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Guerrilha no Araguaia
Há muito tempo venho cismando a respeito da idéia de escrever sobre alguns dos
mais dramáticos acontecimentos que marcaram com cores muito fortes os primeiros anos da
década de setenta. Época tida como a mais dura e a mais cruel do regime militar, os veículos de
comunicação a ela se referem, quase sempre, com informações distorcidas, seja por carência de
fontes seguras, seja por uma orquestrada cortina de fumaça produzida por pessoas, ou grupos, que
temem a divulgação da verdade dos fatos.
Passados os anos, penso que é chegada a hora de trazer à luz aquela página negra de
nossa história. Não se trata, entretanto, de procurar vilões e de lançar culpas, ou de buscar bodes
expiatórios e de clamar por punições. Não! O próprio tempo já se encarregou de prescrever tais
crimes. Sem falar, é claro, da chamada Lei da Anistia.
Contudo, o que pretendo levar aos leitores não é, em sua inteireza, um documento.
Talvez, em sua essencialidade, pudesse ser assim considerado, embora não tenha eu tal pretensão.
Ainda que baseado em fatos reais, escolhi a novela como forma de comunicação, imaginando que,
por essa maneira, me fosse mais fácil preencher os claros da memória que o tempo tentou
esmaecer.
Neste sentido, esta é, pois, uma obra de ficção. Não obstante, procurei ser fiel à
descrição dos cenários; conservei, sempre que possível, os nomes de lugares e localidades; bem
como empreguei, em casos especialíssimos, a verdadeira identidade de alguns poucos
participantes, os quais não se encontram mais entre nós, como um modo de lhes prestar uma
homenagem. É provável, igualmente, que a crítica, ou a menção jocosa, afete a algumas pessoas,
caso elas vistam a carapuça. Se isso acontecer, paciência.
No mais, as personagens são fictícias, ou tiveram seus nomes trocados, uma vez que
não faz parte do meu objetivo comprometer quem quer que seja. Busquei tão-somente narrar os
fatos, mesclando-os, em grande parte, com produtos da minha imaginação, em que pese lhes ter
conservado o cerne, arrumando-os numa trama que me pareceu mais adequada. Tentei, não sei se
consegui, descrever também, do meu ponto de vista, os sentimentos dos atores da história e a vida
miserável de uma população tão esquecida pelas instituições governamentais.
OPERAÇÃO DE INTELIGÊNCIA
Capítulo I
Era março de 1973. O sol estava quase a pino, e o calor, como sempre, abrasador. O
ar, praticamente, parado. Nem uma brisa, por leve que fosse, perturbava os ramos mais finos do
arvoredo. O suor escorria, peguento, pelos rostos, peitos e costas dos dois viajantes.
Podemos estacionar por aqui, Elizeu — disse o que parecia o mais velho e o chefe. —
Vamos esconder a camioneta atrás dos arbustos, embaixo daquela árvore — continuou ele com
autoridade, apontando para uma pequena depressão no terreno, onde crescia uma enorme
castanheira, circundada por uma exuberante quantidade de outras árvores e plantas rasteiras.
Enquanto o outro tomava providências para camuflar o carro, cobrindo-o com galhos
e ramos de vegetação, José Lucas desceu, esticou as pernas e abriu um mapa da região. Segundo as
informações que ele colhera na Palestina, eles deviam estar perto do sítio do Manuel das Duas.
— Vamos seguir por esta trilha, até as proximidades da clareira onde fica a casa do
tal Manuel — disse ele. — De lá em diante, eu sigo sozinho e você se esconde na mata e fica de
observador. Os sinais são os já combinados. A qualquer aproximação de estranhos, você usa o pio
do macuco. Só em caso de emergência, ou perigo iminente, você dá um tiro para cima.
Pode deixar, doutor, tudo entendido — respondeu Elizeu, um mulato forte, alto e de
olhar vivo. Deu os últimos retoques na camuflagem da camioneta, colocou em bandoleira seu fuzil
FAL no ombro e seguiu nos calços do Dr., Zeca, que já ia meia dúzia de metros à frente.
Zeca fez um sinal para Elizeu e caminhou cauteloso em direção à casa. Não era
propriamente uma casa, era mais um tapiri com paredes de pau-a-pique e cobertura de palha de
carnaúba. Chegando pelos fundos, ele viu que a mulher estava mexendo uma panela num fogo a
lenha, sob uma espécie de cobertura improvisada, também de palha e contígua à casa. Um cheiro
agradável de feijão cozido e temperado penetrou-lhe nas narinas. Um gosto de saliva quente
inundou-lhe a boca.
— ‘dia, moço — respondeu ela, sem demonstrar qualquer surpresa. — Pode chegá, o
feijão tá quais pronto.
— Tem não, sinhor. Meu véio e os dois meninos tão pra mata colhendo castanha. A
outra muié tá pra banda do igarapé, lavando roupa. — A criatura gostava de uma prosa, assim
parecia.
— Pois é, dona Nazaré, eu estou precisando falar com o seu Manuel. Quando é ele
vai voltar pra casa? — perguntou Zeca, mais à vontade.
Ah, hoje ele chega mais cedo — respondeu ela. — Tá já pertinho de chegá, mode que
hoje esse povo da mata marcaro de fazê uma tal de reunião aqui no pátio — respondeu a mulher
com uma certa nota de desagrado.
Ela olhou para ele meio desconfiada, provou o caldo do feijão e disse:
Bem, eles não são má pessoas. Eles vêm aqui, trais remédio pra gente, brinca cum
nóis e ensina nóis umas coisas boas, mais também eles ficam aí falando umas coisas que nóis num
intende dereito. — Falou isso e enxugou o suor da testa com as costas da mão esquerda, enquanto
mexia a panela com uma colher de pau na direita. — E dispois — continuou ela — teve esses
sordados aí, dando tiro, judiando as pessoas e até matando gente! Assim eles falam, né? Aqui
mesmo os sordados num viero. Mais o povo fala que é tudo culpa dos paulistas, esse pessoal da
mata. — Nova pausa, e ela prosseguiu: — Os sordados agora foram simbora, assim eles tão
comentando. Mais eu e o meu véio e a outra, junto com os meninos, nóis tão morrendo de medo,
seu moço. — A mulher era mesmo uma maritaca. Bastava um empurrãozinho e lá ia ela falando a
não acabar mais.
Quando ela fez uma pequena pausa, Zeca estimulou-lhe de novo a loquacidade:
Me diga uma coisa, dona Nazaré, nessas reuniões, aí no pátio, o que é que eles falam
pra vocês?
Não, dona, meu negócio é gado e plantação — apressou-se a responder o Dr. Zeca.
— Aliás, é sobre isso que quero conversar com seu marido. Andei sabendo que ele tem umas terras
por aqui para vender, será verdade? — interrogou o engenheiro, olhando para ela com firmeza.
Foi quando, então, se ouviu o pio do macuco e a conversa foi interrompida. Zeca
caminhou rápido e com segurança para o lado direito da casa e espreitou pelo canto da parede.
Estava calmo. A mulher continuou a mexer a panela despreocupadamente. Um homem baixo e
troncudo vinha se aproximando do tapiri com um terçado na mão direita e uma espingarda de caça
no ombro esquerdo. Mais atrás, cada um com um balaio na cabeça, vinham dois rapazinhos
taludos, de quinze ou dezesseis anos.
Pode chegá, minha gente. O moço é de paz. Só tá querendo um dedo de prosa com
ocê, meu véio. — A tranqüilidade de dona Nazaré quebrou, de pronto, a tensão do ambiente.
Era, sem dúvida, uma arrumação pitoresca, essa do Manuel das Duas...
Lavando roupa no igarapé, Palmira pensava nas coisas bonitas que os paulistas
falavam sobre a "revolução e a luta do povo pobre e oprimido" contra os donos do castanhal, o
governo e os soldados que exploravam os trabalhadores. "Até o padre, da igreja de São Domingos",
matutava ela, "tinha falado, na missa, que aquelas terras, o castanhal, a mata, os rios e os igarapés
são obra de Deus e da natureza, pra servir e dar de comer aos trabalhadores e aos que moravam ali
há tanto tempo. Por que motivo nós temos que trabalhar de sol a sol e passar tanta necessidade,
enquanto os ricos, como os Noletos, ficam na capital, no bem-bom, sem fazer nada, e nós aqui
labutando pra eles?"
E sonhava: "Agora que os soldados foram embora, vou me ajuntar com o povo da
mata, os paulistas, e lutar pra dar uma vida melhor pros meus meninos. Quem sabe até poder
mandar eles estudar numa escola em Marabá, ou em São Félix. Mas tenho que fazer isso bem
direitinho. A velha não pode perceber, ela fala demais."
De repente, Palmira ouviu algo estranho. Colocou de lado a peça de roupa que
estava lavando e apurou os ouvidos. Um sussurro sutil vinha do outro lado da clareira. Pé ente pé,
atravessou por cima de um tronco de madeira que servia como uma espécie de pinguela, para o
outro lado do igarapé e foi contornando o terreno aberto, escondendo-se na vegetação. Subindo
para uma área mais alta, espiou por detrás de uma araputanga. Dois homens estavam observando
a casa. Um era branco, bem-apessoado. O outro era um mulato alto e tinha uma espingarda
diferente das que ela conhecia. Esta era parecida com a que ela tinha visto, na fotografia de uma
revista velha, empunhada por um soldado estrangeiro.
Palmira ficou ali, vigiando a cena e refletindo sobre seu significado. Viu também
quando a velha foi buscar água no riacho, mas se surpreendeu, mesmo, quando o branco caminhou
para a palhoça, e o mulato ficou de tocaia no mato. "Essa gente não deve de ser pessoas com boas
intenções", pensou ela. "É capaz de ser gente da polícia, ou do governo, atrás de saber notícia dos
paulistas."
Quando Manuel e os meninos chegaram da mata, ela teve vontade de gritar para
alertá-los, mas, em seguida, mudou de idéia. "Na casa não tem nada pra eles roubá", ponderou. "O
melhor é ir pra banda do igarapé Paraíso, que é onde tem sempre uns paulistas, e avisar pra eles."
... e é como estou lhe dizendo, seu Manuel. Se o senhor me vender as terras, eu vou
mandar abrir um bom pasto, colocar umas duzentas cabeças de gado, e vocês podem continuar
morando aqui, trabalhando pra mim e, ainda, colhendo as castanhas pro dono do castanhal. O que
é que o senhor me diz disso: é ou não é um bom negócio, seu Manuel? — perguntou Dr. Zeca.
"Esse moço num parece ser gente de confiança", pensou ele, mas não falou. "Como é
que um homem bem-apessoado como esse, bem falante e educado, e com dinheiro, tá logo se
vendo, vem se meter numas brenhas dessas? E com essa conversa fiada de comprar terra e de
criação de gado?", cismava Manuel, pitando seu cachimbinho de barro.
Ô meu véio, dá uma resposta pro moço — interveio dona Nazaré, expectante.
Estava difícil ganhar a confiança do velho. Zeca sentia no ar que Manuel, além de
suspeitar dele, estava relutante em falar. "Esse velho está escondendo alguma coisa", pensou. E,
em voz alta:
Sabe, seu dotô, eu tô aqui nesse canto de mato já vai pra mais de quarenta anos.
Tive pensando de vender a terrinha, não vou dizer que não tive, é verdade. Mas, o senhor tenha
paciência, vou pensar mais um bucado. Quem sabe pra semana, ou pro mês que vem, lhe dou uma
resposta. Num se avexe não, que se o senhor não comprar por aqui compra mais adiante. Acolá
mesmo, na região dos Perdidos, tem gente querendo vender, embora que lá, tendo muitos
paulistas, ajudando a curar maleita, dando remédio pras crianças e ensinando as muiés a custurá e
os home a plantá, o povo tá cum medo dos soldados e da polícia.
"O velho, agora, vai soltar a língua", pensou Zeca, "é só dar corda pra ele." Assim
imaginando, disse:
E aqui, nesta sua região, tem muito paulista? Eles aparecem sempre aqui?
Zeca, é claro, sabia que ele estava mentindo, mas, por ora, não valia a pena desdizê-
lo. DE mais a mais, era preciso conquistar a confiança e a simpatia da velha. Se ele dissesse que
sabia da reunião de hoje à tarde, Manuel deduziria logo que a indiscreta taramela da esposa já dera
com a língua nos dentes. Ficou, pois, calado e, pelo semblante da mulher, percebeu-lhe o olhar de
alívio e de certa cumplicidade.
O doutô deve de tá com fome — disse Nazaré, desviando o assunto. — Quem sabe
se ele não quer um feijãozinho com farinha e charque mais nóis? Aceita, moço? É feijão-de-corda,
bem temperadinho.
Lucas consultou o relógio de pulso. Eram quase três horas da tarde. Ele estava com
uma fome cachorra, e o feijão estava mesmo cheiroso.
Bem, se a senhora insiste, e se seu Manuel não se importa, eu aceito sim — disse.
Vamo se abancá por riba desse tronco. Fique à vontade, doutor — falou o velho, já se
sentando no cepo que fazia as vezes de banco, ali no terreiro.
Pode se servir à vontade. Não faça cirimônia, doutô. Agora, vou lá pra dentro dá o
cumê dos minino. Licença.
O pessoal comenta que o senhor vive aqui com duas mulheres, seu Manuel. Só vi
uma. Quede a outra?
É verdade. Dou conta de duas aqui. É a minha natureza, doutor Zeca. — E com mais
intimidade acrescentou: — Duas num pode comigo. Se eu pudesse, ainda arrumava mais uma. Que
com três ia ser muito mais milhor. — E caiu na risada.
Sei não, meu véio, ela saiu cedo, mode lavá a roupa, mais num vortô inté agora.
Minino, Raimundo, corre lá no igarapé pra campiá sua mãe.
— Mãe num tá lá não, mas a roupa tá lá espaiada. Num sei de mãe não, pai!
Seu Manuel franziu o sobrolho com cara de apreensão que procurou encobrir com
um sorriso amarelo:
Palmira não deve demorar, — disse — Essa muié é meio destrambelhada. Vai vê que
foi dá um passeio na mata, intempo de se perdê, ou aconticê outra qualquer coisa ruim com ela —
completou ele, meio sem jeito.
Tá bom, seu Manuel, a prosa foi boa, mas eu tenho que ir andando. Vou voltar
outras vezes, pra comer do feijão e saber da sua resposta. Boa tarde pra todos.
E saiu andando em direção à boca da trilha que conduzia à estrada. Apertou o passo.
Já eram mais de quatro da tarde.
Antes de chegar à borda da clareira, José Lucas sentiu que algo estava errado.
Primeiro o desaparecimento de Palmira. "Depois, se a velha tinha dado informações corretas, por
que até agora Elizeu não sinalizara a chegada de nenhum dos guerrilheiros?", pensou Zeca.
Entrou na mata, ruminando suas preocupações, mas com o espírito alerta. Encontrou
o companheiro no lugar onde o deixara.
— Então, Elizeu, alguma novidade? — perguntou Zeca em voz baixa, quase num
sussurro.
- Isso está meio estranho. A essa hora, pelas informações do Levindo e pelo que me
disse a mulher do seu Manuel, já devia ter aparecido algum subversivo no pedaço. - Fez uma pausa
e acrescentou: - Vamos ficar observando daqui para ver o que acontece, mais uma hora ou pouco
mais.
Nem bem Palmira desaparecia atrás do tapiri, uma saraivada de tiros irrompeu na
mata, vinda do lado esquerdo de onde eles estavam. "Emboscada!" , pensou ele rapidamente, e se
jogou para o lado, sacando com destreza sua pistola e atirando num vulto que se deslocava com
ligeireza por trás da ramagem. Ouviu-se um grito de dor e um baque surdo, interrompido por uma
rajada curta do fuzil-metralhadora de Elizeu. Mais tiros, um rugir de vozes desencontradas e um
tropel de passos em fuga desabalada. Em seguida, silêncio!
Zeca, com o rosto colado ao chão, permaneceu quieto por alguns segundos.
Na beira do caminho, notou um rastilho de sangue. Pelo menos um deles tinha sido
acertado pela saraivada de balas. Seguindo o rastro, mais à frente, escutou um gemido mais forte.
Encostou-se a uma árvore e esperou. Minutos depois, escutou novamente o queixume de dor. Foi
se aproximando devagar, arma em punho, tenso, pronto para qualquer eventualidade.
- Qual é o seu nome, sua vaca! - gritou ele, num ímpeto de fúria.
- Guerrilheiro não tem nome, seu filho da puta! - replicou ela no mesmo nível com
um esgar de dor e de ódio.
Zeca olhou-a bem fixo nos olhos, levantou a pistola lentamente e acionou o gatilho.
Um tiro certeiro, à queima-roupa, bem no meio da cara.
Colocou a arma no coldre. Pegou, com a mão direita, um lenço no bolso traseiro de
suas calças e comprimiu-o sobre o seu próprio ferimento, como uma espécie de compressa, entre a
jaqueta e a camisa. A dor era suportável.
Era mais de meia-noite quando José Lucas atingiu a rodovia Transamazônica, ainda a
cerca de trinta quilômetros de Marabá e da Casa Azul. Seu braço e ombro esquerdos estavam
muito inchados, e o ferimento, embora não sangrasse mais, latejava e doía horrores. Um estupor
lhe anuviava a visão, bagas de suor frio escorriam-lhe pelo rosto, e calafrios sacudiam seu corpo
todo. Estava à beira da exaustão. Entretanto, tinha que prosseguir. Havia que buscar forças onde
não mais existiam.
José Lucas Quintino Nicoline, o Dr. Zeca, Aliás, Gregório Viriato de Santana, major de
infantaria do Exército Brasileiro, analista e agente de informações do CIE, tinha uma missão a
cumprir, e haveria de cumpri-la a qualquer preço.
Reuniu, pois, suas últimas energias e tomou a estrada na direção nordeste. Dirigindo
por aqueles ermos, na noite escura, ia pensando nos erros do passado, na tentativa de desviar a
atenção da dor alucinante:
"Depois, em 1971 e 72, ainda com levantamentos falhos por parte dos órgãos de
inteligência, lançaram-se as operações Axixá e Papagaio, ambas com resultados pouco palpáveis e,
o que é pior, com algumas baixas, por incomp6tência e despreparo. Naquelas, foram empregadas
tropas de elite, fuzileiros navais e pára-quedistas com cursos de comandos e operações especiais,
como numa guerra convencional. Tudo certinho dentro do vidrinho. Mas esqueceram-se os
luminares de Brasília de levar em conta o ambiente amazônico e de que estávamos diante de uma
guerra de guerrilha, onde o convencional não funciona, ao contrário, quase sempre atrapalha.
Finalmente, com a vista um tanto turva, avistou a Casa Azul. Avançou em sua
direção, sem se importar, ou mesmo se lembrar, da cerca de arame farpado que havia nos limites
do terreno. O carro levou tudo de roldão e estancou, de súbito, no meio do caminho de cascalho
que conduzia à casa. Zeca tombou para a frente, desfalecido.
A Casa Azul ganhara tal denominação por ter sua cobertura de telhas de amianto
pintadas na cor azul-anil, mas suas paredes externas eram de madeira, caiadas de branco, o tom
dominante. O corpo principal do edifício era confortável. Um salão bem grande e comprido servia
como sala de reuniões e também como local de refeições dos membros mais categorizados do
grupo. Dois quartos abriam-se para esse salão e, ao fundo, havia um corredor com três outros
dormitórios de cada lado. Na área de trás, havia uma cozinha. A construção podia alojar de quinze a
vinte pessoas.
Ao lado do prédio principal, havia um galpão que fora adaptado para abrigar os
agentes e servidores menos graduados, bem como a sala de interrogatórios e algumas celas cujas
portas eram gradeadas de ferro.
"O acerto de retirar as tropas da área e, ao mesmo tempo, decidir desencadear esta
operação de inteligência começa a dar os frutos que se imaginava", dizia o Dr. Kiner, atual chefe do
grupo de inteligência, na "reunião do pôr-do-sol" daquele dia de junho de 1973, embora fosse
quase dez horas da noite.
Estavam reunidos na sala da Casa Azul, além do Dr. Kiner, os doutores Tomé, Padilha,
Walter, Ambrósio, Banzé e Zeca, este já totalmente recuperado, após uma estada de um mês no
hospital militar de Belém e trinta dias de férias na praia da Pajuçara, em Maceió.
- Já foi possível delinear um quadro de contornos bem nítidos - prosseguia Kiner, sob
o olhar atento de seus subordinados. - Os subversivos, esses comunistazinhos de merda, que nem
guerrilheiros podemos chamá-los, estão espalhados em toda a região que vai de Marabá - disse,
apontando, com uma vareta, uma fotografia aérea emoldurada e pendurada na parede do fundo da
sala - até Xambioá, no sentido norte-sul, limitada à direita pelo rio Araguaia e à esquerda pela
estrada PA-70. Embora eles se movimentem com freqüência, as informações levantadas por nossos
agentes indicam que existem três grupamentos principais. Um na região dos Perdidos - e indicou no
mapa. - Outro nesta área do igarapé Paraíso, que é afluente do Saranzal. O terceiro grupo está nos
Caianos, denominação dessa parte aonde correm o igarapé Água Fria, numa das vertentes, e na
outra o rio Gameleira. - Fez uma pausa e encarou com intensidade os companheiros.
Kiner, aliás, Marcos de Azevedo e Silva, coronel de artilharia com curso de Estado-
Maior, era militar de carreira, ambicioso e perseverante em seus objetivos. Essa missão era tudo o
que ele pedira a Deus, mas do sucesso dela dependia o seu próprio sucesso. Ele não podia falhar, e
não iria falhar. Depois, a glória, a sua promoção a general de duas estrelas.
O Dr. Ambrósio, também conhecido como o Gordo, aliás não outro senão o capitão
Francisco Otaviano de Souza, agente e analista de informações do CISA, era uma figura de quem
todos gostavam, pelo seu constante bom humor. Carioca da Tijuca, com trinta anos, estatura
mediana e cento e dez quilos de peso, era um sujeito risonho e bonachão. Tinha os cabelos
prematuramente grisalhos, cortados rente à cabeça. Os olhos eram azuis, incrustados numa face
rosada, gorducha e jovial. Seu semblante transmitia inteligência e vivacidade. Nos interrogatórios e
mesmo nos contatos informais com prisioneiros, o Gordo desempenhava, com maestria, o papel de
apaziguador e de condescendente.
Ambrósio levantou-se com agilidade incrível para alguém que conduzia massa e
volume tão grandes. Como sempre, um sorriso brincava-lhe nos lábios.
- Camaradas, brincadeiras à parte, tenho uma comunicação de rotina para lhes fazer.
Há alguns dias, recebemos uma mensagem cifrada do CISA Brasília dando conta da identidade da
subversiva que pereceu no chafurdo no qual o Dr. Zeca saiu ferido. - Todos estavam com olhos fixos
nele. - A impressão digital que o Zeca tirou do "presunto", ainda que um pouco imprecisa, indicou
que se trata da nossa já conhecida assaltante de bancos Alice, cujo verdadeiro nome e Dinalva
Outeiro Trajano. Sem mais comentários. Pela atenção, obrigado.
- O Dr. Tomé, nosso subchefe de operações, dará, agora, instruções especiais aos
agentes Gabriel, Edmar, Tanaka e Pompeu, aqui presentes.
- É claro que sim! - Respondeu Tomé, - mas este tema será tratado, também, durante
a fase de preparação pela qual vocês passarão nos próximos dias. Hoje é quarta-feira, vocês serão
lançados no campo na próxima segunda-feira.
