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Anais
Recife
2014
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.
COMITÊ CIENTÍFICO:
COMISSÃO ORGANIZADORA:
APRESENTAÇÃO
CONFERÊNCIAS
tradicionais do seu núcleo familiar, para se tornar uma “moça de família”. Por
manifestar aptidão para a pintura, aos quinze anos de idade, ingressou na Escola de
Belas Artes de Pernambuco. Instituição que possibilitou à jovem Terezinha muito mais
do que sua formação artística. Tornou-se um espaço de convivência social com os
outros jovens artistas da cidade, criando laços afetivos e vivenciando a liberdade que
tanto almejava.
Quando completou 21 anos, foi direcionada por seus pais para um “bom
matrimônio”, tornando-se logo em seguida, mãe de duas meninas. No entanto, a vida de
casada não trouxe para Tereza a realização pessoal que ela esperava alcançar saindo da
casa paterna. Foi nesse período de tristeza e solidão que Tereza conheceu o dirigente
comunista Diógenes Arruda Câmara, membro ativo do PCB, presença frequente na
residência da pintora. Aos poucos foram se conhecendo, estreitando os laços afetivos,
aumentando os sentimentos mútuos e o desejo de estarem juntos. Em 1964, Tereza
assinou o seu desquite do primeiro casamento, podendo então seguir o seu novo
companheiro até a morte de Diógenes. Em nome do seu amor e de sua felicidade, a
referida pintora viveu todo o processo de perseguição, fuga, captura, tortura,
aprisionamento e exílio de seu companheiro, transformando-se clandestinamente na
camarada Joana Arruda.
1
Entrevista inédita da artista em 3 jun. 2013.
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política foi motivada inicialmente por seu irmão mais velho, Murilo2, fazendo com que
seu envolvimento político fosse crescendo aos poucos, mas sem assumir publicamente
adesão a qualquer partido. Sendo assim, a política assumia em sua vida uma posição
secundária, realidade que mudou drasticamente a partir do seu relacionamento com o
dirigente comunista Diógenes Câmara.
Em nome desse amor e de sua realização pessoal, Tereza abre mão da vida que
construíra até então, para adotar uma vida totalmente diferente. Renunciou ao conforto e
à segurança que o status social de “senhora de respeito” lhe proporcionava, para abraçar
todos os riscos e perigos que o relacionamento com um dirigente comunista poderia
acarretar. Os passos de Tereza modelaram-se ao caminho trilhado por Diógenes. As
escolhas, os valores, os interesses e as motivações da nossa pintora começaram a girar
em torno do universo de seu novo companheiro. Raul Córdula ressalta, de modo
poético, esse entrelaçamento de vidas, num texto publicado em 1985. Segundo ele,
Tereza viveu
mergulhada numa grande aventura de amor à humanidade, no Brasil, no
Chile, na Europa, na Ásia e no resto do planeta; rompida de sua identidade,
ela seguiu Diógenes Arruda Câmara, um dos principais dirigentes da
esquerda brasileira na sua luta pela libertação dos povos. [...] Por 15 anos a
sua vida foi Diógenes e a vida de Diógenes, o partido.3
2
Murilo Barros Costa Rêgo seguiu a carreira política desde cedo, tornando-se deputado federal pelo
PTB, nos anos de 1963/64. Teve seu mandato cassado por Ato Institucional pelo regime ditatorial
militar, publicado no Diário Oficial da União em 10 de abril de 1964.
3
Panfleto impresso pela Câmara Municipal de Olinda em comemoração ao dia internacional da mulher,
em 1985.
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Diógenes não me deixou livre totalmente. Eu poderia ter feito a minha tese
sobre o iluminismo ou alguma outra coisa no campo das artes, mas tive que
fazer sobre a realidade do proletariado. Fiz porque o partido me pedia isto. 4
4
Entrevista inédita da artista em 14 set. 2012.
5
Idem.
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Apresentamos como exemplo a reportagem: MOURA, Diana. Exposição Sete luas de Sangue no MAC.
In: JC On-line, Recife, 30 mar. 2011. Disponível em <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/artes-
plasticas/noticia/20 11/03/30/sete-luas-de-sangue-no-mac-542.php>. Acesso em 14 set. 2012.
7
Entrevista inédita da artista em 17 jun. 2013.
8
Entrevista inédita da artista em 3 jun. 2013.
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Com isto, aos poucos fomos percebendo que a nossa artista tivera seguido
Diógenes de modo clandestino, acobertada por documentos falsos, que lhe dava a
identidade de Joana Arruda. Visando a segurança de Tereza e de suas filhas, Diógenes
sempre evitou que ela fosse identificada pelos militares como sua companheira.
Justifica-se, assim, a viagem de Tereza para o exterior com outra identificação, para
manter a sua identidade real livre de qualquer suspeita. Como suas palavras bem
expressam, a mulher que viajava para o exterior, ao lado de Diógenes Arruda, não era
Tereza Costa Rêgo, mas, sim, Joana Arruda. Oficialmente, a pintora estava em outro
lugar, que não ao lado de um dirigente comunista. Ela não foi uma exilada, mas sim a
companheira de um exilado político, vivendo clandestinamente como outra pessoa.
Pelo cuidado que Diógenes sempre teve em livrar o nome de sua companheira
das ações do partido, ao contrário do que escreveu a pesquisadora da Fundação Joaquim
Nabuco, Semira Adler Vainsencher10, defendemos que Tereza nunca foi perseguida
diretamente pelo regime militar por causa de sua militância. Mas, sim, viveu todo o
período de perseguição de seu companheiro, acompanhando-o todo momento em nome
do seu amor e de sua felicidade.
Interessante notar que mesmo com todas as intempéries desse período, Tereza
não deixou de produzir e de expor a sua produção. Ela não se incomodava com a ideia
de atribuir a autoria de seus quadros a outro nome, pois o importante era a manifestação
de sua arte, e não necessariamente o reconhecimento de seu nome. Outrossim, a vida de
Tereza nesse período se adequara à caminhada política de Diógenes, ficando o ato de
pintar como algo esporádico, pois as atividades em prol do partido, do comunismo e da
luta contra o regime ditatorial falavam mais alto, ocupando boa parte de seu cotidiano.
De modo intencional, o próprio Diógenes fazia questão que a sua companheira nunca
estivesse envolvida em ações arriscadas do partido, evitando perseguições ou algum
outro perigo para ela e suas filhas. Geralmente, a camarada Joana ajudava na montagem
de disfarces de outros camaradas que precisavam viajar, como escrevem os jornalistas
Bruno Albertim e Olívia Mindêlo: “Nunca foi, aliás, a simples companheira de Arruda.
9
Entrevista inédita da artista em 26 out. 2012.
10
ADLER, Semira. Tereza Costa Rêgo. Disponível em: <http://www.caestamosnos.org/pesquisas_Sem
ira/pesquisa_semira_adler_Tereza_Costa_Rego.htm>. Acesso em: 1 jan. 2013.
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‘Eu era – e ainda sou – militante. Nunca participei de operações arriscadas. Era a
motorista do partido’, lembra. Outra de suas funções: disfarçar companheiros
clandestinos. Colocou muita peruca na cabeça de quem ia pro Araguaia.”.11
11
ALBERTIN, Bruno; MINDELO, Olívia. In: Tereza Costa Rêgo 80 anos: o tempo é aliado. In: NordesteWeb,
Recife, 26 abr. 2009. Disponível em: <http://www.nordesteweb.com/not04_0609/ne_not_
20090426a.htm>. Acesso em: 4 jul. 2013.
12
Entrevista inédita da artista em 26 out. 2012.
13
Dentre as narrativas biográficas coletadas durante a pesquisa, consideramos o conteúdo publicado na
dissertação defendida por Cristiana Arruda, em 2001, intitulada Brasil: Ame-o ou deixe-o: Les exilés
politiques brésiliens en France pendant le régime militaire – 1964 a 1979 – récits de vies, de maior
relevância e coerência entre os fatos. Neste trabalho encontramos uma entrevista concedida pela
pintora sobre sua vida nesse período.
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perseguições por causa de seu histórico político. Viveram escondidos, até que seu
companheiro foi capturado e preso. Nesse período foi seriamente torturado14, mas
permaneceu fiel aos camaradas e aos projetos do partido. Mesmo em meio à dor das
torturas permaneceu calado sobre o seu relacionamento com Tereza, evitando que ela
corresse algum risco, tornando-se inclusive uma possível moeda de troca entre os
militares e Diógenes. Podemos perceber esse medo de Diógenes nas palavras da própria
Tereza:
Aí, quando Diógenes foi preso ele sempre dizia pra mim: “se eu for preso,
você não me conhece, nunca me viu, nunca vai me visitar porque eu não vou
dizer nada sobre você, onde eu moro, não se preocupe. Você pode ter sua
vida absolutamente normal porque eu não direi nada sobre você, então, você
esqueça que eu existo porque eu não vou sair nunca da prisão. Eu mando
notícia pra você, mas não me procure, de jeito nenhum, porque aí eu tenho
medo que envolva você e suas meninas, e aí, eu não vou me perdoar”.
(ARRUDA, 2001, p. 59).
Nos dois primeiros anos em que esteve preso, a comunicação entre os dois se
dava por meio da filha do primeiro casamento de Diógenes, que servia como
mensageira, transportando pequenos bilhetes escondidos em seus cabelos. Após esse
período, Tereza não aguentou a distância, e decidiu assumir o risco, indo visitá-lo
constantemente no presídio Tiradentes. Em 1969, Diógenes segue para o exílio. A partir
daí, ambos iniciaram uma vida de itinerância até o ano de 1979, quando finalmente
retornam ao Brasil, pela aprovação da lei da anistia. É interessante distinguirmos os
países que serviram como morada (Chile, França e Portugal) daqueles que
simplesmente foram visitados esporadicamente pelo casal, cumprindo alguma missão
do partido comunista, como é o caso da Albânia e China.
Quando Diógenes foi liberto, ele e Tereza permaneceram alguns dias ainda em
São Paulo, tempo suficiente para o partido organizar a viagem deles para fora do Brasil.
Nesse período, não havia muitas opções para os militantes políticos que precisavam sair
do país e queriam continuar comprometidos com a causa socialista ou democrática,
locando-se em países próximos à sua terra de origem. Como Cortez nos aponta:
14
Diógenes Arruda apresentou as torturas que sofreu no período da ditadura, em carta escrita de
próprio punho, arquivada entre os documentos históricos do projeto “Brasil nunca mais”, organizado
pela Arquidiocese de São Paulo, disponível em
<http://www.dhnet.org.br/memoria/nuncamais/index.htm>. Dentre os diversos arquivos existentes
nesse acervo, podemos localizar a referida carta no Tomo V, Volume 1 - A tortura, nas páginas
numeradas de 722 até 738.
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Tereza necessitou abrir mão de coisas, pessoas e lugares para continuar sua
caminhada em busca da realização pessoal. Nesta fuga, Diógenes ficou na embaixada da
Argentina até o partido conseguir a sua transferência para outro país. Enquanto isso,
Tereza utilizou seu passaporte verdadeiro para migrar até a Argentina e depois para o
Brasil, onde ficou esperando a determinação para onde seu companheiro seguiria exílio.
Finalmente, Diógenes viaja para Paris, sendo acompanhado logo em seguida por sua
companheira de vida e de luta.
Ao contrário do que aconteceu no Chile, Tereza não necessitou usar a identidade
clandestina de Joana Arruda, na França, pois o casal gozava neste país de toda
documentação legal para permanecer e usufruir das oportunidades locais a que teve
acesso. Como ela nos atesta:
15
Entrevista inédita da artista em 26 out. 2012.
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Mas aí, Diógenes já era exilado do governo francês. Então já tinha direito a
essas coisas. A gente já tinha passaporte, tinha toda a documentação francesa:
a carta de séjour. Tudinho. Eu fiz universidade, mas eu não era exilada, não.
Ele que era exilado. E aí, eu assinei o meu passaporte brasileiro de novo. Eu
usava o meu passaporte frio nas viagens, mas na França, eu era Terezinha
Barros Costa Rêgo (ARRUDA, 2001, p. 63).
16
BRASIL Presidência da República. Lei Nº 6.683 de 28 de agosto de 1979 (Lei da Anistia). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm>. Acesso em: 23 dez.2013.
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Entrevista inédita da artista em 3 jun.2013.
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de seus ideais. Sabia que pela educação, a mulher teria mais possibilidades de vencer os
desafios sociais firmados pelo machismo. Soube aproveitar o período em que vivera na
casa de seus pais para concluir o magistério, o científico e ainda aprimorar sua formação
artística na Escola de Belas Artes de Pernambuco.
Quando estava em São Paulo, acompanhando clandestinamente Diógenes,
percebeu que seria o momento de aprofundar seus conhecimentos por meio da formação
superior, ingressando então no curso de bacharelado em História na Universidade de
São Paulo. Tereza nos diz que tinha consciência da importância desse curso para a sua
subsistência nesse difícil período, pois estava desquitada do seu primeiro marido, não
poderia contar com a ajuda dos seus irmãos e Diógenes já estava vivendo escondido dos
militares. Ela lembra que quando estava entrando em sala de aula para fazer a última
prova do curso superior, sua filha Maria Tereza avisa-lhe que Diógenes havia sido
capturado e que precisavam “limpar a casa”18 urgentemente. Mesmo abalada com a
notícia, movida pela consciência da importância do diploma para a vida de toda a sua
família, decidiu fazer a prova, e só depois ir para sua casa.
Já formada, manteve-se nesse período de crise financeira dando aulas de história
em turmas de preparação para o vestibular. Sobre sua experiência como professora, a
artista nos fala, com certa comicidade, não ter sido tão boa profissional, mas que
precisava desse trabalho para sobreviver enquanto Diógenes estava preso:
Eu era péssima professora. [risos] Sofri muito, porque eu nunca fui muito boa
em datas, e precisava ter todas aquelas datas na cabeça, fazendo paralelo
entre elas. Maria Tereza tinha pena de mim, porque ela tinha sido minha
aluna, e via como eu sofria. Além das datas, eu sempre falei baixo e sou um
pouco gaga. Foi um período muito difícil para mim, muito puxado. 19
18
Expressão “limpar a casa” foi utilizada para designar a destruição de qualquer indício de filiação ao
partido que pudesse ser utilizado pela força de repressão contra Tereza e suas filhas.
19
Entrevista inédita da artista em 14 set. 2012.
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ISBN: 978-85-415-0440-9.
Referências:
ADLER, Semira. Tereza Costa Rêgo. Disponível em: <http://www.caestamosnos.org/
ALBERTIM, Bruno; MINDELO, Olívia. Tereza Costa Rêgo 80 anos: o tempo é aliado. In:
NordesteWeb, Recife, 26 abr. 2009. Disponível em:
<http://www.nordesteweb.com/not04_0609/ne_not_20090426a.htm>. Acesso em: 04
jul. 2013.
RÊGO, Tereza Costa. Tereza Costa Rêgo. Recife: Editora Publikimagem, 2009.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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ISBN: 978-85-415-0440-9.
Natália C. S. Barros
Universidade Federal de Pernambuco
natibarros1@yahoo.com.br.
Men in Dark Times, livro da filósofa Hannah Arendt publicado em 1968 tem
como tema básico a preocupação com o totalitarismo, a revolução, a condição humana e
a violência, temas examinados a partir de fatos e situações concretas 21. No Brasil,
Homens em Tempos Sombrios, publicado em 1987, uma coletânea de artigos e ensaios,
apresenta evocações, depoimentos e uma visão de conjunto de trajetórias de sujeitos que
se moveram no mundo e foram afetadas pelo tempo histórico, a primeira metade do
século XX, com suas catástrofes políticas, seus desastres morais e seu surpreendente
desenvolvimento das artes e ciências. O tempo histórico, os “tempos sombrios”,
mencionado por Hannah Arendt no título deste conjunto de ensaios é emprestado do
poema “À posteridade de Brecht:
(...)
Gostaria de ser sábio.
Os livros antigos nos informam o que é sabedoria:
21
No Brasil, a publicação “Homens em Tempos Sombrios” (1987, Cia das Letras) é um texto que
apresenta um conjunto de ensaios sobre pessoas admiradas por Arendt, como Walter Benjamin, Karl
Jasper e Rosa Luxemburgo.
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Eu sempre disse que o Partido Comunista não era uma passagem com um
capacho onde você deixava toda a sujeira da sociedade e entrava puro, porque
era comunista. Isso não existe. A pessoa é comunista como a pessoa é. Agora,
ela pode fazer uma revisão de sua educação. Mas não existe a condição de se
livrar de toda a carga da sociedade em que vive (CAPISTRANO, 1997, p.
357).
22
MITRA Arquidiocesana de São Paulo. Perfil dos atingidos. Projeto Brasil: Nunca mais. Tomo III.
Prtrópolis Vozes, 1998. Apud Teles;Cruz, 2012.
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Entre 1958 e 1964, Maria Augusta viveu em Recife com seu companheiro David
Capistrano Costa, que atuou na política pernambucana e dirigiu os jornais "A Hora" e
"Folha do Povo". Com o golpe militar, o militante entrou na clandestinidade e asilou-se
na Checoslováquia, em 1971. Retornou ao Brasil em 1974, atravessando a fronteira em
Uruguaiana, Rio Grande do Sul, em um taxi. David Capistrano foi sequestrado no dia
16 de março de 1974, no percurso entre Uruguaiana e São Paulo.
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Depois de 1974, quando seu companheiro foi morto, junto com vários líderes do
PC, ela passou a ter uma atuação mais visível no combate à repressão no Brasil.
Articulou –se no Grupo de Familiares de Presos Políticos, com o apoio da sociedade
civil, Associação Brasileira de Imprensa- ABI, CNBB e OAB. Foi uma liderança no
Movimento Pela Anistia e em Campinas convidada por Terezinha Zerbini atuou no
Movimento Feminino pela Anistia, mantendo contato com os membros de esquerda do
estado:
REFERÊNCIAS
GT1
comunismo ou da teoria marxista, mas o que será relatado neste texto é um discurso de
desqualificação da esquerda feita de forma simplista, maquiavélica e mal fundamentada.
Na Paraíba na década de 1960, os principais grupos de esquerda a serem
combatidos eram os sindicatos, os estudantes (secundaristas e universitários),
organizações educacionais como a Campanha de Educação Popular (CEPLAR), os
membros da própria Igreja Católica, políticos do extinto Partido Comunista Brasileiro
(PCB) e as Ligas Camponesas. Veremos como o periódico católico de posiciona perante
cada um, fazendo do discurso cristão uma crítica a um posicionamento político.
No primeiro tópico discorreremos sobre os grupos urbanos e a organização
política do estado. Já na segunda parte faremos um relato sobre o discurso católico
contra os movimentos sociais do campo, em especial às Ligas Camponesas.
falam pela Igreja27. Mas o jornal não emitia apenas opiniões conservadoras radicais. O
periódico procura ponderar a atuação desses clérigos junto aos movimentos populares.
Esses indivíduos querem apenas um mundo mais igualitário, justiça social que o
capitalismo não pode dar.
27
A Imprensa, 7 de abril de 1963, p. 2.
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Segundo Maria das Dores Paiva de Oliveira Porto e Iveline Lucena da Costa Lage (1995) a CEPLAR
surgiu a partir da atuação da Juventude Universitária Católica (JUC) na crítica ao assistencialismo do
governo estadual. Traçou-se um plano de ação junto aos cursos da UFPB, ficando os estudantes da
Faculdade de Filosofia engajados na questão da educação dos bairros mais pobres da capital.
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educacional utilizado pela CEPLAR, pois era um meio de levar as ideias marxistas para
as camadas sociais mais baixas.
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A Imprensa, 27 de outubro de 1963.
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desse grupo eram os municípios de Sapé, Marí, Mamanguape, Araçagi, Pilar, São
Miguel de Taipu, Santa Rita, Cruz do Espírito Santo e Caldas Brandão.
De acordo com Cesar Benevides (1985), a década de 1960 foi de mudanças na
estrutura agrária. Houve o início da mecanização do trabalho rural e o aumento da
quantidade de terras destinadas à prática da pecuária extensiva. O morador, que antes
trabalhava no latifúndio para poder morar e usufruir de um pequeno pedaço de terra,
era, como relata o autor, substituído pelo trabalhador sazonal.
Assim, as relações entre trabalhador e empregado no campo não eram
semelhantes às dos centros urbanos, pois a legislação trabalhista não havia chegado ao
âmbito rural. Antes da organização das Ligas Camponesas, as discursões políticas não
eram pautadas junto aos trabalhadores rurais. A falta de organização dos trabalhadores
rurais era um fator que contribuía para o atraso do campo.
O Grupo da Várzea controlavam a maquina administrativa do estado em favor da
manutenção de uma ordem no campo que favorecesse seus interesses. A falta de
organização dos trabalhadores rurais dava margem ao controle dos camponeses pelos
latifundiários fazendo deles dependentes econômicos e controlados políticos. Esta
organização social ficou conhecida como paz agrária, uma prática garantida pelo jogo
político do Grupo da Várzea que utilizava do Estado e da falta de organização do
camponês para a exploração máxima do seu trabalho.
A paz agrária englobava os dois principais partidos na Paraíba, o PSD e a UDN.
As duas agremiações sempre se entendiam quando era necessário manter seus interesses
comuns, na chamada “conciliação conservadora”. Todo o aparato repressivo do Estado
era utilizado para assegurar ao latifundiário o controle da terra e a subordinação do
camponês. Indivíduos comprometidos com a manutenção da ordem pública estavam a
serviço dos principais grupos oligárquicos gerenciadores da agroindústria. O camponês
se encontrava em uma situação de completo desamparo social por parte do governo, que
ainda agia contra sua integridade física sempre que era considerado necessário.
Devido essa situação de marginalidade social do trabalhador rural, grupos de
trabalhadores rurais nordestinos de organizaram nas Ligas Camponesas30. A tomada de
30
As primeiras Ligas Camponesas foram organizadas pelo Partido Comunista Brasileiro em 1947, mas
foram desativadas devido o partido ter sido colocado na ilegalidade. Mais tarde, no final da década de
1950, as organizações camponesas voltam em Pernambuco, no Engenho da Galiléia, tomando grandes
proporções por todo o nordeste.
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classificados como “violentos”. A solução cristã que a Igreja propõe (que ela chama de
“reforma agrária”) não pode dar margem a atitudes como a invasão das terras dos
latifundiários, que, segundo eles, é uma ação de violência e desrespeito à ordem pública,
que é inspirada nas ações de violência que instalaram o comunismo em Cuba31.
Ou seja, para os católicos, toda a reivindicação camponesa deve ser feita desde
que não modifique a estrutura agrária vigente, que é excludente, elitista e violenta, mas
altere o comportamento e o pensamento do proprietário. Quando as lutas dos
trabalhadores do campo são pautadas para o fim do latifúndio, elas perdem toda a sua
legitimidade. E as Ligas Camponesas são contra o latifúndio. O problema não são os
trabalhadores rurais, sim as Ligas, formadas pelos agentes comunistas infiltrados.
Mas o que neste trabalho classifico como um sistema excludente, elitista e
violenta, o jornal entende como ordem. As invasões de propriedades na luta pela
democratização da terra, propostas que são direcionadas ao benefício da sociedade
como um todo, são consideradas apenas agitação e desordem:
31
A Imprensa, 18 de fevereiro de 1962, p. 2.
32
Foi um advogado e parlamentar pernambucano filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). Um dos
maiores responsáveis pela organização das Ligas Camponesas naquele Estado. Era favorável à atuação
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ideologia comunista. Para o jornal, “Quer Deus para si e o diabo para os outros” (A
denúncia... 15 de abril de 1962, p. 8), pois prega a divisão das terras, mas é dono de
uma vasta propriedade rural.
Nas comemorações de primeiro de maio o autor vai descrever como Julião
desvirtua o homem do campo para seus interesses particulares, modificando todo o
sentido de uma data comemorativa. O interesse de Julião é fazer da classe camponesa
massa de manobra para suas pretensões políticas comunistas.
das Ligas em favor da reforma do sistema agrário brasileiro. Com o golpe de 1964 teve seu mandato
cassado se exilando no México em 1965. (Fonte: CPDOC Fundação Getúlio Vargas:
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/francisco_juliao Acesso em: 07 de jun de 2013)
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A paz agrária, neste momento (1963) já está estava em crise. A atuação das Ligas
Camponesas colocava toda a classe conservadora em estado de alerta. A elite nacional
já começava a flertar com aqueles que sempre que necessário mostravam-se dispostos a
frear o avanço dos progressistas que pautavam mudanças sociais no Brasil: os militares.
Chegado o ano de 1964 na Paraíba, uma tragédia ocorrida na cidade de Marí, na
zona da mata paraibana, colocou novamente a violência no campo em discussão. O
episódio que ficou conhecido como “chacina de Marí”, ocorreu no dia 15 de janeiro e
envolveu no conflito camponeses e jagunços quando os primeiros teriam invadido uma
propriedade dos Ribeiro Coutinho, importante grupo usineiro do Estado. Cesar
Benevides (1985; 120) narra o ocorrido, mostrando que aqueles camponeses não
haviam invadido a propriedade dos Ribeiro Coutinho, eles estavam fazendo o preparo
da terra na propriedade de um senhor, Nezinho de Paula, na estrada que liga Marí à
cidade de Guarabira, quando um grupo invadira a propriedade em um jipe agindo com
agressão contra os camponeses. Entre as pessoas envolvidas na invasão estavam o chefe
de uma companhia agroindustrial de Sapé e membros da polícia militar do Estado.
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Do conflito resultou uma série de mortes que abalou o Estado, em sua maioria
homens ligados aos grandes proprietários rurais. Seguindo a linha dos principais jornais,
o A Imprensa, condenou o ocorrido, jogando a culpa da tragédia para o camponês, além
de aproveitar o incidente para renovar o discurso anticomunista no meio rural.
como massa de manobra de alguma força superior, a dos agentes comunistas, que quer
desvirtuar sua luta. E o segundo ponto vem para reforçar um fato que já era pauta no
periódico católico: a necessidade da presença dos militares para resolver a crise no país.
O ocorrido em Marí repercutiu por meses nos meios de comunicação do Estado.
No final do mês de março o governador Pedro Gondim reforçou o aparato policial na
Zona da Mata, área de grande conflito entre camponeses e jagunços, no intuito de
intimidar a atuação das Ligas. J. Barreto, que se tornou o porta-voz oficial do
anticomunismo do A Imprensa, vai novamente defender a estrutura agrária em favor dos
latifundiários, acusando de comunistas aqueles que subvertem essa ordem:
3. Considerações finais
A cultura política anticomunista serviu para criar uma afinidade da sociedade civil
com as forças armadas para que ocorresse a retirada do presidente João Goulart do
poder. Após o golpe civil-militar de 1964 os comunistas foram perseguidos ao longo de
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todo o país sob as ordens do novo Estado de Segurança Nacional. O exercito invadiu as
organizações esquerdistas, prendeu seus membros e revirou seus arquivos. O poder
legislativo passou a cassar todos aqueles (políticos e funcionários públicos) que de
alguma forma estavam ligados a qualquer organização de esquerda.
A Igreja Católica e a população foram as ruas festejar a tomada de poder dos
militares e a restituição da ordem social do país, nas chamas Marchas da Família com
Deus pela Liberdade. Em cada pequena cidade da Paraíba houve uma movimentação
como essa, em agradecimento às forças armadas por afastar o perigo comunista do
Brasil. A fé e os valores morais, como a família, estariam salvos do comunismo,
classificado como ateu e intolerante pela direita conservadora.
Além de afastar o perigo de uma suposta “ditadura comunista”, os militares
fortaleceram ainda mais o poder das elites locais, desarticulou as organizações sindicais
e subjugou ainda mais os camponeses às velhas práticas da política oligárquica do início
do século XX. Os anticomunistas conseguiram estancar a luta por uma sociedade mais
justa e ajudaram a instalar o Estado de exceção mais violento da história do país.
4. Referências
4.1 Hemerográficas
A denúncia do tartufo. A Imprensa. João Pessoa, 15 abr 1962, p. 8.
Advertência. A Imprensa. João Pessoa, 13 mai 1962, p. 1.
Ataraxia. A Imprensa. João Pessoa, 23 jun 1963, p. 3.
BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 14 jan 1962, p. 1.
BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 10 jun 1962, p. 1.
BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 05 ago 1962, p. 1.
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BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 02 jul 1963, p. 1.
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BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 26 jan 1964, p. 1.
BARRETO, J. Nota do dia. A Imprensa. João Pessoa, 22 mar 1964, p. 1.
Bases da política. A Imprensa. João Pessoa, 25 fev 1962, p. 1.
Clerofobia vermelha. A Imprensa. 8 abr 1962, p. 1.
Cuba era feliz. A Imprensa. João Pessoa, 15 jul 1962, p. 1.
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Episcopado aponta solução para o problema agrário. A Imprensa. João Pessoa, 25 fev
1962, p. 8.
FERNANDES, G. Comunismo diluído. A Imprensa. 06 mai 1962, p. 8.
FRANTZ, T. O estudante e sua atuação pública: A Imprensa. 7 out 1962, p. 4.
Imprensa católica enfrenta problemas atuais. A Imprensa. João Pessoa, 17 jun 1962, p.
1.
LIMA, F. Homens, ideias e livros: os padres comunistas. A Imprensa. João Pessoa, 23
jun 1963, p. 4.
MEDEIROS, M. B. Bilhete sem data: Eleitor católico e candidatos de comunistas. A
Imprensa. João Pessoa, 18 ago 1963, p. 1.
Meio século de fracasso na agricultura comunista. A Imprensa. João Pessoa, 01 jul
1962, p. 6.
MENDONÇA, I. Nota da cidade. A Imprensa. João Pessoa, 29 abr 1962, p. 1.
O problema agrário. A Imprensa. 18 fev 1962, p. 2.
Os vermelhos. A Imprensa. João Pessoa, 03 nov 1963, p. 1.
O que eles querem. A Imprensa. João Pessoa, 16 jun 1963, p. 3.
SCHMMIT, L. C. Fatos e doutrinas: a sub-minoria comunista. A Imprensa. 11 mar
1962, p. 8.
TELES, S. O que eles pensam. A Imprensa. João Pessoa, 14 nov 1962, p. 6.
4.2 Bibliográficas
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). São Paulo:
EDUSC, 2005.
BENEVIDES, Cesar. Camponeses em marcha. Brasil: Paz e terra, 1985.
BERNSTEIN, Serge. “A Cultura Política”. In: Jean-Pierre Rioux e Jean-François
Sirinelli. Para uma História Cultural. Lisboa : Editorial Estampa, 1998.
CITTADINO, Monique. Populismo e Golpe de Estado na Paraíba (1945-1964). João
Pessoa: Editora Universitária/Ideia, 1998.
LAGE, Iveline Lucena da C; PORTO, Dorinha de Oliveira. CEPLAR: História de um
sonho coletivo. Brasil: Conselho Estadual de Educação, 1995.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho. São Paulo:
Perspectiva, 2002.
_________. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org). Culturas Políticas na História:
Novos Estudos, Belo Horizonte: Argumentum, 2009.
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RÉMOND, René. Uma história presente. In: RÉMOND, René. (Org.). Por uma
História Política, Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996a
GT2
O ano de 2014 marca os 50 anos do golpe civil e militar que derrubou o presidente
João Goulart e abriu caminho para a instauração de uma ditadura. Esse marco tem
provocado uma onda de revisitação a esse período da nossa história. Por todo o país são
realizados seminários, eventos e conferências sobre o golpe de 64 e seus
desdobramentos. As editoras, aproveitando-se desse momento, vêm abastecendo o
mercado editorial com inúmeras publicações e reedições de livros sobre o período da
ditadura33.
Nas principais emissoras de televisão, quase que diariamente são exibidas
reportagens especiais sobre o golpe de 1964, complementadas com testemunhos de
pessoas que vivenciaram aqueles acontecimentos. Nos jornais e revistas de grande
circulação, os editoriais e matérias especiais fazem da ditadura seu principal tema. Em
suas páginas, através de textos e imagens, 1964 vai sendo significado, explicado e
atualizado para o leitor. Há, nessas reportagens, verdadeiras batalhas de significação. O
sentido desse passado é disputado a cada matéria, a cada imagem, a cada palavra. Essas
batalhas de significação devem ser lidas segundo a inteligibilidade das lutas e interesses
políticos do presente.
Dessa maneira, os temas relacionados ao golpe e à ditadura civil militar têm
ocupado a centralidade do debate político da sociedade. O silêncio que por muito tempo
predominou sobre os anos da ditadura pouco a pouco vem sendo superado. Boa parte da
sociedade brasileira tem manifestado o desejo de passar a limpo esse capítulo da nossa
história. Parece haver um entendimento entre alguns segmentos sociais de que não
poderemos aprofundar e aperfeiçoar a nossa democracia enquanto as questões relativas
à ditadura permanecerem em aberto. Dentre essas questões, a que mais tem causado
polêmicas e discussões é aquela referente à participação civil no golpe e na ditadura
instaurada em 1964.
Em um livro publicado esse ano, os historiadores Jorge Ferreira e Angela de
Castro Gomes enfatizam, logo na introdução, o apoio e a participação da população das
grandes cidades e das lideranças civis no golpe que derrubou Jango. Através da análise
das revistas O Cruzeiro e Manchete, os autores demostram a centralidade e importância
33
No dia o7 de março de 2014, a sessão de literatura e mercado editorial do blog do Estadão publicou
uma lista com diversos livros lançados em 2014 sobre o movimento de 1964 e a ditadura civil militar.
Conf.: http://blogs.estadao.com.br/babel/o-golpe-de-1964-em-livros/ (acessado em 25/03/2014, às
23h35min).
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O dia nove de abril de 1964 foi um dia incomum na cidade do Recife. A exemplo
do que já havia acontecido em outras capitais, foi realizada a Marcha Da Família Com
Deus Pela Liberdade em apoio ao golpe que destituiu o então presidente João Goulart.
Em plena quinta feira, o comércio, as indústrias, bancos e escolas fecharam as portas no
período da tarde para que as pessoas pudessem comparecer à Marcha. As empresas de
ônibus colocaram-se à disposição para transportar gratuitamente aqueles interessados
em participar do evento organizado pela Cruzada Democrática Feminina.
Conforme noticiou o jornal Diario de Pernambuco, cerca de 200 mil pessoas
compareceram à Marcha. Caminhavam lado a lado diversos segmentos sociais e
representantes das mais variadas categorias profissionais. Os participantes portavam
faixas e cartazes com agradecimentos às Forças Armadas por ter “livrado o país do
comunismo”36.
A Marcha percorreu diversas ruas da capital pernambucana, enquanto as pessoas
entoavam coros religiosos e cantavam o Hino Nacional, segundo registrou em suas
memórias o então Comandante do IV Exército General Joaquim Justino Alves Bastos
(BASTOS, 1965, p.371). Ao final da Marcha, houve uma concentração na Praça da
Independência, onde discursaram diversas personalidades militares e civis, entre elas
Amélia Molina Bastos, filha do General Justino Bastos e presidente da Campanha da
Mulher pela Democracia (Camde) e o sociólogo Gilberto Freyre.
A edição do dia 10 de abril do Diario de Pernambuco deu ênfase especial à
Marcha Da Família Com Deus Pela Liberdade, publicando em sua capa uma fotografia
na qual se vê uma multidão ocupando a Avenida Guararapes, seguida de uma legenda
na qual se exalta a grandeza da mobilização e “a firmeza das suas convicções
36
Diario de Pernambuco 10/04/1964
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37
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vermelhas”. Completam a página fotografias dos oradores, assim como mais imagens da
multidão segurando faixas com declarações anticomunistas.
Gilberto Freyre inicia o discurso exaltando a “aliança profunda” das Forças
Cívicas e das Forças Armadas. O sociólogo pernambucano comemora a intervenção dos
militares e a justifica como uma obra de “salvação pública”, pois para ele o Brasil
estava ameaçado por “agentes comunistas a serviço de estrangeiros” que pretendiam
“corromper e desarticular a democracia brasileira” (FREYRE, 1964, p. 9).
Essa representação do golpe civil militar como uma intervenção à favor da ordem
foi amplamente difundida ao longo do regime. Nessa visão, a ditadura teria surgido para
salvar a democracia e os valores tradicionais de família, religião e direito (REIS FILHO,
2014, p. 48). Todos esses valores estariam ameaçados pelas ações de “subversivos” que
planejavam fazer uma revolução comunista no país. Antes do golpe, esses signos de
insegurança e medo foram articulados por diversos segmentos sociais que, por meio de
parte da imprensa, procuravam representar a revolução comunista como uma realidade
palpável e iminente (PORFÍRIO, 2009).
Assim, diante de uma multidão concentrada na Praça da Independência, Gilberto
Freyre atualiza o perigo e os riscos que a democracia brasileira corria antes da
intervenção das Forças Armadas. Essas seriam, conforme escreveu em um artigo no dia
5 de abril, uma força “suprapartidária” que desempenharia, na história da República
brasileira, um papel de mediação e apaziguamento de conflitos, intervindo sempre nos
momentos de crise. As Forças Armadas seria, portanto, a única capaz de agir “acima das
paixões do momento” e dos interesses sectários de grupos. Para Gilberto Freyre, ela
seria a força mais comprometida com os interesses do país38.
Voltando ao discurso, em um determinado momento, Gilberto Freyre faz
referência à relação da Praça da Independência com a defesa da liberdade e dos Direitos
Humanos. Faz menção à memória de Demócrito de Souza Filho, morto pelos agentes do
Estado Novo na mesma Praça, durante um comício a favor da redemocratização, em
1945. Desse modo, Freyre estabelece, em sua fala, uma relação de continuidade entre a
luta pela democracia em 1945 e o movimento de 1964. Ambos os movimentos estariam
à serviço da liberdade, da democracia e da dignidade humana.
38
Gilberto Freyre. Forças Armadas: uma força suprapartidária na vida pública brasileira. Diario de
Pernambuco, 05 de Abril de 1964.
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39
DISCURSO DE POSSE DO GAL. HUMBERTO DE ALENCAR CASTELO BRANCO NA
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA EM 15 DE ABRIL DE 1964. Disponível em:
http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/upload/documentos/50.pdf.
40
Gilbero Freyre. Um ano histórico para o Brasil. Diário de Pernambuco, 26 de Abril de 1964.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz: Casa-Grande & senzala e a obra de
Gilberto Freyre nos anos 30. 2ª Ed. São Paulo: Ed. 34, 2005.
BASTOS, Joaquim Justino Alves. Encontro com o tempo. Porto Alegre: Editora Globo.
1965.
DE LUCA, Tânia Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: Pinsky, Carla
Bessanezi (Org.). Fontes Históricas. 3ª Ed. São Paulo: Contexto, 2011.
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FREYRE, Gilberto. Brasil não admite noite terrível em que só brilham estrelas
sinistramente vermelhas. Recife, 1964.
Resumo.
Introdução
O presente trabalho busca realizar uma análise sobre a repressão exercida pelo
governo brasileiro aos alemães e teuto-brasileiros41 – sejam eles residentes ou
transeuntes no Estado de Pernambuco – durante o período comumente denominado pela
historiografia de Estado Novo.
Para a realização de tal análise, buscou-se compreender a lógica do Estado Novo
enquanto estado de exceção. O cerne da discussão situa-se em torno do que vem a ser e
como funciona o estado de exceção e como tal fato possibilitou ao Estado Novo um
maior controle sobre diversas esferas sociais, tendo a polícia política (DOPS) atuando
como engrenagem que visava um controle cada vez mais efetivo sobre o indivíduo.
A Delegacia de Ordem Política e Social agia como o principal órgão de
repressão utilizado pelo governo. Repressão tanto aos alemães quanto a qualquer
indivíduo que estivesse fora do padrão político-social estabelecido, criado como ideal
por esse Estado. O poder central entendia esses grupos como ameaça. Dessa forma, a
resposta estabelecida naquele momento pelo governo foi a repressão. A existência do
medo – muitas vezes gerado em situações similares – é algo a ser considerado e
41
Que ou quem é de origem alemã e brasileira. Disponível em:
<http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=teuto-brasileiro>. Acesso em 13/02/2014.
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refletido. Não o medo de um mais fraco pelo mais forte, mas o medo daquilo que não
se poderia controlar ou que não se enquadrava – por algum motivo – ao sistema político
vigente. O estado de exceção vigente vai possibilitar à DOPS executar uma permanente
vigilância aos alemães a prisões em casas de detenção e campos de concentração.
Com a instauração do Estado Novo em 1937, o levante comunista de 1935, o
levante integralista em 1938 e o desdobramento da Segunda Guerra Mundial reforçaram
a tendência à criminalização de toda e qualquer dissidência política em relação ao
governo. Juntaram-se assim aos comunistas, como alvo das ações repressivas, os
integralistas e os "estrangeiros nocivos", considerados difusores de "ideologias
exóticas" (PANDOLFI, 1984). E com o aparato jurídico possibilitado pelo estado de
exceção, o Estado consegue promover a extensão em “âmbito civil dos poderes que são
da esfera da autoridade militar em tempo de guerra, e, de outro, uma suspensão da
constituição ou das normas constitucionais que protegem as liberdades individuais”.
(AGAMBEN, 2004, p. 17). Realizava-se assim uma repressão de maneira legítima,
dentro do estabelecimento legal.
É importante salientar que a vigilância exercida pela DOPS referente aos
alemães precede o período da entrada do Brasil no conflito da Segunda Guerra Mundial
contra os países do Eixo. Documentos produzidos por informantes da DOPS mostram
que a polícia política já trabalhava em cima do armazenamento de informações sobre a
comunidade alemã em Pernambuco antes desse período, principalmente em Paulista,
devido à quantidade de estrangeiros – muitos deles alemães – na Companhia de Tecidos
Paulista, fábrica existente em Pernambuco (Paulista) e Paraíba (Rio Tinto), de
propriedade da família de origem sueca, os Lundgren.
42
Fábio Correia de Oliveira Andrade foi designado pelo interventor no início da década de 1940 para
ocupar o cargo máximo da Dops no estado. LEWIS, Susan. Indesejáveis e Perigosos na Arena Política:
Pernambuco, o antissemitismo e a questão alemã durante o Estado Novo (1937-1945). Tese (Doutorado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
UFPE. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 165.
43
Com a implantação da ditadura Varguista em novembro de 1937, Etelvino Lins foi convidado a ocupar
a Secretaria do Governo de Pernambuco. Etelvino Lins assumiu de imediato o cargo, abandonando suas
funções na 1ª Delegacia Auxiliar. Permaneceu como secretário do Governo até dezembro de 1937,
quando foi nomeado secretário de Segurança Pública do estado. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/etelvino_lins>. Acesso em: 20/01/2014.
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explorada por ele. O “perigo alemão” estava relacionado ao medo de que a Alemanha
invadisse países latino-americanos e os anexassem, em caso da mesma sair vencedora
da guerra. Utilizaria para tal empreitada o apoio das colônias germânicas existentes
nesses países (PERAZZO, 1999). Logo, foi utilizado um discurso já constituído para
criar uma trama histórica que legitimasse as ações do governo. Durante o período da
Segunda Guerra, no imaginário social de uma maneira geral, os alemães eram
diretamente identificados como nazistas. Pouco era o discernimento sobre a colaboração
com o Terceiro Reich e o fato de simplesmente a pessoa ser natural da Alemanha. Para
a DOPS, os alemães eram taxados de nazistas e neles reverberavam as consequência
desse fato.
A DOPS atuava como a “força de repressão do Estado”, que tinha como
principal finalidade o controle do indivíduo considerado “potencialmente perigoso”
(CARNEIRO, 1998, p. 41). E os alemães eram colocados nessa posição. Assim, a
polícia política serviu como:
(...) instrumento viabilizador de um projeto político que é colocado à
sociedade como solução das crises engendradas nas estruturas político-
sociais. A justificativa para uso das medidas autoritárias tem seu alicerce na
“Desordem Social”, que passa a ser combatida com austeridade pelo governo
(SILVA, 1996, p. 67).
Esse discurso de que a desordem social deve ser combatida pelo governo em
defesa da segurança nacional será repetida como um mantra durante todo o período.
Essa é a maior justificativa do governo para toda questão da repressão; o mesmo
discurso que se repetirá na ditadura militar alguns anos depois.
Em 1937, houve o fechamento dos partidos políticos (ou qualquer atividade de
cunho político), incluindo o Partido Nazista, que possuía sede em algumas regiões do
país e que depois do decreto passou a funcionar clandestinamente (CAPELATO, 2012,
p. 132). Essa atitude foi entendida pelas autoridades alemãs como uma atitude ofensiva
por parte do governo brasileiro, criando uma situação incômoda entre os dois governos
(DIETRICH, 2005, p. 179). Em 1938, Vargas estabelece uma série de decretos,
chamados de “leis nacionalizadoras”, que afirmava ter como objetivo pressionar a
nacionalização dos estrangeiros. Os decretos leis não pararam, restringindo cada vez
mais as atividades dos imigrantes no país, como a organização da Seção Segurança
Nacional do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores, que tinha como
competência:
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44
Ofício do presidente do Clube Alemão e Beneficência de Pernambuco aos sócios do clube por ordem
da DOPS. Pernambuco, 30 de janeiro de 1942. Prontuário funcional. Fundo SSP nº: 29094 – DOPS.
Apeje.
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45
Agamenon Sérgio de Godói Magalhães, pernambucano de Serra Talhada, assumiu o cargo de
interventor do Estado de Pernambuco em 3 de dezembro de 1937. Agamenon havia ocupado também o
cargo de ministro do trabalho, indústria e comércio do governo Vargas em 1934. Em janeiro de 1937,
assumiu interinamente o Ministério da Justiça. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/agamenon_magalhaes>. Acesso em:
20/05/2013.
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campo. Podemos supor que, diante de tal situação, havia um certo acesso e
controle da localidade por parte da família (LEWIS, s.d. p., 709).
Porém, é importante salientar que mesmo sendo o campo de Chã uma alternativa
ao presídio comum, os alemães estavam sob a vigilância da DOPS e precisavam seguir
suas determinações e viver através das suas proibições. Os alemães foram submetidos a
uma série de restrições em seu cotidiano: proibição de falar no idioma alemão, restrição
de direito de ir e vir, apreensão de vários objetos de cunho pessoal como cartas escritas
em alemão, aparelhos de rádio46, como prova das acusações de que esses indivíduos
eram nazistas e/ou espiões e anexados os prontuários da DOPS.
A DOPS ainda acumulava – além de objetos pessoais dos internos – uma grande
quantidade de documentos burocráticos sobre o campo: número de internos, controle de
autorizações de entradas e saídas (liberados, na maioria das vezes apenas em casos de
doença), medicamentos e artigos de primeiros socorros enviados pela cruz vermelha.
Muitos que se encontravam “internados” não sabiam qual era a acusação contra eles. A
DOPS possuía listas dos internos do campo com a data de entrada e o número dos
respectivos prontuários, alguns constavam observações ao lado dos nomes: ouvido/não
foi ouvido e casado/solteiro47. Assim, pode-se afirmar que havia um controle
permanente da polícia política referente ao campo e consequentemente um controle do
Estado sobre a vida daqueles que estavam presos no campo.
A historiadora Priscila Perazzo (1999) afirma que existiram outros campos de
concentração no território nacional, como por exemplo em: São Paulo, Minas Gerais,
Rio de Janeiro, Pará, Pernambuco. Essa foi a forma encontrada pelo Estado para afastar
do meio social aqueles que eram considerados “indesejáveis” e que colocavam em risco
a segurança nacional. No Estado de Pernambuco, alemães foram presos em casas de
detenção e outros submetidos a reclusão no campo de concentração com suas famílias.
Tudo sobre o olhar atento, a vigilância constante da polícia política. Mesmo sendo a
Companhia de Tecidos Paulista responsável financeiramente pela manutenção do
campo, todas as ações referentes ao campo precisavam passar pela aprovação e
autorização da DOPS. Até mesmo a saída de internos com problemas de saúde que
precisassem se deslocar para hospitais na capital deveria acontecer mediante uma
46
Documento sobre as proibições estabelecidas aos alemães. Prontuário funcional: 31.771. Apeje –
DOPS-PE.
47
Relação dos funcionários da fábrica de Tecidos Paulista que se encontram detidos. 16/11/1942.
Prontuário funcional: 31.771. Apeje – DOPS-PE.
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solicitação à DOPS e aguardar a liberação. Caso fossem liberados, precisariam ainda ser
acompanhados, ou melhor, escoltados durante o tempo em que permanecessem fora do
campo48.
Agamben (2004, p. 12) coloca “o campo de concentração e a estrutura dos
grandes estados totalitários do Novecentos” como paradigma da biopolítica moderna,
tendo o campo de concentração de Auschwitz como exemplo máximo de total controle
da vida do indivíduo. O Estado passou a deter o poder de deixar viver e fazer morrer.
Era a vida natural que passava a fazer parte dos mecanismos do poder, transformando a
política no que Foucault chamou de biopolítica. Através de uma “guerra civil legal”49, o
governo de Adolf Hitler conseguiu eliminar fisicamente muitos indivíduos considerados
– de alguma maneira – indesejáveis dentro daquele sistema político vigente. No caso de
Chã de Estevão não se pode falar que se tratava de um “campo ideal” discutido por
Agamben, do qual há submissão integral da vida nua. Muito longe disso. E a lógica do
seu funcionamento também está bem distante em relação ao campo de Auschwitz. A
historiadora Susan Lewis chega a afirmar que o termo campo de concentração para
denominar o campo de Chã de Estevão é inapropriado devido o mesmo se tratar apenas
de um campo de internamento. Mas, deixando a nomenclatura distante da discussão e
pensando no campo como paradigma da biopolítica, percebe-se que o controle da vida
dos homens e mulheres residentes em Chã de Estevão – mesmo não sendo submetido à
condição de não-humanos – estão imersos nos mecanismos e nos cálculos do poder
estatal.
Dessa forma, houve um duplo benefício para o Estado: por um lado, ele passou a
ter um controle mais contundente referente aos alemães daquela região, que eram em
sua maioria funcionários da Companhia e seus familiares. Muitos deles eram
recorrentemente denunciados – muitas vezes por populares insatisfeitos com a presença
estrangeira na região – como propagadores da doutrina nazista e espiões do Terceiro
Reich. Alguns constavam na chamada lista negra da DOPS 50. A região era intitulada
pela DOPS como perigosa devido ao grande número de “súditos do eixo” residentes na
48
Ofício nº 139. Prontuário funcional: 31.771. Apeje – DOPS-PE.
49
O termo “guerra civil legal” utilizado por Agamben, ocorre por meio do estado de exceção e possibilita
a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de qualquer cidadão que,
independentemente do motivo, não se integre ao sistema político.
50
Relatório ao Exmo. Snr. Cel. Secretário de Segurança Pública à respeito dos alemães: Kollnorgan e
Burr. Recife, 19 de janeiro de 1946. Prontuário funcional: 31.771. Apeje – PE.
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localidade por conta do trabalho na Companhia. Por outro lado, consegue diminuir a
quantidade de detentos presos nas casas de detenção, sem que tivesse ônus financeiro
para isso, uma vez que no acordo estabelecido por ambas as partes, todo custo com o
campo seria de responsabilidade dos proprietários da Companhia.
Considerações finais.
Durante o período do Estado Novo (ditadura civil-militar), o governo de Getúlio
Vargas foi marcado pela censura, repressão política e um elevado número de prisões dos
“inimigos” do governo. Eram elegíveis inimigos quaisquer outros grupos e ou
indivíduos cujas práticas o governo entendesse como uma ameaça (CARVALHO, 2002,
p. 109), cujas ações não se enquadrassem à norma estabelecida pelo poder estatal.
Vários alemães residentes no estado de Pernambuco, principalmente na capital Recife e
na cidade de Paulista, foram investigados, fichados pela polícia política e até mesmo
presos em casa de detenção e “campo de concentração” em nome da segurança
nacional. Tamanha repressão por parte do governo foi possibilitada pelo estado de
exceção que vigorava naquele momento e exercida pela polícia política – DOPS. Em
nome da defesa da nação, leis foram criadas e os direitos dessa população de origem
alemã foram minados a cada decreto-lei promulgado pelo Estado enquanto soberano.
Dessa forma uma nova ordem passou a ser estabelecida.
Fontes documentais:
Arquivo Público Estadual João Emerenciano. APEJE – PE.
Prontuários funcionais:
Documento do consulado alemão: Fundo/SSP nº: 29444 - Doc.: 390 até 530. 6º volume.
Clube Alemão: Fundo SSP nº: 29094 - Nº de documentos: 901.
Fábrica Paulista: Fundo SSP nº: 31.771 A - Nº de documentos: 245.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
_______. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2007.
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CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. Rio de Janeiro,
RJ: Civilização Brasileira, 2011.
As relações entre Estado e Imprensa não são tão simples quanto parecem. Não é
simplesmente estar no poder que todos os veículos de comunicação darão ao governante
total suporte. Vejamos só a situação de Jango, que no seu último instante enquanto
chefe de Estado teve quase todos os meios de comunicação “exigindo” sua deposição. A
tradição da imprensa brasileira é conservadora e, como já disse, recente demais. Criar
um forte alicerce de esquerda enquanto se é um líder trabalhista e quando se pregam
reformas de base é realmente muito difícil quando, nas antípodas, aparecem líderes e
forças de tradição liberal, a qual tem muita força no Brasil.
vez mais ao isolamento. Isto sem contar com a pressão militar para medidas mais
rígidas.
A situação de Jango era realmente muito difícil, não havia muito que ser feito
sem que gerassem insurreições em um dos lados do cenário político. De um lado,
propagadores do anticomunismo acusando-o todo o tempo de demagogo e golpista,
alicerçados pelos Estados Unidos da América. De outro, esquerdistas insatisfeitos com a
política de conciliação janguista, esperando e exigindo apoio imediato do presidente
para as lutas das classes populares. Diante de tantas incertezas e hesitações, Jango teria
que, definitivamente, por bem ou por mal, traçar um caminho. Citando Jorge Ferreira
(2003, p. 381):
Uma opção seria a de nada fazer até o final de seu governo, deixando o país
afundar no total descontrole monetário e financeiro, desmoralizando o projeto
reformista e a si mesmo; uma outra implicaria em aliar-se a PSD e a UDN,
aceitar as condições do FMI e implementar uma política conservadora à custa
de repressão ao movimento operário e do rebaixamento dos salários dos
trabalhadores; uma terceira incluiria apoiar incondicionalmente a Frente
Progressista de San Tiago Dantas, subordinando-se aos limites impostos às
reformas pelo PSD e afastando-se, definitivamente, dos grupos mais a
esquerda de seu próprio partido; por fim, aliar-se às esquerdas, acreditar nas
forças que elas diziam dispor e, embora contrariando o seu estilo, partir para
a radicalização e o embate. Essa última foi a sua opção.
Segue transcrição parcial feita do importante e crucial discurso de João Goulart feito no
dia 13 de março:
51
A SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária) foi a primeira medida do Governo Jango favorável à
Reforma Agrária.
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Tendo a ordem do ministro da Marinha sido refutada pelo presidente, um grande mal
estar se instaurou nas Forças Armadas. Onde estava o sentido hierárquico das ordens?
“A maioria dos oficiais das três Forças, até então relutante em golpear as instituições,
começou a ceder aos argumentos da minoria golpista” (FERREIRA, 2003, p. 389). O
resultado é o que foi explicitado em comunicado oficial do Clube Militar:
jornal do estado, naturalmente era guiado pelos momentos do governo. O Norte, nos
idos do momento de tensão polícia de 1964, apresentava exaltada posição de direita.
Sobre O Norte, Fátima Araújo diz (1983, p. 119):
Quanto ao Correio da Paraíba, como pontuei a princípio, era o jornal mais livre
de ideologias dos setores conservadores e oligárquicos da Paraíba.
Otávio Monjardin, pseudônimo criado por Ipojuca Pontes, irmão de Paulo
Pontes, fazia de sua coluna “Espetáculos” um espaço para satirizar quaisquer lados
políticos. Tornou-se colunista do jornal Correio da Paraíba aproximadamente em 1962
e nos idos de 1964 foi, aos poucos, deixando de fazer publicações, que foram se
tornando mais brandas e menos ofensivas ao cenário político brasileiro. Ipojuca Pontes
foi Secretário de Cultura no Governo Collor e é um importante cineasta. José Soares
Madruga, por sua vez, foi diretor do Correio da Paraíba entre 1963 a 1971 e assinou a
coluna Diário da Política por 16 anos (ARAÚJO, 1983, p. 121). Em 1974 foi eleito
deputado estadual e deixou o jornal quando se tornou presidente da Assembleia
Legislativa. Segundo José Octávio de Arruda Mello, Madruga era um jornalista
equilibrado, que poucas vezes exaltou-se no ramo da imprensa. Faleceu em 1989.
Escolhi o Jornal Correio da Paraíba para dar embasamento a este estudo de
pequeno espaço de tempo (entre janeiro e abril de 1964), pois creio este ser o jornal com
maior expressão política, opinião compartilhada pela autora Fátima Araújo em seu livro
“História e Ideologia da Imprensa na Paraíba” (ARAÚJO, 1983, p. 121).
Vêem-se nas imagens 6, 7 e 8 exemplos de trechos da coluna de Otávio
Monjardin (ou Ipojuca Pontes). Geralmente, sua coluna era dividida em quatro partes: a
primeira contendo uma crônica, a segunda recebia o nome de Umas & Outras, a terceira
A Vida na Foto que, na maioria das vezes apresentava fotos de uma bela mulher e, por
último, a parte que se chamava De Tudo e De Todos. Ipojuca Pontes satirizava os dois
lados do panorama político nacional, tanto a política janguista quanto a direita udenista.
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Referências
Rodrigo Cantarelli
Fundação Joaquim Nabuco
rodrigocantarelli@gmail.com
Introdução
Prefeito do Recife durante dois momentos distintos, primeiro de 1964 a 1968 e
depois entre 1971 e 1975, Augusto Lucena teve o seu governo associado a grandes
transformações na cidade. Como “prefeito biônico”53, o apoio que Lucena recebe do
Regime Militar abriu caminhos para a realização de diversas intervenções no Recife
muito polêmicas e tidas por muitos intelectuais da época como desastrosas. Seu
discurso, enraizado pela busca de uma “modernização” do Recife, defendia a
erradicação da toda “velharia” presente na cidade, que, sob sua ótica, atrapalhava o
caminho do desenvolvimento.
As ações de Augusto Lucena, em ambas as gestões, provocaram impactos no
patrimônio cultural recifense. A abertura de vias, a descaracterização de monumentos e
a destruição de ambiências e edifícios históricos eram levadas a cabo sob o pretexto de
se criar um “novo Recife”, e assim foram destruídos ou descaracterizados diversos
edifícios significativos, como a Igreja dos Martírios, e pontes históricas, como a
Lasserre e da Boa Vista, além de serem mutilados, de forma irreversível, o Cemitério
dos Ingleses e os tecidos urbanos dos bairros de Santo Antônio e São José.
O mesmo Recife, que, na década de 1920, havia sido palco de um dos
movimentos preservacionistas pioneiros do Brasil, começou a repensar a preservação do
seu patrimônio através de novas esferas além daquela capitaneada pelo governo federal,
53
Durante o governo militar, diversos cargos eletivos passaram a ser nomeados pela ditadura, ficando
conhecidos como “cargos biônicos”.
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hegemônico naquele momento. Foram criados novos órgãos e leis com o objetivo de
resguardar para a posteridade o que ainda restava do patrimônio cultural da cidade.
Esse artigo tem por objetivo mostrar como a boa relação de Augusto Lucena
com os militares facilitou a tomada das decisões relacionadas ás intervenções nas áreas
históricas da cidade, em geral, contrárias às orientações técnicas do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Se por um lado as decisões defendidas pelo
prefeito eram tidas como as soluções ideais para “modernização” da cidade, por outro,
elas contribuíram para descaracterizar parte do seu acervo cultural. Pretende-se também
tecer a relação entre as destruições causadas nesse período e a adoção de medidas que
tinham como objetivo principal salvaguardar a herança cultural ainda existente.
54
O general, que havia assumido em 4 de setembro de 1963 o Comando do IV Exército, foi um dos
comandantes do cerco ao Palácio do Campos das Princesas em 1º de abril de 1964, sendo o encarregado,
no momento do golpe militar, da destituição do cargo do governador Miguel Arraes.
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primeiro mandato como prefeito, Lucena ocupou brevemente outros cargos políticos,
como o de vereador e deputado federal, no entanto, em 1971, foi designado pelos
militares para retornar ao cargo de prefeito do Recife, posto que ocupou até 1975. A boa
relação com os militares, que datava de décadas anteriores quando exerceu o cargo de
Promotor da Justiça Militar do Estado de Pernambuco, entre 1954 e 1955, rendeu a
Lucena a oportunidade de voltar à prefeitura do Recife, para finalizar os projetos que
havia dado início nos anos 1960.
Em ambas as gestões, Augusto Lucena usou como figura forte no seu discurso a
“modernização” do Recife através de mudanças na malha urbana da cidade, como a
forma de “sanar” os problemas da cidade. Donatella Calabi, ao discutir o “mito da
modernização” em capitais europeias (CALLABI, 2001), defende que esse tipo de
discurso sofre um grande reforço ideológico ao se usar um vocabulário da área médica.
Para a autora, a necessidade de operações como a retificação, o alargamento ou abertura
de vias é reforçada na medida em que são transformadas em “operações cirúrgicas”
através da adoção de termos tais como desventramento, saneamento e salubrificação,
dentre outros. Era uma cidade, vista como doente, que se pretendia curar.
No entanto, cabe destacar que esse discurso modernizante de Augusto Lucena,
onde os ideais de progresso foram traduzidos para uma transformação na estrutura física
da cidade, é um velho conhecido do Recife e de tempos em tempos reaparece como
forma de legitimar intervenções na cidade. A gênese dessa prática remete ao século
XIX, mais precisamente a gestão de Francisco do Rego Barros (1838-1842), conhecido
como o Conde da Boa Vista, que buscou afastar a cidade de sua imagem colonial. Foi
durante essa gestão, por exemplo, que tiveram início os aterros para abertura da Rua da
Aurora, foram construídos o Teatro Santa Isabel e a ponte pênsil da Caxangá, além de
implantada a iluminação pública a gás. No entanto, essas foram intervenções muito
tímidas se comparadas às que ocorreram no início do século XX.
Na virada do século, o discurso da reforma urbana é retomado e culmina com a
reforma do Porto e do Bairro do Recife, que teve início em 1909 e não se limitou apenas
a recomposição de fachadas ou à construção de alguns edifícios isolados, mas que levou
à demolição de quase todo o núcleo inicial da cidade. O Recife colonial desaparecia sob
a euforia da elite dirigente, que o via como um símbolo do atraso e da insalubridade, e
sob o lamento de uns poucos intelectuais. Alguns desses intelectuais, na década
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55
Para mais detalhes sobre o assunto ver CANTARELLI, 2012.
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Loretto, esse era um período no qual o urbanismo praticado Recife era o reflexo de
diversas influências oriundas do sanitarismo e do higienismo do século XIX, além dos
preceitos do movimento moderno. Para autora, isso se dava por três motivos principais:
“inadequação do emaranhado de vias às exigências de tráfego do início do século, os
problemas de salubridade e a feição colonial” (LORETTO, 2008, p.62).
Embora os projetos de construção dessa avenida fossem recorrentes nos planos
de reforma para os bairros de Santo Antônio e São José56 desde os anos 1920, as obras
tiveram início apenas em 1943, quando o primeiro trecho, ligando a Praça da República
à Igreja Matriz de Santo Antônio, foi aberto. As obras seguiram até 1959, quando foram
paralisadas, nas proximidades da Igreja do Carmo. Diversos motivos levaram a essa
paralisação, um deles foi a intensificação das discussões a respeito dos danos que a
intervenção estava causado nesse núcleo histórico da cidade.
A necessidade de se modernizar o Recife focando na urbanização dos espaços,
na construção de pontes e na abertura de vias é uma constante em todos esses discursos
citados e Augusto Lucena resgata isso para justificar as suas intervenções pela cidade.
Antônio Paulo Rezende destaca que
O discurso da modernização contagia o poder público. Mesmo adotando
práticas políticas conservadoras, era constante nas mensagens dos
governadores de Estado projetos e referências a atitudes administrativas
voltadas para a modernização, dentro das possibilidades da época.
(REZENDE, 1997, p. 37-38)
Político conservador, com fortes laços com o governo militar, Lucena ignorou as
novas questões urbanísticas que se apresentaram na época e resgata um discurso
autoritário, fundamentado em práticas já tidas por muitos como obsoletas, decidindo
levar adiante suas ideias intervencionistas. A abertura e o alargamento de vias eram
vistos como a solução para os problemas de fluidez no trânsito da cidade. Apoiado pelos
militares, Lucena, contrariando diversos pareceres técnicos, realizou, de forma
autoritária, inúmeras intervenções objetivando “sanar” os problemas do Recife e
erradicar toda “velharia” presente na cidade, que, sob sua ótica, atrapalhava o caminho
do desenvolvimento. Como se mostrou com o tempo, essas intervenções não resolveram
os problemas da cidade, porém, causarem prejuízos irreparáveis ao seu patrimônio,
como veremos a seguir.
56
Para mais detalhes sobre esses planos ver LORETTO, 2008.
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57
Entendemos aqui que o Recife não é composto por apenas um centro histórico conformado pelos
bairros do Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista, mas também por outros núcleos históricos,
definidos a partir de bairros periféricos, como Apipucos, Poço da Panela, Capunga, Madalena, Várzea e
Caxangá, dentre outros.
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Ambas foram danificadas pelas cheias e, após a tragédia, uma equipe foi
designada para fazer um levantamento da situação das pontes da cidade, resultando na
demolição de quase todas elas58, que foram substituídas por novas estruturas em
concreto armado. O parecer final desse relatório também apontou que, no caso da ponte
da Boa Vista, deveriam ser feitos apenas alguns reparos emergenciais. Essa sugestão era
contrária à vontade de Augusto Lucena, que chegou a afirmar, em entrevista ao Diário
de Pernambuco de 31 de Julho de 1965, “ser mais importante se tornar a aumentar o
volume das despesas na erição de uma nova e moderna obra de arte59 do que despender
verbas para a restauração da intranquilizadora ponte”.
O chefe do 1º Distrito do SPHAN na época, o engenheiro Ayrton Carvalho, já
reconhecendo os valores patrimoniais de tal estrutura, em julho do mesmo ano, abriu o
processo 760-T-65, que objetivava o tombamento federal da ponte, a fim de garantir a
sua preservação e dar início às obras de reparo da estrutura. A obra de conservação, que
seria mais barata que a execução de uma nova ponte, foi bastante retardada, e essa
demora expôs a ponte da Boa Vista às cheias do ano de 1966, fragilizando ainda mais a
já danificada estrutura. O prefeito, que insistia na demolição, afirmava que após a última
cheia a ponte agora estaria condenada, propondo então uma mudança no seu sistema
estrutural, que ficaria completamente descaracterizado, perdendo as principais
características que davam valor a essa estrutura60.
Nesse ínterim, a ponte já se encontrava interditada há quase dois anos,
ocasionando muitos protestos para que ela fosse liberada para o tráfego. Augusto
Lucena, então, se aliou aos lojistas que passaram a pressionar o SPHAN para liberar as
obras pretendidas pela prefeitura, contrárias às determinações técnicas que buscavam
preservar as características estruturais da ponte. A Câmara de Dirigentes Lojistas do
Recife apoiava a obra, pois se dizia prejudicada com a interdição da ponte, e com isso
eles e a prefeitura começaram um trabalho de “conscientização” da população de que
não era importante a preservação da ponte, que a mesma estava atrapalhando o
“progresso” da cidade e, sem consultar o SPHAN, a prefeitura deu início à obra de
substituição da estrutura.
58
De todas as pontes históricas do Recife, a única ponte metálica que restou foi a 6 de Março, também
conhecida como Ponte Velha, que liga o Cais da Detenção à Rua Velha.
59
Termo técnico utilizado pela engenharia para se referir a estruturas tais como pontes e viadutos.
60
O processo de descaracterização da Ponte da Boa Vista foi discutido em CANTARELLI, 2006, a partir
de ofícios, relatórios e notícias de jornal encontrados no Arquivo Central do IPHAN, no Rio de Janeiro.
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intervenções realizadas por Augusto Lucena se deram nos bairros de Santo Antônio e
São José. A primeira delas foi a abertura da Avenida Nossa Senhora do Carmo, iniciada
em 1966, que tinha por objetivo ligar o Pátio do Carmo à Avenida Martins de Barros,
antigo Cais do Colégio, sendo para isso sacrificadas as travessas do Carmo e do
Livramento, além de diversos sobrados edificados, em sua maioria, entre os séculos
XVII e XVIII. Pouco alardeada, essa obra foi o início das grandes intervenções no
tecido urbano desses bairros, que culminaram com a retomada do projeto de abertura da
Avenida Dantas Barreto, paralisada desde 1959.
As obras da Avenida foram retomadas em 1964, assim que Lucena assumiu o
cargo de prefeito, no entanto, trazendo a tona uma vasta gama de polêmicas, uma vez
que a Igreja dos Martírios estava no caminho da avenida. Tal edificação, construída pela
Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, composta por negros e crioulos, era um
raro exemplo da transição entre o Rococó e o Neoclássico em Pernambuco, onde a
exuberância da fachada contrastava com a simplicidade do seu interior.
Vinculado ao templo, além dessa importância material, outro valor, imaterial,
era de extrema relevância: a Procissão dos Martírios. Uma das mais populares, essa
procissão era a primeira a sair na cidade e marcava o início da quaresma e, ainda na
década de 1920 quando a imaterialidade do patrimônio sequer era discutida, o Inspetor
de Monumentos Anníbal Fernandes destacou a importância em se preservar não só a
Igreja dos Martírios, mas também a sua procissão.
Em 1969, com o fim da primeira gestão de Augusto Lucena, ocorreu uma
desaceleração na polêmica em torno da demolição da Igreja. Assumiu como prefeito
Geraldo Magalhães que chegou a solicitar a elaboração de uma nova proposta para a
avenida, visando poupar o templo. A ideia foi descartada por Lucena, que reacendeu a
polêmica assim que voltou ao cargo, em 1971, deixando claro que iria concluir a
Avenida da forma que foi prevista originalmente.
Augusto Lucena não chegou, em nenhum momento, a cogitar a permanência da
Igreja; estava determinado a abrir a Dantas Barreto a qualquer custo, chegando a sugerir
que uma cópia do edifício fosse feita noutro local. A irmandade mantenedora do templo
se mostrava contra a demolição do edifício e a polêmica tomou conta dos jornais da
época. Diversos intelectuais entraram na luta pela defesa do templo, como Mauro Mota,
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61
Gilberto Freyre, ao longo do processo de abertura de avenida mudou de lado na discussão e passou a
ser favorável às demolições no bairro de São José.
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símbolo de progresso por alguns, foi uma das mais violentas intervenções sofridas nos
núcleos históricos do Recife, mutilando de forma definitiva o Bairro de São José num
momento em que a preservação não só dos grandes edifícios tomava vulto, mas também
quando já se vislumbrava a necessidade de preservação dos conjuntos urbanos, tema
que havia entrado de vez nas discussões patrimoniais.
62
Criada como um órgão autônomo, em 1975 a FUNDARPE foi vinculada à Secretaria de Educação e
Cultura.
63
Embora, naquele momento, não fosse protegida por nenhuma esfera governamental a Casa de Detenção
fez parte do projeto, pois já estava desocupada e o governo de Pernambuco tinha a intenção de
transformá-la num centro de venda de artesanato, intervenção consonante com os objetivos do PCH de
incentivar o turismo.
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Considerações finais.
Existe uma coincidência temporal muito forte entre as ações de Augusto Lucena
e o surgimento de novas posturas preservacionistas em Pernambuco que ainda
demandam estudos mais aprofundados, não possíveis de serem feitos nesse artigo. O
período no qual Augusto Lucena geriu a cidade foi aquele no qual a municipalidade
estava fortemente ligada aos ideais do regime militar e, na maior parte desse tempo,
durante um dos momentos mais repressores do regime, quando a presidência estava
ocupada pelo General Emílio Garrastazu Médici. Lucena, usando de um discurso
autoritário, quis dar ao Recife os “ares de uma cidade moderna” e resgatou um discurso
atrasado, usando em momentos históricos anteriores, apoiado pelos militares.
64
No mesmo ano também foi criada a Fundação de Cultura da Cidade do Recife, através da lei nº 13.535,
de 26 de abril de 1979, que tinha como um dos seus objetivos “executar programas de recuperação e
preservação de documentos, sítios e monumentos históricos da Cidade do Recife”.
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Para levar adiante esse discurso, muitas ambiências e edifícios históricos foram
demolidos. A destruição desses monumentos e espaços urbanos pode, também, estar
relacionada à intenção de se destruir as memórias, a história e uma identidade agregada
a esses lugares, o que reforça o seu esquecimento. O Recife que talvez se quisesse
esquecer não era apenas um Recife “atrasado”, repleto de “velharias”, de ruas estreitas,
mas um Recife com espaços públicos ricos em convivência social e marcado fortemente
por ideais revolucionários.
A percepção do sonho de modernidade que existiu no Recife no começo do
Século XX, seguiu pelos anos 1940, retornou nas décadas de 1960 e 1970 (e,
infelizmente, ainda resiste) mostra que o desejo de intervir na cidade não foi inaugurado
nas gestões de Augusto Lucena, no entanto, ele foi responsável por uma das
intervenções mais violentas já realizadas no centro da cidade. Lucena, ao retomar esses
ideais sem questioná-los, ignorou toda uma discussão que já se fazia presente no
momento, argumentando que o planejamento da cidade não poderia mais ser visto a
partir de uma página em branco, havia a necessidade de preservar construções e espaços
que a formaram e a caracterizaram ao longo do seu processo de crescimento e expansão.
Como uma reação a essas destruições, em Pernambuco, pouco depois, surgiram
estruturas de proteção ao patrimônio que iam além da esfera federal, dominante desde a
década de 1930: a FUNDARPE e o PPSH/RMR. No entanto, é, no mínimo, curioso
perceber que nesse momento os dois grandes projetos capitaneados pelo Governo do
Estado, em prol da preservação do patrimônio, nasceram a partir de iniciativas
completamente diferentes e em secretarias distintas, quando deveriam estar ligados
desde a sua concepção. O PPSH/RMR foi de fato uma reação às destruições recentes,
indicando que o estado precisava se afinar com as discussões patrimoniais daquele
momento, ao passo que a criação da FUNDARPE, inicialmente, se deu para habilitar o
governo a receber recursos do PCH, sendo incorporada a essa iniciativa muito depois.
Referências
CALABI, Donatella. O papel de Paris na urbanística italiana do século XIX: o mito da
modernização. In: SALGUEIRO, Heliana Angotti (org.). Cidades Capitais do Século
XIX. São Paulo: EDUSP. 2001.
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1. INTRODUÇÃO
65
Para maiores detalhes da estruturação da rede de repressão no regime civil-militar, ver: SILVA.
Marcília Gama. Informação, Repressão e Memória: A Construção do Estado de Exceção no Brasil na
perspectiva do DOPS-PE de 1930-1945. Tese de Doutorado. UFPE, Recife -PE, 2007
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no dito plano inicial do Estado de Exceção, acabaram por gerar um Estado de Anomia
no país.
“Estado de Exceção”, é o termo utilizado para designar um estado que diverge,
em seu ordenamento, do estado de normalidade política. O estado de exceção é,
entretanto, previsto na norma jurídica. Ele está inserido no códex das sociedades
democráticas e deve ser acionado em ocasiões nas quais a própria ordem democrática
esteja em perigo. Ou seja, suspende-se a ordem democrática, para que ela possa retornar
com segurança num momento posterior. À princípio este era o plano de parte do regime
brasileiro instaurado em 1964 ou, ao menos, o que declaravam publicamente –
embasados na lei, com os supracitados argumentos. Acontece, entretanto, que o estado
de exceção tomou uma configuração um tanto divergente do modelo legalmente
previsto, como veremos abaixo:
diríamos – a ditadura de uma direita golpista e uma esquerda militante, de uma linha
dura e uma linha moderada, de bons contra maus. Interpretação que não cabe mais à
história. Isto se aplica não só aos fatos ocorridos durante o regime de exceção, mas a
diversos outros objetos e recortes historiográficos.
As muitas nuances do jogo político ocorrido no tempo aqui analisado vêm à tona
com os estudos mais recentes, o merecido destaque deve ser dado à obra de Carlos Fico
que, sobre esta visão reducionista, comenta:
[...] clichês sobre o golpe de 64, os militares e o regime também vão sendo
abandonados, como a idéia (sic) de que só após 1968 houve tortura e censura;
a suposição de que os oficiais-generais não tinham responsabilidade pela
tortura e o assassinato político, a impressão de que as diversas instâncias da
repressão formavam um todo homogêneo e articulado, a classificação
simplista dos militares em “duros” ou “moderados” etc. Por tudo isso,
podemos falar de uma nova fase da produção histórica sobre o período.
(FICO, 2004: 30)
É com esta visão transmitida por Fico que pretendemos prosseguir com as
análises em nossa pesquisa. Refletiremos sobre um dos períodos mais contraditórios da
ditadura civil-militar, cuja historiografia destaca como sendo o que mais utilizou os
mecanismos ditatoriais, isto é, o período da abertura que vai dos anos de 1970 a 1980.
Neste estudo, toma-se como foco para a análise destes aspectos da ditadura civil-
militar a relação entre a produção cinematográfica e a sociedade civil-militar brasileira,
as relações dissonantes entre a censura e as produções fílmicas.
Para tal análise, elege-se como objeto as pornochanchadas, filmes eróticos com
baixo custo, forte apelo sexual e cômico que obtiveram grande sucesso entre o público
dos cinemas nacionais. A princípio, um regime castiço como aquele, não permitiria
tamanha afronta à moral e aos ditos bons costumes como os exibidos nos cinemas
brasileiros das décadas de 1970 e início de 1980. Por quais motivos então os filmes
foram produzidos e exibidos durante a ditadura?
Para pensar tal relação e a questão acima suscitada, traz-se à tona algumas
possibilidades sobre a produção e exibição destes filmes em nosso país: (1) os cineastas
da Boca do Lixo foram iconoclastas que desafiaram o sistema censório e repressivo de
então em nome de seus filmes. (2) O sistema, em vias de distensão, já não tinha mais
forças para proibir tal produção. (3) Pão-e-Circo, enquanto os expectadores se
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No mais, que o decorrer do texto possa trazer ao leitor mais questionamentos acerca
disto, ao menos dizemos-lhe que fora esta nossa intenção.
Não só a mídia muitas vezes acariciava a produção nacional, mas também o
discurso oficial que, em relação às pornochanchadas, também se mostrava bastante
ameno. Tal fato pode ser observado a partir da análise do depoimento de Roberto Faria
(In: SIMIS, 2005), diretor da Embrafilmes por quatro anos e que afirma que “em relação
à censura, outro ponto sempre lembrado quando se fala de ditadura, a meu ver os filmes
eram auto-censurados, pois havia pouco conflito com a censura [...]”.
O grande carrasco da produção da pornochanchada no Brasil não foi a censura,
mas o cinema estadunidense. Com a permissividade da censura no fim do regime, fez-se
possível a exibição não só de “Coisas Eróticas”(1982), primeiro filme com cenas de
sexo explícito nacional, mas também de outros, como o japonês “Império dos Sentidos”
(1976) – exibido no Brasil em 1980, após extenuante luta judicial contra a censura –
além de outras produções eróticas internacionais massivamente produzidas na américa
do norte. Ao contrastar o aporte técnico dos filmes pornográficos estadunidenses com os
brasileiros a disparidade foi gritante. O produto brasileiro, menos atrativo em seus
aspectos técnicos, foi esquecido pelo público nacional que acorria às salas de cinema
para assistir as cenas de sexo das estrelas norte-americanas.
(Fonte: Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE, Diário de Pernambuco, 3 de agosto de
1977)
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(Idem)
Ante estas adversidades, ele logo assume seu papel mais maduro e também
desejável pelo código normativo patriarcal ao qual a sociedade civil-militar brasileira
atentava, o de provedor e protetor das mulheres, salvando-as dos verdadeiros detratores,
envolvendo-se emocionalmente com uma delas e com ela permanecendo fielmente até o
fim do filme. Mas como todo pecador consciente, resignado e obstinado, ele é tentado
por outras mulheres que reconhecem nele um ideal de parceiro, estas, num exemplo
extremado dos moldes comportamentais misóginos, são punidas com a morte inclusive.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS:
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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado -
Ensaios de teoria da história. 1. ed. Baurú: EDUSC, 2007.
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Tradução
de Clóvis Marques. Petrópolis: Vozes, 1984.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.
__________. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004
AMANCIO, Tunico. Pacto cinema-Estado: os anos Embrafilme. In: Revista ALCEU,
Rio de Janeiro, v.8, n.15, p. 173-84, 2007.
BERG, Creuza. Mecanismos do Silêncio: Expressões artísticas e censura no regime
militar (1964-1984). São Carlos: EdUFSCar, 2009.
BERNADET, Jean-Claud. Cinema Brasileiro, Propostas para uma história. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
BREMMER, Jan & ROODENBURG, Herman. Uma história cultural do humor. Rio
de Janeiro: Record, 2000.
COUTO, Ronaldo Costa. História Indiscreta da ditadura e da Abertura: Brasil
1964-1985. 4° Edição, Rio de Janeiro: Record, 2003.
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Tásso Brito66
UFPE
tasso.brito@gmail.com
I
O filosófo Walter Benjamin é enfático quando diz “A tradição dos oprimidos
nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.”
(BENJAMIN, 1994 p.226), as práticas de um estado exceção como no caso brasileiro
seriam endurecimento de práticas já existentes. Uma vez que este estado não seria o
rompimento das lutas e tensões que existiam antes deles, mas sim o acirramento destas,
na medida em que uma parcela da sociedade passa a exercer mais poder sobre outra.
Podemos compreender esta afirmação se passarmos a pensar sobre a vida de
muitos homens e mulheres antes do golpe civil militar, homens como Gregório Bezerra,
um dos líderes mais conhecido do Partido Comunista em Pernambuco. Sendo notória
sua posição de dirigente do partido, a suas ações eram constantemente vigiada pelo
Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE), mesmo quando
66
Mestrando no PPGH-UFPE, pesquisa financiada pela CAPES.
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este foi deputado federal, na década de 1940, sua vida era constantemente devassada por
policiais a serviço do DOPS.
Não sendo diferente a vida de outros membros do Partido Comunista ou que
eram nomeados de comunista por aquele órgão, eram vigiados e presos pelo governo
democrático então vigente. Na década de 1950, muitos membros do Partido Comunista
foram presos, depois de uma investigação empreendida pelo DOPS. Segundo Breyner
(1989), a operação policial e a prisão de vários membros do partido quase levou este ao
fim em Pernambuco.
A lei que vai servir de base de acusação para essas prisões durante o regime civil
militar não data do golpe de 1964, mas de 1953, a Lei de Segurança Nacional servirá de
base de acusação para os crimes considerados políticos pela ditadura civil-militar.
Então, podemos começar a pensar que as vidas desses homens filiados ao
Partido Comunista ou que eram denominados de comunistas pelos órgãos de repressão
já eram sujeitadas as práticas que comumente dizemos se tratar de um estado exceção.
Não que o período que existia antes do golpe de 64 fosse um estado de exceção, mas é
inegável que algumas de suas práticas eram tão autoritárias que muitas pessoas já
viviam em seus direitos em suspensão tal como será na ditadura que se seguiu no pós-
golpe. Eram práticas que foram muitas vezes exacerbadas pela ditadura, mas que já
existiam antes e por vezes existirão depois do fim da ditadura.
As leis e as aplicações delas que se seguiram no pós 1964 são a efetivação e
expansão de práticas já existentes na sociedade brasileira antes mesmo do golpe civil
militar. Recorrendo a Giorgio Agamben que diz:
Na sua forma arquetípica, o estado de exceção é, portanto, o
princípio de toda localização jurídica posto que somente ele abre
o espaço em que a fixação de um certo ordenamento e de um
determinado território se torna pela primeira vez
possível.(AGAMBEN, 2010, p. 21)
Podemos pensar, como este período antes de 1964 trazia práticas que seriam
territorializadas com a ditadura. E não criadas com o golpe, assim partimos para outra
noção sobre as leis, sobre a justiça e sobre o direito que não é a do contrato social
iluminista. As leis não são a pacificação do homem lobo do homem, mas sim fruto da
força, da guerra, do vencedor do conflito.
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Vale lembrar aqui que os ministros que ocupariam estas cadeiras foram indicados pelo poder
executivo, ou seja, pela ditadura vigente.
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III
A advogada de Gregório Bezerra durante boa parte do processo, Mércia
Albuquerque, teve sua vida profissional pautada na defesa de presos políticos. Gregório
foi o seu primeiro cliente, mas ao término da ditadura civil militar estima-se que ela
tenha defendido mais de mil presos políticos. Homens e mulheres que em sua grande
maioria foram julgados na 7ª auditória militar, que apesar de ser em Recife era
encarregada por julgar crimes ocorridos nos estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e
Rio Grande do Norte.
Para Anthony Pereira, os advogados de defesa foram capazes de pouco a pouco
criar uma nova jurisprudência para a lei de segurança nacional, assim ampliando os
limites da legalidade. (Pereira, 2010 p.211). Assim, talvez não se trate de procurar
vitórias judiciais, não que não houvesse, mas de pensar como as defesas foram criando
estes novos limites da legalidade.
Os advogados também tinham outras formas de ajudar seus clientes que muitas
vezes beiravam a ilegalidade ou eram de fato ilegais. Faziam parte de uma rede de
solidariedade que pregava muitas vezes o discurso dos direitos humanos, e através disso
encontravam justificativas para ações como ajudar em fugas de foragidos ou até mesmo
retirar da cadeia, manifestos de presos políticos que faziam greve de fome em São
Paulo68. Porém, estas ações por conta de sua própria natureza não foram tão
documentadas a não ser involuntariamente, quando um destes advogados era preso por
alguma ação que era considerada ilegal aos olhos da maquinaria jurídica e policialesca
do regime. Por isso, este artigo com pesar as ignorará, para focar nas ações legais.
Mércia ao defender Gregório se esforça para que este seja tratado como preso
político. O preso político é uma figura do direito que se encontra em uma dupla
68
Nove advogados chegaram a ser preso por levar a imprensa um manifesto de presos políticos que
faziam greve de fome em uma prisão de São Paulo em 1972.
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regime, que hora aceitava a existência do preso político e hora negava a depender dos
interesses, das relações de força estabelecidas a cada momento. Por isso, que nunca
podemos olhar para o regime de forma monolítica, pois cada trama histórica faz emergir
novos sujeitos, sejam eles homens ou instituições.
Assim, podemos ver como além de ser excluídos da sociedade pela prisão, eles
também são excluídos do sistema prisional. Mas, esta dupla exclusão é o que garante a
entrada dessas vidas no sistema judicial, no próprio regime ditatorial ali implantado. É o
estado de exceção que assume esta força de alocação de cálculos sobre a vida, essa força
que permite a vida ou autoriza o seu sacrifício.
IV
Mas, a construção desta imagem, desta identidade de preso político, não é uma
construção do regime civil militar. Gregório Bezerra que foi preso algumas vezes,
sempre construiu para si esta identidade, posicionando-se sempre no lugar de preso
político. Ou seja, não se trata de uma construção iniciada com o regime iniciado em
1964.
Desta vez, o próprio Estado garantiu a existência de tal figura. Assim, podemos
pensar como a estrutura política jurídica dava conta de manter a existência de algo que
data de antes do golpe. O estado de exceção então vigente é algo que atua em dois
sentidos, no primeiro ele cria o novo para depois manter uma ordem que data de antes
dele mesmo. A implantação do estado de exceção vem como criação do novo na medida
em que rompe com o estado democrático então vigente, mas este novo existe para
conservar uma ordem política e social que se encontrava em xeque por novas forças e
novos agentes que emergiam da trama histórica dos período comumente chamado de
“período de experiência democrática”.
A busca de preservação da ordem, também se faz presente na acusação jurídica
que levava a cadeia os presos políticos. Gregório Bezerra e outros tantos foi acusado de
subversão da ordem com auxílio de potência estrangeira, não a ordem do estado
exceção, mas a ordem política e social do período anterior ao golpe. Não é de se
espantar que na sentença de Gregório o auditor militar relembre de ações como o
levante comunista de 35 e uma acusação de incêndio a um quartel do exército no estado
da Paraíba. Atos estes que Gregório já havia respondido e ou inocentado na justiça.
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Estes atos foram levados em conta, mas formalmente não foram julgados pelo
processo 8868, no qual eram réus Gregório Bezerra, Francisco Julião, Miguel Arraes e
outros. Mas, desde sua captura Gregório era interpolado por esses atos, em seu primeiro
interrogatório o coronel Ibiapina o acusava de ter matado um oficial em 1935. Só depois
de várias perguntas sobre este suposto assassinato, o general Justino Alves Bastos
começar a interrogar Gregório a respeito de armamentos que supostamente estavam sob
a responsabilidade do interrogado.
Então, mais do que fundar o novo o regime tentava manter uma ordem. Por isso
que retornamos a tese de Walter Benjamin, o estado de exceção é a regra para aqueles
que detém menos força. Aqueles interessados em manter o status quo faziam o máximo
para manter a ordem, a própria prisão de Gregório aponta para esta direção. Como já foi
relatado no começo deste artigo, a prisão de Gregório foi tomada da policia militar pelo
exército, mas o 20º batalhão de caçadores encontrava-se auxiliado por José Lopes
Siqueira, dono da Usina Estreliana70 com seu grupo de homens armados, uma espécie
de milícia privada comumente chamada de jagunços. José Lopes ao ver Gregório queria
assassiná-lo, porém os membros do 20º batalhão resolveram levar o líder comunista a
presença do general Justino Alves Bastos, comandante do IV exército.
Este tipo de ameaça não era apenas dos civis, mas de militares também. Mas,
segundo Pereira (2010) e Montenegro (2012) localizar e colocar aqueles que foram
detidos na malha judicial era ter garantias da sobrevivência daqueles que foram detidos.
Assim, podemos pensar que a justiça militar era interessada em cria a figura do preso
político, mesmo depois de 69, quando ela tem o poder de condenar a morte, tal sentença
nunca foi executada, mesmo tendo alguns casos de condenação, como o caso de
Teodomiro Ramos71.
A justiça militar capturava vidas, transformava-as, colocava-as em cálculos de
governabilidade, mas não foi uma gestora de mortes. Outros órgãos estatais parecem ter
70
Antes do golpe houve uma chacina de cinco trabalhadores rurais daquela usina, durante um protesto
no qual eles tentavam fazer valer decisões da justiça do trabalho. Eles foram mortos pelos funcionários
de José Lopes Siqueira. Para mais detalhes ver Porfírio (2009)
71
Teodomiro aderiu ao movimento armado, comumente chamado de Guerrilhas Urbanas, na
operação que este foi preso ele matou a tiros um oficial do exercito e feriu outro. Seu crime foi
julgado e ele condenado a morte, mas tal sentença não chegou a ser executado. Seu relato se
encontra no arquivo Marcas da Memória – Memória da Anistia, no Laboratório de História Oral
e Imagem (LAHOI) UFPE.
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assumido esta função. Mesmo, quando o poder executivo militar atribui também a
justiça a gerência da morte dos detidos, esta nunca executou tal pena.
A justiça, assim como no Processo de Kafka, não tem um objetivo final. Esta
captura a vida para fazer dela coisa sua, sem oferecer outro fim a não ser a própria
captura da vida. Desta forma a figura do preso político é aquele que tem seu lugar
dentro do ordenamento do estado de exceção fixado como uma vida capturada.
E neste sentido a lei se confunde com a vida, numa vigência sem significado,
pura forma, o modo de viver que se impõe como lei tende a se dizer como vida e esta
capturada ou transformada nada pode dizer, está entregue aqueles dispositivos que a
transforma, no caso em tela a justiça militar.
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
BRNJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume 1: Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.
BRAYNER, Flávio Henrique Albert. Partido comunista em Pernambuco: mudança e
conservação na atividade do partido comunista brasileiro em Pernambuco; 1956 -1964.
Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1989.
ECO, Umberto. O hábito fala pelo monge. In Psicologia do Vestir. Lisboa Assírio e
Alvim, 1989
FICO, Carlos. Como Eles Agiam. Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e
Polícia Política. Rio de Janeiro: Record, 2001
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro: NAU, 2003.
MACIEL, Wilma Antunes. O Capitão Lamarca e a VPR. Repressão Judicial no Brasil.
São Paulo, Sp: Alameda, 2006.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História e Memória de lutas políticas. In. Marcas da
Memória: história oral da anistia no Brasil. Recife: Editora da UFPE, 2012.
PERREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão: O Autoritarismo e o Estado de Direito
no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2010.
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72
Premiação em ordem cronológica: 1973 – Personalidade Global e Prêmio Luisa Cláudio de Souza;
1974- Prêmio Jabuti – Câmara Brasileira do Livro, Prêmio Fernando Chinaglia, Prêmio de Literatura da
Associação Paulista de Críticos de Arte; 1975 – Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal;
Personalidade Global e Literária (TV e Jornal O Globo; 1983 – Diploma de Homenagem Especial,
conferido pela União Brasileira de Escritores, em 1985, esse prêmio passou a ser denominado Prêmio
Pedro Nava, e, em 1984 – Prêmio José Olympio – Sindicato Nacional de Editores de Livros.
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maioria, na última década do século XIX e na primeira do XX, estavam saindo de cena
junto com suas utopias e deixando as memórias como rastros. Entre esses intelectuais,
destacou-se Nava, que escreveu suas Memórias depois de se aposentar como médico do
Serviço Público em 1969. Ele continuou com o consultório particular até 1983,
atividade em que foi reconhecido e referendado socialmente73.
Nos próximos parágrafos, buscaremos sintetizar aspectos relevantes da biografia
de Pedro Nava e pontuar elementos de seus livros, que foram essenciais para a escrita
deste texto. Nava inicia a obra Baú de ossos: memórias (1972, p. 13), apresentando-se
do seguinte modo:
EU SOU um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos
Matos Gerais. Se não exatamente da picada de Garcia
Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo velho Halfeld e
que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o nome de
Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade do
Juiz de Fora. Nasci nessa rua, no número 179, em frente à
Mecânica, no sobrado onde reinava minha avó materna. E nas
duas direções apontadas por essa que é hoje a Avenida Rio
Branco hesitou a minha vida. A direção de Milheiros e Mariano
Procópio. A da Rua Espírito Santo e do Alto dos passos.
73
1933 – membro da SMCRJ; 1936 – docente de Clínica Médica da Universidade do Brasil; 1941 –
Diretor do Hospital Carlos Chagas e membro do Conselho Editorial da Revista Médica Municipal; 1945 –
titular do IBHM; 1951– designado pelo MEC para estudar na Europa, a organização de clínicas
reumatológicas; 1952 – professor da Escola de Aperfeiçoamento da Policlínica Geral; membro fundador
da ABBR; 1956 – organizador do Serviço de Reumatologia – HSRJ; 1959 – catedrático de Reumatologia
da Escola Médica da PUC; 1961 – membro da ANM; 1969 – Professor Emérito da PUC; 1974 – Presidente
de Honra do X Congresso Brasileiro de Reumatologia; 1975 – Diploma de Honra ao Mérito da Associação
Médica de Minas Gerais e 1978 – Médico do Ano – Associação dos Médicos Escritores.
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Fora, além da mudança para Belo Horizonte, em razão da morte da avó materna, em
1913 (VALE, 2012a).
Na obra Balão cativo: memórias 2, Nava continua com a reconstituição de sua
vida em Juiz de Fora – cidade que se destacou pela sua industrialização, chegando até
mesmo a receber o epíteto de “Manchester Mineira” –, a instalação da família em Belo
Horizonte, os estudos no Colégio Anglo-Mineiro (1914-1915), onde se torna fluente em
inglês, e a transferência para o Colégio Pedro II, localizado na então capital federal
(1916). Em Chão de ferro, complementa a reconstituição da estadia no Rio e trata do
retorno para Belo Horizonte, onde ingressa na Faculdade de Medicina, em 1921. Os três
primeiros volumes das Memórias reconstituem práticas escravocratas, a transição para o
trabalho livre, o processo de urbanização e a visibilidade da medicina científica nas
preocupações do Sanitarismo. Trata-se de páginas que remetem ao processo de
Modernização na sociedade brasileira, no período de 1870 a 1920. Entende-se como
Modernização as transformações pelas quais passou a sociedade brasileira nesse período
e que buscaram adequar o país ao momento do capitalismo monopolista, que se
estendeu mundialmente. Essa Modernização tornou-se visível em distintos
acontecimentos: o processo de industrialização de Juiz de Fora (1870-1920), a Abolição
(1888), a Proclamação da República (1889), a inauguração de Belo Horizonte (1897) e a
fundação da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte (VALE, 2012b).
Em Beira-mar: memórias 4, deparamo-nos com a reconstituição minuciosa dos
acontecimentos da vida do autor como participante do Movimento Modernista, em Belo
Horizonte, e como aluno do curso de Medicina. Entendemos por Modernismo, no
Brasil, o conjunto de diversas críticas, propostas e ações (estéticas, políticas, religiosas,
educacionais, médicas, etc.) de grupos brasileiros que, na década de 1920, procuraram
apresentar caminhos e modelos para a construção de uma nova sociedade. Intelectuais,
no período, percebem-se como missionários modernos, cujas ações teriam sentido
pedagógico, e adotam a postura de condutores das massas na construção de uma nova
nacionalidade (BOMENY, 2001; LAHUERTA, 1997; VALE, 2012b). Nava e outros
jovens modernistas de Belo Horizonte destacaram-se em atividades diferentes na Era
Vargas. Transcrevemos, a seguir, um fragmento presente na obra Beira-mar (NAVA,
1978, p. 91-92) que corrobora nossa afirmativa e adianta aspectos que serão
aprofundados nesta comunicação:
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que preparava jovens de camadas mais favorecidas da sociedade para o ingresso nos
cursos superiores e, posteriormente, para a ocupação de cargos administrativos e
políticos. São textos documentais sobre as propostas do ensino, a valorização da
retórica, o domínio do francês, a leitura dos Clássicos e a adoção de princípios
positivistas no ensino das Ciências. O memorialista alarga o círculo de amizade com os
colegas filhos de políticos e intelectuais, aumentando também seu conhecimento por
intermédio do contato com os parentes paternos, ligados ao meio intelectual do Rio de
Janeiro. As páginas finais de Chão de ferro tratam do retorno de Nava a Belo Horizonte,
do ingresso na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, em 1921, e do ingresso no
Serviço Público, através de pedido de parentes paternos ao governo de Minas Gerais
(VALE, 2012b).
Beira-mar é uma obra que se constitui como um documento sobre o
Modernismo Mineiro e o ensino da Faculdade de Medicina. Os textos naveanos
apontam para as questões estéticas postas no momento e as questões relacionadas à
Saúde e Doenças na década de 1920. A Faculdade de Medicina de Belo Horizonte,
fundada em 1911, esteve entre as propostas modernizadoras nacionais, visíveis na
organização dessa cidade. No período, discutiu-se o ensino médico, de orientação
francesa, e a relação da profissão com o Estado, assunto aprofundado posteriormente.
Galo das trevas e O círio perfeito tratam da vida profissional de Pedro Nava em Juiz de
Fora, Belo Horizonte, Monte Aprazível e Rio de Janeiro, no período de 1928 a 1934. Os
três últimos livros são, especificamente, os usados como fontes para este texto (VALE,
2009).
