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DIÁLOGO III

SOBRE A HISTÓRIA COMO EXPERIÊNCIA

Onde se fala do tempo e da História e onde o escritor reclama, para a memória histórica,
gente anónima que povoa o passado e que nele deixou ténues marcas; e também onde a
ficção desafia a História como discurso que a reinventa e compensa a sua parcialidade.
E ainda: onde se refuta o fim da História, como mistificação.

Carlos Reis - Há um conjunto de questões a que Você já respondeu muitas vezes, mas
parece-me que continuam a fazer sentido, do ponto de vista da harmonia global desta
indagação: são as questões que dizem respeito à sua relação com a História e com o
tempo, que eu começarei por abordar através de um texto seu, para mim fundamental,
texto que se intitula “História e Ficção” 1 . Entre as coisas, depreendo desse texto o
seguindo sentido: a História é parcial. Por que razão, para si, a História é parcial?

José Saramago – A História é parcial e é parcelar. É parcelar, porque conta uma parte
apenas daquilo que aconteceu. Há que, evidentemente, relacionar História, tempo,
passado...

CR – Que relação estabelece Você entre História, tempo e passado?

JS – A minha relação com o tempo é, antes de mais, muito particular (ou não tão
articular como isso...), uma relação à qual eu me mantive muito agarrado,
provavelmente sem nenhuma objectividade, porque eu, sempre tão racionalizante,
também me governo muito pela intuição. Tentando exprimi-lo de uma maneira gráfica:
entendo o tempo como uma grande tela, uma tela imensa, onde os acontecimentos se
projectam todos, desde os primeiros até aos de agora mesmo. Nessa tela, tudo está ao
lado de tudo, numa espécie de caos, como se o tempo fosse comprimido e além de
comprimido espalmado, sobre essa superfície; e como se os acontecimentos, os factos,
as pessoas, tudo isso aparecesse ali não diacronicamente arrumado, mas numa outra
"arrumação caótica", na qual depois seria preciso encontrar um sentido. Isto tem muito

                                                            
1
 Publicado em Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano X, nº 400. 
que ver com uma ideia (consequência imediata daquela, provavelmente) que é a da não
existência do presente. Quer dizer: a única coisa que efectivamente há é passado e o
presente não existe, é qualquer coisa que se joga continuamente, que não pode ser
captado, apreendido, que não pode ser detido no seu curso; e portanto, uma vez que não
pode ser detido, em momento nenhum eu posso intersectá-lo. Foi esta ideia do tempo
como uma tela gigantesca, onde está tudo projectado (o que a História conta e o que a
História não conta), foi isso que meteu na minha cabeça uma espécie de vertigem, de
necessidade de captação daquele todo; e a par dessa, uma outra necessidade que é a de
compreender como se ligam as coisas todas que não têm (ou que parecem não ter) nada
que ver ali: Auschwitz ao lado de Homero, por exemplo; ou o homem de Néanderthal
ao lado da capela Sistina. Foi isso que me levou a esse sentido da História, que para
mim era confuso, mas que depois vim a entender, em termos mais científicos, a partir
do momento em que descobri uns quantos autores (os homens dos Annales, os da
Nouvelle Histoire, como o Georges Duby ou o Jacques Le Goff), cujo olhar histórico ia
por esse mesmo caminho.

CR – Voltando ao carácter parcelar e parcial da História...