Logo depois, como não houvesse mais perguntas, o Dr. Kiner levantou-se, tomou a
palavra e rematou a reunião, resumindo brevemente o que fora dito e desejando a todos uma boa
noite.
Capítulo III
No mais, o vilarejo abrigava uma birosca com o pomposo nome de Bar e Buati
Relacoxa, a qual, aos sábados, promovia um animado arrasta-pé à base de cachaça e carimbo, o
ritmo quente e típico do Pará. Tal regalo, contudo, só era possível quando o intratável Lourival da
Silva, encarregado do armazém e do depósito do castanhal, consentia em ligar o gerador e gastar
uns poucos litros de óleo, além da cota normal, para fornecer a energia elétrica exigida pelo
precário sistema de som.
— Seu Sumpliço, o trabaio aqui é duro, mais o sinhô até parece que tá saindo bem
cum o João Azedo, tá não? — disse o cafuzo, puxando conversa.
— A gente vai levando, né, Curu — respondeu Simplício, nomeando o outro pelo
apelido, uma redução de Zé Curupira, como o cafuzo era conhecido naquelas paragens.
— Muita coragem prum vivente, qual ocê, vim procura trabaio num fim de mundo
desse. Inda bem que ocê acho, pruquê arguns chega, num arruma nada, pega maleita e se acaba no
meio da mata — falo o velho Curu, sorrindo um sorriso desdentado, mas simpático.
Simplício molhou discretamente o bico com a pinga e deu trela para Curupira:
— Ês tão falando que as coisas vão melhorar aqui, com esse povo da mata — disse,
fingindo desinteresse.
— Eu tou aqui já vai faze uma quinzena, e ainda não vi esses paulista que cês tanto
fala — disse Simplício.
— Ah, o João Azedo amiaçô eles. Disse que ês são cumunista, suversivo e num sei-
que-mais-lá. Que ia cumunicá pra pulícia — falou Caximgó, e acrescentou em voz baixa, chegando
mais perto dos dois fregueses: — Agora, eu vou fala uma coisa: a Maria Fiofó teve se tratando de
maleita cum umas piulas que os paulista dero pra ela e escuitô quando ês falaro que o Azedo tinha
que sê justiçado. Agora, que qui é isso de "sê justiçado", cês pode me explicá?
Curu olhou para Simplício com ar interrogativo, e este, em tom preocupado, deu de
ombros, dizendo:
— Boa coisa num deve de ser, porque o tal de Lourival, que ocês chamam de João
Azedo, tem uns cinco dia que não aparece no depósito. Aquele capanga dele, o Chicão, disse que
ele viajou pra Xambioá.
Simplício, aliás, o agente Gabriel sob disfarce, pegou sua matula no canto do balcão e
se preparou para partir:
— A prosa tá boa, mas tenho que ir andando, pessoal. Até mais ver. — E foi saindo
um tanto apressado.
Não muito longe da Vila Remédios, perto da boca do igarapé dos Caianos, na junção
com o rio Gameleira, havia um desmatamento onde centenas de toras de mogno aguardavam
transporte para a Madeireira Nova Olinda, em São Geraldo do Araguaia.
— Ainda não consegui contato com os subversivos, mas eles estão na área. O
encarregado do armazém do castanhal andou criando caso com eles. O informe que tenho é que o
tal encarregado ameaçou-os de denúncia, e eles estariam planejando justiçá-lo. O cabra está
desaparecido da Vila Remédios. Dizem que ele foi a Xambioá. No momento, é só isso que tenho pra
ti. A propósito, o nome do sujeito é Lourival da Silva, conhecido também como João Azedo. Está
confirmado o apontamento para daqui a quinze dias, ou tens outras instruções?
— É isso. Daqui a quinze dias, aqui mesmo. Se eu não aparecer até as cinco da tarde,
você vem dois dias depois. Se na segunda vez eu não pintar, você abandona a área de imediato
porque a barra sujou. Nesse caso, você se desloca para a PA-70 e caminha no rumo Norte. Uma
viatura nossa irá resgatá-lo em algum ponto da estrada.
A conversa fora breve e em voz baixa. Gabriel tomou seu caminho de volta, e Tanaka
pegou o barco, deixando-o descer a correnteza com suaves remadas. Já bem distante da foz do
igarapé, ele acionou o motor e seguiu em direção ao Araguaia.
— Homem, como foi eu num sei. Só me alembro que o dia tava manhecendo,
quando nois escuitemo o alvoroço aqui na porta do barracão. Eu mais o Juventino, nois se
alevantemos da nossa rede e espiemos pra vê que alvoroço era aquele. Tava ainda meio escuro,
mais deu de nois vê uns pessoal fugindo na carreira por detrais daquele pé de pau aculá. — Contava
Valdilene, mulher de Juventino, a segunda pessoa no depósito, depois de Lourival e seu capanga
Chicão.
- Meus amigos, vamos ter calma - falou bem alto o jovem Alfredo, fazendo um sinal
apaziguador com as mãos. - Nós passamos um tempo sem vir aqui, cuidando de organizar a luta do
povo em outros lugares desta mata que é muito grande. Mas, agora, estamos de volta. Hoje é um
dia especial para todos aqui. É o dia da liberdade de vocês. De hoje em diante, não vai mais faltar
comida, remédio, roupa e alegria nesta vila. Nosso companheiro Juventino vai ser o chefe do
armazém e vai distribuir mantimento para todos, de graça. Tudo o que está aí dentro desse
armazém pertence a vocês mesmos, pois foram vocês que trabalharam de sol a sol na colheita da
castanha. - Um grito de euforia e esperança explodiu no meio da turba. Nenhuma referência à
eliminação de João Azedo e Chicão. - O trabalho de vocês na mata vai continuar normalmente, mas,
de agora pra frente, o que vocês produzirem será de vocês mesmos. Vamos todos cooperar para
plantar uma horta comunitária e vamos, também, organizar uma escola para as crianças
aprenderem a ler e escrever. - A alegria era geral.
- Esses paulista é tudo gente boa mesmo. Eu num falei pra ocê, inda ostrudia, seu
Sumplício? - disse Curupira, catucando Simplício que, ao seu lado, ouvia tudo atentamente.
- É, Curu, cê tem razão. Vamo escuitá o que o tal de Alfredo tá dizendo - respondeu
Simplício, fingindo compartilhar da satisfação que tomava conta da massa.
- ... temos que nos unir contra a ditadura, esse governo e essa gente que só querem
explorar o povo trabalhador. Os ricos vão ter que distribuir a riqueza deles com os pobres. Chega de
miséria e sofrimento, camaradas! Se for preciso, vamos pegar em armas para defender nossos
direitos, esta terra que é nossa, a mata, o castanhal e a madeira que os ladrões do povo estão
roubando daqui para vender no estrangeiro. - E, nesse diapasão, o discurso de Alfredo continuou
por mais um bom espaço de tempo.
Assim, estava eles, num daqueles dias, realizando o seu trabalho, quando Lúcia
entrou no depósito e se dirigiu diretamente a ele:
- Que negócio de "dona" é esse? Me chame de Lúcia, como todos. Dona é palavra de
burguês.
- De outras vezes em que estive aqui, não me lembro de ter visto você. Você é de
onde? - Perguntou ela, incisiva.
- Tô escondendo nada não, é... Lúcia - respondeu Simplício num tom que,
propositalmente, denotava dúvida.
- Nós precisamos ter uma conversa com você, camarada. Hoje, na hora que largar o
serviço, eu quero que você procure o Darci, na casa do velho Nonô Capivara. Ele estará lhe
esperando, - disse Lúcia com firmeza. Depois, virou nos calcanhares e saiu do depósito.
O dia transcorreu rápido para ele. Seu cérebro trabalhava em alta velocidade,
recordando cada detalhe de sua história de cobertura. "Tenho que agir com cautela, mas sem
perder de vista o objetivo. Qualquer erro que eu cometa pode ser fatal. Esses subversivos são
fanáticos e sanguinários. O serviço que eles fizeram no Lourival e no Chicão foi trabalho de matador
profissional", pensava, quando Juventino gritou do fundo do depósito:
- Tá na hora, pessoal. Amanhã, eu quero ocêis tudo aqui bem cedo, causa que,
dispois do armoço, nois vamo dispachá uma partida de castanha pra Marabá. - E, em voz mais
baixa, falou para Arlindo, seu filho mais velho, que trabalhava como seu ajudante: — Agora, vai
começa a entra dinheiro grosso pra nóis poder faze muita milhoria na vida, meu fio. Os paulistas
são gente de tino. Se isso é que é sê cumunista, então nóis são cumunista. Cumunista é povo alegre
e satisfeito, — completou, com uma gostosa gargalhada.
O tapiri de Nonô Capivara ficava na extremidade norte da vila, num ponto afastado
quase dois quilômetros da habitação mais próxima. Era um lugar aprazível, numa curva do rio
Gameleira, onde um igarapé de águas muito límpidas, cascateando por um pedregal, banhava os
fundos e a lateral direita do terreno, antes de se espraiar, desaguando no rio principal.
Acima da barranca do Gameleira, depois da mata ciliar que fora preservada, Nonô,
ao longo dos anos, desmatara com critério o local onde construíra sua choupana, plantando aqui e
ali árvores frutíferas que lhe davam sombra e frutos. Havia, assim, mangueiras, cajueiros e um
frondoso pé de abiu que fazia a alegria das crianças, com suas bagas amarelas e doces.
Compunham, igualmente, o pomar outras fruteiras como o cajá, a sirigüela e o sapoti, originárias
do Nordeste, bem como o cupuaçu, a pupunha e o bacuri, nativas da região.
Em face das peculiaridade do local, o sítio fora escolhido para abrigar a escola da
comunidade, sem qualquer oposição da parte de Nonô, visto que ele mesmo tinha oito filhos, todos
em idade escolar e ansiosos para beber os ensinamentos ministrados pelos paulistas. As aulas eram
dadas no período vespertino, ao ar livre, à sombra do arvoredo, pelos jovens e entusiasmados Darci
e Marlene, os quais haviam conquistado facilmente o afeto e a confiança da meninada.
- Boa tarde. Sou João Simplício - disse - A moça Lúcia falou que era pra mim vim aqui,
causa que o moço Darci tá precisando de falá cumigo. Pois não, tô as suas ordens.
- É verdade, camarada. Mas, a nossa conversa não vai ser aqui, não. Dá licença,
Nonô, pois tenho um apontamento com o camarada Simplício. Até amanhã.
Darci apontou para o lado direito do sítio, indicando a direção que deveriam seguir.
- Vamos por ali - disse, e liderou o caminho até o igarapé. - Agora, você atravessa na
frente e eu sigo atrás. Vamos tomar a trilha depois daquela pedra grande.
Breve chegaram a uma pequena clareira, onde nove outros guerrilheiros estavam
reunidos em torno de uma fogueira sobre a qual uma panela cozinhava algo que Simplício não sabia
o que era.
O que atendia pelo nome de Zenóbio mandou que eles se sentassem. O agente
apoiou o traseiro num tronco de madeira e aguardou expectante. Todos portavam algum tipo de
arma de fogo, carabinas, espingardas de caça de diversos calibres, um fuzil HK , e revólveres, ou
pistolas automáticas. Cada um tinha consigo, também, um terçado, ou uma faca, ou ambos.
- No embornal só tem esta peixeira - disse o outro, mostrando a faca numa bainha de
couro.
- João Simplício de Arruda... é esse o seu nome mesmo, o verdadeiro? - interrogou
Zenóbio.
- É sim, senhor. João Simplício de Arruda é o meu nome de batismo, sim, senhor -
respondeu ele com segurança.
- Eu não perguntei com quem você morava, seu cabra. Perguntei onde. Não se faça
de besta comigo - falou Zenóbio com rispidez. - Responda o que eu lhe perguntar. Onde é que você
morava?
- Num fique brabo não, moço. Eu só me atrapaiei - desculpou-se ele com cara de
aflito. - Eu morava na rua Frei Mariano Procópio, número noventa e oito, pertinho do hospital Santa
Isabel. O senhor conhece lá?
- Não me faça perguntas. Só quem pergunta aqui sou eu, entendeu? - E, virando-se
para o se chamava Elias: - Anote o endereço que ele deu. - E, novamente, para Simplício: - Você
parece que está escondendo alguma coisa, seu cabra. Como é que sendo da cidade, você veio parar
neste fim de mundo? Vamos, responda! E não tente me enrolar.
- Eu não vou mentir pro senhor... Eu tou aqui fugido da polícia. - Disse e se calou,
esperando a reação do outro.
- Mas, se foi como você está dizendo, não havia motivo para fugir.
Zenóbio parecia estar satisfeito. "O cabra é coerente, a história tem lógica, ele deu
respostas seguras e ricas em detalhes. Não deve estar mentindo, pensava. Antes, porém, de
concluir, fez mais uma pergunta:
- Eu sei que você guardou aquele cartaz que estava junto aos corpos daqueles
exploradores do povo. Por que fez isso?
Embora a resposta não fosse muito convincente, o próprio Zebóbio deu-lhe, a seguir,
um ponto de apoio:
- Não sei nada de política, mas acho que o povo está sofrendo, quase na miséria, e os
ricos estão explorando cada vez mais os pobres e ficando cada vez mais ricos. O governo, que devia
se preocupar com os pobres, só protege os poderosos.
- Você não respondeu tudo o que perguntei. O que você acha da nossa presença aqui
na mata?
- O que eu acho é o que ouvi falar, que vocês estão organizando o povo pra lutar
contra a ditadura e derrubar esse governo que explora os pobres - disse Simplício, sabendo que não
podia externar opiniões mais profundas. Tinha que rodear o tema, sem demonstrar maiores
sapiências.
- Você está disposto a trabalhar pela nossa causa? Observamos que você é forte,
ativo, inteligente, e pode ser útil no trabalho comunitário, - falou Zenóbio em tom interrogativo.
- Estou disposto, sim senhor. O que estiver no meu alcance, vocês podem contar
comigo. - Ele sabia que devia concordar e, embora tivesse deixado de lado o linguajar roceiro,
precisava, também, cometer, aqui e ali, erros propositais de português para não denunciar sua
cultura universitária.
- Tá muito bem Simplício. Você está dispensado. Pode voltar pra vila e continuar o
seu trabalho no depósito. Voltaremos a fazer contato com você. Boa noite.
- A história dele parece verdadeira. De qualquer forma, vamos averiguar. Elias parte
amanhã cedo para Xambioá, toma as providências junto ao nosso contato lá, fica acoitado na casa
da Baleia e só regressa quando o Agulha voltar de Imperatriz com a coisa em pratos limpos. Não
podemos correr riscos. Enquanto isso, Lúcia e Walter ficam encarregados de manter o homem sob
vigilância discreta. Nada de muito aparato, para não assustar a lebre. Afinal, ele ainda não
representa perigo.
Simplício adentrou a mata em passos rápidos. Estava de ânimo elevado. Seu primeiro
contato com os guerrilheiros fora completamente satisfatório. "Alguém me viu pegar o cartaz no
meio daquela confusão e me dedurou. Quase que esse pequeno detalhe estraga tudo. Esses
subversivos vão checar a minha história. Espero que o pessoal de contra-informações tenha
trabalhado limpo."
Chegou à vila e foi direto para a bodega, em busca de algo para comer. À luz do
candeeiro, identificou Caxingó, atrás do balcão, e mais uma meia dúzia de fregueses, entre os quais
Curupira, Ari Buchincho e Arlindo. Abancou-se no seu canto preferido, de maneira a manter as
costas sempre voltadas para a parede, tendo uma visão completa do ambiente.
- Com a fome que eu tou, isso é banquete, amigão. Pode manda fazer um prato pra
mim, por favor?
- Ouvi falá que o povo da mata andou assuntando ocê, Sumpliço. Quem falô foi o
Arlindo, que escuitô a menina Lúcia mandando ocê ir atrás de cunversá com o Darci.
Simplício estava de bom humor naquela noite, não se importando com o disse-que-
disse, tão comum num lugar pequeno como aquele.
- É verdade, Curu. Tive uma boa prosa com os paulista. Cabei de chegar de lá. Ês são
gente fina - concordou com um sorriso.
- Inda agorinha, o Ari Buchincho tava falando que ocê foi convocado pra essa prosa
cum os paulista causa de que ocê escondeu os escrito que tava apregado no corpo do finado João
Azedo. Ele disse inté que viu ocê guardá o papel, mas ficou calado, "que num era assunto meu",
assim ocê falou, num foi, Ari? - disse Curu, buscando confirmar o fuxico com o próprio fuxiqueiro.
- Que eu vi o Simplício escondê o papel, isso vi, num vô negá. Mai eu fiquei calado
inté hoje. Só falei inda agora quando ês dissero que a menina Lúcia mandou ocê falá com o Darci. Aí
eu disse: "Vai vê é por causa de que ele escondeu o papel que tava apregado no corpo do infeliz do
Lourival." - Falou o leva-e-traz com a cara mais lavada.
Então, foi esse filho da puta que me dedurou e quase me complica a vida", pensou
Simplício, olhando para o fuxiqueiro com desprezo.
- Tá tudo limpo, não se preocupe com isso não, ô Buchincho - disse o agente sem se
alterar.
- O Sumpliço tá inté com a fala deferente, dispois que proseou com os paulista. Tá
não, Arlindo?
Simplício não prestou mais atenção à conversa. Caxingó pôs o prato no balcão, e o
agente, enquanto comia, pensava: "Amanhã é dia do meu apontamento com o japonês. O diabo é
que essa gente toda está de olho em mim, tanto paulista como não-paulista. Tenho que ter
cuidado. Qualquer vacilo, o caldo entorna."
No dia seguinte, antes do amanhecer, Simplício levantou-se de sua rede armada num
puxado atrás do depósito, vestiu-se depressa e partiu sorrateiro para o ponto de encontro com
Tanaka.
"Obtive contato efetivo com o alvo. Até agora eles são dez. Nomes frios: Alfredo,
Darci, Lúcia, Elias, Luiz, Walter, Marlene, Victor, Áurea e Zenóbio. Este último parece ser o chefe. Há
outros na área que ainda não identifiquei. Vomitei minha história, Eles vão checá-la. Estou sendo
vigiado. Até a próxima. G."
Eram sete horas da manhã. Antes de chegar de volta à vila, mas já bem perto, ele
deu um mergulho num poço de igarapé. Ainda molhado e pingando água do cabelo e da barba,
Simplício atravessou o largo e entrou no depósito. Todos estavam na lida, preparando o
carregamento de castanha que iria para Marabá.
- Onde é que ocê andava, Sumpliço. Tamo precisando de braço pra carregar os sacos,
- disse Juventino, o encarregado.
- Tava muito calor quando acordei. Fui me banhá no igarapé. Desculpa, Juventino,
pelo atraso.
Juventino olhou para Walter que estava ao seu lado, e este respondeu com um sinal
que tanto podia significar desdém como "não-me-amole" ou "resolva-você-mesmo".
- O Agulha este em Imperatriz - relatou para Zenóbio e para um grupo de mais cinco
camaradas - e todas as informações estão casando. Segundo ele me falo, a delegacia de polícia tem
o registro de uma ocorrência, há três meses, na qual consta que um tal João Simplício de Arruda
agrediu a faca um cidadão de nome Antônio da Silva Campolina. O fulano, que possuía várias
entradas na polícia, morreu a caminho do hospital. O Agulha foi, também, ao endereço residencial
que o Simplício forneceu e conversou com a velha que mora lá e que se chama Dona Iná. Ela disse
que o filho, João Simplício, estava sumido de casa e que ela estava em dificuldades pra pagar o
aluguel do barraco, e choramingou outros queixumes. Nosso contato viu, inclusive, uma fotografia
do filho dela e, pela descrição que eu havia fornecido, a foto é bastante parecida com o original. O
Agulha ficou com pena da velha e, até, lhe deu algum dinheiro. Na oficina mecânica, as informações
também bateram. O dono acrescentou que o homem era muito trabalhador, bom empregado e
coisas desse tipo. Diante disso, o Agulha voltou pra Xambioá e me apresentou este relatório.
Zenóbio e os demais ficaram satisfeitos e exultantes, uma vez que Simplício, além de
deixar de ser uma preocupação, era um sujeito que tinha potencialidade para abraçar a causa
comum pela qual eles lutavam.
Naquele mesmo dia, Zenóbio mandou chamar Simplício à sua presença. Lúcia foi,
novamente, encarregada de fazer o contato.
- Zenóbio quer falar com você agora, - disse e, voltando-se para o encarregado,
acrescentou: - ô Juventino, o Simplício e eu vamos dar uma saída. Segura o pincel aí, camarada.
- Bom dia, Simplício. Vamos chegar pra cá, pra sombra. - E eles se reuniram em baixo
de um ipê-roxo. - Tenho boas notícias pra você, camarada. Sua mãe está bem de saúde, e nós
providenciamos um dinheiro pra ela. Boa gente, a Dona Iná. Quanto a você, pode ficar tranqüilo, a
polícia não vai achá-lo aqui. Você, agora, está entre amigos.
- Que é isso, camarada. Você tem que compreender o nosso lado. Temos que zelar
pela segurança, nossa, sua e de todos, é ou não é? - Deu um piparote amigável no braço de
Simplício e completou: - Vamos tratar de coisas mais importantes. Você é um sujeito decente. Sabe
ler e é trabalhador. Nós precisamos de seus serviços como encarregado do armazém. O que é que
você acha disso?
- Bem, pra início de conversa, vamos acabar com essa história de senhor. Você agora
é dos nossos e, aqui, todos são iguais. Tá certo, camarada? - Falou o guerrilheiro.
- Pois bem, o problema é que nós precisamos dos mais capazes, dentro da
comunidade, pra assumir as funções de chefia e de comandamento. O Juventino é um sujeito leal à
nossa causa desde a primeira hora, mas é analfabeto. Entretanto, nós não vamos tirá-lo do cargo de
encarregado do depósito. Vamos, apenas, dividir as tarefas. Ele no depósito, você no armazém.
Aceitas?
- Aceito, com uma condição: Que eu participe das decisões sobre o uso do dinheiro
da venda das castanhas. O Juventino só quer comprar jabá, farinha , feijão, querosene, óleo Diesel e
óleo de cozinha. Essa gente tá precisando aprender a usar material de higiene. Quero montar um
pequeno depósito de construção e ensiná-los a fazer fossas e privadas. E tem muito mais coisa pra
se fazer aqui.
- Tá vendo, minha gente? - Disse Zenóbio. - O camarada Simplício tem visão das
necessidades do povo. É isso mesmo! Negócio fechado, você assume o armazém com carta branca.
Só tem que prestar contas conosco. Lúcia vai ficar como sua supervisora, ela é muito boa com
números.
Simplício atingira o seu objetivo, conquistar a confiança dos paulistas, dando idéias
que fossem ao encontro do que eles pregavam, a melhoria das condições de vida do povo menos
favorecido. Tal meta, afinal, não era privilégio exclusivo deles. "A revolução de 31 de março",
pensava o agente, "além de combater os inimigos da democracia e dos valores cristãos, visa
também ao aumento do nível de bem-estar econômico e social de todos os brasileiros."
Durante a conversa informal que se estabeleceu a seguir, Simplício teve
oportunidade de conhecer os guerrilheiros que haviam se reunido ao grupo: Tonho, Ernani, Miguel,
Márcio, Fábio, Fernando e Leopoldo. Descobriu, também, que aquele era o total do destacamento
dos Caianos, dezessete.