A inadequação da República Federativa, que, em seus diversos aspectos,
conservara estruturas advindas do Império, fica evidente no período pós-guerra. Vale
lembrar que quatro movimentos, no ano de 1922, apontam para inquietações do período
e projetos futuros. O universo estético construído pelos postulados da Academia
Imperial de Belas Artes/Escola Nacional de Belas Artes foi questionado na Semana de
Arte Moderna de São Paulo; o Centro D. Vital, fundado por religiosos e leigos,
reunindo-se no Mosteiro de São Bento (RJ), buscou a formação de uma nova elite
católica combatente do Liberalismo, visto como obra do protestantismo norte-
americano, do Comunismo e da laicicidade. Um grupo de intelectuais e operários
fundou o Partido Comunista do Brasil (PCB), com propostas de Marx e Lênin, para a
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ISBN: 978-85-415-0440-9.
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GT 3
TEP: A INVENÇÃO DE UM SERTÃO SOFRIDO E LENDÁRIO
Essa questão posta entre o real e o imaginário tem levado muitos a perder o
controle de conceitos, no caso, um conceito chave para que possamos desenvolver bem
o nosso trabalho é saber definir a diferença que há entre a história e a literatura; na
segunda, muito embora se inspire na “realidade” não significa que reproduza o real tal
como foi75; da mesma forma como a primeira, os historiadores estão cientes que suas
74
Ver: GINZBURG, Carlo. A áspera verdade – Um desafio de Stendhal aos historiadores. In: O fio e
os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 174.
75
Realidade posta aqui está carregada de uma conotação relativa, pois este real depende diretamente do
discurso de uma época, as fontes, ou mesmo, as leituras das fontes estão passivas de subjetividades,
descontruindo a ideia de que essa realidade passada existiu tal qual está posta no relato da fonte; estando
ela ainda sujeita a construção narrativa de uma época e a um lugar social. Portanto, não podemos, e nem
temos essa pretensão de afirmar uma realidade absoluta e verdadeira, mas uma realidade como sendo uma
leitura de seleto rupo que a analisa e constrói essa narrativa. Ver: CERTEAU, Michel de. A escrita da
história. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
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fontes obedecem a uma ação produtiva, os documentos por eles consultados não são
reprodutores de realidades absolutas, mas frutos de relações e construções narrativas de
grupos que detinham o poder na época de sua produção.76
White tentando suprir as deficiências dessa situação que nos põe em muitas
das vezes a beira da falésia ao tentarmos nos situar, define a história como algo baseado
no real, e a dramaturgia no imaginário, porém ele salienta que a diferença entre ambas é
o conteúdo e não as formas. Sendo assim, a narrativa do historiador está próxima da
narrativa do dramaturgo, nos diferenciando apenas na operação que fazemos com as
fontes.77
Bem, na verdade não objetivamos com este texto uma discussão teórica
entre história e literatura, mas desejamos toma-la como objeto de pesquisa, no caso a
dramaturgia de Ariano Suassuna no TEP, por volta de 1948. Neste caso, vamos
problematizar o discurso regionalista que o TEP assumiu na dramaturgia de Ariano
Suassuna na peça que recebe o prêmio Nicolau Carlos Magno em 1947, Uma mulher
vestida de sol, esta peça nos dá indícios de como foi fomentado pelo TEP na figura de
Ariano Suassuna o discurso e a invenção de um sertão mítico e saudosista.
76
Mastrogregori nos disponibiliza uma reflexão sobre a construção da lembrança, em seu artigo ele nos
lembra que as fontes não foram e não são fabricadas sob uma lei de inércia, pelo contrário, há um intenso
jogo de interesse para a construção da memória. Ver: MASTROGREGORI, Massino. Historiografia e
tradição das lembranças. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da
historiografia. 1ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.
77
White os caminha por definições que diferencia o enredo histórico do enredo literário, mas sempre
afirmando que o historiador e o literato estão próximos quanto a narrativa. Ver: WHITE, Hayde. A
questão da narrativa na teoria histórica contemporânea. In: NOVAIS, Fernando Antonio; SILVA,
Rogério Forastieri da. (Org.) Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
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[...] quero fazer teatro como os clássicos faziam e não se faz mais hoje: teatro
com gente, para gente, com história de gente, que tenham princípio, meio e
fim. Um teatro que tenha coragem de juntar personagens diferentes,
investindo contra um falso entendimento da unidade de estilo. (SUASSUNA,
2008. p. 47)
A escrita não apenas diz algo, não apenas enuncia um objeto, um referente,
uma identidade ou recorte espacial; a escrita faz ver, ela ilumina dadas
regiões do sublunar, da empiria, fazendo-as ser vistas e ditas; constrói
figurações e configurações; nos ensina a olhar, dirige nossos olhos; define
contornos, desenhos; delineia paisagens, rostidades, corporeidades. A escrita,
a linguagem, o conceito, a metáfora, o tropos linguístico nos permitem dar
contornos ao que chamamos de realidade, de real, de concreto, de nosso
mundo. (ALBUQUERQUE Jr. 2013. p. 22-23)
79
Cf: Teatro: concurso de peças do teatro do estudante. Diário de Pernambuco, Recife, p. 6, 16 de jan. de
1948.
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A nostalgia pelo retorno a essa ordem social, vista como menos violenta,
como mais harmônica e mais justa, será partilhada por setores das camadas
populares e das elites letradas, o que contribuiu para o encontro entre eles e
com esse encontro a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular.
Nessa ideia está implícita uma inegável saudade da ordem estamental anterior
e do paternalismo e patriarcalismo que a caracterizavam. (ALBUQUERQUE
Jr. 2013. p. 44)
80
A questão de terra de poceiros é o centro da narrativa do texto dramatúrgico de Uma mulher vestida de
sol, a luta entre Joaquim Maranhão e Antônio por um pedaço de terra deixa rastros para que possamos
perceber a construção de uma narrativa nostálgica do sertão. Ariano Suassuna elabora uma narrativa que
tenta chamar atenção a valores perdidos com a modernização, a questão da honra com a palavra de um
homem, elemento que valia muito mais do que a assinatura; a fé, como elemento estabelecedor da moral e
dos bons princípios, no caso do casamento as pressas de Rosa com Francisco, visto que não podiam fugir
sem se casar, e a antiga ordem vigente no sertão, uma ordem que sobrepujava o poder oficial de
delegados e juízes, sendo o coronel o referente de poder na região. Ver: SUASSUNA, Ariano. Uma
mulher vestida de sol. 3ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
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81
Cf: SUASSUNA, Ariano. Ao sol da prosa brasiliana: entrevista. 30 de setembro de 2000. Recife:
Caderno de literatura brasileira. Entrevista concedida aos editores do Caderno de literatura brasileira. p.
36.
82
No prefácio de Farsa da Boa preguiça Ariano Suassuna narra a história de seu tio que perdeu a maioria
de suas posses por causa de um empreendimento de beneficiamento de algodão que se instalou em
Taperoá, as duas empresas começou comprando algodão em caroços e depois passou, também, a comprar
algodão já beneficiado para a produção de tecido, suas ações pautada numa política de mercado
capitalista (re)escreve a prática econômica do sertão de Taperoá, resultando assim, a falência da maioria
das antigas elites agrária daquela cidade, inclusive, as economias do seu tio. Ver: SUASSUNA, Ariano.
Farsa e a preguiça brasileira. In: Farsa da boa preguiça. 10 ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p.
33-34.
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83
O acontecimento ao qual nos referimos é relatado pelo Jornal da Manhã como uma traição, a morte de
João Suassuna, Deputado Federal pela Paraíba, em 1930, decorrente de intrigas que se instalara no norte
após o golpe de 1930. A morte do pai se configura em um trauma para seu filho mais novo, a
impossibilidade ter o pai de volta, leva ele a construir ou reconstruir um sertão ideal, o sertão in memória,
um sertão que a nova ordem política destruíra. Ver: O brutal assassinato do deputado João Suassuna.
Folha da manhã. São Paulo, p. 12, 10 de out. 1930.
84
O caráter terapêutico que tem a dramaturgia para Ariano Suassuna é evidente em sua nostalgia, a
tentativa constante de revisitar e reinventar é uma tentativa de reconstruir a memória, e o tempo passado.
A morte traumática do seu pai opera como elemento estimulante para uma continua recriação do sertão
em seu formato espacial, com suas práticas e crenças. Construindo uma reflexão sobre essa problemática
Dosse nos salienta desta revisitação ao acontecimento no discurso psicanalítico: “Seja paciente que
relembra ou analista que reconstrói, o tratamento analítico se move em direção à coerência de uma
narrativa tecida de vestígios mnésicos.” Cf: DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um
desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013. p. 109.
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com o passar do tempo, de uma realidade e pessoas que não mais existiam, numa
batalha constante com o tempo.
Assim, prefiro as histórias sejam dessas histórias sem dono que ocorrem
mundo e receberam na sanção coletiva o batismo nordestino. Através delas,
procuro absorver o espírito ao mesmo tempo trágico e cômico de meu povo,
criando um ângulo novo para olhar o espetáculo do mundo. Quando mais
humana e coletiva sejam as histórias, quanto mais vivos os personagens,
tanto maior o número de pessoas, seja em quantidade seja em qualidade, será
afetado por elas. Uma arte que, sem concessões de qualquer espécie, atinja
profundamente tanto o público comum que vai ao teatro ver espetáculo, como
o rapaz pobre da torrinha, que vai ali em busca de alguma coisa que lhe é
quase tão necessária quanto o sono, será sempre superior aquela que só atinja
um outro. (SUASSUNA, 2008. p. 48)
REFERÊNCIAS
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
85
Catolicismo mestiço é um conceito usado por Euclides da Cunha ao tentar definir as práticas religiosas
sertanejas, conceito este que está implícito em toda obra de Ariano Suassuna. Cf: CUNHA, Euclides da.
Os sertões. Fortaleza: ABC Editora, 2002. p. 116.
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Paulo: Kairós, 1980.
________ . Farsa e a preguiça brasileira. In: Farsa da boa preguiça. 10 ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2013.
________ . Uma mulher vestida de sol. 3ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
NARRATIVAS VISUAIS:
CIRCULAÇÃO E RECEPÇÃO DAS XILOGRAVURAS DE J. BORGES NA
DÉCADA DE 1970
A arte é algo que se vê, se dá simplesmente a ver, e, por isso mesmo, impõe
sua ‘específica’ presença.
(Georges Didi-Huberman)
86
Ariano Suassuna usa, frequentemente, em seus escritos a expressão Romanceiro Popular do
Nordeste, que, segundo ele, reúne a poesia improvisada dos cantadores de repente e a literatura de
cordel. Cf. Suassuna (1974, 1986).
87
Nos anos 1970, a noção nacional popular esteve vinculada ao debate político e intelectual acerca da
cultura e da identidade nacional. A problemática do popular e do nacional perpassa diferentes épocas
e diferentes perspectivas teóricas. Sobre o tema, ver Ortiz (2006).
88
Compreende-se como a trajetória das imagens xilográficas como artefato produzido, guardado,
distribuído, comprado, manuseado, arquivado e manipulado.
89
Prefere usar seu nome abreviado, J. Borges; nasceu em Bezerros/PE em 20 de dezembro de 1935. Na
década de 1960, depois de desenvolver várias atividades agrícolas e comerciais, começou sua carreira
no ramo da literatura de folhetos, primeiro como vendedor, e posteriormente como autor, editor e
xilogravador.
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90
Placa para impressão, com imagens ou palavras gravadas em relevo, para ser usada na impressão em
prensa tipográfica.
91
Sobre o uso do termo como recorte geográfico naturalizado, ver Albuquerque Júnior (1999).
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92
“movimento das gravuras” (informação verbal) e os enredos da recepção93 de sua
arte. O relato autobiográfico de Borges acerca de sua produção artística indicou
surpreendentes caminhos; em correlação com textos jornalísticos e outras publicações,
ofereceu indícios sobre os modos de circulação e recepção na relação com a cultura
92
J. Borges em entrevista concedida a Maria do Rosário da Silva em Bezerros, PE, 21 de março de 2012.
93
Recepção compreendida como a relação entre produtores e receptores das imagens xilográficas por
meio de negociações de sentidos e significados.
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94
Usada aqui a noção cultura gráfica em consonância com Roger Chartier (2007a), quando chama a
atenção para as diferentes formas de escrita e a pluralidade de usos dos impressos.
95
Sobre o desafio historiográfico acerca da noção cultura visual, cita-se Kern (2010); Knauss (2006);
Menezes (2003).
96
Artista plástico carioca que viveu em Olinda/PE no início da década de 1970. Participou de exposição
na Galeria Ranulpho em 1973.
97
J. Borges em entrevista concedida a Maria do Rosário da Silva em Bezerros, 21 de março de 2012.
98
Escritor, dramaturgo e poeta paraibano, vive em Pernambuco desde 1942. Na década de 1970, lançou
o Movimento Armorial, cuja bandeira era constituída pela defesa da noção cultura popular do
Nordeste brasileiro.
99
Marchand pernambucano e proprietário da Galeria Ranulpho. Borges manteve contrato de
exclusividade com essa galeria por aproximadamente dois anos (1973-1975).
100
Escritor, jornalista e historiador uruguaio. Nos anos 1990, Borges ilustrou um livro dele, As palavras
andantes (GALEANO, 2007).
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101
José Costa Leite e Dila, artistas contemporâneos de Borges, não costumam usar o recurso da barra.
102
Aqui, usada a noção de composição em consonância com a noção criação poética, que, segundo
Chartier (2007a, p. 33) implica um trabalho de rememoração que permite “a busca da matéria [res] e
sua formatação (collectio) em nova composição”. Nesse sentido, a composição borgeana toma a
madeira como suporte privilegiado de suas inscrições.
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Nesse caso, Borges escolhia os temas em consonância com diversas circunstâncias: suas
escolhas e os recursos disponibilizados pela sociedade.103 Para cumprir sua tarefa, ele
manejava os materiais e os recursos culturais de seu tempo. Um quadro de intenções
humanas. Caso o tema caísse no gosto dos clientes e houvesse uma procura, ele podia
desenvolver variações temáticas.
Os personagens da obra de Borges foram classificados pelo pesquisador Antônio
Augusto Arantes (1982) em três eixos temáticos: i) personagens fantásticos; ii)
personagens de folhetos de cordel e iii) personagens emblemáticos da cultura
nordestina. No entanto, classificar a obra de Borges com base nos personagens pode
revelar-se insuficiente diante das mais de cinco mil matrizes. Por isso, propomos uma
análise baseada em séries temáticas.
Na década de 1970, os desenhos de Borges encontravam-se inseridos em uma
determinada visualidade, em um ambiente cultural emissor de variadas imagens, cujo
lugar de destaque pertenceu à imagem veiculada pelo aparelho televisor.104 O que
vemos nas xilogravuras borgeanas? O que elas testemunham a respeito da visualidade105
partilhada pelo autor? Consideramos que, ao olhar para as xilogravuras de Borges,
somos remetidos a uma textualidade, a uma narratividade, pois as histórias contadas na
madeira mantêm correlação com o repertório literário dos folhetos posto que o objeto
xilogravura reclame uma atenção visual específica porque é uma superfície a ser olhada.
A xilogravura de capa exerce a função de tornar visível/legível a inteira
superfície do texto para o qual ela serve de síntese; mesmo para as pessoas que não
decifram letras, ela evoca uma cognoscibilidade que ultrapassa a linearidade da leitura.
Entre a xilogravura capa de folheto e a xilogravura emoldurada, há uma continuidade
narrativa, possível, porque remete ao mundo visível e ao ato de ler palavras e imagens.
Na consecução deste arquivo, escolhemos um conjunto documental da obra de
Borges produzida no decurso da década de 1970. Apesar de ser parte da história recente,
os documentos que possibilitam contar histórias sobre Borges se encontram dispersos
103
Referimo-nos ao conceito de energia social, noção-chave à compreensão do processo de circulação
entre o mundo social e as obras estéticas. Sobre o conceito, ver Chartier (2007b).
104
Sobre a história da televisão no Brasil, ver Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010).
105
Conceito usado em consonância com Ulpiano Menezes (2003, p. 12), “como uma dimensão
importante da vida social e dos processos sociais”.
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106
Na linguagem jornalística, nota é um gênero de notícia que se apresenta na forma de um texto breve,
cujo objetivo é a informação rápida e precisa.
107
No percurso da pesquisa, encontramos dois exemplares no acervo de folhetos do Arquivo Público de
Pernambuco, sob o número de referência: F869.0(81)-91.
108
Mário Lago nasceu no Rio de Janeiro em 1911 e faleceu em 2002. Foi advogado, poeta, radialista,
compositor e ator. Ficou conhecido por sua carreira na teledramaturgia brasileira, atuando em várias
novelas produzidas pela Rede Globo.
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109
Sobre Ariano Suassuna e o Movimento Armorial há uma vasta produção bibliográfica. Consultar, entre
outros, Maria Thereza Moraes (2000).
110
Lançado oficialmente em Recife em 18 de outubro de 1970 na Igreja de São Pedro dos Clérigos. Duas
publicações são fundamentais na compreensão das noções armorial e cultura brasileira articuladas por
Suassuna. (1974; 1976/2003): O Movimento Armorial (1974) e A onça castanha e a ilha Brasil (2003).
111
Na história de Pernambuco, três momentos históricos significativos se cruzam na perspectiva de
pensar uma identidade para o Brasil e para os brasileiros, abarcando como princípio valores regionais e
tradicionais: o primeiro denominado de Escola do Recife no século XIX; o segundo é o Movimento
Regionalista, que tem seu começo na segunda década do século XX, e o terceiro é o Movimento
Armorial de 1970. Suassuna tornou-se herdeiro e crítico das duas experiências anteriores à de 1970.
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112
Os títulos atribuídos por Borges são: 1. Padre Cícero na escola; 2. Ordenação do Padre Cícero. 3.
Chegada do Padre Cícero em Joazeiro. 4. Primeira missa do Padre Cícero. 5. Comunhão da Beata. 6.
Padre Cícero aconselhando noivos. 7. Chegada de Lampião em Joazeiro (nesta há uma inversão, a
barra foi localizada na parte superior e o título na base da xilogravura). 8. Confissão de Lampião com
Padre Cícero. 9. Lampião falando com o Padre Cícero. 10. Lampião em palestra com Padre Cícero. 11.
Lampião em defesa a Joazeiro. 12. O romeiro que roubou a faca e confessou ao Padre Cícero. 13. O
Padre Cícero e as emas. 14. A prostituta arrependida aos pés de Padre Cícero. 15. Beatas em orações.
16. Benção das seis. 17. Padre Cícero entrega a carta de poder a Frei Damião. 18. Imortais pelo bem e
pelo mal, Lampião e Padre Cícero.
113
Cícero Romão Batista, nascido em 24 de março de 1844 no Crato/CE. Faleceu em 20 de julho de 1934
em Juazeiro do Norte/CE. Sacerdote católico ordenado em 1870, conhecido pelos devotos como Padre
Cícero ou Padim Ciço. Figura de grande prestígio e influência na vida social, política e religiosa no
Nordeste do Brasil (cf. LIRA NETO, 2009).
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Figura 3 – Lampião falando com Padre Cícero Figura 4 – Lampião em palestra com Padre Cícero
folheto. O álbum não é mais uma publicação autoral, fundamentado na arte de fazer do
autor, mas um empreendimento comercial que pressupõe tanto a intervenção como a
“influência de pessoas formadas” (BORGES, 2002, p. 258) e a circulação em lugares
distintos da feira e do mercado. Considerando os limites deste artigo, preferimos cotejar
apenas alguns aspectos dos textos escritos por Ariano Suassuna (1972a) com o objetivo
de apresentar Borges, “o maior gravador popular do Nordeste”.
O texto do primeiro álbum foi composto apenas por dois parágrafos. Neles
Suassuna escreveu que Borges era poeta e autor de folhetos, e que se tornara gravador
para ilustrar seus próprios livrinhos. Liêdo Maranhão, Gilvan Samico, José Maria e Ivan
Marquetti foram louvados, porque eles seriam responsáveis pela “revelação [de Borges]
ao mundo da arte brasileira e nordestina” (1972a).
Na segunda apresentação, após tecer os mesmos elogios, acrescentando apenas
algumas palavras, Suassuna (1973) explicou como escolheu e organizou os 10 melhores
trabalhos do artista. Não ofereceu muitos detalhes, mas explicou que dividiu essa
amostragem em três grupos. O primeiro seria “constituído pelas gravuras em que a
preocupação documental” teria prejudicado “um pouco a qualidade plástica”
(SUASSUNA, 1973). O segundo, “apesar da presença do documento, por assim dizer
‘folclórico’, era superior em “qualidade plástica” (SUASSUNA, 1973) sem cair nos
114
perigos de se apresentar como produto “turístico” (SUASSUNA, 1973). Já o terceiro
grupo, destacava-se porque, “a imaginação criadora” do artista teria atuado livremente,
“criando gravuras que nos deixam a todos nós orgulhosos de pertencer ao mesmo chão
cultural dele, este Nordeste sofrido e agreste que tanto nos marcou de uma vez para
sempre” (SUASSUNA, 1973).
No primeiro grupo, classificado como o “menos bom”, Suassuna incluiu quatro
xilogravuras: Satanás e o homem da cruz, O vendedor de Torrado, Ladrões de Galinha
e os Machadeiros (Figuras 6, 7, 8 e 9). O que ele chama “preocupação documental”
relaciona-se com o desejo de Borges de representar cenas do cotidiano, cenas em que se
comunicam representações iconográficas difundidas como portadoras de imagens do
Nordeste, de certo modo, desgastadas e criticadas pelo uso folclórico e turístico, na
concepção armorial de Suassuna.
114
No texto, Suassuna, também explicou que estavam usando as palavras folclórico e turístico, apesar
de ter horror a elas, com o objetivo de mostrar como “os artistas verdadeiros e grandes, como J.
Borges, são incorruptíveis”.
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Filosofia e Ciências Humanas, UFPE, Recife, 1976. Interativa; Projeto Virtus, 2003.
117
Fotógrafo letão independente que desenvolveu seu trabalho no Recife entre 1928 e 1979,
produzindo imagens que registravam, em grande parte, aspectos culturais de Pernambuco.
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A Revista Manchete foi um periódico publicado entre os anos 1952 a 2000 pelas Bloch Editores do
empresário Adolfo Bloch, imigrante russo naturalizado brasileiro. Em pouco tempo a revista alcançou
um nível de circulação nacional considerável que desbancou a Revista Cruzeiro do patamar de
publicação mais lida de sua época. Seu editorial era inspirado na revista francesa Paris Match de
concepção moderna e que trazia na linguagem fotojornalística seu principal substrato.
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responsável pelo sindicato rural da cidade de Palmares, que matinha alianças e relações
políticas com o governador Arraes.
Sobre esse episódio o fotógrafo Alcir Lacerda relata em entrevista, o que vimos
materializado em suas imagens. Percebe-se que o fotógrafo é uma figura totalmente
implicada no processo de gestão dos acontecimentos. Suas vivências, resignificadas
pelo trabalho de memória, mesclam-se com as fotografias produzidas e publicadas, de
modo a tecer um laço entre a oralidade e a visualidade:
Ai eu fiquei parado lá, voltei e botei o filme dentro do sapato, já era noite.
Quando chegou lá uma comissão com deputados e os políticos eram
exatamente da Revolução, a turma da Revolução, Coronel e os outros. E eu
entrei no meio e consegui entrar, fiquei debaixo das escadas do Palácio,
ouvindo todas as conversas. Ele queria que o Arraes pedisse demissão, mas
ele disse que não, que tinha sido eleito pelo voto do povo. Quando foi lá pras
10 horas da noite eles prenderam Arraes, desceram as escadas e eu fotografei
ele dentro de um carrinho, um Volks branco. Aí, corri lá pra o Jornal do
Commercio e revelei minhas fotos, fui pro Aeroporto, dei o passageiro, liguei
pra Manchete no Rio de Janeiro. O passageiro tal, vôo tal, aí saiu. Estava
esperando só esta foto pra sair a revista. 120
120
A documentação oral contém duas entrevistas (1h20m) com Alcir Lacerda, realizadas por Aryanny
Thays da Silva nos dias 08 e 16 de setembro de 2009, para o projeto Memórias do Fotojornalismo
Contemporâneo, coordenado pela Prof.ª Ana Maria Mauad.
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Figura II – D. Helder no Recife, 25 de abril de 1964, p.35, n° 627/ Reprodução em tamanho maior da
segunda fotografia na matéria ao lado.
Desse modo, as ruas do centro do Recife foram tomadas por milhares de pessoas,
como vemos na fotografia maior. Trata-se da Rua Conde da Boa Vista122, importante
via de tráfego e comércio na cidade, que neste dia recebeu a celebração em Recife do
que já ocorria em outras capitais do país: comemorações pelo fim da “ameaça
vermelha” e de exaltação da democracia.
Segundo informações do Diario de Pernambuco, cerca de 200 mil pessoas
participaram desse evento. Embora a Revista Manchete não se refira a tal como a
“Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, cruzando as informações nas
bibliografias referentes, percebemos que se trata do mesmo acontecimento, que foi
noticiado apenas alguns dias depois pela Manchete.
Os sujeitos presentes nas imagens constituem um amplo quadro da sociedade que
colaborou na consolidação do regime: militares, latifundiários, estudantes, a classe
média, setores da igreja católica e protestantes. Todos esses grupos de alguma maneira
contribuíram para a tomada do poder e a legitimação do regime.
Sobressai-se nas fotografias a imagem da mulher que aparece em destaque em três
dos cinco registros publicados. A atuação das mulheres nesse período foi bastante
característica, através da Cruzada Democrática Feminina, muitas marcharam pelas ruas
do Recife carregando cartazes que faziam referências a reformas cristãs, a manutenção
122
Na época ainda era considerada rua. Passou a categoria de Avenida apenas na administração de
Pelópidas da Silveira, a partir do seu alargamento, em 1976.
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Na fotografia em que aparece uma jovem senhora ajoelhada no chão (Figura IV),
durante a manifestação, rezando o terço em plena rua, aponta o simbolismo existente
nesse elemento. Em um país marcadamente católico naquele período, o terço surgia
como um emblema “mobilizador e legitimador” que se tornou “a materialização
simbólica do anticomunismo expresso na oposição “terço versos foice e
martelo””(Simões, 1985, p.106).
As “representações sobre o regime civil-militar” inscritas nessas imagens, quando
inquiridas, articulam sentidos em que o discurso para a intervenção militar se legitima,
pois as narrativas visuais colocam os sujeitos como defensores da pátria contra o perigo
do “caos comunista”. A comemoração de amplos setores da sociedade cria uma rede
que se propõe a conservação do status quo, operando assim como base de apoio aos
militares. O mais significativo nessa fotorreportagem é o quão ela deixa entrever a
adesão social que fincou o golpe em 1° de abril, em nome da preservação dos valores
democráticos e cristãos que estariam sob risco.
Por fim, interessa dimensionar, de modo mais coeso, o posicionamento político da
Manchete nesse período discutido. Diante das fotorreportagens acima analisadas vemos
que o jornalismo praticado por essa revista não se coloca em oposição aos eventos
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Essa relação com os “vitoriosos do golpe”, em períodos futuros, trará bons frutos
para Bloch, também porque a ditadura instalada necessita modelar a nação de acordo
com seus projetos políticos, ao que a imprensa ilustrada convém prontamente.
No que diz respeito ao trabalho do fotógrafo dentro desse contexto, vemos que o
mesmo atua na concepção de um registro que possa ao mesmo tempo informar as
nuances dos eventos fotografados, na mesma medida em que articula essa proposta aos
vínculos políticos que perfazem o agenciamento das notícias na Manchete.
Considerações finais
Referências
CALLADO, Antonio. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1980.
Resumo: Este trabalho se propõe a contribuir com o debate sobre a relação História e
Cinema, a partir da análise dos primeiros filmes produzidos em Pernambuco. Nestas
experiências cinematográficas, a cidade surge como personagem principal, exaltando o
aspecto moderno face ao impacto da revolução industrial e o desenvolvimento do
capitalismo. Porém, as novas paisagens são também retratos das ruínas da velha cidade.
O cinema tornava-se uma nova forma de representação da vida urbana. Utilizando os
conceitos de imagem, representação e modernidade, com base em autores como Marc
Ferro, Roger Chartier e Jacques Le Goff, este trabalho pretende explorar as primeiras
filmagens pernambucanas como representações sociais do Recife na década de 1920.
Palavras-chave: Cinema Silencioso, Recife, Moderno.
123
Os discursos políticos que envolvem a esfera cinematográfica são de extrema relevância: segundo as
perspectivas de Marc Ferro, “(...) desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que
o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço (...)”. FERRO, Marc.
Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010, p. 16.
124
Para Roger Chartier, o real é a forma com que a realidade é construída, em sua obra, através do texto.
[dê uma relida em Chartier, a coisa é um pouco mais complexa do que isso] Aplicam-se aqui as propostas
teóricas do historiador francês, observando o papel do cinema na construção de representações sociais.
CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre Práticas e Representações. Tradução: Maria Manuela
Galhardo. Lisboa, Difel/Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. 1988, p. 23-24.
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paisagens são também retratos das ruínas da velha cidade. O cinema tornava-se uma
nova forma de representação social e também uma zona de conflito.
Nas sombras da velha cidade se desenvolveria o novo: as imagens selecionam
uma fragmentação do real, ideologicamente construído. É travada uma luta constante
contra os fantasmas da velha província. Segundo Paulo da Cunha Carneiro Filho: “não
há cidades sem ruínas. Sem restos que antecipem a sua decadência ou que a preparem
para a transformação. Nem há representações da cidade moderna sem os sentidos
múltiplos e às vezes antagônicos da decrepitude” (CUNHA FILHO, 2010, p 60).
A alteridade entre o novo e velho foi pejorativamente associada ao par
moderno/antigo. Estes conceitos foram alterados com o tempo. Em História &
Memória, o historiador francês Jacques Le Goff se atem a estudar as metamorfoses e
significados da antítese antigo/moderno apontando suas principais querelas.
A disputa entre antigo/moderno assume em diversos momentos posturas
diferentes. Durante a antiguidade, o antigo significa aquilo que pertence ao passado, o
surgimento do termo “moderno”, no baixo latim, como aponta Le Goff, significa
“recente” (LE GOFF, 2013, p. 162). Durante a Idade Média, o termo “moderno” nos
aparece como uma negação ao antigo, relacionado às culturas pagãs. Já no
Renascimento, esse termo se transfigura e o moderno passa a exaltar o antigo, neste
caso a cultura clássica. Com a Revolução Industrial, surgem três novos polos de
evolução e conflito relacionados ao termo moderno: o primeiro relacionado aos
movimentos literários, artísticos e religiosos, denominados de “modernistas”; em
seguida, as distâncias entre os países desenvolvidos e países atrasados, que nos
engrenam no problema da “modernização”; e por último, um conceito ligado ao campo
da estética, mentalidades e dos costumes, a ideia de “modernidade”.
As novas experiências do século XX trouxeram à tona o boom da modernidade.
É comum pensar o moderno como um momento de ruptura com o “velho”, negando-o, e
em alguns casos, destruindo o passado, associando-se ao novo e ao progresso. Para Le
Goff, os termos “novo” e “progresso” vão além do moderno. O “novo significa um
esquecimento, uma ausência de passado” (LE GOFF, 2013, p. 166), no sentido de algo
que acaba de nascer. O moderno também se encontra com a ideia de “progresso”, um
substantivo que arrasta a concepção de moderno. O progresso é associado à evolução
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É importante destacar que para Le Goff “(...) quando, no século XIX, o substantivo [progresso]
engendra um verbo e adjetivo – “progredir”, “progressista” –, “moderno” é de certo modo excluído,
desvalorizado”. Pois, a dinâmica da concepção “progressista” é outra, ficando o termo “moderno”
associado apenas ao substantivo “progresso”. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2013, p. 167.
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Imagem 1 - JOÃO FERREIRA VILELA (c. 1865): Vista do casario do bairro do Recife, de onde vê o Hotel d'Europe
e o Grande Hotel de l'Univers, no cais do arsenal da Marinha
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A velocidade do trem é que causara espanto dos espectadores do experimento dos irmãos Lumière,
fazendo com que todos se retirarem da sala apavorada durante a primeira exibição de imagens em
movimento do mundo.
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Cf. REZENDE, Antônio Paulo. (Des)Encantos Modernos: Histórias da cidade do Recife na década de
1920. Recife: FUNDARPE, 1997.
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Este documentário foi catalogado pela Filmografia da Cinemateca Brasileira, porém trata-se de um
filme desaparecido. Os indícios de sua existência fazem parte do trabalho do pesquisador Jean-Claude
Bernardet, sobre a produção nas primeiras décadas do século XX, tendo como referência as publicações
do jornal O Estado de São Paulo. Provavelmente trata-se de uma realização de outro estado, mas feita em
Pernambuco. BERNARDET, Jean-Claude. Filmografia do cinema brasileiro, 1900-1935, jornal O Estado
de São Paulo. São Paulo : Comissão Estadual de Cinema, 1979.
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Sobre a Pernambuco Filmes e da Aurora Filmes, a pesquisadora Lucilla Ribeiro Bernardet nos chama
atenção para o conflito que há entre as fontes sobre suas fundações. Segundo ela, ora a fundação da
Pernambuco se apresenta como 1920, ora dois anos depois. O mesmo acontece com a Aurora Filmes,
onde ora o início das atividades é datado de setembro de 1922, ora de 1923. Porém, a autora ressalta que
nenhuma das diferenças entre as datas, parece alterar significativamente a imagem que pode ser traçada
sobre o andamento do Ciclo. BERNARDET, Lucilla Ribeiro. O cinema pernambucano de 1922 a 1931:
primeira abordagem. São Paulo, 1970, p. 15.
130
Segundo Paulo Carneiro da Cunha Filho: “Há muito pouca informação sobre J. Cambière, mas sabe-se
que Falangola nasceu na Itália em 1879, tendo desembarcado no Porto de Santos aos 25 anos, em 1904.
Trabalhou um período no La Settimana Del Fanfulla, jornal de imigrantes fundado em 1893 em São
Paulo. Falangola acaba por se fixar no Recife, onde casou e passou a fazer cinema, criando a Pernambuco
Film, cuja vinheta de abertura mostrava a própria filha, Adriana Falangola Benjamin, aos seis anos de
Idade. CUNHA FILHO, Paulo Carneiro da. A utopia provinciana: Recife, cinema, melancolia. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 2010, p. 44.
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O filme se encontra na Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) junto ao setor de audiovisual e está
disponível para consulta.
132
O cineasta Aristides Junqueira também lançou no Pernambuco Journal (1924) cenas da festividade.
Na Quinta-feira, 16 de Outubro de 1924, os jornais anunciavam a exibição no Cine Royal das 9 partes do
“Recife no centenário da confederação do Equador” (A Provincia, 16 de Outubro de 1924, p. 3).
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uma grande reconstrução urbana do centro do Recife e dos distritos portuários a fim de
dar, justamente, melhor acesso às docas. Avenidas foram alargadas, mocambos
arrasados e eliminadas outras estruturas que atrapalhavam o tráfego”. Com os efeitos da
I Guerra, a construção foi paralisada até 1920, quando o Estado assumiu a
responsabilidade do projeto, atendendo aos pedidos dos comerciantes e exportadores
(LEVINE, 1980, p. 83).
Esse fato é mencionado na segunda parte, ao ressaltar que administração da
reforma a partir de abril de 1922 ficou a cargo do governo. Sob a direção do Cel.
Francisco Thaumaturgo de Faria, auxiliando pelo Dr. José Alves Villela, secretário da
repartição e Astor Nina de Carvalho, chefe de trafego e movimento. Esta segunda parte
do filme, ainda exaltando o Porto, lembra que há poucos anos, o porto do Recife mal
podia abrigar os pequenos costeiros nacionais. Sob a situação do porto em finais do
século XIX, Robert M. Levine nos revelava:
Porém após a reforma, por seu intenso movimento, o Porto tornou-se o terceiro
maior da Republica. A chegada do Gelria até o cais comprovaria o sucesso do
empreendimento, acabando com as dificuldades destacadas por Levine e tornando-se,
segundo a própria película, um motivo de orgulho para os pernambucanos.
A sequência do filme nos mostra o desenvolvimento das obras complementares
do Porto, ainda não concluídas, sob administração direta do Estado: a construção dos
armazéns, dado pela necessidade grande intensidade do movimento comercial; o
trabalho nas pedreiras de Comportas, que é trazida por uma estrada de ferro de 21 km
até o Recife, imagem presente na película.
No dia 20 de Outubro ocorre a inauguração da estrada para autos na Avenida
Beira Mar, ainda em construção, continuação da linha de bonde que levava até a Ilha do
Pina. O Governador do Estado, demais autoridades, representantes da imprensa e outros
convidados aparecem tomando bondes especiais da Pernambuco-Tramways na Av.
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Alfredo Lisboa, rumo à Boa Viagem. Aparecem nas imagens o Dr. Arthur Smith,
superintendente da Pernambuco Tramways e o Dr. Carlos Machado, diretor da
Tramways e da Great Western, ambos acompanhando a comitiva. O recurso usado pelos
cineastas italianos utiliza as filmagens tomadas de dentro dos bondes, na perspectiva de
quem está dentro do veículo, aumentando assim o dinamismo da imagem que segue
sobre os trilhos, até o Pina, de onde partem a Praia de Boa Viagem de automóvel.
A quarta parte de Veneza Americana é justamente focada no transporte, dando
ênfase aos serviços das linhas urbanas da Pernambuco-Tramways. Nele aparece um
bonde da linha “Várzea” visto de frente, sob a perspectiva, provavelmente, de outro
veículo que o acompanhará. Nota-se a estratégia exaltada pelos diretores em expor as
imagens em múltiplas perspectivas, obversando formas variadas de movimento,
acompanhando as máquinas e veículos modernos. Podemos perceber que esses recursos
são utilizados especialmente para destacar a dinâmica deste momento.
Durante a quinta parte, destinada à Exposição Geral de Pernambuco de 1924,
nota-se esta estratégia no parque de diversões instalado na Praça do Derby. A película
ressalta as mais modernas máquinas de diversão presentes no evento. A inserção do
controlador da câmera nas máquinas – como o Aeroplano, Roda Gigante e Túnel do
Amor – busca experimentar e trazer para o espectador as emoções dos brinquedos,
acompanhando a dinâmica da máquina.
O desenvolvimento do Estado era o grande personagem da Exposição e também
da película. Enquanto que as fotografias destacavam as novas projeções urbanas, através
do cinema, a década de 1920 também explorou o movimento, a velocidade e o
dinamismo como símbolo da modernidade. O cinema pernambucano tornou-se uma
forte propaganda do governo de Sérgio Loreto, como um mecanismo de difusão do
discurso político. Além disso, exprimiam-se através das imagens os desejos e sonhos de
uma cidade que buscava a modernidade.
Enquanto que no Rio de Janeiro, junto às comemorações do centenário da
Independência, em 1922, o Governo Federal buscou “conferir uma identidade moderna
ao Brasil por intermédio dos filmes” (MORETTIN, 2011, p. 139), em 1924, segundo
nos revela Luciana Araújo, “o governo estadual de Pernambuco iria adotar estratégia
semelhante, estimulando a realização de filmes naturais que valorizassem aspectos da
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Era mais sólida porque era vinculada direta ou indiretamente ao governo para
algumas produções; e também aceitava encomendas de particulares. Atendia,
portanto, a uma demanda, orientava seu trabalho em vista das condições
locais, e tinha uma base suficiente (financiamento e mercado de consumo)
para investir com segurança em equipamentos, pessoal, estúdio, laboratório,
drogas, e compra de filme virgem [..]. Era uma empresa muito bem formada,
com uma estrutura técnica que possibilitou, por exemplo, o seu grande filme
Veneza Americana, feito para divulgar as grandes obras do governo Sério
Loreto, ser exibida no Rio de Janeiro em Maio de 1925, com benevolência
por parte da crítica. (BERNARDET, 1970, p. 96)
133
Criada em 1918, na Capital Federal, a revista semanal ilustrada “Para Todos” funcionou até 1932,
tinha seu conteúdo voltado para o cinema, se destacando no cenário nacional. A revista também publicava
matérias sobre os principais acontecimentos sociais e políticos. Nos anos 20 o cinema foi o grande
referencial de disseminação dos novos costumes.
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Lucilla Ribeiro Bernardet que envolve a possível relação pessoal entre Gentil Roiz e o
governo, visto que o mesmo era amigo do Dr. Amauri de Medeiros, genro do
governador (BERNARDET, 1970, p. 69).
Novas produtoras surgiram ao longo do desenvolvimento do Ciclo, como a
Vera-Cruz-Film, Planeta-Film, Veneza-Film, Olinda-Film e Goiana-Film. Porém, não
obtendo um mesmo destaque que as suas antecessoras. A própria Aurora chega a passar
por duas diferentes administrações antes de encerrar suas atividades em 1926. Além da
extrema precariedade técnica e total instabilidade econômica e a falta de mercado
interno no período, fazem os filmes terem pouca circulação, dificultando as produções
locais que não tinham retorno algum. O Ciclo do Recife foi marcado por sucessivas
falências, quase que a cada filme, e contínuos fracassos nas tentativas de exibição fora
de Pernambuco (BERNARDET, 1970, p. 9).
Poucos filmes tiverem a chance de sair do estado, o que marca um destaque
significativo de produções como Veneza Americana, que em maio de 1925 foi exibido
na Capital federal; e A Filha do Advogado, exibida em 1926 também no Rio de Janeiro,
e em São Paulo. Os dois filmes podem ser considerados as grandes produções do
período, um no gênero natural e o outro filme de enredo, significativos marcos do
cinema pernambucano.
Após os trabalhos realizados pela empresa de Falangola e Camibière, a Aurora
filme também fez algumas películas destinadas a propaganda governamental como O 3º
aniversário do governo Sergio Loreto (1925), Carnaval Pernambucano de 1926 (1926)
e A chegada do Jahú a Recife (1927). É importante perceber o teor do conteúdo de cada
filme: realizações governamentais, aspectos culturais, desenvolvimento da aviação e da
medicina. Infelizmente, o único que sobreviveu ao tempo foi o filme do Jahú, exaltando
a chegada do aeroplano no Recife, saudado pelos cidadãos recifenses. A partir de sua
difusão, o transporte aéreo seria extremamente explorado também pelas imagens
cinematográficas e fotográficas, representado como um grande aspecto dessa
modernidade.
Através do cinema conseguimos observar o Recife como um palco da
modernidade, elemento que também pode ser notado partindo de outras abordagens,
como é o caso dos trabalhos de Silvia Costa Couceiro e Flávio Weinstein Teixeira.
Partimos da cinematografia pela necessidade de preencher uma lacuna dada aos estudos
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Para Durval Muniz a ideia de “Nordeste” só surgiu a partir da década de 1990 proveniente de
inúmeros discursos que respaldaram a sua “invenção”. Até então essa região era denominada de
“norte” e seus habitantes “nortistas”. Cf. ALBUQUERQUE, JR. (2009)
135
O “sobrenome” Cascudo refere-se a devoção ao Partido Conservador que o avô paterno de Luís da
Câmara, Antônio Justino de Oliveira possuía.. Cf CASCUDO. (1968)
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momentos em que é citada nos escritos biográficos, é apresentada a partir da figura “(...)
da mãe, a mulher bondosa, religiosa, recatada ao lar, simples, carinhosa, obediente,
conformada com seu lugar (cozinha, igreja, criança e roupa).” (GOMES: 2009:192).
A imagem evidenciada nas biografias que Cascudo construiu para a sua mãe, iria
influenciar posteriormente a construção da representação feminina nas suas obras.
Reservando para as mulheres o espaço que a sua figura materna ocupava. Assim,
É nessa cidade que Cascudo nasce, vive e produz. A infância de Cascudo foi um
período conturbado do ponto de vista pessoal. Já em relação a sua formação intelectual,
é apontada por muitos pesquisadores como um momento decisivo na escrita que viria a
realizar posteriormente. Essa fase foi marcada pelo enfrentamento de:
Foi em uma tentativa de curar essas enfermidades, que Cascudo foi com sua mãe
para o sertão da Paraíba e do Rio Grande do Norte entre os anos de 1910 e 1913136. Lá
conheceu personagens que protagonizariam seus escritos posteriores, além do vasto
conhecimento/experiência adquirido acerca da cultura popular sertaneja, que culminaria
em obras de grande relevância, entre essas “Vaqueiros e cantadores” produzida em
1922 e publicada em 1939. Estudiosos das obras cascudianas, alertam para o fato de
como esse acontecimento se torna base para as suas pesquisas posteriores. Assim
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Sobre a presença de Cascudo no Sertão Cf. FARIAS. (2001)
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o tempo que passou no campo marcou sua vida e é registrado, nos prefácios e
biografias, como a época áurea e inspiradora de suas obras. Essa época é
retratada em diversas obras e assume um caráter definidor quando ele pensa a
cultura, pois sempre parte desse mundo de sua lembrança de infância.
(GOMES:2009:195).
É a partir de sua vivência no Sertão que Cascudo tem contato com os costumes
dessa região através das vaquejadas, dos cantadores e contadores de histórias, dos
gestos, das festas e da alimentação. Experiência que influenciaria ao longo de sua
produção e construiria a concepção cascudiana de cultura popular.
Infância triste, em oposição ao “brasileiro feliz”137 que viria a se formar
posteriormente. Marcada pelas “(...) limitações de seu corpo pela doença – não correr,
saltar, pisar na areia, andar descalço, subir em árvores – levaram-no a uma vida
reclusa.” (GOMES:2009:194) As biografias aqui analisadas, apontam esse momento
como decisório na trajetória intelectual de Câmara Cascudo, momento solitário que lhe
enveredou ao mundo da leitura. A imagem desse sujeito é construída “(...) a partir da
figura de erudito, do homem voltado para os livros e as letras desde a infância, quando
ao invés de brincar como as outras crianças, voltava-se para a leitura de revistas, de
álbuns de gravuras e de viagens (...)” (COSTA: 2011).
Prática de leitura que foi incentivada pelos pais, sobretudo pelo Coronel
Francisco Cascudo que construiu uma biblioteca para Cascudinho, evidenciando o
poder aquisitivo daquela família. Essa era formada por livros raros importados da
Europa, revistas Tico e Teco e outras publicações que logo passaram a fazer parte das
madrugadas de leitura do pequeno Cascudo.
O cenário de sua infância é o Sertão “(...) ingênuo, crédulo e místico, não
corrompido pela cidade (...)” (GOMES:2009:196) Concepção que poderia suscitar um
pertencimento desse intelectual a corrente regionalista, mas que é contrastado pelo fato
de Cascudo escrever obras a exemplo de Joio, que evidenciam o seu cosmopolitismo.
Assim, o Sertão em seus escritos é representado pelo passado, pela infância, tempo
mítico que não volta mais.
137
“Cascudo era feliz por trabalhar com prazer, feliz com o resultado do seu esforço, feliz por gostar das
pessoas, feliz por ser professor. Feliz porque amava imensamente a vida, que celebrava nos bares e
pensões alegres da Ribeira.” (LIMA: 1998:12).
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O início de sua vida intelectual ocorre em um momento que para Araújo (2006),
é marcado justamente por essa interação ou contradição entre o passado e o presente
(moderno). O ano de 1918 é atribuído como marco inicial de sua carreira, a partir da
publicação de uma crônica no jornal A Imprensa, periódico que é fundado pelo Coronel
Francisco Cascudo em oposição aos oficiais Diário de Natal e A República. O texto
fazia parte de um coluna intitulada Bric-à-Brac, na qual Câmara Cascudo tecia críticas
literárias a autores nacionais e internacionais.
Posteriormente, em 1921, Cascudo escreve o livro Alma Patrícia. Essa se refere
a um autor natalense, o que para Oliveira evidencia a importância de tal obra por ser
pioneira, já que no início do século XX várias cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e
a própria Natal viviam uma espécie de Belle Époque tardia, período de
“afrancesamento” dos costumes, leituras e pensamentos. Assim, “Cascudo, morando
numa cidade pequena do Nordeste, embora estudasse autores europeus, não se deixou
influenciar por tais costumes, que alcançavam até a maneira afrancesada de vestir, ainda
que vivêssemos nos trópicos.” (OLIVEIRA: 1999:35).
Característica que o aproxima de tantos outros intelectuais, como Euclides da
Cunha e Lima Barreto, que procuraram abordar temáticas nacionais em detrimento ao
estrangeirismo que “contaminava” o brasileiro. Assim, podemos identificar a década de
1920, como o período de adesão desse escritor ao movimento modernista, que entre
outros valores enaltecia o próprio Brasil, sendo posteriormente na opinião de alguns
biógrafos o “(...) homem que descobriu a alma do povo brasileiro” (OLIVEIRA:
1999:44) que enaltecia o “(...) sertão onde o Brasil se esconde e se mostra” (NEVES:
2002:75). Aquele que valorizava o homem considerado “normal”, o homem ordinário
na concepção certeauniana (CERTEAU:2008) com todas as particularidades de seus
gestos, alimentação, danças, canções e práticas.
Porém, apesar de enaltecer essas figuras populares e comuns, na trajetória
intelectual de Cascudo consta a dedicação à produção de biografias e crônicas
relacionadas a velhas figuras daquela região, como homens da elite letrada, políticos e
fazendeiros. Além desses sujeitos, temos aquelas obras dedicadas a personagens da
monarquia portuguesa, como os intitulados Conde d’Eu e O Marquês de Olinda e seu
tempo.
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Câmara Cascudo como os escritos biográficos apontam se considerava um provinciano por
excelência. Aspecto interessante se considerarmos a importância que ele adquiriu nacionalmente e
internacionalmente através de seus escritos, mesmo situado fora do eixo Rio-São Paulo. Ele estaria “(...)
arraigado nas dunas de sua cidade Natal, que jamais cedeu ao canto de sereias que o instavam a trocar
as margens do Potengi pelos grandes centros (...)” (NEVES:2002:65).
139
Sobre a relação intelectual e pessoal entre Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, seus distanciamentos e
aproximações. Cf. FERREIRA. (2008).
140
Câmara Cascudo manteve ao longo de sua vida uma aproximação pessoal e intelectual com o poeta
modernista, Mário de Andrade. Relação que pode ser evidenciada nos encontros entre esses e nas
inúmeras correspondências trocadas ao longo de décadas. Cf. MORAES. (2010).
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141
As pesquisas etnográficas que Cascudo realizou para a confecção de obras tais como: “A História de
nossos gestos”, “História da Alimentação no Brasil” e “Rede-de-dormir” evidenciam o uso desse
estudioso de diferentes concepções teóricas, entre essas a antropologia social inglesa e a antropologia
cultural norte-americana.
142
O movimento Integralista surgiu nas primeiras décadas do século XX e sua ideologia reunia princípios
voltados para o cristianismo, nacionalismo, indianismo, estatismo e respeito aos direitos humanos, sob
o lema de "Deus, Pátria e Família". No Rio Grande do Norte esse movimento foi fundado por Plínio
Salgado em 1932 e contou com inúmeros adeptos entre eles Câmara Cascudo. Esse movimento buscava
como o próprio nome suscita integrar na Pátria Brasileira. Cf. RAMOS. (2001).
143
A não oposição ao Golpe Militar de 64 assim como sua participação no movimento Integralista são de
certa forma silenciados nos estudos biográficos consultados. É necessário destacar que o sentimento
anticomunista é apontado como o principal motivo para a não objeção de Cascudo a ditadura, porém
ele é apontado como um dos que abrigou em sua residência sujeitos perseguidos pelos militares.
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144
Cascudo publicou em periódicos como A República artigos voltados para o campo histórico entre
esses: “A função dos Arquivos”, “História e Estória” e “História e Historiadores”. Além desses temos
obras de cunho histórico como: “A História do Rio Grande do Norte”, “Os holandeses no Rio Grande do
Norte” e “História da Cidade do Natal”.
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outros historiadores metódicos, nem todos os fatos deveriam ser memoráveis. Dedicava
suas narrativas históricas a importância de acontecimentos como eventos políticos, a
exemplo das invasões estrangeiras, e a feitos dos chamados “grandes homens” como
eclesiásticos e estadistas.
Como fica evidente, a concepção teórica de Cascudo em relação à História é
múltipla. Não há só uma escola teórica que ele siga. Em suas obras históricas temos
abordagens de diferentes perspectivas, ele “(...) mesclou concepções de história que
vão desde a Antiguidade Clássica, como as concepções de Heródoto, até a moderna”
(COSTA: 2011:02).
A aproximação com esse campo do saber não se reflete apenas em parte de sua
produção, mas também no exercício do magistério enquanto professor de História do
Brasil no Atheneu Norte-rio-grandense. Profissão essa, que de acordo com seus
biógrafos sempre exerceu145, seja em sala de aula ministrando disciplinas em colégios e
universidades ou como professor de muitos que iam lhe consultar em sua residência.
De acordo com Fernando Luís, filho de Cascudo, “alguns chegavam em caravanas,
procedentes do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador. Teve época que era
preciso telefonar para marcar entrevista (...)” (OLIVEIRA: 1999:97).
Como foi dito, Cascudo acreditava que os documentos forneceriam aos
historiadores o suficiente para conhecer o passado e revivê-lo. Porém, mesmo
concebendo essas fontes como espaços neutros e puros, ele por volta da década de
1970, operou uma “(...) escrita da história interessada e endereçada ao futuro.”
(COSTA: 2011:11) de modo que futuros historiadores encontrassem nos escritos de
Cascudo o seu ponto de partida.
De modo semelhante, Cascudo já com 70 anos, opera a construção de seus
escritos memorialísticos146 através de omissões, silenciamentos e seleções de materiais,
personagens e acontecimentos. Se a História para esse erudito era um meio de
rememorar fatos dignos de serem lembrados, suas autobiografias também apresentam
uma seleção do que deve ser esquecido e o que deve ser evocado. Fato que evidencia a
145
O magistério não teria sido uma escolha natural, teria ocorrido por necessidade. Apesar dos escritos
biográficos afirmarem que o seu ingresso no Atheneu Norte-rio-grandense ocorreu através de concurso
Gomes sugere que ele teria contado com o apoio politico para ocupar tal cargo. (GOMES: 2009).
146
São escritos de memórias de Cascudo: “O tempo e eu”, “Pequeno Manual do doente aprendiz: notas
e imaginações”, “Na ronda do Tempo” e “Ontem: imaginações e notas de um professor provinciano”.
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suas memórias para que estas tivessem sua assinatura e o peso de sua
autoridade intelectual, como se assim fosse possível preservar sua imagem
do atrito do tempo, garantir sua própria marca autoral na fixação de sua
trajetória como homem e intelectual e revestir com sua própria autoridade
de etnógrafo nesses anos já respeitado nacional e internacionalmente na
versão que dá de si mesmo. (BETI: 2001:05-06).
Assim, o momento que Cascudo escreve suas memórias é um período no qual ele
já tinha grande reconhecimento por sua trajetória intelectual, portanto os constrói a
partir de como gostaria de ser visto e lembrado. Esse movimento poderia suscitar um
desejo em Cascudo de não ser esquecido, de permanecer vivo, de ser digno de
evocação pela posteridade, de ser como os “grandes homens” de seus escritos
históricos.
Quase duas décadas após iniciar a escrita de suas memórias, Câmara Cascudo
falece em 30 de julho de 1986, aos 88 anos. É anterior a esse momento que a cidade de
Natal passa por uma espécie de monumentalização (NETO:2009) desse intelectual,
intensificado após a sua morte e culminando na comemoração de seu centenário de
nascimento em 1998. Seu nome batiza ruas, estabelecimentos comerciais, instituições
públicas e particulares, memoriais e outros espaços147 que servem para exaltação de
Cascudo.
Cascudo é transformado em um monumento natalense. É através desse
movimento que ele se torna “(...) um sujeito privilegiado, de modo que constantemente
são criados lugares para perpetuar sua importância, recordá-lo e evocar sua atividade
intelectual.” (NETO:2009:28) conseguindo através disso se perpetuar no tempo e ser
erguido como personagem destacado do cenário local e nacional. Esse processo de
monumentalização de Cascudo não é um processo isento de intencionalidades. O
147
Em Natal podemos citar: a Rua Câmara Cascudo, o Museu Câmara Cascudo mantido pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Biblioteca pública Câmara Cascudo, Instituto Ludovicus
destinado a pesquisas sobre esse escritor e o Memorial Câmara Cascudo. Outras cidades brasileiras
também possuem espaços que levam o nome de Câmara Cascudo como a Praça Câmara Cascudo em
Santo André (SP).
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desejo de criar lugares de evocação da figura desse etnógrafo parte não só do próprio
Cascudo, que ainda em vida constrói memórias selecionadas, mas também é forjado
por indivíduos pertencentes à elite letrada e politica daquela cidade.
Cascudo, diferente de tantos outros estudiosos, conheceu o sucesso ainda em
vida, mas ele assim como outras figuras de importância nacional e internacional obteve
após a sua morte certo movimento de exaltação mais grandiosa que aquela que
alcançou ao longo de sua trajetória intelectual. Assim, o centenário de nascimento de
Cascudo é um momento importante para analisar a proporção de homenagens que esse
sujeito adquiriu.
Em 1998, a Câmara dos Deputados realizou uma sessão solene em homenagem
a Cascudo. Segundo Oliveira (1998), essa foi uma das maiores homenagens que
Cascudo pode receber, sendo marcada pela presença de figuras próximas ou não ao
etnógrafo. Houve ainda homenagens de espaços, como o TST (Tribunal Superior do
Trabalho), a ABL (Academia Brasileira de Letras) que também realizou reunião na
qual homenageava a esse pesquisador contando com presenças como Raquel de
Queiroz e Celso Furtado que evidenciaram a contribuição de Cascudo para a cultura
brasileira, os Correios que lançaram selo comemorativo e a construção de espaços já
citados para exaltação dessa figura ilustre.
Porém, acredito que as homenagens que mais sensibilizariam Câmara Cascudo
seriam aquelas confeccionadas pelos sujeitos que produziam a cultura popular, tão
estudada e valorizada por ele, além das reverências prestadas nos ambientes de
expressão dessa. Assim, temos alguns cantadores populares148 de diferentes estados
incluindo o Ceará, Paraíba, Pernambuco e o próprio Rio Grande do Norte, que através
do verso e da viola eternizaram a figura desse “provinciano incurável”, ao “professor
jagunço” foram dedicadas composições ritmadas nas cantorias e escritas nos cordéis.
Outra homenagem que teria provocado a comoção de Cascudo, partiu de uma
das festas mais populares do Brasil, o carnaval. No ano de seu centenário, ele foi tema
de um dos blocos de rua de Natal intitulado Bicho-papão. No Rio de Janeiro ele foi
citado por algumas escolas de samba como a G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro em
1999 que teve como enredo “Salgueiro é Sol e Sal nos Quatrocentos Anos de Natal”
148
Alguns daqueles “homens normais” que prestaram homenagem a Cascudo no centenário de seu
nascimento foram: Patativa do Assaré, Celestino Alves, Sebastião Dias e outros.
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Referências biográficas:
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Vol. 01. São Paulo:
Editora Vozes, 2008.
COSTA, Bruno Balbino Aires da. Luís da Câmara Cascudo, historiador. Disponível
em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1299272352_ARQUIVO_ArtigoAN
PUH.pdf acessado em 10 de mar. de 2014.
FARIAS, Mirella de Santos. Memórias de um menino sertanejo: O Sertão de Luís
da Câmara Cascudo. [trabalho de conclusão de curso]. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2001.
RESUMO
INTRODUÇÃO
149
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In. FERREIRA, Marieta de M. e AMADO, Janaína. (Orgs.) Usos e
Abusos da História Oral, 8ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2006. Pág: 189.
150
LUCA, Tania Regina de. Historia, dos, nos e por meio dos periódicos. In: Fontes Históricas. Rio de
Janeiro: Contexto, 2005.
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151
Ver SILVA, Aldo José Morais. Natureza Sã, Civilidade e Comércio em Feira de Santana. Elementos para
o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia (1833-1927).Dissertação de Mestrado,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, 2000.
152
Este jornal tinha como proprietário Tito Ruy Bacelar ex-intendente de Feira de Santana. Conforme o
memorialista Gastão Sampaio, este seria padrinho de Arnold Silva.
153
As passagens referentes as crônicas são com o português arcaico de Portugal.
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Mesmo com limitações na sua formação escolar básica, Arnold demonstrava certa
proximidade com intelectuais franceses, algo que para a sociedade do período
demonstrava grande conhecimento, pois eram poucos aqueles que possuíam acesso a tal
literatura e raros os que reproduziam este tipo de conteúdo em artigos jornalísticos,
como foi o caso deste pensamento utilizado ao final da coluna citada anteriormente: “O
trabalho intellectual é o melhor remedio contra os desgostos da vida; não ha magoa que
não se acalme com uma hora de leitura, Montesquieu”158
A partir de 1918, Arnold começa a escrever alguns editoriais para o jornal do
qual ele se tornaria proprietário no ano de 1922. Nesse contexto os ideais de
modernização difundidos pelos republicanos estão em voga na América, inclusive no
Brasil, sendo que sobre este Rinaldo Leite (1996) ressalva que as elites aspiravam ao
modelo urbano da cidade europeia, numa tentativa de moldar os padrões tanto estéticos
154
Folha do Norte, 24/08/1912. n°133, p. 02
155
O Governador citado é José Joaquim Seabra.
156
Folha do Norte, 10/01/1914, n°204, p. 01.
157
Folha do Norte, 24/01/1914, n°206, p. 01.
158
Idem
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Arnold Silva era um intelectual que possuía profundo interesse pela preservação
das memórias do passado de Feira de Santana. Silva lançou na Folha do Norte a coluna
“Vida feirense” que, segundo Ana Angélica Morais (1998: 12), existiu de 1923 a 1952,
lembrando também que, a princípio, a coluna se chamava “Crônica feirense” e que
Arnold Silva a assinava com o pseudônimo de Gil Moncorvo. Nessa seção do jornal ele
organizou registros sobre a história da cidade, anotando eventos e datas que marcaram a
trajetória histórica feirense. Apresentou dados aos quais teve acesso principalmente em
arquivos de Feira de Santana e de Salvador. Sobre esta coluna, Morais afirma que:
159
Ver: OLIVEIRA. Ana Maria Carvalho dos Santos. Feira de Santana em tempos de modernidade:
olhares, imagens e práticas do cotidiano. (1950-1960). Recife: UFPE, 2008. Pág: 45 e 46. A
professora Ana Maria Carvalho apresenta a preocupação das autoridades na mudança da condição de
Feira de Santana , enquanto cidade de bases agrárias para uma urbe civilizada.
160
Folha do Norte, 11/05/1918. p.1
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... ARTES
O envolvimento de Arnold em outros segmentos artístico-culturais evidenciou-
se muito antes do seu ingresso na vida política, principalmente através de Grupos
Lítero-Dramático. Segundo Aline Aguiar Santos (2012:72) estes, através de atividades
diversas (recitais de poesias, saraus, conferências e apresentações dramatúrgicas),
assumiam uma ação pedagógica, seja pelo uso “das belas letras” ou “pela arte
dramática”, além de proporcionarem momentos de descontração e a difusão de uma
perspectiva cultural, promoviam a difusão de hábitos e costumes contribuindo para
afirmar os valores progressistas, morais e civilistas em Feira de Santana. Nos encontros,
faziam recitais de poesias, também chamados de “a hora literária”, palestras, concursos
de poesias e, de vez em quando, algumas encenações teatrais. Geralmente os conteúdos
dessas ações culturais giravam em torno de temáticas sobre a moralidade, o civismo, a
cidadania, a civilidade e o progresso importantes para o momento de tentativas de
transformação urbana vividas por Feira de Santana. O jornal Folha do Norte traz a
participação de Arnold nesse grupo:
161
Folha do Norte 21/12/1918, n°455.
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Outro grupo Lítero-Dramático que ganhou destaque nesse período foi o Taborda,
segundo Maria Izabel Sampaio (2000:46) foi o que mais tempo atuou na cidade,
desenvolvendo suas atividades desde 1906 até 1934. O Taborda, por sua vez, era um grupo
dramático amador, assim como o Grêmio Rio Branco, composto por pessoas notáveis da
elite feirense, realizando suas reuniões no Cine-Teatro Santana, no qual também encenavam
vários espetáculos. O jornal Folha da Feira dá destaque a homenagens feitas pelo grupo ao
então deputado constituinte, revelando a participação deste membro do parlamento no
grupo:
Gremio Taborda
162
Folha da Feira 08/10/1934, n°313, p. 04
163
Folha do Norte, 06/10/1923, p.1 – Crônica Feirense – “A Sociedade 25 de Março festeja a
reorganização de sua banda musical, dissolvida, nove meses antes, por medida de caráter disciplinar”
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E PALANQUES.
A condição de jornalista e dono de um dos veículos de informação mais
importante da urbe nas primeiras décadas do século XX privilegiou a imagem de Arnold
Silva, mas o fato de ter se casado duas vezes com as filhas do coronel Bernardino da
Silva Bahia, e deste veículo atender a interesses da classe dominante e do governo
projetou-o ainda mais para a vida política, sucedendo assim seu sogro na chefia do
executivo municipal, logo após o segundo mandato (1959-1962). Na condição de
político comungou com as mudanças e ideais de modernidade vividos pelo Brasil e não
de forma diferente por Feira de Santana, representado por uma série de obras de
infraestrutura, ações administrativas e que tiveram como marco a inauguração do prédio do
Paço Municipal, em 1926, conforme ele mesmo relataria em um discurso baseado nas suas
primeiras gestões na intendência de Feira de Santana:
Se nada fez de útil, meu governo, pelos menos concorreu para que
Feira obtivesse esses três poderosos elementos de vida, de
progresso, de civilização: - posto de profilaxia rural, luz elétrica,
Escola Normal; pelo
menos promoveu e manteve uma política de congraçamento, de
tolerância e de paz; pelo menos se traçou normas de severa
honestidade em todos os departamento da administração; pelo
menos defendeu na medida de suas forças,a integridade territorial
do município; pelo menos conservou e aumentou a quilometragem
das estradas de automóveis; pelo menos regularizou e melhorou o
principal comércio da terra, instalando uma balança, a maior do
Estado e uma das maiores do país, para pesagem do gado vivo;
pelo menos pagou em dia a todos os funcionários, atendeu em dia a
todos os compromissos da comuna; pelo menos elevou a receita
média do município; pelo menos não transmite encargos não lega
dívida, não arrola credores, deixando a Feira livre, desembaraçada,
164
Livro n°02 de ata do conselho administrativo da sociedade Montepio dos artistas feirenses, p. 85.
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165
Discurso feito com o objetivo de alavancar sua campanha eleitoral nos anos 50, reproduzido na
Folha do Norte de 09/08/1958, p,01.
166
Folha do Norte, 01/01/1944. Nº 1799, p.1.
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167
Folha do Norte, 08/10/1927.
168
Folha da Feira 06/11/1933. n°266, p. 01.
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sem, contudo deixar a política partidária. Segundo SILVA (2012: 118) em 31 de janeiro
de 1941, ele mudou-se para Salvador, onde residiu durante um tempo, para administrar
a Empresa de Carnes Verdes da Bahia, que sucedeu à Empresa Amado Bahia S. A.
Juntamente com Arnold Silva, estiveram João Martins da Silva e João Marinho Falcão,
todos na posição de sócios-gerentes.
Através do semanário Folha do Norte, Arnold Silva, continuou no jogo político
marcando suas posições e escrevendo sobre o cotidiano, a história e a memória da
cidade, caracterizando desta forma uma segunda fase de sua intelectualidade só que a
serviço da política, mais tarde partidária, anti-varguista e udenista. A Princesa do Sertão
passava nesse momento da década de 1940 por uma fase de transição entre o rural e o
moderno, conforme afirma o poeta e intelectual Eurico Alves:
Até a quarta década de século metamorfoseava-se a velha cidade
provinciana, em lenta sugestão de capital minúscula. Em 1940, daí
para frente, todavia, operou-se repentina transformação aqui na
vida urbana. Como seguro petardo de progresso da noite para o dia,
o comércio sacudiu a cidade (...). O tempo mudou as fácies de
minha cidade. (BOAVENTURA, 2006, p.47).
169
Folha do Norte, 02/04/1949, n °2073, p.01.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos iniciar uma análise da ação e atuação desse sujeito não só no âmbito
político como também no âmbito econômico, e principalmente social e cultural (as suas
relações com instituições tais como filarmônicas, Santa Casa de Misericórdia e
montepio) pois, conforme Anderson dos Santos (2009), para os homens de elite “as
filarmônicas, e demais associações locais mostravam-se como termômetros de seu
prestigio e de sua popularidade” são peças importantes para compreender as
especificidades dos sujeitos políticos e perceber suas relações com a sociedade.
Os relatos dos memorialistas nos tem propiciado uma visão do período
estudado, apresentando as suas impressões e suas representações da sociedade em
que viveram. Eurico Alves Boaventura, por exemplo, escreveu muitos poemas, artigos
compilados vários deles na obra A paisagem urbana e o Homem: Memória de Feira de
Santana, que nos tem permitido um olhar sobre o cotidiano de Feira de Santana no
período proposto. Sua visão dessa cidade era marcada pela nostalgia e pelo
saudosismo de um lugar já transformado em virtude da urbanização que havia
170
Folha do Norte, 26/10/1918, nº 447, p.2. Podendo ser encontrado o Processo-crime no Centro de
Documentação (CEDOC) da Universidade Estadual de Feira de Santana: estante 02, caixa 34, documento
582.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SANTOS, Anderson de Rieti Santa Clara do. Músicas nos Coretos: Ruídos nos
Palacetes: o cotidiano das filarmônicas de Santo Amaro da Purificação – Bahia (1898-
1932). Feira de Santana, UEFS, 2009.
SILVA, Aldo José Morais. Natureza Sã, Civilidade e Comércio em Feira de Santana.
Elementos para o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia
(1833-1927).Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia, 2000.
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171
“A expressiva discografia do Legião Urbana inclui: Legião Urbana (1984), 550 mil cópias; Dois (1986), 1,1
milhão de cópias; Que país é este (1987), 770 mil cópias; As quatro estações (1989), 1,1 milhão de cópias; V (1991),
465 mil cópias; Música para acampamento (1992), 270 mil cópias; O descobrimento do Brasil (1993), 430 mil
cópias; Por enquanto (uma retrospectiva, em seis CDs), 20 mil cópias; A tempestade ou O livro dos dias (1996), 400
mil cópias. Renato gravou ainda dois trabalhos solo: The Stonewall celebration concert (1993), cantado em inglês,
que vendeu 200 mil cópias; e Equilíbrio distante (1995), interpretado em italiano, 550 mil cópias”. (grifos do autor)
(CONVERSAÇÕES, 1996, p. 11).
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Foram lançados oito discos póstumos: Uma outra estação, gravado de janeiro a junho de 1996 concomitante às
gravações do CD A Tempestade (julho de 1997); O último solo, terceiro disco solo, póstumo (novembro de 1997);
Mais do mesmo, antologia com 16 músicas (março de 1998); Acústico MTV (gravado em janeiro de 1992, mas só
lançado em outubro de 1999); Renato Russo (antologia da série Bis – junho de 2000); Como é que se diz eu te amo
(álbum duplo ao vivo – março de 2001); Presente (“com Renato Russo e convidados, em gravações de variadas
épocas” e também com superposições posteriores. Inclui o áudio de três entrevistas – março de 2003); As quatro
estações ao vivo (“gravado no Palestra Itália, estádio do Palmeiras, em São Paulo, nos dias 10 e 11 de agosto de 1990,
exceto a faixa “Se fiquei esperando o meu amor passar”, gravada no Mineirinho, em Belo Horizonte, no mesmo mês.
Lançado em duas versões, uma simples, outra dupla, em março de 2004”) (DAPIEVE, 2006, p. 176-179).
173
Além de matérias jornalísticas que constantemente são exibidas na TV temos conhecimento de cinco grandes
produções audiovisuais que contam a trajetória de Renato Russo e da Legião Urbana: o programa especial Por toda
minha vida/ Renato Russo da TV Globo (2007); o programa especial da TV Globo Legião Urbana e Paralamas do
Sucesso juntos (exibido em 1988 e lançado em DVD e CD em 2009); o Concerto Sinfônico Legião Urbana ao vivo,
gravado no Rock in Rio, produzido por MZA Music, Artplan e TV Globo (2011); o filme Faroeste caboclo de René
Sampaio, inspirado na música homônima de Renato Russo, produzido pela Europa filmes (2013) e o filme Somos tão
jovens de Antonio Carlos da Fontoura, produzido pela 20th Century Fox (2013).
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Apesar dessa rebeldia juvenil, no que auge dos seus 23 anos, forjados nos
chumbos da Ditadura, Renato apresentava-se, segundo fontes biográficas
(CONVERSAÇÕES, 1996; DAPIEVE, 2006; RUSSO, 2000) como um bom menino.
Na escola, tanto no Rio de Janeiro quanto em Brasília, era bem quisto por “todos”.
Chegou a homenagear suas professoras de alfabetização do Colégio Olavo Bilac, onde
estudou na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, na letra da música “O descobrimento
do Brasil” (1993), do disco homônimo: “[...] A professora Adélia,/ a tia Edilamar/ e a
tia Esperança” (LEGIÃO URBANA, 1993. Faixa 6). Segundo o jornalista Arthur
Dapieve (2006) o Colégio Marista, em Brasília, confiava tanto em Renato que lhe
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enviava as provas para responder em casa no período de 1975 a 1977, quando ele estava
de tratamento contra a doença epifisiólise que lhe furtou o andar por um ano e meio.
Nesse período traumático da vida de Renato ele passou a ler de tudo e a ouvir
muito rock. Era apreciador dos escritores românticos e dos poetas ingleses, tendo
preferência por Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade. Dessas intensas
leituras surgiu o “Russo” de seu nome artístico em homenagem aos seus pensadores
favoritos, o matemático e filósofo inglês Bertrand Russel, o também filósofo Jean-
Jacques Rousseau e o pintor primitivista Henri Roussau, ambos franceses. Na música, a
sua formação clássica que herdou do pai, ouvindo Schubert, Rachmaninoff, Purcel, Eric
Satie e o seu favorito Wagner se desenvolveu em paralelo à audição de Beatles, Elvis
Presley, Bob Dylan, muito rock progressivo e depois o rock punk.
Nos anos 1970 o Brasil e o mundo foram abalados pela crise do petróleo. A
Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), no final de 1973,
quadruplicou o preço do barril. Essa crise do capitalismo promoveu a alta da inflação, a
queda na produção, aumento do déficit da balança comercial e um alto índice de
desemprego, levando o mundo a uma grave recessão. Houve uma ampliação da
desigualdade social (no Brasil e no mundo) e da distância entre os então chamados
países de Primeiro (como EUA e Inglaterra) e Terceiro Mundo (como Brasil e
Argentina). Foi nesse contexto de crise econômica mundial que surgiu dois estilos
musicais, entre outros, o rock progressivo e o punk rock.
O estilo progressivo tornou-se uma das bases do experimentalismo do rock,
fazendo fusões da música erudita com o jazz e promovendo o desenvolvimento da
eletrônica musical com o uso de sintetizadores. Entre os grupos que se destacaram, na
configuração inicial desse movimento, estão o Genesis e o Pink Floyd.
O estilo punk foi o mais radical e corente com aquele período. Isto é, expressava
o descontentamento de jovens pobres, ou até mesmo de classe média, com a realidade
triste em que viviam. O movimento punk, idealizado por Malcom McLaren, pregava o
primitivismo do rock e das atitudes. Ou seja, bastariam três acordes, com uso de
guitarra, baixo, bateria, vocal e amplificadores baratos para se fazer uma revolução
musical que implicaria em mudança comportamental. A bricolagem (faça você mesmo)
identificava os jovens desse movimento que, de forma agressiva, por suas roupas
rasgadas e atitudes firmes, inspiradas nas principais bandas como Sex Pistols, The
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sofriam humilhações e perseguições. O clima era tenso e pavoroso. O medo era não só
da polícia, mas também da sociedade conservadora e reacionária que não permitia
“esquisitices” e comportamentos fora da ordem. O próprio Renato Russo, numa
entrevista à revista Bizz em maio de 1989, comentou a dificuldade de se viver nesses
“tempos de repressão”.
Era tão louco, nem eles sabiam o que era. Implicavam com todo mundo.
Era a época da redemocratização. A Colina, que era nossa base bem no
comecinho, era também a residência dos professores da UNB – gente de
esquerda que não podia falar... E volta e meia vinham as joaninhas – não,
nem joaninhas, era veraneio mesmo. Essa história de “Veraneio Vascaína” é
por causa disso. Eles entravam na universidade, aquelas coisas de bater em
estudante etc. O nome Aborto Elétrico é justamente porque eles inventaram,
em 68, os cassetetes elétricos que davam choque. Numa dessas batidas, uma
menina que estava grávida, nada a ver com a história, levou uma tal daquelas
cacetadas e perdeu a criança! Coisa de mau gosto! Então, Aborto Elétrico era
o que representava a música da gente. Agora, a repressão existia em vários
níveis, em todos os lugares. Tinha de se ter muito cuidado com o que se
falava – não podia falar mal do governo, nada. Nem bzzzzzzzz. E era só
verem um grupo de jovens juntos que vinham estragar, tipo desmanchar
prazer. (CONVERSAÇÕES, 1996, p. 119).
Como podemos perceber nesse depoimento de Renato Russo, a banda punk rock
Aborto Elétrico surgiu em 1978 como uma resposta contra a repressão civil-militar que
a turma da Colina vivenciava em Brasília. A formação da banda se deu a partir do gosto
musical comum de três amigos pelo Sex Pistols. Renato amava o baixista dessa banda,
Sid Vicious. Foi dessa forma que encontrou o seu guitarrista André Pretorius, filho do
embaixador da África do Sul no Brasil. Isto é, Renato quando o viu próximo do bar
Taberna em que estava com amigos em Brasília, acho-o parecido com o Sid Vicious.
Logo fizeram amizade e decidiram formar uma banda inspirada no Sex Pistols. Em
1978 começaram os ensaios da banda punk rock Aborto Elétrico (em vários locais, um
deles foi um puxado da embaixada da África do Sul) com Renato Russo no baixo,
André Pretorius na guitarra e Felipe Lemos (o Fê, filho de professor universitário) na
bateria.
A primeira apresentação do Aborto Elétrico ocorreu em janeiro de 1980, num
pequeno bar chamado “Só Cana” de Gilberto Salomão em Brasília. O trio de roqueiros
punks não se incomodou com a estrutura do bar, pois o que mais importava naquele
momento era ter um espaço para se apresentar e alguém que pudesse ouvir suas
histórias, seus sonhos juvenis. Lá, encontraram esse “porto seguro”. Ficaram tão
entusiasmados com a primeira apresentação que se anestesiaram da dor física naquele
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dia em meio a muitas adversidades – o baterista Felipe Lemos estava com caxumba e
febre de 40 gruas e o guitarrista André Pretorius acabou cortando os dedos nas cordas
do seu instrumento ao tocar, pois havia perdido a paleta.
O “sangue, suor e dor” da primeira apresentação pareceu ter valido a pena. A
pequena plateia, depois de ter ouvido o pequeno repertório de cinco músicas, pediu bis.
No dia seguinte o boca a boca divulgou o sucesso daquele show, especialmente em
escolas privadas de classe média, como os colégios Objetivo, Elefante Branco e Marista
(CONVERSAÇÕES, 1996).
Apesar do sucesso inicial, a efêmera trajetória do Aborto Elétrico foi cheia de
altos e baixos. A banda teve vários fins e recomeços. O fim definitivo ocorreu em março
de 1982 quando Renato Russo brigou com Felipe Lemos por causa da música Química.
Sozinho, Renato Russo virou o Trovador Solitário. Abria as apresentações das
bandas nos shows e recebia muitos elogios e críticas. Porém, o “Trovador Solitário” não
ficou sozinho por muito tempo. Numa festa conheceu Marcelo Augusto Bonfá. E, juntos
– no segundo semestre de 1982 – formaram uma nova banda – a Legião Urbana. Renato
no baixo, Bonfá na bateria e o guitarrista geralmente era convidado.
A primeira apresentação da Legião Urbana ocorreu em 5 de setembro de 1982 na
cidade mineira de Patos de Minas. Era um festival de rock realizado no Parque de
Exposições da cidade. Outra banda brasiliense que se apresentou nesse festival “Rock
no Parque” foi a Plebe Rude. A Legião tinha apenas alguns meses de existência e para
aquele primeiro show contava com Renato no baixo, Marcelo Bonfá na bateria, Eduardo
Paraná na guitarra (ele foi convidado para ficar fixo na banda, mas logo saiu por
diferenças técnicas: ele era instrumentista profissional ao contrário de Renato e
Marcelo) e Paulo Paulista Guimarães no teclado. O batismo da Legião nesse primeiro
show foi tenso. Apesar de estarem participando de um festival de rock, o público
daquela cidade interiorana não estava acostumado com aquele tipo de música e muito
menos com o comportamento punk daqueles jovens roqueiros.
Logo quando chegaram à cidade, os roqueiros brasilienses sofreram uma forte
vigilância tanto da polícia quanto da sociedade conservadora. E, mesmo com a abertura
política – a Anistia e o freio na Censura –, ficou muito constrangedor o fato de um
evento patrocinado pela Prefeitura Municipal de Patos de Minas estar recebendo artistas
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cujas letras de suas músicas faziam críticas ásperas ao sistema de governo vigente, bem
como aos valores sociais até então predominantes.
Apesar dessa tensão inicial, a Legião Urbana não se furtou ao sucesso e
continuou sua trajetória. O “improviso” do primeiro show cedeu espaço para uma
melhor qualidade técnica e organizacional. Assim, a turma da Colina organizou em abril
de 1983 um Festival de Rock em Brasília no Auditório da Associação Brasiliense de
Odontologia (ABO). Nesse festival se destacaram quatro bandas – Legião Urbana, (que
já contava com a participação fixa de Dado Villa Lobos), Plebe Rude, XXX e Capital
Inicial (ainda sem Dinho Ouro Preto nos vocais).
Depois do sucesso na ABO a Legião Urbana fez várias apresentações em
Brasília e em outras cidades. No meio dessa escalada ascensional, Renato Russo cortou
os pulsos, depois de uma longa bebedeira. E, para piorar, perdeu parte dos movimentos
das mãos, por um período, impedindo-o de tocar baixo. Para solucionar esse problema
Marcelo Bonfá convidou o baixista Renato Rocha (Billy ou Negrete) que passou a fazer
parte da banda. A Legião virara um quarteto. No meio de três homens brancos, de classe
média alta, estava um negro, “careca”, filho de militar, de classe média baixa e vindo de
uma região suburbana (São Cristovão) do Rio de Janeiro (CONVERSAÇÕES, 1996;
DAPIEVE, 2006).
A banda havia completado sua formação – pelo menos até 1987, quando Renato
Rocha saiu da Legião e se consolidou o trio que permaneceu junto até o fim com a
trágica morte de seu vocalista.
Das muitas viagens da Legião, a que foi mais significativa foi sua chegada em
São Paulo, no período de 1983 a 1984. Foi nesta grande cidade brasileira que os
legionários perceberam que eram rebeldes sem causa em Brasília. Isto é, os jovens de
São Paulo já tinham adquirido independência (tão sonhada pelos brasilienses), pois
trabalhavam desde cedo, moravam sozinhos, casavam, faziam sexo livremente.
Diferente do que ocorria em Brasília. Os “punks de verdade” de São Paulo assustavam a
Legião. Também ocorreu em São Paulo a consciência do porquê do nome Legião
Urbana. Ou seja, o contato com a metrópole os fez perceberem empiricamente a
grandiosidade dos problemas urbanos e sociais – na década de 1980, o Brasil tornou-se
predominantemente urbano e intensificou-se o processo de verticalização das capitais;
houve um inchaço populacional que não foi acompanhado satisfatoriamente por um
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Nas viagens ao Rio de Janeiro, a Legião Urbana alcançou sua sagração. Depois
de muitas apresentações e da circulação de fitas demo por rádios FM cariocas a banda
assinou contrato musical com a gravadora EMI-Odeon, apadrinhada pelo produtor
musical e jornalista José Emídio Rondeau. Em 1984 – no auge da campanha Diretas já
que reivindicava o retorno do voto universal para presidente da República – a Legião
Urbana gravava o seu primeiro LP homônimo.
O disco fora lançado no começo de 1985, mas sua repercussão só ocorrera no
segundo semestre desse ano. Era um disco bastante político, coerente com o momento
histórico em que vivia o país. Isto é, estava acabando a Ditadura Militar, depois de 20
anos, e começando um governo civil do presidente José Sarney174. Era quase impossível
a juventude – especialmente a engajada politicamente – não gostar daquelas letras
críticas de Será, A dança, Geração Coca-Cola, O Reggae, entre outras.
O sucesso da Legião Urbana (550 mil cópias vendidas do primeiro disco)
superou as expectativas da gravadora EMI-Odeon. A banda mudara definitivamente de
Brasília para o Rio de Janeiro em 1985. E, assim, a banda e seu vocalista foram
arregimentando uma legião de fãs que assiduamente frequentava seus shows e consumia
seus discos e suas ideias. Renato Russo tornou-se “quase sem querer” um guru da
174
Apesar da expressiva mobilização popular, a campanha Diretas já não obteve êxito. As eleições de janeiro de
1985 ainda foram indiretas. Porém, a luta não foi em vão. O candidato da oposição ao governo militar, Tancredo
Neves, venceu as eleições. Mas não pode tomar posse devido a uma doença que lhe levou à morte. Assumiu então o
seu vice José Sarney, governando de 1985 a 1989.
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Apesar de ter escrito essas letras de músicas quando ainda era um adolescente,
demonstrava bastante maturidade, principalmente ao afirmar que essa alienação juvenil
(preconceito, consumismo, falta de alteridade, artificialismo das relações humanas) “É
só questão de idade/ Passando dessa fase/ Tanto fez e tanto faz”. Ou seja, a juventude
estaria mais frágil em relação aos processos dominantes do sistema capitalista, mas
bastaria estudar um pouco mais e fazer o “dever de casa” – como é dito na música
Geração Coca-cola – ou perceber empiricamente com a “escola da vida”, ao longo do
tempo, para descobrir esse sistema de dominação capitalista e lutar contra ele.
Essa “questão de idade” também remete ao conflito de gerações, onde o jovem
“Se acha tão moderno/ Mas é igual a seus pais”. A maturidade de Renato ao discutir
temas sociais e pessoais em suas letras se ampliou com a paternidade no final dos anos
1980 (Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá também se tornaram pais nesse mesmo
período). A música Pais e filhos (LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 2) tornou-se o hino
de pais e filhos que viviam em constantes conflitos de gerações. A paternidade de
Renato e de seus companheiros Dado e Bonfá lhe fez versar profundamente sobre a
desagregação familiar (pais separados, filhos que moram em casa de parentes ou na rua,
falta de diálogo) e a cobrança exagerada dos pais sobre os filhos (e vive-versa) que pode
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levar a consequências trágicas, como o suicídio da parte mais fraca – os filhos (mas que
também pode ser os pais “Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo/ São crianças
como você”). O jovem pai Renato Russo fez seu sermão providencial que acabou
virando uma ladainha entre os seus legionários – “É preciso amar as pessoas/ Como se
não houvesse amanhã/ Porque se você parar para pensar/ Na verdade não há”.
Os conflitos envolvendo os jovens não ocorriam apenas entre gerações
diferentes e no âmbito familiar. As contendas faziam (e ainda fazem) parte do universo
juvenil. Em alguns casos começava com uma amizade “colorida”. Isto é, amigos
começavam a namorar e, por vários motivos, como falta de companheirismo e traição,
perdiam o amor e a amizade, fato discutido em algumas músicas de Renato como Ainda
é cedo: “Uma menina me ensinou/ Quase tudo que eu sei/ [...] Eu só queria estar ali/
Sempre ao lado dela/ [...] Mas egoísta que eu sou/ Me esqueci de ajudar/ A ela como ela
me ajudou/ E não quis me separar/ [...] Sei que ela terminou/ O que eu não comecei/”
(LEGIÃO URBANA, 1985. Faixa 4).
Nessas brigas entre amigos e/ou namorados falava-se tudo, até os segredos,
como o medo de revelar uma possível homossexualidade: “E o que ela descobriu/ Eu
aprendi também, eu sei/ Ela falou: “Você tem medo”. Aí eu disse: “Quem tem medo é
você”./ Falamos o que não devia/ Nunca ser dito por ninguém”
Essas dúvidas em relação à sexualidade, a descoberta e (auto) repressão da
sexualidade não heterossexual, bem como os relacionamentos homossexuais foram
discutidos em músicas como Soldados, Teorema (LEGIÃO URBANA, 1985. Faixa 9 e
10), Daniel na cova dos leões, Quase sem querer (LEGIÃO URBANA, 1986. Faixa 1 e
2) , Maurício, Meninos e meninas (LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 8 e 9). Nessas
músicas Renato faz uma autobiografia (assim como em todas as outras músicas), que
por meio de sua poesia, promovia a identificação dos jovens heteros e não
heterossexuais.
Sobre as dúvidas juvenis em relação à sua sexualidade, Renato afirmava que
“Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto/ Tenho medo e eu sei porquê:/ Estamos
esperando.” (Soldados In: LEGIÃO URBANA, 1985. Faixa 9) “Faço nosso o meu
segredo mais sincero/ E desafio o instinto dissonante. A insegurança não me ataca
quando erro/ [...] E o teu medo de ter medo/ Não faz da minha força confusão./ [...]
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Mas, tão certo quanto o erro de ser barco/ A motor e insistir em usar os remos,/” (Daniel
na cova dos leões In: LEGIÃO URBANA, 1986. Faixa 1).
Quando chegava a maturidade juvenil e se esvaiam as incertezas quanto à
sexualidade não heterossexual, ainda restava o medo de encarar a sociedade
conservadora dos anos 1980 e as desilusões amorosas. Aos homossexuais cabia se
esconderem e/ou procurar guetos no Brasil ou até mesmo em outros países, como na
cidade de São Francisco nos Estados Unidos.
A cidade de São Francisco era o reduto dos homossexuais175 e para lá se
dirigiam todos (que tinham condições financeiras) aqueles que queriam amar livremente
meninos e meninas, sem o preconceito da sociedade. Por isso os jovens homossexuais
abastados do Brasil falavam em suas conversas privadas que “Às vezes faço planos/ Às
vezes quero ir/ Pra algum país [EUA/São Francisco] distante/ Voltar a ser feliz”
(Maurício In: LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 8) ou “Quero me encontrar, mas não sei
onde estou/ Vem comigo procurar algum lugar mais calmo/ Longe dessa confusão e
dessa gente que não se respeita/ Tenho quase certeza que eu não sou daqui [não se
refere apenas ao espaço/Brasil, mas também à sua condição de homossexual]/ Acho que
gosto de São Paulo/ Gosto de São João/ Gosto de São Francisco [não refere-se apenas
ao santo, mas também à cidade de São Francisco nos EUA] e São Sebastião/ E eu gosto
de meninos e meninas” (Meninos e meninas In: LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 9).
Essa interpretação da juventude brasileira também se dava no âmbito político.
Isto é, a Legião Urbana também ficou marcada por suas músicas com muito críticas
político-sociais. O rock dos anos 1980 tornou-se o principal meio de expressão dos
jovens, especialmente com o freio na censura no começo desta década. Por meio deste
veículo de comunicação a Legião Urbana falava de (quase) tudo: Campanha das Diretas
já, Desconfiança na redemocratização (Será, Por enquanto, Tempo Perdido, Andrea
Doria, Há tempos); Consumismo, alienação (A dança, Geração Coca-cola);
Perseguição policial a militantes políticos (Petróleo do futuro, 1965/ Duas tribos);
Colonização cultural dos EUA, corrupção, revolução burguesa juvenil (Geração Coca-
175
“Durante a 2ª Guerra Mundial, todo militar americano [EUA] suspeito de homossexualidade era encaminhado a
São Francisco, onde era avaliado por uma junta que decidia o seu futuro na instituição. Entre 1941 e 1945, quase 10
mil militares gays e lésbicas foram dispensados na cidade. Muitos ficaram por lá mesmo, formando a base da colônia
gay. Houve mais uma grande migração, nos anos 70, quando a região da rua Castro ficou conhecida mundialmente
como o cacófato "a Meca Gay". Hoje, a população homossexual da cidade é de 15%, maior do que qualquer
metrópole americana”. (URBIM, 2009).
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cola, O Reggae, Que país é esse?); Desigualdade social, uso de drogas na adolescência
(O Reggae, Índios, Faroeste caboclo); Guerras, política intervencionista do presidente
estadunidense Ronald Reagan (Soldados); Exploração do trabalho nas fábricas, injusta
justiça do trabalho, degradação ambiental (Fábrica); Discussões teóricas
descontextualizadas (Conexão amazônica); Racismo, falta de políticas públicas para
pobres, inflação (Faroeste caboclo); Juventude perdida, desnorteada, crise de
paradigmas (O Reggae, Tempo perdido, Andrea Doria, Índios, Depois do começo, Há
tempos, Eu era um lobisomem juvenil); Perseguições, prisões, torturas e assassinatos a
militantes políticos (1965/ Duas tribos).
A influência punk de Renato Russo e da Legião Urbana foi diminuindo ao longo
da década de 1980. Porém, o engajamento político não deixou de existir. Mudou apenas
a forma de se expressar – de uma linguagem mais direta e áspera como em Geração
Coca-cola para um estilo mais metafórico como em Há tempos e Quando o sol bater na
janela do teu quarto (LEGIÃO URBANA, 1989. Faixa 1 e 4).
Como dito anteriormente, Renato Russo auto-recepcionava suas músicas como
algo emotivo. Só com a primeira viagem da Legião Urbana no começo dos anos 1980 a
São Paulo foi que ele percebeu suas letras como essencialmente urbanas. Isto é, o ethos
urbano pulsava nas veias de Renato – e sua turma da Colina em Brasília – e refletia em
suas letras. A partir desse meio urbano ele fez diversas composições discutindo
juventude e política e chegou a focar especificamente na questão citadina ao discutir
temas como desigualdade social, uso de drogas na adolescência, violência policial,
chacina de adolescentes (O Reggae, Faroeste cabloco, Mais do mesmo); violência
urbana e sua banalização, a justiça desigual do Estado (Baader-Meinhof Blues);
espetacularização de acidentes de trânsito, burocracia excessiva no atendimento médico
(especialmente público) (Metrópole); cidades visíveis, sensíveis e imaginárias (Música
urbana 2); Tráfico de drogas, abstinência em drogas (forçada por falta de dinheiro),
depressão (Conexão amazônica, Faroeste cabloco); poucos espaços de sociabilidade
juvenil em Brasília (Tédio [Com um T bem grande pra você]); Espaços de sociabilidade
juvenil em Brasília, inflação, espetacularização da violência urbana, falta de políticas
públicas para a população pobre citadina (Faroeste caboclo); segregação urbana:
“morro” X “asfalto”, articulação dos espaços urbanos: amizade entre um negro pobre da
favela e um branco rico do “asfalto” (Mais do mesmo); problemas de infraestrutura
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Bibliografia
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juventude. – 2 ed. reform. – São Paulo: Moderna, 2004. (Coleção Polêmica)
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. – 12 ed. – Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
CONVERSAÇÕES com Renato Russo. Campo Grande: Letra Livre Editora, 1996.
DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
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Disponível em http://letras.mus.br/legiao-urbana Acesso em 22/03/2014
LEGIÃO URBANA. Dois. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1986. Disponível em
http://letras.mus.br/legiao-urbana Acesso em 22/03/2014
LEGIÃO URBANA. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1985. Disponível
em http://letras.mus.br/legiao-urbana Acesso em 22/03/2014
LEGIÃO URBANA. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1993.
Disponível em http://letras.mus.br/legiao-urbana Acesso em 22/03/2014
LEGIÃO URBANA. Que país é este – 1978/1987. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1987.
Disponível em http://letras.mus.br/legiao-urbana Acesso em 22/03/2014
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). – 3
ed., 2ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2008. (Repensando a História)
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176 Artigo escrito para apresentação no Grupo de Trabalho 3 do VI Encontro cultura e memória: golpe de
1964: cultura e memória.
177 Discente do programa de pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de
Pernambuco referente ao semestre letivo 2014.1.
178 Sigla para Jomard Muniz de Britto, metonimicamente apelidado de O famigerado.
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179 O nome de Chico Buarque surge nesta lista com certa estranheza, haja vista o relato dado por
Caetano Veloso, em seu romance autobiográfico, no qual mencionava o desinteresse do jovem Chico
(presente na primeira reunião em 1966) sobre a renovação musical pretendida pelo grupo baiano
(VELOSO, 2008, p. 127). Episódio este confirmado pelo próprio Chico Buarque, em entrevista concedida
para montagem do filme-documentário Tropicália (2012), em que o intelectual-artista confirmava seu
desinteresse por aquela reunião e pela temática em discussão. Entre outros motivos, Chico Buarque
afirmava não se lembrar muito bem da mencionada reunião, pois estava alcoolizado.
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O que, no fundo, é uma brincadeira total. A moda não deve pegar (nem
parece estar sendo lançada para isso), os ídolos continuarão os mesmos –
Beatles, Marilyn, Che, Sinatra. E o verdadeiro, grande Tropicalismo estará
demonstrado. Isso, o que se pretende e o que se pergunta: como adotar
Godard e Pierrot Le Fou e não aceitar “Superbacana”? Como achar Felinni
genial e não gostar de Zé do Caixão? Por que o Mariaaschi Maeschi é mais
místico do que Arigó? (NETO, 1968, p. 1)
Perguntas como estas feitas por Torquato Neto objetivavam mostrar o quão
contraditória era nossa concepção cultural. Tropicalistas é o que somos e o que não
somos. Se a retórica anti-imperialista professada pelos comunistas procurava encontrar
ícones nacionais que enaltecessem nossa “cultura oficial”, por vezes ofereciam
alternativas que escamoteavam nosso subdesenvolvimento. Os intelectuais nacionalistas
elegantemente não queriam ser identificados como cafonas (FAVARETTO, 2007, p.
115). A par de nossas contradições (para não falarmos em preconceitos) intra e
intersociais, expostas na Cruzada Tropicalista, no dia 8 de fevereiro de 1968, três dias
após o lançamento do ensaio no Última Hora, a coluna Quatro Cantos do Correio da
Manhã, assinada por Cícero Sandroni, anunciava por meio de uma pequena nota de
180 Os CPCs, como o próprio nome menciona, eram centros populares organizados por representantes
nomeados e votados da seção de cultura do Partido Comunista Brasileiro (PCB), originalmente, oriundos
da UNE. Sua função era levar a ideologia socialista de forma pedagógico-cultural às classes ditas
alienadas (RIDENTI, 2010, p. 73).
181 Sobre o posicionamento sectarista da esquerda nacionalista da época, Sérgio Paulo Rouanet chegou
mesmo a comentar, em 1988, estendendo uma análise crítica sobre a obra de Renato Ortiz, A moderna
tradição brasileira, que o modelo nacional-popular da década de 1960 era baseado num “historismo de
esquerda”. Ou seja, uma concepção conservadora, “caracterizada pela rejeição do universal e pela
exaltação d[e] um particular que se enraíza, direta ou indiretamente, numa individualidade coletiva: uma
época, uma raça, um elemento, uma cultura” (ROUANET, Apud. RIDENTI, 2010, p. 82).
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184 Jornal do Commercio (PE). 20/04/1968. Porque somos e não somos tropicalistas.
