidiano e as
repressões oriundas da direção da escola eram combatidas diariamente a fim de que se
pudesse fortalecer o movimento e ganhar as ruas.
O impedimento por parte do diretor da escola da saída dos alunos constituía
uma ação dentro dos marcos repressivos do regime ditatorial, todavia a pressão dos
alunos para que estivessem presente nas manifestações de rua e endossassem o apoio
pelo fim da ditadura encontrava força na organização da massa estudantil. Essas
manifestações de “rebeldia” contrariaram as ordens dadas pela direção escolar cuja
consequência foi a radicalização da repressão dentro da escola com a presença constante
de policiais.
A presença da polícia se fazia necessária dentro do contexto da Lei de
Segurança Nacional que vigorava no país desde 1964. Os inimigos internos, os
considerados “subversivos” foram cassados em todos os espaços do país
indiscriminadamente. O ambiente escolar não trazia mais segurança para os líderes
estudantis visto que eram realizados interrogatórios dentro da própria escola de acordo
com o relato dos entrevistados.
Percebemos uma alteração da real função escolar. A ditadura, no intuito de
garantir sempre o controle das manifestações de oposição, alterou a dinâmica de ação
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dos espaços sociais, sobretudo os espaços onde ocorriam ações de contestação da


política ditatorial. Isso ocorreu em vários espaços do país: instituições educacionais de
diversos níveis, empresas, locais de lazer eram constantemente frequentados por
policiais aliados da ditadura a fim de garantir “a ordem social”. Mesmo diante da
repressão tornando-se cada vez mais visível e intensa, os estudantes não abandonaram a
luta e continuaram realizando manifestações dentro e fora da escola. O movimento não
cedeu diante do aumento da repressão.
A inserção no movimento estudantil universitário para muitos militantes
ocorreu como um desdobramento natural de sua atuação no movimento estudantil
secundarista. O importante era persistir na luta contra a ditadura. O ambiente
universitário permitiu aos estudantes um aprofundamento das discussões políticas e das
reflexões sociais, contudo a base para as suas ações foi construída no movimento
secundarista. A entrada na Universidade foi relatada pelos entrevistados como o ápice
de um processo que vinha se desdobrando desde a participação política na resistência à
ditadura ainda atrelada aos grêmios estudantis ou às entidades secundaristas como o
CESC. O amadurecimento das questões políticas foi mencionado pelos entrevistados
como a principal característica de sua atuação no movimento universitário.
O movimento estudantil fortalezense, secundarista e universitário, já era
ativo antes do golpe militar, lutando por reivindicações específicas a fim de obter
melhorias educacionais. A implantação da ditadura e sua crescente consolidação
promoveu um novo contexto para as ações do movimento, ampliando as reivindicações
estudantis. As lutas específicas uniram-se às lutas gerais. O surgimento de grupos
políticos de esquerda, oriundos da dissidência de antigos membros do PCB, favoreceu
esse processo de ampliação das reivindicações estudantis. A aproximação dos grupos e
partidos políticos com o movimento estudantil marcou as ações de resistência à ditadura
em Fortaleza. O diálogo e a interseção que esta aproximação proporcionou a ambos
marcou a organização das ações contra a ditadura. O movimento de massas contou com
a participação de esforços dos dois lados a fim de fortalecer a resistência ao golpe.
Muitos estudantes que integravam o movimento universitário tornaram-se também
membros de grupo ou partido político, representando- o dentro da Universidade. Esta
aproximação aglutinou forças na luta contra a ditadura, contudo gerou disputas internas
oriundas das diferentes concepções que especificavam cada grupo.
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No entanto, não podemos analisar mecanicamente a relação entre o


movimento estudantil e as organizações políticas. O movimento possuía suas pautas
específicas, bandeiras de luta defendidas desde antes do golpe militar e as organizações
possuíam atuação política fora dos quadros do movimento universitário, embora fosse
através deste que as organizações obtiveram maior representatividade. O movimento
estudantil se foi refazendo constantemente durante a vigência da ditadura civil-militar,
sua dinamicidade foi gerada dentro do contexto de luta e ação dos estudantes com a
finalidade de pôr fim à ordem ditatorial instalada. À medida que o próprio aparato
militar foi se intensificando para garantir a consolidação do golpe de 1964 com a
criação de mecanismos jurídicos que permitissem o aumento da repressão estatal como
a decretação dos Atos Institucionais, as ações de contestação foram se radicalizando. É
neste ambiente de tensões e ações que devemos analisar a relação entre o movimento
estudantil e as organizações políticas, tendo como norte os interesses específicos de
ambos e as congruências que permitiram uma união sem perder a visão da dinâmica
existente no interior de cada grupo.
As organizações políticas não podiam oficial e legalmente atuar na política
nacional como organizações partidárias. Desde a decretação do Ato Institucional nº 02,
só era possível a existência de dois partidos políticos: ARENA e MDB. Portanto, a
adesão dos estudantes às organizações clandestinas assegurava sua participação nas
entidades estudantis ainda que de forma camuflada. As entidades de representação dos
estudantes universitários foram disputadas pelas tendências políticas de esquerda como
espaço de ação e como meio de garantir que suas propostas prevalecessem. O
atrelamento das organizações políticas às entidades estudantis do ensino superior
estabelecia uma disputa pela vitória do comando das mesmas. A disputa ia além da
questão de obter poder de decisão, já que mesmo ganhando o comando de uma entidade,
como um diretório estudantil, as reuniões agrupavam diversas tendências políticas e
discutiam as propostas dos estudantes em geral. O espaço representativo que as
entidades simbolizavam era o espaço da vitória de uma proposta política para a nação, o
espaço de uma proposta de ação para o movimento estudantil organizar-se contra a
ditadura. Conseguir a direção de um diretório estudantil, por exemplo, significava que a
avaliação do contexto político nacional da organização vencedora era a mais viável,
mais coerente politicamente. Era a vitória do reconhecimento de sua proposta, daí então
a importância da aproximação com os estudantes como forma de legitimar o
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pensamento política das organizações clandestinas e assim obter espaço para direcionar
suas ações.
Para controlar a organização das ações dos estudantes, foi fundamental a
limitação dos espaços de ação política no interior das Universidades. Esta era a função
principal da Lei Suplicy, apresentada ao Congresso já em 1964, cujo desdobramento foi
a subordinação das entidades estudantis ao Governo, a fim de garantir um controle
estatal sobre os órgãos estudantis. Essa era a análise que os militares realizaram da
relação entre o movimento estudantil e as organizações de esquerda que começaram a
ter adesão dentro das entidades estudantis universitárias, obtendo expressiva
participação dos estudantes em seus quadros políticos. Segundo Edmilson Maia Junior,
com o aumento da centralização política imposta pelos militares na ditadura, o
movimento estudantil reagiu com veemência denunciando as prisões, crimes, torturas
para a sociedade. A partir de 1966, a relação com as organizações de esquerda tornou-se
mais intensa visto que neste ano várias entidades estudantis são comandadas por líderes
da esquerda e o movimento estudantil intensificou a incorporação da luta pelo fim da
ditadura como uma de suas bandeiras. (2002, p. 194-205)
A vinculação das questões específicas do movimento estudantil
universitário com outras mais gerais como a derrubada da ditadura ocorreu como
consequência da aproximação entre os estudantes e as organizações de esquerda. A
consolidação do governo de exceção, através das alterações legislativas e do aumento da
repressão, contribuiu para a adesão crescente dos estudantes na luta pelo fim do
autoritarismo estatal. Helena relatou que, a partir dessa vinculação, os protestos
organizados pelo movimento estudantil refletiam a união das lutas específicas e gerais:

Com um mês de faculdade, a gente faz uma grande greve, que era uma greve
por problemas específicos reivindicatórios, era uma greve por conta de um
professor, por conta de condições de estudo, aquelas questões mínimas
reivindicatórias da turma e vai aumento o nível de consciência contra os
acordos Brasil-EUA, como o MEC-USAID.

A união das questões de luta foi novamente mencionada quando a


entrevistada se referiu à participação política na Ação Popular (AP):

A gente fazia o vínculo das questões específicas com as questões gerais,


porque a gente achava, eu até hoje acredito nisso, que as coisas não estão
separadas, estão juntas, você luta por condições de trabalho, condições de
estudo e luta pelas questões gerais, acho que, por exemplo, na época, você
querer derrubar a ditadura, querer jogar fora todos os processos de
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implantação do imperialismo com aquelas políticas impostas deles, como o


acordo MEC- USAID e essas questões estão vinculadas, você discute desde a
falta do bebedouro, a falta de condições de estudo e de trabalho com as
questões gerais como a queda da ditadura, o fim do imperialismo, a luta por
uma sociedade mais justa porque já no final a gente defendia o socialismo.

Inocêncio Uchôa343 também afirmou que a união das bandeiras de luta


defendidas no movimento estudantil ocorreu a partir de uma análise conjuntural mais
crítica acerca da política nacional:

Em 1967, o movimento foi crescendo a partir das reivindicações específicas:


melhor biblioteca, restaurante universitário, reivindicações normais, internas
na universidade, mas elas foram crescendo na medida em que também a
organização dos trabalhadores em geral passou também a reivindicar e a
gente começou a perceber que havia ligações, a gente não conseguiria trazer
pra universidade as verbas, as condições que a gente quisesse se o governo
continuasse sendo a ditadura com outros focos, com outros interesses. A
ditadura se implantou pra beneficiar o capital, os capitalistas nacionais e
internacionais, não era pra fazer universidade, então a partir daí a gente
percebeu que a nossa luta não podia ser isolada e assim a coisa [a luta] foi
crescendo.

Gilvan Rocha344, que havia saído de Pernambuco para viver na


clandestinidade em Fortaleza, analisou a relação entre a luta específica do movimento
estudantil com a luta pelo fim da ditadura como consequência de uma maior politização
dos estudantes e da aproximação com as organizações de esquerda:

O movimento estudantil tinha sofrido um golpe muito violento com a


intervenção do sistema e ele estava naquele momento um pouco desagregado,
um pouco desorganizado. Posteriormente, é que se começa a reativar o
movimento estudantil. Primeiro com as assembleias para reivindicar coisas
como bebedouro, a higiene dos banheiros, a falta dos professores, questões
bem específicas do movimento estudantil. Depois, isso foi se avolumando e
os estudantes foram ganhando autoconfiança e ganharam as ruas. Aqui em
Fortaleza, houve um processo crescente de mobilização dos estudantes indo

343
Inocêncio Rodrigues Uchôa: Militante trotskista e estudante do curso de Direito na
Universidade Federal do Ceará. Atualmente, advogado da Gomes e Uchôa Advogados
Associados e Presidente do Diretório do Partido dos Trabalhadores (PT), em Aracati-
CE. Entrevista realizada em 14/05/2013.
344
Gilvan Rocha :Participante das Ligas Camponesas em Pernambuco, Militante
filiado ao PCB (1958-1961), depois ligado ao trotskismo nos anos 60 e 70, atuando com
a formação de quadros políticos operários e camponeses. Foi presidente do Partido dos
Trabalhadores (PT)- Ceará. Atualmente, é militante do Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL). Autor de diversos livros sobre política. Escreve para o jornal O Povo
(Fortaleza), Gazeta do Oeste (Mossoró) e Correio da Cidadania (São Paulo). Entrevista
realizada em 16/05/2013.
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às ruas. Então os estudantes saem da pauta estudantil e vão para uma pauta
política mais avançada, eleições diretas, abaixo a ditadura.

A percepção de que “as coisas não estavam separadas” e de que “havia


ligações” foi fundamental para o fortalecimento da luta de resistência à ditadura. A
conscientização de que a precariedade do ensino estava diretamente relacionada ao
sistema de governo imposto ampliou o foco de ação dos estudantes. A luta não poderia
mais ser apenas contra o reitor e os atos não poderiam ser realizados somente nos
limites físicos da universidade. Foi preciso ir às ruas e questionar toda a instalação
estatal realizada com a implantação da ditadura. Dessa forma, movimento estudantil e
organizações políticas de esquerda atrelaram suas lutas e, principalmente, seus membros
já que grande parte dos quadros destas organizações eram estudantes. A representação
das entidades políticas na Universidade deu-se no nível das entidades estudantis.
Conquistar um diretório estudantil assegurava um espaço privilegiado de ação às
organizações de esquerda assim como garantia a organização das ações de contestação à
ditadura. Segundo Maia:

Com a Lei Suplicy, as entidades estudantis ficam restritas ao nível de cada


curso (DA), de cada universidade (DCE) e uma entidade para cada estado,
capital ou território que possua mais de uma unidade de ensino superior
(DEE). Com o boicote ao DEE feito pelos estudantes, o que leva a sua
extinção no Estado, o DCE acaba se constituindo na entidade mais
representativa dos universitários locais. (2002, p. 67).

A elaboração de uma imagem social do passado é necessária para


compreendermos as decisões tomadas nos momentos posteriores à vivência de
determinada experiência. A fala dos entrevistados bem como suas memórias, nos
revelam a imbricada relação entre memória e identidades. A construção das memórias
sociais dos grupos políticos de esquerda que atuavam contra a ditadura militar
perpassou a elaboração de uma identidade perante os movimentos contestadores do
golpe militar e perante a aceitação do próprio passado como inteligível. Os depoimentos
cedidos revelam mais que a lembrança de anos turbulentos, são elaborações subjetivas
representativas de uma realidade e, portanto, marcadas pelas experiências vivenciadas.
O ato de rememorar um período conflituoso remete ao entrevistado o retorno às
sensações experimentadas naquele contexto.
Devido à impossibilidade de compreensão total da realidade, visto que as
interpretações do real se dão por representações, os depoimentos raramente são coesos e
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ordenados. A evocação desse passado é feita por conceitos, referências, articuladas


pelos sujeitos históricos no decorrer do tempo. As memórias não estão situadas
exclusivamente no passado, pois o tempo da lembrança determina a seleção do que é
passível de ser lembrado. Gisafran Nazareno Jucá afirma que “a construção das
lembranças apresentadas passa pelo molde subjetivo de elaborá-la, sempre aproximando
o indivíduo do espaço social rememorado” (2011, p.61). Ainda segundo o referido
autor, esta aproximação é feita através da linguagem cujo atributo fundamental no
processo mnemônico é situar socialmente o sujeito no contexto histórico que se deseja
representar. A fala aproxima os tempos históricos [passado-presente] trazendo à tona
elementos difusos do tempo vivido para serem reconstruídos no presente que é o tempo
da lembrança. Longe de constituir um empecilho ao trabalho com a oralidade e com a
memória, o aparente caos das referências e conceitos apresentados nos depoimentos
auxilia na percepção do espaço da memória como lugar de intersubjetividade e
múltiplas identidades sociais (2011, p.41-61).
A memória social atua como geradora de significado para quem recorda.
Memória e identidade social estão relacionadas. Recordar algo parece ser uma ação
estritamente privada e pessoal, no entanto quando recordamos estamos elaborando
representações sociais do passado e de nós mesmo em um determinado contexto
histórico-social. As recordações carregam em si imbricadas memórias sociais e
pessoais. A linguagem, as ideias construídas socialmente e as experiências partilhadas
com os outros caracterizam o aspecto social da memória. A relação entre memória
social e formação de identidade se expressa no momento em que recordamos e
estruturamos as recordações através da linguagem. A memória é seletiva, visto que,
conscientemente ou não, as recordações são selecionadas de modo a estarem de acordo
com as representações que elaboramos do passado. Ao recordarmos elaboramos uma
representação social da nossa identidade, definimos nossa identidade social e coletiva.
A estruturação da memória para dar suporte à formação de identidades é realizada pela
seleção dos fatos a serem lembrados e da interpretação dos mesmos para quem recorda.
James Fentress e Chris Wickham destacam que:

A subjetividade essencial da memória é a questão chave por onde começar.


Claro que as recordações do passado também podem mudar com o tempo,
mas mesmo quando não mudam, certamente serão seleccionadas, a partir de
um conjunto potencialmente infinito de memórias possíveis, pela sua
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relevância para os indivíduos que recordam, pelo seu contributo para a


construção da identidade e das relações pessoais (1992, p.112).

Conforme os autores supracitados, a construção das representações é


realizada a partir do entrecruzamento do tempo passado com o tempo presente. A
memória sintetiza os dois tempos históricos dando-lhes coesão e coerência. É através da
articulação da memória social que um grupo confere sentido ao seu passado e interpreta
suas práticas sociais. Essa articulação da memória é fundamental para compreendermos
a maneira como os grupos representam o passado no tempo presente. A memória busca
conceitualização de significados para situar social e historicamente o indivíduo
contribuindo de forma prospectiva para a construção de uma identidade social. (1992,
p.21-113). A formação de uma identidade social através da memória é essencial para
analisar a permanência dos ideais dos entrevistados. A memória não é meramente
retrospectiva; é também prospectiva. A memória dá uma perspectiva para a
interpretação das nossas experiências no presente e para a previsão do que virá a seguir.
Imagens e palavras são, portanto duas das mais importantes componentes na nossa
memória das narrativas. (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p. 70).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos Avançados. Vol. 5 n.11, 1991.
Disponível em: < http://goo.gl/WsRcY > . Acesso em: 24 de maio de 2013.
FARIAS Airton de. Além das armas: guerrilheiros de esquerda no Ceará durante a ditadura militar
(1968-72). Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2007.
FENTRESS, James e WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. Trad.
Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1994.
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. A Oralidade dos Velhos na Polifonia Urbana. Fortaleza: Premius,
2011.
MAIA JÚNIOR, Edmilson Alves. Memórias de luta. Ritos políticos do movimento estudantil
universitário (1962-1969). Fortaleza: Dissertação de Mestrado em História/UFC,2002.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3. Ed. São
Paulo: Contexto, 1994.
___________________________. História, metodologia e memória. São Paulo: Contexto, 2010.
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“NÃO PISE EM CIMA DE MIM”: CENSURA MORAL E MÚSICA NA


DITADURA MILITAR

Ivan Luís Lima Cavalcanti


Mestrando em História UFPB
ivangibb@hotmail.com
Resumo
Durante os anos 70 vários segmentos do meio artístico, senão todos foram alvos
de censura realizada pelo regime militar no país. No meio musical essa inspeção na
produção por parte dos militares atuou rigidamente ao ponto de proibir lançamentos de
músicas, trechos e às vezes até discos completos. A censura política foi bastante
utilizada nas canções engajadas, mas atentamos para a recusa dos ‘donos do poder’ as
músicas de um movimento denominado cafona, e que sofreu bastante negativa quanto a
sua produção e distribuição pelos censores. A essas músicas e seus respectivos
compositores e interpretes recaía a acusação de incitarem ações imorais em suas
canções, aludirem a atos levianos, perversos que transgrediam os bons costumes e a
moral da família além da tradicional ordem brasileira. Essa censura atuava com uma
repressão a amplos assuntos sociais que passavam desde a religião, crenças populares
até um simples namoro em local publico ou roupas menos compostas usadas pelas
‘pessoas comuns’. A discussão para este trabalho é entender como funcionaram os
mecanismos de coerção e censura militar (portanto, da censura moral) em torno desses
artistas e dessas canções, analisando os temas, expressões mais censuradas e seus
motivos, e ao mesmo tempo observar que esses tiveram uma grande aceitabilidade do
público brasileiro e foram as mais executadas nas rádios de todo o Brasil.

Palavras Chave: música-história-censura

Cinquenta anos depois do golpe militar e da instituição das inúmeras teias de


censura na sociedade, os brasileiros ainda tem bastante a investigar sobre uma das
ditaduras mais violentas implantadas em um país no cone sul. A partir de 1964 a grande
maioria dos mecanismos sociais e as diversões públicas sofreram influência direta dos
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generais e soldados nacionais. Jornais, Revistas e outros veículos de informação foram


constantemente censurados (a não ser que fossem favoráveis ao regime implementado
pelos oficiais e mesmo assim passaram pela censura) já desde 1964 e não apenas a partir
da implementação do AI-5 em dezembro de 1969. Essa maneira de tolher não teve tanto
a preocupação de se desfazer dos manuscritos oposicionistas ou de mandar incinerar
jornais como fez o personagem Winston Smith, no famoso romance de George
Orwell345. A forma prévia de censura prevalecia na ameaça do ‘terror’e de forma prática
nos ambientes em que se fazia material textual, artístico (em vários jornais, revistas e
nas gravadoras eram colocados censores que liam o material produzido antes desse ser
liberado publicamente).
Vários autores hoje concordam que o golpe de 1964 não foi apenas uma
pretensão militar. Bastante foi a participação civil no golpe e principalmente na
manutenção do regime autoritário, através da participação de grupos econômicos e do
auxilio com a censura. É importante ressaltarmos a participação civil na atuação da
censura do país através de cartas destinadas ao DOI-CODI, aos ministérios e a demais
serviços de informação. O conteúdo dessas cartas estava muitas vezes relacionados a
denúncias de pessoas que se sentiam ‘moralmente’ atingidas por transgressões morais
que viam em letras de canções, imagens de TV, caricaturas e diversões públicas
Notamos dessa forma que essa parte da sociedade participava mesmo indiretamente das
ações de censura moral.346
Se considerarmos que os três pilares da ditadura se constituíam de espionagem,
polícia política e censura (FICO, 2012, p.175), escolheremos então o terceiro pilar
relacionado às canções nacionais para aqui apresentar pequenas discussões sobre o
mecanismo de censura na música, principalmente mantendo como foco a produção
musical brasileira que julgamos densa, importante e reveladora.
Antes propriamente de se argumentar sobre e censura ou sobre formas de
repressão no país pós 1964 é necessário lembrar que aquela não foi inaugurada com este
regime. As questões ligadas à censura no país (para não se alongar no tempo até o

345
Winston Smith é personagem do livro ‘1984’ romance escrito por George Orwell criticando as ações
de um estado ditatorial e a necessidade de controle da informação. Esse personagem era responsável
por incinerar jornais e outras mídias que tivessem informações não interessantes ao governo.
346
Uma análise mais ampla dessas cartas em: Prezada Censura: Cartas ao regime militar. Disponível em
http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/fico_prezada_censura.pdf acessado em 27-03-2014
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império) foram amplamente existentes desde o início do período republicano. Ainda no


governo Floriano Peixoto era proibido manifestar-se em publico contra seu governo ou
escrever sobre suas ações e decisões. Adiante, no governo Vargas (1930-1945) foram
instaurados métodos de censura nos meios de comunicação como também nas ações e
intervenções sociais. A censura nesse governo possuía como prioridade o elemento
político e pra isso foi implantado o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda).
Sobre isso nos apresenta um relevante comentário o professor Carlos Fico, em seu
artigo intitulado Prezada Censura:
[...] censura prévia das diversões públicas sempre existiu, sendo inteiramente
admitida pelo regime militar, que persistiu usando o formato instituído em
1946, apenas fazendo adaptações, como as que o Decreto-lei no 1.077
discriminava, isto é, o controle da TV (que não existia em 1946) e das
revistas e livros que se multiplicavam na época abordando questões
comportamentais (sexo, drogas etc.) e que, na ótica que vigorava, afrontavam
os “bons costumes”. O Decreto-lei falava em “publicações”, mas isso não
incluía a censura de temas estritamente políticos nos órgãos de imprensa.
(FICO, 2002, p.257)
Preservação dos bons costumes e da moralidade eram requisitos exigidos em
documentos, textos e divulgações de qualquer mensagem pública para que fossem
liberados pelos vetos varguistas. Percebendo isso, notamos que grande parcela da
sociedade brasileira durante o século XX aderiu a princípios conservadores, muitas
vezes herdados de ideias governistas, e implementou ao longo deste período no seu seio
um modo particular de censura moral, independente de ações dos censores oficiais. Essa
perspectiva segue as observações do sociólogo inglês Guindaste Brinton, que ao
analisar fenômenos ditatoriais de direita e de esquerda afirmou que a repressão politica
vem acompanhada da repressão moral. (ARAÚJO, 2014, p.94)
Homossexualismo, promiscuidade, traição, prostitutas, embriaguez; todos esses
termos durante o Brasil republicano acabaram sendo bastante censurados sob qualquer
espectro por grande parte da população. Tal condenação provém além de manutenções
sociais conservadoras, de uma influencia no discurso governista de ‘bons costumes’ e
‘moralidade’. O elemento religioso e principalmente católico foi fundamental para
ajudar a cristalização desses pré-conceitos sobre qualquer desses temas.
Como citado nesse texto em sua parte introdutória, a censura estabelecida a
partir do golpe de 64 ampliou-se a vários segmentos de comunicação e principalmente o
que norteia nossa proposta neste trabalho -, a música popular brasileira. Mas atentemos
que ao falarmos de música e suas limitações de execução, cortes em melodias e vetos
não nos deteremos naquelas canções e artistas que já são destacadamente difundidos na
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imprensa e nas produções textuais sobre a MPB como cantores politizados que foram
censurados e que resistiram ao regime, estabelecendo lindas metáforas e sendo
referenciados como grandes nomes da nossa música por tais ações.
A censura moral estabelecida pelos censores militares durante a ditadura atingiu
uma grande parcela dos cantores mais populares do Brasil: Os cantores da chamada
música ‘Cafona’ romântica. Poucos são os estudos sobre esse grupo de cantores que, a
partir de suas experiências cotidianas foram responsáveis por analisar aspectos das
relações de sociabilidade através de letras/crônicas relacionadas às experiências
culturais do país anos 70, e menos ainda sobre as incidências de censura na obra desses.
Essa vertente musical foi um grande fenômeno nas rádios, nas vendagens de
discos347 e nas realizações de shows (mesmo que em lugares pequenos) nos anos 70. O
movimento musical conhecido como Cafona contou com a participação dos maiores
vendedores de discos do país naquela década como Paulo Sérgio, Fernando Mendes,
Lindomar Castilho, Odair José, Waldick Soriano e muitos outros. Suas canções foram
pertinentes crônicas sociais sobre o país justamente pelo fato dos autores dessas estarem
inseridos no meio social de baixa renda (assim como grande parte de quem os ouvia) e
de vários dilemas sociais. Observamos a relevância de discutir a censura em um
movimento que teve em seu ‘cerne’, cantores tão populares que venderam muito e
foram bastante executados nas rádios. A partir de nossa análise podemos perceber a
presença maciça de denúncias sociais além de posicionamentos transgressores em
relação aos padrões culturais vigentes à época, dando visibilidade às tensões e às
contradições com o regime disciplinador. Argumentamos que a censura agiu sobre esse
grupo de artistas visando a preservação dos ‘bons costumes e da moral cívica’.
Os cortes em letras de músicas, as proibições de temáticas e até vigilância nos
shows, diferentemente do que se imagina acerca dos anos 70, atingiu não apenas
cantores tradicionalmente lembrados como fieis opositores ao regime como Chico
Buarque, Vandré e Gilberto Gil, mas também maciçamente aos chamados cantores
‘cafonas’. Essa afirmação nos parece pertinente principalmente após a disponibilidade
dos documentos relacionados às músicas no Brasil do período militar no Arquivo
Nacional. Nessa documentação podemos encontrar vários processos de canções
censuradas ao longo dos anos 70 e suas tentativas de defesa pelos autores.

347
http://www.iaspmal.net/wp-content/uploads/2012/01/EduardoVicente.pdf -Os dados do Nopem e o
cenário da música brasileira de 1965 a 19991 (acesso em 26/03/2014)
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A partir do contato com vários processos de censura e vetos sobre canções dos
anos 70 escolhemos apresentar aqui três das canções que foram censuradas devido a
questões morais para nortear um pouco como se dava o corte ou proibições nessas
canções, salientando as justificativas dos censores e as réplicas (muitas vezes) dos
autores na tentativa de liberar suas músicas.
A seguir apresentaremos canções do cantor Odair José, um dos principais
representantes desse movimento musical e que foram alvo da censura moral. Nessas
canções esse autor nos apresenta problemas cotidianos que ainda não tinham sido
escritos em formas de música, como por exemplo, numa canção ser narrada a ida de um
homem a um prostíbulo em uma noite e o fato dele se apaixonar por uma prostituta; a
incitação a transgressão no casamento; a instituição da pílula anticoncepcional; o
questionamento do matrimônio.
Com base nesses documentos resolvemos nesse pequeno espaço comentar, por
exemplo, sobre as canções ‘Pare de tomar a pílula’ e Amantes para exemplificar o que
argumentamos acima.
Abaixo a letra da primeira canção que antes de ser lançada no disco Odair 1973
foi submetida à censura e recusada:
Pare De Tomar A Pílula
(Odair José, Polydor - 1973)
Já nem sei há quanto tempo/ Nossa vida é uma vida só/E nada mais
Nossos dias vão passando/E você sempre deixando/ Tudo pra depois
Todo dia a gente ama/ Mais você não quer deixar nascer/ O fruto
desse amor
Não entende que é preciso/ Ter alguém em nossa vida/ Seja como
for
Você diz que me adora/ Que tudo nessa vida sou eu/ Então eu quero
ver você/ Esperando umfilho meu/ Entao eu quero ver você/
Esperando um filho meu
Pare de tomar a pílula/ Pare de tomar a pílula/ Pare de tomar a
pílula/ Porque ela não deixa o nosso filho nascer

Essa canção acabou tendo uma grande repercussão quando lançada devido a um
fervoroso debate social que acontecia em torno do uso ou não da pílula
anticoncepcional. Vários setores conservadores eram contra o uso e muito se falava
sobre os danos que tal medicamento poderia trazer. Ao passo que o governo militar
(nesse período estávamos sob o rígido governo Médici) lançara pouco antes uma
campanha a favor do uso anticoncepcional como uma das estratégias do governo de
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controle do crescimento populacional, considerado desordenado e relacionado,


especificamente, aos grupos sociais de baixa renda.
A campanha criada pela BEMFAM (Sociedade Civil de Bem Estar da família no
Brasil) orientava as mulheres de família de baixa renda e se empenhava na farta de
distribuição dos chamados DIU (dispositivo Ultra-Interino348). Acerca dessas canções
tivemos acesso a alguns documentos que mostram toda a relação de censura em torno da
música. Os documentos apresentados abaixo da canção que discutimos mostram que a
mesma foi censurada pelo motivo da ‘ordem moral’.
Abaixo notamos o documento no qual o cantor faz a defesa de sua canção para que ela
fosse liberada. Importante à ressalva de que o documento de proibição dessa música não
consta nos arquivos em que pesquisamos. Nesses localizamos apenas parte do
documento onde há um corte do. Segundo ARAÚJO (2005), esta canção foi censurada
meses antes do documento que apresenta a defesa do autor:

348
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Opcit, 64
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Ao analisar o documento acima, notamos que o autor Odair José argumenta


usando um discurso moralista/religioso para tentar conseguir a liberação de sua canção.
Omite (ou realmente desconhecia) qualquer referência a campanha realizada pela
BENFAM e observa que sua letra é a favor da moralidade, da constituição da família e
naturalmente, do nascimento de criança, que consolidava o núcleo familiar.
Explicitando a presença do elemento moralista cristão na sociedade brasileira a
canção “Amantes” foi submetida à censura militar no ano de 1974 e foi veementemente
proibida. Sua letra apresenta uma relação extraconjugal com uma amante. Na letra o
autor se diz disposto a matar o desejo e amar a amante, mas que esta tenha cuidado para
não deixar marcas em seu corpo para que sua esposa, ao chegar em casa, não desconfie
da traição.Segue abaixo o documento oficial (com a letra) de veto assinado pelo censor
no ano de criação da música:
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No documento observamos a seguinte justificativa ao veto: “Ligação Amorosa Irregular


e comentários pouco convenientes”. Essas argumentações dos censores evidenciam a
censura ao que fosse moralmente condenável. O casamento como instituição é atribuído
como algo que não pode ser arranhado. As ações estatais propõem uma ‘intervenção’
ainda que indireta nas relações dos casados. A relação de infidelidade era moralmente
condenada e não poderia ser apresentada numa canção, pois estaria estimulando novos
casos de adultério.
Socialmente, mesmo que não tivesse contente com a relação conjugal ou desejasse
se divorciar, o homem teria dificuldades legais de se desvincular de sua esposa, afinal
em fins de 1974, é bom lembrar que o divórcio no país não tinha sido legalmente
instituído349 e que o elemento religioso (moralista) se fazia presente não apenas nas
palavras escritas pelo censor, mas em ampla opinião publica.

349
Para mais informações sobre o divórcio no país:BERQUÓ, Elza. “Arranjos familiares no Brasil: uma
visão demográfica”. In: NOVAIS, Fernando A.. (Dir.). História da Vida Privada no Brasil. Volume 4:
Contrastes da Intimidade Contemporânea. (Org. por Lilia Moritz SCHWARCZ). São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. pp. 411-438
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A partir dessa apresentação de argumentos e documentos acima notamos duas


coisas pertinentes para a análise dos mecanismos de diversões censurados no país nos
anos 70: O primeiro é que a censura política não pode ser referenciada como única; a
censura moral se fez presente no país de forma bastante enérgica durante o período
militar e que esta censura apesar de não ser criação do governo instituído em 1964,
ampliou-se em vários setores e assuntos populares fazendo com que muitas das
angústias e críticas sociais trazidas principalmente realizadas pelos cantores
‘românticos’ (não necessariamente políticas) tivessem de ser silenciadas.
Outra importante análise realizada e rapidamente apresentada neste trabalho é de
que os cantores do movimento cafona foram censurados muitas vezes. Odair José,
Lindomar Castilho, Agnaldo Timóteo foram alvo dos vetos militares. Acreditamos que
dentro das canções tolhidas pelos censores existiam várias denúncias, oposições, críticas
e depoimentos avessos a manutenção do governo vigente. Não argumentamos que
foram críticas diretas e exclusivamente ao militares ou a forma de governo do período,
mas muitas vezes as condições históricas de uma classe trabalhadora, relações
amorosas, a restrições impostas pela sociedade e pela religião.
Essas informações nos apontam para uma nova perspectiva sobre essa forma de
censura durante o regime militar e também para os cantores que foram tão populares,
censurados e continuam muitas vezes por preconceito de estudiosos, afastados daquilo
que ajudaram a construir: a verdadeira musica popular no Brasil.
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Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou Cachorro, não: Música Popular Cafona e
Ditadura Militar. 5ª. edição. Rio de Janeiro: Record, 2005.

ARAÚJO, Paulo Cesar de. O Amor e o poder: Sensação das classes populares, música
cafona enfrentou a ditadura com críticas à desigualdade e ao moralismo. In Revista de
história da biblioteca nacional.Ano 9, nº 100, janeiro de 2014.
FACINA, Adriana (org.). Vou fazer você gostar de mim: debates sobre a música
brega.Rio de Janeiro:Multifoco, 2011.
FICO, Carlos. Espionagem,policia política, censura e propaganda: os pilares básicos da
repressão. In O Brasil Republicano:O Tempo da ditadura: regime militar e movimentos
sociais em fins do século XX .FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucília de Almeida
Neves (Orgs.) 5ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
FICO, Carlos. Prezada Censura: Cartas ao regime militar. In Revista Topoi. Ano 5,
vol. 03, 2002.
NAPOLITANO, Marcos “Os Festivais da canção como eventos de oposição ao regime
militar brasileiro” In O Golpe e a ditadura Militar: 40 anos depois 1964-2004. REIS,
Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo, SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (Orgs.) São Paulo:
EDUSC, 2004.

http://www.censuramusical.com.br. Acessado em 10/03/2012

Fontes Primárias
ARQUIVO NACIONAL Base de dados: Letras Musicais. Referência: PH.0.TXT.5893
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OS ARAUTOS DA DITADURA MILITAR: O MÃO BRANCA E A


IMPOSIÇÃO DE UMA HIGIENE SOCIAL NA SOCIEDADE PARAÍBANA DO
INÍCIO DOS ANOS 80.
Jonathan Vilar dos Santos Leite
Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
Bolsista do Programa de Educação Tutorial de História
jonathan_vilar@hotmail.com

RESUMO: O presente artigo procura analisar de que forma se baseava a limpeza social
de formas efetivamente práticas e ideológicas na sociedade Paraibana – e
principalmente campinense – pelo grupo de extermínio Mão Branca, que, em 1980
torna-se manchete de jornais paraibanos como A Gazeta do Sertão, o Jornal da
Borborema e o Jornal da Paraíba. Baseado no caso de um esquadrão da morte de mesmo
nome surgido na Baixada Fluminense (Rio de Janeiro) e que foi responsável por uma
sequência de assassinatos de pessoas tidas como “perigosas” e que “botavam em risco a
segurança pública”. A partir disso, utilizando fontes como jornais da época e o processo
criminal do caso, iremos traçar um paralelo com o perfil de grupos de justiçamento
privado tão característicos da Ditadura Militar brasileira e através de diálogos com
autores como Paul Ricoeur e José Fernando Siqueira da Silva, iremos perceber de que
maneira a violência se instaurou enquanto “herança de uma violência fundadora” repleta
de um ideal de higienização e limpeza social no estado da Paraíba.
PALAVRAS-CHAVES: Esquadrão da Morte, Higienização Social, Ditadura Militar

1.0 – Grupos de Extermínio: do cenário nacional ao estadual.

Os grupos de extermínio e suas origens, ao que pode parecer, não surgem apenas
no período de Ditadura Militar (1964 – 1985), mas suas aparições e ações na história do
Brasil possuem longa data – que permeiam do período Colonial à República sob
diferentes formas (SILVA J.F.S. da, 2004, p.10). O Mão Branca foi uma das marcantes
manifestações desse fenômeno que é o justiçamento privado no Brasil (e por que não
dizer no mundo?).
Estes grupos surgem totalmente na ilegalidade – embora, em alguns casos, sejam
respaldados pelo Estado por meios obscuros e discretos – justamente a partir de uma
fragilidade, ineficiência ou ausência das instituições coercivas
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[...] dado que as instituições responsáveis pela punição do delito não funcionam e não tem
credibilidade perante a sociedade, tais instituições não são procuradas, como deveriam pela
população. Daí surge um vazio constitucional onde se abre um vasto campo para a formação de
novas instituições, informais, que agem contribuindo ainda mais para o crescimento da
mortandade homicida no Brasil. (NOBREGA JUNIOR, 2012, p.106)
Neste caso, o que ocorre é uma falha seja da polícia, do ministério público, do
sistema judiciário ou do sistema penitenciário que acaba por gerar brechas para a ação
de grupos que fazem justiça com as próprias mãos para, segundo eles, fazerem o que o
Estado deixou de fazer.
O caso específico do Mão Branca trata de um fenômeno de grandes proporções
que tomou o Brasil e até mesmo outros lugares do continente350. No case brasileiro, ele
surge na baixada Fluminense e se expande para outros lugares como São Paulo, Distrito
Federal, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte entre outros possíveis estados durante o
período da Ditadura Militar, em um cenário de muita violência e opressão em que temos
não só o Mão Branca, mas também vários outros esquadrões como o “Mão Negra”,
“Scuderie Le Cocq”, “Rosa Vermelha”, “Lírio Branco”, “Cravo Vermelho”, “Homens
de Ouro”351 entre outros que se localizavam principalmente nas regiões sul e sudeste,
agindo principalmente em estados como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.
Os principais pontos em comum que dão perfil a estes grupos de justiceiros do
período da Ditadura Militar brasileira é a motivação que os levam a cometer os
assassinatos e seus alvos. Para eles o que serviu de justificativa para os assassinatos
cometidos está justamente atrelada a essa “falha” do Estado em promover segurança
pública devida e efetiva e que a violência deveria ser um problema sanado, senão pelo
Estado, por eles mesmo, para eliminar seus alvos – “a corja da sociedade”, os ladrões,
arrombadores, traficantes e quaisquer outros que ameaçassem o bem estar e segurança
da sociedade.

350
Como a “Gangue Mão Branca” eu agia principalmente em Manhattan, Estados Unidos e composta por
irlandeses. O grupo agiu entre 1905 e 1920, aproximadamente, num cenário de disputa de contrabando
onde o grupo de extermínio matava todos aqueles que fossem dedos-duros ou traidores, além de fazerem
extorsões. Para mais informações sobre o Mão Branca estadunidense ver em:
http://artofneed.wordpress.com/2013/07/10/the-white-hand-gang/
Outro lugar que também contou com a possível presença de um grupo de mesmo nome foi El Salvador
que, segundo afirma o jornal Estado de São Paulo (Sexta-Feira, 23 de MAIO de 1980, p.06) estava sendo
formado um exército Anti-Comunista formado por vários grupos, em que um deles seria o “Mano
Blanca” que tinha como finalidade caçar todos os comunistas presentes numa “lista negra” e eliminá-los.
351
Ver artigo “São Paulo e Rio de Janeiro: A Constituição do Esquadrão da Morte” da Profª Drª Marcia
Regina da Costa no site: http://www.omartelo.com/omartelo23/materia2.html
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O Mão Branca no Brasil, que começou a atuar na baixada fluminense com pouco
tempo depois que se instaura a Ditadura Militar e é motivo para a causa de muito
controvérsia entre vários órgãos públicos e demonstração de reprovação às ações dos
justiceiros através da imprensa, como é retratado no depoimento do Ministro de Justiça
Abrahim Abi-Ackel que revela seu repúdio ao esquadrão da morte em questão352. Por
outro lado, se haviam aqueles que repudiassem os atos dos “bem feitores”, haviam
também os que compactuavam com seus feitos, como é o caso do “homem de ouro” da
policia carioca, Mariel Mariscot, que além de achar válida a atitude do esquadrão, apoia
também a pena de morte no país para sujeitos delinquentes353. Além disso, é de se notar
a própria maneira pela qual o jornal paulista trata do Mão Branca na mesma matéria da
entrevista de Mariscot, em que dirigem-se aos justiceiros como “um grupo de
extermínio de bandidos”.
Falar de bandidos nesse período da história brasileira é lembrar que havia uma
gritante diferença para as concepções atuais de “bandidagem”, onde ser comunista
(assumido ou não), ser usuário de maconha ou simplesmente ficar na rua tarde da noite
ou pela madrugada e sem portar documentos de identificação já tornava quem quer que
fosse um bandido em potencial, ou seja, as concepções para criminosos, culpados e
merecedores de julgamento no “veredito supremo” dos esquadrões da morte são bem
mais ampliados e devem ser cuidadosamente analisados quanto ao tocante da taxação de
“bandido”, “criminoso”, “meliante” e entre outros termos. Para isso devemos atentar
que a concepção de bandido nem sempre está atrelada a uma certa visão cristalizada que
habita o senso comum, mas que como Eric Hobsbawm afirma o banditismo pode
caracterizar-se por sua ordem simultaneamente “econômica, social e política, ao
desafiar os que têm ou aspiram o poder a lei e o controle de recursos” (2010, p.21). O
autor frisa ainda que “os bandidos, por definição, resistem a obedecer, estão fora do
alcance do poder, são eles próprios possíveis detentores do poder e, portanto, rebeldes
em potencial” (HOBSBAWM, 2010, p.26), portanto qualquer um que fosse contra os
princípios da Ditadura poderia ser facilmente enquadrado nesse categórico termo de
“bandido” e sofrer as devidas consequências.
Algo que, possivelmente, pode ter corroborado com esse olhar de reprovação para
com os Mão Branca, deve-se ao fato de uma ação simultânea de vários grupos de

352
Cf. Ackel reafirma combate. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. P.23, 13 de Março de 1980.
353
Cf. A favor da pena de morte. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. P.17, 18 de Abril de 1980.
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extermínio atuando por todo o Brasil, dando uma aterradora atmosfera de medo entre
alguns setores da sociedade brasileira e, no nosso caso específico, paraibana, assustando
vários populares. A partir daí, para ir de encontro às ações de justiçamento privado,
surge em cena a figura da igreja católica com a Comissão de Justiça e Paz (que agiu não
só no sudeste como em Campina Grande), estudantes da UNE, além de vários
intelectuais da época. Figuras como o promotor campinense Agnello Amorin (LEITE,
1997, p.149-150) , o bispo Dom Emanuel (Ibid., p.114), o deputado e advogado Geraldo
Beltrão (Ibid., p.60-61) e o Professor Sandro Meira da Universidade Federal de
Campina Grande (Ibid., p.66-67) deixaram sua opinião repudiando a ação do grupo de
justiceiros que começavam a agir na Paraíba (inicialmente na cidade de Campina
Grande) como relata o ex-jornalista policial da época, Ronaldo Leite.

1.1 – Ditadura Militar, Força Policial e Justiceiros: três pontos em comum.


O Mão Branca, assim como outros grupos de extermínio – surgem e agem sempre
em períodos históricos distintos e por motivações singulares e diferenciadas, mas que
possuem entre si similaridades. Em um plano mais visivel podemos perceber estas
convergências, por exemplo, no uso de uma violência exacerbada e impiedosa com
métodos de assassinatos sempre dolorosos e cruéis, além dos alvos que são –
teoricamente – os “bandidos, criminosos e malfeitores da sociedade” que botam em
risco a vida e segurança da população, esse discurso também é algo que está fortemente
presente no período da Ditadura Militar, palco desse fenômeno que foi (e ainda é) o
justiçamento privado. A relação entre ditadura, policia e justiceiros iremos traçar no
decorrer deste tópico.
Quanto a isso José Fernandes Siqueira da Silva nos revela traços caracterizadores
dos atos violentos praticados pelos justiceiros em seu estudo em que
A quantidade de tiros que uma mesma vítima recebe é grande, frequentemente direcionado aos
pontos estratégicos do corpo, ou seja, cabeça nuca e peito. Aliás, atirar em lugares específicos do
corpo pode significar algo mais. Estupradores normalmente são dilacerados por todo o corpo
(inclusive nas genitálias); os delatores são frequentemente atingidos na boca; aqueles que
presenciam algum crime e prejudicam, de alguma forma, os matadores, são feridos nos olhos. Isso,
no entanto, não é uma regra. O que interessa é eliminar o infrator e, se necessário, fazê-lo sofrer.
Exacerbar o ato significa, em última instância punir o criminoso com mais força e de maneira
exemplar. A ironia e o sadismo combinam-se, reproduzindo situações que revelam uma técnica
extremamente apurada de exterminação. (2004, p.69)
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Com os justiceiros paraibanos não foi diferente. Como é possível constar no


processo criminal do caso Mão Branca, há registros dessa violência354 através de
documentos como habeas corpus, fotografias e recortes de páginas de jornais em ficam
explícitos os métodos adotados pelos carrascos como assassinatos com vários tiros355 de
espingarda .12, por exemplo (LEITE, 1997, p.60).
Tudo tem início no dia 15 de Abril de 1980 na cidade de Campina Grande –
Paraíba – quando é feita uma ligação para a delegacia de polícia com um sujeito
desconhecido anunciando que “mais um havia ido para o inferno”356. Surgia então na
paraíba um grupo de extermínio inspirado no Mão Branca da Baixada Fluminense. O
esquadrão paraibano contava com a figura de cinco policiais civis: Cícero Tomé da
Silva (Supervisor da Polícia Civil), José Basílio Ferreira “Zezé Basílio” (investigador),
Carlos José de Queiroz “Zé Cacau” (investigador), Antônio Gonçalves da Costa
“Temporal” (investigador) e Francisco Alves (investigador) que trataram de elaborar
uma espécie de “listão” que continha os nomes das futuras vítimas do quinteto357. O fato
de cinco policiais estarem envolvidos diretamente com o caso não é mero acaso, muito
menos foi a primeira vez que isso aconteceu no período da Ditadura Militar; na verdade
a participação de policiais em grupos de justiceiros foi algo bastante comum durante
este período. Como bem observa José Fernando Siqueira da Silva, este fenômeno foi
típico da “formação do Estado autoritário de direita, organização esta comum em toda a
América Latina entre os anos de 60 e 80 do século XX. É nesse contexto que os
justiceiros foram legitimados como tais” (2004, p.85).
A ligação de policiais com esse tipo de prática se deu de forma contundente
durante a Ditadura. Grupos citados anteriormente como o “Mão Negra”, “Scuderie Le
Cocq”, “Rosa Vermelha”, “Lírio Branco”, “Cravo Vermelho” e os “Homens de Ouro”
tinha a presença\influência de militares nas ações destes.358 Como afirma Hélio Bicudo

354
Para isso utilizamos o Processo Criminal do caso Mão Branca totalmente digitalizado e que pode
encontrado no original impresso no Fórum Afonso Campos em Campina Grande – 2ª Vara Tribunal do
Juri datado de 1980.
355
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. “Mão Branca” cumpre promessa: Mocotó, Paraibinha e Queimadas
foram executados com 20 balaços. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande. p.05. Quinta-feira, 17
de Abril de 1980.
356
CLOVIS Melo de. “‘Mão Branca’ matou ‘Beto Fuscão’ Este foi o primeiro de uma lista negra. Outros
morrerão logo”. Jornal da Paraíba. Campina Grande. p. 07. Seg.15 de Abril de 1980.
357
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. O Listão. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande - p-08- Seg.
14 de Abril de 1980.
358
Outro exemplo também que merece destaque é o caso do Cabo Bruno, que ficou conhecido por adotar
o papel de justiceiro, matando vários criminosos que agiam nas regiões periféricas de São Paulo,
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(1988, p. 109) “o ‘justiceiro’ não precisa ser, obrigatoriamente, um policial. E muitas


vezes não o é. Mas, em todos os casos tem ligações com a polícia. Ele precisa de ter as
‘costas quentes’”.
Quanto a essa relação entre ambos podemos destacar alguns fatores que
corroboravam para a coexistência destes dois ofícios (um legal e outro, teoricamente,
ilegal). Em primeiro lugar a ditadura, com sua política de rigidez e violência
escancarada contra a subversão (que, como vimos, tinha caráter bastante abrangente)
acabava por incentivar certas práticas violentas por parte da policia contra aqueles que
tentavam quebrar a ordem vigente a fim de intimidar. Se por um lado sabemos que
havia a existência de várias práticas legalizadas de controle e punição (figurados nos
Atos Inconstitucionais) , por outro é todo sabido que ouve muito sangue derramado em
silêncio durante a ditadura, com destaque às mortes de militantes de esquerda,
sindicalistas ou muitas vezes até mesmo inocentes confundidos com estes outros; e para
além dessas mortes e desaparecimentos silenciosos, tínhamos as mortes (talvez) mais
brutais, mais públicas (estampadas nas manchetes de jornais e com corpos a céu aberto).
Estas últimas eram as causadas pelos grupos de extermínio. Fosse para matar
comunistas, fosse para matar criminosos, estes “matadores oficiais” tinham total
respaldo e aparatos oriundos do braço do Estado Militar que das formas mais discretas
dava apoio não só ideológico e legal – como vimos pouco acima –, como também
fazendo vista grossa perante as atrocidades injustiças que eram cometidas dia após dia.
Além disso, a polícia tinha todo um aparato material como o acesso a armas e outros
itens, além de treinamento e técnicas para lidar com criminosos de forma mais ostensiva
possível. A policia era assim o braço direito do Estado Militar durante a ditadura já que
era esta corporação que fazia todo o trabalho sujo que oficialmente este Estado não
poderia fazer, até porque o governo alertava aos brasileiros de que aquilo não era
Ditadura coisa alguma – mas sim a “Revolução Militar”, como até hoje chamam – e que
eles estavam preservando o Brasil dos males que o poderiam afligir (“a ameaça
vermelha”) e administrando o país para o futuro, sem corrupção e num constante
progresso da nação. Se a nação progrediu ou não durante este período, não cabe aqui
esta discussão, mas que muito sangue foi derramado na tentativa de firmar este discurso
de avanço na nação, disso não há dúvidas.

entretanto por não se tratar por um grupo de extermínio propriamente dito (pois ele agia sozinho, até onde
se tem provas) acabei optando por não inclui-lo na lista de esquadrões da morte.
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2.0 – A higienização do Mão Branca sendo posta em prática na Paraíba.

O Mão Branca começa suas ações inicialmente em Campina Grande, onde


habitavam os integrantes, e com o passar do tempo eles saem da cidade e vão ao litoral
na pretensão de fazer uma limpeza social em João Pessoa também, segundo Ronaldo
Leite, repórter policial que acompanhou de perto o caso dos justiceiros na época
(LEITE, 1997, p. 100-103). Entretanto é importante salientar que os 5 policiais civis
foram processados e julgados apenas por 9 assassinatos – todos em Campina Grande –
embora durante o período de ação do grupo tenham acontecido várias mortes
misteriosas em João Pessoa e algumas outras em cidades menores do estado da Paraíba.
Independente do número de mortos – sejam os 9 mortos oficiais ou as dezenas de
mortos segundo Ronaldo Leite e muitas outras pessoas que viveram a época – há uma
constante invariável neste fenômeno: o intento em promover uma higiene social na
sociedade paraibana. Esta limpeza social defendida e empreendida pelo grupo de
extermínio Mão Branca era realizada devido a uma crescente preocupação com o
equilíbrio e com a harmonia da sociedade onde o grupo de matadores teria a tarefa de
sanear e limpar a sociedade, ou seja higienizá-la (SILVA J.F.S., 2004, p.66).
Na Paraíba, e mais especificamente em Campina Grande, a ação destes justiceiros
era justificada pelo crescente aumento da violência na cidade com o elevado número de
furtos, assaltos e até assassinatos que afligia a sociedade campinense e preocupava os
órgãos de segurança pública que se viam de mãos na cabeça por não poderem dar cabo
da situação visto que o corpo policial (militar e civil) local eram diminutos, com poucos
recurso e devido a isso eram impossibilitados de realizar um combate efetivo ao crime
frente ao tamanho desaparelhamento (LEITE, 1997, pg. 13-14)
Esse aumento da violência urbana que afligiu o estado paraibano e principalmente
a cidade de Campina Grande – foco inicial dos assassinatos do Mão Branca – devem-se
a um crescente desenvolvimento urbano-demográfico e econômico ocorrido na cidade
que acabou por aumentar os contrastes sociais, viabilizando o aumento de favelas e
bairros de periferia com massas de pessoas desempregadas em muitos casos. Em contra
partida o corpo policial não aumentava de forma proporcional ao crescimento
demográfico. Ronaldo Leite (1997, pg 13) aponta também que esse alto índice de
violência se dá pelo fato da ação de vários grupos de extermínio na parte sul do Brasil –
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com ênfase no Rio de Janeiro – que acaba por aterrorizar muitos criminosos que migram
para a região Nordeste, que inclusive é terra natal de muitos deles359.
Quando a imprensa começa a publicar pelo Estado as matérias sobre os
justiceiros, percebemos em publicações matérias sobre afirmações diretas do corpo
policial que atestavam que a cidade agora andava mais tranquila e segura, tendo o
número de queixas reduzido em torno de 70%360. Além de matérias que faziam sempre
questão de mostrar apenas “o criminoso que morreu”, “um bandido a menos na
sociedade”, “o terror espalhado pelo esquadrão da morte”, o que, por um ladoacabou
colaborando para que se formasse na opinião pública uma certa aprovação em relação
aos atos do grupo de extermínio logo cedo.361 Com o passar do tempo as publicações
dos jornais iam ficando cada vez mais aterrorizantes, havendo aqueles que não só se
expressavam contra os assassinatos promovidos pelo Mão Branca, como também
passaram a se mobilizar contra a situação assim como ocorreu no Rio de Janeiro, e no
caso campinense contou com a Comissão de Justiça e Paz, com alguns intelectuais da
época e alguns estudantes engajados, o que foi o necessário para fazer uma enxurrada de
denuncias para que se encaminhassem para o Ministério Público, como também uma
campanha contra o Mão Branca e sua brutalidade, além de uma série de acusações
contra o governo362 por sua negligência para com o caso. Contudo Ronaldo Leite afirma
que o governador se pronunciava contra as ações dos justiceiros na Paraíba (LEITE,
1997, p. 76 e 86).
A promoção dessa higienização acabou pondo em pânico vários criminosos da
cidade que passaram a fugir da cidade ou se entregar na delegacia com medo de serem
mortos pelos carrascos, dado que seus nomes estavam no famoso “listão do Mão
Branca” que havia sido publicado no jornal363. Esse efeito de terror poderia se enquadrar
no que Paul Ricoeur chama de “herança da violência fundadora”, em que “os mesmos
acontecimentos podem significar glória para uns e humilhação para outros” (RICOEUR,

359
Ver LEITE, 1997, p. 17 e 18.
360
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. Policia diz que a cidade está tranquila depois que o Mão Branca
surgiu. Coluna Opinião. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande. p.04. 28 de Abr. de 1980.
361
Como constata Ronaldo Leite, muitos vereadores eram a favor das ações do grupo (embora existissem
outros que fossem contra) (1997, p. 70-71) e também a opinião popular se mostrava muito favorável
principalmente daqueles que moravam em bairros mais elitizados, enquanto os que moravam em bairros
mais pobres muitas vezes se posicionavam contra as atitudes do Mão Branca e aparentavam sentir medo
ou então eram parcialmente a favor (1997, p. 76-78).
362
O governador da Paraíba que estava na gestão do Estado em 1980 era Tarcísio de Miranda Burity.
363
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. Marginais choram com medo do carrasco. Coluna Opinião. Jornal
Diário da Borborema. Campina Grande. p.04. 20 de Abr. de 1980.
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2008, p.95). De um lado temos “o Mão Branca que espalha o terror”: um discurso
jornalístico que vai mostrar justamente a glória da cidade de Campina Grande e
aumento da paz no Estado da Paraíba através das ações dos algozes de uma forma sutil
nas páginas de jornal de maneira que o leitor que lê sem estar muito atento a isso acaba
por deixar passar despercebido ao ver noticiários que tendem a demonstrar que a cidade
está ficando cada vez mais limpa de criminosos e segura para os cidadãos de bem (estão
exclusos aqui aqueles que estão à margem da sociedade, os que são comumente
confundidos com criminosos, mas não são); já por outro lado, há o lado dos humilhados,
daqueles que, tanto são comumente confundidos como bandidos por serem de bairros
periféricos onde “favelas e lugares segregados da cidade (bairros populares, becos e
cortiços) tornam-se espaço não só de exclusão, mas um destino certo para os
chamados\considerados ‘refugos humanos’” (SILVA L.E., 2010, p.71); daqueles que
estavam no listão sem ter nenhuma acusação legal contra si364.
Todavia é interessante ressaltar uma curiosa peculiaridade do esquadrão da morte,
que diferente de outros esquadrões, o Mão Branca também possuía em seu listão: “dois
advogados protetores de marginais”, “um PM de trânsito”, “Cabo Cabral”, “Sargento
Deca”, “Galego fiscal”, “Três Policiais Civis”, “Um policial de araque” e “Um rábula
militante no fórum”365. A presença destes homens marcados para morrer no listão dos
justiceiros revela que para além de uma higiene meramente social, havia o intento de se
fazer também uma higienização moral contra policiais corruptos, advogados que
fizessem defesa de criminosos, ou funcionários que não andassem dentro de códigos
não só criminal, mas moral onde os carrascos também prezavam por uma sociedade
mais honesta, correta e praticante de bons costumes. Isto acaba de certa forma
quebrando a tese de José Fernando Siqueira da Silva ao afirmar que os esquadrões da
morte, ao promoverem essa higienização social, elegiam os pobres como principal alvo
dessa política (SILVA J.F.S., 2004, p.71). Entretanto esta era uma peculiaridade
bastante distinta do grupo Mão Branca, em um plano geral de análise sobre o perfil de
justiceiros no Brasil, vale salientar.

364
O que nos leva a concluir que alguns nomes estavam presentes nos famosos listões (houveram dois) do
Mão Branca, estavam jurados de morte por algum problema pessoal dos integrantes com eles.
365
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. O Listão. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande - p-08- Seg.
14 de Abril de 1980.
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Por curiosidade ou ainda por ironia do destino ou o que quer que seja, o integrante
Zezé Basílio era acusado também de extorquir de criminosos objetos furtados, como
consta no guia de recolhimento do mesmo366.

3.0 – Conclusão: Mão Branca, uma justiça malograda.

Vimos que a prática do justiçamento privado no Brasil não é uma prática atual,
mas sim algo que deita raízes profundas na história de nosso país e que acabou
assumindo uma forma bastante peculiar e singular durante a Ditadura Militar brasileira e
que foi um período por si só muito marcante nas páginas da história desse país,
somando a esse caso dos grupos de extermínio que causaram grande alarde por todos os
lados (mídia, opinião pública etc.)
E foi a partir da transmissão desses acontecimentos através da mídia impressa, dos
processos criminais e das memórias inscritas e escritas pelo ex-jornalista policial,
Ronaldo Leite, que pudemos constatar o grau de subjetividade presente em cada notícia
e matéria publicada nas páginas de jornal as tensões e sensibilidades manifestadas na
sociedade paraibana da época.
Por fim fica a experiência de uma tentativa malograda de trazer paz e segurança
ao Estado da Paraíba por meios nefastos e questionáveis aplicados pelo Mão Branca
que, assim como todos os outros esquadrões da morte na história do Brasil (atual ou
não), não diminuem em nada os índices de violência, na verdade só os aumentam.
Segurança Pública é missão única e exclusiva do Estado.

- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- RICOEUR, Paul. A memória, A História e o Esquecimento. Tradução de Alain
Fraçois. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2008.
- NOBREGA JR, José Maria. Homicídios no Nordeste: dinâmica, relações sociais e
desmistificação da violência homicida. – 1ª ed. – Campina Grande: EDUFCG, 2012.
- SILVA, Luciana Estevam da. Cidade e Violência: Campina Grande na década de 1980
e as representações do “Mão Branca” nos jornais. Dissertação de Mestrado –
Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2010.

366
Guia de Recolhimento de José Basílio Ferreira. Emitido pelo Primeiro Cartório de Campina Grande –
1ª Vara. Fórum Afonso Campos em Campina Grande, 20 de Julho de 1988.
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- SILVA, José Fernandes Ferreira. “Justiceiros” e Violência Urbana. São Paulo: Cortez,
2004.
- HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Tradução de Donaldson M. Garschagen. – 4ª ed. – São
Paulo: Paz e Terra, 2010.
- LEITE, Ronaldo. A verdade sobre o carrasco Mão Branca. João Pessoa: A União,
2007.
- BICUDO, Hélio Pereira. Do esquadrão da morte ao justiceiros. São Paulo: Paulinas,
1988.
- SITES:
- http://artofneed.wordpress.com/2013/07/10/the-white-hand-gang/
- http://www.omartelo.com/omartelo23/materia2.html
- JORNAIS:
- Cf. Ackel reafirma combate. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. P.23, 13 de Março de 1980.
- Cf. A favor da pena de morte. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. P.17, 18 de Abril de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. “Mão Branca” cumpre promessa: Mocotó, Paraibinha e Queimadas
foram executados com 20 balaços. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande. p.05. Quinta-feira, 17
de Abril de 1980.
- CLOVIS Melo de. “‘Mão Branca’ matou ‘Beto Fuscão’ Este foi o primeiro de uma lista negra. Outros
morrerão logo”. Jornal da Paraíba. Campina Grande. p. 07. Seg.15 de Abril de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. O Listão. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande - p-08- Seg.
14 de Abril de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. Policia diz que a cidade está tranquila depois que o Mão Branca surgiu.
Coluna Opinião. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande. p.04. 28 de Abr. de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. Marginais choram com medo do carrasco. Coluna Opinião. Jornal
Diário da Borborema. Campina Grande. p.04. 20 de Abr. de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. O Listão. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande - p-08- Seg.
14 de Abril de 1980.

- PROCESSO CRIMINAL:

-Tribunal de Justiça da Paraíba. Comarca de Campina Grande. Juízo da Segunda Vara


do Tribunal do Júri. Distribuição nº. 3431/80, nº. 020-Volume 01; pp. 255. Volume 02,
pp.: 250- 487; Volume 03, pp. 491-745; Volume 04, pp.: 746-997; Volume 05, pp.: 998-
1359 e Volume 06, pp.: 1360-1467. Ano de 1980.
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COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DISPUTAS DE MEMÓRIA E UM


BALANÇO DE UM ANO DE ATIVIDADES

Modesto Cornélio Batista Neto367


Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
Email: modesto.neto@hotmail.com

RESUMO: O debate e a efetivação das pautas de luta pelo direito à verdade, memória e
justiça é um imperativo político imprescritível a construção de regimes democráticos
que coloca em cena, nos países que passaram por experiências de regimes autoritários a
necessidade de iniciativas políticas e jurídicas que se circunscrevem a Justiça de
Transição. Neste sentido, no Brasil através do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos
da Presidência da República de 2009 se estabeleceu o eixo Direito à Memória e à
Verdade como um dos principais eixos da política dos Direitos Humanos no país, sendo
dois anos depois aprovado no Congresso Nacional a Lei nº 12.528/2011 de autoria do
Poder Executivo que cria a Comissão Nacional da Verdade para apurar o desrespeito a
direitos humanos e promover a “reconciliação nacional” estudando o período
compreendido entre 1946 a 1988. Sendo assim, o presente trabalho objetiva fazer um
balanço crítico do relatório da CNV de um ano de atividades e discutir a relação
memória, história e poder, avaliando como a Comissão pode ser um instrumento de
disputa de memórias. Para tal, nos valemos da perspectiva marxista, especificamente da
interpretação do filósofo e sociólogo judeu Walter Benjamin e da relação existente entre
história e ciências sociais.

Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade. Memória. Democracia.

O DIREITO A VERDADE E O PANORAMA HISTÓRICO: CONSIDERAÇÕES


TEÓRICAS E PRÁTICAS

No corrente ano de 2014 completaremos meio século do início do período mais


nebuloso da história recente brasileira. O golpe civil-militar de 1964 que completa
cinquenta anos não se restringe a um marco temporal, mas a um paradigma político

367
Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN e acadêmico do Bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN.
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entre o Brasil e as demais nações do mundo ocidental que passaram pela experiência
intempestiva dos regimes fundados sobre a repressão e o autoritarismo.
O que está em jogo no debate sobre a redemocratização em curso que o Brasil
atravessa é muitas questões que buscam um mesmo fim, a ação do Estado. Desde a
inconstitucionalidade da Lei de Anistia de 1979 ao julgamento penal dos atores
envolvidos com a repressão, existem demais demandas dos direitos humanos que estão
em cena graças à reivindicação dos movimentos sociais pelo direito a verdade, memória
a justiça que precisam ecoar socialmente e mobilizar ações do Estado brasileiro que se
circunscrevam a justiça de transição368.
O presente trabalho volta-se exclusivamente para uma dessas iniciativas: a
instituição da Comissão Nacional da Verdade, tal como, as disputas de memória e poder
que estão em disputa. Para além desse ponto objetivo, nos debruçamos a fazer um
balanço crítico à luz do marxismo do relatório parcial que a Comissão Nacional da
Verdade (CNV) apresentou intitulado “Balanço de Atividades: 1 ano de Comissão
Nacional da Verdade” (2013).
Neste sentido acreditamos que a Comissão – embora não esteja explícito em
seus princípios de criação – tenha o dever de servir a história brasileira ao lançar uma
luz sobre o período sombrio de nossa trajetória recente enquanto país, esclarecendo os
inúmeros casos que ainda vagam sem explicação, sendo assim, vinculamo-nos ao
filósofo e sociólogo (BENJAMIN, 1987, p. 3) ao compreender que “somente a
humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado Isso quer dizer:
somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus
momentos” entendendo que desta premissa coloca-se a frente da Comissão um grande
desafio.
Assim como o historiador marxista constrói sua narrativa com vistas ao passado,
mas com os pés firmes sobre o terreno do presente refletindo os usos de sua produção e
suas respectivas consequências no contexto da luta entre oprimidos e opressores, o
agente político da ordem se fundamenta nos acertos e erros de seus opositores para

368
Vale neste sentido, destacar o significado da justiça de transição: “o conceito de justiça transicional
surgiu no final da década de oitenta e inicio da década de noventa principalmente em resposta às
mudanças políticas ocorridas na América Latina e no Leste Europeu. Da junção de demandas por justiça e
por transição democrática, o termo justiça transicional foi cunhado para expressar métodos e formas de
responder a sistemáticas e amplas violações aos direitos humanos. Assim, justiça transicional não
expressa nenhuma forma especial de justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o
direito das vítimas, promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da democracia”
(PINTO, 2010, p. 129).
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construir um arranjo discursivo que lhe coloque em condições de vitória, todavia essa
semelhança trás um elemento que deve ser observado. Ambos os personagens não são
neutros, isentos ou imparciais nos seus julgamentos, e, por mais que o passado esteja
distante temporalmente “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo
homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras” [...] Ela é um salto de tigre em
direção ao passado” (BENJAMIN, 1987, p. 14).
Historiadores, sociólogos, filósofos, políticos e toda sorte de humanos em
exercício nos mais diversos ramos do saber são parciais e por mais que não se dêem
conta disso, estão social e ideologicamente situados. Esta “parcialidade” nos coloca
frente a uma problemática que deve ser tocada e discutida. Então o resultado do
relatório final da Comissão Nacional da Verdade será um discurso de um setor social e
não a verdade como se pretende? Primeiro, quero advogar em torno da parcialidade.
Todos nós somos parciais em nossos julgamentos e práticas – o que é normal para o
homem de cultura e linguagem –, o que não quer dizer necessariamente que sejamos
mentirosos ou que manipulemos as informações sem o mínimo de rigor científico,
utilizando-a como massa de modelar para provar nossas hipóteses. Somos críticos ao
afirmar que é impossível fugir a parcialidade e que encobrir nossas inclinações teóricas
e políticas é ato de leviandade.
Levando em consideração o que foi exposto no último parágrafo é que
entendemos como acertada a fala da advogada e cientista política Rosa Maria Cardoso
da Cunha (membro e ex-coordenadora da CNV) que no dia 25 de julho de 2013
participou de uma mesa redonda promovida pela ANPUH369 onde afirmou textualmente
que a verdade produzida pela Comissão será a verdade das vítimas e dos sobreviventes.
Sendo assim, adiantamos que este trabalho reconhece as fragilidades do emprego da
terminologia “verdade” por esta estar impregnada de um amplo debate filosófico que
neste momento não é nosso foco, portanto consideramos razoável deixar claro que o
conceito de verdade que adotamos se circunscreve a perspectiva do direito à verdade
reconhecida pela ONU como cita o professor Raphael Neves (2012, p. 166) ao tratar da
“Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o
Desaparecimento Forçado” que ocorreu em 2006 e afirma o direito de toda vítima de

369
Associação Nacional de História – ANPUH, que promoveu no dia 25 de julho de 2013 na Biblioteca
Central Zila Mamede da UFRN mesa redonda em torno da instauração da Comissão Nacional da Verdade
onde também esteve presente o advogado africano Ntsiki Sandy, ex-membro da Comissão de Verdade e
Reconciliação na África do Sul
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conhecer a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado e o destino


da pessoa desaparecida, bem como o direito à liberdade de buscar, receber e difundir
informação com este fim.
Estabelecido o conceito de verdade do qual tratamos podemos apontar que “os
direitos humanos não podem ser entendidos desvinculados do exercício do poder
político”, como defende (NEVES, 2012, 156) e embora tenhamos motivos para
comemorar a instauração da Comissão Nacional da Verdade no Brasil instituída pela
Lei nº 12.528/2011 de autoria do Poder Executivo, enviada ao Congresso pela primeira
mulher presidenta do país, Dilma Rousseff, que inclusive sofreu tortura durante o
Regime Militar, temos algumas críticas a pôr a mesa.
Primeiro é preciso colocar que na corrida pelo direito à verdade, memória e
justiça o Brasil é o último da fila na América Latina. Apenas cinquenta anos depois do
início do golpe que se perpetraria por 21 anos que estamos abrindo os arquivos da
Ditadura, enquanto que várias outras nações já o fizeram. Reconhecer os direitos
humanos violados, conduzir à reparação as vítimas, responsabilizar os agentes civis,
militares e institucionais – como a diplomacia norte-americana – pelo atentado a
democracia e a soberania nacional são passos tardios que o Brasil alça no caminho da
redemocratização em construção. Este atraso em passar a história recente brasileira a
limpo em relação à própria experiência de Comissões da Verdade no Cone Sul já havia
sido denunciada por nós (BATISTA NETO e GAMELEIRA, 2013, p. 1177) ao
apresentarmos que “até o começo de 2011, algo em torno de 40 comissões da verdade,
com caráter oficial (criadas pelos Poderes Executivo ou Legislativo), haviam sido
criadas em todo mundo. O Brasil foi o último a criar a sua comissão”.
O atraso do Brasil quando tratamos da relação entre direitos humanos e Ditadura
Militar é reflexo de uma herança que carregamos da nossa experiência traumatizante
que se cristaliza na Anistia de 1979 e no processo de redemocratização “lenta, gradual e
segura” como estabeleceu o presidente Figueiredo. Entender a criação da Comissão
Nacional da Verdade como uma concessão da ordem e do poder público, além de um
ledo engano, é também uma ideologia que serve para falsear e esconder a realidade no
intuito de não ameaçar determinados interesses e amenizar consequências políticas que
poderiam emergir a partir dos trabalhos da CNV. Neste sentido entendemos ideologia
como nos ensina (MARX, 2009, p. 10), ou seja, como “atividade intelectual que cria a
realidade social. (...) Esse modo de pensar falseia embora não de modo não intencional
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o conhecimento da realidade social, contribuindo, assim, para reproduzi-la segundo os


interesses das classes dominantes”.
Apesar de suas limitações no contexto brasileiro e tendo em vista que as
“condenações” que a CNV poderá imputar serão meramente simbólicas ao
responsabilizar os responsáveis pelos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento
(já que não haverá julgamento penal) a instauração da Comissão é uma vitória dos
movimentos sociais, entidades ligadas ao direito à memória e grupos de parentes de ex-
presos e desaparecidos políticos. É um avanço no campo da redemocratização e
imprescritível para combater a amnésia política por uma cultura de não repetição como
discorre a Simone Rodrigues Pinto (2010, p. 130):

Mais de duas dezenas de comissões de verdade têm sido estabelecidas desde


1974, muitas delas com nomes diferentes. Alguns exemplos são: Comissão
sobre Desaparecidos na Argentina, Uganda e Sri Lanka; Comissão de
Verdade e Justiça no Haiti e Equador; Comissão de Esclarecimento Histórico
na Guatemala e Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul,
Chile e Peru. Apesar de diferentes em muitos aspectos, todas têm seguido o
mesmo objetivo de não permitir que a amnésia política e social afete o futuro
da democratização. Por meio de depoimentos de testemunhas, declarações de
perpetradores, investigações e pesquisas em documentos públicos e privados,
as comissões de verdade buscam estabelecer um amplo cenário dos
acontecimentos ocorridos durante o período de repressão política ou guerra
civil, esclarecendo eventos obscuros e permitindo que o amplo debate varra
da sociedade o silêncio e a negação das dores do período da história a que diz
respeito. [...] Em geral, as comissões de verdade não são órgãos
jurisdicionais, mas podem recomendar julgamentos ou anistia, dependendo
dos poderes a elas investidos. Quando a recomendação é por um julgamento
a fim de que haja uma punição concreta para o acusado, elas remetem a
responsabilidade para os tribunais formais.

Esse panorama histórico que coloca em relevo as experiências das comissões da


verdade no mundo é importante para entendermos as semelhanças e diferenças entre o
processo de redemocratização brasileiro e o de outros países. Este processo que no
Brasil e no mundo é essencialmente político tem paralelos de continuidade e rupturas
com outras experiências e o que mais estamos habituados a encontrar são aberturas
políticas insuficientes aos princípios da democracia; a permanência de estruturas
repressivas do Estado preservando – em alguns casos, inclusive – seu modus operandi;
o atendimento apenas parcial das demandas dos direitos humanos em busca da verdade,
memória e justiça; concessões por parte do poder público que possibilita apenas a
responsabilização parcial dos agentes da repressão e, destoando deste cenário, a luta dos
movimentos sociais.
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No mundo a grande maioria dos regimes repressivos foi se desgastando como


modelo e cederam antes de sucumbir politicamente, sendo assim, as liberdades que
foram sendo concedidas pelos próprios regimes foram limitadas no movimento de
transição a “democracia”. Segundo Neves (2012, p.160), no Chile o general Augusto
Pinochet teria afirmado que se alguém tocasse em um dos seus homens o Estado de
direito cairia por terra, como na Argentina o presidente Raúl Afonsín foi forçado a
enfrentar insurgências militares quando em 1983 tentou revogar uma lei de anistia –
ilegítima, pois feria os princípios dos direitos humanos e da democracia – aprovada
ainda no contexto da ditadura. No Brasil como já citamos a abertura política se deu de
forma lenta, gradual e segura aprovando em 1979 uma anistia que feria frontalmente o
direito à verdade, memória e justiça.
Neste sentido - embora não seja central do nosso trabalho – é importante colocar
o debate da democracia situado na perspectiva da justiça. Numa análise do contexto
histórico da Justiça de Transição, Genro e Abrão (2010), assinalam que a sucessão de
regimes repressivos e ditatoriais que avassalaram a América Latina, entre meados dos
anos 1960 e 1980, ainda não foi tratada de forma sistemática por nenhum regime
democrático em processo de afirmação do continente370. Atestam que isso se justifica de
uma parte porque todas as transições políticas para a democracia foram feitas sob
compromisso. De outra, porque a democracia expandiu-se mais como “forma” do que
como “substância”. Para esses autores, nenhum dos regimes de fato foi derrotado ou
derrubado por movimentos revolucionários de caráter popular; logo, os valores que
sustentaram as ditaduras ainda são aceitos como “razoáveis”.
Na experiência sul-africana os trabalhos da Comissão de Verdade e
Reconciliação da África do Sul é amplamente citado pela comunidade internacional
como exemplo a ser seguido. No processo de reabertura a instauração da comissão foi
uma concessão por parte da ordem que em troca blindou os agentes da repressão contra
consequências penais na formulação da lei de anistia da África do Sul, contudo, como
cita Raphael Neves (2012, p. 178-179), todos os envolvidos com violação dos direitos
humanos – de ambos os lados – foram convocados, inclusive o Congresso Nacional
Africano, partido de Nelson Mandela, como empresas que deram sustentação ao regime.

370
Nestes termos assinalamos que discordamos parcialmente dos autores por entendermos que o processo
de redemocratização na Argentina é notavelmente diferenciado, assim como, são avançadas o
funcionamento de suas políticas de justiça de transição, sendo um dos poucos países a levar pós-regimes
militares generais a tribunais, julgando-os.
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Já no Brasil a Comissão Nacional da Verdade tem papel importante, mas é


instaurada com limitações calculadas a fim de resguardar os cuidados necessários para
não contrariar arranjos jurídicos ilegítimos como a Lei de Anistia; não problematizar a
questão da diplomacia brasileira em torno do crime de desrespeito a soberania nacional
cometido pelo EUA; não colocar em xeque os pilares e incentivos financeiros de
sustentação do regime de terror e não possibilitar o julgamento penal dos generais e
agentes do Estado que violaram das mais diferentes maneiras a dignidade humana.
Diante dos silêncios da CNV sobre as questões-problemas que foram elucidadas
acima, adotamos como corpus do presente trabalho o “Balanço de Atividades: 1 ano de
Comissão Nacional da Verdade” (2013) e acreditamos que é preciso “escovar a história
a contrapelo“ como ensina (BENJAMIN, 1987, p. 7) para termos de fato, um balanço
crítico do relatório parcial da CNV, acreditando que as disputas de memória são
também disputas de poder.

SILÊNCIOS DA COMISSÃO E AS CONTRADIÇÕES EXISTENTES

Conhecer a integridade do passado recente brasileiro referente à Ditadura Militar


(1964-1985), assim como, seu modus operandi é um desafio posto a Comissão Nacional
da Verdade e para tal a CNV conta no seu corpo técnico com historiadores,
antropólogos, legistas, advogados, dentre outros profissionais, assim como o suporte de
outros órgãos, no papel de reconstituir a história. Neste sentido foi instituído treze
Grupos de Trabalho com os seguintes eixos temáticos definidos: Araguaia;
Contextualização, fundamentos e razões do Golpe Civil-Militar de 1964; Ditadura e
gênero; Ditadura e sistema de Justiça; Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao
movimento sindical; Estrutura de repressão; Mortos e desaparecidos políticos; Graves
violações de Direitos Humanos no campo ou contra indígenas; Operação Condor; O
Estado ditatorial-militar; Papel das igrejas durante a ditadura; Perseguição a militares e
Violações de Direitos Humanos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil.
A CNV no seu segundo grupo de trabalho trata-se do eixo temático
“Contextualização, fundamentos e razões do Golpe Civil-Militar de 1964” e no seu
relatório parcial “Balanço de atividades: 1 ano de Comissão Nacional da Verdade”
(2013) contém 23 páginas onde trata da catalogação, pesquisa, otimização de
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informações, assim como, sobre os trabalhos desenvolvidos. Na parte destinada a


questão internacional o balanço apresentado cita a exumação do ex-presidente João
Goulart “a fim de realizar perícias, com a participação de especialistas internacionais,
que permitam esclarecer as circunstâncias de sua morte na Argentina, em 6 de dezembro
de 1976” (Comissão Nacional da Verdade, 2013, p. 14) e que coloca luz sobre a
nebulosidade que cerca o mito da morte de Jango, já que são muitos que acusam o
governo norte-americano de ter ministrado através de espiões substâncias químicas afim
de assassinar, por motivações políticas, o ex-presidente.
O que o relatório parcial não coloca em evidência é a questão internacional de
forma ampla e aberta no sentido de apresentar o papel do EUA no contexto não apenas
da Ditadura Brasileira, mas no conjunto de regimes repressivos que afloraram na
América Latina motivada, incentivada e articulada pelos norte-americanos. Se no Chile
o uso indiscriminado das armas de fogo e artilharia pesada de guerra foi utilizado pelos
norte-americanos chegando mesmo a assassinar em 11 de setembro de 1973 no próprio
palácio presidencial de La Moneda o presidente Salvador Allende que executava um
giro a esquerda e um governo popular promovido no país371, colocando em risco os
interesses econômicos do EUA, no Brasil o mesmo esforço norte-americano seria
utilizado, mas a saída do presidente João Goulart no intuito de dissipar as possibilidades
de um derramamento de sangue numa guerra civil promovida pela sua resistência no
poder fez baixar as armas no primeiro momento. O que a saída de Goulart não seria
capaz de impedir seria os 21 anos de Ditadura que cometeu em proporções
consideráveis torturas, desaparecimentos e assassinatos.
O relatório parcial da CNV não trata da questão da força diplomática e política
exercida pelo EUA sob os destinos do Brasil já que após a Revolução Cubana de 1959
era estratégico para a Política se Segurança norte-americana que não houvesse novas
“insurgências” na América Latina. Este aspecto pode ser tratado com mais profundidade
e a denúncia a este atentado a soberania nacional pode ser feito no relatório final,
contudo a Comissão ainda não demonstrou intenção, nem parecer interessada em chegar
tão a fundo sob essa questão capital. Na contramão do relatório parcial da Comissão
Nacional da Verdade a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos no

371
Entre 1970 a 1973 o Governo no Chile era marcado pelo crescimento e fortalecimento do setor
nacional-estatal da economia, em especial destaque para as minas de cobre, maior fonte de dívidas do
país.
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seu relatório final “Direito à Memória e à Verdade” tratou com muita clareza da
influência norte-americana:

A ditadura militar brasileira não foi um fato isolado na história da América


Latina. Na mesma época, regimes semelhantes nasceram de rupturas na
ordem constitucional de outros países no subcontinente, tendo as Forças
Armadas assumido o poder em consonância com a lógica da Guerra Fria. O
mundo estava dividido em dois grandes blocos. Um pólo era comandado
pelos Estados Unidos e o outro pela União Soviética. Essa divisão de poder
mundial teve como cenário de fundo o resultado da Segunda Guerra, com as
potências vencedoras dividindo o planeta em duas grandes áreas de influência
(...)Num tabuleiro de apenas duas cores, o Brasil permaneceu na órbita da
diplomacia norte-americana, assim como o restante dos países latino-
americanos. A partir de 1959, a Revolução Cubana marcou profundamente a
política exterior dos Estados Unidos, que anunciaram não mais tolerar
insurgências desafiando sua hegemonia na região, logo após ter ficado clara a
aproximação entre Cuba e União Soviética. Para garantir que os governos da
região permanecessem como aliados, os Estados Unidos apoiaram ou
patrocinaram golpes militares de exacerbado conteúdo anticomunista (...)
Assim é que, no subcontinente, os anos 1960 e 1970 vão contabilizar um
nítido fortalecimento, no âmbito do poder político, das forças que haviam
resistido aos governos de orientação nacionalista dos anos 1950, como o de
Vargas, no Brasil, Perón, na Argentina, Paz Estensoro, na Bolívia, Jacobo
Arbenz, na Guatemala, e vários outros. Como regra geral, os governantes
buscam estreitar, no plano econômico, a associação com seus antigos aliados
do capital externo, sob tutela militar nacional, e incorporam plenamente a
estratégia norteamericana de contenção do comunismo, resumida pela
Doutrina de Segurança Nacional. Com base nessa doutrina, foram decretadas
no Brasil sucessivas Leis de Segurança Nacional sob a forma de Decretos-
Leis (DL), uma em 1967 (DL 314) e duas em 1969 (DL 510 e DL 898), de
conteúdo draconiano, que funcionaram como pretenso marco legal para dar
cobertura jurídica à escalada repressiva (BRASIL, Secretaria Especial dos
Direitos Humanos, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos, 2007, p. 19).

O silenciamento da CNV sobre a questão norte-americana é sintomático.


Diferente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos que trata com
franqueza histórica os acontecimentos do contexto geopolítico, mostrando o papel do
EUA nos rumos brasileiros e latino-americanos.
Ao tratarmos das ditaduras patrocinadas pelo EUA no Cone Sul pode-se citar
algumas cifras de mortos, desaparecidos, torturados e presos políticos que não devém
ser observadas como ilustração ou estatística, mas como fruto de uma política de Estado
dos países latinos sob a marcada influência norte-americana. Na Argentina entre 1976 a
1983 aproximadamente 30 mil baixas entre mortos e desaparecidos políticos foram
contabilizadas nas trincheiras da oposição a repressão. No Uruguai o número daqueles
que tombaram sobre o campo da luta política foi menor: 400 mortos. Em relação ao
Chile existe uma grande discussão sobre o número de mortos e desaparecidos, contudo
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estas cifras oscilam entre 3 à 10 mil pessoas (BRASIL, Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, p. 20-21).
No Brasil os levantamentos apontam que cerca de 50 mil pessoas foram presas
apenas no ano de 1964 (Comissão Nacional da Verdade, 2013, p. 12) e esclarecer o
episódio da Operação condor não é suficiente para elucidar a influência norte-
americana, contudo o que a CNV não coloca em evidência é o papel e a mão de ferro do
EUA, que no Brasil e na América Latina tem uma parcela significativa de
responsabilidade. As mãos do imperialismo norte-americanas estão manchadas de
sangue e o seu saber foi fundamental para pensar as máquinas de gastar gente que foram
os sistemas repressivos das ditaduras sul-americanas.
Este silêncio da Comissão Nacional da Verdade não é o único. Além da questão
norte-americana que não tem uma forte luz lançada sobre suas veredas, ainda existe
outros silenciamentos, tais como a repressão à imprensa alternativa e aos setores
culturais e artísticos. O financiamento empresarial a estrutura repressiva é tratado pela
Comissão, mas no relatório parcial, apenas poucas e pequenas considerações são feitas.
No Brasil bombas explodiram bancas de jornal, jornalistas, artistas e intelectuais
foram presos, muitos exilados. O que o Brasil perdeu em termos de cultura? O que o
Brasil perdeu com sua classe intelectual sendo submetida ao exilio? Este aspecto traz à
tona a questão da Anistia e coloca o desafio do Grupo de Trabalho “Ditadura e sistema
de Justiça”, que tem a hercúlea tarefa de fazer um balanço do processo de anistia e
apontar caminhos para que os mortos que tombaram sob as trincheiras da Ditadura
descansem em paz, ou ao menos suas histórias. Sob os silêncios só floresceram
contradições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E UM BALANÇO DO TRABALHO PARCIAL DA


CNV

Os desafios colocados frente à Comissão Nacional da Verdade são gigantescos e


reivindicam um esforço hercúleo dos seus membros. O imediatismo do Governo
Federal ao estabelecer o prazo de dois anos para a entrega do relatório final faz com que
a equipe de técnicos e os membros da Comissão, literalmente, corram contra o tempo a
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fim de atender esse exíguo prazo, especialmente tendo em vista a quantidade de


documentos já nas mãos da CNV.
Apresentar ao Brasil e ao mundo, uma versão de Estado da história recente
brasileira, colocando em relevo o modus operandi da máquina de gastar gente que foi o
aparato de repressão da Ditadura Militar, esclarecendo casos de mortos e desaparecidos
políticos colocando em evidências os graves desrespeitos aos Direitos Humanos e
lançando uma luz sobre o tabuleiro político internacional naquele contexto, são
objetivos e desafios da Comissão.
Diante desse desafio a CNV está em constante contato com vários ministérios e
órgãos públicos localizando documentação produzida no contexto de repressão por
órgãos com as Delegacias de Ordem Política e Social – DOPS, então responsáveis por
diligências, inquéritos, operações de controle e repressão política, há isso se
circunscreve prisões e torturas. A fim de elucidar a extensão da documentação em mãos
da CNV pode-se citar o caso específico de Minas Gerais onde foi encontrado 2 milhões
de páginas de documentos na Coordenação Geral de Segurança da Polícia Civil que
assumiu as funções do DOPS a partir de 1970 (Comissão Nacional da Verdade, 2013, p.
6).
Sobre a questão indígena a Comissão conseguiu um documento raro intitulado
“Relatório Figueiredo”, considerado desaparecido por décadas e que contém 7 mil
páginas:

Esse documento contém informações sobre várias formas de violação de


direitos como maus tratos e assassinatos de índios, perda de terras indígenas
para fazendeiros e empresários, desvio de verbas, negociatas e negligência
com populações em extinção. A descoberta deste relatório contribuirá para a
compreensão das violações de direitos de povos indígenas em toda a extensão
do território brasileiro, no período de investigação da CNV (1946 – 1988).
(Comissão Nacional da Verdade, 2013, p. 6-7).

Além de pesquisas internacionais, no Ministério das Relações Exteriores da


Argentina em Buenos Aires, vários outros países latino-americanos foram visitados,
assim como arquivos considerados ultrassecretos do Itamaraty e do Superior Tribunal
Militar – STM. O processo de digitalização desses documentos está em curso e os
depoimentos que servem para preencher lacunas e brechas nas informações estão sendo
coletadas, sendo que neste primeiro ano de Comissão foram contabilizados 268
depoimentos como podemos ver no quadro abaixo:
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Fonte: Comissão Nacional da Verdade, 2013, p. 11.


Consideramos de suma-importância os depoimentos coletados pela CNV,
assim como as audiências públicas realizadas, contudo, vislumbramos que existe uma
certa preferência por estados do Sul, sendo que em relação as audiências públicas
apenas um estado do Nordeste sediou tal evento: Pernambuco. Quinze audiências foram
realizadas em nove estados da federação, sendo 1 em Goiás, 2 no Distrito Federal, 4 no
Rio de Janeiro, 2 no Paraná, 1 em Pernambuco, 1 em Minas Gerais, 1 no Rio Grande do
Sul e 2 em São Paulo, como demonstra o quadro abaixo:

Fonte: Comissão Nacional da Verdade, 2013, p. 9.


Apesar das audiências e da coleta de depoimentos a CNV tem sido alvo de
muitas críticas, tanto pelo setor da direita, quanto pela direita. Acusada de ser parcial
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pelos setores políticos de direita e de pouco objetiva, por algumas organizações de


familiares de ex-presos políticos.
Em carta aberta assinada por 26 organizações de familiares de ex-presos
políticos, apresentada a sociedade no dia 15 de julho de 2013, solicita da CNV unidade
nos trabalhos desenvolvidos ao denunciar e colocar em evidência que as divergências
internas se transformarem em ataques pessoais e públicos, numa triste demonstração de
descompromisso com a verdade e a história, refletindo na falta de clareza do papel
histórico da CNV. Nesta mesma carta as organizações solicitaram a imediata
substituição do membro Gilson Dipp para recompor o quadro de membros e a volta de
Claudio Fonteles, que havia se afastado da Comissão, pediram o aumento do número de
audiências e a unidade no trabalho para que todos os arquivos da Ditadura sejam
abertos.
Ao fim deste balanço o que podemos tirar de concreto é que todo o material
produzido pela Comissão Nacional da Verdade e o Sistema de Informação que a
Comissão pretende estabelecer disponível a toda a sociedade brasileira será seu legado
que está sendo produzido nas correrias do presente, remetendo-se ao estudo do passado,
mas sob uma perspectiva do futuro a fim de assegurar o direito à verdade, à memória e a
justiça. Contudo, além do enorme trabalho a ser feito no pequeno espaço de dois anos as
contradições são desafios a serem superados porque a história da Ditadura interessa pela
sua completude e a verdade emergindo por completa, traz a luz a nebulosidade que
ainda se perpetra.

REFERÊNCIAS

BATISTA NETO, M. C. & GAMELEIRA, E. F. A. Direitos Humanos, Justiça e


Democracia: o papel e os silêncios da Comissão Nacional da Verdade. In: III Colóquio
Nacional de História Cultural e Sensibilidades, 2013, Caicó. Anais - III Colóquio
Nacional História Cultural e Sensibilidades. Caicó: UFRN - CERES - Departamento de
História, 2013. v. 1. p. 1172-1187.

BENJAMIN. Walter. Teses sobre o conceito da história. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Balanço de atividades: 1 ano de Comissão


Nacional da Verdade. Disponível em: <www.cnv.gov.br> Acessado em 10 de
novembro de 2013.
VI Cultura e Memória
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GENRO, Tarso; ABRÃO, Paulo. Memória Histórica, Justiça de Transição e


Democracia sem Fim. In: Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro:
estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. -- Brasília: Ministério
da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos
Sociais, 2010.

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<http://www.planalto.gov.br/civil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm> Acessado
em: 03 de fevereiro de 2013.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm> Acessado em: 1º de Novembro
de 2013.

MARX, Karl. A ideologia alemã. Tradução de Álvaro Pina. 1ª Ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2009.

NEVES, Raphael. Uma Comissão da Verdade no Brasil? Desafios e perspectivas para


integrar direitos humanos e democracia. São Paulo: Lua Nova, n. 86: 155-185, 2012.

PINTO, Simone Rodrigues. Direito à Memória e à Verdade: comissões de verdade na


América Latina. Porto Alegre: Revista Debates. Vol. 4, nº 1. 2010.
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O PROCESSO DE ANISTIA NO URUGUAI: UMA NOVA INTERPRETAÇÃO


DA LEI DA CADUCIDADE DA PRETENSÃO PUNITIVA NO GOVERNO DE
TABARÉ VÁZQUEZ
Pablo Martins Bernardi Coelho
Faculdade Presidente Antônio Carlos –
UNIPAC/Uberlândia
pablocoelho8@yahoo.com.br

No presente trabalho, pretendemos analisar o processo de anistia no Uruguai,


principalmente após a nova interpretação dada a mesma sob o governo do presidente
Tabaré Vázquez (2005-2010). A lei da Caducidade372 foi aprovada em 1986, num
ambiente de grande apoio do presidente Sanguinetti e uma oposição (naquela época o
Partido Nacional) dividida.
Antes de analisarmos tais mudanças empreendidas no governo Vázquez faz-se
necessário relatarmos um breve histórico sobre o processo de anistia e as políticas de
memória que antecederam o governo do presidente Vázquez.
Tal contexto inicia-se com a criação, em 1985, da “Comissão Investigadora
sobre a Situação de Pessoas Desaparecidas e Fatos que a Motivaram”. Esta comissão
apresentou um relatório à Suprema Corte uruguaia, relatando que 160 pessoas haviam
morrido devido à violência empreendida pelo Estado na época da ditadura. O resultado
não foi satisfatório, visto que os trabalhos realizados por seus membros destinaram-se
exclusivamente à questão da identificação de desaparecidos políticos.
Também foram elaboradas duas leis para tratar das violações: a Lei de Anistia
(Lei nº 15.737 de 1985) e a Lei de Caducidade (Lei nº 15.848 de 1986). A anistia
uruguaia perdoou todos militantes envolvidos em crimes políticos, comuns e militares
cometidos no país a partir de 1962. Por sua vez, a Lei de Caducidade, foi aprovada
como parte de um acordo que, em nome da transição e da ordem, caducara o direito de
punir os setores sustentáculos do golpe militar.
Por fim, foi recolhido um número suficiente de assinaturas para forçar um
referendo sobre a anistia. Neste referendo, realizado em abril de 1989, 57% dos votantes
concordaram em manter a anistia. Pesquisas de opinião pública, entretanto, indicaram
que setores significativos do eleitorado votaram por esta manutenção visando a evitar

372
Basicamente, ela estabelece que o Poder Judiciário, antes de iniciar as apurações em casos de
denúncias contra militares e policiais suspeitos de cometer delitos contra os direitos humanos durante a
ditadura, deve consultar o Poder Executivo. Este investiga a denúncia e se considerar pertinente,
habilita a intervenção do Poder Judiciário.
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uma crise, mais do que por acreditarem na justiça desta decisão (LINZ e STEPAN,
1999, p.190).
Nesta perspectiva, Selva López Chirico expressa:

A impunidade foi fértil em consequências políticas. Provocou o


aglutinamento dos militares em torno da defesa corporativa dos atos
cometidos durante a ditadura e do princípio da “obediência devida”,
defendido pelos generais encabeçados pelo próprio comandante chefe do
Exército, general Hugo Medina. E esclareceu a posição do partido do
governo, que, liderado pelo presidente Sanguinetti, adotou uma solução
política a defesa da anistia para os militares e, em seguida, a aplicou segundo
uma interpretação bastante ampla de seu conteúdo, autorizando o amparo dos
acusados em todos os casos que lhe fossem apresentados e desprezando a
possibilidade aberta pelo art. 4° de investigar –ainda que sem punir – a
situação dos desaparecidos (LÓPEZ CHIRICO, 2000, p.193).

Em 2000, foi criada, pelo presidente Jorge Batlle, uma “Comissão da Verdade”,
chamada oficialmente de “Comissão para a Paz”. Nesse sentido, a criação da
Comissão:

era necessário para consolidar a pacificação nacional e selar para sempre a


paz entre os uruguaios, dar os passos necessários para determinar a situação
dos presos desaparecidos durante o regime de fato, assim como dos menores
desaparecidos em similares condições (MIRANDA, 2009, p. 33).

Inicialmente a Comissão tinha previsão de atuar durante um período de 120 dias.


Porém, seu prazo de funcionamento foi ampliado. No relatório final, fim do governo de
Jorge Batlle, foi sugerido ao governo que fosse revisada a legislação de forma que os
crimes de tortura, genocídio e desaparecimento forçado fossem integrados à legislação
nacional uruguaia (BRASIL, 2010, p. 50-51).
Porém, na prática o relatório emitido pela Comissão pouco serviu de base nos
trabalhos posteriores empreendidos pelo governo do presidente Vázquez. Dessa forma,
salvo algumas exceções, o conteúdo do relatório somente serviu para retomar o que já
se sabia. Nesse sentido, Pablo Galain Palermo (2009, p. 411) constata que:

Com a criação da Comissão para a Paz [...] se procura ‘a paz da alma’ e se


pretende oferecer informação verídica e oficial as vítimas para cumprir com
os princípios do direito a verdade e a reparação, assim como reconstruir a
memória coletiva. No entanto, essa informação se limitou aos sistemáticos
crimes de tortura praticados indiscriminadamente a todos os presos durante a
ditadura. Além disso, a Comissão para a Paz não teve poderes para
determinar responsabilidades nem para investigar, porque a verdade oficial
coletada é parcial e, portanto, não tem nenhuma capacidade para concluir a
transição.
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Durante esse período, as investigações oficiais sobre as violações aos Direitos


Humanos haviam ficado virtualmente congeladas, principalmente após a aprovação, em
1986, da Lei de Validade da Pretensão Punitiva do Estado e de sua confirmação por
referendo popular.

A Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva – Uma nova interpretação


Conforme citado acima, a lei da Caducidade foi aprovada em 1986, num
ambiente de grande apoio do presidente Sanguinetti e uma oposição (naquela época o
Partido Nacional) dividida.
Em seu primeiro artigo, declara-se nulo a pretensão punitiva do Estado em
sancionar penalmente os crimes cometidos contra os direitos humanos no período da
ditadura militar. O artigo 4º expressa que todas as denúncias devem passar pelo
Executivo, para este enquadrá-las ou não na Lei da Caducidade, sendo função exclusiva
do Presidente da República. Até o governo do presidente Vázquez, o Executivo não
empreendia nenhuma apuração de denúncias sobre os crimes cometidos contra os
direitos humanos no período da ditadura.
Quando se reúne o congresso da Frente Ampla373 antes das eleições em 2004 a
decisão foi comprometer-se a não revogar a Lei da Caducidade e sim empreender uma
nova interpretação da mesma, como foi feito por Tabaré Vázquez.
Na realidade, essa nova interpretação estava diretamente relacionada ao artigo 4º
de tal lei. Na prática, os crimes cometidos contra os direitos humanos, a maioria deles,
passaram a não ser enquadrados da Lei da Caducidade. Essa mudança acabou fazendo o
presidente Vázquez levar a cabo a apuração das denúncias contra os direitos humanos e,
em alguns casos, punir civis e militares vinculados a esses crimes na época da ditadura.
Porém, essa decisão não foi simples, sendo motivo de grande debate no
congresso da Frente Ampla. Nas palavras do professor Julián González:

A decisão no congresso da Frente Ampla antes da eleição de 2004 foi


dividida, razão pela qual se adotou essa posição não radical [...] teve caráter
eleitoreiro, ou seja, demonstrando não desenvolver uma mudança tão radical
que poderia gerar consequências eleitorais (informação verbal) 374.

373
Trata-se de uma coalizão eleitoral de centro-esquerda do Uruguai, da qual integram vários partidos
políticos e organizações da sociedade civil.
374
GONZÁLEZ GUYER, entrevista cedida em fevereiro de 2013 na Universidade da República – Uruguai.
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Dessa forma, foi iniciado um amplo processo investigativo relacionado aos atos
praticados pelos militares no período ditatorial. Nesse quadro, se situa o processo de
investigação que empreendeu o governo do presidente Tabaré Vázquez sobre o destino
dos presos e desaparecidos durante a ditadura e, particularmente, os primeiros achados
de restos humanos em sepulturas clandestinas localizadas em unidades militares, já no
fim de 2005.
Após assumir suas funções, Tabaré Vázquez, em decisão inédita, ordenou aos
comandantes-chefes das Forças Armadas a elaboração de informes a respeito do destino
dos presos desaparecidos e iniciou os trabalhos de busca de sepulturas clandestinas em
unidades militares. O grande choque social e político sobreveio com o achado de restos
humanos enterrados em uma unidade do Exército, assim como em uma propriedade
rural que estivera em mãos da Força Aérea durante a ditadura. Também começaram a
ser citados e convocados aos tribunais diversos oficiais afastados e em atividade, em
caráter de acusados e/ou testemunhas, para depor em casos de violação dos Direitos
Humanos durante a ditadura.
Dessa maneira, sem revogar a lei, foi habilitada pela primeira vez a atuação da
justiça ordenando os Comandantes Chefes das Forças Armadas a apresentarem um
informe acerca do destino dos presos desaparecidos e se dispôs a investigar as
instalações militares para encontrar evidências de tumbas clandestinas. Assim, uma
equipe de arqueólogos da Universidade da República começou a realizar escavações em
determinados prédios militares. Ainda que somente logrou-se encontrar e identificar os
restos dos desaparecidos, a transcendência histórica desse feito é enorme. Com efeito,
ficou demonstrado, contrariamente ao sustentando durante décadas pelas hierarquias
militares com o aval dos três primeiros governos democráticos pós-ditadura, que
prisioneiros foram assassinatos e enterrados clandestinamente em unidades das Forças
Armadas.
Também ficou comprovado que dezenas de uruguaios sequestrados na Argentina
foram transferidos clandestinamente e assassinados em território uruguaio. Como
consequência, a justiça processou, condenou e prendeu um grupo de repressores, além
de relevantes hierarquias militares e civis da ditadura375.

375
Os ex-presidentes de fato Juan Maria Bordaberry e Gregorio Álvarez e um chanceler da época, o Dr.
Juan C. Blanco.
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Além disse, ao contrário do que aconteceu durante os governos anteriores, o


governo do presidente Vázquez não rejeitou pedidos de extradição de funcionários
estatais uruguaios acusados de crimes contra a humanidade. Assim,

Assim, três oficiais militares identificados como participantes diretos no


famoso assassinato, no Uruguai, do agente da DINA chilena, Eugenio
Berríos, ocorrido em plena democracia, foram extraditados e procesados pela
Justiça chilena (GONZÁLEZ GUYER, 2011).

Durante o processo de tramitação do pedido de extradição, não faltaram


manifestações militares de solidariedade corporativa com os oficiais envolvidos,
inclusive um deles ainda em serviço. Fenômenos desse tipo também foram verificados
em relação às investigações sobre o destino dos desaparecidos e dos julgamentos penais
responsáveis sobre os delitos contra os direitos humanos durante a ditadura.
Além disso, outras alas, especialmente os militares retirados, manifestaram-se
publicamente contra tais atitudes do presidente Vázquez. Numa entrevista concedida
pelo presidente do Centro Militar Guillermo Cedrez, percebemos que a visão majoritária
desse instituto era de que o presidente Vázquez tinha descumprido o pactuado no
momento da aprovação da Lei da Caducidade da Pretensão Punitiva. De acordo com o
entrevistado Guillermo Cedrez,

O Centro Militar é contra, como a maioria do povo uruguaio que votou duas
vezes para mantê-la. O Centro não é alheio a população civil. Foi pactuado
um acordo com todos os partidos políticos, a partir de 1985. Os militares
entregaram o poder sem nenhuma pressão, entregaram de boa fé e a Frente
Ampla acabou não cumprindo o pacto (informação verbal) 376.