Três dias depois de iniciar seu trabalho à frente do armazém, Simplício começou a
perceber a presença assídua de Lúcia no planejamento e na execução de todas as tarefas a que ele
se obrigara. Sua primeira reação foi de aborrecimento. "Estarei ainda sob vigilância?", perguntou-
se. O passar dos dias, no entanto, mostrou-lhe que não era isso. Ele se enganara.
Ao entardecer de cada dia, após ter fechado o armazém, sua rotina era sempre a
mesma. Saía discretamente para um banho de igarapé, num poço afastado e escondido no meio da
floresta. Ali, se isolava, lavando o corpo nas águas frescas do riacho e, principalmente, lavava a
lama e relaxava das tensões que o assaltavam.
Naquela tarde, depois do banho reparador, estava recostado a uma pedra, olhos
fechados, meditando seus problemas, quando um ruído de folhas pisadas o despertou. Abriu os
olhos atento, pronto para entrar em ação.
A princípio, ele ficou sem saber o que dizer, ou fazer. A visão dela despertou-lhe
emoções que estavam adormecidas desde que se engajara naquela missão. Procurou palavras, mas
não as encontrou. Sorriu. Apenas sorriu.
— Posso dar um mergulho também? — Perguntou a moça com uma meiguice que
ele não notara antes.
Ela não teve qualquer pejo em se despir, ali mesmo. Tirou a roupa calmamente, sem
pressa. Ele ficou olhando. Lúcia era bonita e esbelta. Morena clara, cabelos castanhos, olhos vivos e
uma boca larga, carnuda, de lábios sensuais. Seu corpo era jovem, saudável, perfeito.
Ela terminou de se despir e mergulhou na água cristalina e inigualável daquele
recanto paradisíaco perdido na selva. Quando voltou à tona, nadou para junto dele. As palavras não
eram mais necessárias. Abraçaram-se ternamente. Suas bocas se encontraram sem esforço, em
seqüência natural ao despertar e ao dar curso ao turbilhão de sentimentos e desejos que tomava
conta de ambos. E eles se amaram. Um amor que não era nem esquerda, nem direita, nem
comunista, nem capitalista. Era, apenas, homem e mulher. Vida. Emoção. Enlevo. Tudo! Livre de
ódios e de paixões mesquinhas.
Alguns dias depois, Simplício encontrou-se com Tanaka no local de sempre. Passou-
lhe as informações que levantara na última quinzena e perguntou ao nipônico:
O sentimento de amor, carinho e respeito que crescia entre eles tornava-se, a cada
dia, mais e mais forte. No entanto, era Simplício quem vivenciava, sozinho, torturantes conflitos de
consciência, nos quais seu espírito se afligia na busca da solução impossível, aquilo que pudesse
conciliar o afeto e o cumprimento do dever.
Estava ele, pois, nesse estado d'alma quando, certo dia, Lúcia lhe disse que Zenóbio
desejava uma entrevista com ambos. No momento em que ela o notificou da convocação, Simplício
não fazia idéia da súbita mudança de rumo que os acontecimentos tomariam.
- Tudo bem, Zenóbio - disse Simplício, com tranqüilidade, embora a informação que
acabara de receber o tivesse inquietado. - Agiremos como você determinou.
Despediram-se ali mesmo. Lúcia ficou para cuidar de outros afazeres, e Simplício
retornou à vila com a cabeça em rebuliço. Seu próximo contato com Tanaka seria somente dentro
de cinco dias. Entretanto, aquela informação era quente demais e não poderia esperar tanto. Não
havia tempo a perder, Era preciso tomar uma decisão. "E Lúcia?", Pensava ele, atormentado. "Amo
essa moça, mas tenho uma missão a cumprir. Valerá a pena abandonar tudo por ela? Romper com
o compromisso que tenho comigo mesmo, com minhas idéias, com minha pátria?" O choque de
sentimentos, de emoções e dos conceitos que ele tinha arraigado em relação ao cumprimento do
dever lhe afligia dolorosamente a alma.
Mas, ao chegar à vila, já tomara uma decisão. Suas instruções eram claras para o
caso de emergências. "À pátria tudo se dá, nada se pede, nem mesmo compreensão." O
ensinamento piegas dos tempos de escola militar voltou-lhe à mente.
Ao anoitecer daquele mesmo dia, o agente Gabriel chegou à estrada. Estava exausto.
A marcha forçada esgotara-lhe as energias. Numa ravina escondida na floresta, armou sua rede
entre dois galhos de árvore e deitou-se para dormir. Demorou, contudo, a conciliar o sono. Sentia-
se suado, cansado e sujo, de corpo e de alma.
O que Gabriel não sabia era que um pedacinho de si mesmo ficara naquela selva.
Capítulo IV
São Raimundo era um lugarejo pobre e pacato, como tantos outros da região,
perdido nas barrancas do Araguaia e carente dos mais simples recursos. O município todo talvez
não tivesse mais do que três ou quatro mil habitantes. Médico nunca se viu por ali. O posto de
saúde estava fechado há vários meses por falta de enfermeiro e de material.
- Num vai acontecer nada não, Viriato. Num se aperreie, homem. Vai tudo dar certo,
com a ajuda de Deus. - Josué tentava animá-lo, embora soubesse que em caso de um imprevisto a
única solução era encomendar a alma ao Criador.
- Essa criança tá no ponto de nascê, mais tá travessada. Se não for na mão dum dotô,
tá arriscado de morrer os dois, a mãe e o fio.
Foi quando Raimundo Nonato, um rapazola de quinze anos, filho do vizinho e que
havia acordado com o alvoroço, disse:
- Tem uns paulista acoitado no sítio do Buriti, bem perto daqui. É capaz deles tê
argum remédio, ou quarqué uma outra coisa pra liviá o sofrimento de dona Rosa.
Todos olharam para o soldado, mas ele não estava em condições de decidir nada.
Genoveva foi quem tomou a iniciativa:
- Vá logo, minino, atrais desses paulista. Tirante Deus, é a nossa única salvação.
Cerca de uma hora e meia depois, Raimundo Nonato chegou de volta acompanhado
por um homem e uma mulher, Olavo e Vera. Os dois assumiram imediatamente o controle da
situação. Com jovialidade e calma, mas também com firmeza, eles determinaram que todos, à
exceção do marido, saíssem do recinto onde gemia de dor a parturiente. Depois de um breve
exame, ele confirmou o que dissera a velha Genoveva:
Olavo não era médico. Abandonara a faculdade, 1967, para se juntar à luta
revolucionária, interrompendo os estudos no início do quinto ano de medicina. Numa situação
como aquela, entretanto, tinha que tentar salvar a pobre mulher e, se possível, a criança.
Eram nove horas da noite. Na calçada da Farmácia Santa Rita, sentados em cadeiras
e tamboretes, um grupo de pessoas estava conversando e aproveitando a fresca para aliviar o
calor, antes de se recolherem para dormir. Reuniões desse tipo já se tornavam habituais ali, sempre
encabeçadas pelo próprio dono do estabelecimento, um negro bonachão, fala mansa e conversa
fácil, o qual há cinco meses montara seu negócio na Vila Palestina.
Levindo era o seu nome, mas atendia também pela alcunha de Azeitona e estava
sempre pronto, a qualquer hora do dia ou da noite, para atender aos fregueses, um morador da
vila, ou um trabalhador rural das redondezas. Suas fórmulas e receitas resolviam quase tudo numa
comunidade carente como aquela. Por isso e por sua simpatia, conquistara rapidamente a amizade
e o respeito daquela gente, e eles, por sua vez, contavam-lhe tudo, desde as fofocas domésticas até
as últimas novidades sobre o povo da mata.
Naquele momento, com seu potente rádio portátil Transglobe, Levindo sintonizava,
como fazia todas as noites, o programa mais ouvido da região.
- Esses paulista são gente boa. É eles que tão defendendo nois contra a exploração
dos rico e dos puderosos. Oceis num subero do causo do Manuel? Um desses grilero de terra teve
lá, com uma cunversa mole, falando de comprá as terrinha dele e num-sei-quê-mais-lá. A salvação
foi os paulista que chegaro em tempo e metero bala no fio du'a égua... - disse um.
- Eu, por mim, tou cum eles pra o que dé e vié. Na pricisão, largo muié, fio, tudo e vô
lutá mais eles, do lado do povo. Chega dos rico explora os pobre. Nois trabaia feito um disgramado,
e os fio da puta na capital, no bem bom... - acrescentou outro mais exaltado.
- Num sei não, cumpadre, se essas coisa qui tão aconticendo aqui é coisa certa, não...
- obtemperou um outro.
- Voc6es não estão vendo que esse punhadinho de paulistas não tem condição de
lutar contra o governo!?
- O quê? Levindo, larga mão de falá besteira. O governo já mandou pra cá sordado e
avião de ruma, cadê que acabou com os paulista?
Foi naquela hora que o coureiro Marinalvo, acabado de chegar e ouvindo o final da
conversa, disse:
- Disse que osturdia a muié dele que tava com o bucho por aculá, na hora de discansá
o minino travessou. E ela já tava sangrando pra morre. Vei um paulista que parece que é douto, e
salvou a muié e a criança. Pois, num deu uma sumana dispois do aconticido, o sordado arribou pra
mata, carregando deis fuzil da delegacia. Diz que o cabo Bráulio, o delegado, tá quase doido...
A conversa ainda continuou por mais algum tempo. Depois, cada um foi saindo à sua
vez para dormir, e o silêncio tomou conta do lugar.
Levindo reuniu essa informação a outras que havia coletado depois do último
encontro com seu contato, o Dr. Banzé, preparando o relatório que entregaria dois dias depois.
"A coisa está ficando perigosa. Pompeu já conseguiu levantar os nomes dos
subversivos do Paraíso. Não descobriu mais nada porque os putos não engoliram de todo a história
dele", pensava o nissei enquanto dirigia. "Tá na hora de retirar o bicho da área."
Eles não haviam trocado nem meia dúzia de palavras quando tiveram a atenção
despertada por um ruído estranho. O nissei sacou sua arma, mas não houve tempo para mais nada.
Uma saraivada de balas quebrou , de súbito, o silêncio da floresta. Tanaka se jogou na direção de
Pompeu, derrubando-o no chão e, a seguir, na posição agachada, descarregou o pente de munição,
atirando a esmo no rumo de onde viera o fogo.
- Seus subversivos filhos da puta! Mete a cara de fora, veados, covardes! - Gritou ele.
Como era costume, após a descarga inicial, os guerrilheiros fugiram, deixando apenas
o cheiro de pólvora no ar. Eles não tinham armamento para sustentar um combate e temiam um
enfrentamento por um tempo maior.
Pompeu recebera um tiro nas costas, na altura do pulmão direito. Estava vivo, mas
em estado de choque. Tanaka sobraçou-o sem perda de tempo, colocando-o nas costas e caminhou
o mais depressa que podia para o lugar onde deixara o jipe.
Dirigiu no limite de velocidade que a estrada e a viatura permitiam. No banco
traseiro, Pompeu dizia coisas que ele não conseguia entender direito:
Na noite seguinte, reunidos como sempre na calçada da Farmácia Santa Rita, Levindo
e outros, inclusive o Dr. Banzé, no papel de vendedor de laboratório, ouviam a rádio Tirana.
Levindo olhou significativamente para Banzé, e este pensou: "Temos que descobrir o
filho da puta que está enviando informação para a Albânia. O pessoal de comunicações vai ter que
achar o engraçadinho. E, aí, coitado dele..."
A reação daquela gente humilde ao noticiário da rádio Tirana não se fez esperar:
- ... não foi isso qui eu falei pro cêis, qui esse povo da mata é danado de porreta!
Num tá vendo aí? Num foi só o sordado Viriato qui arribou pro lado dos paulista, gente. Num viu o
qui o rádio falô?
- Essa é rádio de respeito, cumpadre. Num é dessas mequetrefe daqui não. Essa é do
estrangeiro, meu fio!
- Hoje, vocês vão me perdoar, mas tenho que entrar mais cedo. Eu mais o seu Banzé
temos que fazer uns acertos de pedido de remédio. Boa noite pra todos. — E os dois se retiraram.
Logo, os demais também foram saindo e se recolhendo às suas casas.
Capítulo V
- Pode parar aqui no entroncamento, por favor, amigão. Vou ficar aí mesmo - disse
Gabriel.
- Que é isso, meu chapa? Te levo até Marabá. A gente toma um bom banho, come
uma bóia na pensão da Noca e, depois, vamo pra zona, meu chapa, pegá umas putas e tomá
cerveja. Que tal?
- Não posso, amigão. Tenho uns assuntos pra resolver aqui perto. Quem sabe, mais
tarde, a gente topa lá na zona? De qualquer forma, obrigado pela carona.
- Alto lá, meu velho, aonde é que você pensa que vai?
Gabriel parou. O companheiro chegou mais perto, olhou-o de cima até em baixo e
disse incrédulo:
Naquela noite, o agente Gabriel, depois de um banho de verdade, com muito sabão
para tirar a sujeira que lhe impregnava o corpo, foi examinado pelo Dr. Walter, médico da equipe.
O doutor verificou que o rapaz estava à beira de colapso nervoso e recomendou que, depois de se
alimentar, tomasse um vasodilatador e dormisse o mais que pudesse.
- O que você tiver para dizer, vamos deixar para amanhã - falou para o agente e
reiterou para Padilha e para o Gordo, pois ambos aguardavam ansiosos. — Hoje, nada de
interrogatório.
O Dr. Walter foi chamado imediatamente e, desta vez, recomendou que Gabriel
fosse afastado da área para um período prolongado de recuperação.
- A missão dele não foi fácil, e me parece que algo mais aconteceu, levando-o a este
estado de esgotamento. Uma temporada longe daqui vai fazer bem a ele e a todos nós.
- Não deve ser nada tão importante assim - disse o insensível e intragável Padilha.
- Porra, antes desse estudo, nunca pensei que a área fosse tão grande, tivesse tantos
pontos vulneráveis e tantos problemas de jurisdição envolvidos. A região - disse apontando para o
mapa - compreende uma área de aproximadamente vinte mil quilômetros quadrados, quase do
tamanho do Estado de Sergipe. Basicamente, teremos que reforçar todos os acessos rodoviários
nos seguintes locais. - E foi nomeando os pontos, ao mesmo tempo em que mostrava cada
localização na carta geográfica.
No dia seguinte, pela manhã, uma mensagem cifrada foi redigida, codificada e
enviada para Brasília, solicitando o engajamento da Polícia Federal na missão de patrulhamento das
estradas de acesso à região, bem como para a vigilância fluvial.
Enquanto isso, depois de uma série de reuniões nas quais tomaram parte membros
dos Estados-Maiores do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, na capital federal, decidiu-se que a
Força Aérea e a Armada se empenhariam na patrulha do mar territorial, no trecho entre Fortaleza,
capital do Ceará, e o Cabo Orange, no Oiapoque, Amapá. De tal maneira que qualquer tentativa de
desembarque da famigerada carga, por via marítima, fosse obstaculizada.
- Todas as providências possíveis foram tomadas - dizia o coronel Viana a uma alta
patente do gabinete do ministro da Aeronáutica. - agora, é rezar para que tudo dê certo.
- No final, quem resolve tudo é a FAB. Os "paulinhos" vão gastar quase dez dias para
chegar com aquelas banheiras velhas na área de operação.
Há quase quinze anos no "tapetão", ele nem desconfiava da azáfama que naquele
momento agitava os integrantes de ambas as unidades designadas para cumprir a missão.
O Dr. Kiner estava tranqüilo agora. "A rapidez com que Brasília atendeu à minha
solicitação é uma prova de que eles confiam em mim", pensava com um sorriso de satisfação.
- Radar para piloto, - explodiu a voz do operador-radar nos fones do capacete de vôo
do major Eliseu. - Contato baleia, posição: zero zero graus, trinta e uno minutos norte; zero quatro
uno graus, vinte e sete minutos oeste. Proa para interceptação: direita, três uno zero. Câmbio.
- Piloto para radar. Ciente. Curvando à direita para três uno zero. Câmbio.
O major João Elizeu de Barros executou uma suave curva para a direita, preparando-
se para mais uma interceptação e identificação de navio. Eram dez horas e dezessete minutos. Céu
claro com uns poucos cúmulos.
- Radar para piloto. Distância do alvo: quarenta e duas milhas. Correção à direita dois
graus. Câmbio.
- Atenção, tripulação, descendo para dois mil pés, - disse Elizeu, corrigindo o rumo
dois graus à direita.
- Contato avistado.
E iniciou uma curva para a direita, descendo, com a finalidade de se posicionar para
uma passagem em vôo rasante, no sentido transversal ao eixo de deslocamento do navio.
- Atenção, tripulação, para passagem baixa. O navio vai ficar à esquerda, - disse
Elizeu, manobrando para passar a uma distância conveniente da popa do vaso e permitir a leitura
do seu nome e porto de origem.
- É navio de bandeira russa, - falou Cavalcante, buscando na pasta de navegação o
manual para decodificação do alfabeto cirílico. - É o Ivanenko, porto de Riga, Letônia, URSS.
- Okey, Cavalcante, - disse Elizeu, procurando demonstrar uma calma que não estava
sentindo. - Vou fazer uma passagem no sentido longitudinal, da popa para a proa, e sinalizar para
que ele mude o rumo para São Luís do Maranhão, onde a fragata da Marinha está.
- Ciente, Elizeu. A proa para São Luís é dois dois cinco. - E confirmou a leitura do
plotador na carta de navegação.
- Tá certo. Enquanto isso, você tenta o contato com a fragata para dar a posição do
navio e mandar que eles se desloquem para cá, - falou Elizeu para seu segundo-piloto e, pelo
interfone: - Atenção, tripulação, para lançamento de foguete de advertência.
Manobrou com precisão, pois era um bom piloto, e alinhou no curso do navio,
enquanto o sargento Pistolato ligava o circuito de foguetes. Entrou no mergulho e colocou o visor
cerca de cem pés à frente da proa do vaso. O lançamento foi perfeito. Uma coluna de água explodiu
na dianteira do russo, ligeiramente a bombordo.
- Filho da puta! Esse russo tá querendo levar ameixa quente nos costados, -
esbravejou o major.
- O "Paulinho" disse que eles vão levar de dez a doze horas para chegar ao ponto
provável de interceptação, mas, pelos meus cálculos, se o russo estiver mesmo com a carga referida
na ordem de missão, ele faz o desembarque antes que a Marinha o alcance.
- Vamos falar com o Comgar (Comando Geral do Ar) e pedir instruções, - disse Elizeu.
"Porra, ainda faltam quatro horas para nossa substituição, e eu com essa batata quente na mão",
pensou.
Uma hora depois, chegou a mensagem em código com a resposta do Comgar. Depois
de decodificada, Elizeu não acreditou no que lia: ORDEM DO COMANDO SUPREMO: ATACAR E
COLOCAR O VASO RUSSO A PIQUE; DETERMINAÇÃO PARA CUMPRIMENTO IMEDIATO; COMGAR.
- Puta quina merda! Tô fudido e malpago. Esses putos de Brasília estão querendo me
lascar, - esbravejou o major Elizeu. - Meu Deus, o que é que eu faço? Ordem do Presidente. Não
pode ser!
A confirmação chegou em seguida. Não havia dúvida. A ordem era mesmo para
afundar o cargueiro russo.
- Eu não vou fazer isso, Cavalcante. A gente nem sabe se eles estão mesmo com a
carga. Não posso fazer uma coisa dessa. Já pensou se o russo tá limpo, o peso na nossa consciência.
O navio deve estar cheio de pessoas, de pais de família, de gente inocente. Não, eu não vou fazer
isso.
Trinta minutos depois, o Comgar fez contato para obter informação do resultado do
ataque.
- Diga que estamos com problemas técnicos e que o ataque ainda não foi realizado, -
respondeu Elizeu. Ele não poderia sustentar a mentira por muito tempo. Havia toda uma tripulação
de testemunha, e a aeronave seria vistoriada no solo.
Enquanto isso, em Brasília, o alto-comando estava reunido para decidir o que fazer.
O próprio Presidente ligara para o ministro da Aeronáutica cobrando o resultado do ataque.
- Esse majorzinho, o que é que ele está pensando que é? - Dizia um brigadeiro. - Que
conversa fiada é essa de problema técnico? Será que ele pensa que nasci ontem? - Espumava a
velha águia.
- Se ele não afundar o russo, vamos levar esse cara à corte marcial. Como é mesmo o
nome do "boca-mole"? - Perguntou um outro brigadeiro.
- É um tal de João Elizeu de Barros. As fichas dele dizem que é um oficial regular. Não
tem muita liderança e é incapaz de tomar decisões fortes, - disse o secretário da comissão de
promoções.
- Não tem jeito, Elizeu. Temos que afundar o russo, - disse o capitão Cavalcante.
Eram treze horas e cinco minutos. Há quase três horas eles faziam o
acompanhamento do navio.
- Vou fazer um último passe, sinalizando para que ele mude o rumo para São Luís, -
disse o major.
- Parece que ele está mudando o curso, major. Ficaram todos observando em
silêncio. O navio estava curvando lentamente. Uma curva de raio bem grande para estibordo,
tomando a proa para o litoral do Maranhão.
Elizeu respirou aliviado. Toda a tripulação respirou aliviada. "O cara é um bunda-
mole, mas tem sorte", pensou Cavalcante.
Seis horas depois, quando Elizeu e sua tripulação já estavam no cassino da Base
Aérea de Belém, a fragata da Marinha interceptava o Ivanenko e iniciava a escolta para o porto de
São Luís.
No dia seguinte o navio foi vistoriado e nenhuma carga ilícita foi encontrada. A
explicação do comandante para a sua desobediência inicial aos sinais do P-15 foram de que o navio
estava com problemas na casa do leme. Uma engrenagem havia cisalhado, e o dispositivo ficara
travado na posição de alinhamento com o eixo longitudinal da embarcação. Não havia como mudar
o rumo. O velho marinheiro ficara apavorado. Ele sabia que a qualquer momento uma bomba
poderia ser lançada contra seu navio. Os mecânicos trabalharam a toda pressa para fazer o reparo.
No porto, os técnicos da Marinha comprovaram as alegações do russo, e o cargueiro foi liberado.
- Continuo achando que esse major tem, no mínimo. Que ser levado a Conselho de
Justificação, por não ter cumprido a ordem, - dizia um brigadeiro mais radical.
- Acho que ele tem mais é que receber uma medalha. A indecisão dele salvou o país
de um sério problema diplomático, - rebateu um outro.
- Uma coisa é certa. Esse major tem uma sorte admirável. Deve ser protegido do meu
padim padre Cícero, só pode! Desse jeito, daqui a alguns anos, ele chega a brigadeiro, - augurou um
terceiro.
Poucos dias depois, já não se falava mais sobre o assunto. O tempo se encarregou de
apagar o incidente.
Capítulo VI
- Fique na sua, Firmino! Os homens sabem o que estão fazendo, - respondeu o outro,
cortante.
Naquele dia, o Dr. Banzé chegou de Vila Palestina. Seu relatório verbal a Kiner e a
Padilha não foi dos mais animadores.
- ... e, para complicar mais ainda, essa porra de rádio Tirana está insuflando esses
matutos ignorantes contra o governo. O que a Tirana diz eles acreditam. E o pior é que a rádio esta
recebendo informações fresquinhas de tudo o que acontece aqui.
- Nós temos escutado a Tirana todas as noites, - disse Kiner. - E, agora, com as
informações que você trouxe, a gente verifica que, embora distorcidas, algumas notícias acabaram
de sair do forno. São fatos ocorridos há vinte e quatro, ou quarenta e oito horas.