185 Recorte poético de Wilson Araújo de Souza.
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quanto os seus atacantes”. (Quá, quá, quá, para os que “não nos
entendem”...)186
186 Jornal do Commercio (PE). 20/04/1968. Porque somos e não somos tropicalistas.
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tradição, ele enfiava o dedo nela, sem dó nem piedade, questionando entidades
intocáveis como o Conselho de Cultura e Academias” (TELES, 2000, p. 114). O mais
interessante neste processo de instalação do ethos experimentalista sobre a cultura
regional, foi o rápido crescimento do movimento e a adesão por parte de intelectuais-
artistas de outros estados. Tanto assim que Marcus Vinícius num artigo publicado na
Revista de Cultura Vozes, em 1972, comentava o seguinte sobre os assinantes do
segundo manifesto:
190 Idem.
191 Idem.
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som da guitarra seria o mesmo que não utilizar o refrigerador, o ar condicionado, porque
são instrumentos inventados no estrangeiro”.192
O 3° Manifesto Tropicalista Nordestino fechou então o ciclo de publicações de
manifestos por parte dos intelectuais-artistas que escreviveram, em 1968, a
Pernambucália. As travessias e travessuras carnavalizadoras do provincianismo
regionalista continuaram durante todo ano. Os enfrentamentos nos artigos jornalísticos
incendiavam cada vez mais os ânimos dos representantes dos dois veios em tensão. Seja
a contragosto dos regionalistas e outros conservadores, seja a deleite dos tropicalistas.
Entre agressões físicas e desmoralizações públicas, as fricções provocadas pelo
surgimento da vanguarda estética no Recife pluralizou identidades, despertou o
desolhar, provocou novas sensações, ressignificou o tropicalismo e agitou a cidade.
Tudo por infidelidade regionalista. “Por quê não? Por quê não? Por quê não?”
(VELOSO, 1967).
192 Idem.
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REFERÊNCIAS
ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. São Paulo, SP: Jornal Correio da
Manhã, 1924.
BRITTO, Jomard Muniz de. Bordel Brasilírico Bordel: antropologia ficcional de nós
mesmos. Recife, PE: Comunicarte, 1992.
FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007.
VELOSO. Caetano. Verdade Tropical. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2008.
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sido dadas por Luiz Henrique, ajudando aos grupos não somente na
montagem de peças, como também para instalação de teatrinhos, como é o
caso do Teatro Experimental de Feira (TEF). (BARRETO, Francisco. jornal
A Tarde, Salvador, 03.01.68)
Como foi dito inicialmente, nesse primeiro momento a Bahia não foi palco de
intensas perseguições e censuras, mas também sofreu com a atuação do órgão de
censura, pois às peças externas ao Estado já chegavam censuradas. No mês de fevereiro
foi iniciada uma verdadeira caça às peças, e as insatisfações mobilizaram a organização
de uma greve em prol da reformulação da lei da censura. Havendo divergência ainda
sobre esse aspecto, muitos membros da classe artística defendiam o fim completo da
censura, enquanto outros buscavam a reformulação. O que todos compreendiam é que
as perseguições às obras estavam exacerbadas. É sobre a cobertura realizada pelos
jornais A Tarde e Jornal da Bahia, acerca destes temas, que surge este trabalho.
****
A imprensa sempre teve um papel importante na sociedade, pois auxilia na
construção da “realidade” na qual o individuo se circunscreve. Essa construção pode ser
influenciada conforme as nuançais políticas, sociais, econômicas e culturais. Ao longo
da história vemos o quão à imprensa pôde auxiliar no desenrolar de um fato histórico,
como na popularização de Vargas, ou impopularidade de Goulart. Não é dito que há
uma uniformidade nas informações circuladas, mas existem diversos conflitos nas
publicações, conforme as ideias defendidas nos editoriais e os interesses por trás das
informações. As informações difundidas nesses meios de comunicação são responsáveis
(direta ou indiretamente) na construção ideológica dos leitores, conforme os fatos
apontados.
O advento do golpe civil-militar colocou a imprensa num cenário importante para
a história do Brasil, pois criou defensores e opositores ao Presidente João Goulart.
Antes da ascensão do golpe podemos perceber a construção da realidade de forma
distinta, ao analisar o mesmo contexto social. Dá-se isso devido a linhas ideológicas e
políticas distintas, tanto do jornalista quando da editora. Durante o período em que se
configurava a preparação para o golpe, há diversos jornais que irão investir em pesadas
propagandas contra a política de Goulart. “A publicidade e a imprensa de forma geral,
agiram no sentido de não deixar dúvidas dos riscos que a população ‘ordeira e pacífica’
correria diante do ‘perigo comunista’” (SILVA, 2011: p. 76). Existiam também
imprensas que defendiam com veemência a política de Goulart, se diferenciando dos
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por Álvaro Guimarães, foi produzida por Vieira Neto. No Jornal da Bahia, Sóstrates
Gentil, responsável por maior parte dos artigos destinados ao tema Teatro, dirigiu em
abril a peça “O Santo Inquérito” de Dias Gomes, além de produzir e dirigir outras peças
ao longo do ano.
Há alguns periódicos do Jornal da Bahia, que apresentam críticas elaboradas por
figuras como: Glauber Rocha, Jerônimo Almeida, Joselito de Abreu e Josué Montello,
que também estão envolvidos com o movimento cultural, mas não necessariamente com
o teatro e que em algum momento teceram tanto sobre obras teatrais quanto sobre fatos
que estão em destaque, como o artigo Não há Escolha, de Joselito de Abreu, em que é
feito uma resenha da peça “A Escolha”, de Ariovaldo Matos sob a direção de Orlando
Sena. Nesse texto é criticado o roteiro da peça, a atuação dos atores, a direção e a
produção. É construída também uma análise relacionando o personagem com todo o
contexto circunscrito:
Tancredo é um homem de origem humilde que enriqueceu às custas de
expedientes os mais diversos é um tipo que saiu da miséria sem conseguir
desvencilhar-se dos traumas que a sociedade lhe impôs. Seus desabafos
repetidos, a desdita que sofreu antes de ficar rico e a vingança que impinge a
seres nos quais enxerga sua antiga origem pode ocorrer a um outro “nouveau
riche (ABREU, Joselito de. Jornal da Bahia. 26.04.1968)
É possível perceber que além da análise técnica encontrada nas colonas sobre
teatro no JB, é feito um estudo dos problemas e/ou qualidade da obra, pontuando as
características “psicológicas” dos personagens e as discussões principais do texto. Em
alguns artigos são feitas comparações aos problemas sociais, é o caso da crítica de
Jerônimo Almeida sobre a peça “A Escolha” apontada na tabela acima descrita.
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Em comum nas obras trazidas para análise, temos que ambas sofreram medida
repressiva da Censura Federal e, por motivos divergentes, conseguiram permanecer em
apresentação sem cortes por tempo limitando ou realizando pagamento de multa. As
divulgações sobre a censura de ambas as obras foram feitas em jornais opostos. O
Jornal da Bahia divulgou nota sobre a censura da peça “A Escolha”, esta localizada no
caderno 1 e ocupando uma parte significativa da folha. Na reportagem são dadas as
informações básicas da obra (nome, autor), descritos os principais acontecimentos sobre
o fato e exploradas as opiniões do autor e diretor sobre o acontecimento. O A Tarde
começa sua coluna apresentando a peça “Uma Obra do Governo”, citando no texto
exposição que será realizada em Feira de Santana, e, em pequenos tópicos, redigindo
sobre assuntos culturais. No final da coluna, é separado pequeno espaço para abordar o
problema vivenciado pelo grupo em relação à censura.
No ano de 1968 percebe-se a continuação do problema iniciado em 1964, com o
Golpe Civil-Militar que encheu as ruas de medo. Surge a insatisfação, em seguida o
processo de resistência que leva a sobrevivência da arte engajada. A censura não surgiu
em 1968, mas ganhou configuração nesse período. Inicialmente a censura foi vista com
ambiguidade para alguns, mas com o tempo tornou-se imenso problema. A arte entrou
em processo de maturação simultaneamente com a repressão, e todos os
questionamentos iniciados na década de 1950, interrompidos no inicio de 1960, foram
cultivados novamente com o olhar experiente do tempo. A década de 1960 terminou,
deixando para o futuro uma vasta herança cultural.
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BIBLIOGRAFIA
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estratégias poéticas em tempos de ditadura. Salvador: EDUFBA, 2012
As esquerdas e a democracias. Daniel Aarão Reis Filho.../ et. at./; organizador Marco
Aurélio Garcia. – Rio de Janeiro: Paz e Terra: CEDEC, 1986.
BIROLI, Flávia. João Goulart e o golpe de 1964 na imprensa, da transição aos dias
atuais: uma análise das relações entre mídia, política e memória. I Congresso Anual
da Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação e Política. Universidade
Federal da Bahia – Salvador - BA, 2006.
Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos objetos, novos horizontes/ Grimaldo
Carneiro Zachariadhes (organizador); Alex de Souza Ivo... et al. Salvador: EDUFBA,
2009. V.1.
Estado e poder: ditadura e democracia / organizado por Carla Luciana Silva; Gilberto
Grassi Calil; Maria José Castelano; Paulo José Koling – Cascavel: Edunioeste, 2011.
COSTA, Iraneidson Santos. Que papo é esse?: Intelectuais religiosos e classes
exploradas no Brasil (1974-1985). Feira de Santana, BA: UEFS Editora, 2011.
FICO, Carlos. O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O
governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira – 2ªed. – Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
RESUMO
Este artigo procura oferecer um panorama de algumas atividades do Teatro de
Cultura Popular (TCP), ligado ao Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife.
Dentro dessa perspectiva procuramos destacar as discussões em torno do fazer teatral
que norteavam a produção do TCP, bem como as relações dessa produção com o
momento social e político vivido em Pernambuco no início da década de 1960 – até o
golpe civil-militar de 1964. É nosso objetivo ainda analisar os efeitos que o
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envolvimento com o TCP – considerado por parte da crítica da época um teatro político
ou de propaganda comunista – produziu na trajetória de alguns dos seus integrantes
durante os anos em que o grupo esteve ativo e após a sua dissolução devido ao golpe de
1964. Em nossas reflexões dialogamos com a noção de “ideias-força” – ideias capazes
de influenciar as interpretações feitas sobre uma peça teatral numa dada temporalidade –
apresentada por J. Guinsburg e Rosângela Patriota.
Palavras-chave: Teatro; Cultura; Popular.
ABSTRACT
This article seeks to provide an overview of some activities from the “Teatro de
Cultura Popular (TCP)”, connected to the “Movimento de Cultura Popular (MCP)”.
Within this perspective, we intend to highlight the discussions around the scenic
tendencies that guided the production of TCP, as well as the connections between this
production and the social and political moment lived in Pernambuco in the early 1960s
– until the civil-military coup of 1964. It is also our goal to examine the effects that the
involvement with the TCP – sometimes referred by some of the critics of the period as a
political theater and other times as a communist propaganda theater – produced in the
career of some of its members during the years when the group was active and after its
dissolution, due to the 1964 coup. In our reflections, we dialogued with the notion of
"ideias-força" – ideas that could affect the interpretations made about a theatrical play in
a given temporality – presented by J. Ginsburg and Rosângela Patriot.
Keys words: Theater; Culture; Popular.
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Introdução
Durante a segunda metade da década de 1950 e o quatriênio inicial da década de
1960, a insatisfação crescente de alguns setores sociais – especialmente estudantes,
profissionais liberais e trabalhadores rurais e urbanos – com o status quo econômico,
político e social de Pernambuco, impulsionou a formação de uma coalizão político-
partidária denominada Frente do Recife. Esta, no nível político, se opunha a forma
como as oligarquias agrárias, representadas principalmente pelo PSD193, conduziam a
política do estado. Embora a configuração partidária da Frente do Recife não tenha se
mantido a mesma ao longo de sua existência194, é possível verificar que três partidos
desempenharam o papel central nessa frente oposicionista: PTB, PSB e PCB195.
Observa-se a partir de 1958, com a campanha eleitoral de Cid Sampaio para o
governo de Pernambuco, a intensificação da polarização política no estado. A sua
vitória na eleição para o governo de Pernambuco, com o apoio das Oposições Unidas,
indicou que o discurso e as práticas das esquerdas ganhavam espaço naquele momento.
Tendência reforçada pela eleição de Miguel Arraes para o mesmo cargo, em 1962. Por
outro lado, na medida em que se acirravam as disputas entre os partidos políticos,
crescia a mobilização popular e por extensão suas reivindicações.
Entre os movimentos populares no estado à época, pode-se destacar as Ligas
Camponesas que, em 1959, por meio da articulação política de um dos seus líderes,
Francisco Julião, conseguiu a desapropriação das terras do engenho Galiléia em favor
dos trabalhadores foreiros daquela propriedade – primeira decisão desse tipo ocorrida
no Brasil. Essa vitória deu fôlego para que esse movimento expandisse sua atuação para
outras regiões de Pernambuco e também outros estados. Essa movimentação político-
social verificada em Pernambuco chamou a atenção, inclusive, da imprensa norte-
americana196 preocupada, sobretudo a partir da Revolução Cubana de 1959, com o
193
Partido Social Democrata (PSD). Fundado em 1945.
194
Em 1958, com o objetivo de disputar as eleições para governador do estado, a Frente do Recife (PTB,
PSB, PCB) formou as Oposições Unidas - coligação partidária que incluiu ainda a União Democrática
Nacional (UDN). Já nas eleições de 1962, as Oposições Unidas não contaram com o apoio da UDN. Em
seu lugar, conseguiram compor uma aliança com uma dissidência do PSD, partido tradicionalmente
ligado às oligarquias agrárias.
195
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Comunista
Brasileiro (PCB).
196
O jornalista norte-americano Tad Szulc publicou no jornal The New York Times dois artigos, nos dias
31/10/1960 e 01/11/1960, nos quais destacava a atmosfera favorável a uma revolta no nordeste brasileiro
devido à pobreza da região e a suposta atuação de pessoas ligadas ao comunismo.
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197
APEJE. Acervo DOPS-PE, prontuário funcional nº 1501-D, fundo: 29.841.
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198
Sobre o TEP ver: TEIXEIRA, Flávio Weinstein. O Movimento e a Linha. Presença do teatro do
estudante e do gráfico amador no Recife (1946 – 1964). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007.
199
Panfleto da peça “Julgamento em Novo Sol”. APEJE. Acervo DOPS-PE, prontuário individual nº
15.923, fundo SSP: 22017.
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insatisfação da audiência foi sentida ainda em outras duas montagens com o elenco do
TCP, que na época ainda se chamava Teatro Experimental de Cultura: “Chapeuzinho
Vermelho”, texto de Paulo Magalhaes, e “A derradeira ceia”, escrita por Luiz Marinho.
Sobre essa primeira temporada no Teatro do Povo, Luiz Mendonça conclui que, apesar
da importância da experiência adquirida, “ainda não sabíamos para onde sair. Tínhamos
o apoio do governo e casas de espetáculos. Mas não sabíamos como agir. O repertório
continuava ainda um problema grave [...] Voltamos às reuniões internas de pesquisa e
debates” (1968, p. 153).
200
Augusto Boal, Benedito Araújo, Hamilton Trevisan, Modesto Carone e Nelson Xavier.
201
APEJE. Hemeroteca. Última Hora Nordeste, 01/02/1963, p.02.
202
Declaração assinada por Luiz Mendoça em 27/02/1964. Arquivo do DOPS-PE. Prontuário Funcional.
Nome: Movimento de Cultura Popular. Nº Doc.: 1501-D. Data: 1964 - 1980. Fundo: 29.841. Delegacia de
Ordem Política e Social (DOPS). APEJE.
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estória do Formiguinho e sua porta”, texto de Arnaldo Jabor adaptado por Luiz
Mendonça, e “Paixão e morte do vaqueiro Manoel Onofre”, escrito por José Wilker203.
203
Idem.
204
Arquivo do DOPS-PE. Prontuário Funcional. Nome: Movimento de Cultura Popular. Nº Doc.: 1501-
D. Data: 1964 - 1980. Fundo: 29.841. Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). APEJE.
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205
Arquivo do DOPS-PE. Prontuário Individual. Nome: Luiz Mendonça. Nº Doc.: 17.800. Data: 1965 -
1967. Fundo23.865. Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). APEJE.
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Esse artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a trajetória do Teatro de
Cultura Popular (TCP) – desenvolvida em parceria com o Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Pernambuco – que busca investigar as múltiplas
relações entre o fazer teatral do TCP e o presente vivido pelos integrantes do grupo, ou
seja, o início da década de 1960 no Brasil. O intento empreendido ao longo das páginas
desse artigo foi o de oferecer ao leitor um panorama das atividades do (TCP). Panorama
que, apesar de suas limitações, procurou abranger os debates, as tensões e as intenções
envolvidos na formação e na atuação do grupo, bem como os intercâmbios de
experiências entre o TCP e outros grupos de teatro, como o Teatro de Arena de São
Paulo. Lembrando que, para pensar o teatro sob uma perspectiva da História é preciso
considerar o fato teatral como “uma rede extensa e complexa de relações dinâmicas e
plurais que transitam entre a semiologia, a história, a sociologia, a antropologia, a
técnica e a arte, a representação e a política” (PARANHOS. 2012, p. 09), procuramos
ressaltar as relações entre a produção do TCP com o momento social e político vivido
em Pernambuco no início da década de 1960 – até o golpe civil-militar de 1964.
Nesse sentido, é importante observar que o TCP estava inserido numa dinâmica
teatral local que, como aponta Milton Baccarelli, era marcada pela presença de grupos
amadores que por meio “do palco, souberam expor e defender suas ideias artísticas,
políticas, religiosas ou sociais” (1994, p.17). Não obstante as raízes amadoras em
comum com outros grupos teatrais pernambucanos, pode-se perceber que o TCP
possuía entre as particularidades que o distinguia dos outros grupos, as suas ligações
institucionais com o MCP e, consequentemente, com as forças políticas que apoiavam o
governo municipal e, a partir de 1963, estadual de Miguel Arraes. Essa relação
institucional com o governo de Miguel Arraes inseria o TCP no cenário das disputas
políticas e sociais travadas no estado à época, além de reverberar no projeto artístico
desenvolvido pelo grupo e nas análises e criticas feitas à época sobre o trabalho do
grupo.
Bibliografia Consultada
BACCARELLI, Milton. Tirando a máscara: Teatro pernambucano, 20 anos de
repressão. Recife: FUNDARPE, 1994.
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BRAYNER, Flávio Henrique Albert. (...) Aí nóis Istôra Dotô! (Mudança e Conservação na
Atividade do Partido Comunista Brasileiro em Pernambuco – 1956 1964). Recife: UFPE, 1985, 191 p.
Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1985.
GUIMARÃES NETO, Regina B. Historiografia, Diversidade e História Oral: questões
metodológicas. In: LAVERDI, Robson [et al.] (orgs). História, desigualdades e
diferenças. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 15-37.
PAGE, Joseph. A Revolução que nunca houve. Rio de Janeiro. Editora Record, 1972.
PARANHOS. Kátia R (org.). História, teatro e política. São Paulo: Boitempo, 2012.
PONTES, Joel. O Teatro Moderno em Pernambuco. São Paulo: DESA, 1966, p. 118.
REIS, Carlos; REIS, Luís Augusto. Luiz Mendonça: Teatro é festa para o povo. Recife:
Fundação de Cultura da Cidade do Recife, Coleção Malungo, 2005.
REZENDE, Antonio Paulo (org.). Recife: Que História é essa? Recife: Fundação de
Cultura da Cidade do Recife, 1987.
SILVA, Bianca Nogueira da. O ser e o fazer: os intelectuais e o povo no Recife dos
anos 1960. Recife: UFRPE, 2010, 110p. Dissertação (Mestrado em História). Programa
de Pós-graduação em História, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife,
2010.
VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Luiz Marinho: O Sábado que não Entardece. . Recife:
Fundação de Cultura da Cidade do Recife, Coleção Malungo, 2002.
GT 4
Escritos dos alfabetizadores: as cartas dos professores do Mobral 1970-
1980
Quero vos dar meus sincéros agradecimentos por está (embora com muito
sacrifício) ganhando esses 70 contos que muito embora muito poquinho já
me serva para ajudar a crear meus filinhos que são nove e sabe Deus como
crio com a horrível caristia de tudo, ainda não sobrou nem para eu limpar
minha classe. Mais a Deus querer, possa ser que ainda venha um bom
aumento, e eu melhore tudo em minha classe, e possa comprar até uns
banquinhos porque os alunos são 30 e os bancos que tenho são poucos. Como
tambem: para comprar o Querosene pois moro fora da Cidade dois
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Embora tenha sua criação datada de 1967 só em 1970 é que o Mobral inicia efetivamente suas
atividades de alfabetização prevendo seu fim em 1980 com o índice de 100% de alfabetização entre
pessoas em idade escolar.
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Atendendo aos limites desse texto fiz a escolha por 54 (cinquenta e quatro)
cartas, todas escritas a punho pelos alfabetizadores do Mobral num recorte temporal que
vai de 1971 a 1980, período que compreende a fase inicial do programa, sua expansão e
declínio.
A produção desses escritos era estimulada pela obrigatoriedade que os
professores tinham em prestar contas periodicamente de suas ações e resultados. Essa
produção era acompanha pela constante supervisão de pessoas que a nível municipal,
estadual e nacional solicitam essas “cartas-relatórios” que tinham como destino a
coordenação geral do Mobral- RJ.
As cartas em questão davam detalhes de como estavam às aulas, a assiduidade
entre os alunos, os eventuais desistentes e as dificuldades de cada região para manter
regularmente os cursos. A janela de comunicação entre as comunidades rurais e urbanas
do país com as instâncias centrais do Mobral estava aberta através das cartas. Diante
disso os alfabetizadores não se furtavam de apresentar suas adversidades cotidianas e
pedir providências:
Foi com essa oferta de educação, muitas vezes precária como no caso de
Tucano-BA, que o Mobral estendeu uma grande lona sobre o Brasil e chegou a todos os
municípios do país207. De acordo com o próprio Movimento
207
Segundo dados do Mobral-central o Brasil tinha nos anos de 1970, cerca de 3.953 municípios. Todos
alcançados pelo Mobral.
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Um outro aspecto curiosos nas correspondências era que, embora o destino fosse
o Mobral-Central no Rio de Janeiro, muitas dessas cartas estavam endereçadas
nominalmente a sujeitos específicos, autoridades nacionais da época como os
presidentes do Mobral (Arlindo Lopes Correia e Mario Henrique Simonsen) e os
presidentes da república do período (Médice e Ernesto Geisel).
No feixe documental aqui recortado, encontrei a representação de 9 (nove)
estados brasileiros208 a partir de pequenas cidades/sítios/engenhos da zona rural de cada
região. Lugares pequenos e pobres, marcados singularmente pela privação de recursos e
conhecimento científico e pela abundancia de esperança, cansaço e em muitos casos
consonância com o regime civil-militar.
Análise da escrita
Um importante aspecto a ser considerado no estatuto da escrita de cartas é a
identidade do seu autor. Essa identidade se dá a perceber, dentre outros aspectos, pelos
traços deixados no próprio documento.
As cartas escritas pelos alfabetizadores do Mobral apresentam, do ponto de vista
material algumas dessas marcas que auxiliam no processo de análise e estudo daquele
contexto histórico. Todas são escritas a próprio punho, algumas à caneta outras a lápis.
Em papel pautado ou em papel jornal elas são produzidas artesanalmente num esforço
de narrar um cenário social, educacional e por que não político dos mais diversos cantos
do Brasil.
Segundo a historiadora Ângela de Castro Gomes “a escrita de si assume a
subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem, construindo
sobre ela a ‘sua verdade’ (2004, p. 14). Nas “verdades” dos escritos epistolares dos
alfabetizadores do Mobral, percebo uma forte presença da oralidade transcrita e desvios
grosseiros na norma padrão da lingua, revelando um despreparo para o ofício que
desempenhavam e marcas de uma inabilidade na escrita. Na carta escrita por outra
alfabetizadora, por exemplo, é possível ler “em primeiro lugar meus agradicimentos.
que aqui vai tudu bem granças a Deus e agora quero falar sobre meus 70 alunos
imcruzivel eles gostam muito quando eu vou expl-orar = o cartaz só prá depois eu e
eles tombem discutir sobre o assunto” (Ana Soledade, São Francisco, MG. Fonte INEP,
Cx 126, n°310 e 311).
Uma análise minuciosa do ponto de vista da linguagem colocaria numa fase
inicial de alfabetização muitos dos autores das cartas encontradas, desafiando os dados e
a credibilidade dos resultados ostentados pelo Mobral ao longo dos seus dez anos de
trabalho209.
208
Os Estados em questão são: Bahia, Pernambuco, Sergipe, Santa Catarina, Ceará, Paraíba,
Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte.
209
De acordo com números do próprio Mobral o índice de analfabetismo no Brasil teria caído de 33,6%
em 1970 para 25,5% em 1980 a partir do seu trabalho. O que manteve um grande número de brasileiros
na categoria de analfabetos.
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Para o aprofundamento da questão sugerimos: ALMEIDA (1996) e LOURO (1997).
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“No primeiro dia de aula fiz a entrega aos alunos de um jornal no qual vinha
uma foto do presidente Médice isto nos enriqueceu mas para a palestra de
porque foi criado o Mobral, quem o trouxe e o que visa acabar no Brasil”
Francisca Adelino, Mina Bodó. Fonte INEP – Arquivo Mobral, Cx 126,
n°226 .
“sobre meus alunos, acho que estão rendendo muito bom, nos estudos. São
ótimos”. Fonte INEP – Arquivo Mobral, Cx 126, n°326.
“O Mobral veio me encinar; mas nunca pencei que fosse tão bom. Grasças a
deus que os meus alunos são bons. Já tenho 17 aluno meu que não sabia nada
mas tinha uma vontade especial para eu lhes ensinar cuidei muito dele foi
alfabetizado. Grasças a deus e o Mobral”. Fonte INEP – Arquivo Mobral, Cx
126, n° 319.
Uma outra marca curiosa desses escrito é a presença de versos, poesias e letras
de músicas e desenhos produzidas por alunos e alfabetizadores. O tema principal dessas
produções é o cotidiano da roça e o Mobral que ora é elogiado, ora é criticado pela
precariedade, como na carta a seguir é destacado:
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Trago esses elementos para pensar algumas angustias que estão presentes nas cartas em
análise em relação ao tempo além de problematizar o legado que o Mobral acabou
construindo sobre si.
Sobre o primeiro aspecto, observo nas cartas que os alfabetizados estão preocupados em
superar o passado e o presente iletrado, difícil e hostil e vêem na educação a forma para
fazer um novo presente e um novo futuro, por isso, afirmam com tanta veemência que
estão “contribuindo para o crescimento do Brasil” afinal estariam “tirando nossa
cidade/país da escuridão da ignorância”. Para eles o prestigio social do seu trabalho
era grande, pois o sujeito alfabetizado se tornaria uma “criatura útil a família, a
sociedade e a nação” (n°227/228) e não a vergonha para sua gente.
Outra razão para a valorização e preservação das aulas de alfabetização entre os
mobralenses está possibilidade de voto. Essa prática traduzia-se num forte elemento de
auto-estima e de participação ativa na vida social e política. Por isso, em muitas
situações o apelo a continuação do programa é solicitado afinal traria a “melhoria da
auto-estima na população rural (153-154)”.
É perceptível, nos documento até aqui coletados que havia uma peculiar atenção
com os sujeitos recém-alfabetizados, pois eles se constituíam em eleitores e por isso o
assédio sobre eles era maior. Durante o curso de alfabetização, que durava cinco meses,
os alunos recebiam orientações no sentido de “se alistarem ao movimento e fazer valer
o seu voto”.
Cientes desse potencial, o governo militar se preocupa com possíveis desvios
dessas orientações e alerta:
211
Presidência da República, Serviço nacional de Informação. Documento n° 1038, de 10 de outubro de
1972. Fonte: Arquivo Dops-PE. Pasta: Mobral
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A Micro-História não é uma abordagem ou um recorte, mas uma escala de observação, que se refere à
forma como o pesquisador observa e o que ele observa. Ela pode estar associada a uma prática social
especifica, a apreciações microlocalizadas de aspectos da vida “ou a qualquer outro aspecto ou
microrrecorte temático que o historiador considere revelador com relação aos problemas sociais ou
culturais que se dispôs a examinar” (Barros, 20013, 180). Nesse caso a pesquisa não está preocupada com
definições localistas como a de região, o que acontece na História Regional/Local, porque e partir da
definição do seu objeto de pesquisa, o pesquisador busca seus dados através de uma microobservação,
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diz que essas duas denominações – Local ou Regional – são características de países
com dimensões continentais como é o caso do Brasil. O autor afirma que por aqui os
estudos locais foram considerados, por muito tempo, os devotados a instâncias como
municípios, bairros, grupos quilombolas ou indígenas, enquanto os estudos regionais
contemplavam regiões administrativamente maiores – estados, províncias. Em países
menores, como é o caso da França berço dos estudos sobre História Local com Pierre
Goubert, não há necessidade de diferenciar local e regional já que o próprio espaço
nacional é restrito e distinguir estudos locais de estudos regionais não caberia para a
historiografia do país.
A História Local foi marcada no Brasil pelo diletantismo, como destaca Correia
(2002), motivo pelo qual conferiu-se durante muito tempo, especialmente pelos
historiadores acadêmicos, a ela pouco crédito diante do panorama historiográfico. Não
que ela fosse trivial, mas porque seus produtores não dialogavam efetivamente com os
métodos instituídos pela produção histórica acadêmica. Essa característica de “não
profissionalismo” foi peculiar a História Local produzida no Brasil. Tal escrita era
desprovida de conjecturas e escolhas teórico-metodológicas, suas fontes de acesso
muitas vezes restrito devido ao caráter pessoal que possuam, portando, em geral,
inacessíveis ao historiador profissional. Nesse contexto, críticas a História Local tomam
fôlego ao observar que esta por muito tempo transitou pelo caminho da linearidade e do
Positivismo, privilegiando uma visão romântica da realidade local, logrando de forma
cronológica e ascendente fatos e sujeitos de destaque.
Entretanto, esse panorama diletante toma um caminho diferente de forma mais
acentuada nas décadas de 1970 e 1980, com as novas perspectivas teórico-
admitindo detalhes que antes não eram contemplados, fazendo uso e de investigação intensiva de
documentação.
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Nesse sentido pudemos observar que o documento que orienta a educação escolar
em Pernambuco faz indicações significativas para a valorização das diversas vozes que
articulam a formação do processo histórico regional, destacamos algumas expectativas
de aprendizagem propostas no documento: “Identificar os diversos grupos sociais,
culturais, raciais, étnicos que constituem e que participaram da formação e
transformação de diferentes espaços sociais, que constituem a localidade; Compreender
numa perspectiva crítica e histórica, os diferentes significados de identidade,
diversidade solidariedade e cultura”, dentre outras.
Consideramos este documento como um balizador das expectativas de
aprendizagem, instrumento de acompanhamento, avaliação e diagnóstico do processo
escolar que apresenta-se como uma importante referência para orientar o processo de
ensino e aprendizagem em Pernambuco, no sentido de contemplar as particularidades
dos grupos regionais na conjuntura escolar, a construção histórico-identitária regional e
a formação da percepção de sujeito histórico não só no regional, mas em perspectivas
históricas mais amplas, perspectiva tão preconizada no contexto do Ensino de História
para os anos iniciais hoje.
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VEYNE, PAUL. Como se escreve a história. Trad. A. J. da S. Moreira. Lisboa:
Edições 70, 1987.
Resumo
Este trabalho tem por proposta realizar uma investigação histórica sobre a política
cultural para o patrimônio de Pernambuco, durante o período de 1979 a 1985, a fim de
compreender as concepções de patrimônio e, consequentemente, memória e identidade
que foram construídas nos primeiros anos de funcionamento do Sistema Estadual de
Tombamento criado pela Lei nº 7980/79, de 18 de setembro de 1979. A escolha do
recorte temporal se da pelo fato de que é nesse período que ocorreu quase a metade dos
processos de patrimonialização dos bens tombados que hoje fazem parte do universo
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que os valores que o patrimônio representa não são inerentes a ele, mas que lhe são
atribuídos por agentes respaldados pelo Estado e baseados em critérios técnicos,
científicos e, sobretudo, políticos, pois o processo de patrimonialização é uma prática
social (ARANTES, 1989: 41).
Falar em patrimônio implica ter presente os princípios básicos da sua
construção social, ou seja, compreendê-lo como produto dos significados e
valores atribuídos por um grupo a esse bem cultural que, portanto, vem a ser
considerado patrimonial pelas qualidades que lhes são outorgadas. Os
significados atribuídos nutrem-se de memória, de história e de conflitos.
(GONZALEZ, 2012: 07).
Vale ressaltar que esse processo não ocorre sem conflitos, visto que há disputas
simbólicas entre os setores da sociedade para legitimar uma dada versão do passado, da
identidade, da cultura, enfim, de um determinado fragmento da memória, ou melhor, de
uma representação da memória a partir dos bens patrimoniais. Pois, “[...] o campo do
patrimônio apresenta-se como um espaço de conflitos e interesses contraditórios”
(ABREU, 2009: 38). Até porque “o que para uns é patrimônio, para outros não é. Além
disso, os valores sociais mudam com o tempo” (FUNARI & PELEGRINE, 2006: 10).
É importante frisar também que o processo de patrimonialização sempre parte do
tempo presente. Ao lançar o olhar sobre o passado, ele possui o desejo de perpetuar
determinadas representações da cultura e da memória para as gerações futuras. Visto
que, “o patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em certificar a
identidade e em afirmar valores, além da celebração de sentimentos, se necessário,
contra a verdade histórica.” (POULOT, 2009: 12).
E, por fim, a última contribuição dos historiadores a ser destaca neste artigo é
que o campo do patrimônio cultural sempre recebeu contribuições da história. Pois,
[...] vale ressaltar que, no campo do patrimônio, a história sempre esteve
presente, fosse como disciplina subsidiária, fosse como metodologia de
investigação – voltada para a produção de conhecimento sobre o patrimônio
cultural –, fosse ainda como narrativa para a atribuição de valor de
patrimônio a subsidiar a sua gestão (CHUVA, 2012: 13).
qual a dimensão tempo e espaço conta. Já que realizar uma investigação sobre este
processo é identificar a maneira na qual a sociedade em estudo constrói seu patrimônio
em um determinado espaço e tempo. (POULOT, 2009).
Assim, segue-se neste artigo uma perspectiva que acompanha algumas
mudanças críticas ocorridas desde a segunda metade do século XX no modo de pensar o
campo do patrimônio cultural entre os historiadores. Ao acreditar que escrever sobre as
políticas culturais para o patrimônio cultural é investigar, a partir de uma perspectiva
histórica, os interesses, as demandas e as razões que selecionaram determinados bens
como representativos ou não para o presente, colocando em questão o que do passado
nos foi oferecido e quem este passado deseja representar. Pois, “a política, como de
resto toda vida social, é uma rede de sentidos.” (PACHECO, 2008:175).
Portanto, para a análise do processo de valoração dos bens culturais que foram
eleitos para constituir o universo patrimonial pernambucano durante o período de 1979
a 1985, aprecia-se neste artigo, primeiro, como o patrimônio cultural se transformou em
elemento essencial, no nível simbólico, para a construção das identidades nacionais. E,
posteriormente, para outras identidades, como as locais. Merecendo, inclusive, ser
inserido nas políticas culturais elaboradas pelo Poder Público. Em seguida, para não
ficar apenas em uma analise macro das políticas culturais em Pernambuco, irá ser
investigado como estudo de caso o processo de Tombamento do terreiro Obá Ogunté,
um dos primeiros terreiros de xangô do Recife e representante das religiões de matrizes
africanas, em 1985, por ter sido um caso excepcional na política cultural para o
patrimônio pernambucano. A fim de, na exceção, encontrar a regra.
213
O estado de Minas Gerais, com a cidade histórica de Ouro Preto, assim como os da Bahia e
Pernambuco, situados dentro do ciclo do couro e algodão, e o do Rio de Janeiro, centro político na época,
eram considerados nas primeiras décadas do século XX os estados que possuíam as principais cidades
históricas do Brasil e, por isso, mereciam atenção especial dos órgãos de preservação do patrimônio.
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Isso aconteceu, em boa parte, graças a colaboração de Gilberto Freyre, nomeado delegado regional,
representando o estado de Pernambuco e colaborando com a eleição de seu patrimônio. É importante citar
também que foi Gilberto Freyre convidado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do SPHAN, a
escrever uma matéria sobre os mocambos de Pernambuco na primeira edição da Revista do SPHAN.
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só vivenciou uma nova ação para a preservação do patrimônio cultural a nível estadual a
partir da década de 1970 quando houve um primeiro momento de descentralização das
políticas de preservação do patrimônio no território brasileiro, com a criação pelo
governo federal do Programa de Reconstrução das Cidades Históricas (PCH), instituído
em 1973.
O PCH, como ficou conhecido, tinha como objetivo criar infraestrutura
adequada ao desenvolvimento e suporte de atividades turísticas e ao uso de
bens culturais como fonte de renda para regiões carentes do Nordeste,
revitalizando monumentos em degradação. (FONSECA, 2005: 143).
O PCH atuou em nove cidades da região Nordeste, entre elas Recife, na qual foi
formado um grupo dentro da Delegacia Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN215), em Pernambuco que apoiou o programa. Foi graças às
atividades e, sobretudo, aos recursos provenientes do PCH que foi possível, ainda em
1973, a criação da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
(FUNDARPE). Posteriormente, com a Lei n. 7.790 de 1979 e o Decreto 6.239 de 1980
– instrumentos que juntos FUNDARPE, ao Conselho Estadual de Cultura e a Secretaria
de Cultura, Turismo e Esportes (SECULT) -, possibilitaram a criação do Sistema
Estadual de Tombamento.
Vale ressaltar que, apesar da descentralização com a introdução de novas
agências governamentais para eleger seus próprios bens patrimoniais a nível local, a
maioria dos estados brasileiros continuou com uma política cultural para o patrimônio
que já vinha sendo prática desde os primeiros anos do IPHAN, no momento em que
eram selecionados como dignos de serem reconhecidos como bens patrimoniais apenas
igrejas barrocas, fortes militares do período do Império, casarões coloniais, etc. Essa
política cultural, por optar pela preservação de um patrimônio cultural “[...] de cultura
branca, de estética barroca e teor monumental”. (RUBIM, 2007: 17), ficaria, a partir da
década de 1980, conhecida como uma política de “Pedra e Cal”.
215
Por uma questão didática, iremos utilizar esse termo a partir de agora. Visto que essa instituição
mudou várias vezes de nomenclatura.
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Gestor, pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC) como Órgão Executor e pela
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) como Órgão
Técnico. Sendo o governador de Pernambuco responsável pela Homologação do
Tombamento do bem através de Decreto com publicação no Diário Oficial do Estado.
De acordo com o decreto-lei de 1937, que instituiu o instrumento legal do
tombamento no território brasileiro, “o tombamento de coisa pertencente à pessoa
natural ou à pessoa jurídica de direito privado se fará voluntária ou compulsoriamente”
(BRASIL, 1937). Se voluntária, caberia aos agentes das agencias governamentais
analisar o bem em in situ. Se compulsória, haveria um vasto processo de disputa entre o
proprietário e os agentes governamentais sobre a condição do bem cultural em processo
de tombamento. Qualquer pessoa poderia, ainda hoje o é, elaborar um requerimento
pedindo o tombamento de um bem mesmo não sendo o proprietário.
Essa rápida exposição sobre o processo de tombamento no Brasil é fundamental
para se ter mente como funciona o Sistema Estadual de Tombamento em Pernambuco,
visto que a Lei n. 7.790 de 1979, que criou o sistema, segue os mesmos passos
descritos, de forma aqui simplificada, no decreto-lei de 193.
Sobre a política cultural para o patrimônio cultural em Pernambuco, de acordo
com as nossas investigações, dos 63 bens patrimoniais inscritos nos livros de Tombo216
do Sistema Estadual de Tombamento de Pernambuco durante os anos de 1979 a 2012,
apenas o Terreiro Obá Ogunté ou Sítio de Pai Adão, um dos primeiros terreiros de
xangô do Recife, inscrito no Livro dos bens móveis de valor arqueológico, etnológico,
histórico, artístico ou folclórico, em 1985, é representante das matrizes africanas no
universo patrimonial pernambucano.
Esse fato pode parecer, hoje, até alarmante, se considerarmos que o conceito de
patrimônio cultural atualmente é demasiado abrangente. Contudo, para aqueles que
atuavam no campo do patrimônio no estado de Pernambuco nos primeiros anos da
década de 1980 a solicitação para o tombamento do Sítio de Pai Adão foi, no mínimo,
216
São eles: I – Livro de tombo dos bens móveis de valor arqueológico, etnológico, histórico, histórico,
artístico ou folclórico do Estado de Pernambuco; II – Livro de tombo de edifícios e monumentos isolados
do Estado de Pernambuco; III – Livro de tombo de conjuntos urbanos e sítios históricos do Estado de
Pernambuco; IV – Livro de tombo de monumentos, sítios históricos e paisagens naturais do Estado de
Pernambuco; V – Livro de tombo de cidades, vilas e povoados do Estado de Pernambuco.
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estranha.
Tudo começou no dia 12 de janeiro de 1984, no Recife, quando o antropólogo e
pesquisador Raul Lody encaminhou ao então secretario de Turismo, Cultura e Esportes
do Pernambuco, Francisco A. Bandeira de Mello, o pedido de tombamento do Sítio de
Pai Adão. Dando inicio, assim, ao processo de tombamento nº103. No documento,
escrito em duas páginas, o antropólogo, de antemão, reconhece que sua proposta de
tombamento é diferente das demais já ocorridas no Estado. E por isso, se vê na
necessidade de explicar em qual categoria a sua proposta se encaixaria e como deveria
ocorrer o exame técnico para que o bem cultural em questão fosse devidamente
reconhecido como patrimônio cultural pernambucano.
Caracteriza-se o referido tombamento como de cunho etnográfico e
paisagístico, compreendendo conjunto de bens patrimoniais que necessitam
de tratamentos particulares, empregando metodologias atípicas aos trabalhos
de tombamento histórico e ou artístico. (Biblioteca da Fundarpe, processo de
tombamento nº 103, p. 01).
Raul Lody não apenas propõe uma nova ótica sobre o instrumento legal do
Tombamento, como também se vale de sua posição enquanto antropólogo para reforça
seu pedido de Tombamento do terreiro ao utilizar o conceito antropológico de cultura.
Visto que, o Sítio de Pai Adão não possuía as características estéticas, já que não
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voltou suas atenções novamente às edificações de pedra e cal e outras de caráter mais
monumental.
Conclusão
É notório que há, no pedido de Raul Lody, uma preocupação em atualizar o
conceito de patrimônio cultural em nível teórico e no plano prático reinventar o
tombamento e a narrativa hegemônica da identidade e do passado que era praticada em
Pernambuco até então. De certa forma, posteriormente, as preocupações do interessado
no tombamento do Sítio de Pai Adão teria suas demandas atendidas na Constituição
Federal de 1988, quando há, enfim, a expansão do conceito de patrimônio cultural com
o artigo 216.
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referencia
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: I. as formas de expressão; II. os
modos de criar, fazer e viver; III. as criações cientificas, artísticas e
tecnológicas;IV. as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V. os conjuntos urbanos e
sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e cientifico. (BRASIL, 1988).
Referências Bibliográficas
Fontes
Biblioteca da Fundarpe: Processo de tombamento nº 103 – Terreiro de Obá Ogunté.
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217
Informações obtidas em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=2&Itemid=171
e http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-historico. Acesso em: 13 mar. 2014.
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218
Ato Institucional nº 5. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm. Acesso 15 de março
de 2014.
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219
Decreto Lei Nº 547 de 18 de abril de 1969. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del0547.htm. Acesso em: 15 de mar. 2014.
220
Texto integral em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=195811. Acesso
em: 16 mar. 2014.
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professor apenas reproduzisse o que lia. Nesse sentido, a História ensinada será a dos
heróis, e da elite política, combinada a um patriotismo exacerbado.
Os Guias Curriculares “auxiliariam” os professores na medida em que informava quais
os conteúdos deveriam ser trabalhados e qual deveria ser sua metodologia. Esse fato
aliado à formação precária do professor esvaziou e descaracterizou a função do ensino e
do professor de História nas instituições de ensino.
Mas, em meados de 70 e mais profundamente na década de 80, veremos lutas
fundamentais para mudanças na forma de conceber o ensino de história no Brasil. Um
ótimo exemplo foi a luta de historiadores e geógrafos que acarretou o fim dos Estudos
Sociais e a retomada da autonomia dessas duas disciplinas no currículo escolar, assim
como a revisão feita dos conteúdos dos livros didáticos.
Considerações Finais
O caminho que levou a constituição do ensino de História enquanto disciplina
escolar no Brasil foi tortuosa, repleto de conflitos e muitas vezes se confundiu com a
própria História do Brasil.
Vimos que o interesse acerca dos conteúdos ensinados em sala de aula foi algo
recorrente em nossa história. Um dos primeiros conflitos aconteceu entre a história
sagrada e a profana, com o predomínio da segunda. A história profana se tornou laica,
científica e nitidamente francesa.
No que tange ao ensino de História do Brasil, a princípio serviu de apêndice da História
Universal e será usada durante a Ditatura Militar para desencadear o ufanismo e a
exaltação dos heróis da pátria.
Refletir sobre o ensino de História no Brasil é importante, pois, nos permite pensar o
papel que essa disciplina desempenha sobre nossa sociedade. Não foi à toa que a
reforma de 1971 mexeu, não só na grade curricular nas Ciências Humanas nas escolas,
mas também, com a formação dos professores instalando uma formação curta e que
atendesse as “necessidades” do mercado.
Outro agravante causado pela (des)qualificação aligeirada foi a completa dependência
por parte do professor sobre o material didático. Com o tempo de formação reduzido o
curso não lhe fornecia ao professor subsídios para reflexões. Esse fato piorou, ainda
mais, com o surgimento dos Guias Curriculares que invés de orientar serviu para
controlar a prática do professor sobre o que deveria ser ensinado nas escolas.
O Regime Militar chegou ao fim e seus métodos no ensino de história foram
amplamente combatidos. Contudo, o que percebemos é que muitas de suas práticas
continuam impregnadas em nossa sociedade, uma vez que, não é raro vermos
professores de história do século XXI com metodologias do século XIX.
Referência bibliográfica
BITTENCOURT, Circe (Org.) O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto,
2002.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional. Lei nº 5692, de 11 de agosto
de 1971. Pedagogia em foco. Disponível em:
http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/l5692_71.htm. Acesso em: 15 fev. 2014.
BRASIL. Portal do MEC. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=2&Itemid=171. Acesso
em: 13 mar. 2014.
BRASIL. Portal do FNDE- Histórico. Disponível em:
http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-historico. Acesso em:
13 mar. 2014.
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Aluno PIVIC pelo Projeto Memória da Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Campina
Grande sob a orientação da profa. Dra. Rosilene Dias Montenegro. Vigência 2013-2014
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A partir de 1964, com o golpe militar que depôs no Brasil o Presidente da República,
João Belchior Marques Goulart (João Goulart), todo veículo de informação que quisesse
continuar existindo teve que passar por reformulações que permitissem a ampla
veiculação de propaganda pró-regime ditatorial. Em Campina Grande, Diário da
Borborema222, jornal local e de tiragem diária, criado em 02/10/1957, pelo império
empresarial Diários Associados, limitou-se a comunicar, sem questionamentos ou
críticas, as ações do governo federal. Tal posicionamento foi comprovado a partir das
pesquisas no acervo do dito jornal realizadas pelo Projeto Memória, documentadas em
artigos e outras produções dos pesquisadores do projeto.
Passavam-se as informações como se todas as ações do governo fossem meramente
técnicas, ações naturalmente decorrentes do ato de governar – como se nenhum golpe
tivesse acontecido, como se o fluxo do poder jamais tivesse sido modificado e não
existissem as disputas em torno da construção política do país e a democracia como
ideal e prática de humanização e justiça social. O Diário da Borborema, assim como
grande parte da mídia223 informava sobre uma revolução e não de um processo ditatorial
que se instalava no país.
(...) tendo os meios de comunicação sob controle, e ainda por
cima, contando com a preciosa colaboração da TV Globo, os
órgãos de repressão empreenderam esforços no sentido de
popularizar a imagem do governo mediante a cooptação de
antigos participantes da luta armada. A estes caberia denegrir o
esforço revolucionário dos militantes da esquerda e,
simultaneamente, exaltar o governo apresentado como
progressista. (AQUINO, 2012, p. 246)
222
A primeira edição do Diário da Borborema foi publicada em 02 de outubro de 1957 com sete cadernos
e 56 páginas. O periódico já nasceu pertencendo à cadeia dos Diários e Associados e esteve em circulação
até 01 de fevereiro de 2012.
223
A grande imprensa sofria censura da ditadura, ou corroborava com as ações do governo. Vamos ver,
por exemplo, jornais de circulação nacional trazendo as seguintes manchetes: "Fugiu Goulart e a
democracia está sendo restaurada" (O Globo, 02/04/1964); "Feliz a nação que pode contar com
corporações militares de tão altos índices cívicos" (O Estado de Minas, 05/04/2013) ou Congresso
concorda em aprovar Ato Institucional" (Jornal do Brasil, 09/04/1964), mas, apesar disso, alguns jornais
alternativos que não concordavam com o poder vigente passaram a surgir, sendo o Pasquim (1969 a
1988) um dos periódicos mais importantes que surgiu naquele período.
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formatura de uma turma até a instalação do primeiro IBM 1130, primeiro computador a
ser instalado em uma instituição do Norte-Nordeste. É importante mencionar aqui que,
foi no período em que Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque esteve na direção dessa
Escola (1964-1971), que houve a primeira expansão da instituição com a criação de
novos cursos de graduação e, também, de cursos de pós-graduações e vários convênios
firmados entre instituições nacionais e internacionais.
Considerada as dimensões da influência da ditadura militar localmente, podemos
questionar também a influência dessa ditadura nos próprios cidadãos de Campina
Grande224, e mais precisamente, nos alunos da Escola Politécnica, que estavam sob os
holofotes da mídia e do governo militar, uma vez que faziam parte de uma instituição de
ensino superior de história tão rica. Tal história “rica” da construção, fundação e
administração da Escola Politécnica será discutida posteriormente.
O próprio fato de se estudar numa instituição de ensino superior em Campina Grande já
fazia dos alunos indivíduos de interesse para a mídia e o governo, já que até então, não
havia nenhuma instituição similar na cidade.
A criação de uma instituição de ensino superior em Campina Grande era uma cara
aspiração das elites campinense, idealizada pelo segmento intelectual e de profissionais
liberais de Campina Grande, na década de 1950 (LOPES, 1989). Um dos principais
motivos para a implantação do ensino superior na cidade era atender aos estudantes
campinenses e da região, filhos e/ou membros das elites político-econômicas, que
desejavam construir na cidade condições de oferecer formação escolar e profissional em
nível superior. Na ausência do ensino superior na cidade, os jovens das famílias
abastadas e a de classe média tinham que se deslocar para outros Estados ou regiões. A
essa razão soma-se a necessidade das elites campinenses de criar lugares de atuação
profissional e trabalho para os seus filhos.
Na cidade, as opções para a colocação profissional para as elites se limitavam ao
comércio e a política. Os poucos profissionais liberais, engenheiros, médicos,
advogados, ocupavam as também poucas colocações de emprego nas áreas da saúde,
ciências jurídicas e ensino. Áreas cada vez mais demandadas, apresentando carência de
profissionais para atender essas demandas.
O governador do Estado (1951-1956) o escritor e também político José Américo de
Almeida incentivou e apoiou a criação de instituições de ensino superior. Projeto que
esperava se constituir um das marcas de seu governo. Como de fato o foi. Todavia, para
se tornar realidade esse projeto político enfrentou importantes obstáculos. Pois, embora
a conjuntura política no Estado da Paraíba fosse bastante favorável à criação de
instituições de ensino superior, havia choque de interesse entre as duas mais importantes
elites do Estado, a da capital João Pessoa e a de Campina Grande, polo comercial
algodoeiro. Essas disputas tendiam a apequenar as propostas tocantes à educação.
Os relatos de fundadores da Escola Politécnica sobre as dificuldades enfrentadas pelo
grupo fundador dessa instituição são taxativos quanto a interferência dos divergentes
interesses políticos. O engenheiro Químico, fundador e professor da Escola Politécnica,
José Marques de Almeida Jr, chamado de Dr. Zezé Marques, recordando as discussões,
224
Na época, Newton Rique, Prefeito de Campina Grande, deu declarações informando ser contrário ao
golpe e, pouco tempo depois ele foi cassado.
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A Escola Politécnica da Paraíba foi então criada com o curso de Engenharia Civil. Mas
devido as questões de ordem burocrática junto ao Ministério da Educação, seu
funcionamento só foi autorizado em 14 de julho de 1953, através do Decreto Federal de
nº 33.286, aprovado pelo presidente Getúlio Vargas.
225
O general que o entrevistado esta se referindo é o general Oliveira Leite, que foi contrário a criação da
Escola Politécnica, propondo a criação da Escola de Química.
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foi criada em [19]52, mas só teve vestibular em [19]54, quer dizer a primeira
turma entrou, foram nove [lapso de memória do prof. Lynaldo pois foram
oito] alunos que entraram no começo de 54. Muitos professores que tinham
assinado como possíveis titulares de disciplinas eram pessoas que moravam
em João Pessoa e depois não demonstraram maior interesse, até porque os
salários eram muito baixos. (ALBUQUERQUE, 2005, 03)
2- Memórias e histórias
Os entrevistados aqui citados falaram sobre sua vida e cotidiano quando alunos da
Escola Politécnica da Paraíba. Essas entrevistas foram realizadas no decorrer do ano de
2013 pelos integrantes do Projeto Memória, Raquel Guedes e Rafael Porto. As
entrevistas são o resultado de mais um ciclo de atividades do Projeto Memória, que
incluiu também o levantamento de dados sobre ex-alunos(as) e ex-funcionários(as) da
Escola, bem como o indexamento de arquivos relacionados ao período de
funcionamento da Escola (1952-70). Quando perguntados sobre a percepção deles sobre
a ditadura, encontramos respostas variadas, que têm seus motivos ainda indefinidos,
mas ainda assim, possíveis de serem traçados.226
A primeira fala a ser analisada, será a da depoente A.M.V., ex-aluna do curso de
Engenharia na Escola Politécnica, a respeito do contexto histórico pré-ditadura, A.M.
nos explica que:
[nós, o Brasil] Estávamos no governo de Jango, era um governo socialista e
todo estudante que não fosse comunista era imbecil sabe? Você não podia ser
de direita, os estudantes. Os professores eram todos de direita né? E todo
mundo era a favor da Reforma de Base e todo mundo lutava pelo povo na
universidade, o slogan era ‘O Povo na Universidade’. (Entrevista cedida ao
Projeto Memória em 06/05/13)
Essa fala representa a posição dos estudantes da época em relação às políticas no país
pré-ditadura: uma adesão às medidas de caráter populista e enfáticas na reforma da
educação brasileira. Ao chegar a ditadura, não é de se espantar que os movimentos
estudantis se tornassem um dos maiores críticos ao novo sistema imposto.
226
Todas as entrevistas utilizadas no trabalho tiveram sua gravação e publicação permitidas pelos
depoentes.
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Já sobre o período após o golpe de 1964, A.M.V. Nos fala sobre as medidas tomadas
pelo exército para manter o controle sobre a população:
Houve repressão porque era uma coisa muito calada, ninguém sabia, era no
cochicho que agente falava ‘fulano foi preso’, ‘sicrano desapareceu’. Você
tava conversando em um papo assim, no intervalo de aula, aí chegava um
cara e se metia no papo sem ninguém chamar sabe? Aí, a gente foi
descobrindo que aquilo eram pessoas infiltradas. Na minha turma tinham
cinco militares, um major, dois tenentes e um sargento, quatro... A gente não
podia dizer nada, não se falava de política, acabou-se. (Entrevista cedida ao
Projeto Memória em 06/05/13)
A força da repressão é evidente nesse trecho da fala da entrevistada, que ainda comenta
sobre as medidas tomadas contra os funcionários da Politécnica, alegando que o foco
mesmo estava nos estudantes. A entrevistada também fala sobre a fiscalização dos
militares em todos os âmbitos das práticas na Escola, de aulas práticas às viagens
estudantis, tudo precisava passar primeiro pela aprovação do exército.
É interessante notar também que a depoente foi a primeira mulher a se formar em
Engenharia na Escola Politécnica, curso reservado, culturalmente, apenas ao sexo
masculino. E ela própria se define como uma mulher “pioneira”. O fato dela se mostrar
contrária à ditadura desde o começo reforça a sua definição.
O professor E. P. (2004) que diz que a Escola só não fechou porque contou com ajuda
da comunidade empresarial.
A Escola Politécnica não fechou graças ao apoio de empresas da cidade, da
Federação das Indústrias e a Associação Comercial, mesmo assim nós nos
cotizávamos para comprar material de expediente, (...) para manter a Escola
Politécnica funcionando. Nós fazíamos questão que nossos alunos soubessem
disso, que eles estavam fazendo prova com papel comprado pelos
professores, que o mimeografo não parava de produzir material didático
porque os professores davam dinheiro para comprar extenso e álcool e o que
precisasse [ser comprado]. (Entrevista cedida ao Projeto Memória em
29/04/2004)
Buscando fazer a relação dos depoimentos com outras fontes, recorremos a uma notícia
publicada no Diário da Borborema de 01/04/1964: “Alunos da Politécnica decidem, em
Assembleia, entrar em greve para apoiar o presidente Jânio Quadros”. E em seguida há
o texto: “Segundo Gil Teixeira Filho, presidente do Diretório Acadêmico da Politécnica
o movimento paredista será uma manifestação da greve geral decretada pela UNE em
sinal de protestos contra a crise atual e contra a crise nascida de uma política dirigida
por maus brasileiros”.
Segundo Giovani (2009, p. 10), “o setor estudantil também foi muito perseguido. As
direções das entidades estudantis, tanto secundaristas como universitárias, sofreram
intervenções. Também houve perseguição a professores universitários e expurgos no
aparelho estatal”.
O professor E. P. relembra um pouco sobre a experiência de participar do Movimento
Estudantil da Escola Politécnica.
Estudantil, mas nós o fizemos, e acho que fizemos bem, fizemos com lisura,
com espírito público, com patriotismo, lutávamos pela melhoria de qualidade
de ensino. Nós também não colocávamos a administração como inimiga,
apenas somos de lados opostos. Havia um entrosamento muito grande entre
os alunos e a administração, o Diretório Acadêmico apoiava muito a
administração da antiga Politécnica até para fortalecimento, porque havia o
preconceito contra a Escola Politécnica, principalmente quando ela começou
a fazer parte da Universidade Federal da Paraíba. A Politécnica sempre foi
discriminada. Ou a gente se unia ou então simplesmente o projeto podia falir.
(Entrevista cedida ao Projeto Memória em 29/04/2004)
O Golpe fora dado três meses depois que Lynaldo Cavalcanti foi nomeado
diretor da Escola Politécnica. E, ao contrário do que afirma o professor, Lynaldo
Cavalcanti, por um tempo, não era bem quisto pelo Diretório Acadêmico que o via
como alguém da “direita”.
Antes de Lynaldo, Edson Pereira afirma que o ex-diretor Antônio da Silva Morais era
mais preocupado em fazer a Escola funcionar com o curso de Engenharia Civil e, em
alguns momentos, a instituição acabava se mostrando apolítica.
Tínhamos uma série de restrições com relação... Eu não sei se foi ditadura, se
foi golpe militar... Teve, na minha opinião, algumas coisas positivas para o
país, em termos de se reestabelecer a ordem, porque na época estava uma
bagunça (...), nós podemos questionar como a ordem foi colocada, como a
ordem foi imposta (...) Mas no período da ditadura nós tivemos alguns
avanços em termo de país. (Entrevista cedida ao Projeto Memória em
29/04/13)
Percebe-se pela fala do entrevistado que, apesar de ter conhecido pessoalmente uma das
personalidades por trás da fundação da Escola Politécnica, ele julga a influência de
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Lynaldo como impossível de se evitar, como se todas suas práticas políticas fossem
naturais, e os eventos que levaram a Poli à sua posição na época foram se sucedendo
naturalmente. Talvez seja essa a impressão deixada pela imprensa que foi obrigada a se
calar sobre as práticas do governo: de que os movimentos políticos e o rumo do país
estavam fluindo de maneira natural, e que na verdade não haveria outra maneira senão
essa. Sabemos que a mídia é formadora de opinião; e se tal assunto é “esquecido” pela
mídia, lentamente as informações sobre tal assunto passam a cair no esquecimento. Note
inclusive que o entrevistado não comenta sobre as práticas de Lynaldo para movimentar
a Escola nos primeiros anos de fundação, justamente porque veicular a informação de
um indivíduo driblando o sistema da ditadura significava uma dura repressão a todos os
envolvidos no jornal que o fizesse.
É importante notar que até os estudantes mais alinhados à política da ditadura ainda não
concordavam com as práticas brutais militares, e mesmo sobre as falas relacionadas a
um período mais “brando” da ditadura (se comparado a outros períodos da ditadura),
como o fim dos anos 70.
J.S.R. também fala um pouco sobre a economia durante a época da ditadura, “você não
sabe o que é dormir hoje com R$ 1.000,00 reais e amanhecer com um e qualquer coisa.
E mudavam simplesmente os nomes das moedas ou coisa parecida, mas a inflação
continuava do mesmo jeito”.
O depoente mostra conhecimento sobre a grave crise econômica que o Brasil estava
passando, e que a ditadura pouco mudou a situação. Esse mesmo depoente afirma, em
tempos depois, que “não houve derramamento de sangue” entre as transições dos
governos, da república para a ditadura, e de volta à república. Ele não comenta nada,
porém, sobre o derramamento de sangue durante esse governo, e esse comportamento
também é esperado: Alegar a existência de tortura, para os que viveram a época, ainda é
traumático, e bastante complicado também, já que não havia provas o bastante para se
afirmar tal coisa – lembre-se que a mídia era proibida de comentar o assunto.
No ano de 1999, quando completava-se 20 anos de anistia a Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) produz um documento para retração formal e publica a todos integrantes
punidos por medidas excepcionais e arbitrárias do regime militar227.
A repressão política na UFPB deixou provas inquestionáveis que estão
agregadas ao processo: são os ofícios reservados de número 05 - Gabinete do
Reitor Guillardo Martins Alves, de 25 de fevereiro de 1969, dirigido aos
diretores de todas as unidades da UFPB, dando conta das punições aplicadas a
85 alunos e ex-alunos, e pedindo cumprimento e o de número 03/881/69 do
mesmo Reitor, de l de fevereiro de 1969, dirigido ao General Vinitius Notare,
Comandante da Guarnição Federal, informando das providências tomadas -
exoneração do Coordenador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, e não
renovação dos contratos de inúmeros professores desse mesmo instituto, da Escola
politécnica de Campina Grande, da Faculdade de Ciências Econômicas de
João Pessoa, da Faculdade de Ciência Econômica de Campina Grande, da Escola
de Engenharia, além do sustamento, para averiguação, do pagamento de salário
de professores dessas mesmas unidades, como também da Escola de Agronomia do
Nordeste e do Instituto Central de Física. São 29 professores atingidos. Completa
o ofício, a informação sobre a dissolução dos Diretórios Central e Acadêmicos
e a nomeação dos respectivos interventores228.
227
É importante relembrar que, a partir de 1974 a Escola Politécnica passa a ser campi da UFPB,
conforme mencionado anteriormente.
228
http://www.ufcg.edu.br/prt_ufcg/assessoria_imprensa/mostra_noticia.php?codigo=15315
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Através da interpretação das falas dos entrevistados é que podemos obter algumas
respostas sobre o tempo do regime militar e sua influência na vida cotidiana do cidadão.
Mais do que nunca é necessário prezar pela memória (e também pelos motivos que nos
levam ao “esquecimento”), pois só assim, com a análise dos trechos do passado, é que
podemos evitar que tamanho ataque à democracia e aos direitos humanos se repita
novamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esses relatos contribuem para que possamos conhecer um pouco mais a influência da
ditadura militar na vida dos brasileiros e, sendo mais específico, como esse processo
ditatorial vai interferir em vários ambientes, em específico, o educacional.
Durante o governo de Costa e Silva (1967-1968) a ditadura militar impôs a Reforma
Universitária no intuito de acabar com as atividades estudantis subversivas.
Essa Reforma implantada durante a ditadura no Brasil produziu um novo paradigma na
educação superior no país, passando a existir uma padronização no sistema acadêmico
em todas as instituições de ensino superior, dentre os quais destacamos a introdução de
vestibular unificado e classificatório, dedicação exclusiva dos docentes, criação de
departamentos, adoção de regime de créditos, pós-graduação dividida em dois
momentos, isto é, mestrado e doutorado, dentre outras diretrizes.
O processo ditatorial no Brasil acabou, mas ficaram as cicatrizes, assim como os
prejuízos causados pelo sistema ditatorial que afetou, dentre outras instâncias, muitas
instituições de ensino superior. Possivelmente, a Escola Politécnica da Paraíba sofreu
bem menos intervenção, opressão e repressão do que, por exemplo, a UNICAMP, USP
ou UFMG mas, mesmo em menor grau, a vivência em um sistema opressor muitas
vezes não será percebida apenas nos depoimentos, como os mostrados ao longo deste
artigo, mas também no olhar, nos silenciamentos ou nos suspiros quando feitas
determinadas perguntas para alguns dos depoentes trazidos aqui. Tais atos, na maioria
das vezes, nos traz mais angustia do que o falado, pois são memórias que,
provavelmente, não se transformarão em palavras, talvez para que, desta forma, o
sistema opressor nunca voltem a acontecer novamente.
Analisar as opiniões e situações contemporâneas à Escola e à ditadura é esclarecedora
no que se refere aos pontos de vista que cada grupo social, por meio de representantes,
tinha sobre o golpe e sobre suas políticas de caráter opressivo.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.
AQUINO, Rubim Santos Leão de.Um tempo para não esquecer(1964-1985). Rio de
Janeiro, Consequência, 2012.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales – 1929 – 1989: A revolução Francesa da
Historiografia. Tradução de Nilo Odália, São Paulo: Editora Unesp, 1991.
229
O presente texto consiste num recorte da dissertação de mestrado intitulada “DAS REPRESENTAÇÕES
DOCENTES NAS TRAMAS DE MNEMÓSINE: Cartografias de “sedição” e “sedução” nos caminhos e
atalhos da História da Educação na ditadura militar (1964-1985)”, sob orientação do professor Dr.
Iranilson Buriti e defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da
Paraíba em 2013.
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A atuação do Estado autoritário, instalado em abril de 1964, configura-se mediante a instituição dos
chamados Atos Institucionais. Tais Atos consistiam em mecanismos jurídicos com vistas a manter a
“legitimidade” da Constituição Federal de 1946 mediante as ações de consolidação do estado de exceção.
Dentre os Atos Institucionais impetrados, destaca-se, pelo caráter coercitivo, o Ato número cinco. O AI-5
incorporou as disposições dos Atos anteriores, com o agravante de não ter limite de prazo para a sua
vigência; decretou o recesso do Congresso Nacional e dos órgãos legislativos estaduais e municipais por
quase um ano; suspendeu, por dez anos, os direitos políticos de vários parlamentares; determinou
profundas restrições às ações do judiciário e aboliu o habeas corpus para os crimes políticos (ALVES,
2005, p. 128-135).
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Art. 1º. Efetuar a revisão dos textos adotados para o ensino em seus
respectivos países a fim de depurá-los de tudo quanto possa excitar, no ânimo
desprevenido da juventude, a aversão a qualquer povo americano [...]. Art. 3º.
Fomente em cada uma das Repúblicas Americanas o ensino de História das
demais; procure em que os programas de ensino e os textos de História não
contenham apreciações hostis para outros países ou erros que tenham sido
evidenciados pela crítica; não julguem com ódio ou se adulterem os feitos na
narração de guerras ou batalhas cujo resultado haja sido adverso, e destaque
tudo quanto possa contribuir construtivamente à inteligência e cooperação
dos países americanos (BRASIL, 1969).
É significativo que um documento firmado no início dos anos 1930 seja editado
no Brasil em 1969. Perscrutando as suas páginas, observamos a tônica da “depuração”
dos temas da História de tudo aquilo que poderia provocar a aversão a outros povos
americanos. Ainda mais significativa é a declaração dos Estados Unidos, preocupados
com o ódio entre as nações americanas. Previam eles, já na década de 1930, a
contestação da cultura ianque na segunda metade dos anos 1960 no universo escolar-
juvenil?
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Não esqueçamos que um dos pontos atacados pelos/as estudantes/as, nas greves
de 1967, residem justamente na contraposição ao acordo MEC-USAID, bem como a
influência estadunidense no deslindar dos eventos políticos após 1964. Sob gritos
entoados de “um, dois, três, americano não tem vez”, o movimento estudantil
questionava a ditadura e a sua interseção nos diversos espaços da vida cotidiana.
Contando com o apoio dos estudantes secundaristas, representados em Campina, pela
arena de debate e embate no Colégio Estadual da Prata, os/as estudantes paralisaram as
atividades, povoando as ruas, praças e chegando, até mesmo, a acampar em frente à
reitoria da Universidade Regional, a URNe na oposição às políticas educacionais e a
tentativa de desmantelamento da resistência ao regime.
Praça da Bandeira. Com a chegada da polícia, alguns estudantes foram presos e levados
à sede do II Exército na cidade. Aos que, no momento, conseguiram escapar, foi
empreendida uma caçada pelos órgãos de repressão, que culminou com a prisão de
alguns outros na rodoviária da cidade.
A concentração pública teve o seu encerramento por volta das doze horas e
trinta minutos, quando os estudantes ostentaram uma bandeira norte-
americana, que recebeu o repúdio da multidão, sendo logo em seguida,
rasgada e queimada pelos estudantes. Enquanto o símbolo dos Estados
Unidos incendiava-se, suspenso por uma vara, toda a multidão composta de
estudantes e elementos de várias classes sociais, entoavam o hino nacional
brasileiro, até a bandeira queimar-se por completo (DIÁRIO DA
BORBOREMA, 1967, p. 4).
Após o AI-5, atores sociais são exilados das ruas e praças enquanto arena de
debates e espaços de oposição ao regime. Desertificadas, ouve-se apenas o baralho da
turba intimidando os/as protagonistas de outrora. A política adentra os espaços dos
lares, como visto no capítulo anterior. Outro espaço de exílio da esperança e que merece
nossa atenção, consiste nas salas de aula, aqui problematizadas pelas culturas escolares
do Colégio Estadual da Prata.
Retirada das ruas por força do AI-5, a juventude conflui aos espaços escolares. O
que não significa a ausência de vigilância e docilização vigente nesses espaços; mas que
aponta a capacidade múltipla que perpassa a suas redes de significação e conhecimento,
na medida em que o ato de consumo consiste numa própria poética que, apesar de se
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Art. 1º: comete infração disciplinar o professor, aluno ou empregado que [...]
III- Pratique atos destinados à organização dos movimentos subversivos,
passeatas, desfiles ou comícios não autorizados ou dele participe; IV-
Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua
material subversivo de qualquer natureza; V- Use dependência ou recinto
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constituem um dos fios das redes microbianas de poder, pelas quais este existe
encarnado em cada sujeito.
Se admitirmos as ideias de Certeau, quando diz que toda prática é, também,
“uso” que os praticantes fazem dos produtos colocados para consumo em seu cotidiano,
vamos perceber que é possível encontrar muito mais nos diários de classe.
Em um período de intensa repressão a qualquer atitude que “subvertesse” a
ordem instintuinte, a apropriação docente dos diários em questão deve ser interrogada
em meio às práticas e evidências orais. Nos diários de classe aqui em questão, nos
interessa muito mais do que nele está “registrado”, colonizado, inscrito; mas a
problematização dos usos, do consumo que se fazia deles nos interstícios da vida
escolar.
As aulas sobre a “segunda guerra mundial” eram, certamente, apropriadas pela
professora Josefa Gomes como espaço de analogia entre períodos históricos diferentes,
visando a “passagem” das mensagens que se queriam contestar. A fria observação
apropriada em seu diário esconde diversas práticas de consumo, apropriação e
ressignificação dentro da sala de aula.
FIGURA 1 – Diário de Classe da Professora Josefa Gomes de Almeida e Silva
Ano letivo de 1978
[...] tinha que usar metáfora mesmo e, por exemplo [...]. Por exemplo, assim
[...]. Tá falando sobre Hitler, né. Então quando a gente dava uma aula sobre
nazismo, Alemanha nazista. Então, eu mesma lembro que eu aproveitava pra
dar muito ênfase à questão da ditadura, né. Mostrar pra os meninos que este
sistema ditatorial, o nazismo, faltava a questão da liberdade que não existe. A
violência, tá, tá, tá. Então essa metáfora era justamente utilizar outro [...]
outro fato histórico em outro tempo. Mas eu lembro que eu dava muita
ênfase, adorava falar de Hitler porque eu estava falando (risos). Na verdade
eu estava falando do sistema. Mas [...] eu queria que os meninos entendessem
isso, né (SILVA, depoimento: [abr. 2012]).
Assim sendo, vamos compreendendo que o “currículo real” das escolas vai
sendo trançado tanto pelo “currículo oficial”, que dentro dela chegava por ações
governamentais, como também pelo currículo cotidiano que vai sendo criado a cada
momento, pelos praticantes da escola, no uso que circula naquele espaço-tempo, a partir
de suas tantas vivências em tantos outros cotidianos e das relações que o cotidiano
escolar estabelece com estes por meio de diversos conhecimentos, que entram na escola
encarnados nesses próprios praticantes.
Naquilo que se queria ou se dizia “estático, reprodutivo e homogêneo” uma
pluralidades de atuações vão se entretecendo e refigurando estéticas, memórias,
histórias e trajetórias dos mosaicos identitários que aqui nos dispusemos a oferecer uma
leitura.
A ação “subversiva”, afinal vitoriosa, possibilitada pela atividade bricoladora
inerente às suas “maneiras de fazer” evidencia-se através da urdidura de suas tramas
cotidianas a vivacidade que tece e entretece as trajetórias da História da Educação ao
longo de período fulcral na configuração histórica nacional.
REFERÊNCIAS E FONTES
______. Decreto nº. 68.065, de 1971. Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e
Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades dos
sistemas de ensino do país, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder executivo, Brasília, DF, 1971.
______. Lei Federal nº. 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o
ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder executivo, Brasília, DF, 1971.
______. Lei Federal nº. 5.700, de agosto de 1971. Institui datas de comemorações
cívicas em estabelecimentos de ensino e repartições públicas. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder executivo, Brasília, DF, 1971.
ENTREVISTAS TEMÁTICAS
ARAÚJO, Martha Lúcia Ribeiro. Martha Lúcia Ribeiro Araújo: depoimento [abr.
2012] Entrevistador: Ramon de Alcântara. Campina Grande: 2012. Suporte digital MP3
e MP4
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GT 5
RESUMO
Objetivamos com este trabalho investigar as mudanças relacionadas aos modos de
representar os corpos femininos pela imprensa recifense dos anos 1920,
especificamente, os das chamadas “Melindrosas”. Procedemos por meio da análise de
textos, imagens e anúncios publicados na revista A Pilhéria, e historicizamos as suas
formas de sociabilidades e representações, embasados conforme propõe a Historia
*
Mestrando em História Social da Cultura Regional
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Introdução
“naquela época recuada, bem raras as senhoras que iam fazer compras. O lar
ainda tinha um tanto de clausura e nem tudo ficava bonito para “uma mulher
direita”. O andar de loja em loja era uma dessas ações que não lhe
“assentavam”. E quando o faziam prescindiam do marido, do pai ou de uma
parenta já velha.” (SETTE, 1981, P. 28-29)
Dos recônditos do lar, às ruas e lojas. Das cozinhas e sala de estar, aos cinemas e
sorveterias. Das aulas de piano, às noites dançantes de charleston e Fox-trot, na Bijou.
Da passividade aparente das sacadas dos sobrados, aos flirts escancarados nas esquinas
da Rua Nova... Cada vez mais intensos e movimentados, os espaços de sociabilidades
abriam-se mais, proporcionando à presença feminina nas urbes do inicio do século XX
maior atividade e fluxo. As elegantes moças passaram a aparecer desacompanhadas de
maneira mais frequente, percorrendo ambientes outrora majoritariamente ditos como
masculinos. Seria pretenso erro de nossa parte afirmar que em períodos anteriores ao
século XX inexistissem atividades femininas nas ruas das cidades, ou que nenhuma
delas saísse às ruas, contudo, nos primeiros decênios desta centúria, maximiza-se esta
experiência, e tornava-se mais perceptível no âmbito da sociedade, de tal forma a gerar
estranheza inclusive a cronistas como Mário Sette.
Alguns historiadores e historiadoras costumam atribuir aos anos 1920 a
esplendorosa época das transformações sociais urbanas, um marco, quase “gênesis” da
modernização das cidades brasileiras. Contudo, esquivamos-nos desta assertiva em
partes. Recife não viveu “anos loucos” tal como Paris, mas os seus momentos de
“euforia” não devem ser ignorados, ou mesmo considerados inexistentes. Tomando
estes cuidados, aqueles que estudam a década de 1920 adentram conscientes a este
universo da pesquisa histórica, problematizando de forma mais sensata os documentos
desta época. Nós historiadores/as tendemos a atribuir - até mesmo de forma
inconsciente - ao nosso recorte de pesquisa, como sendo ele a “origem de...”, contudo,
acreditamos ser mais sensato olhar para esta época como um tempo de maior
visibilidade e evidência nas modernizações urbanas e uma etapa marcante no que
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No Brasil, “A Emancipada.”
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Para definir flirt, usaremos as palavras de Almeida Garet: “To flirt é um verbo inocente que se conjuga
ali entre os dois sexos, e não significa namorar — palavra grossa e absurda que eu detesto —, não
significa «fazer a corte»; é mais do que estar amável, é menos do que galantear, não obriga a nada, não
tem consequências, começa-se, acaba-se, interrompe-se, adia-se, continua- se ou descontinua-se à vontade
e sem comprometimento”. GARRET, Almeida Viagens na Minha Terra
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descreveu o cronista Mário Sette sobre a euforia que se sentia ao passar na frente do
Cine Pathé, em Recife:
Convidativo, confortável, vistoso, tipo dos do Rio de Janeiro, Êxito
formidável. Revolucionou o Recife inteiro. Quer nas vésperas, quer à noite
cheiíssimo. As calçadas ficavam tomadas e os bondes passavam a custo.
Comprar um bilhete significava uma vitória. (SETTE, 1981, P. 110)
Mas voltemos aos periódicos. Observamos agora, a diferença do discurso proferido
pelos colaboradores do jornal A Província, e os da revista de variedades e chistes, “A
Pilhéria”: Em A Província de 28 de setembro de 1924, encontramos um texto curioso,
assinado por Alvear de Thales, de título: “A dissolução da sociedade”, e que aqui
trazemos um trecho:
“devassos são os pais que, admiram as filhas quando bem decotadas e semi-
nuas, devassas são as filhas que procuram captar para seus corpos no footing
[...] os olhares dos almofadinhas233.”
Alvelar preocupava-se em silenciar os corpos femininos. Esta posição de silêncio por
séculos relegada ao corpo das mulheres, é assunto que nunca deixou de estar em pauta.
Contudo, mesmo diante de tantas mazelas atribuídas equivocadamente à
responsabilidade das mulheres durante a história, seu corpo, sua beleza não deixaram de
ser objeto de desejo masculino. “O corpo feminino [...] é onipresente: no discurso [...]
quadros, esculturas, cartazes que povoam as nossas cidades.” (PERROT, 2003. P 13) E
isso inclui os escritos da imprensa. Diferentemente de A Província, em A Pilhéria,
número 94, de 1923, observamos uma opinião bastante positiva, escrita em versinhos,
acerca das melindrosas. A opinião de Jeff, em resposta à coluna “Perguntas de Mutt e
respostas de Jeff” diz o seguinte:
Mutt, as nossas melindrosas,
São irmãs puras das rosas
Nascidas entre boninas;
Todas elas tem pra mim
O perfume do jasmim
Nas verdejantes campinas.
Jeff.
233
Uma figura também de extrema relevância no universo dos anos 1920 foi a do almofadinha. Estes
andavam pelas sombras das melindrosas, bem vestidos, com ternos engomados, eram rapazes modernos,
que aos poucos foram criando também um estilo próprio. Os almofadinhas lançavam olhares, cortejavam,
se barbeavam bem, perfumavam-se, desenhavam seus bigodes pequenos usavam calças mais apertadas e
curtas atreviam-se a dançar os mais diversos estilos (coisa impensável a um homem comum da época) o
momento da dança e do footing eram oportunidades ideais para o bom flirt com uma melindrosa.
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REFERENCIAL
Fontes:
A Pilhéria nº 99 - 1923
A Pilhéria nº 164 - 1924
A Pilhéria nº 204 - 1925
A Pilhéria nº 219 - 1925
A Pilhéria nº 386 - 1929
A Pilhéria nº 94 - 1923
(Edições digitalizadas e disponíveis no site da Fundação Joaquim Nabuco – Recife:
http://www.fundaj.gov.br; e também no site Domínio Público, do Governo Federal
http://www.dominiopublico.gov.br )
Bibliográfico:
1. Introdução
234
Esse projeto tem como coordenadora a professora do Colégio de Aplicação Natália Barros, que
atualmente vêm desenvolvendo pesquisas que envolvem a temática de gênero e Ditadura Militar. Projeto
registrado na coordenação de pesquisa e extensão do Colégio de Aplicação – CE – UFPE.
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representações dos sujeitos que atuaram na época. Eis que surge um problema muito
comum para os filmes denominados históricos: a cobrança do público em encontrar
neles a verdadeira versão do passado. Nesse sentido, representar um momento recente
na História do Brasil que trouxe muitas dores e perdas em um filme é ter que conviver
com cobranças que tratam deste conflito entre ficção e realidade. E é nessa atmosfera
em que os filmes analisados neste artigo estão inseridos, atravessando as barreiras da
realidade e da ficção.
Portanto, acreditamos que a produção fílmica utilizada como fonte
historiográfica pode ser encarada como uma representação de um determinado passado.
Ou seja, os filmes históricos, não exprimem uma verdade absoluta ou um produto
fidedigno de um pensamento contemporâneo sobre o fato histórico (COLLING, 1997).
Cremos que esta demonstra uma possibilidade de como uma narrativa histórica pode ser
contada, observando sempre as posições políticas que ela representa. Nesse sentido,
temos que ficar atentos para não entendermos estas representações como ingênuas e sem
sentido, pois elas estão imersas num contexto e são determinadas por interesses de
grupos que as construíram. No caso das representações elaboradas pelos filmes
analisados, devemos percebê-las como imagens cheias de sentido, conduzidas por
grupos que, inseridos em um contexto específico (anos após o período de
redemocratização brasileira), buscaram retratar o Regime Civil-Militar como um
momento histórico de muita tensão, que abalou as conjunturas políticas, sociais e
culturais do país e que deve ser sempre relembrado e discutido.
Ainda pretendemos analisar as representações femininas nos filmes propostos,
buscando tecer uma análise a partir do conceito de gênero, não reproduzindo os
estereótipos construídos sobre as atuações das mulheres no mundo social – como
indivíduos restritos ao espaço doméstico com pouca atuação pública e política – e as
encarando como sujeitos que tiveram grande participação em momentos históricos de
tensão no Brasil, como foi o Regime Civil-Militar, atuando, muitas vezes, na liderança
de movimentos políticos que buscavam a democracia.
2. A militância feminina em tempos de ditadura: a análise dos filmes “O que isso
Companheiro?” e “Lamarca: o Capitão da guerrilha”
Durante muito tempo, diversos grupos sociais foram escondidos e subjugados da
História oficial, desconsiderados e tendo as suas ações minimizadas, a exemplo dos
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235
Blogueira feminista. O silêncio da nossa história. Disponível em:
<HTTP://blogueirafeminista.com/2011/02/o-silencio-da-nossa-historia/>.In: TELES, Amelinha; Leite,
Rosalina Santa Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no
Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013.
236
CARVALHO, LuisMaklouf. “Mulheres que foram à luta armada.” Marie Claire. Ed. Abril, set. 1996.
Disponível em: <HTTP://juntosomos-fortes.blogspot.com.br/2010_06_13archive.html>.In: TELES,
Amelinha; Leite, Rosalina Santa Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo
pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013.
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família brasileira passando por transformações que abalaram toda uma conjuntura social
- ao público. Isso acontece por vários motivos, já que as mulheres agora têm o direito
de experimentar o prazer sexual sem a preocupação de terem uma gravidez indesejada
com o advento da pílula anticoncepcional, podendo, portanto, ter o direito ao orgasmo e
a escolha de tornar-se mãe. (TELES; LEITE. 2013) Além disso, elas passam a se inserir
no mercado de trabalho e na vida pública, competindo com os homens às vagas nas
empresas e fábricas brasileiras, se retirando, aos poucos, do lar, espaço a elas destinado.
Ganhando as ruas, as mulheres ingressavam naquele momento para o cenário público,
lutando em favor de garantias próprias por meio de atitudes reprováveis para a
sociedade machista da época237, muitas delas, inclusive, ingressando para a militância
política, tomando, muitas vezes, a frente de lideranças armadas.
Neste artigo analisamos as representações de três personagens femininas que se
dedicaram a militância política em filmes produzidos nas décadas de 1990 e 2000. No
filme “O que é isso companheiro?”, investigamos as personagens Maria (Fernanda
Torres) e René (Cláudia Abreu), em “Lamarca: o capitão da guerrilha”, no qual
podemos perceber a atuação a guerrilheira Clara (Carla Camurati).
2.1 Mulheres também pegam em armas: as militantes do filme “O que é isso
Companheiro?”
Tendo sido lançado em 1997, o filme O que é isso Companheiro procura retratar
aspectos da luta armada existente no Brasil durante o Regime Civil-Militar iniciado em
1964. Com a direção de Bruno Barreto, o aspecto central do filme é o sequestro ao
embaixador dos Estados Unidos no Brasil em 1969. Esta película é uma releitura de um
livro escrito por Fernando Gabeira que leva o mesmo título, lançado em 1979238.
O filme O que isso companheiro, contou com atores como Pedro Cardoso
(Fernando), Selton Melo (César), Luiz Fernando Guimarães (Marcão), Fernanda Torres
(Maria), Cláudia Abreu(Renée) dentre outros. O começo da história se dá quando
Fernando e César explicam a um amigo suas decisões de seguir para a luta armada
através do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Após seu ingresso nesta
237
Segundo Ana Maria Colling a mulher militante política, que se insurgia contra a política golpista e
fazia oposição ao lugar destinado à mulher era encarada pela política repressora como a Puta Comunista.
(COLLING, 1997. p. 7)
238
Segundo Denise Rolemberg, o livro “O que é isso companheiro” vendeu mais de 250.000 exemplares
e contou com 40 edições, e o filme de Bruno Barreto veio com a intenção de consolidar a obra do
jornalista.
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militante do MR8 chamada Vera Silva Magalhães,que não se sentiu bem retratada no
filme, sobretudo, pelas características “vulgares”de Renée ao se insinuar ao segurança,e
por ter sido retratada como uma mulherzinha frágil. Segundo Vera “(...) isso não
aconteceu, houve um flerte e nada mais (...)” (AGUIAR, 2007.p. 189). Além disso,
Vera também argumenta que no filme os personagens militantes foram representados
“como pessoas estúpidas, quase bárbaras, enquanto o torturador é humanizado. Isso me
incomoda. Quem foi torturada fui eu, não foi o senhor Bruno Barreto.” (AGUIAR,
2007.p. 189)
Sobre esta questão da humanização do torturador, utilizando a ideia de Daniel
Arão Reis Filho introduzida no texto “Esquerdas revolucionárias e luta armada” de
Denise Rolemberg, tanto a obra de Gabeira quanto a de Bruno Barreto narram histórias
que tiveram grande aceitação do público por retratar um caráter de conciliação entre
militantes e militares. “O reencontro de 1979 e dos anos seguintes criou um fosso entre
o passado e o futuro, como se para fazer este fosse preciso esquecer aquele.”
(ROLEMBERG, 2009. p. 77)
Percebemos ainda que, durante todo o filme, a personagem em questão é
representada com um comportamento seguindo os padrões de feminilidade da época,
mesmo atuando como guerrilheira, já que é retratada lavando as roupas do embaixador
(já no cativeiro), e quando encarregada de cuidar de um ferimento na cabeça do mesmo
(lesão ocorrida durante a ação do sequestro). Além disso, a garota que possuíatodos os
“dotes” dito acima, também mostra ter certa intelectualidade destacável, já que é
representada como alguém que fala inglês fluentemente, que se comunica com o
embaixador no cativeiro. Vale ressaltar, que apenas Renée e Paulo tinham esta
qualificação dentro do grupo.
Contrapondo-se à Renée estava à guerrilheira Maria, líder do MR8 que ensinou
os novos recrutas da guerrilha a atirar, demonstrando um grande domínio das armas.
Ademais, Maria, cuidava da disciplina dos treinamentos que, com certeza, parecia com
um treinamento militar, sempre com a preocupação de ter um grupo coeso e focado,
inclusive, tendo uma linguagem dura quando havia erros no treinamento. Diferente de
René, Maria não era nada doce. Sempre dura, ela não tinha “dotes convencionais” para
uma mulher. Apesar de toda esta liderança e dureza, é bastante interessante o respeito
que Maria possuía pelos antigos guerrilheiros, não apenas por medo mais também por
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sua história. Se o relacionamento de Maria com os outros guerrilheiros do MR8 era em,
alguns momentos, intransigente com os antigos membros da ANL, convidados para
operação do sequestro, a situação não era a mesma. Neste momento, tanto Maria quanto
os outros integrantes do MR8, tornam-se subjugados aos membros da ANL, que desde o
primeiro momento se colocam em tom de dureza, ameaçando até assassinar aqueles que
por ventura viessem a ter vacilâncias em relação a alguma ordem.
Com a perda da liderança é perceptível que Maria começa a mudar. Na ocasião,
estando na categoria de mais uma subordinada, ela passa a ser representada com
características mais “femininas”, ou seja, conforme o senso comum, “torna-se mais
sensível”. Outra situação de relevância é a representação da personagem como uma
grande ponte entre as ordens dos líderes da ANL para com os companheiros do MR8.
Maria reconhece as qualidades do companheiro Paulo (tão criticado por não possuir
aptidões de tiro), sobretudo por sua boa escrita e pela ideia de ter sido ele o principal
idealizador do sequestro. Com ele, Maria vive um pequeno romance, não apresentado
no filme como enredo principal. O interessante a destacar é que no primeiro beijo entre
Paulo e Maria, a guerrilheira se mostrava assustada, dando a impressão que seria
alguém que nunca imaginaria ter aventuras amorosas, ou seja, seu foco sempre esteve a
cargo do movimento de resistência. Sendo assim, Bruno Barreto apresenta esta mulher
dura e rígida, líder de uma militância política, amolecendo ao longo do filme,
demonstrando, através do romance com Paulo, a face de uma mulher que também se
emociona e mostra fragilidades. A forte guerrilheira iria quebrar uma das regras do
movimento ao revelar seu verdadeiro nome ao companheiro Paulo: Andreia. Após o
sequestro e a libertação do embaixador, o grupo se dissolve. No entanto, Maria e Paulo,
continuam se encontrando até o momento que são capturados pelos militares,
ocasionando a separação do casal só terminada com a extradição deles para Argélia, em
uma outra ação de sequestro e troca de alguns presos políticos.
Os casos de René e Maria, apesar de diferentes, demonstram grande importância
no filme. Enquanto a primeira é retratada como alguém doce, de fita no cabelo e
inexperiente, embora corajosa, Maria é tratada como uma típica militante política,
focada em um objetivo maior. Por exemplo, enquanto Renée lia revista sobre o
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239
Festival de música com o público jovem ocorrido dos EUA contra a intervenção norte americana no
Vietnã, o qual foi uma das maiores representações da contra cultura no período.
240
Estamos nos referindo à lendária Maria Bonita, esposa do cangaceiro Lampião, que bravamente lutava
ao seu lado pelos sertões nordestino.
241
O filme foi baseado no livro biográfico sobre este mesmo revolucionário escrito por José Emiliano e
Miranda Oldack.
242
Clara é a representação da história de Iara Iavelberg, psicóloga, esteve ligado ao movimento estudantil.
(TELES; LEITE. 2013) Conforme a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Iara foi membro de
movimentos tradicionais de guerrilha como a VPR (Vanguarda Popularrevolucionária), o MR8
(Movimento Revolucionário 8 de outubro), POLOP (Organização Revolucionária Marxista Política
Operária), dentre outros. Disponível em: http://www.comissaodaverdade.org.br/caso_integra.php?id=6.
Acesso em: 11/02/2014.
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Cuba. Além disso, Clara se mostra com hábitos bastante diferenciados dos
convencionais para uma mulher de seu tempo. Fumante compulsiva, cabelos
provocantes, um jeito autônomo que tentava se mostrar como alguém forte, a qual não
tinha reservas para falar de sexo, Clara, consegue seduzir o famoso capitão da guerrilha.
É importante ressaltar, que o filme mostra claramente as tentativas de Carlos Lamarca
em se esquivar desse romance, talvez, por achar que isso apenas atrapalharia a guerrilha
e os mecanismos de luta. Muito embora, uma das funções de Clara fosse a de fingir que
era a esposa de Lamarcapara não levantar suspeitas entre as vizinhanças dos inúmeros
locais que serviram para que os militantes se escondessem. Isso fica bem caracterizado
por Ana Maria Colling: “(...) a mulher, militante política é encarada como ser desviante,
não a mulher normal e desejada. Esta estava no espaço a ela destinado. No santuário do
lar, cuidando do marido e dos filhos” (COLLING, 1997. p. 7).
Ainda nesse aspecto de subversão de costumes, Clara não estava nem um pouco
apegada ao santuário do lar, uma vez que, no filme é perceptível o desprendimento da
personagem com uma possível família, já que em uma das cenas ela relata que teria sido
casada, porém nunca teria tido filhos. “Houve mulheres que se afastaram de seus
companheiros/maridos para irem à luta e outras os escolheram na própria luta armada.”
(TELES; LEITE 2013, p 31). Além disso, podemos comparar a personagem em
questão com outra: a “esposa oficial” de Carlos Lamarca, Marina (Deborah Evelyn).
Apesar de uma participação relativamente pequena, a personagem demonstra ser uma
senhora do lar, alguém de vida convencional que vivia para zelar por sua família, além
deser fiel ao marido. A respeito da obediência nos chama atenção, por exemplo, a ida de
Marina e filhos para Cuba a mando de Carlos Lamarca que pretendia dar segurança a
sua família contra qualquer represaria do Regime. Ainda comparando Marina com Clara
percebemos que embora ambos tenham conquistado Carlos Lamarca vemos formas de
se relacionar bastante diferentes. Enquanto Marina é uma figura submissa ao marido,
Clara não possuía esta mesma característica com Lamarca, pois iniciava discussões e
aversões a algumas ordens do seu parceiro como, por exemplo, sua ida a Bahia (onde
foi assassinada243) local onde Lamarca se refugiou pela última vez antes da sua morte.
243
Iara, representada no filme como Clara morreu em agosto de 1971, em um apartamento na Bahia.
Segundo a Comissão da Verdade de São Paulo, Iara foi assassinada por militares, embora na época tenha
sido enterrada no setor de suicidas do Cemitério Israelita do Butantã. . Disponível em:
http://www.comissaodaverdade.org.br/caso_integra.php?id=6. Acesso em: 11/02/2014.
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É importante frisar a relação de Clara com os outros militantes. Ela era protegida
pelo grupo, embora devamos considerar que poderia representar “a primeira dama da
guerrilha”. Percebemos que apesar de toda a importância para VPR, Clara, jamais
poderia ser interpretada como uma protagonista, ou seja, o seu papel no filme é
subvalorizado. No entanto, notamos que a ação de Clara vai além de uma militância
contra um regime opressor, já que a personagem representa uma revolucionária de uma
época, alguém que escolheu lutar contra os “tabus” impostos pela mulher no período. O
filme deixa subentendido ao público que ela teria se envolvido no passado com o
personagem, Zequinha (Eliezer de Almeida), o qual militou com Lamarca o ajudando
no interior da Bahia, além de ter sido executado junto com o capitão: “Seus corpos
foram expostos na cidade e chutados em campo de futebol, para que isso servisse de
exemplo ao povo (...)” (MACIEL, 2006, p.120). Durante o filme, Zequinha leva o jantar
de Lamarca onde o capitão estava escondido na mata, o personagem baiano pergunta
por Clara e revela que a conheceu em algum momento da sua vida, em 1968 (a história
do filme se passa em 1971). Podemos deduzir que Clara era uma militante já experiente
que, diferente do capitão, possuía ideais antigos da esquerda. Já Lamarca, embora tenha
sido ilustre guerrilheiro, torna-se opositor do regime por questões menos políticas e
mais sociais, algo bem demonstrado no filme.
A trajetória de mudança de Lamarca é marcada pela iniciativa de ousar
pensar por si mesmo, questionar e se indignar com as condições de vida
dentro do próprio Exército, sensibilizando-se ainda com a dura realidade do
seu país. Então, resolveu agir, abandonando uma carreira que poderia lhe
trazer seguranças e vantagens pessoais (MACIEL, 2006, 117).
Conclusão
Ao analisar esses filmes produzidos na década de 1990, período em que o Brasil
se reestruturava e “solidificava” a democracia (ou pelo menos o desejo dela),
percebemos que, embora passássemos por uma abertura política, na qual se venerava a
liberdade e a democracia, no âmbito cultural, ainda estávamos presos às amarras de uma
sociedade historicamente patriarcal e conservadora, cujos valores foram formados desde
sua colonização. Inserida neste contexto, a representação do feminino na produção
cinematográfica nesta década, ainda parecia muito tímida e sem muita expressão,
retratando a mulher como personagem coadjuvante em histórias contadas
essencialmente por homens, algo bem constatado neste artigo.
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Referências
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
COLLING, Ana Maria, A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro, Rosa dos Ventos, 1997.
Nacional Estadual da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. Disponível em:
http://www.comissaodaverdade.org.br/caso_integra.php?id=6. Acesso em: 11/02/2014.
*
Graduando em História (Universidade Federal Fluminense - UFF)
e-mail: uchoa.amorim@gmail.com
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acadêmico, não provocando constantes revisões das premissas das demais áreas de
pesquisa.
244
Para uma explicitação da história da história das mulheres e das relações de gênero, ver: SOIHET,
Rachel e PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de
Gênero. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 54, p. 281-300 – 2007, pg. 285.
245
Para mais informações acerca do da trajetória do conceito de gênero ver: PEDRO, Joana Maria.
Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na análise histórica. IN: HISTÓRIA, SÃO PAULO,
v.24, N.1, P.77-98, 2005.
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246
Para consulta de um exemplo da participação das mulheres no apoio ao golpe, ver: CORDEIRO,
Janaina Martins. Direitas em Movimento: A Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no
Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
247
BASTOS, 2008, 45-46.
248
Sabendo dos debates recentes acerca do caráter de resistência ou não desses movimentos, cabe deixar
claro que consideramos as organizações da luta armada como resistência seguindo os apontamentos de
Marcelo Ridenti: ”O fato é que se instalou um regime militar no Brasil, e naquela conjuntura a ação dos
grupos armados tomou a forma de resistência contra a ditadura, mesmo que o projeto guerrilheiro fosse
anterior a ela e não pretendesse ser só uma resistência” (RIDENTI, 2010, 64).