Para Cedrez, essa atitude parecia uma revanche do governo contra os militares.
Ele afirma que,

os mentores disso eram de ideologia marxista [...] e são esses que nunca
denunciaram ou derramaram uma lágrima para os crimes cometidos pelo
regime estanilista na Rússia. São os piores inimigos que temos porque não
são democráticos. Sou democrático e creio que é a melhor forma de
conveniência (informação verbal)377.

Para o entrevistado Gral. Alberto Zanelli, Chefe do Estado Maior da Força


Aérea, o governo Vázquez não conduziu o tema de uma boa forma. Para ele,

376
CEDREZ, entrevista cedida no Centro Militar/Uruguai em fevereiro de 2013.
377
Idem.
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Devemos seguir adiante [...] temos como exemplo a Itália e a Alemanha. O


Uruguai segue mexendo nas feridas, isso é terrível. Na ditadura eu tinha 13
anos. Comecei a trabalhar como oficial em 1989. Eu tenho um problema do
passado instalado em minha realidade. Eu creio que o governo faz melhor o
que pode. Eu não sei se esse é o caminho mais correto, o problema persiste
(informação verbal)378.

No governo Mujica houve uma forte manifestação dos militares contra decisões
da justiça de processar generais em atividade e que estão presos. Nesse sentido, Julián
González expressa que

Existia um militar em ativa no governo Mujica que foi preso pela morte de
um militante comunista em 1971, como também, outro general que estava
iniciando retiro e também foi preso. Quando esse general foi preso, todos os
outros generais em atividade com exceção ao Comandante Chefe do Exército
Gral. Rosalles foram visitá-lo sem avisar o seu Comandante Chefe. O general
preso era comandante da 4ª região no leste, fronteira com o Brasil. Como
fazer para prendê-lo? Gerou uma situação difícil, mais depois ele se entregou
(informação verbal)379.

Portanto,

Ainda persistem zonas obscuras nas relações das Forças Armadas com as
autoridades do governo. O disciplinado acatamento de ordens e disposições
do governo que manifestavam as Forças Armadas exibem, todavia, um limite
inquietante: a solidaridade corporativa com quem, vestindo o uniforme foram
responsáveis por feitos aberrantes. Algo similar ocorreu com a atuação
institucional castrense durante a ditadura. (informação verbal) 380.

Por causa da possibilidade da prescrição dos crimes contra os direitos praticados


na época da ditadura, em 2009, o governo do presidente Vázquez, submeteu a Lei da
Caducidade à consulta popular. Na realidade, o referendo era para definir se os delitos
cometidos na época da ditadura militar eram ou não considerados de lesa-humanidade.
Se fossem considerados de lesa-humanidade não seriam prescritos. A intenção do
governo era, através do plebiscito, modificar a Constituição e inserir um texto
expressando que os delitos de lesa-humanidade não eram passíveis de prescrição. O que
prevaleceu foi a interpretação de que tais delitos não eram de lesa-humanidade e,
consequentemente, poderiam ser prescritos.

378
ZANELLI, entrevista cedida em maio de 2013.
379
GONZÁLEZ GUYER, entrevista cedida em maio de 2013 na Universidade da República – Uruguai.
380
Idem.
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Por isso, no governo Mujica (2012) foi criada uma nova lei para gerar a
possibilidade de enquadrar alguns delitos como sendo de lesa-humanidade381. Essa
mudança foi empreendida porque os delitos cometidos na época da ditadura estavam
prescrevendo, acabando com qualquer possibilidade de punição por parte do Estado.
Esse fato gerou rusgas muito sérias entre a Frente Ampla, a tal ponto do então
Senador da República Eleutério Fernández Huidobro renunciar ao seu cargo como
forma de protesto com a aprovação dessa nova lei. Para ele, a base aliada estava
violando o direito de dois plebiscitos populares e que, por isso, provavelmente iria ser
declarada inconstitucional pela Suprema Corte de Justiça do Uruguai. Em entrevista
cedida, o Ministro da Defesa Huidobro expressou-se da seguinte forma:

Em 1989 eu era favorável a revogação, perdemos o plebiscito; em 2009 a lei


também não foi revogada. E agora votou uma lei que vai ser declarada
inconstitucional. E ademais, estamos violando a consulta popular. A lei para
mim é uma merda, porém consultamos duas vezes o povo. Para que você
chama o povo se você não obedece? (grifo nosso).
[...]
A lei é uma merda, o problema é derrogá-la por plebiscito, já perdemos
anteriormente e deixamo-la mais forte, são problemas táticos. E na segunda
oportunidade era evidente que iríamos perder. O povo não quer remoer o
passado, querem virar a página. Creio que devemos continuar investigando,
porém temos que ouvir a maioria da população. Quero caminhar para adiante,
como também o próprio presidente, sem deixar de continuar investigando a
busca pelos desaparecidos. Agora foi aprovada uma lei que, em teoria,
habilita continuar com as investigações e anula prescrições de delitos. Em
termos jurídicos existem muitos recursos de inconstitucionalidade da lei
criada. Eu renunciei ao senado porque estávamos cometendo um erro
político; estávamos eliminando para o futuro o instrumento do plebiscito, já
que estávamos aprovando uma lei que questionava uma decisão popular
(informação verbal)382.

Esta visão é corroborada pelo Centro Militar, no qual, através de seu presidente
Guillermo Cedrez afirmou que a nova lei criada no governo Mujica é inconstitucional
“porque tem aspectos jurídicos que são contra o Direito Constitucional, como não
respeitar os prazos estabelecidos para a prescrição dos delitos”.
Com a nova lei, o presidente da República perdeu o poder analisar se um delito é
enquadrado ou não na Lei da Caducidade, agora isso é função da justiça.
Apesar das dificuldades decorrentes do longo período transcorrido e da sigilosa
resistência constada desde a corporação militar lograram-se avanços de inegável
transcedência simbólica. Assim, a sociedade uruguaia vivenciou o impacto provocado
381
De certa forma, essa nova lei acabaria anulando alguns preceitos da Lei da Caducidade da Pretensão
Punitiva.
382
HUIDOBRO, entrevista cedida em fevereiro de 2013 no Ministério da Defesa do Uruguai.
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pela descoberta dos primeiros restos mortais de desaparecidos, assim como o processo
judicial e prisão do alta cúpula de políticos da ditadura além de militares que
participaram ativamente das atrocidades cometidas, nesse período. Porém,

o impulso inicial que resultou avanços significativos, foi freado devido


inacessibilidade da corporação militar. Diante disso, as próprias posturas e
decisões adotadas pelo Presidente da República, Dr. Tabaré Vázquez,
contribuíram para perder o enfoque central dos temas da agenda histórica
(GONZÁLEZ GUYER, 2011).

O presidente Vázquez optou por assumir para si a gestão dirigida a satisfazer o


problema referente ao esclarecimento dos crimes de terrorismo de estado empreendidos
na época da ditadura. Anteriormente, os avanços nesse sentido foram muito escassos.
Na realidade, nos governos anteriores, não havia nenhuma intenção de entrar nos
quartéis para investigar; De acordo com o Diego Gonnet “o governo colorado mandou
dentro das Forças Armadas e encobria qualquer coisa que poderia estar relacionado com
a época da ditadura para não enfrentar as Forças Armadas” (informação verbal)383.
No entanto, a linha de trabalho dirigida para esclarecer o destino dos
desaparecidos, encarada com grande impulso inicial pelo presidente Vázquez,
naufragou “no pântano das manobras de contra-informação militar. Nelas ficou
comprometido inclusive o Cte. Chefe do Exército naquele momento” (GONZÁLEZ
GUYER, 2011). Por isso, apesar do enorme significado simbólico das realizações
alcançadas, não foi suficiente os avanços sobre os esclarecimentos dos crimes
cometidos contra os direitos humanos na época da ditadura. “Talvez por isso, dividindo
sua gestão, optou por diminuir o perfil de seu protagonismo e até seu compromisso com
o tema. Inclusive, sua postura histórica frente à violação dos direitos humanos diante a
ditadura tendeu a diluir-se (GONZÁLEZ GUYER, 2011).
Portanto, podemos concluir que, apesar das mudanças empreendidas pelo
presidente Vázquez, o esclarecimento sobre os desaparecidos foi muito escasso.
Ademais, o julgamento das pessoas acusadas de violar os direitos humanos não tiveram
como fundamentação os relatos militares. As Forças Armadas eram resistentes a relatar
o envolvimento de sua instituição na violação dos direitos humanos.

Referências Bibliográficas

383
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3min).

GONZÁLEZ GUYER, J. Julián González Guyer. Professor da Universidade da


República. Uruguai, Universidade da República, maio de 2013, 2 arquivos mp3 (3h e
16min).

BERRUTTI, A. Azucena Berrutti. Ministra da Defesa no governo de Tabaré Vázquez.


Uruguai, janeiro de 2013, 1 arquivo mp3 (2h e 54min).
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BAYARDI, J. José Bayardi. Ministro da Defesa do governo de Tabaré Vázquez.


Uruguai, janeiro de 2013, 1 arquivo mp3 (2h e 08min).

ZANELLI, A. Brig. Gral. Alberto Zanelli. Comandante Chefe da Força Aérea do


Uruguai. Uruguai, maio de 2013, 1 arquivo mp3 (47min).

GONNET, D. Diego Gonnet. Especialista sobre o tema de defesa. Uruguai, fevereiro


de 2013, 1 arquivo mp3 (56min).

CEDREZ, G. Guillermo Cedrez. Presidente do Centro Militar. Uruguai, fevereiro de


2013, 1 arquivo, mp3 (55min)

HUIDOBRO, E.F. Eleutério Fernández Huidobro. Atual Ministro da Defesa do


Uruguai. Uruguai, fevereiro de 2013, 1 arquivo mp3 (1h e 15min)
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GT 7

MNEMÔNICAS SAUDOSISTAS: UMA ANÁLISE SENSÍVEL DO BRASIL


CONTEMPORÂNEO.
Autor: Daniel César de Araújo Oliveira
(graduando em história UFRN) Email: daniel-
ufrn@hotmailcom.
Resumo
Este trabalho busca investigar por quais formas os grupos políticos do
movimento regionalista nordestino, na segunda metade do século XX, construíram e
construíram-se através duma determinada memória saudosista. Tais grupos políticos,
principalmente os intelectuais ligados ao sociólogo Gilberto Freyre, reuniram-se em
estados e localidades distintas com o mesmo propósito: construir uma memória
relacionada ao tradicional, ao que seria “originariamente” brasileiro, isto é, ao passado
patriarcal e imperial do nosso país, passado longínquo, turvo e acinzentado, tempo dos
códigos estabelecidos rigidamente, dos relacionamentos e hierarquias instáveis, época
idealizada nas manifestações saudosas destes grupos e indivíduos. O que o artigo busca
problematizar, fundamentalmente, é a derrocada dos símbolos de poder destas elites que
estavam sendo tragados pelos fluxos e desterritorializações da história, e
simultaneamente, o apoio que muitos destes intelectuais saudosistas investiram na nova
máquina de Estado implantada pelo regime militar. O devir histórico, a “roda viva”
como diria Chico Buarque, levaria a “saudade para lá” deixando insatisfeitas tais elites
regionalistas, que ao verem erigir-se no horizonte uma dominação política de caráter
autoritário em nosso país, investiram seus desejos e aspirações nos fluxos
operacionalizados pelos grupos militares, com o intuito, temos a hipótese, de crerem e
fazerem-se crer a partir deste modelo político violento, torturante e fascista. Estes
intelectuais e artistas acreditavam que as engrenagens da máquina militar deteriam o
poder de cristalizar o tempo, e ainda mais, fazer-lhe supostamente “retonar” aos seus
modelos e referencias sensíveis do passado, desta maneira, esperamos analisar
historicamente, as tensões entre sensibilidades saudosistas e pensamentos políticos de
viés autoritário do Brasil contemporâneo.
Palavras chave: Saudade, modernidade, autoritarismo.
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1. Pesquisar sensibilidades saudosistas: Por uma historicidade do presente

“Was ist Aufklarung?” (O que é o esclarecimento?) Texto de Imanuel Kant


publicado em setembro de 1784 que Michel Foucault (1926-1984) análise de maneira
pormenorizada numa aula de cinco de janeiro de 1983, em sua leitura, Foucault percebe
uma inovação nos temas até então abordados pelo filósofo iluminista, torna-se central
neste texto kantiano pensar o presente, pensar o que está na atualidade, o que acontece
hoje ou agora? Em geral, vemos surgir neste texto de Kant uma dúvida, uma suspensão,
uma interrogação do presente: “presente como acontecimento filosófico a que pertence
o filósofo que fala sobre ela” (Foucault, 2013, p. 13).
O pensamento histórico, tanto quanto o filosófico, nos ensina Foucault a partir
de seus trabalhos com a filosofia alemã do século XVIII, não pode escapar ou se
esquivar das implicações do presente temporal em que é criado, das problemáticas do
seu tempo, das conjecturas e devires do lugar de suas falas, pronunciamentos e
discursos. Interrogar, fundamentalmente, o “nós” contido em sua produção é uma
incontornável a tarefa do trabalho historiográfico, deste modo, tentaremos seguir pelos
crivos desta nova maneira de pensar o labor histórico neste artigo.
Uma saudade da ordem, em nome da vontade duma maioria abstrata, ainda é
praticada e discursa no imaginário social da atualidade brasileira. Em redes sociais, em
revistas e televisores, é notória a circulação duma certa ideia de “defesa da nação”
calcada sobe os modelos autoritários e fascistas. Certa saudade da violência
discricionária do regime militar, em nome da segurança de “todos” muitos desejam até o
próprio encarceramento, sua própria repressão. Tais pensamentos autoritários,
disciplinadores e moralistas, que parecem adormecidos na memória nacional retornam
subitamente com novas roupagens e maquilados com novos referentes teórico-estéticos,
anexando vários adeptos em seus movimentos, enfaticamente alimentados pelos meios
de comunicação de massa das corporações midiáticas e propagandísticas384.

384
Na quarta feira, dia 19 de março 2014, na coluna “poder” do jornal Folha de S. Paulo, encontramos a
seguinte reportagem: “Grupo organiza nova edição de passeata anticomunista de 64”, segundo os
adeptos desta nova “Marcha da Família com Deus”, o Brasil estaria com uma revolução comunista em
curso, sendo necessária como única solução possível a manutenção da ordem e da segurança nacional,
contra a “corrupção” uma intervenção militar no Brasil, uma suposta repetição do golpe de 1964. A
principal revindicação deste grupo heterogêneo de cristãos é uma tomada de poder dos militares com o
intuito destes “purificarem” a política do congresso nacional, desejam extirpar o “mal” das cadeiras
parlamentares. Com ideias como: “que tudo o que está aí é ruim” nas palavras duma entrevista de 51 anos
chamada Cristina Peviani, o Brasil vivia sua glória, seu esplendor no período militar, mesmo que a
entrevistada tivesse apenas dois anos quando o regime foi instituído, fala com um notório saudosismo da
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Por isso nosso estudo propõe uma investigação das relações entre saudade e
pensamento autoritário no Brasil, pois hoje ainda é visível que, certos setores da
sociedade, assim como no passado, sentem saudade das próprias estruturas passadas de
organização social. Na década de sessenta do século XX, regionalistas e tradicionalistas
ligados ao Centro Regionalista do Nordeste e posteriormente ao Conselho Federal de
Cultura, entres outros grupos, por exemplo, viam na ditadura militar um modo de frear
as mudanças e transformações desencadeadas pelo capitalismo/modernidade na
sociedade brasileira. Os valores desta elite, seus referencias temporais, literalmente sua
visão de mundo estava sendo remodelada, transfigurada, descontinuada pelas mudanças
dos tempos modernos, sendo assim, era necessário unir os conservadorismos
politicamente e agir contra os “perigos” que rondavam a nação.
Muitos destes intelectuais queriam desmantelar os movimentos por direitos de
grandes parcelas da população, desejavam o fracasso de qualquer tentativa de reforma-
agrária, não queriam um estado laico e separado das decisões de cunho religioso, não se
interessavam em gerar melhores condições de trabalho aos seus empregados. Enxergava
na máquina autoritária a salvação do modelo de mundo que sentiam saudade, mundo
escravista e patriarcal, mundo da obediência, dos códigos tradicionais, da sociedade
rigidamente formada, da não subversão. E nos dias atuais, em nome da “segurança”
setores conservadores da sociedade pedem uma ordem mais rígida, mais violenta e
excludente de modelos “desviantes”, “infames” ou “marginais” sociais. Por rastrearmos
tais vestígios históricos, por relacionarmos passado e presente, é que podemos repensar
nossos modelos políticos cotidianos e criticar condutas conservadoras na atualidade. Por
isso a emergência no presente duma história, ou melhor, dum esboço para uma teoria

derrocada da democracia e ascensão do militarismo ao aparelho de Estado-Nacional. Quando questionada


sobre as práticas de tortura do regime militar, respondeu a entrevistada: “Eu nem sei se eles adotaram isso
[a tortura]. Porque o pessoal que diz que foi torturado está tão gordo, tão forte, tão bonito, né?”
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/03/1426137-grupo-organiza-nova-edicao-de-
passeata-anticomunista-de-64.shtml> acessado em: 19 de março de 2014. Certamente ao duvidar da
existência de práticas de tortura durante o período militar, a entrevistada não entrou em contato com
estudos como: VASCONCELOS, José Geraldo. Memórias da Saudade: Busca e Espera no Brasil
Autoritário. São Paulo – Annablume; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará,
1998). No qual o autor traça uma série de práticas de tortura amplamente usadas e difundidas no período
militar, existe também documentos e relatos que mostram até a existência de escolas de tortura para
militares no período.
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das emoções como diria Jean-Paul Sartre385 (1905-19880), das sensibilidades


saudosistas e suas implicações no pensamento político do Brasil contemporâneo.
2. Historiando os regionalismos e tradicionalismos

O olhar regionalista é historicamente datável. O movimento emerge de modo


difuso, separatista e provinciano ainda no império, na segunda metade do século XX,
com uma estética notadamente naturalista; com o propósito de dizer que os habitantes
de cada região eram modelados de acordo com a paisagem regional. Com os
movimentos desencadeados pela emergência dum dispositivo nacional, muitos
intelectuais e artistas pretendiam diferenciar-se com base nestes tipos ideias
supostamente produtos do meio natural e biológico. Pretendiam explicar os aspectos da
psicologia, os sentimentos, as reações e ações dos tipos regionais com uma serie de
metáforas organicistas, teorias desligadas do pensamento histórico e do devir e
ancoradas em ideias como natureza-paisagem, habitar natural, meio e raça que seriam
nas palavras destes regionalistas, determinantes na constituição dos habitantes da região
(Albuquerque Júnior, 2011, p. 52).
No início do século XX, com os movimentos desterritorializantes do capitalismo
moderno o regionalismo rearranja suas formas de ver e dizer. Com mudanças técnicas
incontornáveis no campo industrial, com o crescimento dos movimentos de massas,
com a expansão nacional dos rádios, imigrações em larga escala, o fim do regime
escravista, enfim, com mudanças em todo o universo imaginário da nação, o
regionalismo não vai tentar captar os tipos regionais apenas pelo meio e raça, esta
explicação se torna insuficiente aos seus fins políticos. Os regionalistas, a partir do
início do século XX, vão perceber que os indivíduos e grupos de cada região produzem
costumes diferentes, dão significados diferenciados aos seus mundos, de acordo com

385
Para uma história das teorias clássica dos sentimentos, das emoções e afecções, ver: SARTRE, Jean-
Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2012. Para uma análise atual dos
estudos acerca duma história das sensibilidades, ver: COBIN, Alain. O prazer do historiador. Rev. Bras.
Hist. vol.25 n. 49. São Paulo Jan./June 2005.Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
01882005000100002&script=sci_arttext>. Acessado em: 18 de março de 2014. Acerca da emergência
duma história das formas de pensamentos saudosos, ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de.
As Sombras do tempo: a saudade como maneira de viver e pensar o tempo e a história. In:_____
ERTZOGUE, Marina Haizenreder & PARENTE, Temis Gomes. História e sensibilidade. – Brasília:
Paralelo 15, 2006. pag. 117.
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sua região, os habitantes desta representariam de modo distinto sua cultura, seu aspecto
nacional. A categoria região continua sendo vista enquanto algo supra-histórico, no
entanto, além do meio os habitantes destas produzem certa cultura regional, produzem
traços supostamente “essenciais” nas características de identificação da formação
regional e nacional (Albuquerque Júnior, 2011, p. 53).
Estes intelectuais e artistas ligados aos movimentos regionalistas, tanto no sul da
nação quanto no norte, temiam que com o aceleramento dos fluxos provocados pelo
capitalismo moderno os territórios de suas identidades fossem tragados, as tradições do
seu “povo” (categoria abstrata e mítica) que não pareciam ser retratadas naquele mundo
demasiado moderno e esvoaçante em novidades. Com o despedaçamento dos tipos
regionais que compunham a nação, ao ver destes intelectuais, a própria nação estaria
ameaçada e encaminhada ao fracasso. Estes intelectuais de classe média, herdeiros dos
modelos de subjetividades latifundiários e escravistas, “aristocratas” por assim dizer,
iram ver estes códigos do passado, supostamente sólidos e imutáveis, se desmancharem
pelo ar com o avanço da máquina capitalista386.
Diante deste cenário trágico ao ver dos regionalistas, era preciso trazer ao centro
do palco da nação o tipo nacional ideal, o modelo regional que mais se aproximasse
duma brasilidade supostamente “pura” e “autêntica”. Do norte ao sul, por meio de
ensaios científicos, por meio de artistas plásticas, através do teatro ou da música, do
folclore, os adeptos dos regionalismos entravam em duelo elo estabelecimento
privilegiado do seu tipo nacional. Era necessário tomar a parte pelo todo, e operar uma
síntese ideal em todas as discrepâncias e diferenças dos sujeitos e enquadrá-los no
retrato nacional do sujeito regional.
Este pensamento funda uma repetição no olhar, cria imagens que se tornam pré-
moldados de significados na passagem do tempo. Cada grupo regionalista ira se institui
enquanto centro da nação. Passam a tornar seus costumes e hábitos regionais enquanto
atos genuinamente nacionais e ver os outros, os espaços diferentes, apenas como

386
Como nos esclarece Durval Muniz de Albuquerque Júnior: “O regional para o intelectual regionalista
era um desfilar de culturais raros, pinçados como relíquias em via de extinção diante do progresso. Uma
narrativa antiquário que resgatava o que estava prestes a ser passado. Nele predominava um verbalismo
de efeito, servindo o registro para marcar a diferença em relação ao homem culto e enfeitar uma prosa
carente de matéria ficcional. Ele toma elementos do folclore e da cultura popular, notadamente rural,
abordando-as com indisfarçável postura de superioridade, com um olhar distante que procurar marcar,
inclusive na própria escritura, o pertencimento a mundos diversos”. Ver, “geografia em ruínas”
in.______ ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. 5º ed.
São Paulo: Cortez, 2011. pag. 65.
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peculiaridades e manias regionais des-sintonizadas dos rumos da nacionalidade. Tanto


paulistas, quanto cariocas e pernambucanos, iram se colocar como centros fabricadores
de sentido em nível nacional.
Com a fundação do Centro Regionalista do Nordeste, em 1924, se institui o
movimento regionalista e tradicionalista de Recife, enfoque do nosso artigo. Com o
congresso Regionalista de Recife, em 1926, inspirado diretamente pelo sociólogo
Gilberto Freyre (1900-1987) o centro se define enquanto recuperador de nossas
tradições culturais e artísticas. O regionalismo freyreano é inovador, tanto na seleção de
fontes quanto de métodos, sendo gestado entre novas emergências de formação
discursiva nacional-popular. O sociólogo se vê enquanto capaz de concatenar as
imagens e discursos que circulam em seu espaço regional e criar novas formas, com o
intuito de fundar um bloco unitário em sua cultura e política, notadamente, busca criar
um espaço cientifico de negação do movimento modernista brasileiro, que em seu olhar,
descaracterizaria a nação.
O processo ou o desenvolvimento do capitalismo são condenados nas páginas da
sociologia freyreana. Para o autor, estes agentes desequilibravam o convívio social,
deformavam o quadro nacional. O capitalismo, as relações de produção e consumo, os
códigos burgueses acelerados do meio urbano desnacionalizavam os citadinos
brasileiros, valores estrangeiros que contaminavam os elementos supostamente “puros”
de nossa nação (Albuquerque Júnior, 2011).
O espaço nacional, nas concepções destes autores, deve ser pensando enquanto
parte dum espaço tradicional, um espaço fechado e hierarquizado que garanta o
ordenamento da nacionalidade. Vê-se que a obra sociológica de Gilberto Freyre é
elaborada através da memória, da saudade e da tradição duma certa temporalidade
passada. O passado teorizado em Gilberto Freyre é forçosamente bersoniano. Para Henri
Bergson (1859-1941), a matéria não existiria em si mesma, não viria a ser duração, não
se tornaria espaço ao ver do autor sem a atuação imperiosa da memória, sem o
estabelecimento do tempo o espaço não é uma categoria possível ao ver do autor. Assim
como em outros saudosistas, Gilberto Freyre eleva o conceito de tempo-passado ao
devir maior e motor da história em detrimento da categoria de espaço, entendido
enquanto comportando “indefinidamente coisas que aí se justapõem, enquanto o tempo
destruiria, pouco a pouco, os estados que sucedem nele” (Bergson, 1999, p. 168).
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As artes, a literatura, o folclore, promovidos pelos regionalistas e


tradicionalistas, nas noções destes, são elementos constitutivos das memórias arcaicas
da nacionalidade. Estes grupos tentam construir, por meios diferidos, uma memória, um
passado que organize seus presentes; buscam incessantemente fugir da atualidade fugaz
que pareciam escorrer de suas mãos. Como nos diz Albuquerque Júnior: “É como se, no
passado, seus ancestrais governassem a si e aos outros, a sua própria história e a dos
outros, eles agora vissem perdendo este governo, fossem governados por outros; não
conseguissem sequer governar a si mesmos” (Albuquerque Júnior, 2011, p. 93) é na
reelaboração duma subjetividade para si que estes intelectuais ligados aos movimentos
tradicionalistas irão construir sua fabula espacial e regional. O enfoque dos regionalistas
com seu destaque da atuação dos mecanismos mnemônicos, do trabalho da memória, é
prolongar o passado no presente, fazer com que os modelos passados de subjetividades
guiam o futuro nacional.
O esquecimento é o perigo eminente que os tradicionalistas querem combater,
querem se defender do esquecimento provocado pelas mudanças de referentes
espaço/temporais. Os saudosistas e tradicionalistas não querem fechar temporariamente
as portas e janelas de suas consciências ancestrais, não desejam um lugar novo em suas
experiências. É como se, o esquecimento fosse o presente em passagem que é
necessário ancorar nas amarras do passado. O esquecimento é supostamente imoral,
enquanto a memória seria moralista, a memória estaria ao lado da verdade, da virtude,
enquanto esquecer é não cumprir promessas, ser fugaz e passageiro, designar-se ao
terreno da ilusão e do erro, passar uma távola rasa na consciência, apagar impressões, é
desligar-se dos antepassados, enquanto relembrar saudosamente é prometer a
permanência do passado no futuro e perpetuá-lo.
Com a derrocada387 dos símbolos de poder destas elites que estavam sendo
tragados pelos movimentos e mudanças na história do Brasil contemporâneo, muitos
destes intelectuais saudosistas investiram na nova máquina de Estado implantada pelo
regime militar. O devir histórico, a “Roda viva” (1967) como diria Chico Buarque de

387
Hannah Arendt (1906-1975) problematiza de modo contundente os efeitos da interrupção dos fluxos
tradicionais: “O fim de uma tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais tenham
perdido seu poder sobre as mentes dos homens. Pelo contrário, às vezes parece que esse poder das noções
e categorias cediças e puídas torna-se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se
distancia a memória de seu início; ela pode mesmo revelar toda sua força coerciva somente depois de
vindo seu fim, quando os homens nem mesmo se rebelam contra ela”. Ver: A tradição e a época
moderna. In:_____. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o Futuro. São Paulo – Editora perspectiva –
1992. pag. 53.
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Holanda (1944-), levaria a “Saudade para lá388” deixando insatisfeitas tais elites
regionalistas e tradicionalistas, que ao verem erigir-se no horizonte uma dominação
política de caráter autoritário em nosso país, investiram seus desejos e aspirações nos
fluxos operacionalizados pelos grupos militares.
Uma parcela destes intelectuais e artistas (grosso modo, liberais, conservadores,
tradicionalistas e católicos), acreditava que com/nas engrenagens da máquina militar
deteriam o poder de cristalizar o tempo, e ainda mais, fazer-lhe supostamente “retonar”
aos seus modelos e referências sensíveis do passado. E é na opinião pública que estes
grupos fomentavam seus desejos autoritários de combate ao novo. O próprio General
Ernesto Geisel (1907-1996), falando em lugar dos vencedores no período, numa
entrevista concedida em 1981, momento próximo ao da abertura democrática, fala que o
movimento militar não foi revolucionário, não tinha aspiração em novas ideias, não
previa outro plano de nação, ao contrário, o movimento tinha enquanto modelo os
referencias passados de governo, estas forças da tradição, da pátria, da família, lideradas
por homens treinados, disciplinados e prontos para exilarem qualquer novidade,
principalmente no plano das condutas e pensamentos. (Toledo, 2004)
A instauração da ditadura militar em 1964 é um exemplo do quanto, liberalismo
e conservadorismo, originam-se nesse terreno duma opinião publica violentamente
oscilante; entre moderno e tradicional, entre passado e futuro, entre liberdade e
obediência, entre luta por direitos ou conformismo. Estes pensamentos capturam
consciências, anexam crentes. Estes discursos políticos, conservadores/saudosistas e
liberais/militares, unem-se, fundamentalmente, com a preocupação de restaurar os
antigos códigos, valores e hierarquias sociais baseados na autoridade, homens que
queriam tornar a serem chefes de suas casas e consequentemente da nação, da fábrica,
da sociedade em geral. Pensamentos distintos que se encontram no momento de
reestabelecer as tradições sociais, suas memórias e autoridades no passado, são duas
faces da mesma moeda, os seus mundos estando em progresso ou em decadência é o
combate ao enfraquecimento da autoridade que movem os aderentes destes discursos
(Arendt, 1992, p. 138).

388
É interessante problematizar as sensibilidades saudosas do período militar através das lentes desta
composição de Chico Buarque de Holanda lançada em setembro de 1967, vejamos um trecho: “No peito a
saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a saudade pra lá”.
Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=rodaviva_67.htm> acessado
em: 19 de março 2014.
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Memória tradicional que devia permanecer a todo custo, em todas as partes da


nação, mesmo se fosse necessário arrancar sangue, martírios e sacrifícios dos que foram
capturados pela máquina militar, o passado devia permanecer com o trabalho da
memória patriarcal e latifundiária, excludente e elitista, mesmo que liberdades
individuais e grupais fossem suprimidas. Com uma promessa vã de manutenção da
ordem e segurança nacional, da família e das normas, alguns dos tradicionalistas
regionalistas, entre outros, encorpam as fileiras de adeptos do autoritarismo.
Na década de sessenta estas tensões subjetivas se exacerbaram. Durante o
governo João Goulart (1919-1976), no Brasil, emergiam novos atores políticos e
mudanças nas estruturas gregárias de poder, problemas nas finanças estatais, conflitos
entre os ministérios, estados e municípios, sistema partidário em descrédito, por um
lado, grande participação das classes populares e revindicação por direitos
fundamentais, principalmente relacionados ao trabalho e subsistência, por outro lado,
setores militares, liberais, católicos, cada vez mais perseguidores e sufocadores de
movimento autônomos ou supostamente “comunistas”. O medo tinha uma cor no Brasil
dos anos sessenta: era vermelho e vinha da URSS (Toledo, 2004).
Ao longo da história republicana brasileira, os governos ditos “democráticos”
instituíram-se sempre de maneira frágil e eram permanentemente ameaçados de
dissolução. Este furor golpista se instala, principalmente, nos governos dos anos de
1940 e intensifica sua ação no início dos anos 1960, havia um espectro rondando os
presidentes brasileiros, o fantasma do golpe de Estado (Toledo, 2004, p. 17).

Com livros e terços na mão, em macha pela família, por deus e pela liberdade,
os grupos conservadores e cristãos, com efeito, tinham o desejo de converter o público
brasileiro e mobilizar toda a sociedade contra uma suposta república sindical em 1964, a
macha da família é uma expressão notória do anticomunismo e do antipopulismos
brasileiros, movimentos que iram na mesma direção de alguns dos pensamentos dos
intelectuais saudosistas e tradicionalistas do nordeste, movimentos “populares” que
clamaram ostensivamente pelo golpe de 1964 cantando o hino nacional (Codato &
Oliveira, 2004).

Os jornais do século XX demonstram a mobilização da Igreja-católica em


defender suas posições no meio social, os folhetins literários eram constantemente
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usados pelos regionalistas para expressão de suas posições políticas. O terror ao


“comunismo ateu”, o medo dos efeitos desencadeados pelo populismo no
comportamento dos setores proletários, unia em localidades distintas, vários membros
destes grupos heterogêneos no ideal de proteger a pátria divinizada. Podemos também
levar em consideração o apoio da Igreja-católica ao integralismo no início do século, e a
adesão de muitos intelectuais e artistas tradicionalistas as fileiras deste movimento de
massas com tenor de orientação política notadamente fascista e autoritária.

A liberdade concedida a “todos” os cidadãos era algo que as elites letradas ou


“iluminadas” do Brasil “tupiniquim” não podiam aceitar. Afinal, no seu ver, os
“próprios” tinha construído com muito “esforço” o território nacional, logo para eles de
modo algum será “justo” que saiam dos seus postos de seguradores das “rédeas da
nação”.
Brasil que “jamais” deveria cair nas mãos dos chamados: “marmitas”,
“bêbados” ou “arruaceiros” que aos olhos da elite política nacional eram a escoria da
nação, isto é, a massa de “alienados”. Nada mais eram que grupos rurais e urbanos,
trabalhadores do campo, proletários, movimentos sociais dum modo geral, que com
amplas razões queriam participar efetivamente deste construtor denominado
historicamente “Brasil” e garantir direitos fundamentais de trabalho e subsistência.
Este afastamento do acesso e criação da memória nacional, este temor de outras
memórias emergirem, lembranças distintas e diversas das imagens já desgastadas pelo
tempo, perpassa todo o campo da constituição dum governo democrático-republicano.
Os grupos tradicionalistas e regionalistas não querem uma democracia efetiva, pois
negam aos outros grupos o acesso aos arquivos do passado, impedem outras
interpretações acerca da historicidade de nosso território, inibem o pluralismo de ideias.
O arquivo, a memória, como nos alerta o crítico literário Jacques Derrida, não fica
estagnado no passado, mas antes é uma promessa ao futuro, uma maneira de construir
no presente o vir a ser da história, criar arquivos é, consequentemente, inventar valores
e interpretações políticas (Derrida, 2001, p. 16).
3. Saudades de ordem e autoridade

Em seu livro Ordem e progresso publicado em 1959, Gilberto Freyre expressa


de maneira enfática um sentimento que toma conta dos membros das elites brasileiras
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no período. Sentimento de rejeição e negação da república e do fim da escravidão, um


medo das ameaças para ordem que essas mudanças ocasionaram. Um terror das perdas
de autoridade e hierarquiza social. Já que não era possível estancar tais correntes que
mudavam o cenário nacional, o golpe militar, aparentemente, seria capaz no ver destas
elites, de manter o pensamento conservador e paternalista, com uma nova autoridade era
preciso combater a desvirilização, a emasculação irradiada pela modernidade, como nos
diz Albuquerque Júnior:
“Estes discursos de explicito conteúdo autoritário e
conservador consideravam essas tendências de
democratização da sociedade brasileira e da política brasileira
como exóticas em relação à nossa história política e social,
não fazendo parte das tradições nacionais, que precisavam ser
defendidas, sob a pena de nosso país vir a perder a sua
originalidade, a sua identidade, vir a ser incorporado de
forma subordinada a um processo civilizatório que se
apresentava sob o rótulo do progresso, da modernidade e da
modernização, mas que, na verdade, significaria a nossa
subordinação política, cultural e econômica a nações que
imperialisticamente queriam nos anexar”. (Albuquerque
Júnior, 2013, p. 27-28).
Com o apoio ao autoritarismo militar os intelectuais da tradição e da saudade
querem combater também a feminização da sociedade brasileira irradiadas pela
modernidade. Costumeiramente, habitualmente, estes intelectuais viam o homem
enquanto o dono da autoridade e do poder sobre o espaço, o macho seria centro de
significados, numa sociedade democrática, nivelada em direitos e deveres, as mulheres
começavam a ocupar seus lugares políticos negligenciados no passado. O universo
patriarcal parecia arruinado, logo era necessário combater estes movimentos que fugiam
dos rumos dos pais e consequentemente da pátria do homem-varonil.
Num artigo escrito em 1965 intitulado Em Defesa da Saudade Gilberto Freyre
pretende aglutinar memória e tradição ao porvir da sociedade brasileira, em suas
palavras: “saudado do passado e fé no futuro podem completar-se de modo magnífico”
(Freyre, 1979, p. 393) uma saudade, notadamente, criadora, militante, engajada e
preocupada com os rumos da nação, uma verdadeira ode ao passado, aos ídolos e
cânones literários portugueses e nacionalistas, indo em direção ao mesmo movimento
ocorrido em Portugal durante o período salazarista. Uma saudade adocicada, sentimento
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na visão do autor desinteressado, longe de ser reacionária, a saudade seria infantil e


inocente, plástica inescapável ao “povo” brasileiro, saudades dos patriarcas, da
autoridade inquestionável, do mandonismo desenfreado dos coronéis que seriam
enraizados em nossas identidades nacionais.
Dum modo um tanto irônico, Freyre tenta justificar até o enfrentamento da
União soviética com a Alemanha Nazista por do “culto da saudade irredutíveis valores
nacionais e regionais provados pelo tempo e por ele enobrecidos” (Freyre, 1979, p. 394)
o sociólogo pernambucano, usando os referencias imagético-discursivos da II guerra
mundial, deixa escapar traços de sua própria sensibilidade, justificando literariamente a
vitória das forças conservadores e saudosas na liderança dos rumos da nação brasileira
através da manutenção da ordem, e o quanto a saudade, o passado, poderiam salvar o
Brasil dos males causados pela modernização, segundo o autor pernambucano:
“Não: a saudade não é de baixa pieguice
“reacionária”. Não é sentimentalismo rasteiro a que recorram
apenas os adeptos do chamado status quo. Não é recurso a
que se agarrem os “regressistas” incapazes de acompanhar os
“progressistas” que representam a seu modo o que
consideram determinismo histórico ou econômico. É
afirmação, no indivíduo, que com relação ao seu passado
pessoal, que com relação ao seu passado nacional, daquela
autenticidade de caráter que encontra, na identificação do
mesmo indivíduo, quer com os valores do seu passado, a sua
base mais sólida”. (Freyre, 1979, p. 395).
Freyre tenta negar todos os conjuntos e agenciamentos políticos que operam na
criação duma dada sensibilidade saudosistas. Quer negar dimensões sensíveis
incorporadas na invenção dos valores saudosos obedientes ao passado, Gilberto Freyre
quer que este modelo de passado seja a-histórico, que pertença apenas as decisões
individuas, um sentimento supostamente livre e não pressionado pelos sedimentos de
sentidos, de significados, de formas e valores criados por estes “homens bons” saudosos
dos modelos antepassados de organização social. Assim como o discurso dos militares,
o discurso freyriano é profundamente marcado por uma divinização do nacional, um
transcendentalismo da pátria.
Somente os desviantes, os “maus aventureiros”, só aqueles que não queriam
seguir os caminhos trilhados pelo passado, os “maus filhos” que desrespeitavam a
memória de seus pais, adultos malignos, malditos, não carinhosos, incapazes de
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sentimento, incapazes de serem doces e dóceis em relação aos seus avós e tutores, estes
tipos maléficos caricaturados por Freyre, notadamente esquerdistas, subversivos,
dissidentes e comunistas, não conseguiam compreender, na visão do autor, o caráter
ontológico da sensibilidade saudosa empreendida pela máquina-regionalista
pernambucana, sua inexorável relação com as raízes e mitos nacionalistas: “Porque sem
esse sentimento, um tanto amoroso, de saudade do passado, substituído de todo por
outro, de repúdio total ao mesmo passado, não há povo que se compreenda
profundamente a si mesmo. Que compreenda o que nele é presente e o que nele é
possível de futuro” (Freyre, 1979, p. 395), os saudosistas parecem confiar na máquina
estatal do regime militar para construir esse futuro projetado pela saudade, é necessário
confiar nos homens da lei e da ordem, militares que, providencialmente, estariam
dispostos para contenção de subjetividades desviantes. Sujeitos “transviados” que
devem ser postos em formação, em continência, reimplantadas aos modelos da tradição.
Em 1966 é instituído no Brasil pela iniciativa militar, o Conselho Federal de
Cultura com o intuito de abrigar em suas estruturas; intelectuais, artistas e cientistas
preocupados em fomentar o desenvolvimento e divulgação duma cultura nacionalista-
popular. As ideias de Freyre Norteiam fortemente os membros deste órgão-militar, sua
construção do Brasil sobe o signo da identidade “mestiça” e da “democracia racial”
fazem crer que os vários regionalismos constituiriam o solo hibrido da nação
indivisível, os membros do conselho não vêm contradições entre os tipos regionais e
nacionais, mas antes pensam na interdependência de ambas as tipologias, regiões
misturadas, porém, reunidas sobe o signo maior da nacionalidade. Gilberto Freyre
participa dos membros do conselho e sedimenta fortemente o ideal patriota de “defesa
dos interesses da nação”, mostrando o quanto os militares souberam ir de encontro aos
fluxos saudosistas e conservadores destes intelectuais da tradição. Os militares
investiram na homogeneidade cultural e tinham nestes pensamentos passadistas e
nacionalistas fortes ancoradouros imagético-discursivos. (MAIA, 2007, p. 5)
Outro autor que também podemos análise no mesmo sentido de Freyre é o
teatrólogo Ariano Suassuna que a partir da década de cinquenta fica nacionalmente
conhecido por sua obra Auto da Compadecida. O teatro de Ariano Suassuna foi logo
recebido com furores entre os críticos por conseguir criar, no campo desta arte com
inclinação aos estrangeirismos, um viés nacional-popular, até então não encorpado ao
teatro nacional. Produção teatral capaz de ser entendida pelas camadas populares, não
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apenas voltado para as classes burguesas, mas preocupado em encenar e instituir um


“espírito nacional”.
Toda obra deste autor é delineada por um ângulo populista, em suas páginas o
povo era contra o fim das relações patriarcais no sertão, culpavam o capitalismo e a
modernidade por suas condições de miséria e pobreza, o povo tinha saudade dos
modelos tradicionalistas de organização social, das “autoridades” por assim dizer,
Como escreve Albuquerque Júnior:
“Ariano Suassuna é bem um exemplo de onde
terminou por desembocar politicamente o regionalismo
tradicionalista nordestino. Colocando-se sempre como um
crítico, seja da direita, seja da esquerda, Ariano acaba por
apoiar ostensivamente o golpe militar de 1964, tornando-se,
em 1967, um dos fundadores do Conselho Federal de
Cultura”. (Albuquerque Júnior, 2011, p. 187).
O teatrólogo paraibano segue na direção de Gilberto Freyre, defende a saudade,
a tradição, e argumenta que apenas o catolicismo e os militares seriam aptos na missão
de salvar nossa nação dos males estrangeiros e cosmopolitas que estariam prestes a nos
destruir. Os militares seriam substitutos com outros figurinos, dos personagens dos
chefes sertanejos á tempos desaparecidos, almas fortes e sólidas, cálidas como o chão de
terra batida, crentes em Deus, que seriam capazes de dar unidade ao nacional,
disciplinar e hierarquizar os níveis sociais, literalmente, por as coisas em seu devido e
costumeiro lugar. O exército, em suas obras, aparece enquanto salvadores de nossa
nação: “Este desejo de ordem que perpassa sua obra, seja teatral, seja poética, ou
literária, nasce da própria saudade que sente de uma “certa ordem”, que entrava em crise
no Nordeste, onde “reinavam” famílias “aristocráticas” do sertão” (Albuquerque Júnior,
2011, pag. 188) uma obra inteiramente voltada contra história em favor da memória.
Ariano não pretende criar uma saudade realista, comprovada através de estudos
científicos, etnográficos ou sociológicos, antes cria uma visão saudosa de mundo por
meio de alegorias, de ícones e tipos medievos, por meio duma tradição, um Nordeste
tecido nos bordados da arte, resacralizado nas nuances da ficção e do sonho, mesmo que
este sonho tenha uma realidade sombria e obscurecida pela ditadura militar. Arte
reativa, que combate a passagem fugaz do presente, que recria mundos do passado,
universos com materialidade, regiões praticamente palpáveis que só pelos caminhos da
arte poderiam ressuscitar e fazer retornar a máquina do tempo histórico.
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Por fim, com este estudo, esperamos poder ter problematizado de modo geral, a
relação entre saudosismo, regionalismo e tradicionalismo com os pensamentos
autoritários e militares do Brasil contemporâneo. Tentamos mostrar através destes
autores participes destes movimentos, em quais lugares subjetivos e sensíveis
desembarcaram as formas de ver e dizer saudosistas; que tipo de relações políticas estes
grupos realizaram, quais conexões destas sensibilidades com uma vontade de ordem, de
autoridade e tradição no país, saudade forte e historicamente sedimentada, que ainda nos
dias atuais, circula por entre os discursos e práticas dos brasileiros, territórios
irrefletidos de nossa subjetividade que é necessário se rever criticamente e ultrapassar
por uma sociedade menos penalista, menos ordenadora e conservadora, por uma
convivência plural e multiforme, sem saudade alguma de autoritarismos.

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RECIFE, PRIMEIRO DE ABRIL DE 1964: A PASSEATA ESTUDANTIL


CONTRA A DEPOSIÇÃO DO GOVERNADOR MIGUEL ARRAES

Jéssica Oliveira de Burgos


Graduanda em História pela Universidade Federal de Pernambuco
jessicaoliveiradeburgos@gmail.com

RESUMO:
O presente artigo pretende analisar o Golpe Militar no estado de Pernambuco e a
deposição do governador Miguel Arraes através da passeata organizada pelos estudantes
no dia primeiro de abril de 1964, que tinha como objetivo apoiar o dirigente popular na
defesa da legalidade do seu mandato. As lideranças desta manifestação estudantil, Ivan
Rocha Aguiar e Jonas José de Albuquerque Barros, foram mortos no confronto e são as
primeiras vítimas fatais da Ditadura Civil Militar no nosso estado. Através do resgate da
memória e da valorização da História do Tempo Presente, busca-se discutir a
deflagração da “intervenção militar” em Pernambuco bem como o contexto que ele
estava inserido.
PALAVRAS-CHAVE: Golpe Militar; História Oral; vítimas da Ditadura Civil Militar

INTRODUÇÃO
No último dia do mês de março de 1964 o general Olímpio Mourão ordenou que
as tropas da IV Divisão de Infantaria de Juiz de Fora, Minas Gerias, comandadas pelo
mesmo, que seguissem ao estado da Guanabara a fim de ocupa-lo, local onde se
encontrava o então presidente da República João Goulart (Jango). A “intervenção
militar”, como era chamada pelos membros das Forças Armadas, correspondia a um
projeto que já vinha sendo preparado há algum tempo, o qual tinha como principais
objetivos restabelecer a ordem no país e reverter a subversão. Para isso, era necessário
depor do presidente de “condutas duvidosas” e entregar o poder nas mãos de quem
realmente podia governar o país, ou seja, os disciplinados militares.
Ainda neste mesmo dia, as notícias da movimentação dos militares espalharam-
se pelo país através de transmissões de rádios e de comunicações internas entre
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dirigentes políticos, atingindo o governador de Pernambuco Miguel Arraes. Devido ao


seu governo de caráter social, em concordância com o de Jango, Arraes sabia que sua
“cabeça ia rolar”¹, entretanto defendia a legalidade do mandato e não aceitou acordos,
sendo então deposto e preso. Em apoio ao governador de Pernambuco, foram
organizadas manifestações na cidade do Recife, entre elas uma passeata de estudantes
que resultou nas duas primeiras vítimas da Ditadura Civil Militar no estado.
O objetivo deste artigo é relacionar a deposição do governador Miguel Arraes
com a passeata de estudantes citada acima. Para isso, foi feito um levantamento
bibliográfico sobre o tema, como também foram usadas fontes documentais, como
jornais da época e edições especiais posteriores, além de uma entrevista com um irmão
de uma das vítimas, Danúbio Aguiar. O resgate do testemunho é uma importante
ferramenta na história oral. Segundo Carlos Fico:
Após uma fase de busca de legitimação posterior à Segunda Guerra Mundial,
o recurso às fontes orais e à temática dos eventos traumáticos tornou a
questão do testemunho proeminente. Muito dessa história se fez a partir do
depoimento dos que sobreviveram a aqueles eventos. Frequentemente, isso se
deu com o propósito explícito (e político) de se evitar o esquecimento (FICO,
2012, p.47).
A Ditadura Civil Militar brasileira está inserida em um conjunto de eventos que
ocorreram no decorrer do século XX e trouxeram às pessoas por eles afetadas
consequências traumáticas. Por serem recentes os eventos, ainda estamos inseridos no
seu contexto e somos fortemente afetados por suas consequências, justificando a
importância da História do Tempo Presente como também dos seus meios de
investigação. Não se trata de usar os testemunhos como verdades absolutas nem de
justificar determinados atos, mas sim de repensar a história através das múltiplas
interpretações que surgem através do resgate da memória.
A passeata dos estudantes em apoio a Arraes, por sua vez, foi escolhida como
evento norteador deste artigo já que através dele é possível relacionar tanto a forma
como o estado de Pernambuco era governado na época, quanto a deposição do líder
popular, bem como a organização do Exército e da polícia, suas formas de repressão,
sua adesão à “intervenção militar, a organização estudantil, o reconhecimento dos
crimes cometidos durante a Ditatura Civil Militar, o reconhecimento diante à sociedade
e as reparações as vítimas e famílias das vítimas. Além disso, este evento é pouco
abordado pela bibliografia, sendo, na maioria das vezes, comentado em poucas linhas e
sem muitos detalhes, o que justifica este estudo mais aprofundado sobre o assunto.
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O GOLPE MILITAR EM PERNAMBUCO


O governador Miguel Arraes encontrava-se no dia 31 de março de 1964 no
Palácio Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco como também
residência do mesmo. As informações vindas pelas rádios do Sudeste e de telefonemas
de aliados traziam informações confusas, ora afirmavam a vitória da intervenção
iniciada em Minas Gerais, ora confirmavam que o presidente Jango ainda se mantinha
no poder. Ao mesmo tempo, advogados e juristas procuravam nos livros de Direito e na
Legislação formas legais de defender o posto do governador, já que o mesmo se negava
a lutar pelo seu mandato através das armas. Ainda neste mesmo dia, Arraes recebeu uma
ligação do presidente João Goulart pedindo que ele elaborasse um “manifesto que devia
ser assinado por todos os governadores da região, em apoio ao governo federal e, por
consequência, à legalidade democrática” (CAVALCANTI, 1980, p.225). Conhecido
como o Manifesto dos Governadores do Nordeste em Defesa da Legalidade, foi enviado
através de homens de confiança de Arraes para os dirigentes dos estados da Paraíba, do
Rio Grande do Norte, do Ceará, do Piauí, de Sergipe e da Bahia. Através deste
manifesto podemos perceber a estreita relação entre o presidente da República e o
governador do Estado de Pernambuco, justificada pela concordância do governo de
ambos, bem como a confiança dada ao nosso dirigente de uma tarefa tão importante. O
manifesto, entretanto, não alcançou o objetivo, por outro lado não deixa de ter grande
importância simbólica.
Em contrapartida, militares pernambucanos e o vice-governador Paulo Guerra se
organizavam para dar apoio à “intervenção militar”. O último, filiado ao Partido Social
Democrata, mantinha relações com os militares desde antes do golpe, “passando-lhes
informações valiosas sobre assuntos internos do governo do Estado, munindo assim os
sediciosos de um vasto instrumental apoio, sem o que não seria fácil a consolidação do
movimento de 1º de abril em Pernambuco” (CAVALCANTI, 1980, p.6). Por ter um
posicionamento político bem divergente do de Arraes, visava tomar o governo de
Pernambuco, cooperando com os militares para atingir seu objetivo. Além disso, guerra
contava com o apoio das oligarquias pernambucanas, já que defendia os direitos dos
últimos. Depois da deposição do governador ainda foi discutido se o vice deveria ou não
tomar posse, se ele realmente era a pessoa adequada para este cargo; entretanto, como
era preferível aos militares que um civil assumisse o poder em Pernambuco no
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momento imediatamente posterior ao Golpe, Paulo Guerra tornou-se governador do


estado no dia primeiro de abril de 1964.
Quanto aos militares pernambucanos, é importante ressaltar o papel exercido
pelo general Justino Alves Barros, comandante do IV Exército. Vale ressaltar que antes
mesmo deste aderir ao movimento através de uma mensagem transmitida no rádio,
coronéis do mesmo quartel-general já tinham iniciado no dia 31 de março uma operação
previamente organizada de detenção de cerca de mil pessoas, sobretudo líderes políticos
e sindicais do interior do estado. Justino Alves, por sua vez, tinha prometido ao
presidente João Goulart ao assumir o comando do IV Exército que manteria a ordem no
Estado de Pernambuco, promessa reafirmada ao governador Miguel Arraes com a
deflagração do Golpe; nas vésperas do dia 31 de março também tinha afirmado ao
presidente que defenderia a ordem instituída. Por outro lado, também tinha confirmado
ao marechal Castelo Branco a sua adesão à ação militar quando fosse chegado o
momento. Seu posicionamento era contraditório e seu apoio só veio quando a situação
já estava definida, justificando-se pela necessidade de manter a ordem. Eram
perceptíveis as divergências entre os oficiais que controlavam o IV Exército e a 7ª
Região Militar. Não só em Pernambuco, como também no outros estados, as alianças
com os chefes militares vinham sendo formadas no período anterior ao Golpe,
entretanto nem todos apoiavam o movimento e alguns só aderiram a fim de evitar sua
destituição do cargo e a consequente prisão. O caso de Justino Alves, por sua vez, que
não foi único, também pode ser visto como o simples jogo duplo, ao mesmo tempo em
que ele firmava acordos com Jango, fazia o mesmo com Castelo Branco, ele estava em
cima do muro só esperando a concretização dos fatos para enfim passar para o lado
vitorioso.
O plano militar em Pernambuco se constituía no descolamento das tropas da
capital para o centro da cidade, mas especificamente para as proximidades do Palácio
Campo das Princesas; e das tropas do interior e de Alagoas para as áreas sujeitas a
levantes, como a zona açucareira de Palmares, região de grande atuação de sindicatos e
de Gregório Bezerra. No Recife, como foi noticiado em jornais da época, mil homens e
sessenta viaturas se espalharam numa região de dois quilômetros quadrados. Ainda pela
manhã do dia primeiro de abril de 1964 começou o cerco do Palácio, como também o
bloqueio de pontes e ruas subjacentes. Neste momento, Arraes divulgou a famosa
declaração na rádio em que afirmava defender seu mandato através da Constituição do
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Estado e da Constituição Federal. Os militares, por outro lado, se orgulhavam da


rapidez e eficiência das tropas, que tinham recebido a ordem de abafar qualquer
resistência.
Dentre deste contexto, as tropas comandadas pelo coronel Darcy Vilocq
ocuparam as proximidades do prédio da Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE). Considerado um dos oficiais mais conservadores da 7ª Região
Militar, teve sua tropa substituída por ordem do coronel Bandeira, chefe da Segunda
Secção do IV Exército, fato que será justificado no próximo tópico. É importante
ressaltar que Vilocq também foi o responsável por amarrar uma corda do pescoço do
Gregório Bezerra e arrasta-lo atrás de um caminhão pelas ruas do bairro de Casa Forte.
O Palácio Campo das Princesas e o governador, por sua vez, recebiam a
proteção da Polícia Militar, comandadas pelo major Hango Trench. O quartel do Derby
também tinha adotado medidas preventivas de defesa. No entanto, como relata Manuel
Correia de Andrade, “O governador, eminentemente legalista, tinha bastante bom senso
para saber que a Polícia Militar e o povo não tinham condições de enfrentar as forças
militares federais e procurou sustentar o seu governo com base nos princípios jurídicos
e morais” (ANDRADE, 1989, p.54-55). Ao contrário de outros governadores, Arraes
não tinha modernizado nem aumentado previamente os equipamentos da polícia
estadual, mesmo com a eminência de uma intervenção militar o governador se
sustentava desde o princípio na defesa legal do seu mandato, posicionamento que
acarretou na sua prisão. Muito menos tinha cedido aos pedidos de Gregório Bezerra de
armar e fardar os camponeses, apesar de a imprensa da época afirmar que o governador
estaria armando os trabalhadores rurais para uma eminente revolução comunista, que
começaria no campo e seria levada até a capital. Da mesma forma, iniciativas isoladas
de protesto, como a deflagração de greve dos trabalhadores do Porto do Recife e da
Rede Ferroviária Federal foram dissolvidas após o pedido do governador. Sua revolução
aconteceria sem violência.
Segundo Fernando Coelho,
As estações de rádio e televisão e as redações dos jornais de Recife foram
ocupadas pelo Exército ainda no dia 1º de abril, sendo retiradas do ar ou
tendo permissão para transmitir, somente, o noticiário que convinha aos
militares. Desde então a prisão do Governador passou a ser divulgada
seguidamente – embora ainda não tivesse ocorrido. Para desestimular
qualquer resistência. (COELHO, 2004, p. 159).
Não aceitando negociar com os militares, o Palácio Campo das Princesas foi invadido
pelo comandante do 14º RI, coronel Dutra, e o governador de Pernambuco Miguel
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Arraes deposto e preso. A deposição foi formalizada através de Resoluções da


Assembleia Legislativa do Estado, instituição também tomada pelos militares.

A PASSEATA DOS ESTUDANTES


Em contrapartida, desde o dia 31 de março de 1964 um grupo de estudantes
estava reunido na Escola de Engenharia, localizada na esquina da Rua do Hospício com
a Avenida Conde da Boa Vista, acompanhando através do rádio as notícias que vinham
do Sudeste sobre a mobilização militar. Da mesma forma que o governador do estado e
seus aliados políticos, os estudantes procuravam alguma medida legal que poderia ser
tomada por Arraes, como também buscavam formas de mobilização para assegurar a
não deposição do mesmo. Ainda no dia 31 de março ficou então decidido que os
estudantes fariam uma passeata em apoio ao governador do estado.
Segundo o entrevistado Danúbio Aguiar, publicitário aposentando e membro do
Partido Comunista Brasileiro, o dia 31 de março de 1964 acabou com a esperança da
juventude da época e de outros estratos sociais de se ver livre do imperialismo norte-
americano (AGUIAR, 2014). Com o Golpe Militar, os Estados Unidos puderam
intensificar sua influência no Brasil, ameaçada pela nova dinâmica instalada na
sociedade de reivindicações populares, trabalhistas e de reforma agrária. O estado de
Pernambuco, neste aspecto, mereceu uma atenção especial dos norte-americanos, já que
governo social iniciado por Arraes era visto como um princípio de uma cubanização no
Nordeste brasileiro. A Operação Brother Sam, desta forma, foi organizada com o intuito
de caso os militares não conseguisse tomar o poder ou tanto o presidente da República
como quem o apoiava oferecesse alguma resistência, as Forças Armadas norte-
americanas invadiriam o país a fim dar um apoio estratégico aos golpistas. Toda a Frota
do Caribe, bem como 100 toneladas de armamentos, foi transferida para o litoral
brasileiro, posicionando-se em pontos estratégicos como o litoral do Rio Grande do
Norte e na Ilha de Fernando de Noronha. As elites, por sua vez, compartilhavam dos
interesses norte-americanos e buscavam resgatar o antigo poder de mando e repressão
que tinham perdido ao longo do tempo.
Apesar de Arraes defender desde o princípio seu mandato através de meios
legais e pregar uma revolução sem armas, os estudantes esperavam que ao ter se
iniciado o golpe houvesse resistência. Esse posicionamento era influenciado pela ação
de Gregório Bezerra no interior do estado, importante personagem na fundação e
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organização de sindicatos rurais; pelas Ligas Camponesas e pelo advogado da mesma,


Francisco Julião; e pela ação dos membros dos partidos comunistas tanto no interior
como na capital. Vários estudantes se diziam comunistas ou pelo menos já tinham lido
alguma coisa sobre o assunto. A passeata dos estudantes, desta forma, corresponde a
essa esperança de resistência, no entanto, ao contrário da defesa de Gregório Bezerra de
uma resistência armada, a manifestação estudantil foi organizada e conduzida de forma
pacífica (AGUIAR, 2014).
De acordo com Oswaldo de Oliveira Coelho Filho, estudante da Faculdade de
Direito do Recife em 1964 e membro do PCB:
No início da tarde [do dia primeiro de abril], mais ou menos às 14 horas, uma
tropa do Exército, fortemente armada, invadiu a Escola de Engenharia,
expulsando de lá os estudantes que, em passeata, foram pela rua do Hospício
no sentido da avenida Conde da Boa Vista, por onde seguiram, tendo à frente
o Pavilhão Nacional [...]; que a passeaste estudantil seguiu seu destino, com
palavras de ordem em defesa da legalidade democrática, atravessou a ponte
Duarte Coelho e já na avenida Guararapes parou na então Sertã, esquina da
rua da Palma, tradicional ponto de reunião de políticos, intelectuais e
estudantes e, ali, vários líderes da passeata usaram da palavra, tentando
alertar o povo do golpe em marcha e da necessidade de se organizar a
resistência popular ao mesmo; que após breve comício a passeata seguiu seu
ruma pela rua da Palma, tomando a rua Nova até a avenida Dantas Barreto
(BARROS, 2009, p.41).
Os estudantes secundaristas contavam com a liderança de Jonas José de
Albuquerque Barros, 17 anos, estudante do Colégio Estadual de Pernambuco, atual
Ginásio Pernambuco; e os estudantes universitários tinham como líder Ivan Rocha
Aguiar, 23 anos, estudante de engenharia, vice-presidente da União de Estudantes de
Palmares e funcionário no departamento estadual de divulgação do plano do Banco do
Brasil de crédito ao pequeno produtor agrícola. Além disso, enquanto a manifestação
passava pelas ruas do Recife ia recebendo novos adeptos, entre eles os estudantes da
construção civil que estavam reconstruído dois prédios que tinham desabado na rua
Nova. Um pouco mais a frente, na Igreja de Santo Antônio, já foi possível notar a
reação das tropas militares. Indo em direção ao Palácio Campo das Princesas, a passeata
estudantil encontrou-se com as tropas sob o comando do coronel Darcy Vilocq na
Avenida Dantas Barreto, que faziam uma barreira no local a fim de impedir que a
manifestação atingisse as proximidades da Praça da República. Em meio a gritos de
guerra e palavras de ordem, “Abaixo o golpe!” e “Viva Arraes” (BARROS, 2009, p.60),
o clima entre os manifestantes e os militares ficava cada vez mais tenso. O momento é
narrado por Danúbio Aguiar, irmão de Ivan Aguiar:
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Quando entrou ali para ir para o prédio da SUDENE houve uma reação, eles
[os militares] já estavam defronte à SUDENE, vinham marchando, marcha
nazista, passo de gancho com aquelas pernas duras. E foi quando houve os
primeiros disparos, eu mal tinha atravessado a praça e chegado na calçada da
Seguradora, aquele prédio da esquina. Aí, mas a turma resistindo, jogando
casca de coco, os meninos estavam bebendo água de coco e jogando as
cascas de coco neles, aí foi quando surgiu os primeiros tiros. Aí correu,
recuo, e parou os tiros, aí a turma volta a querer ir mais para frente, porque a
intenção era soltar Doutor Arraes, uma reação para soltar Doutor Arraes
(AGUIAR, 2014, p. 21).
As balas foram disparadas para cima e, neste momento, alguns afirmavam que eram de
festim, entretanto o desenrolar dos fatos provou que eram “bala de verdade”.
Ivan Aguiar e Jonas de Albuquerque estavam na dianteira da passeata, o
primeiro representando o presidente da União de Estudantes de Palmares, que não
estava presente, e o último o grêmio do Colégio Estadual de Pernambuco. Apesar de
parte do movimento ter sido dispersada com as primeiras balas, os dois e outros
manifestantes continuaram marchando em direção ao Palácio Campo das Princesas,
tendo como único objetivo oferecer apoio ao governador do estado. Não se sabia se ela
já tinha sido deposto, os meios de comunicação afirmavam que sim, entretanto boatos
diziam o contrário. De qualquer forma, os estudantes não desistiam e continuavam seu
trajeto. Então, segundo o relato de Oswaldo de Oliveira Coelho Filho:
O piquete militar fez disparos diretamente contra os estudantes, ocasião em
que tombaram, com tiros de revólveres nos rostos, os estudantes Jonas José
de Albuquerque Barros, de 17 anos, secundarista do Colégio Estadual de
Pernambuco, e Ivan da Rocha Aguiar, de 23 anos, acadêmico de Engenharia
(BARROS, 2009, p.41).
Apesar do relato de Oswaldo Coelho, eles não foram atingidos por balas de
revólver, mas sim por um fuzil disparado pelo próprio Major Hugo Caetano Coelho de
Almeida, irritado com a falta de iniciativa dos soldados mesmo depois de receberam a
ordem de abrir fogo contra os estudantes (CAVALCANTI, 1980). No momento dos
disparos Severino Pereira Aguiar, membro fundador do Partido Comunista Brasileiro
em Pernambuco, fundador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Palmares e pai de
Ivan Aguiar, fugindo de Palmares para não ser encontrado e preso, tinha acabado de
chegar no Recife, mais especificamente na Ponte da Boa Vista, quando ouviu os
disparos sem saber que seu filho tinha sido atingido. Jonas de Albuquerque foi então
carregado pelo mesmo relator do momento, enrolado na bandeira do Brasil faleceu em
seus braços; enquanto que Ivan Aguiar foi levado por seu amigo João Florence, sendo
deixado com vida na rua do Rosário. Apesar de os meios de comunicação não terem
noticiado, uma vendedora da loja de produtos masculinos Remilet, que estava perto da
passeata estudantil na hora dos disparos também foi atingida pelos projeteis e faleceu.
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Várias pessoas também ficaram feridas, entre elas o estudante de biologia Ubirajara
Nunes da Silva, atingido com um tiro na perna. Questionados pelos meios de
comunicação na época quanto os mortos e feridos no dia do golpe, os militares
classificaram como uma “situação desagradável”².
Os dois estudantes foram então levados para o Hospital Pronto Socorro, Jonas de
Albuquerque, como já foi dito, faleceu no próprio local do confronto, enquanto que Ivan
Aguiar, deixado com vida por João Florence na rua do Rosário, foi resgatado pela Rádio
Patrulha e levado ao hospital. Não se sabe se o último faleceu ainda na rua do Rosário
ou nas mãos dos policiais. De qualquer forma, o óbito de ambos foi confirmado. Os dois
foram enterrados no dia seguinte no Cemitério de Santo Amaro, contando com a
presença tanto a juventude estudantil quanto de militares e agentes do governo norte-
americano. Por coincidência, foram encontrados na década de 1990 neste mesmo
cemitério os restos mortais de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária,
assassinados em 1973 pelo delegado de polícia paulista Sérgio Fleury, orientado pelo
cabo Anselmo, conhecida como a “Chacina de São Bento”. De acordo com as
lembranças de Marisa Barros, irmã de Jonas de Albuquerque e com 13 anos na época:
Enquanto os coveiros executavam a sua tarefa, a mãe de Ivan Aguiar, num
estado de muita revolta, corajosamente gritou:
- Seus assassinos! Exército miserável! Vocês mataram um filho meu, mas eu
ainda tenho quatro para vocês matarem. (BARROS, 2009, p.16).
O pai de Ivan Aguiar, por sua vez, não pode comparecer ao velório, pois ele sabia que
estava sendo procurado.
RECONHECIMENTOS E REPARAÇÕES
Desde a primeira metade da década de 70, familiares das vítimas da Ditadura
Civil Militar vem lutando pelo reconhecimento e esclarecido da morte dos seus
parentes. No primeiro momento, a ação era limitada apenas à denúncia, entretanto
recebia o apoio de alguns setores da Igreja Católica e de parlamentares oposicionistas.
Sua atuação, por sua vez, tornou-se mais intensa na segunda metade da mesma década.
Com promulgação da Lei da Anistia no final de 1979, os responsáveis pelos chamados
“crimes de sangue” não foram beneficiados, todavia mesmo após a redemocratização do
país o Governo do Estado continuava negando sua responsabilidade quanto aos crimes
cometidos entre 1964 e 1985. Em 1994, trinta anos após o Golpe Militar, uma Ordem
do Dia foi assinada pelos três ministros militares - almirante Ivan Serpa, da Marinha,
general Zenildo de Lucena, do Exército, e brigadeiro Lélio Lobo, da Aeronáutica - e
divulgada nos quartéis e nos jornais:
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Em comemoração aos 30 anos do movimento militar de 64, onde dizem que a


açÃo (sic) dos militares na época nÃo (sic) pode ser chamada de
‘usurparçÃo’ (sic) do poder, quartelada ou golpe. [...] A ordem estava
“subvertida” e a situação (sic) era “extremamente grave” [...] “Restou às
Forças Armas atender ao apelo da populaçÃo (sic) brasileira em defesa de
sua integridade, demonstrando permanente identificaçÃo (sic) dos homens
em armas com sua origem”, diz a Ordem do Dia. [...] Os três ministros
lembram que nÃo (sic) houve derramamento de sague durante o movimento
que, de acordo com ele, foi aclamado pela população. (Jornal do Commercio,
31 de março de 1994. Brasil, p. 7.).
Mesmo com a redemocratização do país e depois de trinta anos depois da morte de Ivan
Aguiar e Jonas de Albuquerque, duas das muitas vítimas daquele dia, as Forças
Armadas mantinham o discurso de defesa da ordem e não reconheciam quanto mais
assumiam seus atos. Somente em 2007 como o lançamento do livro Direito à Memória
e à Justiça, organizado pela Secretaria de Direitos Humanos e pela Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o governo finalmente reconheceu a
responsabilidade dos órgãos de repressão pelos crimes da Ditadura.
Dentre deste contexto, insere-se a luta pela abertura dos arquivos do regime
militar, ferramenta que pode esclarecer as mortes e desaparecimentos. Fundos
documentais de extrema importância já foram transferidos para o Arquivo Nacional,
entre eles: do Conselho de Segurança Nacional, da Comissão Geral de Informações, do
Serviço Nacional de Informação, da Comissão Geral de Inquérito Policial-Militar, da
Divisão de Inteligência do Departamento de Polícia Federal, do Centro de Informações
do Exterior do Ministério das Relações Exteriores, entre outros. De qualquer forma, as
famílias das vítimas e pesquisadores ainda tem o acesso limitado aos arquivos, visto que
o Governo Federal defende a privacidade das vítimas, muitas vezes retratadas nos
arquivos de forma degradante (FICO, 2012).
Também foram importantes os processos para recebimento de indenizações
movidos pelas famílias das vítimas da Ditadura como também daqueles afetados de
alguma forma pelo governo militar, como os anistiados e torturados. Desta forma, em
1996 os familiares de Jonas de Albuquerque e de Ivan Aguiar entraram com um
processo na Justiça, entretanto seus pedidos foram indeferidos no ano seguinte. Uma
nova tentativa foi feita em 2002 sendo finalmente deferido em 2004, nos quais ficaram
estabelecidos que a família de Jonas de Albuquerque receberia R$ 137.220,00 e a de
Ivan Aguiar R$ 124.110,00, valor dividido entre os pais e irmãos das vítimas.
Questionando quanto à indenização, o entrevistado Danúbio Aguiar afirma que ela “não
significa nada”, nada substitui ter perdido o irmão de forma tão brutal. As indenizações
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têm como objetivo restituir com um valor monetário muito simbólico as possíveis
contribuições financeiras que as vítimas poderiam ter dado às suas famílias, sendo
baseadas, desta forma, na ocupação de cada um dos casos. No entanto, de forma
alguma, conseguem reparar os danos psicológicos deixados pelas perdas traumáticas,
muito menos substituem os entes perdidos.
Outras formas de reconhecimento também podem ser citadas. Entre elas destaca-
se a instalação de placas e a mudança do nome de ruas em homenagem aos
combatentes. Em relação a Jonas de Albuquerque e a Ivan Aguiar, o nome de ambos
pode ser encontrado no calçadão de mortos e desaparecidos políticos do Monumento
“Tortura Nunca Mais”, na rua da Aurora”. O grêmio do Ginásio Pernambucano, por sua
vez, prestou homenagem ao antigo estudante morto adotando o nome Grêmio Livre
Estudantil Jonas José de Albuquerque (GLEJJA). A família de Jonas de Albuquerque
também recebeu da Câmara Municipal de Olinda, em 31 de março de 2004, o título
“Brasil Passado a Limpo, 40 Anos Após”. Entretanto, no local onde os dois estudantes
foram executados, um dos marcos iniciais da Ditadura Civil Militar em Pernambuco,
não existem nenhum tipo de placa ou menção ao evento. São notórias as ações de
reparação e resgate da memória da Ditadura a fim de mantê-la viva, todavia muito mais
ainda precisa ser feito a fim de dar o devido reconhecimento a tantas pessoas, jovens ou
não, que perderam suas vidas combatendo seus ideais.

CONCLUSÃO
Através de vários relatos, não apenas o concebido por Danúbio Aguiar em
entrevista, como também os encontrados em livros e fontes documentais, foi possível
discutir não apenas sobre o evento da passeata de estudantes que aconteceu no dia
primeiro de abril de 1964 nas ruas do Recife, como também de toda a situação política e
social pela qual a população de Pernambuco passava. Corriam boatos que o presidente
da República e o governador Miguel Arraes tinham sido despostos, por outro lado
chegam informações que eles resistiam à deposição defendendo a legalidade dos seus
respectivos mandatos. Em meio a esta confusão foi deflagrada a passeata pacífica
estudantil narrada acima, quando os primeiros manifestantes do estado foram mortos
por um tiro de fuzil.
Inserido este trabalho no contexto de valorização da História Oral é possível
dizer que sem os testemunhos vivos discutidos aqui não teria sido possível resgatar o
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evento da passeata estudantil do primeiro de abril de 1964. Somente através do conflito


das memórias foi possível entender melhor o que aconteceu na cidade do Recife no dia
em questão, não tendo como objetivo, de forma alguma, estabelecer alguma verdade
histórica sobre o evento relatado. Outros trabalhos poderão surgir sobre o tema e, com
ele, novos esclarecimentos. O contínuo resgate da memória possibilita a valorização de
atos e das histórias das pessoas que lutaram pelo o que acreditavam e muitas vezes
morreram por causa de seus ideais, ou perderam pessoas próximas.
É preciso desmistificar certos mitos tidos como verdade pela maioria da
população brasileira, como o que afirma que a ditadura brasileira não foi tão violenta
assim, principalmente se comparada com a de outros países latino-americanos. É
verdade que os serviços de inteligência buscavam de todas as formas barrar a
divulgação de atos violentos nos meios de comunicação, ficando a maioria da população
brasileira mal informada sobre o que estava realmente acontecendo. Na verdade, todos
sabiam que aconteciam prisões, torturas e mortes, entretanto como não eram afetados,
isso não era um problema. Através dos relatos de quem teve sua vida transformada pela
Ditadura Civil Militar pode-se conseguir algum esclarecimento sobre como as mortes,
desaparecimentos e torturas aconteceram, e, em consequência, uma maior
conscientização sobre o aconteceu no Brasil em os anos de 1964 e 1985.

NOTAS
1. Jornal do Commercio. Nº090. Recife, ano LXXV, 31 de março de 1994. Especial 64
– 30 Anos. pp. 1-8.
2. Idem.

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MACHADO, Otávio Luiz. Depoimento de Joel Regueira Teodósio. Universidade
Federal de Ouro Preto, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Laboratório de
Pesquisa Histórica. 05/01/2008. Disponível em:
http://sejarealistapecaoimpossivel.blogspot.com.br/2008/04/depoimento-de-joel-
regueira-teodsio.html; Acesso em: 16/01/2014.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014 – UFPE

REIS, Daniel Aarão. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2000.
SANTOS, Cecília MacDowell. Memória na Justiça: A mobilização dos direitos
humanos e a construção da memória da ditadura no Brasil. Revista Crítica de Ciências
Sociais [Online], 88 | 2010. Disponível em: http://rccs.revues.org/1719; Acesso em: 25
de outubro de 2013.
TELES, Janaína (Org.). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade. 2ª
Ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.

FONTES DOCUMENTAIS:
Jornal do Commercio. Nº090. Recife, ano LXXV, 31 de março de 1994. Brasil, p. 7.
“Golpe de 64: Militares falam em consolidar democracia”.
____________. Nº090. Recife, ano LXXV, 31 de março de 1994. Especial 64 – 30
Anos. pp. 1-8.
Jornal GECEP. Gestão 1967/1968. “Homenagem a Jonas José de Albuquerque Barros”.
Recife: Anexo do Arquivo Público de Pernambuco, acervo do DOPS, pasta Colégio
Estadual de Pernambuco, nº do documento 16D, fundo SSP nº 1673.

ENTREVISTAS:
AGUIAR. Danúbio José Rocha. Danúbio Aguiar (depoimento, 2014). Recife,
LAHOI/DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA-UFPE, 2014.
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“QUE BOM TE VER VIVA”: LÚCIA MURAT E A PROCURA POR UMA


LINGUAGEM PARA CONTAR-SE, PARA DIZER A TORTURA

Jônatas Xavier de Souza


Doutorando em História pela UFPE/ Bolsista CNPq
e-mail: jonatas.xaviers@ufpe.br

Onilma Freire dos Santos


Mestra em Linguística pela UFPE
e-mail: onilma_freire@yahoo.com.br

Para justificar a inserção desta discussão em um Grupo de Trabalho cujo


debate gira em torno dos acontecimentos na contemporaneidade, lembramos das
contribuições historiográficas de Roger Chartier no ensaio A visão do historiador
modernista. O historiador francês chama a atenção para o fato da história do tempo
presente, pelo menos no imaginário do historiador do contemporâneo, despertar um mau
sentimento entre a comunidade de historiadores: “a inveja”. “Antes de tudo, inveja de
uma pesquisa que não é uma busca desesperada de almas mortas, mas um encontro com
seres de carne e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas”
(CHARTIER, 2006, p. 215). Para Chartier, a proximidade temporal entre o historiador e
seu objeto – que, durante muito tempo foi apresentada pela historiografia como um
problema – é, na realidade, um fator positivo. Tanto que, para o autor, “o historiador do
tempo presente é o único que pode superar a descontinuidade fundamental que costuma
existir entre o aparato intelectual, afetivo e psíquico do historiador e o dos homens e
mulheres cuja história ele escreve” (CHARTIER, 2006, p. 216).
Em nosso trabalho, fazer uma história do tempo presente significa voltar o
olhar para as memórias e sensibilidades que reverberam em representações
cinematográficas contemporâneas, produzidas acerca da experiência de sociabilidade
autoritária civil-militar389 no Brasil (1964-1985), em específico, para o cinema
documental, considerando não apenas nosso interesse pessoal em trabalhar com esse
gênero cinematográfico, mas também, conforme a historiadora Regina Behar, “pelo fato
do filme documentário contribuir para estabelecer, por meio do discurso imagético,
dimensões visuais do mundo histórico, independentemente do conhecimento histórico
produzido e disseminado pela historiografia” (BEHAR, 2010, p. 186).

389 Com referência em René Dreifuss (1981), utilizamos o termo civil-militar no sentido de que
segmentos da sociedade civil tiveram participação no regime autoritário instaurado no Brasil pós-1964.
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Dentre as opções possíveis, Behar argumenta que um documentário pode ser


produzido como uma tese e, com efeito, caracterizar-se a partir de interpretações dos
fatos/eventos ocorridos. A autora lembra que os documentários, sobretudo aqueles que
incorporam a memória e sensibilidades dos atores sociais partícipes das histórias
narradas, parecem formar, cada vez mais, “um acervo material a ser considerado, na
trilha dos documentos orais, como algo da dimensão de uma história audiovisual”
(BEHAR, 2010, p. 187). Diríamos que, essencialmente cultural do mundo
contemporâneo, lidando com duas categorias centrais e distintas, que são “imagem” e
“oralidade”, ambas portadoras de discursos, signos e complexidades específicas.
O documentário que trazemos para a discussão neste trabalho é desse naipe.
Uma peça que envereda pelo universo das recordações e das experiências rememoradas.
Os personagens do filme são oito mulheres390, ex-presas políticas brasileiras que
viveram situações de tortura. Mais do que descrever e enumerar sevícias, o filme mostra
o preço que elas pagaram, e ainda pagam, por terem sobrevivido lúcidas à experiência
traumática. Os depoimentos são alinhavados pelas falas de uma personagem ficcional
anônima, interpretada pela atriz Irene Yolanda Ravache, que funciona como o alter ego
da diretora e como o inconsciente de cada uma das depoentes. O filme foi produzido por
uma mulher, cujo olhar e sensibilidade também foram marcados pelo trauma de quem
sofreu com a violência. Seu nome: Lúcia Maria Murat de Vasconcelos; seu filme, Que
Bom Te Ver Viva; seu tema, a tortura, a guerrilha e a violência dos anos 1968 a 1974,
referentes aos chamados “anos de chumbo” da Ditadura. O documentário foi lançado
em junho de 1989, quando de sua exibição hors concours no XVII Festival do Cinema
Brasileiro de Gramado. Teve, também, uma versão em DVD, lançada no mercado em
2009 pela Casablanca Filmes391, e foi esta versão, convertida em mídia digital, a
utilizada na construção do presente trabalho.
A opção pelo Que Bom Te Ver Viva nos desperta todo um interesse acerca do
processo que envolve e que influencia a construção da narrativa cinematográfica, ou
seja, as experiências de vida da diretora Lúcia Murat. Amigos e biógrafos falam de seu

390 Relação das mulheres entrevistadas em Que Bom Te Ver Viva: Maria do Carmo Brito, Estrela
Bohadana, Maria Luiza Garcia Rosa, Rosalinda Santa Cruz, Criméia Almeida, Regina Toscano, Jessie Jane
e um depoimento anônimo.
391 Que Bom Te Ver Viva, uma produção independente da cineasta Lúcia Murat, foi originalmente
lançado em 1989 pela Taiga Filmes em formato de VHS, e distribuído internacionalmente pela ONG
feminista Women Make Movies. No documento relançado pela Casablanca Filmes, no ano de 2009, em
formato de DVD, encontramos na seção dos extras o Making of, produzido 20 anos depois, trazendo
entrevistas com a diretora Lúcia Murat e com a atriz Irene Ravache.
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cinema “político”, como um traço artístico significativo. Lúcia Murat é uma cineasta
que se fez notar pelos seus filmes acerca da ditadura militar e civil no Brasil. Nascida
em 29 de outubro de 1948 na cidade do Rio de Janeiro. “Menina rica da zonal sul, filha
de pai médico politizado e mãe professora, entrou para a Faculdade de Economia da
UFRJ em 1967, época de grande agitação política no país. Envolveu-se com o
movimento estudantil e, no ano seguinte, foi eleita vice-presidente do Diretório
Acadêmico. Em 12 de outubro de 1968 acabou presa com centenas de universitários que
realizavam em Ibiúna (SP) um congresso da clandestina União Nacional dos Estudantes
(UNE). Dez dias depois foi liberada sem maiores problemas.” (Cf.: CARVALHO,
1998, p. 194)
Com a promulgação do Ato Institucional n. 5 (AI-5), em 13 de dezembro de
1968, todos que estavam “queimados”, ou seja, as lideranças estudantis conhecidas
caíram na clandestinidade. Como Lúcia Murat era uma pessoa perseguida por participar
do movimento estudantil, ela relata que se tornou uma pessoa marcada: “a parti daí, caí
na clandestinidade, abandonei a vida legal e, em certo sentido, a vida cultural”
(MURAT in NAGIB, 2002, p. 323), “participei da resistência armada e fui ligada a uma
organização guerrilheira” (MURAT In: Making of – 00’01’).
Lúcia Murat era ligada a um pequeno grupo estudantil DI-GB, que mais tarde
se autodenominou MR-8. Ela atendia pelo codinome de Margô, entre outras tarefas,
fazia panfletagem em fábricas com apoio armado. Aprendeu a atirar e a fazer bombas
caseiras nas praias de Cabo Frio. Seu batismo de fogo aconteceu durante uma ação de
propaganda na fábrica ishikawagima, um estaleiro no bairro do Caju. Sobre o fato,
Lúcia Murat conta: “Fazíamos panfletagem, armados, até que um dos caras da polícia
interna tentou me surpreender. Eu chutei, saquei a arma e começou o tiroteio. Eles
saíram correndo” (CARVALHO, 1998, p. 195).
Dentre as várias ações de Lúcia Murat, Luiz Maklouf Carvalho chama a
atenção para o assalto ao Instituto Felix Pacheco, em Madureira, no começo de
dezembro de 1969, de onde levaram centenas de formulários para confecção de
documentos falsos: “Foi Lúcia a responsável principal pelo levantamento do local. [...]
travestida de jornalista, ela levou no bico o diretor do Felix Pacheco, tirando dele todas
as informações necessárias ao planejamento da ação” (CARVALHO, 1998, p. 195).
Segundo Carvalho (1998), Lúcia Murat era casada na época com Cláudio
Torres, guerrilheiro que, entre outras ações, participou do sequestro do embaixador
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americano, em setembro de 1969. Após o sequestro, Carvalho argumenta que Murat


atuou na mais rigorosa clandestinidade. E continua,

Foi então deslocada para Salvador, aonde chegou a fevereiro de 1970. [...]
Conseguiu voltar incólume para o Rio de Janeiro no começo de 71. Fez então
a ação das Casas da Banha, rendendo o gerente com um Taurus. 38. [...] Em
março, cúmulo do azar, o acidente de carro. O fusca cheio de armas, dirigido
por sua amiga e simpatizante da Organização Maria Luiza Garcia Rosa, a
Pupi392, capotou no caminho para Cabo Frio. Lúcia bateu fortemente a
cabeça, perdendo instantaneamente a memória. A amiga levou-a para um
hospital próximo – mas, considerando o carro cheio de armas e o risco de
serem descobertas e presas, tirou-a de lá levando-a para a casa de uma tia no
Rio. Nesse trajeto de volta Lúcia recuperou a memória. Foi então atendida
pelo pai [...]. Usava, então, o codinome de Terezinha Alves de Paiva,
identidade confeccionada com o material do Felix Pacheco. [...]
Queimadíssima, passou a morar com Maria Luiza num quartinho da Rua
Lino Teixeira, em Jacaré, zona norte do Rio. Foram presas a 31 de março, dia
em que o golpe militar completava seu sétimo aniversário. (CARVALHO,
1998, p. 195) [grifo nosso]

No Making of (2009) do Que Bom Te Ver Viva, Lúcia Murat confirma a prisão
e conta que ficou dois meses e meio no DOI-CODI carioca, quando então foi bastante
torturada. Entre os muitos horrores da tortura, Luiz Maklouf Carvalho chama a atenção
para as 14 horas seguidas que Murat ficou no pau de arara, indagando que “até hoje a
cineasta tem problemas com a perna direita – que quase perdeu – e nos dentes, que volta
e meia lhe dão despesas” (CARVALHO, 1998, p. 196). Na entrevista que concedeu a
Carvalho, Lúcia Murat relata:

Minha primeira decisão, ao ser presa, foi o suicídio. Fiquei desesperada


quando vi que não ia conseguir me suicidar. O meu pai era um médico muito
conhecido. Então eles diziam: “Sua filha da puta, como é que você faz isso
com o seu pai?” Sofri o que eles geralmente faziam com todos nós: choque
elétrico, pau de arara, afogamentos, baratas e, por ser mulher, tortura sexual.
Tomei choques na língua e na vagina. Fui muito torturada – e as
consequências duram até hoje. Às vezes penso brincando, que seria justa
uma indenização que me pagasse as despesas com dentistas e
psicanalistas. (CARVALHO, 1998, p. 196) [grifo nosso]

Quando Murat saiu da cadeia, em junho de 1974 – época do governo


Geisel393, tudo foi muito difícil. Ela começou a trabalhar como jornalista no Jornal do
Brasil, mas foi demitida sob pressão do Serviço Nacional de Informação (SNI).

392 Maria Luiza Garcia Rosa é uma das oito mulheres depoentes do filme Que Bom Te Ver Viva.
393 Diferentemente de alguns historiadores do período, compreendemos que o governo Geisel (1975-
1978) é marcado pelo endurecimento da ditadura. Tivemos torturas, assassinatos e o fechamento do
Congresso com o Pacote de Abril. As mortes de Wladimir Hergoz (out. 1975) e Manoel Fiel Filho (jan.
1976), no DOI-CODI de São Paulo, são exemplos de repercussão nacional que nos revelam a brutalidade
do período.
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Trabalhou então no semanário Opinião, passando a ser perseguida pelo Comando de


Caça aos Comunistas (CCC), recebendo ameaças por cartas. Passou uma temporada
fora do Rio, ficando seis meses no Rio Grande do Sul, quando então voltou e
recomeçou seu trabalho como jornalista, tendo trabalhado no Globo e na TV Manchete.
(Cf.: NAGIB, 2002, p. 323-324)

Seu marido de então, Cláudio Torres, foi solto em 1976. Eles viveram alguns
meses juntos e se separaram. Foi quando Lúcia Murat conheceu o cineasta Paulo
Adário, o pai de sua filha Júlia Murat. Começou, então, a se relacionar com pessoas
ligadas ao cinema (NAGIB, 2002, p. 324). No cinema, ela encontraria um lugar no qual
só a fantasia poderia preencher a angústia de quem sobreviveu ao trauma da tortura,
dimensão subjetiva revelada por Murat ao falar em entrevista registrada no Making of
(2009), que o filme Que Bom Te Ver Viva nasceu dos seus dramas e sentimentos
vivenciados no processo de tortura e, posteriormente no divã do analista, quando
buscava “uma maneira de sobreviver” com os traumas persistentes na memória.

A gente estava ali por 84-85 [1984-1985]. Eu [Lúcia Murat] já tinha feito um
média-metragem394, tava trabalhando com cinema, trabalhando em
televisão, com imagem. E tava num processo de análise muito forte em que a
questão da tortura era muito dominante. Nesse momento eu já fazia análise
há uns quatro anos. Foi quando a primeira vez me veio a ideia desse filme.
(MURAT In: Making of – 08’00”)

A partir da experiência do passado ditatorial e da experiência do presente no


divã do analista, Lúcia Murat conta que pensou a produção da narrativa fílmica dentro
de algumas perspectivas, sendo a principal delas: “esse seria um filme sobre tortura em
que você não teria uma cena de tortura. A violência é vista através das palavras, através
dos sentimentos, não através da ação” (MURAT In: Making of – 04’35’’).
Com efeito, no documentário de Lúcia Murat, as mulheres depoentes falam de
suas lembranças e misérias internas como se estivessem no divã do analista, abrindo
suas mentes em associação livre, falando de si e dos outros, às vezes para o espectador,

394 Lúcia Murat se refere ao documentário sobre a queda de Somoza na Nicarágua – O Pequeno Exército
Louco – que filmou junto com o seu segundo marido, Paulo Adário, entre 1978 e 1980.
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ora para seus torturadores, que estão em silêncio. Em nossa avaliação, a relação com o
aporte psicanalítico é ainda mais forte nas encenações do monólogo interpretado pela a
atriz Irene Ravache. Não apenas pelo discurso proferido, mais também pelas imagens
que, por ora, transfigura a personagem de Ravache deitada num sofá que se revela como
o próprio divã do analista (ver foto 1).

Foto 1: Ravache na cena do sofá em Que Bom Te Ver Viva

Fonte: Acervo fotográfico de QUE Bom Te Ver Viva

Ao falar no Making of (2009) do Que Bom Te Ver Viva sobre o monólogo,


Lúcia Murat chama a atenção para o fato de que essa encenação dramatúrgica surge de
sua intenção de se cercar da questão da tortura a partir de todos os ângulos. Para Murat,
colocar as pessoas falando sobre a tortura, via de regra, provoca no espectador um
sentimento de piedade. No entanto, a partir de sua experiência pessoal, sua intenção era
mostrar como os sobreviventes da tortura vivem com as memórias do passado sem
romperem a barreira da sanidade. Murat enfatiza que até poderia ter filmado uma pessoa
que tinha enlouquecido, “eu podia mostra a loucura em estado bruto”, mas não
conseguiria, a partir de depoimentos, mostrar o limite [o inconsciente/ os silêncios]
vivenciado pelos que tinham sobrevividos lúcidos à prática da tortura (MURAT In:
Making of – 08’09’’). Assim, a ideia do monólogo foi uma maneira de trazer à tona
aspectos que, na avaliação de Murat, os depoimentos coletados contemplavam apenas
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parcialmente: misérias internas provocadas pelo trauma da tortura, dramas íntimos e


pessoais, inclusive os seus.
De acordo com Lúcia Murat, a personagem do monólogo se configura em Que
Bom Te Ver Viva como uma representação do alter ego da própria cineasta, que pode
ser evidenciada em dois aspectos: primeiro pelo fato da personagem de Irene Ravache
quase que usurpar o lugar da diretora, não apenas a partir da locução em voz over395,
dimensão que nos transmite a ideia real de que Ravache teria realizado as entrevistas e
produzido o filme, mas também nos gestos e postura diante da câmera. Sobre estes
aspectos da personagem de Ravache, Murat relata:

Eu só pude perceber o quanto que ela [Irene Ravache] me usou pra construir
essa personagem, quando na primeira ação, na primeira cena, ela imitou um
gesto, uma mania que eu tenho de fazer assim com o cabelo [Murat enrola o
cabelo]. E se vocês forem ver na primeira cena do filme, ela [Ravache] ta
fazendo assim no cabelo [Murat enrola novamente o cabelo]. Quer dizer, ela
aproveitou de mim. É maravilhoso como o trabalho de atriz que ela fez
comigo durante aqueles ensaios. Quer dizer, quase usurpando meu papel de
diretora. Eu fiquei muito encantada e tenho, assim, o maior respeito pelo
trabalho que ela fez. (MURAT In: Making of – 16’27’’)

Por diversas vezes a personagem de Ravache enuncia experiências individuais


vivenciadas por Lúcia Murat, quando de sua prisão em 1971 no Rio de Janeiro396. Não
obstante, o recurso ficcional apresenta-se como uma resolução criativa da diretora que,
quiçá por uma questão de linguagem cinematográfica ou mesmo ética, não podia
entrevistar a si mesma, autoentrevistar-se. Independentemente do contexto de produção
cinematográfica, compreendemos que o diretor sempre está presente no filme, mas, no
caso de Que Bom Te Ver viva, o filme é, também, uma escrita da história de vida da
cineasta Lúcia Murat, uma escrita de si da tortura. Narrativas que, segundo Ângela de
Castro Gomes, podem ser entendidas como um diversificado conjunto de ações, desde
aquelas mais diretamente ligadas à escrita de si propriamente dita – como é o caso das
autobiografias e dos diários –, até a da constituição de uma memória de si (GOMES,
2004, p. 11), como é o caso do filme por nós aqui discutido. A escolha pelas escritas de

395 Conforme Fernão Ramos, “voz over é um conceito de origem anglo-saxã que designa a fala fora-de-
campo que assere. Refere-se particularmente à voz sem corpo, personalidade ou identidade, que
enuncia fora-de-campo na narrativa documentária (alguns críticos chamam de “voz de Deus”).
Geralmente é dotada de saber, expresso em asserções sobre o mundo” (RAMOS, 2008, p. 407).
396 Ver enunciação de Irene Ravache In: QUE Bom Te Ver Viva – 44’55’’, e a entrevista de Lúcia Murat a
Luiz Maklouf Carvalho (1998, p 196).
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si em suas facetas plurais aproximam os historiadores da literatura, do cinema e das


práticas com testemunhos orais e de uma valorização das sensibilidades na história.

O sensível pode ser tão fundante para pensarmos a historicidade quanto a


produção e o governo ou a diplomacia. Podendo, desse modo, o historiador
se preocupar com lágrimas, paixões, sabores e odores, amor, erotismo, corpo
e biografias. (FERNANDES, 2011, p. 2)

Com efeito, é possível afirmar que Lúcia Murat recorreu à prática da escrita de
si para tentar se reinventar, costurando suas subjetividades a partir de sua trajetória,
conflitos, frustrações e vitórias, utilizando o cinema como ferramenta política,
reescreve, a partir de narrativas autobiográficas de sete militantes nascidas entre os anos
1940 e 1950, como as mulheres abriram novos espaços na esfera pública e na vida
política do Brasil, desde os violentos anos da ditadura militar. E, é justamente o aspecto
feminista e disruptivo dessas experiências que Margareth Rago destaca em A aventura
de contar-se, “mostrando que a vida cotidiana de novas gerações de mulheres e homens
hoje é, em larga medida, resultado de conquistas feministas do terço final do século
XX” (RAGO, 2013, p. 34).
Em suma, podemos dizer que o filme Que Bom Te Ver viva é um símbolo do
“Eu” e o modo como Murat construiu uma linguagem para “contar-se”, usando a
expressão de Margareth Rago (2013). Quando a cineasta elabora o texto ficcional do
monólogo, mostra parte dela no filme, ela está descrevendo involuntariamente sua
estrutura psíquica e uma tentativa de apreender, também, a estrutura das outras oito
mulheres que falam do passado doloroso, com ênfase recorrente a questão da violência,
ao sentimento de humilhação vivenciado diante da tortura, ao sofrimento que persiste na
memória e no coração dos que sobreviveram à ditadura.
Não sem efeito, é possível afirmar que no cinema, Murat apreende o tempo de
prisão e a prática sistemática da tortura como aquilo que Arlette Farge chama de
acontecimento, ou seja, “um fragmento de realidade que deve ser percebido no tempo,
imediatamente compartilhado por aqueles que o recebem, o veem, ouvem falar dele, o
anunciam e depois o guardam na memória” (FARGE, 2011, p. 71).
Para Farge, “o acontecimento e a fala sobre o acontecimento são dois materiais
diferentes que exigem que reflitamos sobre sua inclusão no relato” (FARGE, 2011, p.
72). Nessa perspectiva, concordamos com Jaime Ginzburg quando afirma que as
descrições sobre os procedimentos e instrumentos de tortura, como o faz Ayrton Baffa
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(1989)397, e as denúncias sobre tortura compiladas de documentos jurídicos, como as


contidas no Projeto Brasil Nunca Mais398, “em nada se assemelha, em procedimentos
discursivos, aos depoimentos dos que foram torturados” (GINZBURG, 2010, p. 146).
Não sem efeito, aqueles parecem apagar as cicatrizes externas e internas advindas da
situação de tortura; via de regra, parece anular o teor traumático intrínseco ao evento
doloroso, conceituando ou referindo-se ao mesmo de forma objetiva e comum, como se
aquilo fosse natural, familiar.
“Tanto no discurso do Brasil Nunca Mais como na descrição transcrita por
Baffa, a linguagem é ordenada em sintaxe convencional. Sujeito e objeto, antes e
depois, todo e partes são elementos que podem ser identificados com precisão”
(GINZBURG, 2010, p. 146). Já na voz dos torturados a situação é bem diferente, como
podemos observar no depoimento de Maria do Carmo Brito, a primeira mulher a relatar
suas lembranças no filme Que Bom Te Ver Viva:

O que foram aqueles sessenta dias? Parece que foram sessenta anos. Não dá
pra descrever é uma coisa terrível porque é uma luta constante pra você se
manter inteiro. [...] De vez em quando, eles me pegavam [...] e me jogavam
dentro de um aquário [...] depois voltavam a pendurar-me no pau de
arara. Isso durou até [...] Eu não me lembro bem, é tudo muito confuso. Eu
só lembro que teve uma hora que estavam tirando minha pressão, e um outro
sujeito dizia assim: “não, pode continuar, pressão de atleta, pode
continuar”. (Maria do Carmo In: QUE Bom Te Ver Viva – 12’38’’) [grifos
nosso]

Quando Maria do Carmo Brito nos diz – “De vez em quando, eles me pegavam
de calça e tudo e me jogavam dentro de um aquário [...] depois voltavam a pendurar-me
no pau de arara” – veja que o sujeito da ação violenta é permutado pelo pronome “eles”,
os torturadores não têm nome, pois a situação não permite identificar com clareza. Na

397 Em 1989, o jornalista Ayrton Baffa traz a lume o livro Nos porões do SNI: o retrato do monstro de
cabeça oca, no qual expõe – a partir de documentos formulados pela OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil) - Conselho Federal, de 26 de novembro de 1975 – uma concepção descritiva do processo de
tortura realizado nos porões da ditadura. Sua obra nos revela detalhes técnicos e práticos da utilização
de diversos instrumentos, como o “pau de arara”, o “choque elétrico”, o “corredor polonês”, o “soro da
verdade”, a “violação sexual”, a “crucifixação”, entre outros. A singularidade de seu trabalho está em
apresentar-nos uma visão institucional/oficial da estrutura funcional de um instrumento repressivo,
concebido com a finalidade de provocar um “sofrimento”.
398 Organizado pela Arquidiocese de São Paulo, o Projeto Brasil Nunca Mais localizou e transcreveu
denúncias de violação aos direitos humanos em processos políticos impetrados entre os anos de 1964-
1979 no Brasil. Em geral, as denúncias foram encontradas nos depoimentos prestados pelas vítimas frente
à autoridades judiciárias, nas Auditorias militares. Em outros casos, nas cartas de lavra das vítimas ou
ainda em denúncias feitas por advogados no exercício da defesa. É resultado deste minucioso trabalho, a
relação de 1843 pessoas que de alguma forma conseguiram fazer constar nos processos as violências a
que foram submetidas. (Brasil Nunca Mais, 1985, p. 13-14)
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frase final – “não, pode continuar, pressão de atleta, pode continuar”–, Maria do Carmo
deixa claro que o intuito de seus algozes era de promover o sofrimento, ela tinha que
estar consciente, sentir toda a dor. Não obstante, a pessoa torturada se vê transformada
em objeto de uma experiência-limite. A intimidação e a violência abrupta tende a levá-
la a um processo de degradação humilhante.
As falas que provêm do Que Bom Te Ver Viva, levam-nos a refletir sobre a
responsabilidade do historiador no tempo presente ao escrever acerca das histórias e
memórias dos que foram torturados pela ditadura. Devemos ter o cuidado de “pensar o
sofrimento e a violência sem minimizá-los a meras fatalidades, mas refletindo sobre os
atuais problemas e explicando os mecanismos racionais que os criaram” (FARGE,
2011, p. 7). Assim, ao falar da tortura, a intenção do historiador deve ser de apresentar
uma situação e compreender um processo que é o eixo essencial do que está em jogo na
prática brutal; não apenas um processo que se limita ao momento da ação violenta, mas
que abrange o tempo posterior à experiência vivida. Intenção consonante a proposta de
Lúcia Murat em Que Bom Te Ver Viva, posta ao espectador, por exemplo, a partir da
locução de Estrela Bohadana no trecho em evidência:

Olha, eu acho que existe um grande silêncio em relação à tortura, não


exatamente ao relato de como se faz uma tortura. Isso me parece que foi
muito explorado, o que é o pau de arara, o choque. Enfim, essas atrocidades
que acontecem no âmbito mesmo da tortura. Agora, eu acho que há um
silêncio de como que as pessoas que foram torturadas vivenciam
internamente isso. Então, eu acho que as pessoas até suportam saber que você
foi torturada, e acho que as pessoas sabem o que é uma tortura. Mas, o que
elas não suportam em ouvir é como que você se sente diante da tortura. Qual
foi a sua experiência emocional, interna, diante da tortura. (Estrela In: QUE
Bom Te Ver Viva – 66’19’’)

As oralidades e imagens do filme Que Bom Te Ver Viva, carregam uma


dimensão crítica que nos desmontam frente à nossa busca de uma certa objetividade
histórica, pois humanizam a historiografia, lhes dão rosto, e lhes conferem a medida da
subjetividade que faz a vida individual e coletiva, ajudando-nos a pensar, a partir de
uma nova perspectiva, o lugar dos indivíduos na história. A obra de Murat, além de
possibilitar a perpetuação da sua trajetória individual, permite sua integridade, seu
reconhecimento como cidadã, a construção de novas relações sociais e a permanência
da sua forma de ser/pensar, registrada por meio das imagens que cria.

Foto 2: Lúcia Murat no Set de filmagem de Que Bom Te Ver Viva.


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Fonte: Acervo fotográfico de QUE Bom Te Ver Viva.