- É a velha e conhecida história do faça o que eu digo e não faça o que eu faço, -
comentou Banzé.
- Você queria o quê? - Disse Kiner. - A Albânia é o país comunista mais retrógrado do
Leste europeu. Eles entendem que aquilo a que chamam de ditadura do proletariado é democracia.
Como é que você vai colocar na cabeça de um comunista radical que liberdade e igualdade são
palavras antagônicas, incompatíveis uma com a outra, meu caro? O regime de liberdade
democrática que almejamos para o nosso país, dentro de uma economia capitalista, com um
mercado de livre concorrência, inevitavelmente gera desigualdades, e os mais capazes tendem a
obter maiores vantagens. A própria sociedade se encarrega de reconhecer e recompensar melhor
aqueles que têm mais a dar de si à comunidade. E é isso o que está certo.
- Pensamento claríssimo, chefe. Sua colocação foi brilhante. E não estou lhe puxando
o saco, pois o senhor sabe que este não é o meu feitio, - disse Padilha.
- Também penso como o senhor, Dr. Kiner, - falou Banzé, complementando: - Como
é se vai tratar igualmente aos desiguais? Concordo que temos situações muito difíceis, no Brasil, do
ponto de vista social. No entanto, existem inúmeros outros problemas, e o governo não pode
resolvê-los todos ao mesmo tempo. A Revolução que fizemos foi para acabar com a corrupção e
com a subversão das instituições democráticas. As demais dificuldades serão solucionadas aos
poucos e ao seu tempo. Não é assim?
- Mas, doutor, voltando ao assunto da rádio Tirana, isso não pode ficar assim. Temos
que tomar alguma providência. O que é que fazemos? - Perguntou Padilha.
Dias depois, um serviço de radioescuta permanente foi instalado na Casa Azul. Além
disso, uma estação móvel foi montada numa camioneta Veraneio, para permitir o deslocamento
rápido e possibilitar o cruzamento de eventuais sinais eletrônicos suspeitos que viessem a ser
detectados.
Uma pena!
- Minino, vai vestir uma roupa, minino! Se não o candiru te pega, seu peste, - gritava
a cabocla Januária para o moleque Altair que insistia em tomar banho nu no rio Araguaia.
Eram sete horas da manhã, e o calor já estava forte em Xambioá. Enquanto Januária
lavava a roupa na beira do rio, um barco vinha chegando. O homem desligou o motor e deixou a
embarcação encostar suavemente na areia branca da margem. Um casal de maracanãs passou
voando baixo, cruzando o rio.
- Bom dia, Zé Geraldo. Acordou cedo pra pesca, né? - Perguntou ela ao barqueiro.
- Bom dia, Januária. Saí na madrugadinha, mas a pescaria foi fraca. Um pintado
pequeno, dois bagres e uns seis ou sete pacus. Pegue alguns pra você, - disse, arrastando o barco
mais para cima e acorrentando-o ao tronco de uma saboarana.
- Fico com os bagre. Pra fazê um pirão de peixe não tem milhor, - falou e
acrescentou: - O fio da dona Etinha teve aqui inda agorinha, procurando por ocê. Deixou recado,
dizendo que a mãe tá precisando de falá com ocê. Pra quando cê tivé um tempinho, passá na casa
dela.
Ele abriu a oficina, guardou com cuidado seus petrechos de pesca e disse para Xingó,
um negrinho risonho, seu ajudante:
- Se alguém me procurar, diga que fui até a casa da dona Etinha e não demoro.
Enquanto isso, desmonte o carburador do carro do seu João da farmácia e faça uma limpeza
completa. - Pegou sua bolsa de ferramentas e partiu.
- Bom dia, Zé Geraldo. Aonde vai você com tanta pressa, homem de Deus? -
Perguntou Valdir, o dono do bar Quentão, acabando de abrir as portas.
- Vou atender a um chamado de dona Etinha. Te mais tarde, meu velho, - respondeu
e apressou o passo.
- Sujeito bom tá aí, esse Zé Geraldo. Trabalhador e sempre ajudando um aqui, outro
acolá, - comentou Valdir com um freguês que ia entrando.
Zé Geraldo era assim. Todos gostavam dele. Todavia, embora levasse vida pacata,
movimentava-se bastante. Freqüentemente, lá estava ele indo a Araguaína, a Estreito, a Imperatriz
e a outros locais para comprar peças, dizia-se, ou para atender a um amigo, ou para adquirir
material de pesca, sua grande paixão. Nessas viagens, usava um fusquinha velho, porém mantido
em perfeito funcionamento, por ele próprio, em sua oficina. Seu pequeno barco recebia o mesmo
tratamento dispensado ao carro. Fato interessante, no entanto, era que ele viajava, ou saía para
pescar, sempre sozinho. Contudo, ele não era um solitário. Não, solitário ele não era. Estava
sempre buscando a companhia de outras pessoas, gostava de conversar e de se relacionar com
todos na comunidade.
- Bom dia, dona Etinha. Mandou chamar, tou aqui, às suas ordens, - disse Zé Geraldo,
entrando na casa de Etinha.
- Meu Deus, isso é que é homem de presteza, - falou a mulher, um tanto assustada
com a chegada quase inopinada dele. - Se abanque. Vou lhe dar um cafezinho. Depois explico por
que lhe chamei.
A casa era pobre, mas limpa e bem-cuidada. Ele sentou-se na ponta de um banco,
sorriu para ela e disse:
Etinha era viúva. Tinha quatro filhos para criar. O mais velho, com dezoito anos, já
ajudava trabalhando em São Geraldo, do outro lado do rio, na Madeireira Nova Olinda. Ela, por seu
turno, lavava e passava roupa para fora.
- Tá aqui seu café e sua broa, filho de Deus. Agora, lhe explico. Tou desacoroçoada,
Zé Geraldo. Tava onte passando umas pecinhas de roupa pra mode intregá hoje, quando di repente
o ferro papocou, saiu um foguinho e num funcionou mais, o disgramado. Aí, me alembrei de ocê! É
capaiz qui o Zé Geraldo dê um jeitinho nesse ferro. Mandei lhe incomodá, mas Deus vai lhe
abençoá por essa sua bondade, meu fio.
O conserto foi coisa simples, resolvida em poucos minutos. Etinha ficou feliz, e ele se
preparou para partir de volta.
- Ocê é um anjo, Zé Geraldo. Me diga quanto é, lhe pago depois, quando Tonho
recebê.
- Dona Etinha, não me fale em pagamento. Foi uma coisica de nada. O café e a broa
pagaram com sobra, - disse o rapaz, despedindo-se.
Assim era o Zé Geraldo. Instalado em Xambioá desde 1966, era também eletricista e
radiotécnico. Se surgia um problema hidráulico, ele resolvia igualmente. Se as pessoas podiam
pagar, ótimo. Se não podiam, tudo bem. E ele estava pronto a ajudar pobres ou ricos,
indistintamente. Além do mais, Zé Geraldo era discreto, ouvia muito e falava pouco. Tinha lá os
seus casos na Zona do Vietinam, ou com umaou outra mulher do lugar, mas sempre na maior
discrição e decência. Uma grande amiga sua era a Baleia.
O mês de setembro de 1973 ia pelo meio. A retirada do agente Edmar da região dos
Perdidos fora realizada sem incidentes. As informações obtidas por ele, embora não fossem
completas, eram suficientes para os propósitos da Casa Azul. A situação estava se deteriorando a
cada dia. Mais fazendas haviam sido invadidas, e mais pessoas, justiçadas.
Na reunião do pôr-do-sol daquele dia, o clima estava tenso. Até o Gordo estava sério
e compenetrado. Padilha, este nem se fala, destilava ódio por todos os poros. José Lucas não
demonstrava nada, mantendo o olhar frio, à espera das palavras de Kiner. Os demais estavam,
igualmente, nervosos e expectantes.
- Meus senhores, - disse Kiner, - hoje é um dia decisivo e no qual colocaremos todos
os dados ne mesa, para avaliação das ações que deverão ser empreendidas daqui por diante. Como
todos os senhores sabem, o quadro geral da área está ficando cada vez mais difícil. Em que pese a
quantidade de subversivos alienígenas, segundo o nosso próprio levantamento, ser menor do que
supúnhamos, eles estão conseguindo aliciar um número crescente de elementos naturais da região,
de tal sorte que o ambiente na área está à beira de uma explosão social. Desta forma, teremos que
agir em duas frentes. Primeiro, conquistar o apoio da população local e, em segundo lugar,
combater os guerrilheiros diretamente, através de uma operação de força para eliminar, de uma
vez por todas, o tumor pela raiz. - Fez uma pausa e olhou para cada um dos presentes com energia,
concluindo: - Assim, o nosso chefe de operações, Dr. Padilha, vai expor o panorama geral da
situação. A seguir, o Dr. Ambrósio nos mostrará o que foi planejado no que respeita à questão da
conquista do apoio da população civil. E, finalmente, o subchefe de operações, Dr. Tomé, discorrerá
sobre o problema tático de combate, - disse encerrando sua fala, sentando-se e entregando a
palavra a Padilha.
- Meus amigos, a situação está preta, - iniciou dizendo, com um leve sorriso. -Numa
situação dessa, eu mato ou morro. - Fez uma breve pausa sob o olhar expectante da audiência. - Ou
corro pro mato, ou corro pro morro! - A platéia, como sempre, explodiu em risos, nem tanto pela
velha piada, mas pelo jeito dele e pela cara de pacamão de enxurrada feita por Padilha.
"As patrulhas, como de resto todos os demais elementos envolvidos, deverão usar
roupas civis, liberando-se o corte de cabelo e da barba, uma vez que não é conveniente caracterizar
a manobra como operação militar. Os subversivos gosta-riam que assim fosse porque isso lhes
daria, a nível internacional, a oportunidade de obterem o reconhecimento, por outros países, de
um território conflagrado dentro do Brasil.
"A execução desse plano tático dependerá de apoio aéreo, tanto de helicópteros de
assalto como de aviões de ligação e observação para o controle e acompanhamento da evolução
das patrulhas no terreno, através de rádio. Outro aspecto é o de acantonamento. O comando da
operação deve permanecer aqui, na Casa Azul, e a tropa ficaria acampada em Xambioá. Teríamos
aqui, também, um helicóptero e um avião, enquanto lá seriam dois e dois. A sugestão é que a Força
Aérea se instale sob a capa de uma companhia de mineração. A força terrestre adotará a cobertura
de uma empresa agropecuária. É essa, em linhas gerais, a ideia de manobra” — concluiu,
finalmente, o subchefe de operações.
- Cupuaçu está bem, Val. Como vão indo as coisas? - perguntou o mecânico, puxando
uma cadeira e sentando.
Estava uma noite de céu claro, quente e úmida, como são as da Amazónia. Um sapo-
cururu coaxava na barranca do rio. A caboclinha Bartira, meninota fagueira, empregada da Baleia,
trouxe um copo gelado do delicioso refresco e entregou-o a Zé Geraldo.
- O povo da mata é que num tem aparecido mais por aqui, né, dona Valquíria? -
comentou Raimundo Barroso, o dono do armazém e negociante clandestino de peles adquiridas a
baixo preço dos coureiros da região e vendidas com alto lucro em Belém.
- É verdade. Vai pra mais de um mês que nenhum deles mostra a cara no Xambioá. O
que será deles? - falou Valquíria.
- O filho do cumpadre Félix, cês conhece ele né?, chegou hoje cedo da mata e disse
que os paulista tão se armando e falando pró povo se arma também, que não demora muito vem
mais tropa pra cá. Será verdade? - perguntou Maria Preta, mulher do dono da padaria.
- Verdade ou não, os paulistas tão certo. Tem que acabar essa pouca vergonha dos
castanheiro explorar os pobres dos colhedô. E o castanhal nem deles é de verdade, que ês não
pussui os documento do cartório. Alguns que diz que tem, quando vai vê, é farcificado - falou
Armandino, barbeiro do salão Tesoura Dourada.
Era assim a calçada da casa de Maria Valquíria Antunes, a Baleia. As pessoas ficavam
ali conversando e pegando a fresca. Passava um, parava para um dedo de prosa e aproveitava para
tomar um refresco, que nunca faltava. Ali, também, ficava-se sabendo de tudo. Os mexericos da
cidade, os acontecimentos da região, tudo circulava pela porta da Baleia.
- Não me diga que vai pescar esta noite - falou a Baleia, e soltou uma gostosa
gargalhada. - Tem peixe melhor pra você pegar na rede aqui mesmo, meu nego. Você é que não
quer ver - maliciou ela.
Val era clara, tinha os cabelos artificialmente louros e, nos seus trinta e cinco anos e
cento e dez quilos de peso, é possível que nunca alguém tenha notado o mais leve sinal de mau
humor e aborrecimento em seu semblante. Estava sempre alegre e satisfeita, demonstrando seu
bom humor por gargalhadas como aquela.
A GUERRILHA
Capítulo VII
— O voo foi bom. A estada em Brasília é que não foi tão agradável quanto eu
esperava. Trago notícias boas e más — respondeu Kiner, enquanto entregava os bilhetes de
bagagem ao motorista da camioneta que viera apanhá-lo. — Fui para passar três dias, terminei
ficando oito. Aqueles calças-altas do tapetão são uns babacas. Mas vamos andando que estou louco
por um banho. Mais tarde a gente conversa. Convoque o pessoal para uma reunião às oito da noite.
— O chefe chegou afinal. Parece que as coisas não andaram muito bem lá na corte.
Ele está meio aborrecido. Reunião às oito. Avise ao pessoal.
A informação de que Kiner não trouxera boas notícias da capital correu rápido,
preocupando a todos. Às oito, o ambiente na sala de reuniões estava tenso.
— Meus senhores, em primeiro lugar, quero me congratular com todos vocês pelo
excelente trabalho desenvolvido — iniciou Kiner. — Nossos chefes, em Brasília, ficaram muito
satisfeitos e impressionados com os resultados da operação de inteligência, bem como com o
planejamento da ação futura. — Todos respiraram aliviados. Estas eram excelentes novidades,
ainda que não surpreendentes. Se havia más notícias, quais seriam então? — Portanto, vocês estão
de parabéns. Transmitam os meus agradecimentos aos demais subordinados. Dentro de alguns
dias, as tropas e os companheiros da força aérea estarão chegando para a manobra de combate,
conforme os planos que vocês traçaram. — Fez uma pausa e encarou cada um. Depois prosseguiu:
— Sei, no entanto, que já circularam os boatos de que trago, também, novidades nada boas. Não é
verdade, Padilha? — O chefe de operações pigarreou, contrafeito. Kiner continuou: — As más
notícias, porém, dizem respeito a mim e ao próprio Dr. Padilha. Após muitas reuniões e debates,
nossos generais chegaram à conclusão de que a fase seguinte não deve ser comandada por
elementos da comunidade de informações. Assim, eu e Padilha seremos substituídos, nos próximos
dias, por gente da tropa. Provavelmente, alguém do Comando Militar da Amazónia, o CMA, que
trará seu próprio chefe de operações. Como vocês sabem, esta região está provocando conflito de
jurisdição também no Exército. A área, geograficamente, pertence ao CMA, embora quem está de
fato à frente das operações seja um general do Comando Militar do Planalto. Isso vem provocando
ciúmes, daí a decisão de se colocar gente do CMA na Casa Azul. Este era, pois, o meu relatório de
viagem — concluiu ele.
Padilha ficou desolado. "Logo agora que vai começar a fase boa de caça aos
subversivos? E as diárias fora de sede que tanto ajudam no orçamento? Isso foi sacanagem",
pensava. Os demais abandonavam o recinto, quase todos satis-feitos com as "más notícias".
— Égua, seu menino, que as coisas vão entortar de vez agora. Quer dizer que os
home tão prendendo todo mundo, a torto e a direito, lá na mata? — perguntou Valquíria.
— É o que lhe estou dizendo. Os home do governo tão chegando nos sítios, nas vilas
e em tudo que é lugar, naqueles avião, sabe qual, né? Aqueles da hélice em cima. E vão descendo e
prendendo e dando porrada nos pobre dos trabaiadores. Quando é com pouco, eles alevantam
voo, carregando quatro, cinco pai de família. Diz que as muleres eles não tão prendendo não, ou
parece que prenderam só uma tal de Palmira, muler dum cara que eles chamam de Manel das Duas
— contou um dos frequentadores da calçada da Baleia.
— E eles tão levando esse povo preso pra onde? — perguntou Maria Preta.
— Ninguém sabe, dona Maria. Agora, diz que o que faz pena são as crianças
chorando, vendo os pais sendo preso, sendo humilhado debaixo de porrada, sem ter feito nada.
— Aqui no Xambioá eles não apareceram ainda, mas não demora muito eles vão tá
chegando naqueles avião que faz apa pá pá pá pá — disse Paulo Boto, um pescador conhecido por
seus ditos engraçados.
— Esse avião chama helicóptero, Paulo Boto — falou Valquíria, soltando uma de suas
gargalhadas.
— Minha língua não dá de fala esse nome aí, não, dona Val — retrucou ele, e todos
riram do jeito franco e espontâneo do homem.
Zé Geraldo, que estava só ouvindo, sem se manifestar, pensava: "Esta noite vou ter
que sair para uma pescaria."
O local denominado Bacaba, no quilómetro cinquenta da Transamazônica, a contar
da divisa de Goiás com o Pará, era constituído por apenas uma velha casa de madeira, recuada uns
cem metros, do lado esquerdo da estrada, no sentido Palestina—Marabá. Do outro lado do
caminho, igualmente a uns cem metros, existia uma pista de pouso de cascalho, paralela à rodovia
e dela separada por um trecho de vegetação de médio porte.
— Pelo amor de Deus, seu doutô, tenha piedade... Eu conto tudo que o doutô
quisé... Ai, ai aiai... Virgem Maria, me acuda! — implorava e gemia, gemia e gritava Chicão,
coIhedor de castanhas e morador da região dos Perdidos.
— Você vai continuar a dar guarida pra subversivo, seu filho da puta... Hein?...
Responde, seu corno, se não eu vou enfiar este pedaço de cano no seu rabo... — José Lucas
Quintino Nicoline, o Dr. Zeca, era implacável.
— Eu juro, doutô, que num sei de nada... Não faça isso... Eu prometo que, se o sinhô
me sortá, mostro o lugar onde esse povo da mata sisconde... Prometo, doutô...
— Quer dizer que você sabe, não é, seu merda? Ô Laurindo, coloca neste aqui o
"brinco da princesa", pra ele ficar sabendo o que acontece com quem mente — falou Zeca.
— E, ainda por cima, esse veado é cagão... — disse o que se chamava Laurindo.
— Chega por hoje. Manda dar um banho nesse cara — ordenou Zeca. E, para Chicão:
— Se você se comportar direito, amanhã nós vamos conversar sobre essa história de você nos
mostrar onde os subversivos estão escondidos.
Chicão estava pálido, quase desfalecido. "Meu Deus, o que será de mim? O que esses
home quisé eu faço. Só num quero é sofrê mais. Deus me ajude", pensava, enquanto era arrastado
para fora do barracão.
Na noite escura, Zé Geraldo colocou com cuidado seu material de pesca no barco.
Verificou o relógio de pulso. Eram duas horas da manhã. Empurrou a embarcação para dentro do
rio, tomou assento na popa e remou até um local onde ele sabia ser a profundidade suficiente para
acionar o motor.
Navegando com atenção pelos canais que conhecia na palma da mão, chegou até a
embocadura do rio Corda. Pouco depois, encostou na barranca do afluente do Araguaia e amarrou
o barco a um tronco de árvore.
Consultou o relógio novamente, com o auxílio de uma lanterna. Três e trinta e cinco.
Ainda tinha vinte e cinco minutos. O lugar onde ele se encontrava era de vegetação menos densa,
quase do tipo cerrado.
- Na reunião marcada para amanhã, quero que você me coloque a par de todos os
problemas, indicando os responsáveis por cada uma das áreas - falou Oran. -Até lá, vamos tratar
das verbas e da prestação de contas, para que eu assuma sabendo das disponibilidades de dinheiro.
Pelo visto, as despesas da operação são altas e irão aumentar com a chegada da tropa.
- Vou lhe passar tudo em ordem e em dia, mas não se preocupe com esse aspecto.
Brasília não recusa nenhum pedido de verba para nós, e o intendente da operação é um sujeito
bem traquejado - disse Kiner, num tom quase paternal, ao companheiro.
Os três, Kiner, Oran e Gil, foram até o pátio para dar uma volta. A noite estava muito
quente, e a cobertura de amianto da Casa Azul contribuía para aumentar o calor. Fora, Padilha
juntou-se ao grupo.
- Ah, são todos jovens, alegres e divertidos. O relacionamento é ótimo - disse Kiner.
- Se bem que eles são um pouco folgados pró meu gosto - acrescentou Padilha,
mordaz. Os outros três não lhe deram atenção.
- No mesmo conjunto, existe uma casa que é ocupada por cinco professoras
solteiras, contratadas pelo Incra para lecionar na escola rural que será inaugurada em breve.
Apelidamos a casa de pombal e as moças, de pombas. À noite, depois da reunião, a gente, de vez
em quando, dá uma chegada lá, joga uma conversa fora com elas e relaxa das tensões do dia. Elas
são boas pessoas, e, pelo que sei, até agora ninguém comeu ninguém.
- Parece, então, que a estada aqui não é tão má assim - comentou Gil, arregalando os
olhos interessadamente. Quando o assunto era mulher, ele ficava aceso. Alto, aloirado, com pinta
de galã de novela, era o major de artilharia Ranulfo Silveira. Embora fosse um testicocéfalo, era
considerado um bom profissional.
- Bem, não é um mar de rosas, mas dá pra levar sem entrar em desespero. Antes que
algo semelhante aconteça, nós mandamos o homem passar um semana na sua sede. Temos uma
espécie de rodízio, no qual cada um procura cobrir a au-sência do companheiro que está fora -
explicou Kiner.
- Quando fui designado para a missão - disse Oran -, tive o cuidado de dar um pulo a
Brasília para tomar pé da situação nos bastidores. Um dos assuntos que verifiquei lá foi,
justamente, o de pessoal. A fase de combate vai exigir um esforço maior, de maneira que
providenciei um aumento do efetivo no comandamento da operação. Cada função terá, no mínimo,
dois homens, de tal sorte que os períodos de "refresco" na sede sejam regulares, de acordo com
uma escala.
Oran era metódico e organizado. Suas ações eram sempre planejadas, jamais decidia
de afogadilho.
- Grande providência, Oran - disse Kiner que pensara em fazer o mesmo quando
assumira o comando, mas desistira da idéia para que o general não achasse que estava exigindo
muito.
- Voltando ao assunto das pombas - falou Gil - elas são confiáveis, quero dizer, elas
sabem da nossa missão aqui?
- É bom saber disso. Parece que elas têm consciência de que a Revolução de 64 não
foi um movimento unilateral dos militares, mas uma solicitação da própria sociedade civil para que
nós interviéssemos para dar cobro à situação de caos político, social e económico a que nos estava
levando João Goulart - observou Gil, imaginando quão interessante seria conhecer as pombas.
A conversa prolongou-se por mais algum tempo, antes que eles se recolhessem para
dormir.
- Quer dizer que você está mesmo disposto a colaborar com o governo, Chicão? -
perguntou o Gordo pela enésima vez, calma e pacientemente.