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algumas características foram eleitas como estruturais nessa nova moral. A “iniciativa”,
a frieza na luta, a habilidade no manuseio de armas e a coragem, eram os atributos
valorizados (BACK, 2001, 5-6). Isso se relaciona direto à participação das mulheres
nessas organizações, uma vez que as características historicamente ligadas ao mundo
feminino, numa perspectiva de longa duração, contrastam com essas. Segundo Rachel
Soihet, pode-se encontrar desde Rosseau e Diderot saberes e representações que
apresentam o homem ligado à “coragem e a razão”, e a mulher à “beleza e ao
sentimento” (SOIHET, 1997, 3-4).
Miriam Nascimento, em texto sobre as relações de gênero nas esquerdas
armadas no Brasil, também vai ao encontro desses apontamentos. Além de ser mais uma
a assinalar a participação quase exclusiva das mulheres nos afazeres domésticos dos
“aparelhos”, também destaca a utilização das associações do mundo feminino como a
maternidade e a sujeição da mulher ao marido contra os militantes nos momentos de
tortura por parte da repressão. Em poucas linhas, a autora resume suas reflexões dizendo
que:
muitas mulheres sofreram preconceito no interior das organizações e
realizaram tarefas “tipicamente femininas”. Outras chegaram à direção de
organizações e tiveram que se “masculinizar” para chegar lá e manter-se. A
manutenção das construções de gênero pôs a segurança de alguma delas em
risco, especialmente em tarefas de “levantamento” de informações para futuras
ações. E, ainda, que tais construções de gênero eram compartilhadas tanto por
grande parte dos militantes como pelos responsáveis pelas torturas, numa
mostra de que a sociedade como um todo compartilhava tais culturas em
relação a “papéis” e funções específicas para homens e mulheres.
(NASCIMENTO, 2012, 13-14)
Com os apontamentos dessas pesquisas, observa-se que essa memória de
libertação das mulheres em oposição às mães, esposas e donas de casa devem ser vistas
dentro do contexto de construção dessa representação, uma vez que a dinâmica das
relações de gênero influenciou diretamente a atuação das mulheres dentro dessas
esquerdas. Responsáveis pelos afazeres domésticos, expostas a perigos quando iam
levantar informações e a tipos de torturas específicas, essas mulheres tiveram suas
atuações inferiorizadas em relação aos homens devido às hierarquias de gênero
historicamente construídas. E nos filmes sobre a ditadura que fazem parte da “luta de
memórias” acerca da participação desses grupos armados e da sociedade na ditadura,
como essas relações de gênero são representadas?
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A historiadora, apoiada nas reflexões de Daniel Aarão, entende que essa ênfase na luta armada esteja
ligada ao fato de muitos sujeitos ligados a essas organizações e a setores de esquerda hoje se encontrem
ligados a setores do governo e ocupando cargos de “formadores de opinião”. (SANTOS, 2009, 40)
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decisões tomadas pelo grupo, e o domínio da razão com suas falas quase panfletárias250.
Ele só “erra” uma vez. E esse erro é provocado pelo amor. Segundo Santos:
Reforçando o aspecto individualista do protagonista, outra cena em flashback
demonstra um único momento de fraqueza de Lamarca, porém com a intenção
de ressaltar o seu lado amoroso, em relação a Iara Iavelberg (interpretada por
Carla Camurati). Questionado por um companheiro, que reclama da presença
de sua amante nos treinamentos na mata de Jacupiranga (afinal, todos os
guerrilheiros haviam deixado seus familiares para trás) (...) Quando Lamarca
erra e demonstra fraqueza, erra por amor. E, mais uma vez, toma uma atitude
individualista perante o grupo. (SANTOS, 2009, 47-48).
Fazendo uma análise fílmica251 a partir das relações de gênero, não é difícil
identificar que a construção da figura do herói-guerrilheiro Lamarca no filme se dá a
partir da exacerbação de aspectos tidos, social e historicamente, como masculinos. E, de
forma não surpreendente, quando é consensual perante seus pares o “erro” de Lamarca,
este está ligado ao amor a sua mulher, a militante Iara Iavelberg...
Dessa forma, observa-se que a construção da representação do herói Lamarca se
dá pela acentuação de características tidas como masculinas, enquanto características
tidas como femininas são associadas a “erros” ou não são representadas – como no caso
em que Lamarca decide sem titubear o não justiçamento do embaixador252 –, o amor e a
indecisão na tomada de decisões. A valorização da figura desta personagem, assim,
assinalada no filme como representante da sociedade brasileira na dura batalha de
resistência ao regime militar se apresenta como um “machão”. Frieza, firmeza na
tomada de decisões, posturas autoritárias, domínio da razão e habilidade no manejo de
armas são trazidas de forma quase essencializada na figura do homem guerrilheiro.
Já o outro tipo de representação do guerrilheiro que Marcia Santos aponta é
encontrado em Thiago, interpretado por Leonardo Medeiros, protagonista do filme
Cabra-Cega, do diretor Toni Venturi e do roteirista Di Moretti. Segundo a autora,
Thiago não é representado com um herói mítico das esquerdas que resistiu de maneira
corajosa à ditadura, mas sim, como um homem que, experimentando os anos mais duros
da repressão a essas organizações, vivia intensas angústias, conflitos e fraquezas
pessoais.
250
SANTOS, 2009, 45-46.
251
A abordagem teórico-metodológica presente nas análises aqui feitas sobre os filmes têm suporte na
metodologia desenvolvida por Marc Ferro. Ver: FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro Paz e
Terra, 1992.
252
Sobre este episódio, ver SANTOS, op. cit, 45.
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que em situações extremas como estas, tanto na Espanha quanto no Brasil, “as perdas
são as mesmas”... Essas falas se encaixam perfeitamente nas representações e
construções de saberes de longa duração entre os mundos masculino e feminino, onde o
racional tem endereço certo no primeiro sexo e as emoções no último.
Assim, a “humanização” de Thiago identificada por Sousa Santos, através dessa
análise sob o prisma das relações de gênero, se torna inteligível uma vez que o
guerrilheiro vai se aproximando de Rosa e Dona Nenê durante a trama, ambas
construídas como pessoas extremamente sensíveis e atentas para questões emocionais e,
até, existenciais. As caracteristicas masculinas de Thiago começariam a se mesclar com
as dessas duas personagens tirando o guerrilheiro de uma posição mais próxima dos
mitos-heróis de filmes como Lamarca, e tornando-o mais complexo, em resumo, mais
“humano”.
4. Conclusão
Após mergulhar em alguns estudos acerca da atuação das mulheres nas ações
armadas no Brasil e dos usos das representações de gêneros para a hierarquização dos
membros dessas organizações, acarretando na posição inferior ocupada pela mulher no
interior dessas organizações e analisar a representação do guerrilheiro Thiago no filme
Cabra-Cega, podemos fazer algumas reflexões conclusivas.
Sobre a participação das mulheres na luta armada contra a ditadura, seguindo as
autoras apresentadas, podemos ver que a confluência de dois fatores parecem ter
favorecido a posição que estas mulheres encontraram nessas organizações. Primeiro, foi
o conjunto de características valorizadas na moral desses grupos, que acabaram
privilegiando aquelas que historicamente são associadas ao sexo masculino.
Imprescindível, contudo, é deixar claro que somente isso não pode ser apontado como
fator responsável pelas hierarquias desiguais que se construíram entre homens e
mulheres nas guerrilhas, uma vez que existiam – e existem! – mulheres que tinham estas
características ainda mais explícitas do que em muitos homens. Porém, o que as
pesquisas apontam é que mesmo apresentando tais qualidades, muitas mulheres tiveram
que se “masculinizar” para ganharem prestigio ou, simplesmente, era ignorada a
existência de coragem ou frieza necessária para as ações diretas pelo simples fato da
militante ser mulher.
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“Enfim, o filme Cabra-Cega propõe uma leitura cinematográfica da luta armada significativamente
diferente dos filmes anteriormente analisados. O guerrilheiro não é apresentado de forma simplista e
monolítica, como costumava predominar nas representações cinematográfica sobre o tema. Ele não deixa
de ser o protagonista da trama, de ter o seu papel político valorizado nas telas, mas não é mais o
guerrilheiro-herói, impecável em suas atitudes, com discursos didáticos e altamente convincentes, que
possui uma visão madura e total discernimento sobre o momento histórico do qual participa. Sobressai-se
o lado humano desse guerrilheiro, que comete erros, que se angustia com as escolhas feitas, que ora está
convencido das causas políticas pelas quais está lutando e ora está em busca dos afetos e da vida
particular perdidos.” SANTOS, op. cit, 75.
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Bibliografia:
SOIHET, Rachel e PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das
Mulheres e das Relações de Gênero. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.
27, nº 54, p. 281-300 – 2007.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.
SANTOS, Marcia de Souza. A ditadura de ontem nas telas de hoje: representações da
ditadura militar no cinema brasileiro contemporâneo. (Dissertação de mestrado,
Universidade de Brasília, 2009)
NASCIMENTO, Mirian Alves do. Relações de gênero e a participação das mulheres
na Nova Esquerda no Brasil (1964-1979). Disponível em:
(http://www.encontro2012.historiaoral.org.br/site/anaiscomplementares#M) Último
acesso em 17/12/2013.
SOIHET, Rachel. Violência simbólica: saberes masculinos e representações femininas.
IN: Revistas Estudos Feministas, Florianópolis, v.5, n. 1, 1997.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Disponível em:
(http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=2&v
ed=0CDEQFjAB&url=http%3A%2F%2Fdisciplinas.stoa.usp.br%2Fpluginfile.php%2F
6393%2Fmod_resource%2Fcontent%2F1%2FG%25C3%25AAnero-
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ISBN: 978-85-415-0440-9.
Joan%2520Scott.pdf&ei=vZawUq_XIcXJkAfjtoHQBg&usg=AFQjCNF9R4lLc5ntrRt0
gN-hixYtcop-Nw&sig2=u2Tc-GfJvJhPzraTP59Pew) Último acesso em 15/12/2013.
BASTOS, Natalia de Souza. Perdão então, eu sou gente para mais além do meu sexo: A
militância feminina em organizações da esquerda armada. IN: Gênero, Niterói, v.8,
n.2, p-43-71. sem. 2008.
BACK, Lilian. Moral revolucionário e a construção do “homem novo” na esquerda
armada revolucionária. IN: Anais ANPUH, São Paulo, Julho 2001.
CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólicas. IN: Cadernos
Pagu, (4) 1995: pp. 37-47.
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro Paz e Terra, 1992.
1. Introdução.
A nossa escolha por participar de algum destes grupos, como salienta Bourdieu, jamais
seria neutra ou neutralizada, tendo em vista que tais escolhas são fruto do meio e da
estrutura social em que vivemos – e assim, buscaríamos nos identificar com nossos
“pares”. Desta forma, perceberíamos a moda a partir das considerações deste autor
como mais um fator que subjulga os indivíduos numa sociedade capitalista, classista e
que é profundamente excludente.
Já Maria da Graça Jacintho Setton, socióloga e docente da USP, observa a
importância da moda através de três perspectivas: a) o processo de socialização que a
moda promove entre os indivíduos através da sociologia da cultura254; b) em seguida, a
autora pondera que através do conceito de habitus255 é possível observar a moda como
um diálogo entre os indivíduos e/ou os grupos com a sociedade, resultando na expressão
destes; c) por fim, Setton também pontua que a ideia de distinção é fundamental para
compreender a moda tendo em vista que, além de socialização, existe uma classificação
hierárquica dos grupos sociais promovida por tal identificação.
Para além da sociologia, o filosofo francês Gilles Lipovétsky prontificará nas
obras ‘Os Tempos Hipermodernos’ (2004), ‘O Luxo Eterno’ (2003) e ‘A Era do Vazio’
(1983) a densa ligação entre moda e modernidade, até a atualidade, criando a partir
destes estudos o conceito de hipermodernidade, ou seja, como a nossa sociedade pós-
moderna perde o interesse nas instituições morais, sociais e políticas ao mesmo tempo
em que supervaloriza uma sociedade hedonista que convive com inúmeros
254
Raymond Williams, em texto de 1981, assim define a sociologia da cultura: “dentro das categorias
tradicionais, a sociologia da cultura é encarada como uma área ambígua. Nas listagens mais comuns de
campos da sociologia, ela é incluída, quando isso acontece, como um dos últimos itens: não apenas depois
do material mais consistente sobre classes, indústria e política, família ou crime, mas também como um
tópico de variedades depois das áreas mais definidas da sociologia da religião, da educação e do
conhecimento (...). A moderna convergência, incorporada pela sociologia contemporânea da cultura, é de
fato uma tentativa de reelaborar, a partir de determinado conjunto de interesses, aquelas idéias gerais,
sociais e sociológicas, nas quais foi possível conceber a comunicação, a linguagem e a arte como
processos sociais marginais e periféricos ou, quando muito, como secundários e derivados. Uma moderna
sociologia da cultura, quer em estudos que lhe são peculiares, quer em suas intervenções numa sociologia
mais geral, preocupa-se acima de tudo em investigar, ativa e abertamente, a respeito dessas relações
possíveis e demonstráveis. Como tal, ela não só está reelaborando sua própria área, como propondo novas
questões e novas evidências para o trabalho geral das ciências sociais”. Cf. WILLIAMS, 1992, pp. 09-10.
255
O conceito pode ser entendido da seguinte maneira, para Setton: “conceito capaz de conciliar a
oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais. Capaz de expressar o diálogo, a
troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades. Habitus é
então concebido como um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições
estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em
condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir
cotidiano”. Cf. SETTON, 2002, p. 63.
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O tiro de Getúlio Vargas frustrou a nação brasileira. Antes de sua misteriosa morte,
Vargas obtinha uma forte articulação política e um plano de governo
desenvolvimentista com ênfase na indústria e nos investimentos para o mercado interno
e externo. Juscelino Kubitschek, sucessor presidencial, deu continuidade ao trabalho de
crescimento industrial e econômico, construiu Brasília em seu plano de governo
intitulado de “50 anos em 5”, mas esqueceu da camada dos trabalhadores que tinham
um piso salarial baixo e passavam por grandes dificuldades financeiras. Em 1961 Jânio
Quadros assumiu a presidência, tratava-se de um populista que possuía como vice-
presidente João Goulart, este assumiu a presidência em menos de nove meses devido a
renuncia do então presidente em ofício por grande pressão exercida pelo Congresso
Nacional devido a sua aproximação com segmentos políticos ditos revolucionários.
João Goulart não se encontrava no Brasil quando a ordem de sua deposição foi
lançada pelos manifestos organizados por militares. A reinvindicação popular fez com
que Jango, exercesse seu papel de presidente, desde que o regime parlamentarista fosse
adotado, nesses termos, o então presidente governou por dois anos a máquina nacional,
até que em março de 1964, a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil
realizou uma assembleia no Sindicato Metalúrgico para debater a situação do governo e
256
Termo utilizado por alguns autores para nomear o Golpe Militar Brasileiro de 1964.
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Foi sob este Ato que a repressão se intensificou, com a não aceitação popular e os
ditos inimigos do estado a solta, cassadas foram efetuadas, prisões, torturas, exilamentos
e mortes se tornaram a realidade do país. As práticas de tortura eram lançadas com
choques, pau de arara, violência física, moral, estupro seguido de morte. Muitas pessoas
desapareceram nesta época, foram perseguidas, estiveram sob custódia em quanto o
governo tirava o foco do país para a Copa do Mundo.
Em 1969 Costa e Silva sofre um derrame cerebral e afasta-se do seu cargo, uma
junta provisória foi montada até que as eleições indiretas fossem efetuadas e nesta foi
escolhido Emílio Médici que fez a economia do país andar enquanto ainda praticava
uma tortura a oposição mais disfarçada. Com o fim de seu mandato, Ernesto Geisel, este
responsável pela gradativa abertura política nacional diante de todos os impasses
econômicos que a ditadura deixou ao Brasil. Em seu mandato, Geisel passou a escolher
indiretamente governadores, senadores, não tomou medidas drásticas diante da greve
dos metalúrgicos em São Paulo, revogou o AI-5 e determinou a extinção da censura no
Brasil.
João Batista Figueiredo, aprovou a Lei de Anistia, permitindo que os exilados
retornassem ao Brasil, a população ganhou mais voz e passou a intensificar os protestos,
greves e violência as entidades civis. A mobilização popular em massa resultou no
movimento das Diretas Já que reivindicavam as eleições diretas no país. Uma nova fase
estava sendo iniciada no país.
“Um dos pontos mais intrigantes dos anos 1960 referia-se ao novo mercado
da moda, que, por muito tempo, atrelava-se ao modelo de alta-costura e á
elite socioeconômica, representada por mulheres maduras e ricas. Desde os
sessenta, no entanto, o surgimento do prêt-á-porter, o pronto pra usar,
possibilitou a mudança radical da moda, cuja imagem central passou a girar
em torno do universo da juventude.”
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De 22 a 25 de abril de 2014
ISBN: 978-85-415-0440-9.
Tema: Eva Tudor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila, Lara e Norma Bengell liderando passeata em 1968.
Em uma década rica em estilos, cores e estampas, a palavra de ordem para este
período passa a ser ‘jovialidade’. Nesses novos tempos a juventude de fato se manifesta
e se impõe, revindicando mais liberdade. Um exemplo dessa necessidade de liberdade
foi a minissaia – importada de Londres, se adaptou as pernas brasileiras e se tornou um
sucesso nacional. As estampas geométricas, curvilíneas e ultracoloridas transformavam
minissaias e minivestidos em peças alegres, chamativas e expressivas. Além do
comprimento e estampas, os tecidos e os modelos também eram modificados – a força
estudantil impetrava o jeans como sua farda.
Mulheres jovens que buscavam mudanças, mas também sonhavam – e entre seus
inúmeros sonhos, estavam os que a corrida espacial fomentara. A ideia de futuro fazia
com que looks inusitados surgissem, como os macacões de malha, as calças mais
apertadas e ate mesmo os zíperes. Novos materiais como plástico, acrílico, placas de
metal e arame passaram a fazer parte dos modelitos mais ousados. O viver na terra
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passou a ser questionado e o desejo de ir para o espaço e se afastar desta realidade tão
dura encantava algumas cabecinhas.
Dentre as contestações feitas através das roupas, o movimento Hippie foi uma
nova maneira de vestir, falar, dançar e pensar. O autor BRAGA (2007, pp.89) pontua:
“A Rebeldia foi a ordem da época, e a semelhança das roupas impedia classificar as
pessoas em diferentes [...]. Esses jovens se rebelavam contra a vida de seus respectivos
pais, contestando-os e agredindo-os com um visual inusitado. Eram os hippies [...]”. Os
hippies eram contestadores por não fazerem parte de uma sociedade consumista,
criticando as guerras e pregando a paz nos bordados de suas roupas, nos cabelos longos
e despenteados e nas bocas de sino.
4. Conclusão
Para além de um mero tecido que cobre o corpo, a indumentária é uma arte, uma
maneira de expressar-se em si mesmo. Prova cabal foram todos os estilos que
emergiram na década de 1960 – um período conhecido pela repressão, mas também
lembrado pelos movimentos a favor da liberdade, da pluralidade, do feminismo e da
paz. Uma década onde as pessoas vestiram o que lhes representava e foram as ruas
contra os ditadores e as ditaduras.
Por isso faz-se necessário que haja o reconhecimento da moda como uma
expressão legitima de resistência a ditadura e seus carrascos. Por fim, parafraseio Zuzu
Angel, que na década de 1970 se tornou um exemplo de como a alienação, através do
sofrimento que a ditadura causou, se transformou em militância nas passarelas: “Roupa
não tem importância. Moda tem. É um documento histórico. É criação e liberdade.”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BURKE, Peter. “Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro”. In: A Escrita da
História: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992, pp. 07-38.
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aims to launch a look at the resurgence of feminism globally in early 1970, as well as
the performance of Brazilian women, in the face of censorship, imprisonment and
suspension of political rights, during the dictatorial period (1964/1985). In addition to
the Opinion Journal, organ of the Alternative Press, is to use the reports of these
women, who had expertise in motion. Oral history, before vista with some suspicion by
the Academy today is gaining great prominence and credibility because, through
personal stories and life stories, we can build the many stories and memories of a
society. Is the story within the story. In preliminary research, it is seen that in the mid-
1970 was born again the feminism and with it the desire for change, in what concerned
the role of women. It was the revolution of manners. Revolution against the machismo,
the subordinate role of women within and outside the home. It was his wife, proving his
ability to read, Act and reinvent their role both the political scenario, as taking the reins
of life itself. And the Brazilian woman didn't run to this fight.
Keywords: Woman; Dictatorship; Alternative media;
Introdução
A estratégia de ouvir atores ou testemunhas de determinados acontecimentos,
não é novidade. Heródoto, Tucídides e Políbio, historiadores da Antiguidade já
utilizavam esse método para escrever sobre os acontecimentos de sua época.
O relato pessoal deixou de ser visto como algo exclusivo do seu autor, sendo
capaz de transmitir uma experiência coletiva, uma visão do mundo que se torna possível
em determinada configuração histórica e social. Surgiram novos objetos e os
historiadores se interessaram pela história do tempo presente, os costumes, a vida
cotidiana, a família, temas que podem ser apreendidos através da metodologia da
história oral. A história oral, sempre foi, com a utilização de entrevistas, um caminho
deveras importante para se conhecer e registrar, as múltiplas possibilidades que se
manifestam e dão sentido á forma de vida e escolhas dos diferentes grupos
A entrevista, na história oral, deve ser vista como um ‘’documento-
monumento’’, segundo a definição de Jacques Le Goff. O monumento, como é sabido,
tem como característica a intencionalidade, uma vez que é construído para perpetuar a
memória de algum acontecimento ou indivíduo. É essa a idéia trazida para o
documento-monumento, cuja produção resulta das relações de força que existiam e
existem nas sociedades que o produzem. Assim, o pesquisador que trabalha com a
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referida ferramenta, como fonte, deve ser capaz de analisar as condições de sua
produção, desmontá-las para utilizá-las com pleno conhecimento de causa. A utilização
das fontes orais nesse sentido não é simples, tanto sua produção, como sua analise,
precisam de uma preparação consciente e aprofundada. Essa será a nossa intenção,
quando, no decorrer do trabalho, fizermos a análise dos fatos, através das entrevistas,
artigos e documentos privados dessas mulheres que, no período em análise, os
governos militares (1964-1985), tiveram ação importante e, até mesmo as que não se
tornaram grandes heroínas, mas que, a partir da sua luta, passaram a representar
milhares de outras mulheres que, mesmo sem grande atuação, contribuíram para a
formação da imagem feminina da época.
Mulher, Sexualidade e Feminismo
O movimento feminista que nos propomos estudar, é a expressão da exigência
de uma mudança qualitativa, na situação da mulher na sociedade, que vai ter sua
expressão maior a partir da década de 1960. Sendo tratada, ao longo da história, como
propriedade do homem, pai ou marido, a mulher vai emergir na sua plenitude, para
exigir o lugar a que tinha direito na sociedade. O movimento feminista, que vai
eclodir, principalmente no ocidente, vai ser pleno de contradições, tendo, contudo,
sempre um ponto em comum: a revolta contra a opressão da mulher. Para as facções,
como o ‘’New Feminism”257, a bandeira de luta não se limitava aos direitos civis da
mulher, mas, também á sua liberação, em um sentido mais amplo, ou seja, da abolição
de todos os tabus sexuais; abolição dos papeis sexuais impostos á mulher pelo sistema;
abolição da família nuclear; abolição da responsabilidade exclusiva dos pais e
participação igualitária dos dois nas decisões da família, devendo haver a interferência
jurídica em caso de conflitos, participação política e enfim, a abolição do
patriarcalismo, ou seja, da hegemonia masculina. Nos Estados Unidos, surge, no
257
É uma filosofia que enfatiza a crença em uma integral complementaridade de homens e mulheres,
ao invés de a superioridade do homem sobre a mulher ou as mulheres sobre os homens. Novo
feminismo, como uma forma de feminismo da diferença , apóia a idéia de que homens e mulheres têm
diferentes pontos fortes, perspectivas e papéis, ao defender pela igualdade de valor e dignidade de
ambos os sexos.
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momento que nos ocupamos, sob a liderança de Betty Friedan 258, o ’’consciousness-
raising259’’(o despertar da consciência). A partir desse principio, grupos eram formados
com seis a oito mulheres, que se reuniam para conversar sobre a extinção da sociedade
patriarcal, a dissolução da família nuclear, o fim dos tabus sexuais, etc. Essas ideias,
foram ganhando cada vez mais espaço, até se espalhar pelo mundo. Friedman
salientava que, o sistema patriarcal acabava por fazer da mulher um objeto de
exploração em dois níveis: o da produção de trabalhos domésticos, não remunerados e,
o da reprodução dos filhos, que garantia o fornecimento da mão de obra para o
capitalismo. Assim, as mulheres só poderiam ser livres quando fosse abolido, dentro do
sistema, o poder patriarcal.
No que diz respeito ao Brasil, destaca-se, neste contexto, a atuação de Danda
Prado que nasceu em São Paulo, Capital, em 24 de outubro de 1929. Cursou Pedagogia
e fez pós-graduação em Psicologia Educacional, na USP. Foi militante nos movimentos
feministas no período da ditadura e lutou pela libertação da mulher do patriarcalismo.
Em 1979, Danda Prado retorna ao Brasil, indo morar no Rio de Janeiro, onde
vai articular vários grupos que tinham como objetivo, alçar a bandeira do feminismo. O
Coletivo Mulheres, passa a ser um lugar, onde as militantes feministas, encontravam
espaço para seus debater seus problemas. O Coletivo Mulher será responsável pela
fundação de outros grupos feministas e, pelo Jornal O sexo finalmente Explicito,
também chamado pelas feministas de Nosso Boletim de Campanha, cujas matérias
tinham, como principais bandeiras de luta, a legalização do aborto, a obrigação, pelo
Estado, de distribuição dos medicamentos contraceptivos. Havia ainda, uma
258
Betty Naomi Goldstein, mais conhecida como Betty Friedan, foi uma importante ativista dos Estados
Unidos no século XX.Participou também de movimentos marxistas e judaicos. Em 1963, publicou o livro
"The Feminine Mystique" ("A Mística Feminina"), um best-seller que fomentou a segunda onda
do feminismo, abordando o papel da mulher na indústria e na função de dona-de-casa e suas
implicações tanto para a sobrevivência do capitalismo quanto para a situação de desespero e depressão
que grande parte das mulheres submetidas a esse regime sofriam.
259
É uma forma de ativismo político, popularizado pelas feministas dos Estados Unidos no final
dos anos 1960. É uma forma de chamar a atenção de um grupo maior de pessoas em alguma causa
ou condição.
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Lindonéia e, Domitila de Chungara, são duas mulheres, cujas vidas vão ser
mostradas pelos Jornais Nós Mulheres e, Brasil Mulher, ambos, exemplos de
jornais, assim como o Opinião260, da chamada Imprensa Alternativa. Os exemplos
dessas duas mulheres, nos mostram, como os jornais feministas, discutiam temáticas
como a sexualidade feminina e, como a sociedade enxergava o problema.
Lindonéia é uma mulher que, como muitas outras no Brasil, que saem de suas
cidades, em busca de uma vida melhor, na cidade de São Paulo. O que difere Lindonéia,
da grande maioria das mulheres, é que, pela terceira vez, ela estava sendo internada
pelo seu esposo, em um Hospital Psiquiátrico do Estado de São Paulo. O marido
260 O jornal Opinião informa aos leitores que, o movimento feminista tem inicio no ano de
1848, nos Estados Unidos, sendo, sua a maior preocupação, até 1920, a luta pelos direitos civis. A
luta inicial, vai culminar com a conquista do voto pelas mulheres.
Ele afirma que, a contra-revolução das mulheres, em seus primórdios, tem como causa
principal as questões referentes à superestrutura do sistema patriarcal, que relega a estrutura
familiar e a sexualidade. Com isso, fica de lado a estrutura familiar e a sexualidade da mulher.
Segundo Millet, até mesmo nos países que viveram revoluções sociais, os fundamentos da família
continuaram os mesmos.
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A gente não deve ser aventureira, diz, e admite que ficou doente assim, de
remorso, porque, quando estava grávida da filha, desprezava o marido na
cama, rejeitava-o toda noite, ele que é tão bom pra mim...Agora, eu não
rejeito mais ele, não, que sou esposa e cumpro o que se deve fazer, toda vez
que ele quer[...] Mas deixar o Dito eu não deixava, nem trair ele, não posso.
Não é por causa de pecado, que pra mim isso de pecado já era, mas é que ele
não merece. Gosta tanto de mim, que culpa ele tem de eu não ter atração?[...]
Mulher tem que amar o homem que casou[...] Mulher que casa e não atrai o
marido é que tem toda culpa. Depois, como é que eu posso querer ficar com
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fama de mulher que não presta, que larga o marido? A gente não deve ser
aventureira.(Brasil Mulher apud TELES; LEITE, 2013, p.211)
261
Lider sindical e feminista, autora de uma auto-biografia de grande repercussão intitulada, “Se me
deixarem falar”
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Domitila: Creio que, pelo fato de ter sido “violada”262 por meu
marido antes de casar-me. Nem sequer eu sabia quem estava me
“violando”, pois foi no escuro. Porém, ele contou para sua mãe e
ela falou com a minha família no sentido de se fazer o
casamento. Mas, inicialmente, o nosso casamento não passou
de uma união consentida. Só três anos depois, quando eu já
estava pra dar a luz ao meu primeiro filho, foi que meu marido
tomou a iniciativa de legalizar nossa união.(Brasil Mulher apud
TELES; LEITE, 2013, p.215)
Esse relato nos faz pensar quantas outras Domitilas existiam e ainda existem
mundo a fora?
Mulher e Família
No ano de 1975, o Senado estuda novo projeto do Código Civil, tendo como
objetivo, aprimorar o status jurídico da mulher. A grande questão que se colocava era
que, a mulher era solicitada a todo a momento como força de trabalho, mãe ou eleitora
porem, a igualdade que devia ser-lhe assegurada pela Constituição, se opunha ao
Código Civil. No seu artigo 1603, o Código estabelecia que, a direção dos assuntos
familiares estava nas mãos do marido, que devia contar com a colaboração da esposa, e,
em havendo divergências nas decisões a serem tomadas, prevaleceria a vontade do
marido. Por outro lado, de acordo com a Constituição, a direção da sociedade conjugal
cabia a ambos os cônjuges, que a exerceriam de acordo com as necessidades e
interesses do casal e dos filhos. Se, houvesse divergência, prevaleceria então, a decisão
judicial. Alguns integrantes da comissão do Senado, se puseram contra essa medida de
igualdade, mas a realidade é que a mulher já estava imersa no mundo do trabalho,
acontecimento que aumentou progressivamente, desde o ano de 1940, quando o total da
população economicamente ativa feminina, correspondia a 12,4% enquanto em, 1969
já representava 33,4%.
Essa situação, como trabalhadora, não vai mudar a situação da mulher, dentro do
lar, pois, ao chegar em casa, depois de um dia de trabalho, ainda enfrenta outra jornada,
que é a de arrumar e cozinhar para o marido, também trabalhador igual a ela, mas que,
ao chega em casa, espera que tudo esteja limpo e que o jantar esteja na mesa. Essa
262
Deve-se ler violentada, pois, evidentemente, se trata de má tradução.
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realidade era vivida pela maioria das mulheres, como foi relatada por Danda Prado em
carta á amiga, Yara Gouvêia263. Para Danda, mais do que igualar as condições de
acesso ao trabalho assalariado, era necessário socializar o trabalho doméstico,
reconhecendo o seu valor. Na sua carta, Danda ainda chama a atenção, para a
feminilidade compulsória da mulher, garantida através de investimentos precisos:
Desde que nasce, a menina é educada em casa e na escola para incumbir-se
desses serviços domésticos. Cada um de seus gestos é socializado, para, que
mais tarde seja uma esposa. Os brinquedos que lhe dão, a roupa com que a
vestem e que dificulta sua expressão corporal, sua linguagem corrigida a cada
instante, porque uma-menina-não-fala-assim, a ajuda que deve prestar ao
irmãozinho, a “faceirice” que deve cultivar para arrumar namorado, etc.
Os exemplos são infinitos.
Quando atinge a idade em que deve escolher seus estudos, é orientada para
aqueles que servem também a uma esposa.
Assim, o conhecimento de línguas pode ajudar ao marido, mais tarde. Ser
dentista ou farmacêutico, profissões que exercem em casa. Professora,
psicóloga, para auxiliar sua função de mãe.
Todas as revistas lhe darão conselhos de como agradar aos outros e, assim, a
um possível marido.
. A senhora não trabalha?Não, sou dona de casa.(Jornal do Brooklin-
SP,PRADO; Danda13/8/78)
Mulher e Imprensa
Diversas revistas de caráter nacional, pertencentes á chamada grande
imprensa, tiveram artigos e matérias censuradas, por tratarem ou darem espaço á
questão da mulher. Como exemplo, temos a revista Realidade, que teve sua edição de
número 10, totalmente censurada por ter dedicado a edição inteira à problemática
feminina: “A mulher brasileira de hoje”, dizia a manchete da revista. O jornal
Movimento teve na sua 45ª edição, alguns artigos vetados, por trazer um dossiê sobre
263
Yara Gouvêa, brasileira, codinome Sônia, foi importante quadro no exílio, representando as
organizações da resistência à ditadura diante dos organismos internacionais a partir de Genebra e,
depois, em Argel, encarregada da publicação do boletim da Frente Brasileira de Informação (cuja sigla,
repleta de ironia, é FBI), criada para denunciar prisões, tortura e mortes aos organismos de direitos
humanos. Formada em Letras e com pós-graduação na Sorbonne (Universidade de Paris), dedicou vários
anos de sua vida profissional ao ensino universitário (Argélia e Marrocos) e ao ensino fundamental,
criando uma escola bilíngüe na qual introduziu experiências pedagógicas inovadoras. Trabalhou na
Embaixada do Brasil em Marrocos. Colabora com a Fundação João Mangabeira do Partido Socialista
Brasileiro (PSB) na organização de seus seminários de capacitação.
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ser militante”. São Paulo: Intermeios, 2013
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pesquisa histórica. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2009.
PINHEIRO, A.L.M. “A imagem da mulher nos anúncios” in Opinião, Rio de Janeiro,
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MOREIRA, Rita. “Um misógino consciente?” in Opinião, Rio de Janeiro, p.22, 22 a 29
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PONTES, N.B. “Opressão e Liberação” in Opinião, Rio de Janeiro, p.22, 22 a 29 de jan.
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MUNERATO, Elice. “A igualdade e o novo código” Opinião, Rio de Janeiro, p.04, 19
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ALBERTI, Verena. “Histórias dentro da história”, São Paulo, Editora Contexto, 2006.
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O presente trabalho tem como proposito a análise crítica de filmes com a temática da
Ditadura Civil-Militar no Brasil; selecionados, em especial, a partir do seu ano de
lançamento, entre as décadas de 1990 e 2000. A abordagem utilizada tem como
prioridade a identificação e o exame das opções de representação feminina oferecidas
nessas obras. De modo que, a partir da perspectiva de gênero, seja possível compreender
a que perfil de feminilidade as personagens são enquadradas. Nesse sentido, serão
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Durante mais de duas décadas, entre 1964 a 1985, o Brasil viveu sob um governo
Militar. A esse respeito, segundo ROLLEMBERG (2003), a Ditadura Civil-Militar264
foi um golpe contra sujeitos que desejavam transformar seu país num lugar de igualdade
entre todos. Neste tempo, o sentido da palavra liberdade minguou na mente dos que
acreditavam num país diferente daquele que se apresentava, tais indivíduos planejavam
instituir o socialismo. Contrariando-os, os militares foram vitoriosos em seu projeto
contra revolucionário, posto que, o povo estava alheio às questões políticas que moviam
os militantes, almejando não a Revolução, mas apenas o essencial à vida: os
revolucionários eram, pois, poucos e à parte da população.
Sendo este um dos mais marcantes períodos na História do país, é natural que a arte
tenha se lançado em significar e ressignificar os grandes e pequenos eventos que
moviam o cotidiano das pessoas. Sobre isso, o cinema se destaca, logo após a música,
como a categoria artística que mais cedeu às gerações seguintes interpretações sobre
tudo que aconteceu. Nessa medida, o cinema funciona como um catalizador de inúmeras
funções representativas e, para cada uma, existe a produção de distintos sentidos. Com
isso se quer dizer que, entre outras coisas, através de uma obra fílmica o individuo
exercita faculdades intelectuais, produzindo, a partir das representações, uma realidade
aquém da que se apresenta no dia-a-dia. Por conseguinte, isso agrega novos paradigmas
ao modo como uma população enxerga a si e aos demais.
Sabendo disso, aqui serão analisados filmes que contam a história da Ditadura na
perspectiva de “quem acaba de se liberta dos grilhões”, uma vez que foram produzidos
após a queda do Regime. Entretanto, esse não é o objeto central desse estudo, o governo
264
É “Civil-Militar” na medida em que, segundo CARVALHO (2002), a sociedade civil apoiou o golpe,
acreditando ser a solução para as moléstias sociais e econômicas que “o movimento socialista estava em
vias de instalar no país”. Lembremos que nessa época a antiga União Soviética era sinônimo de pobreza e
caos político-social.
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dos militares funcionará como cenário para que seja possível acessar um pequeno grupo
de indivíduos: as mulheres militantes pró-revolucionárias. Sobre elas, o que se quer
alcançar é o modo como o cinema as representa e, consequentemente, lhe atribuiu
significado na História dessa geração do Brasil.
MAS, O QUE SE QUER DIZER COM REPRESENTAÇÃO?
Ao utilizar o termo representação é primordial que primeiro sejam estabelecidas
fronteiras semânticas sobre tal termo – isso garante, por conseguinte, a integridade do
sentido do texto. Porquanto, a palavra autoriza grande número de interpretações e, de
acordo com o contexto em que está inserida, pode ter vários significados. Assim, para a
tarefa de definir qual acepção será utilizada aqui, recorre-se a Dominique Santos em seu
texto “Acerca do Conceito de Representação” (2011); nele pode-se encontrar diversas
análise de inúmeros autores a respeito do vocábulo.
Contudo, o significado que mais se mostrou pertinente à tarefa proposta é, na verdade,
uma compilação de dois autores. O primeiro, Roger Chartier, a partir de seu conceito de
representação social, concebe dois sentidos ao termo. Para ele, a representação: 1)
exibe um objeto ausente que é substituído por uma imagem capaz de reconstituir na
memória; 2) a representação exibe uma presença, como a apresentação pública de algo
ou alguém (CHARTIER, 1990 apud SANTOS, 2011, p. 35).
Já o segundo autor, Guilherme de Ockham, a partir da obra de Abbagnano, diz que:
Em primeiro lugar, designa-se com este termo aquilo por meio do qual se
conhece algo; nesse sentido, o conhecimento é representativo, e representar
significa ser aquilo com que se conhece alguma coisa. Em segundo lugar, por
representar entende-se conhecer alguma coisa, após cujo conhecimento
conhece-se outra coisa; nesse sentido, a imagem representa aquilo de que é
imagem, no ato de lembrar. Em terceiro lugar, por representar entende-se
causar o conhecimento do mesmo modo como o objeto causa o conhecimento
(ABBAGNANO, 2007, p. 853).
Segundo a mescla das duas ideias, chega-se à suma de que representação é, portanto, “o
modo com o qual se conhece alguma coisa ausente, a partir de uma imagem que a
reconstitui na memória, de modo que, ao significar-se gera, então, conhecimento”.
O QUE FAZ DO CINEMA FONTE HISTÓRICA?
Ao tratar das fontes históricas, é desejável fugir da visão positivista do “documento
oficial” em apoio à outra forma de compor a historiografia. Esta é herança, sobretudo,
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da Escola dos Annales, graças a qual se tornou válido utilizar “qualquer vestígio ou
qualquer evidência – dos objetos da cultura material às obras literárias, das séries de
dados estatísticos às imagens iconográficas, das canções aos testamentos, dos diários de
pessoas anônimas aos jornais” (BARROS, 2012, p.141). Os historiadores fizeram-se,
pois, cada vez mais hábeis ao executar uma de suas principais atividades, a saber,
traduzir as implicações de discursos nas relações de poder num preciso tempo e povo.
Para tal se faz necessário, antes de tudo, apurar o que transforma um filme em objeto de
exame histórico. Logo, deve-se entender que:
[...] é menos importante saber se tal ou qual filme foi fiel aos diálogos, à
caracterização física dos personagens ou a reproduções de costumes e
vestimentas de um determinado século. O mais impotente é entender o
porquê das adaptações, omissões, falsificações que são aparentadas num
filme. Obviamente, é sempre louvável quando um filme consegue ser “fiel”
ao passado representado, mas esse aspecto não pode ser tomado como
absoluto na análise histórica de um filme (NAPOLITANO, 2005, p.237).
Isso não significa, porém, que seja prudente negligenciar aspectos que fazem parte da
linguagem fílmica - esta estruturada a partir de elementos como: cenários, figurinos,
planos, sequências, diálogos, entre outros. Ou seja, a utilização de um filme como fonte
requer a avaliação criteriosa dos pontos que apoiam a linguagem da produção. De modo
que, doravante sejam acessíveis à compreensão as representações concebidas nele.
À vista disso, o “não dito” também se coloca como discurso, isso no que diz respeito às
adaptações, omissões e falsificações. Uma vez que:
Nos filmes históricos, essa questão é crucial, pois o importante não é apenas
o que se encena do passado, mas como se encena e o que não se encena do
processo ou evento histórico que se inspirou o filme. Não se trata de cobrar
do diretor a fidelidade ao evento encenado em todas as suas amplitudes e
implicâncias, mas de perceber as escolhas e criticá-las dentro de uma
estratégia de análise historiográfica (NAPOLITANO, 2005, p.275, grifo do
autor).
Isto é, o plano estético revela muito sobre a função representativa do cinema e, por isso,
deve-se procurar compreendê-los enquanto produto artístico, assim como se enxerga um
quadro, uma música ou uma escultura. Nessa direção, o autor acrescenta ainda:
O que importa é não analisar os filmes como “espelho” da realidade ou
como “veículo” neutro das ideias do diretor, mas como o conjunto de
elementos, convergentes ou não, que buscam encenar uma sociedade, seu
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Sobre a História de Gênero, ver: “Mulheres” de Michelle Perrot e “História das Mulheres” de Joan
Scott. (Ambos constam nas referências)
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É necessário deixar claro que tal seleção não foi efetuada sumariamente, ela nasceu de uma lista de
filmes que foram assistidos e analisados previamente – desses escolhemos os que mais se adequavam a
nosso propósito de análise.
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Apesar de ter grande importância em relação ao desenrolar da trama, não colocamos Tana entre as
personagens abordadas pela ocasião dela não ter qualquer relação com os movimentos de esquerda, nem
tão pouco de direita.
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Não abordamos mais profundamente acerca dessa personagem, primeiro, porque ela não está presente
no filme, existe apenas uma menção a sua figura na cena que retrataria seu enterro, segundo, porque
acreditamos estar claro que seu poder representativo está no fato de que por intermédio dela Silvia
ingressou na luta de esquerda.
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importância. Visto que, ela denota o que há de mais forte entre esses sujeitos: a coragem
e o imenso desejo de fazer, de fato, a mudança em prol do povo.
Atendendo a outro sentido, a segunda mulher examinada não tem nome. Na verdade,
sua força representativa está no fato dela ser uma vítima em reboque à outra vítima.
Essa simples senhora negra (Edyr de Castro) se veste com modestas roupas e demonstra
pouca instrução. Ela vai à procura do Dr. Athos com a esperança de achar, pelo menos,
o corpo de seu marido desaparecido. O qual, por completo engano dos militares, foi
torturado e morto pela repressão que o confundiu com o real “subversor”.
Nesse quadro, a anônima mulher se coloca como importante à função representativa na
medida em que, pinta o retrato de um grupo pouco posto em voga nos filmes acerca da
Ditadura, a saber, as pessoas torturas e mortas, mas que não possuíam qualquer ligação
com o movimento militante pró-revolucionário. Ou seja, mesmo não sendo uma mulher
militante, a personagem representa algo muito maior do que ela própria, posto que,
poderia ser um marido, ou um filho – um homem – no lugar dessa personagem. Assim,
ela é a luz que aclara mais um grupo que foi vitimado pela ação do Regime repressor.
Por fim, a terceira personagem (Dira Paes) também não recebe nome, mas tem grande
força representativa. Ela se comporta como uma menina ingênua que, mesmo correndo
risco de vida ao ser caçada pela repressão, vive intensamente um romance com seu
companheiro de esconderijo, e provável de guerrilha (Renato Borghi). Nas poucas cenas
em que é retratada, ela demonstrou ser alegre, vibrante, romântica, ligada a natureza,
assim como, de personagem forte. Seu figurino se destaca pela simplicidade e desleixo
de quem busca o conforto caseiro, além disso, seus cabelos lisos, negros e compridos
marcam e se harmonizam com o corpo de moça da personagem.
Em linhas gerais, o poder representativo dessa personagem repousa em dois pontos
distintos. O primeiro diz respeito ao fato dela retratar que mesmo em fuga, escondidos e
sob a aflição da prisão anunciada, os guerrilheiros tinham momentos de esperança, onde
demonstravam afeto entre si, e por que não, também se alegravam e divertiam-se. Com
isso não queremos amenizar o sofrimento vivido por eles, mas olhar a situação com
outros olhos, atestando que, sim, havia vida na clandestinidade. Depois, a personagem
encarna os militantes extremamente jovens, ingênuos, que ingressaram na luta em busca
de um mundo melhor, porém não tinham maturidade para mensurar as consequências
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Hoje
Hoje, filme dirigido por Tata Amaral, foi lançado no ano de 2011. Ele conta parte da
história de Vera (Denise Fraga), uma ex-militante anistiada que recebe do governo
brasileiro, no ano de 1998, uma reparação financeira pelo desaparecimento e morte de
seu marido, Luiz (César Troncoso), também comunista. Hoje é uma obra minimalista e,
ao mesmo tempo, riquíssima em detalhes que, além dos conflitos pessoais de Vera,
discute a pauta do anistiamento de ex-presos políticos. Isso se dá na perspectiva dos
anistiados, na medida em que eles, representados por Vera, têm que lidar com o fato de
que, primeiro, a revolução não vingou e, segundo, o dinheiro que recebem para
reconstruir suas vidas vem à custa da morte ou do sofrimento daqueles que amam. A
fim de retratar esse duplo conflito, a diretora criou um clima de instabilidade no espaço
restrito do apartamento, onde os poucos personagens interagiam em diferentes
tonalidades de emoção com a protagonista.
Vera tem um conjunto de características físicas e psíquicas que a faz ser percebida em
seus distintos momentos de conflito. Ela é uma miscelânea de sensualidade, medo,
raiva, doçura, remorso e culpa. Uma mulher visceral, mas que habita um corpo magro,
trajado com um vestido florido de algodão, calçada com sapatilhas e cujo cabelo
encaracolado revela a mocidade de um rosto pouco marcado pelos anos. Delatora de
seus companheiros de organização, debaixo de forte tortura Vera acabou revelando o
esconderijo do grupo que, entre os presentes, estava seu marido. Após isso, nunca mais
ela soube notícias de Luiz, o qual foi dado como morto, sendo declarada oficialmente
viúva. Anos depois, então, o Estado julga e concede o pagamento de quantia que
repararia financeiramente a perca do marido e a tortura sofrida pelo casal.
O valor representativo de Vera está justamente nesses vários conflitos pessoais que ela
herdou de seus anos de militância. A ex-revolucionária retrata o pós-luta dos
guerrilheiros que sobreviveram à repressão, pessoas flageladas física e mentalmente,
que todos os dias precisam superar os traumas para conseguir viver. Mais do que isso,
Vera em certa medida representa aqueles que no passado delataram seus iguais e, agora,
convivem com a culpa de terem traído a Revolução. Em outro sentido, o filme também
quer suscitar e responder a grande pergunta: “O que aconteceu com os revolucionários
depois do Regime”?
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após essa análise, finalmente, nos deparamos com um modo de representação que foge
completamente a visão dual estabelecida previamente, a saber, se nos filmes
selecionados as militantes pró-revolucionárias foram retratadas como heroínas ou se
atendiam ao papel marginal. Como resultado, encontramos mulheres que obedecem a
um perfil muito mais complexo, sobrepondo essa trivialidade dicotômica. Com isso
queremos atestar que, as personagens escapam de forma brilhante a qualquer polaridade
exacerbada, elas se mostram, simultaneamente, marginais e heroínas, em outros termos:
humanas. As atuações, para essa tarefa, buscam mais fortemente revelar e interrogar os
conflitos subjetivos, em detrimento da tarefa de responder a alguma questão que esteja
além da intimidade.
A partir disso, quando confrontamos as obras de uma década com a outra, é possível
encontrar muito mais semelhanças do que diferenças. Cabe dizer que existe uma
tendência representativa entre as produções. Isso se dá pelo fato de que, em todos os
filmes examinados, a Ditadura é sempre secundarizada, o que há em foco é a relação
íntima dos personagens com os eventos traumáticos da repressão. O que se pode ver é:
sujeitos que, em diferentes estágios e de diferentes maneiras, precisam lidar com suas
angústias e medos, em prol de uma causa maior do que eles próprios. Essa causa pode
ser a Revolução, ou mesmo a força de retomada à vida.
Já no que concerne a representatividade feminina, propriamente dita, são recorrentes as
personagens encenadas como mulheres de fibra, fortes e capazes de lidar com os
percalços da vida revolucionária. Como dito antes, elas retratam a condição de
instabilidade humana, pois são plurais em sentimentos e estados emocionais. Mas, mais
do que isso, as mulheres dos filmes analisados, cada qual a sua maneira, são resultado
daquela forma moderna de enxerga-las como sujeito de ação e mudança. E isso ocorre
mesmo quando elas estão em papeis coadjuvantes. Assim sendo, em nenhuma das obras
encontramos qualquer indicio do conflito acerca da função social feminina, como
apontado por COLLING (1997).
Em outro sentido, tanto os homens quanto as mulheres atuam em pé de igualdade. Não
sendo possível apontar grande distinção entre o que poderia ser papel feminino ou
masculino, isso na perspectiva de gênero. Mas ao contrário, as mulheres guerrilheiras
demonstram extremo poder de atuação armada, equiparando-se aos demais membros de
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histórica, uma vez que vários fatores científicos, sociológicos e políticos permitiram a
sua emergência enquanto objeto.
Observando esses fatores quanto à questão científica percebe-se uma crise
dos grandes paradigmas explicativos e uma renovação dos contatos disciplinares nas
décadas 60-70, que colaboraram para a formação de novas questões e para implantação
de novos objetos e metodologias. Já os fatores sociais tem haver com a presença das
mulheres nas universidades, seja como estudantes ou como docentes na década de 1970
que tornou possível um maior diálogo sobre questões femininas na academia. E os
fatores políticos estão relacionados ao movimento de liberação das mulheres que a
princípio não estava ligado aos estudos históricos, mas sim à busca de legitimar a
inclusão feminina e na desnaturalização da universalidade masculina (PERROT, 2008).
Até antes da chamada virada cultural as mulheres não estavam incluídas no
domínio do relato histórico, elas “(…) ficaram muito tempo fora desse relato, como se,
destinadas à obscuridade de uma inenarrável reprodução, estivessem fora do tempo, ou
pelo menos, fora do acontecimento” (PERROT, 2008, p. 16). As mulheres estavam
fadadas ao silêncio que fora concebido por razões acadêmicas passadas que não
valorizavam o povo, as minorias, os ditos excluídos da sociedade nas narrativas. E por
elas estarem pouco presente no espaço público, território de análise de maior interesse
do historiador tradicional.
As transformações da historiografia que culminaram nas revisões das
antigas correntes ou na criação de outras, junto com a interdisciplinaridade entre
ciências, compuseram o campo da história das mulheres, o silêncio enfim fora rompido.
E as formas de dar vozes a essas personagens variavam segundo as transformações que
ocorreram dentro do próprio campo.
Butler (2008) não reconhece o sexo como dado natural, ou biológico. Para
ela, é o sexo também algo construído culturalmente. E também vai de encontro à ideia
de que gênero possa ser apenas uma decorrência do sexo, denunciando um caráter rígido
do entendimento de gênero enquanto definidor de uma identidade resultante de um
sexo. Sua tese é a de que o conceito de gênero é performático, ou seja, ele passa a ser
entendido como performances sociais, onde a teatralização dos gestos ou palavras criam
uma realidade.
A crítica feita à estratégia do pós-estruturalismo observa uma deficiência de
ferramentas para alcançar os objetivos propostos quanto à análise das práticas dos
sujeitos históricos, notado uma contradição existente no objetivo de analisar as ações se
elas são concebidas como discursos. Louise Tilly, que se situa no campo da história
social, é uma das que criticam o pós-estruturalismo, e rebate com a mesma acusação de
negação do sujeito:
mulheres de sua forma agiram para se manter atuantes na festa. Partindo do princípio
que era o entrudo uma festa onde a participação das mulheres era garantida e sua
liberdade, ainda que limitada, era exercida, as mulheres não aceitaram perder o espaço
de atuação e tornarem-se simples espectadoras dos espetáculos elaborados pelos homens
com a intenção de moralizar o carnaval considerado “licencioso e bárbaro” que era o
entrudo e conceder a cidade de Porto Alegre os ares modernos. E nessa situação, Leal
busca apresentar a tomada de atitude dessas mulheres insatisfeita com o novo papel e
que tenta assumir o lugar de atuação, inclusive mantendo a brincadeira do entrudo nos
bailes.
Na tese, defendida em 2013, Leal dá continuidade a pesquisa, que intitulada
Festas Carnavalescas da elite de Porto Alegre: Evas e Marias nas redes do poder
(1906-1914) foca nessa significação dos papéis das mulheres de elite no carnaval
moralizado, pois acusadas de serem mantenedoras do Entrudo, carnaval bárbaro e
licencioso, tornou-se preciso recolocá-las em outro espaço dentro da ordem
carnavalescas, representadas agora pelas Sociedades Carnavalescas, agremiações
formada pelas elites. Nesse segundo ciclo das Sociedades Carnavalescas, a autora
observou transformação na participação feminina, que agora possuía mais destaque, só
que sob a condição de uma boa conduta. Agora elas estavam sendo usadas para o
reforço de um bom comportamento, de onde advinham as representações sob os
símbolos de Evas e Marias.
Cristiana Schettini Pereira, historiadora que atua na área de estudos de
gênero, e que em alguns textos procurou associar essa temática ao carnaval, observou a
participação das mulheres no carnaval carioca em fins do século XIX, principalmente
nas Grandes Sociedades Carnavalescas, tipo de agremiação que consistia em tomar para
si uma função pedagógica de moralização e civilização do carnaval. Nesse contexto,
essa agremiação que insistia em ser predominantemente masculina, delegou às mulheres
“de família” o papel de espectadoras bem comportadas, no sentido de conferir a
agremiação o status de luxo e elegância. Esses atributos luxuosos também eram
exibidos na ornamentação dos carros e nos desfiles, em conjunto com os elementos
luxuriosos onde havia a exposição de mulheres que, nesse caso, eram utilizadas como
elementos animação da festa e de uso para os homens. Nesse caso, a intenção da autora
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Rio de Janeiro, ora na cidade de São Paulo. Ela entende que, a bibliografia especializada
ao retratar o carnaval como predominantemente masculino quanto a questão de atuação
e organização da festa nos espaços tanto público como privado, e delegar às mulheres a
função de coadjuvante, o fez de forma exagerada. Embora admita que esse exagero
possa decorrer da carência de fontes sobre a participação feminina, para além da própria
situação em que essas mulheres se encontravam quando se pensa em sua circulação ou
nos papéis definidos pela sociedade, ela acredita ser possível transpor essa barreira da
invisibilidade feminina explorando fontes diversificadas. Ao explorar essas fontes, ela
busca interpretar que apesar das regras rígidas de comportamentos impostas às mulheres
dos diversos segmentos sociais, o carnaval possibilitou, ainda quando tentou-se
moraliza-lo, novas experiências a partir de padrões de valores diferentes, onde as
imagens positivas ou não atingiam igualmente as mulheres da elite até as populares.
Olga Rodrigues de Moraes Von Simson estudou a presença feminina no
carnaval, percorrendo o caminho do Entrudo até as Escolas de Samba no Rio de Janeiro,
e em São Paulo. Seu interesse é mostrar qual o papel do elemento feminino na criação,
organização e manutenção dos festejos carnavalescos, acreditando ter sido as mulheres
um elemento indispensável nos festejos momescos, porém levando em consideração as
diferentes camadas sociais, os deferentes tipos de folguedo e os diversos tempos.
O livro Sem elas não haveria carnaval: mulheres do carnaval do Recife das
autoras Claudilene Silva e Ester Monteiro de Souza enfoca a participação das mulheres
na organização das agremiações que fazem a folia no carnaval recifense desde a
segunda metade do século XX até os dias atuais. Baseadas metodologicamente na
história oral, as autoras colheram 30 depoimentos de mulheres atuantes no carnaval da
cidade como corpus documental para a realização da pesquisa. São depoimentos de
mulheres que ocupam posição de liderança nas mais diversificadas agremiações da
cidade, onde relatam as suas experiências e práticas dentro desses espaços.
Esse livro desempenha uma função social bastante referenciada ao longo do
texto pelas autoras: “dar voz aos sujeitos como protagonistas de suas histórias” (Ester,
2010, p. 21). Ou seja, tentar dissipar os silêncios e a invisibilidade das mulheres na
participação do carnaval. O texto busca clarificar que apesar da situação de
silenciamento em que se encontravam as mulheres elas sempre tiveram sua parte na
colaboração da festa, desde a época do entrudo, e de como esse espaço aos poucos
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foram sendo ocupados. Porém o enfoque do texto está nas carnavalescas do século XXI,
com relatos que versam sobre as próprias vivências e papéis, e deixam escapar os
movimentos do cotidiano, para além dos dias de festas na rua como: as tensões ou os
momentos de solidariedade; a organização do trabalho; a mistura com os espaços da
família e da religião; o enfrentamento dos preconceitos e o ganho de respeito dentro da
agremiação.
Em seu conjunto, estes estudos mostram que apesar das mulheres terem sido
mantidas fora do relato historiográfico durante muito tempo, isso não implica que eram
inativas. Ainda que nas sombras e sem plateia, elas eram atuantes dentro de suas
possibilidades transformando o contexto em que estavam inseridas. Hoje, sendo a
historiografia atenta a essas personagens, é perceptível o aumento de trabalhos que
contemplem as mulheres em seus fazeres em inúmeros espaços e tempos conferindo-
lhes atuação. Esse debate deseja se inserir neste movimento historiográfico de visualizar
a mulher como grupo social que vivencia o carnaval, como sujeito histórico que opera
os códigos culturais de sua época para brincar o carnaval, para vivenciar a folia.
afastava as mulheres de “família” da festa, mais isso não implica que elas não estavam
lá, no meio da folia.
Como visto nos estudos citados, as mulheres estão presente na festa desde o
chamado entrudo, manifestação identificada como carnaval e herdada dos colonizadores
portugueses. Nas ruas, nos bailes, nos carros alegóricos, há também essa presença
feminina. De diferentes idades, classes sociais, e ocupando diversas funções no carnaval
elas estão lá, ainda que nas sombras ou na invisibilidade. Então é preciso perceber essa
presença, visualiza-las em seus movimentos e trajetórias, enxergar seus momentos de
tensões e conflitos, resistências e astúcias.
Com o campo da história das mulheres a passividade atribuída a elas foi
desconstruída, pois que como atores sociais, elas contribuíram para a formação da
sociedade a partir de seus desejos e interesses, assim como por meio de suas relações
com a família, o trabalho, a política, ou o lazer. Essas relações e desejos podem ser
alcançados através da análise do carnaval, assim, comportamentos e práticas das
mulheres na folia em muito podem contribuir para a compreensão da realidade social,
ainda que através de uma brincadeira.
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logo aumentou cada vez mais sua presença no mercado de trabalho, uma vez que as
empresas e indústrias sentiam cada vez mais a necessidade de mão de obra, mesmo que
esses empregos não representassem as melhores condições de trabalho, assim como
passou a acentuar-se tanto o anseio quanto a presença feminina dentro de universidades.
Partindo de um registro oral de Cristina Buarque, atual Secretária da Mulher do
Estado de Pernambuco, e de seu relato das experiências que carrega do período citado, o
presente trabalho se utilizará então destas experiências, com ponto de partida tanto para
analise da condição da mulher nesse período, assim como para analisar o contexto que
foi a experiência do exilio a muitas mulheres, e as consequências que se seguiram a
isso. Iniciando nossa analise, entendendo o ambiente no qual as mulheres circulavam, e
o como todo o contexto influenciava na sua colocação diante da sociedade.
A inquietação diante desse cenário partirá de diversos grupos que se
mobilizaram da maneira que puderam através de passeatas, de atos de protesto, de
organizações mais elaboradas. A luta armada pode ser um exemplo emblemático, de
como não se estava apática diante dessa situação, e não apenas a luta armada, mas
aqueles que não partilhavam da ideia de usar a força bruta, encontravam outra forma de
resistir ao aparelho de opressão organizado pelo estado.
A partir de organizações religiosas, mais engajadas em questões sociais, através
do movimento estudantil, ou por influencia de algum parceiro, ou membros da família,
as mulheres adentravam no meio político. A participação de Cristina, por exemplo, se
inicia pelo movimento estudantil, pelo qual tinha acesso a debates de cunho mais social,
e acesso também a leituras e ideias que esperançavam em uma nova organização da
sociedade, diante dos problemas com os quais esta se defrontava, principalmente entre
os grupos de orientação esquerdista.
Tanto a participação quanto à militância de muitas mulheres destinava-se a
questões de ordem social e política, mas já se colocava em questão também questões
pontuais a mulher, como a lei do divórcio, que mobilizou as mulheres em prol desta
causa. No entanto, esta mobilização não representava ainda a organização das mulheres
enquanto um grupo. Essas mulheres ainda não encontravam um espaço prodigo para
debates específicos sobre a mulher.
Apesar do espaço que as mulheres adquiriram nesse período, sua militância e
organização não se dava enquanto uma classe, um grupo. Essas mulheres adentraram as
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presente até mesmo das organizações de esquerdas. Era ainda bastante enraizado o
pensamento de que tipos de profissões estavam destinados às mulheres, e que profissões
destinavam-se aos homens, e o fato das mulheres transgredirem essa barreira,
obviamente representa uma grande passo, mas muitos outros ainda estavam por fazer.
Mesmo dentro das organizações de esquerda as mulheres sofriam com situações
dentro destes, que a colocavam em figuras de segundo valor, uma vez que
desempenhavam papéis considerados pequenos dentro dos próprios partidos, ações
secundárias, funções que iam desde panfletagem, a cozinharem para os companheiros, e
abrigarem em suas casas pessoas refugiadas. Deixando para algumas mulheres um gosto
amargo do segundo plano.
“Enfim, para que gritar, o primeiro prazer desce pela boca e pode até
ser recompensador o sorriso de grandes heróis após um ragu bem apreciado,
não é assim, minhas caras guerreiras de Atenas?” (COSTA, 1980, p.231)
Assim como o engajamento dessas mulheres, partia de um ideal revolucionário,
até “romântico” segundo Cristina, de quem queria por em prática a revolução, e efetivar
o contragolpe. O que fica latente nesse período, é que os debates e reivindicações
relacionadas ao gênero, não se faziam presentes nesse período, havia sim um
engajamento, mas por causas comuns a todos, que se houvesse beneficio que não fosse
especifico. Havendo assim uma sensação de igualdade entre homens e mulheres, para
Cristina no contexto da repressão, no sentido de ser que as ações truculentas e violentas
por parte do Estado, destinadas tanto a homens quanto a mulheres, no exercício dos
confrontos e agressões físicos, homens e mulheres sentiam as dores e os horrores nas
mesmas proporções, não havia nesse momento distinção entre eles.
Essas mulheres então sentem uma repressão por diversos agentes e fatores, e que
até se projetarão em ações particulares na busca por seus objetivos. E o contexto do
país, não permitia muito espaço para organização e reivindicações, e logo se sentiu a
necessidade de sair do Brasil devido à forte repressão, e para muitos a alternativa mais
segura era a fuga, o exílio do país. E muitas mulheres fizeram esse mesmo caminho,
partindo para acompanhar seus companheiros, ou fugindo por serem alvos de
perseguição. Nesse contexto, optei por dedicar minha pesquisa aos primeiros contatos
das militantes, no contexto do exílio, relevando a importância dos grupos que se
formaram em Paris, para os debates de questões relacionados à mulher, saíssem de um
ambiente intimista, e adentrassem de vez o espaço público, de fato. Apontando a
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relevância que teve para muitas mulheres essa experiência, que apesar de deixar marcas
traumáticas em alguns sentidos, pôde trazer também a muitas um novo vigor, no sentido
de trazer a estas uma nova militância, por causas agora tão próxima as suas realidades.
O Exílio
Pela proximidade, os países da América Latina foram os que inicialmente mais
receberam exilados políticos, e o Chile, uma vez iniciado o governo de Salvador
Allende, foi um dos países latino-americano que mais recebeu exilados, sendo este pelo
menos o primeiro destino de refugio. Foi dessa forma que ocorreu também para Cristina
Buarque, que saiu do país já sendo caçada, assim como seu companheiro, que já havia
sido preso uma vez, partem então para o Chile, e lá ela deu a luz ao filho.
“Então a experiência, é uma experiência de grande solidão o exílio,
por que é, pode ser que o exílio em Portugal não seja isso, mas o exílio na
Alemanha era, tava impedida de entender a televisão, por que eu não entendia
a língua, eu tava impedida de entender o jornal por que eu não entendia, eu
não conseguia ler, eu não conseguia falar com uma vizinha, eu não conseguia
saber comprar direito” (Depoimento colhido em uma entrevista com Cristina
Maria Buarque, Recife, 2014)
A primeira sensação do exilado é a do impacto, de mudar de país, e ter de
adequar-se a outra cultura, outra língua, outros hábitos. Muitas mulheres
experimentaram a solidão, devido ao fato de terem novamente de limitar-se ao ambiente
doméstico, muitas agora eram mães, e tinham de assumir novamente a rotina domiciliar.
É nesse contexto que muitas vivenciam um machismo mais forte por parte de seus
companheiros, postura que não foi tão exposta por eles no Brasil, devido à diferença de
circunstancias. Enquanto os militantes voltavam a trabalhar, e a sua atividade de
organização política, as mulheres sofriam novamente a restrição do espaço público, que
se refletia na dificuldade em enfrentar as mudanças.
Mesmo diante de dificuldades, aos poucos esses exilados tentaram reerguer-se
novamente e tentar colocar a vida outra vez no eixo, mas o golpe chileno desfez esses
planos. O golpe do General Pinochet, alterou novamente a vida cotidiana e política
desses brasileiros, que vivenciaram novamente as tensões de um golpe, marcados
principalmente por já terem voltado a militância, e terem alimentado as esperanças que
ainda lhes restavam quando deixaram o Brasil, durante o governo de Allende. Os novos
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ISBN: 978-85-415-0440-9.
destinos de exílios variavam, alguns seguiram para Cuba, mas a maioria seguiu para a
Europa.
O exílio sempre parecia mais duro para essas mulheres, que tiveram de
conquistar esses espaços novamente, praticamente sozinhas. Elas sentiam a necessidade
de ter a liberdade de ir e vir, o que não lhes era fácil no ambiente totalmente
desconhecido que agora se encontravam. As mulheres tiveram de conquistar novamente
sua “autonomia” a passos lentos. “Às vezes creio até, exílio/independência
conseguimos a duras penas e sem Pedro I.” (COSTA, 1980, p. 232).
No relato de muitas mulheres, o exílio significava um resignificação de quem se
era, e isso era ainda mais latente para mulheres que além de estarem em outro país,
assumiam uma nova identidade, mulheres que viviam na clandestinidade. E nesses
relatos, a situação se torna ainda mais angustiante, por serem mulheres que tinham de
deixar de lado suas referencias, família, seu passado, que tinham de assumir um novo
nome e uma nova vida. Estas conviviam com a angustia de se distanciar um pouco mais
de quem se era, todas as vezes que tinham de assumir uma nova identidade.
A clandestinidade no Brasil era uma coisa, por que ainda se tinha conhecimento
para lidar com as novas situações, mas fora do país era totalmente diferente. E para
muitas esse distanciamento ficava mais latente, cada vez que sua nova identidade não
era questionada. Tanto o exílio quanto a clandestinidade, são situações extremas, que
exigem posturas extremas dessas pessoas que a vivenciaram, são situações onde de
qualquer maneira, deixa-se um pouco de lado quem se é, para lutar pela própria
sobrevivência, e muitas vezes se descobre uma força sobre maneira para resistir a tudo
isso.
Numa luta encabeçada por mulheres que se encontravam aqui, a lei da anistia,
muitas delas quando retornaram ao Brasil, estavam agora imbuídas de um ideal
feminista, que também se debatia e já se fazia presente no Brasil, mas com maior força
na Europa. Mesmo assim, no Brasil, já se fazia presente a organização e atuação de
grupos de mulheres, que tinham como propostas as causas feministas. A própria
Cristina Buarque quando retorna do exílio, volta para dentro do “Ação Mulher”, um dos
grupos que se formou aqui no Brasil, grupo que se formou mais especificamente no
Recife.
A discussão entre as propostas feministas e a luta de classes, acompanhou
durante muito tempo, essas mulheres, que enfrentaram oposição até mesmo de grupos
formados por mulheres aqui no Brasil , mas que estavam bem mais engajadas com as
causas sociais, do que as questões feministas.
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Conclusão:
Para conclui todo o trabalho, ressalto novamente, a importância que acredito ter
essas mulheres exiladas, e toda sua movimentação no exterior, sua inquietação quanto a
sua condição, para que questões hoje tão primordiais fosse colocadas em pauta, num
período em que até então tal possibilidade nem era considerada.
Essas mulheres que assumiram a militância, abriram caminho para um espaço
até então majoritariamente masculino, e que relegava a mulher, um papel secundário e a
sombra dos feitos dos homens. Não permitindo que estas assumissem então o controle
cobre suas próprias ações. A Ditadura Civil-Militar pode ter sido um período de
extrema violência, e disso não posso duvidar, mas não há de se negar, que justamente
esse contexto que permitiu espaço, mesmo que isso possa assumir um contexto até
casual, para que as mulheres conquistassem um grau maior de independência.
A educação, o trabalho, a militância, foram conquistas fundamentais para essas
mulheres, que tinham agora maior autonomia quanto a suas escolhas. E considero então,
o exílio, para aquelas que o vivenciaram, uma parte fundamental de experiência, não
apenas experiências ruins, que ainda assim, de uma forma ou de outra nos deixam
algum aprendizado. Mas me refiro ao fato, de vivenciarem na Europa, um debate que
não se fazia em território brasileiro.
Dessa maneira, percebo que muito ainda se tem a debater sobre as questões
relacionadas à mulher nesse período, uma vez que mesmo passado os anos de repressão
da Ditadura, a repressão contra a mulher, ainda é uma permanente até os dias atuais,
mesmo que muito já se tenha conquista, deixando assim espaço para próximas
pesquisas. Mas ressaltando o quando os círculos de debates que se formaram em Paris, e
em outros países de exílio, foram importantes para que essas mulheres pudessem criar
um espaço de debate, primeiramente mais confortável a elas, uma vez que permitia um
espaço de igualdade ou grande proximidade quanto as experiências delas, segundo, um
espaço onde o foco fosse justamente suas dores e sofrimentos, fossem suas
reivindicações, suas questões, foi um espaço para que firmassem sua própria identidade
e sua própria causa pela qual se engajar.
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Referências Bibliográficas:
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Perseu
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GIANORDOLI-Nascimento, Ingrid Faria. Mulheres e Militancia: encontros e
confrontos durante a ditadura militar / Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento, Zeidi
Araújo Trindade, Maria de Fátima de Souza Santos (orgs). Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2012.
COSTA, Albertina de Oliveira. Memórias das mulheres do exílio / Albertina de Oliveira
Costa, Maria Teresa Portiuncula Moraes, Norma Marzola, Valentina da Rocha Lima
(orgs). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CAMARGO, Ayla. Nas origens do movimento feminista “revisitado” no Brasil: o
Círculo de Mulheres de Paris. In: Anais do I Simpósio sobre Estudos de Gênero e
Políticas Públicas, ISSN 2177-8248, 2010, Universidade Estadual de Londrina.
ABREU, Maira. Nosostras: feminismo latino-americano em Paris. Dissertação.
Unicamp. São Paulo, 2010.
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Resumo
O presente artigo pretende analisar uma trajetória que levou à consolidação do
movimento feminista de segunda onda no Brasil, apontando para sua especificidade a
partir da ligação do movimento feminista com o movimento de mulheres das classes
populares, compreendendo organizações de bairro e de trabalhadoras. O texto analisa o
seu desenvolvimento dentro do contexto da Ditadura Civil-Militar como um elemento
que vai moldar essa segunda fase do feminismo brasileiro. Desse modo, perceber como
a mulher passa a se apropriar de um espaço por excelência masculino, o espaço público,
buscando participar das lutas gerais do povo e buscando uma democracia que também
se baseie na igualdade de gênero.
Palavras-chave: Feminismo de segunda onda no Brasil; movimento de bairro de
mulheres; movimento de trabalhadoras.
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opressão e submissão, o que vai abrir as portas para a entrada do feminismo de segunda
onda no país.
A década de 1960 se caracterizou pela emergência de problematizações que
iriam além das questões econômicas, ou seja, passou-se a entender que as contradições
sociais não são necessariamente causadas por contradições econômicas. Outras relações
de poder estariam em jogo e a compreensão dessa dinâmica trouxe à superfície outras
demandas, trazendo a emergência das questões raciais, do movimento de homossexuais
e o feminismo, além de tantos outros temas debatidos. Os movimentos que marcaram a
época “trazem o individual para o campo político, tornando-o coletivo, demonstrando
que o ser social não se esgota na experiência de sua classe”. (ALVES; PITANGUY,
2003, p. 58.).
Dentro disso, personagens esquecidos pela história, como o caso das mulheres,
passam a rever sua posição diante da sociedade e a buscar por sua afirmação. O
feminismo de segunda onda passa a tratar de questões que vão além da busca por
direitos civis, passando a envolver a questão do corpo, além de colocar nesse momento
a discussão sobre a opressão da mulher, sua condição de submissão diante do homem,
entendendo que esta se justifica dentro de um processo histórico e de construção
cultural.
O período que precede a Ditadura Civil-Militar no Brasil foi marcado por forte
efervescência cultural, por movimentos sociais e políticos que pretendiam inserir na
vida pública e política, por meio de conscientização, grupos marginalizados nesse
ambiente. Este é um momento que proporciona, mesmo ainda com dificuldades e
preconceitos, à mulher seu espaço como indivíduo atuante fora das fronteiras de seus
lares. O ano de 1964 transforma esse quadro de mobilizações com seu cenário de
repressão, prisões, tortura, principalmente depois do “golpe dentro do golpe” ocorrido
em dezembro de 1968. Sabemos que a ditadura cerceou direitos, reprimiu duramente
movimentos de oposição, entre tantas outras medidas em nome da ordem e da proteção
da moral e dos valores, contra a “subversão comunista”. O papel da mulher continuava
diante da sociedade a ser o da mulher dona de casa, dedicada à família e submissa ao
homem. A atuação fora deste espaço poderia causar estranhamento à sociedade,
passando a moral da mulher que ultrapassasse tal barreira a ser questionada. No entanto
temos a entrada de mulheres, mesmo em número menor em relação aos homens, em
organizações de resistência, manifestações e atos públicos contra o regime. Podemos
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dizer assim que este é mais um momento em que surge uma consciência de que a
mulher pode, assim como os homens, participarem das decisões que dão rumo ao seu
mundo, quando estão em posição de certa igualdade ao homem. Cristina lembra que o
momento da ditadura foi um momento diferente para as mulheres e também para os
homens:
“Nesse momento da ditadura, para as mulheres eu acho, que foi
um momento diferente dos homens, porque? Na ditadura os homens perdiam
o seu lugar no espaço público, no espaço de serem políticos, né? Eles ‘tavam’
interditados. Pra nós mulheres era justo o diferente, nós entrávamos num
outro espaço que não era só o da nossa casa, então isso aí era gozar de um
tipo de liberdade, era gozar de estar em algum lugar que a gente pensava que
ia decidir o mundo, ia decidir a política, ia decidir o poder, era um lugar onde
o risco não era diferenciado, tá certo? Porque quando vinha a polícia ela
vinha com tudo por cima de homem, por cima de mulher, era igual, então não
tinha ninguém pra te proteger, você era a coitadinha que... não! Você mesmo
que tinha que se proteger, você mesmo que tinha que correr, você mesmo que
tinha que criar suas defesas, e aí dava uma situação de maior igualdade com
os homens, né?”
Mas aqui também temos problemas quando dentro das organizações que
participavam elas ainda sentiam certa distância com relação aos homens no sentido de
que ainda estavam em posição inferior. Quando perguntada sobre como ela percebia a
posição das mulheres dentro dos grupos que militavam, Cristina observa que eram “um
pouco menores” e acrescenta que “pela esquerda você devia militar para ajudar o seu
companheiro militar também”, e apontado a posição secundária da mulher, fala que o
momento de efetiva igualdade era na “hora do ataque”. De qualquer modo as mulheres
conquistam sua posição como sujeito político quando ingressam na militância em
oposição ao regime, ou quando pegam em armas, entrando na luta armada para fazer a
revolução acontecer.
Cabe aqui problematizar as relações de gênero dentro das organizações de
esquerda, visto que daqui saíram muitas militantes que vão se integrar à discussão
feminista, pois muitas se encontravam em um espaço que apesar de promover igualdade
às relegava a uma posição de inferioridade com relação aos homens, o que levava ao
questionamento desse relacionamento. Cristina observa o moralismo dentro da
organização em que participou, o grupo Totskista J. Posadas:
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“Uma coisa engraçada que acontecia nesse partido é que você não
podia dormir com o namorado, então os partidos eram muito moralistas, tá
certo? Então, e eram muito... no fundo esse moralismo era uma hipocrisia,
porque todo mundo dormia com o namorado, claro que a gente dormia com o
namorado.”
(...). Mas o grande impacto foi o exílio, veio rápido, veio quatro anos depois
já não mais pensando assim.”
Cristina afirma o foco dado à ditadura e diz que isso vai se reverter com o
exílio a partir da obtenção de uma visão mais crítica sobre a situação da mulher:
“Aqui no Brasil a gente ‘tava’ em plena ditadura, então tinha um
inimigo que fazia com que nós homens e mulheres estivessem muito juntos e
como revolucionários com aquele romantismo. Quando chegou lá não era
bem assim que a banda tocava, não havia essa igualdade, e os homens
exigiam pra si a sua liberdade pública finalmente. Para que você tenha
liberdade pública com um filho você vai ter que ter quem cuide dos seus
filhos e quem cuidava de seus filhos eram as mulheres, e isso era fácil esse
passo, era uma tradição, e aí as mulheres começam.”
Algo que sempre vem à memória de Cristina quando ela conta a sua
experiência no exílio, particularmente na Alemanha, pois no Chile ela ainda milita em
prol da revolução, era a vontade de continuar a luta contra a ditadura, quando ela
combina fugir com o marido, apontando que enquanto as mulheres no Brasil estavam
conquistando espaço na luta contra a ditadura, no exílio acontece o contrário:
“Os homens lá são recebidos pelo próprio patriarcado dos países
onde a gente ia, então as mulheres deviam ficar em casa, tomando conta dos
meninos, e os maridos ‘vai’ pro trabalho e ‘começa’ a militar lá naquele país,
então isso foi um choque, eu acho, pras mulheres como um todo, pra mim foi
um enorme choque, eu já vinha desde treze anos trabalhando, tanto militando,
como eu era muito pobre, então eu trabalhava.”
De maneira geral este folheto ilustra bem o pensamento crítico que começa a
crescer em torno da participação política das mulheres, das questões do trabalho, da sua
posição na sociedade. O grupo não se declarava como feminista, mas sim um grupo
feminino, nisso residindo sua defesa dos direitos da mulher. Isso fica claro quando são
colocados temas em discussão como a submissão da mulher ao homem, característica da
sociedade patriarcal brasileira, a sua exclusão das decisões políticas porque ficam
isoladas em seus lares, a inferioridade de seu trabalho vistos na baixa remuneração e
numa renda vista somente como complementar, o que justifica essa baixa remuneração,
ainda quanto ao trabalho denuncia a falta de creches e a dupla jornada de trabalho,
dentre outros temas abordados. Em um ponto do texto há também uma crítica quanto a
falta de engajamento das mulheres na luta por melhores condições de trabalho que se dá
por sua condição de “obediência e subordinação” já considerando como “uma conquista
lhe terem ‘dado’ um emprego, contribuindo assim, com sua alienação, para sua maior
exploração”, no entanto este é um cenário que se encontrava em mudança. É importante
para finalizar dizer que é destacada a importância da luta das mulheres pela anistia
como forma de “consciência política do coletivo”, não é somente uma luta de “mães,
irmãs, filhas, amigas ou solidárias” pela justiça, mas no sentido de que a luta dessas
mulheres se insere em uma luta geral. Nisso temos um exemplo característico do
feminismo brasileiro, ou dessa consciência que está se despertando do “ser mulher”, que
vai se moldando dentro das circunstâncias vividas no país.
O feminismo brasileiro de segunda onda é diferenciado porque se consolidou
em meio à uma conjuntura política, econômica e social que direcionou sua luta para
além das questões das mulheres. Diferentemente do que aconteceu fora do Brasil, o
movimento de mulheres feministas, que se iniciou com mulheres das camadas médias e
intelectualizadas do país, se alia ao movimento de mulheres de camadas populares, o
que justifica a expressão “movimento feminista e de mulheres”, sendo tal articulação
movida pela luta pelo bem-estar social.6. Segundo Cynthia Sarti (2004, p. 41), o
feminismo nesse momento, como ideologia, fica restrito, pois a prioridade naquele
momento era o combate ao autoritarismo e as desigualdades da sociedade brasileira,
deixando em segundo plano a problemática feminista.
Com o processo de abertura já consolidado, as exiladas políticas retornam ao
país, muitas agora declaradamente feministas, fortalecendo o movimento brasileiro. No
início dos anos 80 o feminismo participou intensamente do processo de
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redemocratização do país, e Cristina Buarque diz que também “a volta dos exilados
reforça a luta pela democracia”. É nessa década que finalmente o movimento se vê
consolidado como força política e social. Também é característica do momento uma luta
mais direcionada para as questões de gênero, com atos públicos, congressos, as
discussões sobre corpo e sexualidade, a formação de ONGs e pesquisas acadêmicas
sobre mulheres.
Cristina lembra que a discussão sobre as mulheres mais especificamente vai se
dar mais fortemente na volta do exílio, “depois de 78 no Brasil, e na volta do exílio que
é 79 pra algumas”. Ela retornou do exílio no ano de 1981 e chegando ao Brasil ela
participa do grupo Ação Mulher, criado no Recife em 1978, e lembra também de outros
grupos criados na década de 80 como a Casa da Mulher do Nordeste, criada em 1980, o
SOS Corpo, criado em 1981 e o Centro das Mulheres do Cabo, criado em 1984, além da
criação de várias ONGs. Juntamente com o processo de redemocratização, Cristina fala
que passa a surgir a proposta de criação do conselho nacional da mulher.
Trabalhadoras urbanas e rurais reunidas também passaram a questionar sua
posição, enquanto mulheres, dentro do local de trabalho e das organizações sindicais e a
reivindicar a incorporação de suas demandas nas pautas de discussão, visto que as
reivindicações dos trabalhadores acabavam se restringindo ao cotidiano dos homens.
Nesse período o movimento feminista também se aproxima do movimento de
trabalhadoras nas associações profissionais e nos sindicatos. Passou-se a questionar a
posição de poder que os homens tinham dentro das indústrias e organizações sindicais
com o pouco espaço que as mulheres tinham quanto a participação ativa nos postos de
decisão dessas organizações, dentre outras demandas como a incorporação das
discussões do cotidiano do trabalho, a desvalorização do salário, de assistência à
trabalhadora gestante, da violência no local de trabalho, a falta de creches, a falta de
profissionalização, a dupla jornada de trabalho. Temas como a reflexão do cotidiano
doméstico e do trabalho são pontos que levam à discussão da divisão sexual do trabalho
e a relação de poder na representação sindical, levando-se em consideração a revisão de
como são exercidos seus papéis dentro do ambiente doméstico e fora dele. (GIULANI,
2004 p.650).
O discurso feminista tem grande influência na mudança de percepção dessas
mulheres. Paola C. Giuliani (2004, p.650) dá um exemplo de um discurso da
coordenadora da Comissão Nacional da Mulher da CUT, em 1989, onde esta reconhece
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NOTAS
1
BUARQUE, Cristina Maria. Cristina Buarque (depoimento, 2014). Recife,
LAHOI/DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA-UFPE, 2014. Entrevista concedida a Karla
Daniela Gomes da Silva e Larissa Graciete de Freitas Santos.
2
Ana Maria Colling explica a busca por um ideal masculino de militante através da
negação da sexualidade pelas militantes de esquerda, mas também aponta que isso
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Referências Bibliográficas
ALVES, Bianca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo:
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COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.
CELESTINO, Gabriela Santetti. Da resistência às ditaduras ao feminismo no Cone Sul
– Razões e rupturas, processo de afastamento das mulheres das organizações de
resistência. In: Simpósio Nacional de História – ANPUH, 27., 2013, Natal. Anais...
Natal, 2013.
GIULIANi, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira.
In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
2007.
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INTRODUÇÃO
269
Universidade Federal de Pelotas e Universidade Católica de Pelotas, respectivamente.
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pequena elite política local. Todavia, a mesma cidade apresentou uma atmosfera de
efervescência juvenil e cultural, apresentando assim, um interessante paradoxo.
A escolha do tema consiste em refletir, através das memórias de atuação de ex-
militantes do movimento estudantil pelotense, acerca da inserção feminina em espaços
majoritariamente masculinos e quais posições elas ocupavam no seio desse movimento.
Essas militantes ousaram ao romper com o padrão estabelecido à época, já que ao
iniciarem sua atuação no campo político estavam adentrando em um espaço público
historicamente dominado por homens, enquanto que às mulheres cabia o espaço
privado, agindo assim no interior da casa, assumindo apenas o espaço doméstico
(FERREIRA, 1996; GOLDENBERG, 1997; COLLING, 1997; ROVAI, 2013). A
década de 1960 foi marcada pela reviravolta comportamental que veio reivindicar um
novo estilo de vida, diferente daquele adotado, defendido e valorizado pelo sistema
ocidental, pondo em xeque os valores tradicionais e, buscando novas formas e novos
canais de expressão. Dentre eles, despontou a liberação sexual, que buscava quebrar
tabus e estabelecer novos valores.
A pílula anticoncepcional significou uma revolução no campo da sexualidade
feminina, porém, para os mais conservadores, ela era vista como símbolo da
promiscuidade. A partir daí, começou a ocorrer uma mudança comportamental por parte
das mulheres, pois a instituição do casamento passa a ser questionada, a moda
acompanha as transformações, criou-se o biquíni e a minissaia. Entretanto, tais
transformações não atingiram todas as mulheres da mesma maneira.
No que tange à participação de mulheres no movimento estudantil em Pelotas
detectamos que esse binômio espaço público (masculino) versus espaço privado
(feminino) (FERREIRA, 1996) aliado ao conservadorismo presente na cidade, como já
mencionado, foram um dos responsáveis pelo restrito número de militantes pelotenses
que assumiram cargos de liderança dentro do movimento estudantil da cidade, devido,
sobretudo, à repressão da própria família. Ao analisarmos material 270 correspondente às
composições de chapas que concorreram às eleições para o Diretório Central dos
Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), percebemos que
somente no ano de 1984 uma mulher chegou à presidência do DCE desta instituição
(VECHIA, 2010).
270
Material este, gentilmente, cedido pelo professor Renato Della Vechia, em novembro de 2011.
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Tal fato pode ser explicado pela representatividade que determinados cursos
possuíam dentro das instituições de ensino; no caso da UFPel, o curso de Agronomia
configurava como o principal expoente de lideranças estudantis, já que a grande maioria
daqueles que ocuparam a presidência do DCE da referida instituição eram oriundos
deste curso, no entanto, o curso mencionado era constituído em grande maioria por
homens, por essa razão a participação de mulheres com cargos relevantes era quase
nula. Já na UCPel, os cursos que se destacavam eram as Engenharias e a Medicina,
contudo, o curso que havia maior representatividade feminina era o de Serviço Social.
Aqui percebemos que a participação feminina era consideravelmente maior, contudo,
não houve nenhuma chapa comandada por uma militante.
Com isso, para o desenvolvimento desta pesquisa utilizamos a metodologia da
História Oral, a qual nos possibilitou o diálogo com as mulheres que militaram no
movimento estudantil universitário na cidade Pelotas no período da redemocratização.
Segundo Marieta Ferreira (2002), na segunda metade do século XIX, as fontes orais não
eram consideradas qualificadas para serem usadas como ferramenta histórica, somente
no século XX é que esse tipo de fonte foi restaurado pelos historiadores que defendiam
a validade do estudo do tempo presente. Contudo, alguns historiadores ainda acreditam
que a história oral e seu uso como ferramenta de pesquisa não seja legítima, pois como
aponta Portelli (2000) “as versões das pessoas sobre seu passado mudam quando elas
próprias mudam”. Percebemos com essa afirmação que a memória não é estática, uma
vez que ela está sempre mudando de acordo com as experiências adquiridas durante a
vida, buscando novas resignificações a partir dos acontecimentos que se concretizaram,
possibilitando novas concepções e interpretações do mesmo.
favor dos Aliados e contra a Alemanha e a Itália” (ARAUJO, 2007, p. 35). Mais tarde,
lutaram pelo fim do Estado Novo e pela redemocratização do país.
Albuquerque afirma que o movimento estudantil sempre foi bastante ativo e
sempre marcou sua presença no cenário político latino-americano, desde o início do
século. Para ele, “o meio estudantil não constitui uma base para um movimento social,
mas o movimento estudantil pode ser um elemento fundamental num movimento dessa
natureza”. O autor acredita que o meio estudantil aparece nesse cenário como o único
setor das camadas médias urbanas organizado politicamente (ALBUQUERQUE, 1977,
p. 69). A autonomia que o movimento estudantil possuía é outro fator que chama a
atenção, pois o próprio movimento se orientava e agia politicamente. Assim,
No movimento estudantil, ao contrário (do movimento sindical), a autonomia
interna permitiu aos estudantes definir suas próprias reivindicações e, na
prática, nada impedia suas organizações de formular, ao mesmo tempo
reivindicações econômicas, políticas ou culturais. (...) o movimento não
encontrava dificuldades em engajar-se nos movimentos políticos, nem em
mobilizar suas bases em consonância ou em oposição a projetos
governamentais de mobilização popular. (ALBUQUERQUE, 1977, p. 71)
A União Nacional dos Estudantes (UNE) foi uma das primeiras vítimas do golpe
civil-militar, pois sua sede no Rio de Janeiro foi invadida e incendiada por policiais à
paisana, assim como as principais lideranças do Movimento Estudantil acabaram presas
e muitas entidades estaduais estudantis foram fechadas. Neste momento, a principal luta
estudantil intensificou-se em favor de uma Reforma Universitária, sendo que esta
implicava, dentre outras coisas, na extensão do ensino público e gratuito e na cogestão
nas faculdades, medidas inaceitáveis pelo governo militar; e o fim dos acordos MEC-
USAID, assim como contra a lei criada para reorganizar as instituições estudantis. Neste
sentido, visando controlar as entidades estudantis, foi promulgada em novembro de
1964, a Lei nº 4.464/64, conhecida também como Lei Suplicy de Lacerda271, cuja
autoria foi do então Ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda. Segundo a lei, as
entidades estudantis seriam reestruturadas, uma vez que a UNE e as Uniões Estaduais
dos Estudantes (UEEs) foram fechadas e acabaram sendo criados o Diretório Nacional
dos Estudantes (DNE), com sede em Brasília, e os Diretórios Estaduais dos Estudantes
(DEEs).
Lei n° 4.464/64 (outubro de 1964) – conhecida como Lei Suplicy de
Lacerda, em “homenagem” ao então ministro da Educação. Determinava a
271
Para maiores informações acerca da Lei Suplicy de Lacerda, ver
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=4464&tipo_norma=LEI&data=19641
109&link=s (acesso em 12 de julho de 2013).
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especifico das mulheres, os relatos orais se apresentam como meio para que elas sejam
incluídas na chamada “grande história”, em que geralmente estiveram invisíveis.
Utilizando a ideia da invisibilidade, já que ao analisarmos materiais alusivos ao
movimento estudantil na cidade, bem como as próprias entrevistas, fica nítido que as
mulheres raramente chegaram a ocupar cargos de destaque no interior deste movimento.
Para melhor compreensão, algumas entrevistas foram realizadas com determinadas
militantes, sendo que apenas uma delas teve participação mais significativa dentro do
movimento estudantil em Pelotas, já que foi escolhida para compor uma chapa que
concorreu às eleições ao DCE da UFPel, assim como o da UCPel, na qual ocuparia o
cargo de vice-presidente. Na fala da entrevistada, percebemos que apenas os homens se
destacavam dentro do movimento, a estes cabia o uso da palavra, assim,
[...] geralmente quem mais falava, quem mais se destacava, geralmente, era
mais os homens, até porque já era aquilo de praxe e isso a gente não muda de
hora pra outra, tanto é que a gente teve presidentes, diretores de DAs e DCE
quase sempre homens. Eu não me lembro que candidata mulher, afora eu que
fui da Católica, foi cabeça de DCE aqui em Pelotas. E no movimento como
um todo. (Duca Lessa em entrevista em 24/02/14)
Segundo Marieta Ferreira (FERREIRA, 2002, p. 314), na segunda metade do
século XIX, as fontes orais não eram consideradas qualificadas para serem usadas como
ferramenta histórica, somente no século XX é que esse tipo de fonte foi restaurado pelos
historiadores que defendiam a validade do estudo do tempo presente. Porém, ainda
existem alguns historiadores que acreditam que a história oral e seu uso como
ferramenta de pesquisa não seja legítima, pois como aponta Portelli (PORTELLI, 2000,
p. 298) “as versões das pessoas sobre seu passado mudam quando elas próprias
mudam”. Percebemos com essa afirmação que a memória não é estática, ou seja, ela
está sempre mudando de acordo com as experiências adquiridas durante a vida,
buscando novas resignificações a partir dos acontecimentos que se concretizaram,
possibilitando novas concepções e interpretações do mesmo. Ferreira descreve,
A memória é também uma construção do passado, mas pautada em emoções
e vivências; ela é flexível, e os eventos são lembrados à luz da experiência
subsequente e das necessidades do presente. (FERREIRA, 2002, p. 321)
recuperação da trajetória dos grupos excluídos, cujas fontes são escassas. Quando
utilizados para recuperar a história dos excluídos, “estes depoimentos orais podem
servir não apenas a objetivos acadêmicos, como também construir-se em instrumentos
de construção de identidade e de transformação social.” (FERREIRA, 2002, p. 327).
Aqui percebemos a importância da realização de um roteiro consistente de entrevista
com vistas a conduzir os depoimentos, bem como fazer o levantamento de fontes extras
para poder assim, garantir o máximo de veracidade e de objetividade.
Já a segunda vertente é aquela que privilegia o estudo das representações e
atribui um papel central às relações entre memória e história. Nesta vertente, não é
necessário o uso de roteiros para as entrevistas, pois estas não são voltadas para a
checagem da veracidade dos fatos ou mesmo a utilização de outras fontes para a
comprovação dos elementos obtidos nos depoimentos, pois acredita-se que as distorções
da memória se constituem em recurso e mão representam um problema (FERREIRA,
2002, p. 327-328).
Quando se escolhe trabalhar com o plural, ou seja, quando se escolhe utilizar a
história oral como método de pesquisa, é necessário levar em conta que não haverá
apenas uma versão do fato relatado ou uma verdade absoluta e, não cabe ao pesquisador
julgá-los (ALBERTI, 2004, p. 12).
Benito Schmidt aponta a segunda metade do século XIX como marco inicial do
interesse dos autores pelo fenômeno da memória, estes foram motivados pelas
transformações ocorridas na Europa ocidental, especialmente pelos processos de
industrialização e urbanização. Segundo o autor, a análise da memória iniciou-se como
um campo da psicologia, pois os estudos tinham como objetivo situar as lembranças em
alguma área específica do cérebro. Um dos pioneiros a escrever matérias sobre o
assunto foi Henri Bergson, este publicou em 1896 a primeira edição de “Matéria e
memória”, que trazia os estudos realizados em pacientes com amnésia, afasia, cegueira
psíquica e outros distúrbios. Para este autor, existem duas formas de memória, a
memória hábito e a memória representação, a primeira definição está relacionada a
repetição, já a segunda, está ligada às representações, (SCHMIDT, 2006, p. 90).
Nesse contexto de industrialização e urbanização da Europa, a sociologia
aparece para responder aos anseios desta nova sociedade em desenvolvimento, assim, o
sociólogo Maurice Halbwachs interessa-se pelos estudos relacionados à memória como
um meio de explicar determinados problemas de sua época. Para ele, a memória é um
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fenômeno social, pois ela só se caracteriza pela reconstrução do passado através dos
grupos sociais do presente, com isso, ele defende que a memória se configura pelo
coletivo e que a memória individual inexiste. Ele completa ainda dizendo que a
memória individual seria apenas um “ponto de vista sobre a memória coletiva”
(HALBWACHS, 1990 apud SCHMIDT, 2006, p. 92). Fernando Catroga vai ao
encontro de Halbwachs quando ele afirma que a memória “nunca será um mero registro,
pois é uma representação afetiva, ou melhor, uma re-presentificação, feita a partir do
presente e dentro da tensão tridimensional do tempo” (CATROGA, 2001, p. 46).
Assim, os sujeitos que vivenciaram situações históricas parecidas ou ainda,
aqueles que compartilharam o mesmo espaço social estão inclinados a ter depoimentos
similares sobre o passado, estabelecendo a “fronteira do dizível e o indizível”
(POLLAK, 1989, p. 8), para completar, Portelli (PORTELLI, 1996, p. 59) afirma que “o
principal paradoxo da história oral e das memórias é, de fato, que as fontes são pessoas,
não documentos (...)”.
De acordo com a mesma autora, existem duas vertentes de trabalho possíveis
dentro da história oral; a primeira delas refere-se ao uso da história oral e trabalha
prioritariamente com os depoimentos orais como instrumento para preencher as lacunas
deixadas pelas fontes escritas. Esse tipo de ferramenta é comumente utilizada nos
estudos das elites, das políticas públicas implementadas pelo
Partes dessas memórias muitas vezes acabam sendo pouco conhecidas, as quais
através da História Oral temos a oportunidade de situá-las quanto ao seu pertencimento
individual ou coletivo na sociedade. Michel Pollack trabalha com um conceito
importante para o entendimento desse projeto, pois ele trabalha com as memórias
subterrâneas, ou seja, estas são memórias ligadas àqueles grupos marginalizados. De
acordo com Pollak,
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações
do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes:
partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações, etc. A
referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das
instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo,
sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis (POLLAK,
1989, p. 7).