JS – A História que se escreve e que depois vamos ler, aquela em que vamos aprender
aquilo que aconteceu, tem necessariamente que ser parcelar, porque não pode narrar
tudo, não pode explicar tudo, não pode falar de toda a gente; mas ela é parcial no outro
sentido, em que sempre se apresentou como uma espécie de “lição”, aquilo a que
chamávamos a História Pátria. A questão é que a mim não me preocupa tanto que ela
seja parcial, quer dizer, orientada e ideológica, porque isso eu posso mais ou menos
verificar, perceber e encontrar os antídotos para essas visões mais ou menos deformadas
daquilo que aconteceu ou da sua interpretação. Talvez a mim me preocupe muito mais o
facto de a História ser parcelar. Voltando atrás: quando eu falei de Auschwitz e do
homem de Néanderthal ao lado da Capela Sistina faltou uma quantidade de coisas:
faltou o ajudante de Miguel Ângelo que estava a moer as tintas; e no caso de Auschwitz,
faltou o honrado (imaginemos que seria honrado...) pedreiro que construiu os muros do
campo de concentração, se é que os tinha. É que a este mundo vêm milhões de pessoas
que se foram embora e não deixaram rasto nem sinal... No Manual de Pintura e
Caligrafia há uma passagem em que se fala da biografia e em que se diz que tudo é
biografia e que cada gesto nosso faz parte de uma biografia; julgo até que se diz num
determinado momento que todos devíamos escrever as nossas biografias e quando elas
não coubessem na terra podíamos transportá-las para a lua. Este sentimento trágico do
desperdício humano (para parafrasear o título célebre de Miguel de Unamuno) vê-se
todos os dias, mas não pensamos nisso. Com que facilidade aparece nas notícias da
televisão uma pessoa morta, no Ruanda ou onde quer que seja, e ninguém pára a
perguntar: “Aquela pessoa está morta, acabou-se-lhe tudo. Que diabo de vida foi
aquela? Que vida podia ter sido aquela se não fosse um tiro ou um acidente?”

CR – Tem isso que ver com o facto de as personagens dos seus romances serem
normalmente pessoas comuns?

JS – É esse sentido da pessoa comum e corrente, aquela que passa e que ninguém quer
saber quem é, que não interessa nada, que aparentemente nunca fez nada que valesse a
pena registar, é a isso que eu chamo as vidas desperdiçadas. Talvez eu não tivesse uma
consciência muito aguda disto, se não visse de que dependem as vidas das pessoas, de
coisas que lhes são totalmente alheias, em que elas não foram parte. E não sendo
nenhuma pessoa totalmente livre para dispor da sua vida como entende e sabendo nós
que a nossa vida é também orientada, determinada e empurrada pelas outras pessoas
sem disso nos darmos conta muitas vezes, eu limito-me a dizer esta coisa (e é de mim
que falo) e que é o seguinte: a minha família toda era formada por camponeses, sem-
terra, gente pobre, analfabetos todos ou quase todos; se o meu pai não tem vindo para
Lisboa, depois de fazer a guerra de 14-18, pensando que tinha que largar a enxada e ir
tentar viver de outra maneira na cidade, não existiria o Memorial do Convento, não
existiria o Ensaiosobre a Cegueira, não existiria nada disso. Pode dizer-se: e que
importância isso teria? O mundo seria exactamente igual ao que é se não existisse nada
disso. De acordo; inteiramente de acordo. Aliás eu costumo dizer que se o Goethe não
tivesse nascido, o mundo seria exactamente aquilo que é. O que acontece é isto: é que o
tal filhito desse senhor que foi guarda da Polícia de Segurança Pública e que viveu em
condições complicadíssimas, difíceis e tudo mais, chegou a ser um senhor escritor,
conhecido, traduzido em trinta línguas, de quem se fala, que por sua vez pode falar aqui
e acolá; é essa hipótese falhada a uma quantidade inumerável de pessoas que de certa
forma me indigna, porque as pessoas não têm mais do que uma vida. E as vidas quase
todas, de quase toda a gente, são vidas que falharam.
CR - Você disse: “A História é parcial e é parcelar”. Poderia isto ser uma epígrafe para
o Memorial do Convento? Está ou não esta ideia subjacente ao Memorial do Convento?

JS - Está, está! É essa a minha preocupação com as tais vidas que não deixaram sinal,
que neste caso foram as vidas que puseram de pé o Convento de Mafra ou as pirâmides
do Egipto ou o Aqueduto das Águas Livres. E não são só esses que fizeram os grandes
monumentos e os tornaram visíveis: também há o trabalho comum das pessoas que, pela
sua própria natureza, não deixaram sinais; porque pelo menos os carpinteiros e os
pedreiros de Mafra deixaram materialmente algo. Mas há outros que não: os
encarregados das obras que tomavam nota do número de telhas que entravam e das que
eram usadas, esses provavelmente não deixaram nada, quando muito terão deixado a sua
caligrafia em documentos que andam por aí. Ora, é essa necessidade de pôr no primeiro
plano aqueles que aparentemente nada fizeram para lá chegar, que me leva (que me
levou), por exemplo, a essa enumeração de nomes de operários no Memorial do
Convento, que vai de A a Z 2 , como se cada um deles representasse todos os nomes
começados por aquela letra (e cá estou eu a falar de Todos os Nomes, que é o título do
romance que agora estou a escrever...). Ou seja: as pessoas todas que pudessem deixar
as marcas. Porque a verdade é esta: quando encontramos um sinal da passagem dos
primeiros seres humanos nesta terra, ficamos encantados. Entramos nas grutas de
Altamira, por exemplo, e ficamos encantados; e não nos apercebemos de que, depois
das grutas de Altamira ou de Lascaux e até hoje, passaram e continuam a passar muitos
milhões de pessoas, que só tiveram o azar de não saber desenhar ou pintar, para deixar
numa caverna qualquer um bisonte ou qualquer coisa no género.