- Então, tá tudo combinado. Por uns tempos você vai ficar aqui com a gente, mas
ninguém vai mais bater em você. Quanto à sua família, pode ficar tranquilo. Nós já estamos
providenciando tudo. Sua mulher vai receber mantimentos e roupas pra ela e pras crianças. Por seu
trabalho para nós, vamos lhe pagar também um dinheirinho. O governo é bom, Chicão, só
queremos o bem do povo.
Era meados de outubro. Dos duzentos e tantos prisioneiros que haviam passado por
Bacaba, eles selecionaram cerca de quarenta, entre mateiros e guias. Os que foram liberados
saíram dali aterrorizados. Sabiam que a punição iria fazê-los pensar duas vezes antes de darem
qualquer cobertura ao povo da mata.
Apesar da dureza com que Zeca e outros trataram Palmira, a mulher resistiu
bravamente, negando até o fim sua participação na emboscada que vitimara o agente Eliseu sete
meses atrás. Contudo, ao ser liberada, juntamente com Manuel, ela levava secretamente um ódio e
um desejo de vingança que per-durariam por muito tempo. Aquela era uma mulher indomável.
- O Matuala não sabe de nada, porra. É um babaca, porra! Pode deixar que eu falo
diretamente com ele e resolvo isso. Manda o pirão, negão, sem perda de tempo - dizia o major-
aviador Sariema, oficial de operações do 1º EMRA, Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque,
ao chefe do material. - Se não estiver tudo pronto até o fim do expediente, porra, nós vamos fazer
serão. Um Búfalo e um Dakota vão estacionar aí no pátio amanhã cedo para carregar. Decolagem
prevista para as treze zulu, negão.
- Tudo bem, major. Mas é que o comandante esteve lá embaixo, no hangar, e disse
que era para suspender o encaixotamento do material até ele falar com o Comar (Comando Aéreo
Regional). O velho tá uma arara com essa operação -disse o capitão Kauajima.
- Porra, já falei, porra! Manda o pirão, negão - replicou Sariema nervoso, mas sem se
aborrecer com o zeloso e responsável chefe de material do esquadrão.
Quando o japonês saiu da sala de operações, Sariema falou para o chefe de pessoal,
capitão Gonçalo:
- Meu setor está todo pronto, viu, viu, major. Estamos embalando as última caixas de
material de expediente e a sala de briefing está preparada para amanhã às oito, major - respondeu
o atoleimado capitão.
- Não foi bem assim, Sariema. Quero só perguntar primeiro pró Comar como é que
vai ficar a situação do esquadrão, aqui na sede, com o deslocamento da maioria das aeronaves e do
efetivo. Sem avião aqui eu fecho as portas e vou pra casa. Porque eu, meu caro, não vou pro meio
do mato me foder. Estou muito velho pra isso.
- Porra, coronel, sou o chefe de operações desta porra, ou não sou? Mandei preparar
para deslocamento, porra, cumprindo determinação direta do Comgar (Comando Geral do Ar),
porra.
- Calma, Sariema. Não precisa ficar nervoso... Pode prosseguir com a sua
programação - disse ele, afável. Outra característica de sua personalidade era que, se o
subordinado o peitasse, ele não revidava. Ao contrário, "botava o galho dentro".
O major saiu do gabinete cuspindo marimbondos.
- ...todo o pessoal envolvido na operação usará trajes civis, sendo recomendável que
cada um deixe de cortar o cabelo e a barba, por algum tempo, para nos descaracterizarmos da
postura militar - expunha agora o chefe de pessoal. - Todos, igualmente, devem usar um codinome,
e é terminantemente proibido que um se dirija ao outro pelo nome verdadeiro. Assim, vamos
procurar decorar, o mais rápido possível, o nome frio dos companheiros. Esta é uma medida de
segurança...
- Arre égua! Mas é muito macho chegando - disse a mulata Nair, prostituta da zona
do Vietinam, com um sorriso.
- E parece que os home vão ficar é muito tempo, muler. Vamo faturar um bocado,
minha santa - completou Isadora.
- Se é o que tão dizendo, vou enricar, Zé Geraldo? - falava Valdir, atrás do balcão do
bar Quentão. - Diz que chegou pra mais de duzentos homens. Uns poucos que espiaram de perto
disseram também que eles são de duas empresas. Uma tal de DDP Mineração e uma outra,
Agropecuária do Araguaia. Mas a verdade é que é tudo soldado disfarçado. Cê já viu mineração e
agropecuária trabalhar junto, Zé Geraldo? ah, aah, aaah - gargalhou ele, feliz.
Realmente, o disfarce, do ponto de vista daquela gente, era uma piada. Mas Zé
Geraldo sabia qual era a finalidade. "Eles vão fazer tudo para esconder dos organismos
internacionais a situação de conflito na região. Para não dar chance de reconhecimento de uma
zona liberada, como aconteceu no Vietnam", pensava ele. "Hoje terei mais uma madrugada de
pescaria."
- Vamos lá, macacada. Esta porra tem que ficar pronta ainda hoje - gritava o chefe da
manutenção, Dr. Vitrôncio. - Ô Gauchão, vamo com isso, cara. Quer moleza, meu nego, senta no
pudim.
Vinte e quatro horas depois, um Sapão pilotado pelo Dr. Jorge, ou major Joaquim
Sariema, pousava em Xambioá, trazendo Oran e sua equipe para inspeção e verificação das
condições para início efetivo da operação de combate.
No dia seguinte, logo pela manhã, as primeiras patrulhas seriam lançadas na selva.
Capítulo VIII
- Como não dá? São três Sapões, um daqui de Marabá e dois de Xambioá. Cada um
lança três, ou no máximo quatro patrulhas. Num só dia, teremos as dez patrulhas em ação —
ponderou o chefe de operações terrestres.
- Picas, não pode ser assim. Não sabemos qual é a oposição que podemos encontrar
durante a fase crítica de pouso e desembarque. Se na aproximação um puto dum guerrilheiro
desse, escondido no mato, der um tirinho no meu rotor de cauda, derruba a aeronave e desconta
todos os bonecos que estiverem dentro - disse Jorge.
- Então, como é que você imagina que tem que ser? - perguntou Gil ao aviador.
- Cada patrulha terá que ser lançada com dois Sapões. Um deve chegar ao ponto de
lançamento, a uma altura de duzentos, ou trezentos pés, e circular o local, amaciando o terreno
adjacente com rajadas de tiro lateral. Para isso, já mandei montar metralhadoras em ambas as
portas do compartimento de carga de um dos Sapões. Ao mesmo tempo, o segundo Sapão,
transportando a patrulha, vem em voo rasante sobre a copa das árvores e faz uma aproximação
para pouso de as-salto no ponto determinado. Após o desembarque, ambos retornam a Xambioá,
para reabastecimento e para pegar outra patrulha. É assim que tem que ser, porra - explicou Jorge.
- Puta merda! Gostei. Deve ser uma manobra bonita e aumenta muito a segurança.
Mas, dessa forma, não dá para lançar todas as patrulhas num só dia, não é?
- Claro que não, porra. Lançaremos três, ou quatro, por dia, e já será um puta esforço
aéreo. Entretanto, há uma vantagem. No fim do terceiro dia, teremos lançado todas as patrulhas, e,
a partir do quarto dia, iniciamos o trabalho de recolhimento das primeiras. Nessa ocasião, o Sapão
lança a substituta e recolhe a substituída. Dessa maneira, desenvolveremos um trabalho contínuo,
não permitindo que as tripulações fiquem ociosas.
- Pode deixar, Val. Se eles derem a cara no forró, vou jogar um charme em cima
desses bonitões - falou Doralice, a mais desinibida das filhas de criação da Baleia.
- É o que estou lhe dizendo, Valdemar. O movimento melhorou muito, mas não é,
nem de longe, como era de primeiro, quando as tropas estiveram aqui antes - disse Valdir para o
padeiro.
- Pois eu tou vendendo pão a valer pra eles - replicou o dono da padaria. - Mas
quando eu falei de aumentar o preço, vixe!! Os home viraro bicho. Um deles teve lá em casa e
garrou a xingá eu mais a Maria Preta e disse que se o preço subir nós íamos acertar as contas no
acampamento. O jeito foi deixar como tá. Num quero saber de confusão com esse povo da federal
não. Deus me livre!
- Aqui, no bar, eles não tão reclamando do preço. Mas, também, quase que só
aparece aqui os doutô. É doutô fulano pra lá, doutô sicrano pra cá. Os amarra-cachorro vêm muito
pouco.
- Se algum engraçadinho aprontar na cidade, já sabe, volta preso pra Manaus no dia
seguinte... Cuidado pra não pegar gonorréia no Vietinam... - E blá, blá, blá...
O Dr. Arnon, juntamente com seu colega Dr. Galileu, da mineração, ambos médicos,
haviam examinado cada uma das moças da zona do Vietinam. As que estavam contaminadas
passaram a receber tratamento adequado à base de Benzetacil. Todas as semanas elas eram
inspecionadas.
Na DDP Mineração, eles eram mais liberais. Com um efetivo bem menor, quase
todos "doutores", ou funcionários mais graduados, a recomendação de Jorjão era simples:
- Só se justifica falta aos horários de decolagem por doença. E ressaca não é doença,
porra. Quem chegar bêbado, porra, vomita lá fora, antes da cerca, vai dormir e não enche o saco
dos demais.
Florêncio ficou alguns minutos com o ouvido atento. De repente, o silêncio foi
quebrado por uma gritaria ensurdecedora. Os homens se abaixaram, procurando abrigo. Mas a
algazarra passou logo. Fora apenas um bando de macacos que, saltando e guinchando nos galhos
mais altos do arvoredo, fugiram à aproximação daqueles sete estranhos, os cinco soldados mais o
guia e o mateiro da patrulha Jabuti Um.
- E aí, Raimundo, qual é o rumo agora? - perguntou Florêncio, em voz baixa, ao guia.
- Ês pássaro por aqui há uma meia hora, e seguiro naquele rumo - apontou.
- É só oiá essas folhinha de pranta aqui. Tá vendo? Num tem uns musquitinhos
invorta delas? Pois então.
- Seu Florêncio, quando os cabra pássaro, esbarraro o corpo suado nas foias. Os
musquitinhos fica tudo invorta chupando o sargadinho quente. Conforme o tanto de musquito,
carculo o tempo que és pássaro.
A patrulha seguiu no rumo indicado por Raimundo. Estavam todos ansiosos para
entrar em ação. O primeiro chafurdo da Jabuti Um.
- Olá, seu Jocelino. Como vão indo vocês? - disse Osvaldão entrando no terreiro do
sítio do Angico. Juntamente com ele vinham Ananias e Rosa.
- Pode vortá pra trais, seu Osvaldão. Pelo amor de Deus, cêis trata de vortá pra trais -
respondeu Jocelino, encostando o machado que estava usando para rachar a lenha e encarando o
negro e seus dois acompanhantes.
- Que é isso, Jocelino? Que bicho lhe mordeu, meu amigo? Você tá parecendo que
viu assombração - brincou Osvaldão.
- Foi muito mais pior que assombração. Cêis pode vortá pra mata e é já. Num quero
nem pensá em negócio com ocêis mais, e é de jeito ninhum - falou Jocelino apavorado.
- Ô seu Jocelino, nós sempre fomos tão amigos - interferiu Rosa. - Como vai a
comadre Zefinha?... e os meninos?
- Vai tudo bem, minina Rosa. Vai tudo bem. Mais ocêis num pode vim aqui mais não.
Me adiscurpe, mais se os home do gunverno fica sabendo que ocêis tão vindo aqui, vai complicá
pró meu lado.
- Ah, então é isso? A nossa velha amizade não vale mais nada!? - falou Ananias.
- Tudo bem, Jocelino. Nós vamos embora em paz com vocês - disse Osvaldão,
desolado. - Um dia, muito em breve, voltaremos e vocês ficarão do nosso lado. Até mais ver, meu
amigo.
Os três entraram na mata pelo mesmo lugar de onde tinham vindo. Mais à frente,
num baixio do terreno, próximo ao igarapé do Mutum, afluente do Saranzal, uma parte do grupo
esperava.
- Porra, mas isso é muita ingratidão desse povo. Há mais de cinco anos a gente vem
ajudando e fazendo um puta trabalho de doutrinação socialista com eles, mostrando como eles
estão sendo explorados por essa sociedade injusta, e, agora, os cagões se borram todos com medo
de uns sargentinhos de merda que pensam que são os donos do Brasil - desabafou Sampaio.
- Vamos ter calma, camaradas. Agora não é hora pra entrar em desespero - disse
Osvaldão.
- O que a gente faz, então? - perguntou Iracema.
- Vamos manter o que planejamos. Essa é uma guerra de paciência. Temos que nos
manter alerta e, sempre que houver uma oportunidade, armamos uma emboscada para os milicos
de merda.
Eram duas horas da tarde. A oito mil pés, um pequeno avião monomotor sobrevoava
a região do Saranzal. Eles não escutaram o ruído do Paquera, mas ouviram um outro barulho
estranho. Osvaldão, levando o dedo indicador à boca, fez sinal de silêncio. Era um negro alto, forte
e valente. Todos o respeitavam, e ele exercia sobre os demais uma liderença sem autoritarismo.
Um som abafado, quase imperceptível, chegou até eles, vindo do outro lado do
igarapé, onde a vegetação entre as árvores era mais espessa. Osvaldão atravessou o riacho para ver
o que era aquilo. Dois nativos o acompanharam.
- Jabuti Um para Paquera. Resgate na clareira da Água Preta. Estaremos prontos para
resgate a partir de duas da tarde. Câmbio final.
- Ciente, Jabuti Um. Boa missão e desligo. Enquanto Florêncio mantinha contato com
o Paquera, o restante dos homens estava disposto em semicírculo, alerta. O Loiro foi quem
primeiro ouviu o barulho de mato pisado e, a seguir, uma manopla negra afastando a ramagem
para o lado. Ele não pensou duas vezes. Descarregou uma rajada do seu fuzil-metralhadora, rápida
e certeira. Os demais atiraram em dois vultos que corriam em busca de abrigo.
Quando o tiroteio cessou, Florêncio, que ficara estático, ouviu o tropel de passos do
outro lado do igarapé. A patrulha se manteve em posição, aguardando as ordens do chefe.
- Loiro e Vicente, venham comigo - disse ele. - Marivaldo e Biguá, nos dêem
cobertura.
Os três soldados avançaram com cautela. Não sabiam se haveria nova surpresa. Com
prudência, foram se aproximando do local de mato mais denso. Um bando de araras passou
grasnando por cima da copa das árvores. No meio do matagal, encontraram, primeiro, o corpo de
um negro enorme. Vários projetis haviam penetrado no peito e no abdome, saindo pelas costas do
homem. A morte, provavelmente, fora instantânea.
- ...ciente Jabuti Dois. Câmbio final - o Paquera estava acabando de falar com outra
patrulha.
- Afirmativo Jabuti Um. Estou lhe ouvindo alto e claro. Entendido que houve
chafurdo. Prossiga. Câmbio.
- Paquera, aqui Jabuti Um. Chafurdo rendeu três presuntos. Solicito instruções.
Câmbio.
- Positivo, paquera. Três presuntos. Repito. Chafurdo rendeu três presuntos. Solicito
instruções. Câmbio.
- Ciente, Jabuti Um. Aguarde instruções. Paquera vai fazer contato com a Casa Azul.
Permaneça na frequência. Câmbio.
Eram duas e quarenta da tarde modorrenta. Na sala da estação de rádio da Casa
Azul, um pequeno ventilador tentava, inutilmente, espantar o calor. Os dois operadores
conversavam amenidades a respeito da participação do Brasil na Copa do Mundo do ano seguinte.
Um deles acendeu um cigarro. De súbito, o receptor VHF ganhou vida.
- Paquera, Casa Azul lhe ouvindo cinco por cinco. Na sua escuta. Prossiga. Câmbio -
respondeu o operador.
- Paquera para Casa Azul. Patrulha Jabuti Um obteve contato. Houve chafurdo.
Repito. Houve chafurdo. Três presuntos. Três pres... - O sinal caiu e o operador ajustou a sintonia
do aparelho. - ...acões. Câmbio.
- Casa Azul para Paquera. Entendido que a Jabuti Um obteve contato e que houve
chafurdo. Confirme o restante da mensagem, Paquera. Câmbio.
- O Paquera acabou de fazer contato. Disse que a Jabuti Um chafurdou e que fez três
presuntos e estão pedindo instruções, e o Paquera está na escuta, aguardando - falou Marcondes
de um só fôlego.
- Casa Azul para Paquera. Paquera, Paquera, Casa Azul chamando. Câmbio -falou o
operador ao microfone.
- Sugiro que a gente mande um Sapão resgatar os corpos e levá-los para Bacaba. Um
Sapão de Xambioá, que está mais perto da Jabuti Um. Enquanto isso, nós nos deslocamos daqui
para Bacaba noutro Sapão - falou Gil.
- É isso mesmo. Creio que há tempo suficiente. Ainda são três e dez.
- Esses pés-de-poeira estão malucos, negão - disse o Dr. Banto para seu companheiro
Tiago. - Eles estão pensando o quê? Que isso aqui é cu-de-mãe-chica? Temos ainda que montar o
guincho no Sapão, e não sei se vai dar tempo de cumprir a missão antes do pôr-do-sol.
- Já falei com o Jorjão, em Marabá. Ele disse pra gente mandar pirão. A missão tem
que ser cumprida hoje - falou o japonês.
- Ô Vitrôncio, quanto tempo pra montar o guincho no Sapão e dar o pronto para
decolagem? - perguntou Banto, consultando a Tabela do Nascer e do Pôr-do-Sol.
- O pôr-do-sol aqui é às seis e vinte e sete, nessa época do ano - falou ele para o
nipônico. E, para Vitrôncio: - Manda pirão. Ordes é ordes, negão, tá esperando o quê?
Tiago havia acabado de fazer os cálculos de tempo na carta de navegação.
- Se decolarmos até as quatro e trinta, vai dar tempo, mas teremos que pernoitar em
Marabá ou, na pior das hipóteses, em Bacaba. Não vai dá pra voltar pra cá de jeito nenhum.
- Eu não decido nada, negão. Já está decidido. Preparar para a decolagem tão logo o
guincho esteja no lugar e funcionando.
Às quatro e quarenta, o Sapão iniciou o voo pairado sobre a copa das árvores, a cerca
de cem pés do solo.
O próprio fluxo de ar, provocado pelo movimento das pás do rotor principal, abria
espaço na ramagem, permitindo que se avistasse a patrulha trinta metros abaixo.
- Pronto para início do resgate. Guincho para fora e cabo baixando - disse o
artilheiro, acionando o motor elétrico do equipamento para a posição down.
Às cinco e cinquenta e cinco, o Sapão pousava na pista de Bacaba. Oran e sua equipe
aguardavam. A identificação foi positiva. Era o Osvaldão.
Capítulo IX
O forró estava pegando fogo no Bar Quentão. Os corpos suados de moças e rapazes,
homens e mulheres bamboleavam ao som estridente e ao ritmo animado do carimbó:
- Olha só aquela de calça justa azul, japonês - disse Silvério para Tiago. Eles haviam
acabado de chegar e estavam parados na porta do salão.
O nipônico olhou na direção da moça, mas não fez qualquer comentário. Apenas
pensou: "Vai ser boa lá em casa."
De fato, Joaninha era um bela garota. Na flor de seus dezoito anos, tinha um corpo
escultural e a alegria própria da juventude. Cabelos curtos, castanhos claros e lisos. Pele alva, um
rosto encantador com olhos vivos e brejeiros, umas poucas sardas nas maçãs do rosto
emprestavam-lhe uma graça especial, A boca era carnuda, e um sorriso franco e moleque habitava,
constante, seus lábios levemente vermelhos de batom.
Tiago dirigiu-se para onde estava Joaninha, ao lado de uma outra moça. Entretanto,
antes que ele a convidasse para dançar, um moreno um tanto desengonçado saiu a bailar com ela.
Era Zé Geraldo.
O japonês, para não perder a viagem, convidou a outra, e isso iria mudar o curso dos
acontecimentos.
Por volta da meia-noite, a calçada da Baleia estava ainda animada. Umas cinco ou
seis pessoas conversavam, entre elas Zé Geraldo, que havia chegado há uma meia hora, vindo do
Quentão.
- Precisas tomar tenência, meu nego - falou Val, dando uma de suas gostosas
gargalhadas. - A Joaninha é muito jovem pra você, ô Zé. Tá na hora de arrumares uma muler mais
velha, casar por contrato ou se amigá.
- Vi. E olha elas vindo ali — disse ele, apontando para uma das extremidades da rua.
Lá vinham elas, Doralice com Silvério e Dagmar com Tiago. "Uma bela arrumação!",
pensou Valquíria.
Os quatro se aproximaram, e Dora foi fazendo as apresentações.
- Minha mãe Valquíria, Silvério e Tiago. Eles trabalham na mineração, Val - observou
ela. - Esse aqui é o nosso amigo Zé Geraldo, e ali é a Maria Preta, esposa do Valdemar padeiro... lá o
Paulo Boto... - E assim por diante.
- Quer dizer que vocês trabalham na mineradora? - perguntou Maria Preta. Era uma
mulata bem-fornida, de ancas largas, e não mais que trinta anos, na avaliação de Silvério.
- Ainda que mal pergunte, vocês trabalham de quê lá, são engenheiros? — provocou
Valquíria, sorridente, fazendo um olhar maroto.
Tiago não estava gostando do rumo da conversa. "A gorda é alegre e simpática, mas
está querendo saber demais", pensou. Tiago era o codinome do capitão António Kauajima, paulista
de Jabuticabal, ombros largos, um metro e sessenta e oito, esguio e de espírito reservado, quando
não tinha intimidade com as pessoas. Fosse outra a situação, já estaria fazendo brincadeiras e rindo
descontraidamente.
- A conversa está boa, mas está na hora de ir. Amanhã temos vôo às sete - falou
Tiago.
- Ainda é cedo, minha gente. Fiquem mais um pouco - convidou Val. - Vocês nem
esquentaram a cadeira. Vocês precisam conversar com o Zé Geraldo, um mecânico de mão-cheia. -
Acrescentou ela. - De repente, lá na mineradora aparece um problema, pode chamar o Zé Geraldo
que ele conserta - espichou ela a conversa, indicando o homem que, até então, se mantivera
calado.
O japonês se lembrava dele. "É o mesmo que saiu para dançar com aquela garota de
calça justa azul'', pensou, e disse:
- Prazer em conhecê-lo, companheiro. Quem sabe a gente pode vir a precisar mesmo
de seus serviços?
- Negão, pra lhe falar a verdade, gostei mesmo foi da tal Maria Preta. Que bunda,
japonês, você reparou bem nela?
- Claro que reparei. A mulata tava comendo você com os olhos! Vai fundo que ali
pode dar caldo, mas tem que ver qual é a do marido.
E, assim conversando, eles foram até umas tantas horas. A estada em Xambioá não ia
ser tão má. Muito ainda estava por acontecer.
Na Casa Azul, após a reunião do pôr-do-sol, Oran, Gil, o Gordo, Zeca e outros
escutavam a rádio Tirana.
- Olha aí. Quarenta e oito horas depois do chafurdo, Osvaldão já é herói na Albânia -
disse Gil. - E o Clementino não consegue descobrir nada com essa parafernália eletrônica dele. Não
dá para continuar assim, porra. Desculpa, chefe, pelo "porra". Acho que estou conversando muito
com o Jorjão. O cara fala três palavras, sai quatro "porra".