“Na história, somos todos comediantes/atores representando um papel, e cabe


ao saber histórico indagar-se como estes papéis foram estabelecidos, justificados,
legitimados, modificados com o tempo” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008, p. 105).
Hoje, convertido em mídia Dolby Digital DVD, Que Bom Te Ver Viva continua “vivo”
e encontra-se novamente no mercado sob distribuição da CasaBlanca Filmes. Seu
sucesso talvez possa ser explicado pela relação subjetiva que estabelece entre cineasta x
atores sociais x espectadores. Nesse ponto, é preciso fazer uma observação importante:
nos últimos anos, o cinema documental vem tentando encontrar modos de narrar que
revelam, desde o primeiro contato, a natureza dessa relação. De acordo com João
Moreira Salles (2005), “são filmes sobre encontros, os melhores tentam transformar a
fórmula eu falo sobre ele para nós em eu e eles falamos de nós para vocês” (SALLES,
2005, p. 70) [grifos do autor]. No caso de Que Bom Te Ver Viva: eu (diretora) e elas
(depoentes e Irene Ravache) falamos de nós para vocês (espectadores).399 “Desse
encontro nasce, quiçá, uma relação virtuosa entre episteme e ética. Filmes assim não
pretendem falar do outro, mas do encontro com o outro” (SALLES, 2005, p. 70).

Encontros que continuam na história do presente. Que Bom Te Ver Viva foi
lançado em julho de 1989. Mas, a arqueologia do filme é rica em dados: começou a ser
roteirizado em 1984-1985, filmado em 1988, lançado em 1989, relançado em 2009 e,
quiçá, obtenha uma nova recepção a partir de 2013 com a instalação das Comissões da

399 Essa mesma dimensão é mantida por Lúcia Murat no seu filme Uma longa viagem (2011).
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Verdade. Estas são, aliás, um efeito positivo da Comissão Nacional da Verdade400


(CNV), formada para examinar e esclarecer os crimes contra os direitos humanos
praticados no período da ditadura, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade
histórica e promover a reconciliação nacional” (Lei 12.528/ 2011, Art. 1º).

As comissões da verdade, uma “versão estadual” da CNV, buscam contribuir


para a constituição de uma verdade histórica construída com a participação de fontes
vivas, humanas, tais como as mulheres que falam no filme Que Bom Te Ver Viva.
Inclusive, a própria cineasta Lúcia Murat prestou seu depoimento à Comissão Estadual
da Verdade do Rio de Janeiro, a terça-feira de 28 de maio de 2013. Murat falou das
torturas a que foi submetida durante a ditadura militar, chegando às lágrimas por
diversas vezes. Em tom emocionado, finalizou com uma frase que demonstra todo
nosso sentimento e anseio: “espero que a Comissão possa ouvir os que ainda estão vivos
e a todos aqueles que foram reconhecidos para que possamos revelar por inteiro esse
período”401. Para além disso, que possam tornar pública a existência de uma ditadura
no Brasil e incentivar a participação da sociedade civil na luta pelos direitos humanos e
pelo fim da impunidade.

Fontes audiovisuais

QUE BOM TE VER VIVA. Direção: Lúcia Murat. Rio de Janeiro: Taiga Filmes, 1989.
Distribuição: Casablanca Filmes, 2009, 1DVD (98 min), color. [Extras: Making of – 20
anos depois (23 min) – Trailer – Fotos – Sinopse – Prêmios e Participações – Ficha
técnica – Documentário: Passeata dos Cem Mil (11 min)].

UMA LONGA VIAGEM. Direção: Lúcia Murat. Rio de Janeiro: Taiga Filmes, 2011.
Distribuição: Copacabana Filmes e Produções, 2013, 1DVD (95 min), color. [Extras:
Trailer – Making of].

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escrever a história com um sorriso nos lábios. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO,
Alfredo (Orgs.). Figuras de Foucault. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 97-107.

400 A lei n.º 12.528 que criou a Comissão Nacional da Verdade foi sancionada pela então presidenta
Dilma Russeff, em 18 de novembro de 2011.
401 Ver o depoimento completo de Lúcia Murat para à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro
em: <http://atarde.uol.com.br/politica/materias/1506981-depoimento-de-lucia-murat-a-comissao-da-
verdade-do-rio>. Acesso: 28 mai. 2013.
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“AS MARCHASDA VITÓRIA” NO CEARÁ: ACONTECIMENTO,


CONSTITUIÇÃO DA MEMÓRIA E CELEBRAÇÃO DO GOLPE DE 31 DE
MARÇO DE 1964.
JUCELIO REGIS DA COSTA402
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – UFC
ELIELASAFE@GMAIL.COM
Introdução
A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade Restaurada” não apenas
correspondeu, mas ultrapassou a todas as expectativas que sobre ela se
faziam. Milhares de pessoas, numa demonstração pública sem precedentes,
expressaram a Deus, os seus agradecimentos pela vitória democrática e
testemunharam às Forças Armadas o seu reconhecimento pela atuação que
tiveram nos últimos acontecimentos403.
Em definição semelhante a esta, “Marcha da Família com Deus pela
Liberdade Restaurada”, evento ocorrido às 16 horas, da quinta-feira na cidade de
Fortaleza, no dia 16 de abril de 1964, que no Estado do Ceará, houve uma propagação
de marchas realizadas em diversos municípios cearenses, em caráter cívico, político,
religioso e militar, todas elas após o Golpe de 31 de março de 1964, entre os meses de
abril e maio.
Pelo fato das marchas cearenses terem sido realizadas após o golpe, elas
apresentaram como finalidade a celebração, a comemoração do acontecimento do dia 31
de março de 1964, em que as Forças Armadas, depõem João Goulart da presidência da
República brasileira. Diante de toda a mobilização e adesão de uma ampla participação
civil e militar, através de instituições e entidades, que as “Marchas da Vitória” ou
“Marchas da Liberdade Restaurada” no Ceará são analisadas como acontecimento
específico e singular dentro de uma conjuntura de enormes mobilizações e curta duração
que almejou em primeiro lugar, uma demonstração de adesão ao golpe, que foi
consumado pela intervenção militar, sendo apoiado pela população cearense através
dessas manifestações como “espetáculo cívico e patriótico”. Deste modo, havendo uma
distinção significativa entre a Marcha da Família com Deus pela Liberdade no período
que antecede o golpe e a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade Restaurada”, a
qual adquiriu algumas alterações de títulos conforme na medida em que era realizada no
Estado e ganhando repercussão na imprensa. Como houve uma variação de nomes
atribuída às marchas no período pós-golpe de 1964 no Ceará, tendo como
exemplificação, “Passeata-Monstro”, “Marcha da Vitória”, “Marcha da Família com

402
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará –
UFC. Bolsista da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
403
Jornal O Povo, 17 de abril de 1964. Fortaleza - Ceará, sexta-feira, página 02. Trecho referente à
Marcha de Fortaleza, realizada no dia 16 de abril de 1964, às 16 horas, quinta - feira.
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Deus pela Liberdade Restauradora”, propus intitulá-las neste trabalho como “Marchas
da Vitória”, pela riqueza de usos e sentidos verificados a partir das ações
desempenhadas pelos diversos organizadores, quando se demonstrava está contentes,
alegres, com a vitória, a partir de um golpe, vestido de um acontecimento
“revolucionário”.
Em segundo lugar, as marchas cearenses serviram como preparação para a
construção de uma memória acerca do golpe e ao mesmo tempo legitimando-a, diante
dos esforços comemorativos e festivos, visando dar ao ato executado no dia 31 de
março, uma decorrência legítima de uma “revolução”, realizada através das Forças
Armadas, atribuindo um valor religioso explicativo tanto para o momento do golpe
(como momento de intervenção divina) como para os seus agentes responsáveis, como
sendo escolhidos por Deus para essa função através de “ações gloriosas”. Assim, as
“Marchas da Vitoria” se transformaram em acontecimento e lugar de produção de uma
memória especifica que se tornou ao mesmo tempo, uma memória oficial do golpe e
também legitimadora para o processo de construção social do regime civil-militar.
Além da produção da memória do golpe, reservou às marchas um lugar, cuja
função social e política eram o reconhecimento popular, dando ao novo processo
político instaurado a partir das últimas horas, do último dia do mês de março, um caráter
de revolução; Aos militares foi reservado um espaço de reconhecimento pela bravura,
sendo louvados e honrados, nas marchas, como agentes revolucionários, constituído
uma memória também acerca das funções e papeis da instituição militar no processo
político brasileiro. Quanto aos organizadores das marchas no Ceará, foi destinado um
lugar de atuação para realização de uma memória de si, onde eles se vêem e procuram
simultaneamente um reconhecimento popular como os defensores da democracia e da
revolução.
Perante a busca pelo reconhecimento como defensores da democracia brasileira
e do processo “revolucionário”, os organizadores das “Marchas da Vitoria” nos
municípios cearenses depararam com a oportunidade de se manterem desempenhando
suas influências políticas a partir dos cargos ocupados naquele exato momento, como
prefeitos, vereadores ou cabos eleitorais. O fato de verificarmos uma presença comum
de políticos nas marchas se deve muito pela luta de rearranjo político, que visava à
permanência de muitos deles ou o retorno de alguns diante da nova situação política do
país. Mas esse aspecto da influência política como conservação de um grupo ou de
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famílias ligadas ao poder foi alvo de pretensão também de jornalistas, professoras,


padres, bispos que configuravam ao poder político local de cada cidade cearense, sendo
agora exteriorizado a partir de um acontecimento como “Marchas da Vitória”, de ampla
repercussão nacional.
Assim, a composição dos organizadores das marchas do Ceará, teve como
integrantes muitos prefeitos, vereadores, bispos, padres, mulheres fortemente católicas,
professoras, radialistas, jornalistas e militares. Estes eram responsáveis para a realização
das marchas, de acordo com as suas cidades, constando de um programa destinado para
a marcha, possuindo o horário e os lugares específicos para a realização inicial e final
das marchas, a utilização de adereços, simbologias nacionais, locais, ornamentações,
cartazes, faixas, a presença de oradores convidados, representantes das instituições,
entidades, classes sociais e da participação dos próprios membros organizadores.
Na pesquisa de campo acerca do tema, deparei-me com um farto material
jornalístico na Biblioteca Municipal Menezes Pimentel, localizada na cidade de
Fortaleza, indicando por meio dos periódicos dados importantes para as argumentações
e hipóteses levantadas na realização deste trabalho como as cidades que realizaram as
“Marchas da Vitória” no Estado do Ceará, os dias de realização, os organizadores, falas
dos oradores, simbologias e a quantidades de pessoas presentes nessas manifestações. A
partir dos dados encontrados nos periódicos vinculados aos Diários Associados, de
Assis chanteaubrand, como Unitário e Correio do Ceará, o jornal católico O Nordeste e
outros de importância forte no estado como O Povo e Gazeta de Noticias foram
possíveis uma organização em tabela utilizando as informações apresentadas neste
material encontrado como mostra a figura abaixo.
Fortaleza404 16 de abril 50 mil
405
Juazeiro *** 30 mil
Aurora406 01 de maio ***

404
Informações disponíveis no jornal O Nordeste, 17 de abril de 1964, página 1.
405
Informações disponíveis no jornal Unitário, 11 de abril de 1964. O periódico não informa a data da
realização da manifestação na cidade de Juazeiro do Norte, apenas indicando através de uma extensa
página que esse acontecimento já tinha sido presenciado pela população e organizado por suas diversas
autoridades locais. O Unitário trouxe como manchete sobre a cidade de Juazeiro do Norte o seguinte
título: “Espetáculo de Civismo e Fé nos Destinos do País: Missa e Passeata em Juazeiro do Norte”,
onde os organizadores celebravam “pelo triunfo da Democracia brasileira”. As evidências apresentadas
por esta imprensa indicam que a marcha de Juazeiro havia sido realizada antes mesmo da cidade de
Fortaleza (Capital).
406
Informações disponíveis no jornal Unitário, 03 de maio de 1964 com o título “Redemocratização do
País Comemorada com Grande Brilho no Mun. De Aurora”.
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Pacoti407 *** ***


408
Ipaumirim 30 de abril ***
Morada Nova409 01 de maio ***
Pentecoste410 01 de maio ***
Iguatu411
Limoeiro do Norte412 01 de maio 01 mil
Jaguaruana *** ***
413
Acopiara 16 de abril **
Os dados obtidos nos arquivos de jornais da Biblioteca Meneses Pimentel
apresentam as datas de realização das “Marchas da Vitória” como sendo momentos
específicos e significativos para a arregimentação da população cearense. No dia 16 de
abril, as marchas foram realizadas em Fortaleza e Acopiara, poucos dias da posse de
Castelo Branco à Presidência da República, sendo considerado o líder da Revolução. Já
o dia 01 de maio, data importante na história do país, festejado como o dia do
trabalhador, foi escolhido por 70% dos municípios, todos eles do interior do estado,
dando indicativos da predominância de trabalhadores rurais como camponeses,
pescadores, agricultores e sindicalistas, cuja principal atividade econômica era a
agricultura e o extrativismo.
As “Marchas da Vitória” no Ceará foram 100% realizadas após o golpe de
1964 como mostram os jornais do período. Conforme os periódicos, Juazeiro do Norte
foi a primeira cidade a realizar a marcha, antes mesmo do que em Fortaleza, embora a
data não é menciona, apenas dando indicação de ela ocorreu antes do dia 11 de abril de
1964. Em relação ao público presente nessas marchas, apresenta um numero bastante

407
Informações disponíveis no jornal Unitário, 05 de maio de 1964 – Título: “Agricultores Com Enxada
ao Ombro Deram Brilho Excepcional à “Marcha” de Pacoti”.
408
Informações disponíveis no jornal Unitário, 06 de maio de 1964 – Título: “Faixas, Banda de Música e
Todo o Povo de Ipaumirim na “Marcha da Liberdade””.
409
Informações disponíveis no jornal Unitário, 10 de maio de 1964.
410
Informações disponíveis no jornal Unitário, 30 de abril de 1964, página 9, cujo tema foi “Pentecoste
em Festas amanhã Com a ”Marcha da Família com Deus pela Liberdade”: Preparativos.” O mesmo
jornal já vinha divulgando a realização da marcha na cidade de Pentecoste desde o dia 26 de abril com os
respectivos títulos, “Estudantes e Pescadores de pentecostes à Frente da “Marcha da Família Com
Deus Pela Liberdade” Marcada para 1º de Maio” e “D. RAIMUNDO DE CASTRO EM
PENTECOSTE PARA A MARCHA”.
411
Jornal Correio do Ceará, 29 de abril de 1964, página 9. “Iguatu Realizou Com Excepcional Brilho A
Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade”.
412
Jornal Unitário 29 de abril de 1964.
413
Jornal Correio do Ceará, 28 de abril de 1964 – Título: “Acopiara Também Realizou Passeata-
Monstro em Regozijo Pela vitória das Forças Armadas”.
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expressivo de pessoas, revelando a eficiência dos meios utilizados na organização,


preparação, divulgação, usos simbólicos e discursos por parte dos seus líderes e
apoiadores.
Quanto à direção das “Marchas da Vitoria” no Ceará, elas incluíram
participações de diversas autoridades, classes sociais, entidades e instituições. Na
marcha de Fortaleza, a liderança responsável por este acontecimento foi o Movimento
Cívico Feminino do Ceará414, estando à frente do movimento e da marcha, a primeira
dama do Estado, a senhora Luiza Távora415. O movimento contou com a participação de
outras mulheres como a de Imenes Borba416, esposa do comandante Aluísio Brígido
Borba, da 10ª Região Militar e da vereadora Mirtes Campo. Sendo os principais
oradores na marcha em frente ao Quartel General, “D. Luiza Correia Távora, D. Imenes
417
Borba e finalizando, seu esposo, cel. Aluísio Brígido Borba” . O trajeto “teve início
por volta das 16 horas, saindo da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, tomando ruas
centrais, sob os acordes de dobrados cívicos entoados por bandas de músicas das Forças
Armadas” indo em direção a Igreja da Sé, no palco montado em frente à Matriz. Na
catedral metropolitana, “D. Raimundo de Castro e Silva cantou um “Te Deum”, seguido
de um discurso alusivo as Forças Armadas, celebrando a “Revolução” através de uma
sacralização do acontecimento, com os rituais religiosos, emoções, palavras e símbolos,
dando a este momento um efeito real e legítimo às ações militares. Em seguida todos foi
rumo ao Quartel General, da 10ª Região militar, na cidade de Fortaleza, sendo
finalizado com os oradores mencionados acima.
Em Juazeiro do Norte, a “Marcha da Vitória” foi coordenada pelas ordens
religiosas da cidade, pelos padres Antonio Germano, Frei Jesualdo Maria de Cologno,
Frei Egdio, Luiz Marinho Falcão e Manuel Esaú; pela Frente Democrática de Juazeiro
do Norte, sendo o presidente da entidade Antonio Correia Celestino e pela diretoria da
414
Esta entidade era composta por mulheres de classe média e alta no Estado do Ceará, criada alguns dias
após o golpe civil-militar de 1964. A entidade era semelhante as demais espalhadas pelo país, como a
CAMDE, UCF e LIMDE, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte respectivamente. O objetivo delas
eram desarticular o governo de João Goulart e afastar a influência comunista no país através de uma luta e
mobilização anticomunista, tendo como infiltração ideológica dos institutos IPÊS e IBAD. No caso do
Ceará, a entidade teve como principal objetivo articular a população cearense para o reconhecimento da
legitimidade das ações exercidas no dia 31 de março de 1964, levando a construção de uma idéia
revolucionaria sobre o período vivido no país. Ao mesmo tempo tornando possível a construção de um
consenso a respeito do novo governo, tendo a frente o Marechal Castelo Branco no comando do país.
415
Jornal Unitário, 14 de abril de 1964. “A FRENTE A PRIMEIRA DAMA – A MARCHA DA
FAMÍLIA COM DEUS, PELA LIBERDADE RESTAURADA”.
416
Esposa do comandante 10ª Região militar de Fortaleza, Aluísio Brígido Borba. Jornal O Nordeste, 17
de abril de 1964.
417
Informações encontradas no jornal O Nordeste, 17 de abril de 1964.
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Escola Normal de Juazeiro do Norte, professora Amália Xavier de Oliveira (Jornal


Unitário, 11 de abril de 1964). A concentração teve como ponto inicial, “a Praça das
Almas, em frente ao Santuário de São Francisco e uma Passeata do Rosário, a partir
daquele local, para a Matriz de Nossa Senhora das Dores, ponto terminal da
Homenagem”. Neste local, todos os organizadores fizeram uso da palavra, além de
outras autoridades, como o prefeito da cidade, José Teófilo Machado; o promotor de
Justiça, Dr. Afonso Dantas; Capitão, Raimundo Pinheiro e entre outros.
São em traços semelhantes as das marchas de Juazeiro do Norte e de Fortaleza,
que em outras cidades como Limoeiro do Norte, Pentecoste, Iguatu, Aurora,
Jaguaruana, Morada Nova, etc., foram realizadas manifestações escolhendo os
principais espaços de representação do poder político, religioso, militar e institucional,
sob a configuração de um grupo heterogêneo e de influência nos municípios.
1 - “As Marchas da Vitória” no Ceará como acontecimento histórico.
As “Marchas da Vitória” no Ceará são compreendidas nesta ocasião, como um
acontecimento histórico, a partir da perspectiva apontada pelo historiador francês,
François Dosse, no livro intitulado Renascimento do acontecimento: um desafio para
o historiador – entre Esfinge e Fênix (2013). Dosse afirma que “o acontecimento é
compreendido como histórico a partir do momento em que ele produz efeitos e é
dimensionado conforme a importância daquilo que ele provoca” (2013, p. 185). As
marchas cearenses recebem essa importância histórica neste momento, justamente
porque elas produziram efeitos em ampla dimensão em aspectos espaciais, sociais,
políticos e religiosos. Até mesmo estabelecendo novas relações sociais e políticas com
os seus reflexos. O alcance de seus efeitos na sociedade, nos meses de abril e maio de
1964, no Ceará, deve-se, a forma como este acontecimento foi pensado por seus
articuladores, difundido pela imprensa e recebido pela população. Aliás, essa é a
condição de existência de um acontecimento, segundo François Dosse. Ele precisa está
“inserido em uma cadeia de comunicação: emissão/difusão/recepção” (2013, p. 185).
Na condição de existência de um acontecimento, no caso, as “Marchas da
Vitória”, percebe-se uma inserção distinta de papéis, variações interpretativas e
entendimento sobre o ocorrido, sendo condicionada a partir dos lugares ocupados por
seus atores, a imprensa e a população. Dosse indica que essa é uma condição dada pelo
acontecimento, por ele ser “criador de atores e herdeiros que falam em seu nome,
interessados em realizar a propagação das ideais ou inovações trazidas pela
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descontinuidade que ele cauciona” (2013, p. 154). Quando o golpe civil-militar de 1964
foi consumado, imediatamente, após o dia 31 de março, foi constituído um consenso,
destinado aos militares como sendo os principais atores na realização desse ato,
deixando silenciosamente para trás a participação civil, por meios de entidades,
instituições, partidos, empresas, entre outros, na realização do referido alvo.
Os organizadores, das marchas no pós-golpe, em especial, as “Marchas da
Vitoria” cearenses, se apresentaram publicamente na imprensa ou no próprio
acontecimento, como sendo os apoiadores e simpatizantes da “revolução” de 31 de
março, herdando seus efeitos. O ato de falar em nome da revolução, e mais
precisamente comemorar ou celebrá-la, é assumir sua herança, dando aspecto de
legitimidade aos fatos e ações ocorridas, por mais curta que seja a distancia temporal
entre o golpe e as marchas, num intervalo de dias para algumas e meses para outras. Os
organizadores das marchas cearenses ao se posicionarem em nome da “revolução”,
versão dada pelos militares a respeito de suas ações no mês de março, estiveram
inseridos no processo como herdeiros e como atores de um acontecimento que visou a
legitimidade dos esforços com o reconhecimento da sociedade.
Esse vínculo constitutivo entre o acontecimento e seus herdeiros abre o devir
da ruptura acontecimental [événementielle] para uma indeterminação original
de seu alcance que não é mais a priori, mas o farão os atores que propagarão
a onda de choque. Logo, o acontecimento cauciona uma temporalidade nova
para os atores e suscita novas práticas. (DOSSE, 2013, p. 154-155).
A realização do golpe e sua grandiosa repercussão na imprensa causaram no
público nas diferentes camadas sociais a sensação de está em um novo tempo, um novo
horizonte. O tempo novo inaugurado a partir da intervenção militar representava o
inicio de um momento sem a presença comunista. O início de um novo tempo foi
concebido como resultado de uma ruptura temporal, tendo como marco da ruptura, o
golpe de 31 de março. São em nome desse novo tempo, que os atores das marchas
cearenses e ao mesmo tempo como herdeiros do golpe se pronunciam favorável a esse
momento, inaugurando-o por meio de celebrações e comemorações cívicas, afirmando,
que “a Pátria está livre do regime comunista ateu e materialista”. (Jornal Unitário, 26 de
abril de 1964). Quando a líder da marcha de Fortaleza, Luiza Távora recebe a
oportunidade para a realização de um discurso perante a imensa massa humana presente
na manifestação, ela inicia se pronunciando acerca dessa ruptura temporal, afirmando
que a temporalidade nova em marcha, é “de grande significação”, pois ela representou a
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todos que lhe era favorável, um tempo sem ameaças comunistas, sem o fim das
tradições e instituições.
POVO CEARENSE
Na verdade, em momento como êste, de tão grande significação, qualquer
outra voz feminina, que não a nossa, bem melhor poderia expressar os
sentimentos de alegria e íntima satisfação que invadem a alma da
coletividade do Ceará, por sentirmos todos que já está afastada do horizonte
da Pátria a terrível ameaça que ensombrecia os nossos corações, até bem
pouco tempo!
A nova temporalidade carrega um conjunto de sentidos que ia muito além de
uma simples sensação de que o tempo mudou, mas porque o tempo é diferente causado
por um acontecimento que representou a ruptura de um passado recente, que causava
medo às instituições pelas aproximações que o governo brasileiro mantinha com os
comunistas e socialistas. A atribuição simbólica dada ao golpe de 1964, nesse exato
momento, é de vitória sobre a ameaça dos “inimigos vermelhos”. Dentro desse tempo,
por meio de uma higienização das instituições, as marchas surgem como “momentos de
entusiasmos cívicos e patrióticos” indicando os sentidos que todos deram ao dia 31 de
março de 1964 e ao momento em celebração. Como expressou François Dosse a
capacidade que o acontecimento tem de suscitar discursos e sentidos a ele, depende
muito da sua intensidade e repercussão (2013, p. 279).
Não podemos esquecer jamais, que 31 de março representou o marco inicial ou
base de um tempo novo para aqueles que aderiram esse dia. A condição de celebração
nas “Marchas da Vitória” no Ceará teve como utilização essa base para a produção de
sentidos e significação para as suas ações nestas manifestações. Ao golpe foi dado o
sentido de rompimento e expulsão dos inimigos e as marchas foi dado um significado
de celebração e comemoração ao primeiro acontecimento. Assim, compreende-se que as
“Marchas da Vitória” no Ceará é parte ou extensão do dia 31 de março, mas elas não
podem simplesmente ser restringidas a isso, pois elas serviram pra outros sentidos, usos
e finalidades. As marchas cearenses tiveram também um lugar, uma função significativa
que foi legitimo em sua própria ocorrência, produzindo feitos de memorização dos fatos
relacionados à intervenção militar. Assim podemos afirmar que as “Marchas da
Vitória” surgiram como acontecimento que pretendia colocar em evidência, a
veracidade da ocorrência no golpe de 1964, sendo ele justificado, como ato
“revolucionário”, através de uma narrativa que colocava os fatos entre o antes do dia 31
de março e o depois. Deste modo, os enredos e as narrativas nas “Marchas da Vitória”,
tornaram-se a produção de uma memória a respeito deste dia. Devido o acontecimento
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está aberto para um devir, algumas das lideranças responsáveis pela condução das
marchas, possibilitaram uma projeção política diante da instituição do novo regime.
Somente o fato de vários vereadores e prefeitos, em várias regiões do Estado do Ceará,
ao assumir a responsabilidade de organizar uma manifestação com os traços já
mencionados, conduz a preocupação que muitos tiveram com a vacância da presidência
da República brasileira.
Ainda em relação à função dada as “Marchas das Vitória” como lugar de
celebração percebemos que este é um espaço de emoção e comoção para uma ampla
parcela da sociedade. As “Marchas da Vitória” “traz em si uma forte carga de emoção,
que constitui uma boa parte de sua capacidade de comoção” (DOSSE, 2013, p. 130.
Nelas, a celebração, a expressão de alegria se dá em função da oposição ao que era
concebido como perigoso as instituições brasileiras – a ameaça do comunismo. A
necessidade de uma narrativa que demonstrava o antes do golpe como um momento “de
terrível ameaça que ensombrecia os nossos corações” (Jornal O Nordeste, 17 de abril de
1964), fazia parte do processo de comoção. Toda a imprensa cearense se reverte desse
tipo de artifício tratando o atual momento de “redemocratização” em oposição ao
período anterior ao mês de março de 1964.
A vereadora de Fortaleza, Mirtes Campo ao realizar uma “proclamação à
mulher cearense” para a celebração às Forças Armadas, a mesma se utiliza das
diferenças simbólicas entre o regime comunista e a bandeira brasileira através de uma
perspectiva temporal. Na expectativa da vereadora “o pavilhão nacional de cores verdes
de nossa esperança, amarela de nosso valor, azul de nossa fé e branca simbolizando a
paz, jamais seria substituída pela bandeira vermelha” (Jornal Unitário, 8 de abril de
1964). E como elemento ainda mais comovente para a arregimentação ao atendimento a
conclamação feita às mulheres cearense para a realização de atos que visassem à
comemoração e homenagens às Forças Armadas, afirma que a bandeira brasileira
“jamais seria substituída pela bandeira vermelha dos tiranos cujo símbolo ao invés de
estrelas, é representado por instrumentos de terror: o MARTELO E A FOICE” (Jornal
Unitário, 8 de abril de 1964). Como avaliação da eficiência que este discurso alcançou
no Estado do Ceará, podemos constatar que foi em altos índices pela quantidade de
cidades cearenses que realizaram as “Marchas da Vitoria”, numa média de 12 cidades,
conforme foi encontrado na imprensa escrita, fora algumas outras, que embora não
realizando as manifestações, lançaram seus apoios na imprensa ao novo regime.
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Com esta mesma particularidade, os organizadores das “Marchas da Vitoria”


possuíram como elemento base a narrativa dos antecedentes do golpe e a utilização do
horizonte promovido por ele, para a comoção de que o antes era tão verídico quanto o
depois. E mais, o novo tempo, em clima de celebração cívica e patriótica só faz sentido
em razão do que aconteceu, rompendo de vez qualquer perigo. Em o antes a sociedade
vivia em um horizonte de incertezas, devido à condução dos rumos que o país vivia
enfrentando a partir do governo Jango e suas aproximações com a esquerda brasileira.
Mas no percurso das expectativas surgiu as ações intervencionistas dos militares como
sendo algo de providência divina. Luiza Távora, ao continuar seu pronunciamento ao
público da marcha fortalezense, expõe de modo claro as singularidades que o evento
apresenta para a ocasião.
Aceitamos porém, nesta hora tão grata, a delegação que nos foi dada, de
dirigir algumas, em nome da mulher cearense, agora jubilosa e tranqüila, para
uma homenagem mais do que justa e oportuna às classes armadas, que
construíram a vitória final das fôrças do Bem contra as ameaçadoras fôrças
da desordem. (Jornal O Nordeste, 17 de abril de 1964).
A utilização de um antes e depois como constituição de sentidos atribuídos ao
golpe deu a narrativa elaborada pelos organizadores das marchas, uma espécie de
racionalidade, que somente poderia ser identificada através de um envolvimento de
sentimentos e comoção, do público aos acontecimentos. ““ A ausência de emoção não
determina a racionalidade e não pode reforçá-la ”” (DOSSE, 2013, p. 130). E mais
ainda “o que se opõe ao “emocional”, não é de maneira alguma o “racional” qualquer
que seja o significado do termo, porém a insensibilidade” (DOSSE, 2013, p. 130).
François Dosse afirma que “o acontecimento também é configurado em função da
perspectiva de expectativa em que ele acontece. Ele não sai do nada, mas de pré-
conhecimentos, de um conjunto de padrões, de um sistema de referencias” (2013, p.
267). As emoções, sentimentos, expressões de civismo, fé, alegria reveladas neste
momento, transmite para nós como os atores das marchas e uma ampla parcela da
sociedade fizeram uma leitura da realidade a partir de um conjunto de crenças,
simbologias e normas. O que se projetou em torno das marchas, como um espetáculo de
civismo e fé comemorativo às Forças Armadas dependeu de toda a rede de crenças,
tanto da autoria nos dois acontecimentos como pela população.
Deste modo, as narrativas acerca do golpe e da objetividade das “Marchas da
Vitória” eram transmitidas em forma ritualística, ganhando aspectos religiosos. Em uma
sociedade muito religiosa, a explicação dada ao acontecimento em tons místicos, em
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rituais religiosos, sejam cantando as orações dos santos, na realização de rezas sob a
coordenação de bispos, padres, com a utilização do próprio espaço da Igreja, em sua
maioria, tornou-se um elemento forte na assimilação do conteúdo, na proposta lançada
pelas marchas e na forma de compreensão ao golpe. Ao pensarmos nestas questões,
quanto aos usos de emoções, crenças e simbologias pelos organizadores das marchas
para a arregimentação da sociedade em favor de prestígio e honrarias às Forças
Armadas, François Dosse tinha razão em afirmar que a “expectativa está fortemente
ancorada em uma situação singular, em um contexto particular: “Uma expectativa está
inserida na situação em que ele surge” (2013, p. 268). Luiza Távora, coordenadora da
marcha de Fortaleza expressou esses detalhes acerca da expectativa do momento,
momento de exteriorização “dos mais sagrados sentimentos patrióticos”, de exultação e
exaltação aos atos militares, ação definidora e classificadora de uma situação especifica,
que promoveu a existência desse novo tempo, o tempo de realização das marchas, que
agora, em forma de um acontecimento celebrativo, relatando aquilo que foi responsável
pela ruptura temporal, o divisor de águas para as situações políticas e sociais.
Agora, quando Exercito, Marinha e Aeronáutica, unidos num só pensamento
e numa mesma ação, afastaram para bem longe, enérgica e lealmente, os
desleais e solertes inimigos do Brasil, da Família e dos mais sagrados
sentimentos de patriotismo de nosso povo, exulta a alma da mulher cearense,
essa mulher [...] que tem lições aprendidas na História da sua terra, através
dos exemplos de Bárbara de Alencar e de Elvira Pinho. (Jornal O Nordeste,
17 de abril de 1964).
Com base nas expectativas do novo tempo, geradas a partir do dia 31 de março
de 1964, encontramos de forma dualísticas as representações dadas aos comunistas,
simbolizando o antes com a caracterização de pessoas “desleais”, “solertes”,
verdadeiros “inimigos do Brasil”, que pretendiam entregar o país as ideologias
estrangeiras. Este período, o antes, geralmente foi narrado como um tempo perigoso,
sombrio, trevas, de influência maligna e forças das trevas. Enquanto que o depois
ganhou representações na imprensa, por parte de muitas lideranças políticas e dos
organizadores das marchas como um tempo de vibrante comemoração e celebração.
Algo nos chama atenção nestas narrativas quanto esta acima, onde os militares, não são
localizados nem no antes e nem no depois, mas são definidos como sendo a própria
ação de separação das temporalidades. A eles foram destinados uma posição acima dos
perigos, das situações, cuja ação, eles “afastaram para bem longe, enérgica e lealmente,
os desleais e solertes inimigos do Brasil”.
2 - As “Marchas da Vitoria” no Ceará: acontecimento político.
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A realização das marchas representou um acontecimento político que


viabilizou a construção de um consenso, uma opinião, unindo os olhares e pensamentos
a respeito de um momento histórico. As autoras, Alessandra Carvalho e Ludmila da
Silva Catela, quando tratam a respeito da comemoração feita ao dia 31 de março de
1964 no Brasil, afirmam que “uma categoria y su fecha pueden ser leídas em chave de
invención de uma tradición, invención eficaz para unificar miradas y pensamentos sobre
un momento histórico-político” (2002, p.196). Segundo as autoras, “El 31 de marzo fue
institucionalizado como El dia Del cambio, La palabra revolución es aquella que
perduro em el tiempo” (2002, p.196). As marchas são realizadas nesta noção de um
tempo em novidade política e de permanência democrática. A base desse tempo foi o
dia 31, concebido como acontecimento da mudança, enquanto que as marchas tornaram-
se a expressão de como se deveria viver nele. As marchas são relatas na imprensa e nas
falas dos oradores como manifestações favoráveis ao novo ciclo político. Esta nova
etapa foi entendida como o “fortalecimento da democracia ou a redemocratização do
país”. De acordo a divulgação do noticiário da marcha de Acopiara, no jornal Correio
do Ceará, percebemos com clareza uma referência ao modo como era percebido o novo
momento político após o dia 31 de março.
O desfecho favorável ao movimento Revolucionário que eclodiu no dia 31 p.
findo, planejado e executado pelas nossas Forças armadas trouxe com
certeza, à comunidade brasileira, um novo “modus vivendi” estruturado na
ordem e tranqüilidade, fortalecendo as nossas esperanças já tão debilitadas
ante os turvos horizontes de um governo que tentava, por todos os meios
possíveis, levar a Pátria ao caos, à desordem e a subversão ( Jornal Correio
do Ceará, 28 de abril de 1964).
A visão dada à nova realidade política do país, através dos regozijos
demonstrados nas marchas, é de que a conduta e o modo de vida serão pautadas pela
ordem, o respeito às autoridades e as hierarquias, num perfeita tranqüilidade, devido a
expulsão dos inimigos da Pátria. As marchas tornam-se ato político de assimilação da
nova ordem e tradição a ser seguida no país. Há uma ênfase fortemente colocada nos
discursos de que “a falta de autoridade e indisciplina imperava em quase em todos os
setores do organismo administrativo do país, decorrente da omissão criminosa do então
presidente” (Jornal Correio do Ceará, 28 de abril de 1964). As marchas ganham uma
perspectiva que justifica politicamente o caráter do novo período. O mais interessante,
que as percepções de mudança política, são justificadas com base na permanência das
autoridades ligadas ao projeto do dia 31 de março.
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3 - “As Marchas da Vitória” como constituição da memória do Golpe de


1964.
As “Marchas da Vitória” no Ceará são analisadas como lugar de produção e
ativação da memória do Golpe civil-militar de 1964, dando ao ato deflagrado no dia 31
de março, como ação salvadora e revolucionária contras as ameaças comunistas às
instituições brasileiras. Segundo Aline Presot, as marchas após o golpe, tiveram a
função de “demonstrar o caráter popular do golpe, uma vez que nesse momento uma
grande parcela dos cidadãos ia às ruas comemorar a vitória, dar “ação de graças” pelo
afastamento do comunismo das terras brasileiras” (2010, p. 83).
O desempenho das marchas da vitória em celebrações ao golpe fora também
uma forma encontrada para constituição da memória desse acontecimento, uma vez que
as narrativas dos organizadores e da imprensa do período têm a tentativa de elaboração
de uma versão da história, do que exatamente havia acontecido no período. No caso do
Ceará, poucos meses após a intervenção militar, uma distância temporal curta, mas o
suficiente para que determinados grupos viessem a utilizar instrumentos de
convencimento à população que os atos realizados neste dia, eram de uma autentica
revolução. Em mais, grupos femininos e lideranças políticas, militares e sociais, deram
ao ato, uma característica religiosa, sendo realizadas algumas missas no Estado em ação
de graças à providência divina na condução do país. As missas foram incorporadas nas
programações da marchas cearenses, propiciando a ritualização e maior assimilação das
suas propostas.
Assim, as narrativas nas marchas acerca do golpe colocavam em evidência a
forma como deveria ser lembrado este dia, adquirindo uma função social e política.
Além do mais, não apenas os atores efetivaram a construção dessa memória através de
códigos, símbolos, encenações e discursos, mais as próprias marchas em si, como
espaço, permitiram a fixação dela, sendo uma forma de individuação do acontecimento
ao público. O ato comemorativo ao golpe era uma forma de glorificação desse passado
recente, destinando os objetivos da sua ocorrência como baliza para elaboração de uma
identidade. A organização da memória do golpe através de realização das marchas
pretendeu a atender ao jogo político de certos grupos, visando a sua legitimação,
valorização e adesão (CANDAU, 2011, p.147). Conforme diz Joel Candau, “trata-se de
inscrever o acontecimento comemorado no quadro dos jogos identitários aos quais
devem fazer frente o grupo” (2011, p. 148).
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Desta maneira, as “Marchas da Vitoria” ganham sentidos simbólicos para a


memória do golpe, para a formação de identidades destinadas aos grupos (tanto para os
defensores como para opositores do golpe), e de modo geral, para o país. Nas marchas,
a memória utilizada para justificar o golpe, “é uma memória “supostamente
compartilhada” que é selecionada, evocada, invocada e proposta à celebração em um
projeto integrador que busca forjar uma unidade” (CANDAU, 2011, p. 148). Uma
memória que ponha em evidência o acontecimento comemorado e o grupo que o
comemora.
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SLAVOJ ŽIŽEK E A PRÁXIS DA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

Matheus Phelipe Mamede Lopes da Luz


CFCH-UFPE
matheusmamede@ymail.com
RESUMO:

Este artigo propõe uma indagação acerca das ideias difundidas em toda amplitude da
questão política pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek, o filósofo pretende demonstrar em
seus escritos a visão da atual situação política e consequentemente todos os loci de
envolvimento do homem dentro das camadas políticas. A partir da indagação proposta
as ideias de Slavoj Žižek, a presente proposta visa demonstrar o ethos da historiografia
em combater a doxa que por muitas vezes se assenta nas questões políticas atuais. A
fundamentação dessa indagação se baseará em uma análise dos questionamentos de
Žižek mediante a uma confrontação tirante a conceitos predecessores e ulteriores, e com
isso, o fomento de questionamentos para com o pensamento contemporâneo político e
seus meios de ação perante a sociedade, Slavoj Žižek transmite por meio de uma eximia
facilidade dialética baseada em junções interdisciplinares que contam com relações
entre Friedrich Hegel, Karl Marx e Jacques Lacan, e a partir disso a complexa dialética
torna por relembrar diversas vezes toda a força do Crepúsculo dos Ídolos de Friedrich
Nietzsche, e ao mesmo tempo demonstra toda sua contemporaneidade ao analisar
movimentos como o recente Occupy Wall Street.

Palavras-chave: Práxis política; Interdisciplinaridade contemporânea; concepção


Zizekiana.

ABSTRACT:

This article proposes a quest about the ideas disseminated across breadth of political
issue by the Slovenian philosopher Slavoj Žižek, philosopher aims to demonstrate in his
writings the vision of the current political situation and consequently all the loci of
human involvement within the layers. From the questing Slavoj Žižek's ideas proposal,
this proposal aims to demonstrate the ethos of historiography in combat doxa which
often hinges on current political issues. The rationale of this quest is based on an
analysis of the questions of Žižek by a confrontation the lifter concepts predecessors
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and further, and with that, the promotion of questions for contemporary political
thought and its means of action towards society, Slavoj Žižek transmits through a
dialectic joints-based facility eximia interdisciplinary studies that rely on relationships
between Friedrich Hegel, Karl Marx and Jacques Lacan, and from there the complex
dialectic makes for a refresher several times over all the power of the twilight of the
idols, Friedrich Nietzsche, and at the same time demonstrates its contemporaneity to
analyze movements such as the recent Occupy Wall Street.

Keywords: political praxis; contemporary interdisciplinarity; Žižek's conception.

Durante o século IV a.C. , Aristóteles de Estagira418 contribuiu


significativamente para a fundamentação extensa de diversas áreas do conhecimento,
não apenas no mundo Grego, e pode se observar com base em sua fundamentação,
incontáveis pensamentos desde a Antiguidade, o mesmo foi discípulo de Platão, a quem
deu continuidade das obras, entre as obras de Aristóteles, é visível em sua compilação
acerca da Ética (Ética de Nicômaco; Ética a Eudemo; Grande Ética) e em uma das suas
últimas obras, a Poética, pode se perceber uma inferência direta ao estudo e trabalho
histórico. Aristóteles de Estagira acaba por definir a História a diferenciando da Poesia,
e com base em sua concepção pode se entender que o historiador seria um estudioso do
singular, do particular, o mesmo dando prosseguimento em sua obra, acaba unificando o
tempo e discurso histórico, e com isso, surge a conclusão de que o teor filosófico da
história seria de menor intensidade que o da Poesia, pois, necessariamente a História
precisaria de uma conexão de fatos, fatos esses que na maioria dos casos não teria
nenhuma ligação, mas, mesmo assim se manteria a função de criar uma ordem lógica
dos fatos.

A introdução do presente artigo tem por função explanar visões historiográficas


que não apenas demonstre os métodos historiográficos, mas, também suas análises, e
reflexões acerca de suas conclusões, como no caso da reflexão proposta pelo filósofo
Aristóteles de Estagira, que de inicio não aparenta criar raízes com a futura exposição
dos conceitos Hegelianos, mas, ao longo da continuidade das exposições o pensamento

418 Antiga cidade-estado Grega


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aristotélico acaba criando direta ligação com alguns dos métodos hegelianos para com a
fundamentação histórica. E a questão inicial que vem à tona a partir da introdução, é
qual a ligação de Aristóteles com a fundamentação política de Žižek, e é a partir deste
questionamento, que a presente proposta visa prender a atenção do leitor, Aristóteles
considerava a ciência política, como o maior dos estudos, e a interdisciplinaridade dada
aos seus estudos, em muito fundamentaram o que Žižek explanará em seus escritos.

Dando continuidade à introdução, com um visível distanciamento e distinção


entre as épocas, que resulta com influência direta no pensamento do erudito Aristóteles
de Estagira, e do segundo pensador a dar continuidade à introdução, que é o alemão
Reinhart Koselleck, é de extrema importância pontuar essa distinção temporal.

No caso de Aristóteles de Estagira, o século IV a.C. na Grécia representou a


continuidade do Período Clássico, onde os fortes conflitos internos acabaram por
contribuir para a conquista da Grécia pela Macedônia de Felipe II, pai de Alexandre, o
Grande, figura esta que teve o próprio Aristóteles de Estagira como tutor.
Aproximadamente vinte e quatro séculos após os escritos de Aristóteles de Estagira,
surge o pensamento do alemão Reinhart Koselleck, que no século XX conviveu ainda
jovem com os estragos causados pela explosão da segunda guerra mundial no
continente europeu, e todo o regime extremista que se instaurou especialmente na
Alemanha, sem contar a posterior divisão do mundo em dois blocos de pilares
econômicos distintos, todo esse enredo contribuiu significativamente para os escritos do
autor, principalmente em sua notabilidade nos estudos sobre a Teoria da História.

Para a presente proposta o enfoque se dará na obra Futuro Passado de


Koselleck, onde o autor debate por embates filosóficos e filológicos para a definição do
conceito de História. “A História pode conduzir ao relativo aperfeiçoamento moral ou
intelectual de seus contemporâneos e de seus pósteros, mas somente se enquanto seus
pressupostos pra tal forem basicamente os mesmos” (KOSELLECK, 2006) nesta
passagem, Koselleck traz um comentário acerca das consequências das reflexões a qual
a História pode proporcionar, de imediato pode se inferir que Reinhart Koselleck
atribuía tanto valor as reflexões da História como Aristóteles de Estagira atribuía as
reflexões de cunho poético, e ao decorrer de sua obra, Koselleck vai expondo outras
visões do mesmo prima histórico “Mesmo que não possa aprender nada a partir da
História, resta no fim uma certeza adquirida a partir da experiência, um ensinamento
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histórico, que pode tornar mais espertos e mais inteligentes aqueles que o conhecem
[...]” (KOSELLECK, 2006) essa passagem de Futuro Passado acaba por relembrar a
ideia de Aristóteles da “conexão das desconexidades” e para por fim neste ponto,
Koselleck escreve “Cada ensinamento particular conclui então no evento pedagógico
geral.” (KOSELLECK, 2006) e com isso foge do caminho proposto por Aristóteles de
Estagira.

Reinhart Koselleck usou de meios mais amplos para definir a História, usou se
sua formação em Filosofia, Sociologia e Direito Público, para criar uma ampla rede de
convergências, e remonta em um pensamento do jurista alemão Friedrich Carl von
Savigny, sobre a história “Não é uma mera colocação de exemplos, mas sim o único
caminho para o verdadeiro conhecimento de nossa própria situação” (KOSELLECK,
2006) e com esse pensamento se pode entender toda a importância de propor o
conhecimento de um erudito ulterior a Hegel, pois é fundamental para o entendimento
da mesma questão historiográfica em distintos séculos sobre diversas óticas.

Após a fundamentação da introdução que observa os seguintes entendimentos


necessários à colocação do pensamento de Slavoj Žižek, entendimentos esses que
cunham definições acerca de um ethos da História, ethos este que criou longas relações
interligadas com a teoria política, e é com essa busca pela interdisciplinaridade que o
presente artigo consolida e fixa o início da fundamentação do pensamento de Slavoj
Žižek, que tem como principal intuito, combater toda a doxa presente na sociedade
atual, principalmente nos assuntos que se tratam ligados a política.

Žižek traz por instinto lógico a fundamentação de uma teoria que pudesse o fazer
compreender o sujeito e suas ações, para que com isso, pudesse modelar a política, o
psicanalista parisiense Jacques Lacan foi um dos meios perfeitos para este
entendimento.

Sobre o sujeito lacaniano, vale a pena lembrar como a experiência intelectual


do psicanalista parisiense traz, pelas vias da negação, uma alternativa à razão
centrada na consciência que não implicaria necessariamente abandono do
princípio de subjetividade. Lacan é aquele que critica a transparência auto-
reflexiva da consciência e o telos regulador da comunicação plena ao insistir
na especificidade do campo do inconsciente e do sexual a todo e qualquer
processo antirreflexivo. Ele conhece bem a necessidade de demorar-se diante
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daquilo que resiste à simbolização reflexiva produzida pelo diálogo analítico.


Mas a irredutibilidade do inconsciente e do sexual à simbolização nada tem a
ver com hipóstases do arcaico, do inefável ou da afetividade. Daí por que não
há nada menos lacaniano do que defender a política do retorno à
imediaticidade de uma experiência da origem. Não há nenhuma positividade
primeira enunciada pelo inconsciente lacaniano, já que ele não é uma caixa
de Pandora de onde sairiam pulsões não-socializadas e conteúdos recalcados.
Ele é, antes, aquilo que, no sujeito, se define por resistir continuamente aos
processos de auto-reflexão. Ele é lugar do que só pode aparecer como
irredutivelmente negativo no sujeito. De onde se segue a importância do tema
do descentramento do sujeito do inconsciente (e não seu abandono).
Descentramento que indica a posição de não-identidade que um conceito não-
substancial de sujeito sempre sustentará diante dos espaços de representação,
de auto-apreensão reflexiva e de identificação social. (SAFATLE, 2003,
p.181).

E após demonstrar toda a força da autonegação Lacaniana, fica mais visível o


propósito de Žižek em entender os caminhos que permeiam as ações do homem, é válido
lembrar que Žižek percorre os caminhos Hegelianos para entender a autonegação que
vem a fazer parte do pensamento político, como o próprio cita: “O sujeito hegeliano
não é nada mais que o simples movimento de autodecepção (sic) unilateral, da hubris de
pôr-se em uma particularidade exclusiva que necessariamente volta-se contra si mesma
e termina em autonegação” (ŽIŽEK, 1991) os esforços para a compreensão da
identidade da consequente não identidade do ser, trarão Žižek para um lado mais
essencial da metafísica, e é seu lado metafísico que tratara do momento atual político.

Durante uma entrevista publicada no dia 15 de março de 2013, por uma mídia
situada no estado de Pernambuco, o Jornal do Commercio, Slavoj Žižek comentou
acerca da importância de sua fundamentação em Friedrich Hegel, e Jacques Lacan.

JC – E por que Hegel é tão importante para entender o mundo de hoje?


ZIZEK – Eu sou bem mais um pessimista histórico, por assim dizer. Eu
penso a alienação não no sentido marxista, mas no sentido da não
transparência da história. Você faz algo e o resultado é totalmente diferente
do que você esperava; você planeja a libertação e o resultado é o terror e o
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horror. Eu acho que nós devemos ficar mais conscientes disso, dessa
impenetrabilidade da história, de como tudo termina de forma diferente do
que esperávamos. Hegel estava profundamente ciente disso. Novamente, toda
a história da esquerda radical no século 20 demonstra isso. Olhe para a
Revolução Chinesa. A maior revolução comunista terminou fazendo do
Partido Comunista Chinês o mais implacável e eficiente regulador do novo
sistema capitalista. Nós devemos nos preparar para essas surpresas. (Slavoj
Žižek: “Estou cansado das análises culturais e políticas” Jornal do
Commercio, Recife, 15 de março de 2013. Disponível em: <
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2013/03/15/sla
voj-zizek-estou-cansado-das-analises-culturais-e-politicas-
76499.php>.Acesso em: 16 de mar.2014.)

JC – E qual é o papel de Lacan para ajudar a entender Hegel?


ZIZEK – Lacan é para mim especialmente importante. Por um lado, ele me
dá conceitos para poder ler Hegel e também para compreender como a
ideologia funciona hoje. É fascinante dizer hoje que, com exceção de algum
louco fundamentalista religioso, nós não temos mais ideologia, somos todos
cínicos pragmáticos. Mas não, eu acho que mais do que nunca a ideologia é
hoje parte da nossa vida cotidiana. Na verdade, é uma parte até invisível.
(Slavoj Žižek: “Estou cansado das análises culturais e políticas” Jornal do
Commercio, Recife, 15 de março de 2013. Disponível em: <
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2013/03/15/sla
voj-zizek-estou-cansado-das-analises-culturais-e-politicas-
76499.php>.Acesso em: 16 de mar.2014.)

Posterior aos comentários acerca da fundamentação de Žižek, é de fundamental


destaque o comentário que o filósofo fez na década atual, onde explanou acerca de seu
pensamento político com a máxima “não aja, pense”, esta máxima de Žižek, criou muita
repercussão entre seus leitores, principalmente pela forte estranheza que este
pensamento vem a suscitar diante de um teórico marxista, no caso de Žižek, essa
máxima está contrariamente ligada às teses sobre Feuerbach, onde Karl Marx, vem por
criticar profundamente todo o materialismo inspirado por Friedrich Hegel, Marx tende a
suscitar que os filósofos apenas tenderam a interpretar o mundo, e esta interpretação não
estava necessariamente conectada a soluções “reais” para os problemas cotidianos do
homem, é de importante destaque que não foi Karl Marx que publicou as Teses sobre
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Feuerbach, na verdade, após a sua morte, as onze anotações foram editadas e publicadas
por Friedrich Engels. Žižek tende por explanar sua visão acerca do momento atual da
política, com um viés carregado de diversas e distintas ações, mas, ações sem
conjuntura, sem fundamentação, principalmente quando o filósofo se refere ao século
XX, onde havia diversas conjunturas políticas baseadas nas ações, no agir e demonstrar
a população, conjunturas políticas que criaram por diversas vezes os sentimentos
nacionalistas, e é a partir deste ponto, que Žižek vem a defender uma volta a metafísica,
para a partir deste ponto, poder pensar e repensar acerca da política contemporânea, e
chegar a conclusões que possam resolver os problemas cotidianos.

Um filósofo proveniente do século XIX, em sua época considerado com um


pensamento “anômalo” para as contribuições metafísicas, tem um pensamento que em
muito vem a influenciar os julgamentos e as desconstruções filosóficas ao longo da
história, e por isso, tem papel de extrema importância para as ideias propostas por
Slavoj Žižek acerca de uma nova práxis para a política atual, as ideias estão contidas na
obra Crepúsculo dos Ídolos do proeminente filósofo Friedrich Nietzsche.

Nietzsche tende por quebrar a moralidade de sua época, e todo o cenário que se
desenrola na filosofia e na política, por mais que o filósofo alemão venha a criticar
ferozmente a corrente política que Žižek vem a defender atualmente, é de fundamental
importância destacar dois fatores, o primeiro no que se enquadra aos cotidianos distintos
vividos pelos dois pensadores, causando assim uma disparidade quase que extrema de
seus ideais, mas, ao mesmo tempo, que é imposta uma barreira pela distinção de seus
tempos e ideias, ambos os filósofos tendem a trabalhar para a quebra dos ditos “ídolos”,
como Nietzsche aborda em sua introdução ao Crepúsculo dos Ídolos, “há mais ídolos do
que realidades no mundo.” Nietzsche vem a tratar dos simulacros criados em cima de
personagens históricos, Žižek traz os eventos políticos e os questiona, como há de ser
possível que os eventos políticos funcionem sem uma conjuntura teórica? Sem um
embasamento? Os ídolos que Žižek vem a questionar, estão justamente impostos nos
atos políticos que ao longo do tempo foram perdendo todo seu sentido, e em suma
apenas o ímpeto é mantido, segundo o raciocínio do filósofo, as mudanças não hão de
decorrer do uso do ato político pelo ato político.
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Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos
tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é
o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e
cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente –
somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido,
não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de
pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo
teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo
que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização
social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós
precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem. (A tinta
vermelha: discurso de Slavoj Žižek aos manifestantes do movimento Occupy
Wall Street. Blog da Boitempo, 11 de agosto de 2011. Disponível em:<
http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-
eslavo-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/>.Acesso
em: 17 de mar.2014.)

O excerto acima foi retirado do discurso de Slavoj Žižek no movimento que


ficou conhecido como Occupy Wall Street, o movimento teve seu inicio no mês de
setembro do ano de 2011, na cidade de Nova York, e tem como mecanismo a ocupação
de Wall Street, onde as pessoas possam se reunir e formar comitês gerais onde possam
tomar decisões em conjunto, o movimento prega o funcionamento de uma sociedade
onde o controle não seja exercido pelo dinheiro, e teve seu início contemporâneo a
Primavera Árabe, e por muitas vezes o Occupy Wall Street, usou das mesmas táticas
para a manutenção de seus protestos, principalmente no que tange ao forte uso para
divulgação das redes sociais.

Žižek proferiu um brilhante discurso para os manifestantes, um discurso que por


muitas vezes não seria considerado como um discurso de um filósofo, pelo forte
carregar da consciência individual, a questão não se trata apenas de levar em conta a
parte coletiva do Occupy Wall Street, mas, de mostrar que o indivíduo tem que levar em
conta todos os seus desejos, todas as suas ações, e com isso, não ficar apenas satisfeito
por ter de certa forma “ajudado” e ao mesmo tempo contribuído para a manutenção do
sistema financeiro, mas, elevar suas ações para a quebra desse sistema financeiro que a
todo instante prejudica e submete o homem. Na década de 2010, eclodiram incontáveis
movimentos contra diversos sistemas políticos e econômicos em vigor ao redor do
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planeta, inclusive, no Brasil, com as manifestações que marcaram o mês de Junho, e um


fato notável dessas manifestações, com toda certeza é a pluralidade dos movimentos, e
essa pluralidade que tanto chama a atenção da Filosofia, e a pergunta a se fazer é: Como
reivindicar as mesmas mudanças com pessoas de ideologias diferentes? Esse é um dos
questionamentos mais comuns quando se indaga a partir da práxis política
contemporânea.

Nos dias atuais, fica claro que ainda é possível vislumbrar a dificuldade de
separação entre política e moral, a mesma dificuldade de Aristóteles de Estagira, mas,
ao mesmo tempo, pode-se encontrar em um jogo de essências e valores, todo o limiar de
desejo do ser humano, que ao longo da história, vem sendo determinado com base em
um fator, a sobrevivência, as relações entre a política e a moralidade, tem por base a
busca e manutenção da sobrevivência.

Para concluir o pensamento mais recente de Žižek acerca da prática política, é


de fundamental importância retomar o seu discurso no movimento Occupy Wall Street

Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o impossível são


dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal e da
tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais possível
(ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é impossível”, podemos ter sexo
em suas mais perversas variações; arquivos inteiros de músicas, filmes e
seriados de TV estão disponíveis para download; a viagem espacial está à
venda para quem tiver dinheiro; podemos melhorar nossas habilidades físicas
e psíquicas por meio de intervenções no genoma, e até mesmo realizar o
sonho tecnognóstico de atingir a imortalidade transformando nossa
identidade em um programa de computador. (A tinta vermelha: discurso de
Slavoj Žižek aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street. Blog da
Boitempo, 11 de agosto de 2011. Disponível em:<
http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-
eslavo-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/>.Acesso
em: 17 de mar.2014.)

O legado atual da fundamentação política de Slavoj Žižek, é exatamente a luta


pela consciência de que é possível mudar o sistema em que vivemos, mas, para essa
mudança ser efetuada, é necessária, uma grande conscientização política, primeiramente
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a fundamentação teórica, o entendimento do porquê, para posteriormente agir e buscar


por mudanças, a política necessita retomar sua lógica, e não apenas fundamentar ações
pelo simples ato de agir.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES, Constituição dos Atenienses. Introdução, tradução do original grego e


notas de Delfim Ferreira Leão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

A tinta vermelha: discurso de Slavoj Žižek aos manifestantes do movimento Occupy


Wall Street. Blog da Boitempo, 11 de agosto de 2011. Disponível em:<
http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-eslavo-zizek-
aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/>.Acesso em: 17 de mar.2014,
20:01.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua


Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história: uma introdução geral à filosofia
da história. Edições 70, 1995.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos


históricos. Rio de Janeiro: Contraponto e Ed PUC-Rio, 2006.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich , COGGIOLA, Osvaldo. Manifesto comunista.


Boitempo Editorial, 1998.

MARX, Karl. O capital [1867]. São Paulo: EDIPRO, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Editora Record, 2006.
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De 22 a 25 de abril de 2014 – UFPE

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo.


trad. de Paulo César de Souza.São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SAFATLE, Vladimir Posfácio: a política do Real de Slavoj Zizek. Bem-vindo ao


deserto do Real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo:
Boitempo, 2003.

Slavoj Žižek: “Estou cansado das análises culturais e políticas” Jornal do Commercio,
Recife, 15 de março de 2013. Disponível em: <
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2013/03/15/slavoj-zizek-
estou-cansado-das-analises-culturais-e-politicas-76499.php>.Acesso em: 16 de mar.
2014, 01:15.

ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

ZIZEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos . Hegel com Lacan. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1991.
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ENTRE EXPERIÊNCIA DE REPRESSÃO E EXPECTATIVA DE LIBERDADE:


TEMPO HISTÓRICO E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA NO PROCESSO DE
REDEMOCRATIZAÇÃO (1976-1985)

Robson Arruda de Araújo


Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sertão Pernambucano
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História/UFPB
E-mail: robson_cainita@hotmail.com

RESUMO:
O historiador José do Amaral Lapa se notabilizou por ter uma produção historiográfica
capaz de problematizar as complexas relações entre tempo histórico e historiografia,
sobretudo nos últimos anos da ditadura militar, em que escreveu as obras: A história em
questão: Historiografia brasileira contemporânea (1976) e História e Historiografia:
Brasil pós-1964 (1985). Esse artigo objetiva a compreensão do tempo histórico
(Reinhart Koselleck) no período final do Regime Militar, tal como, a partir das obras de
José do Amaral Lapa, perceber em que sentido a historiografia brasileira se inseriu nas
variadas discussões que atravessaram aquele momento.
PALAVRAS CHAVES: Tempo Histórico – Historiografia – Redemocratização.

Meados da década de 1970. O Brasil, ainda sob o regime político que se iniciou em
1964, vivenciava um processo lento e gradual de abertura política, desenvolvido a partir
governo Geisel, cuja perspectiva se constituiu segundo a teoria da distensão, o que significou
que o governo militar estava empreendendo um projeto de liberalização política a partir de
estruturas mais permanentes e flexíveis, assegurando, com isso, o afrouxamento da tensão
sociopolítica (ALVES, 2008). Para o governo militar a distensão da sociedade seria obtida
em estágios bem planejados, que se iniciaria com a suspensão da censura prévia, passaria por
reformas eleitorais e chegaria à revogação de medidas coercivas mais explicitas. Nesse, a
teoria da distensão significou uma última busca de legitimação do Estado, que desde o golpe
de 1964 tinha se caracterizado a partir dos usos de mecanismos de repressão política, ou seja,
a política de distensão “tratava-se de um programa de medidas de liberalização
cuidadosamente controladas definido no contexto do slogan oficial ‘continuidade sem
mobilidade’” (ALVES, 2008, p. 224)
A segunda metade da década de 1970 não só se caracterizou pela mudança de
cálculo político por parte do regime então vigente, mas foi um momento no qual diversos
setores da sociedade civil começaram a se (re)organizar em torno da possibilidade de
redemocratização419. Alguns espaços de experiências políticas tornaram-se lugares

419
Esse momento também foi marcado, segundo Carlos Texeira da Silva (2007), por uma mudança na
política internacional norte-americana, já que o governo Carter (1986-1980) se caracterizou pelo discurso
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privilegiados de atuação da oposição, caso de organizações como a Ordem dos Advogados do


Brasil (OAB), da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB)420, o que demonstrava que setores da sociedade civil, que possuíam
significativa representação na sociedade civil, começaram a situar-se no campo da oposição
ao Estado de Segurança Nacional. Segundo Alves:

O silêncio então imposto à sociedade foi lentamente rompido, passando a


imprensa a publicar debates sobre questões econômicas e denunciar casos de
abuso de poder, corrupção ou violência de Estado. Rompido o silêncio, a
sociedade civil respondeu, e os cidadãos começaram a recorrer ao novo foro
público para manifestar seu apoio contra a brutalidade governamental
(ALVES, 2008, p. 270)

O que estava em jogo naquele momento era a construção de novos horizontes de


expectativas421, o futuro abria-se como possibilidade de mudança, do Estado à setores da
oposição, a percepção de que o espaço de experiência inaugurado em 1964 estava se
esgotando era cada vez mais evidente. Alguns sintomas apontam para essa relação
inversamente proporcional entre espaço de experiência e horizonte de expectativa422 na
segunda metade da década de 1970. Um desses sintomas pode ser percebido a partir da noção
democracia forte, que, segundo Alves, fora o paradigma que regeu a posição dos militares em
torno do tema da liberalização política, pois “os parâmetros da ‘democracia forte’ eram
definidos de modo a limitar a participação de setores da população até então excluídos e
permitir que o Estado determine qual é a oposição aceitável e qual é intolerável” (ALVES,
2008, p. 273). Dessa maneira, ao distinguir a oposição aceitável da intolerável, os militares
pareciam querer definir quem poderia ou não se constituir como agente político no processo
de abertura. Caso do governo Figueiredo que, preocupado em delimitar o campo da oposição,
situou os movimentos camponeses e operários como uma oposição inaceitável (ALVES,
2008).

de incentivo aos Direitos Humanos, de crítica aos regimes militares na América Latina, e de tentativa de
construção de uma imagem mais democrática dos Estados Unidos da América no cenário internacional.
420
Além desses espaços de oposição ao regime militar, Maria Helena Moreira Alvez (2008) ressalta a
crescente oposição por parte dos empresários, que segundo a autora, não se sentiam mais representados
pelo regime militar (ao contrário chegavam a sentir-se ameaçados pela sistema de repressão), além da
eminente crise econômica ter afetado tais relações
421
Sobre as categorias espaço de experiência e horizonte de expectativa ver: KOSELLECK, Reinhart.
(2006, p. 305-328).
422
Para Reinhart Koselleck (2006), um dos fatores característicos da modernidade é a diferença entre
experiência e expectativa, havendo um crescente distanciamento entre um e o outro, pois na modernidade
“o espaço de experiência deixou de está limitado pelo horizonte de expectativa. Os limites de um e de
outro se separam” (KOSELLECK, 2006, p. 318). Esse ponto é fundamental para entendermos como o
horizonte de expectativa entre as décadas de 1970 e 1980 estava sendo elaborado diametralmente oposto
ao que se vivencia no espaço de experiência.
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Para Francisco Carlos Texeira da Silva (2007), o projeto de abertura empreendido


pelo governo militar, tendo como principal mentor intelectual Golbery de Couto e Silva,
visava a formação de um Estado de Direito e não, necessariamente, um processo de
democratização ampla e irrestrita. Segundo Maria Helena Alves (2008), a busca de equilíbrio
entre repressão seletiva e mecanismo de representação deve ser entendida como uma busca de
legitimação do regime, algo que foi a grande preocupação de Geisel e Figueiredo, uma
continuação da política de distensão continuada “cujos limites era a Doutrina da Segurança
Nacional” (2008, p. 389).
A disputa política em torno de horizontes de expectativas diversas parece ser a tônica
desse período, o crescente esvaziamento de representatividade do regime militar, somada a
eminente crise econômica, favoreceram a irrupção de projetos de redemocratização
alternativos. Os eventos políticos do final da década de 1970 podem ser entendidos dentro
desse contexto, desde as vitórias eleitorais da oposição às greves do ABC paulista423, o que
está em disputa é a forma como deveria ser processada a abertura política e qual o perfil de
redemocratização a ser implementada424.
Nesse sentido, o tempo histórico425 que atravessava o Brasil em meados da década de
1970 era marcado por uma relação tensa entre espaço de experiência e horizonte de
expectativa já que o processo de esgotamento da experiência política do regime militar
inaugurada em 1964 se relacionava com a construção de perspectivas alternativas de futuro.
Essa tensão pode ser verificada na produção historiográfica daquele momento, ou seja,
em como os historiadores daquele período, situados entre um espaço de experiência de crise e
um horizonte de expectativa cujos traços eram marcados pela possibilidade de construção de

423
Thomas Skidmore (1988) e Maria Helena Moreira Alves (2008) apontam para importância da
formação de novos eixos de oposição ao regime militar em fins da década de 1970. Para o historiador
norte-americano as greves operárias podem ser entendidas como elemento agregador de um conjunto
significativo da sociedade civil, a classe operária, que ganharam notável visibilidade. Já Maria Helena
Moreira Alves, percebe que as sucessivas vitórias eleitorais do MDB elevaram esse partido ao status de
uma oposição legitima no final do sistema eleitoral bipartidarista implantado pelo regime militar,
agregando um conjunto heterogêneo de setores de oposição.
424
Narrando os desafios dos trabalhadores no processo de abertura política, Thomas Skidmore percebe
que para os estrategistas tanto de Geisel como de Figueiredo “A abertura só poderia ser bem sucedida se
os trabalhadores fossem mantidos sob controle” (SKIDMORE, 1988, p. 435). Isso nos mostra o como o
horizonte de expectativa estava voltado para o modelo político a ser implantado no pós-regime militar, e o
calculo político do presente alinhava-se com uma projeção do futuro.
425
O que entendemos por tempo histórico é o resultado daquilo que Reinhart Koselleck (2006) percebe
como futuro passado, ou seja, como em um determinado tempo presente “a dimensão temporal do
passado entra em relação de reciprocidade com a dimensão temporal do futuro” (KOSELLECK, 2006, p.
15).
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uma sociedade democrática, podem ser entendidos como testemunhas privilegiadas de um


momento onde a análise do passado estava alinhada à um projeto social de futuro426.
Para entendermos os efeitos dessa tensão tomaremos como exemplar as obras A
história em questão: Historiografia brasileira contemporânea (1976) e História e
Historiografia: Brasil pós-1964 (1985), ambas escritas por José Roberto do Amaral Lapa.
Tais obras são fundamentais para a compreensão do período que se estende entre 1976 e
1985, já que ao avaliar a produção historiográfica das décadas de 1960 a 1980, Lapa acaba
por discutir como os historiadores desse período, na própria prática de escrita da história, se
situaram frente ao tempo histórico que estavam imersos.
Além desse diagnóstico, os dois livros supracitados nos mostram como o espaço da
produção historiográfica se situou no processo de abertura política, pois a prática de análise
do passado histórico por parte dos historiadores e o espaço de experiência experimentado por
eles estavam sendo elaborados com os olhos voltados para o futuro, no caso do primeiro livro
o horizonte de expectativa fora construído a partir da ideia de que o futuro dos historiadores
deveria cumprir a função de superar a crise presente, já o segundo, a expectativa deveria ser
direcionada ao empreendimento de formatação de uma sociedade ajustada à uma perspectiva
democrática.
A história em questão a ser contada por Lapa em 1976 é a história da crise da
historiografia brasileira. O autor nessa obra se propõe a analisar o espaço de experiência dos
historiadores definido como um espaço de experiência de crise. O perfil dessa crise, segundo
Lapa, não se encerra à defasagem conceitual e terminológica, mas se estende a várias outras
experiências, como a “desinstitucionalização do ensino de História, em todos os níveis, vem
agora acentuar ainda mais essa conjuntura desfavorável, despojando a nossa ciência de uma
motivação que a conduzira ao ponto que atingiu” (1976, p. 9).
Lapa parece alinhar a crise da produção historiográfica à uma crise da própria
experiência histórica, entendendo que a situação em que se encontra uma dada historiografia é
reveladora da sociedade sobre a qual se debruça, nesse sentido, narrar a crise da historiografia
brasileira contemporânea seria ao mesmo tempo evidenciar a crise do Brasil no tempo
presente. Esse alinhamento entre história e historiografia fica explicito na primeira epigrafe do
livro, que abre o capítulo Historiografia brasileira contemporânea, dizendo:

426
Sobre de história como conhecimento situado entre análise do passado e um projeto social, ver:
FONTANA, Josep. História: Análise do passado e projeto social, 1998.
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É evidentemente, bastante claro que para compreender uma sociedade que


movimenta lentamente, presa por séculos num ciclo de pobreza e tradição e
moléstias, e ignorância, temos de estudar o terreno histórico e os
mecanismos históricos persistentes de sua terrível limitação pela sua própria
história. A explicitação desse ciclo, e da mecânica de cada uma de suas
fases, exige uma análise histórica profunda. (MILLS, C. Wright. Apud.
LAPA, 1976, p. 13)

O alinhamento entre o conhecimento histórico e a realidade histórica deve ser


estreitado dentro da prática compreendida por historiografia, ou seja “a análise crítica desse
processo de produção do conhecimento histórico e desse conhecimento enquanto
conhecimento, isto é, um conhecimento científico que se perfila pelos métodos, técnicas e leis
da ciência histórica” (LAPA, 1976, p. 15). Dessa maneira, a historiografia é entendida, pelo
referido autor, como um dos melhores sintomas do grau de amadurecimento ou não da ciência
histórica e da experiência histórica que a sustentou.
Se o espaço de experiência é marcado por uma crise na história e na historiografia do
Brasil, o horizonte de expectativa é o de sua superação. A questão da contribuição que os
historiadores podem dar na resolução da propalada crise, devido ao grau de envolvimento
demonstrado por Lapa entre a história como conhecimento histórico e história como realidade
histórica, fica explicita no momento em que o autor discutiu a dialética do
subdesenvolvimento na história do Brasil. Nesse capítulo, é mostrado como a questão do
subdesenvolvimento foi uma preocupação dos historiadores daquele momento, que a partir de
1961 foi colocada em pauta a partir de uma reunião a âmbito nacional, realizada na Faculdade
de Filosofia de Marília, cujo tema era História e Desenvolvimento. Para José Roberto do
Amaral Lapa, as reflexões e os debates realizados em Marília,

Confirmam a evidência do divórcio que existe no Brasil entre os


estudiosos de história e a atual problemática do Desenvolvimento, isto
é, a impressão que geralmente se tem é a de que o historiador nada
pode oferecer da sua experiência cientifica acumulada, nada tem a
dizer, em nada pode contribuir na comunhão com os demais cientistas
sociais. (LAPA, 1976, p. 171)

Lapa forja uma dura crítica tanto à produção historiográfica quanto ao sistema de ensino
e, mais especificamente, o ensino de história, afirmando que pouco tem contribuído para a
conscientização do problema do subdesenvolvimento, pois a História é ela própria marcada
pelo subdesenvolvimento, caracterizado como “livresca e academicamente formados,
envoltos em erudição, engolfados pela massa factual, sem o embasamento teórico
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indispensável, perdem-se os professores numa História tipicamente subdesenvolvida” (LAPA,


1976, p. 171).
Para o autor, essas limitações devem-se aos próprios historiadores, que tímidos ou mal
informados, sem maiores preocupações com seu preparo teórico “presos ao passado mais
remoto, às descrições e enumerações cronológicas, mais fáceis de serem expostas, sem o risco
do passado ainda vivo ou do presente” (LAPA, 1976, p,172), não se mobilizam para tratar a
história como um conhecimento comprometido com a realidade histórica e a superação de
suas mazelas.
A questão do subdesenvolvimento parece ser exemplar de como na crítica ao espaço de
experiência, entendida como experiência de crise427, Lapa compõe um horizonte de
expectativa de superação. Tanto na análise dos fatos históricos, como na releitura
historiográfica sobre a temática, o autor parece apontar que para ser realizada a superação da
crise que vivenciam a história e os historiadores, é necessário a crítica apontar os vínculos
entre presente e passado, entre conhecimento e realidade, entre pesquisa e ensino, entre
história e historiografia. Dessa maneira, se a crise vivenciada é marcada pela separação entre
teoria e prática, a solução apontada deve ser seu oposto, deve relacionar-se à um
conhecimento histórico entendido como práxis.
Na segunda obra citada, História e Historiografia: Brasil pós-1964, Amaral Lapa
parece abordar a temporalidade histórica de outra forma, se em A História em Questão a
análise historiográfica deve estar voltada para a crítica da crise, em História e Historiografia
deve perceber os elementos constituintes de sua superação. A primeira fala em um momento
de início de abertura política, a segunda do fim desse ciclo.
Assim como o espaço de experiência, o horizonte de expectativa é deslocado. Em 1985,
Lapa parece sentir-se mais à vontade para falar do regime que estava em processo de
esvaziamento, mesmo falando em termos de precaução que deve marcar “nossas passadas”,
mas assumindo que tal cuidado não corresponde à natureza daquela que “tivemos que ter ao
longo dessa caminhada de 20 anos, no espaço que nos é reservado ou no qual combatemos,
nós historiadores” (1985, p. 7). Nesse momento, o autor fala do período da Ditadura Militar

427
A relação entre crítica e crise que tentamos estabelecer nesse trabalho deve inspiração ao livro Crítica
e Crise de Reinhart Koselleck (1999), no qual o autor tentar perceber a construção da consciência
histórica burguesa a partir da crítica que fora feito ao Absolutismo, e como essa crítica no espaço
intelectual do século XVIII contribuiu para a crise do antigo regime, tal como a constituição de um
arcabouço teórico capaz de garantir a constituição de uma consciência histórica burguesa dominante, mas
que no momento da escrita dessa tese (1959) se encontrava em crise, e era necessário revisitar as raízes
desse problema, ou seja, se fazia necessário uma avaliação crítica da crise que o mundo vivenciava no
pós-segunda guerra.
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como um perigo obscuro, por isso é necessário prudência, pois “perder de vista é o risco de
uma ‘meia-volta-vol-ver’” (1985, p.7).
O objeto dessa obra parece se confundir com o texto de 1976, já que a relação
entre história e historiografia é sua tônica principal, mas diferenciam-se em um ponto
fundamental, em A História em questão os vínculos entre a crítica à escrita da história e a
crítica à realidade histórica era algo que não era feito de forma explicita, literal, mas a análise
historiográfica era usada como recurso de entendimento da realidade social, ou seja, o objeto
de análise privilegiado da obra de 1976 é a historiografia brasileira contemporânea à época.
Em 1985, a questão era outra, o texto que Amaral Lapa escreveu foi encomendado pela
editora Paz e Terra com a finalidade de compreensão do Brasil pós-1964 a partir da relação
entre história e historiografia, projeto que se estendeu não apenas à história, mas a outras
áreas das Ciências Sociais, como Economia, Sociologia e Antropologia428.
Dessa maneira, a obra História e Historiografia: Brasil pós-1964, opera numa outra
estrutura temporal, não apenas fala da relação direta entre história e historiografia, mas trata
abertamente da relação entre a comunidade dos historiadores, sua produção e até que ponto
foi afetado pelo regime político que se instaurou no Brasil entre os anos de 1964 e 1984. A
primeira obra trata de um presente a ser superado e de um futuro ainda desconhecido, a
segunda situa-se nesse futuro, tratando o passado (o pós-1964) como algo que já se encontra
em processo de superação. O primeiro livro trata do presente ligado ao passado e com uma
certa distância do futuro, o segundo trata o presente ligado ao futuro e com a necessidade de
distanciar-se do passado. Se em 1976, Lapa problematizou a historiografia contemporânea,
para na crítica encontrar elementos capazes de romper com o presente, em 1985, o mesmo
autor, analisa o passado como elemento capaz de reforçar no presente o rompimento com o
passado imediato, além de reestabelecer um novo vínculo com o futuro “em outras palavras, o
objetivo privilegiado de análise deste livro é a evolução dos estudos históricos,
particularmente sobre o Brasil, gravitados pela Universidade e, portanto, praticados por
historiadores que nela se profissionalizaram” (1985, p. 8).
Deste modo, a narrativa que Lapa faz do movimento de implantação da Ditadura
Militar, parece-nos revelador do tempo histórico que possibilitou a emergência dessa obra.
Num tom de denúncia, o autor entende que é necessário à análise crítica do desempenho
cientifico e social dos historiadores nos vinte anos que separam à escrita de História e

428
Essas informações o Lapa oferece na Introdução de História e Historiografia: Brasil pós-64 (p, 7-9).
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Historiadores à emergência do Regime Militar, percebendo uma indissociabilidade entre a


produção nesse período e a projeção do movimento político-militar de 1964.
Se o golpe se caracterizou segundo modelo clássico “articulando internamente no bojo
da conspiração político-militar, com certo e aparente apoio de massa, com financiamento e
colaboração de grupos empresariais, seguindo a tomada repentina e ilegal do poder” (LAPA,
1985, p. 12), após o golpe “o movimento desdobra-se com a incorporação de setores
tecnocráticos, convocados, sobretudo, nos quadros das Universidades para viabilizar um
projeto econômico, uma vez que o político mostrava-se amarrado com a aliança político-
militar-empresarial” (LAPA, 1985, p. 13).
O período que se segue a 1964 é caracterizado como complexo e contraditório, como
exemplo pode-se citar a relação entre governo militar e produção historiográfica, pois, apesar
de ter empreendido fortes investidas, o regime e “sua produção ideológica não foi capaz de
marcar o conhecimento histórico” (LAPA, 1985, p. 23). A estratégia era outra, se desenvolveu
na criação de novos órgãos e na mobilização das agências ligadas ao Ministério da Educação
e Cultura, “que então traça a política cultural a ser seguida” (LAPA, 1985, p. 24).
Um espaço privilegiado de produção ideológica do regime que emergiu em 1964 foi a
Escola Superior de Guerra, cuja Doutrina da Segurança Nacional empreendeu as principais
matrizes ideológicas a ser veiculadas na sociedade, sobretudo através de uma nova política
educacional, marcada por categorias como Nação e Estado. Para Amaral Lapa: “Está,
portanto, nessa proposta uma certa concepção de história, cujos mecanismos são: Auscultar as
“aspirações nacionais”, para apurar o caráter nacional brasileiro, atingindo uma prática
política que responda a esses valores específicos.” (LAPA, 1985, p. 26).
A concepção de história da Doutrina de Segurança Nacional se constitui na
análise de elementos de natureza psicossocial que atuam sobre o poder nacional, tais como:
população, estrutura social, opinião pública, moral nacional, etc. A história se resumiria,
segundo nos conta em tom crítico Lapa, na reprodução das relações do homem com a
natureza “onde se relativizam quer o arbítrio humano quer o determinismo geográfico."
(LAPA, 1985, p. 28).

No mais, tenta-se recuperar a avelhantada forma de considerar a história


como uma multiplicadora de ‘lições’, que se transmitem através de ‘fatores
culminantes’, do comportamento dos grandes estadistas, das crises políticas,
dos momentos decisivos que ensinam e condicionam o povo e o governo de
uma nação. (LAPA, 1985, p. 28).
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Portanto, a estratégia da ideologia de segurança nacional não necessariamente é de


reprimir a produção de uma história que não atendesse a seus critérios, mas de criar um
espaço intelectual alternativo, capaz de engendrar uma cultura política calcada na mentalidade
que correspondesse aos anseios ideológicos da Doutrina de Segurança Nacional, ou seja, a
cultura histórica sendo organizado por outros atores, fora do âmbito dos historiadores
profissionais. Segundo Lapa, não ouve interferência direta à área especifica de história, o
tratamento foi o da indiferença429. O resultado foi a estagnação de alguns temas políticos e
sociais, que apesar de existirem algumas iniciativas inovadoras, e grandes obras publicadas
nesse período, a história acaba mergulhada no marasmo, mas “a noite não desceu totalmente
sobre todos” (LAPA, 1985, p. 32), pois houve continuo combate intelectual daqueles que
continuaram no país, usando “táticas de camuflagens”, para poder alcançar seus objetivos
cientifico.
Entre o marasmo de alguns e o combate de outros, entre a repressão política e a
estratégia de indiferença, José do Amaral Lapa percebe que o que reinou foi o fato dos
interlocutores se ignorarem, pois se o governo deixa de perseguir os historiadores, estes
acabaram por não tratar o movimento de 1964 como objeto de estudo.
Para José Jobson Arruda e José Manuel Tengarrinha (1999), as condições impostas pelo
regime militar no Brasil, fizeram com que os temas preferenciais sofressem um
redirecionamento, em favor de um debate “centrado nas chamadas questões nacionais: o
capitalismo, a sociedade escravista, a industrialização, a burguesia, o desenvolvimento, os
modos de produção, em busca de uma racionalidade conscientizadora e redentora, ao mesmo
tempo.” (ARRUDA & TENGARRINHA, 1999, p. 58). Segundo os autores, a elaboração de
uma história demográfica, econômica e a proliferação dos métodos quantitativos se deu
devido ao momento no qual se inseria os historiadores naquele momento, pois “batida pela
repressão, a comunidade dos historiadores refugia-se nos números, aparentemente inofensivos
para o regime, mas que traduziam a profundeza da exploração econômica realizada no

429
Lapa admite que houve interferência e certo controle intelectual, já que após a tomada de poder “o
governo fez abater sobre a Universidade, através de pressões e repressões de diferente ordem, todo um
processo castrador de pensamento, tendo à área de história, entre outras, sido vítima de IMPs, de triagens
ideológicas, de cassações e aposentadorias compulsórias, de prisões e intimidações” (LAPA, 1985, p.30).
Um exemplo de como os historiadores em algumas faculdades foram perseguidos pelo regime militar no
processo de sua implantação em 1964, pode ser encontrado no texto O lado escuro da força: a ditadura
militar e o curso de história da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi/UB),
de Marieta de Moraes Ferreira (2013), no qual a autora analisa como a FNFi/UB fora abalado pelo golpe
de 1964, além de narrar a experiência de perseguição sofrida por historiadores como Maria Yeda Linhas
devido a sua orientação política.
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período colonial, uma forma nebulosa de se discutir o imperialismo” (ARRUDA &


TENGARRINHA, 1999, p. 58)
De qualquer forma, para além da repressão política e/ou indiferença, entre os anos 1960
e 1970 a historiografia brasileira inicia um processo de organização do colégio de
historiadores, que segundo Lapa (1985), pode ser visualizado desde à organizações de
eventos, simpósios e encontros específicos da área, passando pela estruturação da Associação
Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH), chegando à uma primeira
etapa de interiorização do ensino superior, além da crescente institucionalização nacional da
política de Pós-Graduação.

Se os anos 60 marcaram a montagem de uma infra-estrutura organizatória,


que inclusive viria contribuir para viabilizar a institucionalização geral que
se seguiria, (...) pode-se afirmar que os anos 70 vão assinalar, como em
nenhum outro momento de sua história, um esforço sistemático e
centralizado de envergadura, na produção e reprodução do conhecimento
histórico, o que aliás acompanhou o sucedido em outras áreas. (LAPA, 1985,
p. 37)

Parece consenso430, pelo menos entre as análises da historiografia brasileira, a


percepção que a partir da década de 1970, com o advento das pós-graduações, a produção
historiográfica brasileira vivenciou um momento de intensa dinamização, que se estende
desde à construção de novas abordagens, metodologias e objetos à incorporação de uma
multiplicidade de referências teóricas à prática da pesquisa histórica no país.
No período que se estende entre as décadas de 1970 e 1980 verifica-se uma crescente
profissionalização da história e da difusão entre as Universidades. Também para Carlos Fico e
Ronald Polito (1996), a difusão das pós-graduações em História foi essencial nesse processo
de profissionalização da área de história e de sua respectiva difusão.
Os referidos autores fazem algumas observações importantes. Em primeiro lugar os
cursos de pós-graduação em História do Brasil foram pensados levando em consideração
modelos estrangeiros, o que ocasionou um descompasso entre a produção francesa e a leitura
brasileira. Em segundo lugar, é notável a presença maciça do marxismo entre os historiadores,
mas que se caracterizou mais em termos de ambiente acadêmico do que em elaboração
conceitual, sendo o contexto político, afetado pela Ditadura Militar, um fator relevante para a
constituição desse ambiente acadêmico marcadamente marxista. Além desses dois fatores,

430
Em todos os estudos que pesquisamos acerca da historiografia brasileira entre os anos 1970 e 1980 os
autores ressaltam a importância da expansão das pós-graduações para a dinamização da historiografia
brasileira nesse período.
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Fico e Polito assinalam a importância da presença dos ditos brasilianista431 naquele momento.
Em resumo, o ambiente acadêmico entre os anos 1970 e 1980 se caracterizou pelo predomínio
marxista, pela opção teórico-metodológica francesa e pela presença norte-americana (FICO &
POLITO, 1996).
Margareth Rago (1999) analisa as bases dessa nova demanda oferecida pela
historiografia brasileira a partir da segunda metade dos anos 1970, relacionando à expansão
dos estudos históricos ao ambiente social e político da época, mostrando que a situação era
paradoxal, pois ao mesmo tempo em que havia um ambiente de violência e repressão cultural
exercida pelo regime vigente, “esta década irrompeu trazendo uma grande expansão dos
estudos históricos, das pesquisas e publicações de livros, artigos e revistas, impulsionada pela
criação dos inúmeros cursos de pós-graduação no País, pelo próprio crescimento do mercado
editorial e, não menos, pela intensa pressão da resistência política organizada, forma e
informalmente.” (RAGO, 1999, p. 73)
Um outro elemento importante na construção do que a autora chama de “nova”
historiografia brasileira é a crescente participação de novos grupos sociais na vida pública,
caso das mulheres, dos jovens, negros e operários que trouxeram novas questões e
reinvindicações, pois:

As mulheres, principalmente, entraram agressivamente no mercado,


participando dos cursos nas universidades, nas escolas em outras
instituições, enquanto o movimento feminista levou grande número às praças
públicas, exigindo novos direitos sociais e sexuais; os negros colocaram suas
demandas na agenda pública, enquanto o movimento operário se
reorganizava nos grandes centros industriais e propunha a criação de um
importante partido político de massas. (RAGO, 1999, p. 74)

Em Questão social e historiografia no Brasil pós-1980: notas para um debate, Ângela


de Castro Gomes (2004) concorda com Margareth Rago (1999) no que diz respeito à
importância dos movimentos sociais na passagem da década de 1970 para 1980, ao perceber

431
Para Arruda e Tengarrinha (1999), a expressão brasilianista deve ser entendida como fruto de um
movimento específico da historiografia norte-americana sobre o Brasil, contando com a presença de
sociólogos, politólogos, antropólogos, economistas e literatos, algo importante a ser notado é que a
presença dessa historiografia norte-americana no Brasil cresce nos anos de exceção “atendendo, de um
lado, o renovado interesse norte-americano por nossa história recente, e, por outro, pelas restrições
impostas aos historiadores nativos o consequente facilitamento para os estrangeiros.” (ARRUDA &
TENGARRINHA, 1999, p.64) Para Astor Diehl, a partir de fins da década de 1970 “faz-se sentir uma
crítica aos estudos brasilianistas, promovida por uma nova geração de historiadores, sociólogos e
antropólogos, entre outros, que visualizavam nas pesquisas dos brasilianistas as vértebras de sustentação
das intenções político-econômicas e o perigo do então chamado ‘imperialismo cultural’” (DIEHL, 2004,
p. 19).
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que “a década de 1980, no Brasil, foi a da anistia (1979), a do desenvolvimento dos


movimentos sociais e uma luta rigorosa pelo fim do regime militar” (GOMES, 2004, p. 159),
observa que os estudos históricos, em especial a área da história social do trabalho, sofreram
alterações decisivas nas pesquisas sobre os séculos XIX e XX, entendendo-os como períodos
estratégicos “pois corresponde ao enfrentamento de graves e abrangentes questões” (GOMES,
2004, p. 158). Essas reorientações também estão articuladas à intensa transformação teórico-
metodológica da historiografia internacional432.
Assim como Margareth Rago (1999), Ângela de Castro Gomes (2004) assinala que
como consequência desse contexto político o interesse pelo tema dos movimentos sociais e
urbanos, pouco a pouco é retomada a questão social, com abordagens que ressaltam variáveis
políticas e culturais, sendo agenciados outros temas, tais como: etnia, negociação e cultura
política. Astor Diehl (2004) também afirma que os aspectos sociais passam a predominar na
década de 1980, substituindo pouco a pouco o econômico e o político 433, pois esse “é o
momento de historiar os grupos minoritários, como o negro e sua cultura, a mulher e sua luta
pela igualdade de condições. São abertos os espaços, em outras palavras, para a história dos
eternos vencidos” (DIEHL, 2004, p. 20). Procurava-se, então, ressaltar a atualidade da ciência
histórica434a partir dos vínculos estabelecidos com os movimentos sociais.
Se a passagem dos anos 1970 aos anos 1980 foi marcada por uma crise que ia desde as
instituições politicas à forma como se produzia e difundia-se o conhecimento histórico no
país, a segunda metade da década de 1980 significou um momento de reabertura política e de

432
Ângela de Castro Gomes (2004) e Margareth Rago (1999) em seus respectivos artigos ressaltam a
importância da incorporação de novas perspectivas teórico-metodológicas, a partir da apropriação de
novas referências que contam com historiadores como E. P. Thompson e seu conceito de classe social que
se constituiu na crítica à “ultima instância do econômico” e Carlo Ginzburg, cujo paradigma indiciário
aproxima a história da antropologia, além de possibilitar os debates acerca da micro-história. Essas
aproximações se deram graças à um crescente interesse do mercado editorial que levou à publicações de
obras de autores como Roger Chartier, Michel Foucault, além dos referidos acima.
433
Fico e Políto (1996), entretanto, afirmam que apesar de haver uma demanda cada vez maior pelas
questões de ordem social, a história econômica e, sobretudo, a história política não deixaram de existir,
passando por poucas renovações, pois “muitos trabalhos de história política persistiram numa perspectiva
linear de análises de individualidades ou da corriqueira sucessão de episódios da ‘pequena política’”
(FICO & POLITO, 1996, p. 184).
434
Outro aspecto importante relacionado à questão da atualidade do conhecimento histórico, deve-se ao
crescente interesse pelo estudo da história contemporânea do Brasil que, segundo José Roberto do Amaral
Lapa, em 1976, já apontava para um crescimento no número de publicações e poderia ser considerado
como uma das tendências da historiografia brasileira, mesmo assim, segundo o levantamento que esse
historiador fez a partir das teses de doutoramento defendidas entre 1934 e 1973, apenas cerca de 15, 2%
referenciam-se ao período republicano (Ver Lapa, 1976, p. 39-42). Já em 1985, a partir de uma pesquisa
no Arquivo Nacional entre 1970 e 1979, Lapa percebe que 30% das pesquisas nesse arquivo eram
realizadas em torno do período republicano, segundo Lapa esse aumento se deu graças a necessidade de
“assumir posições no exame e na crítica dos fatos e personagens, ao enfrentar os desafios da compreensão
do presente e de sua interpretação através de um conhecimento elaborado” (LAPA, 1985, p. 74)
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florescer acadêmico e historiográfico. Segundo Carlos Fico e Ronald Polito (1996), esse
período foi marcado pela consolidação e ampliação dos cursos de Pós-Graduação,
aquecimento no mercado editorial especifico, multiplicação dos enfoques teóricos (sobretudo
com um maior contato com a historiografia francesa), crescimento e amadurecimento das
discussões metodológicas.
Do ponto de vista teórico-metodológico a historiografia brasileira entre as décadas de
1980 e 1990 foi afetada pela ascensão de novas perspectivas, objetos e abordagens. Da
história dos operários à escravidão, da história do Brasil Colônia à história do Brasil
República, das análises estruturais, quantitativas e marxistas à história das mentalidades, das
sensibilidades, do cotidiano e da abordagem micro-histórica. Esse período significou para a
historiografia brasileira, um momento de maior profissionalização do historiador, refletida nas
inúmeras associações e comunidades de pesquisa fundadas nesse período (FICO & POLITO,
1998).
A Cultura Historiográfica Brasileira nos anos 1980, para Astor Diehl (2004), foi
marcada por um processo de ruptura com o que se fez até então na prática da escrita da
história no Brasil. Segundo esse historiador, até a década de 1970 ocorreu o predomínio dos
relatos e interpretações lineares, cujos interesses principais estavam ligados às questões “do
Estado, da nação, das classes sociais, instituições políticas e dos grandes centros econômicos
(...) procurou-se ainda, por meio de sínteses estruturais, ensaiar críticas ao regime político-
militar, bem como à tradicional visão histórica que predominava naquele momento.” (DIEHL,
2004, p. 19).
Nos anos 1980 assistia-se à negação dos modelos totalizantes, incitava-se a
possibilidade de “se estudar a história do Brasil com base na realidade brasileira, numa
especificidade histórica que dificilmente se deixará submeter às leis históricas gerais do
desenvolvimento das sociedades” (DIEHL, 2004, p. 21).
A tônica dos estudos históricos desse momento está ligada a eminente problemática das
especificidades históricas do Brasil, cujos aspectos a serem ressaltados devem ser o da
singularidade dos eventos históricos, da multiplicidade de realidades a serem pesquisadas, e
da heterogeneidade das narrativas históricas possíveis. A cultura historiográfica brasileira na
passagem dos anos 1970 aos anos 1980 é atravessada pela problemática dos estudos regionais,
cujos efeitos se farão sentir nas linhas de pesquisa institucionalizadas pelo processo de
expansão das pós-graduações (FICO & POLITO, 1996). José Amaral Lapa (1985) diz que a
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partir de 1975 houve uma maior projeção da História Regional, e confirma a tendência das
pós-graduações voltarem-se mais para as regiões onde estão inseridas, já que:

Estamos ainda numa etapa em que se faz necessário e inadiável conhecer a


realidade local e regional, desde que naturalmente essa vocação não se
impermeabilize compartimentando a realidade numa atomização que nada
tenha a ver com a formação econômica e social brasileira como um todo.
(LAPA, 1985, p. 47)

Dessa maneira, o espaço de experiência vivenciado pela historiografia brasileira entre


as décadas de 1970 e 1980 situa-se entre a crítica ao regime político-militar e suas
consequências no universo intelectual e cultural vivenciado naquele momento, tal como a
constituição de outros elementos capazes de romper como aquele presente histórico
indesejado. A historiografia, ao iniciar um processo de mudança paradigmática, cujos
elementos como o de engajamento social dos historiadores, a função crítica da história e a
atualidade do conhecimento histórico, se constituem como algo indispensável ao mértier
historiográfico, além da importância concedida aos estudos regionais e às especificidades da
história do Brasil, traduz o horizonte de expectativa que estava sendo constituído naquele
período.

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EDUSC, 2005.

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KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos.


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SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo (1964-1985). Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1988.
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JOSUÉ DE CASTRO E O SABER GEOGRÁFICO: MOVIMENTOS E


POSSIBILIDADES

Wagner Carlos da Silva


Mestrando do PGH-UFRPE.
wagner_professor_@hotmail.com

RESUMO
Este presente estudo surgiu a partir da inquietação diante da leitura da obra o
Renascimento do acontecimento de François Dosse. Desse modo, buscaremos
privilegiar essa nova concepção de acontecimento proposta por Dosse e dialogar com o
nosso interesse de pesquisa. Este trabalho abordará Josué Apolônio de Castro (1908 -
1973) que se revelou um intelectual atuante e com uma produção literária expressiva. O
nosso principal objetivo é problematizar um acontecimento na vida de Josué de Castro
que implicou em mudanças no seu olhar e na sua postura como intelectual, através da
análise da sua relação com o saber geográfico instituído e de sua produção literária.

Palavras-chave: Acontecimento, Josué de Castro, Geografia.

1. INTRODUÇÃO

François Dosse (2013), intrigado pelo retorno de uma nova noção de


acontecimento, discute como em diferentes momentos, especialmente no século XX, os
campos do conhecimento pensaram o acontecimento, sobretudo nas ciências humanas.
Assim, problematiza o conceito de acontecimento com a intenção de entender como esta
noção pode ser útil à historiografia do século XXI.
Desde o surgimento da história dita cultural alguns preceitos do paradigma
dos Analles estão sendo ignorados e as suas noções estruturais estão sendo substituídas
por outras concepções. Nesse cenário atual da historiografia observamos o retorno do
interesse pelo acontecimento. Esse renascimento do acontecimento vem acompanhado
de uma mudança de abordagem onde agora é privilegiado as ideias de caos, mutação e
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rupturas. No entanto, o que está ocorrendo não é um simples regresso a concepção


limitada de acontecimento do historicismo do século XIX.
Entrecruzado em toda essa discussão está o desejo de Dosse de que os
historiadores vejam o acontecimento “como desfecho e abertura de possíveis” (2013, p.
6). Nesta perspectiva, sem nos esquecermos de relacionar sua singularidade com uma
estrutura mais ampla, pretendemos valorizar o acontecimento atento ao que ele produz
de novidades.
Essa nova noção de acontecimento que Dosse (2013) apresenta abre uma
possibilidade de investigação num universo complexo e ainda muito pouco explorado
pelos historiadores. Embora de difícil operacionalidade esse conceito pode ser bastante
útil na operação historiográfica. Desse modo, optamos em não continuar querendo nos
aproximar da compreensão da realidade social como se não existisse o acontecimento.
É sugerido por Dosse (2013) que os historiadores valorizem os
acontecimentos que permeiam seus objetos de estudo. Nesse sentido, consideramos que
este olhar possa: privilegiar as descontinuidades; enfatizar as relações e práticas;
destacar a relação da linguagem com o acontecimento e suas metamorfoses de sentidos;
e garantir ao historiador uma narrativa mais rica implicando numa persuasão.
Gilles Deleuze (2003) nos ajuda a lidar com a prática historiográfica nos
alertando que não é fácil a busca pela verdade e que devemos ter cuidado para não
tomar a coisa pelo significado. Aprendemos, então, que não precisamos temer as zonas
obscuras. Temos que entender que na trajetória de uma pesquisa seremos violentados e
é necessário estarmos preparados para sairmos das amarras metodológicas e termos
flexibilidade. Assim, a partir do questionamento das nossas hipóteses iniciais ficaremos
diante de novas possibilidades de se narrar a história.
Para fugirmos das objetividades devemos ser críticos e não mergulhar
completamente em nenhum mar, tempo, espaço ou pressupostos. Giorgio Agamben
(2009) também nos auxilia a escapar das aparências e dos significados únicos.
Percebendo o escuro, vendo de forma diferente o objeto podemos “ler de modo inédito a
história” (AGAMBEN, 2009, p. 72). Assim, através de muita habilidade o pesquisador
não adere algo totalmente. Nesse sentido, o historiador percebendo as variações das
temporalidades pode interpretar os signos que lhe chegam.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014 – UFPE

Este texto tem como objetivo principal correlacionar essas leituras e pensar
sobre o interesse da nossa pesquisa de mestrado435. Desse modo, iremos discutir um
acontecimento relevante que colaborou na elaboração da representação de Josué
Apolônio de Castro sobre a cidade do Recife, por meio de uma postura reflexiva com o
documento. Assim, privilegiaremos essa nova noção de acontecimento proposta por
Dosse e conciliaremos com o modo de olhar sugerido por Deleuze, no qual
consideramos fundamental para se relacionar com as fontes.
No ano de 1933, ocorre um acontecimento importante, é inaugurada em
Pernambuco a Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, onde cabe a Josué
de Castro lecionar a disciplina de Geografia Humana436. Inclusive, ele participou
ativamente do processo de idealização dessa faculdade, aparecendo como um dos
fundadores em companhia de outros intelectuais, como: Olívio Montenegro, Nelson
Coutinho, Aníbal Bruno, Sílvio Rabelo, Ulisses Pernambucano437. Inspirados nas
universidades europeias, esses intelectuais desejavam uma instituição que se
relacionasse com o conhecimento de forma menos utilitarista e mais direcionada a
pesquisas sociais438.
No entanto, por que consideramos o ato de Josué de Castro ter que ensinar
Geografia numa Faculdade tão decisivo? Por qual motivo damos relevância a este
acontecimento quando tentamos analisar a representação do ambiente urbano do Recife
construída por Josué de Castro? Por que isto é fundamental para pensarmos uma
abertura de possibilidade? Veremos este acontecimento como imprescindível porque foi

435
Nossa pesquisa de dissertação é intitulada “Representações do ambiente urbano da cidade do Recife
em Josué de Castro”, desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura
Regional da UFRPE, sob a orientação da Profª Drª Fabiana de Fátima Bruce da Silva.
436
Em 22 de setembro de 1933, no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife é concebida a
Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife. (Diário da Tarde, Recife, 22/09/1933).

437
Numa entrevista Josué de Castro relembra: “Fundei, com vários companheiros, uma Faculdade de
Filosofia no Recife. Com 23 anos eu era o Diretor. Consegui ser professor da Faculdade [...] de Filosofia
(Geografia Humana)”. (Revista Manchete, Rio de Janeiro, abril, 1964).

438
Sobre a função das universidades, Josué de Castro desejava uma instituição que estimulasse o
pensamento científico e declarava que “Não nos faltam apenas técnicos, mas também elementos com
cultura teórica bem formada. Esses nos são ainda mais indispensáveis, porque fazer as cousas é muito
fácil - o difícil é fazê-las e compará-las com espírito rigorosamente científico. E esse espírito só se forma
com uma larga cultura viva, com o conhecimento direto dos fenômenos naturais, do campo sociológico –
pela investigação e comparação dos problemas sociais” (O Estado, Recife, 24/09/1933).
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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um momento na vida de Josué de Castro que possibilitou uma mudança, anos depois, na
forma que olharia a cidade do Recife.
Este acontecimento que para muitos pode aparecer como banal é apenas
aparentemente insignificante. Apesar de não remeter a um acontecido fora do padrão,
percebemos nele uma expansão de alternativa que consiste em transformações. Naquele
momento em que Josué de Castro se torna professor de Geografia Humana ele era um
jovem recém-formado em medicina, tinha montado sua própria clínica de nutrição e
lecionava a disciplina de Fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife. Nada indicava
que, anos mais tarde, seria um geógrafo de prestígio social e reconhecido pelos seus
pares439. Nesse sentido, consideramos fundamental esse momento na alteração da sua
trajetória como intelectual. Assim, destacamos que vemos o acontecimento como
sugeriu Deleuze, onde “o possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento”
(DELEUZE apud DOSSE, 2013, p. 12).