Estas entrevistas iniciaram no ano de 2011 em decorrência do Trabalho de
Conclusão de Curso da autora, iniciamos entrevistando Renato Della Vechia, professor
de Ciência Política da UCPel, e ex-militante do movimento estudantil pelotense. Renato
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teve seu nome escolhido como depoente em virtude de sua trajetória dentro do M.E e
também pelo seu trabalho como pesquisador acerca do ressurgimento do referido
movimento no estado do Rio Grande do Sul, no período da redemocratização do Brasil.
Além dele, entrevistamos duas irmãs que militaram neste movimento, no período
referenciado, assim como mais duas ex-militantes. A primeira mulher à ser entrevistada
foi Rosane Brandão, que foi estudante de História na UFPel e por já ser mãe de dois
filhos não militou organicamente no movimento, mas em várias manifestações ocorridas
na cidade ela esteve presente, assim como, estar inteirada dos principais acontecimentos
deste. Terezinha Brandão, a segunda da nossa lista a conceder entrevista, iniciou sua
militância já no primeiro ano de faculdade, no curso de Serviço Social na UCPel. Vera
Lopes iniciou sua militante já na sua época de secundarista, no período que antecedeu o
golpe civil-militar em 1964, algum tempo mais tarde, ao se mudar para o Rio de Janeiro
onde cursou a faculdade de Direito da UERJ, continuou a militância no movimento
estudantil, no entanto, ao perceber o recrudescimento da repressão, começou a atuar
somente como jornalista profissional durante as manifestações. Ela voltou para Pelotas
no ano de 1978 e ingressou logo em seguida no curso de Ciências Sociais da UFPel,
porém não configurava como militante orgânica do movimento por também já ser mãe.
A última entrevistada foi Duca Lessa, dentre as entrevistadas, ela foi a militante que
mais se destacou dentro do movimento estudantil em Pelotas. À época, Duca cursava
Direito na UFPel e Jornalismo na UCPel, mas não concluiu nenhum dos cursos.
Um dos principais pontos destacados nestas entrevistas foi a questão do
preconceito sofrido pelas mulheres enquanto militantes, especialmente quando a
repressão partia da própria família. De acordo com os depoimentos, ao se tratar de uma
sociedade machista e conservadora, a mulher que se dedicava à militância era “mal
vista”, já que comumente esta estava exposta, estava se inserindo num espaço público,
que por sua vez, era masculino.
[...] Mas o finco familiar, de fato, o que ocorre, [...] primeiro, esse tipo de
movimentação, movimento social, movimento sindical e Movimento
Estudantil, no geral da sociedade, existe uma idéia de deslegitimar sempre
[...] no meio familiar, época de Ditadura Militar, a coisa era complicada, por
dois motivos: primeiro, pelo como vão ver essas meninas e, segundo, a
questão da repressão mesmo, que era power na época, uma repressão bastante
complicada e que isso, óbvio, freava bastante as mulheres de participar. [...]
(Rosane Brandão em entrevista em 29/11/11)
[...] as famílias não concordavam muito, eles achavam que a gente era
maluco, que talvez a gente usasse droga, que a gente não conseguir nunca
sair da faculdade e que a gente era uma cambada de louco. Se eles pudessem,
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[...] A questão das mulheres, ela tinha alguns elementos. Primeiro óbvio que
numa sociedade onde ela tem na sua estrutura social preconceitos, [...] de
alguma maneira isso influenciava no movimento, mas influenciava em
diversas esferas. Influenciava por que os pais eram contrários a participação
das filhas mulheres, por que os pais controlavam os horários que as filhas
mulheres chegavam em casa, o que não era o mesmo controle para os
homens. Então, eu acredito que o machismo, não vou dizer que não existisse,
mas não havia de uma forma clara, explícita, a preocupação de dificultar
mulheres de entrar. (Renato Della Vechia em entrevista em 24/11/11)
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trabalhadoras rurais nas frentes de emergência. (Pólo Sindical Sertão Central, 2004. p.
24).
Com efeito, por meio do alistamento das mulheres realizado pelos sindicatos, as
trabalhadoras conseguiram ter o direito de empregar-se nas frentes de emergência. Para
que o trabalho feminino fosse reconhecido e valorizado, as mulheres decidiram exercer
as trabalhar separadamente dos homens, formando grupos de trezentas, quatrocentas e
até de quinhentas trabalhadoras.
Diante dessa conquista, o MMTR – Sertão Central iniciou a organização do o 1º
Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central, nos dias 15 e 16 de
dezembro de 1984, com o apoio do sindicato de trabalhadores rurais do Sertão Central e
da FETAPE.
Cartaz 1 – Cartaz do 1º Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais Sertão
Central. 1984.
das mais célebres escultoras da antiga União Soviética, a artista russa Vera Ignatyevna
Mukhina, proeminente nome da arte realista socialista. Na imagem de um homem
aparecia segurando seu martelo enquanto a mulher com a mulher empunha a foice,
ambos celebrando o ideal socialista.272
Fonte: FETAPE
272
Com 24 metros de altura, 75 ton-monumento, a mais célebre obra de arte de Vera Mukhina, o trabalhador
monumento gigante e Mulher Kolkhoz, foi feita de chapa de aço inoxidável sobre uma armação de madeira, as
placas ligadas por um método inovador de soldadura por pontos. Uma mão de cada figura tem, respectivamente,
um martelo e uma foice, os dois instrumentos se juntam para formar o martelo e foice símbolo da União Soviética.
Disponível em: <http://malomil.blogspot.com.br/2012/01/era-o-seu-nome.html>. Acesso em: 30 jun. 2012, às 15
horas.
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Fonte: FETAPE
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Fonte: FETAPE.
Considerações finais
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que não refletiam uma visão libertadora, mesmo que fragmentada, nos campos da vida
pessoal e do prazer (KUCINSK, op. cit., p. 82). É nesse grupo que encontramos os
jornais que buscavam a partir de uma critica do machismo e do conservadorismo moral
da sociedade brasileira positivar uma imagem do homossexual em contraposição aos
discursos e saberes vigentes na época, representado pelos segmentos conservadores da
sociedade, que a negativava.
Entre esses jornais pode-se destacar a figura do Lampião da Esquina, um
mensário – com redação instalada no Rio de Janeiro, mas que contava com uma equipe
editorial também em São Paulo – produzido por um conselho editorial assumidamente
homossexual e que “foi de grande importância na medida em que abordava
sistematicamente, de forma positiva e não pejorativa, a questão homossexual nos seus
aspectos políticos, existenciais e culturais.” (FRY & MACRAE, 1983, p. 10).
*
O Lampião da Esquina, não foi o pioneiro como forma de publicação gay no país.
Segundo Edward MacRae, “entre a década de 1960 e inicio dos anos 70, chegaram a
circular cerca 27 publicações gays no Brasil” (MACRAE, 1990, p. 69). No entanto, o
Lampião da Esquina, ou o Lampião, como ficou conhecido273, se distinguia de seus
antecessores que tecnicamente possuíam um caráter mais artesanal, mimeografados ou
fotocopiados, distribuídos de mão em mão, pelos próprios editores em pontos de
encontros de homossexuais, como festas, bares, saunas, etc., além disso, dispunham de
escassos recursos financeiros.
O Lampião além de trazer uma maior qualidade técnica de edição, e poder
garantir de forma independente um número considerável em suas primeiras tiragens –
chegando a dez mil exemplares –, apresentava um corpo editorial experiente no ramo
jornalístico – como Aguinaldo Silva que foi um dos principais colaboradores do
Opinião e fundador e conselheiro do Movimento – e acentuadamente intelectualizado. Já
na primeira edição do jornal – a edição número zero, de abril de 1978 e que tinha um
caráter experimental – o mensário trazia em seu conselho editorial nomes destacáveis
dos meios intelectuais da época. Além de Aguinaldo Silva, pode-se destacar o
antropólogo Peter Fry, o cineasta e crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, o pintor e
273
Na verdade, em sua primeira edição, a número zero, de abril de 1978, o jornal era intitulado somente
como Lampião. O nome Lampião da Esquina só apareceria em sua segunda edição, a edição número 01,
de maio a junho de 1978, para diferenciá-lo, segundo MacRae, de uma editora paulista chamada
“Lampião”, que já existia antes.
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escritor Darcy Penteado, além de intelectuais ativistas da época, como João Antonio
Mascarenhas e João Silvério Trevisan.274 Esse considerado alto nível intelectual e
profissional dos membros do jornal acabou, no entanto, dando “ensejo a alguns de seus
detratores a chamá-los de elitistas.” (MACRAE, op. cit., p. 72)
Um dos acontecimentos que pesou no surgimento da idéia de criação do jornal foi
a visita feita em fins de 1977 pelo editor da Gay Sunshime Press, de São Francisco,
Winston Leyland, com a finalidade de coletar material que serviriam para a publicação
de uma antologia de literatura gay na América Latina. Segundo James Green, a visita de
Leyland,
Mas o que buscava esse jornal? De que forma buscou uma redefinição da
homossexualidade? Que implicações essa redefinição traria para as próprias idéias
defendidas pelo jornal e para a relação entre ele e os diversos sujeitos ao qual buscava
mobilizar ou representar? São essas questões que a partir de agora buscaremos focar.
Em sua primeira edição, a número zero, o jornal traz um ensaio editorial intitulado
“Saindo do gueto”, onde apresentava seu projeto político. Como sugere o próprio título:
“Saindo do gueto”, visava-se em primeiro lugar romper com isolamento dos sujeitos
que partilhavam uma experiência de ser homossexual confinada aos espaços restritos a
esses sujeitos social e moralmente discriminados – como bares, saunas, praças
especificas, etc. Para o projeto lampiônico era preciso “dizer não ao gueto, e em
conseqüência, sair dele.” Por outro lado, buscava-se criticar e desconstruir uma imagem
negativa e depreciativa acerca do homossexual difundida e sustentada pelos saberes
médicos, religiosos, jurídicos e jornalísticos vigentes na época. Segundo o editorial da
edição número zero, o que se buscava era
274
Os outros nomes que fizeram parte do conselho editorial do Lampião da Esquina, na época de sua
fundação são: Adão Costa, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt, Gasparino
Damata. [Cf.: Lampião, n. zero, abril de 1978, p. 2.]. Sobre a ausência de mulheres, Trevisan explica que
“as mulheres (artistas e jornalistas) contatadas, no período, negaram se terminantemente a colocar
seus nomes no jornal. Daí porque a equipe era toda constituída de homens.” (TREVISAN, 2011, p. 342)
275
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(...) destruir a imagem padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele
é um ser que vive nas sombras, que encara sua preferência sexual como uma
espécie de maldição, que é dado aos ademanes e que sempre esbarra, em
qualquer tentativa de se realizar mais amplamente enquanto ser humano,
neste fator capital: seu sexo não é aquele que ele desejaria ter . (Lampião da
Esquina, 1978, p. 2)
Para acabar com tal imagem padrão, o projeto enfatizava que era preciso mais que
soluçar uma opressão “nossa de cada dia”, no qual o homossexual era vítima, ou ainda,
apenas buscar “válvulas de escape”, mas sim, conscientizar a sociedade sobre a
discriminação sofrida por uma “minoria oprimida” por sua orientação sexual – os
homossexuais. Ou seja, era preciso lembrar “que uma parte estatisticamente definível da
população brasileira, por carregar nas costas o estigma da não-reprodutividade numa sociedade
petrificada na mitologia hebraico cristã deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma
minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz.”
Assim, para os editores do Lampião da Esquina era preciso dar voz a essa minoria
oprimida, reivindicando a ela não apenas a possibilidade de um “assumir-se” e “ser
aceito”, mas nas palavras do próprio jornal, resgatar em nome desta a uma condição que
“todas as sociedades construídas em bases machistas lhe negou: o fato de que os
homossexuais são seres humanos e que, portanto, têm todo o direito de lutar por sua
plena realização, enquanto tal.”
Podemos dizer, portanto, que o Lampião da Esquina buscou uma redefinição da identidade homossexual, construindo o que
poderíamos chamar de um “orgulho de ser” para os indivíduos que podiam ser definidos nessa categoria: os homens e mulheres que
desejavam sexual e afetivamente outros do mesmo sexo. De certo modo, a atuação do mensário numa redefinição identitária reforça
lugar, desconstruir as concepções que representavam o indivíduo considerado homossexual de forma depreciativa. Os principais
alvos eram as concepções médicas e científicas em geral que viam na homossexualidade uma doença, uma anomalia do corpo ou da
mente; a moral religiosa que definiam a homossexualidade como um pecado e perversão da moral; e as representações do
Em segundo lugar, passava pela denuncia da violência e da discriminação existente nos vários setores da sociedade contra
os homossexuais. Em terceiro, buscava-se tornar visível a homossexualidade enquanto condição natural da vida humana e social,
através da divulgação dos circuitos de sociabilidades da vida homossexual – bares, saunas, discotecas, eventos culturais – nas
grandes cidades brasileiras (principalmente rio ou São Paulo, mas havia frequentemente divulgação de outras cidades brasileiras,
tanto no eixo sul-sudeste,como também no nordeste, e até na região norte); através de entrevistas de personalidades famosas
assumidas como homossexuais (Clodovil, Lecy Brandão, Ney Matogrosso; além de outros); e da publicação de reportagens e
ensaios que tinham como tema as diversas manifestações da homossexualidade – literatura, cinema, teatro, dança, música.
Em quarto lugar, buscou-se resgatar uma cultura homossexual existente e discriminada na sociedade, através da divulgação
de produções artísticas produzidas por homossexuais ou que tinham a homossexualidade como tema, resgatando assim outra
Em quinto, era preciso dar voz a homossexualidade, não apenas através das publicações dos editores e colaboradores do
jornal, mas também, de um espaço aberto a opiniões de seus leitores, processo que se dava numa seção de cartas intitulada “Cartas
na Mesa”, criando assim, num contexto ainda marcado pelo autoritarismo político da ditadura, um espaço aberto de diálogo entre o
jornal e a sociedade.
Em sexto lugar, era preciso articular a luta pela causa homossexual com as demandas de outros movimentos sociais da
condição humana, e, por conseqüência, pela defesa do ato de assumir-se como principal pré-requisito para se lutar contra a opressão.
Pois,
Mais do que uma opção do individuo, uma das definições mais recorrente no jornal
era a de que a a homossexualidade era uma condição natural, uma essência, ou ainda,
uma verdade que cada indivíduo carregava consigo e que parte da sociedade buscava
silenciar.
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Nesse ponto, um dos ensaios que traduz bem essa questão no Lampião da Esquina
é o ensaio de Darcy Penteado publicado na edição número 02, de 25 de junho a 25 de
julho de 1978, intitulado “Homossexualismo: que coisa é essa?”. Nesse ensaio,
Penteado, questiona a visão da homossexualidade defendida pela medicina e pela
psiquiatria que a classificava como anormalidade ou distúrbio (orgânico ou psíquico) do
indivíduo, ou ainda de certas perspectivas sociológicas que reforçavam essas posições.
Criticando isso, Penteado defende o caráter humano da homossexualidade, ou do
homossexualismo, que para ele é uma
(...) condição humana. E como tal, mesmo sendo atributo de uma minoria,
está exigindo o seu lugar atuante numa sociedade, com o direito a uma
existência não mistificada, limpa, confiante, de cabeça levantada. Porque só a
tolerância, como foi dada até agora, não obrigado! É muito pouco! (Lampião
da Esquina, junho/julho 1978: 2)
Vou ser franco: não gostei do jornal de vocês. Digo isso porque não acho
que ele seja um jornal de toda a classe. É meio metido a intelectual, tem
pretensões. (...) Mas e o resto? E o povão? Eu acho que vocês deveriam
fechar mais com o bicharéu, para não parecer muito elitista. (...) Onde estão
os travestis: Por que não tem um no conselho do Lampião? Só tem professor
e artista? Que democracia é essa de vocês, onde o povo também não vota?
(Lampião da Esquina, junho/julho 1978: 19)
276
Era comum leitores assinarem suas cartas apenas com a abreviação de seus nomes ou através do uso
de pseudônimos, o que nos permite intuir que muitos receavam se assumir publicamente, ou serem
associados ao um universo homossexual.
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que por seu turno exigem um maior espaço de análise. De todo modo, esperamos ao
menos ter contribuído mesmo de forma sucinta, para o entendimento de um objeto
histórico de importância inquestionável na história da sexualidade no país e quem
conforme assinalou José Augusto Heren, “é, antes de tudo, um manifesto vivo da
recente história do Brasil.” (HEREN, 2008, p. 218)
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Resumo
Este trabalho faz parte de uma pesquisa que venho desenvolvendo há mais de dez anos
na comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, localizada no município de
Salgueiro, Sertão Central de Pernambuco, da qual resultaram minha dissertação de
mestrado e tese de doutorado, ambas na Universidade Federal do Ceará/UFC. A
comunidade foi fundada do final do século XVIII para o início do século XIX por seis
negras -possivelmente escravas fugitivas- que ficaram conhecidas como as “seis
crioulas”. Essa singularidade histórica fez com que aquela comunidade ficasse
conhecida como um lugar “mulheres fortes”, que ainda hoje lutam pela defesa de seus
direitos. O referido trabalho tem como objetivo analisar a importância da mulher
negra na história de Conceição das Crioulas, na construção da identidade étnica e nas
relações de gênero que ali se desenvolvem. A metodologia utilizada foi a pesquisa de
campo, através da investigação qualitativa, na modalidade etnográfica, acrescida de
uma discussão teórica.
277
Entendo por comunidade um conjunto de indivíduos que partilham um território geográfico e um
certo grau de interdependência, o que lhes proporciona a razão para viverem na mesma área. Acrescento,
ainda, a ideia segundo a qual a noção de comunidade inclui um sentimento muito forte de pertencimento e
compromisso mútuo, baseado em uma herança cultural, compartilhada em vários aspectos. Ademais, a
vida em comunidade pressupõe, também, experiência em comum e uma relativa interdependência. É
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Gênero e etnia
nesta perspectiva, portanto, que uso o termo comunidade, para me referir aos habitantes de Conceição das
Crioulas, que não só ocupam o mesmo espaço físico, mas, também, participam da construção coletiva de
uma mesma história e de uma mesma luta.
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A resistência à expropriação das terras das crioulas foi um dos fatores que
contribuiu para a instituição de lideranças. Curiosamente, os nomes que aparecem como
sendo de lideranças que se destacaram na fundação de Conceição das Crioulas e na luta
pela recuperação da terra são quase todos de mulheres. Os quilombolas lembram,
frequentemente, de: Chica Ferreira, Mendencha Ferreira, Francisca Presidente,
Francisca Macário, Maria Solano, Isabel Coração, Romana, Martinha, Sabrina, Maria
Rosa, Rosa Ferreira, Antônia Carneiro, Matilde, Januária e Agostinha Caboclo.
Na luta contra a expropriação das terras das crioulas os únicos nomes de homens,
sempre lembrados em Conceição das Crioulas, são o de Antônio Domingos, Antônio
Andrelino(seu Totô) e Luiz Simão. Mesmo assim, são colocados como coadjuvantes,
sendo os companheiros de Agostinha Caboclo nas viagens em busca de recuperar a
posse da terra. Pelo menos são essas as impressões que temos ao conversar com
moradores e quando entramos em contato com os jornais produzidos pela comunidade
em que fazem circular ideias, valores, imagens e tradições.
278
Garrote Monte é a denominação de um dos sítios que compõem a comunidade quilombola de
Conceição da Crioulas.
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279
Jornal Crioulas: a voz da resistência. Ano 3, nº 8- agosto de 2003, pág 7
280
Jornal Crioulas: a voz da resistência. Ano 2, nº 6- dezembro de 2004, pág 7
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281
Depoimento do Senhor Antônio Andrelino Mendes, prestado ao Projeto Comunidades Quilombolas,
da UFPE/FACEPE - 1997.
282
Depoimento do Senhor Antônio Andrelino Mendes, prestado ao Projeto Comunidades Quilombolas,
da UFPE/FACEPE - 1997.
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tinha pessoas.... [risos deixando entender que eram pessoas que lhe
interessavam283] ( ISAURA, 2006).
Dona Isaura, que se identifica como “caboca” mas também se reconhece como
tendo uma ancestralidade negra, ao contar sua história, revela questões muito
significativas: primeiro, que ser negra em Conceição das Crioulas significa também
estar aberta para assumir outras identidades, devido a proximidade com as aldeias
indígenas da região; segundo, que suas ancestrais indígenas (o caso de sua avó) foram
vítimas de agressão e submissão do machismo predominante no passado. No entanto,
assim como Romana e Chica Ferreira, dona Isaura também desafiou os padrões sociais
tornando-se mãe solteira e depois unindo-se a outros homens sem o casamento, uma
instituição muito valorizada há até bem pouco tempo no sertão nordestino; também
revela-se uma pessoa que, na juventude, divertia-se e era feliz.
283
Depoimento citado por Maria Aparecida de Oliveira Souza.In: SOUZA, Maria Aparecida Oliveira. AS
MULHERES, A COMUNIDADE DE CONCEIÇÃO E SUAS LUTAS: as histórias escritas no feminino-
Dissertação de mestrado. Brasília, UNB: 2006(mimeo).
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284
Jornal Crioulas: a voz da resistência. Ano 1, nº 3 novembro de 2003, pág 8
285
Jornal Crioulas: a voz da resistência. Ano 3, nº 8- agosto de 2005, pág 7
286
Depoimento do quilombola Andrelino Antônio Mendes, em entrevista feita por mim, em 07/04/01
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um movimento negro também, e lá ela teve apoio deles e, daí para cá a luta não parou
mais287”( SILVA, 2000). “Givânia dá visibilidade à questão quilombola, nos informa de
tudo e é uma pessoa que a gente sabe que não vai se vender288” (MENDES, 2010).
Há oito anos Givânia deixou a comunidade para mora em Brasília. Mas, se,
enquanto morava em Conceição das Crioulas, Givânia protagonizou a cena política do
movimento ali estabelecido, agora que está em Brasília, em espaços mais amplos,
através dos cargos que ocupa[no Incra]289, encaminha (pode encaminhar) as demandas
dos quilombolas através de um diálogo mais próximo com os representantes do Estado.
Além de enfrentar o embate político com parlamentares conservadores que no
Congresso Nacional tentam impedir o avanço das conquistas do movimento quilombola.
287
Depoimento da quilombola Maria Valdeci da Silva, em entrevista feita por mim, 20/01/00
288
Depoimento do quilombola Antônio Mendes, em entrevista feita por mim, em 29/01/10
289
Givânia foi subsecretária das comunidades tradicionais da Secretaria Especial de Promoção de
Políticas da Igualdade Racial, durante a gestão de Matilde Ribeiro e, atualmente, Coordenadora Geral
de Regularização de Território Quilombola do INCRA,
290
Depoimento de Adalmir José da Silva, liderança quilombola, em entrevista feita por em 28/01/10
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Observe-se nesse caso, portanto, mais uma vez a presença da mulher, como
expressão de liderança em Conceição das Crioulas, corroborando, assim, com o
pensamento de Maria Aparecida Oliveira Souza, segundo o qual o movimento de
Conceição das Crioulas é construído a partir de “histórias femininas”(SOUZA, 2006).
Nas reuniões as mulheres sempre estão na frente. Basta dizer que tem
uma mulher em Conceição, como Lia (Aparecida Mendes), por
exemplo, que pra falar com ela é a coisa mais difícil do mundo,
porque ela vive viajando. Eu considero isso importante, porque se as
mulheres não fizessem isso o movimento ia abaixo, porque os homens
não se envolvem muito292”(SILVA,2009).
291
Givânia em entrevista ao Diário de Pernambuco. Disponível no site:
http://www.diariodepernambuco.com.br/2008/11/20/politica7_0.asp
292
Depoimento do quilombola Raimundo Antônio da Silva, citado por Souza( 2006, p,114).
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(...) Ana Belo é minha vó, a minha vozinha querida e ela é uma
pessoa insistente nas coisas que faz, é uma pessoa assim, com quem
me inspiro para lutar, geralmente quando estamos quase fraquejando
ela é uma das pessoas que a gente procura pra conversar e pra se
fortalecer e, apesar dela ter 85 anos e saber que a luta não é fácil, ela
nunca desestimula, ela ta sempre nos incentivando a ir à frente apesar
das dificuldades293(SILVA, 2004).
293
Depoimento da liderança quilombola Maria Aparecida Mendes Silva , citado por Souza (2006,p. 94)
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Nas entrevistas que fiz com as lideranças masculinas, e nas muitas conversas
informais que tivemos, sempre fizeram questão de enfatizar que não existem disputas
políticas em torno da questão de gênero em Conceição das Crioulas. Ao contrário,
dizem sentirem-se felizes com esse diferencial, pois não é comum na sociedade.
Esse ponto de vista não é unânime entre todos os homens. Como é de se esperar,
diante da heterogeneidade que marca a composição da sua população, nem todos os
habitantes de Conceição das Crioulas reconhecem o tradicional poder de liderança das
mulheres; principalmente aqueles que não se consideram “quilombolas”, como o Senhor
Manuel Leite, ao afirmar: “nunca alcancei esse tempo de muié mandano aqui não. A
orde é dos home! Onde diabo é que muié governa nada? Então num tinha home nesse
tempo? Eu acho que era assim mermo! Num vê falar nas crioulas? Então num tinha
homem! Hoje as que quere mandar num dá certo” 295(LEITE, 2000).
Considerações finais
Não se pode negar que é reveladora a iniciativa das mulheres de Conceição das
Crioulas em diversos momentos da história da comunidade, principalmente, hoje, na
liderança de um movimento político tão complexo. Vejo-as como a evidência da
importância das mulheres e suas posições de sujeitos na estrutura social.
No entanto, apesar de todo protagonismo da mulher negra de Conceição das
Crioulas não posso afirmar que as “seis crioulas” e suas descentes mais próximas -
mulheres desafiadoras de padrões sociais do seu tempo e guerreiras na defesa de seu
território - tivessem implícita na sua luta qualquer ideologia feminista ou coisa do
gênero. A conclusão a que chego, a partir das representações dos informantes, sobre as
mulheres que lideraram no passado, é que estas defendiam os direitos de um grupo que
tinha o seu território ameaçado por "pessoas vindas de fora", não se constituindo,
naquele momento, nenhum movimento feminista, com os significados impressos, por
exemplo, às experiências de movimentos de mulheres, na sociedade brasileira dos
últimos vinte anos.
Ao analisar a atuação política de Givânia Silva, Aparecida Mendes e outras
mulheres, na atualidade, e comparando-a com aquela exercida por Agostinha e suas
antecessoras – as seis crioulas-, constatei diferenças significativas. Até porque, trata-
294
Depoimento da liderança quilombola Maria Aparecida Mendes Silva, durante um evento na
FACHUSC, março de 2010.
295
Depoimento do Senhor Manuel Leite, em entrevista feita por mim, em 06/09/00.
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se, hoje, de uma nova luta, que assume novas características, com dimensões mais
amplas, dentro de uma sociedade que se também se transformou com o passar do
tempo. E, nesse percurso, as ações de homens e mulheres, ali, se transformaram. Em
primeiro lugar, porque passaram a se perceber como negros e negras, rompendo, assim,
com uma tradição secular, de negação da negritude por motivo de medo ou vergonha,
enquanto hoje é motivo de orgulho; segundo porque, ao assim se perceberem, passaram
a lutar por direitos específicos do povo negro. Nesse contexto os discursos e as ações
feministas fazem todo sentido.
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RESUMO
296
Graduanda em Bacharelado em História pela Universidade Federal de Pernambuco
297
Graduanda em Bacharelado em História pela Universidade Federal de Pernambuco
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ABSTRACT
In 1969, when the Brazilian society believed it was close to a possible democratic
return, the military government striked it with the famous and hardest Institutional Act
(AI): AI-5; However, surprising a possible repression logic, near by the 70's, the LGBT
comunity, - allied to the feminist movement and other minorities - gained a voice and a
face: newspapers, plays, songs and artists appeared to embrace the gay cause. Our
paper, based on newspaper (Especially "Lampião da Esquina”), maganizes, biographies
and documentaries are looking to show this LGBT "out of the ghetto" movement,
without, of course, stop commenting the heavy repression and consequences that this
movement suffered during this period.
INTRODUÇÃO
298
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. 20ª ed.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 605-606.
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299
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 957.
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segue essa linha corre o risco de não perceber os casos excepcionais que precisam ser
analisados de forma especial, mas o inverso também acontece porque uma sociedade
sem leis fixas torna-se desordenada, pois fica sem ter uma base para se guiar e acaba
seguindo cegamente às ordens do governante.
Os militares ao imporem suas vontades à população não levando em
consideração seus desejos, seguindo as leis quando estas lhes eram favoráveis, sendo
extremamente repressores com toda e qualquer forma de oposição ao regime, agindo
apenas em benefício da classe dirigente, dentre outros atos, faz com que coloquemos a
ditadura militar como um mau governo. E esse mau governo, até certo ponto foi
favorável à questão dos homossexuais, pois a prioridade era combater os que se
mostravam contrários ao regime, que não se importaram com essa minoria que no início
não apresentava um engajamento político relevante o suficiente para ser supervisionada.
Contanto que continuassem em espaços fechados, vivendo na clandestinidade, só
aparecendo durante o período carnavalesco – onde os homossexuais gozavam de uma
semiliberdade – eles poderiam continuar com seus atos “subversivos”.300
As razões que levaram o movimento homossexual a participar mais ativamente
da vida política brasileira foram ao poucos sendo acumuladas, mas podemos apontar
como estopim o término do governo Médici somado à abertura “lenta, gradual e segura”
empreendida no governo Geisel; a criação do jornal Lampião da Esquina e o
surgimento do SOMOS: Grupo de Afirmação Homossexual – originalmente chamado
de Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais –, que apareceram graças ao
abrandamento da censura; e finalmente, temos a aproximação com os movimentos
feminista, negro e índio, principalmente com o feminista que levantava questões a
respeito do patriarcado, da rigidez dos papeis e gênero e aos costumes sexuais
tradicionais, que terminou confluindo para os mesmo propósitos do movimento
homossexual a partir de 1978.
O Lampião, jornal abertamente feito para e por homossexuais, trazia um claro
cunho político, além da pretensão de tirar os “gueis”301 do gueto, enquanto que o
SOMOS articulava reuniões com homens e mulheres homossexuais e incentivava por
300
GREEN, James N. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São
Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 399.
301
O termo aportuguesado pela comunidade homossexual já existia, mas foi popularizado através das
publicações do Lampião, visando alcançar a adesão dos homossexuais das classes mais baixas que
desconheciam termos estrangeiros ou mesmo brasileiros, como “entendido”, usados para colocar em
desuso palavras como “bofe” e “bicha”.
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meio do Lampião a criação de outros grupos a favor da causa gay que também
contribuíram para que houvesse maior adesão à causa. Em 1979, a organização de um
debate com as minorias proposto pela USP e que contou com a participação de diversos
ativistas dos movimentos negro, feminista, indígena e homossexual, com membros do
Lampião e do SOMOS compondo a mesa. O debate se mostrou benéfico para o
movimento homossexual que pode expor seu engajamento político, surpreendendo tanto
os ouvintes como os ativistas dos outros movimento que nunca ouviram falar dessa
militância gay.302
No dia 16 de dezembro de 1979 houve o Encontro Nacional do Povo Gay, tendo
como objetivo organizar e expor os ideias que o movimento propunha. Esse encontro
contou com a participação de vários grupos ativos que apresentaram propostas a serem
debatidas, evidenciando a rápida ascensão do movimento e o aprofundamento deste na
esfera política.303
Se a década de 70 foi marcada como o início da luta das minorias, a de 80 pode
ser considerada como a que teve o maior número de marcos históricos para os
movimentos, em particular o movimento gay. O I Encontro Brasileiro de
Homossexuais, que teve sua cobertura feita pelo Lampião304, ocorreu em abril de 1980,
e teve diversos assuntos discutidos e problematizados como “A questão lésbica”, "O
machismo entre homossexuais", "Papéis sexuais", "Michês" e "O travesti e a repressão".
O Encontro teve bons resultados, pois o movimento homossexual se consolidou e
reorganizou os interesses dentro do grupo, como foi o caso das lésbicas que se viam
melhor representadas pelo movimento feminista e por isso acabaram se desligando do
grupo SOMOS, criando o grupo Lésbico-feminista305. Nessa década também houve uma
petição iniciada pelo Grupo Gay da Bahia para que a homossexualidade, na época
também chamada de homossexualismo, fosse tirada da lista de doenças do Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).
A dissolução do SOMOS, por causa de conflitos ideológicos internos, e o fim do
Lampião da Esquina fez com que o movimento gay perdesse seus maiores
302
Lampião da Esquina, ano 2, n. 10. Rio de Janeiro, março 1979, p. 9.
303
Lampião da Esquina, ano 2, n. 20. Rio de Janeiro, janeiro 1980, p.7.
304
Lampião da Esquina, ano 2, n. 24. Rio de Janeiro, maio 1980, p. 3 e segs.
305
ZANATTA, Elaine Marques (1997). Documento e identidade: o movimento homossexual no Brasil na
década de 80.
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incentivadores na luta por seus direitos, além de propostas feitas por partidos políticos a
respeito das mudanças que seriam implementadas na sociedade para que houvesse
adesão das minorias. O Partido dos Trabalhadores, por exemplo, propunha levar a
questão da homossexualidade para a classe trabalhadora e alegava que esta era a única
classe que tinha interesse em fazer uma verdadeira revolução social, coincidindo assim
com os desejos da militância homossexual.
Outro fator determinante foi o surgimento da AIDS no Brasil em 1982, que foi
definida como uma doença trazida pelos gays, apesar da doença também ter sido
detectada em hemofílicos heterossexuais infectados por transfusões sanguíneas ou
relações sexuais desprotegidas. As primeiras mobilizações para combater a epidemia
foram lideradas por militantes homossexuais, por causa da demora do governo em
tomar providências, e essas mobilizações não se restringiam apenas no âmbito solidário,
como também solicitavam resoluções por parte do poder público.
A partir desse momento, o movimento gay mudou seu foco. Se antes a principal
preocupação de seus ativistas era com a reforma total da sociedade, agora os principais
pontos defendidos diziam respeito aos direitos civis e à luta contra a violência e a
discriminação, o que tornou o movimento mais simples e organizado.
direitos até hoje. Mas antes, que é a minoria? Este termo é densamente utilizado
principalmente a partir da década de cinquenta – quando o estudo a respeito destes
grupos sociais começou a ser priorizado, até os dias de hoje. É necessário que
analisemos o termo para então seguirmos com nosso comentário sobre o movimento
LGBT.
A minoria, e, naturalmente, sua relação com a chamada maioria está ligada às
manifestações de poder. Ao longo dos tempos, questões culturais, econômicas e
políticas, que se sobrepõem uma sobre as outras, contribuem para a construção e
imposição dos chamados “modelos sociais”, que estão presentes em todos os ramos e
aspectos que, juntos, culminam na sociedade. Assim, indivíduos que não condizem, não
concordam, não acatam ou se encaixam com tais requisitos, são julgados como
“diferentes” (no sentido negativo do termo), e estão sujeitos à exclusão e repúdio pela
camada majoritária. É uma das razões pelas quais, no século passado, temos registros de
homossexuais – tomados como subversivos à sociedade, eram sujeitos à prisão,
internação em manicômios e outras sanções306. Não obstante, se são minoria e estão à
margem, subentende-se que estes indivíduos não desfrutarão dos mesmos direitos e
tratamentos daqueles que cumprem com o que lhes é imposto. Assim, trata-se de um
grupo de indivíduos em desvantagem.307 No Brasil, retrata-se tal processo de exclusão e
contato a partir do momento em que os homossexuais saem das casas de seus familiares
em busca de melhores condições de convivência que encontrarão, futuramente, na vida
noturna – daí o crescimento dos estabelecimentos voltados para este público.
Convém ao nosso pensamento tomar o machismo como fator principal para a
formação destas minorias. Temos aqui uma sociedade que, até hoje, herda muito do
306
“[...] os loucos de rua, mendigos, bêbados, homossexuais, prostitutas e “xangonzeiros”, muitas vezes,
foram encaminhados aos manicômios e às prisões a fim de serem legitimados nestes lugares como
pessoas inferiores, tendo em vista o bem da ordem social. [...] Durante o Estado Novo, [...], as diretrizes
tomadas pelos governantes continuaram a ser nada favoráveis às pessoas internadas nos manicômios,
cada vez mais superlotados.” (MIRANDA, Carlos Alberto Cunha, “A Utilização da Convulsoterapia nos
Hospitais Psiquiátricos nos anos 30, 40 e 50”)
307
GREEN, N. James; TRINDADE, Ronaldo (Org.) Homossexualismo em São Paulo e outros escritos.
São Paulo, Editora UNESP, pág. 56
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pensamento machista que atravessa os séculos, que foi potencializado pelo avanço
científico do século XIX, principalmente no que se diz à Psicanálise. Freud, ao escrever
a obra intitulada “Três ensaios sobre a teoria da Sexualidade” (1905) constrói a ideia de
que há determinados “critérios de normalidade” estabelecidos e dogmatizados nas
culturas através dos tempos, e a questão da sexualidade está, naturalmente, inserida
nestes critérios. Assim, a homossexualidade é tomada como “sexualidade desviante”,
libidinosa e pervertida – pensamento que é amplamente rebatido graças aos estudos
mais atuais - cabe a nós citar, por exemplo, Foucalt308, que retrata muito bem este
pensamento de “sexualidade desviante” de Freud como uma forma de controlar os
indivíduos. Esta forma de controle é tamanha, que associa-se a ideia de gostar de uma
pessoa do mesmo sexo como abdicar de sua masculinidade ou feminilidade – daí que
surgem os chamados “ativos”, “passivos”, “bichinhas”, “bofes”, termos pejorativos para
determinar quem cumprirá o papel de homem e de mulher numa união homoafetiva.
Desta forma, construiu-se a ideia de heteronormatividade309 – que exige, na formação
de casais, o cumprimento obrigatório do papel de homem e mulher pelos indivíduos –
suprimindo a homossexualidade, “errônea”. Não obstante, convém dizer que, ao
mergulharmos ainda mais profundamente na história das sociedades, a relação
homoafetiva era tomada como algo natural para o desenvolvimento do homem grego
(aliás, os termos homo e heterossexual eram desconhecidos ao vocabulário da língua
grega)310.
Munidos destes questionamentos, vimos que esta minoria, antes imóvel em
quesitos políticos, passa a se conscientizar da própria situação – a de marginalidade.
São, os homossexuais, vistos de forma desigual e encurralados nos becos dos próprios
308
FOUCALT, Michel. História da Sexualidade : Volume I – A Vontade de Saber, Rio de Janeiro,
EDIÇÕES GRAAL Ltda.
309
– Termo criado por Michael Warner em 1991, na sua obra “Introduction: Fear of a Queer Planet”, que
veio a ser largamente adotado e alvo de debates e livros a respeito do discurso de gênero. Cathy J. Cohen
define a heteronormatividade como “a prática e as instituições que legitimam e privilegiam a
heterossexualidade e relacionamentos heterossexuais como fundamentais e ‘naturais’ dentro da
sociedade”. (2005)
310
– LINS, Navarro Regina. A Cama na Varanda, Edição Renovada e Ampliada, 2007, Editora Best
Seller, Rio de Janeiro, pág 214
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mundos - Ora, não serão incomodados, desde que não incomodem ninguém. O que os
fazem inferiores, questionam-se: gênero? Sexualidade? É a partir desta discussão a
respeito da condição sexual que se agitarão as causas gays no Brasil – a chamada
Primeira Onda311, num total de três, do movimento LGBT.
O Lampião da Esquina refuta a questão do gênero ao utilizar-se do termo
“guei”, não apenas para simplificar ou aportuguesar o termo inglês, mas para
desmistificar termos pejorativos que contribuem para a própria opressão, e, assim, tirá-
los do gueto, dar-lhes voz independentemente de esquerda ou direita. Aliás, a princípio,
o jornal se chamaria “Esquina”, já que tal local era uma espécie de ícone da periferia na
qual os homossexuais (bissexuais, travestis e outras minorias marginalizadas)
circulavam. No entanto, já haviam registrado uma mídia escrita com este nome, assim,
optaram por “Lampião” – devido a (má) iluminação das esquinas. Mas, durante a edição
do logotipo do jornal, surgiu a ideia de “brincar” com outro Lampião: Virgulino
Ferreira da Silva, o Rei do Cangaço e tido como maior ícone do machismo brasileiro na
época. Assim, já desde o título, tínhamos um jornal que prezava pela sátira e afronta aos
ideais de gênero.312
Em pleno período de ditadura militar, tais afrontas poderiam representar até
mesmo risco de vida para aqueles que escreviam o jornal – no entanto, vemos que o
desejo pela liberdade de expressão grita mais alto que o medo dos militares. A Primeira
Onda do movimento LGBT será ousada e corajosa ao questionar o gênero e o
preconceito em pleno período de repressão, quebrando aos poucos com o machismo que
está presente na mentalidade de, até mesmo, aqueles que o combatem – é, sim,
praticante e vítima machismo, um homossexual que permanece no “gueto” por medo de
ser reprimido e condena outros que o façam; é, sim, praticante e vítima do machismo a
mulher que arranja o casamento da filha quando o seu próprio também foi arranjado; é
machismo quando boa parte da sociedade da época acusa os homossexuais por trazer a
AIDS para o Brasil quando nem mesmo eles – que se consideram superiores – se
previnem e acabam por espalhar a doença também; ou quando um soldado do exército é
afastado de suas obrigações por gostar ou se apaixonar por um colega de profissão.
311
– FACCHINI, Regina. Histórico da Luta LGBT no Brasil, CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP – Nº
11 : Psicologia e Diversidade Sexual, 2011
312
- Entrevista com Aguinaldo Silva ao canal Resistir é Preciso, no Youtube.
http://www.youtube.com/watch?v=2z9uyCRF7ic (acessado em 18/03/2014)
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CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
RESUMO:
O presente artigo pretende analisar como o cinema capta as memórias através da
produção discursiva das mulheres militantes no período de ditadura civil-militar
brasileira. Para tanto se faz necessário problematizar a produção cinematográfica como
um divulgador de memórias coletivas e refletir sobre a construção da memória de
mulheres que militaram neste período, a partir do cinema. A abordagem centrada no
campo das relações gênero se faz necessária, pois busca pensar as mulheres como
sujeitos ativos deste processo e as especificidades na participação destas na luta contra o
sistema ditatorial vigente entre 1964 e 1985. Estes aspectos serão visualizados no
documentário, Vou contar para meus filhos, de Tuca Siqueira.
Palavras-chave: Memórias, Gênero, Cinema.
1. INTRODUÇÃO
314
BURKE, Peter. Os fundadores: Lucien Febvre e Marc Bloch. In: A Escola dos Annales- 1929-1989:
A Revolução Francesa da Históriografia. Tradução de Nilo Odália. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
315
Para mais informações consulte: NÓVOA, Jorge. Apologia da relação cinema-história. In. Cinema-
História: teoria e representações sociais no cinema. Org. NÓVOA, Jorge e BARROS, José D’Assunção.
2ª ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
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Anos sem se ver e a emoção do reencontro traz a tona um jogo de lembranças dos anos
convividos. Junto a isto, se dá a revisitação da Colônia Penal onde ex-militantes se
conheceram e dividiram a vida, resistiram e lutaram pelo que acreditavam ser uma
melhor forma de viver.
No segundo momento este, conta com entrevistas de vinte e uma (21) ex- presas
políticas. As entrevistas giram em torno de questões centrais da vida pessoal anterior a
militância, a entrada da militância, a detenção e as torturas, a prisão no Bom Pastor e a
construção destas mulheres enquanto sujeito nos anos subsequentes ao fim da ditadura.
Nos relatos de memória feitos por estas mulheres, é possível perceber a
construção da memória coletiva. Os depoimentos se entrelaçam ao falarem sobre si
também estão falando das outras que compartilharam da mesma vivência e que assim
passaram a fazer parte da vida uma da outra.
Isto não quer dizer que todas expressam, lembrem e sintam as mesmas coisas
quanto ao período que estiveram presas. Pois, o lembrar, traça ligações entre passado e
presente, de forma a se referir às suas vivências no período de militância e de prisão no
Bom Pastor, a partir de conceitos e vivências adquiridas posteriormente ao
acontecimento que se propõem narrar, quanto a isto Barros (2009, p. 37) nos afirma
que:
A Memória, portanto, já não pode mais nos dias de hoje ser associada
metaforicamente a um “espaço inerte” no qual se depositam lembranças,
devendo ser antes compreendida como “território”, como espaço vivo,
político e simbólico no qual se lida de maneira dinâmica e criativa com as
lembranças e com os esquecimentos que reinstituem o Ser Social a cada
instante.
Pensar os lugares da memória provoca um amplo debate pelas possibilidades
que a mesma traz para a discussão, dentre elas o lembrar e o esquecer. No tocante ao
lembrar, Rosa (2013, p.97) - a partir da discussão de Halbwachs sobre memória coletiva
-, nos traz que “[...] lembrar não é reviver. Lembrar é repensar e mesmo reconstruir com
imagens e ideias de hoje, as experiências do passado.” Desta forma pensamos na
memória não como algo estático, fixo e sim como algo em constante construção. A
memória estaria assim sempre em movimento entre o passado e o presente.
Este movimento efetuado pela memória fica expresso nas falas da ex-militantes
que a todo tempo lembram-se do período de ditadura civil-militar, mas estão sempre
expressando suas impressões sobre suas ações na militância a partir de resultados que
estas vieram ter nos anos 2000, por exemplo. Eles elementos são percebidos ao
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Dentro desse contexto sócio- educativo é que as militantes em questão iram ficar
presas por alguns anos. Porém antes de serem levadas a Colônia Penal, as mesmas
passaram por outros espaços destinados a prisão por questões políticas, como no DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social) e no DOI-CODI (Destacamento de
Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna).
Atividades como pintar, ler, conversar, praticar ginásticas e dar aulas, traziam
fugas mentais daquele espaço delimitado onde as mesmas estavam presas. As
resistências se faziam presentes das formas mais sutis possíveis, ao serem afetadas pela
reclusão a que estavam acometidas, pelos espaços limitados e pela violência a qual
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estavam vulneráveis, estas criavam e “criar é resistir”, segundo nos traz Deleuze (2004),
quanto a estas artes de criar dentro da Colônia Penal do Bom Pastor, nos conta Maria do
Socorro Diógenes:
“Quando eu entrei pro PCBR e entrei na clandestinidade eu já estava
no terceiro ano de faculdade e no curso de letras eu estudava português e
francês. E eu era apaixonada pela língua francesa. E na prisão você sabe,
você fica meio sem fazer nada, né... Sem uma atividade, então eu resolvi da
aula de francês pra elas, então eu ensinava, treinava conversação, né.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tais abordagens, o cinema entra como um meio para a captação de
memórias, sendo uma das formas mais democráticas e eficazes de popularizar as
narrativas sobre os acontecimentos do período da ditadura civil-militar.
A memória em seu movimento entre a necessidade de lembrar, para contar para
seus filhos, como traz o título do documentário, transmitir as vivências e as lutas para as
futuras gerações, de modo a não deixarem que no país se instale outra vez um sistema
político que cesse da população o direito a cidadania e que use da violência como forma
317
Este trecho encontra-se presente na apresentação da Terceira parte do livro da autora Susel Oliveira da
Rosa, Mulheres, ditadura e memória.
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ROSA, Susel Oliveira da. Mulheres, ditaduras e memórias: “Não imagine que precise
ser triste para ser militante”. São Paulo, Intermeios, Fapesp, 2013.
SANTOS, Charisma Cristina Alves Tomé dos. Um olhar sobre a Colônia Penal
Feminina do Recife: dinâmica e compreensão do perfil da mulher no cárcere.
(Monografia), Faculdade Integrada do Recife. Direito Penal e Segurança Pública, 2009.
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RESUMO
questão dos horrores viabilizados pela catástrofe da Ditadura que matou seu filho e logo
mais supostamente também a mataria.
ABSTRACT
The period of Civil Military Dictatorship stands out among democracy fights, injustices,
moral, mental, physical pain and also the resistance. In this article we will look
specifically the woman's symbolic resistance trough the parade protest prepared by
Zuzu Angel that through fashion and modalities of beauty, gave visibility to the issue of
horrors enabled by the catastrophe of Dictatorship that killed his son and soon also
supposed to kill her.
Key-words: Dictatorship; Zuzu; Fashion protest.
atenta à realidade da situação política e social que o Brasil passava em plena ditadura.
Porém no ano de 1971 em plena ascensão do governo do presidente Emílio Garrastazu
Médici (1964 a 1974), que teve por característica a criação do Órgão Repressivo a
grupos de Esquerda, do também, Serviço Nacional de Informação (SNI), do
Departamento de Ordem Política e Social (Dops), como do Departamento de Operações
Internas e Centro de Defesa Interna (Doi-Codi), ou seja, os “porões de ditadura”, em
que todos se valiam da tortura, tanto psicológica como física, dos presos detidos por
eles, a vida de Zuzu teve uma reviravolta bastante significativa. Após o
desaparecimento do seu primogênito, Stuart Angel, militante do Movimento
Revolucionário 8 de outro ( MR-8), passa a ser uma anti-militarista ferrenha.
A forma pela qual Zuzu Angel usa para protestar, e reivindicar a angustia que
passava, foi refletida em seus desfiles e coleções que tinham a marca de protesto com
sua expressão de agonia e pânico, por não saber do paradeiro de seu filho. Através de
um telefonema anônimo, Zuzu fica sabendo que seu filho havia sido morto pelos
militares do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) e que o tinham torturado na
Base Aérea do Galeão. Saber se seu filho estava vivo ou morto passa ser sua principal
meta desde então.
Para saber o paradeiro de seu filho, Zuzu utiliza-se de todos os recursos
possíveis: peregrinação em órgão públicos específicos de poder, indagações a generais e
outros integrantes do regime, apelos a pessoas de destaque no Brasil e no exterior (pelo
fato de seu Stuart possuir dupla nacionalidade, sendo filho de um norte-americano com
uma brasileira), apelos a anistias internacionais. Quando, por um telefonema de Alex
Polari Alverga, companheiro de seu filho na prisão, Zuzu recebe a verdadeira
confirmação da morte de seu filho, onde foi torturado até a sua morte.
Utilizar-se da moda como forma de reivindicar as questões políticas e sociais de
um meio, foi uma forma inovadora, cuja a qual ninguém havia usado desde então. A
mensagem que Zuzu vinha trazer, com o seu desfile de 1971 em Nova York (que ficou
conhecido como o Desfile Protesto) na casa do cônsul brasileiro, teve como principal
questão a oposição ao Regime Militar.
Sua coleção, que teve o tema do Desfile Protesto, passou a se chamar:
“Internacional Dataline Collection III – Holiday and Resort”. Desfile esse que, como
mencionamos acima, foi em 13 de setembro de 1971, na casa do cônsul brasileiro em
Nova Iorque. A nossa estilista trazia em suas obras a sua dor e angustia em expressão de
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VIGARELLO, Geoges. Panópilas Corretoras. Balizas para uma história. In: Políticas do Corpo:
Elementos para uma história das práticas corporais. 2,e.d- São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
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SANT’ ANA. Cuidados de si e embelezar feminino: Fragmentos para uma história do corpo no Brasil.
In. Políticas do corpo: Elementos para uma história das práticas corporais. 2,e.d- São Paulo: Estação
Liberdade, 2005.
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Zuzu inovou, trouxe à mulher (não só a brasileira, visto que a estilista era de plenitude
internacional) novos pensamentos referentes ao modo de se vestir: que seria muito mais
sensual, acompanhando o estilo das artistas aqui mencionadas, e posteriormente, com
uma reflexão, inclusive, política. Para tanto fora necessário um modo de produzir moda
diferente, de chamar a atenção de suas espectadoras e em detrimento à Ditadura (que é
nosso enfoque): se fazer entender.
Uma análise historiográfica referente aos olhares de Zuzu Angel.
Neste artigo, pensamos a permanente e inquietante interrogação sobre a
possibilidade de ir do discurso ao fato, visto que temos como pretensão analisar o
discurso da Zuzu Angel relativo às referências eventuais de perversidade e injustiças
que preencheram a história da Ditadura Civil Brasileira, possuindo como fonte a análise
da indumentária planejada pela estilista como forma de representar sua indignação
perante o vivido, o que obriga a pôr em causa a ideia de fonte enquanto testemunho de
uma realidade e de que se esta seria mesmo instrumento de mediação.
Visto que a “leitura é prática criadora, atividade produtora de sentidos
singulares, de significações de modo nenhum redutíveis às intenções dos autores de
textos” (CHARTIER, 1990, p. 123). E levando-se em consideração que a moda e,
posteriormente, a indumentária é pensado aqui neste artigo como um texto, visto,
sentido, vivido e desejado: Zuzu Angel teve como intenção principal a de produzir
sentidos em suas peças, pelo qual se faz necessário para analisar a realidade pensada por
ela através das suas representações de múltiplos sentidos. De chamar a atenção de seu
público alvo que eram as autoridades políticas, da imprensa e, da população para
atenderem à Ditadura que estava havendo no país, mas que nem todos participavam
dela, pois permaneciam ignorantes haja vista que percebemos através do trabalho
historiográfico hoje tão bem elaborado referente a época que inclusive a própria mídia
estava sendo controlada.323
Porém, o mundo da leitura não é feito de liberdade e neste período
especificamente a historiografia o apresenta com a liberdade ainda mais limitada. A
apropriação resulta do encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Os textos
323
Para mais informações ler: BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi,
2009. 176p.
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não possuem um sentido estável, isso é certo. Contudo, seu significado é construído no
terreno da negociação entre a proposição do autor e apropriação do leitor.
Tendo em vista esta perspectiva, pensamos a simbologia presente nos modelos
de Zuzu Angel como um meio de atingir a apenas aqueles que lhes era desejável, pois
não eram todas as camadas das população que tinham acesso ao vestuário elaborado por
ela, assim como,através da análise das fontes que nos foi permitida, dentre as quais a
monografia de Carla Lacerda324, pudemos perceber que os militares já estavam se
colocando em observação perante as atitudes da estilista, porém não quanto a referência
de seu trabalho, visto que não parecia uma ameaça. Daí que este seria um ótimo método
para ela reivindicar e de ser ouvida.
Portanto, nossa análise apoia-se na interpretação de Chartier, a qual diz que para
“cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou
existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado aos
textos de que se apropria” (CHARTIER, 1996, p. 20). Neste sentido, era plausível que
os militares e aqueles que estivessem associados a estes não entendessem de moda e
posteriormente deixassem passar a informação livremente sem perceber que havia
denúncia naquela. Haja vista que como dito, estes militares já haviam colocado Zuzu
em observação, pois ela tentou várias vezes denunciar a Ditadura, porém sem muito
sucesso, então pensou ela utilizar daquilo que lhe proporcionava o pão de cada dia, seu
trabalho, como meio para atingir seus objetivos tão amplamente já difundidos nesse
artigo.
Como já possivelmente visualizado, estamos pensando as ideias de Zuzu
enquanto protesto através de alguns conceitos que são fundamentais para o nosso trajeto
teórico-metodológico, dentre os quais iremos dialogar com os pensamentos
historiográficos de Roger Chartier, quanto ao que se diz respeito à representação, leitura
e apropriação.
Como diz Chartier, os textos não têm sentido estável, universal, imóvel, mas são
construídos na negociação entre uma proposição (do autor) e uma recepção (do leitor),
no encontro entre as formas e os motivos que lhes dão sua estrutura e as competências
324
LACERDA, C. D. L. MODA COMO FORMA DE PROTESTO EM DESFILE DE ZUZU
ANGEL: Nova York, setembro de 1971. 2011. 51f. Monografia (Especialização) – Universidade Federal
de Juiz de Fora. Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes e Design. Juiz de Fora, 2011.
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[...] fazem com o que recebem, e que é uma forma de invenção, de criação e
de produção desde o momento em que se apoderam dos textos ou dos objetos
recebidos. Desta maneira, o conceito de apropriação pode misturar o controle
e a invenção, pode articular a imposição de um sentido e a produção de
novos sentidos” (CHARTIER, 2001b, p.67).
325
Roger Chartier tomou de empréstimo o conceito de apropriação de Michel de Certeau.
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Também podemos perceber que a modelo desfila de modo suave, com uma
maquiagem leve, sem muitos excessos, o que passa a ser um diferencial na moda de
Zuzu, em que as cores se faziam mais que presentes, mas nas roupas, chamando a
atenção dos espectadores especificamente para este local.
Outra grande questão que podemos analisar nessa foto, é a ousadia das pernas de
fora, e do decote bastante profundo (para os padrões morais da época). Observemos
também, que esse tipo de vestimenta, com um decote avantajado e a saia acima do
joelho, era uma inovação nas décadas de 60 a 70, em que a “libertação do corpo sedutor
se faz bastante presente nesse período, como se a mulher desse momento pretendesse
passar uma mensagem”. (SANT’ANA, 2002).
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pré-1914 (como ele mesmo menciona). Quando ele diz que “o desaparecimento das
armaduras e tecidos e barbatanas que encerravam o corpo feminino em público já era
antecipado pelas roupas soltas e flutuantes, popularizadas no final do período, pelas
vogas do esteticismo intelectual da década de 1880, do art-nouveau e da alta-costura
pré-1914” (HOBSBAWN, 1988).
Essa inovação no conceito de moda, como podemos analisar nas palavras de
Hobsbawn, não foi algo repentino. Como se de uma hora para a outra, os conceitos
formadores da noção de vestimenta obtivessem seu progresso. Foi algo gradativo, e o
mais importante é que essa “modernização” se deu através da mudança da condição
feminina ao longo dos tempos. Em momentos que as mulheres foram deixando o espaço
privado, da vida na casa se restringindo ao cuidado com a família, para o espaço
público, na sua ida ao mercado de trabalho e sua inserção na vida pública.326
A moda deixa de ser um lugar de “silêncio” para torna-se um agente falante.
Uma voz feminina, uma demonstração do anseio da mulher de não ser sempre chamada
de: “sexo frágil” ou “o segundo sexo” como é dito nas falácias populares. Ela, a moda,
perpassa por caminhos da fala feminina.
E assim fez Zuzu, uma mulher que não só se utilizou da moda para mostrar essa
mudança no cenário feminino. Mas também mostrou a sua indignação e repulsa á um
Estado Ditatorial e despótico, encharcado de sangue e mortes em suas mãos. Onde uma
de suas mortes foi a de seu filho.
Referências bibliográficas
BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009. 176p.
CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leitura. In: HUNT, Lynn. A nova história
cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
326
Para maiores informações: LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas
sociedades modernas. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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_____. A “nova” história cultural existe? In: LOPES, Antônio H.; VELLOSO,
Monica P.; PESAVENTO, Sandra J. História e Linguagens. Rio de Janeiro: 7Letras,
2006.
DOURADO. Lila. Zuzu Angel Uma Mulher Com Vestes à Flor da Pele. Ceará, 30
jul. 2012. Disponível em: http://queroupavestirei.blogspot.com.br/2012/07/zuzu-
angel-uma-mulher-com-vestes-flor_30.html. Acesso em: 10 mar. 2014.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios. Tradução Sieni Maria Campos e Yolanda
Steidel de Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
VIGARELLO, Geoges. Panópilas Corretoras. Balizas para uma história. In: Políticas do
Corpo: Elementos para uma história das práticas corporais. 2,e.d- São Paulo: Estação
Liberdade, 2005.
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GT 6
327
Doctora y Magister en Historia por la Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul,
PUCRS. Profesora post-doctoranda del Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural da Universidade Federal de Pelotas –UFPel- Brasil, por el Programa Nacional de Post Doctorado
Institucional de la Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -PNPDI/CAPES-.
Desenvuelve el Proyecto sobre "Políticas Públicas de Memoria: ciudadanía y usos del pasado en el
ámbito del Mercosur", junto al sub-proyecto "Memoria y Políticas de Memoria: Patrimonialización y
memorias traumáticas en el ámbito del Mercosur (1984-2011). Curriculum completo: http://lattes.cnpq.br/
7567936924117809
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anasosagonzalez@gmail.com
RESUMEN
Introducción
Trabajamos en este proceso de restitución simbólica,
en este presente que se hace historia con vínculos,
con relaciones, a sabiendas de que nuestros pasados
traen demandas que no caducan.
(SECRETARIA DE DERECHOS HUMANOS PARA EL
PASADO RECIENTE, 2013).
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328
En Uruguay, la construcción de estos espacios o lugares de memoria comienza en 2001, cuando se
produce la Inauguración Oficial del Memorial en Recordación de los Detenidos Desaparecidos, en el
Parque Vaz Ferreira, ubicado en el Cerro de la capital: Montevideo (sobre la ladera del punto natural más
alto de la ciudad), un barrio obrero de larga historia y tradición militante. Un dato interesante es que dicha
acción se produce bajo el gobierno de los llamados partidos tradicionales o históricos, en este caso
durante la presidencia de Jorge Batlle (del Partido Colorado), siendo además el primer presidente que
reconoció desde el Estado la comisión de delitos violatorios de los derechos humanos. El memorial
construido en la pendiente del cerro con vista a la bahía del Rio de la Plata, es de hormigón, acero
inoxidable y vidrio, en cuyas paredes se colocaron 174 nombres de uruguayos desaparecidos durante la
dictadura. La obra se dispone de tal manera que es posible caminar entre los muros vidriados dejando al
visitante ante el silencio y la reflexión. Para obtener más información, ver:
http://municipioa.montevideo.gub.uy/node/171
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acompañada de una intensa actividad (en algunos casos sostenidas por muchos años) de
organizaciones sociales que reivindican dichos espacios/marcas, instituyéndolos.
Se trata de un proceso de (re)-construcción pública de dicha memoria –
generalmente de ritmos variables y conflictivos-, que se materializa en la instalación de
memoriales y museos, junto a otras acciones tales como reapertura de Archivos,
creación de Comisiones (para la Paz, de Derechos Humanos, Comisiones Especiales,
etc.), que documentan, recuerdan y materializan episodios claves de esos sucesos,
contribuyendo a la patrimonialización de esa memoria, en el marco de determinadas
políticas públicas que se orientan hacia la defensa del “derecho de memoria”, de los
derechos humanos y de la democracia. Con ellos se busca promover la reflexión pública
sobre los procesos históricos que se narran y generar intercambios que fortalezcan la
promoción de los derechos humanos y civiles. Por otra parte, lo que se da a conocer, se
muestra y evoca a través de diversos tipos de testimonios representa una memoria
traumática, un deseo de concientizar, que obedece al mismo tiempo a sucesivos
reclamos de diversas organizaciones y sectores de la población y a acciones que el
Estado uruguayo en los últimos diez años viene emprendiendo a través de una serie de
políticas públicas en torno a ese pasado.
Revisitar un pasado –antes silenciado o negado- no es tarea fácil, ni para la
sociedad que se lo propone, ni para los gobiernos que deben lidiar con dichos procesos
siempre acompañados de conflictos, intereses, juegos políticos, verdades que no han
sido develadas entre otras cosas.
En el Cono Sur, las dictaduras de las décadas de 1960, ’70 y ’80 representan un
quiebre, son un divisor de aguas de tiempos que aún no se han superado. Las
organizaciones civiles y personas víctimas de violaciones a sus derechos en aquel
período, continúan reivindicando sus derechos, reclaman verdad y justicia, reparaciones
(simbólicas o económicas), realizan nuevas denuncias, solicitan investigaciones. Por
esta razón en Uruguay se creó una Comisión Especial para recibir las denuncias del
período, que
desde 2010 resolvió 366 casos y otorgó 277 reparaciones económicas a
familiares y víctimas de terrorismo de Estado. Entre 2010 y lo que va de
2013, la Comisión Especial otorgó 318 reparaciones simbólicas a través del
documento, mientras que otras 161 personas fueron reparadas en salud. Hasta
la fecha se llevan resueltos 366 casos. Durante ese período las reparaciones
económicas totalizaron 277: 78 niños nacidos en cautiverio o permanecidos
detenidos con sus padres más de 180 días, 148 familias de víctimas fallecidas
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Por otra parte, desde los años 1980, un importante número de investigaciones
sobre el pasado o “historia reciente” viene adquiriendo importancia a través de los
procesos de testimonialización que se vienen suscitando en sociedades con experiencias
traumáticas recientes. De este modo, la historia testimonial gana espacios en el ámbito
académico (FERREIRA y SOSA, 2012).
Asimismo, las investigaciones realizadas desde diversas áreas del conocimiento
de las ciencias sociales han contribuido a estos procesos de reivindicación memorial y,
en varios casos con las investigaciones que llevan adelante las Comisiones estatales.
Parece entonces, que están dadas ciertas condiciones sociales y políticas que han
puesto en marcha un proceso de reivindicación de memoria del pasado reciente, que
exige verdad y justicia, y por sobre todas las cosas su más amplia difusión por diversas
vías.
Así se produce un proceso de reconquista y reconstrucción de la memoria
silenciada en épocas de la dictadura, se genera una interesante oportunidad no solo para
los investigadores de esta temática, sino especialmente para que los propios Estados y
sus ciudadanos, comprendan y profundicen más aún sobre los complejos mecanismos
de construcción de memoria colectiva, así como también los de olvido colectivo,
permitiéndose una instancia de cuestionamiento a un pasado en que la violación
sistemática a los derechos humanos y el terrorismo de Estado es tomado como centro de
la cuestión, en medio de conflictos, disputas y “guerras de memoria”.
Con la asunción al poder en varios países de grupos opositores al régimen
dictatorial de entonces se viene procesando una serie de quebrantamientos de aquellos
“pactos de silencio”, lógicamente, obligando a hacer nuevos pactos, ya que en esta
selección se están silenciando otras memorias; tal como ha sucedido a lo largo de la
historia, se ponen acentos en unos aspectos dejando otros de lado, de acuerdo a
demandas sociales, pugna de grupos, intereses políticos, etc. (SOSA, 2011: 341)
Se produce entonces, una nueva valoración y discusión del pasado asumiendo
protagonismo otros actores político-sociales. Al mismo tiempo este proceso somete al
investigador a una responsabilidad y acción que no debe ignorar. El hecho de estar
trabajando con fuentes donde gran parte de ellas no habían podido ser explicitadas, y
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discurso y direcciona la gestión patrimonial, en la cual los poderes siempre están allí,
definiendo el terreno y las reglas de juego. Para el autor son esos discursos la columna
vertebral de las activaciones patrimoniales por la gran importancia que tienen para el
poder político, en la medida que cumplan con el objetivo de alcanzar el mayor grado de
consenso posible para que parezca legitimado y conforme a la realidad socialmente
percibida (PRATS: 2005, 20-21).
Memoria e historia: la difícil tarea de trabajar con los testimonios del período
ditactorial.
Testimonios que aportan a la Historia, que representan memorias de distintas
características, que combaten el olvido a través de su difusión, contribuyen a dar a
conocer episodios silenciados al mismo tiempo que se intenta elaborar un relato,
unificador, coherente y de continuidad propia de la Historia como disciplina ocupada en
crear una narrativa que haga el pasado inteligible.
La memoria siempre fragmentada y pluralizada, se aproxima a la Historia por su
“ambición de veracidad” (Ricouer, 2000), pero la memoria no es la historia, sino objeto
de ella, siendo pasible de manipulación política e ideológica, y campo de disputas y
tensiones. Asimismo Paul Ricoeur (2000) cuestiona si no sería conveniente una
negociación entre la memoria y el olvido, advirtiendo la existencia de un período de
reserva a la espera de poder ser comunicado, al mismo tiempo que existe un olvido por
destrucción de los vestigios. De este modo, los archivos, las memorias, y en este caso el
testimonio, como denuncia específica de hechos sucedidos en determinado período, son
una manera de evitar no sólo la destrucción de los vestigios sino propiciar su difusión y
proponer medidas compensatorias de diversa índole a las víctimas de las acciones de los
derechos humanos cometidas por el Estado durante la dictadura.
El actual Decano de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de
la Universidad de la República –UDELAR-, el Dr. Álvaro Rico es quien dirige el
equipo de historiadores en las investigaciones que viene realizando el Estado a través de
la Secretaría de Derechos Humanos para el Pasado Reciente desde 2005. En entrevista
reciente Rico hace referencia a los trabajos publicados como resultado de dichas
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329
Ver: http://www.uypress.net/uc_46079_1.html
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Por otra parte Rico destaca "la relación del equipo con el uso responsable de la
información y con los funcionarios que custodian esa información" (RICO, 2013) y, en
ese sentido, el aprendizaje que supuso para el equipo trabajar con información
clasificada con criterios propios de la fuerza policial y militar, hacer uso de la misma,
manteniendo un régimen de confidencialidad.
A la pregunta que le realizan a Rico en la entrevista citada sobre si el tener
acceso a dichos archivos generó tensiones con el grupo de Madres y Familiares de
Detenidos Desaparecidos, contesta:
Y luego agrega:
330
Es el nombre genérico con el que se la menciona habitualmente. La ley 15.848 de diciembre de 1986
de la Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado –nombre correcto de la misma- ha sido la gran traba
para llevar adelante las investigaciones y el proceso de reconstrucción histórica y de reparación a las
víctimas. En disconformidad con esta Ley se realizó una campaña de recolección de firmas para
derogarla. En abril de 1989, luego de que más de un 25% de la ciudadanía uruguaya habilitara con su
firma el plebiscito para derogar dicha ley, se llevó a cabo el referéndum, con el triunfo del llamado "voto
amarillo" (por el color de la papeleta) con un margen de 57% contra 43% a favor del “voto verde", lo que
significó no derogar la ley de caducidad, episodio que se repetirá en 2009, bajo la presidencia de Tabaré
Vázquez, cuando se vuelve a plebiscitar en las elecciones nacionales confirmando la vigencia de la ley:
47,98% votaron a favor de habilitar la enmienda para incorporar la anulación parcial de la ley a la
Constitución, la enmienda propuesta se dio por rechazada, ya que necesitaba más de 50% de los votos
emitidos para ser aprobada. En 2010 el Frente Amplio, partido de gobierno (que fuera prohibido durante
la Dictadura) presentó un proyecto de ley interpretativa de la Constitución que en los hechos anulaba los
artículos 1°, 3° y 4° de la Ley de Caducidad. La Cámara de Diputados lo aprobó con el voto favorable de
50 diputados del partido. En 2011 el proyecto de ley fue aprobado con modificaciones por el Senado, por
lo que fue necesario que volviera a la Cámara de Diputados donde, esa vez, no obtuvo los votos
suficientes para su aprobación definitiva. Finalmente el 27 de octubre de 2011, el Parlamento aprobó la
Ley N° 18.831 de restablecimiento de la pretensión punitiva para los delitos cometidos en aplicación del
terrorismo de Estado hasta el 1° de marzo de 1985, catalogando además dichos delitos de lesa humanidad.
A esto hay que agregar que en 2011 la Corte Interamericana de Derechos Humanos solicita a Uruguay
eliminar los obstáculos que impiden las investigaciones y enjuiciamientos entendiendo que se violaban
los acuerdos de Derechos Humanos firmados por el país.
331
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
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Como fuera dicho existe en Uruguay una serie de políticas públicas de memoria
que se orientan a la búsqueda de la verdad y justicia, investigaciones y reparaciones de
diversa índole. Pero todo este proceso tuvo avances y retrocesos, según el Informe
Anual realizado por Amnistía Internacional Uruguay, en 2011 se
hizo pública la sentencia de la Corte Interamericana de Derechos humanos en
la que se ordena a Uruguay a eliminar los obstáculos que bloquean las
investigaciones y los enjuiciamientos por violaciones de derechos humanos
cometidos durante los años de gobierno cívico militar […].
En octubre se aprobó la ley que, en la práctica, anula los efectos de la ley de
caducidad de la pretensión punitiva del Estado de 1986 y revocaba las normas
sobre prescripción que habrían impedido que las víctimas presentaran
querellas.
En junio, el presidente Mujica dictó un decreto que revocaba las decisiones de
presidentes anteriores sobre qué casos de presuntas violaciones de DDHH se
podían investigar. Este decreto abrió la posibilidad de que se reabrieran
alrededor de 80 casos. En octubre se formularon denuncias en nombre de más
de 150 sobrevivientes de tortura (AMINISTÍA INTERNACIONAL
URUGUAY, 2011)332.
Luego agrega que en diciembre de 2011 se reconocieron los restos del maestro
Julio Castro y en marzo de 2012 en cumplimiento con la sentencia de la mencionada
Corte Interamericana el Estado uruguayo reconoce su responsabilidad en la desaparición
forzada de María Claudia García de Gelman, y en ese mismo mes aparecen los restos
que fueran luego reconocidos como los de Ricardo Blanco (todo esto también
detalladamente documentado en el Informe Anual de 2012 de la Secretaría de Derechos
Humanos para el Pasado Reciente, y mencionado en la página web de la Universidad de
la República - UDELAR). Igualmente, el informe de Amnistía aclara que “seguirá
monitoreando las políticas del Estado para el cumplimiento de los derechos a la
memoria, la verdad, la justicia y la reparación, para garantizar que el Uruguay cumple
con sus responsabilidades” (AMINÍSTIA INTERNACIONAL URUGUAY, 2011).
Por su parte la Secretaría de Derechos Humanos para el Pasado Reciente –
SDDHHPR-en su Memoria Anual de 2013, resalta que la “colaboración del equipo en
las respuestas a Oficios Judiciales enviados a la Secretaría de Derechos Humanos para
332
Ver más en: https://amnistia.org.uy/
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el Pasado Reciente continúa siendo una de las tareas centrales de este período”,
destacando los avances en dichas respuestas y advirtiendo que hubo un
aumento en las solicitudes referidas a personas que sufrieron la prisión política,
manteniéndose, igualmente los pedidos de información sobre detenidos-
desaparecidos, asesinados políticos, torturas, centros clandestinos y unidades
militares que funcionaron como lugares de detención (SDDHHPR, 2013, p.
5)333.
333
En dicho documento se explica la estructura de los informes que elaboran el equipo de historiadores: 1
- Un informe técnico-pericial que da cuenta del contexto en el que ocurrieron y se desarrollaron los
hechos (contexto de detención, reclusión y muerte, según corresponda), resumiendo la información que
luego se amplía en la ficha personal. 2 - Ficha personal con los datos de la víctima (en caso de que se trate
de un detenido-desaparecido o asesinado político). 3 - Documentación hallada en los distintos archivos
(Fichas patronímicas confeccionadas por los distintos servicios de inteligencia o fichas prontuariales de
otras reparticiones). 4 - Documentación relacionada con el operativo de detención, reclusión, desaparición
y/o muerte, según corresponda. 5 - Organismos de seguridad del Estado intervinientes (SDDHHPR, 2013,
p. 5).
334
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente Es necesario destacar que la
página no ha sido actualizada desde setiembre de 2011, en entrevista realizada al Dr. Álvaro Rico en
noviembre de 2013 se menciona que estaría pronto para su publicación en 2014 los nuevos resultados de
las investigaciones realizadas. Ver: http://www.uypress.net/uc_46079_1.html
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335
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
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Por otra parte, agrega que los archivos, repositorios documentales o depósitos de
documentos consultados por el Equipo de historiadores desde el inicio de su trabajo
“suman un total de: 25 (17 de ellos, estatales)”, continuando incluso el trabajo
comenzado en el primer período, por lo que se volvió a consultar y revisar archivos de
la Dirección Nacional de Inmigración, de la Cancillería y de la Secretaría de
Seguimiento de la Comisión para la Paz “a los que se sumaron, por primera vez, otros 5
archivos a los que se tuvo autorización y acceso para la revisión de nueva
documentación”337 (estos son los del Ministerio de Defensa Nacional, los del Ministerio
del Interior y de la Suprema Corte de Justicia).
336
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
337
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
338
In: http://www.fhuce.edu.uy/index.php/ddhh-sociedad/pasado-reciente
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uruguayos detenidos-desaparecidos en el país (ellos son los de: Ubagesner Chávez Sosa,
Fernando Miranda, Julio Castro y Ricardo Blanco Valiente).
patrimonio, lo que una vez más obliga a ampliar y problematizar el concepto a la luz de
los nuevos discursos que activan dicho patrimonio –en el sentido que Llorenç Prats lo
coloca-.
Por otro lado, en la medida que este proceso se amplía y gana espacios no sólo
en el ámbito académico, sino de la sociedad, se atienden reclamos de víctimas (aunque
muchos de ellos se consideren no contemplados aún), se abren diversos espacios de
escucha para quienes fueron testimonio y/o víctimas de aquel período, permitiendo la
difusión de información antes silenciada y negada y especialmente permitiendo que las
generaciones posteriores, se concienticen frente a estos temas para que no vuelva a
ocurrir, y así sensibilizar y promover los derechos humanos en su más amplia expresión.
Por último se considera interesante la reflexión de Rico en esa dirección, en la
que se busca trascender lo estrictamente vinculado al período:
Si el Uruguay, que bajo la dictadura fue el mayor país con presos políticos en
el mundo, no se vincula con el Uruguay que hoy tiene una altísima población
carcelaria donde las generaciones jóvenes son la nutriente principal, como lo
fueron durante la dictadura, entonces no es ni comprender la dictadura ni el
presente de los uruguayos si no establecemos ese hecho como problema, no
como descripción. […] Si no, cómo se explica que en una sociedad
'integradora', como se la definió desde la excepcionalidad, se haya incorporado
en algún momento de su historia reciente el discurso del 'enemigo político' y la
necesidad de asesinar y desaparecer a ese enemigo político (RICO, 2013).
Bibliografía
SOSA, Ana Ma. González. “Ahora que se puede contar: un aspecto de la memoria
traumática presente en los uruguayos emigrados al Brasil”. Caderno de Resumos e
Anais do VI Encontro Regional Sul de Historia Oral, Pelotas, maio de 2011. In:
http://ich.ufpel.edu.br/historiaoral/noticias/anais.html pp.341-352. Acceso: 12 de abril
de 2012.
UNIVERSIDAD DE LA REPÚBLICA. Investigación sobre la dictadura y el terrorismo
de Estado en el Uruguay (1973-1985), Montevideo, FHCE- CSIC, 2008, en 3 Tomos.
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ligados ao histórico Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sobre isso Airton de Farias
nos revela que:
339
Maria do Carmo Serra Azul: Estudante secundarista da Escola Normal e militante
da Ação Popular (AP). Entrevista realizada em 15/05/2013. Atualmente, é diretora do
Sindicato dos Aposentados Fazendários do Ceará.
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“O CESC era a entidade secundarista, ele que fazia as carteirinhas, por isso que ele
tinha recurso, aí usava o recurso pra comprar spray, pra panfletar a cidade toda,” assim
revelou Maria do Carmo. A existência de uma entidade como o CESC e o certo grau de
liberdade que ele possuía foram fundamentais para a articulação das ações do
movimento estudantil secundarista, porque a partir dele os estudantes de diversas
escolas secundaristas organizavam suas ações contestadoras à ditadura militar.
Percebendo isso e objetivando desarticular o movimento estudantil, os agentes da
repressão ocuparam a sede da entidade em 1967 e realizaram infiltrações de estudantes
a serviço da ditadura, para obterem informações a respeito das ações realizadas no
CESC e dos seus líderes estudantis. No fatídico ano de 1968, a sede do CESC foi
retomada por estudantes secundaristas ligados à Ação Popular (AP) 340 em uma
manifestação conjunta com os alunos do LICEU. Todavia, a chapa eleita em 1968 não
ficou muito tempo no comando da entidade secundarista, pois, após a decretação do Ato
Institucional nº 05 (AI-5), o CESC foi relegado à clandestinidade e perdeu o
financiamento, que era essencial para a manutenção das ações do movimento estudantil.
E quais ações poderiam ser feitas na escola mesmo diante do olhar sempre
vigilante da direção? As ações feitas na escola visavam escancarar as arbitrariedades
cometidas pela ditadura civil-militar bem como exercer um papel de conscientizar os
estudantes para a realidade política nacional. Nas palavras de Helena Serra Azul341:”Eu
comecei a participar do Grêmio, eu tenho impressão que isso foi em torno de 1965, ai
nós fazemos um jornal contra a ditadura”. Francisco de Assis Francelino342 também
comentou a criação dos jornais: “nós tivemos ainda no movimento secundarista jornais,
nós elaboramos jornais e pregávamos nas paredes das escolas”. Maria do Carmo falou
340
Organização política esquerdista oriunda da Igreja Católica.
341
Militante da Juventude Estudantil Católica enquanto estudante secundarista.
Militante da Ação Popular (AP) quando ingressou no curso de Medicina na
Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é professora do Curso de Medicina na
referida Universidade e filiada ao PC do B. Entrevista realizada em 14/05/2013.
342
Francisco de Assis Francelino Alves: Militante secundarista, pelo colégio Júlia
Jorge, e universitário na Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Atualmente, é professor
aposentado, do Curso de Filosofia, da Universidade Federal do Ceará; professor adjunto
nível XII, do Curso de Filosofia, da Universidade Estadual do Ceará e membro do
Comitê de Ética em Pesquisa Científica do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do
Ceará (IFCE). Entrevista realizada em 14/05/2013.
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das ações no Colégio Imaculada: “O que a gente fazia mais era ir às salas, aí dizia, o que
era a ditadura, que era ligada ao imperialismo americano, que a infelicidade todinha era
culpa da ditadura”. Os três depoimentos apontam para o sentido da narrativa,
fornecedora de informações sobre as ações dos militares. Em um contexto de censura
prévia das informações veiculadas, o esforço dos estudantes em escrever sobre a
ditadura representava uma tentativa de socializar a informação com outros estudantes, a
fim de driblar o silêncio imposto aos meios de comunicação. A partir do acesso à
informação sobre as torturas, prisões arbitrárias, ilegalidade das ações dos militares,
esperava-se conseguir mais companheiros para o movimento e deslegitimar a imagem
de “ordem e progresso” na nação que os militares se esforçavam para consolidar.
Contudo, mesmo o simples ato de elaborar um jornal que circulasse apenas no território
escolar não escapou da repressão. Os jornais eram retirados dos murais das escolas ou
das paredes onde eram fixados pelos estudantes, ficando apenas informações e notícias
que enaltecessem a ditadura civil-militar. Não era preciso sair às ruas para vivenciar o
clima de tensão instaurado no país.
O ambiente escolar tornou-se um meio de tensão constante, de embate de
ideias, visto que ações feitas visando denunciar os crimes cometidos pela ditadura
encontravam a resistência da direção da escola e de alunos simpatizantes do golpe
militar.
As entrevistas realizadas permitiram inferir que havia um clima de disputa
política dentro da escola. Se os alunos realizavam ações para criticar o autoritarismo
político vigente, a instituição escolar rebatia essas ações com um discurso oposto no
intuito de deslegitimar a ação dos estudantes. O professor era tido, dentro do sistema
educacional, como aquele a quem se devia respeito e admiração, sendo por vezes
considerado superior em relação aos seus alunos. Era a relação aprendiz x mestre muito
presente no ambiente escolar. Os depoimentos foram relevante para compreender que,
através das ações do movimento estudantil secundarista, os estudantes identificavam os
discursos realizados como “verdadeiros” ou “falsos”, não mais apenas pelo status que o
seu interlocutor ocupava na hierarquia escolar, mas sobretudo de acordo com seu
posicionamento político, sendo necessária uma intervenção dos estudantes para
assegurar seu espaço nessa disputa. A reação estudantil era crucial nesse ambiente de
conflito a fim de garantir representação, mesmo diante da figura de um professor.
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pensamento política das organizações clandestinas e assim obter espaço para direcionar
suas ações.
Para controlar a organização das ações dos estudantes, foi fundamental a
limitação dos espaços de ação política no interior das Universidades. Esta era a função
principal da Lei Suplicy, apresentada ao Congresso já em 1964, cujo desdobramento foi
a subordinação das entidades estudantis ao Governo, a fim de garantir um controle
estatal sobre os órgãos estudantis. Essa era a análise que os militares realizaram da
relação entre o movimento estudantil e as organizações de esquerda que começaram a
ter adesão dentro das entidades estudantis universitárias, obtendo expressiva
participação dos estudantes em seus quadros políticos. Segundo Edmilson Maia Junior,
com o aumento da centralização política imposta pelos militares na ditadura, o
movimento estudantil reagiu com veemência denunciando as prisões, crimes, torturas
para a sociedade. A partir de 1966, a relação com as organizações de esquerda tornou-se
mais intensa visto que neste ano várias entidades estudantis são comandadas por líderes
da esquerda e o movimento estudantil intensificou a incorporação da luta pelo fim da
ditadura como uma de suas bandeiras. (2002, p. 194-205)
A vinculação das questões específicas do movimento estudantil
universitário com outras mais gerais como a derrubada da ditadura ocorreu como
consequência da aproximação entre os estudantes e as organizações de esquerda. A
consolidação do governo de exceção, através das alterações legislativas e do aumento da
repressão, contribuiu para a adesão crescente dos estudantes na luta pelo fim do
autoritarismo estatal. Helena relatou que, a partir dessa vinculação, os protestos
organizados pelo movimento estudantil refletiam a união das lutas específicas e gerais:
Com um mês de faculdade, a gente faz uma grande greve, que era uma greve
por problemas específicos reivindicatórios, era uma greve por conta de um
professor, por conta de condições de estudo, aquelas questões mínimas
reivindicatórias da turma e vai aumento o nível de consciência contra os
acordos Brasil-EUA, como o MEC-USAID.
343
Inocêncio Rodrigues Uchôa: Militante trotskista e estudante do curso de Direito na
Universidade Federal do Ceará. Atualmente, advogado da Gomes e Uchôa Advogados
Associados e Presidente do Diretório do Partido dos Trabalhadores (PT), em Aracati-
CE. Entrevista realizada em 14/05/2013.
344
Gilvan Rocha :Participante das Ligas Camponesas em Pernambuco, Militante
filiado ao PCB (1958-1961), depois ligado ao trotskismo nos anos 60 e 70, atuando com
a formação de quadros políticos operários e camponeses. Foi presidente do Partido dos
Trabalhadores (PT)- Ceará. Atualmente, é militante do Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL). Autor de diversos livros sobre política. Escreve para o jornal O Povo
(Fortaleza), Gazeta do Oeste (Mossoró) e Correio da Cidadania (São Paulo). Entrevista
realizada em 16/05/2013.
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às ruas. Então os estudantes saem da pauta estudantil e vão para uma pauta
política mais avançada, eleições diretas, abaixo a ditadura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos Avançados. Vol. 5 n.11, 1991.
Disponível em: < http://goo.gl/WsRcY > . Acesso em: 24 de maio de 2013.
FARIAS Airton de. Além das armas: guerrilheiros de esquerda no Ceará durante a ditadura militar
(1968-72). Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2007.
FENTRESS, James e WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. Trad.
Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1994.
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. A Oralidade dos Velhos na Polifonia Urbana. Fortaleza: Premius,
2011.
MAIA JÚNIOR, Edmilson Alves. Memórias de luta. Ritos políticos do movimento estudantil
universitário (1962-1969). Fortaleza: Dissertação de Mestrado em História/UFC,2002.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3. Ed. São
Paulo: Contexto, 1994.
___________________________. História, metodologia e memória. São Paulo: Contexto, 2010.
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345
Winston Smith é personagem do livro ‘1984’ romance escrito por George Orwell criticando as ações
de um estado ditatorial e a necessidade de controle da informação. Esse personagem era responsável
por incinerar jornais e outras mídias que tivessem informações não interessantes ao governo.
346
Uma análise mais ampla dessas cartas em: Prezada Censura: Cartas ao regime militar. Disponível em
http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/fico_prezada_censura.pdf acessado em 27-03-2014
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imprensa e nas produções textuais sobre a MPB como cantores politizados que foram
censurados e que resistiram ao regime, estabelecendo lindas metáforas e sendo
referenciados como grandes nomes da nossa música por tais ações.
A censura moral estabelecida pelos censores militares durante a ditadura atingiu
uma grande parcela dos cantores mais populares do Brasil: Os cantores da chamada
música ‘Cafona’ romântica. Poucos são os estudos sobre esse grupo de cantores que, a
partir de suas experiências cotidianas foram responsáveis por analisar aspectos das
relações de sociabilidade através de letras/crônicas relacionadas às experiências
culturais do país anos 70, e menos ainda sobre as incidências de censura na obra desses.
Essa vertente musical foi um grande fenômeno nas rádios, nas vendagens de
discos347 e nas realizações de shows (mesmo que em lugares pequenos) nos anos 70. O
movimento musical conhecido como Cafona contou com a participação dos maiores
vendedores de discos do país naquela década como Paulo Sérgio, Fernando Mendes,
Lindomar Castilho, Odair José, Waldick Soriano e muitos outros. Suas canções foram
pertinentes crônicas sociais sobre o país justamente pelo fato dos autores dessas estarem
inseridos no meio social de baixa renda (assim como grande parte de quem os ouvia) e
de vários dilemas sociais. Observamos a relevância de discutir a censura em um
movimento que teve em seu ‘cerne’, cantores tão populares que venderam muito e
foram bastante executados nas rádios. A partir de nossa análise podemos perceber a
presença maciça de denúncias sociais além de posicionamentos transgressores em
relação aos padrões culturais vigentes à época, dando visibilidade às tensões e às
contradições com o regime disciplinador. Argumentamos que a censura agiu sobre esse
grupo de artistas visando a preservação dos ‘bons costumes e da moral cívica’.
Os cortes em letras de músicas, as proibições de temáticas e até vigilância nos
shows, diferentemente do que se imagina acerca dos anos 70, atingiu não apenas
cantores tradicionalmente lembrados como fieis opositores ao regime como Chico
Buarque, Vandré e Gilberto Gil, mas também maciçamente aos chamados cantores
‘cafonas’. Essa afirmação nos parece pertinente principalmente após a disponibilidade
dos documentos relacionados às músicas no Brasil do período militar no Arquivo
Nacional. Nessa documentação podemos encontrar vários processos de canções
censuradas ao longo dos anos 70 e suas tentativas de defesa pelos autores.
347
http://www.iaspmal.net/wp-content/uploads/2012/01/EduardoVicente.pdf -Os dados do Nopem e o
cenário da música brasileira de 1965 a 19991 (acesso em 26/03/2014)
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A partir do contato com vários processos de censura e vetos sobre canções dos
anos 70 escolhemos apresentar aqui três das canções que foram censuradas devido a
questões morais para nortear um pouco como se dava o corte ou proibições nessas
canções, salientando as justificativas dos censores e as réplicas (muitas vezes) dos
autores na tentativa de liberar suas músicas.
A seguir apresentaremos canções do cantor Odair José, um dos principais
representantes desse movimento musical e que foram alvo da censura moral. Nessas
canções esse autor nos apresenta problemas cotidianos que ainda não tinham sido
escritos em formas de música, como por exemplo, numa canção ser narrada a ida de um
homem a um prostíbulo em uma noite e o fato dele se apaixonar por uma prostituta; a
incitação a transgressão no casamento; a instituição da pílula anticoncepcional; o
questionamento do matrimônio.
Com base nesses documentos resolvemos nesse pequeno espaço comentar, por
exemplo, sobre as canções ‘Pare de tomar a pílula’ e Amantes para exemplificar o que
argumentamos acima.
Abaixo a letra da primeira canção que antes de ser lançada no disco Odair 1973
foi submetida à censura e recusada:
Pare De Tomar A Pílula
(Odair José, Polydor - 1973)
Já nem sei há quanto tempo/ Nossa vida é uma vida só/E nada mais
Nossos dias vão passando/E você sempre deixando/ Tudo pra depois
Todo dia a gente ama/ Mais você não quer deixar nascer/ O fruto
desse amor
Não entende que é preciso/ Ter alguém em nossa vida/ Seja como
for
Você diz que me adora/ Que tudo nessa vida sou eu/ Então eu quero
ver você/ Esperando umfilho meu/ Entao eu quero ver você/
Esperando um filho meu
Pare de tomar a pílula/ Pare de tomar a pílula/ Pare de tomar a
pílula/ Porque ela não deixa o nosso filho nascer
Essa canção acabou tendo uma grande repercussão quando lançada devido a um
fervoroso debate social que acontecia em torno do uso ou não da pílula
anticoncepcional. Vários setores conservadores eram contra o uso e muito se falava
sobre os danos que tal medicamento poderia trazer. Ao passo que o governo militar
(nesse período estávamos sob o rígido governo Médici) lançara pouco antes uma
campanha a favor do uso anticoncepcional como uma das estratégias do governo de
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ARAÚJO, Paulo Cesar de. Opcit, 64
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Para mais informações sobre o divórcio no país:BERQUÓ, Elza. “Arranjos familiares no Brasil: uma
visão demográfica”. In: NOVAIS, Fernando A.. (Dir.). História da Vida Privada no Brasil. Volume 4:
Contrastes da Intimidade Contemporânea. (Org. por Lilia Moritz SCHWARCZ). São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. pp. 411-438
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Referências Bibliográficas
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Ditadura Militar. 5ª. edição. Rio de Janeiro: Record, 2005.
ARAÚJO, Paulo Cesar de. O Amor e o poder: Sensação das classes populares, música
cafona enfrentou a ditadura com críticas à desigualdade e ao moralismo. In Revista de
história da biblioteca nacional.Ano 9, nº 100, janeiro de 2014.
FACINA, Adriana (org.). Vou fazer você gostar de mim: debates sobre a música
brega.Rio de Janeiro:Multifoco, 2011.
FICO, Carlos. Espionagem,policia política, censura e propaganda: os pilares básicos da
repressão. In O Brasil Republicano:O Tempo da ditadura: regime militar e movimentos
sociais em fins do século XX .FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucília de Almeida
Neves (Orgs.) 5ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
FICO, Carlos. Prezada Censura: Cartas ao regime militar. In Revista Topoi. Ano 5,
vol. 03, 2002.
NAPOLITANO, Marcos “Os Festivais da canção como eventos de oposição ao regime
militar brasileiro” In O Golpe e a ditadura Militar: 40 anos depois 1964-2004. REIS,
Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo, SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (Orgs.) São Paulo:
EDUSC, 2004.
Fontes Primárias
ARQUIVO NACIONAL Base de dados: Letras Musicais. Referência: PH.0.TXT.5893
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RESUMO: O presente artigo procura analisar de que forma se baseava a limpeza social
de formas efetivamente práticas e ideológicas na sociedade Paraibana – e
principalmente campinense – pelo grupo de extermínio Mão Branca, que, em 1980
torna-se manchete de jornais paraibanos como A Gazeta do Sertão, o Jornal da
Borborema e o Jornal da Paraíba. Baseado no caso de um esquadrão da morte de mesmo
nome surgido na Baixada Fluminense (Rio de Janeiro) e que foi responsável por uma
sequência de assassinatos de pessoas tidas como “perigosas” e que “botavam em risco a
segurança pública”. A partir disso, utilizando fontes como jornais da época e o processo
criminal do caso, iremos traçar um paralelo com o perfil de grupos de justiçamento
privado tão característicos da Ditadura Militar brasileira e através de diálogos com
autores como Paul Ricoeur e José Fernando Siqueira da Silva, iremos perceber de que
maneira a violência se instaurou enquanto “herança de uma violência fundadora” repleta
de um ideal de higienização e limpeza social no estado da Paraíba.
PALAVRAS-CHAVES: Esquadrão da Morte, Higienização Social, Ditadura Militar
Os grupos de extermínio e suas origens, ao que pode parecer, não surgem apenas
no período de Ditadura Militar (1964 – 1985), mas suas aparições e ações na história do
Brasil possuem longa data – que permeiam do período Colonial à República sob
diferentes formas (SILVA J.F.S. da, 2004, p.10). O Mão Branca foi uma das marcantes
manifestações desse fenômeno que é o justiçamento privado no Brasil (e por que não
dizer no mundo?).
Estes grupos surgem totalmente na ilegalidade – embora, em alguns casos, sejam
respaldados pelo Estado por meios obscuros e discretos – justamente a partir de uma
fragilidade, ineficiência ou ausência das instituições coercivas
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[...] dado que as instituições responsáveis pela punição do delito não funcionam e não tem
credibilidade perante a sociedade, tais instituições não são procuradas, como deveriam pela
população. Daí surge um vazio constitucional onde se abre um vasto campo para a formação de
novas instituições, informais, que agem contribuindo ainda mais para o crescimento da
mortandade homicida no Brasil. (NOBREGA JUNIOR, 2012, p.106)
Neste caso, o que ocorre é uma falha seja da polícia, do ministério público, do
sistema judiciário ou do sistema penitenciário que acaba por gerar brechas para a ação
de grupos que fazem justiça com as próprias mãos para, segundo eles, fazerem o que o
Estado deixou de fazer.
O caso específico do Mão Branca trata de um fenômeno de grandes proporções
que tomou o Brasil e até mesmo outros lugares do continente350. No case brasileiro, ele
surge na baixada Fluminense e se expande para outros lugares como São Paulo, Distrito
Federal, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte entre outros possíveis estados durante o
período da Ditadura Militar, em um cenário de muita violência e opressão em que temos
não só o Mão Branca, mas também vários outros esquadrões como o “Mão Negra”,
“Scuderie Le Cocq”, “Rosa Vermelha”, “Lírio Branco”, “Cravo Vermelho”, “Homens
de Ouro”351 entre outros que se localizavam principalmente nas regiões sul e sudeste,
agindo principalmente em estados como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.
Os principais pontos em comum que dão perfil a estes grupos de justiceiros do
período da Ditadura Militar brasileira é a motivação que os levam a cometer os
assassinatos e seus alvos. Para eles o que serviu de justificativa para os assassinatos
cometidos está justamente atrelada a essa “falha” do Estado em promover segurança
pública devida e efetiva e que a violência deveria ser um problema sanado, senão pelo
Estado, por eles mesmo, para eliminar seus alvos – “a corja da sociedade”, os ladrões,
arrombadores, traficantes e quaisquer outros que ameaçassem o bem estar e segurança
da sociedade.
350
Como a “Gangue Mão Branca” eu agia principalmente em Manhattan, Estados Unidos e composta por
irlandeses. O grupo agiu entre 1905 e 1920, aproximadamente, num cenário de disputa de contrabando
onde o grupo de extermínio matava todos aqueles que fossem dedos-duros ou traidores, além de fazerem
extorsões. Para mais informações sobre o Mão Branca estadunidense ver em:
http://artofneed.wordpress.com/2013/07/10/the-white-hand-gang/
Outro lugar que também contou com a possível presença de um grupo de mesmo nome foi El Salvador
que, segundo afirma o jornal Estado de São Paulo (Sexta-Feira, 23 de MAIO de 1980, p.06) estava sendo
formado um exército Anti-Comunista formado por vários grupos, em que um deles seria o “Mano
Blanca” que tinha como finalidade caçar todos os comunistas presentes numa “lista negra” e eliminá-los.
351
Ver artigo “São Paulo e Rio de Janeiro: A Constituição do Esquadrão da Morte” da Profª Drª Marcia
Regina da Costa no site: http://www.omartelo.com/omartelo23/materia2.html
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O Mão Branca no Brasil, que começou a atuar na baixada fluminense com pouco
tempo depois que se instaura a Ditadura Militar e é motivo para a causa de muito
controvérsia entre vários órgãos públicos e demonstração de reprovação às ações dos
justiceiros através da imprensa, como é retratado no depoimento do Ministro de Justiça
Abrahim Abi-Ackel que revela seu repúdio ao esquadrão da morte em questão352. Por
outro lado, se haviam aqueles que repudiassem os atos dos “bem feitores”, haviam
também os que compactuavam com seus feitos, como é o caso do “homem de ouro” da
policia carioca, Mariel Mariscot, que além de achar válida a atitude do esquadrão, apoia
também a pena de morte no país para sujeitos delinquentes353. Além disso, é de se notar
a própria maneira pela qual o jornal paulista trata do Mão Branca na mesma matéria da
entrevista de Mariscot, em que dirigem-se aos justiceiros como “um grupo de
extermínio de bandidos”.