CR - A ficção que Você faz vem a ser, de alguma forma, uma correcção ou uma revisão
da História?

JS - Creio que a História não pode ser corrigida, que não pode ser reescrita
infinitamente, até porque cada reescrita supostamente acrescenta algo que não se sabia
ou que se sabia, mas que se está a interpretar de uma maneira distinta. Talvez eu
pensasse mais numa espécie de reivindicação ou o acto de chamar à presença...

                                                            
2
Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 1982, p. 242
CR - O termo mais correcto, até etimologicamente, talvez fosse reclamar.

JS - Exactamente: reclamar a presença. Nestes meus Cadernos de Lanzarote, pelo


menos uma vez directamente eu falo do meu avô Jerónimo, a propósito de um irmão
que tive. Foi essa história que me levou a este romance que estou a escrever e que é
esta: eu tinha um irmão mais velho dois anos, que morreu de broncopneumonia quatro
ou cinco meses depois de os meus pais irem para Lisboa, em 1924. Quando comecei a
trabalhar no Livro das Tentações, que no fundo é a história da minha vida até à altura
dos 14 anos ou coisa que o valha, é claro que encontrei esse irmão. E tinha que falar
dele ou pelo menos tinha que dizer que ele tinha existido, embora eu tivesse dois anos e
meio, quando ele morreu; acontece que eu peço uma cópia do registo de nascimento do
meu irmão e o que é que vejo? Vejo que estava lá tudo, o nome do pai, o da mãe, o
nome dos avós, os padrinhos, mas não o registo da morte. A morte não tinha sido
registada, quer dizer, o meu irmão continuava oficialmente vivo. Comunico com o
Instituto Câmara Pestana onde, segundo a minha mãe e o meu pai, o meu irmão tinha
morrido e respondem-me de lá que não constava nem o registo da admissão, nem o da
morte. E continuo à procura deste irmão. Ao longo deste ano, andei numa investigação,
para saber onde estava este meu irmão. E porque pus a trabalhar a Câmara Municipal de
Lisboa, vim a averiguar que efectivamente ele morreu no Instituto Câmara Pestana
(cujos arquivos falharam desta vez...) no dia 22 de Dezembro de 1924 e foi enterrado
dois dias depois, no cemitério de Benfica. Nestes Cadernos fala-se muito de alguém que
morreu, de um miúdo que morreu com 4 anos e que não tem importância nenhuma na
História. Teve-a, no entanto, para que esta busca toda me levasse a imaginar dentro da
minha cabeça uma ficção romanesca, que não é a história dele, evidentemente; o que me
levou a falar também do meu próprio avô, que 27 anos depois foi sepultado no mesmo
cemitério. E chego a esta conclusão: que para contar a história desta gente é que eu
também vivo. Quer dizer: vivo também para contar a história destes dois e de outros
quaisquer de que tenha que vir a falar um dia. E isto liga-se, como se vê, a essa
preocupação minha da tal gente que povoa o passado, que não deixou nem romances,
nem Capelas Sistinas e de quem não se fala.

CR - Até agora estivemos a falar da ficção como eventual correcção ou compensação da


História, mas há uma outra tendência da sua obra que vai mais longe do que isso. Estou
a pensar na ficção como uma reinvenção da História ou como uma sua reinterpretação;
aqui refiro-me, como é óbvio, à História do Cerco de Lisboa ou, no plano do mito
religioso, ao Evangelho Segundo Jesus Cristo, onde há uma nova versão do que fora
relatado no Novo Testamento. Até que ponto tem a ficção legitimidade para dar essa
nova versão dos factos?