2. A CONSTRUÇÃO DO SABER GEOGRÁFICO BRASILEIRO: OS


ENCONTROS DE JOSUÉ DE CASTRO

Não pretendemos buscar o primeiro contato que Josué de Castro teve com a
ciência geográfica. No entanto, atribuímos importância a este encontro, porque vemos
nele uma abertura a uma descoberta da ciência geográfica, pois coube a ele lecionar
Geografia Humana durante dois anos de sua vida em um período histórico em que a
geografia nem ao menos tinha se firmado no Brasil e nem havia aparecido nas suas
produções. Aliás, como veremos mais adiante, é só em 1937 que o método geográfico
ocupa uma centralidade na sua obra. Também não queremos afirmar que este
acontecimento foi o único a alterar as possibilidades, acreditamos que houve vários
episódios ligados a este que se tocam e influenciaram o modo de ver e representar de
Josué de Castro.
A Geografia Científica na década de 1930 ainda não estava consolidada no
Brasil. Enquanto Josué de Castro começava a lecionar geografia nem ao menos existia
um curso institucionalizado de Geografia no país. Aliás, só em 1934 que seria
estabelecida a Universidade de São Paulo (USP), a primeira universidade no país. Nela

439
Empossado no cargo de professor de Geografia Humana na Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil em 14 de julho de 1948, por meio de sua tese intitulada Fatôres de Localização da
Cidade do Recife: Um ensaio de geografia urbana.
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seria introduzido o primeiro curso de Geografia do Brasil. Carvalho (2007) com seu
trabalho que se insere na linha da história do pensamento geográfico, diz que a ciência
geográfica até 1948 estava em fase de implantação e que só a partir dos anos 1950 que
ela se afirmará no cenário científico brasileiro.
Enquanto as universidades vão se firmando no Brasil no decorrer da década
de 1930 o governo federal funda o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). A intenção do governo é estimular as pesquisas geográficas com intenção de
obter informações acerca da realidade brasileira. Segundo Andrade (1999), desejosos de
um mapeamento do território nacional, a geografia foi impulsionada por alguns setores
nesse período. Era necessário, na ótica do governo, conhecer cientificamente os vários
ambientes naturais para o pleno desenvolvimento da nação.
As condições históricas para o surgimento dos saberes científicos no século
XIX é uma das preocupações do filósofo Michel de Foucault. Ele sugere que a
emergência dos saberes depende de elementos externos aos próprios saberes. A sua
análise das relações entre poder e saber é uma das contribuições que nos legou Foucault.
Segundo o filósofo, saber e poder operam dentro de um mesmo espaço, onde um
depende do outro para funcionar.
O fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não
há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também,
reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de
exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação do saber.
(FOUCAULT, 2012, p. 28).

A análise de Foucault desconstrói a ideia da neutralidade do saber. Isto não


significa que o saber está totalmente subordinado ao poder, aliás, para entendermos o
pensamento de Foucault não podemos vê o poder como algo negativo. O saber está
inserido numa relação onde há local para liberdade, embora isto não queira dizer que o
saber seja imparcial.
Paralelamente ao estabelecimento da Geografia no Brasil Josué de Castro
começa a se utilizar dessa ciência e até favorece sua consolidação no país. Nesse seu
pioneirismo vale considerar o diálogo estabelecido entre ele e a geografia e como ele se
transformou em geógrafo. Então, abordaremos três encontros que entrelaça o cientista
com o saber geográfico na sua época, procurando identificar o que era permitido para
ele.
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Ampliando as possibilidades vemos que a institucionalização da geografia


no Brasil promoveu encontros importantes para a transformação no modo de ser de
Josué de Castro. De início o curso de Geografia da USP necessitou, assim como outras
áreas do conhecimento, da vinda de intelectuais europeus, com finalidade de ministrar
aulas e fortalecer esse novo campo científico no país. Pierre Deffontaines e Pierre
Monbeig, geógrafos que vieram lecionar no Brasil e no país passaram anos,
estabeleceram uma relação com Josué de Castro e quem sabe o quanto eles foram
intercessores de Josué de Castro com a ciência geográfica. Sabemos que no decorrer da
produção geográfica de Josué de Castro estes geógrafos são referenciados
constantemente, como será visto mais adiante.
Esses dois geógrafos que vieram ao Brasil estão atrelados à Escola Francesa
de Geografia que era liderada por Vidal de La Blache. Essa Escola lança a ideia do
possibilismo que consiste em relacionar de forma não determinista a relação entre o
homem e o meio. Os preceitos desta geografia ganha notoriedade entre as ciências
sociais naquele período, sendo bastante utilizado até pelas primeiras gerações da Escola
dos Annales440. Assim, ocupando um lugar privilegiado nas universidades europeias, a
geografia obteve uma grande visibilidade, tornando-se em um interessante
acontecimento. Desse modo, não descartamos a ideia de Josué de Castro, como
cientista, ter escolhido o método geográfico a partir desse novo status destinado à
Geografia.
No entanto, simultaneamente ao êxito do saber geográfico, Josué de Castro
construía uma amizade com um geógrafo francês: Max Sorre. Esta relação deve ter sido
fundamental na produção científica dele. Vemos esses pontos de cruzamentos e
cooperação através de suas obras. Trabalhando a questão da alimentação, Sorre admite
que anda “seguindo o exemplo de Josué de Castro” (SORRE apud CARVALHO, 2007,
p. 32), e reconhece Josué de Castro como companheiro. Por sua vez, Josué de Castro
diz: “apresentamos os nossos agradecimentos pelas sugestões que nos fêz (Max Sorre)
acêrca da Geografia das Cidades e pela indicação de útil lista bibliográfica sôbre o
assunto” (CASTRO, 1954, p.11). Assim, Josué de Castro além de mostrar gratidão pela

440
Em Fernand Braudel percebemos a relação entre a história e a geografia em meados do século XX. Na
primeira parte do livro O Mediterrâneo, Vidal de La Blache é o autor mais citado. LIRA, Larissa Alves
de. Fernand Braudel e Vidal de La Blache: Geohistória e História da Geografia », Confins [Online],
2 | 2008, URL : http://confins.revues.org/2592 ; DOI : 10.4000/confins.2592
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colaboração do amigo, revela que a sua referência bibliográfica para estudar o ambiente
urbano foi influenciada pelo companheiro.
Não sabemos ao certo a intensidade e a repercussão desses encontros de
Josué de Castro com a ciência geográfica. Mas, consideramos que estes contatos não
estão desvinculados ao acontecimento da vida de Josué de Castro em 22 de setembro de
1933, pois não concebemos o acontecimento como isolado dos outros. Porém, não
entendemos que ocorra uma relação mecânica de sucessividade entre os
acontecimentos.
Entretanto, a adesão do método geográfico por parte de Josué de Castro,
talvez se deva a outro mediador, que não propriamente os geógrafos franceses. Nesse
sentido, o que nos parece aceitável é uma suposta influência pessoal na trajetória de
Josué de Castro. Imaginamos que Mário Lacerda de Melo (1913 – 2004) possa ter sido
seu inspirador e ajudou a Josué de Castro a trabalhar alguns temas a partir da utilização
do método geográfico. Em 1936, antes de Josué de Castro se definir como geógrafo, o
jovem Mário Lacerda de Melo publicou vários trabalhos sobre a geografia no Jornal
Diário de Pernambuco aparecendo como um dos pioneiros no assunto em Pernambuco.
Muito dificilmente Josué de Castro passou longe das escritas de Mário
Lacerda de Melo. Não podemos acreditar que Josué de Castro, leitor e colaborador do
Diário de Pernambuco, tenha desconhecido os textos de Mário Lacerda de Melo, no
qual Josué de Castro supostamente se interessava pelos assuntos discutidos por Mário
Lacerda de Melo.
Talvez ali começou a ser construído um outro modo de ver as coisas em
Josué de Castro que aos poucos e interligados a outros mediadores acaba por refletir na
sua escrita. Como nos mostra suas produções geográficas no decorrer da década de
1940, onde Mário Lacerda de Melo é sempre citado quando Josué de Castro disserta
sobre a questão dos mocambos do Recife.
Embora, aceitamos a ideia que as instituições fortalecem e propagam um
determinado saber, não desconsideramos os encontros íntimos e seus entrelaçamentos
com aspectos mais estruturais da sociedade.
Após esta breve discussão narrada acima sobre a situação do saber
geográfico no Brasil nos anos 1930 e 1940 e a relação com Josué de Castro, iremos,
agora, refletir acerca das práticas literárias de Josué de Castro, mas precisamente sua
produção científica na área da geografia.
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3. OS MOVIMENTOS DA ESCRITA: O USO DO MÉTODO


GEOGRÁFICO

Procurando entender como ele se constrói como geógrafo, apresentaremos


as suas primeiras publicações até chegarmos ao ano de 1948 com o estudo da tese que
ele submeteu para concurso à Cátedra de Geografia Humana da Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil, privilegiaremos essa obra porque através dela que
ele é reconhecido institucionalmente como geógrafo.
Observando a relação de Josué de Castro com o saber médico, percebemos
que o discurso da medicina não satisfazia por completo o seu espírito inquieto e
verificamos que ele demonstra insatisfação com o curso de medicina441. Inspirado em
Freud, ainda como estudante de medicina na década de 1920, se empolga pela
possibilidade de relacionar literatura com a medicina. Escreve, em 1925, A Literatura
Moderna e a Doutrina de Freud que foi publicada na Revista de Pernambuco. Assim,
consideramos que desde sua formação, Josué de Castro expressa uma vontade de
dialogar com outras áreas do conhecimento.
O interesse pelas questões sociais foi um dos motivos que levou Josué de
Castro a aderir o método geográfico. Entretanto, a atração pelos estudos acerca do
mundo social ocorreu antes dele escolher a geografia como seu observatório. Em 1932
ele realiza um inquérito a pedido do Departamento de Saúde Pública do Estado de
Pernambuco para avaliar as condições de vida de quinhentas famílias que residiam nos
bairros operários da cidade do Recife. Através dessa pesquisa demonstra interesse em
analisar não apenas o corpo humano, mas também a realidade social442. Para tal,

441
Certa vez ele relembra: “A princípio uma impressão de deslumbramento e de veneração por seus
velhos muros, pela austera fachada da sua escola. Depois de desencanto no que diz respeito aos ensino ali
ministrado. Aliás, não só a Faculdade da Bahia, mas depois a do Rio, também me desapontou por
completo. Entrei com um grande entusiasmo e saí com interesse quase morto pela maioria dos assuntos,
na forma em que eram apresentados. Poucos professores me entusiasmaram” (CASTRO, 2003, p. 17).

442
Sobre a sensação de descontentamento com o saber médico, vale destacar esse enunciado de Josué de
Castro acerca da experiência que teve nesse inquérito: “Sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-
los porque sou médico e não diretor daqui. A doença dessa gente é fome. Pediram que eu me demitisse.
Saí. Compreendi, então, que o problema era social” (CASTRO, 2003, p. 19).
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dialogou com a sociologia, talvez por não ter tido ainda um contato com a ciência
geográfica capaz de provocar mudanças na sua prática científica.
Continua trilhando sua forma interdisciplinar de produzir conhecimento e
poucos anos depois publica o livro Documentário do Nordeste. Salientamos que muito
deste livro foi desenvolvido enquanto Josué de Castro lecionava geografia na Faculdade
de Filosofia e Ciências Sociais de Recife. Vemos essa obra como um momento de
transição na escrita dele. O livro é formado por um conjunto de textos de caráter
literário, biológico e sociológico. Entretanto em alguns textos de tendência sociológica
percebemos um olhar direcionado as paisagens do Recife e um pouco de um olhar
geográfico.
Impresso e publicado em janeiro de 1937, na primeira edição de
Documentário do Nordeste, encontramos um texto interessante intitulado Revalorização
do Nordeste, onde Josué de Castro faz um estudo geográfico e acredita que esse
conhecimento pode fornecer à nação uma política mais eficiente. Percebemos um
esboço de trabalho geográfico e, ainda, um distanciamento das teorias geográficas, pois
não aparece nos autores citados nenhum geógrafo.
Na quarta edição desta obra este texto é retomado, mas agora com o título
de Os preconceitos de raça e de clima. Antes de chegar a qualquer hipótese Josué de
Castro faz uma longa discussão teórica, demonstrando familiaridade com diversas
correntes do pensamento geográfico. Um texto com uma cara mais científica, onde
diminui ou esconde o tom sentimental do escritor.
Na primeira edição ele pretende ressignificar a imagem do Nordeste,
afirmando que a região tem boas condições para o desenvolvimento e um povo forte.
Afirma que o problema do Nordeste são as políticas públicas e uma ingratidão do
governo federal. Exceto pela novidade de trazer a interpretação geográfica enrolada com
a sociológica, não percebemos nada demais no modo que ele vinha tratando seus temas
nos últimos anos.
No entanto, percebemos, na quarta edição, além de uma valorização do
Nordeste, uma intenção de derrubar algumas ideias relacionadas à raça e clima. A partir
das premissas da Escola Possibilista se propõe em estudar um problema não apenas
regional. Agora o seu foco é nas relações do homem com o meio ambiente. Nesse texto,
seu objetivo principal é desconstruir as noções deterministas de raça e de clima.
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Podemos observar nessas duas edições uma mudança não apenas na escrita,
mas também nas opiniões do autor. Sabemos que cada texto foi escrito no seu tempo e
está atrelado a uma configuração, mas sem o método geográfico Josué de Castro não
conseguiria se inserir com respaldo naquela discussão teórica. O que vale ressaltar é que
entre essas edições ocorreu a consolidação da ciência geográfica no Brasil e o
estabelecimento da imagem de geógrafo de Josué de Castro.
Aquele intelectual curioso pelas novas teorias geográficas aos poucos vai
consolidando uma nova postura científica. Em meados de 1937 é publicado o livro A
alimentação brasileira à luz da geografia humana que inaugura um tema que Josué de
Castro irá trabalhar até o fim da sua vida, como também vai marcar sua imagem como
um estudioso da fome. No entanto, o que constitui este livro como sendo bastante
importante para o que se discute neste trabalho é que nele, finalmente, o método
geográfico ocupará uma centralidade dentro da sua produção. Ele não deixa dúvidas que
pretende estudar o problema da alimentação pelo viés geográfico e informa:
Não o método puramente descritivo da antiga geografia, velha como o
mundo, mas o método da ciência geográfica que é nova, que é quase dos
nossos dias. Que se corporificou dentro dos princípios científicos formulados
pelas experiências de geógrafos como Karl Ritter, Humboldt, Ratzel e Vidal
de La Blache (CASTRO, 1937, p.24-5).
Se antes o médico Josué de Castro utilizava, além do saber médico, os
preceitos da sociologia e se entusiasmava com a escrita literária, agora, quatro anos após
o seu primeiro contato com a geografia como docente, ele passa a se apropriar do
conhecimento geográfico para tratar dos seus interesses de pesquisa. Assim, estava
surgindo o geógrafo Josué de Castro.
Esta novidade implica que, mais tarde, a partir de uma obra de caráter
geográfico, Geografia da fome, Josué de Castro conquistará prestígio e será reconhecido
no Brasil e em diversos outros países, se constituindo como um grande intelectual
brasileiro. Considerada sua obra prima, este livro cria condições para que Josué de
Castro ocupe posições de destaque em instituições nacionais e internacionais.
Embora esse dado seja relevante, não nos interessamos aqui como a
geografia mudou a vida de Josué de Castro de forma geral. No entanto, desejamos
entender como a partir da mudança de suas práticas científicas e da sua posição social
ele mudou seu olhar. Assim, após estes acontecimentos houve uma modificação do seu
lugar de fala e do seu modo de ver.
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Sobre sua posição dentro do saber geográfico, vale destacar o momento em


que ele ingressa na Faculdade Nacional de Filosofia como professor efetivo de
Geografia Humana com a sua tese: Fatôres de Localização da Cidade do Recife.
Consideramos esse acontecimento significativo, porque nele vemos Josué de Castro
sendo incorporado a uma das principais instituições relacionada ao saber geográfico e
sendo aceito por geógrafos consagrados.
Em Fatôres de Localização da Cidade do Recife, onze anos após seu
primeiro trabalho onde o método geográfico apareceu com força, percebemos, além de
uma sistematização do saber geográfico, uma grande influência da Escola Francesa de
Geografia. Por exemplo, ele cita: Vidal de La Blache, Emmanuel De Martone, Pierre
Monbeig, Jean Brunhes, Max Sorre, Pierre Deffontaines e Lucien Febvre.
O olhar de Josué de Castro sobre a cidade do Recife é orientado pelas
premissas da geografia, principalmente a francesa. Ele pretende estudar o Recife através
do “ponto de vista geográfico procurando destacar a ação dos fatôres naturais e dos
fatôres culturais que determinaram a sua fundação, a sua evolução e a sua expressão
singular”. (CASTRO, 1948, p. 7). Através deste enunciado, vemos uma filiação dele
com a Geografia Humana, onde a geografia se interessa em estudar os aspectos não
apenas naturais, mas também culturais.
O Recife que ele vê em Fatôres de Localização da Cidade do Recife é
diferente da cidade que ele viu, na década de 1930, em Documentário do Nordeste.
Atribuímos essa mudança ao fato da aproximação de Josué de Castro com o saber
geográfico e pensando junto com Deleuze (2003) lembramos que o signo está atrelado a
um determinado tempo. Isto talvez explique porque naquele momento Josué de Castro
significou a cidade de uma forma específica.
Ele não só altera seu modo de visão, mas acredita que a geografia lhe
permite uma melhor abordagem acerca da realidade social. O artigo escrito para o jornal
carioca Diário de Notícias mostra que Josué de Castro acreditava na eficiência da
ciência geográfica e segundo ele “a geografia moderna veio multiplicar a densidade de
percepção do homem, abrindo com os seus métodos, perspectivas novas ao
conhecimento de fatos que durante séculos fora apenas ‘vistos’ mas não
‘compreendidos’”443.

443
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13/05/1951.
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A abordagem geográfica adotada por Josué de Castro privilegia o estudo de


aspectos relacionados à paisagem urbana. Afirmava que via “o método geográfico como
uma técnica que ensina a ver e a reproduzir com fidelidade os vários elementos que
compõem os diversos panoramas naturais”444. Acreditamos que esse enunciado é
coerente com a sua produção. Então, muito dessa racionalidade interferiu no seu
processo de construção da representação da cidade do Recife.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encaramos um intervalo de tempo de quatro anos onde não sabemos como


Josué de Castro se apropriou das suas leituras, porém podemos imaginar. Entre o
acontecimento dele ter que ensinar geografia em 1933 até o método geográfico ser
utilizado em sua pesquisa em 1937 Josué de Castro vai construindo uma nova
identidade e uma novo modo de produção científica. Ele é favorecido pela década de
1930 onde a geografia como ciência começa a surgir e aos poucos ganha notoriedade,
mas não podemos esquecer seu espírito inquieto que não desejou apenas gerenciar sua
clínica no centro do Recife optando se arriscar ao caminhar por outras vias.
Seja como for, este olhar geográfico de Josué de Castro foi proporcionado
por um momento onde o pensamento geográfico estava em voga e que lhe permitiu uma
combinação de experiências. No entanto, sem o acontecimento ele dificilmente mudaria
sua forma de pensar. O acontecimento aparece para criar uma possibilidade embora
esteja atrelado a uma configuração. Acreditamos que o acontecimento por si só não
explica muita coisa, por isso o relacionamos com a situação do saber geográfico naquele
período.
Portanto, pensamos que a transformação de Josué de Castro em geógrafo
que ocorreu durante a década de 1930 estimulou mudanças na trajetória de vida dele.
Aos poucos ele foi se convencendo que poderia entender a realidade brasileira através
do conhecimento geográfico. Essa mudança, por sua vez, despertou um novo olhar de
Josué de Castro sobre vários temas, inclusive sobre a cidade de Recife no qual é o nosso
interesse de pesquisa.

444
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13/05/1951.
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5. REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo. Chapecó: Argos, 2009

ANDRADE, Manuel Correia de. A construção da geografia brasileira. Revista RA’E


GA: Curitiba, n. 3, p. 19-34, 1999.

CARVALHO, Antonio Alfredo Teles de. Josué de Castro na Perspectiva da


Geografia Brasileira – 1934-1956: uma Contribuição a Historiografia do Pensamento
Geográfico Nacional. UFPE. Recife, 2001.
__________. O pão nosso de cada dia nos dai hoje! Josué de Castro e a inclusão da
fome nos estudos geográficos do Brasil. USP, São Paulo, 2007.
CASTRO, Anna Maria de. (Orgs.). Fome: um tema proibido: últimos escritos de
Josué de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CASTRO, Josué de. Documentário do Nordeste. Ed José Olympio: Rio de
Janeiro, 1937.
__________. A alimentação brasileira à luz da geografia humana. Porto Alegre:
Livraria da Globo, 1937.
__________. Fatôres de Localização da Cidade do Recife: Um ensaio de
geografia urbana. Rio de Janeiro: imprensa nacional, 1948.
__________. A cidade do Recife: ensaio de geografia urbana. Rio de Janeiro:
Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1954.
__________. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. Rio de Janeiro:
Edições Antares, 1984.

DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Trad. Calos Piquet e Roberto Machado. Rio de
Janeiro. Forense Universitária, 2003. 173 p. Primeira parte.

DOSSE, François. O renascimento do acontecimento: Um desafio para o historiador:


entre Esfinge e fênix. São Paulo, Editora UNESP, 2013.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012.
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GT 8
CULTURAS JUVENIS E MOBILIZAÇÃO POLÍTICA: O CENTRO
ESTUDANTAL CAMPINENSE NA CONJUNTURA ANTERIOR AO GOLPE
CIVIL-MILITAR DE 1964

Ajanayr Michelly Sobral Santana


PPGH/UFCG
mimysobral@gmail.com

Iranilson Buriti (Orientador)


UFCG/CH/UAHis
iburiti@yahoo.com.br

O Centro Estudantal Campinense445, fundado em 06 de outubro de 1935,


configurou-se como espaço de experiências e efervescência politicas, haja vista o núcleo
ativo de estudantes que através de uma forte atuação política na cidade, não ficaram
alheios a fatos ocorridos nos acontecimentos que antecederam ao golpe civil-militar de
1964.
Dos muitos acontecimentos que circundaram as múltiplas formas de lutas no
movimento estudantil, os grupos de estudantes organizaram-se a partir de sensibilidades
ou culturas comuns e de afinidades, que alimentaram o desejo de conviver e lutar juntos,
através das ações das lideranças centristas, objetivo do nosso estudo, a partir das falas e
da documentação oriunda dos jornais.
Falar de lutas em comum é falar das relações entre os estudantes de um mesmo
grupo (que podem ou não ter as mesmas ideias) e é falar também de uma memória em
comum, identificando suas vivências e as transmitindo aos seus sucessores que não a
compartilharam. Esse ideal é subjetivado pelos discursos na imprensa, pela forma como

445
Este Centro foi criado pelas ideias trazidas por um grupo de “professorandas”, em visita à cidade de
Fortaleza/CE, em uma missão de “cultura e cordialidade”, que inspiraram “jovens idealistas” a fundaram
em Campina Grande uma sociedade que congregasse os estudantes (Formação, 1952). Este Centro
“surge num momento particular da história brasileira, imperando a dominação varguista, com a
repressão pós 1935, o corporativismo da CLT e as ações modernizantes na economia encaminhas pelo
Estado” (NASCIMENTO, 1990, p.129).
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os acontecimentos na vida estudantil foram expressos e experimentos pelos centristas,


constituindo-se num sentido de união e pertencimento a classe estudantil446:

Campina que gosta de ver a mocidade inflamada que possui, Campina que
ama esses moços destemidos que comandam as gloriosas lutas cívicas que
transformam a Rainha da Borborema e Rainha da Liberdade e da
insubmissão (...) a maioria dos centristas de todos os tempos, o grosso dessa
entidade estudantil e democrática, ainda está sinceramente voltada para o
bem estar dos povos e para as regras que disciplinam a democracia e
possibilitam os homens as mesmas oportunidades (Jornal de Campina, 1953,
p. 5).

Nos seus primeiros anos de funcionamento, a tarefa do grupo de estudantes


secundaristas se limitava aquelas relativas ao interesse dos estudantes, como: denunciar
certas irregularidades no ensino; combater o analfabetismo; proteger os estudantes
pobres; prestar ajuda moral e material que visavam à proteção da juventude; formação e
informação dos estudantes em questões de política, cultura e literatura (SYLVESTRE,
1989). “Todavia na segunda metade da década de 1950, ganhou expressividade quando
emergia no cenário campinense, intervindo nos problemas e lutas mais gerais da
sociedade civil local” (NASCIMENTO, 1990, p. 207).
De acordo com os relatos do ex-militante e centrista Josué Sylvestre447, o Centro
Estudantal Campinense:

Era uma força muito grande, tinha um prestígio enorme, os prefeitos ouviam
eles, perguntavam o que o Centro achava sobre determinada decisão, sobre
ingresso de cinema, preço do pão, preço das passagens de ônibus urbanos. O
Centro tinha uma força poderosa e nós chegamos a decretar greve várias
vezes, parar tudo quanto foi de transporte, fechar cinema, aconteceu muito,
era uma força, mesmo, mesmo. (SYLVESTRE, depoimento: [nov. 2013]).

446
Tomaremos este termo por assim ser denominado na imprensa e entre os estudantes, os grupos de
militantes. Para a nossa pesquisa, classe não estará no sentido de homogeneidade, uma história comum
de estudantes sem rosto, nome e/ou voz; mas de jovens que atuaram coletivamente dentro de um
grupo social, entendendo que, o movimento estudantil foi integrado por diversos estudantes com ideias
e posicionamentos políticos diferentes, mais que foram suscetíveis de manterem relações em conjunto
nas mobilizações que participaram e atuaram.
447
Estudante e militante foi presidente do Centro Estudantal Campinense entre os anos de 1960-62.
“Nacionalista ferrenho” participou de congressos da UBES, chegando quase à diretoria; levou o CEC para
as reuniões da AESP (Associações dos Estudantes Secundários da Paraíba), sendo o Centro a única
entidade municipal; inaugurou a Casa do Estudante Félix Araújo. Sua atuação no movimento estudantil
foi até o ano de 1963 quando, vice-diretor da UBES, seu mandato foi caçado no Conselho Nacional dos
Estudantes por ausência de atividades na diretoria. Considerando como graves seus pensamentos e sua
atuação na vida pública, Josué se “livrou de punições do movimento de março de 1964” (2013, p. 74-75).
Hoje historiador e escritor, escreveu obras sobre a política partidária campinense e seus políticos. Obras
citadas na referência bibliográfica.
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Entretanto, faz-se necessário pontuar algumas atuações do Centro Estudantal


Campinense, o que objetivamos tecer ao longo desse estudo, que é o de explorar as
condições favoráveis que este Centro possibilitou no exercício da militância entre
jovens de diferentes grupos sociais e a construção social e cultura de um espaço de
debate em torno de questões relativas à política local e nacional.
Pensaremos o Centro Estudantal Campinense como um espaço de atuação,
acontecimento e pertencimento de lutas políticas, sociais e culturais de militantes
estudantis. E, também, como um espaço discursivo, formado de práticas onde a partir
das suas representações os estudantes e intelectuais agem, moldam e são moldados,
modificando o espaço da cidade e sendo modificados mutuamente. O espaço do Centro
Estudantal Campinense é móvel, tecido de práticas que o transformam constantemente.
Para tanto, a participação de estudantes nesse Centro influiu nas suas formações
políticas e culturais.
Neste sentido, é que Gilmar do Nascimento discorre sobre a importância do
espaço do Centro Estudantal no crescente engajamento e ascensão de centristas em lutas
políticas e sociais. “O Centro Estudantal Campinense refletia-se diretamente no
conjunto da sociedade civil campinense, apresentando-se como entidade que detinha a
mais forte representatividade a nível local” (1990, p.209).
Assim, evidenciamos neste texto as memórias dos militantes estudantis do ideário
de engajamento em ações políticas locais, elevando o Centro Estudantal como única
forma de inserção/atuação na política de jovens estudantes, considerado, na fala dos
narradores, como a “melhor escola de líderes” em Campina Grande e na Paraíba.
Nos estudos sobre história e culturas políticas, a historiografia quer rejeitar tanto
teórica como empiricamente, modelos teóricos de matrizes estruturalistas. Assim, a
nova história política vem colocar novos atores como participantes, também da política.
“O conceito de cultura política permite explicações/interpretações sobre o
comportamento político de atores individuais e coletivos, privilegiando suas percepções,
suas lógicas cognitivas, suas vivencias, suas sensibilidades” (GOMES, 2005, p. 30).
Ou seja, para além de críticas, historiadores vêm (re) tomando esse conceito de
ciência política, na medida em que desloca sujeitos no tempo e no espaço, entendendo
que estes, também, estão presentes no campo político, através de suas orientações e
ações (GOMES, 2005). Para tanto, propomos pensar os estudantes como “atores” do
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político e mediadores culturais, engajados na vida pública da cidade e/ou em locais de


conhecimento e promoção de debates (GONTIJO, 2005).
Desta forma, as ações de muitos militantes estudantes passam a serem articuladas
com os ideais de uma política local, levando o Centro Estudantal a representar uma
“porta de entrada” e porque não as aspirações para aqueles jovens que almejassem a
carreira política:
Nós tínhamos muita atuação, muita mesmo, porque o Centro Estudantal
Campinense era respeitado, ouvido e o pessoal gostava muito de que o seu
filho enveredasse, se fosse o para enveredar futuramente na política, que
começasse por lá (LUCAS FILHO, depoimento: [março 2014]).

O perfil do movimento estudantil em Campina Grande, antes do golpe de 64,


pode ser apontado como “nacionalista”. Esse nacionalismo parecia atender as
necessidades ao qual se encontrava o país. E sendo a juventude atuante em questões não
apenas locais, mas, também, nacionais, Josué Sylvestre relata que:

Antes da Ditadura o Centro Estudantal vivia muito envolvido no movimento


nacionalista brasileiro “O Petróleo é nosso”; na verdade surgiu no governo
Vargas, o democrático, depois que ele voltou (1950), houve uma repercussão
muito grande dessas ideias porque Vargas era nacionalista, a economia sendo
dirigida por nacionais, por brasileiros, não uma subordinação que existia aos
interesses do estrangeiro norte-americanos, ingleses (SYLVESTRE,
depoimento: [nov. 2013]).

Ao contar suas histórias de lutas e de vida, os relatos de militantes estudantis nos


possibilitaram uma relação de proximidade e troca, revelando questões cruciais dos
acontecimentos do passado que foram emergindo nas conversas. “Mais do que
“recolher” memórias e performances verbais, deve-se provoca-las e, literalmente,
contribuir com sua criação: por meio da sua presença, das suas perguntas, das suas
reações” (PORTELLI, 2010, p.20).
Considerado como principal organização atuante, o CEC mobilizou estudantes
campinenses, através de lutas políticas, com passeatas e debates nas ruas, praças e na
rádio, em torno de questões políticas que consideravam importantes a está classe, como
já citados anteriormente. Todavia, a participação dos estudantes nas atuações do Centro
Estudantal Campinense448, configura-se como uma apropriação, onde sempre são

448
Porque Estudantal e não estudantil? Relatou-nos Josué Sylvestre que “toda censura é burra”.
Quando o centro foi fundado, “o país estava na ditadura de Getúlio Vargas” e, numa forma de burlar
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exaltadas as ações no engajamento dos estudantes na luta por melhores condições de


vida e bem-estar dos estudantes:

E se fôssemos contar aqui todo a sua história, todas as suas


glórias, tudo que tem feito pelos estudantes e pelo povo,
naturalmente os estudantes do passado, os que ainda
conservam a tradição de honestidade que se adquire no Centro,
relembrariam com os olhos humedecidos tantos triunfos
arrancados à custa de inquebrantável espírito de decisão e
ininqualável capacidade de comando que possuem os jovens e
denodados centristas do passado e do presente (Jornal de
Campina, 1953, p. 3).

Para tanto, percebemos a visibilidade que está entidade ganha diante de um querer
poder de “sujeitos” que se possibilitaram atuar na preparação de suas aspirações,
obtendo para si e para aqueles que nela participaram uma independência em relação a
variabilidades de circunstancias/expansões futuras.
Convincentes de suas responsabilidades perante a classe estudantil, estes militantes
participavam de várias atividades, principalmente aquelas voltadas para o movimento
estudantil, se reunindo para tentar resolver os problemas que consideravam como
importantes a esta classe.

Imagem 1: Vários momentos de atividade do Centro Estudantal Campinense: Da esquerda para direita:
Congresso Nacional da UNE, Rio de Janeiro/ RJ (1960); Congresso da AESP em Sousa/PB (1961);

essa ditadura, as organizações estudantis não podiam colocar Estudantil, “se não, não registraria”, mas,
“se colocar Estudantal não tem nada” (depoimento [Nov. 2013]).
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Inauguração da Casa do Estudante Félix Araújo em Campina Grande/PB (1962); Congresso da AESP em
Sousa (1961); Congresso da AESP em Guarabira/PB (1961). Arquivo Josué Sylvestre.

Através de matérias e crônicas que se remetiam aos problemas da educação


campinense, verifica-se a preocupação com o ensino, que se apresente, na visão deles,
como deficiente ao aprendizado dos estudantes. Como exemplo, temos uma crítica ao
ensino das “línguas estrangeiras no currículo do ginásio”:

Os compêndios escolares de inglês e de francês estão de defeitos que se


tornam inaptos para finalidade a que são destinados (...) Ao nosso modo de
pensar, tal fato só se explique por duas razões ou os autores desses livros não
são nunca foram professores, mas sim, homens exclusivamente teóricas e de
gabinete, ou essês autores criminosamente se deixam arrastar pela ganância
do lucro fácil transformando-se em negociantes de livros e exploradores da
mocidade estudantil (Tribuna do Estudante, 1951, p.3).

O CEC constituiu-se como espaço na busca dos estudantes por maior


participação na dinâmica politica da cidade. Para tanto, fez-se necessário à apropriação
dos espaços cotidianos escolares449 como forma de significar os discursos do Centro
através das atuações de líderes estudantis: “Vivia-se uma época de efervescentes
debates ideológicos com a juventude buscando espaço para uma presença mais efetiva
na indicação dos rumos da sociedade brasileira” (SYLVESTRE, 1993, p. 363).
Além do espaço do Centro Estudantal Campinense, destinado ao amadurecimento
político e cultural dos estudantes, existiam espaços alternativos de sociabilidades que se
concentravam em constituir uma formação intelectual, como: cafés, bares, rádios,
cinemas e nas ruas, interagindo com intelectuais que discutiam assuntos relacionados à
cultura, política e literatura (GAUDÊNCIO, 2012). Além do Grêmio Literário Machado
de Assis, que funcionava como uma extensão do Centro, onde se discutia literatura e
política:
Nós levávamos as discursões políticas pra lá, era bem persuado; agora tinha
aqueles que não eram estudantes, os intelectuais de Campina Grande faziam
parte do Grêmio Recreativo, e nós intelectuais militantes do Centro
Estudantal Campinense, fazíamos parte de lá também; os representantes do
Centro e do Grêmio Machado de Assis, era tudo a mesma coisa, havia tudo
isso, a gente ocupava os mesmo espaços, eram as mesmas pessoas
(AMORIM, depoimento: [dez. 2013]).

449
Nas décadas de 1950-60, havia na cidade quatro colégios com grande representatividade entre os
estudantes: Colégio Estadual de Campina Grande, Colégio Diocesano Pio XI, Colégio Alfredo Dantas e
Colégio Imaculada Conceição.
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Ao longo dos anos, o Centro Estudantal se transformou em uma “voz ouvida e


acatada pelas autoridades do município e as forças vivas da comunidade campinense”
(SYLVESTRE, novembro, 2013). Na fala dos narradores, ao lembrar suas ações no
movimento estudantil, percebemos o enaltecimento das “potencialidades” que a
entidade estudantil desempenhou no movimento de estudantes:

O Centro Estudantal Campinense deu mais de um governador, deu Antônio


Juarez de Farias, deu Ronaldo da Cunha Lima, deputados estaduais, federais,
senadores, vereadores, prefeitos, toda vida, campinense, paraibana e até
mesmo do Brasil (LUCAS FILHO, depoimento: [março 2014]).

Disto, podemos perceber indícios da relação de líderes estudantis com os políticos


locais, com sinais de boa convivência e apoio. O fato mais evidente foi o apoio do
governado José Américo a Fernando Cunha Lima, presidente do Centro Estudantal
entre os anos 1952-53:
Respondendo vosso telegrama tenho prazer manifestar meu firme proposito
cooperar no movimento destinado elevar nível cultural do Nordeste tendo
Campina Grande, como um dos seus centro naturais, saudações José Américo
Governador (Jornal de Campina, 1952, p. 6).

Esse tipo de relação refletia os anseios dos jovens centristas em criar as condições
favoráveis para a ascensão na política. Verdadeira “Escola de líderes”, muitos centristas
(depois que deixavam a militância do Centro) passaram a assumir funções
governamentais, mandatos legislativos e postos de direção de maior ou menor destaque
na política da cidade e no Estado: Félix Araújo, Raymundo Asfora, Ronaldo Cunha
Lima450, Evaldo Cruz, Fernando Cunha Lima, Ivandro Cunha Lima, William Arruda,
Antônio Carvalho (SYLVESTRE, 1993, P. 364).
Problematizando a relação dos nomes dos representantes estudantis supracitados,
observamos, em primeiro lugar, o Centro Estudantal agindo para “formar futuros líderes
políticos”; e em segundo lugar, o movimento estudantil transparecendo uma luta por
reinvindicações de uma elite campinense.
Questionando o senhor Josué Sylvestre com relação ao vinculo da entidade com a
política local, contraditoriamente nos relata:

450
Muitos representantes políticos em Campina Grande e na Paraíba tiveram seus passos iniciais no
Centro Estudantal Campinense, dentre os de maior destaque para os irmãos Cunha Lima, que tiveram
grande representatividade e carisma na política local (a família Cunha Lima tem continua herança
política). E outros que não trilharam a carreira política, mas que permaneceram ligados à política local,
como mediadores, no caso do nosso narrado Josué Sylvestre.
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Não, nenhuma, nenhuma, o que havia era o seguinte: a cidade era muito
politizada, as diretorias tinham sim vinculação política com o quadro local,
geralmente uma chapa era apoiada por um lado e a outra pelo outro lado,
tinha chapa que era apoiada pelos adeptos do agimirismo, Argemiro de
Figueiredo (ex-prefeito de Campina Grande). Dr. Argemiro nunca tinha
assim se envolvido, mas era apoiado por estudantes que participavam do
partido do Dr. Argemiro, que era a UDN, é o caso dos irmãos Cunha Lima
(...) a 9 de junho de 1950 na tragédia da Praça da Bandeira, Ivandro foi um
dos oradores ligados ao Dr. Argemiro, por um cuidado muito claro, ele não
falou em nome do Centro, falou em nome da juventude campinense, mas
todo mundo estava sabendo que era a voz do Centro, era o presidente do
Centro (...) e havia o pessoal PSD, que era Genival Lucena, antes Raymundo
Asfora, quando eu cheguei (década de 1960), já não havia essa ação assim
tão forte da UDN e do PSD, já havia outros partidos, o Partido Socialista, eu
era do Partido Socialista” (SYLVESTRE, depoimento: [nov. 2013]).

É significativo as ambiguidades, contradições e limites de lutas do movimento


estudantil em Campina Grande, tendo o Centro Estudantal agindo na formação de
jovens estudantes que almejavam a carreia política. Ainda mais significativo, é esse
apoio dos estudantes aos Partidos Políticos e a influencia de um e de outro para angariar
votos e/ou outros assuntos de interesses pessoais e coletivos.
Não esquecemos que um dos pontos atacados pelos estudantes, em greves
lideradas pelo Centro Estudantal, reside, justamente, nas facilidades de acesso com
meia-entrada em lugares privados, como cinemas, teatros, jogos de futebol e até mesmo
em descontos de passagens aéreas, para quem adquirisse a carteira de sócio do CEC,
ocupando ruas e praça, chegando até mesmo a acampar em frente a cinemas da cidade
(SYLVESTRE, 2013).
Arthur Poerner, que registrou a história do movimento estudantil brasileiro,
afirma que “o estudante brasileiro é um oposicionista nato”, e mostra o estudante como
um rebelde às causas progressistas, quando não um revolucionário mesmo. Tende-se a
idealizar o movimento estudantil, principalmente, no período mais efervescente da
história política do país. No entanto, o movimento estudantil do inicio dos anos 1960,
através das narrativas, nos fez perceber a existência de um outro caráter para a sua luta,
além daquela “rebeldia, inquietação e revolucionária” (1987, p.29).
Causando grande repercussão e comoção na cidade, o assassinato do vereador e
ex-centrista Félix Araújo, no ano de 1953, representaria, a partir daqui,
relações/influência na política local, se configurando em uma maior participação
política, onde o Centro se envolveu de forma mais intensa nos acontecimentos políticos
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na vida local, que fez com que o movimento estudantil contasse com uma maior
participação dos estudantes.
Intelectuais, jornalistas e estudantes acusavam abertamente em jornais da cidade
de ter sido o mandante do assassinato o então prefeito Plínio Lemos. Tais
acontecimentos marcaram profundamente a “cara” do movimento estudantil, tendo
agora como líder da luta pela “justiça” Félix Araújo, morrido “covardemente lutando
pelo povo”. Aquele se tornou um ícone de lutas posteriores entre os estudantes. “Ainda
estamos no rasto do sangue de Félix Araújo” (AMORIM, depoimento: [dez. 2013]).
Sua memória e “coragem” perduraram para a posteridade, e se tornou uma
referência da militância no Centro Estudantal. Grande comoção e revolta na cidade, sua
morte fez ressoar um sentimento de continuidade da sua luta:

Félix, continuaremos a tua luta,


O povo de Campina Grande, chora a perda do seu grande batalhador, chora
porque sabe que ninguém será capaz de substituí-lo. Mataram FÉLIZ
ARAÚJO, afim de fazer calar esta voz que dizia a verdade ao povo desta
terra, cumprindo com bravura o mandato que o povo lhe confiou. Hoje, está
inerte, porém a mocidade permanece viva, nós estudantes continuaremos a
lutar pela liberdade. O espirito de Félix, continuará no seio da classe
estudantil, incentivando-a nesta batalhar pela liberdade de Campina... Vai
FÉLIX, aqui fica os teus colegas, os continuadores da tua luta (Jornal do
Estudantal, 1953, p. 1).

Utilizando-se da imprensa para manifestar, discutir e expor suas ideias, a


produção de jornais pelos estudantes campinenses, configurou-se como evidencia na
pluralidade de usos e apropriações de significações de suas experiências políticas e
sociabilidades culturais. Sendo responsáveis pela organização de diversos periódicos
que circularam na cidade entre os anos de 1936-1964451, o movimento estudantil soube
“usar” desses jornais como instrumentos de luta e os elegeram – além do rádio,
caminhonetes e dos discursos em praça pública –, como veículo privilegiado de
divulgação, passando a ser um “porta-voz” aos interesses dos estudantes.
De acordo com as ideias de Certeau (2007), toda prática é, também, “uso” em
que os praticantes fazem dos produtos colocados para consumo, em que iremos perceber

451
O Colegial (1935-40); A Voz da Mocidade (1936); Tribuna do Estudante (1951); Jornal do Estudante
(1953); Formação (1936-1964). A pouca duração desses jornais explica-se por terem sido produzidos
com recursos dos estudantes. Apesar de o jornal Formação ter um período relativamente longo, sua
produção foi esporádica e não encontramos exemplares na década de 1940.
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que é possível encontrar nos jornais além do que neles estão escritos, nos interessando
muito mais os usos e consumo que se fazia deles na vida estudantil:

Contribuir, sem bem com parcelas reduzidíssimas, para o florescimento do


gosto estudantil para as letras, tão raro hoje em dia (...) ao mesmo tempo está
a disposição de quantos desejem transmitir seus pensamentos e idéias,
coloca-se os altos interesses da classe estudantil, e para isso a nossa posição é
de vigilância, aplaudindo as virtudes e denunciando erros com justiça
(Tribuna do Estudante, 1951).

Assim sendo, vamos compreendendo que a preocupação com as letras e a vida


intelectual dos estudantes era transmitida nos jornais de modo que, incentivava
estudantes a escreverem e publicarem suas ideias e conhecimentos, numa forma de
incentivar uma maior participação dos estudantes pelos usos que faziam naquele
espaço-tempo, a partir de suas tantas vivências em tantos outros cotidianos e das
relações que Centro Estudantal Campinense estabelece com o movimento estudantil.
Esses outros cotidianos foram refletidos nas agitações políticas no início da
década de 1960 - com a renúncia do presidente Jânio Quadros, e a conturbada pose do
vice-presidente João Goulart452 -, que culminou com prisões e perseguições a líderes
estudantis e sindicais. Em setembro de 1961, na manifestação de apoio a pose de Jango,
o ex-militante Josué Sylvestre, descreve o episódio do “Movimento da Legalidade”:

A renúncia do presidente Jânio Quadros (25/08/1961) teve ampla repercussão


em Campina Grande, em faze do clima de permanente politização e de
nacionalistas em franca ascensão, nas entidades estudantis e nas organizações
sindicais. Tão logo foi divulgada a notícia essas lideranças se movimentaram
em função da defesa da legalidade democrática, programando manifestações
cívicas sem qualquer cor partidária. Os segmentos estudantil e operário
formalizaram o seu pensamento sobre a crise num “Manifesto ao Povo
Campinense”, divulgando em boletins e publicado na ultima página do Diário
da Borborema do dia 29 de agosto, só com a assinatura de líderes estudantis
(SYLVESTRE, 1988, p. 337).

452
Depois da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, no dia 25/08/1961, o vice-
presidente João Goulart foi impedido de assumir a presidente. “O vice-presidente da República era João
Goulart, cria política de Getúlio Vargas, principal mentor do trabalhismo e líder nacionalista.
Aproveitando-se da atitude intempestiva de Jânio, chefes militares e lideranças políticas e empresariais
assumiram uma postura intransigente e antidemocrática de impedir a posse do substituto constitucional
do renunciante” (SYLVESTRE, 2013, p.69). Depois de vários levantes nacionais, conseguiram chegar a um
consenso, e no dia 02/09/1961 o sistema parlamentarista foi aprovado e no dia 08/09/61 Jango foi
empossado.
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Em apoio à pose do presidente Jango, o Centro Estudantal convocou uma


Assembleia Geral, sob as orientações da UNE453e UBES (União Nacional dos
Estudantes; União Brasileira dos Estudantes Secundários), deflagrando uma greve local
dos estudantes que duraria até que o presidente fosse empossado. Disto resultou em
perseguições e prisões de alguns líderes estudantis e sindicais campinense, por se
envolverem na “Bandeira Nacional” durante passeatas cívicas em Campina Grande.
“Esta atitude de defesa da democracia e da constituição me valeria à única prisão de
toda a minha participação e ininterrupta vida política desde os 14 anos de idade”
(SYLVESTRE, 1988, p. 337).
As narrativas e os depoimentos de Josué Sylvestre ajudam-nos a refletir acerca da
forma como a memória e mesmo a imprensa, ao discursar sobre as ações dos estudantes,
nomeavam-se como aqueles que lutavam pelo apoio à democracia, legalidade e justiça.
Continua Josué Sylvestre acerca da sua prisão:

Fui conduzido para João Pessoa, num jipe do Exército, ao lado do líder
sindical José Pereira dos Santos, o atual vereador José Peba; a escolta era
formada por militares estudantes. Na capital, depois de uma ligeira passagem
pela frente do DOPS fomos levados ao Quartel do 15º RI, em Cruz das
Armas, onde instantes depois também chegava de Campina Grande o líder
universitário Henrique Miranda de Sá Neto. Receberam-nos do alto da escada
da área interna o General Sílvio Cahu e seu Estado-Maior (SYLVESTRE,
1988, p. 338).

Ao se deparar com outros líderes, não somente estudantil, que haviam sido
detidos junto com ele, no caso do líder sindical e dirigente do Partido Comunista, Peba,
Josué Sylvestre percebeu as tensões na política brasileira: “o negócio aqui é mais
complicado do que eu estava imaginando” (2013, p. 71); afirmando que nas suas ações,
como líder estudantil e cidadão não havia nenhuma espécie de rebeldia e/ou
“radicalismo”, que lutavam por uma causa justa e democrática:

Que fiz de errado? Nada. Defendia com ardo da minha juventude e a


convicção dos meus ideais, o direito do vice-presidente João Goulart tomar
posse como sucessor legítimo do renunciante Jânio Quadros (SYLVESTRE,
1988, p.338).

453
A UNE representou para os estudantes uma entidade “ideal legalmente reconhecida”, em 1937 de
caráter amplo e nacional, com a instalação do 1º Conselho Nacional dos Estudantes, na escola de Belas
Artes. A UNE só exerce suas atividades legalmente até 11 de abril de 1964, quando é colocada na
ilegalidade, pela lei Suplicy de Lacerda (POERNER, 2004).
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Na fala de Josué Sylvestre podemos considerar como marcas de perseguições 454 a


líderes estudantis, sindicais e políticos em Campina Grande. Perscrutando as páginas de
jornal estes debates se ampliam em torno das acusações sofridas a Jango e a renuncia de
Jânio. Por isso, se reuniram estudantes e trabalhadores, na tentativa de alertar a
sociedade campinense, da expectativa que havia se criado quanto ao governo Jango. No
“Manifesto ao Povo Campinense”, os estudantes diziam:

Conscientes das responsabilidades que temos, ESTUDANTES E


OPERÁRIOS, de Campina Grande, não poderíamos deixar de analisar nesta
hora crítica e difícil que atravessa o país, os últimos acontecimentos
nacionais, orientados por um raciocínio frio e leal, voltado para os supremos
interesses de nossa coletividade. Não seremos, portanto, atingidos se as
forças subservientes, vendidas ou reacionárias desencadearem sobre nós a já
extemporânea pecha de “entreguistas vermelhos” ou de “servidores de
ideologias subversivas” (...) nesta tentativa de alertar os nossos conterrâneos
dos perigos que corremos, estamos reunidos, trabalhadores e estudantes,
propugnando tão-somente pelo respeito à autodeterminação de nosso próprio
povo, em defesa da Constituição de 1946, exigindo respeito às liberdades
democráticas e pedindo ao povo para meditar sobre a gravidade e a incerteza
que nesta hora solicitamos as mais urgentes reflexões (...) (SYLVESTRE,
1988, p. 342-343).

Quando fala em “entreguistas vermelhos”, podemos considerar o medo do


comunismo, que ganhava força diante da suposta “aproximação” do presidente Jânio
Quadros com Cuba. Nos discursos da imprensa, o que teria contribuído para a renúncia
de Jânio seria a “inclinação” do seu governo para a esquerda:

Para êsses a condecoração a Guevara, ministro da economia de Cuba, foi o


sinal de que já era tempo de intervir e impedir que o Brasil abrisse os braços
ao comunismo (...) o General Danys teve uma frase que lembrava a
necessidade de o Brasil escolher entre o comunismo e a democracia (Diário
da Borborema,1961, p.1).

Tais opiniões corroboravam para a crença de que Jânio Quadros estivesse


“levando” o país para a esquerda. E ainda, havia a viagem de Jango a China com
representante do presidente; relações diplomáticas com a Rússia; e o pedido do Brasil
de admitir à China nas Nações Unidas. Disto, a imprensa noticiava/acusava relações de
admiração e proximidade do presidente com Cuba e Fidel Castro (Diário da Borborema,
1961, p.1).
454
Logo, classificar ou nomear este período como marcas de perseguições, significa não contemplar as
tramas discursivas sobre acontecimento que vinham se desenrolando antes do golpe de 64, nas décadas
de 1940-50.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014 – UFPE

Desde candidato Jânio teve palavras claras por onde expressou seu propósito
de salvar Cuba, de não deixar que Fidel Castro caísse na extrema esquerda.
Ainda candidato, Jânio telegrafou, certa vez, aos acadêmicos goianos
felicitando-os por haverem escolhido Fidel Castro para o seu paraninfo
(Diário da Borborema, 1961, p. 1).

Nas memórias de Josué Sylvestre, sobre os diálogos e influências do comunismo


dentro do Centro Estudantal Campinense, ele nos relata:

Havia colegas que eram de, que seguiam a orientação do Partido Comunista,
e inclusive pessoas brilhantes, eu não vou citar nomes porque essa coisa de
ser ou não ser comunista é de cada um né? Porque o Partido Comunista tinha
uma cédula que havia pessoas que se filiavam ao partido; então esses eram
realmente militante comunista ou pessoas que se tinham ideias marxistas nas
suas formações; porque eu era nacionalista ferrenho, defendia aos interesses
nacionais acima de tudo, mas nunca fui marxista, nem comunista, nem filiado
ao Partido Comunista; porque eu sou evangélico de raiz (...) mas eu defendia
e continuo defendendo os interesses do Brasil, acima de tudo; e durante os
debates eu militava ao lado dos comunistas, porque eles pensavam do ponto
de vista da defesa, da economia nacional do mesmo modo como eu pensava
(SYLVESTRE, depoimento: [nov. 2013]).

Deixando claro seu posicionamento nacionalista e cristão, tendo a “bíblia sagrada


como repertório dos seus ensinamentos”, Josué Sylvestre conta que não poderia ter
ideias comunistas, já que eles possuíam ideias revolucionárias, sendo que as suas eram
“nacionalistas e reformistas”. Apesar de admitir que militasse ao lado dos comunistas,
quando da causa em comum a necessidades dos estudantes, admitiu que “jamais”
deixaria um “militante da esquerda radical” chegar à presidência do Centro Estudantal,
e que não apoiaria “jamais” um “candidato extremista”. Para Josué Sylvestre, o que
mais os afastava e diferenciava era o uso das armas, “porque os comunistas defendiam a
“luta armada”, coisa que nunca apoiei” (SYLVESTRE, depoimento: [nov. 2013]).
O distanciamento aos comunistas, evidenciado por Josué Sylvestre, representa as
mais variadas demonstração de oposição a uma possível ascensão dos comunistas,
dando a ver uma aversão aos “extremistas vermelhos”.
Apesar de ser considerado com um movimento com reinvindicações específicas as
lutas da classe estudantil, o Centro Estudantal Campinense, ao mesmo tempo, atuou
com fortes relações com a política local, levando, por vezes, as suas reinvindicações se
“mascarassem” as inspirações de uma elite local, além da credibilidade e confiança que
desfrutou junto a políticos locais, passando a ser um espaço de interesse para aqueles
que viram a oportunidade de retornos futuros.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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O Centro Estudantal Campinense esteve presente institucionalmente até o ano de


1964, por intervenção de militares que determinaram seu fechamento com cassação de
mandatos; limitação de direitos; prisões e interrogatórios de líderes estudantis e invasão
da sede do Centro levando todos dos arquivos.
Vários líderes estudantis foram investigados e interrogados devido a atuações em
movimentos estudantis no período anterior ao golpe de 64, pelos Inquéritos Policial-
militar, instaurados pelo governo militar, chamado de “IPEEMÃO da UNE/UBES”:

Assim, no dia 6 de setembro de 1965, pela manhã, atendendo a uma


convocação do major José Correia de Macedo, vindo do Rio de Janeiro,
compareci ao 15º Regimento de Infantaria, em João Pessoa, para prestar
depoimento. Ao chegar ao quartel, o major me atendeu e disse que só iria me
ouvir às 20:00 h, porque outras pessoas já estavam convocadas para
interrogatórios durante o dia (SYLVESTRE, 2013, p. 75).

Acusado, como tantos outros de líderes estudantis, de envolvimento com o


comunismo, Josué Sylvestre explique que nunca poderia ser militante e ao mesmo
tempo “adepto da doutrina marxista”, já que era um “nacionalista” e defendia “as
riquezas do País”, que deveriam ser desenvolvidas a partir do interesse do Brasil e dos
brasileiros (2013, p. 75-76).
Mesmo estando afastado das mobilizações estudantis, desde fevereiro de 1963, no
período de forte agitação e confronto esquerda/direita nos primeiro meses do ano de
1964, Josué Sylvestre e outros líderes estudantis (mesmo aqueles que não foram contra
a ditadura militar), não deixarem de serem “convocados” a prestarem depoimentos
sobre atividades estudantis no período anterior a 1964.
Diante de tantas mudanças ocorrendo no Brasil, naquele ano de 64, certamente as
reinvindicações dos estudantes mudaram de posição. A luta dos estudantes passou a ser
contra um regime de opressão, e não apenas visando a atender as imediatas
prioridades/necessidades da classe estudantil; seguindo uma ideologia, voltada à
liberdade oprimida pelos militares. O Centro Estudantal Campinense só voltará a
funcionar normalmente depois da redemocratização do país, “porém nunca mais
readquiriu a força e o prestígio dos seus primeiros anos” (SYLVESTRE, 2013, p. 54).
Em uma de nossas entrevistas, com o professor José Lucas Filho, questionado
sobre a resistência de estudantes campinense na conjuntura da Ditadura Militar de 1964,
nos deparou com a seguinte resposta:
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Ditadura como você quer chamar, a linguagem é sua, é movimento


Revolucionário, como eu chamo; inclusive eu também sou um ex-militar,
então, houve aquele movimento de resistência, não fiz parte, por que fui
soldado em 62 (...) só posso falar até 31 de abril de 1964 (LUCAS FILHO,
depoimento: [março 2014]).

Ao irmos à busca de respostas sobre os movimentos de resistência de estudantes


no ano de 1964, nos deparamos com um ex-militar, que anos antes foi militante
estudantil, participou junto ao Centro Estudantal Campinense em lutas políticas e
sociais, tendo como bandeira de luta a “justiça e democracia”. Esta resposta nos instiga
o desejo de tecer outras narrativas acerca do período da “Ditadura Militar”, além
daqueles sobre perseguições, resistência, prisões e torturas.

Referencias e Fontes

AMORIM, Agnelo. Agnelo Amorim: depoimento (02 de dezembro de 2013).


Entrevistadora: Ajanayr Michelly Sobral Santana. Transcrito a partir de suporte digital
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CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. 13 ed. Tradução
de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, Rio de Janeiro, 2007.
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Universidade Estadual da Paraíba, 1961-1962.
FORMAÇÃO. Campina Grande. Acervo do Museu Histórico de Campina Grande,
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GAUDENCIO, Bruno Rafael de Albuquerque. Da Academia ao bar: círculos
intelectuais, cultura impressa e repercussões do modernismo em Campina Grande – PB.
Dissertação de Mestrado em História. Campina Grande: UFCG, 2012.
GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil:
algumas reflexões. IN: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda B.; GOUVÊIA,
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Rio de Janeiro: Mauad, 2005).
GONTIJO, Rebeca. História, cultura, política e sociabilidade intelectual. IN: SOIHET,
Rachel; BICALHO, Maria Fernanda B.; GOUVÊIA, Maria de Fátima S. (orgs).
Cultura Políticas: ensaios de história e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad,
2005).
JORNAL DE CAMPINA. Campina Grande: Arquivo do Acervo Átila Almeida da
Universidade Estadual da Paraíba, 1952-1953.
JORNAL DO ESTUDANTE. Campina Grande, Acervo do Museu Histórico de
Campina Grande, 1953.
LUCAS FILHO, José. José Lucas Filho: depoimento (17 de março de 2014).
Entrevistadora: Ajanayr Michelly Sobral Santana. Campina Grande: 2014. Transcrito a
partir de suporte digital Mp3.
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NASCIMENTO, Gilmar dos Santos. A Geração Engajada: busca de espaços na velha


estrutura de pode (um estudo sobre o Centro Estudantal Campinense) 1955-1960.
Dissertação (Mestrado em sociologia rural– Universidade Federal da Paraíba) Campina
Grande, 1990.
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SANFELICE, José Luca. Movimento Estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64.
São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1986.
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Campina Grande e da Paraíba (1954/1964). Brasília, Senado Federal: Centro Gráfico,
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______.Da Revolução de 30 à queda do Estado Novo: fatos e personagens de
Campina Grande e da Paraíba (1930-1945). Brasília, Senado Federal: Centro Gráfico,
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______.Josué Sylvestre: depoimento (10 de novembro de 2013). Entrevistadora:
Ajanayr Michelly Sobral Santana. Transcrito a partir de suporte digital Mp3.
TRIBUNA DO ESTUDANTE. Campina Grande: Acervo do Museu Histórico de
Campina Grande, 1951.
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“Vou te contar sobre a Ditadura...”


A importância da História Oral no resgate das memórias do período
da Ditadura Militar brasileira

Camila Maria de Araújo Melo455


Universidade Federal de Pernambuco
camilama_melo@hotmail.com

“A narrativa [...] não está interessada em transmitir o


‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação
ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do
narrador para em seguida retirá-la dele. Assim
imprime-se a marca do narrador, como a mão do
oleiro na argila do vaso.”
Walter Benjamin.

Resumo: O presente artigo versa sobre as diversas influências que a Doutrina de


Segurança Nacional promovia na rotina da sociedade brasileira no período da Ditadura
Militar, analisando e dialogando com as discussões propostas por alguns historiadores e
suas produções historiográficas acerca do tema. Analisamos também os variados usos
metodológicos da Historia Oral e sua importância como fonte documental. Como fonte
oral, utilizamos a entrevista realizada com Marcelo Santa Cruz, tendo a devida atenção
de que a memória não traz uma afirmação do acontecimento em si, mas cria um
significado individual à experiência do entrevistado. Outro ponto importante do
presente artigo visa analisar o processo contra a desmemoria, através de diversos órgãos
e instituições organizados pelas famílias dos desaparecidos políticos e pelas Comissões
da Verdade em todo o Brasil, buscando o direito de saber o que de fato ocorreu com os
seus entes que se perderam no período da Ditadura brasileira. No decorrer do artigo se
utiliza o termo desmemoria não como esquecimento, mas como um desconhecimento de
fatos que dispersos da história divulgada, tornam-se esquecidos, postos à margem da
dita “História Oficial”.

Abstract: This paper explores the various influences of the National Security
Doctrine had promoted on the routine of the Brazilian society, during the military
dictatorship, analyzing and dialoguing with the discussions proposed by some historians
and their historiographical productions on the subject. We also analyze the various
methodological uses of Oral History and its importance as a documentary source. As

455
Graduanda Pibic/CNPq do curso de História da Universidade Federal de Pernambuco.
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oral source for this article, we have used an interview with Marcelo Santa Cruz, having
due regard that the memory does not bring a claim of the event itself, but creates an
individual meaning to the experience of the interviewed. Another important point of this
article aims to analyze the process against the “desmemoria” through the various
institutions organized by the families of the military regime antagonists who remain
missing until today and the Truth Commissions throughout Brazil, seeking the right to
know what really had happened to their loved ones that were lost during the Brazilian
dictatorship. Throughout this article the term “desmemoria” is used not like oblivion,
but as a nescience of the facts that when scattered on the history disclosed, become
forgotten, relegated to the margins of the so called "Official Story".
Palavras chave: História Oral, memória, Doutrina de Segurança Nacional, justiça.
Doutrina de Segurança Nacional: um breve histórico
Como um dos fatores de uma extensa rede que os militares promoviam – antes
mesmo do golpe civil militar de 1964 - no Brasil, a implantação da Doutrina de
Segurança Nacional, a DSN, foi organizada pela Escola Superior de Guerra e possuía
como um dos principais aparatos teóricos ideológicos o livro Geopolítica do Brasil de
Golbery do Couto e Silva, publicado em 1967.
A Escola Superior de Guerra, para promover a DSN, contava com a assistência
dos franceses e norte americanos, tendo por meta treinar os oficiais de alta patente - e
poucos civis escolhidos para cargos de confiança - para assumirem os altos cargos de
governo, com o intuito de exercer funções de chefia e planejamento da segurança
nacional.
Para Borges(2012), as Forças Armadas ao seguirem fielmente a Doutrina de
Segurança Nacional:

(...)assumiram a função de partido de burguesia, manobrando a sociedade


civil, através da censura, da repressão e do terrorismo estatal, para promover
os interesses da elite dominante, assegurando-lhe condições de supremacia
em face do social. Enquanto o aparelho militar fortalecia o Estado,
neutralizando as pressões sociais e buscando atingir um elevado crescimento
econômico, as Forças Armadas atingiam um alto grau de autonomia
institucional. O núcleo do poder militar estava imbutido naquilo que
chamavam de sistema: um órgão informal que agrupava os generais do Alto
Comando Militar. Ao sistema cabia a tarefa de , em última instância, decidir
VI Cultura e Memória
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sobre as questões políticas, tanto de política interna como de política


456
externa

As diversas conexões que resultaram na Doutrina de Segurança Nacional


processaram-se como parte de um conjunto de fatores que, com o desenrolar dos
acontecimentos, fazia com que as Forças Armadas do Brasil, de forma geral, no período
anterior a 1964 estivessem cada vez mais insatisfeitas com a política econômica e social
brasileira. Os militares possuíam o receio de uma “possível” associação do até então
Presidente da República, João Goular com a esquerda – leia-se o socialismo, o
comunismo e o anarquismo – de unirem-se para comandar o Brasil, além das constantes
quebras de disciplinas e hierarquias militares que ocorriam em todo o território nacional
e dos militares presumirem como falhas as instituições civis.
Considerando-se autodidata, “destinada a modificar o status quo”457, as Forças
Armadas tinham em foco a eliminação dos fatores contrários a nova ordem, supondo
necessário um governo autoritário que elimina-se os inimigos – externos e internos.
Para combater os inimigos externos não seria necessária uma guerra com fronteiras
geográficas: utilizava-se da Doutrina de Segurança Nacional para fundamentar uma
forte fronteira ideológica.
Com o intuito de defesa constante, um dos principais focos da política nacional
interna era o estado de sitio, a guerra constante com o inimigo interno. Nesse estado de
permanente tensão psicológica, que transformou o sistema social em um sistema de
guerra constante, a nação estava sendo governada com uma ênfase antisubversiva.
Nilson Borges afirma que:

“No contexto da Guerra Fria e da luta antisubversiva que servem de pano de


fundo para a Doutrina, o mito da guerra é um tratamento permanente e
fundamental que é fortemente sentido pelos militares e passado para a
sociedade. O mito da guerra e o inimigo interno permitem, portanto, o Estado
instaurar sua política repressiva, acionando os aparelhos de segurança e de

456
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os Governos Militares. In FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da Ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
457
IDEM, pág. 27
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informação(repressivos) para exercerem seu papel ‘moralizador’,


458
desmobilizando, para isso, a população”

Na busca de maiores informações sobre as vivências do período em que a


Doutrina de Segurança Nacional vigorava, foi realizada uma entrevista com Marcelo
Santa Cruz459, atualmente vereador da Cidade de Olinda, na Câmara Municipal de
Olinda, no dia 11 de julho de 2013. O entrevistado discorreu sobre diversos aspectos da
sua vida e realizou uma reconstrução – a memória não traz uma afirmação do
acontecimento em si, mas um significativo do acontecimento - da experiência de possuir
sua liberdade democrática cerceada pelas Forças Armadas.
O entrevistado relata como a Doutrina de Segurança Nacional permeou sua vida
nos anos 60, desde as defesas dos inquéritos proferidos contra ele – denunciado como
subversivo por participar do Clube Literário Monteiro Lobato e por proferir palavras de
ordem contra o Estado Militar - até a decisão de viajar para Portugal, após ter tido
cassado o seu direito estudantil460 em 1969 pela lei n° 477.
Nesse contexto, verificamos que Marcelo Santa Cruz foi processado por
acusações de subversão e de propagar a ideologia comunista. Ainda como estudante
secundarista, envolveu-se no Clube Literário Monteiro Lobato, sendo este posto na
clandestinidade com o golpe militar. Todos os participantes do clube citado foram
fichados, inclusive Marcelo, como ele afirma neste trecho da entrevista:

“Mas em 63, como estudante do colégio Nóbrega, fui convidado a participar


do Clube Literário Monteiro Lobato e com o golpe de 64 o Monteiro Lobato
foi colocado na clandestinidade, acusado de ser uma célula do Partido
Comunista e todas as pessoas que eram filiadas ao Monteiro Lobato foram
461
chamadas na Secretaria de Segurança Pública e foram fichadas”

458
IDEM, pág. 29
459
Entrevista oral ministrada pelas graduandas do curso de História da UFPE Camila Melo e Giweida
Oliveira. A entrevista, áudio e transcrição, se encontra no Laboratório de História Oral e Imagem, o
LAHOI, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco.
460
BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei n. 477, de 26 de fevereiro de 1969.
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0477.htm >. Acessado
em 17 de agosto de 2013.
461
Entrevista oral ministrada pelas graduandas do curso de História da UFPE Camila Melo e Giweida
Oliveira. A entrevista, áudio e transcrição, se encontra no Laboratório de História Oral e Imagem, o
LAHOI, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco.
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Ao adentrar na Faculdade de Direito do Recife, Marcelo participava ativamente


do Diretório Acadêmico – mesmo perdendo a eleição do DA de Direito - promovendo
debates e cursos para os estudantes. Porém, foram instaurados inquéritos contra ele,
com acusações de subversão, por realizar reuniões a portas fechadas com conteúdo
proibido, além de tentar influenciar jovens para a oposição do governo. Todavia, ele
conseguia se defender das acusações, afirmando que as provas contra ele não poderiam
ser atestadas, justamente pelas portas estarem fechadas.
Em resposta a um inquérito, Marcelo assim realizava a sua própria defesa:

'' Qual a prova testemunhal, documental, técnica de que (...) se reuniam a


portas cerradas para efetuar doutrinação subversiva. E o DOPS, o SNI, a
Polícia Federal e outros organismos carregados pela segurança nacional, onde
estão os que toleram que isso ocorra? Que dia, que hora, com quem, quais os
co-autores?”

Porém, o entrevistado afirma que tais reuniões existiam:

“A gente estudava o marxismo, estudava a questão da relação de trabalho e


capital e lia bastante, discutia bastante em grupos pequenos, geralmente sob a
orientação de outro estudante que tinha um engajamento maior nos partidos
políticos, e a gente tinha uma formação política que pelo menos tentava
462
entender os mecanismos, a sociedade.

Dialogando com as fontes documentais escritas e orais, é possível interpretar que


a consciência política da nação também se relaciona com o nível político e
socioeconômico de sua sociedade: Marcelo, por possuir instrução e conhecimento
literário e jurídico, continuava a disseminar os ideais marxistas, os quais ele considerava
importante na conscientização popular da situação a qual o Brasil estava tramitando.
Diversos foram os brasileiros, possuindo ou não partidos políticos, que faziam tais atos:
reuniões clandestinas para discutir ideias marxistas. Tais reuniões são parte do corpo do
inimigo interno que a DSN combatia.
Ventura(1988), em sua obra 1968 O ano que não terminou afirma que o
pensamento dos militantes era a política, dissertando que “a moda era politizar – do

462
IDEM.
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sexo as orações, passando pela própria moda, que, durante pelo menos uma estação de
68, foi ‘militar’.”463 Porém, é uma afirmação cristalizada, incutindo uma visão
romanceada da sociedade como um todo. Parte da sociedade estava engajada na luta
contra o sistema implantado, porém, outra parcela da sociedade não se interessava na
retirada dos militares do poder. Percebemos isso no trecho da entrevista em que Marcelo
narra que ele e seu irmão, Fernando, foram investigados porque a família de suas
namoradas, que eram irmãs, havia se queixado de possuir genros que iam de encontro
aos ideais militares, implantando ideologia socialista no pensamento das meninas.
Em relação à segurança interna, na interpretação da Escola Superior de Guerra, a
sua divisão denotava-se basicamente em dois pilares: a defesa interna e a defesa pública.
Dentro do conceito da defesa interna, encontra-se a luta contra as subversões – na
interpretação dos militares - latentes na sociedade. Tais lutas encontram afirmação
quando se defrontam com a esquerda armada: alguns dissidentes do Partido Comunista
Brasileiro, que não aceitavam como único meio a luta ideológica, acreditando que a
sociedade deveria ser reformulada a partir do uso da força. Em relação a memória das
lutas armadas, a historiadora Rollemberg(2012):

“A partir do final da década de 1970, e, sobretudo ao longo dos anos 1980,


surgiram inúmeras memórias, biografias e autobiografias sobre a luta
armada(...). Este momento corresponde ao reconhecimento no Brasil da
história oral como instrumento teórico metodológico, o que legitima o
trabalho com entrevistas e depoimentos, enriquecendo as possibilidades de
investigação do tema. Da mesma forma, as entrevistas contribuíram para a
legitimação da história oral, uma vez que evidenciaram a sua
464
importância.”

Em 1964, quando a sociedade civil foi submetida à força da repressão militar,


Rollemberg(2012) afirma em seu artigo que a democracia - para os partidos de esquerda
– era até então praticada no Brasil pela burguesa, contrapondo-se com a sociedade que
seria contra o governo autoritário. A autora ainda afirma que a democracia não era o
objetivo das esquerdas armadas: os partidos de esquerda não queriam a restauração do

463
VENTURA, Zuenir. 1968: Ao no que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1988. Pág. 81
464
ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas Revolucionárias e luta armada. In FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da Ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.pág. 45
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antigo sistema democrático brasileiro, mas a implantação de um governo socialista, um


novo Estado diferente de qualquer forma anterior de governo465.
Após 1964, a saída de diversos militantes do PCB acarretou na criação de outros
partidos, como exemplo o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR,
criado por Jacob Gorender; a criação da Dissidência da Guanabara, mais conhecida
como MR 8, que foi dirigida por Daniel Aarão Reis Filho466; a ALN, ligada a Carlos
Marighella467, antigo dirigente da PCB; entre outros. Tais partidos propunham a
resistência armada a partir do uso da força, focando na relação entre o proletariado e o
campesinato, em confronto com ao mais antigo embate marxista entre proletariado e
burguesia.
As esquerdas armadas eram compostas, geralmente, por estudantes e por pessoas
profissionais que possuíam certo nível de capacitação, pessoas com ideais de
transformação social. Os partidos não possuíam como projeto estratégico a organização
de debates teóricos, táticos e estratégicos, mas focavam na necessidade de se deflagrar a
luta armada, que romperia com as formas de governo até então utilizadas no Brasil.
A ideia de alguns destes revolucionários, assim como Marighella, seria o de
utilizar a experiência armada cubana no Brasil, realizando adaptações necessárias para o
cenário brasileiro. Alguns brasileiros viajavam até Cuba para participar de treinamentos
e, ao voltar para o Brasil, implementariam o que aprendera – com as devidas
modificações – no Brasil. Em seu Manual do Guerrilheiro Urbano468, Carlos
Marighella(1969) alegava que a tática de guerrilha possuía algumas características
específicas na guerrilha urbana. A guerrilha urbana continha o caráter ofensivo, com
técnicas de surpresa ao inimigo, conhecimento do terreno, emboscadas, sequestros,
mobilidade, velocidade, assaltos, ameaças, entre outros. O objetivo geral das lutas
armadas seria o de “levar as massas a entenderem a luta armada organizada como a
única saída para os seus interesses, logo, devendo submeter-se à dinâmica do
desenvolvimento da guerra revolucionária.”469

465
IDEM, pág. 48.
466
Movimento Revolucionário 8 de outubro, ficando assim conhecido pós o sequestro do embaixador dos
Estados Unidos Charles Burke Elbrick. Tal episódio é narrado no livro O que é isso, companheiro?, de
Fernando Gabeira.
467
ALN é a sigla de Ação Libertadora Nacional, que atuava fortemente entre os anos de 1968 e 1973.
468
Disponível em < http://www.marxists.org/portugues/marighella/1969/manual/cap02.htm >. Acessado
em 6 de agosto de 2013.
469
CHAGAS, Fábio André G. das. As Teses de “Jamil” e a luta armada dos anos 1960-70 no Brasil.
Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Volume 1 - Número 2 - Dezembro de 2009.
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Porém, percebemos que nem sempre Cuba aceitava esse intercâmbio, como foi no
caso do entrevistado Marcelo Santa Cruz, o qual afirmou que, enquanto encontrava-se
na Europa, tentou migrar para Cuba, para aprender e trabalhar em prol da Revolução,
todavia, os cubanos negaram o seu visto, afirmando que o consulado havia dito que:
:
“(...)não há interesse que você vá para Cuba porque seu curso é Direito, há
interesse seu de você continuar o curso, o que é que você vai fazer com o
Direito Capitalista em um país que tem o Direito Socialista, totalmente
diferente, o que você vai aprender lá de Direito Socialista se um dia você
quiser voltar para o Brasil não vai ter nenhuma utilidade, se você fizesse
engenharia agronomia, medicina, etc. tinha interesse de ir para lá, eu
aconselharia. Mas Direito vocês estão com a perspectiva de voltar um dia
para o Brasil.”

É possível discutir, a partir da memória de Marcelo, que Cuba aceitava os


intercâmbios com aqueles militantes que poderiam oferecer algo em prol do país recém
governado por Fidel e aos quais ela julgaria importantes na empreitada a favor do
socialismo em outros países. Através da memória de Marcelo, pode-se interpretar que
não eram todos que adentravam em território cubano: era permitida a entrada daqueles
que fossem, de acordo com a concepção cubana, necessários para a divulgação e
implementação – principalmente a armada - dos ideais socialistas.
No período próximo à volta de Marcelo ao Brasil, as lutas armadas já se
encontravam enfraquecidas, pois possuíam poucos apoios dos partidos de esquerda que
acreditavam que as lutas ideológicas seriam mais importantes que as lutas armadas.
Porém, Chagas(2009) afirma que “com ou sem teoria, nenhuma organização armada
ultrapassou o cerco da repressão ou rompeu o isolamento das massas.”470. Mesmo
existindo diversas redes de apoio que contribuíam para captar informações que
ajudavam na formulação dos planos de guerrilha, os partidos armados não conseguiram
se sustentar por si só: havia uma forte rede com aparatos repressivos que o Sistema
Nacional de Informação possuía para “neutralizar” tais partidos.

As doloridas lembranças: a luta dos familiares em prol dos desaparecidos e


mortos políticos

470
CHAGAS, Fábio André G. das. As Teses de “Jamil” e a luta armada dos anos 1960-70 no Brasil.
Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Volume 1 - Número 2 - Dezembro de 2009.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014 – UFPE

A desmemória – em relação ao período da Ditadura Militar no Brasil - não pode


ser associada ao esquecimento, a memória perdida. Se fatos são apagados da história
dita oficial471, não é necessário ressignificá-los, pois, em teoria, o registro da sua
existência já teria se dissipado. Só se pode apagar o que foi - em algum momento –
memória. Porém, só pode ser recordado o que foi conhecido. No Brasil, pode-se utilizar
esse termo não como esquecimento corriqueiro, mas como um desconhecimento de
fatos que, dispersos da história já conhecida, tornam-se esquecidos472.
A História Oral se constitui de pressupostos que identificam o processo histórico
em dinâmicas - temporalmente próximas ou distantes – transformando as concepções
sobre o presente e o passado. A partir das experiências captadas por experiências que
relacionam a memória com a identidade – seja individual ou coletiva – do sujeito473.
No Brasil, a Lei de Anistia474 de 1979 impôs diversos obstáculos nas
investigações dos crimes cometidos pela Ditadura Civil Militar do Brasil, dificultando o
conhecimento, a compreensão dos acontecimentos – do que ocorreu com alguns
indivíduos - e a constituição da memória. O processo de redemocratização do Brasil foi
controlado – em grande parte - pelos militares, impedindo um radical processo de
ruptura com o recente passado, limitando as articulações e a abertura das informações
daqueles anos de violência. Para evitar maiores conflitos, na época da redemocratização
predominou versões de entendimento mútuo entre as partes, através delas a sociedade
brasileira buscaria dialogar com o passado sem se flagelar com ele.
Indo em confronto as versões oficiais de entendimento mútuo, a forte atuação das
famílias dos mortos e desaparecidos políticos visa enfrentar as barreiras impostas pela
Lei de Anistia, assumindo um dos principais embates contra o que representou a
ditadura brasileira na época da redemocratização do país. Através de tais discussões, as

471
Recordamos da Escola dos Annales, a qual reforçava o ideal de que a História só poderia ser
averiguada através da verificação dos documentos ditos oficiais. Ver BURKE, Peter. A Escola dos
Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1997.
472
BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória.
Porto Alegre: Medianiz, 2012.
473
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007
474
BRASIL, República Federativa do. Lei de Anistia n° 6.683 de 28 de agosto de 1979. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm >. Acessado em 10 de agosto de 2013.
VI Cultura e Memória
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famílias se tornaram o intermediário da memória, com denúncias sobre as violações dos


direitos humanos desse período. A vedação do passado referente ao período não lhes
permite averiguar o grosso das arbitrariedades cometidas. A Lei de Anistia significa “a
supressão da responsabilidade criminal em relação a infrações que objetivamente não
eram de natureza política, como, quando tais infrações foram praticadas para custear
ações contrárias à segurança nacional”475.
A Lei de Segurança Nacional não qualificava como criminosos os atos cometidos
pelos militares contra os que combatiam o regime militar. A LSN aparatava –
juntamente com a DSN - a luta contra o inimigo interno, os ditos “subversivos”, ou seja,
na eliminação dos homens que estivessem contra o Governo Militar. O período
ditatorial pode ser assinalado pela ação das Forças Armadas através de diversas práticas,
que variavam entre acobertar a violência da repressão política - com a finalidade de
legitimar a coerção encobrindo a tortura institucionalizada do regime - com a
necessidade de difundir o medo, forjando o imaginário social para que a população
vivesse em constante receio de uma ameaça permanente a todos.
De acordo com a historiadora Janaína Almeida Teles(2010) “em 1971, com a
centralização do sistema repressivo organizado nos DOI-Codis as práticas de
assassinatos mascarados de tiroteio ou suicídio foram sendo abandonadas. Cresce a
quantidade de casos de desaparecidos políticos.”476 Essa foi a forma encontrada pelo
Governo Militar de lidar com os conflitos entre a legitimidade da coerção – aparatado
pelo DSN – e as repercussões, nacionais e internacionais, das denúncias de abusos aos
direitos humanos..
Dentre os diversos casos existentes pelo Brasil, um dos mais famosos é o de
Fernando Santa Cruz, irmão do Marcelo. No dia 23 de fevereiro de 1974, Fernando e
seu companheiro de militâncias Eduardo Collier Filho foram presos em Copacabana, no
Rio de Janeiro, e desde então não retornaram mais. A primeira denúncia, em ordem
nacional, foi divulgada nos jornais O dia e O Globo477, no dia 2 de março de 1974:

475
COMPARATO, Fábio K. O que fizeste de teu irmão? In: Teles, Janaína (org.) Mortos e desaparecidos
políticos: reparação ou impunidade? 2ª. ed., São Paulo, Humanitas/FFLCH-USP, 2001.
476
TELES, Janaína de Almeida. Os testemunhos e as lutas dos familiares de mortos e desaparecidos
políticos no Brasil. III Seminário Internacional Politicas de La Memória. Recordando a Walter
Benjamim. Justicia, Historia e La Verdad: Escrituras de La Memoria. Buenos Aires, 2010.
477
ASSIS, Chico de[ET AL.] Onde está meu filho?Recife: CEPE, 2011.
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“Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, de 26 anos, veio de São Paulo


para o carnaval, hospedando-se na casa de seu irmão Marcelo(Rua Correia
Dutra, 55/404). Mas desapareceu no sábado. Marcelo procurou-o até ontem,
quando resolveu ir á redação de O Globo. Ele pede a quem tiver notícias de
Fernando avisar em seu endereço. Fernando é moreno, de bigode, tem 1,76 e
trajava bermuda amarela e camisa quadriculada”(O Globo, 2.3.1974)

Toda a família Santa Cruz e amigos se mobilizaram em busca de Fernando,


porém, sem sucesso. O desaparecimento de Fernando foi mais um dos diversos sumiços
até hoje não esclarecidos pelo Brasil. Fruto de um sistema repressivo, o
desaparecimento de Fernando foi negado pelas autoridades, os quais possuíam diversos
instrumentos estatais para fundamentar a negação. O livro Onde está meu filho?,
organizado por Chico de Assis, relata que Márcia Santa Cruz, irmã do desaparecido, foi
ao Doi-Codi paulista na Rua Tomás de Carvalhal, e deu o nome incompleto de
Fernando, porém, após algumas horas o nome foi completado em uma conversa por um
superior denominado de “Marechal”. Este pediu que a família retornasse no domingo,
dia 17 de março, para visitá-lo. Porém, no dia informado, um militar que se denominou
de “Homero” informou que não havia nenhum Fernando nem Eduardo(Collier Filho) no
Doi-Codi. A partir deste dia, a família nunca mais recebeu nenhuma informação a
respeito do paradeiro de Fernando e de seu amigo Eduardo478.
O silêncio e o esquecimento que as famílias passaram – e que até hoje passam -, o
não saber o que ocorreu com os seus entes após o desaparecimento criou uma situação
de eterna tortura psicológica. A falta de uma despedida, de um luto formalizado
perpetua o sofrimento dos brasileiros que não puderam enterrar os seus entes.
A entrevista de Marcelo Santa Cruz permite interpretar que para as famílias que
possuem seus entes desaparecidos a impunidade aos militares como é uma das falhas do
processo de redemocratização do Brasil, discernindo que os crimes proferidos pela
instituição não foram julgados como deveriam ser, porém foram arquivados como
forma de se ocultar as atrocidades cometidas pelas autoridades da época. As discussões
a respeito do alcance da Lei de Anistia englobam o debate sobre a definição e inclusão
de quais crimes devem ser abarcados pela lei.
Para os familiares e diversas entidades civis, foi – e ainda o é - de extrema
importância a abertura de parte documentos militares para fundamentar ainda mais as

478
Idem, págs 20 e 21.
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denúncias contra os militares. Porém, devido a complexidade jurisprudencial da Lei de


Anistia, os debates acerca da validação das denúncias contra os militares que tiveram
seus nomes revelados devido a abertura de tais evidências, ficaram na obscuridade
social, restritos a pequenos círculos. Contudo, Janaína de Almeida Teles(2006)479
afirma que:

“(...) Mas crises institucionais criadas pelas denúncias a respeito da


violência cometida pela ditadura brasileira não conseguiram reverter a
impunidade. Utilizando o conceito de crime conexo, os militares pretenderam
anistiar os torturadores, sem admitir sua existência”

O debate acerca da abrangência da lei de Anistia sobre dos crimes cometidos


pelos militares também se encontra como uma das críticas feitas à Comissão Nacional
da Verdade480 e nas Comissões Estaduais da Verdade. O entrevistado afirma que:

“Enquanto a pessoa(família) não esclarecer como a pessoa foi sequestrada,


onde a pessoa... se foi morta, se tá enterrada e que a pessoa(família) possa
prestar as suas últimas homenagens(...) O crime permanece, é um crime
permanente, só deixa de ser quando você descobre que a pessoa foi morto em
tal lugar, no caso, ocorre a prescrição para qualquer responsabilidade. Aí a
questão dos desaparecidos a gente tem colocado como uma questão
prioritária.”

Mesmo recebendo críticas, as Comissões da Verdade - nacional e regionais - são


vorazes à respeito das descobertas de informações sobre os presos e desaparecidos
políticos, em contraponto aos que aludem a necessidade de que não se deve trazer a luz
do conhecimento certos documentos, afirmando em discursos que a segurança nacional
está acima da verdade de parte da sociedade. Pode-se comprovar a força de tais
discursos pela sanção do decreto 5.584, de 18 de novembro de 2005, definindo a

479
Texto preparado para a comunicação apresentada no debate: Direito, Censura e Imprensa após a
vigência da Constituição Federal de 1988, evento promovido pelo Curso de Direito do Centro
Universitário Nove de Julho -UNINOVE, que ocorreu no anfiteatro Unidade Vila Maria, em 7 de
fevereiro de 2006.
Disponível em <
http://diversitas.fflch.usp.br/files/a%20abertura%20dos%20arquivos%20da%20ditadura.pdf >. Acessado
em 11 de agosto de 2013.
480
Criada pela lei n° 12.528, de 18 de novembro de 2011.
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm >.
Acessado em 14 de agosto de 2013.
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realocação de documentos do Conselho de Segurança Nacional, Comissão Geral de


Investigações e Serviço Nacional de Informações para o Arquivo Nacional, porém, a
abertura de tais arquivos estaria prevista para 30 a 40 anos após a promulgação do
decreto481. Porém, com a lei n° 12.527, de 18 de novembro de 2011, regulamentando o
direito de acesso às informações, divulgando o dever do Estado brasileiro de promover
o acesso a tais informações482
Assim, pode-se averiguar que tais documentos também auxiliam a luta pela
memória dos militantes, armados ou não, que buscavam uma transformação política,
econômica e social no Brasil. A corrida pela não omissão do que ocorreu com os mortos
e desaparecidos políticos auxilia na busca da justiça e na construção e fundamentação
de políticas sociais contra futuros golpes. A justiça não seria necessariamente o
julgamento e a prisão dos que faziam parte do corpo do governo civil militar, mas para
o não esquecimento do que ocorreu através das práticas coercivas utilizadas pelo
aparelho repressor militar.
O relato dos sobreviventes e dos familiares encontra-se nos níveis de
consciência e subconsciência de como cada indivíduo se sentia sob a Ditadura Militar.
O fato de dizer “vou te contar...” traz à tona os traumas, enfatizando o que lhes
convém483. Kehl(2005) integra o discurso de que o relato também é caracterizado como
uma forma de esquecer, para se trabalhar interiormente à libertação do trauma. A
violência suportada – tanto a física como a psicológica -, o não saber a verdade sobre os
entes e/ou da não punição dos seus assassinos que os familiares tentam narrar –
impregnando os fatos com os seus discursos de valores - visando romper com o
menosprezo que cercou a memória da Ditadura em relação aos desaparecidos por anos.
Essas memórias são extremamente importantes, pois, mesmo não representando
totalmente a veracidade dos fatos, elas possuem significado importante: mostrar ao
Brasil o que não se deve repetir na História nacional.

481
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5584.htm >.
Acessado em 11 de agosto de 2013.
482
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm >.
Acessado em 11 de agosto de 2013.
483
KEHL, Maria Rita, O ressentimento. Casa do Psicólogo, São Paulo, 2005
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Bibliografia
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BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os Governos Militares. In
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o
tempo da Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
BURKE, Peter. A escola dos annales, 1929-1989-A revolução francesa da
historiografia. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
2012.
CHAGAS, Fábio André G. das. As Teses de “Jamil” e a luta armada dos anos 1960-70
no Brasil. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Volume 1 - Número 2 -
Dezembro de 2009.
COMPARATO, Fábio K. O que fizeste de teu irmão? In: Teles, Janaína (org.) Mortos e
desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? 2ª. ed., São Paulo,
Humanitas/FFLCH-USP, 2001.
FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada de poder em 31 de março de1964 e a ditadura
militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.
GUIMARÃES NETO, Regina B. Historiografia, Diversidade e História Oral: questões
metodológicas. In: LAVERDI, Robson [et al.] (orgs). História, desigualdades e
diferenças. Recife: Universitária da UFPE, 2012.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória: A cultura Popular
Revisitada. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2010
MULLER, Angélica. “A história como arma”: a memória histórica como objeto da
resistência estudantil contra a ditadura no final dos anos 1970. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH São Paulo, julho 2011.
TELES, Janaína de Almeida. Os testemunhos e as lutas dos familiares de mortos e
desaparecidos políticos no Brasil. III Seminário Internacional Politicas de La Memória.
Recordando a Walter Benjamim. Justicia, Historia e La Verdad: Escrituras de La
Memoria. Buenos Aires, 2010.
ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas Revolucionárias e luta armada. In FERREIRA,
Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da
Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012
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VENTURA, Zuenir. 1968: Ao no que não terminou. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira,1988.

OS PROCESSOS TRABALHISTAS SOB UMA ANÁLISE SOCIAL: OS


TRABALHADORES RURAIS DE GOIANA, PERNAMBUCO (1976-1980 – TRT
6)484

484
Este texto é fruto das pesquisas até então realizadas para o projeto PIBIC intitulado “As vozes dos
trabalhadores rurais nos processos: uma análise das relações sociais e de cotidiano dos trabalhadores da
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Clarisse dos Santos Pereira


Universidade Federal de Pernambuco
clarisse.pereiraa@hotmail.com

Resumo: O principal objetivo do trabalho é analisar historicamente os processos


trabalhistas da Junta de Conciliação e Julgamento da cidade de Goiana (Zona da Mata
Norte de Pernambuco), arquivados pelo Projeto TRT Memória e História no quarto
andar do CFCH da Universidade Federal de Pernambuco. Este acervo conta com mais
de 200.000 processos do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região. Através dos
processos nos propomos a tentar perceber como se produzem certas situações do
cotidiano social do trabalhador da Zona da Mata Norte, uma vez que esta documentação
dá aos historiadores a possibilidade de investigar mesmo a trajetória daqueles
trabalhadores que não deixaram um registro direto. Desta maneira, usamos os
processos como fonte entendendo que o trabalhador rural é um ator ativo da sua história
e da história do Brasil, não sendo o Direito de uso restrito das classes dominantes.
Através deles podemos perceber as relações sociais estabelecidas pelos trabalhadores
rurais, os vestígios das condições de vida desses trabalhadores nesse momento
específico (1976-1980), buscando fazer uma análise social.

Palavras-chave: trabalhador rural, processos trabalhistas, história social.

Introdução

Desde a segunda metade do século XIX, a partir da implementação de leis que


iniciaram o processo do fim da escravidão (como, por exemplo, a proibição do tráfico
de escravos, Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários), o trabalho livre no Brasil
passou a ser a paulatinamente empregado, até a abolição total, em 1888485. Desde então,
os trabalhadores livres lutaram pela aquisição e reconhecimento de direitos que lhes
resguardem proteção no embate estabelecido entre capital e trabalho.
Curiosamente, foram nos períodos ditatoriais do Brasil que os trabalhadores
conquistaram seus maiores direitos. É interessante observar como uma característica

Zona da Mata de Pernambuco a partir das Juntas de Conciliação e Julgamento do TRT 6ª Região. (Goiana
- 1976-1980)” orientado pela professora doutora Regina Beatriz Guimarães Neto, e financiado pela CNPq
desde agosto de 2013.
485
Não entendemos que a abolição mudou imediatamente as estruturas sociais arraigadas desde o século
XVI. Como coloca Emília Viotti da Costa (1966, p. 467 apud FERRARI, NASCIMENTO, MARTINS
FILHO, 1998, p. 35), “a abolição representou uma etapa apenas na liquidação da estrutura colonial”. Ou
seja, apesar de igualar legalmente negros e brancos apenas na letra da lei, a abolição foi sim uma etapa
importante na desconstrução da sociedade colonial e na construção de uma sociedade onde todos os seres
humanos tenham direitos iguais.
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recorrente das ditaduras brasileiras a concessão mais ampla de direitos sociais, em


contraste com o cerceamento de direitos políticos e civis486. O historiador José Murilo
de Carvalho afirma que o período compreendido entre 1930 e 1945, durante a ditadura
de Getúlio Vargas, “foi a era dos direitos sociais” e da organização sindical
(CARVALHO, 2005, p. 123).
Porém, José Murilo destaca um elemento ficou de fora, ou pelo menos transitou
de maneira obscura nessas legislações: o trabalhador rural. Apenas em 1963 é criado o
Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), uma conquista que é reflexo das reivindicações e
pressões do campo487. A partir deste mesmo ano, são criadas Juntas de Conciliação e
Julgamento488 (JCJ). Neste sentido, durante a ditadura civil-militar que se instalou no
Brasil em 1964, vemos os trabalhadores rurais alcançar direitos sociais, que até então
estavam restritos aos trabalhadores da cidade (em 1973 o ETR é revogado, e os
trabalhadores rurais são incorporados à CLT), e que serão utilizados por eles como arma
para agirem na legalidade contra as explorações sofridas. Em 1971 o FUNRURAL é
outra importante conquista do trabalhador do campo.
Os trabalhadores não assistiam passivos a essas transformações. Organizados em
sindicatos, se utilizavam de todos os mecanismos disponíveis para enfrentar os patrões,
486
Em seu livro Cidadania no Brasil, José Murilo de Carvalho vai percorrer a trajetória da construção da
democracia, da cidadania e dos direitos brasileiros. O autor vai afirmar que após as movimentações
políticas de 1930 – que levam a Primeira República ao fim e Getúlio Vargas ao poder –, os direitos
políticos foram seriamente tolhidos, enquanto os direitos sociais tiveram avanços até então nunca vistos.
Os problemas trabalhistas e sociais figuraram entre os mais importantes na Era Vargas, exatamente o
contrário do que acontecia na Primeira República. O exemplo disso é a criação, ainda em 1930, do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e em 1931 do Departamento Nacional do Trabalho. Entre
1930 e 1943 os trabalhadores vão conquistar diversos direitos (menor jornada de trabalho,
regulamentação do trabalho feminino, direito de férias, direitos previdenciários, entre outros), quando em
1943 é finalmente criada a Consolidação das Leis do Trabalho. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania
no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 110-126.
487
Na década de 1950 o Nordeste, e mais especificamente Pernambuco, era tido pelos grandes
proprietários de terra e alguns setores do governo como um foco iminentemente comunista, representado
pelas Ligas Camponesas e pela figura de Francisco Julião. Isto porque, nesta época, os trabalhadores
rurais desta região estavam se organizando em favor de melhores condições de trabalho e travando
desfavoravelmente lutas contra os patrões – afinal, eles ainda não eram amparados legalmente por direitos
trabalhistas. As Ligas Camponesas, organização social de trabalhadores rurais, inicialmente chamavam-se
SAPPP – Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco. “Ligas Camponesas” foi a
denominação dada pelo jornal Diario de Pernambuco, na tentativa de relacionar pejorativamente o
movimento da Sociedade às Ligas Camponesas fundadas pelo Partido Comunista na década de 1940.
Entretanto, os trabalhadores acabaram incorporando a denominação e frustrando a tentativa da imprensa
de colocá-los em uma situação de ilegalidade. Para aprofundar a discussão sobre o assunto: PORFÍRIO,
Pablo F. de A. Medo, comunismo e revolução. Pernambuco (1959-1964). Recife: Ed. UFPE, 2009.
Capítulo 1.
488
As Juntas de Conciliação e Julgamento foram criadas em 1932 com o objetivo de
pacificar os conflitos trabalhistas individuais (os conflitos coletivos ficariam a cargo das
Comissões Mistas de Conciliação, que funcionaram até 1941). As primeiras JCJ de Recife foram criadas
em 1941.
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sendo a Zona da Mata pernambucana489 o principal palco de conflitos entre empregados


e empregadores; afinal, era nesta mesorregião onde se concentravam (e ainda se
concentram) grande parte dos engenhos e usinas. Não é por acaso que em 1963 são
criadas quase todas as JCJ desta região que, como afirma o historiador e professor
Antonio Montenegro (2013, p. 329), funcionavam como mecanismos de intervenção do
Estado no embate entre trabalhadores e patrões. Podemos pensar também que a criação
das Juntas evidencia que os locais escolhidos para a instalação das JCJ eram palco de
tensão, sendo necessária a presença do Estado para resolver os dissídios entre
trabalhadores e patrões.
Em 1941 é criado o Conselho Regional do Trabalho da 6ª Região, que a partir de
1946 passa a ser designado Tribunal Regional do Trabalho, assim como a Justiça do
Trabalho – instalada oficialmente em 1º de maio de 1941, e incorporada ao Poder
Judiciário com a Constituição de 1946. Também em 1941 são criadas as primeiras
Juntas de Conciliação e Julgamento no Recife; até a década de 1970 serão criadas várias
outras Juntas, desta vez, localizadas na Zona da Mata e em Paulista. A JCJ de Goiana é
criada em 1962490.

Processos trabalhistas como fonte para pesquisa histórica

A principal fonte utilizada491 neste trabalho foram os processos trabalhistas da


Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana que estão arquivados no TRT 6ª Região.
Os arquivos judiciários revelam práticas do cotidiano social dos trabalhadores; eles são
fontes importantes para compreender as lutas trabalhistas dos trabalhadores do campo,
sobretudo quando trazem outros elementos além da própria fala das partes do processo,
como fotos, registros e outros documentos, que podem ser anexados aos dissídios.
A utilização dos arquivos provenientes dos processos que se deram nas Juntas de

489
Como explica Manuel Correa de Andrade, a mesorregião da Zona da Mata pernambucana, território
em Pernambuco onde a cana-de-açúcar é cultivada, é uma faixa estreita de terra paralela ao litoral,
compreendida entre o rebordo oriental do Maciço da Borborema e o mar. ANDRADE, Manuel Correa de.
Espaço e tempo na agroindústria canavieira de Pernambuco. Estudos Avançados, v. 15, nº 43, set/dez
2001. p. 268.
490
Dados obtidos a partir da linha do tempo do site do Projeto TRT 6 Memória e História. Disponível em:
<http://www.trt6.jus.br/memoriaehistoria/index.php?option=com_content&view=article&id=35&Itemid=
49>. Acesso em 19 de jan. 2014.
491
Esta pesquisa também prevê o levantamento e entrecruzamento entre as fontes processuais e os
principais jornais de Pernambuco, Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco; além do levantamento
de prontuários de Goiana que se encontram no arquivo DOPs, todos arquivados no Arquivo Público
Estadual Jordão Emereciano (APEJE).
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Conciliação e Julgamento é fonte para a pesquisa de diversos historiadores (Antonio


Montengro, Christine Dabat, Maria do Socorro Abreu e Lima, entre outros). Os
processos trabalhistas há muito são importantes para a historiografia. Nas palavras de
Montenegro:

A historiografia brasileira voltada para o século XX tem crescentemente


utilizado a documentação proveniente do poder Judiciário e, em especial, a
da Justiça do Trabalho, na medida em que foram sendo problematizadas, sob
outras perspectivas, as relações entre patrão e empregados, e o Direito e o
Estado passaram a não ser entendidos como domínio das classes dominantes
(MONTENEGRO, 2013).

Analisar historicamente processos trabalhistas é perceber os movimentos de


empregados e empregadores no andamento (muitas vezes tenso) do conflito; é perceber
que o trabalhador rural é um ator ativo da sua própria história e da história do Brasil e
que o Direito não era usado exclusivamente pelas classes dominantes. Ao falar da
importância dos arquivos para os historiadores, Fernando Teixeira da Silva nos diz
sobre o papel dos trabalhadores:

[...] ao contrário de aparecerem como vítimas ou massa de manobra de uma


sinistra orquestração patronal avalizada pelo Estado, a legislação e a Justiça
sempre desempenharam papel ativo na formação dos trabalhadores, criando
entre eles uma “consciência jurídica de classe” (SILVA, 2007, p. 35).

Neste sentido, Sidney Chalhoub em seu livro “Trabalho, lar e botequim” (2001)
nos ajuda a pensar que os processos judiciais dão aos historiadores a possibilidade de
investigar a trajetória do trabalhador, mesmo daqueles que não deixaram um registro
direto.
Tendo em mente que nesses documentos nós trabalharemos não com a fala livre
do trabalhador, mas sim com uma fala intermediada, direcionada, em um contexto
específico, procuraremos percorrer, através dos arquivos, os vestígios dos trabalhadores
rurais. Entendemos, a partir de Chalhoub, que, através dos processos, é possível
“desvendar significado e penetrar nas lutas e contradições sociais que se expressam”
(CHALHOUB, 2001, p. 41), nos propomos a tentar perceber como se produzem certas
situações do cotidiano social do trabalhador da Zona da Mata Norte.
Historiadores como Carlo Guinzburg, Natalie Zemon Davis, Sidney Chalhoub e,
mais próximo, Christine Dabat, Maria do Socorro Abreu e Lima e Antônio Torres
Montenegro, utilizaram processos jurídicos como fontes em suas pesquisas para
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construírem História(s) social(ais) e nos ajudam a pensar sobre a escrita histórica a


partir de fontes processuais, sempre problematizando as possíveis contradições e sempre
buscando o entrecruzamento das fontes.
Ginzburg (2007, p. 151-152) que vai nos ajudar a pensar sob os signos de um
“paradigma indiciário”, dizendo que “a partir de dados aparentemente negligenciáveis,
[é possível] remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente”. Ou
seja, trazendo para a pesquisa aqui relatada, a partir dos vestígios que as disputas
processuais nos trazem, é possível captar rastros que nos possibilitam falar sobre o
universo social do trabalhador rural.

Os trabalhadores rurais de Goiana nos processos trabalhistas

Para este artigo, exporemos as análises feitas a partir de três processos do ano de
1976 que catalogamos492. A escolha desses processos se deu pelo fato de que eles nos
revelam, a partir de pequenos vestígios, alguns aspectos da vida do trabalhador rural,
com destaque à questão da moradia e às condições de trabalho nas fazendas e usinas da
Zona da Mata pernambucana.
O primeiro processo, de número 67/76, traz a petição de José Trajano Ferreira –
trabalhador rural, casado, analfabeto – contra uma das usinas mais reclamadas de
Goiana: a Companhia Açucareira de Goiana. As discussões trazidas pelas atas de
instrução do processo podem ajudar a acharmos indícios sobre aspectos do cotidiano
dos trabalhadores rurais dessa região, suas relações, e estratégias de organização da
vida.
José Trajano – que residia em um dos engenhos da Companhia, o Goiana
Grande – trabalhava para na empresa desde outubro 1964. Foi demitido em novembro
1975 pelo administrador Manuel Augusto por motivo considerado por ele injusto, e por
isso procurou a Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana no dia 26 de janeiro de
1976, juntamente com o advogado Alcides Rodrigues de Sena.