Falar de bandidos nesse período da história brasileira é lembrar que havia uma
gritante diferença para as concepções atuais de “bandidagem”, onde ser comunista
(assumido ou não), ser usuário de maconha ou simplesmente ficar na rua tarde da noite
ou pela madrugada e sem portar documentos de identificação já tornava quem quer que
fosse um bandido em potencial, ou seja, as concepções para criminosos, culpados e
merecedores de julgamento no “veredito supremo” dos esquadrões da morte são bem
mais ampliados e devem ser cuidadosamente analisados quanto ao tocante da taxação de
“bandido”, “criminoso”, “meliante” e entre outros termos. Para isso devemos atentar
que a concepção de bandido nem sempre está atrelada a uma certa visão cristalizada que
habita o senso comum, mas que como Eric Hobsbawm afirma o banditismo pode
caracterizar-se por sua ordem simultaneamente “econômica, social e política, ao
desafiar os que têm ou aspiram o poder a lei e o controle de recursos” (2010, p.21). O
autor frisa ainda que “os bandidos, por definição, resistem a obedecer, estão fora do
alcance do poder, são eles próprios possíveis detentores do poder e, portanto, rebeldes
em potencial” (HOBSBAWM, 2010, p.26), portanto qualquer um que fosse contra os
princípios da Ditadura poderia ser facilmente enquadrado nesse categórico termo de
“bandido” e sofrer as devidas consequências.
Algo que, possivelmente, pode ter corroborado com esse olhar de reprovação para
com os Mão Branca, deve-se ao fato de uma ação simultânea de vários grupos de
352
Cf. Ackel reafirma combate. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. P.23, 13 de Março de 1980.
353
Cf. A favor da pena de morte. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. P.17, 18 de Abril de 1980.
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extermínio atuando por todo o Brasil, dando uma aterradora atmosfera de medo entre
alguns setores da sociedade brasileira e, no nosso caso específico, paraibana, assustando
vários populares. A partir daí, para ir de encontro às ações de justiçamento privado,
surge em cena a figura da igreja católica com a Comissão de Justiça e Paz (que agiu não
só no sudeste como em Campina Grande), estudantes da UNE, além de vários
intelectuais da época. Figuras como o promotor campinense Agnello Amorin (LEITE,
1997, p.149-150) , o bispo Dom Emanuel (Ibid., p.114), o deputado e advogado Geraldo
Beltrão (Ibid., p.60-61) e o Professor Sandro Meira da Universidade Federal de
Campina Grande (Ibid., p.66-67) deixaram sua opinião repudiando a ação do grupo de
justiceiros que começavam a agir na Paraíba (inicialmente na cidade de Campina
Grande) como relata o ex-jornalista policial da época, Ronaldo Leite.
354
Para isso utilizamos o Processo Criminal do caso Mão Branca totalmente digitalizado e que pode
encontrado no original impresso no Fórum Afonso Campos em Campina Grande – 2ª Vara Tribunal do
Juri datado de 1980.
355
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. “Mão Branca” cumpre promessa: Mocotó, Paraibinha e Queimadas
foram executados com 20 balaços. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande. p.05. Quinta-feira, 17
de Abril de 1980.
356
CLOVIS Melo de. “‘Mão Branca’ matou ‘Beto Fuscão’ Este foi o primeiro de uma lista negra. Outros
morrerão logo”. Jornal da Paraíba. Campina Grande. p. 07. Seg.15 de Abril de 1980.
357
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. O Listão. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande - p-08- Seg.
14 de Abril de 1980.
358
Outro exemplo também que merece destaque é o caso do Cabo Bruno, que ficou conhecido por adotar
o papel de justiceiro, matando vários criminosos que agiam nas regiões periféricas de São Paulo,
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entretanto por não se tratar por um grupo de extermínio propriamente dito (pois ele agia sozinho, até onde
se tem provas) acabei optando por não inclui-lo na lista de esquadrões da morte.
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com ênfase no Rio de Janeiro – que acaba por aterrorizar muitos criminosos que migram
para a região Nordeste, que inclusive é terra natal de muitos deles359.
Quando a imprensa começa a publicar pelo Estado as matérias sobre os
justiceiros, percebemos em publicações matérias sobre afirmações diretas do corpo
policial que atestavam que a cidade agora andava mais tranquila e segura, tendo o
número de queixas reduzido em torno de 70%360. Além de matérias que faziam sempre
questão de mostrar apenas “o criminoso que morreu”, “um bandido a menos na
sociedade”, “o terror espalhado pelo esquadrão da morte”, o que, por um ladoacabou
colaborando para que se formasse na opinião pública uma certa aprovação em relação
aos atos do grupo de extermínio logo cedo.361 Com o passar do tempo as publicações
dos jornais iam ficando cada vez mais aterrorizantes, havendo aqueles que não só se
expressavam contra os assassinatos promovidos pelo Mão Branca, como também
passaram a se mobilizar contra a situação assim como ocorreu no Rio de Janeiro, e no
caso campinense contou com a Comissão de Justiça e Paz, com alguns intelectuais da
época e alguns estudantes engajados, o que foi o necessário para fazer uma enxurrada de
denuncias para que se encaminhassem para o Ministério Público, como também uma
campanha contra o Mão Branca e sua brutalidade, além de uma série de acusações
contra o governo362 por sua negligência para com o caso. Contudo Ronaldo Leite afirma
que o governador se pronunciava contra as ações dos justiceiros na Paraíba (LEITE,
1997, p. 76 e 86).
A promoção dessa higienização acabou pondo em pânico vários criminosos da
cidade que passaram a fugir da cidade ou se entregar na delegacia com medo de serem
mortos pelos carrascos, dado que seus nomes estavam no famoso “listão do Mão
Branca” que havia sido publicado no jornal363. Esse efeito de terror poderia se enquadrar
no que Paul Ricoeur chama de “herança da violência fundadora”, em que “os mesmos
acontecimentos podem significar glória para uns e humilhação para outros” (RICOEUR,
359
Ver LEITE, 1997, p. 17 e 18.
360
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. Policia diz que a cidade está tranquila depois que o Mão Branca
surgiu. Coluna Opinião. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande. p.04. 28 de Abr. de 1980.
361
Como constata Ronaldo Leite, muitos vereadores eram a favor das ações do grupo (embora existissem
outros que fossem contra) (1997, p. 70-71) e também a opinião popular se mostrava muito favorável
principalmente daqueles que moravam em bairros mais elitizados, enquanto os que moravam em bairros
mais pobres muitas vezes se posicionavam contra as atitudes do Mão Branca e aparentavam sentir medo
ou então eram parcialmente a favor (1997, p. 76-78).
362
O governador da Paraíba que estava na gestão do Estado em 1980 era Tarcísio de Miranda Burity.
363
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. Marginais choram com medo do carrasco. Coluna Opinião. Jornal
Diário da Borborema. Campina Grande. p.04. 20 de Abr. de 1980.
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2008, p.95). De um lado temos “o Mão Branca que espalha o terror”: um discurso
jornalístico que vai mostrar justamente a glória da cidade de Campina Grande e
aumento da paz no Estado da Paraíba através das ações dos algozes de uma forma sutil
nas páginas de jornal de maneira que o leitor que lê sem estar muito atento a isso acaba
por deixar passar despercebido ao ver noticiários que tendem a demonstrar que a cidade
está ficando cada vez mais limpa de criminosos e segura para os cidadãos de bem (estão
exclusos aqui aqueles que estão à margem da sociedade, os que são comumente
confundidos com criminosos, mas não são); já por outro lado, há o lado dos humilhados,
daqueles que, tanto são comumente confundidos como bandidos por serem de bairros
periféricos onde “favelas e lugares segregados da cidade (bairros populares, becos e
cortiços) tornam-se espaço não só de exclusão, mas um destino certo para os
chamados\considerados ‘refugos humanos’” (SILVA L.E., 2010, p.71); daqueles que
estavam no listão sem ter nenhuma acusação legal contra si364.
Todavia é interessante ressaltar uma curiosa peculiaridade do esquadrão da morte,
que diferente de outros esquadrões, o Mão Branca também possuía em seu listão: “dois
advogados protetores de marginais”, “um PM de trânsito”, “Cabo Cabral”, “Sargento
Deca”, “Galego fiscal”, “Três Policiais Civis”, “Um policial de araque” e “Um rábula
militante no fórum”365. A presença destes homens marcados para morrer no listão dos
justiceiros revela que para além de uma higiene meramente social, havia o intento de se
fazer também uma higienização moral contra policiais corruptos, advogados que
fizessem defesa de criminosos, ou funcionários que não andassem dentro de códigos
não só criminal, mas moral onde os carrascos também prezavam por uma sociedade
mais honesta, correta e praticante de bons costumes. Isto acaba de certa forma
quebrando a tese de José Fernando Siqueira da Silva ao afirmar que os esquadrões da
morte, ao promoverem essa higienização social, elegiam os pobres como principal alvo
dessa política (SILVA J.F.S., 2004, p.71). Entretanto esta era uma peculiaridade
bastante distinta do grupo Mão Branca, em um plano geral de análise sobre o perfil de
justiceiros no Brasil, vale salientar.
364
O que nos leva a concluir que alguns nomes estavam presentes nos famosos listões (houveram dois) do
Mão Branca, estavam jurados de morte por algum problema pessoal dos integrantes com eles.
365
COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. O Listão. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande - p-08- Seg.
14 de Abril de 1980.
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Por curiosidade ou ainda por ironia do destino ou o que quer que seja, o integrante
Zezé Basílio era acusado também de extorquir de criminosos objetos furtados, como
consta no guia de recolhimento do mesmo366.
Vimos que a prática do justiçamento privado no Brasil não é uma prática atual,
mas sim algo que deita raízes profundas na história de nosso país e que acabou
assumindo uma forma bastante peculiar e singular durante a Ditadura Militar brasileira e
que foi um período por si só muito marcante nas páginas da história desse país,
somando a esse caso dos grupos de extermínio que causaram grande alarde por todos os
lados (mídia, opinião pública etc.)
E foi a partir da transmissão desses acontecimentos através da mídia impressa, dos
processos criminais e das memórias inscritas e escritas pelo ex-jornalista policial,
Ronaldo Leite, que pudemos constatar o grau de subjetividade presente em cada notícia
e matéria publicada nas páginas de jornal as tensões e sensibilidades manifestadas na
sociedade paraibana da época.
Por fim fica a experiência de uma tentativa malograda de trazer paz e segurança
ao Estado da Paraíba por meios nefastos e questionáveis aplicados pelo Mão Branca
que, assim como todos os outros esquadrões da morte na história do Brasil (atual ou
não), não diminuem em nada os índices de violência, na verdade só os aumentam.
Segurança Pública é missão única e exclusiva do Estado.
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- RICOEUR, Paul. A memória, A História e o Esquecimento. Tradução de Alain
Fraçois. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2008.
- NOBREGA JR, José Maria. Homicídios no Nordeste: dinâmica, relações sociais e
desmistificação da violência homicida. – 1ª ed. – Campina Grande: EDUFCG, 2012.
- SILVA, Luciana Estevam da. Cidade e Violência: Campina Grande na década de 1980
e as representações do “Mão Branca” nos jornais. Dissertação de Mestrado –
Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2010.
366
Guia de Recolhimento de José Basílio Ferreira. Emitido pelo Primeiro Cartório de Campina Grande –
1ª Vara. Fórum Afonso Campos em Campina Grande, 20 de Julho de 1988.
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- SILVA, José Fernandes Ferreira. “Justiceiros” e Violência Urbana. São Paulo: Cortez,
2004.
- HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Tradução de Donaldson M. Garschagen. – 4ª ed. – São
Paulo: Paz e Terra, 2010.
- LEITE, Ronaldo. A verdade sobre o carrasco Mão Branca. João Pessoa: A União,
2007.
- BICUDO, Hélio Pereira. Do esquadrão da morte ao justiceiros. São Paulo: Paulinas,
1988.
- SITES:
- http://artofneed.wordpress.com/2013/07/10/the-white-hand-gang/
- http://www.omartelo.com/omartelo23/materia2.html
- JORNAIS:
- Cf. Ackel reafirma combate. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. P.23, 13 de Março de 1980.
- Cf. A favor da pena de morte. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. P.17, 18 de Abril de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. “Mão Branca” cumpre promessa: Mocotó, Paraibinha e Queimadas
foram executados com 20 balaços. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande. p.05. Quinta-feira, 17
de Abril de 1980.
- CLOVIS Melo de. “‘Mão Branca’ matou ‘Beto Fuscão’ Este foi o primeiro de uma lista negra. Outros
morrerão logo”. Jornal da Paraíba. Campina Grande. p. 07. Seg.15 de Abril de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. O Listão. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande - p-08- Seg.
14 de Abril de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. Policia diz que a cidade está tranquila depois que o Mão Branca surgiu.
Coluna Opinião. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande. p.04. 28 de Abr. de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. Marginais choram com medo do carrasco. Coluna Opinião. Jornal
Diário da Borborema. Campina Grande. p.04. 20 de Abr. de 1980.
- COSTA, Assis; RAMOS, Hugo. O Listão. Jornal Diário da Borborema. Campina Grande - p-08- Seg.
14 de Abril de 1980.
- PROCESSO CRIMINAL:
RESUMO: O debate e a efetivação das pautas de luta pelo direito à verdade, memória e
justiça é um imperativo político imprescritível a construção de regimes democráticos
que coloca em cena, nos países que passaram por experiências de regimes autoritários a
necessidade de iniciativas políticas e jurídicas que se circunscrevem a Justiça de
Transição. Neste sentido, no Brasil através do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos
da Presidência da República de 2009 se estabeleceu o eixo Direito à Memória e à
Verdade como um dos principais eixos da política dos Direitos Humanos no país, sendo
dois anos depois aprovado no Congresso Nacional a Lei nº 12.528/2011 de autoria do
Poder Executivo que cria a Comissão Nacional da Verdade para apurar o desrespeito a
direitos humanos e promover a “reconciliação nacional” estudando o período
compreendido entre 1946 a 1988. Sendo assim, o presente trabalho objetiva fazer um
balanço crítico do relatório da CNV de um ano de atividades e discutir a relação
memória, história e poder, avaliando como a Comissão pode ser um instrumento de
disputa de memórias. Para tal, nos valemos da perspectiva marxista, especificamente da
interpretação do filósofo e sociólogo judeu Walter Benjamin e da relação existente entre
história e ciências sociais.
367
Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN e acadêmico do Bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN.
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entre o Brasil e as demais nações do mundo ocidental que passaram pela experiência
intempestiva dos regimes fundados sobre a repressão e o autoritarismo.
O que está em jogo no debate sobre a redemocratização em curso que o Brasil
atravessa é muitas questões que buscam um mesmo fim, a ação do Estado. Desde a
inconstitucionalidade da Lei de Anistia de 1979 ao julgamento penal dos atores
envolvidos com a repressão, existem demais demandas dos direitos humanos que estão
em cena graças à reivindicação dos movimentos sociais pelo direito a verdade, memória
a justiça que precisam ecoar socialmente e mobilizar ações do Estado brasileiro que se
circunscrevam a justiça de transição368.
O presente trabalho volta-se exclusivamente para uma dessas iniciativas: a
instituição da Comissão Nacional da Verdade, tal como, as disputas de memória e poder
que estão em disputa. Para além desse ponto objetivo, nos debruçamos a fazer um
balanço crítico à luz do marxismo do relatório parcial que a Comissão Nacional da
Verdade (CNV) apresentou intitulado “Balanço de Atividades: 1 ano de Comissão
Nacional da Verdade” (2013).
Neste sentido acreditamos que a Comissão – embora não esteja explícito em
seus princípios de criação – tenha o dever de servir a história brasileira ao lançar uma
luz sobre o período sombrio de nossa trajetória recente enquanto país, esclarecendo os
inúmeros casos que ainda vagam sem explicação, sendo assim, vinculamo-nos ao
filósofo e sociólogo (BENJAMIN, 1987, p. 3) ao compreender que “somente a
humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado Isso quer dizer:
somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus
momentos” entendendo que desta premissa coloca-se a frente da Comissão um grande
desafio.
Assim como o historiador marxista constrói sua narrativa com vistas ao passado,
mas com os pés firmes sobre o terreno do presente refletindo os usos de sua produção e
suas respectivas consequências no contexto da luta entre oprimidos e opressores, o
agente político da ordem se fundamenta nos acertos e erros de seus opositores para
368
Vale neste sentido, destacar o significado da justiça de transição: “o conceito de justiça transicional
surgiu no final da década de oitenta e inicio da década de noventa principalmente em resposta às
mudanças políticas ocorridas na América Latina e no Leste Europeu. Da junção de demandas por justiça e
por transição democrática, o termo justiça transicional foi cunhado para expressar métodos e formas de
responder a sistemáticas e amplas violações aos direitos humanos. Assim, justiça transicional não
expressa nenhuma forma especial de justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o
direito das vítimas, promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da democracia”
(PINTO, 2010, p. 129).
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construir um arranjo discursivo que lhe coloque em condições de vitória, todavia essa
semelhança trás um elemento que deve ser observado. Ambos os personagens não são
neutros, isentos ou imparciais nos seus julgamentos, e, por mais que o passado esteja
distante temporalmente “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo
homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras” [...] Ela é um salto de tigre em
direção ao passado” (BENJAMIN, 1987, p. 14).
Historiadores, sociólogos, filósofos, políticos e toda sorte de humanos em
exercício nos mais diversos ramos do saber são parciais e por mais que não se dêem
conta disso, estão social e ideologicamente situados. Esta “parcialidade” nos coloca
frente a uma problemática que deve ser tocada e discutida. Então o resultado do
relatório final da Comissão Nacional da Verdade será um discurso de um setor social e
não a verdade como se pretende? Primeiro, quero advogar em torno da parcialidade.
Todos nós somos parciais em nossos julgamentos e práticas – o que é normal para o
homem de cultura e linguagem –, o que não quer dizer necessariamente que sejamos
mentirosos ou que manipulemos as informações sem o mínimo de rigor científico,
utilizando-a como massa de modelar para provar nossas hipóteses. Somos críticos ao
afirmar que é impossível fugir a parcialidade e que encobrir nossas inclinações teóricas
e políticas é ato de leviandade.
Levando em consideração o que foi exposto no último parágrafo é que
entendemos como acertada a fala da advogada e cientista política Rosa Maria Cardoso
da Cunha (membro e ex-coordenadora da CNV) que no dia 25 de julho de 2013
participou de uma mesa redonda promovida pela ANPUH369 onde afirmou textualmente
que a verdade produzida pela Comissão será a verdade das vítimas e dos sobreviventes.
Sendo assim, adiantamos que este trabalho reconhece as fragilidades do emprego da
terminologia “verdade” por esta estar impregnada de um amplo debate filosófico que
neste momento não é nosso foco, portanto consideramos razoável deixar claro que o
conceito de verdade que adotamos se circunscreve a perspectiva do direito à verdade
reconhecida pela ONU como cita o professor Raphael Neves (2012, p. 166) ao tratar da
“Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o
Desaparecimento Forçado” que ocorreu em 2006 e afirma o direito de toda vítima de
369
Associação Nacional de História – ANPUH, que promoveu no dia 25 de julho de 2013 na Biblioteca
Central Zila Mamede da UFRN mesa redonda em torno da instauração da Comissão Nacional da Verdade
onde também esteve presente o advogado africano Ntsiki Sandy, ex-membro da Comissão de Verdade e
Reconciliação na África do Sul
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370
Nestes termos assinalamos que discordamos parcialmente dos autores por entendermos que o processo
de redemocratização na Argentina é notavelmente diferenciado, assim como, são avançadas o
funcionamento de suas políticas de justiça de transição, sendo um dos poucos países a levar pós-regimes
militares generais a tribunais, julgando-os.
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371
Entre 1970 a 1973 o Governo no Chile era marcado pelo crescimento e fortalecimento do setor
nacional-estatal da economia, em especial destaque para as minas de cobre, maior fonte de dívidas do
país.
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seu relatório final “Direito à Memória e à Verdade” tratou com muita clareza da
influência norte-americana:
estas cifras oscilam entre 3 à 10 mil pessoas (BRASIL, Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, p. 20-21).
No Brasil os levantamentos apontam que cerca de 50 mil pessoas foram presas
apenas no ano de 1964 (Comissão Nacional da Verdade, 2013, p. 12) e esclarecer o
episódio da Operação condor não é suficiente para elucidar a influência norte-
americana, contudo o que a CNV não coloca em evidência é o papel e a mão de ferro do
EUA, que no Brasil e na América Latina tem uma parcela significativa de
responsabilidade. As mãos do imperialismo norte-americanas estão manchadas de
sangue e o seu saber foi fundamental para pensar as máquinas de gastar gente que foram
os sistemas repressivos das ditaduras sul-americanas.
Este silêncio da Comissão Nacional da Verdade não é o único. Além da questão
norte-americana que não tem uma forte luz lançada sobre suas veredas, ainda existe
outros silenciamentos, tais como a repressão à imprensa alternativa e aos setores
culturais e artísticos. O financiamento empresarial a estrutura repressiva é tratado pela
Comissão, mas no relatório parcial, apenas poucas e pequenas considerações são feitas.
No Brasil bombas explodiram bancas de jornal, jornalistas, artistas e intelectuais
foram presos, muitos exilados. O que o Brasil perdeu em termos de cultura? O que o
Brasil perdeu com sua classe intelectual sendo submetida ao exilio? Este aspecto traz à
tona a questão da Anistia e coloca o desafio do Grupo de Trabalho “Ditadura e sistema
de Justiça”, que tem a hercúlea tarefa de fazer um balanço do processo de anistia e
apontar caminhos para que os mortos que tombaram sob as trincheiras da Ditadura
descansem em paz, ou ao menos suas histórias. Sob os silêncios só floresceram
contradições.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN. Walter. Teses sobre o conceito da história. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MARX, Karl. A ideologia alemã. Tradução de Álvaro Pina. 1ª Ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2009.
372
Basicamente, ela estabelece que o Poder Judiciário, antes de iniciar as apurações em casos de
denúncias contra militares e policiais suspeitos de cometer delitos contra os direitos humanos durante a
ditadura, deve consultar o Poder Executivo. Este investiga a denúncia e se considerar pertinente,
habilita a intervenção do Poder Judiciário.
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uma crise, mais do que por acreditarem na justiça desta decisão (LINZ e STEPAN,
1999, p.190).
Nesta perspectiva, Selva López Chirico expressa:
Em 2000, foi criada, pelo presidente Jorge Batlle, uma “Comissão da Verdade”,
chamada oficialmente de “Comissão para a Paz”. Nesse sentido, a criação da
Comissão:
373
Trata-se de uma coalizão eleitoral de centro-esquerda do Uruguai, da qual integram vários partidos
políticos e organizações da sociedade civil.
374
GONZÁLEZ GUYER, entrevista cedida em fevereiro de 2013 na Universidade da República – Uruguai.
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Dessa forma, foi iniciado um amplo processo investigativo relacionado aos atos
praticados pelos militares no período ditatorial. Nesse quadro, se situa o processo de
investigação que empreendeu o governo do presidente Tabaré Vázquez sobre o destino
dos presos e desaparecidos durante a ditadura e, particularmente, os primeiros achados
de restos humanos em sepulturas clandestinas localizadas em unidades militares, já no
fim de 2005.
Após assumir suas funções, Tabaré Vázquez, em decisão inédita, ordenou aos
comandantes-chefes das Forças Armadas a elaboração de informes a respeito do destino
dos presos desaparecidos e iniciou os trabalhos de busca de sepulturas clandestinas em
unidades militares. O grande choque social e político sobreveio com o achado de restos
humanos enterrados em uma unidade do Exército, assim como em uma propriedade
rural que estivera em mãos da Força Aérea durante a ditadura. Também começaram a
ser citados e convocados aos tribunais diversos oficiais afastados e em atividade, em
caráter de acusados e/ou testemunhas, para depor em casos de violação dos Direitos
Humanos durante a ditadura.
Dessa maneira, sem revogar a lei, foi habilitada pela primeira vez a atuação da
justiça ordenando os Comandantes Chefes das Forças Armadas a apresentarem um
informe acerca do destino dos presos desaparecidos e se dispôs a investigar as
instalações militares para encontrar evidências de tumbas clandestinas. Assim, uma
equipe de arqueólogos da Universidade da República começou a realizar escavações em
determinados prédios militares. Ainda que somente logrou-se encontrar e identificar os
restos dos desaparecidos, a transcendência histórica desse feito é enorme. Com efeito,
ficou demonstrado, contrariamente ao sustentando durante décadas pelas hierarquias
militares com o aval dos três primeiros governos democráticos pós-ditadura, que
prisioneiros foram assassinatos e enterrados clandestinamente em unidades das Forças
Armadas.
Também ficou comprovado que dezenas de uruguaios sequestrados na Argentina
foram transferidos clandestinamente e assassinados em território uruguaio. Como
consequência, a justiça processou, condenou e prendeu um grupo de repressores, além
de relevantes hierarquias militares e civis da ditadura375.
375
Os ex-presidentes de fato Juan Maria Bordaberry e Gregorio Álvarez e um chanceler da época, o Dr.
Juan C. Blanco.
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O Centro Militar é contra, como a maioria do povo uruguaio que votou duas
vezes para mantê-la. O Centro não é alheio a população civil. Foi pactuado
um acordo com todos os partidos políticos, a partir de 1985. Os militares
entregaram o poder sem nenhuma pressão, entregaram de boa fé e a Frente
Ampla acabou não cumprindo o pacto (informação verbal) 376.
Para Cedrez, essa atitude parecia uma revanche do governo contra os militares.
Ele afirma que,
os mentores disso eram de ideologia marxista [...] e são esses que nunca
denunciaram ou derramaram uma lágrima para os crimes cometidos pelo
regime estanilista na Rússia. São os piores inimigos que temos porque não
são democráticos. Sou democrático e creio que é a melhor forma de
conveniência (informação verbal)377.
376
CEDREZ, entrevista cedida no Centro Militar/Uruguai em fevereiro de 2013.
377
Idem.
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No governo Mujica houve uma forte manifestação dos militares contra decisões
da justiça de processar generais em atividade e que estão presos. Nesse sentido, Julián
González expressa que
Existia um militar em ativa no governo Mujica que foi preso pela morte de
um militante comunista em 1971, como também, outro general que estava
iniciando retiro e também foi preso. Quando esse general foi preso, todos os
outros generais em atividade com exceção ao Comandante Chefe do Exército
Gral. Rosalles foram visitá-lo sem avisar o seu Comandante Chefe. O general
preso era comandante da 4ª região no leste, fronteira com o Brasil. Como
fazer para prendê-lo? Gerou uma situação difícil, mais depois ele se entregou
(informação verbal)379.
Portanto,
Ainda persistem zonas obscuras nas relações das Forças Armadas com as
autoridades do governo. O disciplinado acatamento de ordens e disposições
do governo que manifestavam as Forças Armadas exibem, todavia, um limite
inquietante: a solidaridade corporativa com quem, vestindo o uniforme foram
responsáveis por feitos aberrantes. Algo similar ocorreu com a atuação
institucional castrense durante a ditadura. (informação verbal) 380.
378
ZANELLI, entrevista cedida em maio de 2013.
379
GONZÁLEZ GUYER, entrevista cedida em maio de 2013 na Universidade da República – Uruguai.
380
Idem.
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Por isso, no governo Mujica (2012) foi criada uma nova lei para gerar a
possibilidade de enquadrar alguns delitos como sendo de lesa-humanidade381. Essa
mudança foi empreendida porque os delitos cometidos na época da ditadura estavam
prescrevendo, acabando com qualquer possibilidade de punição por parte do Estado.
Esse fato gerou rusgas muito sérias entre a Frente Ampla, a tal ponto do então
Senador da República Eleutério Fernández Huidobro renunciar ao seu cargo como
forma de protesto com a aprovação dessa nova lei. Para ele, a base aliada estava
violando o direito de dois plebiscitos populares e que, por isso, provavelmente iria ser
declarada inconstitucional pela Suprema Corte de Justiça do Uruguai. Em entrevista
cedida, o Ministro da Defesa Huidobro expressou-se da seguinte forma:
Esta visão é corroborada pelo Centro Militar, no qual, através de seu presidente
Guillermo Cedrez afirmou que a nova lei criada no governo Mujica é inconstitucional
“porque tem aspectos jurídicos que são contra o Direito Constitucional, como não
respeitar os prazos estabelecidos para a prescrição dos delitos”.
Com a nova lei, o presidente da República perdeu o poder analisar se um delito é
enquadrado ou não na Lei da Caducidade, agora isso é função da justiça.
Apesar das dificuldades decorrentes do longo período transcorrido e da sigilosa
resistência constada desde a corporação militar lograram-se avanços de inegável
transcedência simbólica. Assim, a sociedade uruguaia vivenciou o impacto provocado
381
De certa forma, essa nova lei acabaria anulando alguns preceitos da Lei da Caducidade da Pretensão
Punitiva.
382
HUIDOBRO, entrevista cedida em fevereiro de 2013 no Ministério da Defesa do Uruguai.
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pela descoberta dos primeiros restos mortais de desaparecidos, assim como o processo
judicial e prisão do alta cúpula de políticos da ditadura além de militares que
participaram ativamente das atrocidades cometidas, nesse período. Porém,
Referências Bibliográficas
383
GONNET, entrevista cedida em fevereiro de 2013 na Universidade da República – Uruguai.
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_____________ “Para qué Sirven los Fusiles: las Dos Agendas de la Cuestión
Militar”. In. La Política en el Umbral del Cambio, Informe de Coyuntura Nº5
Observatorio Político, ICP/EBO, Montevideo, 2004.
Entrevistas
GT 7
384
Na quarta feira, dia 19 de março 2014, na coluna “poder” do jornal Folha de S. Paulo, encontramos a
seguinte reportagem: “Grupo organiza nova edição de passeata anticomunista de 64”, segundo os
adeptos desta nova “Marcha da Família com Deus”, o Brasil estaria com uma revolução comunista em
curso, sendo necessária como única solução possível a manutenção da ordem e da segurança nacional,
contra a “corrupção” uma intervenção militar no Brasil, uma suposta repetição do golpe de 1964. A
principal revindicação deste grupo heterogêneo de cristãos é uma tomada de poder dos militares com o
intuito destes “purificarem” a política do congresso nacional, desejam extirpar o “mal” das cadeiras
parlamentares. Com ideias como: “que tudo o que está aí é ruim” nas palavras duma entrevista de 51 anos
chamada Cristina Peviani, o Brasil vivia sua glória, seu esplendor no período militar, mesmo que a
entrevistada tivesse apenas dois anos quando o regime foi instituído, fala com um notório saudosismo da
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Por isso nosso estudo propõe uma investigação das relações entre saudade e
pensamento autoritário no Brasil, pois hoje ainda é visível que, certos setores da
sociedade, assim como no passado, sentem saudade das próprias estruturas passadas de
organização social. Na década de sessenta do século XX, regionalistas e tradicionalistas
ligados ao Centro Regionalista do Nordeste e posteriormente ao Conselho Federal de
Cultura, entres outros grupos, por exemplo, viam na ditadura militar um modo de frear
as mudanças e transformações desencadeadas pelo capitalismo/modernidade na
sociedade brasileira. Os valores desta elite, seus referencias temporais, literalmente sua
visão de mundo estava sendo remodelada, transfigurada, descontinuada pelas mudanças
dos tempos modernos, sendo assim, era necessário unir os conservadorismos
politicamente e agir contra os “perigos” que rondavam a nação.
Muitos destes intelectuais queriam desmantelar os movimentos por direitos de
grandes parcelas da população, desejavam o fracasso de qualquer tentativa de reforma-
agrária, não queriam um estado laico e separado das decisões de cunho religioso, não se
interessavam em gerar melhores condições de trabalho aos seus empregados. Enxergava
na máquina autoritária a salvação do modelo de mundo que sentiam saudade, mundo
escravista e patriarcal, mundo da obediência, dos códigos tradicionais, da sociedade
rigidamente formada, da não subversão. E nos dias atuais, em nome da “segurança”
setores conservadores da sociedade pedem uma ordem mais rígida, mais violenta e
excludente de modelos “desviantes”, “infames” ou “marginais” sociais. Por rastrearmos
tais vestígios históricos, por relacionarmos passado e presente, é que podemos repensar
nossos modelos políticos cotidianos e criticar condutas conservadoras na atualidade. Por
isso a emergência no presente duma história, ou melhor, dum esboço para uma teoria
385
Para uma história das teorias clássica dos sentimentos, das emoções e afecções, ver: SARTRE, Jean-
Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2012. Para uma análise atual dos
estudos acerca duma história das sensibilidades, ver: COBIN, Alain. O prazer do historiador. Rev. Bras.
Hist. vol.25 n. 49. São Paulo Jan./June 2005.Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
01882005000100002&script=sci_arttext>. Acessado em: 18 de março de 2014. Acerca da emergência
duma história das formas de pensamentos saudosos, ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de.
As Sombras do tempo: a saudade como maneira de viver e pensar o tempo e a história. In:_____
ERTZOGUE, Marina Haizenreder & PARENTE, Temis Gomes. História e sensibilidade. – Brasília:
Paralelo 15, 2006. pag. 117.
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sua região, os habitantes desta representariam de modo distinto sua cultura, seu aspecto
nacional. A categoria região continua sendo vista enquanto algo supra-histórico, no
entanto, além do meio os habitantes destas produzem certa cultura regional, produzem
traços supostamente “essenciais” nas características de identificação da formação
regional e nacional (Albuquerque Júnior, 2011, p. 53).
Estes intelectuais e artistas ligados aos movimentos regionalistas, tanto no sul da
nação quanto no norte, temiam que com o aceleramento dos fluxos provocados pelo
capitalismo moderno os territórios de suas identidades fossem tragados, as tradições do
seu “povo” (categoria abstrata e mítica) que não pareciam ser retratadas naquele mundo
demasiado moderno e esvoaçante em novidades. Com o despedaçamento dos tipos
regionais que compunham a nação, ao ver destes intelectuais, a própria nação estaria
ameaçada e encaminhada ao fracasso. Estes intelectuais de classe média, herdeiros dos
modelos de subjetividades latifundiários e escravistas, “aristocratas” por assim dizer,
iram ver estes códigos do passado, supostamente sólidos e imutáveis, se desmancharem
pelo ar com o avanço da máquina capitalista386.
Diante deste cenário trágico ao ver dos regionalistas, era preciso trazer ao centro
do palco da nação o tipo nacional ideal, o modelo regional que mais se aproximasse
duma brasilidade supostamente “pura” e “autêntica”. Do norte ao sul, por meio de
ensaios científicos, por meio de artistas plásticas, através do teatro ou da música, do
folclore, os adeptos dos regionalismos entravam em duelo elo estabelecimento
privilegiado do seu tipo nacional. Era necessário tomar a parte pelo todo, e operar uma
síntese ideal em todas as discrepâncias e diferenças dos sujeitos e enquadrá-los no
retrato nacional do sujeito regional.
Este pensamento funda uma repetição no olhar, cria imagens que se tornam pré-
moldados de significados na passagem do tempo. Cada grupo regionalista ira se institui
enquanto centro da nação. Passam a tornar seus costumes e hábitos regionais enquanto
atos genuinamente nacionais e ver os outros, os espaços diferentes, apenas como
386
Como nos esclarece Durval Muniz de Albuquerque Júnior: “O regional para o intelectual regionalista
era um desfilar de culturais raros, pinçados como relíquias em via de extinção diante do progresso. Uma
narrativa antiquário que resgatava o que estava prestes a ser passado. Nele predominava um verbalismo
de efeito, servindo o registro para marcar a diferença em relação ao homem culto e enfeitar uma prosa
carente de matéria ficcional. Ele toma elementos do folclore e da cultura popular, notadamente rural,
abordando-as com indisfarçável postura de superioridade, com um olhar distante que procurar marcar,
inclusive na própria escritura, o pertencimento a mundos diversos”. Ver, “geografia em ruínas”
in.______ ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. 5º ed.
São Paulo: Cortez, 2011. pag. 65.
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387
Hannah Arendt (1906-1975) problematiza de modo contundente os efeitos da interrupção dos fluxos
tradicionais: “O fim de uma tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais tenham
perdido seu poder sobre as mentes dos homens. Pelo contrário, às vezes parece que esse poder das noções
e categorias cediças e puídas torna-se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se
distancia a memória de seu início; ela pode mesmo revelar toda sua força coerciva somente depois de
vindo seu fim, quando os homens nem mesmo se rebelam contra ela”. Ver: A tradição e a época
moderna. In:_____. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o Futuro. São Paulo – Editora perspectiva –
1992. pag. 53.
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Holanda (1944-), levaria a “Saudade para lá388” deixando insatisfeitas tais elites
regionalistas e tradicionalistas, que ao verem erigir-se no horizonte uma dominação
política de caráter autoritário em nosso país, investiram seus desejos e aspirações nos
fluxos operacionalizados pelos grupos militares.
Uma parcela destes intelectuais e artistas (grosso modo, liberais, conservadores,
tradicionalistas e católicos), acreditava que com/nas engrenagens da máquina militar
deteriam o poder de cristalizar o tempo, e ainda mais, fazer-lhe supostamente “retonar”
aos seus modelos e referências sensíveis do passado. E é na opinião pública que estes
grupos fomentavam seus desejos autoritários de combate ao novo. O próprio General
Ernesto Geisel (1907-1996), falando em lugar dos vencedores no período, numa
entrevista concedida em 1981, momento próximo ao da abertura democrática, fala que o
movimento militar não foi revolucionário, não tinha aspiração em novas ideias, não
previa outro plano de nação, ao contrário, o movimento tinha enquanto modelo os
referencias passados de governo, estas forças da tradição, da pátria, da família, lideradas
por homens treinados, disciplinados e prontos para exilarem qualquer novidade,
principalmente no plano das condutas e pensamentos. (Toledo, 2004)
A instauração da ditadura militar em 1964 é um exemplo do quanto, liberalismo
e conservadorismo, originam-se nesse terreno duma opinião publica violentamente
oscilante; entre moderno e tradicional, entre passado e futuro, entre liberdade e
obediência, entre luta por direitos ou conformismo. Estes pensamentos capturam
consciências, anexam crentes. Estes discursos políticos, conservadores/saudosistas e
liberais/militares, unem-se, fundamentalmente, com a preocupação de restaurar os
antigos códigos, valores e hierarquias sociais baseados na autoridade, homens que
queriam tornar a serem chefes de suas casas e consequentemente da nação, da fábrica,
da sociedade em geral. Pensamentos distintos que se encontram no momento de
reestabelecer as tradições sociais, suas memórias e autoridades no passado, são duas
faces da mesma moeda, os seus mundos estando em progresso ou em decadência é o
combate ao enfraquecimento da autoridade que movem os aderentes destes discursos
(Arendt, 1992, p. 138).
388
É interessante problematizar as sensibilidades saudosas do período militar através das lentes desta
composição de Chico Buarque de Holanda lançada em setembro de 1967, vejamos um trecho: “No peito a
saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a saudade pra lá”.
Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=rodaviva_67.htm> acessado
em: 19 de março 2014.
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Com livros e terços na mão, em macha pela família, por deus e pela liberdade,
os grupos conservadores e cristãos, com efeito, tinham o desejo de converter o público
brasileiro e mobilizar toda a sociedade contra uma suposta república sindical em 1964, a
macha da família é uma expressão notória do anticomunismo e do antipopulismos
brasileiros, movimentos que iram na mesma direção de alguns dos pensamentos dos
intelectuais saudosistas e tradicionalistas do nordeste, movimentos “populares” que
clamaram ostensivamente pelo golpe de 1964 cantando o hino nacional (Codato &
Oliveira, 2004).
sentimento, incapazes de serem doces e dóceis em relação aos seus avós e tutores, estes
tipos maléficos caricaturados por Freyre, notadamente esquerdistas, subversivos,
dissidentes e comunistas, não conseguiam compreender, na visão do autor, o caráter
ontológico da sensibilidade saudosa empreendida pela máquina-regionalista
pernambucana, sua inexorável relação com as raízes e mitos nacionalistas: “Porque sem
esse sentimento, um tanto amoroso, de saudade do passado, substituído de todo por
outro, de repúdio total ao mesmo passado, não há povo que se compreenda
profundamente a si mesmo. Que compreenda o que nele é presente e o que nele é
possível de futuro” (Freyre, 1979, p. 395), os saudosistas parecem confiar na máquina
estatal do regime militar para construir esse futuro projetado pela saudade, é necessário
confiar nos homens da lei e da ordem, militares que, providencialmente, estariam
dispostos para contenção de subjetividades desviantes. Sujeitos “transviados” que
devem ser postos em formação, em continência, reimplantadas aos modelos da tradição.
Em 1966 é instituído no Brasil pela iniciativa militar, o Conselho Federal de
Cultura com o intuito de abrigar em suas estruturas; intelectuais, artistas e cientistas
preocupados em fomentar o desenvolvimento e divulgação duma cultura nacionalista-
popular. As ideias de Freyre Norteiam fortemente os membros deste órgão-militar, sua
construção do Brasil sobe o signo da identidade “mestiça” e da “democracia racial”
fazem crer que os vários regionalismos constituiriam o solo hibrido da nação
indivisível, os membros do conselho não vêm contradições entre os tipos regionais e
nacionais, mas antes pensam na interdependência de ambas as tipologias, regiões
misturadas, porém, reunidas sobe o signo maior da nacionalidade. Gilberto Freyre
participa dos membros do conselho e sedimenta fortemente o ideal patriota de “defesa
dos interesses da nação”, mostrando o quanto os militares souberam ir de encontro aos
fluxos saudosistas e conservadores destes intelectuais da tradição. Os militares
investiram na homogeneidade cultural e tinham nestes pensamentos passadistas e
nacionalistas fortes ancoradouros imagético-discursivos. (MAIA, 2007, p. 5)
Outro autor que também podemos análise no mesmo sentido de Freyre é o
teatrólogo Ariano Suassuna que a partir da década de cinquenta fica nacionalmente
conhecido por sua obra Auto da Compadecida. O teatro de Ariano Suassuna foi logo
recebido com furores entre os críticos por conseguir criar, no campo desta arte com
inclinação aos estrangeirismos, um viés nacional-popular, até então não encorpado ao
teatro nacional. Produção teatral capaz de ser entendida pelas camadas populares, não
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Por fim, com este estudo, esperamos poder ter problematizado de modo geral, a
relação entre saudosismo, regionalismo e tradicionalismo com os pensamentos
autoritários e militares do Brasil contemporâneo. Tentamos mostrar através destes
autores participes destes movimentos, em quais lugares subjetivos e sensíveis
desembarcaram as formas de ver e dizer saudosistas; que tipo de relações políticas estes
grupos realizaram, quais conexões destas sensibilidades com uma vontade de ordem, de
autoridade e tradição no país, saudade forte e historicamente sedimentada, que ainda nos
dias atuais, circula por entre os discursos e práticas dos brasileiros, territórios
irrefletidos de nossa subjetividade que é necessário se rever criticamente e ultrapassar
por uma sociedade menos penalista, menos ordenadora e conservadora, por uma
convivência plural e multiforme, sem saudade alguma de autoritarismos.
Bibliografia
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
De 22 a 25 de abril de 2014 – UFPE
RESUMO:
O presente artigo pretende analisar o Golpe Militar no estado de Pernambuco e a
deposição do governador Miguel Arraes através da passeata organizada pelos estudantes
no dia primeiro de abril de 1964, que tinha como objetivo apoiar o dirigente popular na
defesa da legalidade do seu mandato. As lideranças desta manifestação estudantil, Ivan
Rocha Aguiar e Jonas José de Albuquerque Barros, foram mortos no confronto e são as
primeiras vítimas fatais da Ditadura Civil Militar no nosso estado. Através do resgate da
memória e da valorização da História do Tempo Presente, busca-se discutir a
deflagração da “intervenção militar” em Pernambuco bem como o contexto que ele
estava inserido.
PALAVRAS-CHAVE: Golpe Militar; História Oral; vítimas da Ditadura Civil Militar
INTRODUÇÃO
No último dia do mês de março de 1964 o general Olímpio Mourão ordenou que
as tropas da IV Divisão de Infantaria de Juiz de Fora, Minas Gerias, comandadas pelo
mesmo, que seguissem ao estado da Guanabara a fim de ocupa-lo, local onde se
encontrava o então presidente da República João Goulart (Jango). A “intervenção
militar”, como era chamada pelos membros das Forças Armadas, correspondia a um
projeto que já vinha sendo preparado há algum tempo, o qual tinha como principais
objetivos restabelecer a ordem no país e reverter a subversão. Para isso, era necessário
depor do presidente de “condutas duvidosas” e entregar o poder nas mãos de quem
realmente podia governar o país, ou seja, os disciplinados militares.
Ainda neste mesmo dia, as notícias da movimentação dos militares espalharam-
se pelo país através de transmissões de rádios e de comunicações internas entre
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Quando entrou ali para ir para o prédio da SUDENE houve uma reação, eles
[os militares] já estavam defronte à SUDENE, vinham marchando, marcha
nazista, passo de gancho com aquelas pernas duras. E foi quando houve os
primeiros disparos, eu mal tinha atravessado a praça e chegado na calçada da
Seguradora, aquele prédio da esquina. Aí, mas a turma resistindo, jogando
casca de coco, os meninos estavam bebendo água de coco e jogando as
cascas de coco neles, aí foi quando surgiu os primeiros tiros. Aí correu,
recuo, e parou os tiros, aí a turma volta a querer ir mais para frente, porque a
intenção era soltar Doutor Arraes, uma reação para soltar Doutor Arraes
(AGUIAR, 2014, p. 21).
As balas foram disparadas para cima e, neste momento, alguns afirmavam que eram de
festim, entretanto o desenrolar dos fatos provou que eram “bala de verdade”.
Ivan Aguiar e Jonas de Albuquerque estavam na dianteira da passeata, o
primeiro representando o presidente da União de Estudantes de Palmares, que não
estava presente, e o último o grêmio do Colégio Estadual de Pernambuco. Apesar de
parte do movimento ter sido dispersada com as primeiras balas, os dois e outros
manifestantes continuaram marchando em direção ao Palácio Campo das Princesas,
tendo como único objetivo oferecer apoio ao governador do estado. Não se sabia se ela
já tinha sido deposto, os meios de comunicação afirmavam que sim, entretanto boatos
diziam o contrário. De qualquer forma, os estudantes não desistiam e continuavam seu
trajeto. Então, segundo o relato de Oswaldo de Oliveira Coelho Filho:
O piquete militar fez disparos diretamente contra os estudantes, ocasião em
que tombaram, com tiros de revólveres nos rostos, os estudantes Jonas José
de Albuquerque Barros, de 17 anos, secundarista do Colégio Estadual de
Pernambuco, e Ivan da Rocha Aguiar, de 23 anos, acadêmico de Engenharia
(BARROS, 2009, p.41).
Apesar do relato de Oswaldo Coelho, eles não foram atingidos por balas de
revólver, mas sim por um fuzil disparado pelo próprio Major Hugo Caetano Coelho de
Almeida, irritado com a falta de iniciativa dos soldados mesmo depois de receberam a
ordem de abrir fogo contra os estudantes (CAVALCANTI, 1980). No momento dos
disparos Severino Pereira Aguiar, membro fundador do Partido Comunista Brasileiro
em Pernambuco, fundador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Palmares e pai de
Ivan Aguiar, fugindo de Palmares para não ser encontrado e preso, tinha acabado de
chegar no Recife, mais especificamente na Ponte da Boa Vista, quando ouviu os
disparos sem saber que seu filho tinha sido atingido. Jonas de Albuquerque foi então
carregado pelo mesmo relator do momento, enrolado na bandeira do Brasil faleceu em
seus braços; enquanto que Ivan Aguiar foi levado por seu amigo João Florence, sendo
deixado com vida na rua do Rosário. Apesar de os meios de comunicação não terem
noticiado, uma vendedora da loja de produtos masculinos Remilet, que estava perto da
passeata estudantil na hora dos disparos também foi atingida pelos projeteis e faleceu.
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Várias pessoas também ficaram feridas, entre elas o estudante de biologia Ubirajara
Nunes da Silva, atingido com um tiro na perna. Questionados pelos meios de
comunicação na época quanto os mortos e feridos no dia do golpe, os militares
classificaram como uma “situação desagradável”².
Os dois estudantes foram então levados para o Hospital Pronto Socorro, Jonas de
Albuquerque, como já foi dito, faleceu no próprio local do confronto, enquanto que Ivan
Aguiar, deixado com vida por João Florence na rua do Rosário, foi resgatado pela Rádio
Patrulha e levado ao hospital. Não se sabe se o último faleceu ainda na rua do Rosário
ou nas mãos dos policiais. De qualquer forma, o óbito de ambos foi confirmado. Os dois
foram enterrados no dia seguinte no Cemitério de Santo Amaro, contando com a
presença tanto a juventude estudantil quanto de militares e agentes do governo norte-
americano. Por coincidência, foram encontrados na década de 1990 neste mesmo
cemitério os restos mortais de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária,
assassinados em 1973 pelo delegado de polícia paulista Sérgio Fleury, orientado pelo
cabo Anselmo, conhecida como a “Chacina de São Bento”. De acordo com as
lembranças de Marisa Barros, irmã de Jonas de Albuquerque e com 13 anos na época:
Enquanto os coveiros executavam a sua tarefa, a mãe de Ivan Aguiar, num
estado de muita revolta, corajosamente gritou:
- Seus assassinos! Exército miserável! Vocês mataram um filho meu, mas eu
ainda tenho quatro para vocês matarem. (BARROS, 2009, p.16).
O pai de Ivan Aguiar, por sua vez, não pode comparecer ao velório, pois ele sabia que
estava sendo procurado.
RECONHECIMENTOS E REPARAÇÕES
Desde a primeira metade da década de 70, familiares das vítimas da Ditadura
Civil Militar vem lutando pelo reconhecimento e esclarecido da morte dos seus
parentes. No primeiro momento, a ação era limitada apenas à denúncia, entretanto
recebia o apoio de alguns setores da Igreja Católica e de parlamentares oposicionistas.
Sua atuação, por sua vez, tornou-se mais intensa na segunda metade da mesma década.
Com promulgação da Lei da Anistia no final de 1979, os responsáveis pelos chamados
“crimes de sangue” não foram beneficiados, todavia mesmo após a redemocratização do
país o Governo do Estado continuava negando sua responsabilidade quanto aos crimes
cometidos entre 1964 e 1985. Em 1994, trinta anos após o Golpe Militar, uma Ordem
do Dia foi assinada pelos três ministros militares - almirante Ivan Serpa, da Marinha,
general Zenildo de Lucena, do Exército, e brigadeiro Lélio Lobo, da Aeronáutica - e
divulgada nos quartéis e nos jornais:
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têm como objetivo restituir com um valor monetário muito simbólico as possíveis
contribuições financeiras que as vítimas poderiam ter dado às suas famílias, sendo
baseadas, desta forma, na ocupação de cada um dos casos. No entanto, de forma
alguma, conseguem reparar os danos psicológicos deixados pelas perdas traumáticas,
muito menos substituem os entes perdidos.
Outras formas de reconhecimento também podem ser citadas. Entre elas destaca-
se a instalação de placas e a mudança do nome de ruas em homenagem aos
combatentes. Em relação a Jonas de Albuquerque e a Ivan Aguiar, o nome de ambos
pode ser encontrado no calçadão de mortos e desaparecidos políticos do Monumento
“Tortura Nunca Mais”, na rua da Aurora”. O grêmio do Ginásio Pernambucano, por sua
vez, prestou homenagem ao antigo estudante morto adotando o nome Grêmio Livre
Estudantil Jonas José de Albuquerque (GLEJJA). A família de Jonas de Albuquerque
também recebeu da Câmara Municipal de Olinda, em 31 de março de 2004, o título
“Brasil Passado a Limpo, 40 Anos Após”. Entretanto, no local onde os dois estudantes
foram executados, um dos marcos iniciais da Ditadura Civil Militar em Pernambuco,
não existem nenhum tipo de placa ou menção ao evento. São notórias as ações de
reparação e resgate da memória da Ditadura a fim de mantê-la viva, todavia muito mais
ainda precisa ser feito a fim de dar o devido reconhecimento a tantas pessoas, jovens ou
não, que perderam suas vidas combatendo seus ideais.
CONCLUSÃO
Através de vários relatos, não apenas o concebido por Danúbio Aguiar em
entrevista, como também os encontrados em livros e fontes documentais, foi possível
discutir não apenas sobre o evento da passeata de estudantes que aconteceu no dia
primeiro de abril de 1964 nas ruas do Recife, como também de toda a situação política e
social pela qual a população de Pernambuco passava. Corriam boatos que o presidente
da República e o governador Miguel Arraes tinham sido despostos, por outro lado
chegam informações que eles resistiam à deposição defendendo a legalidade dos seus
respectivos mandatos. Em meio a esta confusão foi deflagrada a passeata pacífica
estudantil narrada acima, quando os primeiros manifestantes do estado foram mortos
por um tiro de fuzil.
Inserido este trabalho no contexto de valorização da História Oral é possível
dizer que sem os testemunhos vivos discutidos aqui não teria sido possível resgatar o
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NOTAS
1. Jornal do Commercio. Nº090. Recife, ano LXXV, 31 de março de 1994. Especial 64
– 30 Anos. pp. 1-8.
2. Idem.
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ENTREVISTAS:
AGUIAR. Danúbio José Rocha. Danúbio Aguiar (depoimento, 2014). Recife,
LAHOI/DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA-UFPE, 2014.
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389 Com referência em René Dreifuss (1981), utilizamos o termo civil-militar no sentido de que
segmentos da sociedade civil tiveram participação no regime autoritário instaurado no Brasil pós-1964.
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390 Relação das mulheres entrevistadas em Que Bom Te Ver Viva: Maria do Carmo Brito, Estrela
Bohadana, Maria Luiza Garcia Rosa, Rosalinda Santa Cruz, Criméia Almeida, Regina Toscano, Jessie Jane
e um depoimento anônimo.
391 Que Bom Te Ver Viva, uma produção independente da cineasta Lúcia Murat, foi originalmente
lançado em 1989 pela Taiga Filmes em formato de VHS, e distribuído internacionalmente pela ONG
feminista Women Make Movies. No documento relançado pela Casablanca Filmes, no ano de 2009, em
formato de DVD, encontramos na seção dos extras o Making of, produzido 20 anos depois, trazendo
entrevistas com a diretora Lúcia Murat e com a atriz Irene Ravache.
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cinema “político”, como um traço artístico significativo. Lúcia Murat é uma cineasta
que se fez notar pelos seus filmes acerca da ditadura militar e civil no Brasil. Nascida
em 29 de outubro de 1948 na cidade do Rio de Janeiro. “Menina rica da zonal sul, filha
de pai médico politizado e mãe professora, entrou para a Faculdade de Economia da
UFRJ em 1967, época de grande agitação política no país. Envolveu-se com o
movimento estudantil e, no ano seguinte, foi eleita vice-presidente do Diretório
Acadêmico. Em 12 de outubro de 1968 acabou presa com centenas de universitários que
realizavam em Ibiúna (SP) um congresso da clandestina União Nacional dos Estudantes
(UNE). Dez dias depois foi liberada sem maiores problemas.” (Cf.: CARVALHO,
1998, p. 194)
Com a promulgação do Ato Institucional n. 5 (AI-5), em 13 de dezembro de
1968, todos que estavam “queimados”, ou seja, as lideranças estudantis conhecidas
caíram na clandestinidade. Como Lúcia Murat era uma pessoa perseguida por participar
do movimento estudantil, ela relata que se tornou uma pessoa marcada: “a parti daí, caí
na clandestinidade, abandonei a vida legal e, em certo sentido, a vida cultural”
(MURAT in NAGIB, 2002, p. 323), “participei da resistência armada e fui ligada a uma
organização guerrilheira” (MURAT In: Making of – 00’01’).
Lúcia Murat era ligada a um pequeno grupo estudantil DI-GB, que mais tarde
se autodenominou MR-8. Ela atendia pelo codinome de Margô, entre outras tarefas,
fazia panfletagem em fábricas com apoio armado. Aprendeu a atirar e a fazer bombas
caseiras nas praias de Cabo Frio. Seu batismo de fogo aconteceu durante uma ação de
propaganda na fábrica ishikawagima, um estaleiro no bairro do Caju. Sobre o fato,
Lúcia Murat conta: “Fazíamos panfletagem, armados, até que um dos caras da polícia
interna tentou me surpreender. Eu chutei, saquei a arma e começou o tiroteio. Eles
saíram correndo” (CARVALHO, 1998, p. 195).
Dentre as várias ações de Lúcia Murat, Luiz Maklouf Carvalho chama a
atenção para o assalto ao Instituto Felix Pacheco, em Madureira, no começo de
dezembro de 1969, de onde levaram centenas de formulários para confecção de
documentos falsos: “Foi Lúcia a responsável principal pelo levantamento do local. [...]
travestida de jornalista, ela levou no bico o diretor do Felix Pacheco, tirando dele todas
as informações necessárias ao planejamento da ação” (CARVALHO, 1998, p. 195).
Segundo Carvalho (1998), Lúcia Murat era casada na época com Cláudio
Torres, guerrilheiro que, entre outras ações, participou do sequestro do embaixador
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Foi então deslocada para Salvador, aonde chegou a fevereiro de 1970. [...]
Conseguiu voltar incólume para o Rio de Janeiro no começo de 71. Fez então
a ação das Casas da Banha, rendendo o gerente com um Taurus. 38. [...] Em
março, cúmulo do azar, o acidente de carro. O fusca cheio de armas, dirigido
por sua amiga e simpatizante da Organização Maria Luiza Garcia Rosa, a
Pupi392, capotou no caminho para Cabo Frio. Lúcia bateu fortemente a
cabeça, perdendo instantaneamente a memória. A amiga levou-a para um
hospital próximo – mas, considerando o carro cheio de armas e o risco de
serem descobertas e presas, tirou-a de lá levando-a para a casa de uma tia no
Rio. Nesse trajeto de volta Lúcia recuperou a memória. Foi então atendida
pelo pai [...]. Usava, então, o codinome de Terezinha Alves de Paiva,
identidade confeccionada com o material do Felix Pacheco. [...]
Queimadíssima, passou a morar com Maria Luiza num quartinho da Rua
Lino Teixeira, em Jacaré, zona norte do Rio. Foram presas a 31 de março, dia
em que o golpe militar completava seu sétimo aniversário. (CARVALHO,
1998, p. 195) [grifo nosso]
No Making of (2009) do Que Bom Te Ver Viva, Lúcia Murat confirma a prisão
e conta que ficou dois meses e meio no DOI-CODI carioca, quando então foi bastante
torturada. Entre os muitos horrores da tortura, Luiz Maklouf Carvalho chama a atenção
para as 14 horas seguidas que Murat ficou no pau de arara, indagando que “até hoje a
cineasta tem problemas com a perna direita – que quase perdeu – e nos dentes, que volta
e meia lhe dão despesas” (CARVALHO, 1998, p. 196). Na entrevista que concedeu a
Carvalho, Lúcia Murat relata:
392 Maria Luiza Garcia Rosa é uma das oito mulheres depoentes do filme Que Bom Te Ver Viva.
393 Diferentemente de alguns historiadores do período, compreendemos que o governo Geisel (1975-
1978) é marcado pelo endurecimento da ditadura. Tivemos torturas, assassinatos e o fechamento do
Congresso com o Pacote de Abril. As mortes de Wladimir Hergoz (out. 1975) e Manoel Fiel Filho (jan.
1976), no DOI-CODI de São Paulo, são exemplos de repercussão nacional que nos revelam a brutalidade
do período.
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Seu marido de então, Cláudio Torres, foi solto em 1976. Eles viveram alguns
meses juntos e se separaram. Foi quando Lúcia Murat conheceu o cineasta Paulo
Adário, o pai de sua filha Júlia Murat. Começou, então, a se relacionar com pessoas
ligadas ao cinema (NAGIB, 2002, p. 324). No cinema, ela encontraria um lugar no qual
só a fantasia poderia preencher a angústia de quem sobreviveu ao trauma da tortura,
dimensão subjetiva revelada por Murat ao falar em entrevista registrada no Making of
(2009), que o filme Que Bom Te Ver Viva nasceu dos seus dramas e sentimentos
vivenciados no processo de tortura e, posteriormente no divã do analista, quando
buscava “uma maneira de sobreviver” com os traumas persistentes na memória.
A gente estava ali por 84-85 [1984-1985]. Eu [Lúcia Murat] já tinha feito um
média-metragem394, tava trabalhando com cinema, trabalhando em
televisão, com imagem. E tava num processo de análise muito forte em que a
questão da tortura era muito dominante. Nesse momento eu já fazia análise
há uns quatro anos. Foi quando a primeira vez me veio a ideia desse filme.
(MURAT In: Making of – 08’00”)
394 Lúcia Murat se refere ao documentário sobre a queda de Somoza na Nicarágua – O Pequeno Exército
Louco – que filmou junto com o seu segundo marido, Paulo Adário, entre 1978 e 1980.
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ora para seus torturadores, que estão em silêncio. Em nossa avaliação, a relação com o
aporte psicanalítico é ainda mais forte nas encenações do monólogo interpretado pela a
atriz Irene Ravache. Não apenas pelo discurso proferido, mais também pelas imagens
que, por ora, transfigura a personagem de Ravache deitada num sofá que se revela como
o próprio divã do analista (ver foto 1).
Eu só pude perceber o quanto que ela [Irene Ravache] me usou pra construir
essa personagem, quando na primeira ação, na primeira cena, ela imitou um
gesto, uma mania que eu tenho de fazer assim com o cabelo [Murat enrola o
cabelo]. E se vocês forem ver na primeira cena do filme, ela [Ravache] ta
fazendo assim no cabelo [Murat enrola novamente o cabelo]. Quer dizer, ela
aproveitou de mim. É maravilhoso como o trabalho de atriz que ela fez
comigo durante aqueles ensaios. Quer dizer, quase usurpando meu papel de
diretora. Eu fiquei muito encantada e tenho, assim, o maior respeito pelo
trabalho que ela fez. (MURAT In: Making of – 16’27’’)
395 Conforme Fernão Ramos, “voz over é um conceito de origem anglo-saxã que designa a fala fora-de-
campo que assere. Refere-se particularmente à voz sem corpo, personalidade ou identidade, que
enuncia fora-de-campo na narrativa documentária (alguns críticos chamam de “voz de Deus”).
Geralmente é dotada de saber, expresso em asserções sobre o mundo” (RAMOS, 2008, p. 407).
396 Ver enunciação de Irene Ravache In: QUE Bom Te Ver Viva – 44’55’’, e a entrevista de Lúcia Murat a
Luiz Maklouf Carvalho (1998, p 196).
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Com efeito, é possível afirmar que Lúcia Murat recorreu à prática da escrita de
si para tentar se reinventar, costurando suas subjetividades a partir de sua trajetória,
conflitos, frustrações e vitórias, utilizando o cinema como ferramenta política,
reescreve, a partir de narrativas autobiográficas de sete militantes nascidas entre os anos
1940 e 1950, como as mulheres abriram novos espaços na esfera pública e na vida
política do Brasil, desde os violentos anos da ditadura militar. E, é justamente o aspecto
feminista e disruptivo dessas experiências que Margareth Rago destaca em A aventura
de contar-se, “mostrando que a vida cotidiana de novas gerações de mulheres e homens
hoje é, em larga medida, resultado de conquistas feministas do terço final do século
XX” (RAGO, 2013, p. 34).
Em suma, podemos dizer que o filme Que Bom Te Ver viva é um símbolo do
“Eu” e o modo como Murat construiu uma linguagem para “contar-se”, usando a
expressão de Margareth Rago (2013). Quando a cineasta elabora o texto ficcional do
monólogo, mostra parte dela no filme, ela está descrevendo involuntariamente sua
estrutura psíquica e uma tentativa de apreender, também, a estrutura das outras oito
mulheres que falam do passado doloroso, com ênfase recorrente a questão da violência,
ao sentimento de humilhação vivenciado diante da tortura, ao sofrimento que persiste na
memória e no coração dos que sobreviveram à ditadura.
Não sem efeito, é possível afirmar que no cinema, Murat apreende o tempo de
prisão e a prática sistemática da tortura como aquilo que Arlette Farge chama de
acontecimento, ou seja, “um fragmento de realidade que deve ser percebido no tempo,
imediatamente compartilhado por aqueles que o recebem, o veem, ouvem falar dele, o
anunciam e depois o guardam na memória” (FARGE, 2011, p. 71).
Para Farge, “o acontecimento e a fala sobre o acontecimento são dois materiais
diferentes que exigem que reflitamos sobre sua inclusão no relato” (FARGE, 2011, p.
72). Nessa perspectiva, concordamos com Jaime Ginzburg quando afirma que as
descrições sobre os procedimentos e instrumentos de tortura, como o faz Ayrton Baffa
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O que foram aqueles sessenta dias? Parece que foram sessenta anos. Não dá
pra descrever é uma coisa terrível porque é uma luta constante pra você se
manter inteiro. [...] De vez em quando, eles me pegavam [...] e me jogavam
dentro de um aquário [...] depois voltavam a pendurar-me no pau de
arara. Isso durou até [...] Eu não me lembro bem, é tudo muito confuso. Eu
só lembro que teve uma hora que estavam tirando minha pressão, e um outro
sujeito dizia assim: “não, pode continuar, pressão de atleta, pode
continuar”. (Maria do Carmo In: QUE Bom Te Ver Viva – 12’38’’) [grifos
nosso]
Quando Maria do Carmo Brito nos diz – “De vez em quando, eles me pegavam
de calça e tudo e me jogavam dentro de um aquário [...] depois voltavam a pendurar-me
no pau de arara” – veja que o sujeito da ação violenta é permutado pelo pronome “eles”,
os torturadores não têm nome, pois a situação não permite identificar com clareza. Na
397 Em 1989, o jornalista Ayrton Baffa traz a lume o livro Nos porões do SNI: o retrato do monstro de
cabeça oca, no qual expõe – a partir de documentos formulados pela OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil) - Conselho Federal, de 26 de novembro de 1975 – uma concepção descritiva do processo de
tortura realizado nos porões da ditadura. Sua obra nos revela detalhes técnicos e práticos da utilização
de diversos instrumentos, como o “pau de arara”, o “choque elétrico”, o “corredor polonês”, o “soro da
verdade”, a “violação sexual”, a “crucifixação”, entre outros. A singularidade de seu trabalho está em
apresentar-nos uma visão institucional/oficial da estrutura funcional de um instrumento repressivo,
concebido com a finalidade de provocar um “sofrimento”.
398 Organizado pela Arquidiocese de São Paulo, o Projeto Brasil Nunca Mais localizou e transcreveu
denúncias de violação aos direitos humanos em processos políticos impetrados entre os anos de 1964-
1979 no Brasil. Em geral, as denúncias foram encontradas nos depoimentos prestados pelas vítimas frente
à autoridades judiciárias, nas Auditorias militares. Em outros casos, nas cartas de lavra das vítimas ou
ainda em denúncias feitas por advogados no exercício da defesa. É resultado deste minucioso trabalho, a
relação de 1843 pessoas que de alguma forma conseguiram fazer constar nos processos as violências a
que foram submetidas. (Brasil Nunca Mais, 1985, p. 13-14)
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frase final – “não, pode continuar, pressão de atleta, pode continuar”–, Maria do Carmo
deixa claro que o intuito de seus algozes era de promover o sofrimento, ela tinha que
estar consciente, sentir toda a dor. Não obstante, a pessoa torturada se vê transformada
em objeto de uma experiência-limite. A intimidação e a violência abrupta tende a levá-
la a um processo de degradação humilhante.
As falas que provêm do Que Bom Te Ver Viva, levam-nos a refletir sobre a
responsabilidade do historiador no tempo presente ao escrever acerca das histórias e
memórias dos que foram torturados pela ditadura. Devemos ter o cuidado de “pensar o
sofrimento e a violência sem minimizá-los a meras fatalidades, mas refletindo sobre os
atuais problemas e explicando os mecanismos racionais que os criaram” (FARGE,
2011, p. 7). Assim, ao falar da tortura, a intenção do historiador deve ser de apresentar
uma situação e compreender um processo que é o eixo essencial do que está em jogo na
prática brutal; não apenas um processo que se limita ao momento da ação violenta, mas
que abrange o tempo posterior à experiência vivida. Intenção consonante a proposta de
Lúcia Murat em Que Bom Te Ver Viva, posta ao espectador, por exemplo, a partir da
locução de Estrela Bohadana no trecho em evidência:
Encontros que continuam na história do presente. Que Bom Te Ver Viva foi
lançado em julho de 1989. Mas, a arqueologia do filme é rica em dados: começou a ser
roteirizado em 1984-1985, filmado em 1988, lançado em 1989, relançado em 2009 e,
quiçá, obtenha uma nova recepção a partir de 2013 com a instalação das Comissões da
399 Essa mesma dimensão é mantida por Lúcia Murat no seu filme Uma longa viagem (2011).
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Fontes audiovisuais
QUE BOM TE VER VIVA. Direção: Lúcia Murat. Rio de Janeiro: Taiga Filmes, 1989.
Distribuição: Casablanca Filmes, 2009, 1DVD (98 min), color. [Extras: Making of – 20
anos depois (23 min) – Trailer – Fotos – Sinopse – Prêmios e Participações – Ficha
técnica – Documentário: Passeata dos Cem Mil (11 min)].
UMA LONGA VIAGEM. Direção: Lúcia Murat. Rio de Janeiro: Taiga Filmes, 2011.
Distribuição: Copacabana Filmes e Produções, 2013, 1DVD (95 min), color. [Extras:
Trailer – Making of].
Referências Bibliográficas
400 A lei n.º 12.528 que criou a Comissão Nacional da Verdade foi sancionada pela então presidenta
Dilma Russeff, em 18 de novembro de 2011.
401 Ver o depoimento completo de Lúcia Murat para à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro
em: <http://atarde.uol.com.br/politica/materias/1506981-depoimento-de-lucia-murat-a-comissao-da-
verdade-do-rio>. Acesso: 28 mai. 2013.
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BAFFA, Ayrton. Nos porões do SNI: retrato do mostro de cabeça oca. Rio de Janeiro:
Objetiva, 1989.
BRASIL. Lei nº 12.528. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil
da Presidência da República. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 18 nov. 2011. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/>.
Acesso em: 09 mar. 2013.
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1998.
CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. In: FERREIRA, Marieta de Morais &
AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. 8ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p.215-
218.
DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado (Ação política, poder e golpe
de classe). Petrópolis: Vozes, 1981.
GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro:
FGV, 2004.
GINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. In: TELES, Edson & SAFATLE, Vlademir.(orgs). O que resta da
ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 133-149.
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RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... O que é mesmo documentário? São Paulo:
Senac, 2008.
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Sobreviveram à Violência da Ditadura. 2013. 168 f. Dissertação (Mestrado em
História). CCHL/ UFPB.
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402
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará –
UFC. Bolsista da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
403
Jornal O Povo, 17 de abril de 1964. Fortaleza - Ceará, sexta-feira, página 02. Trecho referente à
Marcha de Fortaleza, realizada no dia 16 de abril de 1964, às 16 horas, quinta - feira.
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Deus pela Liberdade Restauradora”, propus intitulá-las neste trabalho como “Marchas
da Vitória”, pela riqueza de usos e sentidos verificados a partir das ações
desempenhadas pelos diversos organizadores, quando se demonstrava está contentes,
alegres, com a vitória, a partir de um golpe, vestido de um acontecimento
“revolucionário”.
Em segundo lugar, as marchas cearenses serviram como preparação para a
construção de uma memória acerca do golpe e ao mesmo tempo legitimando-a, diante
dos esforços comemorativos e festivos, visando dar ao ato executado no dia 31 de
março, uma decorrência legítima de uma “revolução”, realizada através das Forças
Armadas, atribuindo um valor religioso explicativo tanto para o momento do golpe
(como momento de intervenção divina) como para os seus agentes responsáveis, como
sendo escolhidos por Deus para essa função através de “ações gloriosas”. Assim, as
“Marchas da Vitoria” se transformaram em acontecimento e lugar de produção de uma
memória especifica que se tornou ao mesmo tempo, uma memória oficial do golpe e
também legitimadora para o processo de construção social do regime civil-militar.
Além da produção da memória do golpe, reservou às marchas um lugar, cuja
função social e política eram o reconhecimento popular, dando ao novo processo
político instaurado a partir das últimas horas, do último dia do mês de março, um caráter
de revolução; Aos militares foi reservado um espaço de reconhecimento pela bravura,
sendo louvados e honrados, nas marchas, como agentes revolucionários, constituído
uma memória também acerca das funções e papeis da instituição militar no processo
político brasileiro. Quanto aos organizadores das marchas no Ceará, foi destinado um
lugar de atuação para realização de uma memória de si, onde eles se vêem e procuram
simultaneamente um reconhecimento popular como os defensores da democracia e da
revolução.
Perante a busca pelo reconhecimento como defensores da democracia brasileira
e do processo “revolucionário”, os organizadores das “Marchas da Vitoria” nos
municípios cearenses depararam com a oportunidade de se manterem desempenhando
suas influências políticas a partir dos cargos ocupados naquele exato momento, como
prefeitos, vereadores ou cabos eleitorais. O fato de verificarmos uma presença comum
de políticos nas marchas se deve muito pela luta de rearranjo político, que visava à
permanência de muitos deles ou o retorno de alguns diante da nova situação política do
país. Mas esse aspecto da influência política como conservação de um grupo ou de
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404
Informações disponíveis no jornal O Nordeste, 17 de abril de 1964, página 1.
405
Informações disponíveis no jornal Unitário, 11 de abril de 1964. O periódico não informa a data da
realização da manifestação na cidade de Juazeiro do Norte, apenas indicando através de uma extensa
página que esse acontecimento já tinha sido presenciado pela população e organizado por suas diversas
autoridades locais. O Unitário trouxe como manchete sobre a cidade de Juazeiro do Norte o seguinte
título: “Espetáculo de Civismo e Fé nos Destinos do País: Missa e Passeata em Juazeiro do Norte”,
onde os organizadores celebravam “pelo triunfo da Democracia brasileira”. As evidências apresentadas
por esta imprensa indicam que a marcha de Juazeiro havia sido realizada antes mesmo da cidade de
Fortaleza (Capital).
406
Informações disponíveis no jornal Unitário, 03 de maio de 1964 com o título “Redemocratização do
País Comemorada com Grande Brilho no Mun. De Aurora”.
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407
Informações disponíveis no jornal Unitário, 05 de maio de 1964 – Título: “Agricultores Com Enxada
ao Ombro Deram Brilho Excepcional à “Marcha” de Pacoti”.
408
Informações disponíveis no jornal Unitário, 06 de maio de 1964 – Título: “Faixas, Banda de Música e
Todo o Povo de Ipaumirim na “Marcha da Liberdade””.
409
Informações disponíveis no jornal Unitário, 10 de maio de 1964.
410
Informações disponíveis no jornal Unitário, 30 de abril de 1964, página 9, cujo tema foi “Pentecoste
em Festas amanhã Com a ”Marcha da Família com Deus pela Liberdade”: Preparativos.” O mesmo
jornal já vinha divulgando a realização da marcha na cidade de Pentecoste desde o dia 26 de abril com os
respectivos títulos, “Estudantes e Pescadores de pentecostes à Frente da “Marcha da Família Com
Deus Pela Liberdade” Marcada para 1º de Maio” e “D. RAIMUNDO DE CASTRO EM
PENTECOSTE PARA A MARCHA”.
411
Jornal Correio do Ceará, 29 de abril de 1964, página 9. “Iguatu Realizou Com Excepcional Brilho A
Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade”.
412
Jornal Unitário 29 de abril de 1964.
413
Jornal Correio do Ceará, 28 de abril de 1964 – Título: “Acopiara Também Realizou Passeata-
Monstro em Regozijo Pela vitória das Forças Armadas”.
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descontinuidade que ele cauciona” (2013, p. 154). Quando o golpe civil-militar de 1964
foi consumado, imediatamente, após o dia 31 de março, foi constituído um consenso,
destinado aos militares como sendo os principais atores na realização desse ato,
deixando silenciosamente para trás a participação civil, por meios de entidades,
instituições, partidos, empresas, entre outros, na realização do referido alvo.
Os organizadores, das marchas no pós-golpe, em especial, as “Marchas da
Vitoria” cearenses, se apresentaram publicamente na imprensa ou no próprio
acontecimento, como sendo os apoiadores e simpatizantes da “revolução” de 31 de
março, herdando seus efeitos. O ato de falar em nome da revolução, e mais
precisamente comemorar ou celebrá-la, é assumir sua herança, dando aspecto de
legitimidade aos fatos e ações ocorridas, por mais curta que seja a distancia temporal
entre o golpe e as marchas, num intervalo de dias para algumas e meses para outras. Os
organizadores das marchas cearenses ao se posicionarem em nome da “revolução”,
versão dada pelos militares a respeito de suas ações no mês de março, estiveram
inseridos no processo como herdeiros e como atores de um acontecimento que visou a
legitimidade dos esforços com o reconhecimento da sociedade.
Esse vínculo constitutivo entre o acontecimento e seus herdeiros abre o devir
da ruptura acontecimental [événementielle] para uma indeterminação original
de seu alcance que não é mais a priori, mas o farão os atores que propagarão
a onda de choque. Logo, o acontecimento cauciona uma temporalidade nova
para os atores e suscita novas práticas. (DOSSE, 2013, p. 154-155).
A realização do golpe e sua grandiosa repercussão na imprensa causaram no
público nas diferentes camadas sociais a sensação de está em um novo tempo, um novo
horizonte. O tempo novo inaugurado a partir da intervenção militar representava o
inicio de um momento sem a presença comunista. O início de um novo tempo foi
concebido como resultado de uma ruptura temporal, tendo como marco da ruptura, o
golpe de 31 de março. São em nome desse novo tempo, que os atores das marchas
cearenses e ao mesmo tempo como herdeiros do golpe se pronunciam favorável a esse
momento, inaugurando-o por meio de celebrações e comemorações cívicas, afirmando,
que “a Pátria está livre do regime comunista ateu e materialista”. (Jornal Unitário, 26 de
abril de 1964). Quando a líder da marcha de Fortaleza, Luiza Távora recebe a
oportunidade para a realização de um discurso perante a imensa massa humana presente
na manifestação, ela inicia se pronunciando acerca dessa ruptura temporal, afirmando
que a temporalidade nova em marcha, é “de grande significação”, pois ela representou a
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todos que lhe era favorável, um tempo sem ameaças comunistas, sem o fim das
tradições e instituições.
POVO CEARENSE
Na verdade, em momento como êste, de tão grande significação, qualquer
outra voz feminina, que não a nossa, bem melhor poderia expressar os
sentimentos de alegria e íntima satisfação que invadem a alma da
coletividade do Ceará, por sentirmos todos que já está afastada do horizonte
da Pátria a terrível ameaça que ensombrecia os nossos corações, até bem
pouco tempo!
A nova temporalidade carrega um conjunto de sentidos que ia muito além de
uma simples sensação de que o tempo mudou, mas porque o tempo é diferente causado
por um acontecimento que representou a ruptura de um passado recente, que causava
medo às instituições pelas aproximações que o governo brasileiro mantinha com os
comunistas e socialistas. A atribuição simbólica dada ao golpe de 1964, nesse exato
momento, é de vitória sobre a ameaça dos “inimigos vermelhos”. Dentro desse tempo,
por meio de uma higienização das instituições, as marchas surgem como “momentos de
entusiasmos cívicos e patrióticos” indicando os sentidos que todos deram ao dia 31 de
março de 1964 e ao momento em celebração. Como expressou François Dosse a
capacidade que o acontecimento tem de suscitar discursos e sentidos a ele, depende
muito da sua intensidade e repercussão (2013, p. 279).
Não podemos esquecer jamais, que 31 de março representou o marco inicial ou
base de um tempo novo para aqueles que aderiram esse dia. A condição de celebração
nas “Marchas da Vitória” no Ceará teve como utilização essa base para a produção de
sentidos e significação para as suas ações nestas manifestações. Ao golpe foi dado o
sentido de rompimento e expulsão dos inimigos e as marchas foi dado um significado
de celebração e comemoração ao primeiro acontecimento. Assim, compreende-se que as
“Marchas da Vitória” no Ceará é parte ou extensão do dia 31 de março, mas elas não
podem simplesmente ser restringidas a isso, pois elas serviram pra outros sentidos, usos
e finalidades. As marchas cearenses tiveram também um lugar, uma função significativa
que foi legitimo em sua própria ocorrência, produzindo feitos de memorização dos fatos
relacionados à intervenção militar. Assim podemos afirmar que as “Marchas da
Vitória” surgiram como acontecimento que pretendia colocar em evidência, a
veracidade da ocorrência no golpe de 1964, sendo ele justificado, como ato
“revolucionário”, através de uma narrativa que colocava os fatos entre o antes do dia 31
de março e o depois. Deste modo, os enredos e as narrativas nas “Marchas da Vitória”,
tornaram-se a produção de uma memória a respeito deste dia. Devido o acontecimento
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está aberto para um devir, algumas das lideranças responsáveis pela condução das
marchas, possibilitaram uma projeção política diante da instituição do novo regime.
Somente o fato de vários vereadores e prefeitos, em várias regiões do Estado do Ceará,
ao assumir a responsabilidade de organizar uma manifestação com os traços já
mencionados, conduz a preocupação que muitos tiveram com a vacância da presidência
da República brasileira.
Ainda em relação à função dada as “Marchas das Vitória” como lugar de
celebração percebemos que este é um espaço de emoção e comoção para uma ampla
parcela da sociedade. As “Marchas da Vitória” “traz em si uma forte carga de emoção,
que constitui uma boa parte de sua capacidade de comoção” (DOSSE, 2013, p. 130.
Nelas, a celebração, a expressão de alegria se dá em função da oposição ao que era
concebido como perigoso as instituições brasileiras – a ameaça do comunismo. A
necessidade de uma narrativa que demonstrava o antes do golpe como um momento “de
terrível ameaça que ensombrecia os nossos corações” (Jornal O Nordeste, 17 de abril de
1964), fazia parte do processo de comoção. Toda a imprensa cearense se reverte desse
tipo de artifício tratando o atual momento de “redemocratização” em oposição ao
período anterior ao mês de março de 1964.
A vereadora de Fortaleza, Mirtes Campo ao realizar uma “proclamação à
mulher cearense” para a celebração às Forças Armadas, a mesma se utiliza das
diferenças simbólicas entre o regime comunista e a bandeira brasileira através de uma
perspectiva temporal. Na expectativa da vereadora “o pavilhão nacional de cores verdes
de nossa esperança, amarela de nosso valor, azul de nossa fé e branca simbolizando a
paz, jamais seria substituída pela bandeira vermelha” (Jornal Unitário, 8 de abril de
1964). E como elemento ainda mais comovente para a arregimentação ao atendimento a
conclamação feita às mulheres cearense para a realização de atos que visassem à
comemoração e homenagens às Forças Armadas, afirma que a bandeira brasileira
“jamais seria substituída pela bandeira vermelha dos tiranos cujo símbolo ao invés de
estrelas, é representado por instrumentos de terror: o MARTELO E A FOICE” (Jornal
Unitário, 8 de abril de 1964). Como avaliação da eficiência que este discurso alcançou
no Estado do Ceará, podemos constatar que foi em altos índices pela quantidade de
cidades cearenses que realizaram as “Marchas da Vitoria”, numa média de 12 cidades,
conforme foi encontrado na imprensa escrita, fora algumas outras, que embora não
realizando as manifestações, lançaram seus apoios na imprensa ao novo regime.
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rituais religiosos, sejam cantando as orações dos santos, na realização de rezas sob a
coordenação de bispos, padres, com a utilização do próprio espaço da Igreja, em sua
maioria, tornou-se um elemento forte na assimilação do conteúdo, na proposta lançada
pelas marchas e na forma de compreensão ao golpe. Ao pensarmos nestas questões,
quanto aos usos de emoções, crenças e simbologias pelos organizadores das marchas
para a arregimentação da sociedade em favor de prestígio e honrarias às Forças
Armadas, François Dosse tinha razão em afirmar que a “expectativa está fortemente
ancorada em uma situação singular, em um contexto particular: “Uma expectativa está
inserida na situação em que ele surge” (2013, p. 268). Luiza Távora, coordenadora da
marcha de Fortaleza expressou esses detalhes acerca da expectativa do momento,
momento de exteriorização “dos mais sagrados sentimentos patrióticos”, de exultação e
exaltação aos atos militares, ação definidora e classificadora de uma situação especifica,
que promoveu a existência desse novo tempo, o tempo de realização das marchas, que
agora, em forma de um acontecimento celebrativo, relatando aquilo que foi responsável
pela ruptura temporal, o divisor de águas para as situações políticas e sociais.
Agora, quando Exercito, Marinha e Aeronáutica, unidos num só pensamento
e numa mesma ação, afastaram para bem longe, enérgica e lealmente, os
desleais e solertes inimigos do Brasil, da Família e dos mais sagrados
sentimentos de patriotismo de nosso povo, exulta a alma da mulher cearense,
essa mulher [...] que tem lições aprendidas na História da sua terra, através
dos exemplos de Bárbara de Alencar e de Elvira Pinho. (Jornal O Nordeste,
17 de abril de 1964).
Com base nas expectativas do novo tempo, geradas a partir do dia 31 de março
de 1964, encontramos de forma dualísticas as representações dadas aos comunistas,
simbolizando o antes com a caracterização de pessoas “desleais”, “solertes”,
verdadeiros “inimigos do Brasil”, que pretendiam entregar o país as ideologias
estrangeiras. Este período, o antes, geralmente foi narrado como um tempo perigoso,
sombrio, trevas, de influência maligna e forças das trevas. Enquanto que o depois
ganhou representações na imprensa, por parte de muitas lideranças políticas e dos
organizadores das marchas como um tempo de vibrante comemoração e celebração.
Algo nos chama atenção nestas narrativas quanto esta acima, onde os militares, não são
localizados nem no antes e nem no depois, mas são definidos como sendo a própria
ação de separação das temporalidades. A eles foram destinados uma posição acima dos
perigos, das situações, cuja ação, eles “afastaram para bem longe, enérgica e lealmente,
os desleais e solertes inimigos do Brasil”.
2 - As “Marchas da Vitoria” no Ceará: acontecimento político.
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Este artigo propõe uma indagação acerca das ideias difundidas em toda amplitude da
questão política pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek, o filósofo pretende demonstrar em
seus escritos a visão da atual situação política e consequentemente todos os loci de
envolvimento do homem dentro das camadas políticas. A partir da indagação proposta
as ideias de Slavoj Žižek, a presente proposta visa demonstrar o ethos da historiografia
em combater a doxa que por muitas vezes se assenta nas questões políticas atuais. A
fundamentação dessa indagação se baseará em uma análise dos questionamentos de
Žižek mediante a uma confrontação tirante a conceitos predecessores e ulteriores, e com
isso, o fomento de questionamentos para com o pensamento contemporâneo político e
seus meios de ação perante a sociedade, Slavoj Žižek transmite por meio de uma eximia
facilidade dialética baseada em junções interdisciplinares que contam com relações
entre Friedrich Hegel, Karl Marx e Jacques Lacan, e a partir disso a complexa dialética
torna por relembrar diversas vezes toda a força do Crepúsculo dos Ídolos de Friedrich
Nietzsche, e ao mesmo tempo demonstra toda sua contemporaneidade ao analisar
movimentos como o recente Occupy Wall Street.
ABSTRACT:
This article proposes a quest about the ideas disseminated across breadth of political
issue by the Slovenian philosopher Slavoj Žižek, philosopher aims to demonstrate in his
writings the vision of the current political situation and consequently all the loci of
human involvement within the layers. From the questing Slavoj Žižek's ideas proposal,
this proposal aims to demonstrate the ethos of historiography in combat doxa which
often hinges on current political issues. The rationale of this quest is based on an
analysis of the questions of Žižek by a confrontation the lifter concepts predecessors
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and further, and with that, the promotion of questions for contemporary political
thought and its means of action towards society, Slavoj Žižek transmits through a
dialectic joints-based facility eximia interdisciplinary studies that rely on relationships
between Friedrich Hegel, Karl Marx and Jacques Lacan, and from there the complex
dialectic makes for a refresher several times over all the power of the twilight of the
idols, Friedrich Nietzsche, and at the same time demonstrates its contemporaneity to
analyze movements such as the recent Occupy Wall Street.
aristotélico acaba criando direta ligação com alguns dos métodos hegelianos para com a
fundamentação histórica. E a questão inicial que vem à tona a partir da introdução, é
qual a ligação de Aristóteles com a fundamentação política de Žižek, e é a partir deste
questionamento, que a presente proposta visa prender a atenção do leitor, Aristóteles
considerava a ciência política, como o maior dos estudos, e a interdisciplinaridade dada
aos seus estudos, em muito fundamentaram o que Žižek explanará em seus escritos.
histórico, que pode tornar mais espertos e mais inteligentes aqueles que o conhecem
[...]” (KOSELLECK, 2006) essa passagem de Futuro Passado acaba por relembrar a
ideia de Aristóteles da “conexão das desconexidades” e para por fim neste ponto,
Koselleck escreve “Cada ensinamento particular conclui então no evento pedagógico
geral.” (KOSELLECK, 2006) e com isso foge do caminho proposto por Aristóteles de
Estagira.
Reinhart Koselleck usou de meios mais amplos para definir a História, usou se
sua formação em Filosofia, Sociologia e Direito Público, para criar uma ampla rede de
convergências, e remonta em um pensamento do jurista alemão Friedrich Carl von
Savigny, sobre a história “Não é uma mera colocação de exemplos, mas sim o único
caminho para o verdadeiro conhecimento de nossa própria situação” (KOSELLECK,
2006) e com esse pensamento se pode entender toda a importância de propor o
conhecimento de um erudito ulterior a Hegel, pois é fundamental para o entendimento
da mesma questão historiográfica em distintos séculos sobre diversas óticas.
Žižek traz por instinto lógico a fundamentação de uma teoria que pudesse o fazer
compreender o sujeito e suas ações, para que com isso, pudesse modelar a política, o
psicanalista parisiense Jacques Lacan foi um dos meios perfeitos para este
entendimento.
Durante uma entrevista publicada no dia 15 de março de 2013, por uma mídia
situada no estado de Pernambuco, o Jornal do Commercio, Slavoj Žižek comentou
acerca da importância de sua fundamentação em Friedrich Hegel, e Jacques Lacan.
horror. Eu acho que nós devemos ficar mais conscientes disso, dessa
impenetrabilidade da história, de como tudo termina de forma diferente do
que esperávamos. Hegel estava profundamente ciente disso. Novamente, toda
a história da esquerda radical no século 20 demonstra isso. Olhe para a
Revolução Chinesa. A maior revolução comunista terminou fazendo do
Partido Comunista Chinês o mais implacável e eficiente regulador do novo
sistema capitalista. Nós devemos nos preparar para essas surpresas. (Slavoj
Žižek: “Estou cansado das análises culturais e políticas” Jornal do
Commercio, Recife, 15 de março de 2013. Disponível em: <
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2013/03/15/sla
voj-zizek-estou-cansado-das-analises-culturais-e-politicas-
76499.php>.Acesso em: 16 de mar.2014.)
Feuerbach, na verdade, após a sua morte, as onze anotações foram editadas e publicadas
por Friedrich Engels. Žižek tende por explanar sua visão acerca do momento atual da
política, com um viés carregado de diversas e distintas ações, mas, ações sem
conjuntura, sem fundamentação, principalmente quando o filósofo se refere ao século
XX, onde havia diversas conjunturas políticas baseadas nas ações, no agir e demonstrar
a população, conjunturas políticas que criaram por diversas vezes os sentimentos
nacionalistas, e é a partir deste ponto, que Žižek vem a defender uma volta a metafísica,
para a partir deste ponto, poder pensar e repensar acerca da política contemporânea, e
chegar a conclusões que possam resolver os problemas cotidianos.
Nietzsche tende por quebrar a moralidade de sua época, e todo o cenário que se
desenrola na filosofia e na política, por mais que o filósofo alemão venha a criticar
ferozmente a corrente política que Žižek vem a defender atualmente, é de fundamental
importância destacar dois fatores, o primeiro no que se enquadra aos cotidianos distintos
vividos pelos dois pensadores, causando assim uma disparidade quase que extrema de
seus ideais, mas, ao mesmo tempo, que é imposta uma barreira pela distinção de seus
tempos e ideias, ambos os filósofos tendem a trabalhar para a quebra dos ditos “ídolos”,
como Nietzsche aborda em sua introdução ao Crepúsculo dos Ídolos, “há mais ídolos do
que realidades no mundo.” Nietzsche vem a tratar dos simulacros criados em cima de
personagens históricos, Žižek traz os eventos políticos e os questiona, como há de ser
possível que os eventos políticos funcionem sem uma conjuntura teórica? Sem um
embasamento? Os ídolos que Žižek vem a questionar, estão justamente impostos nos
atos políticos que ao longo do tempo foram perdendo todo seu sentido, e em suma
apenas o ímpeto é mantido, segundo o raciocínio do filósofo, as mudanças não hão de
decorrer do uso do ato político pelo ato político.
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Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos
tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é
o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e
cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente –
somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido,
não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de
pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo
teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo
que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização
social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós
precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem. (A tinta
vermelha: discurso de Slavoj Žižek aos manifestantes do movimento Occupy
Wall Street. Blog da Boitempo, 11 de agosto de 2011. Disponível em:<
http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-
eslavo-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/>.Acesso
em: 17 de mar.2014.)
Nos dias atuais, fica claro que ainda é possível vislumbrar a dificuldade de
separação entre política e moral, a mesma dificuldade de Aristóteles de Estagira, mas,
ao mesmo tempo, pode-se encontrar em um jogo de essências e valores, todo o limiar de
desejo do ser humano, que ao longo da história, vem sendo determinado com base em
um fator, a sobrevivência, as relações entre a política e a moralidade, tem por base a
busca e manutenção da sobrevivência.
REFERÊNCIAS
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história: uma introdução geral à filosofia
da história. Edições 70, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Editora Record, 2006.
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Slavoj Žižek: “Estou cansado das análises culturais e políticas” Jornal do Commercio,
Recife, 15 de março de 2013. Disponível em: <
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2013/03/15/slavoj-zizek-
estou-cansado-das-analises-culturais-e-politicas-76499.php>.Acesso em: 16 de mar.
2014, 01:15.
ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
ZIZEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos . Hegel com Lacan. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1991.
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RESUMO:
O historiador José do Amaral Lapa se notabilizou por ter uma produção historiográfica
capaz de problematizar as complexas relações entre tempo histórico e historiografia,
sobretudo nos últimos anos da ditadura militar, em que escreveu as obras: A história em
questão: Historiografia brasileira contemporânea (1976) e História e Historiografia:
Brasil pós-1964 (1985). Esse artigo objetiva a compreensão do tempo histórico
(Reinhart Koselleck) no período final do Regime Militar, tal como, a partir das obras de
José do Amaral Lapa, perceber em que sentido a historiografia brasileira se inseriu nas
variadas discussões que atravessaram aquele momento.
PALAVRAS CHAVES: Tempo Histórico – Historiografia – Redemocratização.
Meados da década de 1970. O Brasil, ainda sob o regime político que se iniciou em
1964, vivenciava um processo lento e gradual de abertura política, desenvolvido a partir
governo Geisel, cuja perspectiva se constituiu segundo a teoria da distensão, o que significou
que o governo militar estava empreendendo um projeto de liberalização política a partir de
estruturas mais permanentes e flexíveis, assegurando, com isso, o afrouxamento da tensão
sociopolítica (ALVES, 2008). Para o governo militar a distensão da sociedade seria obtida
em estágios bem planejados, que se iniciaria com a suspensão da censura prévia, passaria por
reformas eleitorais e chegaria à revogação de medidas coercivas mais explicitas. Nesse, a
teoria da distensão significou uma última busca de legitimação do Estado, que desde o golpe
de 1964 tinha se caracterizado a partir dos usos de mecanismos de repressão política, ou seja,
a política de distensão “tratava-se de um programa de medidas de liberalização
cuidadosamente controladas definido no contexto do slogan oficial ‘continuidade sem
mobilidade’” (ALVES, 2008, p. 224)
A segunda metade da década de 1970 não só se caracterizou pela mudança de
cálculo político por parte do regime então vigente, mas foi um momento no qual diversos
setores da sociedade civil começaram a se (re)organizar em torno da possibilidade de
redemocratização419. Alguns espaços de experiências políticas tornaram-se lugares
419
Esse momento também foi marcado, segundo Carlos Texeira da Silva (2007), por uma mudança na
política internacional norte-americana, já que o governo Carter (1986-1980) se caracterizou pelo discurso
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de incentivo aos Direitos Humanos, de crítica aos regimes militares na América Latina, e de tentativa de
construção de uma imagem mais democrática dos Estados Unidos da América no cenário internacional.
420
Além desses espaços de oposição ao regime militar, Maria Helena Moreira Alvez (2008) ressalta a
crescente oposição por parte dos empresários, que segundo a autora, não se sentiam mais representados
pelo regime militar (ao contrário chegavam a sentir-se ameaçados pela sistema de repressão), além da
eminente crise econômica ter afetado tais relações
421
Sobre as categorias espaço de experiência e horizonte de expectativa ver: KOSELLECK, Reinhart.
(2006, p. 305-328).
422
Para Reinhart Koselleck (2006), um dos fatores característicos da modernidade é a diferença entre
experiência e expectativa, havendo um crescente distanciamento entre um e o outro, pois na modernidade
“o espaço de experiência deixou de está limitado pelo horizonte de expectativa. Os limites de um e de
outro se separam” (KOSELLECK, 2006, p. 318). Esse ponto é fundamental para entendermos como o
horizonte de expectativa entre as décadas de 1970 e 1980 estava sendo elaborado diametralmente oposto
ao que se vivencia no espaço de experiência.
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Thomas Skidmore (1988) e Maria Helena Moreira Alves (2008) apontam para importância da
formação de novos eixos de oposição ao regime militar em fins da década de 1970. Para o historiador
norte-americano as greves operárias podem ser entendidas como elemento agregador de um conjunto
significativo da sociedade civil, a classe operária, que ganharam notável visibilidade. Já Maria Helena
Moreira Alves, percebe que as sucessivas vitórias eleitorais do MDB elevaram esse partido ao status de
uma oposição legitima no final do sistema eleitoral bipartidarista implantado pelo regime militar,
agregando um conjunto heterogêneo de setores de oposição.
424
Narrando os desafios dos trabalhadores no processo de abertura política, Thomas Skidmore percebe
que para os estrategistas tanto de Geisel como de Figueiredo “A abertura só poderia ser bem sucedida se
os trabalhadores fossem mantidos sob controle” (SKIDMORE, 1988, p. 435). Isso nos mostra o como o
horizonte de expectativa estava voltado para o modelo político a ser implantado no pós-regime militar, e o
calculo político do presente alinhava-se com uma projeção do futuro.
425
O que entendemos por tempo histórico é o resultado daquilo que Reinhart Koselleck (2006) percebe
como futuro passado, ou seja, como em um determinado tempo presente “a dimensão temporal do
passado entra em relação de reciprocidade com a dimensão temporal do futuro” (KOSELLECK, 2006, p.
15).
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426
Sobre de história como conhecimento situado entre análise do passado e um projeto social, ver:
FONTANA, Josep. História: Análise do passado e projeto social, 1998.