JS - Acho que tem toda a legitimidade, porque se se está a dar uma nova versão dos
factos, é porque se está a falar de factos de que temos conhecimento por uma certa
versão deles. Evidentemente que aquilo que nos chega não são verdades absolutas, são
versões de acontecimentos, mais ou menos autoritárias, mais ou menos respaldadas pelo
consenso social ou pelo consenso ideológico ou até por um poder ditatorial que dissesse
“há que acreditar nisto, o que aconteceu foi isto e portanto vamos meter isto na cabeça”.
O que nos estão a dar, repito, é uma versão. E creio que, dizendo nós a toda a hora que a
única verdade absoluta é que toda ela é relativa, não sei porque é que, chegando o
momento em que determinado escritor passaria por certo facto ou episódio, deveria
aceitar como lei inamovível uma versão dada, quando sabemos que a História não só é
parcial como é parcelar. Noutros termos: porque é que a literatura não há-de ter também
a sua própria versão da História? De qualquer forma, a literatura não é nada que se
sobreponha completamente à História, porque não pode, porque tem que alimentar-se
até de versões opostas ou contraditórias, assim construindo, à luz de um tempo ou de
um entendimento diferente, a sua própria versão. Por exemplo: a Palestina d’A Relíquia
do seu Eça é uma versão. O Eça leu o que se tinha escrito sobre a Palestina, mas com
certeza que meteu lá coisas da sua lavra; e inventou uma Palestina.

CR - Ele disse numa carta que “a História será sempre uma grande Fantasia” 3 .

JS - Pois! Estamos nós aqui com toda esta conversa e o Eça de Queirós já tinha dito
tudo... Aliás, eu às vezes até costumo dizer que nós próprios somos seres de ficção.

CR - Fernando Pessoa pensava isso...

JS - Cá estamos outra vez: para que é que eu estou a falar nisso, se outros já o disseram?
Só que a seres de ficção eu acrescento seres de papel, no sentido de que a nossa

                                                            
3
Carta ao Conde de Ficalho, de 15 de Junho de 1885.
informação, pelo menos até agora, foi uma informação colhida no papel dos livros. É
disso que eu penso que somos feitos. A rapariga dos óculos escuros 4 , que era uma
prostituta, no fundo ela é que sabe, quando ela diz lá no livro que há, dentro de nós, uma
coisa que não tem nome e essa coisa é o que somos. Acho que ela diz tudo.

CR - Só mais uma questão, para encerrarmos este tema. Os seus romances que
trabalham e re-presentam a História - o Memorial do Convento, a História do Cerco de
Lisboa, mesmo O Evangelho segundo Jesus Cristo - são uma resposta a essa noção de
que temos ouvido falar tanto nos últimos anos, segundo a qual estamos a assistir ao fim
da História?

JS - Houve quem falasse nisso. Acho, contudo, que já se deixou de ouvir falar no fim da
História. O senhor Fukuyama 5 , que é um funcionário do Departamento de Estado norte-
americano, deve ter recebido essa incumbência: tirar a História da cabeça das pessoas e
dizer que ela acabou. E portanto, aquilo em que estaríamos agora seria outra coisa. Ora
a História não tem mais do que andar em frente, embora este sentido de direcção seja
problemático. Em vez disso, o que ficaria seria isto: uma espécie de consenso universal,
um sistema de relações, que não se preocupa muito com questões de ordem ética. E
portanto, a coisa ficaria assim: o liberalismo, o mercado a funcionar, a comprar e a
vender, a ganhar e a não ganhar. E assim, o capitalismo não pode decepcionar nunca,
porque não promete nada, e o socialismo decepciona (e certamente voltará a
decepcionar), porque tendo prometido não cumpre. Ora bem: de acordo com o senhor
Fukuyama, nós teríamos chegado a um momento em que, não tendo havido promessas,
tudo se cumpriria. Além disso, teria acabado a História de quem? Teria acabado para
quem? Não creio que tivesse acabado para a África; há até quem diga que não haveria
História de África: a História de África seria a das nossas colonizações. Acho que se
devia ser cauteloso quando chega o momento de anunciar o fim de qualquer coisa. A
única coisa que estamos seguros de poder anunciar, para mais cedo ou para mais tarde, é
a nossa própria morte. Nada mais.

FONTE: REIS, Carlos. Diálogos com Saramago. Lisboa: Caminho, 1998. p. 57-65.

                                                            
4
Personagem do romance Ensaio sobre a Cegueira.
5
Autor de O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Gradiva, 1992.

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