492
O recorte temporal contemplado por esta pesquisa (1976-1980) nos coloca em contato com processos
trabalhistas ainda não catalogados pelo Projeto Memória e História. Ou seja, os processos não se
encontram catalogados, encaixotados ou mesmo organizados por ordem cronológica, o que requer do
pesquisador um esforço de organização antes da análise do documento em si. Para este artigo escolhemos
um grupo de 81 processos de todo ano de 1976.
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Na segunda e na terceira audiências493, onde as partes foram interrogadas pela


juíza Maria Helena Guedes Soares Pinho, e testemunhas do reclamante foram arroladas,
tomamos conhecimento, através dos depoimentos, de dois fatos que nos interessa:
primeiro, que o trabalhador ficou durante quatro anos como “clandestino” na empresa;
ou seja, sem carteira assinada. Por isso, neste período, nunca recebeu direitos
trabalhistas como repouso remunerado, 13º salário, férias, ou qualquer outro benefício.
Depois que virou “fichado” e teve a CTPS assinada, José Trajano passou a gozar de
todos os benefícios garantidos na CLT, o que nos indica que a carteira trabalhista era,
para o trabalhador rural, de fato um instrumento de luta, legitimando as reivindicações e
garantindo os direitos previstos na lei. Mas, ao mesmo tempo, muitos trabalhadores,
como foi o caso de José Trajano Ferreira, abriam mão dessa garantia para conseguir um
sustento mínimo, que o trabalho em fazendas e usinas açucareiras davam.
O segundo fato: ficamos sabendo que o motivo da demissão do trabalhador
começou com um desentendimento que a esposa dele teve com a esposa de um vizinho.
José Trajano tentar ir resolver a briga com o administrador do engenho, mas deste ouve
que se quisesse evitar atrito, procurasse outro “barracamento” para morar. Ao alegar
que não tinha para onde ir, Manuel Augusto, o administrador, ameaça José Trajano,
dizendo ao trabalhador que “[...] não tinha casa para lhe dá e que ele só saia do
barracamento quando fosse chamado a polícia e mandasse lhe dá uma surra” 494. José
Trajano depõe que, com medo de apanhar, não compareceu mais aos serviços da
reclamada, e estava sobrevivendo através de ajuda do sogro o dos cunhados.
As testemunhas, porém, revelam, mesmo que indiretamente, que o
comportamento de Manuel Augusto é incomum, ao alegarem que “[...] mesmo em caso
de discussões entre marido e mulher o trabalhador procura o administrador do engenho
para que ele resolva a situação”495. Este relato nos diz que, independe do assunto ter
relação com a empresa, o administrador sempre intercede nos problemas dos
funcionários. Isso, claro, é possibilitado pelo fato dos funcionários morarem nas

493
Na primeira audiência a Companhia Açucareira de Goiana alega estar quite com o trabalhador. Para
provar as arguições das partes, é marcada nova audiência para que as provas e testemunhas sejam
recolhidas.
494
Depoimento de José Trajano Ferreira. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Goiana-PE. Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo: 0067/76. p. 10.
495
Depoimento de Manoel Cândido da Silva, testemunha do trabalhador reclamante, José Trajano
Ferreira. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana-PE. Arquivo Memória e
História TRT/UFPE. Processo: 0067/76. p. 17.
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fazendas dos patrões. Entretanto, Manuel Augusto se negou a mediar o problema de


José Trajano, fazendo, inclusive, ameaças ao trabalhador.
Apesar das intimidações, José Trajano continuou morando no Goiana Grande. O
vizinho com quem houve o desentendimento, porém, mudou-se para uma casa mais
distante, e, passados três meses desde a petição iniciada, as testemunhas de ambas as
partes afirmam que o administrador do Goiana Grande mudou, não sendo mais Manuel
Augusto o responsável pelo Engenho. Com essa mudança de panorama, a magistrada da
Junta de Goiana julga o pedido de José Trajano como procedente em parte, por
considerar que “[...] o fato de ter a esposa do obreiro discutido com a mulher de outro
rurícola, não é motivo para que o contrato de trabalho de um trabalhador estável seja
reincidido”496. Assim, ficava a Companhia obrigada a readmitir o trabalhador e ainda
pagar-lhe todos os direitos omitidos de 1964 a 1968 (período em que o trabalhador
trabalhou clandestino): um total de dois mil e quinhentos cruzeiros; vencimentos que
foram quitados em 14 de maio de 1976.
A partir dos relatos dos trabalhadores envolvidos nessa petição, conseguimos ter
noção de como funcionavam as negociações e estratégias entre os próprios
trabalhadores dentro do contexto da moradia na usina.
O segundo processo que analisamos neste artigo é um litígio que corre de
maneira relativamente rápida – apenas nove dias –, e, como a maioria, termina em
conciliação. O processo 107/76, datado de 16 de fevereiro de 1976 traz a petição de
Antônio Marinho da Silva, contra a Usina Central Olho D’Água, onde ele trabalha
como cabo. O trabalhador tentou negociar com a Usina o fim do seu contrato de
trabalho, uma vez que dali a pouco tempo sua casa, localizada em uma fazenda da
Usina, ficaria submersa por águas, em função da construção de um açude.
Segundo o trabalhador, a empresa ofereceu um outro local de moradia, mas que
não era conveniente à ele. Por isso, Antônio tentou negociar sua saída da Usina, uma
vez que não lhe era mais interessante continuar trabalhando ali. Porém, a Olho D’Água
se recusou a discutir o assunto. Antônio Marinho, então, através do advogado Josué

496
Fala da juíza Maria Helena Guedes Soares Pinho, em pronunciamento da sua decisão. Processo
Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana-PE. Arquivo Memória e História
TRT/UFPE. Processo: 0067/76. p. 26. Segundo a CLT, era considerado trabalhador estável aquele que
trabalhava há dez anos ou mais na mesma empresa. A juíza, considerando o contrato de José Trajano a
partir de 1964, mesmo antes do trabalhador ser “fichado”, o considerou trabalhador estável da Companhia
Açucareira de Goiana.
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Antônio Sena, reclama da empresa indenização, aviso prévio, prejulgado número 20,
férias e 13º salário.
Entretanto, antes de se realizar a audiência onde a Usina apresentaria sua
arguição, foi concretizada a conciliação entre as partes, e a empresa pagou seis mil
cruzeiros a Antônio Marinho da Silva, um valor relativamente alto se comparado à
média de valores pagos em conciliações nesse período (que geralmente ficavam em
torno de quinhentos a dois mil cruzeiros497).
O litígio impetrado por Antônio Marinho joga luz sobre alguns aspectos da vida
do trabalhador rural da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Podemos pensar, em
primeiro lugar, na condição de moradia dos trabalhadores rurais: uma vez moradores
das fazendas das usinas, os trabalhadores ficavam (ainda mais) suscetíveis aos
autoritarismos dos patrões. No caso de Antônio, sua casa desapareceria e não sendo
conveniente o outro lugar de moradia oferecido, se dependesse da Usina Central, o
trabalhador ficaria sem casa.
Mas Antônio Marinho não simplesmente se conformou com postura
intransigente da Usina. Vemos um trabalhador que amparado pela legislação articula e
fomenta sua própria mudança, traçando estratégias para a conquista de uma vitória
contra o setor patronal.
O terceiro processo que destacamos em nossas análises aqui é o de número 823
de 1976. O documento traz a petição de Manoel Domingos de Carvalho, trabalhador
rural e analfabeto que, assim como José Trajano, nosso primeiro personagem,
trabalhava na Companhia Açucareira de Goiana. No dia 15 de dezembro de 1976,
Manoel procura a JCJ de Goiana juntamente com o advogado Josué Antônio Fonseca de
Sena.
Na petição inicial, o trabalhador alega que começou a trabalhar na Companhia
em abril de 1969, prestando serviços através de empreiteiros, mas que nunca recebeu
férias, 13º salário, repouso semanal, e que a empresa se recusa a assinar a CTPS. O
trabalhador requer então, o pagamento de férias em dobro e simples, 13º salário,
repouso semanal remunerado, bem como a anotação na Carteira Trabalhista, além de
juros e correção monetária, resultando um valor total de 4 mil cruzeiros.
No dia 13 de janeiro de 1977, porém, quando foi instalada a 1ª audiência, o
trabalhador, em sua arguição, além de reiterar as acusações iniciais, faz um relato que

497
Estamos levando em conta o recorte de 81 processos, do ano de 1976, analisados para este artigo.
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não estava posto na petição: Manoel alega que fazia 6 meses que estava afastado do
trabalho por motivo de doença, pois nos últimos anos ele não estava bem de saúde.
Antes, Manoel tinha ficado 9 meses afastado, também por motivo de doença, e depois,
em junho de 1976, havia ficado mais dois meses fora, porque, segundo ele, não tinha
condições de voltar ao trabalho por acreditar que estava "doente do juízo". Nesta
audiência, a Companhia Açucareira de Goiana se defende alegando que Manoel nunca
havia trabalhado em nenhuma fazenda da Companhia, e que nenhum dos empreiteiros
citados por Manoel trabalhavam para a empresa.
Na segunda audiência, no dia 17 de janeiro de 1977, as testemunhas arroladas
por Manoel Domingos – Reginaldo Gonçalves da Silva, servente, 27 anos, analfabeto; e
Manoel Adelino Luiz, trabalhador rural, 51 anos, analfabeto, mas que "sabia ler datas",
ambos já haviam trabalhado com Manoel Domingos –, reiteram o discurso do
trabalhador reclamante, confirmando datas e nomes dos empreiteiros, e revelam ainda
mais sobre a situação de Manoel Domingos diante da empresa: as testemunhas não só
confirmam que o afastamento do trabalhador fora por motivos de doença, como
afirmam que Manoel Domingos perdeu a visão de um olho por causa de um acidente de
trabalho. O segundo afastamento, de dois meses, também foi por motivo de doença,
mas, segundo as testemunhas, o próprio Manoel alegava que não tinha a ver com o
acidente.
Nenhuma dessas informações foram dadas por Manoel Domingos, mas sim por
suas testemunhas. E em nenhum momento o trabalhador reivindica indenização pelo
acidente.
Depois de ouvidas as testemunhas, a juíza da Junta, Maria Helena Guedes
Soares de Pinho, marca a próxima audiência para o dia seguinte, 18 de janeiro. O que
encontramos no processo, porém, é um termo de conciliação: Manoel Domingos de
Carvalho ao aceitar 900 cruzeiros da Companhia Açucareira de Goiana, "desiste da
reclamação e dá plena, geral e irrevogável quitação de todos os títulos pleiteados na
[petição] inicial"498 (ou seja, os 4 mil cruzeiros pleiteados inicialmente).
Não há como sabermos os motivos pelos quais Manoel Domingos não ter citado,
em nenhum momento, o acidente de trabalho, nem tampouco porque, depois de arrolar

498
Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana-PE. Arquivo Memória e
História TRT/UFPE. Processo: 0823/76. p. 13.
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duas testemunhas, o trabalhador decidiu entrar em acordo com a Companhia, abrindo


mão de grande parte do pleiteava na abertura do processo.
Entretanto, o relato de que Manoel Domingos perdeu a visão enquanto
trabalhava nos revela que os trabalhadores rurais da Companhia Açucareira de Goiana,
além de viverem e trabalharem em situação precária, não recebiam, nem nos momentos
mais críticos, nenhum tipo de assistência dos patrões, que se recusavam até mesmo a
reconhecer o trabalhador como seu empregado. A tese de doutorado da professora
Christine Dabat (2007, p. 507-522) mostra, através de relatos de trabalhadores rurais,
que essa postura do patronado é há muito recorrente, e que a falta de assistência aos
trabalhadores rurais não foi uma exceção com Manoel Domingos.
Por sua vez, a conciliação, “acompanhada” de uma aparente perda, como no
caso de Manoel Domingos (que pleiteava 4 mil cruzeiros e recebeu apenas 900),
também não é incomum. A maioria dos 81 processos analisados para este artigo
terminaram em conciliação (48). Em alguns dissídios houve audiência. Em outros, nem
isso; o acordo era firmado logo após a petição inicial. O arquivamento também era outro
destino comum para os processos abertos (20): os reclamantes simplesmente não
apreciam para as audiências marcadas. Apenas uma pequena minoria dos processos
foram julgados: doze (cinco procedentes em parte, três procedentes, três improcedentes,
e um carecedor de ação).

As conciliações

Como dito no tópico anterior, as conciliações representam um número


expressivo no desfecho dos processos trabalhistas. Se pensarmos que as Juntas foram
criadas como um incentivo a conciliação entre as partes499, nós conseguimos entender,
pelo menos em parte, porque esse era um caminho tão recorrente.
Podemos pensar também, na esteira de Clarice Speranza (2013), que, para o
trabalhador, muitas vezes, era vantajoso fazer a conciliação, mesmo que quase sempre
ele ganhasse muito menos do que o valor estabelecido pelo juiz. Isto porque,
conciliando, o trabalhador teria o seu benefício muito mais rapidamente do que se
esperasse toda a tramitação do julgamento. Clarice também destaca que a conciliação

499
Em 1957, João Goulart, em um discurso sobre as reformas trabalhistas implementadas pelo então
presidente Getúlio Vargas, afirmou de Vargas “situou o trabalhismo brasileiro não no terreno da luta
frontal, mas no da conciliação de classes” (Jornal do Commércio, 05 mai. 1957 apud DABAT, 2007, p.
92), o que nos ajuda a esclarecer a postura das Juntas de prezarem pela conciliação.
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também poderia ser boa para o patrão, que não precisaria arcar com os custos de uma
ação judicial longa.
A autora diz “[...] Nesta visão, a conciliação seria um caminho para a harmonia
entre os interesses díspares de trabalhador e de patrão e não implicaria derrota ou
vitória, mas consenso” (SPERANZA, 2013, p. 52), o que mostra, então, que estava se
cumprindo a função para que as Juntas de Conciliação e Julgamento foram criadas. E
continua “[...] Seu uso sistemático através do tempo moldou as relações entre operários
e patrões, ajudando na formação do trabalhador brasileiro, na sua percepção de vida e na
sua capacidade de luta contra seu antagonista, o capitalista” (SPERANZA, 2013, p. 57).

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BREVE DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA SOBRE A CONFERÊNCIA DO


NORDESTE E SUA MEMÓRIA

Cristiane Coimbra Aurora


(Mestranda da UFRRJ. Cristiane.historia@yahoo.com.br)

Compreender o Golpe Militar de 1964 é fundamental para entender a história


recente do país pois revela entre outros elementos, a permanência no tempo presente de
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práticas autoritárias desenvolvidas pelo regime. Dito de outra forma, o regime militar
durou vinte e um anos porque houve apoio da sociedade civil a algumas dessas práticas.
Passados cinquenta anos do Golpe muito se tem discutido e pesquisado sobre a
memória política de atores sociais que militaram contra a Ditadura. No entanto é
importante para elucidar melhor esse período, conhecermos a memória religiosa.
Para o presente trabalho pensamos em apreender a memória protestante num
contexto Pré-Golpe. A realização Conferência do Nordeste, em 1962, na cidade de
Recife, a “Moscouzinha brasileira”, oferece justamente uma chave para a reconstrução
desse contexto, nos anos de 1960. Nosso trabalho se pautará com base na discussão
bibliográfica e da produção acadêmica acerca da Conferência, ou seja, um apontamento
de como pesquisas recentes tem abordado o evento.

Palavras-chave: Conferência do Nordeste, memória, produção historiográfica.

O historiador é um indivíduo pertencente a um tempo e é receptor da influência


postulada de sua época (REMOND, 1998, p13). Sob a ótica do tempo presente, o
historiador se depara com grande quantidade de textos sob a forma de livros ou artigos
sobre o período da Ditadura Militar. Para, além disso, a disputa pela memória ganha
‘corpo’ através da Comissão da Verdade que pretende apurar crimes cometidos pelo
Estado entre os anos de 1937 e 1985. Essa apuração pode trazer lembranças traumáticas,
que no contexto político atual, oferece a possibilidade de encontrar nos vestígios da
memória individual, a memória política do País.
O Golpe Militar de 1964 é a chave para entender a história recente do país, pois
revela a característica de uma tradição autoritária apoiada pela sociedade. Dito de outra
forma, os militares agiram com apoio da sociedade. É crucial, tornar essa afirmativa
evidente nas nossas pesquisas, pois há uma memória que entra em disputa sobre esses
vinte e um anos que durou o Golpe (FICO, 2013, 447).
No tocante à memória esta se refaz em virtudes de novas inquietações e
vivências, novos achados e ângulos de abordagem. Existem batalhas de memória na
construção do passado recente do país que abarca o início da Ditadura-Civil Militar, sua
consolidação e seu desmonte, bem como as ações contrárias a esse sistema (AARÃO,
2004, p, 30).
Sobre as produções de memória é importante resgatar a memória religiosa
protestante, mas em um contexto Pré-Golpe. Referimo-nos aqui, a Conferência do Nordeste
realizada em Recife no ano de 1962 com o tema Cristo e o Processo Revolucionário
Brasileiro. No entanto para abarcar essa memória é necessário visualizarmos o contexto
político social nos anos que antecederam ao Golpe.
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A presente comunicação pretende humildemente apontar para um breve


levantamento sobre a forma de abordagem da Conferência do Nordeste realizada em 1962.
Pretendemos também ser um ponto de partida para uma reflexão sobre as produções que
abarcam o referido tema.
Utilizamos aqui as partes das obras de Joanildo Burity, Jorge Pinheiro, Rolf
Schunemam e Wanderley Pereira da Rosa.

Contexto sócio-político

Os anos de 1960 são de grande agitação no Brasil. Para entender esses agitados
anos é importante voltarmos aos acontecimentos anteriores ao Golpe Militar de 1964,
especificamente ao governo de João Goulart o qual foi marcado por mudanças.
O referido presidente propôs Reformas de Base como a bancária, a fiscal, a
administrativa, a urbana e a universitária, além de conceder direito de voto aos
analfabetos e a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), assim como o
controle do capital estrangeiro, do monopólio estatal e de setores estratégicos da
economia (MARTINHO, 2006, p 97)
Eram medidas que demonstravam tanto para os grupos nacionalistas quanto para os
de esquerda, a intenção de mudar a estrutura econômica e política do país. A reforma
agrária foi a mais difícil de solucionar, pois as esquerdas reunidas na Frente de Mobilização
Popular (FMP)500 (Idem) liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,
queriam que o Congresso Nacional aprovasse a reforma sem indenizar os proprietários
rurais, o que contrariava o artigo 141 da Constituição de 1946501.
Para os camponeses a reforma agrária estava na pauta das discussões que eram
verbalizadas pelas Ligas Camponesas502 lideradas por Francisco Julião. No Recife, a
“capital comunista do Brasil”
Igrejas do seguimento Protestante como metodistas luteranos e presbiterianos, se
manifestaram ante a conjuntura sócio-política. O fizeram através da Confederação
Evangélica do Brasil (CEB) uma fusão de três órgãos de serviço: Conselho de Educação
Religiosa, a Comissão Brasileira de Cooperação e a Federação Evangélica do Brasil. A

500
Reunia as principais organizações de esquerda que lutavam pela reforma agrária.
501
O Artigo 141 previa a indenização aos fazendeiros em caso de desapropriação.
502
Surgidas em 1955, com o objetivo de organizar o campesinato propunham defender os camponeses
contra a expulsão de suas terras, o aumento do preço do arrendamento e a prática do “cabão” na qual o
trabalhador rural deveria trabalhar de graça uma vez por semana para o dono da terra. Cf. BORIS,
Fausto. História concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2009.
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CEB promoveu encontros e debates que abarcavam a problemática social. Em 1961,


convocou o presidente João Goulart solicitando as reformas de base, denunciando as
injustiças sociais e reivindicando um novo sistema educacional (SCHÜNEMANN 1992 p
36)
Dos encontros, o que mais provocou impacto no mundo protestante foi a
Conferência do Nordeste com a temática “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”,
para os protestantes envolvidos na Conferência era o momento de compreender a realidade
que se vivia e também reforçar a responsabilidade da atuação das Igrejas, tanto
biblicamente quanto teologicamente. O evento teve a colaboração de Celso Furtado,
Gilberto Freire, Paul Singer, Juarez Brandão e também analistas teológicos como Bispo
Almir dos Santos, João Dias Araújo, Joaquim Beato e Rubem Alves (RAMALHO, 2010,37
). Entre os dias 22 e 29 de julho de 1962, em Recife, “a moscouzinha brasileira” 503, o grupo
analisou a ebulição da realidade nacional. A Conferência do Nordeste pode ser vista como o
único evento com organização protestante brasileira para “tratar das questões sociopolíticas
que caracterizavam a vida nacional” (DIAS, 2012, p 55) Para os protestantes foi um divisor
de águas, de um lado ficaram aqueles que defendiam uma mudança estrutural e real e do
outro lado os que defendiam uma solução paliativa. Toda essa discussão teve como pano de
fundo o compromisso assumido pelas Igrejas relativo às questões econômicas e sociais que
foi discutido em Nova Deli (Índia) em 1961 (SCHÜNEMANN, 1992, 37).
Em 1964, sob a alegação de falta de recursos financeiros, a CEB reduziu as
atividades de setores considerados perigosos havendo denúncia de muitos leigos e pastores
ao DOPS (Departamento e Ordem Política e Social) e ao SNI (Serviço Nacional de
Informação) (Idem) órgãos que, respectivamente, realizavam perseguições, prisões e
interrogatórios além de assessoria e informações ao presidente (MARTINHO, 2006, p
136).
Nos anos 1960, o Brasil era visto pelos Estados Unidos como “demasiadamente
vermelho” (GREEN, 2009, p. 25). Essa instabilidade política foi a justificativa usada por
membros das Forças Armadas para darem o golpe civil-militar de 31 de março de 1964, o
qual foi apoiado por Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos, e parte do
Pentágono. Em 02 de abril de 1964 o presidente estadunidense, Lyndon Johnson,
reconheceu o governo militar no Brasil. Para a esquerda, o Tio Sam era um inimigo

503
Essa afirmativa refere-se à Recife por ter uma esquerda forte e atuante na política do Estado.
Disponível in: <
http://www.alagoas24horas.com.br/conteudo/?vEditoria=Reportagens+Especiais&vCod=2217 > Acesso
em 07 de junho de 2010.
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internacional que apoiou os generais no poder, pois havia um medo por parte dos Estados
Unidos, do Brasil se tornar comunista, a começar pelo Nordeste. (Idem)

Contexto teológico

Precisamos caracterizar o que condicionou a produção do discurso social


protestante. No século passado a modernidade entendida aqui não só como hegemonia
das sociedades capitalistas e os trabalhos do movimento socialista, foi respondida por
diferentes formas pela igreja. Faremos aqui três apontamentos da produção do discurso
teológico sobre as mudanças sociais e políticas bem como o movimento da Igreja nessas
mudanças: envolvimento e militância política dos cristãos através do Evangelho Social,
Socialismo Religioso e Igreja Confessante a crise na política e no pós Segunda Guerra e
o Conselho Mundial de Igrejas. Nessa conjuntura surge o conceito que possibilite a
compreensão da teologia social dos anos de 1950 e 1960, a sociedade responsável
(BURITY, 2011, p 122).
Debruçamo-nos aqui no Socialismo Religioso que terá a análise marxista como
interlocutora do social e a reflexão teológica do movimento que teve como Paul Tillich,
Richard Wegner e os Blumhardt (Joham Chistoph e Chistoph) na Alemanha seus
propulsores. Um dos primeiros documentos desse movimento é o “Socialismo como
uma questão de Igreja”, no qual Tillich e Wegner defendem que exista uma maior
articulação do cristianismo ao social, pois o “amor tem consequências sociais” (Idem).
No pós-Segunda Guerra desencadeou-se uma crise teológica com a instituição
do movimento ecumênico no Conselho Mundial das Igrejas em 1948, pondo em
evidência os nomes de Paull Tillich, Karl Barth, Brunner e Dietrich Bonhoeffer que
passaram a ser lidos pelo movimento ecumênico e por protestantes brasileiros que
lançaram as bases para a construção do discurso teológico-político entre os anos de
1950 e 1960, no Brasil. (Burity, p, 127)
Ainda segundo Burity, Tillich apresentou um diálogo aberto com o marxismo, a
luta de classes na sociedade capitalista. Ao discursar em uma conferência com o título
Vida e Trabalho em Oxford, Tillich declarou que “Deus geralmente fala às Igrejas
através daqueles que trabalham pela justiça social mesmo que não sejam cristãos”.
Tillich também defendia o diálogo aberto da teologia com as ciências sociais.
Desde a década de 1920 que as igrejas protestantes procuravam dar uma resposta
crista as questões do universo socialista. O Conselho Mundial (CMI) de Igrejas tem por
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preocupação pensar a responsabilidade cristã diante da realidade social. A reunião do


CMI realizada em Amsterdã em 1948 tinha como centro a “Sociedade Responsável”
que não se trata de uma sociedade cristã, mas sim de um conjunto de princípios que
norteiam as igrejas às questões e causas sociopolítico e econômico. A referida
assembleia repudia a confecionalização político-partidário (Burity, p136 ).
Embora o discurso proferido na CMI com desenvolvimento de uma teologia
voltado para o social era politicamente incapaz de se opor a uma ameaça a ordem
vigente. A Revolução Cubana, o movimento dos cristãos pelo socialismo, movimentos
nacionalista radicais nos países latino-americano levam a uma visão conflituosa do
processo, o que quer dizer que internamente as igrejas seja católica ou protestante a
perspectiva de uma sociedade responsável é limitada pois ainda não se sabe o que quer
mas inicialmente aponta para uma transformação que rompa com a logica do
capitalismo (Idem).
Dessa forma começa a se formar um discurso revolucionário pela concepção
marxista Esse discurso revolucionário também se faz no campo teológico a chamada
“teologia da revolução” presente na América Latina em especial no Brasil com a
presença do teólogo Richard Shaull.
As ideias teológicas de Shaull foram produzidas entre as décadas de 1950 e
1960, a teologia revolucionária por ele produzida faz parte de um processo de
desenvolvimento de uma teologia crítica brasileira que foi interrompida por uma
liderança teológica conservadora e pela Ditadura Militar.
Shaull foi um grande ícone do protestantismo progressista no Brasil. Certamente
foi um grande líder do ecumenismo protestante nos anos acima referidos e sua teologia
fora usada para prática de jovens estudantes e pastores. Foi sob as mudanças teológicas
que a Conferência do Nordeste teve o seu nicho.

Discussão Bibliográfica sobre a Conferência do Nordeste

Para ajudar a tecer a presente comunicação utilizaremos aqui algumas


referências que abarcam o referido evento. São elas: do Cientista Político Joanildo
Burity. Fé na revolução. Protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro (1961-
1964), do teólogo Rolf Schünemann, Do gueto à participação. O surgimento da
consciência sócio-política na IECLB entre 1960 e 1975, organizado pelos teólogos
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Wanderley Pereira da Rosa e José Adriano Filho, Cristo e o processo revolucionário


brasileiro. A conferência do Nordeste 40 Anos depois. (1962-2012504) e Jorge Pinheiro,
cientista da religião e teólogo, Deus é brasileiro. As brasilidades e o Reino de Deus505.
O livro de Jorge Pinheiro, no último capítulo, aponta para os desafios da
brasilidade na Conferência do Nordeste e reitera dizendo que o referido encontro foi um
marco do pensamento protestante.
Diz também que o protestantismo estava sendo bombardeado pela conjuntura
nacional, pelas mobilizações de trabalhadores seja no campo ou na cidade, bem como a
caminhada da Igreja Católica ao lado da esquerda506.
Para o autor a Conferência foi um estímulo à Igreja para que esta pudesse se
encontrar com a sociedade brasileira. Foi também um esforço para entender o
movimento socialista que se fazia nos círculos operários , entre os camponeses e setores
médios da sociedade nacional. O que não cabia à Igreja de Cristo (instituição) o
estabelecimento de um sistema político ou social, mas sim o de reconhecer o papel de
especialistas que analisaram os fatos naquele momento.
Pinheiro reflete que os intelectuais protestantes falarem à sociedade brasileira é
também falar para homens e mulheres que tem “fome e sede de justiça” e foi com esse
anseio de fome e de sede que o “corpo de Cristo” se fez presente na discussão sobre a
realidade brasileira.
Nunca é demais lembrar que o nordeste era uma reserva da revolução brasileira
e um dos pensadores sobre a região é Celso Furtado que foi um dos comunicadores na
conferência. Pinheiro diz que Furtado, em sua fala, traz um olhar sociológico da seca
que está atrelada a concentração de renda e cita como exemplo a produção de algodão.
Quando chegava o período da estiagem o dono da produção algodoeira chamava o
trabalhador pagava o que lhe é devido e dispensava-o. Quando uma fábrica dispensa os
seus operários estes vão para as ruas e gritam. O homem do campo não. Ele fica sem
rumo.

504
O livro resulta de um Congresso realizado em Viória/ES em comemoração aos 50 anos da Conferência
do Nordeste. Nesse encontro, palestrantes que estiveram em Recife, trouxeram as suas memórias:
Joaquim Beato, João Dias Araújo. Prestigiando o evento capixaba deixaram sua contribuição Anivaldo
Padilha e Zwuinglio Mota Dias.
505
As referências completas sobre as obras se encontram no corpo bibliográfico.
506
O livro de GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda Brasileira: Das ilusões Perdidas à Luta
Armada. São Paulo: Editora Ática. 1987, aponta algumas reflexões sobre a aproximação de setores da
Igreja Católica com a esquerda marxista.
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Sobre intelectuais protestantes Pinheiro discorre sobre a fala do Bispo metodista


Almir dos Santos. Segundo o Bispo, uns retém muito e outros nada. Jesus veio por em
liberdade os oprimidos e o cristão deve estar ao lado desses oprimidos agindo para que
haja liberdade e vida digna. Havia um imperativo cristão de anunciar algo novo aos
pobres, o ano aceitável do senhor. Por ano aceitável entendamos como o “ano judaico
do Jubileu” em que é mantido o “equilíbrio monetário, evitando o latifúndio e
acumulação de riqueza”.
As falas de outros palestrantes, ainda segundo Pinheiro, é o do reverendo
presbiteriano Joaquim Beato. Para Beato os profetas bíblicos viviam o seu tempo
exerciam uma ação politica e suas pregações estavam atreladas ao pacto social. Ditos de
outra forma esses palestrantes são como profetas que devem receber o desafio de assim
serem na defesa dos pobres e excluídos.
Outra questão apontada é que ficou claro através das palestras que havia um
compromisso com as mudanças sociais. No entanto essa preocupação com os pobres
não foi vista da mesma forma pela Eclésia, pois esta estava dividida em cúpula e base.
Essa divisão ficou nítida com o golpe militar de 1964 porque alguns queriam estar ao
lado do status quo e outros que questionavam este status.
Rolf Schunemann, de forma similar a Pinheiro, aponta que as igrejas
protestantes refletiram a época socioeconômica do país o que foi permitido através da
CEB e foi através dela que se deu a Conferencia e com o setor Igreja e Sociedade teve-
se inicio a uma tentativa de compreender a realidade brasileira. Questão apontada por
Pinheiro.
A Conferência, segundo Schunemann foi um evento de maior impacto no
universo protestante, pois conduziu as igrejas a se posicionarem através de encontros e
pronunciamentos diante das injustiças sociais à população brasileira. Afirma também
que houve um racha entre as igrejas. De um lado ficaram aqueles que queriam
mudanças reais e aqueles que defendiam mudanças paliativas.
Joanildo Burity, diferentemente das obras acima, faz uma abordagem mais
contextualizada sobre a Conferência. Logo na introdução de sua obra o autor aponta
para a década de 1960 e a presença do termo “revolução” estar presente no discurso
protestante. O que chama atenção do autor é o fatos desses religiosos falarem de
revolução já estes são vistos como ausentes de questões políticas ou sociais.
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O discurso revolucionário brasileiro presente entre os diferentes atores sociais


também assume sentidos diferentes e formas diferentes de se fazer revolução. Dentro
dessa estranheza de ação, o que há em comum entre protestantes e os intelectuais
presentes em Recife é a preocupação com a questão nacional proferida pelos intelectuais
e seus respectivos discursos.
O livro organizado por Wanderley Pereira da Rosa e José Adriano Filho Torna
público algumas reflexões sobre a memória do Evento em Recife. Apontaremos aqui
algumas dessas reflexões de forma sucinta.
O Reverendo Joaquim Beato ao relembrar, diz que a Conferência foi um grande
momento para o protestantismo brasileiro porque revelou a capacidade de diálogo entre
as denominações e também de muita energia. Naquele momento pré-1964 qualquer
discurso divergente era visto como suspeito.
Beato aponta para uma reflexão de que o protestantismo contemporâneo não se
posiciona a pensar a realidade do país diferentemente do engajamento corajoso e fiel
das igrejas que discutiram a estrutura desigual e opressora nos anos de 1960 .
Anivaldo Padilha507, outro comunicador do evento que rememora os 50 Anos da
Conferência, diz que o evento não foi algo isolado mas algo que começou nos anos de
1950 quando algumas igrejas reunidas em torno da CEB e o movimento ecumênico se
posicionaram frente a realidade e cultura brasileira.
Padilha que não esteve em presente na conferência diz se sentir parte dela.
Segundo Padilha, o evento exerceu sobre ele grande impacto pois juntamente com
outros jovens de sua época foram desafiados a romperem com a mesmice que pairava
sobre a igreja e que nada refletia sobre as desigualdades que condicionavam a
população brasileira.
Padilha em sua fala situa os seus ouvintes ao contextualizar o cenário religioso
nos anos de 1950: Os evangélicos, segundo ele, apresentavam um comportamento
moralista; não fumavam não bebiam, não participavam de nenhum tipo de organização
(grêmio estudantil ou sindicatos), passavam a ideia de serem homens e mulheres
“responsáveis”. Além disso, seguiam as autoridades pastorais ou governamentais sem
questionar. O trabalho de ajudar ao próximo sempre tinha um caráter proselitista. Não
pensavam que a pobreza tem raízes profundas.

507
Membro da Igreja Metodista de São Paulo, na época era diretor do Departamento de
Juventude Metodista do Brasil. Foi preso em 1970 pelo DOI/CODI. Cf Green
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Fora do ambiente religioso estava o cenário nacional o desenvolvimentismo do


governo de Juscelino Kubitschek, o crescimento do operário urbano, as Ligas
Camponesas que reivindicava a Reforma Agrária. No plano internacional a Guerra Fria
dividiu o mundo em áreas de influência capitalista (Estados Unidos) e socialista
(URSS). Se valendo da propaganda anticomunista da Guerra Fria, a direita se agrupa e
desagua com o apoio ao Golpe Militar de 1964 já dito aqui anteriormente.
Segundo Padilha a Conferência do Nordeste é o catalizador e produto das
mudanças sociais. As primeiras reuniões promovidas pela CEB tinham como foco a
Igreja: “A responsabilidade social da Igreja” (1955), “A Igreja e as rápidas
transformações sociais no Brasil” (1957), “Presença da Igreja na evolução da
nacionalidade (1960)”. Já com a temática “Cristo e o processo revolucionário
brasileiro”, deixava claro para os cristãos da época que havia uma reflexão sobre qual a
maneira de Deus atuar na história brasileira, fora dos muros da igreja. Apontava
também para um diálogo ecumênico entre protestantes e católicos bem como outros
setores da sociedade. Esses apontamentos influenciaram a jovens pastores e leigos dos
anos de 1960 a dialogarem com outros setores da sociedade e lutar por uma
transformação socioeconômica.
As obras que foram utilizadas aqui não dão conta sobre as publicações que falam
do Evento em Recife no ano de 1962 como o seu “Cristo e o Processo Revolucionário
Brasileiro”. Como dissemos, não temos por pretensão ser o ponto de chegada mas um
ponto de partida para reflexões sobre as produções de pesquisa sobre esse importante
evento no mundo protestante e essa importância irá de uma certa maneira desaguar em
movimentos de contestação e de denúncia ao Regime Militar.
Dizemos de certa maneira porque a fala de Anivaldo Padilha destoa dos demais
porque ele reflete enquanto jovem contemporâneo da Conferência, com um olhar
privilegiado do pós - Recife 1962 e da juventude de sua época. Juventude essa
“acostumada” com o protestantismo de reta doutrina (ALVES, 2005, p 10 ) e que ao
receberem uma brisa fresca de uma nova percepção do Evangelho de Cristo também se
posicionaram sobre a realidade brasileira.

Considerações Finais
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É importante para a História visitar essa parte sobre o papel das Igrejas o Golpe
Militar e o Pré-Golpe. Além disso, pensar a perspectiva protestante frente ao período de
cerceamento que tornou o Brasil nebuloso.
Sobre a Conferência de 1962 é interessante refletir sobre quem era o público que
assistia às palestras. Quem eram os jovens e qual a idade mais ou menos? Eram
universitários? Classe média? E a imprensa como noticiou o encontro? Em suma, como
era o público para quem os palestrantes proferiram os seus discursos? Essas perguntas
não podemos responder, mas são apenas possibilidades a serem pensados sobre o evento
que marcou o universo protestante de uma época e que hoje com os 50 anos de Golpe
Militar cabem reflexões sobre o referido campo religioso que muito se tem discutido em
um grupo circunscrito de teólogos o que não é nenhum demérito. No entanto, cabe dizer
e deixar claro é que a Historiografia precisa visitar essa parte da História recente de
nosso país.

Bibliografia
ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Edições Loyola/Editora
Teológica, 2005.

AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo (orgs.). O golpe


e a ditadura militar, 40 anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004.

BORIS, Fausto. História concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2009.

BURITY, Joanildo. Fé na Revolução. Protestantismo e o discurso revolucionário


brasileiro (1961-1964)

DIAS, Zwuinglio Mota. “O protagonismo dos evangélicos durante os “anos de


chumbo” e a busca incessante por uma “ecclesia reformata...”.In ROSA, Wanderley
Pereira da & FILHO, José Adriano. Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro. A
conferência do Nordeste 40 Anos depois. (1962-2012). Rio de Janeiro, 2012, Mauad.

FICO, Carlos. Ditadura Militar: mais do que algozes e vítimas. In:


http://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180305102013464

GINI, Sergio. O protestantismo e a Esquerda no Brasil. O caso do Seminário


Teológico de São Paulo (1963-1972). In:
<www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st8/Gini,%20Sergio.pdf.>
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GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda Brasileira: Das ilusões


Perdidas à Luta Armada. São Paulo: Editora Ática. 1987.

GREEN, James N. Apesar de Vocês. Oposição à ditadura brasileira nos Estados


Unidos, 1964-1985. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org). Democracia e ditadura no Brasil.


Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006

RAMALHO, José Ricardo. Uma presença no tempo: A vida de Jether Ramalho. São
Leopoldo. Oikos Editora, 2010.

REMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2003.

ROSA, Wanderley Pereira da & FILHO, José Adriano. Cristo e o Processo


Revolucionário Brasileiro. A conferência do Nordeste 40 Anos depois. (1962-2012).
Rio de Janeiro, 2012, Mauad.

SCHÜNEMANN, Rolf. Do Gueto à Participação. O surgimento da consciência sócio-


política na IECLB entre 1960 e 1975. São Leopoldo: Sinodal, 1992.

PINHEIRO, Jorge. Deus é brasileiro. As brasilidades e o Reino de Deus. São Paulo


2008, Fonte Editorial.

PANELAS NARRATIVAS DA CIDADE EM MOVIMENTO DE 1970 A 1990

Elielma Maria dos Santos


Graduada em História pela Faculdade de Formação de Professores de Belo Jardim -
FABEJA (2011).
Pós-graduanda em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Aplicadas do Belo
Jardim –
FABEJA (2014). Desenvolve pesquisas na área de História e Memória com ênfase na
oralidade.
Cristiano Cezar Gomes da Silva
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Orientador. Professor Assistente da Universidade Estadual de Alagoas. Mestre em


História pela UFPE (2004). Doutorado em Letras pela UFPB (2011).Patrimônio Cultural
e redes de sociabilidades: da etnografia sociológica ao registro digital.
Faculdade de Formação de Professores do Belo Jardim-FABEJA
elielmamaria@gmail.com

Na presente pesquisa discutimos qual a relação entre os fatos ocorridos durante


as décadas de 1940 a 1970 na cidade de Panelas, localizada no Agreste central de
Pernambuco, distante a 180 km da capital, e a formação sociocultural do município.
Buscamos enfocar um cotidiano marcado por transformações que provocaram nas
pessoas o orgulho de pertencer ao meio social, compartilhando ideias, sonhos e crenças
em comum e a participação de pessoas simples na construção da história local.
A cidade fundada ainda no século XIX preserva grandes objetos históricos como
o engenho Amolar, construído durante o Império, os sítios arqueológicos, as
comunidades quilombolas, a cultura popular, a Igreja do Bom Jesus, cartão postal da
cidade, evidências de sua importância histórica, mas diante de todos esses símbolos, a
história de vida das pessoas que viviam nesse contexto precisava ser resgatada e só
assim poderíamos entender melhor a história panelense. Um tesouro enterrado que só
depois de descoberto era possível dividí-lo com todos que ajudaram a conservá-lo
repassando para as novas gerações permitindo assim aos mais jovens uma aproximação
com a própria história e do município e assim, manter o elo entre o passado e o
presente. A história local que estava apenas na memória dos mais velhos pouco a pouco
se perdia diminuindo as possibilidades de ser registrada e fazer parte da historiografia
do município, que possuía muitas lacunas a serem preenchidas. Através das entrevistas
e dos documentos investigados, resgatamos lembranças individuais e coletivas que
guardavam vestígios importantes de um cotidiano marcado por transformações,
mudanças, conquistas, decepções, alianças e rupturas, aspectos importantes na
construção histórica do município de Panelas.

Oralidade e Memória na Construção Histórica de Panelas


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A história oral e a memória foram de primordial importância para a realização


desta pesquisa, já que para revisitarmos o passado histórico do município e poder
registrar os fatos e acontecimentos, analisarmos as consequências e como cada um deles
refletiu na vida e no cotidiano dos panelenses, era preciso ouvir as pessoas, suas
lembranças e recordações, ir ao encontro de um tempo que para os mais jovens estava
perdido. Grande parte da história local estava apenas na memória dos mais antigos
moradores. Através da memória e das narrativas dos mais velhos foi possível reconstruir
um elo que há muito tempo tinha sido cortado. Redescobrimos fatos que ficaram fora da
história oficial, pois se tratava da história de vida daqueles que apesar de ajudarem no
desenvolvimento social, cultural e econômico da cidade, não tiveram seus nomes
registrados nas páginas da história.

A memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubados


suportes matérias, nem só porque o velho foi reduzido à monotonia da
repetição, mas também porque uma outra ação, mais daninha e
sinistra, sufoca a lembrança: a história oficial celebrativa cujo
triunfalismo é a vitoria do vencedor e pisotear a tradição do vencidos.
( BOSI, 1994, p.19)

Através desse pressuposto, nós subtendemos que a história oral do município


panelense vivia na marginalidade, pois as escassas pesquisas a respeito da historiografia
local não demonstraram interesse maior por esse lado dos fatos. E mesmo que não
tenham uma intenção de “pisotear” a tradição, vemos que de uma forma inconsciente a
memória do povo e suas tradições a partir do momento que não são valorizadas, são
indiretamente sufocadas, tanto pela história oficial, que ignora os relatos orais de quem
participou ativamente de tais momentos, quanto pelas novidades culturais que de certa
forma “diminui” os valores de outras épocas ao enxergar em muitos momentos os
valores passados como obsoletos. No entanto, essa memória continua como uma fonte
de água viva que ainda não foi descoberta. Certas lacunas tanto na história oficial
quanto na oral são preenchidas como um quebra-cabeça, que aos poucos vai sendo
montado pelos historiadores e os personagens da história, à medida que essas pessoas
expressão suas experiências e contam suas ações o historiador analisa, seleciona e
registra, transformando assim, tais fatos em história, são representações do que já se foi,
reconstruídas e renovadas, com um olhar atual . Segundo Montenegro;
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A história enquanto representação do real se, refaz se reformula, a


partir de novas perguntas realizadas pelo historiador ou mesmo da
descoberta de outros documentos ou fontes. A elaboração da história
está sempre voltada para o que se expressou ou se manifestou de
forma pública ou privada... A história opera sempre com o que está
dito, com o que é colocado para e pela sociedade, em algum
momento, em algum lugar. Desses elementos, o historiador constrói
sua narrativa, sua versão, seu mosaico. Esse fato evidente se apresenta
bastante distinto do que foi vivido; no entanto, ele se ancora nos
elementos resgatados da realidade, em outras histórias já produzidas.
(MONTENEGRO, 1994, p.19)

Para o autor, a história se reformula a partir do momento em que surgem novas


dúvidas ou novos documentos, a história enquanto representação se coloca como versão
de um acontecimento, representa o fato o mais próximo do real e cada vez que é
revisitada traz à tona novas situações, momentos que não tinham sido analisados.
Diante disso, muitas lacunas vão se completando e novas perguntas surgindo,
pois é no passado que encontramos o elo com o presente, reinventando e lançando
novos olhares para os acontecimentos. Para Pesavento;

Escrever a História, ou construir um discurso sobre o passado, é


sempre um ir ao encontro das questões de uma época. A História se
faz como resposta as perguntas e questões formuladas pelos homens
em todos os tempos. Ela é sempre uma explicação sobre o mundo,
reescrita ao longo das gerações que elaboram novas indagações e
elaboram novos projetos para o presente e para o futuro, pelo que
reinventam continuamente o passado. (PESAVENTO, 2005, p.59.)

Dessa forma, a autora ressalta que escrever a História é ao mesmo tempo


redescobrir os fatos, preencher as lacunas e renovar os significados dos acontecimentos,
pois para cada geração haverá sempre novas dúvidas e outras respostas para aquilo que
todos “já sabiam”. Para Bosi, “a história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar
muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos”
(BOSI,, 1994, p. 90). Diante disso, o nosso objetivo foi analisar os relatos e entrevistas,
para assim, compreendermos como os cidadãos panelenses se identificam com suas
raízes, como vivem através de suas recordações e lembranças. O cotidiano, a narrativa e
a memória, são recursos indispensáveis na realização dessa pesquisa. Para o historiador
uma fonte histórica essencial para o registro dos fatos.
Há algum tempo, os documentos aceitos como fontes históricas eram os
registros oficiais, elaborados de forma escrita, com os quais se registravam os
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acontecimentos. Por um longo tempo esses documentos serviam como provas absolutas.
Com a Nova História, a forma de usar o documento foi transformada, pois deixou de ser
o único instrumento de pesquisa, surgiram novas formas de se observar os fatos e a
história passa a ser investigada, interpretada e não apenas registrada. Na visão de
Adilson Filho;
Os Annales508 ampliaram o conceito de fontes, temas e sujeitos; seu
olhar descortinou zonas escuras, silêncios e áreas antes proibidas. Sua
sensibilidade e acuidade históricas ensinaram a ver além da superfície
factual, mostrando a profundidade de forças tectônicas que operam no
interior, que se movem de dentro para fora, cristalizando e, ao mesmo
instante, fragmentando a historicidade dos diversos atores sociais.
(ADILSON, 2001, p. 103.)

Para o autor, os Annales não só ampliou o campo da pesquisa, mas


possibilitaram a descoberta e o resgate de fatos e personagens que contribuíram para
discutir os acontecimentos até então excluídos por aqueles que escreviam a História.
Paul Veyne, na sua obra Como se Escreve a História, aponta que os Annales abriram
caminhos antes desconhecidos ou pouco explorados. Para ele, os Annales dedicaram-se
ao desmatamento dos campos e dos fatos antes desprezados ou simplesmente
esquecidos pela historiografia tradicional, (VEYNE, 1998, p.29) Na obra A Escola dos
Annales – A Revolução Francesa da Historiografia Peter Burke ressalta;

A mais importante contribuição do grupo dos Annales, incluindo-se as


três gerações, foi expandir o campo da história por diversas áreas. O
grupo ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas
do comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos
historiadores tradicionais. Essas extensões do território histórico
estão vinculadas à descoberta de novas fontes e ao desenvolvimento
de novos métodos para explorá-las. (BURKE, 1997, p.126 ).

Através das novas fontes se tornou possível analisar os acontecimentos de


várias formas, seja pelo lado econômico, social, político, ou pelo aspecto cultural e
religioso. Assim, entendemos que essas fontes são “diferentes lados de uma mesma
moeda ou faces de plurais de cristal lapidado” (DELGADO, 2010, p.15). Na ótica de
Veyne, “podemos acrescentar que, se um mesmo “acontecimento” pode ser disperso por

508
Revista fundada por Lucien Febvre e March Bloch, chamada de Revolução Francesa da Historiografia,
por promover uma nova historia, ampliando assim o campo da pesquisa antes voltada apenas para os
grandes acontecimentos.
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várias tramas, inversamente, dados pertencentes a categorias heterogêneas – o social, o


político, o religioso... podem compor um mesmo acontecimento (VEYNE, 1998, p. 44).
A Nova História não veio para substituir o antigo regime historiográfico, mas
para ampliar o campo da pesquisa, introduzindo novas formas de investigação e ajudar a
desvendar mistérios até então desconhecidos. Segundo Silva, depois dos Annales “a
história alargou seu leque de leituras, estabelecendo um diálogo fértil com outros
saberes, dessa forma, novas abordagens foram possibilitadas” (SILVA, 2007, p.03). A
partir daí, assim como os documentos oficiais os escritos pessoais como cartas,
correspondências, diários passam a ser investigados e analisados, pois trazem vestígios
de momentos importantes na vida daqueles que os escreveram e, portanto, revela o
cotidiano, a vida e os costumes de uma época, de um lugar.

Os Espaços de Lazer da Sociedade Panelense

As cidades possuem em seus espaços, lugares onde os cidadãos mantêm suas


relações de amizades e afetividades pessoais e profissionais. A cidade de Panelas
durante as décadas pesquisadas possuía poucos espaços de lazer para seus moradores,
que buscavam, dentro de suas possibilidades, divertir-se e comemorar suas conquistas.
O cotidiano era marcado por costumes simples, a praça central era o ponto de encontro
dos moradores que aproveitavam para encontrar os amigos e conversar. Entre as
décadas de 1940 1970, a cidade despontava timidamente entre os panelenses e logo
dava seus primeiros passos para a modernidade, o teatro, o cinema, o show de calouros
e as tradicionais festas religiosas, como a de são Sebastião e do Bom Jesus dos
Remédios padroeiro da cidade. Todos esses acontecimentos marcavam a vida dos
moradores, que buscavam nesses momentos não só o entretenimento, mas também
praticar suas crenças e devoções.
As festas religiosas se destacavam como os momentos de entretenimento
panelense. Uma associação entre o religioso e o profano reservava, durante o ano
inteiro, momentos de alegria e muita comemoração. Quem morava na zona rural
também aproveitava a vinda à feira e à missa do domingo para também se divertir. Para
grande parte da população panelense, era um momento especial da semana. Fosse
morador da cidade ou da zona rural, a missa fazia parte do cotidiano panelense. Era um
bom motivo para encontrar os amigos, passear na cidade, paquerar na praça ou desfilar
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roupas novas. Segundo a senhora Maria José dos Santos, uma das primeiras televisões
que chegou à cidade ficava no coreto e os moradores assistiam aos programas e as
novelas que na época, era uma das únicas opções para os telespectadores. Diante disso,
podemos observar o quanto a população fazia de coisas consideradas hoje, simples
grandes momentos de lazer e se divertia.
O Cine Marechal Castelo Branco509, construído na década de 60 com capacidade
para 250 lugares, trouxera um ar de modernidade, proporcionando cultura e lazer para
os panelenses. Esse acontecimento alterou a rotina da sociedade. Tal mudança provocou
nas novas formas de lazer, utilidades paradoxas como ambientes de exclusão e inclusão,
provocando tanto a aproximação entre determinados grupos sociais como as classes
mais abastadas quanto o distanciamento dos cidadãos que não possuíam poder
aquisitivo para frequentar tais lugares regularmente. Por ser um signo de modernidade,
trazia consigo um ar próspero no comportamento da elite social da época. A princípio, o
cinema funcionava no mercado municipal, sem nenhuma estrutura física, funcionava de
forma improvisada, depois a prefeitura construiu um cinema onde hoje é o prédio da
câmara de vereadores de Panelas.

Quem trouxe o primeiro cinema pra cidade foi seu Severino de


Cupira. Botou o cinema aqui no mercado, depois Demócrito
(Demócrito de Barros Miranda, prefeito entre 1969 á 1972) criou um
cinema mesmo, bem organizado, onde hoje é a câmara municipal, era
bonito demais510.

O cinema era frequentado pelos moradores que assistiam aos filmes e logo
transformaram o espaço em local de lazer. Mas, com o passar do tempo, o cinema não
resistiu às televisões, que o substituíram. Segundo Maria José, “colocaram no coreto,
no centro da praça, uma televisão e todo mundo ia pra lá assistir, quase não dava pra vê
imagem, mas, era de graça. O cinema era pago e não tinha muitas opções de filme”511.

509
Ver monografia do IBGE 1970
510
Entrevista realizada no dia 10/07/2010, com o Sr. Humberto Cordeiro de Souza, professor desde
1977.
511
Entrevista realizada no dia Maria José dos Santos realizada no dia 08/08/2010;
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O Aselpa Show foi apresentado por muitos anos pelo seu idealizador, o professor,
escritor e historiador Luis Manoel, que tinha uma ligação muito forte com a cultura
local. Era uma espécie de show de talentos, onde a população participava disputando as
melhores colocações, mostrando seus dons artísticos. Homens, mulheres e crianças, se
apresentavam e eram avaliados pela mesa de jurados. Inspirado no Programa do
Chacrinha, levava alegria e entretenimento a população que se reuniam no espaço do
Teatro paroquial Dom Adelino para assistir ao show dos conterrâneos.
Todas as categorias de artistas se apresentavam principalmente cantores, atores
que participavam do show em público. A festa era realizada todos os anos e mobilizava
toda a população, que marcava presença assídua em todos os eventos. A cada ano era
feita uma homenagem a uma mãe ilustre da cidade, já que o Aselpa show era realizado
no mês de maio no dia das mães. A mesa de jurados tinha como convidados pessoas
“ilustres e importantes da cidade” como o prefeito, o padre, o juiz, comerciantes locais,
entre outros.
A população se divertia dentro de suas limitações, já que todas as iniciativas
partiam na maioria das vezes dos próprios moradores, em realizava e produzia
momentos de lazer e diversão no município que não podia oferecer recursos para
patrocinar tais eventos que transformavam a rotina da cidade, principalmente quando
chegava a época das festas religiosas, como a festa do Padroeiro, Bom Jesus dos
Remédios, e a de São Sebastião.
A cidade era enfeitada e a iluminação reforçada, principalmente ma parte
frontal da igreja, onde tradicionalmente eram colocadas centenas de lâmpadas coloridas,
pelo saudoso Miro, transformando-a em cartão-postal, até hoje mais importante signo
religioso da cidade. As festas eram pontos de encontro, mas também de reencontro, as
pessoas retornavam à cidade para matar a saudade e reencontrar os parentes e amigos de
que haviam se distanciado na maioria das vezes para buscar melhores condições de vida
nos grandes centros urbanos, como, por exemplo, São Paulo ou Rio de Janeiro. Essas
mudanças eram facilmente percebidas no visual da cidade, semanas antes dos festejos,
os moradores se dedicavam cuidadosamente á ornamentação de suas casas, enfeitando
as fachadas com adereços natalinos.
Resgatar a história de um lugar é mais que organizar os fatos históricos, é
redescobrir um mundo de significados, de imagens, valores e lembranças, uma ligação
saudosa, que podemos dizer ser motivo de orgulho por pertencer aquele lugar. Além
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disso, é uma oportunidade de analisarmos e refletirmos sobre os eventos ocorridos


durante o desenvolvimento local. São representações de um passado que não volta, mas,
que pode ser revisto e cada um que viveu tais momentos guarda sentimento e nostalgia e
representam através de suas lembranças os acontecimentos do passado que voltam à
tona em forma de “teatro da memória”.

As narrativas são traduções dos registros das experiências retidas,


contêm a força da tradição e muitas vezes relatam o poder das
transformações. História e narrativa, tal qual História e memória,
alimentam-se. Narrativas, sujeitos, memórias, histórias e identidades.
É a humanidade em movimento. São olhares que permeiam tempos
heterogêneos. É a História em construção. São memórias que falam.
(DELGADO 2010, p. 44).

Durante a realização das entrevistas, percebemos que através da memória é


possível resgatar minúcias, que propositalmente ou não, passaram despercebidas pela
história oficial, deixando assim uma lacuna na própria história panelense. Por outro
lado, as entrevistas também se mostram subjetivas, pois a própria memória é um
produto da subjetividade humana, por isso a memória coletiva possui uma importância
primordial na coleta dos fatos e na veracidade dos mesmos. Mesmo que a história, até
então chamada de “oficial”, também possua certa subjetividade do ponto de vista
economicamente dominante, ela se torna também uma grande contribuinte na realização
de uma história escrita onde todos participem, pois a participação de todos nos fatos
cotidianos ou históricos é algo inegável. Assim, não podemos esquecer um detalhe
muito importante quanto à “memória e suas representações”. A representação tem a
capacidade de se substituir a realidade que representa, construindo o mundo paralelo de
sinais no qual as pessoas vivem... “As representações se inserem em regime de
verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade” (PESAVENTO , 2005, p. 41).
Cada indivíduo revive e recria situações que lhes foi de certa forma mais agradável ou o
que lhes trouxe mais prazer, quando voltamos ao passado queremos apenas resgatar as
coisas que nos projetou para o sucesso, mas, nem todos tiveram somente sucesso ou
somente derrotas, cada um, individual ou coletivamente tive suas vidas modificadas.

A construção de representações sobre o passado é imutável, mas que


pode ser ressignificado - é uma articulação, quase sempre marcada por
disputas e por tensões, pois a memória e o reconhecimento histórico
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serve a diferentes senhores. Em outras palavras, não há neutralidade


em qualquer forma de abordagem (DELGADO, 2010, p. 56.).

São personagens de uma trama na qual cada capítulo tem suas vidas
transformadas de acordo com o desenrolar da história. Vivemos em uma sociedade onde
estamos sempre em busca de referências e em busca de nossa identidade e ao mesmo
tempo espelhamo-nos em outros para tais conquistas, mas, é preciso lembrar que a
história é subjetiva, pois cabe ao historiador definir as fontes e a metodologia a seguir
para que possa juntar as peças para montar o quebra cabeça que no final, vai retratar os
fatos e acontecimentos. Isso nos leva a entender que a exploração contínua da
pluralidade das versões históricas nos conduz sempre a novas perguntas que nos levam
á novas respostas. Portanto, cabe ao historiador transmitir os acontecimentos coletados
em seu trabalho e não criar uma nova “verdade” oficial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade de Panelas durante as décadas pesquisadas vivenciou


acontecimentos e fatos históricos que ficaram guardados na memória coletiva e
individual dos moradores que, diante desses episódios, contribuíram direta ou
indiretamente com a história local. Foram personagens anônimos, que apesar de não
terem seus nomes nas páginas da historiografia oficial, contribuíram com a construção
histórica assegurando a memória e, através da oralidade, repassado para os mais jovens,
seus costumes e tradições e experiências, moldando a identidade social, religiosa e
cultural do município.
A nossa discussão buscou resgatar essa história que até então estava na
oralidade e precisava ser resgatada, e assim, compartilhada com os mais jovens e todos
panelenses que buscam referências culturais, religiosas e sociais e da própria identidade
e poder reconstruir o elo que há muito tinha sido quebrado entre o passado e o presente,
interferindo, assim, na forma de observamos e analisarmos a nossa história local, repleta
de objetos e fontes a serem explorados. Através da oralidade e da memória, pudemos
então investigar os fatos e redescobrir a própria história do município. Ao longo do
nosso trabalho, muitas respostas foram surgindo e logo algumas dúvidas se desfazendo.
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Muitos foram os personagens que contribuíram com a construção histórica de Panelas,


pessoas simples, mas que dedicaram parte de suas vidas para ajudar a quem mais
precisava, transformaram o cotidiano através de suas atividades e fazendo de coisas
simples momentos importantes e que marcaram suas vidas e da coletividade. As festas,
os pontos de lazer, muitas vezes improvisados pelos moradores sem muitos recursos,
mas que levavam alegria para os panelenses, aqueles que se dedicaram à saúde local
sem estrutura adequada, mas que ajudaram a cuidar das pessoas carentes e que
transformaram isso num modo de vida que se dedicava sem remuneração.
As narrativas nos permitiram descobrir, pouco a pouco, boa parte da história
local. A nossa pesquisa possibilitou um encontro entre o passado e o agora, restabeleceu
um elo quebrado há muito tempo, dando oportunidade das novas gerações conhecerem e
se identificarem com a história, se orgulhando de compartilhar do meio social, e da
cultura local.

REFERÊNCIAS

ADILSON, Filho José. A Cidade Atravessada: Velhos e Novos Cenários


belojardinense. Recife. Editora: Comunigraf 2009;

ADILSON, Filho José. Os Caminhos de Clio. Interfaces de Saberes vol.1 jan/jul. João
Pessoa: ideal 2001;

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. 3ª edição. São Paulo.


Companhia das Letras 1994;

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo. Ateliê
editorial, 2003;

BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução Francesa da


historiografia. Tradução Nilo Odalia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral, Memória, tempo, Identidade.


2ª Edição. Belo Horizonte. Editora: Autêntica, 2010.

MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e Memória: A Cultura Popular


Revisitada. 3ª edição. São Paulo. Editora: Contexto, 1994;
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2ª Edição. Belo Horizonte.


Editora: Autêntica, 2005;

SILVA, Cristiano Cezar Gomes da. Entre a história e a literatura:as múltiplasletras,


os múltiplos tempos, os múltiplos olhares em Graciliano Ramos. Fênix- Revista de
História e Estudos Culturais, n.04, out/Nov/dez. 2007;

VEYNE, Paul. Como se Escreve a História, e Foucault Revoluciona a História. 4ª


ed. Tradução: Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília Editora de UnB, 1998.

ENTREVISTAS:

Creuza Marcolino Cordeiro da Silva professora e uma das atrizes do antigo Teatro Dom
Adelino; entrevista realizada no dia 14/07/2010

Francisco Alves Santana “Chico Candido” 106 anos, morador mais velho da cidade
realizada no dia 06/07/2010;

Josefa Gessina de Santana, esposa do Sr. Francisco Alves Santana “Chico Candido”
realizada no dia 06/07/2010;
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O MOVIMENTO INDÍGENA E O REGIME MILITAR EM RORAIMA: UMA


LEITURA.

Elisangela Martins
Universidade Federal de Roraima
elisangela.martins@ufrr.br

No mês de agosto do ano de 2008, às vésperas da decisão do Tribunal Superior


de Justiça sobre a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em área
contínua, ocorreram no centro da cidade de Boa Vista duas grandes manifestações. A
primeira foi o “Seminário de Desenvolvimento Sustentável em Áreas de Fronteiras”.
Realizado no Palácio da Cultura, teve apoio do Governo do Estado. Assisti às
‘palestras’ em que as falas trouxeram, por diversas vezes, termos como “soberania
nacional”, “vazio demográfico” e “desenvolvimento”, que me remeteram imediatamente
às ideias estruturantes do discurso dos governos militares acerca de toda a Região
Amazônica. O Seminário, que pretendia discutir desenvolvimento sustentável nas
regiões fronteiriças, tinha se convertido num encontro de pessoas que advogavam contra
a decisão do governo federal, tomada em 2005512, argumentando que a mesma iria
impor um grave entrave à economia do estado de Roraima. Famílias inteiras de
indígenas assistiram ao debate e, na saída, sob uma faixa com os dizeres “Pátria ou
Morte, venceremos!”, posicionaram-se a favor dos organizadores do evento e contra a
Homologação. Duas semanas depois, na Praça do Centro Cívico, em frente ao mesmo
Palácio, ocorreu o lançamento da Campanha Anna Pata, Anna Yan (Nossa terra, nossa
mãe). O objetivo dos organizadores era reunir “pessoas favoráveis à consolidação da
homologação em terras contínuas”513. Como não poderia deixar de ser, também havia
ali famílias inteiras de indígenas. Do carro de som se podia ouvir palavras de ordem
chamando para a luta “até o último índio” e discursos que evocavam os “30 anos de
luta” pelas terras da Raposa.
O clima de disputa descrito era intenso e parecia tomar a todos os moradores da
cidade de Boa Vista, indo muito além de nativos e rizicultores que disputavam a Terra
Indígena. As duas manifestações opostas, ocorridas praticamente no mesmo lugar, a
Praça do Centro Cívico, símbolo da urbanização de Boa Vista nos anos 1960/70 e a
presença de nativos dos dois lados de uma disputa sobre terra indígena descerraram as

512
Essa afirmação foi feita pela Rede Globo de Televisão, Jornal de Roraima no dia 04 de agosto de 2008
e também aparece no artigo de CAMPOS (2008).
513
Boletim CIRCOM, recebido por e-mail.
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contendas pela história e memória acerca do surgimento do Movimento Indígena


organizado em Roraima.
Recuando aos anos de 1970, pode-se afirmar que o crescimento do fluxo de
investimentos para a região amazônica foi parte de um plano maior do Estado
militarizado que, no conjunto, considerava toda aquela área como estratégica para a
reafirmação da soberania do Brasil. Motivados pela política de Segurança Nacional, os
governos militares instalaram e ampliaram o controle do Estado sobre o território do
país com novas vias de acesso e redes de comunicação. Tratando da Amazônia como
um imenso vazio, devido à sua baixa densidade demográfica, deram suporte e fomento à
intensificação de correntes migratórias internas rumo ao norte do país, política
considerada, à época como “aceleração do processo de efetiva incorporação da
Amazônia ao patrimônio nacional” (ANDREAZZA,1970). No então Território Federal
de Roraima esse processo incluiu a abertura de grandes rodovias e estradas vicinais e a
construção de pontes visando melhor acesso ao interior e a efetiva urbanização e
equipamento da capital. Associadas aos incentivos para a pecuária e a garimpagem,
essas obras foram instrumentos poderosos da “transformação desenvolvimentista” e
garantiu, em seu conjunto, no final da década de 1970, a emergência de um novo lugar,
reconfigurado física e socialmente.
Apesar do estado militarizado ter movido esforços no sentido de centralizar esse
processo de reordenação econômica, espacial e social da Amazônia514, o controle
encontrava limites, sobretudo, pela rapidez com que pessoas e novas atividades
econômicas se instalavam na região. Em Roraima, o Jornal Boa Vista515 foi testemunha
(provavelmente involuntária, como se verá adiante) de que, a exemplo do que ocorreu
em outras regiões, tanto as alterações provocadas no espaço físico como na composição
populacional foram intensas e relativamente desordenadas.

514
Através de grandes projetos como o Plano de Integração Nacional, PIN, ou o Polamazônia, por
exemplo.
515
O Jornal Boa Vista foi o mais regular e, por vezes o único veículo de informação impressa com
circulação no Território Federal de Roraima na década de 1970. Produzido e publicado pelo governo do
Território entre 1973 e 1979, circulou de forma hegemônica na cidade de Boa Vista e sua periodicidade
variou entre edições semanais e quinzenais. Ainda que estejam se decompondo, devido às más
condições de preservação nos locais em que se encontram, um número significativo de seus exemplares
foi preservado e ainda está disponível para consulta na Casa de Cultura Madre Leotávia e no Palácio da
Cultura, ambos na capital do Estado de Roraima. A partir desse ponto, citarei as reportagens do Jornal
referindo-me ao mesmo como JBV.
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É nesse contexto em que Manuela Carneiro da Cunha (1992) observa o


surgimento de um movimento indígena articulado em nível nacional pela primeira vez
que surgem, também em Roraima, as primeiras iniciativas que levariam ao
aparecimento da organização de uma política de resistência indígena. Costa e Souza
(2005) aponta que os contatos interétnicos entre os diversos grupos nativos da região já
eram intensos antes mesmo da chegada dos europeus ao Vale do Rio Branco, mas não
houve notícia de uma união entre estes para resistir organizadamente à entrada dos
colonizadores até a segunda metade do século XX. Foi somente aí que teriam surgido
organizações indígenas que atuam na luta por direitos à terra, saúde e educação, como o
Conselho Indígena de Roraima (REPETTO, 2008).
Parcelas inteiras da população amazônica ainda se veem envolvidas nos
conflitos gerados pelo devassamento dos anos do Regime Militar, sobretudo no que diz
respeito à questão fundiária. Como consequência, o cultivo das memórias dos anos de
1970 ganha importância para a coesão dos grupos nas lutas que se viria a travar
posteriormente e os discursos que pretendem dar conta da história do período se inserem
nessa contenda. Isso deve ser levado em consideração no estudo da história de Roraima,
em que é nítida a diferença entre as interpretações para a atuação indígena no que diz
respeito ao processo de disputa e resistência política, especialmente no que tange ao
surgimento de um Movimento Indígena, a partir de 1970.

Interpretações sobre o Movimento Indígena em Roraima

O livro mais popular sobre história de Roraima, em termos locais, não foi
produzido na academia. É de autoria de Aimberê Freitas, roraimense, filho de
agricultores e formado em veterinária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. O
autor afirma que a organização dos indígenas ocorreu sob a influência direta da Igreja
Católica. Segundo ele, “a Igreja permaneceu como observadora desde o século XVIII
(sic) até a década de 70 do século XX em relação à questão indígena de Roraima.”
(2001, p.133). Para Freitas, nas últimas décadas do século XX, a Igreja passara a
desenvolver “um papel conscientizador (sic), despertando nos índios sentimentos de
reconquista dos espaços perdidos”(idem). O autor conclui que “antes da nova orientação
da Igreja”, o que existia no Território era “cumplicidade entre uns e outros” e que seria,
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portanto, a mudança da postura da Igreja Católica, “a raiz do conflito permanente em


Roraima”.
Antes de Aimberê, Dorval de Magalhães já havia afirmado que “os
desentendimentos registrados entre índios aculturados e ruralistas” eram “o resultado de
uma política posta em prática por Nóbrega, Anchieta e Vieira”, ainda que estes não
tivessem pensado na criação de reservas indígenas (MAGALHÃES, 1986). É
interessante observar no discurso do roraimense ilustre, que em vida foi, entre outras
coisas, membro da Academia Roraimense de Letras, o reconhecimento de que os
indígenas tiveram “espaços perdidos” e que existiam “desentendimentos” entre esses e
os colonizadores. Apesar disso, na proposição de Magalhães e Freitas, nega-se
duplamente a resistência do indígena à colonização, ora afirmando que “havia
cumplicidade” entre indígenas, fazendeiros e Igreja Católica, ora imputando a esta
última, e não aos próprios indígenas, a responsabilidade pela organização de uma
política de resistência.
Buscando nas edições do Jornal Boa Vista não se encontra nenhuma referência
direta sobre um processo de organização de resistência dos indígenas, nem mesmo sob
uma possível orientação católica. A ausência do tema nas edições do jornal permitem
aventar que houve a intenção relativamente eficiente de negar a própria existência da
disputa e silenciar o conflito. Complementando essa estratégia, a história de Roraima
contada por Aimberê Freitas e Dorval de Magalhães procura, senão negar, diminuir o
relevo das disputas entre fazendeiros e indígenas, dando a entender que os
desentendimentos são provocados “pela Igreja Católica”. Diante disso, a imputação que
ambos autores fazem à Igreja Católica como causa de um “conflito permanente” entre
indígenas e fazendeiros pode ser interpretada como uma adaptação discursiva no novo
contexto político do início do século XXI, marcado por inegáveis conflitos e o
crescimento das denominações cristãs evangélicas junto às comunidades indígenas.
Assim, apelando especialmente para aqueles que porventura não aceitem a presumida
intermediação da Igreja Católica, o discurso parece pretender garantir a abertura de
canais de diálogo entre fazendeiros e indígenas, pois bastaria suprimir os católicos da
relação para que voltasse a situação de “cumplicidade” entre brancos e índios.
Se a negação do conflito é o eixo através do qual se articula o discurso de um
grupo conservador diante da organização da resistência indígena dos anos de 1970, a
dissonância a esse apareceu pronunciada no âmbito acadêmico. Segundo Monteiro
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(1995), o Brasil passou, nos anos de 1980, por uma verdadeira renovação no campo dos
trabalhos históricos e antropológicos que tratavam dos povos nativos, num processo que
teve como resultado o apontamento para o protagonismo indígena. Reconhecer a
importância da articulação da política indígena como ação endógena, equivale à
promoção de empoderamento desses povos, o que estava na pauta dos pesquisadores
que pretenderam ressaltar seu papel de sujeitos históricos. Em Roraima, representando
essa renovada forma de tratar a história dos indígenas e sua organização tradicional,
surgiram os trabalhos produzidos por pesquisadores como Nádia Farage (1991), Paulo
Santilli (1994), Nilson Cortez Crócia de Barros (1995), Jaci Guilherme Vieira (2003) e
Maxim Repetto (2008). Estas pesquisas informam que, embora a história do contato
entre indígenas e fazendeiros sempre tenha sido permeada pela intermediação de
agências religiosas e estatais (Igreja Católica, SPI, FUNAI, entre outros), o surgimento
do Movimento Indígena não foi simples resultado da interferência desses agentes, mas a
culminância de um processo de resistência que se desenvolvia localmente desde o
século XIX e que, sem dispensar parcerias junto a setores da Igreja Católica,
organizações não-governamentais de cunho social e ambientalista e parte da
intelectualidade ligada às Universidades, vem construindo seu modo próprio de atuação
política.
Ao contrário do discurso que por diversas formas nega a existência do conflito,
os trabalhos citados abordam a violência do contato, explicitando as muitas maneiras de
exploração a que os nativos foram submetidos quando, em função da chegada do gado e
do crescimento das fazendas particulares, lhes foi destinado o papel de mão de obra
barata nas fazendas do vale do Rio Branco. Essa interpretação, que a exemplo do que
ocorreu em outros locais do Brasil, pretende dar centralidade à política indígena e
destacar seus processos próprios de organização, demonstra ainda como os nativos de
Roraima teriam chegado ao que, posteriormente, se articulou para a construção de um
“movimento indígena de âmbito nacional”.
O engajamento político dos pesquisadores explica a estreita relação que se
estabeleceu, na primeira década do século XXI, entre essa produção acadêmica e o
próprio movimento indígena e, no caso de Roraima, não é difícil esboçar uma razão
para isso. Nos anos de 1970, diante da investida cada vez mais intensa da colonização,
macuxis, wapichanas, taurepangs, yekuanas e outros, desprezando seu histórico de
disputas, divisões étnicas e diferenças culturais, uniram-se para resistir ao acirramento
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do processo de tomada de suas terras e é justamente a identificação desse grande


problema comum que lhes garante certa unidade identitária, mantendo-os ligados na luta
por possíveis soluções. Desse modo, o discurso que dá relevo às disputas por garantia
de seus direitos e lhes garante protagonismo é importante também para reforçar os laços
de uma identidade indígena, fundamentais para a manutenção de uma pauta comum de
reivindicações, base do Movimento Indígena organizado.
Assim quando se trata da história escrita, destacam-se claramente duas diferentes
posturas: de um lado o emprego de estratégias discursivas para mitigar o conflito e, de
outro, o apelo exatamente para a história do conflito. Entretanto, nenhuma das duas
versões dá conta, sozinha, de explicar a presença de indígenas nas manifestações
opostas citadas ao início desse trabalho.
Os múltiplos indígenas no Jornal Boa Vista

Apesar de aparentemente silenciado pelo Jornal Boa Vista, o conflito entre


fazendeiros e indígenas aparece nas entrelinhas das notícias que, com frequência citam a
“questão fundiária” do Território. As preocupações observadas nas matérias que tratam
do tema estão voltadas, sobretudo, para a falta de autonomia do governo local no que
diz respeito ao direito de realizar concessões de terra. Deste modo, em 27 de julho de
1974, segundo a principal manchete da capa, o governador Ramos Pereira clamava pela
“Solução do problema fundiário, urgente! Imediata!” e na edição de 17 de agosto do
mesmo ano, quando da presença do vice-presidente da República no Território,
noticiava-se “a terra a seu dono!”, dando conta de que a titulação das terras de Roraima
sairia ainda naquele ano. No corpo da notícia se reconhece que “em Roraima ninguém
era dono das terras, nem mesmo os proprietários urbanos”.
Há matérias que apontavam o descontentamento dos produtores locais com as
políticas de assentamento realizadas pelo INCRA (OLIVEIRA, 1973) e outras, que
afirmavam a intenção do governo de não disputar terras com o colono. Tais notícias
permitem vislumbrar que o conflito fundiário era entendido como aquele que
indispunha os fazendeiros à política de assentamentos de migrantes feita pelo governo.
É o que se verifica em primeiro de dezembro de 1974, quando uma manchete
anunciava: “a terra é nossa!”. Por trás de tão efusiva comemoração estava a informação
de que se tornara “realidade o sonho de decênios”: a união dos Ministérios do Interior e
da Agricultura junto ao governo do Território Federal de Roraima e o Instituto de
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Colonização e Reforma Agrária, INCRA, permitiria que se promovesse, antes da


abertura da BR 174, uma “ação coordenada para a ocupação territorial e para o
desenvolvimento, com ênfase nos projetos agropecuários do Território de Roraima”.
Deste modo, segundo a matéria, se evitariam os “mesmos problemas ocorridos em
Rondônia”, ou seja, a chegada desordenada de migrantes, preocupação expressa dos
fazendeiros locais.
O que também se vê nestas notícias é um esforço do governo territorial em
influenciar, de algum modo, a execução das políticas nacionais de controle e
distribuição das terras em Roraima. Se em outros locais se fez a abertura de estradas
para posteriormente definir a ocupação de seus entornos, o governo de Roraima (que ao
fim e ao cabo era também de instância federal) pleiteava se colocar diante de
fazendeiros e do governo da União como o executor capaz de garantir o controle deste
processo, alegando a necessidade de “impedir o latifúndio”.
Os indígenas se destacam em outras notícias, que não tratam diretamente da
questão fundiária mas a tangenciam. São apresentados, por exemplo, pelo comandante
do 6º Batalhão de Engenharia Civil, que, ao tratar da construção da BR 174, que ligaria
Roraima ao Amazonas, os enumerava, assim como a variedade da topografia, a
quantidade de chuvas e a falta de trabalhadores, como uma “dificuldade a ser superada”
(JBV, 08/1974, p.5.). Na mesma linha, Fernando Ramos Pereira, então governador do
Território, discutiu a necessidade de regulamentação das terras em Roraima, afirmando
que
excluídas as áreas de reservas e de restrições estabelecidas pela faixa de
fronteiras, reservas indígenas, faixa de cem quilômetros ao longo das
rodovias federais e reservas de preservação florestal, área inferior a 10% de
toda a área territorial restaria a uma utilização desenvolvimentista pelo
governo de Roraima”(JBV, 07/1974, p.5).

Antes deles, o ministro Mario Andreazza, em novembro de 1973, tratando da


construção da Perimetral Norte, estrada que deveria cortar o Território Federal de
Roraima de leste a oeste, afirmava que esta, “ao atingir regiões onde o índio não teve
contato com o homem civilizado”, iria permitir o encontro da “era do computador com a
da pedra lascada” (JBV, 13/11/1973, p.03). Em 1975, uma reportagem chamava a
atenção para o fato de que os atroaris haviam surgido nas obras da BR 174 “deixando
todos apreensivos”. Entre essas notícias, uma nota da edição de 15 de junho de 1974,
intitulada “olhos azuis e pele branca” era mais pitoresca: informava sobre a descoberta,
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por técnicos a serviço da FUNAI no igarapé Ipixuna, Estado do Pará, de indígenas de


pele, olhos e cabelos claros.
Esses são exemplos citados para ilustrar como os indígenas apareciam no
discurso do Jornal: exótico, perigoso, desconhecido e/ou atrasado. Em todos os casos,
era um problema e constituía um entrave ao desenvolvimento e controle do Território.
Mas essa projeção cruel sobre a imagem do indígena não era unívoca, dando conta de
que no cotidiano havia mecanismos sutis que não apenas dividiam e classificavam os
indígenas de modo distinto, mas propunham uma relação ideal com esses povos.
É o que se vê, por exemplo, nas reportagens que registraram as comemorações
cívicas e nas quais a figura do indígena está especialmente presente. Ocorridas
sobretudo nos meses de setembro, quando além das comemorações do “Dia da Pátria”
se dava a celebração do aniversário de criação do Território, essas festividades foram se
estruturando, paulatinamente, como um verdadeiro carnaval, com crianças fantasiadas,
carros alegóricos, definição prévia de temas a serem desenvolvidos pelas escolas que
iriam desfilar, etc. Como as comemorações são verdadeiros lugares de memória e que
articulam recursos humanos, financeiros e afetivos em torno de um objeto comum a ser
celebrado, seu estudo foi bastante revelador sobre as formas pelas quais a sociedade
roraimense observava os povos indígenas no período em que começaram a se organizar
de modo mais efetivo em busca de uma política de defesa de seus direitos.
No ano de 1973, quando se comemorou o 30º aniversário do Território Federal
de Roraima, a festividade se traduziu por um grande desfile de crianças e adolescentes
no centro da capital, Boa Vista. São as imagens fotográficas das edições do Jornal Boa
Vista que permitem verificar detalhes daquela celebração. Ainda que seja impossível
determinar a ordem de aparição na avenida, entre os diversos grupos que desfilaram,
destaco a presença de um cordão feminino. Suas componentes, aproximadamente vinte
e quatro garotas, vestidas com cocares e tangas de penas, formam o único grupo
retratado em duas fotografias do Jornal. A primeira imagem, tomada de frente, mostra
sua evolução, dispostas em duas linhas paralelas. Na segunda imagem, tomada do lado
direito do desfile, se permite ver o grupo num círculo, em movimentos que lembram
uma dança ritual. Na mesma foto, ao fundo da apresentação, observa-se a arquibancada,
lotada. Naquela manhã, além de ‘indígenas’, desfilaram militares (um pelotão de
crianças bem pequenas, fardadas para a guerra, com capacetes arredondados, como os
utilizados pelos soldados aliados na segunda guerra mundial e outro, com crianças um
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pouco maiores, vestidos com camisa, calça, quepe militar e portando coldres na cintura),
atletas (meninas de porte atlético, com roupas de ginástica, que desfilaram no chão e
sobre carros, provavelmente fazendo piruetas olímpicas) e estudantes fardados
carregando faixas e “pirulitos” saudando Roraima.
De acordo com as reportagens dos desfiles dos dois anos seguintes, as
referências militares e esportivas foram acrescidas de uma referência ao gaúcho, mas
não ocorreu nenhuma citação, nem textual nem visual, aos indígenas. A representação
dos nativos volta com força quando, em 1976 o “desenvolvimento” foi definido como
tema para os desfiles. Segundo foi destacado pelo Jornal, a escola Euclides da Cunha
levou, para o desfile, a temática do “valor do índio no desenvolvimento do Brasil” e os
estudantes teriam desfilado “inúmeras alegorias, lembrando os silvícolas e a mistura das
raças” (JBV 18/09/1976, p.7).
Na imagem que ilustra esse detalhe do desfile, os alunos caracterizados como
indígenas estão descalços, ornados com cocares e saias de palha, portando grandes arcos
e flechas. O que se pode concluir dessa imagem projetada nos desfiles e posteriormente
seu registro nas edições do jornal é que há o reconhecimento da presença do indígena,
entretanto, a imagem que se projeta sobre eles (sempre descalços, seminus, portando
bastões ou armas, em postura de dança ritual ou de caça) é a de simples ascendente do
povo brasileiro, habitante do passado que deveria ser lembrado como se não mais
existisse.
A imagem do indígena como algo pretérito, fadado ao fim pela miscigenação, é,
como afirma Oliveira (1997, p.60-83), fortemente influenciada por uma historiografia
que pensava o indígena apenas como mais um elemento para a formação do povo
brasileiro. Essa concepção encontrou forte eco em alguns dos livros que até hoje
circulam sobre a história de Roraima. Veja-se o caso das já citadas Informações
históricas, de Dorval de Magalhães (1986). Influenciado por autores como Arthur Cezar
Reis e Adolpho Ducke, Dorval legou à posteridade um testemunho que permite
vislumbrar o pensamento da elite roraimense sobre os indígenas nos anos de 1980. O
autor era da opinião de que a “vinda do aborígene à civilização importa, sem dúvida
nenhuma, na miscigenação entre as raças em contato, na formação do extraordinário
povo brasileiro”. Enquanto reconhece que “não há uma única pessoa que fique
impassível ante o problema indígena”, também evidencia a existência de um conflito
entre índios e ruralistas em Roraima, ao desabafar que “vive-se a lamentar [...] cifras de
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milhões de índios mortos. [...] em cada documento, em diferentes artigos as referências


são sempre a índios... índios... índios” (idem, p.35). Irritado, o autor nega a existência
de um massacre, explicando que “muitos dos silvícolas considerados mortos,
simplesmente casaram-se com brancos, mestiços e negros, numa miscigenação
conhecida, mas infelizmente pouquíssimo proclamada” (ibidem).
Esta argumentação é bastante importante para consolidar a posição de
Magalhães sobre a questão fundiária no Território Federal de Roraima. Ali, segundo ele,
as disputas por terra se baseavam num “erro de interpretação que confunde o índio
autêntico com o brasileiro comum, descendente de índio, mas que não guarda as
tradições dos seus ancestrais”. Nesse sentido, a divisão entre indígenas e ‘brasileiros
comuns’ proposta por Magalhães dialoga com o discurso do Regime Militar, propagado
pelo Jornal Boa Vista.
Se esses fatos demonstram que no planejamento das políticas de governo para
“ocupação da Amazônia” existiam visões prévias sobre os indígenas que continuaram se
projetando nos discursos, outras matérias publicadas no Jornal documentam que, na
prática, estas visões tiveram de confrontar-se com a realidade do contato. E um dos
canais por onde esse contato se deu, foi pela política assistencialista.
Como não poderia deixar de ser, o Jornal Boa Vista destacou as ações
assistencialistas como importante face da política executada pelos governos militares.
Em novembro de 1973, a assistência à Amazônia foi reportada como um investimento
para “atender às populações isoladas” através de campanhas de “Promoção Humana”
das Forças Armadas, da Legião Brasileira de Assistência - LBA, do Movimento
Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL, entre outros (JBV, 09/1973). As “atividades
culturais e assistenciais” eram parte da solução preconizada em Roraima pela
“Associação em defesa do índio brasileiro” - ADIBRA, para garantir “o bom
encaminhamento do problema indígena” (JBV, 03/1976).
Os indígenas foram, em geral, mantidos encobertos pelo teor dessas notícias,
mas uma leitura atenta mostra que estão presentes em praticamente todas as edições do
Jornal. No ano de 1974, por exemplo, em reportagem que tomava três páginas e trazia
farta quantidade de fotografias, foram retratados os “moradores locais” cumprimentando
o governador Ramos Pereira que os “escutava em suas necessidades” quando o Jornal
registrou a viagem do chefe do governo à região de Normandia (JBV, 08/09/1974). Um
ano antes, em edição de setembro de 1973, outra manchete anunciava a construção de
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escolas nas comunidades “rurais” do Pium, Limão e Lago Grande. Neste mesmo ano,
aparece a notícia de que a “Maloca da Raposa festejou o dia da criança”. Uma nota
anexa destacava o fato de que o tuxaua Abel Viriato Raposo e sua esposa Francisca
Santos Raposo, agradeciam pela festividade organizada em torno de uma “programação
esportiva com corrida de cavalos, futebol entre alunos da primeira à quarta séries, pau
de sebo, pescaria e corrida de saco”. Segundo a reportagem e a nota, as atividades foram
coroadas com “farta distribuição de prêmios”, trazidos pela LBA e a Comissão Central
do Mobral (JBV, 03/11/1973).
Aproximar-se dos nativos com ações assistencialistas foi, como se vê nessas
reportagens, a estratégia governamental para promover a “assimilação” que “sanaria” a
condição transitória do indígena, “integrando-o à sociedade”. O que estava por trás
desse mecanismo era uma claramente uma concepção de indígena como estado
temporário, como estágio de civilização, seja lá o que isso queira dizer. Não se pode
esquecer que tal pensamento, exaustivamente explicitado nos discursos, é bastante
afinado com a legislação da época. Foi sob o governo militar de Geisel que entrou em
vigor o Estatuto do Índio, Lei nº 6001 de 19 de dezembro de 1973. Esta lei, segundo
Albert (1990), tinha como pressupostos a relativa incapacidade do indígena e
considerava o “ser indígena” como uma condição transitória.
A estratégia, entretanto, não se deu sempre da forma como o governo esperava.
Os indígenas perceberam a possibilidade de se beneficiar desse canal de comunicação e
o utilizaram largamente, surpreendendo até mesmo o governador. É o caso, por
exemplo, do destaque que se dá, na reportagem sobre o pedido do tuxaua Albertino,
maiongong da região de Auaris, que aproveitou a visita do governador para solicitar
“sal, ferramentas, chita, calçados e um carrinho de mão de ferro” para sua comunidade.
A ele, o governador teria respondido que “daria carrinhos sim, mas de madeira”
(JBV,17/01/1976).
Alguns indígenas não ficaram em suas comunidades esperando pela visita da
autoridade governamental e há muitos registros de suas idas à capital para solicitar
assistência. Há, com relativa frequência, notícias de líderes que aparecem fazendo
pedidos, por vezes diretamente ao governador. Como Cirino Raposo, da maloca do
Napoleão, que no Palácio do Governo, em Boa Vista, foi recebido em uma “audiência
especial”. Na ocasião solicitou ao governador que sua comunidade recebesse “arame
farpado, ralador para mandioca, um forno e um touro” (JBV, 06/12/1975). Noutro
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momento se encontra a notícia de que o pedido de “pentes finos, agulhas, linhas para
costura, tesouras, ferramentas para cavar o solo, sandálias, sabão e sabonete, além de
medicamentos, sal, colheres e óleo para cabelo”, teria sido feito pela “maloca Serra do
Sol”, por “índios Ingaricó” quando, em 1975, o governador lá esteve (JBV,
25/07/1975).
É relevante reafirmar que nestes casos, ao contrário daquelas notícias em que se
pretende caracterizar o indígena como selvagem estranho e perigoso, o Jornal trata do
contato assistencialista entre governo e indígenas sem citar os últimos de modo
explícito. É mais comum referir-se a eles como moradores de comunidades rurais,
agricultores, líderes comunitários, sem garantir-lhes a especificidade indígena. Não
fosse pelo fato de que as matérias se referem à presença de “tuxauas” e a lugares
tradicionalmente indígenas como Pium, Lago Grande, Milho e Raposa, todas hoje
localizadas no interior de Terras Indígenas, seria praticamente impossível perceber,
nelas, a presença nativa. Sobre Normandia, por exemplo, apesar da ausência de legendas
nas imagens fotográficas, é evidente que são indígenas apertando a mão do governador.
O texto informa que, na localidade, os “1500 moradores falavam português, mas
entendiam perfeitamente o inglês e o macuxi”, retratando-os como simples habitantes da
vila que tinha, em sua periferia, fazendas de criação de gado (JBV, 08/09/1974). Assim,
o comum nestas reportagens é encontrar os nativos de diversas etnias sendo retratados
como moradores de comunidades “rurais”, ansiosos das obras de integração e dos
benefícios trazidos pelo governo territorial. Essa situação demonstra que havia,
subjacente ao discurso, a ideia de que, uma vez aproximado do governo territorial e se
“beneficiando” de suas políticas, o indígena deixaria de ser “indígena” para tornar-se,
nas palavras de Dorval de Magalhães, “um brasileiro comum”.
Importa reafirmar que, com base na frequência destas notícias no Jornal, o
assistencialismo como meio de comunicação e contato entre indígenas e não-indígenas
foi intenso no período. É verdade que, motivando a existência dessas reportagens que
tratam de pedidos que partem das comunidades indígenas, poderia estar uma intenção
deliberada do governo territorial em se apresentar como acessível àquelas populações,
mas, mesmo assim, deve-se levar em conta que as reportagens não eram inventadas.
Ainda que as interpretações sobre estes encontros também possam ser diferentes, dado
que o limite entre pedir e reivindicar se apresenta bem tênue nesses casos, vários
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indígenas estavam lá, solicitando ou exigindo coisas para suas comunidades ao governo
territorial.
É sobre essa tênue linha que se pretende instalar, a meu ver, de um lado a ideia
de o que o movimento organizado de resistência indígena nasceu da separação entre a
Igreja Católica e setores da elite fundiária de Roraima no contexto de centralização do
poder executado pelo Governo Territorial durante o Regime Militar. De outro lado, a
consideração de que o aparecimento de um Movimento Indígena organizado e
articulado nacionalmente era a expressão, em fins da década de 1970, da resistência e
luta empreendida de modo quase monolítico por todos os indígenas de Roraima, tal
como se poderia inferir pelo slogan “até o último índio”, da campanha do Conselho
Indigenista de Roraima, citada no início deste artigo.
Num esforço de enxergar esta história para além das disputas políticas reais, bem
como das contendas pela memória, aqui já expostas, tomo por base a realidade já
conhecida do contexto dos anos de 1970 para os indígenas em Roraima – marcada
inegavelmente pela violência real e discursiva, pelo assistencialismo, por políticas de
expropriação e integração e pela busca de parcerias que propiciassem uma atuação mais
autônoma - e penso nos indivíduos como agentes políticos que atuam no cotidiano,
movendo-se no campo do possível. Dessa forma, é lícito propor que muitos indivíduos
indígenas tenham se visto, em determinados momentos, diante de uma encruzilhada,
uma bifurcação no caminho da definição identitária. Se, como já afirmei anteriormente,
para organizar a resistência, seria necessário assumir uma identidade indígena genérica,
a despeito da identidade étnica mais restrita, para se beneficiar dos investimentos e
ações assistencialistas do governo territorial cobrava-se outro preço, qual seja, negar a
“condição indígena” e assumir a identidade de caboclo ou “procedentes de índios”516
(sic).
É provável que nem todos os que optaram, naquele momento, por aderir à
política assistencialista do governo territorial, também tenham preferido “tornar-se
brasileiros”, em vez de assumir a identidade genérica de indígena, que servia mais ao
confronto. Como este é um processo infindo, dado que as definições identitárias são
sempre dinâmicas e conectadas a diversos fatores internos e externos ao indivíduo, me

516
Em matéria do Jornal Boa Vista de 20 de outubro de 1974, como que em contraposição à imagem da
“Índia centenária”, o jornalista se refere aos estudantes da Missão São José como “procedentes de
índios”. Tal oposição, feita de forma sutil, demonstra como a idéia do índio no passado, apenas como
ascendente da população de Roraima, era forte no discurso do Jornal.
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parece razoável pensar que pode estar exatamente aí o núcleo das divisões políticas que,
em 2008 e até os dias atuais, ainda colocam indígenas dos dois lados da Praça do Centro
Cívico, com posturas opostas no que diz respeito, inclusive, à questões consideradas de
interesse dos indígenas de um modo geral, como a demarcação, homologação e
desintrusão de seus territórios.
Assim, ainda que eu comungue das interpretações acadêmicas aqui expostas e
reafirme a importância de uma produção historiográfica que dê centralidade às ações
indígenas, garantindo o protagonismo destes, não posso me abster de lembrar que, por
maior importância política que possua a proposição de que a década de 1970 foi o
momento em que se começava a articular a resistência indígena mais efetiva contra o
processo de colonização empreendido pelos governos militares, centrar-se apenas na
participação da organização e do enfrentamento político direto, deixando de observar
outras ações indígenas do período, dificulta ainda mais a compreensão do processo
histórico que configura o já bastante complicado quadro político que envolve índios e
não-índios em Roraima.

ARTIGOS E EDIÇÕES DE JORNAIS CONSULTADOS


CAMPOS, Ciro. “‘Preservar é burrice’, afirma presidente do Instituto do Meio Ambiente do
Amapá” sobre a Raposa Serra do Sol”. In: Jornal Folha de Boa Vista, dia 06 de agosto de 2008.
JORNAL BOA VISTA, 12 de março de 1973.
JORNAL BOA VISTA, 22 de setembro de 1973.
JORNAL BOA VISTA, 03 de novembro de 1973.
JORNAL BOA VISTA, 13 de novembro de 1973.
JORNAL BOA VISTA, 27 de julho de 1974.
JORNAL BOA VISTA, 17 de agosto de 1974.
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JORNAL BOA VISTA, 08 de setembro de 1974.


JORNAL BOA VISTA, 20 de outubro de 1974.
JORNAL BOA VISTA, 01 de dezembro de 1974.
JORNAL BOA VISTA, 25 de julho de 1975.
JORNAL BOA VISTA, 06 de dezembro de 1975.
JORNAL BOA VISTA, 17 de janeiro de 1976.
JORNAL BOA VISTA, 18 de setembro de 1976.
JORNAL DE RORAIMA. 04 de agosto de 2008. Rede Globo de Televisão.
OLIVEIRA, Laucides de. Considerações de um velho repórter. In: Jornal Boa Vista, 18 de
dezembro de 1973.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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da Amazônia: a propósito do caso yanomami. Disponível em
www.horizon.documentation.ird.fr/exldoc/pleins_textes/pleins_textes_7/b_fdi_03_01/37612.pdf

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de julho de 1970. s/e.s/d.

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Recife: Editora Universitária. 1985.;

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FARAGE, Nadia & SANTILLI, Paulo. Estado de Sítio, in: CUNHA, Manuela Carneiro (org).
História dos Índios no Brasil, São Paulo: Cia. Das Letras, 1992.

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Terra – 1777 a 1980. 2003, 234f. Tese (Doutorado em História do Brasil) - Universidade
Federal de Pernambuco, Pernambuco, 2003.
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A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DITADURA MILITAR NOS AI’S Nº 1, 2 E 4


SOB O DISCURSO DA “LEGITIMIDADE” JURÍDICO-DEMOCRÁTICA E
SUAS CONTRADIÇÕES: A INTERFERÊNCIA NA ATUAÇÃO DO
CONGRESSO NACIONAL

Flávia Danielle Santiago Lima


Doutora em Direito - UFPE
flavia-santiago@uol.com.br

Flávia Petronilo de Oliveira Vasconcelos


Licenciatura Plena em História - UFPE,
Bacharelanda de Direito - UNICAP
flaviapetronilo@gmail.com

RESUMO
A implantação do regime militar-tecnocrático, após o Golpe de 1º de abril de 1964, foi
amparada em um discurso de inviabilidade da Constituição de 1946 para assegurar a
“ordem interna e o prestígio internacional da Pátria”. Destituído o governo anterior pela
“revolução vitoriosa”, a introdução do arcabouço jurídico adequado à nova ordem
política deu-se com a edição dos documentos jurídico-formais, denominados Atos
Institucionais. O presente trabalho propõe-se a analisar os Atos Institucionais 1, 2 e 4,
característicos do período de convivência da constituição anterior com as modificações
necessárias à institucionalização da nova correlação de forças. Sugere-se que as
contradições do regime e as distensões entre seus grupos podem ser evidenciadas nestes
documentos, que recorrem aos argumentos do constitucionalismo moderno - titularidade
popular e limitação do poder –, ao tempo em que interferem na atividade do Poder
Legislativo, principal instância de representação popular num sistema de separação de
poderes, ao condicionar suas deliberações e retirar prerrogativas de seus membros.

PALAVRAS-CHAVE: GOLPE, LEGITIMIDADE, LEGALIDADE.

INTRODUÇÃO

A ditadura militar no Brasil, estabelecida com o Golpe de 1964, fundamentou-se


na construção de instrumentos de legitimação que levavam a crer na necessidade
precípua de sua instauração. Isso se deu de forma ampla, desde a veiculação de ideias de
que o governo anterior tentava “bolchevizar o País” (Ato Institucional I, 09/04/1964,
Preâmbulo), até a construção da aparência de um Estado de Direito que amparasse seu
governo e suas ações.
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A instabilidade política causada pela renúncia de Jânio Quadros foi o subterfúgio


necessário para o Golpe Militar. Com o pretexto de prioridade de segurança nacional, os
militares instauram o período ditatorial, sustentando-se na ideia de “perigo comunista”
que causaria o desmantelamento do Estado Democrático.
Em torno desse paradoxo de finalidade, o regime precisaria estar fundado em
normas que outorgassem prerrogativas que embasassem todas as suas ações e
funcionamento de seu governo. Dessa forma, foi montado um aparato legal para
legitimar o regime, através da edição dos Atos Institucionais. Assim, a ditadura estaria
alicerçada sob a imagem de um Estado de Direito.
Autodenominando-se Poder Constituinte através da “revolução vitoriosa”, no
Ato Institucional I declara a legitimidade do exercício do poder por seus novos titulares,
através da apropriação e uso de conceitos constitucionais de forma deturpada e
controvertida. Dentro dessa construção retórica e normativa, o regime militar busca
apoio e aceitação diante da sociedade civil e dos setores que possuíam a influência
necessária para a manutenção da ditadura.
Revestida do objetivo de construção de um ideal de democracia, em que a
intervenção militar apresentava-se como única saída para tal, de modo a “garantir ao
País um governo capaz de atender os anseios do povo brasileiro” (AI nº 1), o regime
avança em defesa de interesses que se distanciam das pretensões do povo. Dessa forma,
como assinala REZENDE, percebem a necessidade de se “construir um ideário de
democracia, no qual sobressaía a insistência na necessidade de criar, desenvolver e
preservar o que eles denominavam responsabilidade democrática” (2013, p. 66).
Para que se creditasse veracidade nos ideais proclamados e, consequentemente,
conseguir o apoio das elites, os militares se utilizaram – dentre outros - de mecanismos
ideológicos, através de seus discursos e da fundamentação teórica de seus atos. Além
disso, se ocuparam em construir todo aparato normativo que conferisse legalidade e,
conseqüentemente, legitimidade ao regime.
São discutidas, assim, as contradições do regime, já espelhadas em seus
discursos e documentos, objeto de ampla análise. Neste contexto, este trabalho pretende
analisar os primeiros AI´s 1, 2 e 4, que abrangem o período da instauração do regime
militar até a convocação da Assembléia Constituinte para a promulgação da
Constituição de 1967, de modo a avaliar como os próprios instrumentos normativos do
regime reproduziam as distinções entre sua fundamentação e práxis.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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1. Instauração do Regime Militar e Legitimidade

A instauração do regime militar , em 1964, deu-se em bases autoritárias, através


da exaltação da necessidade de assegurar a democracia. O autoritarismo garantiria a
democracia: nada mais contraditório. Mas diante de larga difusão do perigo que o
momento histórico representava para a democracia brasileira, tudo se justificaria, à
medida que seria com o fulcro de garantir a “ordem”, onde:

se torna acima da lei e, em seu nome e, em seu nome e até mesmo para a
manutenção da lei, a estrutura jurídica é negada, levando as Forças Armadas
a tutelar ordens políticas ou a derrubá-las, com a justificativa de uma
manutenção da ordem, que nada mais é do que um termo retórico que traduz
o confronto entre a ordem jurídico-política da lei e a nova ordem emergente
de novos rearranjos e compromisso entre os grupos hegemônicos em uma
dada sociedade. (AGUIAR, 1986, p. 21)

Todavia, para o convencimento dos setores da sociedade que se mostravam


essenciais para o regime, como a classe média, os empresários, representantes de
empresas multinacionais, entre outros, fazia-se necessária sua legitimação. Atributo
essencial para a noção de Estado Moderno, BOBBIO destaca que a legitimidade
“consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de
consenso capaz de assegurar a obediência a necessidade de recorrer ao uso da força, a
não ser em casos esporádicos. (...) transformando a obediência em adesão”. (1999, p.
675).
Apesar de se tratar de um governo baseado no autoritarismo e na repressão,
como afirma Hanna Arendt:

jamais existiu um governo baseado exclusivamente nos meios de violência.


Mesmo o mandante totalitário, cujo maior instrumento de domínio é a
tortura, precisa de uma base de poder – a polícia secreta e sua rede de
informantes. Somente o desenvolvimento de soldados-robôs que eliminassem
o fator humano por completo e permitissem a um só homem com um botão
de comando destruir a quem lhe aprouvesse, poderia mudar esta supremacia
fundamental do poder sobre a violência. Mesmo a mais despótica dominação
que conhecemos: o domínio do senhor sobre os escravos, que sempre o
excediam em número, não repousava em tais meios superiores de coação,
mas numa organização superior de poder – ou seja, na solidariedade
organizada dos senhores. Homens isolados sem outros que os apoiem nunca
têm poder suficiente para fazer uso da violência de maneira bem-sucedida.
Assim, nas questões internas, a violência funciona como o último recurso do
poder contra os criminosos ou rebeldes – isto é, contra indivíduos isolados
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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que, pode-se dizer, recusam-se a ser dominados pelo consenso da maioria.