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Lapa forja uma dura crítica tanto à produção historiográfica quanto ao sistema de ensino
e, mais especificamente, o ensino de história, afirmando que pouco tem contribuído para a
conscientização do problema do subdesenvolvimento, pois a História é ela própria marcada
pelo subdesenvolvimento, caracterizado como “livresca e academicamente formados,
envoltos em erudição, engolfados pela massa factual, sem o embasamento teórico
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A relação entre crítica e crise que tentamos estabelecer nesse trabalho deve inspiração ao livro Crítica
e Crise de Reinhart Koselleck (1999), no qual o autor tentar perceber a construção da consciência
histórica burguesa a partir da crítica que fora feito ao Absolutismo, e como essa crítica no espaço
intelectual do século XVIII contribuiu para a crise do antigo regime, tal como a constituição de um
arcabouço teórico capaz de garantir a constituição de uma consciência histórica burguesa dominante, mas
que no momento da escrita dessa tese (1959) se encontrava em crise, e era necessário revisitar as raízes
desse problema, ou seja, se fazia necessário uma avaliação crítica da crise que o mundo vivenciava no
pós-segunda guerra.
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como um perigo obscuro, por isso é necessário prudência, pois “perder de vista é o risco de
uma ‘meia-volta-vol-ver’” (1985, p.7).
O objeto dessa obra parece se confundir com o texto de 1976, já que a relação
entre história e historiografia é sua tônica principal, mas diferenciam-se em um ponto
fundamental, em A História em questão os vínculos entre a crítica à escrita da história e a
crítica à realidade histórica era algo que não era feito de forma explicita, literal, mas a análise
historiográfica era usada como recurso de entendimento da realidade social, ou seja, o objeto
de análise privilegiado da obra de 1976 é a historiografia brasileira contemporânea à época.
Em 1985, a questão era outra, o texto que Amaral Lapa escreveu foi encomendado pela
editora Paz e Terra com a finalidade de compreensão do Brasil pós-1964 a partir da relação
entre história e historiografia, projeto que se estendeu não apenas à história, mas a outras
áreas das Ciências Sociais, como Economia, Sociologia e Antropologia428.
Dessa maneira, a obra História e Historiografia: Brasil pós-1964, opera numa outra
estrutura temporal, não apenas fala da relação direta entre história e historiografia, mas trata
abertamente da relação entre a comunidade dos historiadores, sua produção e até que ponto
foi afetado pelo regime político que se instaurou no Brasil entre os anos de 1964 e 1984. A
primeira obra trata de um presente a ser superado e de um futuro ainda desconhecido, a
segunda situa-se nesse futuro, tratando o passado (o pós-1964) como algo que já se encontra
em processo de superação. O primeiro livro trata do presente ligado ao passado e com uma
certa distância do futuro, o segundo trata o presente ligado ao futuro e com a necessidade de
distanciar-se do passado. Se em 1976, Lapa problematizou a historiografia contemporânea,
para na crítica encontrar elementos capazes de romper com o presente, em 1985, o mesmo
autor, analisa o passado como elemento capaz de reforçar no presente o rompimento com o
passado imediato, além de reestabelecer um novo vínculo com o futuro “em outras palavras, o
objetivo privilegiado de análise deste livro é a evolução dos estudos históricos,
particularmente sobre o Brasil, gravitados pela Universidade e, portanto, praticados por
historiadores que nela se profissionalizaram” (1985, p. 8).
Deste modo, a narrativa que Lapa faz do movimento de implantação da Ditadura
Militar, parece-nos revelador do tempo histórico que possibilitou a emergência dessa obra.
Num tom de denúncia, o autor entende que é necessário à análise crítica do desempenho
cientifico e social dos historiadores nos vinte anos que separam à escrita de História e
428
Essas informações o Lapa oferece na Introdução de História e Historiografia: Brasil pós-64 (p, 7-9).
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Lapa admite que houve interferência e certo controle intelectual, já que após a tomada de poder “o
governo fez abater sobre a Universidade, através de pressões e repressões de diferente ordem, todo um
processo castrador de pensamento, tendo à área de história, entre outras, sido vítima de IMPs, de triagens
ideológicas, de cassações e aposentadorias compulsórias, de prisões e intimidações” (LAPA, 1985, p.30).
Um exemplo de como os historiadores em algumas faculdades foram perseguidos pelo regime militar no
processo de sua implantação em 1964, pode ser encontrado no texto O lado escuro da força: a ditadura
militar e o curso de história da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi/UB),
de Marieta de Moraes Ferreira (2013), no qual a autora analisa como a FNFi/UB fora abalado pelo golpe
de 1964, além de narrar a experiência de perseguição sofrida por historiadores como Maria Yeda Linhas
devido a sua orientação política.
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Em todos os estudos que pesquisamos acerca da historiografia brasileira entre os anos 1970 e 1980 os
autores ressaltam a importância da expansão das pós-graduações para a dinamização da historiografia
brasileira nesse período.
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Fico e Polito assinalam a importância da presença dos ditos brasilianista431 naquele momento.
Em resumo, o ambiente acadêmico entre os anos 1970 e 1980 se caracterizou pelo predomínio
marxista, pela opção teórico-metodológica francesa e pela presença norte-americana (FICO &
POLITO, 1996).
Margareth Rago (1999) analisa as bases dessa nova demanda oferecida pela
historiografia brasileira a partir da segunda metade dos anos 1970, relacionando à expansão
dos estudos históricos ao ambiente social e político da época, mostrando que a situação era
paradoxal, pois ao mesmo tempo em que havia um ambiente de violência e repressão cultural
exercida pelo regime vigente, “esta década irrompeu trazendo uma grande expansão dos
estudos históricos, das pesquisas e publicações de livros, artigos e revistas, impulsionada pela
criação dos inúmeros cursos de pós-graduação no País, pelo próprio crescimento do mercado
editorial e, não menos, pela intensa pressão da resistência política organizada, forma e
informalmente.” (RAGO, 1999, p. 73)
Um outro elemento importante na construção do que a autora chama de “nova”
historiografia brasileira é a crescente participação de novos grupos sociais na vida pública,
caso das mulheres, dos jovens, negros e operários que trouxeram novas questões e
reinvindicações, pois:
431
Para Arruda e Tengarrinha (1999), a expressão brasilianista deve ser entendida como fruto de um
movimento específico da historiografia norte-americana sobre o Brasil, contando com a presença de
sociólogos, politólogos, antropólogos, economistas e literatos, algo importante a ser notado é que a
presença dessa historiografia norte-americana no Brasil cresce nos anos de exceção “atendendo, de um
lado, o renovado interesse norte-americano por nossa história recente, e, por outro, pelas restrições
impostas aos historiadores nativos o consequente facilitamento para os estrangeiros.” (ARRUDA &
TENGARRINHA, 1999, p.64) Para Astor Diehl, a partir de fins da década de 1970 “faz-se sentir uma
crítica aos estudos brasilianistas, promovida por uma nova geração de historiadores, sociólogos e
antropólogos, entre outros, que visualizavam nas pesquisas dos brasilianistas as vértebras de sustentação
das intenções político-econômicas e o perigo do então chamado ‘imperialismo cultural’” (DIEHL, 2004,
p. 19).
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432
Ângela de Castro Gomes (2004) e Margareth Rago (1999) em seus respectivos artigos ressaltam a
importância da incorporação de novas perspectivas teórico-metodológicas, a partir da apropriação de
novas referências que contam com historiadores como E. P. Thompson e seu conceito de classe social que
se constituiu na crítica à “ultima instância do econômico” e Carlo Ginzburg, cujo paradigma indiciário
aproxima a história da antropologia, além de possibilitar os debates acerca da micro-história. Essas
aproximações se deram graças à um crescente interesse do mercado editorial que levou à publicações de
obras de autores como Roger Chartier, Michel Foucault, além dos referidos acima.
433
Fico e Políto (1996), entretanto, afirmam que apesar de haver uma demanda cada vez maior pelas
questões de ordem social, a história econômica e, sobretudo, a história política não deixaram de existir,
passando por poucas renovações, pois “muitos trabalhos de história política persistiram numa perspectiva
linear de análises de individualidades ou da corriqueira sucessão de episódios da ‘pequena política’”
(FICO & POLITO, 1996, p. 184).
434
Outro aspecto importante relacionado à questão da atualidade do conhecimento histórico, deve-se ao
crescente interesse pelo estudo da história contemporânea do Brasil que, segundo José Roberto do Amaral
Lapa, em 1976, já apontava para um crescimento no número de publicações e poderia ser considerado
como uma das tendências da historiografia brasileira, mesmo assim, segundo o levantamento que esse
historiador fez a partir das teses de doutoramento defendidas entre 1934 e 1973, apenas cerca de 15, 2%
referenciam-se ao período republicano (Ver Lapa, 1976, p. 39-42). Já em 1985, a partir de uma pesquisa
no Arquivo Nacional entre 1970 e 1979, Lapa percebe que 30% das pesquisas nesse arquivo eram
realizadas em torno do período republicano, segundo Lapa esse aumento se deu graças a necessidade de
“assumir posições no exame e na crítica dos fatos e personagens, ao enfrentar os desafios da compreensão
do presente e de sua interpretação através de um conhecimento elaborado” (LAPA, 1985, p. 74)
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florescer acadêmico e historiográfico. Segundo Carlos Fico e Ronald Polito (1996), esse
período foi marcado pela consolidação e ampliação dos cursos de Pós-Graduação,
aquecimento no mercado editorial especifico, multiplicação dos enfoques teóricos (sobretudo
com um maior contato com a historiografia francesa), crescimento e amadurecimento das
discussões metodológicas.
Do ponto de vista teórico-metodológico a historiografia brasileira entre as décadas de
1980 e 1990 foi afetada pela ascensão de novas perspectivas, objetos e abordagens. Da
história dos operários à escravidão, da história do Brasil Colônia à história do Brasil
República, das análises estruturais, quantitativas e marxistas à história das mentalidades, das
sensibilidades, do cotidiano e da abordagem micro-histórica. Esse período significou para a
historiografia brasileira, um momento de maior profissionalização do historiador, refletida nas
inúmeras associações e comunidades de pesquisa fundadas nesse período (FICO & POLITO,
1998).
A Cultura Historiográfica Brasileira nos anos 1980, para Astor Diehl (2004), foi
marcada por um processo de ruptura com o que se fez até então na prática da escrita da
história no Brasil. Segundo esse historiador, até a década de 1970 ocorreu o predomínio dos
relatos e interpretações lineares, cujos interesses principais estavam ligados às questões “do
Estado, da nação, das classes sociais, instituições políticas e dos grandes centros econômicos
(...) procurou-se ainda, por meio de sínteses estruturais, ensaiar críticas ao regime político-
militar, bem como à tradicional visão histórica que predominava naquele momento.” (DIEHL,
2004, p. 19).
Nos anos 1980 assistia-se à negação dos modelos totalizantes, incitava-se a
possibilidade de “se estudar a história do Brasil com base na realidade brasileira, numa
especificidade histórica que dificilmente se deixará submeter às leis históricas gerais do
desenvolvimento das sociedades” (DIEHL, 2004, p. 21).
A tônica dos estudos históricos desse momento está ligada a eminente problemática das
especificidades históricas do Brasil, cujos aspectos a serem ressaltados devem ser o da
singularidade dos eventos históricos, da multiplicidade de realidades a serem pesquisadas, e
da heterogeneidade das narrativas históricas possíveis. A cultura historiográfica brasileira na
passagem dos anos 1970 aos anos 1980 é atravessada pela problemática dos estudos regionais,
cujos efeitos se farão sentir nas linhas de pesquisa institucionalizadas pelo processo de
expansão das pós-graduações (FICO & POLITO, 1996). José Amaral Lapa (1985) diz que a
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partir de 1975 houve uma maior projeção da História Regional, e confirma a tendência das
pós-graduações voltarem-se mais para as regiões onde estão inseridas, já que:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Bauru-SP:
EDUSC, 2005.
DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica brasileira nos anos 1980: experiências e
horizontes. 2ª ed. Passo Fundo: UPF, 2004.
FICO, Carlos & POLITO, Ronald. Historiografia brasileira nos últimos vinte anos- Tentativa
de Avaliação crítica. In: MALERBA, Jurandir (org.). A velha história: teoria, método e
historiografia. Campinas-SP: Papirus, 1996.
FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru, SP: EDUSC, 1998.
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GOMES, Ângela de Castro. Questão Social e historiografia no Brasil pós-1980: notas para um
debate. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 34, Julho-Dezembro de 2004, p 157-
186.
LAPA, José do Amaral. História e Historiografia: Brasil pós 1964. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985.
RAGO, Margareth. A “nova” historiografia brasileira. In: Anos 1990: Revista do Programa de
Pós-Graduação em História (UFRGS). v.7, nº11, 1999, p, 73-97.
SILVA, Francisco Carlos Texeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura
política no Brasil (1974-1985). In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Luciliane Almeida
Neves (orgs.) O tempo da ditadura: Regime Militar e movimentos sociais. 2ªed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
RESUMO
Este presente estudo surgiu a partir da inquietação diante da leitura da obra o
Renascimento do acontecimento de François Dosse. Desse modo, buscaremos
privilegiar essa nova concepção de acontecimento proposta por Dosse e dialogar com o
nosso interesse de pesquisa. Este trabalho abordará Josué Apolônio de Castro (1908 -
1973) que se revelou um intelectual atuante e com uma produção literária expressiva. O
nosso principal objetivo é problematizar um acontecimento na vida de Josué de Castro
que implicou em mudanças no seu olhar e na sua postura como intelectual, através da
análise da sua relação com o saber geográfico instituído e de sua produção literária.
1. INTRODUÇÃO
Este texto tem como objetivo principal correlacionar essas leituras e pensar
sobre o interesse da nossa pesquisa de mestrado435. Desse modo, iremos discutir um
acontecimento relevante que colaborou na elaboração da representação de Josué
Apolônio de Castro sobre a cidade do Recife, por meio de uma postura reflexiva com o
documento. Assim, privilegiaremos essa nova noção de acontecimento proposta por
Dosse e conciliaremos com o modo de olhar sugerido por Deleuze, no qual
consideramos fundamental para se relacionar com as fontes.
No ano de 1933, ocorre um acontecimento importante, é inaugurada em
Pernambuco a Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, onde cabe a Josué
de Castro lecionar a disciplina de Geografia Humana436. Inclusive, ele participou
ativamente do processo de idealização dessa faculdade, aparecendo como um dos
fundadores em companhia de outros intelectuais, como: Olívio Montenegro, Nelson
Coutinho, Aníbal Bruno, Sílvio Rabelo, Ulisses Pernambucano437. Inspirados nas
universidades europeias, esses intelectuais desejavam uma instituição que se
relacionasse com o conhecimento de forma menos utilitarista e mais direcionada a
pesquisas sociais438.
No entanto, por que consideramos o ato de Josué de Castro ter que ensinar
Geografia numa Faculdade tão decisivo? Por qual motivo damos relevância a este
acontecimento quando tentamos analisar a representação do ambiente urbano do Recife
construída por Josué de Castro? Por que isto é fundamental para pensarmos uma
abertura de possibilidade? Veremos este acontecimento como imprescindível porque foi
435
Nossa pesquisa de dissertação é intitulada “Representações do ambiente urbano da cidade do Recife
em Josué de Castro”, desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura
Regional da UFRPE, sob a orientação da Profª Drª Fabiana de Fátima Bruce da Silva.
436
Em 22 de setembro de 1933, no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife é concebida a
Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife. (Diário da Tarde, Recife, 22/09/1933).
437
Numa entrevista Josué de Castro relembra: “Fundei, com vários companheiros, uma Faculdade de
Filosofia no Recife. Com 23 anos eu era o Diretor. Consegui ser professor da Faculdade [...] de Filosofia
(Geografia Humana)”. (Revista Manchete, Rio de Janeiro, abril, 1964).
438
Sobre a função das universidades, Josué de Castro desejava uma instituição que estimulasse o
pensamento científico e declarava que “Não nos faltam apenas técnicos, mas também elementos com
cultura teórica bem formada. Esses nos são ainda mais indispensáveis, porque fazer as cousas é muito
fácil - o difícil é fazê-las e compará-las com espírito rigorosamente científico. E esse espírito só se forma
com uma larga cultura viva, com o conhecimento direto dos fenômenos naturais, do campo sociológico –
pela investigação e comparação dos problemas sociais” (O Estado, Recife, 24/09/1933).
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um momento na vida de Josué de Castro que possibilitou uma mudança, anos depois, na
forma que olharia a cidade do Recife.
Este acontecimento que para muitos pode aparecer como banal é apenas
aparentemente insignificante. Apesar de não remeter a um acontecido fora do padrão,
percebemos nele uma expansão de alternativa que consiste em transformações. Naquele
momento em que Josué de Castro se torna professor de Geografia Humana ele era um
jovem recém-formado em medicina, tinha montado sua própria clínica de nutrição e
lecionava a disciplina de Fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife. Nada indicava
que, anos mais tarde, seria um geógrafo de prestígio social e reconhecido pelos seus
pares439. Nesse sentido, consideramos fundamental esse momento na alteração da sua
trajetória como intelectual. Assim, destacamos que vemos o acontecimento como
sugeriu Deleuze, onde “o possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento”
(DELEUZE apud DOSSE, 2013, p. 12).
Não pretendemos buscar o primeiro contato que Josué de Castro teve com a
ciência geográfica. No entanto, atribuímos importância a este encontro, porque vemos
nele uma abertura a uma descoberta da ciência geográfica, pois coube a ele lecionar
Geografia Humana durante dois anos de sua vida em um período histórico em que a
geografia nem ao menos tinha se firmado no Brasil e nem havia aparecido nas suas
produções. Aliás, como veremos mais adiante, é só em 1937 que o método geográfico
ocupa uma centralidade na sua obra. Também não queremos afirmar que este
acontecimento foi o único a alterar as possibilidades, acreditamos que houve vários
episódios ligados a este que se tocam e influenciaram o modo de ver e representar de
Josué de Castro.
A Geografia Científica na década de 1930 ainda não estava consolidada no
Brasil. Enquanto Josué de Castro começava a lecionar geografia nem ao menos existia
um curso institucionalizado de Geografia no país. Aliás, só em 1934 que seria
estabelecida a Universidade de São Paulo (USP), a primeira universidade no país. Nela
439
Empossado no cargo de professor de Geografia Humana na Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil em 14 de julho de 1948, por meio de sua tese intitulada Fatôres de Localização da
Cidade do Recife: Um ensaio de geografia urbana.
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seria introduzido o primeiro curso de Geografia do Brasil. Carvalho (2007) com seu
trabalho que se insere na linha da história do pensamento geográfico, diz que a ciência
geográfica até 1948 estava em fase de implantação e que só a partir dos anos 1950 que
ela se afirmará no cenário científico brasileiro.
Enquanto as universidades vão se firmando no Brasil no decorrer da década
de 1930 o governo federal funda o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). A intenção do governo é estimular as pesquisas geográficas com intenção de
obter informações acerca da realidade brasileira. Segundo Andrade (1999), desejosos de
um mapeamento do território nacional, a geografia foi impulsionada por alguns setores
nesse período. Era necessário, na ótica do governo, conhecer cientificamente os vários
ambientes naturais para o pleno desenvolvimento da nação.
As condições históricas para o surgimento dos saberes científicos no século
XIX é uma das preocupações do filósofo Michel de Foucault. Ele sugere que a
emergência dos saberes depende de elementos externos aos próprios saberes. A sua
análise das relações entre poder e saber é uma das contribuições que nos legou Foucault.
Segundo o filósofo, saber e poder operam dentro de um mesmo espaço, onde um
depende do outro para funcionar.
O fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não
há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também,
reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de
exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação do saber.
(FOUCAULT, 2012, p. 28).
440
Em Fernand Braudel percebemos a relação entre a história e a geografia em meados do século XX. Na
primeira parte do livro O Mediterrâneo, Vidal de La Blache é o autor mais citado. LIRA, Larissa Alves
de. Fernand Braudel e Vidal de La Blache: Geohistória e História da Geografia », Confins [Online],
2 | 2008, URL : http://confins.revues.org/2592 ; DOI : 10.4000/confins.2592
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colaboração do amigo, revela que a sua referência bibliográfica para estudar o ambiente
urbano foi influenciada pelo companheiro.
Não sabemos ao certo a intensidade e a repercussão desses encontros de
Josué de Castro com a ciência geográfica. Mas, consideramos que estes contatos não
estão desvinculados ao acontecimento da vida de Josué de Castro em 22 de setembro de
1933, pois não concebemos o acontecimento como isolado dos outros. Porém, não
entendemos que ocorra uma relação mecânica de sucessividade entre os
acontecimentos.
Entretanto, a adesão do método geográfico por parte de Josué de Castro,
talvez se deva a outro mediador, que não propriamente os geógrafos franceses. Nesse
sentido, o que nos parece aceitável é uma suposta influência pessoal na trajetória de
Josué de Castro. Imaginamos que Mário Lacerda de Melo (1913 – 2004) possa ter sido
seu inspirador e ajudou a Josué de Castro a trabalhar alguns temas a partir da utilização
do método geográfico. Em 1936, antes de Josué de Castro se definir como geógrafo, o
jovem Mário Lacerda de Melo publicou vários trabalhos sobre a geografia no Jornal
Diário de Pernambuco aparecendo como um dos pioneiros no assunto em Pernambuco.
Muito dificilmente Josué de Castro passou longe das escritas de Mário
Lacerda de Melo. Não podemos acreditar que Josué de Castro, leitor e colaborador do
Diário de Pernambuco, tenha desconhecido os textos de Mário Lacerda de Melo, no
qual Josué de Castro supostamente se interessava pelos assuntos discutidos por Mário
Lacerda de Melo.
Talvez ali começou a ser construído um outro modo de ver as coisas em
Josué de Castro que aos poucos e interligados a outros mediadores acaba por refletir na
sua escrita. Como nos mostra suas produções geográficas no decorrer da década de
1940, onde Mário Lacerda de Melo é sempre citado quando Josué de Castro disserta
sobre a questão dos mocambos do Recife.
Embora, aceitamos a ideia que as instituições fortalecem e propagam um
determinado saber, não desconsideramos os encontros íntimos e seus entrelaçamentos
com aspectos mais estruturais da sociedade.
Após esta breve discussão narrada acima sobre a situação do saber
geográfico no Brasil nos anos 1930 e 1940 e a relação com Josué de Castro, iremos,
agora, refletir acerca das práticas literárias de Josué de Castro, mas precisamente sua
produção científica na área da geografia.
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441
Certa vez ele relembra: “A princípio uma impressão de deslumbramento e de veneração por seus
velhos muros, pela austera fachada da sua escola. Depois de desencanto no que diz respeito aos ensino ali
ministrado. Aliás, não só a Faculdade da Bahia, mas depois a do Rio, também me desapontou por
completo. Entrei com um grande entusiasmo e saí com interesse quase morto pela maioria dos assuntos,
na forma em que eram apresentados. Poucos professores me entusiasmaram” (CASTRO, 2003, p. 17).
442
Sobre a sensação de descontentamento com o saber médico, vale destacar esse enunciado de Josué de
Castro acerca da experiência que teve nesse inquérito: “Sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-
los porque sou médico e não diretor daqui. A doença dessa gente é fome. Pediram que eu me demitisse.
Saí. Compreendi, então, que o problema era social” (CASTRO, 2003, p. 19).
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dialogou com a sociologia, talvez por não ter tido ainda um contato com a ciência
geográfica capaz de provocar mudanças na sua prática científica.
Continua trilhando sua forma interdisciplinar de produzir conhecimento e
poucos anos depois publica o livro Documentário do Nordeste. Salientamos que muito
deste livro foi desenvolvido enquanto Josué de Castro lecionava geografia na Faculdade
de Filosofia e Ciências Sociais de Recife. Vemos essa obra como um momento de
transição na escrita dele. O livro é formado por um conjunto de textos de caráter
literário, biológico e sociológico. Entretanto em alguns textos de tendência sociológica
percebemos um olhar direcionado as paisagens do Recife e um pouco de um olhar
geográfico.
Impresso e publicado em janeiro de 1937, na primeira edição de
Documentário do Nordeste, encontramos um texto interessante intitulado Revalorização
do Nordeste, onde Josué de Castro faz um estudo geográfico e acredita que esse
conhecimento pode fornecer à nação uma política mais eficiente. Percebemos um
esboço de trabalho geográfico e, ainda, um distanciamento das teorias geográficas, pois
não aparece nos autores citados nenhum geógrafo.
Na quarta edição desta obra este texto é retomado, mas agora com o título
de Os preconceitos de raça e de clima. Antes de chegar a qualquer hipótese Josué de
Castro faz uma longa discussão teórica, demonstrando familiaridade com diversas
correntes do pensamento geográfico. Um texto com uma cara mais científica, onde
diminui ou esconde o tom sentimental do escritor.
Na primeira edição ele pretende ressignificar a imagem do Nordeste,
afirmando que a região tem boas condições para o desenvolvimento e um povo forte.
Afirma que o problema do Nordeste são as políticas públicas e uma ingratidão do
governo federal. Exceto pela novidade de trazer a interpretação geográfica enrolada com
a sociológica, não percebemos nada demais no modo que ele vinha tratando seus temas
nos últimos anos.
No entanto, percebemos, na quarta edição, além de uma valorização do
Nordeste, uma intenção de derrubar algumas ideias relacionadas à raça e clima. A partir
das premissas da Escola Possibilista se propõe em estudar um problema não apenas
regional. Agora o seu foco é nas relações do homem com o meio ambiente. Nesse texto,
seu objetivo principal é desconstruir as noções deterministas de raça e de clima.
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Podemos observar nessas duas edições uma mudança não apenas na escrita,
mas também nas opiniões do autor. Sabemos que cada texto foi escrito no seu tempo e
está atrelado a uma configuração, mas sem o método geográfico Josué de Castro não
conseguiria se inserir com respaldo naquela discussão teórica. O que vale ressaltar é que
entre essas edições ocorreu a consolidação da ciência geográfica no Brasil e o
estabelecimento da imagem de geógrafo de Josué de Castro.
Aquele intelectual curioso pelas novas teorias geográficas aos poucos vai
consolidando uma nova postura científica. Em meados de 1937 é publicado o livro A
alimentação brasileira à luz da geografia humana que inaugura um tema que Josué de
Castro irá trabalhar até o fim da sua vida, como também vai marcar sua imagem como
um estudioso da fome. No entanto, o que constitui este livro como sendo bastante
importante para o que se discute neste trabalho é que nele, finalmente, o método
geográfico ocupará uma centralidade dentro da sua produção. Ele não deixa dúvidas que
pretende estudar o problema da alimentação pelo viés geográfico e informa:
Não o método puramente descritivo da antiga geografia, velha como o
mundo, mas o método da ciência geográfica que é nova, que é quase dos
nossos dias. Que se corporificou dentro dos princípios científicos formulados
pelas experiências de geógrafos como Karl Ritter, Humboldt, Ratzel e Vidal
de La Blache (CASTRO, 1937, p.24-5).
Se antes o médico Josué de Castro utilizava, além do saber médico, os
preceitos da sociologia e se entusiasmava com a escrita literária, agora, quatro anos após
o seu primeiro contato com a geografia como docente, ele passa a se apropriar do
conhecimento geográfico para tratar dos seus interesses de pesquisa. Assim, estava
surgindo o geógrafo Josué de Castro.
Esta novidade implica que, mais tarde, a partir de uma obra de caráter
geográfico, Geografia da fome, Josué de Castro conquistará prestígio e será reconhecido
no Brasil e em diversos outros países, se constituindo como um grande intelectual
brasileiro. Considerada sua obra prima, este livro cria condições para que Josué de
Castro ocupe posições de destaque em instituições nacionais e internacionais.
Embora esse dado seja relevante, não nos interessamos aqui como a
geografia mudou a vida de Josué de Castro de forma geral. No entanto, desejamos
entender como a partir da mudança de suas práticas científicas e da sua posição social
ele mudou seu olhar. Assim, após estes acontecimentos houve uma modificação do seu
lugar de fala e do seu modo de ver.
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443
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13/05/1951.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
444
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13/05/1951.
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5. REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Trad. Calos Piquet e Roberto Machado. Rio de
Janeiro. Forense Universitária, 2003. 173 p. Primeira parte.
GT 8
CULTURAS JUVENIS E MOBILIZAÇÃO POLÍTICA: O CENTRO
ESTUDANTAL CAMPINENSE NA CONJUNTURA ANTERIOR AO GOLPE
CIVIL-MILITAR DE 1964
445
Este Centro foi criado pelas ideias trazidas por um grupo de “professorandas”, em visita à cidade de
Fortaleza/CE, em uma missão de “cultura e cordialidade”, que inspiraram “jovens idealistas” a fundaram
em Campina Grande uma sociedade que congregasse os estudantes (Formação, 1952). Este Centro
“surge num momento particular da história brasileira, imperando a dominação varguista, com a
repressão pós 1935, o corporativismo da CLT e as ações modernizantes na economia encaminhas pelo
Estado” (NASCIMENTO, 1990, p.129).
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Campina que gosta de ver a mocidade inflamada que possui, Campina que
ama esses moços destemidos que comandam as gloriosas lutas cívicas que
transformam a Rainha da Borborema e Rainha da Liberdade e da
insubmissão (...) a maioria dos centristas de todos os tempos, o grosso dessa
entidade estudantil e democrática, ainda está sinceramente voltada para o
bem estar dos povos e para as regras que disciplinam a democracia e
possibilitam os homens as mesmas oportunidades (Jornal de Campina, 1953,
p. 5).
Era uma força muito grande, tinha um prestígio enorme, os prefeitos ouviam
eles, perguntavam o que o Centro achava sobre determinada decisão, sobre
ingresso de cinema, preço do pão, preço das passagens de ônibus urbanos. O
Centro tinha uma força poderosa e nós chegamos a decretar greve várias
vezes, parar tudo quanto foi de transporte, fechar cinema, aconteceu muito,
era uma força, mesmo, mesmo. (SYLVESTRE, depoimento: [nov. 2013]).
446
Tomaremos este termo por assim ser denominado na imprensa e entre os estudantes, os grupos de
militantes. Para a nossa pesquisa, classe não estará no sentido de homogeneidade, uma história comum
de estudantes sem rosto, nome e/ou voz; mas de jovens que atuaram coletivamente dentro de um
grupo social, entendendo que, o movimento estudantil foi integrado por diversos estudantes com ideias
e posicionamentos políticos diferentes, mais que foram suscetíveis de manterem relações em conjunto
nas mobilizações que participaram e atuaram.
447
Estudante e militante foi presidente do Centro Estudantal Campinense entre os anos de 1960-62.
“Nacionalista ferrenho” participou de congressos da UBES, chegando quase à diretoria; levou o CEC para
as reuniões da AESP (Associações dos Estudantes Secundários da Paraíba), sendo o Centro a única
entidade municipal; inaugurou a Casa do Estudante Félix Araújo. Sua atuação no movimento estudantil
foi até o ano de 1963 quando, vice-diretor da UBES, seu mandato foi caçado no Conselho Nacional dos
Estudantes por ausência de atividades na diretoria. Considerando como graves seus pensamentos e sua
atuação na vida pública, Josué se “livrou de punições do movimento de março de 1964” (2013, p. 74-75).
Hoje historiador e escritor, escreveu obras sobre a política partidária campinense e seus políticos. Obras
citadas na referência bibliográfica.
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448
Porque Estudantal e não estudantil? Relatou-nos Josué Sylvestre que “toda censura é burra”.
Quando o centro foi fundado, “o país estava na ditadura de Getúlio Vargas” e, numa forma de burlar
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Para tanto, percebemos a visibilidade que está entidade ganha diante de um querer
poder de “sujeitos” que se possibilitaram atuar na preparação de suas aspirações,
obtendo para si e para aqueles que nela participaram uma independência em relação a
variabilidades de circunstancias/expansões futuras.
Convincentes de suas responsabilidades perante a classe estudantil, estes militantes
participavam de várias atividades, principalmente aquelas voltadas para o movimento
estudantil, se reunindo para tentar resolver os problemas que consideravam como
importantes a esta classe.
Imagem 1: Vários momentos de atividade do Centro Estudantal Campinense: Da esquerda para direita:
Congresso Nacional da UNE, Rio de Janeiro/ RJ (1960); Congresso da AESP em Sousa/PB (1961);
essa ditadura, as organizações estudantis não podiam colocar Estudantil, “se não, não registraria”, mas,
“se colocar Estudantal não tem nada” (depoimento [Nov. 2013]).
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Inauguração da Casa do Estudante Félix Araújo em Campina Grande/PB (1962); Congresso da AESP em
Sousa (1961); Congresso da AESP em Guarabira/PB (1961). Arquivo Josué Sylvestre.
449
Nas décadas de 1950-60, havia na cidade quatro colégios com grande representatividade entre os
estudantes: Colégio Estadual de Campina Grande, Colégio Diocesano Pio XI, Colégio Alfredo Dantas e
Colégio Imaculada Conceição.
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Esse tipo de relação refletia os anseios dos jovens centristas em criar as condições
favoráveis para a ascensão na política. Verdadeira “Escola de líderes”, muitos centristas
(depois que deixavam a militância do Centro) passaram a assumir funções
governamentais, mandatos legislativos e postos de direção de maior ou menor destaque
na política da cidade e no Estado: Félix Araújo, Raymundo Asfora, Ronaldo Cunha
Lima450, Evaldo Cruz, Fernando Cunha Lima, Ivandro Cunha Lima, William Arruda,
Antônio Carvalho (SYLVESTRE, 1993, P. 364).
Problematizando a relação dos nomes dos representantes estudantis supracitados,
observamos, em primeiro lugar, o Centro Estudantal agindo para “formar futuros líderes
políticos”; e em segundo lugar, o movimento estudantil transparecendo uma luta por
reinvindicações de uma elite campinense.
Questionando o senhor Josué Sylvestre com relação ao vinculo da entidade com a
política local, contraditoriamente nos relata:
450
Muitos representantes políticos em Campina Grande e na Paraíba tiveram seus passos iniciais no
Centro Estudantal Campinense, dentre os de maior destaque para os irmãos Cunha Lima, que tiveram
grande representatividade e carisma na política local (a família Cunha Lima tem continua herança
política). E outros que não trilharam a carreira política, mas que permaneceram ligados à política local,
como mediadores, no caso do nosso narrado Josué Sylvestre.
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Não, nenhuma, nenhuma, o que havia era o seguinte: a cidade era muito
politizada, as diretorias tinham sim vinculação política com o quadro local,
geralmente uma chapa era apoiada por um lado e a outra pelo outro lado,
tinha chapa que era apoiada pelos adeptos do agimirismo, Argemiro de
Figueiredo (ex-prefeito de Campina Grande). Dr. Argemiro nunca tinha
assim se envolvido, mas era apoiado por estudantes que participavam do
partido do Dr. Argemiro, que era a UDN, é o caso dos irmãos Cunha Lima
(...) a 9 de junho de 1950 na tragédia da Praça da Bandeira, Ivandro foi um
dos oradores ligados ao Dr. Argemiro, por um cuidado muito claro, ele não
falou em nome do Centro, falou em nome da juventude campinense, mas
todo mundo estava sabendo que era a voz do Centro, era o presidente do
Centro (...) e havia o pessoal PSD, que era Genival Lucena, antes Raymundo
Asfora, quando eu cheguei (década de 1960), já não havia essa ação assim
tão forte da UDN e do PSD, já havia outros partidos, o Partido Socialista, eu
era do Partido Socialista” (SYLVESTRE, depoimento: [nov. 2013]).
na vida local, que fez com que o movimento estudantil contasse com uma maior
participação dos estudantes.
Intelectuais, jornalistas e estudantes acusavam abertamente em jornais da cidade
de ter sido o mandante do assassinato o então prefeito Plínio Lemos. Tais
acontecimentos marcaram profundamente a “cara” do movimento estudantil, tendo
agora como líder da luta pela “justiça” Félix Araújo, morrido “covardemente lutando
pelo povo”. Aquele se tornou um ícone de lutas posteriores entre os estudantes. “Ainda
estamos no rasto do sangue de Félix Araújo” (AMORIM, depoimento: [dez. 2013]).
Sua memória e “coragem” perduraram para a posteridade, e se tornou uma
referência da militância no Centro Estudantal. Grande comoção e revolta na cidade, sua
morte fez ressoar um sentimento de continuidade da sua luta:
451
O Colegial (1935-40); A Voz da Mocidade (1936); Tribuna do Estudante (1951); Jornal do Estudante
(1953); Formação (1936-1964). A pouca duração desses jornais explica-se por terem sido produzidos
com recursos dos estudantes. Apesar de o jornal Formação ter um período relativamente longo, sua
produção foi esporádica e não encontramos exemplares na década de 1940.
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que é possível encontrar nos jornais além do que neles estão escritos, nos interessando
muito mais os usos e consumo que se fazia deles na vida estudantil:
452
Depois da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, no dia 25/08/1961, o vice-
presidente João Goulart foi impedido de assumir a presidente. “O vice-presidente da República era João
Goulart, cria política de Getúlio Vargas, principal mentor do trabalhismo e líder nacionalista.
Aproveitando-se da atitude intempestiva de Jânio, chefes militares e lideranças políticas e empresariais
assumiram uma postura intransigente e antidemocrática de impedir a posse do substituto constitucional
do renunciante” (SYLVESTRE, 2013, p.69). Depois de vários levantes nacionais, conseguiram chegar a um
consenso, e no dia 02/09/1961 o sistema parlamentarista foi aprovado e no dia 08/09/61 Jango foi
empossado.
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Fui conduzido para João Pessoa, num jipe do Exército, ao lado do líder
sindical José Pereira dos Santos, o atual vereador José Peba; a escolta era
formada por militares estudantes. Na capital, depois de uma ligeira passagem
pela frente do DOPS fomos levados ao Quartel do 15º RI, em Cruz das
Armas, onde instantes depois também chegava de Campina Grande o líder
universitário Henrique Miranda de Sá Neto. Receberam-nos do alto da escada
da área interna o General Sílvio Cahu e seu Estado-Maior (SYLVESTRE,
1988, p. 338).
Ao se deparar com outros líderes, não somente estudantil, que haviam sido
detidos junto com ele, no caso do líder sindical e dirigente do Partido Comunista, Peba,
Josué Sylvestre percebeu as tensões na política brasileira: “o negócio aqui é mais
complicado do que eu estava imaginando” (2013, p. 71); afirmando que nas suas ações,
como líder estudantil e cidadão não havia nenhuma espécie de rebeldia e/ou
“radicalismo”, que lutavam por uma causa justa e democrática:
453
A UNE representou para os estudantes uma entidade “ideal legalmente reconhecida”, em 1937 de
caráter amplo e nacional, com a instalação do 1º Conselho Nacional dos Estudantes, na escola de Belas
Artes. A UNE só exerce suas atividades legalmente até 11 de abril de 1964, quando é colocada na
ilegalidade, pela lei Suplicy de Lacerda (POERNER, 2004).
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Desde candidato Jânio teve palavras claras por onde expressou seu propósito
de salvar Cuba, de não deixar que Fidel Castro caísse na extrema esquerda.
Ainda candidato, Jânio telegrafou, certa vez, aos acadêmicos goianos
felicitando-os por haverem escolhido Fidel Castro para o seu paraninfo
(Diário da Borborema, 1961, p. 1).
Havia colegas que eram de, que seguiam a orientação do Partido Comunista,
e inclusive pessoas brilhantes, eu não vou citar nomes porque essa coisa de
ser ou não ser comunista é de cada um né? Porque o Partido Comunista tinha
uma cédula que havia pessoas que se filiavam ao partido; então esses eram
realmente militante comunista ou pessoas que se tinham ideias marxistas nas
suas formações; porque eu era nacionalista ferrenho, defendia aos interesses
nacionais acima de tudo, mas nunca fui marxista, nem comunista, nem filiado
ao Partido Comunista; porque eu sou evangélico de raiz (...) mas eu defendia
e continuo defendendo os interesses do Brasil, acima de tudo; e durante os
debates eu militava ao lado dos comunistas, porque eles pensavam do ponto
de vista da defesa, da economia nacional do mesmo modo como eu pensava
(SYLVESTRE, depoimento: [nov. 2013]).
Referencias e Fontes
Abstract: This paper explores the various influences of the National Security
Doctrine had promoted on the routine of the Brazilian society, during the military
dictatorship, analyzing and dialoguing with the discussions proposed by some historians
and their historiographical productions on the subject. We also analyze the various
methodological uses of Oral History and its importance as a documentary source. As
455
Graduanda Pibic/CNPq do curso de História da Universidade Federal de Pernambuco.
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oral source for this article, we have used an interview with Marcelo Santa Cruz, having
due regard that the memory does not bring a claim of the event itself, but creates an
individual meaning to the experience of the interviewed. Another important point of this
article aims to analyze the process against the “desmemoria” through the various
institutions organized by the families of the military regime antagonists who remain
missing until today and the Truth Commissions throughout Brazil, seeking the right to
know what really had happened to their loved ones that were lost during the Brazilian
dictatorship. Throughout this article the term “desmemoria” is used not like oblivion,
but as a nescience of the facts that when scattered on the history disclosed, become
forgotten, relegated to the margins of the so called "Official Story".
Palavras chave: História Oral, memória, Doutrina de Segurança Nacional, justiça.
Doutrina de Segurança Nacional: um breve histórico
Como um dos fatores de uma extensa rede que os militares promoviam – antes
mesmo do golpe civil militar de 1964 - no Brasil, a implantação da Doutrina de
Segurança Nacional, a DSN, foi organizada pela Escola Superior de Guerra e possuía
como um dos principais aparatos teóricos ideológicos o livro Geopolítica do Brasil de
Golbery do Couto e Silva, publicado em 1967.
A Escola Superior de Guerra, para promover a DSN, contava com a assistência
dos franceses e norte americanos, tendo por meta treinar os oficiais de alta patente - e
poucos civis escolhidos para cargos de confiança - para assumirem os altos cargos de
governo, com o intuito de exercer funções de chefia e planejamento da segurança
nacional.
Para Borges(2012), as Forças Armadas ao seguirem fielmente a Doutrina de
Segurança Nacional:
456
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os Governos Militares. In FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da Ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
457
IDEM, pág. 27
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458
IDEM, pág. 29
459
Entrevista oral ministrada pelas graduandas do curso de História da UFPE Camila Melo e Giweida
Oliveira. A entrevista, áudio e transcrição, se encontra no Laboratório de História Oral e Imagem, o
LAHOI, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco.
460
BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei n. 477, de 26 de fevereiro de 1969.
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0477.htm >. Acessado
em 17 de agosto de 2013.
461
Entrevista oral ministrada pelas graduandas do curso de História da UFPE Camila Melo e Giweida
Oliveira. A entrevista, áudio e transcrição, se encontra no Laboratório de História Oral e Imagem, o
LAHOI, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco.
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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IDEM.
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sexo as orações, passando pela própria moda, que, durante pelo menos uma estação de
68, foi ‘militar’.”463 Porém, é uma afirmação cristalizada, incutindo uma visão
romanceada da sociedade como um todo. Parte da sociedade estava engajada na luta
contra o sistema implantado, porém, outra parcela da sociedade não se interessava na
retirada dos militares do poder. Percebemos isso no trecho da entrevista em que Marcelo
narra que ele e seu irmão, Fernando, foram investigados porque a família de suas
namoradas, que eram irmãs, havia se queixado de possuir genros que iam de encontro
aos ideais militares, implantando ideologia socialista no pensamento das meninas.
Em relação à segurança interna, na interpretação da Escola Superior de Guerra, a
sua divisão denotava-se basicamente em dois pilares: a defesa interna e a defesa pública.
Dentro do conceito da defesa interna, encontra-se a luta contra as subversões – na
interpretação dos militares - latentes na sociedade. Tais lutas encontram afirmação
quando se defrontam com a esquerda armada: alguns dissidentes do Partido Comunista
Brasileiro, que não aceitavam como único meio a luta ideológica, acreditando que a
sociedade deveria ser reformulada a partir do uso da força. Em relação a memória das
lutas armadas, a historiadora Rollemberg(2012):
463
VENTURA, Zuenir. 1968: Ao no que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1988. Pág. 81
464
ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas Revolucionárias e luta armada. In FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da Ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.pág. 45
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465
IDEM, pág. 48.
466
Movimento Revolucionário 8 de outubro, ficando assim conhecido pós o sequestro do embaixador dos
Estados Unidos Charles Burke Elbrick. Tal episódio é narrado no livro O que é isso, companheiro?, de
Fernando Gabeira.
467
ALN é a sigla de Ação Libertadora Nacional, que atuava fortemente entre os anos de 1968 e 1973.
468
Disponível em < http://www.marxists.org/portugues/marighella/1969/manual/cap02.htm >. Acessado
em 6 de agosto de 2013.
469
CHAGAS, Fábio André G. das. As Teses de “Jamil” e a luta armada dos anos 1960-70 no Brasil.
Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Volume 1 - Número 2 - Dezembro de 2009.
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Porém, percebemos que nem sempre Cuba aceitava esse intercâmbio, como foi no
caso do entrevistado Marcelo Santa Cruz, o qual afirmou que, enquanto encontrava-se
na Europa, tentou migrar para Cuba, para aprender e trabalhar em prol da Revolução,
todavia, os cubanos negaram o seu visto, afirmando que o consulado havia dito que:
:
“(...)não há interesse que você vá para Cuba porque seu curso é Direito, há
interesse seu de você continuar o curso, o que é que você vai fazer com o
Direito Capitalista em um país que tem o Direito Socialista, totalmente
diferente, o que você vai aprender lá de Direito Socialista se um dia você
quiser voltar para o Brasil não vai ter nenhuma utilidade, se você fizesse
engenharia agronomia, medicina, etc. tinha interesse de ir para lá, eu
aconselharia. Mas Direito vocês estão com a perspectiva de voltar um dia
para o Brasil.”
470
CHAGAS, Fábio André G. das. As Teses de “Jamil” e a luta armada dos anos 1960-70 no Brasil.
Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Volume 1 - Número 2 - Dezembro de 2009.
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471
Recordamos da Escola dos Annales, a qual reforçava o ideal de que a História só poderia ser
averiguada através da verificação dos documentos ditos oficiais. Ver BURKE, Peter. A Escola dos
Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1997.
472
BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória.
Porto Alegre: Medianiz, 2012.
473
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007
474
BRASIL, República Federativa do. Lei de Anistia n° 6.683 de 28 de agosto de 1979. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm >. Acessado em 10 de agosto de 2013.
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475
COMPARATO, Fábio K. O que fizeste de teu irmão? In: Teles, Janaína (org.) Mortos e desaparecidos
políticos: reparação ou impunidade? 2ª. ed., São Paulo, Humanitas/FFLCH-USP, 2001.
476
TELES, Janaína de Almeida. Os testemunhos e as lutas dos familiares de mortos e desaparecidos
políticos no Brasil. III Seminário Internacional Politicas de La Memória. Recordando a Walter
Benjamim. Justicia, Historia e La Verdad: Escrituras de La Memoria. Buenos Aires, 2010.
477
ASSIS, Chico de[ET AL.] Onde está meu filho?Recife: CEPE, 2011.
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478
Idem, págs 20 e 21.
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479
Texto preparado para a comunicação apresentada no debate: Direito, Censura e Imprensa após a
vigência da Constituição Federal de 1988, evento promovido pelo Curso de Direito do Centro
Universitário Nove de Julho -UNINOVE, que ocorreu no anfiteatro Unidade Vila Maria, em 7 de
fevereiro de 2006.
Disponível em <
http://diversitas.fflch.usp.br/files/a%20abertura%20dos%20arquivos%20da%20ditadura.pdf >. Acessado
em 11 de agosto de 2013.
480
Criada pela lei n° 12.528, de 18 de novembro de 2011.
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm >.
Acessado em 14 de agosto de 2013.
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481
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5584.htm >.
Acessado em 11 de agosto de 2013.
482
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm >.
Acessado em 11 de agosto de 2013.
483
KEHL, Maria Rita, O ressentimento. Casa do Psicólogo, São Paulo, 2005
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Bibliografia
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BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os Governos Militares. In
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historiografia. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
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MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória: A cultura Popular
Revisitada. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2010
MULLER, Angélica. “A história como arma”: a memória histórica como objeto da
resistência estudantil contra a ditadura no final dos anos 1970. Anais do XXVI
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VI Cultura e Memória
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Este texto é fruto das pesquisas até então realizadas para o projeto PIBIC intitulado “As vozes dos
trabalhadores rurais nos processos: uma análise das relações sociais e de cotidiano dos trabalhadores da
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Introdução
Zona da Mata de Pernambuco a partir das Juntas de Conciliação e Julgamento do TRT 6ª Região. (Goiana
- 1976-1980)” orientado pela professora doutora Regina Beatriz Guimarães Neto, e financiado pela CNPq
desde agosto de 2013.
485
Não entendemos que a abolição mudou imediatamente as estruturas sociais arraigadas desde o século
XVI. Como coloca Emília Viotti da Costa (1966, p. 467 apud FERRARI, NASCIMENTO, MARTINS
FILHO, 1998, p. 35), “a abolição representou uma etapa apenas na liquidação da estrutura colonial”. Ou
seja, apesar de igualar legalmente negros e brancos apenas na letra da lei, a abolição foi sim uma etapa
importante na desconstrução da sociedade colonial e na construção de uma sociedade onde todos os seres
humanos tenham direitos iguais.
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Como explica Manuel Correa de Andrade, a mesorregião da Zona da Mata pernambucana, território
em Pernambuco onde a cana-de-açúcar é cultivada, é uma faixa estreita de terra paralela ao litoral,
compreendida entre o rebordo oriental do Maciço da Borborema e o mar. ANDRADE, Manuel Correa de.
Espaço e tempo na agroindústria canavieira de Pernambuco. Estudos Avançados, v. 15, nº 43, set/dez
2001. p. 268.
490
Dados obtidos a partir da linha do tempo do site do Projeto TRT 6 Memória e História. Disponível em:
<http://www.trt6.jus.br/memoriaehistoria/index.php?option=com_content&view=article&id=35&Itemid=
49>. Acesso em 19 de jan. 2014.
491
Esta pesquisa também prevê o levantamento e entrecruzamento entre as fontes processuais e os
principais jornais de Pernambuco, Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco; além do levantamento
de prontuários de Goiana que se encontram no arquivo DOPs, todos arquivados no Arquivo Público
Estadual Jordão Emereciano (APEJE).
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Neste sentido, Sidney Chalhoub em seu livro “Trabalho, lar e botequim” (2001)
nos ajuda a pensar que os processos judiciais dão aos historiadores a possibilidade de
investigar a trajetória do trabalhador, mesmo daqueles que não deixaram um registro
direto.
Tendo em mente que nesses documentos nós trabalharemos não com a fala livre
do trabalhador, mas sim com uma fala intermediada, direcionada, em um contexto
específico, procuraremos percorrer, através dos arquivos, os vestígios dos trabalhadores
rurais. Entendemos, a partir de Chalhoub, que, através dos processos, é possível
“desvendar significado e penetrar nas lutas e contradições sociais que se expressam”
(CHALHOUB, 2001, p. 41), nos propomos a tentar perceber como se produzem certas
situações do cotidiano social do trabalhador da Zona da Mata Norte.
Historiadores como Carlo Guinzburg, Natalie Zemon Davis, Sidney Chalhoub e,
mais próximo, Christine Dabat, Maria do Socorro Abreu e Lima e Antônio Torres
Montenegro, utilizaram processos jurídicos como fontes em suas pesquisas para
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Para este artigo, exporemos as análises feitas a partir de três processos do ano de
1976 que catalogamos492. A escolha desses processos se deu pelo fato de que eles nos
revelam, a partir de pequenos vestígios, alguns aspectos da vida do trabalhador rural,
com destaque à questão da moradia e às condições de trabalho nas fazendas e usinas da
Zona da Mata pernambucana.
O primeiro processo, de número 67/76, traz a petição de José Trajano Ferreira –
trabalhador rural, casado, analfabeto – contra uma das usinas mais reclamadas de
Goiana: a Companhia Açucareira de Goiana. As discussões trazidas pelas atas de
instrução do processo podem ajudar a acharmos indícios sobre aspectos do cotidiano
dos trabalhadores rurais dessa região, suas relações, e estratégias de organização da
vida.
José Trajano – que residia em um dos engenhos da Companhia, o Goiana
Grande – trabalhava para na empresa desde outubro 1964. Foi demitido em novembro
1975 pelo administrador Manuel Augusto por motivo considerado por ele injusto, e por
isso procurou a Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana no dia 26 de janeiro de
1976, juntamente com o advogado Alcides Rodrigues de Sena.
492
O recorte temporal contemplado por esta pesquisa (1976-1980) nos coloca em contato com processos
trabalhistas ainda não catalogados pelo Projeto Memória e História. Ou seja, os processos não se
encontram catalogados, encaixotados ou mesmo organizados por ordem cronológica, o que requer do
pesquisador um esforço de organização antes da análise do documento em si. Para este artigo escolhemos
um grupo de 81 processos de todo ano de 1976.
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493
Na primeira audiência a Companhia Açucareira de Goiana alega estar quite com o trabalhador. Para
provar as arguições das partes, é marcada nova audiência para que as provas e testemunhas sejam
recolhidas.
494
Depoimento de José Trajano Ferreira. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Goiana-PE. Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo: 0067/76. p. 10.
495
Depoimento de Manoel Cândido da Silva, testemunha do trabalhador reclamante, José Trajano
Ferreira. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana-PE. Arquivo Memória e
História TRT/UFPE. Processo: 0067/76. p. 17.
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496
Fala da juíza Maria Helena Guedes Soares Pinho, em pronunciamento da sua decisão. Processo
Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana-PE. Arquivo Memória e História
TRT/UFPE. Processo: 0067/76. p. 26. Segundo a CLT, era considerado trabalhador estável aquele que
trabalhava há dez anos ou mais na mesma empresa. A juíza, considerando o contrato de José Trajano a
partir de 1964, mesmo antes do trabalhador ser “fichado”, o considerou trabalhador estável da Companhia
Açucareira de Goiana.
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Antônio Sena, reclama da empresa indenização, aviso prévio, prejulgado número 20,
férias e 13º salário.
Entretanto, antes de se realizar a audiência onde a Usina apresentaria sua
arguição, foi concretizada a conciliação entre as partes, e a empresa pagou seis mil
cruzeiros a Antônio Marinho da Silva, um valor relativamente alto se comparado à
média de valores pagos em conciliações nesse período (que geralmente ficavam em
torno de quinhentos a dois mil cruzeiros497).
O litígio impetrado por Antônio Marinho joga luz sobre alguns aspectos da vida
do trabalhador rural da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Podemos pensar, em
primeiro lugar, na condição de moradia dos trabalhadores rurais: uma vez moradores
das fazendas das usinas, os trabalhadores ficavam (ainda mais) suscetíveis aos
autoritarismos dos patrões. No caso de Antônio, sua casa desapareceria e não sendo
conveniente o outro lugar de moradia oferecido, se dependesse da Usina Central, o
trabalhador ficaria sem casa.
Mas Antônio Marinho não simplesmente se conformou com postura
intransigente da Usina. Vemos um trabalhador que amparado pela legislação articula e
fomenta sua própria mudança, traçando estratégias para a conquista de uma vitória
contra o setor patronal.
O terceiro processo que destacamos em nossas análises aqui é o de número 823
de 1976. O documento traz a petição de Manoel Domingos de Carvalho, trabalhador
rural e analfabeto que, assim como José Trajano, nosso primeiro personagem,
trabalhava na Companhia Açucareira de Goiana. No dia 15 de dezembro de 1976,
Manoel procura a JCJ de Goiana juntamente com o advogado Josué Antônio Fonseca de
Sena.
Na petição inicial, o trabalhador alega que começou a trabalhar na Companhia
em abril de 1969, prestando serviços através de empreiteiros, mas que nunca recebeu
férias, 13º salário, repouso semanal, e que a empresa se recusa a assinar a CTPS. O
trabalhador requer então, o pagamento de férias em dobro e simples, 13º salário,
repouso semanal remunerado, bem como a anotação na Carteira Trabalhista, além de
juros e correção monetária, resultando um valor total de 4 mil cruzeiros.
No dia 13 de janeiro de 1977, porém, quando foi instalada a 1ª audiência, o
trabalhador, em sua arguição, além de reiterar as acusações iniciais, faz um relato que
497
Estamos levando em conta o recorte de 81 processos, do ano de 1976, analisados para este artigo.
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não estava posto na petição: Manoel alega que fazia 6 meses que estava afastado do
trabalho por motivo de doença, pois nos últimos anos ele não estava bem de saúde.
Antes, Manoel tinha ficado 9 meses afastado, também por motivo de doença, e depois,
em junho de 1976, havia ficado mais dois meses fora, porque, segundo ele, não tinha
condições de voltar ao trabalho por acreditar que estava "doente do juízo". Nesta
audiência, a Companhia Açucareira de Goiana se defende alegando que Manoel nunca
havia trabalhado em nenhuma fazenda da Companhia, e que nenhum dos empreiteiros
citados por Manoel trabalhavam para a empresa.
Na segunda audiência, no dia 17 de janeiro de 1977, as testemunhas arroladas
por Manoel Domingos – Reginaldo Gonçalves da Silva, servente, 27 anos, analfabeto; e
Manoel Adelino Luiz, trabalhador rural, 51 anos, analfabeto, mas que "sabia ler datas",
ambos já haviam trabalhado com Manoel Domingos –, reiteram o discurso do
trabalhador reclamante, confirmando datas e nomes dos empreiteiros, e revelam ainda
mais sobre a situação de Manoel Domingos diante da empresa: as testemunhas não só
confirmam que o afastamento do trabalhador fora por motivos de doença, como
afirmam que Manoel Domingos perdeu a visão de um olho por causa de um acidente de
trabalho. O segundo afastamento, de dois meses, também foi por motivo de doença,
mas, segundo as testemunhas, o próprio Manoel alegava que não tinha a ver com o
acidente.
Nenhuma dessas informações foram dadas por Manoel Domingos, mas sim por
suas testemunhas. E em nenhum momento o trabalhador reivindica indenização pelo
acidente.
Depois de ouvidas as testemunhas, a juíza da Junta, Maria Helena Guedes
Soares de Pinho, marca a próxima audiência para o dia seguinte, 18 de janeiro. O que
encontramos no processo, porém, é um termo de conciliação: Manoel Domingos de
Carvalho ao aceitar 900 cruzeiros da Companhia Açucareira de Goiana, "desiste da
reclamação e dá plena, geral e irrevogável quitação de todos os títulos pleiteados na
[petição] inicial"498 (ou seja, os 4 mil cruzeiros pleiteados inicialmente).
Não há como sabermos os motivos pelos quais Manoel Domingos não ter citado,
em nenhum momento, o acidente de trabalho, nem tampouco porque, depois de arrolar
498
Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana-PE. Arquivo Memória e
História TRT/UFPE. Processo: 0823/76. p. 13.
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As conciliações
499
Em 1957, João Goulart, em um discurso sobre as reformas trabalhistas implementadas pelo então
presidente Getúlio Vargas, afirmou de Vargas “situou o trabalhismo brasileiro não no terreno da luta
frontal, mas no da conciliação de classes” (Jornal do Commércio, 05 mai. 1957 apud DABAT, 2007, p.
92), o que nos ajuda a esclarecer a postura das Juntas de prezarem pela conciliação.
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também poderia ser boa para o patrão, que não precisaria arcar com os custos de uma
ação judicial longa.
A autora diz “[...] Nesta visão, a conciliação seria um caminho para a harmonia
entre os interesses díspares de trabalhador e de patrão e não implicaria derrota ou
vitória, mas consenso” (SPERANZA, 2013, p. 52), o que mostra, então, que estava se
cumprindo a função para que as Juntas de Conciliação e Julgamento foram criadas. E
continua “[...] Seu uso sistemático através do tempo moldou as relações entre operários
e patrões, ajudando na formação do trabalhador brasileiro, na sua percepção de vida e na
sua capacidade de luta contra seu antagonista, o capitalista” (SPERANZA, 2013, p. 57).
Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
DAVIS, Natalie Z. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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SIGAUD, Lygia. Greve nos engenhos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
SILVA, Fernando Teixeira da. Nem Crematório de Fontes nem Museu de Curiosidades:
Porque Preservar os Documentos da Justiça do Trabalho. In: Magda Barros Biavaschi;
Anita Lübbe; Maria Guilhermina Miranda. (Orgs.). Memória e Preservação de
Documentos: Direitos do Cidadão. 1ed.São Paulo: Ltr, 2007, v. 1, p. 31-51.
SPERANZA, Clarice. Nos termos das conciliações: os acordos entre mineiros de carvão
do Rio Grande do Sul e seus patrões na Justiça do Trabalho entre 1946 e 1954. In:
GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (orgs). A Justiça do
Trabalho e sua história. São Paulo: Editora da Unicamp, 2013, p. 51-81.
práticas autoritárias desenvolvidas pelo regime. Dito de outra forma, o regime militar
durou vinte e um anos porque houve apoio da sociedade civil a algumas dessas práticas.
Passados cinquenta anos do Golpe muito se tem discutido e pesquisado sobre a
memória política de atores sociais que militaram contra a Ditadura. No entanto é
importante para elucidar melhor esse período, conhecermos a memória religiosa.
Para o presente trabalho pensamos em apreender a memória protestante num
contexto Pré-Golpe. A realização Conferência do Nordeste, em 1962, na cidade de
Recife, a “Moscouzinha brasileira”, oferece justamente uma chave para a reconstrução
desse contexto, nos anos de 1960. Nosso trabalho se pautará com base na discussão
bibliográfica e da produção acadêmica acerca da Conferência, ou seja, um apontamento
de como pesquisas recentes tem abordado o evento.
Contexto sócio-político
Os anos de 1960 são de grande agitação no Brasil. Para entender esses agitados
anos é importante voltarmos aos acontecimentos anteriores ao Golpe Militar de 1964,
especificamente ao governo de João Goulart o qual foi marcado por mudanças.
O referido presidente propôs Reformas de Base como a bancária, a fiscal, a
administrativa, a urbana e a universitária, além de conceder direito de voto aos
analfabetos e a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), assim como o
controle do capital estrangeiro, do monopólio estatal e de setores estratégicos da
economia (MARTINHO, 2006, p 97)
Eram medidas que demonstravam tanto para os grupos nacionalistas quanto para os
de esquerda, a intenção de mudar a estrutura econômica e política do país. A reforma
agrária foi a mais difícil de solucionar, pois as esquerdas reunidas na Frente de Mobilização
Popular (FMP)500 (Idem) liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,
queriam que o Congresso Nacional aprovasse a reforma sem indenizar os proprietários
rurais, o que contrariava o artigo 141 da Constituição de 1946501.
Para os camponeses a reforma agrária estava na pauta das discussões que eram
verbalizadas pelas Ligas Camponesas502 lideradas por Francisco Julião. No Recife, a
“capital comunista do Brasil”
Igrejas do seguimento Protestante como metodistas luteranos e presbiterianos, se
manifestaram ante a conjuntura sócio-política. O fizeram através da Confederação
Evangélica do Brasil (CEB) uma fusão de três órgãos de serviço: Conselho de Educação
Religiosa, a Comissão Brasileira de Cooperação e a Federação Evangélica do Brasil. A
500
Reunia as principais organizações de esquerda que lutavam pela reforma agrária.
501
O Artigo 141 previa a indenização aos fazendeiros em caso de desapropriação.
502
Surgidas em 1955, com o objetivo de organizar o campesinato propunham defender os camponeses
contra a expulsão de suas terras, o aumento do preço do arrendamento e a prática do “cabão” na qual o
trabalhador rural deveria trabalhar de graça uma vez por semana para o dono da terra. Cf. BORIS,
Fausto. História concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2009.
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503
Essa afirmativa refere-se à Recife por ter uma esquerda forte e atuante na política do Estado.
Disponível in: <
http://www.alagoas24horas.com.br/conteudo/?vEditoria=Reportagens+Especiais&vCod=2217 > Acesso
em 07 de junho de 2010.
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internacional que apoiou os generais no poder, pois havia um medo por parte dos Estados
Unidos, do Brasil se tornar comunista, a começar pelo Nordeste. (Idem)
Contexto teológico
504
O livro resulta de um Congresso realizado em Viória/ES em comemoração aos 50 anos da Conferência
do Nordeste. Nesse encontro, palestrantes que estiveram em Recife, trouxeram as suas memórias:
Joaquim Beato, João Dias Araújo. Prestigiando o evento capixaba deixaram sua contribuição Anivaldo
Padilha e Zwuinglio Mota Dias.
505
As referências completas sobre as obras se encontram no corpo bibliográfico.
506
O livro de GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda Brasileira: Das ilusões Perdidas à Luta
Armada. São Paulo: Editora Ática. 1987, aponta algumas reflexões sobre a aproximação de setores da
Igreja Católica com a esquerda marxista.
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507
Membro da Igreja Metodista de São Paulo, na época era diretor do Departamento de
Juventude Metodista do Brasil. Foi preso em 1970 pelo DOI/CODI. Cf Green
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Considerações Finais
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É importante para a História visitar essa parte sobre o papel das Igrejas o Golpe
Militar e o Pré-Golpe. Além disso, pensar a perspectiva protestante frente ao período de
cerceamento que tornou o Brasil nebuloso.
Sobre a Conferência de 1962 é interessante refletir sobre quem era o público que
assistia às palestras. Quem eram os jovens e qual a idade mais ou menos? Eram
universitários? Classe média? E a imprensa como noticiou o encontro? Em suma, como
era o público para quem os palestrantes proferiram os seus discursos? Essas perguntas
não podemos responder, mas são apenas possibilidades a serem pensados sobre o evento
que marcou o universo protestante de uma época e que hoje com os 50 anos de Golpe
Militar cabem reflexões sobre o referido campo religioso que muito se tem discutido em
um grupo circunscrito de teólogos o que não é nenhum demérito. No entanto, cabe dizer
e deixar claro é que a Historiografia precisa visitar essa parte da História recente de
nosso país.
Bibliografia
ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Edições Loyola/Editora
Teológica, 2005.
RAMALHO, José Ricardo. Uma presença no tempo: A vida de Jether Ramalho. São
Leopoldo. Oikos Editora, 2010.
REMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2003.
acontecimentos. Por um longo tempo esses documentos serviam como provas absolutas.
Com a Nova História, a forma de usar o documento foi transformada, pois deixou de ser
o único instrumento de pesquisa, surgiram novas formas de se observar os fatos e a
história passa a ser investigada, interpretada e não apenas registrada. Na visão de
Adilson Filho;
Os Annales508 ampliaram o conceito de fontes, temas e sujeitos; seu
olhar descortinou zonas escuras, silêncios e áreas antes proibidas. Sua
sensibilidade e acuidade históricas ensinaram a ver além da superfície
factual, mostrando a profundidade de forças tectônicas que operam no
interior, que se movem de dentro para fora, cristalizando e, ao mesmo
instante, fragmentando a historicidade dos diversos atores sociais.
(ADILSON, 2001, p. 103.)
508
Revista fundada por Lucien Febvre e March Bloch, chamada de Revolução Francesa da Historiografia,
por promover uma nova historia, ampliando assim o campo da pesquisa antes voltada apenas para os
grandes acontecimentos.
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roupas novas. Segundo a senhora Maria José dos Santos, uma das primeiras televisões
que chegou à cidade ficava no coreto e os moradores assistiam aos programas e as
novelas que na época, era uma das únicas opções para os telespectadores. Diante disso,
podemos observar o quanto a população fazia de coisas consideradas hoje, simples
grandes momentos de lazer e se divertia.
O Cine Marechal Castelo Branco509, construído na década de 60 com capacidade
para 250 lugares, trouxera um ar de modernidade, proporcionando cultura e lazer para
os panelenses. Esse acontecimento alterou a rotina da sociedade. Tal mudança provocou
nas novas formas de lazer, utilidades paradoxas como ambientes de exclusão e inclusão,
provocando tanto a aproximação entre determinados grupos sociais como as classes
mais abastadas quanto o distanciamento dos cidadãos que não possuíam poder
aquisitivo para frequentar tais lugares regularmente. Por ser um signo de modernidade,
trazia consigo um ar próspero no comportamento da elite social da época. A princípio, o
cinema funcionava no mercado municipal, sem nenhuma estrutura física, funcionava de
forma improvisada, depois a prefeitura construiu um cinema onde hoje é o prédio da
câmara de vereadores de Panelas.
O cinema era frequentado pelos moradores que assistiam aos filmes e logo
transformaram o espaço em local de lazer. Mas, com o passar do tempo, o cinema não
resistiu às televisões, que o substituíram. Segundo Maria José, “colocaram no coreto,
no centro da praça, uma televisão e todo mundo ia pra lá assistir, quase não dava pra vê
imagem, mas, era de graça. O cinema era pago e não tinha muitas opções de filme”511.
509
Ver monografia do IBGE 1970
510
Entrevista realizada no dia 10/07/2010, com o Sr. Humberto Cordeiro de Souza, professor desde
1977.
511
Entrevista realizada no dia Maria José dos Santos realizada no dia 08/08/2010;
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O Aselpa Show foi apresentado por muitos anos pelo seu idealizador, o professor,
escritor e historiador Luis Manoel, que tinha uma ligação muito forte com a cultura
local. Era uma espécie de show de talentos, onde a população participava disputando as
melhores colocações, mostrando seus dons artísticos. Homens, mulheres e crianças, se
apresentavam e eram avaliados pela mesa de jurados. Inspirado no Programa do
Chacrinha, levava alegria e entretenimento a população que se reuniam no espaço do
Teatro paroquial Dom Adelino para assistir ao show dos conterrâneos.
Todas as categorias de artistas se apresentavam principalmente cantores, atores
que participavam do show em público. A festa era realizada todos os anos e mobilizava
toda a população, que marcava presença assídua em todos os eventos. A cada ano era
feita uma homenagem a uma mãe ilustre da cidade, já que o Aselpa show era realizado
no mês de maio no dia das mães. A mesa de jurados tinha como convidados pessoas
“ilustres e importantes da cidade” como o prefeito, o padre, o juiz, comerciantes locais,
entre outros.
A população se divertia dentro de suas limitações, já que todas as iniciativas
partiam na maioria das vezes dos próprios moradores, em realizava e produzia
momentos de lazer e diversão no município que não podia oferecer recursos para
patrocinar tais eventos que transformavam a rotina da cidade, principalmente quando
chegava a época das festas religiosas, como a festa do Padroeiro, Bom Jesus dos
Remédios, e a de São Sebastião.
A cidade era enfeitada e a iluminação reforçada, principalmente ma parte
frontal da igreja, onde tradicionalmente eram colocadas centenas de lâmpadas coloridas,
pelo saudoso Miro, transformando-a em cartão-postal, até hoje mais importante signo
religioso da cidade. As festas eram pontos de encontro, mas também de reencontro, as
pessoas retornavam à cidade para matar a saudade e reencontrar os parentes e amigos de
que haviam se distanciado na maioria das vezes para buscar melhores condições de vida
nos grandes centros urbanos, como, por exemplo, São Paulo ou Rio de Janeiro. Essas
mudanças eram facilmente percebidas no visual da cidade, semanas antes dos festejos,
os moradores se dedicavam cuidadosamente á ornamentação de suas casas, enfeitando
as fachadas com adereços natalinos.
Resgatar a história de um lugar é mais que organizar os fatos históricos, é
redescobrir um mundo de significados, de imagens, valores e lembranças, uma ligação
saudosa, que podemos dizer ser motivo de orgulho por pertencer aquele lugar. Além
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São personagens de uma trama na qual cada capítulo tem suas vidas
transformadas de acordo com o desenrolar da história. Vivemos em uma sociedade onde
estamos sempre em busca de referências e em busca de nossa identidade e ao mesmo
tempo espelhamo-nos em outros para tais conquistas, mas, é preciso lembrar que a
história é subjetiva, pois cabe ao historiador definir as fontes e a metodologia a seguir
para que possa juntar as peças para montar o quebra cabeça que no final, vai retratar os
fatos e acontecimentos. Isso nos leva a entender que a exploração contínua da
pluralidade das versões históricas nos conduz sempre a novas perguntas que nos levam
á novas respostas. Portanto, cabe ao historiador transmitir os acontecimentos coletados
em seu trabalho e não criar uma nova “verdade” oficial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ADILSON, Filho José. Os Caminhos de Clio. Interfaces de Saberes vol.1 jan/jul. João
Pessoa: ideal 2001;
BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo. Ateliê
editorial, 2003;
ENTREVISTAS:
Creuza Marcolino Cordeiro da Silva professora e uma das atrizes do antigo Teatro Dom
Adelino; entrevista realizada no dia 14/07/2010
Francisco Alves Santana “Chico Candido” 106 anos, morador mais velho da cidade
realizada no dia 06/07/2010;
Josefa Gessina de Santana, esposa do Sr. Francisco Alves Santana “Chico Candido”
realizada no dia 06/07/2010;
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Elisangela Martins
Universidade Federal de Roraima
elisangela.martins@ufrr.br
512
Essa afirmação foi feita pela Rede Globo de Televisão, Jornal de Roraima no dia 04 de agosto de 2008
e também aparece no artigo de CAMPOS (2008).
513
Boletim CIRCOM, recebido por e-mail.
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514
Através de grandes projetos como o Plano de Integração Nacional, PIN, ou o Polamazônia, por
exemplo.
515
O Jornal Boa Vista foi o mais regular e, por vezes o único veículo de informação impressa com
circulação no Território Federal de Roraima na década de 1970. Produzido e publicado pelo governo do
Território entre 1973 e 1979, circulou de forma hegemônica na cidade de Boa Vista e sua periodicidade
variou entre edições semanais e quinzenais. Ainda que estejam se decompondo, devido às más
condições de preservação nos locais em que se encontram, um número significativo de seus exemplares
foi preservado e ainda está disponível para consulta na Casa de Cultura Madre Leotávia e no Palácio da
Cultura, ambos na capital do Estado de Roraima. A partir desse ponto, citarei as reportagens do Jornal
referindo-me ao mesmo como JBV.
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O livro mais popular sobre história de Roraima, em termos locais, não foi
produzido na academia. É de autoria de Aimberê Freitas, roraimense, filho de
agricultores e formado em veterinária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. O
autor afirma que a organização dos indígenas ocorreu sob a influência direta da Igreja
Católica. Segundo ele, “a Igreja permaneceu como observadora desde o século XVIII
(sic) até a década de 70 do século XX em relação à questão indígena de Roraima.”
(2001, p.133). Para Freitas, nas últimas décadas do século XX, a Igreja passara a
desenvolver “um papel conscientizador (sic), despertando nos índios sentimentos de
reconquista dos espaços perdidos”(idem). O autor conclui que “antes da nova orientação
da Igreja”, o que existia no Território era “cumplicidade entre uns e outros” e que seria,
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(1995), o Brasil passou, nos anos de 1980, por uma verdadeira renovação no campo dos
trabalhos históricos e antropológicos que tratavam dos povos nativos, num processo que
teve como resultado o apontamento para o protagonismo indígena. Reconhecer a
importância da articulação da política indígena como ação endógena, equivale à
promoção de empoderamento desses povos, o que estava na pauta dos pesquisadores
que pretenderam ressaltar seu papel de sujeitos históricos. Em Roraima, representando
essa renovada forma de tratar a história dos indígenas e sua organização tradicional,
surgiram os trabalhos produzidos por pesquisadores como Nádia Farage (1991), Paulo
Santilli (1994), Nilson Cortez Crócia de Barros (1995), Jaci Guilherme Vieira (2003) e
Maxim Repetto (2008). Estas pesquisas informam que, embora a história do contato
entre indígenas e fazendeiros sempre tenha sido permeada pela intermediação de
agências religiosas e estatais (Igreja Católica, SPI, FUNAI, entre outros), o surgimento
do Movimento Indígena não foi simples resultado da interferência desses agentes, mas a
culminância de um processo de resistência que se desenvolvia localmente desde o
século XIX e que, sem dispensar parcerias junto a setores da Igreja Católica,
organizações não-governamentais de cunho social e ambientalista e parte da
intelectualidade ligada às Universidades, vem construindo seu modo próprio de atuação
política.
Ao contrário do discurso que por diversas formas nega a existência do conflito,
os trabalhos citados abordam a violência do contato, explicitando as muitas maneiras de
exploração a que os nativos foram submetidos quando, em função da chegada do gado e
do crescimento das fazendas particulares, lhes foi destinado o papel de mão de obra
barata nas fazendas do vale do Rio Branco. Essa interpretação, que a exemplo do que
ocorreu em outros locais do Brasil, pretende dar centralidade à política indígena e
destacar seus processos próprios de organização, demonstra ainda como os nativos de
Roraima teriam chegado ao que, posteriormente, se articulou para a construção de um
“movimento indígena de âmbito nacional”.
O engajamento político dos pesquisadores explica a estreita relação que se
estabeleceu, na primeira década do século XXI, entre essa produção acadêmica e o
próprio movimento indígena e, no caso de Roraima, não é difícil esboçar uma razão
para isso. Nos anos de 1970, diante da investida cada vez mais intensa da colonização,
macuxis, wapichanas, taurepangs, yekuanas e outros, desprezando seu histórico de
disputas, divisões étnicas e diferenças culturais, uniram-se para resistir ao acirramento
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pouco maiores, vestidos com camisa, calça, quepe militar e portando coldres na cintura),
atletas (meninas de porte atlético, com roupas de ginástica, que desfilaram no chão e
sobre carros, provavelmente fazendo piruetas olímpicas) e estudantes fardados
carregando faixas e “pirulitos” saudando Roraima.
De acordo com as reportagens dos desfiles dos dois anos seguintes, as
referências militares e esportivas foram acrescidas de uma referência ao gaúcho, mas
não ocorreu nenhuma citação, nem textual nem visual, aos indígenas. A representação
dos nativos volta com força quando, em 1976 o “desenvolvimento” foi definido como
tema para os desfiles. Segundo foi destacado pelo Jornal, a escola Euclides da Cunha
levou, para o desfile, a temática do “valor do índio no desenvolvimento do Brasil” e os
estudantes teriam desfilado “inúmeras alegorias, lembrando os silvícolas e a mistura das
raças” (JBV 18/09/1976, p.7).
Na imagem que ilustra esse detalhe do desfile, os alunos caracterizados como
indígenas estão descalços, ornados com cocares e saias de palha, portando grandes arcos
e flechas. O que se pode concluir dessa imagem projetada nos desfiles e posteriormente
seu registro nas edições do jornal é que há o reconhecimento da presença do indígena,
entretanto, a imagem que se projeta sobre eles (sempre descalços, seminus, portando
bastões ou armas, em postura de dança ritual ou de caça) é a de simples ascendente do
povo brasileiro, habitante do passado que deveria ser lembrado como se não mais
existisse.
A imagem do indígena como algo pretérito, fadado ao fim pela miscigenação, é,
como afirma Oliveira (1997, p.60-83), fortemente influenciada por uma historiografia
que pensava o indígena apenas como mais um elemento para a formação do povo
brasileiro. Essa concepção encontrou forte eco em alguns dos livros que até hoje
circulam sobre a história de Roraima. Veja-se o caso das já citadas Informações
históricas, de Dorval de Magalhães (1986). Influenciado por autores como Arthur Cezar
Reis e Adolpho Ducke, Dorval legou à posteridade um testemunho que permite
vislumbrar o pensamento da elite roraimense sobre os indígenas nos anos de 1980. O
autor era da opinião de que a “vinda do aborígene à civilização importa, sem dúvida
nenhuma, na miscigenação entre as raças em contato, na formação do extraordinário
povo brasileiro”. Enquanto reconhece que “não há uma única pessoa que fique
impassível ante o problema indígena”, também evidencia a existência de um conflito
entre índios e ruralistas em Roraima, ao desabafar que “vive-se a lamentar [...] cifras de
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escolas nas comunidades “rurais” do Pium, Limão e Lago Grande. Neste mesmo ano,
aparece a notícia de que a “Maloca da Raposa festejou o dia da criança”. Uma nota
anexa destacava o fato de que o tuxaua Abel Viriato Raposo e sua esposa Francisca
Santos Raposo, agradeciam pela festividade organizada em torno de uma “programação
esportiva com corrida de cavalos, futebol entre alunos da primeira à quarta séries, pau
de sebo, pescaria e corrida de saco”. Segundo a reportagem e a nota, as atividades foram
coroadas com “farta distribuição de prêmios”, trazidos pela LBA e a Comissão Central
do Mobral (JBV, 03/11/1973).
Aproximar-se dos nativos com ações assistencialistas foi, como se vê nessas
reportagens, a estratégia governamental para promover a “assimilação” que “sanaria” a
condição transitória do indígena, “integrando-o à sociedade”. O que estava por trás
desse mecanismo era uma claramente uma concepção de indígena como estado
temporário, como estágio de civilização, seja lá o que isso queira dizer. Não se pode
esquecer que tal pensamento, exaustivamente explicitado nos discursos, é bastante
afinado com a legislação da época. Foi sob o governo militar de Geisel que entrou em
vigor o Estatuto do Índio, Lei nº 6001 de 19 de dezembro de 1973. Esta lei, segundo
Albert (1990), tinha como pressupostos a relativa incapacidade do indígena e
considerava o “ser indígena” como uma condição transitória.
A estratégia, entretanto, não se deu sempre da forma como o governo esperava.
Os indígenas perceberam a possibilidade de se beneficiar desse canal de comunicação e
o utilizaram largamente, surpreendendo até mesmo o governador. É o caso, por
exemplo, do destaque que se dá, na reportagem sobre o pedido do tuxaua Albertino,
maiongong da região de Auaris, que aproveitou a visita do governador para solicitar
“sal, ferramentas, chita, calçados e um carrinho de mão de ferro” para sua comunidade.
A ele, o governador teria respondido que “daria carrinhos sim, mas de madeira”
(JBV,17/01/1976).
Alguns indígenas não ficaram em suas comunidades esperando pela visita da
autoridade governamental e há muitos registros de suas idas à capital para solicitar
assistência. Há, com relativa frequência, notícias de líderes que aparecem fazendo
pedidos, por vezes diretamente ao governador. Como Cirino Raposo, da maloca do
Napoleão, que no Palácio do Governo, em Boa Vista, foi recebido em uma “audiência
especial”. Na ocasião solicitou ao governador que sua comunidade recebesse “arame
farpado, ralador para mandioca, um forno e um touro” (JBV, 06/12/1975). Noutro
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momento se encontra a notícia de que o pedido de “pentes finos, agulhas, linhas para
costura, tesouras, ferramentas para cavar o solo, sandálias, sabão e sabonete, além de
medicamentos, sal, colheres e óleo para cabelo”, teria sido feito pela “maloca Serra do
Sol”, por “índios Ingaricó” quando, em 1975, o governador lá esteve (JBV,
25/07/1975).
É relevante reafirmar que nestes casos, ao contrário daquelas notícias em que se
pretende caracterizar o indígena como selvagem estranho e perigoso, o Jornal trata do
contato assistencialista entre governo e indígenas sem citar os últimos de modo
explícito. É mais comum referir-se a eles como moradores de comunidades rurais,
agricultores, líderes comunitários, sem garantir-lhes a especificidade indígena. Não
fosse pelo fato de que as matérias se referem à presença de “tuxauas” e a lugares
tradicionalmente indígenas como Pium, Lago Grande, Milho e Raposa, todas hoje
localizadas no interior de Terras Indígenas, seria praticamente impossível perceber,
nelas, a presença nativa. Sobre Normandia, por exemplo, apesar da ausência de legendas
nas imagens fotográficas, é evidente que são indígenas apertando a mão do governador.
O texto informa que, na localidade, os “1500 moradores falavam português, mas
entendiam perfeitamente o inglês e o macuxi”, retratando-os como simples habitantes da
vila que tinha, em sua periferia, fazendas de criação de gado (JBV, 08/09/1974). Assim,
o comum nestas reportagens é encontrar os nativos de diversas etnias sendo retratados
como moradores de comunidades “rurais”, ansiosos das obras de integração e dos
benefícios trazidos pelo governo territorial. Essa situação demonstra que havia,
subjacente ao discurso, a ideia de que, uma vez aproximado do governo territorial e se
“beneficiando” de suas políticas, o indígena deixaria de ser “indígena” para tornar-se,
nas palavras de Dorval de Magalhães, “um brasileiro comum”.
Importa reafirmar que, com base na frequência destas notícias no Jornal, o
assistencialismo como meio de comunicação e contato entre indígenas e não-indígenas
foi intenso no período. É verdade que, motivando a existência dessas reportagens que
tratam de pedidos que partem das comunidades indígenas, poderia estar uma intenção
deliberada do governo territorial em se apresentar como acessível àquelas populações,
mas, mesmo assim, deve-se levar em conta que as reportagens não eram inventadas.
Ainda que as interpretações sobre estes encontros também possam ser diferentes, dado
que o limite entre pedir e reivindicar se apresenta bem tênue nesses casos, vários
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indígenas estavam lá, solicitando ou exigindo coisas para suas comunidades ao governo
territorial.
É sobre essa tênue linha que se pretende instalar, a meu ver, de um lado a ideia
de o que o movimento organizado de resistência indígena nasceu da separação entre a
Igreja Católica e setores da elite fundiária de Roraima no contexto de centralização do
poder executado pelo Governo Territorial durante o Regime Militar. De outro lado, a
consideração de que o aparecimento de um Movimento Indígena organizado e
articulado nacionalmente era a expressão, em fins da década de 1970, da resistência e
luta empreendida de modo quase monolítico por todos os indígenas de Roraima, tal
como se poderia inferir pelo slogan “até o último índio”, da campanha do Conselho
Indigenista de Roraima, citada no início deste artigo.
Num esforço de enxergar esta história para além das disputas políticas reais, bem
como das contendas pela memória, aqui já expostas, tomo por base a realidade já
conhecida do contexto dos anos de 1970 para os indígenas em Roraima – marcada
inegavelmente pela violência real e discursiva, pelo assistencialismo, por políticas de
expropriação e integração e pela busca de parcerias que propiciassem uma atuação mais
autônoma - e penso nos indivíduos como agentes políticos que atuam no cotidiano,
movendo-se no campo do possível. Dessa forma, é lícito propor que muitos indivíduos
indígenas tenham se visto, em determinados momentos, diante de uma encruzilhada,
uma bifurcação no caminho da definição identitária. Se, como já afirmei anteriormente,
para organizar a resistência, seria necessário assumir uma identidade indígena genérica,
a despeito da identidade étnica mais restrita, para se beneficiar dos investimentos e
ações assistencialistas do governo territorial cobrava-se outro preço, qual seja, negar a
“condição indígena” e assumir a identidade de caboclo ou “procedentes de índios”516
(sic).
É provável que nem todos os que optaram, naquele momento, por aderir à
política assistencialista do governo territorial, também tenham preferido “tornar-se
brasileiros”, em vez de assumir a identidade genérica de indígena, que servia mais ao
confronto. Como este é um processo infindo, dado que as definições identitárias são
sempre dinâmicas e conectadas a diversos fatores internos e externos ao indivíduo, me
516
Em matéria do Jornal Boa Vista de 20 de outubro de 1974, como que em contraposição à imagem da
“Índia centenária”, o jornalista se refere aos estudantes da Missão São José como “procedentes de
índios”. Tal oposição, feita de forma sutil, demonstra como a idéia do índio no passado, apenas como
ascendente da população de Roraima, era forte no discurso do Jornal.
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parece razoável pensar que pode estar exatamente aí o núcleo das divisões políticas que,
em 2008 e até os dias atuais, ainda colocam indígenas dos dois lados da Praça do Centro
Cívico, com posturas opostas no que diz respeito, inclusive, à questões consideradas de
interesse dos indígenas de um modo geral, como a demarcação, homologação e
desintrusão de seus territórios.
Assim, ainda que eu comungue das interpretações acadêmicas aqui expostas e
reafirme a importância de uma produção historiográfica que dê centralidade às ações
indígenas, garantindo o protagonismo destes, não posso me abster de lembrar que, por
maior importância política que possua a proposição de que a década de 1970 foi o
momento em que se começava a articular a resistência indígena mais efetiva contra o
processo de colonização empreendido pelos governos militares, centrar-se apenas na
participação da organização e do enfrentamento político direto, deixando de observar
outras ações indígenas do período, dificulta ainda mais a compreensão do processo
histórico que configura o já bastante complicado quadro político que envolve índios e
não-índios em Roraima.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Nilson Cortez Crócia de. Roraima: Paisagens e Tempo na Amazônia Setentrional.
Recife: Editora Universitária. 1985.;
COSTA E SOUZA, Jorge Manoel. Etnias Indígenas das savanas de Roraima: Processo histórico
de ocupação e manutenção ambiental. In: BARBOSA, Reinaldo Imbrozio. et all. Savanas de
Roraima, Etnoecologia, biodiversidade e potencialidades agrossilvipastoris. Boa Vista,
FEMACT: 2005.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. In CUNHA, Manuela
Carneiro da (org.). História dos Indios do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
FARAGE, Nadia & SANTILLI, Paulo. Estado de Sítio, in: CUNHA, Manuela Carneiro (org).
História dos Índios no Brasil, São Paulo: Cia. Das Letras, 1992.
FARAGE, Nadia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização.
Rio de Janeiro: Paz e terra. ANPOCS, 1991.
MONTEIRO. John Manuel. O desafio da História indígena no Brasil. In: SILVA, Araci Lopes
da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. (org.). A Temática Indígena na Escola: novos subsídios
para professores de 1º e 2º graus. Brasília : MEC/MARI/UNESCO, 1995.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Pardos, mestiços ou caboclos: os índios nos censos nacionais do
Brasil. Horizontes Antropológicos, 06. 1997, pp. 60-83.
SANTILLI, Paulo. Fronteiras da República: história e política entre os Macuxi no vale do rio
Branco. São Paulo: NHII-USP; FAPESP, 1994.
RESUMO
A implantação do regime militar-tecnocrático, após o Golpe de 1º de abril de 1964, foi
amparada em um discurso de inviabilidade da Constituição de 1946 para assegurar a
“ordem interna e o prestígio internacional da Pátria”. Destituído o governo anterior pela
“revolução vitoriosa”, a introdução do arcabouço jurídico adequado à nova ordem
política deu-se com a edição dos documentos jurídico-formais, denominados Atos
Institucionais. O presente trabalho propõe-se a analisar os Atos Institucionais 1, 2 e 4,
característicos do período de convivência da constituição anterior com as modificações
necessárias à institucionalização da nova correlação de forças. Sugere-se que as
contradições do regime e as distensões entre seus grupos podem ser evidenciadas nestes
documentos, que recorrem aos argumentos do constitucionalismo moderno - titularidade
popular e limitação do poder –, ao tempo em que interferem na atividade do Poder
Legislativo, principal instância de representação popular num sistema de separação de
poderes, ao condicionar suas deliberações e retirar prerrogativas de seus membros.
INTRODUÇÃO
se torna acima da lei e, em seu nome e, em seu nome e até mesmo para a
manutenção da lei, a estrutura jurídica é negada, levando as Forças Armadas
a tutelar ordens políticas ou a derrubá-las, com a justificativa de uma
manutenção da ordem, que nada mais é do que um termo retórico que traduz
o confronto entre a ordem jurídico-política da lei e a nova ordem emergente
de novos rearranjos e compromisso entre os grupos hegemônicos em uma
dada sociedade. (AGUIAR, 1986, p. 21)
Somente a edição de normas não seria suficiente, à medida estas teriam, ainda,
que amoldar-se às concepções jurídicas vigentes. Para tal, fim, construções teóricas do
de Direito Constitucional foram usadas nos seus textos legais e nos seus discursos. A
ideia de Poder Constituinte foi destorcida para que se adequasse ao funcionamento do
regime militar. Como afirma o importante constitucionalista Bonavides,
517
Embora sejam postas como uma das principais justificativas para a garantia dos direitos fundamentais, não há
consenso entre os doutrinadores do que vem a ser uma minoria. Luis Prieto Sanchís, em trabalho no qual se ocupa do
tema, define os grupos minoritários a partir de um ponto em comum: a posição de desvantagem jurídica e/ou
institucional, econômica ou social. SANCHÍS, Luis Prieto. Minorías, respeto a la disidencia e igualdad sustancial. Doxa.
n. 15-16, v. I, p. 367-387, 1994. Disponível em
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01361620824573839199024/cuaderno15/volI/doxa15_19.pdf. Acesso em:
25 de março de2014.
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Legislativo, diante do importante papel ocupado pela noção de lei no Estado Liberal
que, ao consistir num produto dos três estamentos sociais, exprimiria a vontade geral do
Estado, sendo destinada a todos os cidadãos (2001, p. 296).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Resumo: Este artigo tem por objetivo pensar as migrações no sentido Nordeste –
Amazônia518 no âmbito das políticas dos governos ditatoriais para esta região,
principalmente os chamados projetos de colonização, agropecuários e mineradores que
tinham por principal objetivo integrar a região amazônica aos grandes mercados
internacionais e preencher espaços, antes considerados “vazios”. Privilegio a área do
Norte e o sul do Pará, espaço amplamente conhecido como palco de intensos conflitos
envolvendo a posse da terra e situações de trabalho análogo a de escravo ou degradante.
O estudo da migração de trabalhadores do Nordeste para a região amazônica perpassa
várias problemáticas; nas páginas seguintes demostro algumas questões fundamentais
encontradas no decorrer da análise das fontes, tais como a interpretação de dados
estatísticos, o manuseio de algumas categorias, tais como migrante, trabalho degradante,
trabalho análogo ao de escravo, entre outros.
518
Segundo a divisão regional do país, a Amazônia Legal compreende a região Norte (os estados de
Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará e Tocantins), o oeste do estado do Maranhão e ainda
parte da região Centro-oeste (o estado de Mato Grosso). A soma das áreas destes estados é de 4,7
milhões de quilômetros quadrados. A referência para o território amazônico, que a define como
Amazônia Legal aparece com a criação do Plano de Valorização da Amazônia de 1953.
519
Para mais informações sobre as migrações para a região amazônica nos ciclos da borracha ver:
GUILLEN, 2006, GONÇALVES, 2012, WEINSTEIN, 1993 entre outros.
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com sua força de trabalho, estes migrantes mudam constantemente de atividade, das
lavouras para a extração do ouro e diamante, ou para as derrubadas de floresta ou ainda
vão pleitear um lote de terra através da força tornando-se posseiros521. O geógrafo
Carlos Walter Porto Gonçalves (2012), em um estudo sobre a Amazônia afirma que, a
chegada desses novos migrantes se, por um lado, atendia a demanda de mão de obra
para a própria construção das estradas e das hidrelétricas, por outro lado, deixava um
rastro de miséria e desemprego quando essas obras terminavam. Como se tratam de
grandes construções, foram erigidos enormes acampamentos para operários, muitos dos
quais deram origem a vilas e cidades.
A expansão populacional pós década de 1960 em direção aos “novos
territórios”, que não as principais cidades do país, configurou um novo mapa do Brasil.
A fronteira para o aporte de investimentos, políticas e população ‘marchou’ em direção
a Amazônia Legal. Estima-se que, apenas nas ultimas décadas do século XX apenas o
estado do Mato Grosso ganhou mais de 100 novos municípios. É importante destacar o
papel da rede urbana na viabilização da mobilidade de população ora como
consequência ora como causa da intensidade e direcionamento dos fluxos migratórios.
Unidade de referencia para o cadastramento censitário, o município pode ser percebido,
através da sede municipal, como o lugar de recebimento da população migrante, seja ela
de origem rural ou de outra procedência urbana. Bertha Becker (1989) numa pesquisa
efetuada em 14 municípios ao longo da Estrada de Ferro Carajás – especializada no
transporte de minérios, liga o Pará ao porto de São Luís, saindo da cidade de Carajás –
constatou que 51,5% da população residente nestes municípios era composta por
migrantes, sendo que 60% havia migrado entre 1970 e 1980. Em uma dessas cidades,
Ananindeua, na Grande Belém, 44% da população era de migrantes que ali vivia a
menos de 2 anos. Segundo Brandford e Glock (1985 p.55), no início da década de 1970,
um estudo sobre a “frente pioneira” calculou que, entre 250 mil e 400 mil peões
trabalhavam na região amazônica nos períodos de seca de seus estados de origem.
521
A categoria posseiro foi apropriada e resignificada pelos trabalhadores rurais, principalmente
migrantes de diversas regiões do Brasil, transformando-se em uma nova categoria. O significado de
posseiro modifica-se com o tempo de acordo com os desdobramentos políticos de cada época. O
significado mais comum desta denominação diz que os posseiros são lavradores (agricultores) que
juntamente com a família ocupam pequenas áreas de terras devolutas ou improdutivas, isto é, terras
que não estão sendo utilizadas e que pertencem ao governo. Trabalhadores rurais que tem a posse, mas
não têm um documento oficial que prove que eles são donos ou proprietários da terra.
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como fácil tarefa, pois tem-se que alinhavar a enorme complexidade da estrutura agrária
brasileira. Tais diferenciações originam um conjunto de arranjos espaciais que denotam
especificidades próprias ao uso e a circulação dos investimentos do camponês, ou grupo
social, e da força de trabalho rural. Esses trabalhadores não podem ser considerados
apenas como sujeitos, sujeitados a ação de outrem, mas, além de sua sobrevivência e de
sua família, esses trabalhadores vão buscar autonomia dos grandes proprietários rurais e
poder de decisão sobre o uso de seu tempo.
Uma característica marcante da vida do trabalhador migrante em terras
amazônicas é a violência, que muitas vezes se traduz, além do assassinato de posseiros,
em situações de trabalho análogo ao de escravo e degradante. Os fazendeiros da região
do Araguaia sempre se valeram de milícias armadas para defender suas propriedades, e
essas milícias vão ser os principais instrumentos de violência contra os trabalhadores, ao
lado da Polícia Militar dos municípios. Vejamos o depoimento do senhor Valdemir, que
fala de uma carvoeira localizada no estado do Pará, gravado para o documentário
“Aprisionado por Promessas”, produzido em 2006 por uma parceria da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) e o Centro pela justiça e o direito internacional (Cejil).
Desde os meus 18 anos de idade eu trabalho aqui no Pará, trabalho em
fazenda, roçando Juquira. Ai eu tava lá perto de um posto quando chegou um
cidadão dizendo para eu trabalhar na fazenda dele. Quando eu cheguei lá, não
era roço, não era plantação de capim, ele me botou para trabalhar numa
carvoeira carregando umas toras de madeira mais ou menos de 50, 60 kilos
para jogar em cima do carro. Coisa absurda. Coisa que é para maquinário e
eles usam o ser humano, coisa que você fica praticamente arrebentado. Ai eu
passei 60 e aprontei 10 gaiolas. Meu dinheiro era R$1.000,00 (mil reais), ai
ele foi e me deu R$100,00 (cem reais). Ai eu falei pra ele: moço isso aqui é
serviço de escravo. Ele falou pra mim e disse: Não, que tu quer dizer com
isso? Tu quer dizer que tu vai dar queixa? Direito de maranhense aqui é um
tiro de espingarda calibre 36 que eu tenho lá no meu barraco. Aqui pode
faltar feijão para o trabalhador, mais o cartucho pra matar um aqui não falta.
É interessante observar o uso que o senhor Valdemir faz da denominação
escravo, isso mostra como os trabalhadores já se apropriaram deste conceito que se
encontra em debate nas esferas historiográficas e antropológicas. A antropóloga Neide
Esterci (1994), analisando os casos de imobilização por dívida e as formas de
dominação no Brasil contemporâneo, afirma que “quando as pessoas utilizam termos
como ‘escravidão’ elas podem não estar diretamente referindo-se a conceitos
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523
Para aprofundar mais o tema da importância do uso dos conceitos para a pesquisa histórica ver:
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006.