- Fiz contato com Brasília, a respeito da Tirana. Enquanto não se descobrir a fonte
que está mandando informações para lá, o SNI vai colocar uma portadora de cinco quilowatts, na
frequência da Tirana, no horário em que ela transmite para o Brasil. A interferência vai ser tão
grande que acho que essa gente desiste de escutar as notícias capciosas desses comunistas baratos
- informou Oran.
Depois do noticiário, Gil, Zeca e o Gordo foram dar um passeio na casa das pombas.
Quando chegaram lá, Jorge já estava de papo com as moças.
- Porra, porra, vocês demoraram a chegar - disse o aviador. - Eu sozinho aqui, contra
cinco, porra, elas iam acabar me estuprando. - Todos riram. - E eu ia gostar, né?
Jorge era um cara divertido e bom profissional. Muito alto, loiro e com um rosto
avermelhado, era magro, tinha um grande nariz e um queixo proeminente. Não era uma figura que
chamasse a atenção das mulheres, mas era um tremendo mulherengo. Fazia, assim, uma ótima
dupla com Gil.
A conversa logo ficou animada. Zuleica, uma das pombas, serviu um licor para cada
um, e eles todos deram boas gargalhadas com as piadas do Gordo.
Por baixo da mesa, Gil escorregou um pé na direção de Nadir. Ela retribuiu o toque.
Contudo, naquela noite, não aconteceu mais nada além disso. As pombas tinham que manter uma
capa de respeitabilidade.
Ele falava com voz mansa e pausada. Devia ter uns cinquenta anos, mas era dotado
de um invejável vigor físico. Baixo, bastante calvo, com os cabelos das têmporas longos e grisalhos,
usava óculos de aros redondos e tinha o cenho car-regado pelos muitos anos de lutas e de vida na
clandestinidade.
O grupo era constituído por quatorze homens e quatro mulheres. Com exceção de
Olga, que devia ter uns quarenta e cinco, e do próprio Paraná, os demais eram jovens da faixa de
vinte e cinco a trinta e cinco anos. Havia também alguns nativos agregados, cerca de dez, ou pouco
mais ou menos.
- Creio que uma boa tática será nos dividirmos em três grupos - continuou o Velho. -
Seria muito perigoso nos deslocarmos juntos, manobra que devemos adotar daqui por diante.
Quero dizer, nos mantermos em constante movimento, mudando sempre de sítio para confundir os
nossos perseguidores. Sugiro, assim, que Demétrio e Lauro assumam, cada um, a chefia de um
grupo de seis militantes mais três ou quatro nativos. O terceiro grupo ficará comigo e Olga. Há
alguma outra sugestão?
O moral deles estava um pouco abatido. No dia anterior, eles haviam tomado
conhecimento da queda de Osvaldão, na região do Saranzal.
- Acho que você está certo, Velho. Se permanecermos juntos, ficaremos mais
vulneráveis a um ataque das tropas. Concordo plenamente com a sua sugestão - disse Augusto.
Perto dali, as patrulhas Capivara Um, Dois e Três, lançadas respectivamente ao norte,
ao centro e ao sul dos Perdidos, progrediam em busca de rastros dos paulistas.
- Essa espera é enervante. Há três dias não acontece nada. No Saranzal, a Jabuti Um
conseguiu retomar os rastros, mas a Dois e a Três estão sem pistas - esbravejava Gil. - Nos Perdidos,
nada até agora. Parece que os subversivos eva-poraram no ar. Nos Caianos, só a Pato Bravo Dois
descobriu rastros frescos e está nos calcanhares de um grupo que, segundo o mateiro dela, deve
ser de uns seis ou sete elementos. Tá foda, Tomé.
- Essa mata é um tabuleiro de xadrez, Gil. Temos que ter paciência. É um trabalho
meticuloso, lento e, sobretudo, de persistência no objetivo - disse Tomé em tom encorajador ao
chefe de operações.
- Paciência. Temos que ter muita paciência. "Somente nas volteadas se apanha a
gadaria xucra."
- Nessa toada, vamos levar muito tempo para eliminar todos eles...
- Paquera, aqui Capivara Três. Temos novidade, Paquera. Repito. Temos novidade.
Câmbio.
- Capivara Três, Paquera lhe ouvindo alto e claro. O chefe de operações está a bordo,
na sua escuta. Prossiga. Câmbio - disse Tiago.
- Okei, chefe de operações Azul. Descobrimos rastros frescos hoje pela manhã.
Estamos na caça deles. Câmbio.
- Ciente, Capivara Três - disse o próprio chefe de operações, fazendo uso de seu
microfone na nacele traseira. - Especifique sua posição, Capivara Três. Adiante — completou Gil,
com uma fraseologia mais apropriada a radioamadores do que à aviação.
- Paquera, Capivara Três. Estamos nas nascentes do igarapé Pacajá, afluente do Água
Fria. Segundo o guia, estamos a um dia de marcha da clareira da Mutuca, que é nosso local de
resgate. Confirme entendido. Câmbio.
"Até que enfim uma notícia promissora", pensou Gil. Desde o início da operação de
combate, essa era a primeira pista do povo da mata, na região dos Perdidos, que eles obtinham.
O voo prosseguiu sem mais novidades naquele dia. Não obstante, quando pousaram
em Marabá, Gil estava mais calmo e esperançoso.
Lauro ponderou por algum tempo a sugestão do amigo. Ele também sentia a
necessidade de uma parada maior. Era preciso não apenas descansar o corpo, mas repensar as
ações futuras, encontrar solução para a situação em que se encontravam. "Não é possível, nem
tampouco viável, continuarmos indefinidamente essa fuga louca. Se tivermos que cair, é melhor
que caiamos lutando", pensou ele.
- Como é, camarada? O que você decide? - perguntou Hélcio, que ouvira a sugestão
de Tadeu. - De minha parte, sou a favor.
Dos outros três, só Carlos se manteve relutante. Os quatro nativos do grupo não
foram consultados.
- Vamos adotar a posição da maioria. Permanecemos aqui hoje e amanhã. Durante o
dia, vamos nos revezar na vigilância. Dormir e acender fogo, só à noite - decidiu Lauro.
- Neste caso, já que é uma decisão da maioria, sugiro que a gente caminhe sobre esta
parte pedregosa e desça pelo leito do igarapé mais quinhentos ou mil metros - falou Carlos. - Se
houver alguém no nosso rastro, provavelmente perderá a pista aqui. Enquanto isso, podemos
montar um posto de vigilância naquela curva do riacho e observar esta área. Assim, a possibilidade
de sermos surpreendidos ficará bastante diminuída.
Lauro e os demais foram avisados. Sabiam no entanto que a tropa perderia algum
tempo ali à procura de pistas, e haviam tomado providências para essa eventualidade. Imediata e
silenciosamente, posicionaram-se conforme um plano concebido antes.
A refrega não poderia ter sido mais desastrosa para a Capivara Três. No tumulto que
se seguiu à artilharia, os soldados, pegos de surpresa, ficaram por um momento sem saber o que
fazer. Uns correram para o igarapé, outros para o abri-go das árvores na floresta. Dois, porém,
permaneceram onde estavam, no meio do pedregal.
Quando Tinoco conseguiu reagrupar a patrulha, constatou que nada mais podia ser
feito pelo chefe. Numa poça de sangue, Rogério, aliás Asdrubal Queirós, segundo-sargento de
infantaria, exalava seu último suspiro.
A dois metros dele, jazia contorcido o corpo do mateiro António. Este recebera dois
balaços no peito, enquanto o outro tinha vários ferimentos. O projetil fatal, porém, parecia ter sido
na cabeça.
Tinoco, ou cabo Ítalo de Souza, assumiu o comando da patrulha. Era uma hora da
tarde. Eles haviam feito contato com o Paquera às nove da manhã, quando Rogério informara que
estavam seguindo rastros frescos.
- Não adianta tentar fazer nada. Vamos aguardar aqui. Entre duas e três horas o
Paquera deve nos chamar. Aí, os homens é que vão decidir, se a gente enterra eles aqui, ou se o
Sapão vem buscar - disse Tinoco aos companheiros.
- Puta que pariu, porra... Não é possível! Isso não podia ter acontecido... - lamentava-
se Gil na sala de reuniões da Casa Azul.
- Calma, companheiro. Não podia ter acontecido, mas aconteceu - disse Oran. - Isso é
uma guerra, Gil. As baixas ocorrem dos dois lados. Agora, o que eu quero saber é como aconteceu.
Faça um contato com a agropecuária em Xambioá e diga pró Elesbão pra submeter o cabo a um
minucioso interrogatório. Precisamos saber dos detalhes para verificar onde houve falha nossa e
corrigir para que não aconteça novamente.
- Tá certo, chefe. Aliás, penso que seria melhor eu dar um pulo até lá e participar
diretamente do interrogatório do Tinoco. O que o senhor acha?
- Autorizado. Fale diretamente com o Jorge, em meu nome. Ainda são quatro da
tarde. A operação de resgate dos corpos e da patrulha está em andamento. Se você decolar daqui
até às cinco, ainda chegará lá em tempo de recebê-los. O mateiro vai ser sepultado em São
Geraldo. Amanhã, um Búfalo vai trasladar o corpo do sargento Queirós para Manaus. Você pernoita
em Xambioá e, à noite interroga, o Tinoco e os outros soldados da patrulha.
- Certo, chefe. Amanhã estarei de volta aqui, com os elementos para o relatório -
falou Gil.
- Um rastro, quando some de repente, deve ser considerado um alerta de que algo
pode estar sendo armado do lado do inimigo - instruía Elesbão, e seus auxiliares, a partir de então,
aos comandantes de patrulha. — Assim, este é um momento crítico, em que vocês devem
recomendar aos membros da equipe para ficarem atentos, dispondo os homens numa formação
que proporcione o máximo de cobertura contra tocaias e emboscadas.
Enfrentando pela primeira vez esse tipo de conflito as Forças Armadas Brasileiras
ainda teriam muito a aprender. As dezenas de livros que fossem lidos a respeito das "guerras de
insurgência" não seriam capazes de lhes dar o conhecimento que a experiência prática
proporcionava. Não obstante os "senhores da guerra", os generais do poder, pouco
inteligentemente, recomendavam que não se fizessem registros dos acontecimentos do Araguaia.
De certo, temiam a condenação da historia, como se pudessem esconder dela aqueles fatos.
Capítulo X
Não muito longe da Vila Remédios, na região dos Caianos, próximo ao igarapé da
Bicuda, a patrulha Pato Bravo Um descobriu rastros.
- Pelos meus cárculo, ês pássaro aqui hoje de manhãzinha, mais é duas turma. Teve
uns que pássaro premero. Só dispois é que pássaro os outro - disse o mateiro João Tatu.
Eram três horas da tarde. Os homens estavam bem-dispostos e, agora, tinham ficado
mais animados ainda pela descoberta do rastro.
- Quanto tempo, depois de uma turma ter passado, passou a outra? - perguntou
Adilson, o chefe da Pato Bravo Um.
- É difícil dizê, dotô. A turma mais pequena, uns treis, passô u'as quatro hora dispois
da outra mais maior, mai eu num tenho, assim, quer dizê... é certeza não.
Avançaram mais uns quarenta minutos, quando o mateiro fez sinal de parada e
acenou para que o chefe se aproximasse.
- Ês deve de tá aqui pertinho - falou Tatu em voz baixa, e apontou para uma pegada
nítida no barro úmido da trilha. Há muito Adilson desistira de perguntar os porquês ao mateiro. Ele
sempre dava explicações que pareciam inverossímeis, mas que depois se mostravam corretas.
Adilson fez sinal para que dois soldados abrissem para o flanco direito e outros dois
para o esquerdo. Ele próprio e o mateiro seguiriam pelo centro. O guia ficaria na retaguarda.
Nesta formação, caminharam mais uns dez minutos, devagar e sem ruídos. Numa
curva do igarapé, escutaram vozes. O terreno onde estavam era um pouco mais elevado. Adilson
fez sinal para que os outros parassem e mantivessem a posição.
- Parados!
O que estava observando correu em busca de abrigo. Adilson atirou. Um único tiro.
O guerrilheiro como que subiu no ar e despencou no chão já sem vida. Os outros dois ficaram
estáticos, completamente sem ação.
- Quem se mexer morre! - disse o chefe da Pato Bravo Um, apontando o fuzil na
direção dos prisioneiros. - Avançar! - gritou, a seguir, para a retaguarda.
- Calma, rapazes, não è preciso atirar - falou ele, acrescentando: - Recolham as armas
deles e os amarrem.
- Vamos passar a noite aqui - disse Adilson. - Preparar acampamento. -E, para os
prisioneiros: - Não quero saber de porra nenhuma a respeito de vocês. Amanhã, os dois serão
entregues às autoridades. Elas é que vão decidir a sorte de cada um.
- Vai pra puta que o pariu, seu milico de merda - disse a moça.
- Deixa eu dar um trato nessa zinha, chefe? - falou Dirceu Pé de Burro, um soldado
enorme que calçava quarenta e quatro, origem do apelido que lhe seguia o nome frio.
- Negativo, Pé de Burro. Fique quieto no seu canto e não se meta com ela. Não quero
saber de violência com os prisioneiros e não admito que nenhum de vocês se meta a engraçadinho
com eles. Entendido?
- Olá, Valquíria, tudo bem? Boa noite pra todos - disse Silvério, que chegava à calçada
da Baleia, vindo da mineradora. Ele, agora, estava mais à vontade, quase íntimo. Depois de duas
semanas de namoro e bolinagem com Doralice, um copinho de refresco ali, outro acolá, como não
ia ganhar intimidade? Além disso, a própria Val fazia gosto no relacionamento dos dois pombinhos,
embora provocasse comentários de desaprovação de alguns e, principalmente, de Maria Preta.
- Tudo bem, Silvério. O que foi que houve na agropecuária? Ficamos sabendo que o
António Mão de Vaca, lá de São Geraldo, morreu, trabalhando pra vocês. Como foi isso? -
perguntou Valquíria, provocativa. A notícia já se espalhara, pois São Geraldo ficava do outro lado do
rio, e o trânsito de pessoas de uma localidade para a outra era grande.
- Foi só um acidente, coisa que acontece - respondeu Silvério.
- Mas diz que morreu um outro também, um tal de Rogério, funcionário mais
graduado. É verdade? - insistiu Val.
Silvério sabia que não adiantava ficar escondendo os acontecimentos da Baleia. Ela ia
perguntar, perguntar e perguntar. Se ela não tomasse conhecimento por ele, descobriria de alguma
outra forma. Por isso, deu de ombros e respondeu. Afinal, que mal havia? Todos sabiam da missão
deles ali. Esconder pra quê?
- É, é verdade. Eles foram tocaiados pelo povo da mata. Mas vamos mudar de
assunto. Quede a Dora?
Silvério foi entrando, sem se fazer de rogado. Conhecia bem a casa. Um corredor
comprido com três dormitórios do lado esquerdo. Nos fundos, uma sala de refeições com uma
cozinha ampla e mais outro quarto, onde ele dormira uma noite em que uma chuva forte o
impedira de voltar ao acampamento.
- Ocê tá dando muita asa pra esse homem, Val. Garanto que ele tá tirando um bom
sarro na Dora, lá dentro. Depois eles vão embora, e acaba a menina embuchada e você com neto -
falou Maria Preta, sem conseguir esconder o ciúme.
- Deixe isso comigo, Maria. Sei o que estou fazendo - disse Valquíria, dando uma de
suas conhecidas gargalhadas. - Eles têm que se divertir um pouco. - E, em voz baixa, falou para a
outra: - Seu caso a gente resolve depois.
- Ah, meu nego, que bom que você chegou. Tava precisando de você, Zé Geraldo.
Vamo lá dentro. A pia da minha cozinha está com um vazamento, quem sabe você conserta - disse
Val, levantando o enorme corpanzil e arrastando o mecânico para dentro da casa.
- Tou entrando, Dooorá. - Ouviu-se um burburinho vindo dos fundos, mas, quando
eles chegaram à cozinha, Dora e Silvério estavam sentados calmamente num pequeno sola, de
mãos dadas, conversando. Com exceção de uma edição velha da revista Manchete que o rapaz
tinha sobre o colo, tudo o mais estava normal.
Fazia uma manhã ensolarada, naquele dia de meados de novembro. Seriam nove e
trinta, se tanto, quando o operador de rádio entrou esbaforido na sala de reuniões da Casa Azul.
- Grande notícia, garoto. Vamos lá falar com o Paquera. Tomé, avise ao chefe. Estou
indo para a estação de rádio. - E saiu apressado.
- Paquera para Azul. Ciente presença chefe de operações. O chafurdo da Pato Bravo
Um aconteceu ontem, no cair da tarde. A patrulha tem condições de se deslocar para uma clareira
que fica a umas três horas de marcha do local do cha-furdo, conduzindo os dois prisioneiros -
informou o piloto do Paquera. - Acontece, porém, que eles não sabem o que fazer com o presunto.
Não há condição para o transporte do falecido. O corpo está se deteriorando rapidamente. A Pato
Bravo Um solicita instruções. Câmbio.
A corda foi recolhida, e o Sapão, cinco minutos depois, pousava na clareira onde
aguardaria a chegada da patrulha, de Zeca e dos prisioneiros, três horas mais tarde.
Tão logo o helicóptero encostou os esquis no pátio da Casa Azul, os dois prisioneiros
foram conduzidos para o galpão onde ficavam as celas.
A moça era a guerrilheira Áurea, ou Maria Lúcia da Silva, e o rapaz tinha o codinome
de Victor, tendo sido identificado como José Lírio Prata.
- E aí, Zeca, como foi a missão? - perguntou Gil, ansioso para saber onde colocaria
mais um X vermelho no quadro de "ordem de batalha" do inimigo.
- Companheiro, não foi fácil. Puta que pariu!... O presunto fedia... porra, mas fedia
que não dava pra aguentar! Cacetada! Que missão!
- Porra, Zeca, fala logo quem era o presunto - disse Gil, impacientando-se com Zé
Lucas.
- Calma, cara, não precisa ficar nervoso. Digo já - sorriu o agente. - Era o Paulo Rocha
Martins, nome frio Fábio.
- Agora, eu e meu pessoal da segunda seção vamos trabalhar os dois presos. Eles vão
vomitar tudo o que sabem. Ah! Se vão! - disse Zeca, com uma expressão no rosto que denotava a
antecipação de um prazer inconfessável.
- Como é, boneca, vai falar, ou nós vamos ter que lhe dar um tratamento melhor? -
disse o Dr. Tarquínio.
Ela ainda encontrava forças para resistir, mas sabia que não seria por muito tempo.
"Este agora, pelo menos, não está me dando porrada", pensou ela. "É um filho da puta do mesmo
jeito, mas é um filho da puta delicado. Vai ver é veado, o desgraçado."
- Se você não contar pra mim, querida, vou ter que entregar você prô outro, o
Mustafá. O que você acha de ser interrogada por ele, hein?
Mustafá era um animal. Áurea tremeu ao pensar no outro. Preferia morrer a ter que
enfrentar aquele indivíduo repugnante e impiedoso. "Aquele sujeito não é humano. Não! Não, não
quero ver aquela besta nunca mais..." Seus pensa-mentos entraram num torvelinho de dúvidas e
incertezas. A técnica começava a fazer efeito.
- Que tal um cigarro, e a gente depois conversa como pessoas civilizadas? - Ele
ofereceu-lhe o maço, e ela aceitou com a mão trémula.
"Meu Deus, há quanto tempo não sei o que é um cigarro?", pensou Áurea, enchendo
os pulmões com a fumaça e obtendo uma sensação de enorme bem-estar. "Afinal, este cara não é
tão ruim assim."
- E depois, se eu contar o que sei, o que vai ser de mim? - falou ela.
- Depois que você me falar tudo, vou mandar lhe dar roupas limpas, você tomará um
bom banho, num banheiro só para você, vai se alimentar com uma boa refeição e terá uma cama
para dormir à vontade.
A oferta era tentadora. "Banho, roupas limpas, comida, dormir. Isso é um sonho!
Não mais o inferno daquele cubículo." Seu pensamento flutuou por alguns segundos. Os olhos
parados, fixos no homem à sua frente.
- Vocês me soltarão depois? - quis saber ela, sem oferecer mais qualquer resistência.
- Não, Áurea. Isso não posso lhe prometer. Mas você não será mais maltratada.
"Ele também está sendo honesto. Poderia dizer que me soltaria depois, mas está
sendo sincero ao falar que não pode prometer isso", pensou ela.
Ele observava as reações dela. "Se eu dissesse que a libertaria, logo ela ia desconfiar
de que isso é mentira", raciocinava ele. Aquilo era um jogo de técnica e de inteligência que seria
vencido por quem detinha os cordéis manipuladores da volição.
- Está bem, eu conto o que você deseja saber - disse ela finalmente. E foi falando,
falando e falando. Aqui e ali ele a interrompia com palavras de aprovação e de incentivo. Um
gravador fora acionado sem que ela percebesse.
- Temos comida suficiente nos depósitos - falou ela. Era a primeira vez que as forças
do governo ouviam falar de depósitos dos guerrilheiros. Ele insistiu no assunto.
- Em diversos lugares.
- Existem outros?
- Sim. - As respostas estavam ficando lacónicas. Ela estava cansada. Muito cansada.
Mas ele precisava insistir mais naquele ponto.
- Remédios... armas...
- Está bem, vou providenciar para que você receba o que lhe foi prometido. Amanhã,
conversaremos mais - disse Tarquínio.
Eram quase cinco horas da tarde. A floresta estava ficando muito escura. Os homens
estavam muito cansados. Há vários dias a Pato Bravo Dois vinha perseguindo um rastro sem
resultados.
— Se o sinhô qué um parpite, nóis devia de seguir mais pra frente — falou Zé Tico, o
guia. — Mais uma hora de caminhada, tem um lugar mais mior pra nóis drumi.
— É um dismate na berada dum igarapé qui tem um poço bão de nóis toma um
banho, fazê um fogo e dispois drumi.
— E quem é que vai tomar banho de igarapé de noite, Zé Tico? — falou o chefe da
Pato Bravo Dois.
— Lá num tem pirigo não, seu Delino. Conheço lá. Já me banhei naquele poço umas
pouca de vêis.
Seguiu-se um momento de silêncio. Adelino ficou por alguns segundos sem ação.
Ainda sob a proteção do tronco caído, ele gritou para os outros companheiros:
— Cessaaar fogo!
O estrago, no entanto, já estava feito. Ainda bem que não havia mortos. Não
obstante, um soldado da Pato Bravo Três fora atingido por uma bala na panturrilha da perna
esquerda. O ferimento, embora não fosse fatal, iria imobilizá-lo por algum tempo no hospital.
— Porra, porra, negão, já estou há mais de quarenta dias na área. Tá na hora de dar
um pulo em casa, né, porra? Fazer a barba, né? — dizia Jorjão no salão de passageiros do aeroporto
de Marabá ao recém-chegado João Pedro, que iria substituí-lo.
Tempos atrás, um piloto casado há poucas semanas fora incumbido de levar uma
aeronave a Belém para revisão. No pátio do esquadrão, outro Sapão estava pronto para fazer a
troca. Era descer de um, entrar no outro e decolar de volta para Xambioá.
— Porra, mas não posso nem dar uma chegada em casa pra "fazer a barba"!! —
dissera o saudoso Zelazowiski, lamentando-se. A expressão difundiu-se logo entre os aviadores.
— Estou aqui, pronto para recerjer o serviço, Sariema — falou João Pedro que estava
iniciando sua primeira estada na região.