(ARENDT, 1972, p. 31)

Nesse contexto, imperiosa a busca de apoio em setores influentes da sociedade


civil, como as classes médias, a Igreja Católica, representantes de empresas
multinacionais, dentre outros grupos que poderiam se aliar às pretensões exaltadas pelo
regime. Os juristas eram outro setor que, se conquistado, ofereceria respaldo para o
governo militar. Os instrumentos normativos serviriam como meio para conquistar esse
grupo específico. Para tal, como pano de fundo do Golpe, os Atos Institucionais se
tornaram um meio de apresentar uma legalidade aparente ao regime que se instalava.
Assim, através da legalidade, alcançar-se-ia a legitimidade de suas ações,
buscando estabelecer um elo entre o ideal democrático e a autoridade militar. A edição
de inúmeras leis no período da ditadura mostra a preocupação precípua dos militares em
terem suas ações pautadas na legalidade e não serem denúncias claras de sua
arbitrariedade. A cultura da legalidade se manifesta na exigência do governo poder se
amparar em textos normativos para justificar suas ações políticas.
Nesse ínterim, legitimidade e legalidade foram a fórmula de sustentação do
regime militar, que se instaurou em 1964. Assim,

a ênfase na legalidade e na legitimidade (sustentáculos do regime ditatorial)


teve um significado preciso: o da criação de uma aparência de normalidade
para a vida social e política que impedisse o reconhecimento do regime a partir
da perspectiva da excepcionalidade e do arbítrio. (CARDOSO, 1977, p.473)

Somente a edição de normas não seria suficiente, à medida estas teriam, ainda,
que amoldar-se às concepções jurídicas vigentes. Para tal, fim, construções teóricas do
de Direito Constitucional foram usadas nos seus textos legais e nos seus discursos. A
ideia de Poder Constituinte foi destorcida para que se adequasse ao funcionamento do
regime militar. Como afirma o importante constitucionalista Bonavides,

tudo principiou com o Ato Institucional de 9 de abril daquele ano, quando o


ucace falseou a teoria do poder constituinte, que é do povo e da nação. O Ato
depositava com toda a arrogância a titularidade e o exercício do sobretido
poder nas mãos de um comando golpista, cuja usurpação de competência não
trepidou em se dar ao desplante de pretender conferir legitimidade à
Constituição democrática de 1946, que ele vinha precisamente destruir em seus
fundamentos. (BONAVIDES, 1999, p. 210)
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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No Ato Institucional I encontra-se a construção do discurso retórico acerca do


Poder Constituinte, que confirma a necessidade premente do regime buscar legitimidade
dentro de parâmetros constitucionais. Porém, o regime se autoproclama Poder
Constituinte legítimo, advindo da “Revolução”, deslocando o núcleo de tal poder das
mãos do povo para os militares. A tentativa de inculcar na sociedade brasileira o
sentimento de motivos legítimos da instauração do regime se faz ao afirmar que este se
justifica na defesa da democracia, buscando a adesão da sociedade, de uma forma
ampla.

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se


manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais
expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa,
como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo
anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a
força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem
que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da
revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco
da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte,
de que o Povo é o único titular.

A Constituição de 1946 se apresentava como a Carta Magna que mais ampliou a


atuação ao Poder Legislativo. Com ela, os parlamentares tiveram maior possibilidade
de apresentar e aprovar leis de iniciativa própria do seu poder. Por esse motivo, o
governo ditatorial, ao se instaurar, não pretendia romper integralmente com a ordem
constitucional, à medida que necessitava suscitar a necessidade premente de sua
intervenção e seu caráter provisório. Porém, não poderia permitir a liberdade de atuação
conferida pela Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, trazendo as
limitações ao exercício do Poder Legislativo desde o primeiro ato institucional.
Todavia, sendo o Poder Constituinte ligado diretamente à ideia de legitimidade,
é possível concluir-se facilmente que tal momento histórico não era propício para a
construção dessa legitimidade em moldes de autoritarismo e arbítrio. Pois:

A Constituição deve exprimir o estado de cultura política da nação. Essa


cultura enfeixa crenças capitais, interesses sólidos, valores profundos de
consciência social sempre postergados nas avaliações do arbítrio em que o
grupo se arvora contra a sociedade, a parte contra o todo, a minoria contra a
maioria. (BONAVIDES, 1995, p. 207)
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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Dessa forma, em nada se aproxima o regime ditatorial dessa realidade, à medida


que se institui através de um poder instituído, baseado no autoritarismo e no arbítrio.
Essa realidade estava longe do ideal democrático, pois dentro desse ideal, o poder
constituinte deve ser o povo e provir dele, base fundamental para um Estado dotado de
legitimidade popular, pois:
A participação organizada do povo no procedimento constituinte, sendo hoje
uma irrenunciável da consciência jurídico-política, não basta, contudo, para a
consideração de uma ordem política com legítima. O facto de ser <posta> a
ordem constitucional por um órgão legitimado para criar direito constitucional
formalmente válido (um poder constituinte legítimo) e de acordo com
procedimentos considerados usualmente correctos não passa, como sublinha
Habermas, de um <indício de legitimidade>. (PINTO, 1994, p. 13)

2. Institucionalização do regime através de normas jurídicas: os Atos Institucionais

O Ato Institucional I, de 9 de abril de 1964, foi o primeiro documento jurídico-


formal produzido pelo regime burocrático-autoritário instaurado com o golpe militar
que depôs o presidente João Goulart. Apesar de afirmar manter a Constituição de 1946,
estabeleceu normas de exceção dentro da ordem constitucional, buscando legitimidade e
justificativa para suas ações ao se autoproclamar um movimento revolucionário em prol
da defesa da democracia.
Apesar do uso da força e do arbítrio ser marcante no regime ditatorial, a edição
de textos normativos nesse período demonstram a necessidade de dar aparência legal às
suas ações. Porém, na própria edição e promulgação desses Atos, se revelava a afronta á
ordem constitucional, à medida que tais Atos não estavam sob controle de nenhuma
outra instância. Assim, a ditadura revestia seu arbítrio normatividade e de “legalidade” –
desamparada do texto constitucional vigente, distanciando-se da legitimidade.
No seu primeiro ato Institucional, o regime já abria a possibilidade legal de
cassação dos mandatos eletivos do Poder Legislativo. Tal medida demonstra a
preocupação dos militares em podar o poder de influência dos membros do Poder
Legislativo, detentor de legitimidade por sua representação popular, comprovando seu
distanciamento dos ideais democráticos. Essa é uma das contradições internas do regime
militar que, se proclamava em defesa da democracia, ao mesmo tempo em que acaba
por perseguir e retirar do cenário político o Poder Legislativo, detentor de representação
política legítima de escolha popular.
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Não é difícil imaginar o porquê da perseguição e cassação dos mandatos eletivos


dos membros do Congresso Nacional, à medida que o funcionamento normal desta Casa
era um entrave para o estabelecimento do regime, sendo palco de discussões e
deliberações. A restrição de direitos fundamentais somada à cassação dos parlamentares
retiram os obstáculos ao estabelecimento do regime e seus ditames.
Conferindo o seu aspecto de transitoriedade, o artigo 7º do Ato Institucional I
estabelece que “Ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais ou
legais de vitaliciedade e estabilidade”. O ar de temporariedade traria também em si a
possibilidade de aceitação dessas imposições, ressaltando a necessidade de intervenção
incisiva naquele determinado momento histórico.
O próprio artigo 7º do AI I oferecia condições de retirar do palco político e
social todos aqueles que oferecessem resistência ao regime podendo, para tanto:

Mediante investigação sumária, no prazo fixado neste artigo, os titulares dessas


garantias poderão ser demitidos ou dispensados, ou ainda, com vencimentos e
as vantagens proporcionais ao tempo de serviço, postos em disponibilidade,
aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, mediante atos do
Comando Supremo da Revolução até a posse do Presidente da República e,
depois da sua posse, por decreto presidencial ou, em se tratando de servidores
estaduais, por decreto do governo do Estado, desde que tenham tentado contra
a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração
pública, sem prejuízo das sanções penais a que estejam sujeitos.

As cassações de mandatos eletivos dos parlamentares e demissão de servidores,


conhecida como “Operação Expurgo”, ofereceria ao regime a possibilidade de retirar do
cenário estatal e político os adversários do regime, tendo seus direitos políticos
suspensos por dez anos e seus mandatos cassados. No Ato do Comando Supremo da
Revolução nº 2, quarenta mandatos de deputados federais foram cassados. Sem os mais
fortes opositores, o Congresso Nacional poderia servir ao regime, à medida que
instaurou uma postura de passividade dentre a maioria dos que tiveram seus mandatos
preservados. Esse fator propiciaria a aprovação parlamentar de matérias de lei enviadas
pelo Poder Executivo, intenção do regime de se revestir sobre a aparência da legalidade.
Aliada a essa possibilidade de cassação, o AI I ainda estabeleceu: a sujeição da
pauta legislativa ao Poder Executivo, com o estabelecimento de prazos para deliberação,
aprovação tácita de projetos de lei, estabelecimento de iniciativa privativa do Presidente
da República em matérias de lei que resultem em aumento de despesa, além da
proibição de emendas parlamentares. Essas medidas contidas no primeiro Ato
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Institucional denunciam flagrantemente os ataques ao Poder Legislativo e,


consequentemente, ao Estado Democrático de Direito, ao retirar do poder dotado de
representatividade popular e legitimidade.
O artigo 2º completava a empreitada de subjugação do Poder Legislativo à
medida que estabeleceu o voto indireto para a escolha do Presidente da República para
terminar o mandato do presidente deposto, além de estabelecer o voto aberto. Dessa
forma, estavam estabelecidos os meios de consecução dos objetivos do regime, ao
limitar e intimidar a atuação do Poder Legislativo, conseguindo a aprovação da
legislação e neutralizando sua atuação dentro da sociedade. Com os principais
opositores do regime cassados, os membros do Legislativo que restavam continuariam a
atuar sob a vigilância e repressão dura da ditadura.
Apesar de se declarar uma intervenção transitória, o regime militar mostrou-se
com intuitos mais duradouros diante das medidas de endurecimento e ampliação da
repressão. Em contrapartida, a sociedade civil não recuou e ofereceu resistência aos seus
abusos. Assim, o Ato Institucional nº 2, veio dotado de novas disposições, expandindo
cada vez o autoritarismo e os poderes do Presidente da República, mais uma vez em
detrimento do Poder Legislativo.
O AI II pode ser considerado um agressivo ataque às prerrogativas inerentes ao
Parlamento Brasileiro. Estabeleceu a possibilidade de aprovação de leis por decurso de
prazo, tendo aprovação tácita. Aliada a esse fator, a ampliação de matérias de
competência privativa do Presidente da República reduziam ainda mais o espaço de
atuação do Poder Legislativo. Trouxe a faculdade de decreto do recesso do Congresso
Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, podendo o
Presidente da República legislar nesse período através de decretos-lei. Ainda, a extinção
dos partidos políticos vem a demonstrar o cerco para os membros do poder Legislativo
e a supressão da liberdade de associação política, perigos iminentes para a manutenção
da ditadura militar.
O Ato Institucional II ainda estabeleceu maior supressão das prerrogativas dos
parlamentares, uma vez que, cassados de seus mandatos, suas vagas não poderiam ser
ocupadas por seus suplentes. Assim, a aprovação das leis não estaria mais condicionada
ao quorum mínimo e, sim, um “quorum parlamentar em função dos lugares
efetivamente preenchidos”
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O Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966, veio dar o desfecho final do


regime em relação ao ataque ao texto constitucional de 1946 e ao Estado Democrático
de Direito. Segundo seu artigo 8º, em 24 de janeiro de 1967, o Congresso Nacional
estava obrigado a se reunir extraordinariamente para aprovação do texto constitucional
apresentado pelo Presidente da República. Assim, o regime militar estaria pondo fim ao
regime constitucional regido pela Carta Magna de 1946, mostrando seu real propósito
com a promulgação da Constituição de 1967, completamente moldada às suas propostas
de intervenção e atuação política.
Em seu artigo 9º, estabelece a possibilidade de o Presidente da República
legislar através de decretos-lei em matéria de segurança nacional, bem como de matéria
financeira e administrativa, aumentando ainda mais as prerrogativas de poder e
intervenção do chefe do Poder executivo. Assim, podemos perceber o crescimento do
Poder Executivo ao se apropriar de atribuições próprias do Poder Legislativo e ao tolher
os direitos de liberdade de expressão e atuação de seus membros, denunciando
claramente os propósitos autoritários e controversos de um regime que se instaurou sob
o pretexto de manter a ordem e restaurar a democracia. Os instrumentos utilizados
mostram que se encaminhava para um rumo oposto ao dos princípios democráticos.

3. O Golpe: caracterização e contradições

O discurso dos militares para justificar a tomada do poder e a implantação do


regime militar estava fundamentado por perspectivas contraditórias e incongruentes.
Não é tarefa difícil de constatar as contradições desde o seu fundamento basilar:
“assegurar o regime democrático, instaurando um regime autoritário”. Além disso, nos
próprios Atos Institucionais, é possível encontrar as contradições internas do regime.
Em seu preâmbulo, evocam princípios políticos e ideológicos que embasavam o regime
e seus instrumentos de intervenção. Segundo Hans Kelsen, preâmbulo:

(...)é uma introdução solene, que expressa as ideias políticas, morais e


religiosas que a constituição pretende promover. Esse preâmbulo em geral não
estipula quaisquer normas definidas para a conduta humana e, assim, carece de
conteúdo juridicamente relevante. Ele tem antes um caráter ideológico do que
jurídico. Normalmente, se ele fosse suprimido, o teor real da constituição não
seria modificado nem um pouco. (KELSEN, 1998, p. 372)
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No texto dos Atos Constitucionais, a redação do preâmbulo se propunha a


oferecer um discurso legitimador que oferecesse aceitação da instauração do regime e
do emprego de seus instrumentos. Especificamente no Ato Institucional I, é possível ver
a construção de argumentos que envolvem legitimidade, revolução e Poder Constituinte,
se apropriando desses conceitos para justificar o regime.
O preâmbulo do Ato Institucional I inicia-se com a afirmativa de que o
movimento é uma verdadeira revolução. Todavia, segundo Noberto Bobbio:
A Revolução é a tentativa, acompanhada do uso da violência, de derrubar
autoridades políticas existentes e de as substituir , a fim de efetuar profundas
mudanças nas relações políticas, no ordenamento jurídico-constitucional e na
esfera sócio-econômica.(...) A Revolução se diferencia do golpe de Estado,
porque este se configura apenas como uma tentativa de substituição das
autoridades políticas existentes dentro do quadro institucional, sem nada ou
quase nada mudar dos mecanismos políticos e sócio-econômicos. (BOBBIO,
2000, p. 1121)

Sendo assim, percebe-se a construção de falácias, baseadas em conceitos


precisos porém distorcidos, destacando as artimanhas da fundamentação da instauração
do regime militar. A intenção de legitimação evidencia-se da leitura dos preâmbulos de
Atos Institucionais.
Fica claro perceber que a noção de Revolução se afasta da realidade do regime
militar, que se caracteriza como Golpe de Estado, à medida que, como assinala Bobbio:

habitualmente, o Golpe de estado é seguido do reforço da máquina burocrática


e policial do Estado; uma das consequências mais típicas do fenômeno
acontece nas formas de agregação da instância política, já que é característica
normal a eliminação ou a dissolução dos partidos políticos. (BOBBIO, 2000, p.
547)

Além da inadequação semântica entre o termo utilizado “Revolução” e a


realidade do regime, destaca-se o afastamento do regime do ideal democrático. À
medida que se percebe o recrudescimento do ataque às prerrogativas dos membros do
Poder Legislativo, é denunciante a distância do regime do Estado democrático. Isso se
dá porque:

O Poder Executivo tradicionalmente protege seu campo de atuação, evitando a


ação fiscalizadora e coadjuvante do Legislativo; por outro lado, atua de forma
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deliberada no campo legislativo, dentro e fora dos limites estabelecidos, em


alguns momentos pela força das armas, impondo regras de forma arbitrária, e
em outros, pela força das maiorias, operando à margem dos textos
constitucionais e beneficiando-se da aquiescência ou da resignação do Poder
Legislativo. (PESSANHA, 2000, p. 179)

A atuação legislativa na condução dos procedimentos do Estado Democrático de


Direito é fundamentalmente política. Nesta seara, em detrimento da aclamada
preponderância dos outros poderes como condutores do processo de efetivação das
promessas constitucionais, não se pode negar ao Legislativo sua legitimação
democrática para proceder à avaliação das prioridades estatais. Isto porque, em
detrimento das opiniões em contrário, a função legislativa é nitidamente representativa.
Os embates entre as forças políticas, inclusive, têm no Legislativo sua arena mais
adequada, pois é a instituição que promove a conciliação nas sociedades em geral,
centralizando o processo de tomada de decisões no âmbito nacional, enquanto preserva
o poder pluralizado, na forma representativa de seus membros.
Os legislativos, ademais, são mais propensos a valorizar a heterogeneidade de
interesses e enfatizar a importância dos setores privados, assegurando, de todo modo, a
representatividade das minorias517, diante da descentralização que os caracteriza.
Justamente por isso, defende-se a manutenção da sua capacidade de legislar, de modo a
contemplar os diferentes valores e interesses inerentes à complexidade das democracias
hodiernas.
A relevância do Poder Legislativo no constitucionalismo justifica-se mediante
critérios políticos, mas também precipuamente jurídicos. Isto porque a atuação estatal
deve estar amparada – no Estado de Direito – à legislação, o que posteriormente foi
denominado de reserva legal. Exigem, pois, para sua efetivação, a regulamentação das
questões de forma e de conteúdo¸ como os agentes públicos obrigados e a determinação
dos pressupostos materiais e formais para seu exercício, permitindo o recurso às vias
judiciais na hipótese de seu descumprimento.
Porém, ainda que tenha partindo do postulado do equilíbrio, como destaca
RANGEL, depreende-se da concepção de Separação de Poderes a preponderância do

517
Embora sejam postas como uma das principais justificativas para a garantia dos direitos fundamentais, não há
consenso entre os doutrinadores do que vem a ser uma minoria. Luis Prieto Sanchís, em trabalho no qual se ocupa do
tema, define os grupos minoritários a partir de um ponto em comum: a posição de desvantagem jurídica e/ou
institucional, econômica ou social. SANCHÍS, Luis Prieto. Minorías, respeto a la disidencia e igualdad sustancial. Doxa.
n. 15-16, v. I, p. 367-387, 1994. Disponível em
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01361620824573839199024/cuaderno15/volI/doxa15_19.pdf. Acesso em:
25 de março de2014.
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Legislativo, diante do importante papel ocupado pela noção de lei no Estado Liberal
que, ao consistir num produto dos três estamentos sociais, exprimiria a vontade geral do
Estado, sendo destinada a todos os cidadãos (2001, p. 296).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de revestida da imagem de um Estado legal, os desmandos criados pelo


regime tornaram gritantes as intenções de seu governo, que se prolongavam e
agravavam com o tempo e com o endurecimento do regime, distanciando-se do discurso
democrático que serviu de pano de fundo para a instauração do regime. A necessidade
de se apropriar de um discurso democrático servia para revestir de legalidade seus atos e
de encobrir o arbítrio e os desmandos que foram praticados nesse período.
Além das contradições entre discurso e a realidade política e social brasileira, a
perseguição dos membros do Poder Legislativo se mostrou como contradição aviltante
de um regime que se denominava defensor da democracia. O impedimento da atividade
legislativa, buscando neutralizar a sua atuação, evidenciou-se como uma medida de
cerceamento do exercício do poder que possui a representatividade popular.
Entre discurso, normatização e realidade, as contradições internas do regime
militar estavam presentes na busca de alcançar a legitimidade através do apego à
legalidade. Porém, uma contradição se torna evidente, pois ao atacar duramente as
instituições representativas, como aconteceu com o Congresso Nacional, o regime
denunciava que estava longe do ideal democrático.
Dessa forma, por mais que se declarasse defensor da democracia, em busca da
estabilização política, o regime militar aprofundou a perseguição após a edição
sucessiva dos Atos Institucionais. Assim, a ditadura se concretizava e agravava para o
autoritarismo máximo, em uma dura perseguição dos dissidentes e na supressão dos
direitos fundamentais.
Sob a afirmativa de manter a Constituição de 1946, o regime se concretizou sob
o estabelecimento real de um Estado de Exceção. A proclamação de um Poder
Constituinte Revolucionário, o ataque ao Poder Legislativo, a supressão de direitos
fundamentais e a declaração de manutenção da Constituição de 1946, controlada pela
edição de atos institucionais sucessivos e, cada vez mais abusivos, são indícios claros de
medidas próprias de um Estado de Exceção.
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A edição sucessiva dos AI´s demonstra a incompatibilidade que o regime


encontra com a Constituição de 1946, que culminou com a convocação de Assembleia
Constituinte para estabelecer uma nova ordem constitucional, nos moldes do regime
militar, suprimindo direitos fundamentais e reconstruindo as bases normativas de
funcionamento do sistema político, com a extensiva submissão do Parlamento ao
Executivo – pela retirada de poderes e supressão de prerrogativas.
Algumas formas de intervenção na atuação do Poder Legislativo possuem
repercussão até hoje na ordem constitucional vigente, mesmo que sob uma Constituição
Democrática – como se denomina o texto de 1988. A ingerência do Poder Executivo
sobre o Parlamento permanece nos instrumentos de controle da pauta legislativa, como:
amplo rol de temas submetidos à iniciativa privativa do Presidente para apresentação de
projetos de lei, possibilidade de solicitação de regime de urgência para a deliberação
parlamentar no processo legislativo, submissão da legislação aprovada pelo parlamento
à sanção ou veto do Presidente – superável apenas por voto da maioria absoluta dos
membros das Casas -, edição de Medidas Provisórias e outros.
Essa é a prova de que a superação de tamanha repercussão sobre o parlamento é
tarefa difícil de ser superada. Resquícios do autoritarismo são percebidos até hoje, nas
mais diversas práticas.
Dessa forma, o resgate de discussões sobre o período permite que se possa
desconstruir discursos e defesas distorcidas do período de intervenção militar, tendentes
à relativização dos fatos ocorridos. Neste sentido, a análise das normas jurídicas
produzidas pelo próprio regime, que evidenciam as arbitrariedades então previstas, sem
prejuízo dos abusos efetivamente ocorridos, ilegalidades que transcendiam o aparato
legal, mostra-se um importante meio de resgatar a memória desse momento histórico.
Permite-se, ainda, identificar o renascimento de discursos e práticas assemelhadas aos
períodos passados, de modo a proteger a ordem constitucional paulatinamente
construída desde a promulgação da Constituição de 1988.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, H. Sobre a violência. São Paulo: Perspectiva, 1972.


VI Cultura e Memória
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AZEVEDO, Márcia Maria Corrêa de. Prática do processo legislativo: jogo


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O DESLOCAMENTO DE TRABALHADORES RURAIS DO NORDESTE PARA


A AMAZÔNIA (1970 A 2000)

Joana Maria Lucena de Araújo


Universidade Federal de Pernambuco
Joanamary35@gmail.com

Resumo: Este artigo tem por objetivo pensar as migrações no sentido Nordeste –
Amazônia518 no âmbito das políticas dos governos ditatoriais para esta região,
principalmente os chamados projetos de colonização, agropecuários e mineradores que
tinham por principal objetivo integrar a região amazônica aos grandes mercados
internacionais e preencher espaços, antes considerados “vazios”. Privilegio a área do
Norte e o sul do Pará, espaço amplamente conhecido como palco de intensos conflitos
envolvendo a posse da terra e situações de trabalho análogo a de escravo ou degradante.
O estudo da migração de trabalhadores do Nordeste para a região amazônica perpassa
várias problemáticas; nas páginas seguintes demostro algumas questões fundamentais
encontradas no decorrer da análise das fontes, tais como a interpretação de dados
estatísticos, o manuseio de algumas categorias, tais como migrante, trabalho degradante,
trabalho análogo ao de escravo, entre outros.

A atração dos trabalhadores do campo do Nordeste não é atual, sabe-se


que o ciclo da borracha contou com um grande contingente de trabalhadores nordestinos
para a extração do látex519. Contudo, o acontecimento que vai produzir o deslocamento
do qual trato neste trabalho são projetos que o governo federal vai implantar nessas
áreas, os agropecuários, mineradores, e de colonização, que guardam características
especiais em comparação com os outros momentos da história. Quando falamos do

518
Segundo a divisão regional do país, a Amazônia Legal compreende a região Norte (os estados de
Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará e Tocantins), o oeste do estado do Maranhão e ainda
parte da região Centro-oeste (o estado de Mato Grosso). A soma das áreas destes estados é de 4,7
milhões de quilômetros quadrados. A referência para o território amazônico, que a define como
Amazônia Legal aparece com a criação do Plano de Valorização da Amazônia de 1953.
519
Para mais informações sobre as migrações para a região amazônica nos ciclos da borracha ver:
GUILLEN, 2006, GONÇALVES, 2012, WEINSTEIN, 1993 entre outros.
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acontecimento colonização seguimos a trilha deixada por François Dosse em sua


publicação mais recente “Renascimento do Acontecimento”, neste livro o autor
pretende revisitar o conceito de acontecimento o considerando agora como múltiplo,
que deixa uma variedade de vestígios e marca sua presença mesmo em acontecimentos
subsequentes, uma singularidade que quebra o curso regular do tempo e que se reflete
nos presentes dos sujeitos. É importante analisar a singularidade do acontecimento,
tirando-o do lugar em que as ciências humanas o colocaram, um elemento perturbador
que era preciso reprimir. Ao considerar o acontecimento como um produtor de
possibilidades podemos perseguir novos caminhos analisando alguns processos sociais
que não são comtemplados no estudo de determinado tema. Por exemplo, aqui, a
colonização será utilizada como estratégia oficial de povoação de novas terras, sendo
estas de responsabilidade oficial ou privada, mediante a venda ou doação de terrenos
nos Núcleos Coloniais, com a pretensão de ocupar de “modo organizado” os “vazios
demográficos” existentes no país. Esta política de intervenção do estado na região
amazônica fica mais delineada a partir dos últimos anos da década de 1960 onde os
governos ditatoriais vão controlar o processo de ocupação e controle do acesso as terras
na Amazônia através da criação de planos nacionais tais como o PIN (Plano de
Integração Nacional), que vai determinar novas políticas de incentivos fiscais,
colocando a disposição da iniciativa privada enormes somas de capital para financiar os
projetos de colonização , e a implementação de grandes eixos rodoviários, como a
Tranzamazônica, no sentido leste a oeste, do Pará ao Amazonas, e a rodovia Cuiabá
(MT) – Santarém (PA).
Os projetos de colonização são uma invenção política estratégica, um
dispositivo, entendido seguindo as trilhas deixadas pelos filósofos Michel Foucault e
Giorgio Agamben, que entendem dispositivo por uma rede que se estabelece entre
diversos elementos, e possui uma função estratégica concreta; sempre inserido em uma
relação de poder. O dispositivo colonização será ressignificado pelos governos civis-
militares com o objetivo mais importante de tornar positivo o movimento de
apropriação de grandes extensões de terra por parte da iniciativa privada. Observamos
um esforço por parte desses governos para positivar o termo colonização revestindo-o
com uma ideia de desenvolvimento e progresso, necessário para o “avanço” do país.
O direcionamento por parte do governo de grande fluxos migratórios
para as novas áreas de povoamento na Amazônia além de ocupar uma área considerada
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de “vazio demográfico”, também favoreceria o “esvaziamento” dos conflitos sociais nas


regiões Sudeste e Nordeste do Brasil520. A partir daí, a questão agrária no país se
transforma em assunto de ordem militar, tanto em âmbito privado quanto público,
ficando os movimentos sociais e a luta pela terra considerados como risco de segurança
nacional, ato subversivo. Entretanto, é preciso salientar que a migração para o Norte de
Mato Grosso e sul do Pará por conta dessas políticas de atração não só superou as
estimativas dos planejadores como antecedeu suas próprias ações.
Um trabalho de referência no estudo sobre os projetos de colonização no
estado do Mato Grosso é o da historiadora Regina Beatriz Guimarães Neto que, em seu
livro “A lenda do ouro verde”, realizou um estudo sobre os projetos de colonização
implementados pela iniciativa privada com o apoio fiscal do governo federal. Seu objeto
de estudo foram os pequenos proprietários provenientes do sul do país, que, seduzidos
pela propaganda das empresas colonizadoras, migraram para o Mato Grosso a procura
de terra a preços acessíveis. Estes produtores, num processo de expansão da fronteira
agrícola, orientaram seus deslocamentos para a região amazônica com os recursos
auferidos a partir da venda das terras nos estados de origem. É interessante observar o
imenso aparato propagandístico que essas empresas colocaram em circulação para
promover suas terras. A intenção era atrair pequenos produtores rurais empobrecidos –
que não tinham como financiar a modernização de suas lavouras, nem como comprar
mais terras para impedir a desintegração familiar – para a Amazônia, afim de que estes
adquirissem lotes a preços módicos. Neste sentido, a colonização deve ser
compreendida como uma grande narrativa que participa da elaboração do mito do
Eldorado, inventando a terra da abundância e da fartura. Porém, revelar-se-á, nas
difíceis situações vivenciadas pelos camponeses e trabalhadores assalariados do campo,
uma experiência marcada pelo conflito social, com o fim de possuir ou de manter a
posse da terra.
Esta propaganda da “terra prometida” não atinge apenas os colonos do
sul, público alvo dos projetos ditos de colonização. Primeiramente utilizados para a
construção das grandes obras rodoviárias, os migrantes provenientes do Nordeste não
terão condições de adquirir um lote de terra, e, os que conseguiram adquirir um lote, não
terão meios de mantê-lo, repassando-o a outros proprietários. Então, contando apenas
520
Muitos historiadores analisam o receio que as elites do país sentiam de uma revolução comunista no
Brasil, entre eles, cito como referência Antônio Torres Montenegro que estuda a atuação das Ligas
Camponesas e as práticas de trabalhadores no fortalecimento da busca por direitos sociais.
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com sua força de trabalho, estes migrantes mudam constantemente de atividade, das
lavouras para a extração do ouro e diamante, ou para as derrubadas de floresta ou ainda
vão pleitear um lote de terra através da força tornando-se posseiros521. O geógrafo
Carlos Walter Porto Gonçalves (2012), em um estudo sobre a Amazônia afirma que, a
chegada desses novos migrantes se, por um lado, atendia a demanda de mão de obra
para a própria construção das estradas e das hidrelétricas, por outro lado, deixava um
rastro de miséria e desemprego quando essas obras terminavam. Como se tratam de
grandes construções, foram erigidos enormes acampamentos para operários, muitos dos
quais deram origem a vilas e cidades.
A expansão populacional pós década de 1960 em direção aos “novos
territórios”, que não as principais cidades do país, configurou um novo mapa do Brasil.
A fronteira para o aporte de investimentos, políticas e população ‘marchou’ em direção
a Amazônia Legal. Estima-se que, apenas nas ultimas décadas do século XX apenas o
estado do Mato Grosso ganhou mais de 100 novos municípios. É importante destacar o
papel da rede urbana na viabilização da mobilidade de população ora como
consequência ora como causa da intensidade e direcionamento dos fluxos migratórios.
Unidade de referencia para o cadastramento censitário, o município pode ser percebido,
através da sede municipal, como o lugar de recebimento da população migrante, seja ela
de origem rural ou de outra procedência urbana. Bertha Becker (1989) numa pesquisa
efetuada em 14 municípios ao longo da Estrada de Ferro Carajás – especializada no
transporte de minérios, liga o Pará ao porto de São Luís, saindo da cidade de Carajás –
constatou que 51,5% da população residente nestes municípios era composta por
migrantes, sendo que 60% havia migrado entre 1970 e 1980. Em uma dessas cidades,
Ananindeua, na Grande Belém, 44% da população era de migrantes que ali vivia a
menos de 2 anos. Segundo Brandford e Glock (1985 p.55), no início da década de 1970,
um estudo sobre a “frente pioneira” calculou que, entre 250 mil e 400 mil peões
trabalhavam na região amazônica nos períodos de seca de seus estados de origem.

521
A categoria posseiro foi apropriada e resignificada pelos trabalhadores rurais, principalmente
migrantes de diversas regiões do Brasil, transformando-se em uma nova categoria. O significado de
posseiro modifica-se com o tempo de acordo com os desdobramentos políticos de cada época. O
significado mais comum desta denominação diz que os posseiros são lavradores (agricultores) que
juntamente com a família ocupam pequenas áreas de terras devolutas ou improdutivas, isto é, terras
que não estão sendo utilizadas e que pertencem ao governo. Trabalhadores rurais que tem a posse, mas
não têm um documento oficial que prove que eles são donos ou proprietários da terra.
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Este movimento vai ganhar maior visibilidade quando analisamos o


Censo Demográfico 2000, que mostra claramente as mudanças ocorridas nas correntes
principais dos fluxos migratórios, com antigos espaços de atração de pessoas perdendo
expressão. Destacam-se a região Norte; que apresenta atualmente o maior volume de
imigrantes nordestinos, sendo o estado do Pará considerado área de alta absorção
migratória. O Pará foi também o principal destino dos imigrantes maranhenses seguido
por São Paulo, Tocantins, Piauí, Goiás e Distrito Federal. Em um panorama onde cerca
de 3,3 milhões de pessoas se deslocam entre as regiões brasileiras, entre entradas e
saídas522. Outra face dos movimentos de população relacionados aos projetos de
colonização são os fluxos de retorno - que não serão objeto dessa pesquisa -, famílias
inadaptadas nos projetos que retornam a seus lugares de origem face a existência de
uma rede familiar que as acolhe.
Esses migrantes, especialmente os provenientes do Nordeste, ao
chegarem a terra prometida vivenciam as mais adversas situações. Nos primeiros
momentos da abertura das novas áreas de colonização as empresas erigiam barreiras
físicas, construídas de madeira ou cimento, ou também utilizavam barreiras naturais
como rios de difícil travessia controlando as passagens, impedindo a entrada daqueles
que não podiam se identificar ou que não eram bem-vindos. Estes mecanismos de
exclusão eram direcionados, principalmente, aos negros, ou homens e mulheres
provenientes de áreas geográficas muito pobres do país, sobretudo determinados estados
as região Nordeste (Guimarães Neto, 2002). Os “nordestinos” eram associados a todos
os homens pobres, perigosos e “sem rumo”. Neste âmbito, me beneficio das análises do
filósofo italiano Giorgio Agamben, especialmente seu livro “Vida Nua”, onde, através
do estudo dessa obra, percebemos que estes migrantes são excluídos do direito de serem
reconhecidos como colonos, mas, são incluídos de uma outra forma, como mão-de-obra
de baixo custo e fácil reposição, por exemplo
O efeito dessa marginalização social aparece claramente nos indicadores
sociais, sendo os da Amazônia um dos piores do país. Porto Gonçalves (2012)
analisando o Catálogo Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental (Cabes), de 1990,
aponta que, em 1980, a região Norte contava com um médico para casa 2.261
habitantes, taxa inferior a do Nordeste, que possuía um médico para cada 1.781
522
Fluxos migratórios observados no Brasil no quinquênio 1995-2000, e publicados em estudo do IBGE
intitulado: Reflexões sobre os deslocamentos populacionais no Brasil; Estudos e análises, informação
demográfica e socioeconômica.
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habitantes. Somente 4% da população da Amazônia é servida de esgotamento sanitário.


O serviço de abastecimento de água atende a somente 70% da população urbana da
região Norte contra 78% no Nordeste, 83% no Centro Oeste, 91% no Sudeste e 90% no
Sul (Cabes/1990)
Ao analisar os dados do censo demográfico da década de 1980 nos
deparamos com números intrigantes. Observamos uma nítida e progressiva diminuição
no número de empregados permanentes e parceiros dos estabelecimentos rurais
estudados (esta é a categoria onde descrevemos trabalhadores residentes dentro das
propriedades), esta categoria passou de 40%, em 1940, do total de todos os
trabalhadores envolvidos na atividade rural, para 13% em 1980. Por outro lado, a
expulsão dos camponeses do interior das grandes propriedades (fenômeno estudado por
diversos historiadores que se trabalham com a questão do desenvolvimento do
capitalismo no campo e etc.) não impediu que os pequenos produtores aumentassem em
número mais do que qualquer outra categoria de trabalhador rural, entre os anos de 1940
e 1980, neste período, os responsáveis e membros não remunerados da família passaram
de 5,7 milhões, pouco mais de 50% do total de todo o pessoal ocupado nos
estabelecimentos agropecuários, para 15,6 milhões, pouco mais de 74% (Palmeira,
1989).
Como podemos ver na análise dos dados, é mais complexa do que parece
a relação entre a concentração fundiária e o êxodo de trabalhadores rurais. Se
observássemos apenas a primeira parte da pesquisa, onde fica constatado a significativa
diminuição do número de trabalhadores residentes nos estabelecimentos agropecuários,
chegaríamos a conclusão, assim como alguns de nossos colegas marxistas, de que esse
contingente de trabalhadores, desapropriados de seu modo tradicional de subsistência,
vão impulsionar o crescimento das industrias (processo de proletarização da mão-de-
obra), visto que a industrialização explicaria o esvaziamento do campo e a migração
para as cidades. Contudo, observamos que buscar apenas nas teorias econômicas o
respaldo para as análises das migrações internas e para a chamada “desterritorialização”
dos trabalhadores do campo não dá conta de explicar o forte fluxo de capital, trabalho e
pessoas que agora vão se dirigir para a região amazônica. Por isso caracterizar a
chamada “migração rural” envolve uma série de dificuldades, visto que muito mais do
que a cidade, o campo é o lugar onde podem coexistir diferenciações múltiplas. Como
afirma Maria Lucia Menezes (2001) caracterizar as migrações rurais não se configura
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como fácil tarefa, pois tem-se que alinhavar a enorme complexidade da estrutura agrária
brasileira. Tais diferenciações originam um conjunto de arranjos espaciais que denotam
especificidades próprias ao uso e a circulação dos investimentos do camponês, ou grupo
social, e da força de trabalho rural. Esses trabalhadores não podem ser considerados
apenas como sujeitos, sujeitados a ação de outrem, mas, além de sua sobrevivência e de
sua família, esses trabalhadores vão buscar autonomia dos grandes proprietários rurais e
poder de decisão sobre o uso de seu tempo.
Uma característica marcante da vida do trabalhador migrante em terras
amazônicas é a violência, que muitas vezes se traduz, além do assassinato de posseiros,
em situações de trabalho análogo ao de escravo e degradante. Os fazendeiros da região
do Araguaia sempre se valeram de milícias armadas para defender suas propriedades, e
essas milícias vão ser os principais instrumentos de violência contra os trabalhadores, ao
lado da Polícia Militar dos municípios. Vejamos o depoimento do senhor Valdemir, que
fala de uma carvoeira localizada no estado do Pará, gravado para o documentário
“Aprisionado por Promessas”, produzido em 2006 por uma parceria da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) e o Centro pela justiça e o direito internacional (Cejil).
Desde os meus 18 anos de idade eu trabalho aqui no Pará, trabalho em
fazenda, roçando Juquira. Ai eu tava lá perto de um posto quando chegou um
cidadão dizendo para eu trabalhar na fazenda dele. Quando eu cheguei lá, não
era roço, não era plantação de capim, ele me botou para trabalhar numa
carvoeira carregando umas toras de madeira mais ou menos de 50, 60 kilos
para jogar em cima do carro. Coisa absurda. Coisa que é para maquinário e
eles usam o ser humano, coisa que você fica praticamente arrebentado. Ai eu
passei 60 e aprontei 10 gaiolas. Meu dinheiro era R$1.000,00 (mil reais), ai
ele foi e me deu R$100,00 (cem reais). Ai eu falei pra ele: moço isso aqui é
serviço de escravo. Ele falou pra mim e disse: Não, que tu quer dizer com
isso? Tu quer dizer que tu vai dar queixa? Direito de maranhense aqui é um
tiro de espingarda calibre 36 que eu tenho lá no meu barraco. Aqui pode
faltar feijão para o trabalhador, mais o cartucho pra matar um aqui não falta.
É interessante observar o uso que o senhor Valdemir faz da denominação
escravo, isso mostra como os trabalhadores já se apropriaram deste conceito que se
encontra em debate nas esferas historiográficas e antropológicas. A antropóloga Neide
Esterci (1994), analisando os casos de imobilização por dívida e as formas de
dominação no Brasil contemporâneo, afirma que “quando as pessoas utilizam termos
como ‘escravidão’ elas podem não estar diretamente referindo-se a conceitos
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sociológicos ou definições legais, mas sim estar manifestando sentimentos de repúdio e


recusa a situações que podem romper com os limites culturalmente aceitáveis da
desigualdade entre os homens e ferir noções de humanidade culturalmente
sancionadas”. Ainda podemos adicionar a discursão as situações em que o trabalhador,
já habituado ao uso do termo pelas instituições que lutam em defesa das vítimas do
trabalho análogo ao de escravo e degradante e órgãos do governo, também se apropriem
da palavra para suscitar no ouvinte a se sensibilizar com a situação vivida por esses
trabalhadores, ou seja, o uso de determinada palavra pode ser visto como uma forma de
resistência523.
Outra fonte bastante rica de informações a respeito do tratamento dado
aos trabalhadores e posseiros é o Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia524, fonte
principal de documentos para esta pesquisa. Encontramos notas distribuídas pela
Prelazia de São Félix que visam esclarecer a morte de trabalhadores rurais assinados a
mando de grandes fazendeiros, uma delas, datado de 18 de fevereiro de 1983, diz
respeito a cidade de Altamira e é uma nota de solidariedade pela morte de Antônio
Raimundo da Silva e Manoel Raimundo de Souza, mortos em 27 de fevereiro de 1982.
Eles foram barbaramente assassinados por altos funcionários da CONAN, firma
proprietária da Usina de açúcar “Abrahan Lincoln”, no Km 92 da Transamazônica. Os
corpos dos lavradores foram encontrados à beira da mata e apresentavam sinais de
tortura, língua e orelha cortadas, olhos furados e cabeças esmagadas. A nota esclarece:

Raimundo e Manuel foram mortos porque estavam reivindicando o justo


salário por seus serviços prestados. Os criminosos covardes fugiram e foram
acolhidos no estado de Pernambuco. Lá se encontram soltos, impunes. Os

523
Para aprofundar mais o tema da importância do uso dos conceitos para a pesquisa histórica ver:
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006.
524
Em Mato Grosso é bastante conhecida a atuação da Prelazia de São Félix do Araguaia e do bispo Dom
Pedro Casaldáliga, sua defesa pelos direitos dos trabalhadores e denúncias contra o trabalho análogo a
de escravo e outras violências. A análise dos Arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia (que abarcam
o período de 1970 a 2001) serviu como ponto de partida para os trabalhos da pesquisa. As cartas,
jornais, declarações e ofícios que formam este acervo forneceram diversos indícios de como era a vida
dos migrantes oriundos do Nordeste nas frentes de trabalho na Amazônia. A importância da Prelazia
para esses trabalhadores, na falta do aparato governamental para amparar as vítimas das fazendas
infratoras, antes da atuação da CPT e do Ministério do Trabalho e Emprego, foi imensurável, servindo de
porto seguro, encaminhando pessoas a hospitais, e locais seguros quando se tratava de fuga.
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donos da usina lavaram suas mãos. O processo foi arquivado. As autoridades


não reagiram ao sangue derramado525.

Através da análise da documentação observamos como casos como esses


são recorrentes, em documento publicado em 17 de maio de 1984, dessa vez na cidade
de São Félix do Araguaia, vemos mais uma tentativa da Prelazia de esclarecer a morte
de trabalhadores rurais, desta vez se trata de um caso do dia 25 de julho de 1983, o casal
José Rodrigues e Dona Alaíde chegaram com seus três filhos menores à Fazenda
Conquista, cujo proprietário é o Sr. José Remi, ali, a família trabalhou durante um ano.
No dia 13 de maio de 1984 eles receberam uma ordem do dono da Conquista para
deixarem o local imediatamente, no dia seguinte, visto que a família ainda não havia
abandonado o local, o Sr. José Remi agrediu o Sr. Rodrigues e sua esposa, ao tentar
revidar, o trabalhador levou um tiro que lhe atravessou o corpo e ainda atingiu sua filha
de 9 anos. O trabalhador faleceu na hora. Após o acontecido, Dona Alaíde fugiu com
seus filhos a pé, tendo que andar por vários quilômetros inclusive com a criança
baleada, o proprietário da fazenda lhe procurou junto com o delegado tentando
desencorajá-la a fazer qualquer tipo de denúncia. Porém, ao chegar a São Félix do
Araguaia, Dona Alaíde procurou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade para
fazer uma denúncia contra o Sr. José Remi e contra o delegado de polícia de São Félix,
Rui Aparecido, que se negou a indiciar o assassino do trabalhador. Essa nota é assinada
por: Sindicato dos Trabalhadores Rurais; Clube de Mães; Equipe Pastoral da Prelazia;
Prefeitura Municipal; Núcleo de Cultura; Grupo de Redação do Boletim Alvorada;
Clube de Jovens526.

Apesar da existência de trabalhadores na própria região, muitos


fazendeiros e empresários dão preferência à contratação de migrantes. Para muitos
estudiosos do tema, como Francisco Alves (1994) esta preferencia é justificada
fundamentalmente pelo aspecto disciplinar dos migrantes em relação aos trabalhadores
locais. O migrante ao chegar e ficar alojado pela fazenda, usina, e etc. pode ser melhor

525
Essa nota foi produzida pela Igreja do Xingú e assinada pelo padre Erwin Krautler e enviada ao Bispo
da Prelazia de São Félix Pedro Casaldáliga.
526
Documentos retirados da página B08.1.7 – 1981 a 1983. Páginas: B08.1.7.01 P1.4/ B08.1.7.01 P2.4/
B08.1.7.01 P3.4/ B08.1.7.01 P4.4 e B08.1.8 – 1984 a 1986, páginas: B08.1.8.01 P1.2/ B08.1.8.01 P2.2.
Os documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia se encontram, em sua maioria, digitalizados e
alocados no Laboratório de História Oral e da Imagem (LAHOI), no 11º andar do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
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controlado do que os trabalhadores locais que moram nas cidades. Nas greves o
Movimento Sindical ainda tem dificuldades em conseguir organizar os migrantes para
realizarem a greve. Todavia é preciso ficar atento ao constatar a falta de organização
dos trabalhadores migrantes, pois, como podemos verificar nos documentos acima, estes
indivíduos conseguem driblar as dificuldades agrupando-se nos mais diversos espaços,
como na igreja por exemplo. A presença da igreja e da Prelazia contribui para o
fortalecimento do sentimento de comunidade desses migrantes que se filiam a diversos
grupos e pastorais, como o Clube de Mães e as equipes pastorais que assinam a última
nota, e assim elaboram estratégias de enfrentamento aos grandes proprietários e
empresários, a polícia e governo.

Analisar os deslocamentos de trabalhadores rurais que saem do Nordeste


para a Amazônia envolve diversas questões, uma das mais importantes e complexas é
incorporar a pesquisa o significado da construção desse “migrante” e a percepção de
seus deslocamentos espaciais como “migrações”. É preciso ficar alerta para o risco de
reunir como um conjunto de fenômenos da mesma natureza (no caso as migrações)
situações que são pensadas, vividas e narradas de forma diversa pelas pessoas que são o
suporte dos conceitos construídos (no caso, os migrantes) (Almeida & Palmeira, 1977).
É necessário entender tanto a realidade objetiva quanto os diferentes significados dados
pelos diferentes protagonistas com visões do mundo e posicionamentos distintos nesse
espaço social (Sprandel, 2013).
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ext).
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TOPAMOS PERIGO FEIO: CAMPONESES EM LUTA PELA “LEI DO


SALÁRIO” NA REGIÃO DE ITAMBÉ – 1962-1965.
Ricardo Leite (Mestre em história, UFPE, email Ricleite40@yahoo.com.br)

1. A disseminação da luta camponesa na região de Itambé: para além do entrismo


trotskista
Na primeira metade da década de 1960, na cidade e no campo, a sociedade
brasileira esteve imersa por um intenso turbilhão social e político. Muito já se falou e
escreveu sobre o clima de radicalização que viveu o Brasil, e especialmente
Pernambuco, naqueles tempos imediatamente anterior e posterior ao golpe civil militar
527
de 1964 . Na cidade, o movimento sindical, controlado majoritariamente pela dupla
de partidos PCB e PTB, movimentando-se dentro da estrutura construída a partir do
denominado anarco-sindicalismo e consolidada durante os anos Vargas, ora apoiando
ora pressionando os governos Jango e Arraes. No campo, as Ligas Camponesas, a partir
do final dos anos 1940 e os sindicatos rurais, nos anos 1960, articulando as demandas
dos camponeses. Camponeses em luta contra as tentativas de expulsão dos sítios e a
perda das condições de sobrevivência, levadas a cabo pelos controladores das terras.
Lutavam, também e entre outras coisas, pelo pagamento de salário e extinção do
trabalho de condição e do denominado cambão. Demandas que propiciam aos
camponeses e suas lideranças desenvolverem uma intensa mobilização, que desagua na
luta pela implantação da reforma agraria e provoca uma violenta repressão entabulada
pelos denominados senhores de engenhos e usineiros.
O município de Itambé e seu entorno, é aqui tomado como sendo um espaço
constituído pela sede municipal e pelos seus distritos de Caricé e Ibiranga e também

527
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Rio
de Janeiro: Revista Dados. Volume 40, Nº 2. 1997; CAVALCANTI, Paulo. O Caso Eu conto como o
caso foi – Memórias Políticas – 1º e 2º volumes. Editora Guararapes – Recife – 1980; COELHO,
Fernando. Direita Volver. O golpe de 1964 em Pernambuco. Bagaço. Recife. 2004; FERREIRA, Jorge. O
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pelos municípios de Pedras de Fogo e Juripiranga, na Paraíba; Camutanga, Ferreiros e


Timbaúba, em Pernambuco. Neste espaço social criado aproximadamente 102 engenhos
e 3 usinas. Deste montante, 52 engenhos e 2 usinas se encontravam localizados no
território de Itambé, na época conhecida como També. Em que pese a quantidade de
empreendimentos rurais, na sua maioria de caráter familiar, na região localizava-se a
parte mais empobrecida da oligarquia canavieira 528.
A região de Itambé tem, predominantemente entrado na historiografia sobre os
anos 1960, associada a atuação do Partido Operário Revolucionário Trotskista, POR-T.
Atuação cravada e dada a ler pela atuação marcante e assassinato do dirigente portiano
Paulo Roberto Pinto, o Jeremias. A atuação de Jeremias soma-se o trabalho do Grupo de
João Pessoa, que viria a ser conhecido como Vanguarda Leninista e o grupo composto
por dirigentes do POR-T, informalmente denominados pelos locais de “estudantes”.
Como assessor dos camponeses em um trabalho tenaz e continuo, correndo
engenhos e usinas, Paulo Roberto Pinto comanda greves e caminhadas aos engenhos,
reivindicando o ajuste das tabelas de tarefas no campo e o pagamento de salário e 13º
mês. A atuação de Jeremias introduziu pelo menos uma nova estratégia de luta
comprovada região: a criação dos conselhos camponeses nos engenhos, diminuindo o
529
poder de controle, diferenciação e intermediação dos delegados sindicais . Além
disso, na greve canavieira de janeiro de 1963, teve importante participação na
formulação de táticas de comunicação e enfrentamento com a introdução e o uso de
artefatos explosivos artesanais utilizados também para pedido de ajuda. De janeiro a
agosto de 1963, Jeremias esteve a frente de paralizações de longa e curta duração nos
engenhos da região de Itambé. A sua atuação foi mais forte nos engenhos situados entre
os municípios de Juripiranga - PB, Camutanga e Ferreiros – PE.
No dia 08 de agosto, no inicio de tarde de uma quinta feira chuvosa, Jeremias é
530
assassinado com um tiro de rifle papo amarelo no peito (e não nas costas) às portas

528
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural – Lutas, Partidos e Projetos.
UFPE, 2005.
529
GALLINDO, José Felipe Rangel. Jeremias, O trotskismo no campo. UFPE. 2013; SÁ, Aybirê Ferreira de.
Memórias de um militante trotskista. Fundarpe. 2007.
530
Todos relatos de pessoas que estiveram presentes no local do assassinato informam que Paulo
Roberto Pinto, foi alvejado de frente e a bala lhe varou, saindo nas costas. A literatura que se baseia no
“mortos pelas costas” tem como referencia uma noticia do Jornal Ultima Hora assim anuncia. Não se
sabe se jornal se referia ao fato do assassinato ter sido uma emboscada armada “pelas costas” dos
camponeses. Algo usado de forma figurada.
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do engenho Oriente. Crime atribuído até agora na historiografia a José Borba e ao seu
filho Pompeu Borba. Os documentos agora conhecidos, especialmente na peça de
531
defesa do réu e em pelo menos quatro depoimentos orais , apontam a existência de
uma arquitetura que coloca Pompeu Veloso Borba, sobrinho de José Borba e
proprietário do engenho Pará, como elemento articulador da ação dos barões da cana.
532
Uma ação que contou com a presença de pelo menos 12 senhores de engenhos ,
conforme depoimento de um morador do engenho Oriente e citações no processo
comandado pelo Promotor Murilo Barbosa.
Em Oriente, os camponeses estavam insatisfeitos pela intransigente e contrária
posição de José Borba, que defendia abertamente que não era justo “pagar 13 a quem só
trabalhou 12 meses”. Mas não era só isso, que transformava Oriente num barril de
pólvora. Depoimento feito por um morador do engenho no processo instaurado a mando
do governo Arraes (1963/1964) para apuração do assassinato do dirigente trotskista, traz
a informação que José Borba havia instituído um desconto de dez por cento nos salários
dos moradores como taxa de habitação. Taxa teria sido instituída como represália a
mobilização e a conquista do salário mínimo e a implantação do Estatuto do
Trabalhador Rural. Por outro lado, José Borba, assim como outros senhores de
engenhos da região, estava inconformado com a ascensão dos camponeses e a conquista
de direitos por estes atores.
Nas pesquisas até agora publicadas não se menciona ou se dá importância a
questão da luta pelo fim do pagamento do aluguel das casas. A luta contra o pagamento
da taxa de habitação é importante porque ela representa o disfarce da luta contra a
expulsão dos moradores dos sítios onde viviam, tentada por José Borba depois da
filiação de muitos de seus moradores as ligas camponesas. A tomada de consciência dos
moradores do Oriente sobre uma eminente perda de suas roças e dos sítios onde viviam,
os impulsiona a engrossar as fileiras do movimento camponês, que se disseminava na
região.

531
Informações levantadas nas entrevistas com Domício Veia, Carlos Gilberto Borba, José de Oliveira e
Luiz Estevão trazem a afirmação do protagonismo que teria tido Pompeu Veloso Borba.
532
Segundo depoimento de João Vieira dos Santos, que consta no corpo do processo instalado por
Pompeu Veloso Borba contra o Promotor Murilo Barbosa na fatídica tarde estariam no Oriente os
seguintes senhores de engenho: José Borba, José Gouveia de Araújo, Pedro Campos, Pompeu Gouveia,
Claudio Borba, Oscar de Melo, Manfredo Veloso Borges, Nilton Corrêa, Romulo Veloso Borba, Joaquim
Campos, Manoel Nunes e José Veloso. Também estava presente o vigia Adelino do Engenho Perori, de
Simplício Tavares de Melo.
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Como resposta a luta e as conquista salariais dos camponeses, José Borba tentou
fazer uma limpeza de área, expulsando do engenho aqueles camponeses que mais
ativamente participaram das lutas de julho e agosto de 1963, no Oriente. Pelo menos
cinco moradores, Zé de Sinhá, Manoel Honório, Pedro Honório, Ambrósio e Sebastião
Miguel, o “Caxito”, que estavam na linha de frente das reivindicações postas, irão sofrer
uma brutal violência física ou psicológica, tendo de deixar às pressas e a noite suas
moradias, sítios e lavouras. Após o golpe de março de 1964, muitos dos camponeses
que estiveram envolvidos de alguma forma nas caminhadas reivindicativas por direitos
e salários vão ser caçados como animais. Volantes, geralmente comandadas por
senhores de engenhos e com guarnição composta de policiais e capangas, varavam os
engenhos e os núcleos urbanos a procura de camponeses. Na maioria das vezes esses
camponeses caçados eram apontados pelos próprios senhores de engenho. Entrou no
imaginário local os “Jeeps verdes” procurando os “comunistas de 64”.
Relatos dessa caçada aos camponeses colocam como comandantes delas os
senhores de engenho da região. Na região de Ferreiros, em dois casos conhecidos, os
próprios trabalhadores que sofreram sequestros e violências reconheceram como
condutores das viaturas Nilton Corrêa de Oliveira e Claudio Borba, respectivamente
genro e filho de José Borba. Pedro Honório, que em alguns depoimentos e relatos é
citado como sendo o líder local das Ligas Camponesas e que esteve à frente dos
embates de julho no Oriente, teve a sua residência invadida à noite, sendo arrancado da
cama, levado por homens armados e espancado.
O caso Oriente ganha dimensão histórica com o assassinato de Paulo Roberto
Pinto, fazendo surgir 50 anos depois, uma narrativa que, talvez involuntariamente,
cultua o herói. Se por um lado esta narrativa traduz uma necessidade de contar e de
levantar a bandeira da atuação trotskista no campo, por outro tende a apagar a luta
disseminada e os outros atores que compunham ou lideravam o movimento camponês
na região entre Itambé e Timbaúba. A construção de um herói, algo encarado como
primordial para as elites orgânicas, acaba exercendo o papel de redutor do
conhecimento histórico, na medida em que produz um manto de esquecimento sobre as
práticas e as outras lutas e personagens do período, na região.
Lutas que podem ser avistadas a partir, por exemplo, das leituras e analises dos
Inquéritos Policiais Militares promovidos pela ditadura civil militar; pelos Processos
Trabalhistas oriundos das Juntas de Conciliação e Julgamento, situadas em Goiana e
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Nazaré da Mata; de matérias de jornais; e da memória oral - dos arquivos de entrevistas


já existentes e dos trabalhadores ainda sobreviventes. Esses documentos são importantes
porque trazem informações sobre a disseminação da luta camponesa; sobre a rede de
lideranças que articulavam as demandas dos trabalhadores; sobre como se
movimentaram os golpistas e quais suas estratégias e ações para perseguir e minar a
força camponesa na região.
2. Senhores de engenhos e camponeses: uma luta disseminada por toda região de Itambé
A região de Itambé em relação às lutas camponesas ocorridas no pré-1964, pode
ser dividida em três áreas distintas. A região mais próxima do estado da Paraíba,
envolvendo aí os engenhos localizados nos municípios Pedras de Fogo e Juripiranga,
que sofria a influência de lutas travadas em Sapé e Mari; a região ao sul e sudeste do
município, próxima aos municípios de Goiana e Aliança, englobando o distrito de
Caricé; e por fim a região mais próxima da usina Olho D’água, que embora pertencendo
a Itambé sofria a influencia direta do município de Timbaúba, devido a proximidade
deste.
Cada uma dessas regiões território de Itambé tinha as reivindicações salariais e
politicas articuladas por determinadas lideranças. Lideranças e lutas que são apagadas,
esquecidas ou diminuídas quando o foco da escrita e do trabalho do historiador opta em
escrever a história de um personagem. Não era somente Jeremias e os senhores de
engenhos que disputavam os corações e as mentes dos camponeses da região de Itambé.
Na parte paraibana tinha atuação marcante, por exemplo, Odon Gomes da Silva,
vereador de Pedras de Fogo e presidente do sindicato rural local, e o líder camponês
Carivaldo Félix de Ataíde. Ambos são presos, condenados e citados no denominado
IPM Rural, nas páginas 46 e 107. Odon Gomes é cassado após o golpe de 1964 e
abandona a política.
Carivaldo Félix de Ataíde, residente em Ibiranga, delegado sindical tido como
atuante e destemido, foi preso pela policia da Paraíba após o golpe de 1964, conseguiu
fugir da delegacia onde se encontrava detido, depois que soube que estaria marcado para
morrer. Segundo depoimento de senhores de engenho, que constam no IPM Rural, era
um camponês ousado, “agitador”, quando aparecia nos engenhos para exigir direitos até
então sonegados. O senhor de engenho Ernani Albuquerque Bezerra, depondo como
testemunha de acusação no IPM Rural, relata do ponto de vista da reação, fatos
relacionados à atuação de Carivaldo.
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Um dos delegados do sindicato – Carivaldo Félix de Ataíde – em


companhia de doze homens, esteve no engenho do depoente, armado de
foice, em atitudes agressivas exigindo do depoente o pagamento do
décimo terceiro, adiantando, expressão dele Carivaldo, “que quando
metia a mão era para resolver” e que tendo o depoente participado que
iria resolver com presidente do sindicato Odon Gomes, dissera
(Carivaldo) “que estava com vontade de encher um caminhão de
camponeses e botar o presidente do sindicato pra fora e tomar conta do
mesmo”. (IPM Rural, p. 107, 1964)
Da declaração feita pelo proprietário deve-se mensurar e relevar o carrego nas
tintas cujo o objetivo seria construir a imagem de um perigoso agitador. Imagem que
iria balizar a acusação e a perseguição de Carivaldo pelos golpistas. Por outro lado, ele
afirma indícios da impulsividade e coragem de Carivaldo Félix. Por sua atuação
Carivaldo Félix e Odon Gomes são perseguidos, presos e acusados de subversão. Os
depoimentos acusatórios de senhores de engenho da região trazem indícios da
importância da atuação de ambos e das lutas que eram aconteciam por toda região.
Afirmam a presença de outras lideranças e de uma história ainda não escrita.
Outra liderança que emerge dos documentos, quando se investiga as lutas
travadas pelos camponeses na região de Itambé, é o primeiro presidente do sindicato
rural da localidade, Francisco Bernardo do Nascimento, o Capitão. Com intensa atuação
no período entre 1962 e 1963, Capitão é destronado do poder no sindicato por ação de
militantes trotskistas em setembro de 1963, acusado de malversar recursos da
contribuição sindical e de pelegagem. No seu livro, Das Ligas Camponesas à Anistia –
Memórias de um militante trotskista, Aybirê Ferreira de Sá narra em detalhes a expulsão
de Capitão, pelos trotskistas e camponeses de Itambé. Segundo Aybirê, ele teria assim
interpelado o acusado: Capitão! Os camponeses estão lhe acusando de ser pelego, de
entregar greves e roubar dinheiro do sindicato. Quando falei isso, o Capitão ficou verde,
passou a tremer e gaguejar. (Sá, p. 55, 2007)
A partir daí, Aybirê vai construindo diálogos que teriam se dado até a
confirmação da denuncia de roubo do dinheiro do sindicato por parte de Capitão,
mesmo que ele relate que, este instigado a buscar o dinheiro, tenha devolvido certa
quantia. “O valor em dinheiro que o Capitão trouxe de casa somava apenas 62 ou 162
cruzeiros, que era a unidade financeira da época”. (Sá, p. 57, 2007). Valor
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insignificante, diz Aybirê. Capitão é expulso do sindicato, os três estudantes trotskistas


assumem, ficando no poder até a prisão pela policia de Arraes.
Capitão pelego. Isso não batia com informações que tínhamos levantado sobre
Francisco Bernardo do Nascimento. Ao ler o livro de Aybirê, o autor desta
comunicação, já tinha levantado documentos no DOPS, nos jornais e, também,
depoimentos de camponeses sobre as lutas e pessoas acusadas de subversão em Itambé
nos IPMs de 1964. O Capitão avistado nos documentos do período é um ator de luta, de
enfrentamento com os senhores de engenho, líder de greves e articulado com o
sindicalismo fomentado pelos setores católicos.
Para entender a queda de Capitão da presidência do sindicato é preciso voltar às
matérias dos jornais pernambucanos do mês de janeiro de 1963. O mês de janeiro de
1963 foi o mês de Joel Câmara. O Joel das “patrulhas moveis”, anunciando ação das
ligas na região de vitória e agindo na região de Itambé ou Limoeiro. O Joel de pregação
“revolucionária”, da pregação pela formação de grupos armados para atacar fisicamente
os latifundiários matadores de camponeses. O mês de janeiro é o da devassa nas ligas
Camponesas de Pedras de Fogo e Timbaúba, com apreensão de “material propaganda,
bombas caseiras e a prisão de seis membros das ligas camponesas de Pedras de Fogo”.
Da invasão e tiroteio da liga camponesa de Timbaúba.
Os jornais de janeiro noticiam parte dessa movimentação. Na versão armada
pelos jornais, os acontecimentos de Itambé estariam dentro das ações promovidas pelas
ligas para “incendiar o campo”. Fala-se de um plano de agitação nos engenhos da mata
sul e norte do estado. Mas é a fala de Capitão que informa pormenores da ação em
Itambé, da briga por espaço entre ligas e sindicato e do aparecimento de um novo
personagem na região. Segundo matéria publicada pelo Diário de Pernambuco em
13.01.1963, Capitão relata, quando preso, que a atuação de Joel Câmara se dava pela
perda de espaço da liga para o sindicato.
Na reportagem do Jornal do Comercio, dia 12.01.1963, Capitão entrevistado na
prisão, coloca pela primeira vez, um certo “doutor Jeremias” no palco das mobilizações
camponesas na região de Itambé. E dá uma pista que a ação dos trotskistas, o
expulsando do sindicato meses depois, pode ter sido uma revanche. Diz ele: “doutor
Joel vem a todo custo tentando se infiltrar no sindicato rural com o intuito de confundir
dentre os trabalhadores do campo a missão daquele sindicato com as das ligas
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camponesas”. E declara ainda Capitão: “Doutor Jeremias foi expulso do sindicato o qual
passou a atuar juntamente com os agitadores das ligas camponesas”. 533
Capitão segue discorrendo sobre a atuação de “doutor Jeremias”. Coloca-lhe o
rótulo de pombo correio de Joel Câmara e fala sobre o papel de Jeremias na organização
e na estratégia das ações reivindicativas ocorridas nos engenhos Floresta, Camará e
Angicos. Ações pelas quais, Capitão também é detido. Ações das quais diz ter tido
“pouca participação”. Apolônio Coelho, camponês ligado a liga camponesa de Pedra de
fogo também cita a participação do “doutor” Jeremias no suporte e organização dos atos
ocorridos nos engenhos citados. Também é digno de nota o uso do termo “doutor”
acoplado ao nome de Jeremias, indicando uma diferença de tratamento entre o de fora e
os de dentro. A deferência de tratamento é distinção entre os de baixo e os de cima. Não
é um igual, um doutor.
A partir de então pelos meses que se seguem vamos perceber uma separação na
atuação e na área de influencia entre Capitão e Jeremias. Capitão segue uma intensa
agenda de mobilização dos camponeses em engenhos mais próximos ao núcleo urbano
da sede municipal e usina Brasil, provocando greves nos engenhos Bulhões, Cordeiro,
Pau Amarelo, Teixeira, Teixeira Grande, Comissário, Santa Rita, Meirim, São
Sebastião, Monge, Panguá e Panguazinho. Neste ultimo engenho, em setembro de 1963,
um grupo de aproximadamente 150 camponeses por ordem expressa de Capitão tenta
deter e levar para depor no sindicato o feitor do engenho Panguazinho.
Pela intensa atuação que parece ter tido Capitão entre 1962 e 1963, fica difícil
taxá-lo de pelego. Talvez Capitão não tivesse tido zelo com a parte burocrática do
sindicato. Talvez o dinheiro arrecadado pelo sindicato estivesse sendo gasto nas
constantes mobilizações ocorridas sob o seu comando. Pode ser. Dos documentos
analisados e lidos, projeta-se a imagem de um sindicalista intenso, destemido e odiado
pelos senhores de engenho que o conheceram. São esses senhores de engenho que, após
o golpe de 1964, vão testemunhar contra Francisco Bernardo do Nascimento, acusando-
o de “atentar contra a ordem vigente e jogar camponeses contra os proprietários”.
Talvez esta seja uma das poucas oportunidades de Capitão fazer parte da
historiografia. Talvez somente nesta comunicação se fale do Capitão, doutrinado pelos

533
Noticia do Jornal do Comercio, 12.01.1963.
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padres católicos, que antes de fundar o sindicato rural de Itambé participou de pelo
menos duas capacitações e participou também da liga camponesa de Pedras de Fogo.
Perseguido, preso, espancado e frequentemente ameaçado pela policia de Pernambuco e
Paraíba, ele envereda pelo alcoolismo e morre esquecido, anos depois.
Ainda tem mais alguns outros fragmentos da luta camponesa nos engenhos de
Itambé para além do trotskismo. Lutas acontecidas na parte dos engenhos de Itambé,
localizados próximos do município de Timbaúba. Relatos da atuação de outras
lideranças camponesas. De disputas entre ligas e sindicatos e das características dessas
lutas. Nessa parte do território de Itambé, Jeremias e Capitão tinha pouca influencia.
534
Nos engenhos Salgado, Vundinha, Araçá, Pará, Paraíso , Arnau, Bonfim, Bebedouro
e Santa Marta, quem fermentava a mobilização dos camponeses era Severino Manoel
Soares, pelo sindicato rural e Luiz Antônio e Bodinho, pelas ligas camponesas, ambos
de Timbaúba.
O engenho Paraíso teve, em meados de 1963, uma greve que se arrastou por dois
meses. Paraíso, mais conhecido como Vunda Grande, era um lugar de muitos posseiros
e sitiantes, cuja produção de bananas e roças rivalizava com a cana, dando ao engenho
uma peculiaridade inexistente nos outros engenhos. A greve ocorrida no Paraíso é
muitas vezes creditada a atuação do trotskista Jeremias. Esta memória pode estar
relacionada ao fato de que a caminhada de Jeremias até o Oriente ter se iniciado pelo
engenho Paraíso, passado pelos engenhos Vundinha, Pará e Ferreiros. Jeremias foi
muito ao engenho Paraíso, mas sua chegada por lá foi a partir de meados de março,
quando as greves já se sucediam.
Os sitiantes do engenho Paraíso estavam em greve pelo não pagamento de
salários e décimo terceiro. Pelo fim do cambão e pelo respeito aos acordos das medidas
das “quadras de trabalho”. José Luiz Silvestre, Severino Damião, Joaquim Francisco e
outros moradores estavam sendo pressionados para deixar o engenho. A casa de José
Luiz Silvestre, conhecido como José Mandu, torna-se o centro das reuniões
camponesas. Severino Soares e Luiz Antônio são presenças cada vez mais constantes
por ali. Numa dessas reuniões os trabalhadores insatisfeitos planejam ir as vias de fato
com o feitor local.

534
Segundo depoimento de Marta Gouveia, proprietária do engenho Paraíso, Jeremias aparece no
engenho Paraíso muito tempo depois de Luiz Antônio, presidente das Ligas de Timbaúba, e de Severino
Manoel Soares, presidente do Sindicato Rural, que já tinham deflagrado várias greves e ameaçado de
morte um vigia do engenho, em 1963.
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A proprietária Marta Gouveia revida. Em 09 de maio de 1963, reclama


judicialmente “que os moradores desocupem os sítios e que não mais plantem a partir de
então nenhuma lavoura, sob pena de perderem tudo e serem despejados ao final do
prazo dado” 535. Os sitiantes respondem: em 20 de julho de 1963, a Junta Conciliação e
Julgamento de Goiana acusa a abertura de um processo trabalhista e a comunicação do
mesmo à proprietária reclamada. Os reclamantes, Severino Damião, José Luiz Silvestre
e outros camponeses exigem reintegração ao trabalho, aviso prévio, férias e salários
retidos. O engenho Paraíso tinha se transformado em um barril de pólvora.
Na sua defesa, a reclamada diz que os moradores tinham se transformado em
agentes da agitação, paralisando as atividades agrícolas e sufocando a economia do
engenho. Em seu depoimento Marta Gouveia, afirma que seu engenho estava sendo
sacudido pela ação da liga camponesa e do sindicato rural de Timbaúba. Somente
durante o ano de 1963 foram seis greves e uma tentativa de assassinato do vigia José
Ângelo. Ela diz que o responsável pelas greves é Luiz Antônio, presidente da liga e
Severino Soares do sindicato rural.
Luiz Preto e Severino Soares estavam comandando as ações dos camponeses no
engenho Paraíso. Parte da movimentação dessas lideranças pode ser avistada através dos
depoimentos acusatórios dos senhores de engenho nos IPMs instalados contra políticos
e lideranças classistas da cidade de Timbaúba e também no próprio interrogatório das
duas lideranças camponesas.
Severino Soares tinha assumido a presidência do sindicato rural de Timbaúba em
outubro de 1962. Segundo a versão dada por Marta Gouveia e pela testemunha de
acusação José Luiz, Severino Soares teria planejado o assassinato do capanga do
Paraíso com o apoio de Luiz Antônio. Naquele tempo conturbado, Severino Soares
tinha se tornado uma pedra no caminho dos senhores de engenho que sonegavam os
salários dos camponeses.
Luiz Antônio tinha assumido a presidência das ligas camponesas de Timbaúba
em fevereiro de 1963. Luiz, que era um quadro oriundo do PCB e um velho conhecido
da policia. Fundador de uma célula comunista, em 1954, no engenho Salgado e do
engenho Cana Fístula. Em 1963, Luiz Antônio assume as ligas camponesas de

535
Processo consta na JCJ de Goiana de nº 220/63, Reclamante José Luiz Silvestre, Reclamada Marta de
Araújo Lima Gouveia.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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Timbaúba, articula diversos núcleos das ligas no município, enfrenta a luta por direitos
trabalhistas e agrários, provocando a ira dos senhores de engenho.
No engenho Salgado, o senhor de engenho Zoé Borba de Araújo Pereira,
reclamava da constante presença de Severino Soares e Luiz Antônio, que revezavam-se
na deflagração de greves, ora para diminuir as medidas de corte de cana, ora por
536
pagamento de salário e extinção do cambão . No Engenho Vundinha, o proprietário
Gileno Campos Gouveia indignado com a mobilização dos camponeses acusa gerente
da CRC de Ferreiros, José Gomes, da liga de Timbaúba, de andar pelos engenhos
distribuindo carteiras das ligas.
No engenho Pará, do senhor de engenho Pompeu Veloso Borba, até então
discreto e condescendente com a ação dos seus moradores. Sob orientação da liga e do
sindicato, alguns camponeses tinham até derrubado parte da mata e dividido lotes entre
si para fazer novos sítios e plantio. Quando Pompeu Veloso Borba ameaçava reclamar,
os camponeses não se intimidavam: Seu Pompeu, a terra é forra. A terra é forra seu
Pompeu! O senhor de engenho do Pará parecia muito passivo ultimamente ou tudo
estava mudado. Era como que ele estivesse aceitando a movimentação dos seus
moradores. Era como se ele estivesse se convertendo ao discurso da “terra forra”. Não
era da natureza de Pompeu Veloso Borba agir assim. Pompeu era um tipo de senhor de
engenho que não mandava fazer 537. Fazia.
Os fatos narrados até aqui, são baseados em documentos dos IPMs, na memória
oral e em noticias publicadas em jornais que circulavam em Pernambuco. A partir deles
pode-se fazer uma leitura que as lutas acontecidas na região de Itambé foram
disseminadas, envolveram várias lideranças. Lideres que atuavam relativamente em
espaços geográficos distintos. Participação que depois de um certo tempo, passa a
receber o apoio da estrutura jurídica existentes nas ligas através do advogado Joaquim
Ferreira Filho 538.
3. Lideranças políticas e o discurso antissenhor de engenho nas cidades de Timbaúba e
Itambé

536
IPM Timbaúba, acervo Dops. Depoimento dos proprietários Zoé Pereira Borba e Lourdes Fischer.
537
Surras, ameaças e até encomenda de mortes são creditadas a Pompeu Veloso Borba, Ex-prefeito de
Itambé e amigo pessoal de Paulo Guerra, Pompeu, segundo um parente próximo teria cassado e
ajudado a dar cabo de dois suposto ladrões de gado que teriam agido numa das fazendas do ex-
governador.
538
Deve ser desse período, idos de maio de 1963, quando da ação judicial dos camponeses contra Marta
Gouveia, que Jeremias tenha tido contato mais permanente com os moradores do engenho Paraíso.
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Além da luta dos camponeses por salário, da mobilização das ligas e dos
sindicatos e do surgimento e fortalecimento de algumas lideranças no campo, faz-se
539
perceber uma dura resposta dos senhores de engenho . Resposta que passa pelo
exercício da repressão aos camponeses e as tentativas de expulsão de rendeiros e
posseiros sitiados em engenhos e usinas. Para além dessa massa que entorna o caldo, na
região entre Timbaúba e Itambé, existe outro elemento que deve ser levado em conta
nas análises sobre a disseminação das lutas e do protagonismo dos camponeses, na
primeira metade da década de 1960: o discurso político-eleitoral praticado pelas
principais lideranças políticas de ambos os municípios. Tanto em Timbaúba como em
Itambé, o chefe político tinha chegado ao poder com um discurso contrário aos senhores
de engenhos e donos de terra.
João Nunes Ribeiro e a família Ferreira Lima incorporavam o discurso de
defensores dos pobres contra a opressão dos senhores de engenho. Ribeiro, um ex-
prestanista que vendia tecidos pelos engenhos antes de abrir uma loja em Itambé e se
tornar político, destronou do poder Simplício Tavares, proprietário do engenho Perori e
irmão do poderoso Arthur Tavares de Melo, da usina Olho D’água. Ferreira Lima chega
ao poder destronando duas poderosas oligarquias: a comandada pelo usineiro e
jornalista Jader de Andrade e a outra comandada pelos senhores de engenho Raul
Veloso Borba e Pompeu Americano Pereira Borba. As práticas de ambos não diferia:
distribuição de cargos públicos, uso politico da policia e do hospital local, controle do
cartório eleitoral e um discurso contra os que eles chamavam de “potentados”.
A ojeriza dos camponeses aos senhores de engenho se moldava pela não
remuneração real de grande parte do trabalho realizado; pelo uso indiscriminado do
cambão e da condição nas relações de trabalho; pelo controle e retenção da força de
trabalho por meio da chantagem de expulsão das terras e pela redução das
possibilidades de mobilidade social. A simples vontade de se alfabetizar era rechaçada
pela maioria dos senhores de engenho, que faziam tudo para impedir a instalação de sala

539
O papel dos senhores de engenho antes e pós 1964 em Pernambuco, já foi relatado por Francisco
Julião, Gregório Bezerra, Paulo Cavalcanti, Tenente Carlito Lima e Fernando Coelho, entre outros.
Fernando Coelho em sua obra “Direita Volver, o golpe de 1964 em Pernambuco” faz um relato
importante da aliança com os militares e participação dos senhores de engenho no período: “Ao lado do
exército e da polícia, bando civis armados e grupos paramilitares, que atuavam a soldo ou sob comando
direto de alguns proprietários de terra, usineiros, senhores de engenho, empresários urbanos e políticos
oposicionistas. Prendendo e por conta própria e assassinando trabalhadores. Invadindo casas e
expulsando famílias. Cometendo todas violências que, segundo diziam, os comunistas planejavam
consumar”. pp. 40/41.
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de aula nos seus engenhos. Simplício Tavares, que foi prefeito de Itambé na primeira
metade dos anos 1940, argumentava que o camponês não devia aprender a ler porque
quando soubesse ler não ia querer mais trabalhar na “palha da cana”. Simplício não
aceitava a instalação de escolas no seu engenho. Outro senhor de engenho, Eliezer
Gouveia, proibiu o funcionamento, desativando uma escola rural 540.
João Nunes também fazia da luta pela terra um dos pilares de seu discurso.
541
Segundo o senhor de engenho Luiz Falcão , “no ano de 1947, na época da eleição,
João Nunes, em comício que tomara parte, pregava ostensivamente a divisão das terras,
afirmando ainda que as ditas terras seriam tomadas dos seus proprietários e entregues
aos camponeses que nela moravam”. Ainda segundo Luiz Falcão, os discursos de João
Nunes eram carregados de ódio, forçando o choque entre os trabalhadores e os
proprietários de terra. O discurso radical de João Nunes tinha como endereço a mente e
os corações do homem do campo, produzindo um efeito de verdade para os camponeses
que sofriam o peso do atraso das relações trabalhistas e sociais vigentes à época no
campo.
O provável é que João Nunes pegasse carona no discurso contra os senhores de
engenho para se manter como chefe político em Itambé. Mas, ao se colocar dessa forma
entrou na mira de tiro dos senhores de engenho, que depois do golpe militar passaram a
apontar “os inimigos da ordem vigente”. No Inquérito Policial Militar de Itambé,
instalado em abril de 1964 para apurar “a subversão e a agitação”, João Nunes foi
denunciado por senhores de engenho e inimigos políticos, acusado de pregar a
insubordinação dos camponeses; de lhes vender armas e de corrupção a frente da
prefeitura. Acontece que João Nunes não era o protótipo de um político revolucionário.
João Nunes era governo em todos os governos instalados em Pernambuco desde 1947.
Amigo e correligionário de Paulo Guerra, muito mais deste do que de Miguel Arraes,
João Nunes dribla magistralmente todas as acusações e adere ao governo instalado em
1964.
Em Timbaúba, após a morte do patriarca João Ferreira Lima, assume o comando
Ferreira Lima Filho, eleito prefeito em 1955 e sucedido pelos primos Geraldo Ferreira

540
José Gomes relata que foi chamado por Eliezer Gouveia e comunicado que ele não queria mais que
ele continuasse ensinando camponeses em suas terras que estava dando problema e “os camponeses
estavam muito cheios de direito”, que por isso ele resolveu acabar com escola no engenho.
541
Depoimento de Luiz Falcão, consta no IPM Itambé instalado em abril de 1964, no qual são
denunciados, João Nunes, Capitão, Sargento Marconi e Abel Rodrigues Alves, este ultimo interventor do
STR entre setembro de 1963 e março de 1964.
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Lima (1959) e Jacques Ferreira Lima (1963). A partir da eleição de Geraldo, João
Ferreira Lima Filho, passa a atuar como chefe político do município, passando a exercer
cargos no legislativo e no executivo. Em que pese Ferreira Lima Filho somente ter
assumido o poder politico de Timbaúba, na eleição de 1955, sua influencia vinha num
crescente desde que as forças getulistas assumiram o poder em 1930, quando seu pai
João Ferreira Lima, foi alçado a condição de chefe político local. No período em que foi
chefe político Dr. João, conseguiu instalar um hospital regional no município que,
utilizado como instrumento político-eleitoral, foi um importante elemento para a
consolidação e manutenção do poder local sob o controle de sua família.
Geraldo Ferreira Lima faz-se presença constante nas manifestações promovidas
pelos camponeses nas quais defende os direitos recém-adquiridos por estes. Ao deixar a
chefia do governo municipal em 1962, Geraldo passa a advogar e orientar os
camponeses em processos trabalhistas. No dia 07 de agosto de 1963 é protagonista de
fatos que serão usados para incriminá-lo como agitador, chefe local das ligas
camponesas e de “atentar contra o regime democrático e a ordem vigente”. Naquele dia
07 de agosto de 1963, quarta feira – dia de feira livre – entidades ligadas aos
trabalhadores fazem uma “mobilização nacional contra a carestia” 542. Os manifestantes,
na sua grande maioria, camponeses, promovem com sucesso uma passeata e fecham o
comércio da cidade. Geraldo Ferreira Lima participa das manifestações e discursa em
defesa da reforma agrária e dos direitos para o homem do campo. Também estavam na
passeata, Bodinho, Luiz Antônio, Amaro sapateiro, Fábio do IAPI, Severino Soares,
Mariano Sales, os vereadores Galdino e Virgílio Aguiar e Paulo Roberto Pinto, o
Jeremias.
A participação de Geraldo Ferreira Lima na manifestação e passeata contra a
carestia e a sua proximidade com as lideranças camponesas serão um prato cheio para a
fome vingativa dos senhores de engenho, no período imediatamente pós 1964. Além
disso, Geraldo, em companhia do delegado tenente Daniel Nunes, teria tentado articular
543
resistência ao golpe na região entre Nazaré da Mata, Aliança e Timbaúba . Depois do

542
Manifestação coordenada e articulada por entidades como CGT, ULTAB, CONTAG, Sindicatos e
Ligas, divulgadas nos jornais Ultima Hora e A Hora. . Na dita passeata, que culminou em comício,
segundo os opositores, ouvia-se saudações de “viva a Cuba”, “viva Arraes” e dados gritos de “fora os
reacionários”.

543
Estes indícios de tentativa de resistência ao golpe na região de Timbaúba, nada foi ainda posto e
estudado pela historiografia, mas é um caso interessante de ser estudado, pois dão uma ideia como
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golpe, durante as oitivas do IPM de Timbaúba, instalado pelos militares em abril


Geraldo Ferreira Lima, Luiz Antônio, Severino Soares, Tenente Daniel Nunes e o
promotor Ernani da Cunha são taxados de promover agitação e apoiar os camponeses,
provocando ódio e animosidade entre proprietários e camponeses.
4. Algumas considerações
A amplitude e a intensidade das lutas camponesas na região de Itambé, fora os
estudos e os relatos sobre o trotskismo, ainda precisam de muita investigação para
serem melhor compreendidas. Existe uma gama de atores, camponeses que tiveram
importante participação em greves e mobilização, cuja ações ainda não fazem parte dos
estudos históricos sobre o período. A maioria desses atores, não mais se encontra em
vida. Muitos deles ainda vivos, mas não falaram nem falarão. Faz-se preciso um
gigantesco trabalho de rastreamento, consulta e analise dos documentos existentes e dos
participantes das lutas na região, um esforço a mais, para que parte importante dessa
história não se torne irrecuperável para o conhecimento histórico.
A investigação das lutas camponesas no período faz-se importante tanto para
ampliação do conhecimento histórico, como para se entender o surgimento e o fim de
importantes lideranças sindicais e políticas. Em muitas cidades, algumas elites políticas
que iriam comandar as prefeituras a partir de então são forjadas pelo conluio dos
militares e com senhores de engenho. Documentos encontrados no DOPS indicam isso.
Em Ferreiros, a pretexto de combate a subversão, lideranças camponesas, favoritas para
disputa eleitoral, são acusadas de comunismo e impedidas de disputar o pleito. Em
Itambé e Timbaúba, lideranças políticas pró-Arraes são denunciadas nos IPMs e
obrigadas a desistir da militância política.
Autoridades policiais e judiciais que não apoiavam ou não davam guarida as
reclamações dos senhores de engenho, após o golpe de 1964, são processadas, presas ou
chantageadas. Os seus depoimentos nos IPMs, são importantes elementos para
compreensão das lutas dos trabalhadores rurais da região.
Quanto em Itambé como em Timbaúba havia nos chamados IPMs a figura de um
denunciador condutor, um senhor de engenho. Em Itambé o denunciante foi José
Gouveia Pereira Borba, do engenho Oriente. Em Timbaúba, quem denunciou
inicialmente foi Pompeu Americano Pereira Borba, dono da fazenda Aurora e

forças locais não tinham a real dimensão do trabalho conspirador e da força e articulação dos golpistas,
civis e militares.
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presidente da Cooperativa Agropecuária de Timbaúba Limitada. A família Borba


ocupava espaço junto aos golpista devido a estreita relação de um de seus membros com
o coronel Antônio Bandeira e com o governador Paulo Guerra. Existem indícios que o
coronel Antônio Bandeira tenha sido o mais poderoso conspirador na fase
imediatamente anterior ao golpe, devido a sua articulação com os civis golpistas,
especialmente com os senhores de engenho.
A luta política dos camponeses da região Itambé conforme tratada neste
trabalho, aponta para a existência de uma rede de lideranças e de instituições que se
confrontavam e se aliavam, de um lado e do outro da trincheira, para pactuar, definir e
atingir seus objetivos. Qualquer analise que se faça das lutas camponesas da região de
Itambé, deve fugir do culto ao herói. A reverência demasiada, o romantismo e a
construção literária, são importantes recursos para se narrar fatos e personagens, mas
pode funcionar como um poderoso feixe de luz que, ao iluminar um objeto ou um ator
renega todos os outros personagens e objetos ao opaco. Na história, o foco demasiado
em um personagem, pode representar uma poderosa cortina de esquecimento.
A ação desenvolvida por Bodinho, Severino Soares, Luiz Antônio, Daniel
Nunes, Geraldo Ferreira Lima, Fábio Moreira e Amaro Sapateiro, João Nunes, Jeremias,
Capitão, Odon, Carivaldo e tantos outros que não foram citados, junto aos camponeses,
na região de Itambé e Timbaúba, foi reprimida violentamente na noite do primeiro dia
de abril de 1964. Todos, sem exceção, foram denunciados pelo grupo de senhores de
engenho, usineiros e políticos da região. Todos foram condenados “por provocar
discórdia entre trabalhadores e patrões”; por “atentarem contra a ordem democrática”; e
por “promoverem agitação nos engenhos”. Todos eles e muitos outros não citados ou
para sempre esquecidos, deram as lutas camponesas na região uma dimensão plural e
disseminada e que somente pode ser contida pela força das baionetas, da tortura e da
denunciação caluniosa.

Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão
conceitual. Rio de Janeiro: Revista Dados. Volume 40, Nº 2. 1997.
CAVALCANTI, Paulo. O Caso Eu conto como o caso foi – Memórias Políticas – 1º e
2º volumes. Editora Guararapes – Recife – 1980.
COELHO, Fernando. Direita Volver. O golpe de 1964 em Pernambuco. Bagaço. Recife.
2004.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da História. Forense Universitária. São Paulo. 2008.
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FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro.


2001
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 1969.
NORA Pierre. Entre a memória e a história. Revista Projeto História 10, PUC. SP.
1993.

MONTENEGRO, Antônio Torres. História Metodologia Memória. Editora Contexto.


São Paulo. 2010.
POLLACK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos.
Rio de janeiro. Vol. 2, nº 3. 1089.
PORFIRIO, Pablo F. de A. Medo, comunismo e revolução: Pernambuco (1959-1964).
Recife. Editora Universitária da UFPE. 2009.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In
Marcelo Ridente. Rodrigo Patto Sá Mota. O golpe e a ditadura militar – 40 anos depois
(1964-2004). 1ª Ed. Bauru. EDUSC. 2004.
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Do “comício que não houve” à marcha da vitória: a deflagração do golpe civil-


militar em Alagoas
Rodrigo Costa
(Universidade Federal de Pernambuco)

Nesses quase cinquenta anos que nos separam daquele abril de 1964, muitas
tentativas de explicação foram formuladas, principalmente pela renovação que o tema
viu emergir a partir da década de 2000, com as pesquisas que se dedicaram a diversos
aspectos do governo João Goulart bem como dos trabalhos que privilegiaram a atuação
dos setores nacionalistas e de esquerda, do PCB e dos trabalhadores.
Em 2004, quando da “comemoração” de quarenta anos do golpe, muitos foram
os pesquisadores que se reuniram em seminários, palestras e eventos tendo como
objetivo discutir a questão da ditadura militar no Brasil. Foi um momento de refletir um
acontecimento – o golpe militar – que marcou profundamente a história do povo
brasileiro. Já tinham se passado quarenta anos, mas as lembranças daquele momento
permaneciam na memória daqueles que presenciaram os direitos democráticos se
desfazerem com as ações políticas dos militares.
Essa preocupação pode ser compreendida devido ao acesso a determinados
documentos que anteriormente eram impossíveis de serem analisados, embora o estudo
sobre a ditadura ainda careça de fontes. A intensa revisão desse momento histórico pode
ser dada pelo fato desse período ainda provocar muitas contradições, como por
exemplo, a construção de narrativas daqueles que defenderam o regime e dos que foram
vítimas desse sistema ditatorial. O que ocorre também é uma tentativa de redefinição
desse passado pelos diferentes sujeitos, de um lado aqueles que vivenciaram essa
experiência ditatorial e de outro os que investigam e interpretam esse passado com base
em documentos escritos e orais.
Pesquisas recentes procuram analisar a conjuntura imediatamente anterior ao
golpe civil-militar em determinadas regiões, focando sua atenção em locais específicos.
Daí que, nosso objetivo neste artigo, é fazer uma exposição sobre a deflagração do
golpe civil-militar em Alagoas, privilegiando a relação entre o Governo do Estado e as
classes trabalhadoras. Procuramos oferecer uma nova maneira de se pensar os embates
políticos daquele início da década de 1960, já que as pesquisas tendem a concentrar suas


Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Bolsista do CNPq - Brasil.
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atenções para regiões específicas como o eixo Rio - São Paulo, os estados de Minas
Gerais e Rio Grande do Sul, e no nordeste, o estado de Pernambuco, deixando de lado a
contribuição dos outros locais para os acontecimentos que se sucederam.

O comício das Reformas no Rio de Janeiro


O comício pelas Reformas de Base, realizado no Rio de Janeiro no dia 13 de
março, foi o evento decisivo da mobilização dos grupos que defendiam as reformas. Os
acontecimentos das três semanas seguintes irão crescendo até a deflagração do
movimento do Gen. Olimpio Mourão Filho em Minas Gerais. Naquela sexta-feira 13, a
crise política se agudizará. Depois desse comício, a batalha ideológica se ampliou; no
noticiário dos jornais, intensificaram-se os boatos de que Goulart – com o apoio do
PCB, do CGT e das forças políticas nacionalistas – preparava um golpe de Estado544.
Assim, paralelamente às versões alarmistas, forjadas pelos setores
conservadores, alguns gestos e declarações de lideranças importantes do movimento
nacionalista – pelo radicalismo verbal de que se revestiram – tiveram o efeito
inesperado de unificar a direita civil e militar.
Desde que havia assumido a presidência em 7 de setembro de 1961, Jango
trabalhou na possibilidade de reatualizar a hipótese do projeto nacional-estatista. Com
efeito, se o desenvolvimentismo de JK abalara alguns de seus fundamentos, não o
superara. Enquanto Janio Quadros não teve sequer tempo, ou condições, para elaborar
alguma alternativa, ressurgia assim uma possibilidade que muitos imaginavam
definitivamente enterrada545.
As agitações sociais ampliaram-se, num crescente, alcançando trabalhadores
urbanos e rurais, assalariados e posseiros, estudantes e graduados das forças armadas,
configurando uma redefinição do projeto nacional-estatista, que passaria a incorporar
uma ampla - e inédita - participação popular, tomando corpo assim o programa
das reformas de base:
 A reforma agrária, para distribuir a terra, com o objetivo de criar uma numerosa
classe de pequenos proprietários no campo;
 A reforma urbana, para planejar e regular o crescimento das cidades;

544 TOLEDO. “1964: o golpe contra as reformas e a democracia”. Op. cit., p. 74.
545 Cf. REIS. Ditadura, esquerdas e sociedade. Op. cit., p. 22
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 A reforma bancária, com o objetivo de criar um sistema voltado para o


financiamento das prioridades nacionais;
 A reforma tributária, deslocando a ênfase da arrecadação para os impostos
diretos, sobretudo o imposto de renda progressivo;
 A reforma eleitoral, liberando o voto para os analfabetos, que constituíam,
então, quase metade da população adulta do país;
 A reforma do estatuto do capital estrangeiro, para disciplinar e regular os
investimentos estrangeiros no país e as remessas de lucros para o exterior;
 A reforma universitária, para que o ensino e a pesquisa se voltassem para o
atendimento das necessidades sociais e nacionais.

Instaurou-se um amplo debate na sociedade sobre o assunto. Nas ruas, nas


greves e nos campos, agitavam-se os movimentos sociais, reivindicando, radicalizando-
se. Entretanto, em sentido contrário, mobilizavam-se resistências expressivas. “A
sociedade dividira-se”546.
De um lado, o movimento reformista, tendo como núcleo amplos contingentes
de trabalhadores urbanos e rurais, além de estudantes e graduados das forças armadas.
Com o tempo, passaram a defender o recurso à força, sintetizado na agressiva palavra de
ordem: reforma agrária na lei ou na marra. De outro lado, numa outra frente social,
aliavam-se as elites tradicionais, grupos empresariais modernizantes, grande parte das
classes médias e até mesmo setores populares, toda uma constelação de profissões e
atividades beneficiadas pelo dinamismo da economia brasileira.
Neste conjunto extremamente heterogêneo, todos sentiam obscuramente que um
processo radical de redistribuição de riqueza e poder na sociedade brasileira, em cuja
direção apontava o movimento reformista, iria atingir suas posições. E nutriam um
“grande Medo de que viria um tempo de desordem e de caos, marcado pela subversão
dos princípios e dos valores, inclusive dos religiosos”547. A ideia de que a
civilização ocidental e cristã estava ameaçada no Brasil pelo espectro do comunismo
ateu invadiu o processo político, assombrando as consciências.
Foi neste quadro que depois de longos meses de indecisão, Jango resolveu partir
para a ofensiva. Dispôs-se a liderar um conjunto de grandes comícios para aumentar a

546 Idem.
547 Ibidem.
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pressão pelas reformas. O primeiro – e único – realizou-se em 13 de março de 1964. Um


sucesso. Reuniram-se todas as esquerdas, os livros que tratam do evento falam na
presença de mais de 300 mil pessoas, na defesa exaltada das reformas548. Jorge
Ferreira aponta que o comício das Reformas havia “selado a aliança do governo com o
movimento sindical urbano, com os trabalhadores rurais e as esquerdas, notadamente o
PCB e a ala radical do PTB”549.
Em Alagoas, os reflexos desse embate trouxeram peculiaridades e resultados que
mudaram os destinos dos envolvidos neste processo. Marcado para o dia 29 de março
no Parque Rodolfo Lins, no centro de Maceió, o comício foi planejado pelo CGT
juntamente com o PCB, UNE e UEEA intencionando agregar as forças progressistas
que defendiam as Reformas de Base do governo Jango. Rubens Colaço, então
presidente do Sindicato dos Rodoviários e membro do CGT, anos depois recordaria
aqueles acontecimentos:
Nós tínhamos um comício convocado para o dia 29, e esse
comício estava dando uma agitação muito grande. Tínhamos
convidado o Brizola e o Miguel Arraes, mas a coisa estava
fervendo dentro dos quartéis. Nem sei direito o que estava
havendo. Tínhamos também, em nossa convocação, a
participação dos sindicatos camponeses, sindicatos fortes da
Saúde, de Pilar, Rio Largo, Atalaia, Anadia e outros. Nós nem
analisávamos que fosse isso que estivesse ocorrendo. A verdade
é que havia um policiamento ostensivo na saída dessas cidades,
para barrar a saída dos camponeses para o comício do dia
29.550

Em seguida Colaço explica os motivos que impediram Brizola e Arraes de se


fazerem presentes no comício:
Em 29 de março de 1964, em Alagoas, nós tínhamos convidado
Leonel Brizola e Miguel Arraes para participar daquele ato. Mas
acontece que a cabeça de Miguel Arraes estava sendo disputada
aqui. A disputa era para ver quem atirava na testa, quem atirava
na boca, quem atirava no olho direito, quem atirava no olho
esquerdo. E nós sabemos muito bem que aqui em Alagoas tem
gente altamente qualificada para isso. Leonel Brizola já tinha
dito que não vinha por causa de afazeres no Rio Grande do Sul,

548 Ibidem.
549 FERREIRA, Jorge. “O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964.” In: FERREIRA, Jorge e
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Org.) O tempo da experiência democrática: da democratização de
1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. (O Brasil Republicano; v.
3). p 382..
550 MAJELLA, Geraldo de. Rubens Colaço: Paixão e vida - A trajetória de um líder sindical. Maceió:
Recife, Edições Bagaço, 2010. p. 70-1.
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e nós achamos irresponsabilidade de nossa parte trazer Miguel


Arraes, governador de Pernambuco, para correr esse risco. Nós
tínhamos a “nossa área” de política de oposição, homens
também bons de pistolas e com grupos de bons pistoleiros, que
se propunham a dar cobertura total a Arraes, mas a verdade é
que o CGT tomou a decisão de ir a Recife para desconvocar
Miguel Arraes e explicar a situação. Na reunião conosco, Arraes
falou: “Eu não vou passar o resto da minha vida com medo dos
pistoleiros de Alagoas. Eu vou ter que ir a Alagoas mais cedo ou
mais tarde. Eu sou homem de sertão, também, não sou nenhum
bunda-mole. Na minha área tem homem também”. Mas
terminamos por convencer Arraes de que ele não deveria ir551.

A reação conservadora
No entanto, o lado conservador também mobilizaria uma manifestação pública, a
ser realizada na Praça Deodoro, local relativamente próximo de onde se realizaria o
comício pró-reformas. Repetia-se em Alagoas o que havia acontecido no sudeste do
país. Quase uma semana após o comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro, no dia
19 de março, uma grande manifestação em São Paulo, a Marcha da Família com Deus
pela Liberdade levou milhares de pessoas ao centro da capital paulistana.
Para Rodrigo Motta, este evento se constituiu no “comício da central do lado
conservador552, ou seja, constituiu-se em evento altamente impactante no que tange à
mobilização antiesquerdista”553. Na sua edição de 26 de março, o Jornal de Alagoas
trazia em sua primeira página uma convocação “Movimento Popular pela Democracia”
para o comício na Praça Deodoro no domingo dia 29, comício esse que enfrentaria o
comício comunista das reformas554. Em tom agressivo, a mensagem trazia em letras
maiúsculas os seguintes dizeres: “Alagoas quer continuar em paz com trabalho. Está de
pé contra a farsa dos agitadores. Repudia os agitadores Arrais e Brizola”.
No dia 31, o Jornal de Alagoas noticiava em sua primeira página555 que a
cidade de Maceió havia estado “a beira de sérios e sangrentos incidentes, devido a um
comício pró-reformas de base, ao qual iriam comparecer inclusive o governador Miguel
Arraes e o deputado Leonel Brizola”. A poucos metros dali na Praça Deodoro, o
Movimento Feminino Pró-Democracia, “manifestava a sua repulsa aos promotores do

551 Ibidem. p. 97.


552 MOTTA, Op. cit., p. 265.
553 Idem.
554 “Divulgação do Movimento Popular pela Democracia” In: Jornal de Alagoas. 26/03/1964. p. 1
555 “Alagoas durante o domingo último viveu a beira de uma convulsão sem precedentes” In: Jornal de
Alagoas. 31/03/1964. p. 1
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comício esquerdista. Além de publicações nos jornais e no radio, pichamento de paredes


e afixação de faixas ostensivamente contra Brizola e Arraes”, mesmo estes dois não
havendo comparecido a manifestação.
Heloisa Starling556, em seu trabalho sobre o golpe em Minas Gerais, aponta que
esse advento da participação feminina na luta contra o comunismo foi intensificada em
1962, quando o IPES passou a organizar e custear, a partir do Rio de Janeiro, a chamada
Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), que rapidamente expandiu suas
representações pelo País. Em Minas Gerais, em janeiro de 1964, após terem contribuído
significativamente para coibir a realização do congresso de trabalhadores tido como
comunista, um grupo de mulheres mineiras criou a Liga da Mulher Democrática
(LIMDE), vinculada ao IPES/MG.
Segundo Starling557, a inserção feminina no contexto da luta contra o
comunismo tinha um profundo conteúdo emocional. Nesse ponto, tratava-se de “mães e
donas de casa que falavam publicamente de medo, violência, morte e destruição”, que
apelavam à “coragem dos homens e sua própria”, em defesa da família, das tradições,
da religião e da Pátria ameaçada pelo fantasma do comunismo558.
O “movimento feminino”, segundo Décio Saes ganhou forma através da
aparição ou crescimento, em todo o país, de associações de mulheres voltadas para a
organização de manifestações de hostilidade ao governo federal e seus aliados, em
nome da condenação moral e religiosa do comunismo: o MAF (Movimento de
Arregimentação Feminina) de São Paulo, além da já citada CAMDE, a União Cívica
Feminina de Santos e o Movimento Feminino pela Liberdade, de Recife559.
Saes aponta que a expressão máxima do “movimento feminino” foi a realização
de manifestações públicas congregando um grande número de mulheres de classe
média, não somente nas grandes capitais, como São Paulo, Rio, Recife ou Belo
Horizonte, mas também nas cidades menores: as “Marchas da Família com Deus pela
Liberdade.” O autor afirma como tais manifestações reservaram-se a função de criar um

556 Cf. STARLING. Op. cit.


557 Ibidem. p. 178.
558 “Alagoas durante o domingo...” In: Jornal de Alagoas. Loc. cit.
559 SAES, Décio. “Classe média e política no Brasil (1930-1964)”. In FAUSTO, Boris (org.). História Geral
da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano – Sociedade Política (1930-1964), vol. III. São Paulo: Difel,
1983.
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clima sócio político favorável à intervenção militar, bem como de incitar diretamente as
Forças Armadas ao golpe de Estado560
Nesse clima de confronto, o jornal informava que “a emissora oficial do estado
publicava uma nota da Secretaria do Interior a qual foi relida várias vezes durante todo
o dia, ponderando as graves consequências que poderiam advir da concomitante
realização dos comícios antagônicos em locais tão próximos entre si”561. Para evitar
“um choque de consequências imprevisíveis, entre manifestantes exaltados que
fatalmente se defrontariam, decidiram as autoridades policiais não consentirem na
realização de nenhum dos dois comícios”. Mas os promotores do comício das reformas,
além de não acatarem a designação da polícia, continuaram a convocar o povo para o
comício no Parque Rodolfo Lins. Na sede do Sindicato do Petróleo, CGT, DCE e
UEEA, havia uma grande movimentação de trabalhadores de vários sindicatos urbanos
e rurais. O comício enfim começou à noite, com os líderes do CGT “dirigindo duras
críticas ao governador Luiz Cavalcante e as classes produtoras alagoanas” e decidiram
pela deflagração de uma greve geral em todo o Estado. Houve em seguida a ação da
força policial, que segundo o jornal havia “revidado” as provocações com tiros e jatos
d’água nos manifestantes.
A greve alcançou inicialmente a orla marítima e a rede ferroviária, paralisando
as atividades nestes setores desde as primeiras horas da segunda-feira. Estivadores,
portuários motoristas, comerciantes, ferroviários e os trabalhadores da Petrobrás
paralisaram as suas atividades como decorrência do que ficou estabelecido numa
reunião ocorrida na sede do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Petróleo562. O
jornal noticiava também que os líderes sindicais de Alagoas haviam “entrado em
contato com entidades de classe de outros Estados Brasileiros, das quais solicitam apoio
e adesão a greve eclodida”.
Tanto no dia primeiro quanto no dia 02 de abril, nem Jornal de Alagoas nem
tampouco a Gazeta de Alagoas traz algum tipo de informação relativa à movimentação
das tropas do Gal. Não citando Olimpio Mourão Filho em Minas Gerais, nem os
deslocamentos do presidente João Goulart entre Brasília e Porto Alegre (e a viagem
para o Uruguai em seguida). Somente no dia 03, quando o presidente da Câmara dos

560 Ibidem, p. 501.


561 “Alagoas durante o domingo...” In: Jornal de Alagoas. Loc. cit.
562“Decretada Greve Geral no Estado como protesto” In: Jornal de Alagoas. 31/01/1964. p. 1.
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Deputados havia sido empossado como Presidente da Nação, é que começam a circular
nos jornais alagoanos as primeiras notícias sobre a situação política do país.
Da mesma forma, os jornais de Alagoas deram pouca ou nenhuma cobertura às
movimentações do CGT, DCE e demais grupos que defendiam a permanência de Jango
à frente da Presidência da República. No dia 03 de abril, o Jornal de Alagoas publicou
um editorial descrevendo o desenrolar do comício das Reformas na capital alagoana563
como uma Batalha de Itararé564, para em seguida, contradizer a edição do dia 31 de
março ao afirmar que o comício não foi realizado. O editorial também dá um destaque a
eficiente atuação da polícia, que adotou “medidas preventivas contra os agitadores
comunistas, muito interessados em provocar incidentes para tirar deles algum
resultado”565. O jornal admite que havia articulações dos esquerdistas na cidade, uma
vez que “agitadores de fora aqui se encontravam representando setores de agitação de
outros Estados, como é o caso de Mataripe, onde, aliás, os comunistas foram
derrotados.”
O jornal afirma que apesar da onda de comunização quase ter triunfado,
“favorecido pelo jogo perigoso do governo derrubado”, havia prevalecido a “orientação
democrática nata da nação brasileira:”
O comício de 13 de março acordou a consciência democrática
do país e a luta foi aceita no pé em que era oferecida. São Paulo
realizou uma retumbante marcha com Deus pela liberdade e
homens representativos do país, como governadores de Estados
parlamentares, empresários etc. decidiram-se a esquecer suas
divergências pessoais e formar uma frente única em defesa das
nossas instituições democráticas, se necessário até pelas armas.
A arregimentação surpreendeu os comunistas e seus aliados que
contavam com a passividade do povo brasileiro e com o
próximo domínio do país. Em breve instalariam aqui, sem um
tiro, uma Cuba grandiosa da América Latina, de onde a Rússia
iria tirar os proveitos políticos e econômicos que não lhe pode
proporcionar a pobre ilha da Antilhas. Agora estrebucham. Nem
a implantação de indisciplina nas forças armadas, que
conseguiram com a ajuda do ex-presidente da Republica lhes
deu o domínio do Brasil, porque o povo resolveu acordar a
tempo. A disposição do povo alagoano ao lado das forças

563 “História de um comício que não houve” In: Jornal de Alagoas. 03/04/1964. p. 2.
564 A batalha de Itararé entrou para os anais da História Militar como a maior batalha do continente
latino- americano... que não houve. Com efeito, os contendores, partidários e adversários da marcha
que levaria Getúlio Vargas ao poder, depois de se aprestarem para um choque decisivo, retiraram-se
para posições defensivas, sem disparar um tiro, negociando o desfecho de forma pacifica.
565 “História de um comício que não houve” In: Jornal de Alagoas. Loc. cit.
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democráticas tão bem representada pelo fracasso da greve geral


anunciada, e um episódio expressivo da derrota dos comunistas.