524
Em Mato Grosso é bastante conhecida a atuação da Prelazia de São Félix do Araguaia e do bispo Dom
Pedro Casaldáliga, sua defesa pelos direitos dos trabalhadores e denúncias contra o trabalho análogo a
de escravo e outras violências. A análise dos Arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia (que abarcam
o período de 1970 a 2001) serviu como ponto de partida para os trabalhos da pesquisa. As cartas,
jornais, declarações e ofícios que formam este acervo forneceram diversos indícios de como era a vida
dos migrantes oriundos do Nordeste nas frentes de trabalho na Amazônia. A importância da Prelazia
para esses trabalhadores, na falta do aparato governamental para amparar as vítimas das fazendas
infratoras, antes da atuação da CPT e do Ministério do Trabalho e Emprego, foi imensurável, servindo de
porto seguro, encaminhando pessoas a hospitais, e locais seguros quando se tratava de fuga.
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525
Essa nota foi produzida pela Igreja do Xingú e assinada pelo padre Erwin Krautler e enviada ao Bispo
da Prelazia de São Félix Pedro Casaldáliga.
526
Documentos retirados da página B08.1.7 – 1981 a 1983. Páginas: B08.1.7.01 P1.4/ B08.1.7.01 P2.4/
B08.1.7.01 P3.4/ B08.1.7.01 P4.4 e B08.1.8 – 1984 a 1986, páginas: B08.1.8.01 P1.2/ B08.1.8.01 P2.2.
Os documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia se encontram, em sua maioria, digitalizados e
alocados no Laboratório de História Oral e da Imagem (LAHOI), no 11º andar do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
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controlado do que os trabalhadores locais que moram nas cidades. Nas greves o
Movimento Sindical ainda tem dificuldades em conseguir organizar os migrantes para
realizarem a greve. Todavia é preciso ficar atento ao constatar a falta de organização
dos trabalhadores migrantes, pois, como podemos verificar nos documentos acima, estes
indivíduos conseguem driblar as dificuldades agrupando-se nos mais diversos espaços,
como na igreja por exemplo. A presença da igreja e da Prelazia contribui para o
fortalecimento do sentimento de comunidade desses migrantes que se filiam a diversos
grupos e pastorais, como o Clube de Mães e as equipes pastorais que assinam a última
nota, e assim elaboram estratégias de enfrentamento aos grandes proprietários e
empresários, a polícia e governo.
BIBLIOGRAFIA
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S000967252013000100011&script=sci_artt
ext).
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caso foi – Memórias Políticas – 1º e 2º volumes. Editora Guararapes – Recife – 1980; COELHO,
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F. de A. Medo, comunismo e revolução: Pernambuco (1959-1964). Recife. Editora Universitária da
UFPE. 2009; REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In
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Ed. Bauru. EDUSC. 2004;
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ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural – Lutas, Partidos e Projetos.
UFPE, 2005.
529
GALLINDO, José Felipe Rangel. Jeremias, O trotskismo no campo. UFPE. 2013; SÁ, Aybirê Ferreira de.
Memórias de um militante trotskista. Fundarpe. 2007.
530
Todos relatos de pessoas que estiveram presentes no local do assassinato informam que Paulo
Roberto Pinto, foi alvejado de frente e a bala lhe varou, saindo nas costas. A literatura que se baseia no
“mortos pelas costas” tem como referencia uma noticia do Jornal Ultima Hora assim anuncia. Não se
sabe se jornal se referia ao fato do assassinato ter sido uma emboscada armada “pelas costas” dos
camponeses. Algo usado de forma figurada.
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do engenho Oriente. Crime atribuído até agora na historiografia a José Borba e ao seu
filho Pompeu Borba. Os documentos agora conhecidos, especialmente na peça de
531
defesa do réu e em pelo menos quatro depoimentos orais , apontam a existência de
uma arquitetura que coloca Pompeu Veloso Borba, sobrinho de José Borba e
proprietário do engenho Pará, como elemento articulador da ação dos barões da cana.
532
Uma ação que contou com a presença de pelo menos 12 senhores de engenhos ,
conforme depoimento de um morador do engenho Oriente e citações no processo
comandado pelo Promotor Murilo Barbosa.
Em Oriente, os camponeses estavam insatisfeitos pela intransigente e contrária
posição de José Borba, que defendia abertamente que não era justo “pagar 13 a quem só
trabalhou 12 meses”. Mas não era só isso, que transformava Oriente num barril de
pólvora. Depoimento feito por um morador do engenho no processo instaurado a mando
do governo Arraes (1963/1964) para apuração do assassinato do dirigente trotskista, traz
a informação que José Borba havia instituído um desconto de dez por cento nos salários
dos moradores como taxa de habitação. Taxa teria sido instituída como represália a
mobilização e a conquista do salário mínimo e a implantação do Estatuto do
Trabalhador Rural. Por outro lado, José Borba, assim como outros senhores de
engenhos da região, estava inconformado com a ascensão dos camponeses e a conquista
de direitos por estes atores.
Nas pesquisas até agora publicadas não se menciona ou se dá importância a
questão da luta pelo fim do pagamento do aluguel das casas. A luta contra o pagamento
da taxa de habitação é importante porque ela representa o disfarce da luta contra a
expulsão dos moradores dos sítios onde viviam, tentada por José Borba depois da
filiação de muitos de seus moradores as ligas camponesas. A tomada de consciência dos
moradores do Oriente sobre uma eminente perda de suas roças e dos sítios onde viviam,
os impulsiona a engrossar as fileiras do movimento camponês, que se disseminava na
região.
531
Informações levantadas nas entrevistas com Domício Veia, Carlos Gilberto Borba, José de Oliveira e
Luiz Estevão trazem a afirmação do protagonismo que teria tido Pompeu Veloso Borba.
532
Segundo depoimento de João Vieira dos Santos, que consta no corpo do processo instalado por
Pompeu Veloso Borba contra o Promotor Murilo Barbosa na fatídica tarde estariam no Oriente os
seguintes senhores de engenho: José Borba, José Gouveia de Araújo, Pedro Campos, Pompeu Gouveia,
Claudio Borba, Oscar de Melo, Manfredo Veloso Borges, Nilton Corrêa, Romulo Veloso Borba, Joaquim
Campos, Manoel Nunes e José Veloso. Também estava presente o vigia Adelino do Engenho Perori, de
Simplício Tavares de Melo.
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Como resposta a luta e as conquista salariais dos camponeses, José Borba tentou
fazer uma limpeza de área, expulsando do engenho aqueles camponeses que mais
ativamente participaram das lutas de julho e agosto de 1963, no Oriente. Pelo menos
cinco moradores, Zé de Sinhá, Manoel Honório, Pedro Honório, Ambrósio e Sebastião
Miguel, o “Caxito”, que estavam na linha de frente das reivindicações postas, irão sofrer
uma brutal violência física ou psicológica, tendo de deixar às pressas e a noite suas
moradias, sítios e lavouras. Após o golpe de março de 1964, muitos dos camponeses
que estiveram envolvidos de alguma forma nas caminhadas reivindicativas por direitos
e salários vão ser caçados como animais. Volantes, geralmente comandadas por
senhores de engenhos e com guarnição composta de policiais e capangas, varavam os
engenhos e os núcleos urbanos a procura de camponeses. Na maioria das vezes esses
camponeses caçados eram apontados pelos próprios senhores de engenho. Entrou no
imaginário local os “Jeeps verdes” procurando os “comunistas de 64”.
Relatos dessa caçada aos camponeses colocam como comandantes delas os
senhores de engenho da região. Na região de Ferreiros, em dois casos conhecidos, os
próprios trabalhadores que sofreram sequestros e violências reconheceram como
condutores das viaturas Nilton Corrêa de Oliveira e Claudio Borba, respectivamente
genro e filho de José Borba. Pedro Honório, que em alguns depoimentos e relatos é
citado como sendo o líder local das Ligas Camponesas e que esteve à frente dos
embates de julho no Oriente, teve a sua residência invadida à noite, sendo arrancado da
cama, levado por homens armados e espancado.
O caso Oriente ganha dimensão histórica com o assassinato de Paulo Roberto
Pinto, fazendo surgir 50 anos depois, uma narrativa que, talvez involuntariamente,
cultua o herói. Se por um lado esta narrativa traduz uma necessidade de contar e de
levantar a bandeira da atuação trotskista no campo, por outro tende a apagar a luta
disseminada e os outros atores que compunham ou lideravam o movimento camponês
na região entre Itambé e Timbaúba. A construção de um herói, algo encarado como
primordial para as elites orgânicas, acaba exercendo o papel de redutor do
conhecimento histórico, na medida em que produz um manto de esquecimento sobre as
práticas e as outras lutas e personagens do período, na região.
Lutas que podem ser avistadas a partir, por exemplo, das leituras e analises dos
Inquéritos Policiais Militares promovidos pela ditadura civil militar; pelos Processos
Trabalhistas oriundos das Juntas de Conciliação e Julgamento, situadas em Goiana e
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camponesas”. E declara ainda Capitão: “Doutor Jeremias foi expulso do sindicato o qual
passou a atuar juntamente com os agitadores das ligas camponesas”. 533
Capitão segue discorrendo sobre a atuação de “doutor Jeremias”. Coloca-lhe o
rótulo de pombo correio de Joel Câmara e fala sobre o papel de Jeremias na organização
e na estratégia das ações reivindicativas ocorridas nos engenhos Floresta, Camará e
Angicos. Ações pelas quais, Capitão também é detido. Ações das quais diz ter tido
“pouca participação”. Apolônio Coelho, camponês ligado a liga camponesa de Pedra de
fogo também cita a participação do “doutor” Jeremias no suporte e organização dos atos
ocorridos nos engenhos citados. Também é digno de nota o uso do termo “doutor”
acoplado ao nome de Jeremias, indicando uma diferença de tratamento entre o de fora e
os de dentro. A deferência de tratamento é distinção entre os de baixo e os de cima. Não
é um igual, um doutor.
A partir de então pelos meses que se seguem vamos perceber uma separação na
atuação e na área de influencia entre Capitão e Jeremias. Capitão segue uma intensa
agenda de mobilização dos camponeses em engenhos mais próximos ao núcleo urbano
da sede municipal e usina Brasil, provocando greves nos engenhos Bulhões, Cordeiro,
Pau Amarelo, Teixeira, Teixeira Grande, Comissário, Santa Rita, Meirim, São
Sebastião, Monge, Panguá e Panguazinho. Neste ultimo engenho, em setembro de 1963,
um grupo de aproximadamente 150 camponeses por ordem expressa de Capitão tenta
deter e levar para depor no sindicato o feitor do engenho Panguazinho.
Pela intensa atuação que parece ter tido Capitão entre 1962 e 1963, fica difícil
taxá-lo de pelego. Talvez Capitão não tivesse tido zelo com a parte burocrática do
sindicato. Talvez o dinheiro arrecadado pelo sindicato estivesse sendo gasto nas
constantes mobilizações ocorridas sob o seu comando. Pode ser. Dos documentos
analisados e lidos, projeta-se a imagem de um sindicalista intenso, destemido e odiado
pelos senhores de engenho que o conheceram. São esses senhores de engenho que, após
o golpe de 1964, vão testemunhar contra Francisco Bernardo do Nascimento, acusando-
o de “atentar contra a ordem vigente e jogar camponeses contra os proprietários”.
Talvez esta seja uma das poucas oportunidades de Capitão fazer parte da
historiografia. Talvez somente nesta comunicação se fale do Capitão, doutrinado pelos
533
Noticia do Jornal do Comercio, 12.01.1963.
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padres católicos, que antes de fundar o sindicato rural de Itambé participou de pelo
menos duas capacitações e participou também da liga camponesa de Pedras de Fogo.
Perseguido, preso, espancado e frequentemente ameaçado pela policia de Pernambuco e
Paraíba, ele envereda pelo alcoolismo e morre esquecido, anos depois.
Ainda tem mais alguns outros fragmentos da luta camponesa nos engenhos de
Itambé para além do trotskismo. Lutas acontecidas na parte dos engenhos de Itambé,
localizados próximos do município de Timbaúba. Relatos da atuação de outras
lideranças camponesas. De disputas entre ligas e sindicatos e das características dessas
lutas. Nessa parte do território de Itambé, Jeremias e Capitão tinha pouca influencia.
534
Nos engenhos Salgado, Vundinha, Araçá, Pará, Paraíso , Arnau, Bonfim, Bebedouro
e Santa Marta, quem fermentava a mobilização dos camponeses era Severino Manoel
Soares, pelo sindicato rural e Luiz Antônio e Bodinho, pelas ligas camponesas, ambos
de Timbaúba.
O engenho Paraíso teve, em meados de 1963, uma greve que se arrastou por dois
meses. Paraíso, mais conhecido como Vunda Grande, era um lugar de muitos posseiros
e sitiantes, cuja produção de bananas e roças rivalizava com a cana, dando ao engenho
uma peculiaridade inexistente nos outros engenhos. A greve ocorrida no Paraíso é
muitas vezes creditada a atuação do trotskista Jeremias. Esta memória pode estar
relacionada ao fato de que a caminhada de Jeremias até o Oriente ter se iniciado pelo
engenho Paraíso, passado pelos engenhos Vundinha, Pará e Ferreiros. Jeremias foi
muito ao engenho Paraíso, mas sua chegada por lá foi a partir de meados de março,
quando as greves já se sucediam.
Os sitiantes do engenho Paraíso estavam em greve pelo não pagamento de
salários e décimo terceiro. Pelo fim do cambão e pelo respeito aos acordos das medidas
das “quadras de trabalho”. José Luiz Silvestre, Severino Damião, Joaquim Francisco e
outros moradores estavam sendo pressionados para deixar o engenho. A casa de José
Luiz Silvestre, conhecido como José Mandu, torna-se o centro das reuniões
camponesas. Severino Soares e Luiz Antônio são presenças cada vez mais constantes
por ali. Numa dessas reuniões os trabalhadores insatisfeitos planejam ir as vias de fato
com o feitor local.
534
Segundo depoimento de Marta Gouveia, proprietária do engenho Paraíso, Jeremias aparece no
engenho Paraíso muito tempo depois de Luiz Antônio, presidente das Ligas de Timbaúba, e de Severino
Manoel Soares, presidente do Sindicato Rural, que já tinham deflagrado várias greves e ameaçado de
morte um vigia do engenho, em 1963.
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535
Processo consta na JCJ de Goiana de nº 220/63, Reclamante José Luiz Silvestre, Reclamada Marta de
Araújo Lima Gouveia.
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Timbaúba, articula diversos núcleos das ligas no município, enfrenta a luta por direitos
trabalhistas e agrários, provocando a ira dos senhores de engenho.
No engenho Salgado, o senhor de engenho Zoé Borba de Araújo Pereira,
reclamava da constante presença de Severino Soares e Luiz Antônio, que revezavam-se
na deflagração de greves, ora para diminuir as medidas de corte de cana, ora por
536
pagamento de salário e extinção do cambão . No Engenho Vundinha, o proprietário
Gileno Campos Gouveia indignado com a mobilização dos camponeses acusa gerente
da CRC de Ferreiros, José Gomes, da liga de Timbaúba, de andar pelos engenhos
distribuindo carteiras das ligas.
No engenho Pará, do senhor de engenho Pompeu Veloso Borba, até então
discreto e condescendente com a ação dos seus moradores. Sob orientação da liga e do
sindicato, alguns camponeses tinham até derrubado parte da mata e dividido lotes entre
si para fazer novos sítios e plantio. Quando Pompeu Veloso Borba ameaçava reclamar,
os camponeses não se intimidavam: Seu Pompeu, a terra é forra. A terra é forra seu
Pompeu! O senhor de engenho do Pará parecia muito passivo ultimamente ou tudo
estava mudado. Era como que ele estivesse aceitando a movimentação dos seus
moradores. Era como se ele estivesse se convertendo ao discurso da “terra forra”. Não
era da natureza de Pompeu Veloso Borba agir assim. Pompeu era um tipo de senhor de
engenho que não mandava fazer 537. Fazia.
Os fatos narrados até aqui, são baseados em documentos dos IPMs, na memória
oral e em noticias publicadas em jornais que circulavam em Pernambuco. A partir deles
pode-se fazer uma leitura que as lutas acontecidas na região de Itambé foram
disseminadas, envolveram várias lideranças. Lideres que atuavam relativamente em
espaços geográficos distintos. Participação que depois de um certo tempo, passa a
receber o apoio da estrutura jurídica existentes nas ligas através do advogado Joaquim
Ferreira Filho 538.
3. Lideranças políticas e o discurso antissenhor de engenho nas cidades de Timbaúba e
Itambé
536
IPM Timbaúba, acervo Dops. Depoimento dos proprietários Zoé Pereira Borba e Lourdes Fischer.
537
Surras, ameaças e até encomenda de mortes são creditadas a Pompeu Veloso Borba, Ex-prefeito de
Itambé e amigo pessoal de Paulo Guerra, Pompeu, segundo um parente próximo teria cassado e
ajudado a dar cabo de dois suposto ladrões de gado que teriam agido numa das fazendas do ex-
governador.
538
Deve ser desse período, idos de maio de 1963, quando da ação judicial dos camponeses contra Marta
Gouveia, que Jeremias tenha tido contato mais permanente com os moradores do engenho Paraíso.
VI Cultura e Memória
Golpe de 1964: Cultura e Memória
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Além da luta dos camponeses por salário, da mobilização das ligas e dos
sindicatos e do surgimento e fortalecimento de algumas lideranças no campo, faz-se
539
perceber uma dura resposta dos senhores de engenho . Resposta que passa pelo
exercício da repressão aos camponeses e as tentativas de expulsão de rendeiros e
posseiros sitiados em engenhos e usinas. Para além dessa massa que entorna o caldo, na
região entre Timbaúba e Itambé, existe outro elemento que deve ser levado em conta
nas análises sobre a disseminação das lutas e do protagonismo dos camponeses, na
primeira metade da década de 1960: o discurso político-eleitoral praticado pelas
principais lideranças políticas de ambos os municípios. Tanto em Timbaúba como em
Itambé, o chefe político tinha chegado ao poder com um discurso contrário aos senhores
de engenhos e donos de terra.
João Nunes Ribeiro e a família Ferreira Lima incorporavam o discurso de
defensores dos pobres contra a opressão dos senhores de engenho. Ribeiro, um ex-
prestanista que vendia tecidos pelos engenhos antes de abrir uma loja em Itambé e se
tornar político, destronou do poder Simplício Tavares, proprietário do engenho Perori e
irmão do poderoso Arthur Tavares de Melo, da usina Olho D’água. Ferreira Lima chega
ao poder destronando duas poderosas oligarquias: a comandada pelo usineiro e
jornalista Jader de Andrade e a outra comandada pelos senhores de engenho Raul
Veloso Borba e Pompeu Americano Pereira Borba. As práticas de ambos não diferia:
distribuição de cargos públicos, uso politico da policia e do hospital local, controle do
cartório eleitoral e um discurso contra os que eles chamavam de “potentados”.
A ojeriza dos camponeses aos senhores de engenho se moldava pela não
remuneração real de grande parte do trabalho realizado; pelo uso indiscriminado do
cambão e da condição nas relações de trabalho; pelo controle e retenção da força de
trabalho por meio da chantagem de expulsão das terras e pela redução das
possibilidades de mobilidade social. A simples vontade de se alfabetizar era rechaçada
pela maioria dos senhores de engenho, que faziam tudo para impedir a instalação de sala
539
O papel dos senhores de engenho antes e pós 1964 em Pernambuco, já foi relatado por Francisco
Julião, Gregório Bezerra, Paulo Cavalcanti, Tenente Carlito Lima e Fernando Coelho, entre outros.
Fernando Coelho em sua obra “Direita Volver, o golpe de 1964 em Pernambuco” faz um relato
importante da aliança com os militares e participação dos senhores de engenho no período: “Ao lado do
exército e da polícia, bando civis armados e grupos paramilitares, que atuavam a soldo ou sob comando
direto de alguns proprietários de terra, usineiros, senhores de engenho, empresários urbanos e políticos
oposicionistas. Prendendo e por conta própria e assassinando trabalhadores. Invadindo casas e
expulsando famílias. Cometendo todas violências que, segundo diziam, os comunistas planejavam
consumar”. pp. 40/41.
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de aula nos seus engenhos. Simplício Tavares, que foi prefeito de Itambé na primeira
metade dos anos 1940, argumentava que o camponês não devia aprender a ler porque
quando soubesse ler não ia querer mais trabalhar na “palha da cana”. Simplício não
aceitava a instalação de escolas no seu engenho. Outro senhor de engenho, Eliezer
Gouveia, proibiu o funcionamento, desativando uma escola rural 540.
João Nunes também fazia da luta pela terra um dos pilares de seu discurso.
541
Segundo o senhor de engenho Luiz Falcão , “no ano de 1947, na época da eleição,
João Nunes, em comício que tomara parte, pregava ostensivamente a divisão das terras,
afirmando ainda que as ditas terras seriam tomadas dos seus proprietários e entregues
aos camponeses que nela moravam”. Ainda segundo Luiz Falcão, os discursos de João
Nunes eram carregados de ódio, forçando o choque entre os trabalhadores e os
proprietários de terra. O discurso radical de João Nunes tinha como endereço a mente e
os corações do homem do campo, produzindo um efeito de verdade para os camponeses
que sofriam o peso do atraso das relações trabalhistas e sociais vigentes à época no
campo.
O provável é que João Nunes pegasse carona no discurso contra os senhores de
engenho para se manter como chefe político em Itambé. Mas, ao se colocar dessa forma
entrou na mira de tiro dos senhores de engenho, que depois do golpe militar passaram a
apontar “os inimigos da ordem vigente”. No Inquérito Policial Militar de Itambé,
instalado em abril de 1964 para apurar “a subversão e a agitação”, João Nunes foi
denunciado por senhores de engenho e inimigos políticos, acusado de pregar a
insubordinação dos camponeses; de lhes vender armas e de corrupção a frente da
prefeitura. Acontece que João Nunes não era o protótipo de um político revolucionário.
João Nunes era governo em todos os governos instalados em Pernambuco desde 1947.
Amigo e correligionário de Paulo Guerra, muito mais deste do que de Miguel Arraes,
João Nunes dribla magistralmente todas as acusações e adere ao governo instalado em
1964.
Em Timbaúba, após a morte do patriarca João Ferreira Lima, assume o comando
Ferreira Lima Filho, eleito prefeito em 1955 e sucedido pelos primos Geraldo Ferreira
540
José Gomes relata que foi chamado por Eliezer Gouveia e comunicado que ele não queria mais que
ele continuasse ensinando camponeses em suas terras que estava dando problema e “os camponeses
estavam muito cheios de direito”, que por isso ele resolveu acabar com escola no engenho.
541
Depoimento de Luiz Falcão, consta no IPM Itambé instalado em abril de 1964, no qual são
denunciados, João Nunes, Capitão, Sargento Marconi e Abel Rodrigues Alves, este ultimo interventor do
STR entre setembro de 1963 e março de 1964.
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Lima (1959) e Jacques Ferreira Lima (1963). A partir da eleição de Geraldo, João
Ferreira Lima Filho, passa a atuar como chefe político do município, passando a exercer
cargos no legislativo e no executivo. Em que pese Ferreira Lima Filho somente ter
assumido o poder politico de Timbaúba, na eleição de 1955, sua influencia vinha num
crescente desde que as forças getulistas assumiram o poder em 1930, quando seu pai
João Ferreira Lima, foi alçado a condição de chefe político local. No período em que foi
chefe político Dr. João, conseguiu instalar um hospital regional no município que,
utilizado como instrumento político-eleitoral, foi um importante elemento para a
consolidação e manutenção do poder local sob o controle de sua família.
Geraldo Ferreira Lima faz-se presença constante nas manifestações promovidas
pelos camponeses nas quais defende os direitos recém-adquiridos por estes. Ao deixar a
chefia do governo municipal em 1962, Geraldo passa a advogar e orientar os
camponeses em processos trabalhistas. No dia 07 de agosto de 1963 é protagonista de
fatos que serão usados para incriminá-lo como agitador, chefe local das ligas
camponesas e de “atentar contra o regime democrático e a ordem vigente”. Naquele dia
07 de agosto de 1963, quarta feira – dia de feira livre – entidades ligadas aos
trabalhadores fazem uma “mobilização nacional contra a carestia” 542. Os manifestantes,
na sua grande maioria, camponeses, promovem com sucesso uma passeata e fecham o
comércio da cidade. Geraldo Ferreira Lima participa das manifestações e discursa em
defesa da reforma agrária e dos direitos para o homem do campo. Também estavam na
passeata, Bodinho, Luiz Antônio, Amaro sapateiro, Fábio do IAPI, Severino Soares,
Mariano Sales, os vereadores Galdino e Virgílio Aguiar e Paulo Roberto Pinto, o
Jeremias.
A participação de Geraldo Ferreira Lima na manifestação e passeata contra a
carestia e a sua proximidade com as lideranças camponesas serão um prato cheio para a
fome vingativa dos senhores de engenho, no período imediatamente pós 1964. Além
disso, Geraldo, em companhia do delegado tenente Daniel Nunes, teria tentado articular
543
resistência ao golpe na região entre Nazaré da Mata, Aliança e Timbaúba . Depois do
542
Manifestação coordenada e articulada por entidades como CGT, ULTAB, CONTAG, Sindicatos e
Ligas, divulgadas nos jornais Ultima Hora e A Hora. . Na dita passeata, que culminou em comício,
segundo os opositores, ouvia-se saudações de “viva a Cuba”, “viva Arraes” e dados gritos de “fora os
reacionários”.
543
Estes indícios de tentativa de resistência ao golpe na região de Timbaúba, nada foi ainda posto e
estudado pela historiografia, mas é um caso interessante de ser estudado, pois dão uma ideia como
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forças locais não tinham a real dimensão do trabalho conspirador e da força e articulação dos golpistas,
civis e militares.
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Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão
conceitual. Rio de Janeiro: Revista Dados. Volume 40, Nº 2. 1997.
CAVALCANTI, Paulo. O Caso Eu conto como o caso foi – Memórias Políticas – 1º e
2º volumes. Editora Guararapes – Recife – 1980.
COELHO, Fernando. Direita Volver. O golpe de 1964 em Pernambuco. Bagaço. Recife.
2004.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da História. Forense Universitária. São Paulo. 2008.
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Nesses quase cinquenta anos que nos separam daquele abril de 1964, muitas
tentativas de explicação foram formuladas, principalmente pela renovação que o tema
viu emergir a partir da década de 2000, com as pesquisas que se dedicaram a diversos
aspectos do governo João Goulart bem como dos trabalhos que privilegiaram a atuação
dos setores nacionalistas e de esquerda, do PCB e dos trabalhadores.
Em 2004, quando da “comemoração” de quarenta anos do golpe, muitos foram
os pesquisadores que se reuniram em seminários, palestras e eventos tendo como
objetivo discutir a questão da ditadura militar no Brasil. Foi um momento de refletir um
acontecimento – o golpe militar – que marcou profundamente a história do povo
brasileiro. Já tinham se passado quarenta anos, mas as lembranças daquele momento
permaneciam na memória daqueles que presenciaram os direitos democráticos se
desfazerem com as ações políticas dos militares.
Essa preocupação pode ser compreendida devido ao acesso a determinados
documentos que anteriormente eram impossíveis de serem analisados, embora o estudo
sobre a ditadura ainda careça de fontes. A intensa revisão desse momento histórico pode
ser dada pelo fato desse período ainda provocar muitas contradições, como por
exemplo, a construção de narrativas daqueles que defenderam o regime e dos que foram
vítimas desse sistema ditatorial. O que ocorre também é uma tentativa de redefinição
desse passado pelos diferentes sujeitos, de um lado aqueles que vivenciaram essa
experiência ditatorial e de outro os que investigam e interpretam esse passado com base
em documentos escritos e orais.
Pesquisas recentes procuram analisar a conjuntura imediatamente anterior ao
golpe civil-militar em determinadas regiões, focando sua atenção em locais específicos.
Daí que, nosso objetivo neste artigo, é fazer uma exposição sobre a deflagração do
golpe civil-militar em Alagoas, privilegiando a relação entre o Governo do Estado e as
classes trabalhadoras. Procuramos oferecer uma nova maneira de se pensar os embates
políticos daquele início da década de 1960, já que as pesquisas tendem a concentrar suas
Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Bolsista do CNPq - Brasil.
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atenções para regiões específicas como o eixo Rio - São Paulo, os estados de Minas
Gerais e Rio Grande do Sul, e no nordeste, o estado de Pernambuco, deixando de lado a
contribuição dos outros locais para os acontecimentos que se sucederam.
544 TOLEDO. “1964: o golpe contra as reformas e a democracia”. Op. cit., p. 74.
545 Cf. REIS. Ditadura, esquerdas e sociedade. Op. cit., p. 22
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546 Idem.
547 Ibidem.
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548 Ibidem.
549 FERREIRA, Jorge. “O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964.” In: FERREIRA, Jorge e
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Org.) O tempo da experiência democrática: da democratização de
1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. (O Brasil Republicano; v.
3). p 382..
550 MAJELLA, Geraldo de. Rubens Colaço: Paixão e vida - A trajetória de um líder sindical. Maceió:
Recife, Edições Bagaço, 2010. p. 70-1.
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A reação conservadora
No entanto, o lado conservador também mobilizaria uma manifestação pública, a
ser realizada na Praça Deodoro, local relativamente próximo de onde se realizaria o
comício pró-reformas. Repetia-se em Alagoas o que havia acontecido no sudeste do
país. Quase uma semana após o comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro, no dia
19 de março, uma grande manifestação em São Paulo, a Marcha da Família com Deus
pela Liberdade levou milhares de pessoas ao centro da capital paulistana.
Para Rodrigo Motta, este evento se constituiu no “comício da central do lado
conservador552, ou seja, constituiu-se em evento altamente impactante no que tange à
mobilização antiesquerdista”553. Na sua edição de 26 de março, o Jornal de Alagoas
trazia em sua primeira página uma convocação “Movimento Popular pela Democracia”
para o comício na Praça Deodoro no domingo dia 29, comício esse que enfrentaria o
comício comunista das reformas554. Em tom agressivo, a mensagem trazia em letras
maiúsculas os seguintes dizeres: “Alagoas quer continuar em paz com trabalho. Está de
pé contra a farsa dos agitadores. Repudia os agitadores Arrais e Brizola”.
No dia 31, o Jornal de Alagoas noticiava em sua primeira página555 que a
cidade de Maceió havia estado “a beira de sérios e sangrentos incidentes, devido a um
comício pró-reformas de base, ao qual iriam comparecer inclusive o governador Miguel
Arraes e o deputado Leonel Brizola”. A poucos metros dali na Praça Deodoro, o
Movimento Feminino Pró-Democracia, “manifestava a sua repulsa aos promotores do
clima sócio político favorável à intervenção militar, bem como de incitar diretamente as
Forças Armadas ao golpe de Estado560
Nesse clima de confronto, o jornal informava que “a emissora oficial do estado
publicava uma nota da Secretaria do Interior a qual foi relida várias vezes durante todo
o dia, ponderando as graves consequências que poderiam advir da concomitante
realização dos comícios antagônicos em locais tão próximos entre si”561. Para evitar
“um choque de consequências imprevisíveis, entre manifestantes exaltados que
fatalmente se defrontariam, decidiram as autoridades policiais não consentirem na
realização de nenhum dos dois comícios”. Mas os promotores do comício das reformas,
além de não acatarem a designação da polícia, continuaram a convocar o povo para o
comício no Parque Rodolfo Lins. Na sede do Sindicato do Petróleo, CGT, DCE e
UEEA, havia uma grande movimentação de trabalhadores de vários sindicatos urbanos
e rurais. O comício enfim começou à noite, com os líderes do CGT “dirigindo duras
críticas ao governador Luiz Cavalcante e as classes produtoras alagoanas” e decidiram
pela deflagração de uma greve geral em todo o Estado. Houve em seguida a ação da
força policial, que segundo o jornal havia “revidado” as provocações com tiros e jatos
d’água nos manifestantes.
A greve alcançou inicialmente a orla marítima e a rede ferroviária, paralisando
as atividades nestes setores desde as primeiras horas da segunda-feira. Estivadores,
portuários motoristas, comerciantes, ferroviários e os trabalhadores da Petrobrás
paralisaram as suas atividades como decorrência do que ficou estabelecido numa
reunião ocorrida na sede do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Petróleo562. O
jornal noticiava também que os líderes sindicais de Alagoas haviam “entrado em
contato com entidades de classe de outros Estados Brasileiros, das quais solicitam apoio
e adesão a greve eclodida”.
Tanto no dia primeiro quanto no dia 02 de abril, nem Jornal de Alagoas nem
tampouco a Gazeta de Alagoas traz algum tipo de informação relativa à movimentação
das tropas do Gal. Não citando Olimpio Mourão Filho em Minas Gerais, nem os
deslocamentos do presidente João Goulart entre Brasília e Porto Alegre (e a viagem
para o Uruguai em seguida). Somente no dia 03, quando o presidente da Câmara dos
Deputados havia sido empossado como Presidente da Nação, é que começam a circular
nos jornais alagoanos as primeiras notícias sobre a situação política do país.
Da mesma forma, os jornais de Alagoas deram pouca ou nenhuma cobertura às
movimentações do CGT, DCE e demais grupos que defendiam a permanência de Jango
à frente da Presidência da República. No dia 03 de abril, o Jornal de Alagoas publicou
um editorial descrevendo o desenrolar do comício das Reformas na capital alagoana563
como uma Batalha de Itararé564, para em seguida, contradizer a edição do dia 31 de
março ao afirmar que o comício não foi realizado. O editorial também dá um destaque a
eficiente atuação da polícia, que adotou “medidas preventivas contra os agitadores
comunistas, muito interessados em provocar incidentes para tirar deles algum
resultado”565. O jornal admite que havia articulações dos esquerdistas na cidade, uma
vez que “agitadores de fora aqui se encontravam representando setores de agitação de
outros Estados, como é o caso de Mataripe, onde, aliás, os comunistas foram
derrotados.”
O jornal afirma que apesar da onda de comunização quase ter triunfado,
“favorecido pelo jogo perigoso do governo derrubado”, havia prevalecido a “orientação
democrática nata da nação brasileira:”
O comício de 13 de março acordou a consciência democrática
do país e a luta foi aceita no pé em que era oferecida. São Paulo
realizou uma retumbante marcha com Deus pela liberdade e
homens representativos do país, como governadores de Estados
parlamentares, empresários etc. decidiram-se a esquecer suas
divergências pessoais e formar uma frente única em defesa das
nossas instituições democráticas, se necessário até pelas armas.
A arregimentação surpreendeu os comunistas e seus aliados que
contavam com a passividade do povo brasileiro e com o
próximo domínio do país. Em breve instalariam aqui, sem um
tiro, uma Cuba grandiosa da América Latina, de onde a Rússia
iria tirar os proveitos políticos e econômicos que não lhe pode
proporcionar a pobre ilha da Antilhas. Agora estrebucham. Nem
a implantação de indisciplina nas forças armadas, que
conseguiram com a ajuda do ex-presidente da Republica lhes
deu o domínio do Brasil, porque o povo resolveu acordar a
tempo. A disposição do povo alagoano ao lado das forças
563 “História de um comício que não houve” In: Jornal de Alagoas. 03/04/1964. p. 2.
564 A batalha de Itararé entrou para os anais da História Militar como a maior batalha do continente
latino- americano... que não houve. Com efeito, os contendores, partidários e adversários da marcha
que levaria Getúlio Vargas ao poder, depois de se aprestarem para um choque decisivo, retiraram-se
para posições defensivas, sem disparar um tiro, negociando o desfecho de forma pacifica.
565 “História de um comício que não houve” In: Jornal de Alagoas. Loc. cit.
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Mais uma vez o Jornal de Alagoas se esforça para construir a imagem do povo
alagoano como contrário às manifestações em favor das reformas. Os agitadores são
estrangeiros infiltrados entre os trabalhadores, desvirtuando estes dos seus propósitos.
No entanto a partir do relato de Rubens Colaço, é possível perceber que havia uma
grande mobilização dos trabalhadores alagoanos de apoio ao grupo que defendia a
realização as reformas:
(...) a repressão em Alagoas foi anterior ao golpe. Ela começou
no dia 29. Nós realizamos o comício e os operários da fábrica
têxtil do distrito de Saúde vieram a pé, vieram para Maceió com
suas faixas enroladas debaixo do braço. Quando menos
esperavam, eles estavam na praça. Os trabalhadores da orla
marítima tiveram que se dispersar quando chegaram na Praça
Sinimbu. Mas marcou presença firme. A Rua do Comércio ficou
intrafegável. Nós realizamos o comício em frente ao sindicato
de petróleo, que era praticamente na Praça Pedro II, a Rua 2 de
Dezembro, é muito pequena, liga a Rua do Comércio à Praça
Pedro II. O segundo delegado da capital, Aurino Malta , ainda
deu uns tiros, feriu um rapaz da Petrobras que estava na sacada
do prédio; esse rapaz não tinha nada a ver com o comício. A
repressão foi muito violenta para nós já no começo do dia
29566.
No dia seguinte, o jornal trazia em sua primeira página a matéria que elogiava a
posição assumida pelo governador Luiz Cavalcante diante dos acontecimentos tanto
locais quanto em relação à movimentação que depôs Jango567. O jornal faz alusão ao
movimento, na prática trata-se de um manifesto assinado por Luiz Cavalcante e pelo
governador gaúcho Ildo Menegheti, após o comício de 13 de março, em que os dois
alertavam para a necessidade de defesa do Congresso Nacional e das instituições
ameaçadas pelos fomentadores da agitação subversiva. O jornal faz questão de enfatizar
que:
(...) foi Alagoas o único estado no Norte que tomou posição
clara ao lado das forças democráticas. Os demais ou
simplesmente se omitiram receosos das iras do Palácio do
Planalto, ou se colocaram em oposição ao Congresso, como foi
o caso de Sergipe e Pernambuco, cujos governadores já foram
569 “Já desarticulados os focos comunistas do Estado, mas a policia prossegue em constantes
diligências”. In: Jornal de Alagoas. 05/04/1964. p. 5.
570 MEDEIROS, Fernando Antonio Mesquita. O homo inimicus: Igreja Católica, ação social e imaginário
anticomunista em Alagoas. Maceió, EDUFAL, 2007. p. 142.
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subversivo”, a exemplo do que ocorreu com a sede da UESA, vasculhada pelo DOPSE,
que não encontrou nenhuma “propaganda subversiva”571, e o Sindicatos dos
Portuários, considerado o “último foco de agitação”, onde foram apreendidos cartazes,
faixas, livros etc.572 Nas poucas matérias em que há alguma cobertura dos eventos, a
Gazeta de Alagoas informava que na sede do Sindicato dos Portuários estaria
acontecendo, segundo denúncia anônima, uma “reunião subversiva”, o que teria
provocado o deslocamento de uma guarnição da radiopatrulha ao local, que não
conseguiu prender o “grupo de agitadores”, que pressentindo a presença da polícia,
“teria se esgueirado em fuga, escapando da captura”.
Ao contrário do afirmado por órgãos da imprensa que davam conta de que o
governo do estado teve a situação dominada em poucas horas, a resistência dos
trabalhadores foi persistente.
Enquanto isso, as forças que apoiaram o golpe realizaram na capital alagoana no
dia 2 de abril, a “Marcha da família Alagoana” formada “de milhares de pessoas que ali
compareceram a fim de levar o seu apoio e o seu aplauso as enérgicas medidas postas
em prática pelo atual chefe do Executivo alagoano”573. A multidão, tendo à frente o
“governador Luiz Cavalcante e sua esposa, além de altas autoridades civis e militares,
funcionários públicos, comerciantes, industriais e o povo em geral”, rumou à Praça
Visconde de Sinimbu, “entoando hinos patrióticos e vivamente aplaudida em todo o seu
percurso”.
Depois de passarem pelas principais ruas do centro da cidade, regressaram à
Praça dos Martírios “onde diversos presentes se fizeram ouvir, todos exaltando as
figuras dessa revolução branca que afastou definitivamente o perigo de comunização de
nossa Pátria”. Em seguida, o arcebispo de Maceió, Dom Adelmo Machado, realizou
missa campal exaltando atuação dos “salvadores da nação”. A passeata foi organizada
pelo Movimento Alagoano em Defesa da Democracia, este, segundo o Jornal de
Alagoas composto “dos mais representativos nomes de senhoras e senhoritas de nossa
terra”. O jornal dá destaque ainda à presença de várias entidades religiosas, “da Patrulha
Nacional Cristã, da Polícia Mirim e de diversas outras de caráter nacionalista”.
571 “A polícia preserva a ordem eliminando focos de agitação”. Gazeta de Alagoas. Maceió, 3 abr. 1964,
p. 4.
572 “Sindicato dos Portuários é o último foco de agitação comunista no Estado”. Gazeta de Alagoas.
Maceió, 4 abr. 1964, p. 4.
573 “Marcha da família alagoana” In: Diário Oficial. 04/04/1964. p. 1.
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No dia 05, o Movimento Popular pela Democracia divulgou uma nota no Jornal
de Alagoas de “reconhecimento as gloriosas Forças Armadas pela posição brava e digna
de respeito aos mais caros e legítimos sentimentos de brasilidade”574. Agradecia
também ao governador Luiz Cavalcante e, acima de tudo, ao povo alagoano “pela
vigilante atitude e pelas enérgicas providências em favor das tradições cívicas e cristãs
da gente alagoana, destacando-se o trabalho de nossas polícias civil e militar que,
comandadas pelo Cel. João Mendes Mendonça, ficaram ao lado do Povo contra a
baderna e a agitação”.
Mas ainda era necessário continuar alerta “em defesa de nossa fé e do nosso
Brasil. A semente do ódio, plantada por mãos hábeis, pode novamente germinar se
soluções não forem oferecidas, de imediato, para os inúmeros problemas que exigem
nossa devotada atenção”. Segundo a nota, o movimento que:
(...) nunca foi, nem será contra as reformas. A primeira já foi
feita: a reforma do Governo. As outras terão que vir. Nosso
movimento não é contra a Petrobras, empresa que reputamos
básica para o desenvolvimento do País, mas contra os que a
transformam em símbolo do comunismo no Brasil; nossa luta
não é contra os sindicatos operários e camponeses e sim contra o
sindicalismo político da espúria CGT; não nos arregimentamos
contra a mocidade estudantil, herdeira de ricas tradições nas
lutas em defesa da Democracia, mas contra os agitadores que
dominaram a UNE e as UEE’s. Finalmente somos contra o
comunismo e a favor do Brasil que deve ser sempre dos
brasileiros.
Na mesma matéria, informa que “enquanto o povo manifestava sua euforia pela
vitória do movimento democrático, a Polinter realizava prisões de todos os líderes do
CGT e outros órgãos sindicais, implicados em movimento subversivos”. A matéria
termina relatando o empastelamento do “jornal comunista A Voz do Povo, que servia de
sede ao PC, bem no centro da capital alagoana”, e a prisão dos seus diretores.
A partir de então, com os canais de oposição ao governo desarticulados e com a
destruição da sede do jornal do PCB A Voz do Povo, que além das suas instalações, teve
as suas máquinas quebradas pela polícia do Estado, o caminho estaria livre para que o
Jornal de Alagoas e o Diário Oficial dessem prosseguimento na construção da imagem
do governador Luiz de Sousa Cavalcante como líder no Nordeste da “Revolução”.
Palavras finais
Como a direita venceu, as memórias das lutas da esquerda foram encobertas e
esquecidas, numa tentativa dos vencedores de criar um mito de que os trabalhadores
alagoanos não estariam envolvidos com o programa reformista e os que em solo
alagoano defendiam essas bandeiras, seriam estrangeiros a soldo de Moscou, dispostos a
conspurcar a límpida essência de fraternidade dos trabalhadores alagoanos.
Ao longo deste artigo demonstramos que, ao contrário da memória oficial
construída a partir de então, os trabalhadores alagoanos se envolveram sim com o
programa reformista do governo Jango, bem como conseguiram atingir um nível de
organização e de mobilização até então inédito na história republicana alagoana,
recrudescendo gradativamente entre o final da década de 1950 e a primeira metade da
década de 1960. Igualmente, trouxemos à tona a repressão sofrida por essas mesmas
classes trabalhadoras cujas manifestações foram duramente suprimidas pelo poder do
Estado governado pelo Major Luiz Cavalcante. Este último, assim como o bloco
político ao qual pertencia e representava, temia que caso o programa reformista
avançasse, pudesse haver uma redefinição do equilíbrio político entre as classes sociais.
Por isso mesmo se torna imperativo destacar a importância do comício de 29 de
março em Maceió, quando a repressão policial no sentido de impedir a sua realização,
acabou se mesclando com a ofensiva golpista desencadeada com a marcha das tropas do
Gal. Olímpio Mourão Filho sobre o Rio de Janeiro em 30 de março.
Outro ponto a ser destacado é como o tripé anticomunismo, modernização
conservadora e repressão, utilizado como lema para o governo militar que se instaurou
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Golpe de 1964: Cultura e Memória
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Bibliografia
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1. Introdução
O período da ditadura militar, que ocorreu entre os anos de 1964 até 1985, deixou
marcas na memória não apenas daqueles que lutaram contra o regime, mas de pessoas
comuns que não participaram diretamente das manifestações contra o regime ou
estavam distante dos grandes centros urbanos e dos veículos de comunicação para saber
o que estava acontecendo. No primeiro caso, dos estudantes das classes populares de
Salvador, havia o receio de participar de manifestações que poderiam taxados e punidos
como subversivos, ou seja, desordeiros e infiéis à pátria. No segundo caso, os
trabalhadores rurais, mais especificamente, da cidade de Cruz das Almas, que, na
maioria dos casos, acreditava nas versões e boas intenções dos que estavam no poder,
associando o regime militar a uma melhoria nas condições de vida, através da concessão
de alguns benefícios na busca da aprovação popular para o regime estabelecido e os
votos para o partido que lhe dava legitimação, a Arena ( Aliança Renovadora Nacional).
A análise dos resultados das entrevistas partiu da percepção de que as memórias
coletivas estão relacionadas a quadros sociais que a compõem e que, por mais particular
que seja tal memória, ela sempre remeterá a um grupo, no caso específico, estudantes
secundaristas e agricultores rurais. A memória é a capacidade de armazenamento de
informações. A primeira memória é classificada como memória individual, pois de
acordo com Halbwachs (2006, p.29), “o primeiro testemunho a que podemos recorrer
será sempre o nosso”. Percebe-se que cada indivíduo carrega sua lembrança do período,
contudo estando interligada a grupos (família, vizinhos, bairro, dentre outros) e
instituições (escolas, sindicatos, igrejas, etc.), portanto, uma memória coletiva. Neste
entrelaçamento construímos as memórias, de como nós e os outros, de forma
interligada, percebemos um acontecimento de relevância para todos. Para Halbwachs
(2006), o outro tem um papel fundamental, pois as lembranças se nutrem das diferentes
memórias proporcionadas pelo grupo, chamada de ‘comunidade afetiva’. Para Bosi
(2003), a conservação dos fatos na memória depende do quanto essas memórias têm de
força afetiva. A memória realiza uma noção de pertencimento que acontece no campo
simbólico e histórico. Conforme Halbwachs (2006), sobre a memória coletiva
para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não
basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso
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que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que
existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a
lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma
base comum. (HALBWACHS, 2006, p. 39)
A respeito dos estudos sobre memória, Pinheiro (2004) menciona que houve uma
valorização ocidental a partir dos anos 1980, que resultou uma maior necessidade de
armazenamento de memória como forma de legitimação e perpetuação. Bosi (2003),
mais voltado para a psicologia social, aponta a memória como algo oculto na
consciência, contudo viva e acionada à medida que necessitamos da mesma. Para o
autor
Sobre a questão dos silêncios, que está relacionada ao fato de um determinado grupo só
lembrar o que tem relevância para ele, Le Goff explica tal conduta, argumentando que
muitas vezes um grupo não é detentor de suas memórias, elas são manipuladas de
maneira sutil por interesses das classes dominantes. De acordo com o autor
Sobre a questão dos transtornos com a polícia M. O. R., diz o seguinte: “a grande
preocupação era não ser preso, pois, um fichamento naquela época causava um
transtorno tremendo, pois, sempre que houvesse qualquer manifestação você poderia ser
chamado” (M. O. R., em entrevista concedida à autora, 15.02.2014). Outro entrevistado,
a senhora L. M. N. T., 61 anos, moradora do bairro do Pau Miúdo, sobre a mesma
questão nos diz que “fui nas passeatas da escola mas fiquei com medo da polícia fazer
alguma coisa comigo e poderia depois não conseguir trabalho porque eles anotavam o
nome da gente. Queria mostrar que era contra mas não poderia ser contra as pessoas da
lei” (L. M. N. T., em entrevista concedida à autora, 16.02.2014). Foi entrevistada ainda
uma outra senhora, F. S. S., 60 anos, moradora do bairro do Tororó, que estudou no
Colégio Central sobre o medo da polícia:
No colégio sempre tinha policial por lá, a gente viva com medo. Não é
que éramos tolos, nós sabíamos o que estava acontecendo mas lutar
contra era pedir para morrer e minha mãe me alertava todo dia para
isso. Eu assumo que fui medrosa mas quem não é? Sou mulher e não
queria apanhar da polícia não, fui na passeata e em duas ou três
reuniões para conversar sobre as perseguições no colégio mas depois
me aquetei pois para sobreviver era necessário que a polícia não
marcasse a sua cara (F. S. S., em entrevista concedida à autora,
16.02.2014)
Por fim o entrevistado acrescenta que “os militares foram bons demais com o
trabalhador da roça, foi quem olhou pra gente e depois ficam falando mal, por mim, a
coisa pra o rural ficou foi boa”. A entrevista aponta que os trabalhadores rurais estavam
distantes da realidade, mas que mesmo assim realizavam escárnio de seus governantes.
O entrevistado ainda nos mostrou um disco de Juca Chaves que debochava do
presidente Figueiredo. Contudo, durante toda a entrevista foi enfático ao dizer que os
militares foram “bons para o trabalhador rural” (V. S. C., idem).
No breve relato acima é possível perceber o quanto a criação do Funrural está gravado
na mente dos agricultores, visto que o segundo entrevistado durante a implantação da lei
complementar ainda era bastante jovem. Foram ressaltados os benefícios e o incentivo
para participar do sindicato.
GT 9
RESUMO
A proposta de Rui Barbosa tinha por finalidade promover por meio da educação
a civilização da nação. Segundo Elias (2011), o processo civilizatório ocorrido nas
diversas nações ocidentais estava diretamente ligado ao progresso tecnológico e a
influência do Estado sobre a população. A civilização minimizou as diferenças entre as
nações e consolidou o período da modernidade.
Além de Rui Barbosa outro deputado divulgou a situação da instrução pública
no Brasil, o alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos. Esse deputado identificou a
necessidade do povo brasileiro de um programa de instrução eficiente. Segundo Souza
(2012), Tavares Bastos queixava-se da estrutura administrativa do governo Central
sobre a educação, que concentrava os investimentos educacionais na Corte, e deixava a
instrução elementar sobre a administração das Províncias.
O deputado denunciava as ineficiências das atitudes tomadas pelo governo
central, e atribuía a essa falta de atenção a situação lastimável da educação pública.
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Mesmo com todas as implicações o sistema co-educativo era uma via para a
modernização, porque “instruindo igualmente homens e mulheres a sociedade brasileira
alcançaria um bom nível cultural e poderia superar o atraso” (ANDRADE, 2007, p. 50)
da instrução. No entanto, a implantação dessa forma econômica de ensino que era
viável para o Brasil sofreu duros entraves com a religião católica.
A MODERNIZAÇÃO SERGIPANA
Império instruía o sexo feminino para ser dona de casa, também instruía para
ser uma aliada a mais no processo de construção da Nação brasileira. A
mulher instruída seria portanto uma peça fundamental contra determinadas
práticas consideradas entraves para o progresso como a desobediência às leis
e à religião (SIQUEIRA, 2006, p.43).
Observamos tal tendência nas aulas que ocorriam no Atheneu Sergipense, pois o
ensino de línguas vivas, como o Inglês, ocupavam lugar de destaque no cenário
educacional da “Casa de Educação Literária” (ALVES, 2011, p.193). Em vários trechos
das Atas da Congregação do Atheneu vislumbramos a organização, e as particularidades
que envolveram o professor de tal disciplina.
Segundo Amorim (2009), o professor da disciplina Inglês, adotou os padrões
mais modernos para ministrar suas aulas, ele apelava para o desenvolvimento da razão
nos seus alunos a partir de situações cotidianas, não aplicava castigos corporais e
elaborava os materiais para as suas aulas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Linda cidade,
Campina,
És um sonho de amor
Tão bela que és
Com teu céu,
Com teus lindos jardins,
Tuas noites de lua
E o sol
A brilhar!
Tu tens o porte real
Da rainha que és,
Campima!
Da Borborema és a flor
Que mais brilha no ar,
Campina!576
(Capiba)
576
Música Campina, Cidade Rainha, composição do pernambucano Capiba em homenagem a Campina
Grande-PB, cidade onde viveu por alguns anos. Até o momento de finalizar este texto só conhecemos a
versão cantada por Expedito Baracho em 1982. (Disponível in:
http://cgretalhos.blogspot.com.br/2013/02/capiba-e-sua-ligacao-com-campina-
grande.html#.UzV2fahdXCk, Acesso em 28/03/2014).
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577
É interessante perceber o grande número de eventos na área de História se propõem a debater sobre o
tema, na agenda da ANPUH-Brasil (http://www.anpuh.org/agenda/public, acesso em 26/03/2014) é
possível constatar isso. Inclusive o evento em que este artigo será apresentado também, tem como tema o
golpe de 1964.
578
Nasceu em Guaramiranga no Ceará em 1916, veio para Campina em 1957 como diretor do SENAI, foi
secretário de educação e cultura e durante muito tempo colaborou escrevendo no “Diário da Borborema”.
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saber e a defesa do ensino técnico de nível médio; 3º- Os castelos da Rainha: Grupos
Escolares e o Teatro municipal; e 4º- As servas da rainha: as professoras primárias.
Buscam conduzir o leitor a refletir sobre a produção discursiva acerca de Campina
Grande como uma cidade que se torna referência no Estado da Paraíba em termos de
educação.
Os pares (historiadores) de certo sentirão falta de citações diretas durante o
texto, de teóricos ou de teorias, isso será normal, optamos por tentar dissolver a teoria,
dentro das análises feitas, mas vale lembrar que metodologicamente tentamos usar o
método Genealógico desenvolvido por Michel Foucault, buscamos perceber não as
origens ou verdades dos discursos analisadas, sim as emergências que esse possibilita
perceber a dimensão inventiva e inventariante que esses trazem consigo579.
579
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. /
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a análise do discurso em educação. IN: Cadernos de pesquisa,
n. 114, p. 197-223, novembro/2001.
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A cidade vai fabricar para si uma nova identidade, dessa vez mais forte e que
dura até o presente581. É nas máquinas das indústrias, nas escolas e faculdades que a
cidades firmará o discurso (cetro) de centro cultural. “De centro comercial para centro
cultural Campina Grande na década de 60, enquanto a segunda maior cidade da Paraíba
nos conduz a um outro olhar norteador” (SILVA, 2000, p. 106), o olhar para a cidade
que permanecia como referência para o interior do estado, e também para todo o
Nordeste como polo de produção cultural e industrial. Agora Campina se dizia o lugar
do saber e do desenvolvimento.
580
O prefeito Niwto Rique foi cassado em 15 de Junho de 1964. No seu lugar assumiu o poder João
Jerônimo da Costa.
581
Ainda hoje Campina Grande é referência no Estado pelas oportunidades de educação que dispõe. A
cidade conta com as sedes de duas universidades públicas, UEPB e UFCG, além de escolas técnicas e de
nível superior.
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Era o ano do centenário, o ano de expor o novo trono da rainha. Prédios foram
construídos, livros foram escritos e monumentos foram encomendados para que desde a
entrada da cidade se tivesse a certeza e respeitassem a centenária Campina Grande, que
era considerada polo cultural e industrial do Estado (Sousa, 2004).
A comissão do centenário foi criada em 1961 para elaborar estratégias de
divulgação e planejar as comemorações do centenário (SOUZA, 2004, p. 4). O Resumo
Histórico e Estatístico de Campina Grande, ação dessa comissão, traz como subtítulo a
frase “Diga ao Brasil que Campina Grande é centenária”, com o intuito de ecoar no
Brasil todo mostrando “as condições geográficas”, “Atividades econômicas”, “Aspectos
urbanos”, “Abastecimento D’água”, “Energia elétrica” e “Vias de comunicação582”,
mostrando que Campina estava grande.
Campina Grande possui todos os aspectos de cidade moderna. Dinâmica e
progressista. Na maioria, suas artérias são largas e bem traçadas. Seu
crescimento urbano obedece a gabarito elaborado por técnicos, em que foram
estabelecidas as áreas as áreas funcionais de zoneamento (Resumo Histórico
e Estatístico de Campina Grande, 1964, p. 17).
582
Resumo histórico e estatístico de Campina Grande. Diga ao Brasil que Campina Grande é centenária.
Edição da secretária da imprensa, prefeitura municipal de Campina Grande, 1964.
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Como se isso não fosse suficiente, Campina ainda tinha para oferecer três
emissoras de rádio, e uma de TV, sendo a “segunda cidade do interior do país, a possuir
TV” (Ibid. p. 18). E caso o leitor ainda não se desse por satisfeito, se não acreditasse
que a cidade tinha futuro na educação a comissão ainda acrescenta que Campina Conta
com “6 bibliotecas para consulta pública reunindo cerca de 12.000 livros” (Ibid. p. 19).
Uma das características marcantes dos discursos sobre educação pós década de
1950, e enfatizado pelos militares é o de uma educação que venha a impulsionar o
“progresso econômico cultural e social”. O objetivo da escola passa a se confundir com
o das indústrias desejosas por mão de obra qualificada. Projetos de lei tramitam no
Congresso Nacional para aprovar a “Lei que obriga empresas com mais de 100
empregados a proporcionarem ensino primário gratuito para seus empregados e os
filhos destes” (Ibid. p. 8).
Citando um discurso pronunciado pelo presidente Castelo Branco, primeiro
general da ditadura a governar o país, em Fortaleza. Stênio Lopes em sua conferência na
Câmara de vereadores583 ressalta o que lhe chama atenção no discurso do presidente.
Como um secretário de educação falando aos vereadores de sua cidade, claro que ele
elenca elementos referentes à educação. Elementos esse que estão apoiando o
tecnicismo educacional, defendendo uma educação que discipline e forme os sujeitos
para o trabalho na indústria. O ensino técnico principalmente “exige que se forme, no
país, cinco a seis vezes maior número de técnicos de nível médio, que poderão iniciar a
sua formação nos cursos ginasiais e colegiais” (Ibid. p. 18). Com a formação de técnicos
de nível médio as indústrias não teriam em seus galpões nem analfabetos que saberiam
583
A conferência é a primeira Parte do livro “Um grande esforço em Educação: município de Campina
Grande” de Stênio Lopes, publicado em 1964. A conferência foi proferida aos vereadores em 17 de
setembro de 1964.
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manusear suas máquinas, e também, não teria intelectuais de nível superior criticando a
exploração do trabalho e os baixos salários.
Fazendo referência a um livro publicado pela FIESP de São Paulo, na coleção
“O pensamento industrial”, a comissão do centenário, em Resumo Histórico e
Estatístico de Campina Grande, coloca entre os “fatores favoráveis à atração de
indústrias para o município” “O baixo salário mínimo”. Com a implantação de novas
indústrias na cidade, ela também ganhava em termos de educação, em 1964 a cidade já
contava em sua infraestrutura educacional com o SESI (Serviço Social da Indústria) e
com o SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial). Segundo Agra do Ó
(2006)
Optar por uma educação mais voltada para a instrumentalização de uma mão
de obra integrada ao parque industrial nascente, por exemplo, nada tinha de
neutro: significava comprometer-se com aquele projeto de desenvolvimento
que a industrialização representava (p. 15).
Era preciso se esforçar mais, a cidade não podia ficar apenar em planos.
Demonstrado a capacidade que Campina tinha de reinar como rainha da Borborema, da
indústria, da educação e da Cultura era preciso dar castelos para a rainha expor sua
riqueza cultural, seu poder em educar. Era preciso construir grupos escolares, lugares
próprios para o ensino, castelos do saber e do exercício do poder, castelos da rainha do
saber.
Grupos Escolares de 4 a 5 salas de aula a cada ano!” (Ibid. p. 40). Sem discutir a
importância do teatro para a cidade ele demonstra-se sempre insatisfeito com as dívidas
que a construção deixou. Talvez não debatesse por acreditar que o teatro fosse mais uma
expressão da grandeza cultural de Campina.
A mentalidade das classes sociais mais bem situadas igualmente é insensível,
contrária mesmo, ao esforço em prol da educação popular generalizada,
preferindo obras vistosas, de maior efeito “cultural”, como no caso, a
construção de um Teatro que nos arrancará do erário mais de duzentos
milhões de cruzeiros, enquanto a cidade conta apenas com meia dúzia de
Grupos Escolares dignos desse nome, embora mal conservados e mal pagos
(LOPES, 1964, p. 31).
Mesmo com a dívida contraída pela gestão anterior a meta era construir mais
grupos escolares. A cidade que se dizia a rainha, referência em cultura e educação tinha
de expor seus castelos do saber, tinha de construir grupos escolares que demonstrassem
o quanto as gestões estavam empenhadas em desenvolver a cidade. Mesmo com as
dificuldades financeiras da Secretaria de Educação e cultura, era preciso construir
grupos com arquiteturas adequadas e disciplinadoras.
“O Grupo Escolar Monsenhor Sales, no bairro do Tambor, é nosso. Foi
construído por nós” (Ibid. p. 39). As dificuldades em lidar com os parcos recursos que a
prefeitura disponibilizava e o fato de conseguir construir, em sua gestão como secretário
de educação e cultura, o grupo escolar do bairro Tambor levam Stênio Lopes a
desenvolver um sentimento de posse pelas obras construídas enquanto era secretário de
educação e cultura do município. Sobre a construção do Grupo Escolar no Tambor ele
relata:
No Tambor construímos, portanto, o Grupo Escolar ‘Monsenhor Sales’. A
única sala existente tinha uma parede fendida de alto a baixo, até o alicerce.
Foi preciso derrubá-la e reconstruí-la, juntamente com a construção que
fizemos, de mais duas salas de classe, uma sala de diretoria, outra para a
cantina, um pequeno depósito, três gabinetes sanitários, cisterna, bomba
elétrica para elevação da água etc. Enfim um grupo escolar bastante
satisfatório resultou de nossa ação e é suficiente para atender a população
escolar do bairro (Ibid. p. 39).
Esse discurso de adequação dos grupos escolares está dentro de uma ordem que
padroniza os espaços escolares. Os prédios escolares bem edificados eram necessários
para demonstrar o desenvolvimento da cidade. Uma sala fendida, rachada ou sem a
menor infraestrutura deveria ser derrubada, derrotada; no lugar deveria se construir um
novo prédio. Com estruturas bem dividas, com espaços para aula, refeições e higiene
pessoal. Era impossível disciplinar os alunos e alunas de uma escola com apenas um
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cômodos. O espaço escolar também é disciplinador584. É por meio dele que se aprende
onde se deve fazer cada coisa. Se deve estudar na “sala de aula”, comer na “cantina”,
fazer as necessidades no “gabinete de sanitários” enfim era preciso ser disciplinado. As
indústrias careciam de trabalhadores adestrados, domesticados, disciplinados pelo
sistema educacional. Segundo Escolano (2001):
A arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie de
discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como de
ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e
motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos,
culturais e também ideológicos (p. 26).
584
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 38. Ed. –
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
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Para tanto era preciso evocar pessoal qualificado para ensinar. A preocupação
com a falta de professores faz com que se recorra as mais variadas formas de
recrutamento de pessoal:
Convocamos normalistas diplomadas para as vagas abertas. Chamamos até
pelo rádio as candidatas. E, à sua falta, contratávamos estudantes da Escola
Normal, em vias de se tornarem professoras diplomadas, ou moças com
cursos técnicos, cientifico, clássico ou ginasial (Ibid. p. 43).
Stênio Lopes (1964) resalta que geralmente essas professoras, que ensinavam ao
ensino primário, eram muito mal pagas. Os baixos salários pagos a quem fosse ensinar
nas escolas primárias, de Campina Grande, afastavam os homens da sala de aula. “O
baixo custo mensal por aluno no ensino primário é resultado dos vencimentos pouco
compensadores que a prefeitura paga ao professorado” (LOPES, 1964, p. 16). E ele
ainda lembra que:
Apesar de contar a Secretária de Educação e Cultura com metade do
funcionalismo municipal (incluindo os contratados e os extranumerários), a
despesa de pessoal da secretaria correspondia apenas a cerca de um quarto do
total. Isto mostra, com uma evidência aterradora, os baixos índices da
585
Brasil, Elson da Silva Pereira. Polindo espíritos, formando professoras: a feminização do
magistério em Campina Grande-PB (1929-1932), In: XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA,
2013, Natal-RN. Anais eletrônicos: Trabalhos Apresentados nas Seções de Graduandos, 2013. P. 1-13.
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Isso fazia com o “pessoal mais qualificado” buscasse outros empregos, ficando o
ensino primário sem professores qualificados. Em 1964 menos da metade das
professoras primárias de Campina Grande eram normalistas diplomadas. Na zona rural a
situação era ainda mais grave, “Encontramos na Prefeitura professoras rurais
praticamente sem nenhuma habilitação para a tarefa de ensinar nem de realizar a
alfabetização das crianças” (Ibid. p. 17).
Apesar da baixa remuneração, encontrei nos quadros docentes das escolas e
Grupos Escolares uma parcela considerável de moças e senhoras com
satisfatórias disposições para o trabalho escolar. Para a satisfação dessas
professoras e regentes de classe e auxiliares de ensino que tive o prazer de
conhecer durante dez meses, confesso que encontrei entre elas professoras
comovedoramente dedicadas ao seu mister, dóceis a inspiração de novas
diretrizes, disciplinadas, dotadoras de grande espírito de cooperação, leais e
amigas capazes de, se bem orientadas e estimuladas realizarem um serviço
inestimável na educação as crianças campinenses (Ibid. p. 47).
Consideração
Tanto o texto de Stênio Lopes, como o Resumo Histórico e Estatístico de
Campina Grande podem gerar histórias das mais fascinantes, mas por hora buscamos
pensar como esses discursos relatarem e criaram uma discursividade acerca da educação
em Campina Grande. Em meio a um cenário de resignificação da Campina comercial
para a Campina Industrial, a educação e a produção de saber vão ser usada como item
de sedução de industriários do Brasil. Era preciso também intensificar uma educação
que formasse técnicos e trabalhadores para essas indústrias. Para tanto era preciso o
esforço de alguns sujeitos, no caso as mulheres que desejassem ir para a sala de aula,
essas deviam ensinar as primeiras letras aos seus alunos e se desprender de si em nome
de uma causa maior, mostrar, dizer ao “Brasil que Campina Grande é Centenária”.
Bibliografia
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Este texto tem como objetivo discutir o relato memorialístico sobre as práticas
educativas que fizeram parte da formação intelectual de Gilberto Amado, importante
intelectual que atuou como político e literato em meados do século XX e escreveu cinco
livros de memórias. O primeiro destes livros: História da minha infância (1954) narra a
passagem de sua infância nas cidades de Estância, Itaporanga e Aracaju, todas
localizadas no estado de Sergipe. A discussão aqui proposta tem o intuito de perceber
como esta narrativa corrobora com o objetivo maior de Gilberto Amado que é o de
construir sua imagem enquanto intelectual formado sobre a os auspícios da razão, bem
como lançar um olhar sobre as condições de escolaridade no Sergipe e no Brasil de fins
do século XIX e início do XX.
De acordo com Amado, o aprendizado das primeiras letras deu-se pelo auxílio da
mãe Ana. Era comum, no século XIX, a educação de meninos e meninas ser feita por
mestres particulares, também chamados de preceptores ou até mesmo pela mãe, caso
estas tivessem algum aprendizado das letras, como parecia ser a mãe de Amado. A
educação doméstica, até certa idade, era reconhecida como modalidade mais adequada
escola de Sá Limpa. Personagem que entra nas memórias do autor como um dos seres
fantásticos que povoavam sua imaginação infantil, “como uma das visagens que o
crepusculavam nos olhos na primeira sonolência noturna” (AMADO, 1954 p. 85).
Sá Limpa era a professora particular e se diferenciava, segundo Amado, de Maria
Cândida, professora pública, magra, sempre de enxaqueca com rubores súbitos, moça
velha de peito murcho. Sá limpa era diferente, era professora ilustrada e puxava pelos
meninos (AMADO, 1954 p. 80).
Mesmo sendo professora ilustrada e particular, Amado destaca em suas
memórias que a escola de Sá Limpa situava-se na rua principal, onde corria um rego por
onde passava a enxurrada da cachoeira. Amado relata com detalhes a insalubridade que
cercava a escola. A porta da escola sobre dois batentes dava logo para a lama, na qual os
meninos se deliciavam metendo os pés. Poucos eram os que usavam sapatos, a maioria
disenteria e a ameba por ali se misturavam. Outros meninos iam para a escola com
professora Sá Limpa os cobria com um saco velho por detrás de uma porta. No fim da
aula, êles voltavam, suando e com um ar de quem sai da escuridão, piscando os olhos.
A palmatória ainda agredia as mãos dos moleques que não decoravam a tabuada
e em alguns o líquido chegava a escorrer pelas pernas (AMADO, 1954 p. 85-88). Como
se percebe, a escola onde Amado começou seus estudos não correspondia aos padrões
Sergipe na primeira década do século XX, basta destacar que, nas vésperas da
os olhos nus das crianças que sentavam em tábuas ao rés do chão, onde não havia nem
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mesa para os professores, nem tampouco livros para os alunos estudarem. Entre os anos
de 1889 e 1910, quatorze atos tentaram organizar a instrução primária no estado. Estes
(OLIVEIRA, 2004, p. 75 -79). Pelos relatos de Amado, podemos inferir que mesmo
saber pareciam não se diferenciar tanto das demais escolas públicas do estado do
Sergipe.
era filho do coronel Melk, dono da loja mais famosa da cidade, chefe político, homem
que trouxe o teatro para Itaporanga. Amado já aqui constrói sua identidade enquanto
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alguém que em muito se distinguia de seus colegas de escola. Talvez por isso,
observamos a quase ausência de narrativa acerca de sua própria passagem pela Escola
de Sá Limpa. O que fica são as imagens impactantes dos outros. É como se Amado não
fizesse parte daquele mundo, por isso a escrita de suas práticas escolares relaciona-se
aos diversos outros que dão dizibilidade e visibilidade para que o autor se construa
como aquele que era diferente de todos. A narrativa de Amado obedece a um desejo do
autor de se construir como um corpo que, desde criança, estava predestinado ao saber.
lhe causa estranheza. Ele até tinha vontade de provar o gosto da carne de tanajura assada
que muitos dos outros meninos comiam, mas tinha medo (AMADO, 1954, p. 91).
Neste sentido, podemos dizer que o corpo de Amado não atenta apenas para si,
mas para o espaço e as demais pessoas que convivem com ele. Segundo Costa (1999), o
ideal do indivíduo polido foi tema perseguido pela elite política e letrada, não só na
primeira República, como também se estendeu para meados do século XX. No intuito
de construir sua imagem como intelectual saudável, Amado persegue e destaca, desde
sua narrativa de infância, os outros dos quais ele se diferenciava, aqueles corpos sujos e
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ignorantes do qual ele membro da elite de Itaporanga se distinguia. E isto não nos causa
tanto estranhamento se levarmos em conta o fato de que quando Amado escreve suas
memórias ele já é um homem maduro, político e letrado que atuou na construção dos
ideais de um país moderno que para ser moderno tinha que ser educado e higienizado,
narrativa que o edifique como indivíduo, que desde a infância, estava predestinado a ser
primeira República, significa ser um corpo saudável não só fisicamente como também
intelectualmente.
mesmo. A entrada para o colégio interno institui outro momento de ruptura na vida
daquele autor. Em Itaporanga, Amado diz ser parte “de um mundo, de um conjunto, pai
e mãe, rio e mar, meninos, cavalos; era parcela de uma soma... Já em Aracaju
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espaço vital em blocos de estrutura diferente” (AMADO, 1954, p. 25). Neste momento
de ida para o colégio em Aracaju, Amado parece ter a infância castrada e sua identidade
esfacelada por um mundo de prisão que o fez se reconhecer diferente de tudo e até
O colégio ia-me por face a face com uma realidade diferente. Aí não se tratava
de fruta fundindo-se no paladar; mas de caroço de mastigação difícil exigindo
dente duro. Embalde procurar iludir a memória chamando-a a deter-se nalguma
refração agradável. Tudo, ao contrário, se embacia numa opacidade fechada.
Colégio interno em Aracaju, Colégio Oliveira, único aliás do Estado, tinha de
internato, no sentido normal do termo, apenas o nome. Era uma casa chata de
muitas janelas, junto do quartel, numa esquina no fim da rua da Frente, no
caminho da Fundação. Na calçada, debaixo de uma enorme barriguda e um
tamarindeiro que ensombrava, alunos externos e internos fervilhavam soltos com
as môscas e mosquitos, em tôrno dos vendedores de frutas e dos tabuleiros de
doces. A recordação não se associa a lembrança de estudo, meninos de livros nas
mãos, cabeças pendidas sôbre em mesa de aula (AMADO, 1954, p. 232-233).
de vida, onde o menino se tornara homem por entrar em contato como o lado perverso
das pessoas e até mesmo com o seu e não como um local de aprendizado. Dessa forma,
o autor começa a delinear sua imagem enquanto autodidata. Desde criança, o autor
parece não dever nada de sua formação às instituições que freqüentava e sim ao
o autor enfatiza:
Os estudantes brasileiros que querem aprender (não sei se hoje é melhor) são
verdadeiros heróis do autodidatismo. As definições sumárias, legadas a escola e
a nomes de autores não são cavadas a fundo pelo professor ao lado do aluno, em
seminários ou em sabatinas, na apuração do sentido dos textos e na verificação
da sua extensão e alcance dentro dos sistemas, teorias e doutrinas e entre estas e
aquêles (sic). Na ausência de métodos universitários de métodos de estudo,
serviu-me, além do desejo sincero de aprender o gôsto, que herdei não sei de que
antepassado, de não dissimular comigo mesmo, de não me contentar em pensar
que sei sem estar certo do que sei até onde seja possível (AMADO, 1958, p. 33).
com que as lembranças de Amado remetam a uma infância castrada que fez com que ele
debutasse de forma dolorida no mundo adulto. Uma experiência crucial, nesse processo,
foi quando Gilberto, impelido pelo chefe dos meninos, diz ter sido obrigado a dar uma
largando a corda em Conradinho que quis passar sem permissão. “O menino abaixou-se,
1954, p. 232). O Colégio não tanto pelo nível de instrução que passou a Amado, mas
sim por colocar nosso autor com a face cruel da vida teria debutado o menino Gilberto
no mundo adulto.
fragilidade. Foi com um ato cruel, segundo Amado influenciado por seu colega, que o
menino Gilberto entra no mundo adulto. O colégio interno de Aracaju entra para as
simbolizar o distanciamento daquele menino de um mundo que lhe pertencia como era
aquele mundo de Itaporanga, também põe Amado em contato com a face má das
pessoas e a sua própria. O colégio rompe, portanto, com o mundo idílico da infância em
meio do bucho que metiam o pé na lama. O colégio interno que, segundo Galvão, era
tido como casa de correção sanatório, prisão que servia para amansar, endireitar,
letras, frente à face selvagem daquele autor, despontando-o para o seu reconhecimento
enquanto adulto.
A entrada de Amado no mundo adulto não obedece a uma linha evolutiva que
presuma uma linearidade temporal. Não está, portanto, na idade cronológica daquele
homem, “mas nas subjetividades constituídas, nas relações, nas lembranças, nas
narrativas, nos modos de ser pessoa que aprendemos como possíveis.” (AQUINO;
REGO; OLIVEIRA, 2006, p. 269-286). Apesar de seu conjunto memorialístico ter o
objetivo de dar um sentido em sua vida, são eleitos pelo autor acontecimentos que
demarcam pontos de viragem em suas experiências. Neste caso, a saída do colégio
devido a um ato de crueldade para com seu colega. Amado vivencia um corte na sua
vida. Corte que o desponta para um novo mundo, para a vivência e construção de outras
imagens de si.
REFERÊNCIAS
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AQUINO, Júlio Gropa, OLIVEIRA, Marta Kohl de; REGO, Teresa Cristina. Narrativas
autobiográficas e constituição de subjetividades. In: SOUZA, Elizeu Clementino (Org.).
Autobiografias, histórias de vida e formação, pesquisa e ensino. Porto Alegre,
Salvador, 2006, p. 271-286.
COSTA, Jurandir Freyre. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1999, 282p.
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GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. “A palmatória era a sua vara de condão: práticas
escolares na Paraíba (1890-1920). In: FILHO, Luciano Mendes de Faria (Org.). Modos
de Ler e formas de escrever. Belo Horizonte: Autêntica, 1988, p. 117-140.
dos filhos dos libertos. Contava o Estado com estabelecimentos próprios para amparar
aos ingênuos, educando-os e dirigindo-os a atividades úteis a si próprios e à sociedade?
Observamos que os estabelecimentos que constituíam a rede de assistência
caritativo-filantrópica à infância em Pernambuco eram incapazes de cumprir com o
objetivo central que as norteavam: sustentar e educar os infantes que ali adentravam,
fazendo-os sujeitos úteis a si e ao Estado. Seja no Colégio dos Órfãos, na Colônia
Orfanológica Isabel, na Escola de Aprendizes Marinheiros e mesmo no trabalho junto às
fábricas, podemos perceber as frequentes reclamações diante do insatisfatório estudo
que meninos e meninas recebiamiv. Inaptos ao trabalho, incapazes de se tornar sujeitos
úteis a si e à sociedade, em sua maioria, acabavam se transformando em novos
problemas sociais quando atingissem a idade adulta.
Além disso, pontuamos que nem sempre a própria manutenção desses meninos e
meninas foi efetivada com diligência. Não era raro que crianças padecessem por conta
de ausência de medicamentos, higiene e alimentação de má qualidade no interior desses
edifícios.
O mecanismo da tutela também não tinha a melhor reputação como um
dispositivo eficaz no combate à infância desvalida. Assistimos a inúmeras críticas
diante dos maus tratos que garotas e garotos sofriam de seus tutores, além da exploração
do trabalho e da ausência de educação, que apesar de imposta pelos juízes, nem sempre
se fez presente.
Andrade Figueira não estava errado ao suspeitar das capacidades da nação em
abrigar esse demasiado número de ingênuos que se faziam “livres” em 13 de Maio de
1888. A soma de seiscentas mil crianças, filhas de libertos, proposta por Figueira, pode
até parecer exorbitante, mas não era. Fraga (2006)v explica que a província da Bahia,
uma das que mais contava com a força de trabalho forçada no Nordeste, na data da
abolição, contava com oitenta mil escravizados, incluindo adultos e crianças. O Jornal
do Recife de 7 de junho de 1888 apresentava dados mais específicos sobre o número
desses infantes na província de Pernambuco. No quadro “Estatísticas de Filhos Livres
de Mulheres Escravas”, podia-se analisar:
também por uma “sutil e poderosa memória social fortemente enraizada no imaginário
patriarcal e escravista” (CUNHA e GOMES, 2007, p.10). Percebe-se que a modificação
dos termos, nesse contexto, operou para, de um lado, anunciar os novos direitos àqueles
que juridicamente não podiam mais ser administrados por leis cuja pauta versasse sobre
escravos e ingênuos, e, por outro, para frisar que, mesmo livres, esses indivíduos não
deveriam ser compreendidos como quaisquer outros cidadãos de bem.
Os ingênuos que aparecem na documentação do pós-abolição não são os mesmos
que aqueles encontrados entre 1871 e o Treze de Maio. As contribuições de Koselleckxii
no que tocam a transformação da semântica dos conceitos são férteis para nos fazer
compreender tal alteração. O fato de uma palavra não mudar de grafia não representa a
cristalização de um conjunto de interpretações que ela aponte. Os termos tem sua
própria história, variando de acordo com o embate de forças nos jogos de poder que se
estabelecem.
Se os ingênuos da Lei do Ventre Livrexiii significavam a certeza que a escravidão
iria se extinguir, apresentando a denominação um efeito de positiva emancipação, os
filhos dos “treze de maio” assim denominados (e que paulatinamente iam se
transformando em “menores”) carregavam a certeza que a abolição não significaria
acesso à “liberdade” incondicional e a ruptura a um pretérito marcado de violências. Ao
ingênuo do pós-abolição fincava-se a herança da senzala e o perigo social que seu
corpo, vestido da “imoralidade”, insinuava. Não apenas isso, o termo significava
também o apontamento da liberdade dessa criança, não podendo ela ser mais tratada sob
uma legislação escravista.
A circular emitida pelo presidente da província em 25 de junho de 1888, disposta
a anunciar o modo como deveriam ser tratados os filhos dos “treze de maio” a todos os
Juízos Municipais e de Órfãos de Pernambuco nos auxilia a perceber como essa criança,
apesar de ainda percebida como um legado do cativeiro, deveria ser tratada
juridicamente como qualquer outro infante:
O documento continua:
Podemos perceber que a justificativa utilizada pelo senhor Júlio Manuel da Cunha
fundamentava-se unicamente no argumento que Justiça, liberta e mãe da garota, não
apresentava condições de manter a menor, tampouco educá-la. A questão do pátrio
poderxix e da pobreza de mães solteiras foram elementos que impulsionaram a
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necessidade de se tutelar uma criança. De tal forma, podia ser compreendida como órfã,
devido o falecimento do pai, e ainda necessitada, por não contar a progenitora com
condições materiais para o seu sustento e educação. No pós-abolição, é possível pontuar
que essas condições criaram subsídios para retirar a tutela de mães libertas, por serem
essas frequentemente compreendidas como mulheres pobres e de índole perigosa e
imoral, o que “justificava” a inaptidão de criar os próprios filhos. Como nos lembra
Papali (2003), a pobreza material das libertas contribuiu legalmente para a concessão de
tutorias após o Treze de Maio, sendo muitas ex-escravizadas encaradas como
“miseráveis” e, portanto, “incapazes” em amparar seus rebentos. Ora, foi exatamente
esse o argumento utilizado na petição. Bastava apontar que a menor era filha de uma ex-
cativa que logo ficava implícita a necessidade de tutoria.
O que marca a peculiaridade do documento, no entanto, é que o pedido de Júlio
Manuel da Cunha é indeferido pelo juiz de órfãos Eusébio Brandão. As palavras do
escrivão do Juízo Municipal e de Órfãos de Bonito apontam que a decisão do
magistrado se sustentava em dois argumentos: que a menina não era órfã e que o
suplicante não queria assinar a tutela da menor com o pagamento de uma soldada. Mais
intrigante ainda é o fato que em todo o processo não se fazer referência alguma à
paternidade da menor, o que deixa dúbio se ela efetivamente apresentava pai conhecido
e vivo, ou não. Neste sentido, mostra-se salutar relembrar que ilegitimidade da criança
negra, principalmente no que dizia respeito à privação de referências paternas
biológicas, era bastante recorrente. Em Salvador, por exemplo, após a Lei do Ventre
Livre, a taxa de ilegitimidade da população livre alcançava cerca de 62%, sendo esse
número extrapolado quando pensado acerca da situação dos escravizados e ingênuos
(MATTOSO, 1991).xx
De tal modo, a ausência de menção acerca da paternidade de Ignez, tanto na
petição de Júlio Manuel da Cunha quanto no indeferimento de Eusébio Brandão,
contribui para pensarmos na possibilidade que a mesma efetivamente não contava com
os auxílios de seu progenitor. Difícil pensar que em todo o processo referente à tutela da
menina deixa-se de se pontuar a existência do pai da menor quando este viesse a tecer
com ela alguma relação, uma vez que essa informação era decisiva no decorrer da
aprovação ou do indeferimento da petição de tutoria. O que justificaria, então, o
argumento do juiz que apontava que a garota não era órfã?
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REFERÊNCIAS
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cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio do Janeiro:
Editora FGV, 2007.
MATTOSSO, Kátia de Queirós. O filho da escrava. IN: DEL PRIORE, Mary. História
da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.
Notas
i
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. 3ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
ii
CARVALHO, José Pereira de. Primeiras linhas sobre o orocesso orphanológico: parte segunda. Rio
de Janeiro, RJ: B.L. Garnier – Livreiro – Editor, 1880.
iii
Diário de Pernambuco, 18 de maio de 1888, capa.
iv
Ver: BRAGA (2003).
v
FRAGA, Walter Filho. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-
1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
vi
Jornal do Recife, 7 de junho de 1888, capa.
vii
Como nos explica Rago (1985), a prevenção e a correção foram ideais de grande valia que sustentavam
o pensamento de recolhimento da criança. Os pequenos poderiam chegar à idade adulta ou não. Se
galgassem êxito, era perigoso que o estado tivesse que contar com indivíduos que na infância não
tivessem sido educados e disciplinados para se tornarem sujeitos úteis a si e à sociedade. A ideia era
evitar a maturação do infante em um indivíduo alheio à ordem e à disciplina, longe de atividades
benéficas a si e ao seu meio. A desocupação era nociva não apenas ao próprio indivíduo, mas a toda uma
estrutura a qual ele estava inserido.
viii
Códice Juízes Municipais e de Órfãos – 56, p.14. (APEJE).
ix
Diário de Pernambuco, capa, 29/05/1888.
x
PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em
Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.
xi
CUNHA, Olívia Maria Gomes da Cunha e GOMES, Flávio dos Santos. Quase-cidadão: histórias e
antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio do Janeiro: Editora FGV, 2007.
xii
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto Editora, 2006.
xiii
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
xiv
Códice Juízes Municipais e de Órfãos – 56, p. 219. (APEJE).
xv
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Graal,
2006.
xvi
Tutela: Prisciliano Antunes Correia. Comarca de Bonito, p. 68. (Memorial de Justiça de Pernambuco)
xvii
Idem, p.68.
xviii
Idem, p.69.
xix
Apesar da Legislação Orfanológica apontar que os filhos e filhas de mães solteiras deveriam ser
encarados como órfãos, essa questão estava imersa em dubiedade, uma vez que Carvalho (1880),
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sustentado nas Ordenações Filipinas, afirmava as benesses do amor maternal no cuidado dos filhos, o que
compensaria a “incapacidade” dessas mulheres.
xx
MATTOSSO, Kátia de Queirós. O filho da escrava. IN: DEL PRIORE, Mary. História da criança no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.
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RESUMO:
1. INTRODUÇÃO
Partindo dessa permissa, o presente artigo pretende analisar como foi produzida
a cultura escolar do colégio secundarista Estadual de Campina Grande, na cidade de
Campina Grande-PB, nas décadas de 1960-80, e discutir como o Regime Militar
interferiu nessa instituição de ensino, analisando, através dos relatos orais de memórias,
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Porém, após o golpe militar, a presença dos militares e juristas no colégio não
representará apenas uma necessidade de suprir a falta de professores formados em
licenciatura na cidade, ou a “generosidade” dessas figuras, consideradas intelectuais em
sua época, em reproduzir seus saberes para os jovens estudantes.
Os militares buscavam mais que manter a ordem dentro do espaço escolar, estes
pretendiam vigiar de perto os passos de todos os indivíduos e estabelecendo linhas de
comunicações entre os oficiais e a escola, reprimindo qualquer ação que fugisse da
ordem por eles estabelecida e disciplinando os sujeitos de forma que estes evitassem
cometer qualquer ato de desobediência com medo das represálias.
“Não! Eu não levo por esse lado não, a época militar não! Porque assim,
naquela época havia a censura né, de falar muito, informar o aluno, não
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chegava tanta informação, nera? Mas eu acho assim, são os valores, a família,
as relações familiares... A família põe muita responsabilidade em cima dos
professores, a família, as autoridades, não é?”
Para a entrevistada o comportamento dos alunos com relação aos professores,
não sofria influência da ditadura militar, tal comportamento se devia aos valores morais
e a educação familiar que os alunos nessa época respeitavam e mantinham. Porém, o
controle do Regime Militar agia sobre os alunos e professores, e também funcionários,
de forma psicossocial, através das múltiplas estratégias de controle.
Essas estratégias são representadas através da presença de autoridades e
auxiliares de disciplina, advertências e punições, arquitetura -proporcionando a
vigilância dos sujeitos presentes no espaço escolar- das aulas de educação física -
disciplinando os corpos- as aulas de artes, canto e teatro -educando as sensibilidades- e
os conteúdos ensinados em sala, exaltando os valores morais e religiosos, o respeito aos
superiores e o civismo - reproduzindo valores sociais e culturais, além das
representações políticas do Regime Militar.
Analisando as representações da entrevistada com relação ao comportamento
dos seus alunos e as estratégias de disciplina do colégio, observamos que estes
dispositivos de poder presentes no espaço escolar, agiam entre os sujeitos de forma que
estes não percebiam o seu funcionamento. A disciplina estava incutida nas práticas
cotidianas,
O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em
toda parte e sempre alerta, pois em principio não deixa nenhuma parte às
escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de
controlar; e absolutamente discreto, pois funciona permanentemente e em
grande parte em silêncio. (FOUCAULT, 2012, p. 170)
“É comum o termo “para o bem de todos” e, neste caso, o livro didático parte
da naturalização das leis e das arbitrariedades realizadas pelos que conduzem
o governo, a partir da família. Sugere que, assim como elas existem no lar,
existe também, como que espontaneamente no país. E é também neste
momento que o livro procura justificar os chamados casos especiais, em que
os próprios presidentes sancionavam novas leis, pois, assim como em uma
família os pais sobre o que é bom e ruim para os filhos, os “representantes do
povo” também podiam determinar as leis que consideravam necessárias para
o bem da nação”.xx (sic.)
Porque então, a professora Cleonicexx afirma que houve uma abertura nos
assuntos discutidos em sala de aula no período do regime militar, justamente na década
de 1970, conhecida como a década em que a ditadura atuou com maior repressão?
Neste relato a professora Cleonice nos conta sobre uma discussão envolvendo
uma aluna do colégio que poderia ter resultado em tragédia, se não fosse a intervenção
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Ao nos contar que o diretor costumava andar pela escola para ver o que
acontecia, por “comprometimento e cuidado”, Cleonice nos revela as estratégias do
diretor para está sempre atento ao que acontecia no interior da escola. O seu andar pela
escola era vigilante, com olhos atentos para detectar qualquer desvio, a sua presença já
estabelecia ordem e disciplina nos alunos e funcionários.
Sobre esse olhar atento dos diretores sobre os alunos, Foucault nos diz que,
Fernando (Badu)xx nos conta que sempre que um aluno ia ao banheiro, o auxiliar de
disciplina ficava a postos, esperando a sua saída para averiguar se o aluno quebrou ou
sujou alguma coisa no banheiro.
Aí nisso tudo bem né, eles iam resolver né? Era o major... Mas o negocio é que já foi
ele q tinha mandado fazer aquilo e veio pra ela pra, tirar ela da jogada sabe, ele tinha
muito medo dela, porque minha mãe era muito amiga de João Agripino xx, e João
Agripino era assim, você sabia, com a ditadura né, ai tinha conto cm general, com
tudo, ai se soubesse q ele tinha feito qualquer coisa, poderia ate tirar ele daqui. Aí
resultado, ele foi lá, mamãe chegou lá, ele tava dentro da sala da secre..da diretoria
com os alunos, ai mamãe bateu lá como quem fosse derrubar a porta, eu do lado, ai
disse ,” não no admito isso aqui não, de jeito nenhum. Tok tok”!! Só sei que, ele
parou. Pronto! Mas era desse jeito, era presença mesmo marcante!
O professor Fernando (Badu), através desse relato, nos conta muito mais que a
presença e a interferência da ditadura na rotina escolar, ele nos revela que, a perseguição
e a repressão da ditadura não eram contra todos os indivíduos. Alguns, por seu prestígio
e representação social, suas influências políticas, eram protegidos pela ditadura.
Houve outros casos envolvendo alunos e militares. Prisões de alunos,
documentos oficiais informando que determinado aluno estava proibido de matricular
em qualquer escola durante três anosxx, documentos pedindo a investigação de alunos.
Esses casos, assim como o fato narrado pelo entrevistado nos faz atentar para outro
detalhe: a ação dos militares resultava do comportamento dos alunos que provocavam a
“desordem”. Esta desordem representada pelas táticasxx dos alunos era uma forma
destes se oporem e resistirem aquele regime autoritário.
As táticas de resistência adotada pelos alunos representam o que Certeau nos diz
sobre as “maneiras de fazer” dos indivíduos. Essas táticas “constitui as mil práticas
pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção
sociocultural”. Os alunos do Colégio Estadual da Prata estavam inseridos em um
sistema de estratégias disciplinar da qual estes não estavam passivos a ela, “esses modos
de proceder e essas astúcias [...] compõem, no limite a rede de uma antidisciplina.”
[grifo meu] (CERTEAU. 2012, p. 41)
Professor Fernando (Badu) nos conta de outros casos em que estudantes foram
presos por se manifestarem contra o regime militar ou até mesmo expulsos por
desobedecer a um professor. Essas táticas de resistência não se davam apenas contra um
poder maior, como o da Ditadura Militar, mas dentro de um pequeno núcleo como uma
escola, a partir das relações e das práticas cotidianas que eram produzidas, era possível
criar formas de burlar a ordem, dentro da sua dinâmica e do espaço que era a escolar.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CAMPOS, Cristiane; ZANLORENZI, Claudia Maria Petchak. A tendência tecnicista e
o ensino de arte. Link:
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario8/_files/HGqmR
Dqk.pdf , acesso em 24 de março de 2014.
FARIAS FILHO, et al. A cultura escolar como categoria de analise e como campo de
investigação na historia da educação brasileira. Educação e pesquisa, São Paulo, v. 30,
n. 1, p. 139-159. 2004.
REZENDE, Maria José de. NUNES, Nataly. O ensino da Educação Moral e Cívica
durante a ditadura militar. Link: http://www.uel.br/grupo-
pesquisa/gepal/terceirosimposio/natalynunes.pdf, acesso em 24 de março de 2014.
Resumo
Este trabalho tem como objeto a Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968,
conhecida popularmente como “lei do boi” no âmbito da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ). A lei criava um mecanismo de acesso diferenciado às
instituições de ensino médio e superior, mantidas pela União, nos cursos de
agronomia e medicina veterinária, a candidatos que comprovassem relação com a
atividade agrícola, fosse através da prática ou da posse ou propriedade de áreas
rurais. O benefício se estendia, nos casos do ensino superior, a concluintes do ensino
médio em escolas agrícolas, fortalecendo uma relação de continuidade com o
conhecimento agrícola. Foi comum durante sua vigência, estendida até o ano de
1985, a idéia de que a “lei do boi” teria beneficiado apenas filhos de grandes
proprietários de terras, de forma que buscarei traçar um perfil socioeconômico dos
beneficiados para que se possa, efetivamente, determinar quem foram os
beneficiários da lei no interior da UFRRJ.
abertura política e intensificação das lutas sociais no campo, influenciou esta nova
dinâmica em relação aos candidatos que fizeram uso da lei? Para uma análise
preliminar em relação ao perfil dos candidatos que fizeram uso da lei, apresentando
uma documentação específica, foram pesquisadas as pastas dos alunos formandos do
curso de Agronomia nos anos de 1984 e 1985. Foi analisada a documentação de 112
alunos do ano de 1984, 116 do ano de 1985 e 121 de 1986. .
Quanto aos concluintes do curso de Agronomia do ano de 1984, 67 alunos
foram efetivamente beneficiados pela lei, apresentando documentação diversa, como
aqueles emitidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), xx desde contratos de arrendamento a certidões de herança. Quanto ao ano
de 1985, mantida a diversidade documental, 78 alunos foram beneficiados pela lei,
enquanto para 1986, constatou-se 47 beneficiados. A documentação apresentada
pelos beneficiados pesquisados, marcada por variedade, consta na tabela 1.1.
Quanto à relação entre candidatos e propriedade rural, dois pontos devem ser
destacados e analisados. O primeiro consiste em identificar até que ponto a
documentação apresentada pelos alunos constituía uma relação de fato entre os
candidatos e as respectivas propriedades. O segundo ponto consiste em, através de
uma análise objetiva da documentação, visualizar quem eram os pequenos, médios e
grandes proprietários que se utilizaram da “lei do boi”.
Este ponto terá como objeto exclusivamente os alunos que fizeram uso da lei
através da vinculação com a propriedade rural, excluindo-se os candidatos
provenientes do ensino agrícola. Entende-se que a documentação que vinculava os
candidatos às propriedades rurais é muito mais complexa e problemática, referindo-
se aos dois pontos acima citados: sua veracidade e seu aspecto socioeconômico.
É importante destacar o que se entende por esta relação entre candidato e
propriedade rural. A lei previa uma relação abrangente, materializada tanto no plano
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Tabela 1.2: Extensão das propriedades apresentadas para acesso à UFRRJ pela
“lei do boi”
Tamanho (em hectares) Número de propriedades
Até 10 8
De 10,1 a 50 27
De 50,1 a 100 25
De 100,1 a 500 30
De 500,1 a 1.000 8
Acima de 1.000 14
Sem descrição quanto à extensão 20
TOTAL 132
FONTE: Formandos agronomia: caixas 07 a/h, 08 j/m e 09 n/z de 1984; caixas 07 a/f, 08 f/l, 09 m/r e
10 r/z de 1985 e caixas 07 a/f, 08 g/l, 09 m/r e 10s/z de 1986.
provenientes da região sudeste, com ênfase para o estado do Rio de Janeiro. Do total
de propriedades pesquisadas, 75% concentram-se na região sudeste, das quais 36%
no estado do Rio de janeiro, 18% em Minas Gerais, 17% em São Paulo e 3% no
Espírito Santo. Fora da região sudeste, a região do país de maior procedência quanto
às propriedades rurais utilizadas como instrumento de acesso à UFRRJ pela “lei do
boi” é a região nordeste, como 9% do total. A região, assim como o estado de cada
propriedade analisada encontra-se na tabela 1.3.
Região % Estado un %
Rio de Janeiro 48 36
Minas Gerais 24 18
Sudeste 75
São Paulo 23 7
Espírito Santo 4 3
Bahia 9 7
Nordeste 9 Pernambuco 2 1
Sergipe 1 1
Paraná 9 7
Sul 7,5
Santa Catarina 1 1
Amazonas 1 1
Norte 1,5
Rondônia 1 1
Goiás 5 4
Centro-oeste 7
Mato Grosso do 4 3
Sul
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O que se pode concluir até o momento, é que houve dois períodos distintos
da implementação da “lei do boi” pela UFRRJ. O primeiro foi marcado pela grande
quantidade de beneficiados provenientes do ensino agrícola, cuja documentação,
pautada nas determinações da lei, não fornece qualquer informação acerca da
relação entre candidato e propriedade rural ou um vínculo com a agricultura, mas
uma relação prévia com o ensino agrícola. No segundo momento, a relação entre os
beneficiados pela “lei do boi” vai além da relação com o ensino agrícola, e torna-se
possível identificar uma relação jurídica entre candidatos e propriedade privada, seja
através da posse ou propriedade, ou através de relações contratuais, concluindo-se
pela utilização da lei, em grande parte, por alunos que mantinham alguma relação
com latifundiários.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
IANNI, Octávio. In. SANTOS, José Vicente Tavares dos (org). Revoluções
camponesas na América Latina. São Paulo: Ícone e Unicamp, 1985.
MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio
de Janeiro: FASE, 1989.