— Porra, negão, porra, não me chama pelo nome não, porra. Aqui eu sou Jorge,
porra.
— Desculpa, Sá... isto é, Jorjão. Ainda vou levar um tempo para me acostumar até
com o meu próprio nome frio, quanto mais com os dos demais.
— Mas é bom se acostumar logo, porra. O pessoal da Casa Azul não admite isso de
jeito nenhum. Tá legal? — disse Jorjão, colocando o braço no ombro de João Pedro amigavelmente.
— Meu avião está quase saindo. Não vou ter tempo para lhe explicar como as coisas funcionam
aqui. O Tenório sabe tudo da área. Já falei pra ele lhe dar um briefing completo. Não é nenhum
mistério, porra. É só questão de adaptação — completou ele, despedindo-se.
E assim, depois de se alojar na casa do Incra, chamada de "o ninho", numa alusão à
expressão "ninho das águias" usada pelos aviadores para designar seus locais de pernoite, João
Pedro começou a se familiarizar com a missão. Tenório ia explicando tudo pacientemente.
— Hoje mesmo, vamos à noite à reunião do pôr-do-sol na Casa Azul. Fique tranquilo
que rapidamente você vai ficar por dentro de tudo.
Dias depois, ele estava perfeitamente senhor da situação, ou, pelo menos, assim
pensava. Na Casa Azul, conheceu os companheiros da Força Terrestre e, até, verificou que alguns
da Força Aérea que trabalhavam na área de inteligência, ou segunda seção, eram antigos
contemporâneos da época de escola militar.
— Certo, Tarquínio. Não se preocupe. De mim eles não saberão nada — falou João
Pedro, adentrando o famigerado domínio da "comunidade".
— São dois guerrilheiros que caíram prisioneiros há alguns dias. Este é o Victor, do
destacamento B. A moça é Áurea, também do B — explicou Tarquínio, aproximando-se da porta
gradeada da cela onde uma mulher franzina, cabelos escorridos e muito pálida observava. — Como
vai, minha querida? Está boazinha hoje?
— Vou bem — respondeu ela numa voz fraca, os olhos compridos e tristes. — Você
disse que nós íamos viajar. Quando será isso?
— Breve, querida. Muito breve. Este aqui é o Dr. João Pedro, piloto do Sapão. Ele
veio visitá-la.
— Como vai, João Pedro? É você que vai nos levar para viajar? — a moça tocou
novamente no assunto da viagem.
João Pedro não sabia o que dizer. Ela falava com uma voz meiga e delicada. Sorriu
para ele, um sorriso tímido, recatado, os olhos marejados de lágrimas.
— Vou bem, Áurea. Ainda não sei nada sobre a sua viagem. Creio que não vai
demorar — respondeu o piloto, no mesmo tom que observara Tarquínio usar para com ela.
— Eles vão dar um passeio aí pela mata, para nos mostrar onde ficam uns depósitos.
A história da viagem é uma invenção — respondeu Tarquínio secamente.
— Aquilo é uma jararaca. Subversiva filha da puta, não vale o que o gato enterra,
João Pedro. Você não conhece isso como eu conheço. Deixe de sentimentalismo, companheiro. Se
qualquer um dos dois que você viu ali dentro tiver oportunidade, lhe mata com o mesmo sorriso
que você chama de meigo.
João Pedro despediu-se do colega e voltou para o ninho, pensando nos infelizes que
estavam naquelas celas da Casa Azul.
Capítulo XI
— Por que não? Acho que você teve uma ótima idéia. Pois, se nós estamos aqui no
meio do mato, nos fodendo de verde e amarelo, porra, nada mais justo que a gente procure
melhorar o conforto do acampamento — disse Silvério em resposta à sugestão de Tiago de que eles
se cotizassem para adquirir alguns equipamentos que iriam tornar mais fácil a estada de cada um
em Xambioá.
— Ninguém vai garfar minhas diárias assim sem mais nem menos, não, negão! —
falou Banto, obtendo apoio de Vitrôncio e de Zé Traíra.
— Porra, negão, você vem pra cá, come, bebe e dorme de graça e, ainda por cima,
recebe uma diária de alimentação e outra de pousada, e não quer pagar nada, nadica de nada?! Pra
melhorar o seu próprio conforto e bem-estar? Puta que pariu, vai ser munheca lá na casa do
"carvalho!" — esbravejou Tiago.
— Não é questão de ser ou não ser munheca, japonês. Acontece que não fui eu
quem inventou essa porra de guerra, meu nego. Se a nação me quer aqui pra combater subversivo,
tem mais é que me pagar e me proporcionar as condições pra isso. A questão é de princípios —
rebateu Banto.
— Minha gente, vamos ser razoáveis. Será apenas uma pequena contribuição, o
correspondente a um quarto da diária por cada dois dias que o sujeito ficar aqui — ponderou
Silvério.
— Da minha parte, sou contra, viu, viu. Mas o que vocês decidirem, pra mim tá tudo
bem, viu — opinou Zé Traíra, que detestava se comprometer.
— Pessoal, com esse dinheiro nós vamos ter condição de melhorar o rancho, vamos
adquirir uma caixa-d'água, instalar uma bomba pra puxar água do poço, colocar chuveiros decentes
e fazer um monte de outras coisas que vão tornar a nossa estada aqui mais agradável — disse
Tiago. A reunião do pôr-do-sol no acampamento da mineradora estava quase virando comício
político.
— Pra acabar com a discussão, sugiro que cada um dê o seu voto, contra ou a favor.
O lado que perder perdeu, pronto, tá acabado! — falou Vitrôncio, que era contra e achava que a
maioria também seria.
— Certo. Vamos então botar em votação. Quem for contra levante o braço —
conclamou Silvério.
Uns poucos levantaram o braço. A proposta fora aceita por larga margem, uma vez
que eles desejavam, de fato, melhorar as condições do acampamento. A missão, pelo visto, ainda ia
durar vários meses, e todos tinham consciência disso.
No dia seguinte, o próprio Silvério, num intervalo das operações, decolou num
Paquera para Imperatriz, comprou uma parafernália de materiais e utensílios, regressou ao cair da
tarde e deu início aos melhoramentos pretendidos.
— Diante do que você está me dizendo, parece-me que o CMA terá que arcar com
este sacrifício de fornecimento de tropa por mais uns dez meses, pelo menos. Não há, portanto,
alternativa? — questionou o general.
O general olhou mais uma vez o quadro onde, recentemente, quatro X em vermelho
haviam sido grafados sobre as fotografias de Alfredo Campista, o Vander, e Maurício Guerra, o
Mauro, ambos do grupamento A, bem como de Gilberto Oliveira Malta, o Vanderlei, e Vandique
Palmeira, o Delmo, do grupamento C.
— É, você tem razão. As autoridades em Brasília devem saber o que estão fazendo, e
nós, como bons militares que somos, temos que cumprir as ordens. Os princípios da hierarquia, da
disciplina e da ordem são os pilares da nossa insti-tuição. O trabalho que vocês estão
desenvolvendo aqui deve estar sempre centrado nestes princípios, como de resto estão sendo
todas as demais ações do governo da revolução de 31 de março. Parabéns, companheiro, a você e à
sua equipe, pelo alto espírito de patriotismo com que vocês estão procurando livrar o Brasil dessa
mancha subversiva — falou o velho general em tom solene.
A comitiva despediu-se logo depois, pois um avião da FAB aguardava no aeroporto
para conduzi-la de volta a Manaus. O ano estava chegando ao fim e, com aquele vôo, os oficiais
mais antigos do CMA completariam as vinte horas regulamentares de "atividade" aérea, como
passageiros, o que lhes garantia o recebimento de cinquenta por cento da gratificação normal
devida àqueles que, de fato, tinham função a bordo e voavam mais de cem horas anuais. "Quanto
patriotismo!", pensou João Pedro.
— Gil, amanhã, como lhe expliquei, preciso de um Sapão para lançar uma patrulha
especial — disse Zeca, já de volta à sala de operações da Casa Azul. — Eu e mais três agentes vamos
dar um passeio com a Áurea e o Victor para estourar os tais depósitos.
— Outra coisa, é bom ficar de olho nesse tal João Pedro. O cara é muito perguntador,
e o Tarquínio caiu na besteira de mostrar para ele as dependências do galpão — falou Zeca.
— Que é isso, Lucas?! O Joãozinho é boa gente. Está apenas se familiarizando com a
missão. Além disso, já virou "peixe" do chefe. Os dois conversam muito e ele só chama o Oran de
"tio Oran". Fique tranquilo.
— Bem, você é quem sabe. Não vou muito com a cara daquele sujeito, mas se ele é
peixe do chefe, paciência. Peixe é peixe, já não está aqui quem falou.
— E aí, Silvério?! Quede o japonês, home de Deus? O danado tomou chá de sumiço e
deixou a pobrezinha da Dagmar desesperada. Isso é lá coisa que se faça com a moça? — perguntou
Valquíria, sem perder o ar alegre e soltando uma de suas conhecidas gargalhadas.
— Ah, o Tiago é assim mesmo. Não gosta de se amarrar a uma só. Parece que ele
agora está namorando uma tal de Dulcilene — respondeu Silvério.
— Sei lá de quem ela é filha, Val. Sei que é amiga da Joaninha. As duas só andam
juntas — falou Silvério. Ele e Valquíria estavam conversando na sala de almoço, nos fundos da casa
da Baleia, enquanto Dora se aprontava no quarto. A noite estava chuvosa, não havia como colocar
as cadeiras na calçada. Eles estavam a sós.
— É essa mesma. Pois então você não conhece o Jerônimo, pai dela?! Ele trabalha lá
na agropecuária, fazendo serviço de mateiro. A mãe é a Mundinha, uma branca da bunda grande,
boa gente — disse Val, que sabia de tudo. — O japonês tá arrumado. Se não comer a filha, na certa
vai passar a mãe nas armas — gargalhou ela, ferinamente.
— Eu não conheço esse tal de Jerônimo. Também, tem tanta gente trabalhando na
agropecuária que fica difícil conhecer todos.
— Agora, por falar em bunda grande — disse Val em voz baixa — quem tá doidinha
pra ir pra cama com você é a Maria Preta. Menino, ela não fala noutra coisa. Eu, por mim, não me
importo. É até melhor do que você acabar embuchando a minha Dora...
— O que é que vocês estão cochichando aí? Posso saber? — perguntou Doralice,
entrando na sala. Silvério ficou desconcertado.
— Que cochichando nada, menina — falou Val sem perder a bonomia. — Tava só
comentando sobre a Mundinha, mãe da Dulcilene. Cê sabia que o Tiago tá de caso com ela?
— Com a filha, tou sabendo. Com a mãe, você tá me falando agora — torceu Dora de
propósito.
— Ah, sua cabrita! Sabia e não me disse nada, né? Deixe está, filha desnaturada!! —
gargalhou Valquíria, desviando a atenção de Doralice do cochicho que ela estivera tendo com
Silvério.
— Tá chovendo, Dora. O Quentão hoje deve estar uma porcaria. Vamos ficar por aqui
mesmo, conversando com a Val — falou o rapaz. Ele estava interessadíssimo em prosseguir com o
assunto interrompido, tão logo houvesse uma oportunidade.
— A chuva já está passando, e, além disso, nós vamos na camioneta, não é? — disse
ela. Realmente, a desculpa da chuva era um tanto esfarrapada. Na semana anterior, a mineradora
havia recebido duas camionetas usadas, mas em bom estado, do Incra. Os trabalhos no
acampamento ficaram mais fáceis, e à noite os carros eram usados pelos doutores.
— Então vamos. Mas se o Quentão não estiver bom, nós voltamos pra cá. Estou
precisando falar com o Zé Geraldo sobre um serviço lá na mineradora. Se ele aparecer por aqui, Val,
diga-lhe que me espere, por favor.
— Pode deixar que eu dou o recado, Silvério — falou Val. Quando o casalzinho saiu,
Valquíria chamou Bartira:
— Vou já, já, dona Val. É só o tempo de ir aqui no banheiro — disse Bartira, e entrou
depressa numa espécie de lavatório que havia ao lado. A neguinha era esperta e libidinosa. Perto
de completar quinze anos, e de tanto ouvir as conversas picantes da Baleia, ardia por uma
oportunidade de ficar a sós com Zé Geraldo, o homem mais gentil que ela conhecera até então. O
mecânico a tratava com carinho, mas ele era assim com todas as pessoas. No entanto, na cabeça de
Bartira, ele era o seu príncipe encantado.
— Vixe, mas vai é perfumada, hein, Bartira? — falou Val, quando a garota saiu do
lavatório. — Tá doidinha pra esfregar o rabo e perder o couro do cu, né, minha filha? — gargalhou
ela.
— O que é isso, dona Val, só passei uma aguazinha-de-cheiro. — E lá se foi ela para
cumprir o mandado da patroa.
Eram três e trinta da tarde. O céu estava limpo de nuvens e o ar muito fresco a oito
mil pés de altitude. O ronco firme e suave do motor embalava o voo do Paquera. João Pedro
executou uma curva de inclinação média sobre a região que o mapa indicava ser a do igarapé dos
Caianos. Só faltava o contato com mais uma patrulha. Depois, o regresso a Marabá e o relatório da
missão para o Dr. Gil.
— Paquera para Rouxinol. Estou lhe ouvindo cinco barra três. Alguma novidade?
Câmbio.
— Positivo, Paquera. Houve chafurdo. Solicito resgate amanhã, às nove horas na PA-
70, local combinado. Câmbio final.
— Paquera para Rouxinol. Confirme chafurdo. Câmbio — falou João Pedro, excitado
pela notícia de que houvera encontro das forças legais com o povo da mata.
O aviador ficou por algum tempo sem entender. "Então é assim? Há um chafurdo e
os caras informam sem maiores explicações, porra?!", pensou João Pedro. "É aquele tal de Zeca, a
voz era dele. Sujeitinho babaca! Como ele vai ser resgatado amanhã cedo, quer dar os detalhes, em
primeira mão, ao chefe dele."
De qualquer forma, aquela era a primeira participação efetiva de João Pedro nas
operações. "Pelo menos, estou levando uma notícia quente", disse ele para si mesmo tomando o
rumo de regresso para Marabá.
— Que tal a esvoaçada, Dr. João Pedro? A aeronave está com algum problema? —
perguntou o mecânico Almeida, colocando os calços no avião.
— Tudo bem, Almeidinha. A garça está redonda — disse João Pedro e entrou na
"abreviatura" que o aguardava. "Abreviatura" era o termo que eles usavam para designar as
camionetas, ou viaturas, uma vez que, alguém explicou, "se o carro serve para abreviar as
distâncias, não é só uma viatura, é uma abreviatura, sim senhor!"
Tão logo chegou à Casa Azul, João Pedro anunciou para Gil, Tomé, Tarquínio e outros
que estavam na sala de operações.
— As outras patrulhas não disseram nada que chamasse a atenção. Está tudo aí no
relatório — disse o aviador, completamente atônito.
— Tá legal, Joãozinho. Obrigado pelo relatório. Até mais tarde, na reunião do pôr-do-
sol.
João Pedro saiu para o pátio da Casa Azul, confuso. Pegou a abreviatura e rumou
para o ninho. "Tem que haver algo errado nisso", cismava ele. Entrou no alojamento pensativo
colocou seu material de navegação sobre uma mesa e balançou a cabeça, como se tentasse afastar
uma ideia indesejável.
— O que foi, Joãozinho? Algum problema? — perguntou Tenório, que estava deitado
num dos beliches.
— Joãozinho, fique fora dessa história. Não pergunte os porquês. Faça como a
maioria de nós vem fazendo. Cumprimos a programação de vôo e pronto! Nossa responsabilidade
acaba quando a gente toca a borracha no chão, no regresso das missões. Fim!
— Não posso agir assim, porra! Não sou um mero chofer de avião! Nenhum de nós é,
caralho. Somos oficiais da força aérea. Nossa responsabilidade está muito acima da simples
condução de uma aeronave com segurança, Tenório! A nação espera de nós muito mais. Agora,
voltando ao assunto, o que você acha que está acontecendo?
— Fajuto em que sentido? Você quer dizer que não houve, e que os outros sabiam
disso?
— Não, não é bem assim. Hoje pela manhã, a patrulha do Zeca foi desovada na PA-
70. Eu e o Rafael cumprimos a missão. Junto com eles foram dois prisioneiros, um rapaz e uma
moça. O recado que ele mandou é de que os dois já foram esfriados, João.
— Não acredito! Se isso for verdade, então não é guerra. É assassinato a sangue-frio,
porra!
— João Pedro, é o que lhe falei. Fim! Se você disser que eu disse, digo que é mentira
sua, tá legal? Agora, quer um conselho? Fique na sua, cara. Se você chiar, esse pessoal da
"comunidade" faz a sua cama direitinho e lhe queima dormindo.
João Pedro encostou a cabeça no travesseiro e ficou olhando fixo para cima. O
pensamento absorto. Uma tristeza imensa lhe invadia a alma.
— Bom dia, Silvério. Que bons ventos o trazem aqui a essa hora da manhã? — falou
o mecânico, aproximando-se do carro e segurando a porta do motorista para que o outro descesse.
— Não recebi o recado, não. Ontem à noite, fui pescar. Pura perda de tempo. Peguei
muita chuva e pouco peixe. Mas, o que é que o amigo manda? — disse Zé Geraldo com um sorriso.
— É o seguinte, Zé. Nós instalamos uma bomba para puxar água do poço, lá no
acampamento da mineradora. Acontece que a porra da bomba não está conseguindo pressão
suficiente para colocar a água na caixa. Meu pessoal analisou o problema e concluiu que é preciso
fazer uma redução no cano de saída. Acho, também, que a solução é essa, mas vai ser necessário
um mandril para abrir rosca num cano de uma polegada e não temos a ferramenta. Você teria
condições de nos ajudar?
Silvério ficou meio desconcertado diante de tanta gentileza. Não havia como recusar
o oferecimento sem ser grosseiro. "De mais a mais, qual é o problema de levar o cara lá?",
ponderou ele.
— Vamos lá, meu amigo. Estou pronto — disse Zé Geraldo, colocando sua caixa de
ferramentas na boleia da camioneta.
— Quem é esse cara, Silvério? Você tá maluco, negão? Trazer um estranho aqui, isso
vai dar merda — falou Banto em voz baixa, enquanto tomava um café na barraca do rancho.
— Que vai dar merda porra nenhuma, Banto. Deixe de ser cagão, porra. O que que
tem pra ver aqui? Um punhado de barracas, um helicóptero e dois L-19 estacionados no pátio, o
quê mais? Na barraca de operações, ele não vai passar nem perto — falou Silvério.
— Não vai haver problema, não, Banto. Também conheço o Zé Geraldo. O cara é
gente fina. Fique frio — disse Tiago.
— Vocês são mais antigos, vocês é que sabem. Se der merda, tou fora — e deu de
ombros.
O serviço ficou perfeito. Quando eles ligaram a bomba, a água jorrou forte na caixa
que fora colocada a uns cinco metros do solo.
— Parabéns, Zé Geraldo. Agora, diga aí quanto é que estamos lhe devendo — falou
Silvério, contente.
— Que devendo nada, Silvério. Meu negócio é mecânica de motores. Esses
servicinhos de encanador, faço de curioso. Não é nada não. Foi só pelo prazer de servir ao amigo.
— Que é isso, Zé. Então, você vem lá da cidade, perde o seu tempo e não ganha
nada? Assim não posso aceitar. Tenho que lhe pagar alguma coisa.
— Já lhe disse, Silvério, vim para servir ao amigo. Não me ofenda com essa história
de pagamento.
— Você quer me pagar? Então, me deixe entrar na cabine de um avião desses aí. É o
meu sonho. Quando eu era menino, lá em Caruaru, vivia pensando que um dia poderia ser piloto.
Mas sabe como é, família muito pobre, o sonho acabou cedo.
— Tudo bem, vamos lá — disse ele num impulso e, virando-se para Gauchão, falou:
— Avise pró Dr. Tiago que estou indo mostrar um Paquera pró Zé Geraldo.
— Que coisa linda! Ah, se um dia eu pudesse voar num bicho deste! E isto aqui? É o
rádio?
— Pode parar, Silvério. Esse monte de nome eu não entendo. Agá éfe, vê agá éfe,
isso é grego pra mim. Pra que serve tanto rádio assim?
— Desculpa, Zé. Fui falando sem perceber que você não é do ramo. O FM, este aqui,
significa frequência modulada, serve para comunicação a curta distância, e nós usamos para falar
com o nosso pessoal que tá na mata. Este outro, o VHF, quer dizer frequência muito alta. É usado
para médias distâncias, por exemplo, pra falar daqui com Marabá. E o HF, alta frequência, é para
grandes distâncias. Com este pode-se falar com Belém, com Brasília e até com o exterior. Aí está,
tudo explicado.
— Vamo chamá o homem pra um churrasquinho, qualquer dia desses aí, né Dr.
Silvério? — disse Gauchão, que estava perto observando.
— Pois, então! Sempre a gente assa uma carninha aqui. Aparece aí pra comer com
nós. Churrasco bom, barbaridade!
— Mas bota boa gente nisso! E o serviço dele, doutor? Trabalho limpo, barbaridade!
— Foi muito melhor do que podíamos esperar, Dr. Oran. Olha só como é que está o
Sapão — disse ele, apontando para o helicóptero, que, com as portas traseiras abertas, mostrava o
salão carregado, até o teto, com vários recipientes de, mais ou menos, vinte litros cada um. — Deve
ter aí umas trinta caixas de metal e de plástico. A maioria estava no depósito de alimentos. As
outras, umas doze, no de remédios. Abri uma de cada para ver o que continham. O senhor não vai
acredi-tar. Uma delas contém material cirúrgico que muito hospital por aí não tem. A de alimentos,
que foi aberta, tem leite em pó, carne liofilizada, sal e rapadura, tudo bem embalado e protegido.
— Ah, cê tá falando daqueles dois que você viu lá no galpão, aquele dia? Eles
viajaram — disse Tarquínio com cara de parvo.
— Viajaram pra Brasília, ou pra São Paulo. Sei lá! Cê tá querendo saber demais,
Joãozinho. Pára de encher o saco. Fica na sua, não se meta nisso. É assunto compartimentado.
Estou lhe dando um conselho de amigo.
João Pedro achou melhor ficar calado. "Assassino, filho da puta!", pensou ele,
olhando na direção de Zeca.
— Posso pegar a programação aérea para amanhã um pouco mais cedo, tio Oran? —
perguntou João Pedro.
— Claro, Joãozinho. Faça contato direto com o Gil. Sei que você precisa transmitir as
ordens de missão para Xambioá, organizar as escalas de vôo e tomar outras providências. Se você
ficar dependendo do término da reunião, fica muito tarde. Não é isso? E, afinal, meus aviadores
têm que dormir cedo para estar bem-dispostos no dia seguinte, é ou não é? — concordou Oran,
sorrindo amigavelmente para João Pedro.
Passava um pouco das dez quando a reunião começou na Casa Azul. Após a
apresentação do quadro de situação, ocasião em que Gil explicou o remanejamento das patrulhas
de acordo com os informes mais recentes, Oran assumiu a plataforma.