Mais uma vez o Jornal de Alagoas se esforça para construir a imagem do povo
alagoano como contrário às manifestações em favor das reformas. Os agitadores são
estrangeiros infiltrados entre os trabalhadores, desvirtuando estes dos seus propósitos.
No entanto a partir do relato de Rubens Colaço, é possível perceber que havia uma
grande mobilização dos trabalhadores alagoanos de apoio ao grupo que defendia a
realização as reformas:
(...) a repressão em Alagoas foi anterior ao golpe. Ela começou
no dia 29. Nós realizamos o comício e os operários da fábrica
têxtil do distrito de Saúde vieram a pé, vieram para Maceió com
suas faixas enroladas debaixo do braço. Quando menos
esperavam, eles estavam na praça. Os trabalhadores da orla
marítima tiveram que se dispersar quando chegaram na Praça
Sinimbu. Mas marcou presença firme. A Rua do Comércio ficou
intrafegável. Nós realizamos o comício em frente ao sindicato
de petróleo, que era praticamente na Praça Pedro II, a Rua 2 de
Dezembro, é muito pequena, liga a Rua do Comércio à Praça
Pedro II. O segundo delegado da capital, Aurino Malta , ainda
deu uns tiros, feriu um rapaz da Petrobras que estava na sacada
do prédio; esse rapaz não tinha nada a ver com o comício. A
repressão foi muito violenta para nós já no começo do dia
29566.

No dia seguinte, o jornal trazia em sua primeira página a matéria que elogiava a
posição assumida pelo governador Luiz Cavalcante diante dos acontecimentos tanto
locais quanto em relação à movimentação que depôs Jango567. O jornal faz alusão ao
movimento, na prática trata-se de um manifesto assinado por Luiz Cavalcante e pelo
governador gaúcho Ildo Menegheti, após o comício de 13 de março, em que os dois
alertavam para a necessidade de defesa do Congresso Nacional e das instituições
ameaçadas pelos fomentadores da agitação subversiva. O jornal faz questão de enfatizar
que:
(...) foi Alagoas o único estado no Norte que tomou posição
clara ao lado das forças democráticas. Os demais ou
simplesmente se omitiram receosos das iras do Palácio do
Planalto, ou se colocaram em oposição ao Congresso, como foi
o caso de Sergipe e Pernambuco, cujos governadores já foram

566 MAJELLA, Op. cit., p. 98.


567 “A corajosa posição do Governo de Alagoas” In: Jornal de Alagoas. 04/04/1964. p. 1.
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varridos do Poder, por sua flagrante antinomia com o regime


democrático.

Essa posição do governo alagoano foi reafirmada quando no dia marcado,


utilizando um dispositivo militar bem preparado, desarticulou o comício que contaria
com “a presença de agitadores de outros estados e o anúncio da presença dos
governadores de Pernambuco e Sergipe, além do tristemente famoso deputado Brizola,
que felizmente arrepiaram carreira diante da disposição das autoridades alagoanas de
não lhes dar cobertura”. Assim, o jornal acreditava que “nenhum bom alagoano, salvo
os comprometidos com a baderna, deixou de aplaudir o gesto decidido do governador
Luiz Cavalcante, colocando-se ao lado dos postulados democráticos e assegurando a paz
e a prosperidade dos seus coestadoanos”.
A partir de então, o Jornal de Alagoas e o governador Luiz Cavalcante através
do Diário Oficial começaram a construir a imagem de que ele, o governador, havia sido
o líder do nordeste do movimento que depôs o presidente João Goulart, da “Revolução”.
Na matéria “Governo de Alagoas foi o primeiro a se solidarizar com o movimento de
Minas”568 o jornal exalta que o governador alagoano foi:
(...) o primeiro mandatário dos Estados brasileiros a manifestar
de publico a sua repulsa ao comunismo ateu a apátrida e se
solidarizar com os chefes militares que vinham condenando as
manobras do presidente da República que queria jogar o país no
caos da desordem, enfraquecendo as Forças Armadas.

A atitude patriótica do governo alagoano ao providenciar “as medidas


acauteladoras da ordem” foi iniciada pelo secretário Cel. João Mendes Mendonça,
secretário do Interior e Justiça e Segurança Pública e Coronel Nilo Floriano Peixoto,
Comandante da PM. Em seguida, a matéria traz o pronunciamento que o governador
havia feito na manhã do dia 1º através da Radio Difusora de Alagoas:
Meus conterrâneos, como governador de Alagoas, certo de estar
interpretando os altos sentimentos de brasilidade do povo
alagoano, conclamo a toda a população do Estado a cerrar
fileiras, dentro da ordem e do respeito as instituições, em torno
do movimento patriótico que ora empolga a nação, visando a
revigorar o regime democrático e a repudiar o comunismo ateu e
apátrida. A agitação propositadamente desencadeada em todo o
país, as condições do povo, já esmagado sob o peso de
insuportável elevação do custo de vida, e, consequentemente,

568 Jornal de Alagoas. 04/04/1964. p. 6.


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submetido a permanente intranquilidade de espírito. Incapazes


de promover o bem estar e a felicidade dos brasileiros, os
promotores da desordem descambam para o caminho da
demagogia e da mistificação, procurando desse modo, encobrir a
sua incompetência e inoperância. O processo de desagregação
do trabalho, da família e da hierarquia militar teria que sofrer
fatalmente a desapropriação da nossa gente, agora
consubstanciada no movimento restaurador da tranquilidade
publica. Meu governo, que sempre pautou suas ações ao lado
dos que trabalham e produzem pela grandeza de Alagoas e do
Brasil, sente-se por isso mesmo plenamente integrado na atitude
patriótica assumida pelos governadores e chefes militares que
pugnam nesta hora, por uma Pátria livre, democrática e cristã.
Posso assegurar ao povo alagoano que todas as medidas
acauteladores da manutenção da ordem em todo o Estado já
foram devidamente tomadas pelo governo, que não permitirá
tentem maus brasileiros perturbar o trabalho e a tranquilidade da
família.
O major LC que jamais fugiu ao cumprimento do seu dever,
ainda desta vez tem a convicção de não decepcionar o bravo
povo alagoano.

Ao mesmo tempo o jornal tentava demonstrar que as manifestações e


movimentações dos trabalhadores alagoanos e do CGT haviam tido pouca expressão569
e que o governador havia utilizado o aparato policial do Estado para controlar os “focos
de agitação”, tendo obtido êxito com muita facilidade. De fato, os líderes do CGT
(Roland Benamour e Rubens Colaço) já estavam presos desde a madrugada do dia 1º.
Além deles, Alan Rodrigues Brandão (funcionário da Petrobrás e presidente do
Sindicato de Extração de Petróleo), Jayme Miranda (líder do PCB e suplente de
deputado estadual), Wilson Miranda (funcionário dos Correios e Telégrafos), Rubem
Ângelo (advogado de sindicatos), Valter Pedrosa (acadêmico de engenharia e
funcionário do DCT), José Gonçalves (presidente do Sindicato do Petróleo) e Eteval
Dantas (presidente do Sindicato dos Combustíveis e Minérios) também se encontravam
na prisão570.
Mesmo com as prisões dos principais “elementos da extrema esquerda” do
Estado, continuavam frequentes as notícias sobre as incursões da polícia às sedes de
sindicatos e organizações estudantis a fim de realizar prisões e apreender “material

569 “Já desarticulados os focos comunistas do Estado, mas a policia prossegue em constantes
diligências”. In: Jornal de Alagoas. 05/04/1964. p. 5.
570 MEDEIROS, Fernando Antonio Mesquita. O homo inimicus: Igreja Católica, ação social e imaginário
anticomunista em Alagoas. Maceió, EDUFAL, 2007. p. 142.
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subversivo”, a exemplo do que ocorreu com a sede da UESA, vasculhada pelo DOPSE,
que não encontrou nenhuma “propaganda subversiva”571, e o Sindicatos dos
Portuários, considerado o “último foco de agitação”, onde foram apreendidos cartazes,
faixas, livros etc.572 Nas poucas matérias em que há alguma cobertura dos eventos, a
Gazeta de Alagoas informava que na sede do Sindicato dos Portuários estaria
acontecendo, segundo denúncia anônima, uma “reunião subversiva”, o que teria
provocado o deslocamento de uma guarnição da radiopatrulha ao local, que não
conseguiu prender o “grupo de agitadores”, que pressentindo a presença da polícia,
“teria se esgueirado em fuga, escapando da captura”.
Ao contrário do afirmado por órgãos da imprensa que davam conta de que o
governo do estado teve a situação dominada em poucas horas, a resistência dos
trabalhadores foi persistente.
Enquanto isso, as forças que apoiaram o golpe realizaram na capital alagoana no
dia 2 de abril, a “Marcha da família Alagoana” formada “de milhares de pessoas que ali
compareceram a fim de levar o seu apoio e o seu aplauso as enérgicas medidas postas
em prática pelo atual chefe do Executivo alagoano”573. A multidão, tendo à frente o
“governador Luiz Cavalcante e sua esposa, além de altas autoridades civis e militares,
funcionários públicos, comerciantes, industriais e o povo em geral”, rumou à Praça
Visconde de Sinimbu, “entoando hinos patrióticos e vivamente aplaudida em todo o seu
percurso”.
Depois de passarem pelas principais ruas do centro da cidade, regressaram à
Praça dos Martírios “onde diversos presentes se fizeram ouvir, todos exaltando as
figuras dessa revolução branca que afastou definitivamente o perigo de comunização de
nossa Pátria”. Em seguida, o arcebispo de Maceió, Dom Adelmo Machado, realizou
missa campal exaltando atuação dos “salvadores da nação”. A passeata foi organizada
pelo Movimento Alagoano em Defesa da Democracia, este, segundo o Jornal de
Alagoas composto “dos mais representativos nomes de senhoras e senhoritas de nossa
terra”. O jornal dá destaque ainda à presença de várias entidades religiosas, “da Patrulha
Nacional Cristã, da Polícia Mirim e de diversas outras de caráter nacionalista”.

571 “A polícia preserva a ordem eliminando focos de agitação”. Gazeta de Alagoas. Maceió, 3 abr. 1964,
p. 4.
572 “Sindicato dos Portuários é o último foco de agitação comunista no Estado”. Gazeta de Alagoas.
Maceió, 4 abr. 1964, p. 4.
573 “Marcha da família alagoana” In: Diário Oficial. 04/04/1964. p. 1.
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No dia 05, o Movimento Popular pela Democracia divulgou uma nota no Jornal
de Alagoas de “reconhecimento as gloriosas Forças Armadas pela posição brava e digna
de respeito aos mais caros e legítimos sentimentos de brasilidade”574. Agradecia
também ao governador Luiz Cavalcante e, acima de tudo, ao povo alagoano “pela
vigilante atitude e pelas enérgicas providências em favor das tradições cívicas e cristãs
da gente alagoana, destacando-se o trabalho de nossas polícias civil e militar que,
comandadas pelo Cel. João Mendes Mendonça, ficaram ao lado do Povo contra a
baderna e a agitação”.
Mas ainda era necessário continuar alerta “em defesa de nossa fé e do nosso
Brasil. A semente do ódio, plantada por mãos hábeis, pode novamente germinar se
soluções não forem oferecidas, de imediato, para os inúmeros problemas que exigem
nossa devotada atenção”. Segundo a nota, o movimento que:
(...) nunca foi, nem será contra as reformas. A primeira já foi
feita: a reforma do Governo. As outras terão que vir. Nosso
movimento não é contra a Petrobras, empresa que reputamos
básica para o desenvolvimento do País, mas contra os que a
transformam em símbolo do comunismo no Brasil; nossa luta
não é contra os sindicatos operários e camponeses e sim contra o
sindicalismo político da espúria CGT; não nos arregimentamos
contra a mocidade estudantil, herdeira de ricas tradições nas
lutas em defesa da Democracia, mas contra os agitadores que
dominaram a UNE e as UEE’s. Finalmente somos contra o
comunismo e a favor do Brasil que deve ser sempre dos
brasileiros.

A marcha realizada em Maceió repercutiu na imprensa pernambucana. No dia 03


de abril, o jornal Diário da Noite deu destaque ao evento, citando o Movimento
Democrático Feminino e a primeira dama do Estado d. Mariontina Cavalcanti 575. O
jornal também aponta o governador Luiz Cavalcante como “o primeiro chefe de estado
do Nordeste a apoiar a rebelião de Minas”. Entre o público da marcha, “as mulheres
alagoanas, os colégios católicos, a Patrulha Nacional Cristã (movimento anticomunista
alagoano), o Conservatório Brasileiro de Musica, entidades estudantis, deputados e o
próprio governador e família acompanharam toda a marcha pelas principais ruas da
cidade”.

574 “Ao povo alagoano” In: Jornal de Alagoas. 05/04/1964. p. 1.


575 “Marcha com Deus, pela liberdade em Maceió.” In: Diário da Noite. 03/04/1964. p. 2.
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Na mesma matéria, informa que “enquanto o povo manifestava sua euforia pela
vitória do movimento democrático, a Polinter realizava prisões de todos os líderes do
CGT e outros órgãos sindicais, implicados em movimento subversivos”. A matéria
termina relatando o empastelamento do “jornal comunista A Voz do Povo, que servia de
sede ao PC, bem no centro da capital alagoana”, e a prisão dos seus diretores.
A partir de então, com os canais de oposição ao governo desarticulados e com a
destruição da sede do jornal do PCB A Voz do Povo, que além das suas instalações, teve
as suas máquinas quebradas pela polícia do Estado, o caminho estaria livre para que o
Jornal de Alagoas e o Diário Oficial dessem prosseguimento na construção da imagem
do governador Luiz de Sousa Cavalcante como líder no Nordeste da “Revolução”.

Palavras finais
Como a direita venceu, as memórias das lutas da esquerda foram encobertas e
esquecidas, numa tentativa dos vencedores de criar um mito de que os trabalhadores
alagoanos não estariam envolvidos com o programa reformista e os que em solo
alagoano defendiam essas bandeiras, seriam estrangeiros a soldo de Moscou, dispostos a
conspurcar a límpida essência de fraternidade dos trabalhadores alagoanos.
Ao longo deste artigo demonstramos que, ao contrário da memória oficial
construída a partir de então, os trabalhadores alagoanos se envolveram sim com o
programa reformista do governo Jango, bem como conseguiram atingir um nível de
organização e de mobilização até então inédito na história republicana alagoana,
recrudescendo gradativamente entre o final da década de 1950 e a primeira metade da
década de 1960. Igualmente, trouxemos à tona a repressão sofrida por essas mesmas
classes trabalhadoras cujas manifestações foram duramente suprimidas pelo poder do
Estado governado pelo Major Luiz Cavalcante. Este último, assim como o bloco
político ao qual pertencia e representava, temia que caso o programa reformista
avançasse, pudesse haver uma redefinição do equilíbrio político entre as classes sociais.
Por isso mesmo se torna imperativo destacar a importância do comício de 29 de
março em Maceió, quando a repressão policial no sentido de impedir a sua realização,
acabou se mesclando com a ofensiva golpista desencadeada com a marcha das tropas do
Gal. Olímpio Mourão Filho sobre o Rio de Janeiro em 30 de março.
Outro ponto a ser destacado é como o tripé anticomunismo, modernização
conservadora e repressão, utilizado como lema para o governo militar que se instaurou
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em 1964, já existia em Alagoas desde 1961, quando Cavalcante assumiu o governo. De


maneira alguma, quero afirmar com isso que Alagoas iniciou a ditadura militar antes do
restante do país, mas apenas afirmar a particularidade da conjuntura política alagoana
naquele período. Igualmente, o fato de Luiz Cavalcante ter se posicionado a favor dos
golpistas também deve ser destacado, já que a posição geográfica de Alagoas naquela
conjuntura foi determinante, à medida que impediu um contato direto entre os
governadores de Pernambuco e de Sergipe, estes últimos alinhados com os setores
progressistas naquele momento.
Por fim, destacamos a importância de se dar mais um passo para uma
historiografia sobre o golpe de 1964, mais abrangente no sentido de ampliar a
compreensão sobre outras regiões do Brasil que não o eixo Rio-São Paulo, nem
tampouco o Rio Grande do Sul e o estado de Pernambuco.

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Memórias de estudantes e trabalhadores rurais não engajados em movimentos


políticos de resistência a ditadura militar

Sura Souza Carmo


Professora UFS e mestranda em História UFS
suracarmo@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo consiste em analisar as memórias de algumas pessoas na


Bahia e, através desta, compreender as visões do período militar a partir das vivências e
acontecimentos históricos que marcam os indivíduos de diferentes formas. De um lado
alguns estudantes secundaristas em Salvador que, se viram imersos em um turbilhão de
acontecimentos e do outro, os pequenos agricultores do Recôncavo Baiano que viram
no Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (Funrural), o maior
benefício concedido à classe trabalhadora. Trazer á tona as memórias dessas pessoas é
pensar em uma reconstrução continuamente atualizada do passado, através de visões
múltiplas, ainda com muitos estudos a serem feitos sobre no período da ditadura militar.
Palavras-chave: memória, estudantes, agricultores.

1. Introdução
O período da ditadura militar, que ocorreu entre os anos de 1964 até 1985, deixou
marcas na memória não apenas daqueles que lutaram contra o regime, mas de pessoas
comuns que não participaram diretamente das manifestações contra o regime ou
estavam distante dos grandes centros urbanos e dos veículos de comunicação para saber
o que estava acontecendo. No primeiro caso, dos estudantes das classes populares de
Salvador, havia o receio de participar de manifestações que poderiam taxados e punidos
como subversivos, ou seja, desordeiros e infiéis à pátria. No segundo caso, os
trabalhadores rurais, mais especificamente, da cidade de Cruz das Almas, que, na
maioria dos casos, acreditava nas versões e boas intenções dos que estavam no poder,
associando o regime militar a uma melhoria nas condições de vida, através da concessão
de alguns benefícios na busca da aprovação popular para o regime estabelecido e os
votos para o partido que lhe dava legitimação, a Arena ( Aliança Renovadora Nacional).
A análise dos resultados das entrevistas partiu da percepção de que as memórias
coletivas estão relacionadas a quadros sociais que a compõem e que, por mais particular
que seja tal memória, ela sempre remeterá a um grupo, no caso específico, estudantes
secundaristas e agricultores rurais. A memória é a capacidade de armazenamento de
informações. A primeira memória é classificada como memória individual, pois de
acordo com Halbwachs (2006, p.29), “o primeiro testemunho a que podemos recorrer
será sempre o nosso”. Percebe-se que cada indivíduo carrega sua lembrança do período,
contudo estando interligada a grupos (família, vizinhos, bairro, dentre outros) e
instituições (escolas, sindicatos, igrejas, etc.), portanto, uma memória coletiva. Neste
entrelaçamento construímos as memórias, de como nós e os outros, de forma
interligada, percebemos um acontecimento de relevância para todos. Para Halbwachs
(2006), o outro tem um papel fundamental, pois as lembranças se nutrem das diferentes
memórias proporcionadas pelo grupo, chamada de ‘comunidade afetiva’. Para Bosi
(2003), a conservação dos fatos na memória depende do quanto essas memórias têm de
força afetiva. A memória realiza uma noção de pertencimento que acontece no campo
simbólico e histórico. Conforme Halbwachs (2006), sobre a memória coletiva
para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não
basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso
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que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que
existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a
lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma
base comum. (HALBWACHS, 2006, p. 39)

Le Goff (1990, p.423) define a memória com “propriedade de conservar certas


informações”, remetendo “em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas”. O autor apresenta o conceito de memória social que é
importante para trabalhos relacionados a memória e as relações de poder.

A respeito dos estudos sobre memória, Pinheiro (2004) menciona que houve uma
valorização ocidental a partir dos anos 1980, que resultou uma maior necessidade de
armazenamento de memória como forma de legitimação e perpetuação. Bosi (2003),
mais voltado para a psicologia social, aponta a memória como algo oculto na
consciência, contudo viva e acionada à medida que necessitamos da mesma. Para o
autor

Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes,


misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,
“descola” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. “A
memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e
ativa, latente e penetrante, oculta e invasora”. (Bosi, 2003, p. 36)

Sobre a questão dos silêncios, que está relacionada ao fato de um determinado grupo só
lembrar o que tem relevância para ele, Le Goff explica tal conduta, argumentando que
muitas vezes um grupo não é detentor de suas memórias, elas são manipuladas de
maneira sutil por interesses das classes dominantes. De acordo com o autor

psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da


recordação, quer a propósito do esquecimento (nomeadamente no
seguimento de Ebbinghaus), nas manipulações conscientes ou
inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a
censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a
memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das
forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos
grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores
desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF,
1990, p.426).

2. A visão dos estudantes de Salvador


Assim como nos maiores centros, Rio de Janeiro e São Paulo, em que havia luta contra
a ditadura, também em Salvador havia movimentação contra o novo regime
governamental. Ocorreram passeatas que logo desembocaram em perseguições,
pancadarias e prisões. No caso das passeatas, ainda nos primeiros anos do golpe, foi
intenso a participação de estudantes secundaristas, crianças e pré-adolescentes que mal
compreendiam a razão do seu protesto. O incentivo da participação partia
principalmente dos professores ou irmãos mais velhos, contudo, à medida que os
protestos tornavam-se mais agressivos muitos dos manifestantes se dispersavam a
pedido principalmente dos pais.
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A entrevista de V. L. O. R, 59 nos, moradora do bairro do Matatu, é esclarecedora em


muitos aspectos do envolvimento de estudantes secundaristas e como estes observavam
determinados episódios. Para melhor compreensão foi transcrito na íntegra.
Eu era menina, tinha dez anos, quando ocorreu a “gloriosa”, nome
pelo qual, ironicamente, nós, os futuros jovens, iriamos apelidar a
chamada “revolução de 31 de março”, que, verdadeiramente, foi o
golpe que, a partir de 1964, iria instalar a ditadura militar. Conforme
já disse, eu era menina e não entendia direito o que era essa tal de
revolução. Mas lembro que logo senti os reflexos dela: junto com
minha mãe e meus irmãos, seguíamos pelo passeio do quartel do
exército no Bairro do Barbalho, quartel este que hoje abriga o 7º
Batalhão de Polícia Militar, e quando atingimos um trecho onde havia
uma curva, nos deparamos com um sentinela, que, com a voz uma
“cavernosa”, falou alguma coisa que não chegamos a entender. O
sentinela, então, apontou o fuzil na nossa direção e mandou que
descêssemos do passeio, por que não podia transitar ali. Mesmo com o
grande movimento de veículos, tivemos que descer para a rua,
atravessando entre os veículos para alcançar o passeio do outro lado.
Quando eu já contava onze anos, estudava no colégio de Aplicação no
Largo da Palma, onde também havia o quartel general da 6ª Região
Militar. A essa altura, eu já sabia que não podia andar no passeio do
quartel, onde também havia sentinelas armados de fuzil. Certa feita,
após passar por um desses sentinelas, cerca de dois ou três metros
adiante, ouvi um estampido e corri para colégio, sem olhar para trás.
Até hoje, eu não sei qual foi o motivo do disparo de fuzil.
Ainda no ginásio, participei de algumas passeatas estudantis, com
meus irmãos, que já estavam no 2º grau, no Colégio Central, como era
conhecido o Colégio Estadual da Bahia, de onde surgiram as
principais lideranças dos movimentos estudantis de Salvador, para
opor resistência a ditadura. Uma dessas passeatas foi para protestar
contra a chamada “ Lei Orgânica”, cujo objetivo principal era
privatizar o ensino do 2º grau. Eu já estava concluindo o ginásio para
ingressar no 2º grau e meus irmãos concluíam o 2º grau e pretendiam
ingressar no graduação de nível superior, o qual prevíamos que
também seria privatizado. A Lei orgânica acabaria com os nossos
sonhos, pois nossos pais não poderiam pagar os nossos estudos. Todos
os estudantes de Salvador se reuniam em frente ao Colégio Central de
onde partiam em passeata pela Av. Joana Angélica e 7 de setembro,
aos gritos de “abaixo a Lei Orgânica”, com destino a Praça da Sé,
onde, naquela época, ficava a Assembleia Legislativa do Estado.
Quando encontrávamos a tropa da polícia militar, desviávamos pelas
ruas periféricas até alcançar o objetivo, a praça da Sé, onde
continuávamos protestando aos gritos de “abaixo a lei orgânica”.
Muitas vezes fomos recebidos com jatos de água do carro do Corpo de
Bombeiros, golpes de “fanta”, que era um cassetete grande de
madeira. Como eu e meus irmãos éramos bons de corrida, tivemos a
sorte de não sermos atingidos pelas “fantas”, mas tomamos muito jato
de água. A Lei Orgânica foi aprovada mas o ensino pago não chegou
a ser implantado, embora tenha sido aí que começou a sua decadência.
A resistência contra a ditadura continuou, como também os militares
continuaram utilizando jatos de água, “fantas”, cachorros para
reprimir as manifestações. Em 1968, com o AI 5 (Ato institucional nº
05), toda manifestação foi proibida e reprimida com tiros, prisões,
torturas e aqueles que, por sorte, não foram torturados e mortos, foram
exilados. Os que continuaram engajados na resistência contra a
ditadura caíram na clandestinidade. Foi um tempo de horror. O refrão
da composição Divino Maravilhoso, de Gilberto Gil e Caetano
Veloso, que concorreu ao festival da MPB de 1968, na voz de Gal
Costa, exortava: “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de
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temer a morte” (V. L. O. R., em entrevista concedida à autora,


08.02.2014).

Após o golpe militar de 1964, principalmente após o AI 5, as condições de vida do povo


não ficaram fáceis, pois aqueles que não concordassem com os atos do regime eram
classificados como simpatizantes de esquerda e subversivos. Alguns de estudantes se
mantinham distantes das lutas contra a ditadura por receio da violência da repressão do
regime militar. Mesmo assim, embora não engajados, se preocupavam com o rumo da
educação e que queriam ficar por dentro das notícias e do rumo dos acontecimentos.

Muitos estudantes que tinham ingressado no ensino superior em Salvador também se


associaram aos secundaristas na batalha pela não aprovação da Lei Orgânica da
Educação, que rendeu vários protestos, retaliações e perseguições. Segundo Brito (2005,
p.6) em 1967, “a aliança entre secundaristas e universitários se repetiu contra a Lei
Orgânica Estadual que abria possibilidade de instituir cobrança de mensalidade na
escola pública”. Tal fato também é apontado nas memórias de M. O. R, 64 anos,
morador do bairro de Brotas, Salvador:
Em 1967, aproximadamente, o governo da Bahia tentava aprovar a
Lei Orgânica da Educação, no entanto, a classe estudantil protestava
veementemente contra e, como parte desses protestos foi marcada uma
concentração, no Restaurante Universitário, na Vitória, sendo
convocados os estudantes da Bahia para discutir e conhecer a fundo o
teor dessa Lei. Nessa época, manifestações desse tipo eram proibidas e
reprimidas com bastante rigor, porém não foi motivo suficiente para
que se deixasse de realizar o evento.
Na hora marcada lá estavam os estudantes, como combinado. Mal
começaram as explanações e argumentações, eis que surge nas
dependências do Restaurante (área Federal onde jamais pensávamos
que a Polícia invadisse) um pelotão da Polícia de Choque, armados de
cassetetes de madeira (na época conhecidos como Fanta) formando
um cordão, sendo que uns unidos aos outros através desses
cassetetes e, avançaram contra a Platéia e Palestrantes. Na área onde
os estudantes estavam havia um tablado para os oradores e ao fundo
era delimitada por um marcador de fila como os que hoje vemos nos
bancos, porém, mais bonitos e mais sofisticados. A medida que os
meganhas avançavam os estudantes retrocediam. No momento que já
estavam encostando no tablado não tendo mais como recuar,
dispararam em direção ao choque. Dois problemas: passar ileso pelos
cassetetes e pular o delimitador de espaço. Foi porrada para todo lado
e muita queda na ora do pulo. Como participante que era e, consegui
pular e escapar da porrada, contudo uma garota que estava ao meu
lado caiu no momento de pular e quando tentou levantar recebeu, nas
costas, uma porretada e caiu novamente. Na corrida que eu vinha
coloquei-a de pé e continuei até chegar a Av. Centenário quando
escapei de qualquer castigo (M. O. R., em entrevista concedida à
autora, 15.02.2014).
Apesar das discussões e protestos a Lei Orgânica foi aprovada e todos os estudantes se
sentiram lesados conforme nos aponta o entrevistado: “No entanto, ficou provado que
tínhamos razão. O ensino oficial que naquele tempo ainda era bom, já apresentando
sinais de decadência, nunca mais prestou” (M. O. R., idem). E acrescentou que neste
período algumas medidas preventivas foram tomadas pelos militares em alguns colégios
da Bahia como no Colégio Central onde estudou o famoso reacionário Carlos
Marighella, dizendo que:
Nessa década, também, o portão principal do Colégio Estadual da
Bahia - Central, foi fechado, sendo criada uma entrada lateral visando
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não permitir reuniões na frente do Colégio, bem como, dificultar a


fuga de estudantes durante algumas invasões feitas ao colégio pela
polícia (M. O. R., idem).

Foram observadas nas entrevistas com os estudantes secundaristas, de uma maneira


geral, a preocupação de não serem presos para não serem fichados na polícia. No final
dos anos 1960, o pânico já começa assolar as residências soteropolitanas e o pedido dos
pais para a não participação dos filhos em qualquer manifestação passa a dominar.
Torna-se notícia constante a perseguição a estudantes secundaristas e do ensino superior
e os não engajados, mas atento a tudo o que está ocorrendo no país se recolhe ainda
mais. Sobre a questão o entrevistado, C. F. V., 60 anos, morador do bairro de Nazaré
nos diz que:
eu gostava de estar no meio da movimentação só pra tomar parte das
coisas, era divertido, todo mundo junto. Mas mainha ao saber de um
monte de coisa me pediu para num ir mais não, que ‘tava’ matando
gente, prendendo e que eu ficar com o nome sujo e quando tivesse
maior não ia achar emprego porque ‘tava’ no meio de toda aquela
bagunça, aí eu me aquetei (C. F. V., em entrevista concedida à autora,
15.02.2014).

Sobre a questão dos transtornos com a polícia M. O. R., diz o seguinte: “a grande
preocupação era não ser preso, pois, um fichamento naquela época causava um
transtorno tremendo, pois, sempre que houvesse qualquer manifestação você poderia ser
chamado” (M. O. R., em entrevista concedida à autora, 15.02.2014). Outro entrevistado,
a senhora L. M. N. T., 61 anos, moradora do bairro do Pau Miúdo, sobre a mesma
questão nos diz que “fui nas passeatas da escola mas fiquei com medo da polícia fazer
alguma coisa comigo e poderia depois não conseguir trabalho porque eles anotavam o
nome da gente. Queria mostrar que era contra mas não poderia ser contra as pessoas da
lei” (L. M. N. T., em entrevista concedida à autora, 16.02.2014). Foi entrevistada ainda
uma outra senhora, F. S. S., 60 anos, moradora do bairro do Tororó, que estudou no
Colégio Central sobre o medo da polícia:

No colégio sempre tinha policial por lá, a gente viva com medo. Não é
que éramos tolos, nós sabíamos o que estava acontecendo mas lutar
contra era pedir para morrer e minha mãe me alertava todo dia para
isso. Eu assumo que fui medrosa mas quem não é? Sou mulher e não
queria apanhar da polícia não, fui na passeata e em duas ou três
reuniões para conversar sobre as perseguições no colégio mas depois
me aquetei pois para sobreviver era necessário que a polícia não
marcasse a sua cara (F. S. S., em entrevista concedida à autora,
16.02.2014)

Deste modo, a partir das entrevistas apresentadas acima é possível visualizar o


comportamento dos estudantes secundaristas de Salvador no final dos anos 1960 quando
o regime militar começa aa endurecer as suas ações de repressão e os motivos do seu
não engajamento. As respostas apontam para um entendimento do que estava
acontecendo e consequentemente dos resultados para quem ousasse atravessar o
caminho dos militares. Observa-se ainda a participação forte da família ao pedir para
que os filhos deixassem de lado qualquer movimentação contra o governo e que tal
atitude poderia interferir em seu futuro. Os estudantes soteropolitanos,
especificadamente, os que estudavam no Colégio central, eram conscientes das
repressões que estavam sofrendo, mas alguns preferiram não lutar para escaparem
ilesos.
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3. A visão dos trabalhadores rurais de Cruz das Almas


Cruz das Almas é uma cidade do Recôncavo Baiano, distante cerca de 140 Km de
Salvador de forte tradição do cultivo de fumo, laranja e mandioca e sede, desde a
década de 1940, do primeiro curso de agronomia do estado. Devido à instalação do
campus da UFBA – Universidade Federal da Bahia – houve um impulsionamento da
intelectualidade do município e da região. Quando ocorre o golpe militar de imediato,
políticos e estudantes da cidade se negam a aceitar tal situação, ao contrário da região
rural da cidade que, por conta do isolamento e por falta de meios de comunicação, não
estavam sabendo o que estava acontecendo.
Apesar da pouca divulgação dentro do próprio município, estudantes da Escola de
Agronomia se movimentaram contra o regime e foi, durante um curto espaço de tempo,
uma preocupação para os militares. Houve uma tentativa de resistência armada na
cidade com armas de fogo e coquetel molotov, devido à espera de resistência em cidades
vizinhas que não aconteceu, havendo, consequentemente desmobilização e fuga dos
estudantes. Esta movimentação teve como um dos líderes Almícar Baiardi, atualmente
professor aposentado da UFRB, que relata em diversas apresentações a quase ação de
resistência cruzalmense. Todavia, um dos estudantes da Escola de Agronomia foi mais
longe, Eudaldo Gomes da Silva, presidente do Diretório Acadêmico Livre de
Agronomia em 1968, que em 15 de junho de 1970 participou do sequestro do
embaixador da Alemanha e foi morto ao retornar para o Brasil em 1973 (CARDOSO,
2010).
O ideal destes estudantes não chegou até os pequenos agricultores da cidade, que
viram em alguns casos, o período como de maior avanço para benefícios ao trabalhador rural.
Ao entrevistar trabalhadores rurais de diferentes idades a lembrança da ditadura militar além
dos nomes dos presidentes está relacionada à aposentadoria que o governo militar
proporcionou, pela primeira vez, aos agricultores de todo o país. Percebe-se que as memórias
estão relacionadas às vivências em comum daquele grupo, no caso específico, um benefício
para toda uma classe. Memórias relativas a manifestações nas ruas contra a repressão ou
relativo à luta armada não foram declaradas pelos entrevistados, pois não faziam parte do seu
cotidiano.
Por ser uma lembrança em comum dos trabalhadores rurais da região
entrevistados, é necessário falar do Funrural. Anteriormente à Lei Complementar nº 11,
de 1971, implementada em 1972, os trabalhadores rurais não tinham direito a benefícios
como aposentadoria, auxílio doença ou pensão por morte de arrimo da família. A partir
da lei foi criado o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural / Fundo de Assistência
e Previdência do Trabalhador Rural (Prorural / Funrural), que assistia os trabalhadores
rurais e pescadores e, a partir de 1975, os garimpeiros. Apesar de oferecer apenas uma
aposentadoria por idade aos 65 anos, limitados ao arrimo de família (marido e mulher
não poderiam se aposentar e mulheres só se morassem sozinhas). O valor tinha meio
salário mínimo como teto, as viúvas recebiam uma quantia ainda menor. Mas, mesmo
assim, o benefício foi tido como um milagre em meio a tantas adversidades. Segundo
Schwarzer (2000), a criação da nova lei pelo regime militar representou uma quebradura
perfeita, com os termos do princípio contributivo bismarckiano.
A lembrança da criação e expansão dos sindicatos na cidade de Cruz das Almas
é muito forte, tendo um para os trabalhadores rurais e um para os trabalhadores de
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empresas de plantio e beneficiamento de fumo na cidade. Tal recordação está


relacionada ao fato do financiamento dos benefícios ser realizado por contribuição
individual de 2%, que poderia ser quitado mês a mês ou em acúmulo. Com isso, a
concessão dos benefícios rurais aumentou velozmente durante os anos de 1970,
alcançando, ao final da década, o número aproximado de 800 mil benefícios por mês
(SCHWARZER & QUERINO, 2002).
O maior relato sobre o período foi feito por V. S. C., 86 anos, morador da
localidade dos Poções, que começou sua narrativa de memórias desde o período do
governo Vargas. No trabalho, apresentaremos apenas suas memórias relativas ao
período militar. Perguntado sobre o que sabia sobre o período da ditadura iniciou
dizendo que:
Em 1964 foi o regime governado pelas forças armadas. Entrou
primeiro o Castelo Branco, depois o Artur Costa e Silva, depois o
Garrastazu, que deu aposentadoria ao pobre, o Emílio Médici, depois
veio o Ernesto Geisel e por último o João sem medo, ‘opps’, João
Figueiredo. A gente sempre discutia na venda fazendo molequeira,
mas num tinha discussão sobre as perseguições e do povo que não
gostava do governo não (V. S. C., em entrevista concedida à autora,
22.02.2014).

O agricultor aponta, ainda, sua visão do período precedente ao golpe militar:


“Em 1962 Jânio Quadros foi candidato, depois o outro ficou 17 meses. João Goulart
pegaram fazendo molequeira, revogaram o seu mandato e João Goulart correu e foi
passear no Uruguai” (V. S. C., idem) . Perguntado sobre o que mais se lembrava como
trabalhador rural do período disse que

“entre 1971 e 1973 o primeiro trabalhador rural que se aposentou foi


um mineiro mas recebia num era um salário não era uma ajuda. Com
Sarney que lutaram para aumentar mas diziam que não podiam que o
governo não tinha dinheiro, foi em 1992 que pode aposentar marido e
mulher. Papai em 1973 já tinha 72 anos e se aposentou logo mas um
ganhava salário não” (V. S. C., idem).

Por fim o entrevistado acrescenta que “os militares foram bons demais com o
trabalhador da roça, foi quem olhou pra gente e depois ficam falando mal, por mim, a
coisa pra o rural ficou foi boa”. A entrevista aponta que os trabalhadores rurais estavam
distantes da realidade, mas que mesmo assim realizavam escárnio de seus governantes.
O entrevistado ainda nos mostrou um disco de Juca Chaves que debochava do
presidente Figueiredo. Contudo, durante toda a entrevista foi enfático ao dizer que os
militares foram “bons para o trabalhador rural” (V. S. C., idem).

Outro entrevistado, E. S. A., 57 anos, um pouco mais jovem e da mesma


localidade, nos relata bem menos que o entrevistado anterior. Além da lembrança do
nome de alguns dos governantes, sobre o período disse que:

“não me lembro de muita coisa daquele período não, pois gostava de


ficar era atrás de cavalo. Quando meu pai morreu em 1979 minha mãe
recebeu logo o benefício do governo pois eu tinha um monte de irmão
pequeno e o sindicato correu atrás pra mãe receber. A gente tinha um
sindicato na rua J. J. Seabra que vendia farelo mais barato, tinha
médico, tinha dentista para quem tinha a carteira do funrural. Eles iam
na roça incentivar a gente entrar no sindicato, só recebia a
aposentadoria quem tinha a carteira do sindicato” (E. S. A., em
entrevista à autora, 22.02.2014).
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No breve relato acima é possível perceber o quanto a criação do Funrural está gravado
na mente dos agricultores, visto que o segundo entrevistado durante a implantação da lei
complementar ainda era bastante jovem. Foram ressaltados os benefícios e o incentivo
para participar do sindicato.

Os benefícios da criação do sindicato dos trabalhadores rurais de Cruz das Almas


também são elencados pela agricultora M. C. F, 81 anos, moradora também da
localidade dos Poções, falou que “em 1970 eu fui fazer a carteia do Funrural no
sindicato porque tinha tudo: tinha médico, tinha dentista no sindicato, levava os
meninos”. Sobre o período, ela disse não se lembrava das coisas não por que a vida era
muito dura “só sei que Dilma foi da ditadura mas eu não lembro de nada” (M.C.F., em
entrevista concedida à autora, 06.03.2014). Neta sua última lembrança, podemos
observar a relação atual que muitas pessoas fazem da atual presidente do país como o
período, mas que na verdade obtiveram o conhecimento de tal fato por narrativas
recentes nos veículos de comunicação.
É também observável que quanto mais a localidade é afastada da cidade mais as
lembranças sobre o período são escassas. De acordo com senhor P. B. S., 69 anos,
morador da localidade do Araçá, distante cerca de 10 km do centro, ao ser perguntado
sobre o que ele se lembra do período da ditadura militar ou do período da década de
1970: “eu num sabia de nada disso não, não tinha luz elétrica e nem rádio de pilha para
saber das notícias, a gente viva como Deus quer. Trabalhava no Agro, de dia à noite e
sou analfabeto minha filha num sei explicar nem lembrar das coisas”. Perguntado sobre
os políticos, para ver se conseguia lembrar-se de nomes ou fatos: “a gente votava no
Arena, não existia MDB não, aparecia um pessoal do Arena pedindo voto e a gente
votava no partido de Antonio Carlos Magalhães que era um ‘homi’ muito bom para a
Bahia mas a gente num ganhava nada não”. Perguntado sobre benefícios no período,
respondeu que “eu vivia do meu suor e num ganhava nada de governo não” (P.B. S., em
entrevista concedida à autora, 06.03.2014).
A narrativa do senhor P. B. S., morador da localidade Araçá, aproxima-se com a
de um outro morador, a agricultora M. M. C., 64 anos que sobre o período falou: “eu me
lembro que meus irmãos e meu marido ‘falava’ que tinha que votar num tal de ARENA
e que era bom pra gente” (M. M. C., em entrevista concedida a autora em 06.03.2014).
Outros moradores rurais, dos Poções, também recordam de tal fato, como a agricultora
R. L. A, de 47 anos, no período ainda adolescente que diz: “meu pai votava no Arena
porque disseram a ele que era melhor para vender o fumo e que ele ia ter vantagens
como trabalhador rural. Eu era criança mas aparecia um pessoal lá em casa pra isso” (R.
L. A., em entrevista concedida à autora, 23.03.2014). E por fim, o senhor V. S. C.,
afirmou também sobre a questão: “não tinha outro lado para votar não, era eles que
pediam e ajudavam a gente, a gente tinha mais era de votar nos ARENA”(V.S. C., em
entrevista concedida à autora, 22.02.2014). As entrevistas apontam para algo que já é
sabido, que a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), suporte civil do regime militar,
visitava as áreas rurais de todo o país e prometiam melhorias em troca de votos
(SCHWARZER & QUERINO, 2002).
Dessa maneira, nos relatos apresentados, é possível visualizar as duas principais
lembranças de alguns trabalhadores rurais do município de Cruz das Almas: a criação
do Funrural e o pedido de votos para a ARENA. Tais relatos remetem ao argumento de
Le Goff de que algumas vezes um grupo não é detentor de suas memórias, que são
manipuladas por interesses dominantes.
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Segundo Marcos Napolitano (2014, p.8), “passados 50 anos de 1964 e quase


trinta anos do fim da ditadura, muitas dessas perspectivas são revisitadas pela
historiografia e pela memoria social”. Napolitano ainda infere que a história brasileira
mudou com a ditadura militar, cuja forma de chegar e exercitar o poder serviria de
modelo para a instalação novas ditaduras nos países latino-americanos. Também o
modelo de modernização passou a ser associado à ideia de segurança e desenvolvimento
a qualquer custo, o “milagre econômico”, e não mais a reformas sociais que
permitissem uma melhor distribuição da renda e ampliação da participação democrática
e eleitoral.
Pelo contrário, o modelo de gestão, a violência do Estado, e a censura opressora
colaboraram para o aumento das desigualdades, violência social e a mercantilização da
cultura. Paradoxalmente, foi um período de uma rica e crítica produção cultural de
oposição ao regime, caracterizada por uma criatividade no sentido de driblar o
radicalismo da censura, e também de movimentos sociais, que, embora vigiados e
violentamente reprimidos em nome da “segurança nacional”, se multiplicaram por todo
o país, chegando até mesmo a luta armada e clandestinidade, “expressão de uma
sociedade que não ficou completamente passiva diante do autoritarismo” (
NAPOLITANO, 2014 p.8). Alguns caminhos percorridos e situações criadas durante o
período da ditadura militar, sobretudo questões econômicas, sociais e até mesmo
pessoais, projetam seus reflexos até os dias atuais e não puderam ser revertidos, como é
o caso dos “desaparecidos” políticos, cujas famílias ainda lutam justiça para os entes
queridos.
Dessa forma, assim como as versões dos fatos históricos dependem das fontes
consultadas, dos interesses em jogo e do interesse do pesquisadores, as lembranças ou a
memória estão vinculadas ao lugar, circunstâncias e interesses de quem as selecionam.
Referências:
Bosi, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê,
2003.
BRITO, Maurício. Movimento estudantil e Conselho Universitário UFBA (1964-1969):
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Disponível em: < http://anpuh.org/anais/?p=13856>
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HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro,
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PINHEIRO, M. J. Museu, memória e esquecimento: um projeto da modernidade. Rio
de Janeiro: E-Papers, 2004.
SCHWARZER, H. Impactos socioeconômicos do sistema de Aposentadorias Rurais no
Brasil: evidências empíricas de um estudo de caso no estado do Pará. Rio de Janeiro:
IPEA, 2000. (Texto p/ Discussão n. 729).
______ & QUERINO, A. C. Benefícios sociais e pobreza: programas não contributivos
da Seguridade Social brasileira. Brasília: IPEA, 2002. (Texto p/ Discussão n. 929).
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GT 9

EM BUSCA DE INDÍCIOS DA MODERNIDADE EDUCACIONAL


SERGIPANA

Adriana Menezes de Santana


Universidade Federal de Sergipe
adrimenezess@hotmail.com

RESUMO

Cada período buscou mobilizar a educação com a finalidade de promover a expansão do


conhecimento sobre esta porção territorial colonizada por portugueses, foram muitos os
filhos ilustres que propalaram a necessidade de um ensino moderno inspirado nos
modelos além do mar. Dessa forma, este estudo reflete sobre a modernidade
educacional sergipana referente ao ensino primário, que tinha o caráter assistencialista,
mobilizaria a população para a expansão econômica, e instituiria novas formas de
cultura. A partir de indícios identificados nas referências bibliográficas utilizadas nas
disciplinas Política e Educação, e Filosofia da Educação, ambas vinculadas ao Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, vislumbramos as
mudanças que ocorreram em determinado período.

Palavras-chave: Ensino Primário. Modernização. Sergipe.

Palavras-Chave: Educação. Filosofia. Modernidade. Política. Sergipe.

A partir de uma ampla revisão bibliográfica sobre a histografia educacional


brasileira notamos que existe uma vasta produção de pesquisas cujo marco temporal é o
período republicano, em detrimento aos anteriores, segundo Bontempi Júnior (1995),
essa tendência resulta de uma busca no “passado recente” as explicações para os
problemas educacionais atuais, e que contribuem para a inércia do conhecimento
educacional.
Conhecemos muito das grandes inovações republicanas, e pouco sobre o que
ocorreu no século XIX, período importante para consolidação do Brasil enquanto nação.
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Em face da particularidade desse momento histórico foi organizada, junto ao Programa


de Pós-Graduação em Educação, a disciplina Política e Educação que através do exame
de fontes documentais, interpretou a política educacional originada das relações
estabelecidas nos oitocentos.
A interpretação de diversos textos que abordavam direta ou indiretamente a
educação nos oitocentos suscitou-nos o seguinte questionamento: a educação sergipana
modernizou-se durante o século XIX? Para realizar esta reflexão, utilizamos como
fontes os referenciais teóricos das disciplinas Política e Educação, e Filosofia da
Educação.
Neste estudo compreendemos modernização, por meio de suas bases filosóficas,
como um conjunto de processos somativos e fixativos que proporcionam

à formação de capital e mobilização de recursos; ao desenvolvimento das


forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho; ao
estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades
nacionais; à expansão dos direitos de participação política, das formas
urbanas de vida e da formação escolar formal; à secularização de valores e
normas (HABERMAS, 2002, p. 5).

A partir dessa compreensão buscamos indícios que demonstrem como a


educação foi utilizada para proporcionar a modernidade nas diversas Províncias
brasileiras. O processo de escolarização ocorrido no século XIX tinha por finalidade
auxiliar na formação de forças produtivas para a civilização. Acreditamos que nesse
período surgiu uma nova cultura escolar, pois foram inculcados novos hábitos e
incorporados comportamentos por meio das atividades escolares.
Dessa forma, em busca de indícios dessa modernização analisamos textos que
versavam sobre as questões educacionais locais, como também sobre a importância da
educação como meio de ilustração que proporcionaria o progresso e a civilização dos
diversos povos. Assim, pretendemos refletir sobre o ideal de moderno que mobilizou o
cenário educacional sergipano no período, contribuiu para a consolidação da escola
obrigatória, e profissionalização da profissão docente.

EDUCAÇÃO PARA MODERNIDADE


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Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, vislumbramos um início


de movimento educacional nessas terras, intensificado durante o segundo reinado no
qual o imperador, amante da sabedoria, D. Pedro II, criou diversas instituições
educacionais, normatizou a atividade docente, e incentivou a qualidade da instrução
sobre os seus domínios.
O imperador do Brasil era apaixonado pelo conhecimento, e a modernidade o
encantava, detentor de rede sociabilidade que permitiu o seu contato com o que ocorria
em outras localidades, principalmente a Europa, ele desejava que seu o território
atingisse os melhores padrões, e entre eles estava à qualidade educacional.
Um território em pleno crescimento econômico necessitava de pessoas ilustradas
para promover o progresso, dessa forma ele baixou diversas leis, e decretos sobre a
instrução que deveria ser oferecida em cada uma das vinte Províncias. Essa
normatização, segundo Souza (2000) visava à construção de uma unidade nacional, e a
modernização social, alicerçaram as inovações educacionais no século XIX. Outros
intelectuais como Tavares Bastos e Rui Barbosa também procuram meios de promover
uma instrução que atendesse aos ideais correntes, para tanto buscaram modelos para
inspirar um sistema eficiente aos propósitos locais.

Os mais variados temas da organização escolar tornaram-se objeto da


reflexão política e pedagógica: métodos de ensino, a ampliação dos
programas com a inclusão de novas disciplinas, livros e manuais didáticos, a
classificação dos alunos, a distribuição dos conteúdos e do emprego do
tempo, o mobiliário, materiais escolares, certificados de estudos, a
arquitetura, a formação de professores, a disciplina escolar. (SOUZA, 2000,
p. 3)

Esses temas motivaram a divulgação de diversos textos sobre a questão


educacional, visto que havia um intenso movimento de consolidação da promoção
instrução pelo Estado. A intelligentsia brasileira tinha como objetivo “conduzir o Brasil
pelos trilhos do progresso e da civilização, acompanhando as nações vistas como mais
desenvolvidas” (SANTOS, 2010, p.33). A reflexão sobre tais temas era fundamental
para que o Brasil alcançasse o patamar de nação desenvolvida.
No período imperial D. Pedro II, buscou identificar a situação educacional pela
qual passava o seu território, segundo Del Priore (2008), durante uma longa viagem o
imperador do Brasil visitou várias aulas por diversas Províncias, e constatou o estado
lastimável em que se encontrava a instrução. Através das cartas, e diários enviados a
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Condessa de Barral, ele exemplificava a situação da instrução. Durante a sua visita a


Sergipe registrou em seu diário que as aulas de

meninas regida por Josefa Maria da Trindade – 70 matriculados – não muito


bem escrito o livro de matrícula. 1ª lê sofrivelmente livros, e menos mal em
gramática – divide bem e sabe tirar a prova real. Freq. 1 ano e 4 meses, mas
já tinha estudado pouco – segundo diz a professora, que parece boa. 2ª lê
sofrivelmente, gramática mal, divide cm 2 letras no divisor, porém mal ainda.
Doutrina sabem as rezas, mas as explicações não são exatas todas, apesar da
professora contentar-se com elas. Letra das meninas sofrível (PEDRO II,
1965, p.67 apud ALVES, 2011, p.177).

Durante as suas visitas ele observava desde a estrutura arquitetônica até as


práticas dos professores, comparando com a educação que recebeu, e ofertou a suas
filhas. Desses “registros, identificam-se elementos, como os nomes dos professores, o
número de alunos matriculados, os locais das aulas, os conteúdos ministrados, o nível
de aprendizagem dos alunos e a ‘qualidade’ do professor” (ALVES, 2011, p. 179).
Da mesma forma que D. Pedro II, Tavares Bastos e Rui Barbosa apontaram a
precariedade que se encontrava a instrução, sendo que estes últimos propuseram
iniciativas para a modernização do ensino e consequentemente do Brasil.
Ao longo de dezesseis capítulos Rui Barbosa tratou de todos os níveis de ensino
propondo uma instrução pública que possibilitasse a formação de uma inteligência
nacional capaz de manter a liberdade através da ilustração. Para elaborar esse parecer o
legislador buscou um farto material bibliográfico, segundo Souza (2000), foram
utilizadas 327 obras estrangeiras que versavam sobre os diversos aspectos para o
progresso educacional.

Rui Barbosa propôs um programa enciclopédico tendo em vista a necessidade


de ampliação da cultura escolar para o povo, isto é, a formação de uma classe
trabalhadora conformada às exigências do desenvolvimento econômico e
social do país. Esse programa compreendia: educação física, música e canto,
desenho, língua materna, rudimentos das ciências físicas e naturais,
matemática e taquimetria, geografia e cosmografia, história, rudimentos da
economia política e cultura moral e cívica. (SOUZA, 2000, p. 15)

Essas disciplinas foram selecionadas pelo legislador, porque eram as que


atendiam as finalidades da modernidade, além de serem utilizadas em países mais
civilizados, cada uma das disciplinas apresentava-se como uma inovação pelas práticas
a serem desenvolvidas durante o seu ensino.
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No decorrer do século XIX, conteúdo e método de ensino fizeram parte do


intenso debate sobre a questão política da educação popular e os meios para
efetivá-la, entre eles, a melhor organização pedagógica para a escola
primária. Em toda parte, difundiu-se a crença no poder da escola como fator
de progresso, modernização e mudança social. A idéia de uma escola nova
para a formação do homem novo articulou-se com as exigências do
desenvolvimento industrial e o processo de urbanização. (SOUZA, 2000,
p.11)

Segundo Kant (1985), a aquisição do esclarecimento permitiu ao homem iniciar


um processo em busca da liberdade, porque ao adquirir a razão o homem percorria a via

segura da ciência em vez dos tenteios sem fundamento ou de leviana


vagabundagem a que a mesma se entregava quando procedia sem crítica;
quer se atendia também ao melhor emprego de tempo de uma juventude
ávida de saber, que no dogmatismo corrente recebia um encorajamento tão
precoce e tão forte para discorrer comodamente sobre as coisas de que nada
entende nem entenderá (KANT, 2001, p. 28)

Em face de tal circunstância, ao propor a organização da instrução através de seu


parecer o deputado inspirou-se em alguns modelos, assim seu parecer não se tratou de

um mero aglomerado de ideias difusas, incomunicáveis, produzidas em


realidades diversas entre si e em relação à situação brasileira. Também não
adotou o parecerista um modelo único, como a França, ou a Inglaterra, como
quer grande parte da historiografia. Percebe-se que de cada padrão
educacional Rui Barbosa extraiu os elementos que melhor casavam com o
padrão por ele proposto. (SANTOS, 2010, p. 82)

A proposta de Rui Barbosa tinha por finalidade promover por meio da educação
a civilização da nação. Segundo Elias (2011), o processo civilizatório ocorrido nas
diversas nações ocidentais estava diretamente ligado ao progresso tecnológico e a
influência do Estado sobre a população. A civilização minimizou as diferenças entre as
nações e consolidou o período da modernidade.
Além de Rui Barbosa outro deputado divulgou a situação da instrução pública
no Brasil, o alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos. Esse deputado identificou a
necessidade do povo brasileiro de um programa de instrução eficiente. Segundo Souza
(2012), Tavares Bastos queixava-se da estrutura administrativa do governo Central
sobre a educação, que concentrava os investimentos educacionais na Corte, e deixava a
instrução elementar sobre a administração das Províncias.
O deputado denunciava as ineficiências das atitudes tomadas pelo governo
central, e atribuía a essa falta de atenção a situação lastimável da educação pública.
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Enquanto o governo central adiava medidas mais urgentes e necessárias ao


funcionamento das escolas da rede pública, prendendo-se às exigências do
“formalismo”, como afirmava Tavares Bastos (1938) [1862], outras questões
emergiam tornando-se pontos nevrálgicos no funcionamento das escolas da
educação pública. Não sem motivos, o autor cobrava a necessidade de
formação adequada para o professor que ia atuar em sala de aula, sob o
argumento de que era um aspecto de grande relevância e que deveria ser
analisado com muita atenção, não só pelo governo central, mas pelos
administradores das províncias brasileiras. (SOUZA, 2012, p. 61)

Não existia em muitas localidades uma sistematização da formação do professor,


com a implantação das escolas normais verificamos o início de uma profissionalização
do docente. Ser professor era uma forma de aquisição de recursos financeiros e de um
capital social, nesse período existiam muitas aulas que ocorriam na própria residência
do professor, ou em espaços alugados por estes, que recebiam os recursos financeiros
para manter tais aulas. Mas em alguns casos os recursos não eram repassados de forma
continua, chegando ao extremo de alguns professores, como relatou Almeida Neto
(2007), passarem vários anos sem receber nenhum subsídio financeiro, mantendo as
aulas com recursos próprios e em benefícios dos alunos.
A vocação para o magistério era uma ação muito divulgada entre famílias
principalmente entre as mulheres, no período em questão tornou-se comum a
transmissão das escolas entre familiares, de acordo com Morley (1998), a atividade
docente era uma forma de aperfeiçoar a vida feminina, que além de cuidar dos afazeres
do lar poderia contribuir para o progresso da nação.
Percebemos uma maior participação feminina no magistério após a abertura de
escolas normais, e do desenvolvimento de outras atividades econômicas no país, além
da agricultura, pois para o homem ser professor não era uma atividade tão lucrativa.
Dessa forma, conforme Gondra e Schueler (2008), a mulher foi adquirindo o papel de
protagonista no espaço educacional como professora. Já como aluna, o processo de
acesso ao mesmo ensino que era ofertado aos homens passou por vários entraves. Ao
tratar do processo de ensino e aprendizagem da escola normal da corte, Villela
demonstrar a reformulação do currículo após a o ingresso das mulheres, um dos fatos

mais interessante é a criação de um curso especial para mulheres (que


estudariam em dias alternados aos dos homens), no qual as normalistas
aprenderiam todas as matérias do curso masculino, com exceção da álgebra, e
a geometria se limitaria às noções mais elementares. Por outro lado, seu
currículo incluiria os “trabalhos de agulha” e “prendas do exercício
doméstico”. (VILLELA, 2010, p.111)
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Mesmo com todas as implicações o sistema co-educativo era uma via para a
modernização, porque “instruindo igualmente homens e mulheres a sociedade brasileira
alcançaria um bom nível cultural e poderia superar o atraso” (ANDRADE, 2007, p. 50)
da instrução. No entanto, a implantação dessa forma econômica de ensino que era
viável para o Brasil sofreu duros entraves com a religião católica.

A co-educação representava, para a religião católica, uma imoralidade, pois


colocava no mesmo espaço escolar ambos os sexos. A mistura era vista, pelos
representantes, e adeptos do catolicismo, como uma afronta às famílias, pois
colocava em risco a moralidade das meninas e a masculinidade dos meninos.
(ANDRADE, 2007 p.132)

Para os católicos a permanência no mesmo ambiente de meninas e meninos não


poderia ser permitida, pois estimularia a prática do pecado. A Igreja através de sua
influência
condenava a racionalidade [...] o propósito comum era o uso da influência
religiosa junto à população para buscar seu controle social e moral. Diante
das lutas sociais e das ideologias socialistas, a Igreja encontrou o seu lugar na
sociedade moderna, propagandeando a importância que teria para conter as
mudanças, com uma força retrógrada capaz de exercer um papel irrecusável
para as elites dominantes que não pretendiam ir até às últimas consequências
com suas ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. (KUHLMANN
JÚNIOR, 2001, p. 128)

Mesmo com toda a resistência da Igreja católica, estimulando as famílias a


impedir seus membros de frequentarem às aulas co-educativas, o sistema foi
introduzido no Brasil. As autoridades justificavam a sua eficiência graças aos resultados
alcançados em outras nações que estavam em pleno progresso, de acordo com Lima
(2007), o século XIX pode ser considerado o século progresso.

Em que pesem as particularidades locais, o fenômeno da escolarização em


massa, configurado a partir da segunda metade do século XIX, apresentou
muitos aspectos comuns de abrangência global, entre eles: a obrigação
escolar, a responsabilidade estatal pelo ensino público, a secularização do
ensino e a secularização da moral, a nação e a pátria como princípios
norteadores da cultura escolar, a educação popular concebida como um
projeto de integração ideológica e política. (SOUZA, 2000, p.11)

Além da nova forma de escolarização, percebemos que no século XIX ocorreu


um intenso processo de aquisição de materiais didático-pedagógicos para o ensino como
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coleções de reálias, gravuras, instrumentos de ensino, mobiliário


especializado [...] catálogos de artigos pedagógicos, jornais revistas. Esse
movimento era ainda reforçado pelas exposições pedagógicas nacionais e
internacionais, em que se tornava hábito exibir o que os países possuíam de
mais adiantado em tecnologia educacional (VILLELA, 2010, p.117)

Esses objetos estiveram presentes como instrumentos essenciais a modernização


do Brasil. A aquisição de materiais didáticos marcaram a intenção dos administradores
de moldar o sistema educacional aqui existente aos das nações desenvolvidas.

A MODERNIZAÇÃO SERGIPANA

A partir da reorganização do ensino, os vários níveis educacionais em Sergipe


foram configurados para atender as inovações que estavam sendo impostas. O ensino
primário passou a ser baseado nas lições de coisas e no método intuitivo. Conforme
Carvalho (2010) e Faria Filho (2010), esse método de ensino ancorava-se no
enciclopedismo. Inspirado nas ideias de Pestalozzi tinha como finalidade capacitar à
evolução do conhecimento do aluno.

O assim chamado “método intuitivo” deve essa denominação à acentuada


importância que os seus defensores davam à intuição, à observação, enquanto
momento primeiro e insubstituível da aprendizagem humana. Ancorados nas
tradições empiristas de entendimento dos processos de produção e elaboração
mental dos conhecimentos, sobretudo na forma como foram apropriadas e
divulgadas por Pestalozzi, os defensores do método intuitivo chamaram a
atenção para a importância da observação das coisas, dos objetos, da
natureza, dos fenômenos e para a necessidade da educação dos sentidos como
momentos fundamentais do processo de instrução escolar. (FARIA FILHO,
2010, p.143)

Baseado nesse método o ensino primário deveria preparar a massa, para as


atividades laborais essenciais ao desenvolvimento econômico do Brasil.

A concepção de modernidade, para os administradores, que se pode perceber


era a de que a construção do Império brasileiro passaria pela presença da
escola primária. Esta passava a ser vista como a agência cultural que
garantiria a ordem e o progresso da sociedade (SIQUEIRA, 2006, p.41).

Ofertar um ensino dentro dos padrões da modernidade estava previsto na


Constituição de 1824, na qual foi estabelecido que a educação primária deveria ser
gratuita, e instituída em todas as localidades brasileiras, já em 1827, foi delimitado que
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a mulher poderia ter acesso a esse conhecimento essencial para o desenvolvimento do


Império, mesmo com os entraves já citados que essa medida implicou à medida que o

Império instruía o sexo feminino para ser dona de casa, também instruía para
ser uma aliada a mais no processo de construção da Nação brasileira. A
mulher instruída seria portanto uma peça fundamental contra determinadas
práticas consideradas entraves para o progresso como a desobediência às leis
e à religião (SIQUEIRA, 2006, p.43).

Além de estabelecer a participação da mulher na instrução primária, esta tinha


como finalidade inculcar nas crianças valores que garantisse a manutenção das leis
imperiais e adoração ao Imperador. Nesse período, identificamos que apesar da
importância desse segmento educacional não foram poucas as dificuldades para a sua
consolidação e organização, muitas foram às mudanças implantadas com o objetivo de
promover a sua modernização.
Já a organização do ensino secundário girou em torno da cultura humanística,
valorizando principalmente o ensino de línguas que estavam ligadas ao
desenvolvimento econômico do território e manutenção de uma elite, composta por
pessoas detentora de um capital simbólico vasto que prevalecia para o estabelecimento
de relações sociais. Nesse período a cultura moderna possuía

referências ancoravam-se no progresso científico e no caráter nacional


(língua e literatura do país, história e geografia). Mesmo os ardorosos
defensores da introdução das ciências nos programas não abriram mão do
caráter distintivo de classe predominante no ensino secundário. Dessa forma,
a redefinição dos currículos objetivou atualizar e ampliar a cultura geral das
elites mediante o aprofundamento dos estudos em ciências e letras, colocando
os jovens em contato com os novos temas culturais de seu tempo (SOUZA,
2000, p.15)

Observamos tal tendência nas aulas que ocorriam no Atheneu Sergipense, pois o
ensino de línguas vivas, como o Inglês, ocupavam lugar de destaque no cenário
educacional da “Casa de Educação Literária” (ALVES, 2011, p.193). Em vários trechos
das Atas da Congregação do Atheneu vislumbramos a organização, e as particularidades
que envolveram o professor de tal disciplina.
Segundo Amorim (2009), o professor da disciplina Inglês, adotou os padrões
mais modernos para ministrar suas aulas, ele apelava para o desenvolvimento da razão
nos seus alunos a partir de situações cotidianas, não aplicava castigos corporais e
elaborava os materiais para as suas aulas.
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Outro aspecto peculiar do ensino secundário no período é ausência feminina


entre os docentes do Atheneu, não existem indícios de que havia professoras no
secundário público de Sergipe, demonstrando dessa forma a concepção, em circulação,
da inferioridade intelectual da mulher. A mulher poderia ocupar o lugar de professora na
escola primária, porque zelaria pelo bem estar das crianças, mas não estava preparada
para o ensino secundário que deveria formar a elite.
Assim, verificamos que a renovação pedagógica ocorrida no período
modernizou os currículos, o ambiente, os métodos, os matérias, mas não alterou as
finalidades de cada nível educacional, segundo Souza (2000) “educação burguesa: o
ensino secundário de cultura geral para a formação das elites e o ensino primário
voltado para a formação dos trabalhadores”. (p.14). Da mesma forma que contribuiu
para consolidação da profissão docente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a definição da era moderna cada período do desenvolvimento da


humanidade apresentou os seus critérios de modernização. Analisar tais aspectos
relacionados à educação no século XIX apresentou-se como uma tarefa atrativa, aos
deparamos com as discussões formuladas durantes aulas das disciplinas Política e
Educação e Filosofia da Educação do Mestrado em Educação.
O contato estabelecido com cada referencial teórico contribua para ampliação
das nossas inquietações, sobre a possibilidade de identificar quais eram os critérios de
modernidade implantados no setor educacional dos oitocentos. Ao verificamos as
nuances de modernidade apresentadas, iniciamos o processo de aquisição de indícios
que a evidenciasse.
O sistema educacional implantado a partir de 1822 instituiu um processo de
modernização do ensino com finalidades claras de promover no Brasil o progresso, e a
civilização da população, baseando-se em modelos implantados em países mais
desenvolvidos o imperador D. Pedro II e outros intelectuais, como Rui Barbosa e
Tavares Bastos, iniciaram um processo de instauração de práticas condizentes com o
momento. O investimento no setor, deste a imposição da obrigatoriedade escolar até a
abertura de escolas normais, tinha a função de preparar a mão-de-obra de cada setor.
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A partir das referencias analisadas, vislumbramos que cada ação adotada no


setor, brasileiro e sergipano, durante o século XIX tinha a função de modernizar a
educação, porque esta era a única via capaz de civilizar cada segmento social para
exercer as atividades necessárias para o progresso do Brasil. Com a modernização da
educação percebemos a inserção da mulher nesse campo, aquisição de materiais, uma
nova organização das formas de ensino, instituindo dessa forma uma cultura escolar
própria do período em questão.
Ainda, identificamos que é necessário particularizar o ideal de modernidade em
cada período histórico com intuito evitar a reprodução de questões postas pela
historiografia já consolidada, cada período obteve as suas mudanças para melhorar o
setor educacional, cabe ao pesquisador buscar indícios para compreender a configuração
dos fenômenos educacionais.

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VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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“DIGA AO BRASIL QUE CAMPINA GRANDE É CENTENÁRIA”: A


EDUCAÇÃO NOS DISCURSOS DO CENTENÁRIO DE CAMPINA GRANDE-
PB EM 1964
Elson da Silva Pereira Brasil
(Graduando do curso de História e Bolsista do PET-História UFCG- SESu/MEC)
elsonspb@gmail.com
Orientadora: Dra. Regina Coelli Gomes Nascimento
(Professora do curso de História e tutora do PET-História UFCG- SESu/MEC)

Resumo: Levada a categoria de município em 1864, Campina Grande, município


paraibano, comemorou em 1964 seu centenário. Aniversariando em 11 de outubro, a
cidade comemora seus cem anos em meio aos primeiros meses da ditadura militar,
instalada no país em abril do mesmo ano. Aqui pretendemos problematizar alguns
discursos que foram lançados em virtude das comemorações do centenário da cidade,
buscaremos perceber os projetos de educação para a cidade centenária. Tomaremos
como ponto de partidas os livros: Um grande esforço em educação: município de
Campina Grande, de autoria de José Stênio Lopes, e, Resumo Histórico e Estatístico de
Campina Grande, sem autoria definida; ambos publicados em 1964 e apresentando o
selo do centenário. Como esses discursos compreendiam a educação no contexto da
celebração do centenário? Qual o modelo de educação abordado por eles? São algumas
perguntas que levantamos na construção do texto.
Palavras-chave: História, Campina Grande, Educação, Discurso, Ditadura.

Campina, Cidade Rainha

Linda cidade,
Campina,
És um sonho de amor
Tão bela que és
Com teu céu,
Com teus lindos jardins,
Tuas noites de lua
E o sol
A brilhar!
Tu tens o porte real
Da rainha que és,
Campima!
Da Borborema és a flor
Que mais brilha no ar,
Campina!576
(Capiba)

576
Música Campina, Cidade Rainha, composição do pernambucano Capiba em homenagem a Campina
Grande-PB, cidade onde viveu por alguns anos. Até o momento de finalizar este texto só conhecemos a
versão cantada por Expedito Baracho em 1982. (Disponível in:
http://cgretalhos.blogspot.com.br/2013/02/capiba-e-sua-ligacao-com-campina-
grande.html#.UzV2fahdXCk, Acesso em 28/03/2014).
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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Em 2014, lembramos os cinquenta anos do Golpe militar que em 1964 Afastou


da presidência da República o presidente João Goulart e colocou em seu lugar uma junta
militar provisória. Os militares governaram o país por mais de vinte anos. Os traumas
deixados pela ditadura são inegáveis, e a comunidade de historiadores faz questão de
não deixar essa data passar em branco577. Esse ano, outra data é marcante para a história
da cidade de Campina Grande, a cidade comemora seus cento e cinquenta anos de
emancipação política. O ano de reflexões pelos cinquenta anos do golpe que
interrompeu a democracia no Brasil e instaurou uma ditadura, é também momento de
recordar como foram as comemorações do jubileu de cem anos de Campina em meio
aos primeiros meses do recém-implantado governo militar.
Aqui buscamos pensar como é que alguns discursos compreendiam a educação
no município. Selecionamos duas fontes para este trabalho, ambas produzidas no ano do
centenário. O Resumo Histórico e Estatístico de Campina Grande traz em suas páginas
um relato geral de tudo que tinha na cidade, esse resumo é uma publicação da Secretária
de imprensa do município, envolvida nas comemorações do centenário da cidade. Já o
livro de José Stênio Lopes578, Um Grande esforço em educação, consta de uma
conferência proferida na Câmara de Vereadores em 17 de setembro de 1964 e de um
relato de suas memórias concluído em 12 de outubro do mesmo ano. Ambas as
publicações apresentam o selo do centenário da cidade.
Como esses discursos compreendiam a educação no contexto da
celebração do centenário? Qual o modelo de educação abordado por eles? Como esses
criam uma imagem para Campina Grande com uma cidade do progresso e do
desenvolvimento educacional e cultural? Essas foram algumas questões que nos
moveram.
No texto que segue o leitor perceberá com frequencia o uso da analogia de
Campina Grande com uma Rainha. A rainha que embala a composição de Capiba, e de
outros compositores e cantores que se deixaram levar pelo ritmo desejoso por progresso
e grandeza de Campina. Os quatro tópicos que dividem esse texto: 1º- Com gritos,
festas e ditadura a rainha da Borborema comemorou seu centenário; 2º- A Rainha do

577
É interessante perceber o grande número de eventos na área de História se propõem a debater sobre o
tema, na agenda da ANPUH-Brasil (http://www.anpuh.org/agenda/public, acesso em 26/03/2014) é
possível constatar isso. Inclusive o evento em que este artigo será apresentado também, tem como tema o
golpe de 1964.
578
Nasceu em Guaramiranga no Ceará em 1916, veio para Campina em 1957 como diretor do SENAI, foi
secretário de educação e cultura e durante muito tempo colaborou escrevendo no “Diário da Borborema”.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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saber e a defesa do ensino técnico de nível médio; 3º- Os castelos da Rainha: Grupos
Escolares e o Teatro municipal; e 4º- As servas da rainha: as professoras primárias.
Buscam conduzir o leitor a refletir sobre a produção discursiva acerca de Campina
Grande como uma cidade que se torna referência no Estado da Paraíba em termos de
educação.
Os pares (historiadores) de certo sentirão falta de citações diretas durante o
texto, de teóricos ou de teorias, isso será normal, optamos por tentar dissolver a teoria,
dentro das análises feitas, mas vale lembrar que metodologicamente tentamos usar o
método Genealógico desenvolvido por Michel Foucault, buscamos perceber não as
origens ou verdades dos discursos analisadas, sim as emergências que esse possibilita
perceber a dimensão inventiva e inventariante que esses trazem consigo579.

Com gritos, festas e ditadura a rainha da Borborema comemorou seu centenário


A cidade estava em festa o dia inteiro entrando pela noite. Parque de diversões,
visita de autoridades de cidades vizinhas, edições de jornais comemorando o aniversário
da cidade Rainha da Borborema. As escolas mandam seus pavilhões de alunos, que se
aglomeram na Avenida Floriano Peixoto para saudar a aniversariante com suas bandas,
e com seus desfiles temáticos mostrando “as autoridades separadas por um palanque” o
melhor que cada escola tinha. “Todos os meios de comunicação disponíveis (rádio,
jornal e televisão) se esmeravam para demonstrar o quanto a cidade havia crescido
naqueles primeiros cem anos” (SOUZA, 2004, p. 7). O dia 11 de outubro de 1964 foi
comemorado com toda pompa que um centenário exige, afinal de contas era o
aniversário da Rainha da Borborema (Campina Grande).
Ainda eram os primeiros meses da ditadura civil-militar, que desde abril do
mesmo ano tinha tomado o poder, quando a festa do centenário acontecia em Campina.
A ditadura no Brasil durou mais de vinte anos e marcou a história do país com tortura,
sangue e dor. Também são marcantes as mudanças na educação. Segundo Ghiraldelli Jr.
os anos de ditadura para a educação foram caracterizados pela:
repressão, privatização do ensino, exclusão de boa parcela dos setores mais
pobres do ensino elementar de boa qualidade, institucionalização do ensino
profissionalizante na rede publica regular sem qualquer arranjo prévio para
tal, divulgação de uma pedagogia calcada mais em técnicas do em propósitos
com fins abertos e discutíveis, tentativas variadas de desmobilização do

579
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. /
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a análise do discurso em educação. IN: Cadernos de pesquisa,
n. 114, p. 197-223, novembro/2001.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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magistério através de abundante e confusa legislação educacional (Ghiraldelli


Jr. 2009, p.112).

Em Campina os primeiros meses de ditadura eram marcados por um entusiasmo


em que a educação estava atrelada a ideia de progresso e desenvolvimento. Campina
incorporará o modelo educacional imposto pelo regime e transformará o avanço
tecnológico, agregado ao desenvolvimento educacional, em suas propostas para a
educação no município no ano de seu centenário. Em Campina Grande os preparativos
para a festa e os louvores ao novo governo do país e do município580 enchera de
expectativas e esperanças os discursos sobre educação. Acostumada a ser reconhecida
como referência econômica e comercial do estado e do interior de Nordeste, Campina
Grande estava se habituando ao fato de ter, desde fins da década de 1940, deixado de ser
o único referencial para economia do estado. A SUDENE dedicara especial atenção a
capital do estado, a cidade de João Pessoa, que estava “tomando” para si as atenções até
então dedicadas apenas à rainha da Borborema. Mas logo Campina elabora um novo
projeto para voltar ao centro das atenções. Os discursos lançam a cidade como lugar do
progresso e do saber. Conforme nos fala Agra do Ó (2006), a solução era resignificar os
discursos sobre a cidade, Campina Grande agora era a cidade industrializada, a
fabricante, a produtora, não mais, apenas, a vendedora.
O comércio, já no fim dos anos cinquenta, apresentava alguns sinais de
declínio, mas estes eram utilizados pelos discursos ufanistas de duas formas
dispares: ora eram escamoteados, ora eram citados com alarde para apontar
que a cidade abandonava os caminhos tradicionais em prol da
industrialização (AGRA do Ó, 2006, p.30).

A cidade vai fabricar para si uma nova identidade, dessa vez mais forte e que
dura até o presente581. É nas máquinas das indústrias, nas escolas e faculdades que a
cidades firmará o discurso (cetro) de centro cultural. “De centro comercial para centro
cultural Campina Grande na década de 60, enquanto a segunda maior cidade da Paraíba
nos conduz a um outro olhar norteador” (SILVA, 2000, p. 106), o olhar para a cidade
que permanecia como referência para o interior do estado, e também para todo o
Nordeste como polo de produção cultural e industrial. Agora Campina se dizia o lugar
do saber e do desenvolvimento.

580
O prefeito Niwto Rique foi cassado em 15 de Junho de 1964. No seu lugar assumiu o poder João
Jerônimo da Costa.
581
Ainda hoje Campina Grande é referência no Estado pelas oportunidades de educação que dispõe. A
cidade conta com as sedes de duas universidades públicas, UEPB e UFCG, além de escolas técnicas e de
nível superior.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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Era o ano do centenário, o ano de expor o novo trono da rainha. Prédios foram
construídos, livros foram escritos e monumentos foram encomendados para que desde a
entrada da cidade se tivesse a certeza e respeitassem a centenária Campina Grande, que
era considerada polo cultural e industrial do Estado (Sousa, 2004).
A comissão do centenário foi criada em 1961 para elaborar estratégias de
divulgação e planejar as comemorações do centenário (SOUZA, 2004, p. 4). O Resumo
Histórico e Estatístico de Campina Grande, ação dessa comissão, traz como subtítulo a
frase “Diga ao Brasil que Campina Grande é centenária”, com o intuito de ecoar no
Brasil todo mostrando “as condições geográficas”, “Atividades econômicas”, “Aspectos
urbanos”, “Abastecimento D’água”, “Energia elétrica” e “Vias de comunicação582”,
mostrando que Campina estava grande.
Campina Grande possui todos os aspectos de cidade moderna. Dinâmica e
progressista. Na maioria, suas artérias são largas e bem traçadas. Seu
crescimento urbano obedece a gabarito elaborado por técnicos, em que foram
estabelecidas as áreas as áreas funcionais de zoneamento (Resumo Histórico
e Estatístico de Campina Grande, 1964, p. 17).

Descrevendo a cidade minuciosamente com gráficos, tabelas, imagens e


números em abundancia, o Resumo buscava seduzir seus leitores, de preferência
industriários para investir na cidade. A secretária de Imprensa do município estava não
apenas dizendo que Campina grande era centenária, mas também seduzindo os seus
leitores a investirem na cidade de largas vias, com planejamento urbano feito por
especialistas. Outro artifício sedutor é o fato de a cidade está investindo muito em
educação. A cidade estava em busca do trono de Rainha do saber.

A Rainha do saber e a defesa do ensino técnico de nível médio


Em meio a esse cenário de ditadura e de festa, como esses discursos do
centenário se referiam à educação em Campina Grande? Como a cidade, que como
afirmamos anteriormente, se pretendia referência na cultura e na educação era
inventariada nos discursos produzidos no centenário? Como Stênio Lopes e a comissão
do centenário escreveram uma Campina como referência em se tratando de educação?
Os números seduzem. É essa uma das armas de sedução usada para atrair os
leitores do Resumo Histórico e Estatístico de Campina Grande a acreditar na grandeza
de Campina, a crer que é Campina a cidade do futuro, a cidade educada e da educação.

582
Resumo histórico e estatístico de Campina Grande. Diga ao Brasil que Campina Grande é centenária.
Edição da secretária da imprensa, prefeitura municipal de Campina Grande, 1964.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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É Campina Grande a cidade onde todas as modalidades de ensino se cruzam, uma


cidade que:
Funciona como centro estudantil de relevo, em todos os graus, existindo no
município cerca de 300 estabelecimentos de ensino primário fundamental que
reúnem aproximadamente, 8.788 crianças em frequencia efetiva, 14
estabelecimentos de ensino médio, com cerca de 6. 770 alunos, 4 faculdades
de ensino superior: Engenharia e Ciências Econômicas, pertencentes a
Universidade da Paraíba, Filosofia e serviço social particulares; cerca de 481
universitários compõem o corpo discente dessas escolas, afora uma escola de
aprendizagem industrial, mantida pelo SENAI e uma Escola de Arte
(Resumo Histórico Estatístico de Campina Grande, 1964, p. 18).

Como se isso não fosse suficiente, Campina ainda tinha para oferecer três
emissoras de rádio, e uma de TV, sendo a “segunda cidade do interior do país, a possuir
TV” (Ibid. p. 18). E caso o leitor ainda não se desse por satisfeito, se não acreditasse
que a cidade tinha futuro na educação a comissão ainda acrescenta que Campina Conta
com “6 bibliotecas para consulta pública reunindo cerca de 12.000 livros” (Ibid. p. 19).
Uma das características marcantes dos discursos sobre educação pós década de
1950, e enfatizado pelos militares é o de uma educação que venha a impulsionar o
“progresso econômico cultural e social”. O objetivo da escola passa a se confundir com
o das indústrias desejosas por mão de obra qualificada. Projetos de lei tramitam no
Congresso Nacional para aprovar a “Lei que obriga empresas com mais de 100
empregados a proporcionarem ensino primário gratuito para seus empregados e os
filhos destes” (Ibid. p. 8).
Citando um discurso pronunciado pelo presidente Castelo Branco, primeiro
general da ditadura a governar o país, em Fortaleza. Stênio Lopes em sua conferência na
Câmara de vereadores583 ressalta o que lhe chama atenção no discurso do presidente.
Como um secretário de educação falando aos vereadores de sua cidade, claro que ele
elenca elementos referentes à educação. Elementos esse que estão apoiando o
tecnicismo educacional, defendendo uma educação que discipline e forme os sujeitos
para o trabalho na indústria. O ensino técnico principalmente “exige que se forme, no
país, cinco a seis vezes maior número de técnicos de nível médio, que poderão iniciar a
sua formação nos cursos ginasiais e colegiais” (Ibid. p. 18). Com a formação de técnicos
de nível médio as indústrias não teriam em seus galpões nem analfabetos que saberiam

583
A conferência é a primeira Parte do livro “Um grande esforço em Educação: município de Campina
Grande” de Stênio Lopes, publicado em 1964. A conferência foi proferida aos vereadores em 17 de
setembro de 1964.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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manusear suas máquinas, e também, não teria intelectuais de nível superior criticando a
exploração do trabalho e os baixos salários.
Fazendo referência a um livro publicado pela FIESP de São Paulo, na coleção
“O pensamento industrial”, a comissão do centenário, em Resumo Histórico e
Estatístico de Campina Grande, coloca entre os “fatores favoráveis à atração de
indústrias para o município” “O baixo salário mínimo”. Com a implantação de novas
indústrias na cidade, ela também ganhava em termos de educação, em 1964 a cidade já
contava em sua infraestrutura educacional com o SESI (Serviço Social da Indústria) e
com o SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial). Segundo Agra do Ó
(2006)
Optar por uma educação mais voltada para a instrumentalização de uma mão
de obra integrada ao parque industrial nascente, por exemplo, nada tinha de
neutro: significava comprometer-se com aquele projeto de desenvolvimento
que a industrialização representava (p. 15).

Era preciso se esforçar mais, a cidade não podia ficar apenar em planos.
Demonstrado a capacidade que Campina tinha de reinar como rainha da Borborema, da
indústria, da educação e da Cultura era preciso dar castelos para a rainha expor sua
riqueza cultural, seu poder em educar. Era preciso construir grupos escolares, lugares
próprios para o ensino, castelos do saber e do exercício do poder, castelos da rainha do
saber.

Os castelos da Rainha: Grupos Escolares e o Teatro municipal


“Lutei o quanto pude, para a construção de grupos escolares.”
(Stênio Lopes)
Um dos grandes esforços foi construir monumentos que marcassem a data do
centenário, assim como, perpetuassem a memória da gestão de cada prefeito e secretário
de Educação e cultura. Eram esses monumentos os castelos, as construções sólidas e
duradouras que perpetuariam para o futuro as ações de cada gestor. Mas deveriam ser
também espaços amplos, bem edificados seguindo os padrões sanitários.
Inaugurado em 1963 o Teatro municipal de Campina Grande vai apresentar uma
arquitetura inovadora. Lembrando o formato de um apito, ou o bico de uma flauta.
Remetendo ao tema música o teatro custou muito para os cofres municipais. Sempre
irritado com a dívida deixada pela gestão anterior, Stênio Lopes chega a sugerir que a
prefeitura deixasse de pagar a dívida para com o dinheiro “construir três ou quatro
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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Grupos Escolares de 4 a 5 salas de aula a cada ano!” (Ibid. p. 40). Sem discutir a
importância do teatro para a cidade ele demonstra-se sempre insatisfeito com as dívidas
que a construção deixou. Talvez não debatesse por acreditar que o teatro fosse mais uma
expressão da grandeza cultural de Campina.
A mentalidade das classes sociais mais bem situadas igualmente é insensível,
contrária mesmo, ao esforço em prol da educação popular generalizada,
preferindo obras vistosas, de maior efeito “cultural”, como no caso, a
construção de um Teatro que nos arrancará do erário mais de duzentos
milhões de cruzeiros, enquanto a cidade conta apenas com meia dúzia de
Grupos Escolares dignos desse nome, embora mal conservados e mal pagos
(LOPES, 1964, p. 31).

Mesmo com a dívida contraída pela gestão anterior a meta era construir mais
grupos escolares. A cidade que se dizia a rainha, referência em cultura e educação tinha
de expor seus castelos do saber, tinha de construir grupos escolares que demonstrassem
o quanto as gestões estavam empenhadas em desenvolver a cidade. Mesmo com as
dificuldades financeiras da Secretaria de Educação e cultura, era preciso construir
grupos com arquiteturas adequadas e disciplinadoras.
“O Grupo Escolar Monsenhor Sales, no bairro do Tambor, é nosso. Foi
construído por nós” (Ibid. p. 39). As dificuldades em lidar com os parcos recursos que a
prefeitura disponibilizava e o fato de conseguir construir, em sua gestão como secretário
de educação e cultura, o grupo escolar do bairro Tambor levam Stênio Lopes a
desenvolver um sentimento de posse pelas obras construídas enquanto era secretário de
educação e cultura do município. Sobre a construção do Grupo Escolar no Tambor ele
relata:
No Tambor construímos, portanto, o Grupo Escolar ‘Monsenhor Sales’. A
única sala existente tinha uma parede fendida de alto a baixo, até o alicerce.
Foi preciso derrubá-la e reconstruí-la, juntamente com a construção que
fizemos, de mais duas salas de classe, uma sala de diretoria, outra para a
cantina, um pequeno depósito, três gabinetes sanitários, cisterna, bomba
elétrica para elevação da água etc. Enfim um grupo escolar bastante
satisfatório resultou de nossa ação e é suficiente para atender a população
escolar do bairro (Ibid. p. 39).

Esse discurso de adequação dos grupos escolares está dentro de uma ordem que
padroniza os espaços escolares. Os prédios escolares bem edificados eram necessários
para demonstrar o desenvolvimento da cidade. Uma sala fendida, rachada ou sem a
menor infraestrutura deveria ser derrubada, derrotada; no lugar deveria se construir um
novo prédio. Com estruturas bem dividas, com espaços para aula, refeições e higiene
pessoal. Era impossível disciplinar os alunos e alunas de uma escola com apenas um
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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cômodos. O espaço escolar também é disciplinador584. É por meio dele que se aprende
onde se deve fazer cada coisa. Se deve estudar na “sala de aula”, comer na “cantina”,
fazer as necessidades no “gabinete de sanitários” enfim era preciso ser disciplinado. As
indústrias careciam de trabalhadores adestrados, domesticados, disciplinados pelo
sistema educacional. Segundo Escolano (2001):
A arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie de
discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como de
ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e
motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos,
culturais e também ideológicos (p. 26).

Nesse sentido a administração abre mão da construção de outros novos grupos e


se dedica a ampliação de Grupos já existentes com estrutura inadequada. “Em muitos
casos não se tratou apenas de construir mais uma sala de classe, mas ainda de construir
instalações sanitárias cantinas e etc.” (LOPES, 1964, p. 41). Não apenas as estruturas
inadequadas preocupavam,
Os equipamentos escolares também mereciam atenção da secretaria de
educação e cultura. A grande maioria – a quase totalidade – das escolas
isoladas, urbanas e rurais, não dispõe de bancos ou carteiras, mesa de
professora, mapas e quadros murais, muitas vezes nem sequer de quadro
negro (Ibid. p. 41-42).

A existência de prédios com estrutura e equipamentos inadequados estava relacionado


como fato do descaso na criação de escolas, Criar uma escola era fazer a nomeação da
professora. Isto era tudo, na grande maioria dos casos (Ibid. p. 42).
Esses Grupos Escolares vazios, ou apenas com a presença dos estudantes não
iriam sozinhos de muito adiantar. Era necessário alguém para ensinar, era preciso de
professores para ensinar aos meninos e meninas campinenses as primeiras letras, os
primeiros versos de amor a sua cidade rainha do saber. Para tanto se recorrem as
normalistas, mal assalariadas, aqui chamadas de Servas da rainha.

As servas da rainha: as professoras primárias


Desde fins do século XIX a profissão de professor primário vinha sendo
caracterizada como ocupação de mulheres. Em Campina Grande é nas décadas de 1920
e 1930, com a primeira Escola Normal da cidade, que o magistério emerge como
trabalho de mulher. Caracterizado como a profissão do afeto e do amor materno, uma

584
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 38. Ed. –
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
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vocação, ser professora implicava em muito trabalho e má remuneração, seria a


contribuição feminina para o desenvolvimento do país585. Assim em 1964 Stênio Lopes,
refere-se ao corpo docente do ensino primário como sendo formado por professoras.
A rainha do saber (Campina Grande) recorria as suas servas, as normalistas. A
ampliação e reforma dos Grupos Escolares no município aumentaram o número de
vagas consequentemente a necessidade por professoras. Como se não fosse suficiente,
para erradicar o analfabetismo e comemorar os cem anos da rainha sem analfabetismo
foi criado um terceiro turno “(que as professoras chamavam de ‘intermediário’) e
verificou-se que as possibilidades de matricula não foram esgotadas” (LOPES, 1964, p.
43).
Esse tipo de ensino para adultos não podia ser igual ao ministrado as crianças,
deveria apresentar um caráter e objetivos especiais, as professoras teriam de se
desdobrar para fazer com esses estudantes obtivessem uma boa:
Alfabetização, (leitura e escrita) por processos rápidos e em ritmo intensivo,
a iniciação matemática e a informação geral de assuntos de interesse imediato
para o ajustamento dos adultos ao padrão moral, social, cívico e econômico
que se pretendia das ao povo (Ibid. p. 52).

Para tanto era preciso evocar pessoal qualificado para ensinar. A preocupação
com a falta de professores faz com que se recorra as mais variadas formas de
recrutamento de pessoal:
Convocamos normalistas diplomadas para as vagas abertas. Chamamos até
pelo rádio as candidatas. E, à sua falta, contratávamos estudantes da Escola
Normal, em vias de se tornarem professoras diplomadas, ou moças com
cursos técnicos, cientifico, clássico ou ginasial (Ibid. p. 43).

Stênio Lopes (1964) resalta que geralmente essas professoras, que ensinavam ao
ensino primário, eram muito mal pagas. Os baixos salários pagos a quem fosse ensinar
nas escolas primárias, de Campina Grande, afastavam os homens da sala de aula. “O
baixo custo mensal por aluno no ensino primário é resultado dos vencimentos pouco
compensadores que a prefeitura paga ao professorado” (LOPES, 1964, p. 16). E ele
ainda lembra que:
Apesar de contar a Secretária de Educação e Cultura com metade do
funcionalismo municipal (incluindo os contratados e os extranumerários), a
despesa de pessoal da secretaria correspondia apenas a cerca de um quarto do
total. Isto mostra, com uma evidência aterradora, os baixos índices da

585
Brasil, Elson da Silva Pereira. Polindo espíritos, formando professoras: a feminização do
magistério em Campina Grande-PB (1929-1932), In: XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA,
2013, Natal-RN. Anais eletrônicos: Trabalhos Apresentados nas Seções de Graduandos, 2013. P. 1-13.
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remuneração paga ao professorado em geral, principalmente ao professorado


do ensino primário (Ibid. p. 55).

Isso fazia com o “pessoal mais qualificado” buscasse outros empregos, ficando o
ensino primário sem professores qualificados. Em 1964 menos da metade das
professoras primárias de Campina Grande eram normalistas diplomadas. Na zona rural a
situação era ainda mais grave, “Encontramos na Prefeitura professoras rurais
praticamente sem nenhuma habilitação para a tarefa de ensinar nem de realizar a
alfabetização das crianças” (Ibid. p. 17).
Apesar da baixa remuneração, encontrei nos quadros docentes das escolas e
Grupos Escolares uma parcela considerável de moças e senhoras com
satisfatórias disposições para o trabalho escolar. Para a satisfação dessas
professoras e regentes de classe e auxiliares de ensino que tive o prazer de
conhecer durante dez meses, confesso que encontrei entre elas professoras
comovedoramente dedicadas ao seu mister, dóceis a inspiração de novas
diretrizes, disciplinadas, dotadoras de grande espírito de cooperação, leais e
amigas capazes de, se bem orientadas e estimuladas realizarem um serviço
inestimável na educação as crianças campinenses (Ibid. p. 47).

Era muito importante que as professoras se mantivessem bem capacitadas e


informadas para que Campina se destacasse por seu ensino e pela sua cultura. Para tanto
não poderia deixá-las perder o foco, tinham de ter objetivos claros para alcançar. Tanto
que o regulamento de ensino, ainda em estado experimento durante a gestão de Stênio
Lopes, estava explicito que o currículo deveria ser inspirador. As professoras primárias
tinham de despertar em seus alunos o seu desenvolvimento “sob os aspectos físico,
intelectual espiritual e moral, cívico, econômico e social, fornecendo-lhe os
instrumentos para sua plena realização como pessoa humana e sua integração na
sociedade sob as ideias da democracia” (Ibid. p 17).
Mas tinham outras formas de melhorar o desempenho e a formação do
professorado na sala de aula, era preciso formar essas mulheres para que as crianças que
saíssem de suas aulas pudessem acompanhar os ritmos do progresso da rainha da
Borborema, tanto que foi em iniciado um “seminário semanal, às sextas feiras, durante
todo o mês de setembro, sob a orientação da professora Salete Agra” tida como uma
intelectual das mais atualizada da cidade na época, por Stênio Lopes. “O programa
deveria ser completado com cursos de férias, a começar de dezembro ou janeiro, ainda a
cargo da professora Salete que provou nos seminários semanais, sua competência para a
tarefa” (Ibid. p. 45). Eram as professoras tratadas quase como servas, que prestam um
serviço constante a sua senhora, a sua rainha, sem direito a salários dignos e ainda tendo
de participar de qualificações nos seus momentos de férias.
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O grande número de alunos, os baixos salários, os cursos de aperfeiçoamento


faziam da professora uma um tipo de serva, que como os vassalos medievais, tinham de
dedicar sua vida e seu tempo às vontades de seu senhor, de sua rainha da Borborema.

Consideração
Tanto o texto de Stênio Lopes, como o Resumo Histórico e Estatístico de
Campina Grande podem gerar histórias das mais fascinantes, mas por hora buscamos
pensar como esses discursos relatarem e criaram uma discursividade acerca da educação
em Campina Grande. Em meio a um cenário de resignificação da Campina comercial
para a Campina Industrial, a educação e a produção de saber vão ser usada como item
de sedução de industriários do Brasil. Era preciso também intensificar uma educação
que formasse técnicos e trabalhadores para essas indústrias. Para tanto era preciso o
esforço de alguns sujeitos, no caso as mulheres que desejassem ir para a sala de aula,
essas deviam ensinar as primeiras letras aos seus alunos e se desprender de si em nome
de uma causa maior, mostrar, dizer ao “Brasil que Campina Grande é Centenária”.

Bibliografia
AGRA do Ó, Alarcon. Da cidade de pedra à cidade de Papel: projetos de educação,
projetos de cidades - Campina Grande (1959). Campina Grande: EDUFCG, 2006.
ALMEIDA, Jane Soares de. Mulheres na educação: missão, vocação e destino? A
feminização do magistério ao longo do século XX. In: SAVIANE, Demeval. [et al.]. O
legado educacional do século XX no Brasil. 2 ed. Campinas-SP: Autores associados,
2006.
BRASIL, Elson da Silva Pereira. POLINDO ESPÍRITOS FORMANDO
PROFESSORAS: A FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO EM CAMPINA
GRANDE-PB (1929-1932). In: XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA,
2013, Natal-RN. Anais eletrônicos: Trabalhos Apresentados nas Seções de Graduandos,
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Universitária, 2012.
__________________. Microfísica do Poder. Roberto Machado (Org. e trad.) 30. Ed
- Rio de Janeiro: Graal, 2012.
__________________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel
Ramalhete. 38. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
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GHIRALDELLI JR. Paulo. História da educação brasileira. 4. Ed. São Paulo: Cortez,
2009.
PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. Da Era das Cadeiras isoladas à Era dos grupos
escolares na Paraíba. Tese de doutorado apresentado junto ao PPGE-UNICAMP,
Campinas-SP, 2001.
ARAÚJO, Marta Lúcia Ribeiro. A ciranda política campinense: 1945/1964 In:
GURJÂO, Eliete de Queiroz. (Org). Imagens multifacetadas de Campina Grande.
Prefeitura Municipal de Campina Grande: 2000.
SILVA, Keila Queiroz e. “Sem lenço e sem documento”: mulheres de 60, filhas de um
tempo? In: GURJÂO, Eliete de Queiroz. (Org). Imagens multifacetadas de Campina
Grande. Prefeitura Municipal de Campina Grande: 2000. PP. 101-139.
SOUZA, Antonio Clarindo B. de. A festa do centenário de Campina Grande ou a
criação de uma identidade coletiva. In: V Encontro nordestino de História; V encontro
estadual de História. Recife- PE, 2004.
VIÑAO FRAGO, Antonio; ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade:
a arquitetura como programa. Tradução: Alfredo Veiga-Neto. 2. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001.

Textos consultados como fonte:


Coletânea de autores campinenses, edições da comissão cultural do centenário da
prefeitura municipal de Campina Grande-PB, 1964.
LOPES, José Stênio. Um grande esforço em educação: município de Campina
Grande. Campina Grande: 19664
Resumo Histórico e Estatístico de Campina Grande; Secretaria de Imprensa, Prefeitura
municipal de Campina Grande. 1964.

HISTÓRIA DA MINHA E OUTRAS INFÂNCIAS: NARRATIVAS ACERCA


DAS PRÁTICAS EDUCACIONAIS EM GILBERTO AMADO

Maria Claudia Cavalcante


Doutoranda pelo PPGH/UFPE
E-mail: cacau_06@yahoo.com.br
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Este texto tem como objetivo discutir o relato memorialístico sobre as práticas
educativas que fizeram parte da formação intelectual de Gilberto Amado, importante
intelectual que atuou como político e literato em meados do século XX e escreveu cinco
livros de memórias. O primeiro destes livros: História da minha infância (1954) narra a
passagem de sua infância nas cidades de Estância, Itaporanga e Aracaju, todas
localizadas no estado de Sergipe. A discussão aqui proposta tem o intuito de perceber
como esta narrativa corrobora com o objetivo maior de Gilberto Amado que é o de
construir sua imagem enquanto intelectual formado sobre a os auspícios da razão, bem
como lançar um olhar sobre as condições de escolaridade no Sergipe e no Brasil de fins
do século XIX e início do XX.

1. Histórias da minha e outras infâncias

De acordo com Amado, o aprendizado das primeiras letras deu-se pelo auxílio da

mãe Ana. Era comum, no século XIX, a educação de meninos e meninas ser feita por

mestres particulares, também chamados de preceptores ou até mesmo pela mãe, caso

estas tivessem algum aprendizado das letras, como parecia ser a mãe de Amado. A

educação doméstica, até certa idade, era reconhecida como modalidade mais adequada

ao ensino de meninos e meninas, porém eram acessíveis a poucas pessoas. A partir do

momento em que as instituições começam a intervir na educação, a escola

gradativamente passa a ser o foco de interesse da intervenção do Estado na família.

A princípio, segundo Vasconcelos (2005), a intervenção institucional da


educação na família é vista com maus olhos pelas elites que “julgavam essas medidas
como afronta intervencionista ao poder que até então era exclusivamente da casa:
decidir, contratar, fiscalizar e deliberar sobre a educação de seus filhos”
(VASCONCELOS, 2005, p. 105). Gradativamente, as elites começam a perceber que
podem aliar-se ao Estado e dividir com ele a responsabilidade da educação dos filhos. É
nesse momento, que a escola começa a ganhar fôlego até se tornar foco de interesse
hegemônico no século XIX.
Tendo nascido no ano de 1887 e iniciado os seus estudos em escola por volta dos
seis, sete anos de idade, os primeiros anos de escola foram vivenciados por Amado na
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escola de Sá Limpa. Personagem que entra nas memórias do autor como um dos seres
fantásticos que povoavam sua imaginação infantil, “como uma das visagens que o
crepusculavam nos olhos na primeira sonolência noturna” (AMADO, 1954 p. 85).
Sá Limpa era a professora particular e se diferenciava, segundo Amado, de Maria
Cândida, professora pública, magra, sempre de enxaqueca com rubores súbitos, moça
velha de peito murcho. Sá limpa era diferente, era professora ilustrada e puxava pelos
meninos (AMADO, 1954 p. 80).
Mesmo sendo professora ilustrada e particular, Amado destaca em suas

memórias que a escola de Sá Limpa situava-se na rua principal, onde corria um rego por

onde passava a enxurrada da cachoeira. Amado relata com detalhes a insalubridade que

cercava a escola. A porta da escola sobre dois batentes dava logo para a lama, na qual os

meninos se deliciavam metendo os pés. Poucos eram os que usavam sapatos, a maioria

andava de tamanco ou descalços. Com os pés enlameados, entravam na escola, trazendo

consigo os excrementos e com eles todas as formas e modalidades de doenças. A

disenteria e a ameba por ali se misturavam. Outros meninos iam para a escola com

sezões, tinham ataques durante as aulas. “Batiam os dentes, começavam a tremer”. A

professora Sá Limpa os cobria com um saco velho por detrás de uma porta. No fim da

aula, êles voltavam, suando e com um ar de quem sai da escuridão, piscando os olhos.

Iam pela rua trocando as pernas” (AMADO, 1954, p. 91).

A palmatória ainda agredia as mãos dos moleques que não decoravam a tabuada

e em alguns o líquido chegava a escorrer pelas pernas (AMADO, 1954 p. 85-88). Como

se percebe, a escola onde Amado começou seus estudos não correspondia aos padrões

modernos de escolaridade. Para termos idéia das condições escolares vigentes no

Sergipe na primeira década do século XX, basta destacar que, nas vésperas da

instauração da República, o presidente da então província Dr. Francisco Ildefonso

Ribeiro de Menezes denunciava as condições de funcionamento das escolas públicas,

informando suas precárias condições de existência, destacando a falta de espaço e luz,

os olhos nus das crianças que sentavam em tábuas ao rés do chão, onde não havia nem
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mesa para os professores, nem tampouco livros para os alunos estudarem. Entre os anos

de 1889 e 1910, quatorze atos tentaram organizar a instrução primária no estado. Estes

atos constatavam as precárias condições que circundavam as práticas de escolaridade no

Sergipe, fortemente denunciadas pelos presidentes que governaram o estado

(OLIVEIRA, 2004, p. 75 -79). Pelos relatos de Amado, podemos inferir que mesmo

sendo a escola de Sá Limpa particular, as condições de escolaridade daquele espaço de

saber pareciam não se diferenciar tanto das demais escolas públicas do estado do

Sergipe.

As condições de escolarização daquele autor parece se assemelhar em muito


com as vivenciadas por José Lins do Rego na cidade de Parahyba do norte, como bem
analisou Ana Maria Galvão. A autora ao reconstruir as práticas cotidianas da escola
primária, entre os anos de 1890 e 1920, na Paraíba, constata o quão diferente eram as
práticas escolares em cidades do norte se comparadas a outras cidades como Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, onde o processo de higienização de corpos e espaços
começara a atuar na disciplinarização das cidades e produção de corpos dóceis
necessários à configuração da cidade moderna, bem como do Estado-Nação tão
almejado com a implantação da República (GALVÃO, 1998, p. 117- 140).
Em meio à precariedade das condições de escolarização que Amado vivia
desfilam tipos na narrativa daquele autor que demarcam o outro na escola, personagens
para os quais o autor cartografa um lugar de distinção perante os colegas. Figuram nas
memórias da Escola de Sá Limpa personagens como os caipirinhas, os pixains, os cabos
verdes, os sararás, uns italianos, outros banguelas, zarolhos, tártaros, perebentos. Havia
também meninos com umbigos grandes, tufudos, empinados, pendentes como quiabos
no meio da barriga e um cabrocha magrinho de fala fina. Meninos que comiam caroços
de jaca e bunda de tanajura assada, além de cacos de telha nova, dos quais o autor só
lembra suas panças e faces tristes (AMADO, 1954, p. 90-91).
Todos esses personagens se distinguiam de Amado em sua narrativa. Afinal ele

era filho do coronel Melk, dono da loja mais famosa da cidade, chefe político, homem

que trouxe o teatro para Itaporanga. Amado já aqui constrói sua identidade enquanto
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alguém que em muito se distinguia de seus colegas de escola. Talvez por isso,

observamos a quase ausência de narrativa acerca de sua própria passagem pela Escola

de Sá Limpa. O que fica são as imagens impactantes dos outros. É como se Amado não

fizesse parte daquele mundo, por isso a escrita de suas práticas escolares relaciona-se

aos diversos outros que dão dizibilidade e visibilidade para que o autor se construa

como aquele que era diferente de todos. A narrativa de Amado obedece a um desejo do

autor de se construir como um corpo que, desde criança, estava predestinado ao saber.

Um corpo higienizado e disciplinado, necessário a sua gestão enquanto intelectual. Ao

narrar sua experiência na escola, o protagonista converte-se em espectador daquilo que

lhe causa estranheza. Ele até tinha vontade de provar o gosto da carne de tanajura assada

que muitos dos outros meninos comiam, mas tinha medo (AMADO, 1954, p. 91).

Aqui, já começamos a perceber também uma certa particularidade na escrita de


Amado quando o assunto são suas experiências escolares na infância: toda uma
narrativa preocupada com a construção não só de um corpo educado, mas também de
um corpo disciplinado e higienizado que se distinguia dos demais. Amado participa da
construção de si, moldando-se ao tipo do

indivíduo contido, polido, ‘bem educado’, cuja norma ideal é o comportamento


reprimido e disciplinado do gentleman, do peti-bougeous europeu. Mas, às custas
de uma crescente tendência a autoculpabilização, que se tornou a marca
registrada do sujeito ‘civilizado’ e aburguesado. Do sujeito forçado a exercer o
autocontrole sobre si mesmo. Do sujeito ensinado a reagir com estranha
intolerância às menores falhas morais – reais ou imaginárias, suas ou de seus
pares – falhas estas, responsáveis, em muitíssimas ocasiões, pelo sofrimento
psíquico que ele experimentava (COSTA, 1999, p. 14).

Neste sentido, podemos dizer que o corpo de Amado não atenta apenas para si,

mas para o espaço e as demais pessoas que convivem com ele. Segundo Costa (1999), o

ideal do indivíduo polido foi tema perseguido pela elite política e letrada, não só na

primeira República, como também se estendeu para meados do século XX. No intuito

de construir sua imagem como intelectual saudável, Amado persegue e destaca, desde

sua narrativa de infância, os outros dos quais ele se diferenciava, aqueles corpos sujos e
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ignorantes do qual ele membro da elite de Itaporanga se distinguia. E isto não nos causa

tanto estranhamento se levarmos em conta o fato de que quando Amado escreve suas

memórias ele já é um homem maduro, político e letrado que atuou na construção dos

ideais de um país moderno que para ser moderno tinha que ser educado e higienizado,

daí também o interesse em construir, através de seus escritos memorialísticos, uma

narrativa que o edifique como indivíduo, que desde a infância, estava predestinado a ser

um espírito moderno, se levarmos em conta que ser um homem moderno, desde a

primeira República, significa ser um corpo saudável não só fisicamente como também

intelectualmente.

2.2- Rupturas e desfragmentações: o internato como descoberta do mundo adulto

Terminada a primeira fase de estudos em Itaporanga, Amado transfere-se para


Aracaju para estudar no Colégio interno do professor Oliveira. Logo nas férias que
passa no sobrado de seu padrinho a quem se refere como “L”, o autor entra em contato
com um mundo que parece desterritorializar a identidade do Gilberto Amado, filho de
seu Melk, dono da maior loja de Itaporanga e chefe político da situação. O contato com
os filhos de seu padrinho fez com que Amado experienciasse o outro lado da moeda. É,
em Aracajú, que Amado se deu conta de sua gagueira, estigma que, aliás, segundo
Miceli (2001), acompanhou muitos intelectuais contemporâneos de Amado, tais como
Humberto de Campos, Lima Barreto e Lima Fontes. Em Aracaju, quem é esnobado é
Amado. Ele não tinha os brinquedos que os filhos de seu padrinho tinham, nem
tampouco lera os livros que os demais meninos haviam lido. Segundo o autor, a
inferioridade foi a base do afeto que os demais meninos tinham por ele. “Quanto mais
abaixo deles eu me mostrava, mais se aproximavam, mais simpatizavam comigo”
(AMADO, 19, p. 222).
Desterritorializado de sua terra, Amado também se encontra estranho a si

mesmo. A entrada para o colégio interno institui outro momento de ruptura na vida

daquele autor. Em Itaporanga, Amado diz ser parte “de um mundo, de um conjunto, pai

e mãe, rio e mar, meninos, cavalos; era parcela de uma soma... Já em Aracaju
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começara a desintegração, de um universo ecumênico e total, fragmentara-se-me o

espaço vital em blocos de estrutura diferente” (AMADO, 1954, p. 25). Neste momento

de ida para o colégio em Aracaju, Amado parece ter a infância castrada e sua identidade

esfacelada por um mundo de prisão que o fez se reconhecer diferente de tudo e até

mesmo diferente do que ele imaginava.

O colégio ia-me por face a face com uma realidade diferente. Aí não se tratava
de fruta fundindo-se no paladar; mas de caroço de mastigação difícil exigindo
dente duro. Embalde procurar iludir a memória chamando-a a deter-se nalguma
refração agradável. Tudo, ao contrário, se embacia numa opacidade fechada.
Colégio interno em Aracaju, Colégio Oliveira, único aliás do Estado, tinha de
internato, no sentido normal do termo, apenas o nome. Era uma casa chata de
muitas janelas, junto do quartel, numa esquina no fim da rua da Frente, no
caminho da Fundação. Na calçada, debaixo de uma enorme barriguda e um
tamarindeiro que ensombrava, alunos externos e internos fervilhavam soltos com
as môscas e mosquitos, em tôrno dos vendedores de frutas e dos tabuleiros de
doces. A recordação não se associa a lembrança de estudo, meninos de livros nas
mãos, cabeças pendidas sôbre em mesa de aula (AMADO, 1954, p. 232-233).

O colégio aparece na narrativa de Amado apenas como experiência que o tornara


homem, mas que em quase nada acrescentara a sua formação intelectual, uma vez que a
própria direção e administração do colégio sob os cuidados do professor Oliveira
parecia ser um fiasco. De acordo com o autor, o diretor era um fraco que chorava sem
motivos e além de tudo era mandado pela esposa e filhas (AMADO, 1954, p. 233), ou
seja, nem mesmo o diretor Oliveira, para Amado, correspondia ao tipo de homem forte
e másculo ideal para a direção de um colégio que se destinara a formar homens.
Com o intuito de demarcar seu lugar como diferente de todos, um corpo
intelectualizado que para se constituir enquanto tal não deveu nada de sua formação às
instituições pelas quais passou, e sim ao seu esforço próprio, à sua capacidade de
autocontrole, Amado, em sua narrativa, parece não dever nada de sua formação
intelectual ao Colégio em Aracaju e sim às aulas particulares que tomara. “Latim
ninguém estudava, nem livros havia. Eu tomava lições particulares como Alfredo
Montes, de inglês, e com Teixeira Faria de matemáticas. Entrei com essa condição”
(AMADO, 1954, p. 223).
O mundo do Colégio figura, na narrativa de Amado, como lugar de experiência
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de vida, onde o menino se tornara homem por entrar em contato como o lado perverso

das pessoas e até mesmo com o seu e não como um local de aprendizado. Dessa forma,

o autor começa a delinear sua imagem enquanto autodidata. Desde criança, o autor

parece não dever nada de sua formação às instituições que freqüentava e sim ao

empenho e esforço próprio. Acerca de sua formação na faculdade de Direito do Recife,

o autor enfatiza:
Os estudantes brasileiros que querem aprender (não sei se hoje é melhor) são
verdadeiros heróis do autodidatismo. As definições sumárias, legadas a escola e
a nomes de autores não são cavadas a fundo pelo professor ao lado do aluno, em
seminários ou em sabatinas, na apuração do sentido dos textos e na verificação
da sua extensão e alcance dentro dos sistemas, teorias e doutrinas e entre estas e
aquêles (sic). Na ausência de métodos universitários de métodos de estudo,
serviu-me, além do desejo sincero de aprender o gôsto, que herdei não sei de que
antepassado, de não dissimular comigo mesmo, de não me contentar em pensar
que sei sem estar certo do que sei até onde seja possível (AMADO, 1958, p. 33).

A vivência no colégio, naquele mundo cruel, cheio de castigos e armações faz

com que as lembranças de Amado remetam a uma infância castrada que fez com que ele

debutasse de forma dolorida no mundo adulto. Uma experiência crucial, nesse processo,

foi quando Gilberto, impelido pelo chefe dos meninos, diz ter sido obrigado a dar uma

sova em um de seus companheiros, cumprindo com sua função de sentinela do quarto,

largando a corda em Conradinho que quis passar sem permissão. “O menino abaixou-se,

as cordas apanharam-no no rosto de maneira infeliz, o sangue jorrou” (AMADO,

1954, p. 232). O Colégio não tanto pelo nível de instrução que passou a Amado, mas

sim por colocar nosso autor com a face cruel da vida teria debutado o menino Gilberto

no mundo adulto.

Segundo Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura (1999), a identidade da criança

e do adolescente é construída a partir de elementos que incorporam o idílico e a relação

com o sagrado, a partir de características como temeridade, imprudência, fraqueza e

fragilidade. Foi com um ato cruel, segundo Amado influenciado por seu colega, que o

menino Gilberto entra no mundo adulto. O colégio interno de Aracaju entra para as

memórias de Amado como um agente de defloração de sua infância, porque além de


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simbolizar o distanciamento daquele menino de um mundo que lhe pertencia como era

aquele mundo de Itaporanga, também põe Amado em contato com a face má das

pessoas e a sua própria. O colégio rompe, portanto, com o mundo idílico da infância em

Itaporanga, aquele mundo de meninos tártaros, zarolhos, com umbigos pendentes no

meio do bucho que metiam o pé na lama. O colégio interno que, segundo Galvão, era

tido como casa de correção sanatório, prisão que servia para amansar, endireitar,

consertar os alunos, põe Amado, como no episódio do assassinato de seu colega de

letras, frente à face selvagem daquele autor, despontando-o para o seu reconhecimento

enquanto adulto.

A entrada de Amado no mundo adulto não obedece a uma linha evolutiva que
presuma uma linearidade temporal. Não está, portanto, na idade cronológica daquele
homem, “mas nas subjetividades constituídas, nas relações, nas lembranças, nas
narrativas, nos modos de ser pessoa que aprendemos como possíveis.” (AQUINO;
REGO; OLIVEIRA, 2006, p. 269-286). Apesar de seu conjunto memorialístico ter o
objetivo de dar um sentido em sua vida, são eleitos pelo autor acontecimentos que
demarcam pontos de viragem em suas experiências. Neste caso, a saída do colégio
devido a um ato de crueldade para com seu colega. Amado vivencia um corte na sua
vida. Corte que o desponta para um novo mundo, para a vivência e construção de outras
imagens de si.

REFERÊNCIAS

AMADO, Gilberto. História da minha infância. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.

________. Minha Formação no Recife. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.

AQUINO, Júlio Gropa, OLIVEIRA, Marta Kohl de; REGO, Teresa Cristina. Narrativas
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MENORES, INGÊNUOS: A TUTELA COMO TENTATIVA DE ORDEM


SOCIAL (1888-1895).
Gabriel Navarro de Barros.
Mestrando em História (PPGH-UFPE).
gabrielnavarroufpe@hotmail.com

Os filhos e filhas dos “treze de maio” deveriam contar com a assistência do


Estado e da sociedade. O temor diante dos infantes encarados como sem arrimo
apontava para o estigma da desordem social e a preocupação com o futuro da nação
desde o início do século XIX. A abolição da escravidão, no entanto, operou para
intensificar o controle do Estado frente às “camadas perigosas” da população,
enfaticamente aquelas provindas das senzalasi.
A província e o estado de Pernambuco precisavam intervir, em nome da ordem e
do progresso. Dispositivos de poder foram acionados com a finalidade de afastar os
ingênuos da inatividade das ruas e do poder de suas mães libertas, compreendidas como
incapazes de fornecer amparo material e moral a seus rebentos. Esses infantes poderiam
simbolizar a continuidade da lassidão e da imoralidade típicas do regime escravista,
uma vez que haviam sido geradas sob um sistema de produção tido como bárbaro. Os
filhos dos libertos eram as proles geradas nos últimos tempos das chibatadas e, por tal
razão, poderiam ser percebidos como herdeiros dos maus hábitos escravistas.
A instituição dos Juízos de Órfãos atuou como uma importante engrenagem neste
novo tempo, se responsabilizando em dar destinos a essas crianças. O presente trabalho
busca investigar como se configurou o dispositivo jurídico da tutela, entre 1888 e 1895,
no que toca a assistência a crianças egressas da escravidão, em Pernambuco. Os juízes
de órfãos atuavam no direcionamento desses infantes à proteção de tutores. Esses
últimos deveriam educar, sustentar e vestir meninos e meninas que decidissem ter sob
sua proteçãoii.
Reconhecemos que em nosso recorte não incide uma transformação na estrutura
dos dispositivos de poder que regulavam a assistência à infância, todavia, ocorre uma
aguda aproximação do campo de ação dos Juízos de Órfãos junto a famílias pobres,
principalmente recém-saídas do cativeiro. Portanto, é salutar inferir que acontece, no
pós-abolição, a eclosão de estratégias dispostas a “controlar” indivíduos egressos das
senzalas. Esses, eram vistos como perigosos em um tempo que assistia a positivação do
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ideal de trabalho e a estruturação de aparelhos coercitivos que incidiam sobre a


população negra, representada como “ociosa” e propensa à “vagabundagem”.
Através das ações de tutela, os magistrados destinavam os ingênuos à companhia
de tutores que deveriam ser responsáveis pelo sustento e educação desses menores.
Atentamos que os juízes operaram como importantes dispositivos do Estado.
Juntamente ao poder provincial, governamental, à polícia e à imprensa, comunicavam o
quadro que surgia, compondo assim espaços de discussões que apresentassem como
objetivo solucionar a seguinte questão: o que fazer com as filhas e os filhos dos
libertos?
O Diário de Pernambuco de 18 de maio de 1888 nos permite perceber a
expectativa criada diante dessa conjuntura, arguta em prevenir um possível
desordenamento na sociedade por conta da libertação e inatividade dos ainda
reconhecidos sob o termo ingênuos. O recorte conta com o discurso do deputado
fluminense Andrade Figueira, que se posicionava impetuosamente a favor da
escravidão, reclamando que seus pares voltassem à razão e não deixassem ser levados
pela euforia do povo diante da abolição. O político insistia em expor o receio que o
ocupava diante do desencadeamento da nação após a Lei 3.353:

Pergunta (o sr. Andrade Figueira) se o poder público está apto para


decretar a libertação geral, sem conhecer, a matrícula ultimamente
feita e se póde medir o alcance dessa libertação em relação á
segurança e á ordem publica. Entendem que pelo menos existem
600,000 escravos de 17 a 50 annos, representando a força activa de
trabalho; sendo assim, tirar esse contingente de força disciplinada ao
trabalho, não affectará a organisação do mesmo trabalho, não
affectará as finanças do Estado e por consequencia a todas as classes
sociaes? Referindo-se aos ingenuos, em numero superior a 600,000,
que até agora concorriam para a produção, mostra que vão sahir das
fazendas, sem que o governo tenha estabelecimento montado para
onde elles vão trabalhar e educar-se.iii

É conveniente argumentar que as palavras do político em questão não estavam


imersas em caução apenas no que toca possíveis problemas relacionados à mão de obra
que pudessem ser gerados com o fim do regime escravista. Se por um lado, Andrade
Figueira reconhecia que a abolição poderia significar a perda de grande força de
trabalho e, por conseguinte, a desestruturação das finanças da nação e um significativo
impacto nas relações sociais, por outro, apontava elevada preocupação com o destino
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dos filhos dos libertos. Contava o Estado com estabelecimentos próprios para amparar
aos ingênuos, educando-os e dirigindo-os a atividades úteis a si próprios e à sociedade?
Observamos que os estabelecimentos que constituíam a rede de assistência
caritativo-filantrópica à infância em Pernambuco eram incapazes de cumprir com o
objetivo central que as norteavam: sustentar e educar os infantes que ali adentravam,
fazendo-os sujeitos úteis a si e ao Estado. Seja no Colégio dos Órfãos, na Colônia
Orfanológica Isabel, na Escola de Aprendizes Marinheiros e mesmo no trabalho junto às
fábricas, podemos perceber as frequentes reclamações diante do insatisfatório estudo
que meninos e meninas recebiamiv. Inaptos ao trabalho, incapazes de se tornar sujeitos
úteis a si e à sociedade, em sua maioria, acabavam se transformando em novos
problemas sociais quando atingissem a idade adulta.
Além disso, pontuamos que nem sempre a própria manutenção desses meninos e
meninas foi efetivada com diligência. Não era raro que crianças padecessem por conta
de ausência de medicamentos, higiene e alimentação de má qualidade no interior desses
edifícios.
O mecanismo da tutela também não tinha a melhor reputação como um
dispositivo eficaz no combate à infância desvalida. Assistimos a inúmeras críticas
diante dos maus tratos que garotas e garotos sofriam de seus tutores, além da exploração
do trabalho e da ausência de educação, que apesar de imposta pelos juízes, nem sempre
se fez presente.
Andrade Figueira não estava errado ao suspeitar das capacidades da nação em
abrigar esse demasiado número de ingênuos que se faziam “livres” em 13 de Maio de
1888. A soma de seiscentas mil crianças, filhas de libertos, proposta por Figueira, pode
até parecer exorbitante, mas não era. Fraga (2006)v explica que a província da Bahia,
uma das que mais contava com a força de trabalho forçada no Nordeste, na data da
abolição, contava com oitenta mil escravizados, incluindo adultos e crianças. O Jornal
do Recife de 7 de junho de 1888 apresentava dados mais específicos sobre o número
desses infantes na província de Pernambuco. No quadro “Estatísticas de Filhos Livres
de Mulheres Escravas”, podia-se analisar:

Tendo o Exm. Sr. Ministro da Agricultura, Commercio e Obras


Publicas em aviso de 4 de Outubro do anno passado, exigido
informações do numero de filhos livres de mulheres escravas, com
relação á data em que informassem as estações fiscaes encarregadas
de matrícula, foram taes informações solicitadas por intermedio da
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Thesouraria da Fazenda. Dos dados colhidos consta que matricularam-


se em quasi todos os municipios 36.807 ingenuos, falleceram 8.545,
acompanharam as mães alforriadas 367, entraram nos municipios
1.342, sahiram 2.175, e existiam nas datas em que informou cada
collector 27.062 ingenuos vi

A matrícula de aproximadamente trinta e sete mil ingênuos apenas na província


pernambucana, que contava com uma pequena população cativa (se comparada à rija
estrutura escravista do sudeste) reforça o número apresentado por Figueira.
É possível notar também que o polítoco, ao conjecturar acerca da futura situação
dos ingênuos, dispunha de um pensamento que buscava antecipar o futuro, tentando
evitar assim que males sociais viessem a ocorrer ou assumir maiores proporções. Esse
modo de analisar a sociedade não foge a uma das grandes preocupações políticas de boa
parte do século XIX: a prevenção socialvii. Preocupava-se com o futuro e também com o
presente: a libertação não comprometeria a segurança e a ordem pública?
A exorbitante quantidade de filhos de libertos pontuada sugere o contraste entre a
necessidade de grande demanda de estabelecimentos educacionais e o parco número de
instituições apropriadas a fazer desses garotos e dessas garotas sujeitos produtivos,
capazes de sustentar a si e auxiliar no desenvolvimento da sociedade. Se essas crianças
não fossem devidamente encaminhadas, poderiam representar incríveis problemas
sociais futuros, pois cresceriam e poderiam se tornar delinquentes, prostitutas, vadios ou
outras classificações que afastassem a nação do sonho de uma civilização modernizada.
O panorama de medo e a incapacidade de arcar efetivamente com a assistência de
quase trinta mil ingênuos, fez com que os Juízes de Órfãos e o poder provincial vissem
no encaminhamento às tutelas e tutorias uma alternativa rápida para amenizar o
agravamento de profundas desordens. A leitura de documentos referentes a essas
instituições nos viabilizou atentar os caminhos que se revelavam diante das atitudes que
deveriam ser cometidas pelos poderes públicos quanto à problemática das crianças
negras libertas. É possível notar isso no texto escrito por Marinho Falcão, primeiro
suplente do Juízo Municipal de uma comarca infelizmente desconhecida, devido à
conservação do documento. Em vinte e cinco de agosto de 1888, escrevia sobre a
atuação do juiz municipal e de órfãos Mathias Pereira da Costa, expondo uma dúvida
consistente a ser encaminhada ao presidente da província:
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Recommenda-se formalmente o Dr. JuisMunnicipal do Termo, (...)


Mathias Pereira da Costa, ampliar os meios de tutella em favor dos ex-
senhores de escravos, como verá V. Exª do despacho da petição junta,
que tenho a honra de submetter a consideração de V.Exª, apesar nesse
sentido dessa Presidencia em circular publicada na parte official do
Diario de Pernambuco, consulta-se V.Exª se na qualidade de 1º
supplente daquelle juiso, em exercício pleno, posso conceder aos ditos
ex-senhores o favor da lei, mandando que se tutelle os menores filhos
dos recentemente libertos?viii

Antes de analisarmos o recorte, é salutar apresentar um pequeno trecho da circular


citada, publicada na parte oficial do Diário do Pernambuco, na sessão Ministério da
Fazenda, pois a mesma apresenta uma profunda relação com a fonte acima:

“Em 13 do corrente dirigio-se aos presidentes da provincia o seguinte


aviso:
(...) a Princeza Imperial Regente, tendo havido por bem sanccionar,
em nome do Imperador, a lei n.3,353, datada de hoje, pela qual foi
abolida a escravidão no imperio, desde esta data, conta que V.Exc.,
logo que a referida lei tenha chegado á sua noticia, haja expedido as
máis urgentes ordens ás autoridades locaes, com divulgação por meio
das folhas publicas, afim de que se lhe dê prompta e immediata
execução.
<<Como V.Exc. sabe, abolida a escravidão, sem nenhuma outra
clausula, tem aqui inteira applicação e vigor o decreto ao art. 3º § 21, e
no art. 4º§4 da lei n. 3.270 de 28 de Setembro de 1885, relativamente
aos serviços prestados como condição de liberdade, e aos que foram
estatuidos na lei n. 2,049 de 28 de Setembro de 1871 acerca dos filhos
livres das mulher escrava”ix

Através da análise dos documentos é possível compreender que o


encaminhamento de filhos e filhas dos ex-escravizados à tutoria de ex-senhores foi uma
prática incentivada pelo poder provincial. O juiz Mathias Pereira da Costa agia com o
intuito de expandir os meios de tutela para atender os rebentos dos ex-cativos, não
deixando, todavia, de apresentar caução frente à legalidade da atuação de seu Juízo.
Tanto que o primeiro suplente da referida instituição questiona o presidente da província
se poderia efetivamente agir de acordo com a lei, mesmo sob a alegação de estar a par
dos conselhos do poder regencial.
Ora, se observamos o que está escrito na circular encontrada na parte oficial do
Diário de Pernambuco, podemos pontuar que as recomendações da princesa Izabel
faziam-se baseadas no cumprimento da Lei dos Sexagenários (1885) e na Lei do Ventre
Livre (1871). A primeira, em seu terceiro artigo, parágrafo vinte e um, apontava que a
obrigação de prestação de serviços de escravizados não deveria vigorar por tempo maior
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do que aquele em que a escravidão fosse considerada extinta. No artigo quarto,


parágrafo quatro, a mesma lei advertia que o direito dos senhores à prestação dos
serviços dos ingênuos cessaria também com a extinção do regime escravista. Através
desta ótica, parece clara a ilegalidade da utilização da mão de obra ingênua.
Acontece que as informações contidas no aviso do Diário de Pernambuco também
atribuíam aplicação à Lei de 1871 com a abolição da escravatura. Como afirma Papali
(2003)x, o Ventre Livre marcou o filho da mulher escravizada, mantendo “fórmulas que
remetiam ao costume e à manutenção de vínculos tutelares entre senhores e ingênuos”.
Isso acabou por permitir, no pós-abolição, o aparecimento de brechas legais utilizadas
pelos ex-senhores na tentativa de manter sob sua tutela os filhos ingênuos de suas
escravas.
A Lei dos Sexagenários, apontada pelo poder regencial, proibia a prestação de
serviço dos ingênuos com a abolição da escravidão. Isso, todavia, não impedia que o
direito costumeiro acabasse por impulsionar o direcionamento de ingênuos à tutoria de
ex-senhores, muito menos que tais práticas não encontrassem respaldos legais para tal.
Como vimos, a princesa Izabel deixava clara a aplicabilidade da Lei Rio Branco na
abolição. Se a interdição da utilização da mão de obra dos filhos dos ex-escravizados
significou o arrefecimento de tal lei, isso não significou o total esvaziamento de seu
sentido em 1888, principalmente no que diz respeito ao encaminhamento dos filhos dos
libertos aos “cuidados” dos antigos senhores. Estes últimos conseguiam legitimar
legalmente a tutela dessas crianças através da legislação orfanológica da nação, cujo
alicerce se encontrava nas Ordenações Filipinas.
O ingênuo, juridicamente transforma-se em “órfão” ou “menor”, passando a ser
tratado legalmente como qualquer criança livre. Essa modificação, contudo, não
implicou no desuso brusco do termo. Em nossa documentação, percebemos que filhos
de libertos continuam a ser assim denominados até pelo menos meados de 1890. Como
nos explicam CUNHA e GOMES (2007)xi, os significados da liberdade transformaram
amplamente as práticas sociais e políticas, fazendo com que novas classificações sociais
e culturais viessem à tona em documentos, processos, registros estatísticos, cartas e
relatórios, para se referir a não-cidadãos que até então eram compreendidos como
escravos, ingênuos, libertos etc.
Neste sentido, vários ajustes no campo da linguagem jurídica foram necessários
para significar debates em torno dos direitos das pessoas de cor escura, marcadas
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também por uma “sutil e poderosa memória social fortemente enraizada no imaginário
patriarcal e escravista” (CUNHA e GOMES, 2007, p.10). Percebe-se que a modificação
dos termos, nesse contexto, operou para, de um lado, anunciar os novos direitos àqueles
que juridicamente não podiam mais ser administrados por leis cuja pauta versasse sobre
escravos e ingênuos, e, por outro, para frisar que, mesmo livres, esses indivíduos não
deveriam ser compreendidos como quaisquer outros cidadãos de bem.
Os ingênuos que aparecem na documentação do pós-abolição não são os mesmos
que aqueles encontrados entre 1871 e o Treze de Maio. As contribuições de Koselleckxii
no que tocam a transformação da semântica dos conceitos são férteis para nos fazer
compreender tal alteração. O fato de uma palavra não mudar de grafia não representa a
cristalização de um conjunto de interpretações que ela aponte. Os termos tem sua
própria história, variando de acordo com o embate de forças nos jogos de poder que se
estabelecem.
Se os ingênuos da Lei do Ventre Livrexiii significavam a certeza que a escravidão
iria se extinguir, apresentando a denominação um efeito de positiva emancipação, os
filhos dos “treze de maio” assim denominados (e que paulatinamente iam se
transformando em “menores”) carregavam a certeza que a abolição não significaria
acesso à “liberdade” incondicional e a ruptura a um pretérito marcado de violências. Ao
ingênuo do pós-abolição fincava-se a herança da senzala e o perigo social que seu
corpo, vestido da “imoralidade”, insinuava. Não apenas isso, o termo significava
também o apontamento da liberdade dessa criança, não podendo ela ser mais tratada sob
uma legislação escravista.
A circular emitida pelo presidente da província em 25 de junho de 1888, disposta
a anunciar o modo como deveriam ser tratados os filhos dos “treze de maio” a todos os
Juízos Municipais e de Órfãos de Pernambuco nos auxilia a perceber como essa criança,
apesar de ainda percebida como um legado do cativeiro, deveria ser tratada
juridicamente como qualquer outro infante:

Chamo a attenção de V: para o modo como são tratados os ingenuos, que, em


consequencia da Lei de 13 de Maio último ficaram sujeitos a legislação
commum a todos os menores e devem ser dados a soldadas, apenas contem
idade sufficiente. No meu juizo, isto deve ser feito logo que completem doze
annos, podendo ser antes, si a V. quem cabe resolver a respeito parecer
conveniente e possivel; cumpre, porem, attender que muitos menores não
supportão, antes dessa idade, serviços domesticos ou de campo: como que é
justo não exigir salario quando se deve impor tratamento que reclama alguma
ligeira compensação. Alem disso cumpre exigir que aos menores se
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dêinstrucção primaria e até esse tempo, ao menos, deverão elles frequentar


escolas. Das soldadas devem ser creadascardenetas, sendo o recolhimento
effectuado de tres em tres meses; no que deve haver muita fiscalização,
porque , uma vez acumuladas as mensalidades, dificilmente serão recolhidas;
e sera de boa cautela sujeitar os contractantes a juro superior ao legal na falta
de recolhimento, sob pena de nullidade do contractoalem dos mais em que
incorreram. Aos collectores fiz recommendar que forneçam, em breve tempo,
relações de taes menores, fazendo menção das idades de cada um e das
pessoas que os tem ou devem ter em seu poder, a fim de que possa V.
providenciar com facilidade. Certo de que V. bêmcomprehende a importancia
de sua missão, escuso recommendar o maior cuidado na escolha dos
tomadores de menores a soldada. Parece que deverão ser preferidos os ex
senhores das mães que havião como adquirido um certo direito: mas é fácil
de avaliar a incoveniencia, perigo mesmo, em attendel-as sem muita cautela
ou exame. Não deixou de ter isso em consideração o Legislador, quando no §
4º do artigo 4º da lei nº 3270 de 28 de Setembro de 1885, determinou que
cessaria a condição de serviço de ingenuos, logo que fosse extincta a
escravidão.xiv

O presidente da província enfatizava que os meninos e as meninas cujos pais


haviam sido libertados com a Lei 3353 deveriam ser encarados juridicamente como
quaisquer outros menores. É útil rememorar que esta condição não implicava
necessariamente a compreensão de criança problema, mas a qualquer indivíduo menor
que 25 anos, não necessitando ser órfão ou pobre. Aqui os ingênuos são assemelhados a
qualquer outro jovem, de qualquer cor ou condição social, o que contribui para
compreendermos o distanciamento que a semântica do termo assumiu no pós-abolição.
As práticas, no entanto, não se distanciavam enfaticamente do que ocorria antes
do Treze de Maio. Era de bom tom que os ingênuos fossem encaminhados à soldada,
isto é, à tutoria juntamente com o pagamento de um soldo. O presidente da província
aconselha que tal direcionamento fosse feito apenas aos infantes que já atingissem ao
menos os doze anos de idade, pois antes disso, muitos poderiam não suportar o trabalho
doméstico ou no campo. Não é demasiado insistir que esse posicionamento legal acabou
por impulsionar um verdadeiro mercado de mão obra infantil e negra no pós-abolição.
A esses menores, a instrução primária deveria ser uma constante, pelo menos
durante o tempo em que ficassem sob a tutela de algum “bom cidadão”, devendo
mesmo frequentar a escola por todo esse período. Apesar das obrigações legais, não
encontramos nas ações de tutela qualquer documento que apontasse que isso era
cuprido.
É possível observar ainda a preocupação em erigir um sistema de saberes acerca
de cada infante. O Estado vinha se articulando em uma política de controle e
ordenamento social. Portanto, conhecer a sua população era uma prerrogativa que
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auxiliava a efetivação de estratégias capazes de gerir os habitantes da nação. Através de


uma lógica foucaultiana em que saber e poder estão plenamente articuladosxv, é possível
inferir que os ditames do poder provincial se justificavam em uma tentativa de conhecer
a sua população, bem como suas práticas e, principalmente, como fiscalizá-las. Aos
tutores dos jovens em questão a constituição de cadernetas que organizassem os
pagamentos dos soldos mostrava-se como uma obrigação, pois assim se poderia
sustentar uma vigilância diante do cumprimento dos deveres encaminhados aos
“protetores”. O recolhimento deveria ser efetivado de três em três meses, havendo a
anulação do contrato em caso de ausência de pagamento.
Além disso, os tutores deveriam redigir relações das crianças que tinham sob sua
“proteção”, apontando a idade de cada uma, quem era o responsável pelo seu amparo e
quem deveria ser, o que incluía os pais naturais do menor.
O presidente não deixou de exibir preocupação ao afirmar que ainda que os ex-
senhores aparecessem como os mais indicados para se tornarem os acolhedores desses
meninos e dessas meninas, isso deveria ser feito sob muita cautela. Tal temor se
justificava no receio que os antigos proprietários usufruíssem da mão de obra dessas
crianças, como se estas ainda estivessem sob o regime escravista. Enfatizando que isso
não deveria ocorrer, o presidente cita a Lei dos Sexagenários, afirmando que o
legislador que a formulou não deixou de apontar que cessada a escravidão extinguia-se
a prestação de serviços dos ingênuos.
O caso da órfã Maria, filha da liberta Laurinda, é bastante profícuo para
percebermos com os conselhos da presidência da província nem sempre eram
cumpridos. O escrivão Joaquim Roberto registrava no Juízo Municipal e de Órfãos do
termo de Bonito a petição do senhor Prisciliano Antunes Correia, que requeria a
assinatura da tutela da jovem negra:

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e


oitenta e oito, aos quatorze dias do mez de Junho do dito anno, nesta Villa de
Bonito, em meu cartório autoriza a petição de Prisciliano Antunes Correia, na
qual pede para assignar termo de tutela da menor Maria, filha natural da
liberta Laurinda, como adiante se vê, do que para constar faço este termo. xvi

O documento continua:

Prisciliano Antunes Correia, proprietario e morador no Engenho (...) d’este


Termo, vem perante V.Sª requerer a tutella da menor Maria de dez annos de
idade, mais ou menos, filha natural da liberta Laurinda obrigando-se o
suplicante a educal-a o melhor que poder.xvii
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É possível notar no referente caso algumas práticas que contrariavam as medidas


propostas pelo poder provincial. Ora, por mais que o presidente da província afirmasse
que poderia ser um perigo o encaminhamento de filhos de libertos a antigos
proprietários, vê-se que tal medida foi fomentada pelos juízes, junto aos ex-senhores e
também à população liberta. Prisciliano era proprietário e morador de um engenho no
termo de Bonito, interessado em utilizar da mão de obra de uma menor de dez anos, o
que contrariava a lógica da circular emitida para os juízes pelo palácio provincial, que
sugeria a idade mínima de doze anos para o trabalho doméstico ou no campo. O
encerramento do caso aponta que Maria foi tutelada pelo seu futuro “protetor”, devendo
contudo, receber um soldo equivalente a doze mil réis anuais.
A cautela, no entanto, se faz necessária frente à compreensão que possa colocar o
Estado e os juízes como gerenciadores de um regime inteiramente desprovido do
interesse de proporcionar o mínimo bem estar a esses meninos e essas meninas.
Inferimos que houve disposição, mesmo que ínfima, tanto do poder provincial quanto
dos magistrados responsáveis pelos encaminhamentos às tutelas, em assegurar a
segurança e educação dessas crianças. Alertamos que isso não significa concluir a
eficácia dos dispositivos de tutela e soldada no que se refere ao bom tratamento e a
educação dos infantes neles envolvidos. O que vale aqui é salientar que mesmo dentro
de uma parca fiscalização, a preocupação acerca das condições materiais e morais que
poderia prover um aspirante a tutor se fez presente, mesmo que timidamente.
O requerimento do senhor Julio Samuel da Cunha, datado de treze de dezembro
1892, contribui para compreendermos isso. Morador da Boa Vista, em Recife,
apresentava o interesse em tutelar a jovem Ignez, filha natural da ex-escrava Justiça,
com o intuito de ampará-la, uma vez que sua mãe não contava com condições de manter
e educar a menor. Vejamos a petição

Julio Manuel da Cunha, solteiro, morador na Bôa – Vista, querendo assignar


a tutella da menor Ignez filha de Justiça, visto não estar esta nas condições de
manter e educar aquela filha, pede a V.Sª. que se digne autorisar a tutella da
referida menor com as obrigações legaes. xviii

Podemos perceber que a justificativa utilizada pelo senhor Júlio Manuel da Cunha
fundamentava-se unicamente no argumento que Justiça, liberta e mãe da garota, não
apresentava condições de manter a menor, tampouco educá-la. A questão do pátrio
poderxix e da pobreza de mães solteiras foram elementos que impulsionaram a
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necessidade de se tutelar uma criança. De tal forma, podia ser compreendida como órfã,
devido o falecimento do pai, e ainda necessitada, por não contar a progenitora com
condições materiais para o seu sustento e educação. No pós-abolição, é possível pontuar
que essas condições criaram subsídios para retirar a tutela de mães libertas, por serem
essas frequentemente compreendidas como mulheres pobres e de índole perigosa e
imoral, o que “justificava” a inaptidão de criar os próprios filhos. Como nos lembra
Papali (2003), a pobreza material das libertas contribuiu legalmente para a concessão de
tutorias após o Treze de Maio, sendo muitas ex-escravizadas encaradas como
“miseráveis” e, portanto, “incapazes” em amparar seus rebentos. Ora, foi exatamente
esse o argumento utilizado na petição. Bastava apontar que a menor era filha de uma ex-
cativa que logo ficava implícita a necessidade de tutoria.
O que marca a peculiaridade do documento, no entanto, é que o pedido de Júlio
Manuel da Cunha é indeferido pelo juiz de órfãos Eusébio Brandão. As palavras do
escrivão do Juízo Municipal e de Órfãos de Bonito apontam que a decisão do
magistrado se sustentava em dois argumentos: que a menina não era órfã e que o
suplicante não queria assinar a tutela da menor com o pagamento de uma soldada. Mais
intrigante ainda é o fato que em todo o processo não se fazer referência alguma à
paternidade da menor, o que deixa dúbio se ela efetivamente apresentava pai conhecido
e vivo, ou não. Neste sentido, mostra-se salutar relembrar que ilegitimidade da criança
negra, principalmente no que dizia respeito à privação de referências paternas
biológicas, era bastante recorrente. Em Salvador, por exemplo, após a Lei do Ventre
Livre, a taxa de ilegitimidade da população livre alcançava cerca de 62%, sendo esse
número extrapolado quando pensado acerca da situação dos escravizados e ingênuos
(MATTOSO, 1991).xx
De tal modo, a ausência de menção acerca da paternidade de Ignez, tanto na
petição de Júlio Manuel da Cunha quanto no indeferimento de Eusébio Brandão,
contribui para pensarmos na possibilidade que a mesma efetivamente não contava com
os auxílios de seu progenitor. Difícil pensar que em todo o processo referente à tutela da
menina deixa-se de se pontuar a existência do pai da menor quando este viesse a tecer
com ela alguma relação, uma vez que essa informação era decisiva no decorrer da
aprovação ou do indeferimento da petição de tutoria. O que justificaria, então, o
argumento do juiz que apontava que a garota não era órfã?
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A questão da classificação de um menor como órfão devido à ausência de


referência paterna era dúbia no que diz respeito à jurisdição dos processos de tutela. A
atuação dos juízes de órfãos se pautava mais no quesito das condições materiais das
mães solteiras do que unicamente o que dizia respeito ao pátrio poder (PAPALI, 2003).
De tal forma, considerar uma criança como desamparada ou não devido à carência de
progenitor era algo que ficava a critério das atribuições dos magistrados. Quando a mãe
era solteira e pobre, frequentemente se confirmava a incapacidade de criar seus filhos,
sendo tal procedimento justificável pelas parcas condições materiais que se encontrava a
progenitora.
Neste sentido, é possível atribuir o indeferimento da petição de tutela da garota
pelo fato de o senhor Júlio Manuel da Cunha não se comprometer em pagar soldada à
menor que pretendia ter sob sua “proteção”. Assim, é profícuo perceber a caução do
magistrado em tentar garantir o mínimo de condições morais e materiais aos filhos de
ex-escravizados no que toca o direcionamento ao amparo de tutores.
O caso em questão aponta que o juiz Eusébio Brandão creditou maior
confiabilidade a uma liberta que a um “bom cidadão” no que diz respeito à criação e
educação da menina Ignez. O fato de Júlio não se dispor ao pagamento do soldo a
menor atentou o magistrado à possibilidade de o cidadão estar interessado somente na
utilização da mão de obra gratuita da garota. De tal modo, indeferiu a petição, deixando
a criança sob o arrimo de sua mãe, uma ex-escravizada, negra e pobre.
O processo de Ignez nos auxilia a inferir que não podemos perceber a utilização
dos mecanismos de tutela e soldada como algo que sempre desfavoreceu os ex-cativos.
Tampouco nos permite intuir que esses dispositivos operavam unicamente sob uma
compreensão que buscava afastar crianças do convívio com os pais - marcados pela
típica “imoralidade” que impõe a pobreza - sem com isso tentar garantir o mínimo de
segurança a esses infantes. Evidentemente, isso não nos permite inferir que a cautela do
juiz de órfãos do termo de Bonito, Eusébio Brandão, possa ser aplicada e generalizada
para todo o recorte de nossa pesquisa.
Dessa maneira, gostaríamos de encerrar assinalando a pluralidade do universo de
tutelas pernambucano, que contava com casos e elementos que extrapolam a limitação
de páginas de um artigo científico. O que aqui foi apresentado elucida apenas uma
pequena fatia de uma conjuntura extremamente complexa, que dialogava com desejos
de emancipação e a vontade de manuntenção das relações senhoriais, bem como a
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disposição do Estado em “auxiliar” o encaminhamento desses ingênuos a destinos úteis


a si e à sociedade.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Gislane Campos. “De Sebastianas e Geovannis”: o universo do menor nos


processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). Dissertação
(Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
1995.

BRAGA, Vera Lúcia. Pequenos aprendizes: assistência à infância desvalida em


Pernambuco no século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife: 2003.

CARVALHO, José Pereira de. Primeiras linhas sobre o orocesso orphanológico:


parte segunda. Rio de Janeiro, RJ: B.L. Garnier – Livreiro – Editor, 1880.

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das


Letras, 2003.

_____. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da


belle époque. 3ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

CUNHA, Olívia Maria Gomes da Cunha e GOMES, Flávio dos Santos. Quase-
cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio do Janeiro:
Editora FGV, 2007.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 17ª. ed. Rio de


Janeiro: Graal, 2006.

FRAGA, Walter Filho. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na


Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos


históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2006.

MATTOSSO, Kátia de Queirós. O filho da escrava. IN: DEL PRIORE, Mary. História
da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.

PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, libertos e órfãos: a construção


da liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.

RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar, Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1985.
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Notas
i
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. 3ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
ii
CARVALHO, José Pereira de. Primeiras linhas sobre o orocesso orphanológico: parte segunda. Rio
de Janeiro, RJ: B.L. Garnier – Livreiro – Editor, 1880.
iii
Diário de Pernambuco, 18 de maio de 1888, capa.
iv
Ver: BRAGA (2003).
v
FRAGA, Walter Filho. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-
1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
vi
Jornal do Recife, 7 de junho de 1888, capa.
vii
Como nos explica Rago (1985), a prevenção e a correção foram ideais de grande valia que sustentavam
o pensamento de recolhimento da criança. Os pequenos poderiam chegar à idade adulta ou não. Se
galgassem êxito, era perigoso que o estado tivesse que contar com indivíduos que na infância não
tivessem sido educados e disciplinados para se tornarem sujeitos úteis a si e à sociedade. A ideia era
evitar a maturação do infante em um indivíduo alheio à ordem e à disciplina, longe de atividades
benéficas a si e ao seu meio. A desocupação era nociva não apenas ao próprio indivíduo, mas a toda uma
estrutura a qual ele estava inserido.

viii
Códice Juízes Municipais e de Órfãos – 56, p.14. (APEJE).
ix
Diário de Pernambuco, capa, 29/05/1888.
x
PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em
Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.
xi
CUNHA, Olívia Maria Gomes da Cunha e GOMES, Flávio dos Santos. Quase-cidadão: histórias e
antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio do Janeiro: Editora FGV, 2007.
xii
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto Editora, 2006.
xiii
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
xiv
Códice Juízes Municipais e de Órfãos – 56, p. 219. (APEJE).
xv
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Graal,
2006.

xvi
Tutela: Prisciliano Antunes Correia. Comarca de Bonito, p. 68. (Memorial de Justiça de Pernambuco)
xvii
Idem, p.68.
xviii
Idem, p.69.
xix
Apesar da Legislação Orfanológica apontar que os filhos e filhas de mães solteiras deveriam ser
encarados como órfãos, essa questão estava imersa em dubiedade, uma vez que Carvalho (1880),
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sustentado nas Ordenações Filipinas, afirmava as benesses do amor maternal no cuidado dos filhos, o que
compensaria a “incapacidade” dessas mulheres.
xx
MATTOSSO, Kátia de Queirós. O filho da escrava. IN: DEL PRIORE, Mary. História da criança no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.
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A PRESENÇA MARCANTE DO REGIME MILITAR NA CULTURA ESCOLAR


DO ESTADUAL DE CAMPINA GRANDE (1964-1980).

Nita Keoma Lustosa de Sousa (UFCG - Graduanda em Licenciatura em História


- nitakeomals@hotmail.com)

ORIENTADOR: Dr. Antônio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG- Professor Dr.


em História - veclanu@yahoo.com.br)

RESUMO:

Compreendendo a instituição escolar como um espaço de produção de cultura,


subjetividades e identidades e de reprodução de saberes e valores de determinado
contexto histórico e social. Reconhecendo também o seu papel político-social, o
presente artigo pretende discutir como a escola, através da cultura produzida e
reproduzida dentro da instituição escolar, exerce uma função disciplinar e como o
contexto político, social e cultural interfere no âmbito escolar, analisando a cultura
escolar do Colégio Estadual de Campina Grande, da cidade de Campina Grande-PB, no
período do Regime Militar, através das narrativas de memórias de seus ex-alunos e ex-
professores, documentos oficiais e bibliografias temáticas.
Palavras-chave: Cultura escolar, disciplinarização, Regime Militar.

1. INTRODUÇÃO

O ano de 1964 ficou marcado na História do Brasil como o ano do Golpe


Militarxx, que instituiu no Brasil um regime político autoritário, perdurando até a década
de 1980, e provocando transformações no contexto histórico, social e cultural brasileiro.

Para manter o governo ditatorial por três décadas, os militares mantiveram um


forte controle das instituições públicas no Brasil. E entre elas, o sistema educacional foi
uma das que sofreram com intervenção. O intuito dos militares era fazer com que a
população se adequasse ao novo sistema político-social instituído e a escola era um
espaço favorável para forjar sujeitos que correspondessem a esse novo contexto.

O Regime Militar atuou dentro do sistema educacional não só como um meio


para a reprodução das suas ideologias e disciplinarização, mas também com
autoritarismo, censura e repressão. Interferindo no currículo escolar, o governo
implantou as disciplinas de Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Educação
Moral e Cívica (EMC) e retirou do currículo as disciplinas de Filosofia e Sociologia e
substituiu as disciplinas de História e geografia pela disciplina de Estudos Sociaisxx.
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Segundo a lei aprovada em 1969xx, as disciplinas OSPB e EMC tornavam-se


obrigatórias no currículo escolar, e tinham como principal fundamento exaltar o
patriotismo e o civismo, além de reproduzir valores morais e legitimar o governo
autoritário como fundamental para o desenvolvimento e a ordem social.

O novo projeto educacional instituído pela Ditadura Civil-militar não se limitava


às disciplinas de Educação Moral e Cívica e OSPB. As disciplinas de educação física,
dança, canto e teatro, já existentes no currículo escolar desde a década de 1930, foram
mantida com os mesmos objetivos que foram incluídos no programa escolar nas
décadas anteriores.

O objetivo do governo era militarizar e disciplinar os jovens através da


manipulação do corpo- com a educação física- e dos sentidos – com as aulas de canto,
dança e teatro. Vale salientar que na década de 1930 o Brasil vivia sob o regime político
ditatorial do Governo de Getúlio Vargas, que também era um governo civil-militar.

A Ditadura Militar se fez presente no sistema educacional brasileiro não somente


nas leis instituídas, mas na presença física dos militares que assumiam cargos de
professores e diretores, além da atuação de civis que investigavam professores e alunos
considerados suspeitos de “subversão”xx, com o apoio dos diretores que eram indicados
pelo governo.

A presença dos militares no espaço escolar produziam relações de poder, táticas


de resistências, sejam políticas - com os grêmios e o movimento estudantil- ou
cotidianas, produzindo uma cultura escolar a partir das normas, práticas e
representações desses indivíduos, compreendendo como cultura escolar, o que Frago
Viñao afirma ser toda a vida escolar, “La cultura escolar es toda la vida escolar: hechos
e ideas, mentes y cuerpos, objetos y conductas, modos de pensar, decir y hacer.” (1995,
p. 69)

Partindo dessa permissa, o presente artigo pretende analisar como foi produzida
a cultura escolar do colégio secundarista Estadual de Campina Grande, na cidade de
Campina Grande-PB, nas décadas de 1960-80, e discutir como o Regime Militar
interferiu nessa instituição de ensino, analisando, através dos relatos orais de memórias,
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de ex-alunos (as) e ex-professores (as) -do mesmo colégio- e outras fontes, as


representaçõesxx sobre a educação e a presença da ditadura militar no cotidiano escolar.

2. DISCIPLINA, AUTORITARISMO E TÁTICAS DE RESISTÊNCIA:


PRODUZINDO CULTURA

O colégio Estadual de Campina Grande, popularmente conhecido como Estadual


da Prata devido a sua localização no bairro da Prata, era, na década de 1960, a única
escola pública secundarista da cidade de Campina Grande. Desde a sua fundação, em
1953, até o período governado pelos militares, sempre teve juristas, militares e políticos
compondo o corpo docente da escola e a direção.

Porém, após o golpe militar, a presença dos militares e juristas no colégio não
representará apenas uma necessidade de suprir a falta de professores formados em
licenciatura na cidade, ou a “generosidade” dessas figuras, consideradas intelectuais em
sua época, em reproduzir seus saberes para os jovens estudantes.

A presença desses civis na escola representará o cuidado do governo militar em


controlar o que se passava no interior dela, um olhar atento aos comportamentos dos
alunos e professores, e ouvidos apurados para escutar os assuntos discutidos em sala de
aula, corredores e escadarias.

Os militares buscavam mais que manter a ordem dentro do espaço escolar, estes
pretendiam vigiar de perto os passos de todos os indivíduos e estabelecendo linhas de
comunicações entre os oficiais e a escola, reprimindo qualquer ação que fugisse da
ordem por eles estabelecida e disciplinando os sujeitos de forma que estes evitassem
cometer qualquer ato de desobediência com medo das represálias.

Em entrevista realizada com a ex-professora do Estadual de Campina Grande,


Josélia Ramosxx, ela nos relata a relação entre o aluno e professor nas décadas de 1970-
80, alegando que nesse período havia um maior respeito por parte dos alunos ao
professor do que nos dias atuais. Ao ser questionada se esse respeito se devia ao
controle que a escola tinha sobre os alunos no período da ditadura, ela nos responde,

“Não! Eu não levo por esse lado não, a época militar não! Porque assim,
naquela época havia a censura né, de falar muito, informar o aluno, não
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chegava tanta informação, nera? Mas eu acho assim, são os valores, a família,
as relações familiares... A família põe muita responsabilidade em cima dos
professores, a família, as autoridades, não é?”
Para a entrevistada o comportamento dos alunos com relação aos professores,
não sofria influência da ditadura militar, tal comportamento se devia aos valores morais
e a educação familiar que os alunos nessa época respeitavam e mantinham. Porém, o
controle do Regime Militar agia sobre os alunos e professores, e também funcionários,
de forma psicossocial, através das múltiplas estratégias de controle.
Essas estratégias são representadas através da presença de autoridades e
auxiliares de disciplina, advertências e punições, arquitetura -proporcionando a
vigilância dos sujeitos presentes no espaço escolar- das aulas de educação física -
disciplinando os corpos- as aulas de artes, canto e teatro -educando as sensibilidades- e
os conteúdos ensinados em sala, exaltando os valores morais e religiosos, o respeito aos
superiores e o civismo - reproduzindo valores sociais e culturais, além das
representações políticas do Regime Militar.
Analisando as representações da entrevistada com relação ao comportamento
dos seus alunos e as estratégias de disciplina do colégio, observamos que estes
dispositivos de poder presentes no espaço escolar, agiam entre os sujeitos de forma que
estes não percebiam o seu funcionamento. A disciplina estava incutida nas práticas
cotidianas,
O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em
toda parte e sempre alerta, pois em principio não deixa nenhuma parte às
escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de
controlar; e absolutamente discreto, pois funciona permanentemente e em
grande parte em silêncio. (FOUCAULT, 2012, p. 170)

Percebemos como o poder disciplinar se mantinha presente no cotidiano escolar


e processava-se de forma discreta e silenciosa. Através de estudos desenvolvidos sobre
o ensino da época, as analises desenvolvidas sobre a disciplina de Educação Moral e
Cívica, por exemplo, nos revelam como as ideologias defendidas pelos militares eram
transmitidas através dos livros didáticos e como esses sujeitos assimilavam esses
valores.

Segundo a análise de Nataly Nunes e Maria José de Rezendexx, os livros


didáticos da época, “procuravam interferir tanto no que diz respeito aos valores,
proporcionando a formação de comportamentos, quanto nas questões relacionadas à
política e à economia”.
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Nos livros analisados por Nunes e Rezende o conteúdo correspondente a EMC


justifica a autoridade militar ao afirmar que a população necessita de um líder que os
oriente, proteja e tome decisões em nome de todos e de um bem maior, tomando como
exemplo, as relações familiares e a obediência que os filhos devem aos pais e aos mais
velhos.

“É comum o termo “para o bem de todos” e, neste caso, o livro didático parte
da naturalização das leis e das arbitrariedades realizadas pelos que conduzem
o governo, a partir da família. Sugere que, assim como elas existem no lar,
existe também, como que espontaneamente no país. E é também neste
momento que o livro procura justificar os chamados casos especiais, em que
os próprios presidentes sancionavam novas leis, pois, assim como em uma
família os pais sobre o que é bom e ruim para os filhos, os “representantes do
povo” também podiam determinar as leis que consideravam necessárias para
o bem da nação”.xx (sic.)

Desse modo, os alunos subjetivavam a imposição dos militares dos estudantes


defenderem os valores morais e manter a ordem social, o respeito aos professores e
diretores, da mesma forma em que os jovens respeitavam a autoridade dos pais em casa,
desta forma, disciplinava-se o comportamento e as subjetividades dos alunos.

A própria entrevistada, subjetivou esses valores ao ponto de não perceber que a


ditadura influenciava no comportamento dos alunos, representando assim, uma
disciplinarização dos sentidos, ao afirmar que, o comportamento dos alunos se dava aos
valores e as relações familiares da época, na qual ela julga a educação neste período
melhor que a dos dias atuais.

No ano de 1971 é implantada a Lei de Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º


graus, que priorizou a Pedagogia tecnicista e a substituição das disciplinas de Humanas
por Estudos Sociais. A Pedagogia tecnicista tinha como principal objetivo preparar os
jovens para o mercado de trabalho. Em estudo realizado por Cristiane Campos xx sobre a
escola tecnicista, ela nos afirma que,

“Na escola tecnicista, os elementos curriculares essenciais: objetivos,


conteúdos, estratégias, técnicas apresentavam-se interligados, destacando,
porém, a própria organização racional e mecânica explicitados em
documentos, tais como planos de curso e de aulas visando assim uma
mudança de comportamento dos alunos que ao término do curso deveriam
corresponder aos objetivos preestabelecidos pelo professor, tudo em sintonia
com os interesses da sociedade capitalista.” (p. 02)
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Enquanto a disciplina de Estudos Sociais era baseada no ensino factual


reprodução de conteúdo e memorização. O método tecnicista e de memorização não
possibilitava aos professores discutirem com os alunos as questões político-sociais do
seu presente, analisando-os criticamente, além da censura sobre determinados assuntos.
Entretanto, para a ex-professora do Estadual da Prata, Cleonice Agraxx, a década de 70
representou uma maior abertura sobre os assuntos discutidos em sala de aula.

“[...] aí é o que eu estava dizendo, aí as coisas já estavam mudando, porque


eu comecei em 68, já estava perto de ser implantada a nova lei de ensino em
71,72, e que já dava essa abertura. Aí já discutia o que estava acontecendo lá
fora, já podia ser discutido na escola, não é que antigamente fosse proibido
[se refere a década de 1950], é que eu acho que os meios de comunicação era
tão restritos, era o rádio e o jornal que quase ninguém lia, porque antigamente
só quem lia jornal? Só véi caduco, homem! Né? Porque mulher não lia
jornal! Só quem lia jornal era homem, eram raras as exceções que mulher lia,
jornais era coisa de homem!

Porque então, a professora Cleonicexx afirma que houve uma abertura nos
assuntos discutidos em sala de aula no período do regime militar, justamente na década
de 1970, conhecida como a década em que a ditadura atuou com maior repressão?

O que possivelmente ocorre é que, algumas situações vivenciadas pela nossa


entrevistada, assim como os próprios meios de comunicação que segundo ela,
possibilitavam maiores informações sobre os acontecimentos do que na época em que
era aluna do mesmo colégio, construiu-lhe uma memória sobre o período em que
lecionava na Prata como aberto ao diálogo entre aluno e professor.

Ela nos conta o seguinte caso:

“É... eu me lembro até que...eu tava sem...Aula vaga, aí Dr. Ramos xx me


chamou, porque ele me conhecia, a esposa dele trabalhava comigo no
Estadual do Bodocongó, aí ele perguntou se eu podia participar de uma
conversa que ele ia ter, aí eu respondi, “posso”! “Eu queria que você ouvisse
um casal, tava uma confusão aqui muito grande”. Isso era no mês de outubro!
Era uma menina, já do ensino médio casada, se separaram e o marido atrás
dela pra matar. Daí eu ouvi o rapaz, ouvi a moça, separados, aí depois eu
ouvi os dois, o menino tinha sido meu aluno no Alfredo Dantas, e ele se
preocupava, o diretor, com essas coisas. Até porque ele tinha que se
preocupar, por que ele ia com o Jeep armado lá pro colégio, mas Dr. Ramos,
Dr. Assis também, eram muito comprometidos com os alunos, cuidava muito,
era uma pessoa que ficava andando muito, vê o que estava acontecendo”

Neste relato a professora Cleonice nos conta sobre uma discussão envolvendo
uma aluna do colégio que poderia ter resultado em tragédia, se não fosse a intervenção
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do diretor e da professora. A profª. Cleonice representa este acontecimento como um


exemplo de que a relação entre aluno professor e diretor era bem próxima, ao ponto
deles intervirem na vida pessoal de seus alunos e de cuidarem da sua integridade física e
moral.

Ao nos contar que o diretor costumava andar pela escola para ver o que
acontecia, por “comprometimento e cuidado”, Cleonice nos revela as estratégias do
diretor para está sempre atento ao que acontecia no interior da escola. O seu andar pela
escola era vigilante, com olhos atentos para detectar qualquer desvio, a sua presença já
estabelecia ordem e disciplina nos alunos e funcionários.

Sobre esse olhar atento dos diretores sobre os alunos, Foucault nos diz que,

O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue o jogo do olhar:


um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e
onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles que
sobre quem se aplicam. (2012, p. 165)

A arquitetura escolar do Colégio Estadual da Prata possibilitava essa vigilância


de forma discreta e silenciosa. As salas eram (e são até hoje) separadas por células, para
cada célula, duas salas, a metade das paredes era de pequenos cubos, através dos quais
era possível alguém de fora ter uma visualização completa da sala. Entretanto, os cubos
das paredes correspondiam a altura acima da cabeça de um aluno sentado, logo se o
diretor vigiasse os alunos por trás dessas paredes, a sua presença não seria percebida.

O edifício da escola tinha um primeiro andar, onde ficava a sala do diretor,


conhecido também como salão nobre. O salão nobre possui uma varanda que
possibilitava ao diretor ter uma visão panorâmica da escola, do movimento dos alunos
na escadariaxx. Segundo Foucault,

Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não é


mais feita simplesmente para ser vista (faustos dos palácios), ou para vigiar o
espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle
interior, articulado e detalhado -para tornar visíveis os que nela se encontram;
mais geralmente a de uma arquitetura que seria um operador para as
transformações dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio
sobre o seu comportamento, reconduzir até eles o efeito do poder, oferecê-los
a um conhecimento, modificá-los” (2012, p. 166)

Com um auxiliar de disciplina sempre firme, controlando os horários, o trânsito


de alunos pelos corredores, o acesso aos lugares, as idas ao banheiro. O professor
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Fernando (Badu)xx nos conta que sempre que um aluno ia ao banheiro, o auxiliar de
disciplina ficava a postos, esperando a sua saída para averiguar se o aluno quebrou ou
sujou alguma coisa no banheiro.

O professor Fernando (Badu) também nos relata acontecimentos interessantes


sobre o colégio Estadual da Prata na década de 1960, e os métodos disciplinadores
adotados pelos diretores da época.
Em 68 o professor era João Agripinoxx, aí o que João Agripino fez, tava tendo
muita briga de inspetor com aluno, essas coisas, e o inspetor [inspetor de
disciplina] era mais velho, era de 40 anos de idade, quarenta e pouco, e aluno,
a gente era de 12 anos, 14, 15 [...] chamava o Bedel o... [...] ai o que
aconteceu, João Agripino mandou que escolhesse uns alunos que já tivesse
18 anos, isso em 68 que foi quando eu completei 18 anos, pegasse uns alunos
que estudasse de manha pra trabalhar de inspetor de noite, inspet... o aluno da
noite trabalhava de manha, e de tarde, sabe como é que é? E Ele inventou
isso, pegar aluno pra evitar briga, que era no tempo da ditadura mesmo,
naquele negocio, aquele conflito, ai eu entrei nesse bando também [...] era
pra ficar o... porque ai entendia, não ia criar confusão sabendo que era um
colega ne? (Grifo meu)
Este método nos revela como as estratégiasxx disciplinares podem ser eficientes
sem que seja necessário adotar medidas agressivas para fazer com que os alunos entrem
no processo disciplinar da escola. Foucault diz que, “o castigo disciplinar tem a função
de reduzir os desvios. Deve, portanto ser essencialmente corretivo” (2012, p. 173).
Nesse caso, o corretivo que os alunos receberam por desobedecerem as normas e
não respeitarem a autoridade do funcionário foi, assumir a função de auxiliar de
disciplina, sendo responsável por manter a ordem e a disciplina na escola, corrigindo os
seus desvios através do castigo, se “autodisciplinarizando” através da responsabilidade e
disciplinando os seus colegas cumprindo com a sua nova função.
Outro fato relatado pelo professor confirma a presença forte da ditadura militar
no cotidiano da escola. Quando ainda criança Fernando (Badu) se recorda de um
diálogo de sua mãe, Wanda Elizabethxx, ex-professora e vice-diretora do colégio
Estadual da Prata, com um oficial do Exercito:
[...] Antônio Paulo Câmara, major, eu me lembro que eu tava em casa, isso década já
de oitenta, setenta para oitenta, setenta e pouco, quando chegou o Major Câmara lá
em casa, que era o terror de Campina, o povo tinha tudo medo. Aí ele chegou lá em
casa quando eu fui atender era ele, eu chega olhei assim, fardado, aí ele disse “Dona
Wanda, está aí?” eu disse, tá!, Aí ele disse “chama, por favor,”. Aí eu disse entra! Aí
ele nem entrar, entrou, ficou no jardim conversando, tinha um muro baixo, ai
conversando, conversando com ele; Aí mamãe chegou o telefone tocou, e eu só
escutando a conversa do comandante, aí fui atender, ai era do colégio. Ai disse “avisa
a dona Vanda que tá, o exército invadiu o colégio aqui, tá com os estudantes presos,
interrogando, tão tudo chorando aqui dentro, tá a maior zoada. Aí eu fui dizer, mamãe!
Quando eu comecei a contar , aí o major disse “não eu já to sabendo eu vou pra lá”!
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Aí nisso tudo bem né, eles iam resolver né? Era o major... Mas o negocio é que já foi
ele q tinha mandado fazer aquilo e veio pra ela pra, tirar ela da jogada sabe, ele tinha
muito medo dela, porque minha mãe era muito amiga de João Agripino xx, e João
Agripino era assim, você sabia, com a ditadura né, ai tinha conto cm general, com
tudo, ai se soubesse q ele tinha feito qualquer coisa, poderia ate tirar ele daqui. Aí
resultado, ele foi lá, mamãe chegou lá, ele tava dentro da sala da secre..da diretoria
com os alunos, ai mamãe bateu lá como quem fosse derrubar a porta, eu do lado, ai
disse ,” não no admito isso aqui não, de jeito nenhum. Tok tok”!! Só sei que, ele
parou. Pronto! Mas era desse jeito, era presença mesmo marcante!

O professor Fernando (Badu), através desse relato, nos conta muito mais que a
presença e a interferência da ditadura na rotina escolar, ele nos revela que, a perseguição
e a repressão da ditadura não eram contra todos os indivíduos. Alguns, por seu prestígio
e representação social, suas influências políticas, eram protegidos pela ditadura.
Houve outros casos envolvendo alunos e militares. Prisões de alunos,
documentos oficiais informando que determinado aluno estava proibido de matricular
em qualquer escola durante três anosxx, documentos pedindo a investigação de alunos.
Esses casos, assim como o fato narrado pelo entrevistado nos faz atentar para outro
detalhe: a ação dos militares resultava do comportamento dos alunos que provocavam a
“desordem”. Esta desordem representada pelas táticasxx dos alunos era uma forma
destes se oporem e resistirem aquele regime autoritário.
As táticas de resistência adotada pelos alunos representam o que Certeau nos diz
sobre as “maneiras de fazer” dos indivíduos. Essas táticas “constitui as mil práticas
pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção
sociocultural”. Os alunos do Colégio Estadual da Prata estavam inseridos em um
sistema de estratégias disciplinar da qual estes não estavam passivos a ela, “esses modos
de proceder e essas astúcias [...] compõem, no limite a rede de uma antidisciplina.”
[grifo meu] (CERTEAU. 2012, p. 41)
Professor Fernando (Badu) nos conta de outros casos em que estudantes foram
presos por se manifestarem contra o regime militar ou até mesmo expulsos por
desobedecer a um professor. Essas táticas de resistência não se davam apenas contra um
poder maior, como o da Ditadura Militar, mas dentro de um pequeno núcleo como uma
escola, a partir das relações e das práticas cotidianas que eram produzidas, era possível
criar formas de burlar a ordem, dentro da sua dinâmica e do espaço que era a escolar.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Entendendo que dentro dos espaços escolares estabeleciam-se relações de


poderes e hierarquias, e que essas relações estavam correlacionadas ao contexto
político-social e cultural do país, da região e do local. Percebemos como foi produzida a
cultura escolar do Colégio Estadual da Prata durante o período da Ditadura Militar,
através das estratégias de disciplina e de táticas resistências, como se construíam as
relações dentro desse espaço e como os entrevistados e outros sujeitos se articulavam
cotidianamente com o social e o cultural, representando no presente aquele período,
através de suas memórias, carregados de sentimentos, pertencimentos, ufanismos,
nostalgia, falhas e subjetivações.
Pensando também que a cultura escolar não é única. Segundo Frago (2000)xx,
não existe cultura escolar, existem culturas escolares produzidas diferentemente entre as
instituições educacionais, atendendo as suas características e elementos básicos. Deste
modo, a cultura escolar do colégio Estadual da Prata no período do Regime Militar, foi
produzida diferente das outras instituições de ensino do mesmo período, através das
relações de poder que se estabeleciam, não só de cima para baixo, mas ao inverso.
Porém, essa cultura escolar não está deslocada das outras produções culturais das
instituições escolares e da sociedade, juntas compõem um conjunto de práticas que a
denominamos de Cultura.
4. REFERÊNCIA DOCUMENTAL

AGRA DO Ó, Cleonice. Depoimento, 23 de maio de 2013. Campina Grande. Entrevista


cedida a Nita Keoma Lustosa de Sousa.
AZEVEDO, Fernando. Depoimento, 29 de setembro de 2013. Campina Grande.
Entrevista cedida a Nita Keoma Lustosa de Sousa.
COLÉGIO ESTADUAL DR. ELPÍDIO DE ALMEIDA-PRATA. Link disponível em:
http://www.colegiodaprata.xpg.com.br/, acesso em 24 de março de 2014.

Presidência da República. Casa Civil. Lei Nº 5.692/68. Link disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5692.htm. Acesso, 24 de março de 2014.

RAMOS, Josélia. Depoimento, 18 de abril de 2013. Campina Grande. Entrevista cedida


a Nita Keoma Lustosa de Sousa e Antonio Clarindo Barbosa de Souza.
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5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CAMPOS, Cristiane; ZANLORENZI, Claudia Maria Petchak. A tendência tecnicista e
o ensino de arte. Link:
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario8/_files/HGqmR
Dqk.pdf , acesso em 24 de março de 2014.

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Col. Memória


e sociedade. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. 19 ed. Petrópolis,


RJ: Vozes, 2012.

FARIAS FILHO, et al. A cultura escolar como categoria de analise e como campo de
investigação na historia da educação brasileira. Educação e pesquisa, São Paulo, v. 30,
n. 1, p. 139-159. 2004.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 40 ed. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2012.

REZENDE, Maria José de. NUNES, Nataly. O ensino da Educação Moral e Cívica
durante a ditadura militar. Link: http://www.uel.br/grupo-
pesquisa/gepal/terceirosimposio/natalynunes.pdf, acesso em 24 de março de 2014.

VIÑAO, Antonio Frago. Et al. Historia de la educación y lahistoria cultural. Revista


brasileira de educação. 1995, p. 63-82.
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A “LEI DO BOI” COMO PRIVILÉGIO DA BURGUESIA RURAL? O CASO DA


UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO (1968 -1985)

Wallace Lucas Magalhães


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
luckasoab@yahoo.com.br

Resumo
Este trabalho tem como objeto a Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968,
conhecida popularmente como “lei do boi” no âmbito da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ). A lei criava um mecanismo de acesso diferenciado às
instituições de ensino médio e superior, mantidas pela União, nos cursos de
agronomia e medicina veterinária, a candidatos que comprovassem relação com a
atividade agrícola, fosse através da prática ou da posse ou propriedade de áreas
rurais. O benefício se estendia, nos casos do ensino superior, a concluintes do ensino
médio em escolas agrícolas, fortalecendo uma relação de continuidade com o
conhecimento agrícola. Foi comum durante sua vigência, estendida até o ano de
1985, a idéia de que a “lei do boi” teria beneficiado apenas filhos de grandes
proprietários de terras, de forma que buscarei traçar um perfil socioeconômico dos
beneficiados para que se possa, efetivamente, determinar quem foram os
beneficiários da lei no interior da UFRRJ.

Beneficiados pela “lei do boi”: uma análise socioeconômica

Uma análise mais complexa da “lei do boi” na UFRRJ, tanto em termos


quantitativos como qualitativos, é uma questão que envolve grande dificuldade, dada
a ausência de material comprobatório em seus arquivos, o que gera dúvida sobre a
efetividade da lei no interior da UFRRJ e os mecanismos utilizados pela instituição
para fins de concessão pela lei.
Partindo-se de uma abordagem mais ampla sobre a “lei do boi”, que Gomes
(2003, p. 17) define como uma modalidade de ação afirmativa “bem brasileira”,
Cunha (2007) e Almeida (2010) compartilham a idéia de que a lei teria sido
promulgada como forma de incentivar o acesso de alunos aos cursos de ciências
agrárias no Brasil. Para os autores, a “lei do boi” vai de encontro ao problema dos
excedentes que marcava a educação superior no início do governo militar. A grande
quantidade de candidatos aprovados, porém não classificados em áreas de grande
prestígio social, (como medicina, direito e engenharia), era um problema que não
afetava todas as áreas de conhecimento, havendo algumas em que o quadro era
totalmente diferente. Destacam que as ciências agrárias não eram afetadas pelo
problema dos excedentes, ocorrendo o processo inverso, em que a demanda de
candidatos era menor que a oferta de vagas. Em um período marcado pela
intensificação da influência da Agência Americana para o Desenvolvimento
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Internacional (USAID) durante os governos militares e pela necessidade de


equilibrar a relação entre demanda e oferta na área de ciências agrárias, a “lei do
boi” seria um instrumento de adequação dessa situação. Para Cunha:
Embora o problema que mais se destacava no panorama do ensino superior
brasileiro fosse a dos candidatos sem vagas, havia setores para os quais o
problema era justamente o contrário: vagas sem candidatos, ou pelo menos,
candidatos que pudessem ser aprovados nos vestibulares, pois o critério
classificatório ainda não tinha se generalizado. Era esse o caso dos
estabelecimentos de ensino agrícola, alguns de grande porte. Para articular
a pretensão dessas escolas, de aumentar o número de estudantes, com a
política governamental ( e da USAID) de aumentar a produção de
alimentos e, ainda, com a difusa procura por ensino médio e superior da
parte dos jovens oriundos da zona rural, surgiu uma das mais curiosas
medidas de política educacional, que veio a ser conhecida como “lei do
boi” (2007, p. 84 e 85)

No âmbito da UFRRJ, a receptividade da lei nº 5.465/68 pode ser constatada


na Ata do Conselho Universitário (CONSU) de 19 de setembro de 1968, em que foi
avaliado o processo MR-6.148/68, primeiro referente à “lei do boi” pelo colegiado
máximo da instituição, sendo os critérios da lei adotados no processo de seleção da
universidade. A leitura desta ata demonstra um total desconhecimento da lei, bem
como a falta de questionamentos acerca de seu conteúdo pelo CONSU, cujos
comentários a respeito do dispositivo legal se resumem à estipulação de que “50%
das vagas para as Escolas de Agronomia e Veterinária sejam atribuídas aos filhos de
lavradores”, devendo o Conselho “tomar ciência” (CONSU, 1968). Já em 1969, a
ausência de indagações sobre a lei foi mantida, como se extrai da ata da reunião do
CONSU, realizada em 11 de fevereiro daquele ano:

Na ocasião, o Sr. Presidente citou o Decreto nº 63.788, de 12.12.68,


publicado no D.O de 17 subseqüente, que dispõe sobre o preenchimento de
vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola e em seu art 1º determina
que as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidas pela
União, reservarão, preferencialmente, cada ano, para matrícula na 1ª série,
50% de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes.

A ausência de questionamentos sobre a implementação da lei pode ser


constatada através da análise documental dos anos iniciais de sua vigência. Assim,
tornou-se fundamental para o desenvolvimento desta pesquisa identificar quando a
UFRRJ passou a adotar critérios mais específicos para a comprovação do direito ao
acesso pela “lei do boi”.
Tendo a lei sua aplicabilidade na instituição a partir de 1969, buscou-se, a
partir da análise da documentação de alunos “formandos” de 1973, responder as
seguintes questões: a UFRRJ adotou algum procedimento específico junto aos
alunos que se utilizaram da lei? Em caso afirmativo, a partir de quando e quais?
A análise documental que busca responder estas questões tem início com os
concluintes do curso de Agronomia de 1973, sendo 67 alunos pesquisados. A
pesquisa documental deste ano pouco informou sobre os candidatos que entraram
pela “lei do boi”. De 67 candidatos analisados, apenas um apresentou documento
emitido pelo Sindicato Rural de Bebedouro (SP), atestando ser “filho de agricultor”.
Quanto aos demais, 13 candidatos apresentaram certificado de conclusão do ensino
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médio em escolas agrícolas, o que geraria o direito ao benefício, porém a


documentação não permite a conclusão de que tais alunos tenham utilizado a “lei do
boi” como forma de acesso à UFRRJ. Já a análise da documentação dos demais 53
alunos nada demonstrou.
Quanto ao ano de 1974 e seus respectivos formandos em Agronomia, a
documentação de 83 alunos foi verificada, extraindo-se 21 alunos como concluintes
do ensino médio em colégios agrícolas, o que asseguraria o benefício da lei, sendo
assim distribuídos: seis alunos provenientes do Colégio Agrícola de Alegre (ES);
três do Colégio Técnico Agrícola Estadual Dr. Carolino da Motta e Silva, Pinhal
(SP); três do Colégio Agrícola de Campos (RJ); quatro do Colégio Técnico Agrícola
Ildefonso Simões Lopes (UFRRJ); um do Colégio Agrícola Nilo Peçanha (RJ); um
do Colégio Agrícola de Santa Teresa, São João de Petrópolis (ES); um do Colégio
Industrial de Agrimensura (PA); um do Colégio Agrícola de São Lourenço da Mata
(BA); um do Colégio Agrícola Benjamin Constant (SE) (AUFRRJ, 1974, Pastas
C/E, E/I, I/J, J/K, O/R, R/V). Embora a conclusão do ensino médio em escolas
agrícolas atribuísse ao aluno o benefício previsto na “lei do boi”, destaca-se mais
uma vez a impossibilidade de se extrair algum caráter conclusivo do ponto de vista
quantitativo neste período, uma vez que o certificado de conclusão do ensino médio,
mesmo do ensino agrícola, constituía documentação padrão para matrícula junto à
universidade. xx
O ano de 1975, assim como os pesquisados anteriormente, não conduz a
qualquer conclusão acerca dos beneficiários da lei. Analisou-se a documentação de
81 alunos, de forma que nenhuma documentação fora dos padrões até então
apresentados foi constatada. Dos 81 pesquisados, constatou-se que 13 alunos
concluíram o ensino médio em escolas agrícolas, o que geraria o benefício da lei,
sendo um aluno proveniente do Colégio Agrícola Estadual Augusto Ribas (PR); dois
do Colégio Agrícola de Alegre (ES); dois do Colégio Agrícola Técnico Dona
Sebastiana de Barros (SP); dois do Colégio Técnico Agrícola Estadual Dr. Carolino
da Mota e Silva (SP); dois do Colégio Agrícola de Campos (RJ); um do Colégio
Agrícola Floriano Peixoto (AL); dois do Colégio Técnico Agrícola Estadual de Vera
Cruz (SP); um do Colégio Agrícola de Santa Teresa, São José de Petrópolis (ES).
Quanto aos formandos de 1978 em Agronomia, foi analisada a
documentação de 97 alunos, dos quais seis alunos surgem como possíveis
beneficiários por terem concluído o ensino médio em escolas agrícolas, sendo eles:
Arlindo Stange, Colégio Agrícola de Santa Teresa (ES); Irineu Lobo Rodrigues,
Colégio Técnico Agrícola Ildefonso Simões Lopes (UFRRJ); João Pedro Pimentel,
Colégio Técnico Agrícola Estadual Penápolis (SP); Jorge Jacinto Calixto, Colégio
Técncio Agrícola Estadual Augusto Tortolero Araújo (SP); Josimar Azevedo dos
Santos, Colégio Agrícola de Campos (RJ) e Raimundo Nonato Magalhães Costa,
Colégio Agrícola Nilo Peçanha, Pinheiral (RJ) (AUFRRJ, 1978, Pastas 16 a 23).
Passando à análise documental do ano de 1979, foram pesquisados 26 alunos
formandos em Agronomia, dos quais apenas um, Antônio Carlos Gonçalves,
concluiu o ensino médio no colégio agrícola de Campos (RJ), gerando assim o
benefício legal (AUFRRJ, 1979, Pastas 16 e 17).
O que pode ser extraído a partir do levantamento de outras fontes é que, até
metade da década de 1970, os grandes beneficiários da “lei do boi” foram alunos
provenientes de escolas agrícolas espalhadas por todo território nacional.
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Um caminho para traçar a origem socioeconômica dos beneficiados pela lei


consiste em identificar a sua procedência regional, com ênfase nos provenientes das
regiões mais desenvolvidas do país. Dos 41 concluintes do ensino médio em escolas
agrícolas encontrados nos anos de 1973, 1974, 1975, 1978 e 1979, 87,8%, (36
diplomados), são provenientes da região sudeste, e apenas 12, 2%, (5 diplomados)
são provenientes das demais regiões do Brasil. E dentre os diplomados cuja origem
encontra-se na região sudeste, 38,8%, (14 diplomados) vinham do estado do Rio de
Janeiro, 30,1%, (11 alunos) de São Paulo e 30,1%, (11 alunos) do Espírito Santo.
Pelo exposto, constata-se, ao menos nos anos em que grande parte dos
beneficiados pela “lei do boi” foram os alunos originários do ensino agrícola, uma
maciça concentração de alunos provenientes da região sudeste do Brasil, em especial
de alunos do próprio estado do Rio de Janeiro. Porém, esta informação não permite
qualquer ilação sobre o perfil socioeconômico dos beneficiários da lei junto à
universidade. Todavia, em anos posteriores a documentação se torna mais completa.

Quem foram os beneficiários da “lei do boi”? O processo de abertura política e


as diferentes formas de comprovação
A partir deste tópico, será analisada toda a documentação que, de maneira bem
específica, possa determinar um perfil dos candidatos que entraram na UFRRJ pela
“lei do boi”, mas não apenas isso. Assim como nos casos em que a documentação
não tenha sido conclusiva, buscar-se-á construir uma análise geográfica dos
candidatos que apresentaram documentações diversas como forma de utilização do
benefício legal. Pelo exposto, a metodologia a ser adotada constituirá na utilização
de tabelas que indiquem a documentação apresentada pelos candidatos; nos casos
em que foi possível identificar a extensão das propriedades, estas também serão
inseridas em forma de um quadro para melhor visualização, o que será mantido para
identificar a origem dos alunos que acessaram a universidade via “lei o boi”. Por
fim, a tarefa mais complexa consistirá em determinar um perfil socioeconômico dos
candidatos através da documentação pesquisada.
Destaca-se que, assim como na análise dos anos anteriores, esta pesquisa
teve como fontes os alunos concluintes do curso de Agronomia, porém, com uma
documentação muito mais conclusiva quanto aos beneficiários.
Nos anos anteriores, verificou-se uma documentação muito escassa, que foi
definida como “documentação padrão”, uma vez que constitui um conjunto de
documentos que é, ao longo dos anos, mantido como forma de comprovação dos
requisitos mínimos para acesso a universidades de uma forma geral. A partir dos
anos que se seguem, a documentação de diversos alunos torna-se mais complexa e
conclusiva, destacando-se a apresentação de variados documentos relativos à posse e
propriedade de imóveis rurais, tidos não como uma documentação meramente
comprobatória dos requisitos mínimos, mas que buscavam a comprovação de uma
relação, mesmo que por vezes questionável, entre candidato e propriedade rural,
bem como documentos emitidos por sindicatos rurais, como se verá adiante.
A relação entre candidato e propriedade rural que passa a ser documentada a
partir dos formandos da década de 1980 traz a seguinte indagação: por que nos anos
iniciais a grande maioria de beneficiários da lei eram alunos provenientes do ensino
agrícola, e a partir do fim da década de 1970 os beneficiários se tornam um grupo
mais diversificado? Por que esta documentação mais específica passou a ser
apresentada? Até que ponto o cenário político nacional, marcado pelo processo de
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abertura política e intensificação das lutas sociais no campo, influenciou esta nova
dinâmica em relação aos candidatos que fizeram uso da lei? Para uma análise
preliminar em relação ao perfil dos candidatos que fizeram uso da lei, apresentando
uma documentação específica, foram pesquisadas as pastas dos alunos formandos do
curso de Agronomia nos anos de 1984 e 1985. Foi analisada a documentação de 112
alunos do ano de 1984, 116 do ano de 1985 e 121 de 1986. .
Quanto aos concluintes do curso de Agronomia do ano de 1984, 67 alunos
foram efetivamente beneficiados pela lei, apresentando documentação diversa, como
aqueles emitidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), xx desde contratos de arrendamento a certidões de herança. Quanto ao ano
de 1985, mantida a diversidade documental, 78 alunos foram beneficiados pela lei,
enquanto para 1986, constatou-se 47 beneficiados. A documentação apresentada
pelos beneficiados pesquisados, marcada por variedade, consta na tabela 1.1.

Tabela 1.1. Documentação apresentada pelos candidatos como forma de acesso


ao curso de agronomia pela “lei do boi”. Anos 1984 a 1986

Documentos apresentados Quantidade %

Certidão expedida pela autoridade policial ou secretarias de 35 13


segurança pública atestando residência em áreas rurais.
Certidão expedida por prefeituras municipais atestando 45 16
residência ou exploração em áreas rurais
Declaração emitida por sindicatos rurais 65 23
Contrato de arrendamento rural ou parceria agrícola 10 4
Pedido judicial para requerimento de certidão de herança, 4 1
declaração de herança beneficiando o aluno ou direito de
usufruto
Habilitação básica em agropecuária (Decreto nº 63.788, de
12 de dezembro de 1968. Art 1º, § 2º. Regulamenta a Lei 18 6
nº 5.465, de 3 de julho de 1968, que dispõe sobre o
preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino
agrícola
Certificado de cadastro ou declaração emitido pelo
Instituto Nacional de Colonização e Reforma agrária 85 30
(INCRA)
Escritura de compra e venda ou certidão de registro de 7 3
imóvel rural
Título definitivo de propriedade rural 2 1
Declaração emitida pela EMATER (Empresa de 9 3
Assistência Técnica e Extensão Rural)
TOTAL: 280 100
Fontes: Formandos agronomia: caixas 07 a/h, 08 j/m e 09 n/z de 1984; caixas 07 a/f, 08 f/l, 09 m/r e
10 r/z de 1985 e caixas 07 a/f, 08 g/l, 09 m/r e 10s/z de 1986.

A análise da diversidade documental apresentada pelos beneficiados não


constitui o objeto proposto por esta pesquisa, embora constitua fonte fundamental
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para que se chegue ao mesmo. A grande problemática é a vinculação entre acesso


privilegiado ao ensino superior e atividade rural, destacando-se determinados órgãos
ou instituições no estreitamento entre tal vinculação. Como visto, a principal fonte
emissora de documentos para a concessão do benefício à “lei do boi” era o INCRA,
legitimado pelo parágrafo único do artigo 4º do decreto nº 63.788, de 12 de
dezembro de 1968, que regulamentava formas de comprovação do direito ao
benefício. Para Oliveira (1985, p. 18), este método de comprovação desvirtuava a
justificativa da “lei do boi”, principalmente pela frouxidão do que se considerava
“propriedade rural”, beneficiando um determinado grupo de pessoas:
Na aplicação da lei, o certificado que dá esta benesse é fornecido pelo
INCRA. No caso do Rio de Janeiro, quem tem uma casa em Petrópolis,
Teresópolis, qualquer casa de campo, qualquer casa que saia do perímetro
urbano recebe o certificado do INCRA, de maneira que passou a ser
praticamente um privilégio de todos, menos daqueles que, certamente por
falta de poder aquisitivo, não têm uma casa de campo. Mais uma vez foi
uma lei que veio a prejudicar pessoas de menor poder aquisitivo.

Além do órgão oficial responsável pelo setor de reforma agrária e


colonização no país, outra instituição que se destaca na emissão de documentos
comprobatórios para a utilização da “lei do boi” por candidatos interessados em
ingressar na UFRRJ são os sindicatos rurais. As certidões e declarações emitidas
pelos sindicatos rurais ganham relevo no fim da década de 1970 e início da década
de 1980. Embora uma interpretação literal do Decreto nº 63.788, de 12 de dezembro
xx
de 1968, que regulamentava procedimentos para o preenchimento das vagas
ocupadas através da lei 5.465/68, atribuísse legitimidade aos sindicatos rurais, por
que tal artifício era tão pouco utilizado nos anos iniciais da lei? E, posteriormente,
por que o mesmo instrumento foi mais utilizado, ficando atrás apenas dos
documentos emitidos pelo INCRA?
Medeiros (1989) nos traz uma história dos movimentos sociais do campo em
que parte de seu estudo é destinada à questão do sindicalismo. Ao traçar um
histórico sobre a emergência e a consolidação das organizações de trabalhadores
rurais, a autora analisa desde o fortalecimento do camponês como uma categoria
política, mobilizados para um projeto de transformação social, principalmente a
partir da efetivação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) como um partido de
massa, ao período de repressão às organizações de trabalhadores de forma geral.
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Durante a ditadura militar, as organizações sindicais são objeto de intensa


intervenção estatal, conferindo-lhes um modelo próprio de acordo com os interesses
do regime. Um ato de desmobilização sindical, que atingia a própria natureza do
cidadão do campo, diverso e complexo. No campo institucional, a portaria nº 71, de
2 de fevereiro de 1965, ao estabelecer a categoria “trabalhador rural” através de uma
singularização conceitual, trouxe, no campo político, a problemática da unidade
sindical, em que a diversidade de interesses não era contemplada pelos sindicatos
rurais, fragmentando a relação entre trabalhador rural e sindicatos. xx
Ianni (1985) também destaca, no campo teórico, como abordagens que
identificam o camponês como uma classe homogênea desconsideram a diversidade
cultural, religiosa ou racial que envolve os movimentos camponeses, cuja
conseqüência seria a “abertura” a influência externas, principalmente de caráter
urbano, como partidos políticos.
Retomando o pensamento de Medeiros, a autora destaca o fim da década de
1970 e início dos anos 1980 como um período de recuperação de espaço político por
parte dos trabalhadores rurais, marcado não apenas pelas negociações de transição
política, mas também pela inserção de novos representantes dos movimentos sociais
do campo.
Pelo exposto, buscar uma interpretação da atuação dos sindicatos a partir de
1968 é uma tarefa fundamental para identificar a importância das organizações
sindicais na legitimidade comprobatória entre candidato e propriedade rural.
Uma das grandes pesquisas relacionadas à questão sindical pós-68 é feita por
Peter Houtzager (2004), que evidencia as bases do projeto de modernização do setor
agrário a partir de três pilares: aumentar a produção agrícola (criação de um setor
agroindustrial para integrar o setor rural nacional à economia internacional);
fomentar a integração nacional (avanço do Estado em áreas tidas como possíveis
“focos” de revolução, dominadas por oligarquias locais) e incorporar o trabalhador
rural à sociedade nacional (através da criação de sindicatos regulados pelo Estado,
mantendo, desta forma, o controle sobre a relação entre este e os sindicatos rurais).
Houtzager destaca que o projeto agrário do governo militar, motivado pela
ideologia da segurança nacional, visava intensificar sua atividade intervencionista no
interior de vários pontos do território nacional, utilizando-se, dentre outros
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instrumentos, dos sindicatos. Todavia, o sindicalismo como instrumento do Estado é


uma questão complexa, que abrange um antagonismo de caráter político-social.
Através de uma política autoritária de “eliminação” da esquerda então articulada em
movimentos de iminente influência política, por que o governo militar estimulou a
organização do sindicalismo?
O autor ainda enfatiza que, neste período, os sindicatos assumem uma função
instrumental para o Estado, atuando como “braços” distributivos deste, articulando
Estado e zona rural. Esta articulação, destaca o autor, dava-se por meio da prestação
de serviços, principalmente de natureza assistencialista, mantendo o homem do
campo em seu habitat, além de constituir uma forma de desarticulação de
movimentos sociais ligados ao campo, estabelecendo uma relação impositiva sobre
as oligarquias rurais, exercendo um controle efetivo sobre a terra e o trabalho. Um
dos grandes exemplos do exposto foi a criação do PRORURAL (Programa de
Assistência Técnica e Extensão Rural), cuja conseqüência foi a proliferação da
prestação de serviços sociais pelo Estado por meio dos sindicatos, que atacados em
sua autonomia política, perdiam legitimidade frente aos movimentos grevistas e
renovadores, à medida que as tensões no campo se intensificavam no final dos anos
1970. Desta forma, compreende-se por que a lei atribuía aos sindicatos rurais
legitimidade para a emissão de documentos comprobatórios de beneficiados pela
“lei do boi”, vinculando aos sindicatos rurais funções atípicas quanto à sua natureza
política, intensificando seu caráter assistencialista modelado pelo Estado.

A relação candidato/propriedade rural: a quem a “lei do boi” favoreceu?

Quanto à relação entre candidatos e propriedade rural, dois pontos devem ser
destacados e analisados. O primeiro consiste em identificar até que ponto a
documentação apresentada pelos alunos constituía uma relação de fato entre os
candidatos e as respectivas propriedades. O segundo ponto consiste em, através de
uma análise objetiva da documentação, visualizar quem eram os pequenos, médios e
grandes proprietários que se utilizaram da “lei do boi”.
Este ponto terá como objeto exclusivamente os alunos que fizeram uso da lei
através da vinculação com a propriedade rural, excluindo-se os candidatos
provenientes do ensino agrícola. Entende-se que a documentação que vinculava os
candidatos às propriedades rurais é muito mais complexa e problemática, referindo-
se aos dois pontos acima citados: sua veracidade e seu aspecto socioeconômico.
É importante destacar o que se entende por esta relação entre candidato e
propriedade rural. A lei previa uma relação abrangente, materializada tanto no plano
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jurídico quanto no fático. Ao determinar que as vagas fossem destinadas a


“candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras”, não apenas
a posse e/ou a propriedade da terra constituíam um vínculo do candidato com a
agricultura que assegurasse o benefício da lei, mas além desta relação jurídica o uso
da terra, mesmo que não firmado através de instrumentos jurídicos assegurava o
benefício. Desta forma, além da relação jurídica (posse e/ou propriedade) e da
relação de fato (prevista em relações jurídicas, como o arrendamento, ou não, como
nos casos em que os documentos atestam ser o candidato “produtor rural” sem a
necessidade de comprovar uma relação contratual) assegurava o benefício legal.
Quanto à documentação relativa exclusivamente às propriedades rurais, tem-
se em alguns casos o benefício sendo utilizado por proprietários de grandes imóveis
rurais, o que poderia enfatizar a opinião na qual a lei beneficiou apenas os grandes
proprietários de terras. Dentre os beneficiados, o aluno 8201002-1, Alberto de
Azevedo Antunes Filho, apresentou documentos comprobatórios sobre a
propriedade de cinco fazendas em diferentes cidades do interior do Rio de Janeiro,
sendo três definidas como latifúndio por exploração (AUFRRJ, 1985, Caixa 07,
A/F); o aluno 8101027-3, Geraldo Magela Martins, apresentou documentação
relativa a quatro propriedades rurais localizadas em Minas Gerais, sendo três
definidas como latifúndio por exploração, (AUFRRJ, 1985, Caixa 08, F/L) e a aluna
8001073-3, Soraya Torres Vieira, foi beneficiada pela lei após apresentar
documentos referentes a quatro propriedades rurais no em Minas Gerais (AUFRRJ,
1984, Caixa 09, N/Z). A documentação analisada até o presente forneceu
informações sobre 132 propriedades rurais utilizadas como instrumento do benefício
à “lei do boi”, cujas extensões estão inseridas na tabela 1.2.

Tabela 1.2: Extensão das propriedades apresentadas para acesso à UFRRJ pela
“lei do boi”
Tamanho (em hectares) Número de propriedades
Até 10 8
De 10,1 a 50 27
De 50,1 a 100 25
De 100,1 a 500 30
De 500,1 a 1.000 8
Acima de 1.000 14
Sem descrição quanto à extensão 20
TOTAL 132
FONTE: Formandos agronomia: caixas 07 a/h, 08 j/m e 09 n/z de 1984; caixas 07 a/f, 08 f/l, 09 m/r e
10 r/z de 1985 e caixas 07 a/f, 08 g/l, 09 m/r e 10s/z de 1986.

Além da extensão da propriedade, outra forma de determinar uma análise


socioeconômica dos beneficiários da “lei do boi” no interior da UFRRJ é através da
pesquisa sobre a classificação dos imóveis objetos desta análise preliminar. Este tipo
de análise é fundamental para a compreensão dos questionamentos acerca dos
beneficiados pela lei. Na busca de uma melhor compreensão sobre a classificação
das propriedades analisadas e seu caráter socioeconômico, torna-se fundamental o
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conhecimento do significado de cada classificação, o que pode ser extraído da lei nº


4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida como “Estatuto da terra”.
Dentre os documentos analisados, ganham destaque as propriedades
classificadas como “empresa rural” e “latifúndio por exploração”, tipificados nos
artigos 4º, 41 e 46 da referida lei. A empresa rural é definida como o imóvel que,
tendo a extensão de um até 600 módulos, seja explorado "econômica e
racionalmente", com cerca de 50% de sua área aproveitada. Já o conceito de
latifúndio na legislação brasileira abrange dois tipos: latifúndio por dimensão e por
exploração. O latifúndio por dimensão pode ser extraído do artigo 4º, V, alínea a,
combinado com o artigo 46, parágrafo primeiro, alínea a do Estatuto da terra, como
o imóvel rural que exceda, na dimensão de sua área agricultável, a seiscentas vezes o
módulo médio do imóvel rural, da forma como foi definido ou a seiscentas vezes a
área média dos imóveis rurais na respectiva zona. Já o latifúndio por exploração
encontra-se definido no artigo 4º, V, alínea b da mesma lei, como a propriedade
rural que não excedendo o limite referido anteriormente, mas tendo área agricultável
igual ou superior à dimensão do módulo ou imóvel rural na respectiva zona, seja
mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do
meio, com fins especulativos, ou seja, deficiente ou inadequadamente explorado, de
modo a vedar-lhe a classificação como empresa rural (BRASIL, 1964). A partir
destas definições, torna-se possível uma análise mais detalhada de aspectos
socioeconômicos dos beneficiários da lei, tendo como base a documentação
analisada. Das 132 propriedades analisadas, cinqüenta e quatro (54) são classificadas
como “latifúndio por exploração”, vinte (20) como “empresa rural”, dezesseis (16)
como “minifúndios”, duas (2) como “projeto fundiário” e quarenta (40) sem
qualquer classificação. Desta forma, pode-se identificar uma grande diversidade
relacionada ao perfil socioeconômico dos beneficiários, com prevalência de
latifundiários.
Outro ponto que merece destaque é a grande quantidade de propriedades
rurais concentradas na região sudeste do país, fortalecendo um perfil discente
amplamente regionalizado. Assim como nos casos dos ingressantes pelo ensino
agrícola, a documentação apresentada pelos egressos via relação
candidato/propriedade rural demonstra uma procedência absoluta de alunos
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provenientes da região sudeste, com ênfase para o estado do Rio de Janeiro. Do total
de propriedades pesquisadas, 75% concentram-se na região sudeste, das quais 36%
no estado do Rio de janeiro, 18% em Minas Gerais, 17% em São Paulo e 3% no
Espírito Santo. Fora da região sudeste, a região do país de maior procedência quanto
às propriedades rurais utilizadas como instrumento de acesso à UFRRJ pela “lei do
boi” é a região nordeste, como 9% do total. A região, assim como o estado de cada
propriedade analisada encontra-se na tabela 1.3.

Tabela 1.3: Região e estado das propriedades rurais pesquisadas para


concessão do benefício à “lei do boi” na UFRRJ. Anos de 1984 a 1986

Região % Estado un %
Rio de Janeiro 48 36

Minas Gerais 24 18
Sudeste 75
São Paulo 23 7

Espírito Santo 4 3

Bahia 9 7

Nordeste 9 Pernambuco 2 1

Sergipe 1 1

Paraná 9 7
Sul 7,5

Santa Catarina 1 1

Amazonas 1 1
Norte 1,5
Rondônia 1 1

Goiás 5 4
Centro-oeste 7
Mato Grosso do 4 3
Sul
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100 132 100

O que se pode concluir até o momento, é que houve dois períodos distintos
da implementação da “lei do boi” pela UFRRJ. O primeiro foi marcado pela grande
quantidade de beneficiados provenientes do ensino agrícola, cuja documentação,
pautada nas determinações da lei, não fornece qualquer informação acerca da
relação entre candidato e propriedade rural ou um vínculo com a agricultura, mas
uma relação prévia com o ensino agrícola. No segundo momento, a relação entre os
beneficiados pela “lei do boi” vai além da relação com o ensino agrícola, e torna-se
possível identificar uma relação jurídica entre candidatos e propriedade privada, seja
através da posse ou propriedade, ou através de relações contratuais, concluindo-se
pela utilização da lei, em grande parte, por alunos que mantinham alguma relação
com latifundiários.

FONTES E BIBLIOGRAFIA

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privilégio? In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.38, p.169-185, jun.2010.

AUFRRJ Arquivos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da


Terra, e dá outras providências.

__________. Decreto nº 63.788, de 12 de dezembro de 1968, Regulamenta a Lei nº


5.465, de 3 de julho de 1968, que dispõe sobre o preenchimento de vagas nos
estabelecimentos de ensino agrícola. Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=63788&tipo_nor
ma=DEC&data=19681212&link=s. Acesso em 21 de janeiro de 2014.

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CUNHA, Luiz Antônio. A universidade reformanda: o golpe de 1964 e a


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HOUTZAGER, Peter. Os últimos cidadãos: conflito e modernização no Brasil


rural (1964 – 1995). Tradução: Graziela Schneider; prefácio e revisão técnica
Adrian Gurza Lavalle. São Paulo: Globo. 2004.

IANNI, Octávio. In. SANTOS, José Vicente Tavares dos (org). Revoluções
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MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio
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OLIVEIRA, Carlos Alberto Serpa de. A Comissão Nacional de Vestibular


Unificado (CONVESU): origens e papel normativo. Educação e Seleção, São Paulo,
n. 11, p. 13-19, jan./jun. 1985.

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