— Meus senhores, peço-lhes desculpas pelo atraso. Tivemos hoje um dia de muito
trabalho. Como os senhores sabem, a descoberta da existência desses depósitos é um fato novo
que irá modificar sensivelmente os nossos planos de manobra. Só depois que abrimos os
recipientes, verificando cuidadosamente o conteúdo de cada um, nos demos conta da extensão e
consequências do achado. O material apreendido representa apenas quatro depósitos, dois de
alimentos e dois de medicamentos. No entanto, temos razões suficientes para supor que os
guerrilheiros possuem inúmeros outros esconderijos dessa natureza. Para que os senhores tenham
uma idéia, cada recipiente de alimento contém suprimento de boca para sustentar,
aproximadamente, quatro pessoas durante vinte dias. Os de medicamentos foram de difícil
avaliação. Na parte de re-médios, existe uma quantidade muito grande de antibióticos e
analgésicos de amplo espectro, comprimidos de Aralen contra a malária e diversas outras drogas.
Há também uma enorme quantidade de material cirúrgico para suturas e pequenas cirurgias, como
agulhas, fios, bisturis, seringas, fórceps, pinças, curetas, boticões e um sem-número de outras
coisas. Além, é claro, de soro fisiológico, mercurocromo, esparadrapos, gazes e bandagens de
diversos tipos.
"Quer dizer, por essa amostra, podemos supor que eles estão preparados para
resistir por um longo período de tempo. O que significa que, se não tomarmos medidas corretas,
essa guerra vai durar uma eternidade — disse Oran, fazendo uma pequena pausa.
"Ora, meus amigos, nós somos velhos soldados! Temos, portanto, que usar os nossos
conhecimentos sobre a matéria, ou seja, procurar negar ao inimigo o acesso às suas fontes de
suprimento, cortando a linha, o que não é o caso, ou destruindo a própria fonte.
"Mas como destruir as fontes, se não sabemos onde elas se encontram? Esta é a
questão que nos levou a modificar o plano de manobra, como nos referimos inicialmente. De agora
em diante, assume importância fundamental, não a simples eliminação dos subversivos, mas, sim,
fazermos o maior número possível de prisioneiros. Estes nos darão o 'caminho das pedras' para
estourarmos os depósitos e, assim, negarmos ao inimigo acesso ao suprimento.
"As patrulhas deverão ser orientadas neste sentido, bem como vamos dar início à
montagem de uma operação de guerra psicológica. Conversei com o Dr. João Pedro, aqui presente,
e com o nosso pessoal de comunicações. Vamos instalar potentes alto-falantes sob as asas de um
Paquera e, através deles, enviar mensagens de exortação para que os subversivos se entreguem. Os
detalhes técnicos muitos de vocês conhecem e o sistema já foi usado com êxito em outros
conflitos. Penso que, até meados de janeiro, estaremos em condição de desen-cadear essa
operação psicológica.
"Era isso que eu tinha a lhes dizer. Peço, novamente, desculpas pelo adiantado da
hora. Boa noite para todos — concluiu o comandante da Casa Azul.
— Puxa vida! O Zé Geraldo desapareceu do mapa. Você tem notícias dele, Val? —
perguntou Silvério.
— Ih! Aquele é assim mesmo. De vez em quando toma um chá de sumiço. Mas desta
vez me avisou que ia passar o ano-novo em Imperatriz, na casa de uns amigos dele — respondeu
Valquíria.
— Amigo deve de ser conversa-fiada. O Zé tem é alguma muler por lá. Ele é igual
mineiro, come queto, né Silvério? — disse Maria Preta, dando uma piscadela para o rapaz.
— Se for isso, faz ele muito bem, porque aqui ele já comeu todas, né Maria? —
gargalhou Valquíria ruidosamente, provocando a outra.
— E você, muler, como é que está se arrumando com o piloto? Minha parte eu já fiz
— falou Val para Maria Preta, em voz baixa.
— Só fiquei com ele uma vez, quando o Valdemar foi a Araguaína resolver uns
negócios de trigo para a padaria. O bichinho é bom de cama que é danado. Mas é também sem-
vergonha que só ele.
— Que é isso, Val, sou lá muler dessas coisas! — "Pois, sim...", pensou a Baleia.
"Então, o danado gosta de um rabo? É bom saber disso... Ah, se não é!"
Naquela noite, Valquíria ia ter uma conversa com Dora. Uma conversa cuidadosa,
para não assustar a garota, mas era preciso abrir o caminho para descobrir mais coisas sobre a
mineradora e a agropecuária.
Capítulo XII
Estava uma tarde ensolarada. Na ravina onde o grupo se encontrava, o ar era úmido
e o calor quase insuportável. O suor de seus corpos atraía uma quantidade absurda de mosquitos,
mas eles não se importavam mais com os incómodos insetos. A fadiga lhes aquebrantava o ânimo
menos que as questões levantadas pelo infortúnio.
— Camaradas, tenho procurado, até agora, manter o nosso grupo unido, pois
entendo que, se nos dividirmos, ficaremos mais fracos. Entretanto, percebo que alguns estão
insatisfeitos, e não lhes tiro a razão. Perdemos, lamentavelmente, cinco bravos militantes, e, agora,
tivemos nossas reservas diminuídas quando quatro de nossos depósitos foram saqueados pelas
forças da repressão. Pessoalmente, creio que é, ainda, melhor permanecermos juntos. Contudo,
minha opinião pode ser contestada. Esta é a questão que submeto a vocês: nos dividirmos ou
continuarmos num só grupo? — disse Zenóbio.
— Já pensei sobre isso, Darci. Acho que essa solução seria muito boa, se não
houvesse sérios obstáculos. Se tentássemos cruzar o Araguaia, é praticamente certo que seríamos
apanhados antes de chegarmos à margem do lado de cá do rio. A rota menos provável de sermos
detidos seria em direção ao Xingu. Mas esta eu não me arrisco sequer a sugerir. Seria uma
caminhada de muitos dias, por uma região totalmente desconhecida, com inúmeros perigos, e
fatalmente não resistiríamos. Em resumo, é um caminho sem volta. Penso que não vale o risco. —
ponderou Zenóbio, acrescentando: — De mais a mais, acho que é muito cedo para abandonarmos
um projeto que estamos construindo há tantos anos. Eles tentaram nos destruir de outras vezes e
não conseguiram. Não conseguirão agora também, camaradas!
— Acho que não devemos nos precipitar. Como temos feito até aqui, vamos nos
separar em duplas, em torno deste local, para passar a noite. Cada um pense sobre o assunto.
Amanhã cedo nos reunimos novamente aqui e tomamos uma decisão — falou Zenóbio.
O grupo dos Caianos vinha adotando este esquema há algum tempo. Por esse
motivo, as duas vezes em que eles foram surpreendidos pelas tropas, as frações desbaratadas eram
de dois, ou três, elementos, como no caso da queda de Ernani e Walter, e da prisão de Victor e
Áurea, quando caiu, também, Fábio, ao tentar fugir.
— Você sabe da minha situação — disse a outra. — Vou completar cinco meses de
gravidez, e não há mais como esconder isso. Eles já estão começando a desconfiar. — Ela estava
com as feições mais finas, porém com o ventre visivelmente intumescido, embora tentasse
escondê-lo, usando uma blusa larga sobre as calças compridas.
— Mas em que sua gravidez interfere com a decisão de dividir ou não o grupo?
— Não é isso que me preocupa, Marlene. Não posso continuar assim. Vou ter um
filho, e preciso pensar nele. Não posso ficar perambulando por esta selva indefinidamente.
— Quero dizer que tenho que arranjar um jeito de sair daqui. Não sei como, mas
tenho que ir para algum lugar onde possa ter assistência médica e ter o meu filho em condições de
razoável conforto — disse Lúcia em tom de desespero.
— Não sei. Ainda não sei. Às vezes penso que seria melhor me entregar.
— Isto seria loucura, Lúcia. Aqueles torturadores filhos da puta a matariam. Você não
pode fazer isso!
— Eles não seriam tão desumanos e covardes com uma grávida, você não acha?
— Você não tem certeza disso. O Simplício desapareceu. Não se sabe como. Pode ter
se acidentado na mata, ter sido atacado por algum animal. Mil coisas podem ter acontecido.
— Algo lá dentro de mim me diz que ele fugiu, que era um espião, um traidor! —
disse Lúcia com amargura.
— Não se desespere, minha amiga. Vamos encontrar uma solução. Estou do seu lado
— falou Marlene, consolando a companheira.
— Você pensa mesmo que há alguma possibilidade de que o Simplício não fosse um
espião? — perguntou Lúcia. A dúvida estava sempre a lhe assaltar o espírito. Ela queria tanto
acreditar que isso pudesse ser verdade, que ela não se entregara a um infame agente da repressão.
No fundo de seu coração, ainda alimentava amor por aquele homem, pelo pai daquele pequenino
ser que crescia em suas entranhas.
— Claro que sim, Lúcia. As verificações que fizemos não nos deram motivos para
suspeitar dele. Já discutimos isso tantas vezes! O próprio Zenóbio disse que não acreditava que ele
fosse um traidor.
— Eu gostaria tanto que você tivesse razão, Marlene... Ah, como gostaria!
— Até que enfim voltaste, hein, Zé Geraldo? — disse Valquíria ao mecânico que
acabava de chegar à calçada da Baleia.
— Nem foi tantos dias assim, Val. Você sentiu a minha falta? — perguntou ele.
— Eu não, mas teve gente aí que estava se roendo de saudade, né, Bartira? Vá logo
buscar um refresco pró seu xodó, sua sirigaita — falou Val, explodindo numa de suas gostosas
gargalhadas.
Bartira saiu rebolando o traseiro para buscar o refresco, enquanto Zé Geraldo pôs-se
numa atitude que era um misto de vergonha e felicidade.
— Não faça isso, não, Val. A menina o que é que vai pensar de mim?
— Mas se foi você mesmo que me disse que tava enrabichado por ela! Não fique
vexado, não. Isso vai ficar só entre nós, meu nego. Agora me diga, como foram as coisas lá em
Imperatriz?
— Silvério andou perguntando por você. Daqui a pouco ele deve estar chegando.
Quem sabe aparece mais alguma novidade?
— É, pode ser — disse ele, pegando o copo que a moça lhe trouxera. — Obrigado,
Bartira. Tenho um presentinho pra você, apareça lá em casa mais tarde.
— Oh, que bom, Zé Geraldo, mais tarde, se dona Val deixar, vou lá.
— Por mim, você pode ir aonde quiser. Agora, vá lá pra dentro arrumar a cozinha,
sua espevitada — falou Val, rindo alto.
— Oh, Val desculpe. É que eu estava distraído. Boa noite, tudo bem? — falou o
aviador fazendo uma pantomima.
— Conheço o Tonho, filho da dona Etinha, aqui no Xambioá. Mas ele não deve ter
muita influência lá. Se você quiser, podemos ir juntos a São Geraldo, no meu barco, amanhã. De vez
em quando, faço uns serviços pró pessoal da madeireira. Quem sabe, a gente resolve isso indo lá?!
João Pedro executou um pouso suave com o Paquera na pista de Bacaba. Taxiou a
aeronave para uma das laterais e estacionou. Uma abreviatura veio recebê-lo.
— Tranqüilo, sem problemas. Vim buscar o Dr. Zeca. Você sabe se ele já está pronto?
— Ele me mandou apanhar o senhor. Disse que é pró senhor ir lá pró outro lado.
Parece que ele ainda vai demorar.
Quando João Pedro chegou ao pátio da casa, ouviu tiros vindos dos fundos.
O aviador caminhou para a direção indicada pelo barulho dos disparos. Num tronco
de árvore caído, a uns vinte e cinco, ou trinta metros de distância, várias garrafas estavam
alinhadas. Zeca andava de um lado para o outro, braços ao longo do corpo, passos lentos. João
Pedro ficou observando.
De vez em quando, o agente fazia uma meia parada, sacava a arma do coldre de
axila, ou do coldre de cintura, numa rapidez nunca vista, e atirava sem fazer, aparentemente,
qualquer pontaria. A cada disparo, uma garrafa voava em cacos.
"Meus Deus, que destreza! O cara é um matador, mas que puta matador! Nunca vi
nada igual, nem em filme de bangue-bangue italiano", pensou o aviador.
— Porra, se é!
— Por hoje, está bom. Na hora que você quiser, estou pronto pra partir, Joãozinho.
Quinze minutos depois, eles decolavam no rumo de Marabá, onde uma novidade
aguardava João Pedro.
— Porra, Jotapê, passei o Natal e o ano-novo com a família, mas tava era doido pra
voltar pra cá — disse Jorjão para Joãozinho quando este chegou ao ninho. — Como é que está a
situação na área, negão?
— Tá tudo bem, Jorjão. Quais são as ordens? — falou o outro, na expectativa das
mudanças que, certamente ocorreriam com a chegada do chefe de operações do 1° EMRA.
— Porra, porra, até amanhã, você me passa o serviço e me bota por dentro de tudo
que está acontecendo, né!? Depois, quero que você vá pra Xambioá. É preciso alguém mais antigo
lá, porra. Essa garotada tá muito solta lá, né? Você fica no comando de Xambica, e eu no daqui. De
vez em quando, a gente troca. Eu vou pra lá, você vem pra cá, né? Porque ficar aqui diretão é um
pé no saco, né? — disse Jorge, que gostava mais de ficar em Xambioá do que em Marabá, embora
seus deveres funcionais o obrigassem a permanecer junto à Casa Azul.
— Certo, Jorjão. A passagem do serviço aqui é coisa rápida. Logo mais à noite, nós
vamos à reunião na Casa Azul, e você toma conhecimento do restante da situação na área. A
principal novidade é que estamos preparando um Paquera para ser lançado numa operação de
guerra psicológica.
— Porra, porra, já tava sabendo disso. Vi o pessoal na pista, instalando duas "bocas
de ferro" no avião, quando desembarquei.
— Jabuti Três, Jabuti Três, uno, dós, três, quatro, quatro, três, dós, uno. Paquera
chamando Jabuti Três. Câmbio e cambiei.
O rádio que ele conseguira adquirir em Imperatriz recebia até cento e vinte
megahertz. Fora fácil captar os sinais do avião, mas as respostas das tropas, na mata, não era
possível receber. "De qualquer forma, já é alguma coisa", pensou ele, guardando o equipamento
nos fundos de um armário, no seu quarto, contígüo à oficina.
— Pessoal, missão imediata! A Jabuti Três fez dois prisioneiros. Está nos aguardando
na pista do Abóbora. Recebi o pedido de missão agora, direto do Paquera, por solicitação da Casa
Azul — disse João Pedro, que assumira o comando da mineradora no dia anterior e já estava em
franca atividade.
— Okei, João. Vamos ter apenas que aguardar a chegada de um Sapão. Os dois estão
em missão, desovando e resgatando patrulhas, mas não devem demorar — disse Tiago.
— A tripulação de sobreaviso hoje é você mesmo e o japonês — comunicou Silvério,
consultando o quadro de escalas na nova sala de operações, ainda em fase de acabamento,
construída com a madeira conseguida por ele em São Geraldo.
— O Jorjão está se deslocando pra cá num Paquera. Vem trazendo o Zeca para
identificação e interrogatório dos prisioneiros. O Elesbão já foi avisado aí na agropecuária — disse
João Pedro.
— Paquera, Sapão Um. Câmbio — falou Tiago na frequência tática VHF. O japonês
adorava um papo-rádio.
— Estamos nos deslocando para o Abóbora, para efetuar o resgate. Sapão Um,
câmbio.
— Quem são os dois? — perguntou Silvério a Jorjão e a João Pedro, pois ambos
estavam mais familiarizados com a "ordem de batalha" dos paulistas.
— Porra, sei lá. Depois a gente pergunta pro Zeca. Ele não vai fazer mistério, né? —
disse Jorge.
— O senhor vai voltar pra Marabá ainda hoje? — perguntou Tiago a Jorge.
— Porra, porra, claro que não, né japonês? O Zeca vai pernoitar aqui. Vou ficar
também e, amanhã, levo ele de volta. Quero ir ao Quentão hoje, porra. Ver se pinta um povo,
comer gente, né?
— Acho que vou dar uma saída hoje também. Ainda não conheço Xambioá — falou
João Pedro.
— Ih, isso aqui é bom pra caralho. Você sai, dá uma paquerada e tira um sarro nas
moças, lá no forró do Quentão. Se não der mais nada, porra, cê acaba a noite lá no Vietinam. Tem
cada putinha boa naquela zona, né japonês? O nipônico, porra, é o dono das putas lá, é ou não é?
— disse Jorjão gozando a cara de Tiago.
— Porra, porra, pára com essa merda de me chamar de major, porra. Aqui, eu sou o
Jorjão das candongas, porra.
— Tá bom pra cacete. Vamos dar uma volta por aí pra você me mostrar as melhorias.
O Tenório já me havia falado do que vocês estão fazendo aqui.
— Marlene, vamos parar um pouco. Nossa! Eu estou muito cansada — disse Lúcia.
— Falta pouco para chegarmos à clareira do Quatipuru, Lúcia. Mais uma hora e você
vai poder descansar à vontade.
— Tá bem, mas vamos nos atrasar e os outros podem ficar preocupados conosco.
— Que se danem eles. Esta barriga está me incomodando muito. Não dá para
prosseguir sem um pequeno repouso. Tenha paciência.
— Você ouviu?! Eles estão falando em respeito, comida, conforto... — disse Lúcia.
— Porqueira, era tudo o que eu queria! Respeito, comida decente e conforto, para
mim e meu filho — lamentou-se Lúcia.
— Não vai me dizer que você está acreditando naqueles putos. Era só o que faltava!
— Não acredito neles de jeito nenhum. Isso é um engodo, Lúcia. Será que você não
está vendo?
A outra não respondeu. Contudo, a idéia de se entregar, agora, ficava mais forte.
Lúcia precisava acreditar em alguma coisa que lhe desse uma esperança de sobrevivência para si e
para seu filho. No entanto, ela não podia fugir sozinha. De alguma forma, tinha que convencer
Marlene a acompanhá-la.
O avião passou outra vez, próximo ao local onde elas estavam. "... paz e
fraternidade..." A floresta e a distância não permitiram que elas captassem toda a mensagem. No
entanto, aquelas eram as palavras-chaves: "Paz e fraternidade."
— Você escutou?! Eles estão propondo paz e fraternidade, Marlene. Afinal, somos
todos brasileiros. Vamos nos entregar! Fuja comigo, Marlene. Por favor, enquanto ainda há tempo.
Não há mais sentido em continuar essa luta. Vamos, responda.
A outra a observava calada. "É possível que ela tenha razão. Também me sinto
extenuada. Ah, como seria bom uma cama limpa, uma refeição simples, mas substancial, um banho
com sabonete e roupas limpas", pensava Marlene. "Além disso, o que tenho eu a perder? De que
adianta continuar a bancar a durona?"
Até a hora em que elas ainda estavam acordadas, Lúcia sutilmente foi enchendo a
cabeça de Marlene para que elas fugissem e se entregassem.
— Amanhã... lhe dou uma... resposta... — disse sua companheira, bamba de sono,
adormecendo em seguida.
— E aí, João Pedro, o que você achou da Joaninha? — perguntou Tiago, erguendo um
copo de cerveja no botequim da Janoca, em plena zona do Vietinam.
— Porra, negão, que garota porreta. Já estou apaixonado. Ela é doce, meiga, e tem
um jeitinho gostoso de falar que me conquistou na hora. Nunca pensei que fosse encontrar uma
moça do tipo dela por aqui.
— Mas, ô japonês, notei que você está também arriado pela Dulcilene. Tá ou não tá?
— Que nada, João. Meu amor é amor vagabundo. Hoje aqui, amanhã ali, vou levando
a vida... Ô Janoca, coloca na vitrola aquela música do Roberto Carlos que fala de amor vagabundo
— gritou ele para a dona do boteco.
Quando a música começou a tocar, João Pedro pediu mais uma cerveja e falou em
voz baixa para Tiago:
— E os prisioneiros, japonês?
— Porra, sumiram com eles, na maior. Depois que eles deram o serviço dos dois
depósitos, "viajaram".
— Cara, não sei o que você pensa, mas eu não concordo com isso. Eles estão sendo
assassinados friamente, negão!
— Joãozinho, estou tão puto quanto você. O que esses zecas da vida estão fazendo é
a maior sacanagem do mundo. Eles dizem que é ordem de Brasília. Não é pra deixar ninguém sair
vivo, porra. Mas isso não está certo, caralho!
— E o pior é que a gente não pode fazer nada. Temos que ser coniventes com esses
crimes todos e ficar de bico calado.
— Eu não sou conivente porra nenhuma! Se der merda, se eu for chamado a depor,
entrego todos eles.
— É, mas de que adiantaria isso, depois dos caras enterrados... Vamos mudar de
assunto que o Beto e o Fábio vêm aí.
— Só viemos ver se a cerveja de vocês está gelada — falou Roberto pegando o copo
do japonês, enquanto Fábio dava uma bicada no de João Pedro.
— Ô Janoca, traz mais duas cervejas e dois copos — gritou Tiago. O papo rolou até
mais tarde, antes que eles fossem dormir. O pacu frito estava uma delícia.
"Entretanto, enquanto estamos aqui", pensava Joãozinho, "o Gil, lá na Casa Azul, já
deve ter acrescentado dois X vermelhos ao quadro, Custódio Sardinha, o Álvaro, e José Maurício
Portugal, o Antenor. Que valores cristãos são esses que eles vivem apregoando? Seriam esses os
valores que o Cristo defendia?"
"Não gosto de comunista, mas não posso pactuar com as injustiças que estão sendo
feitas aqui. Será que a democracia, para ser preservada, precisa matar assim, a sangue-frio, jovens
brasileiros politicamente equivocados?!", ruminava Tiago do outro lado da mesa, acrescentando
em voz alta:
— Olha aqui.... vou falar pra vocês, este botequim e esta zona... não são tão sórdidos
quanto essa merda de guerra que nós estamos lutando! E tenho dito, pronto, tá acabado!
Fábio, aliás o saudoso tenente Neuman, era alto e forte. Pegou o japonês com vigor e
levou-o para a abreviatura.
— Obrigado, Fábio, tou meio bêbado mesmo, mas sou educado — falou o japonês
com voz pastosa. E lá se foram eles para a mineradora.
Capítulo XIII
— Vamos fazer um fogo para secar estas roupas. Não podemos continuar assim
deste jeito — disse Tonho.
— Vamos nos pôr a caminho novamente. Andando, a roupa logo vai secar. O
esquema é o mesmo de ontem. Daqui a umas três, ou quatro, horas de marcha existe um sítio onde
podemos nos abrigar. Se o Tião Jacutinga não quiser nos receber, desta vez vamos dar uma prensa
nele.
— Concordo com Zenóbio. Não podemos tentar chegar ao igarapé dos Perdidos sem
comer. Se for preciso assaltar os sítios e dar porrada para conseguir comida, nós vamos fazer isso.
Estavam se deslocando para o sul. A ideia era tentar fazer contato e se juntar ao
grupamento do Velho. Os oito remanescentes dos Caianos sabiam, entretanto, que a distância era
de mais de cinqüenta quilômetros, e que eles não podiam seguir em linha reta para não
denunciarem o plano. As tropas, seguramente, traçariam o rumo deles, seguindo-lhes os rastros.
— Mas por que você acha isso? — perguntou o chefe da Pato Bravo Três.
— Tem muito gaio quebrado. Quando é os paulista, ês procura disfarçá pra nóis num
segui eles.
— É, você tem razão, mas, na falta de outro rastro, vamos seguir esse mesmo.
A patrulha caminhou por mais umas duas horas. Os rastros iam ficando cada vez
mais nítidos.
— Parece que eles querem mesmo ser seguidos, ou então estão demarcando o
caminho de volta — falou Zé Fala-fina.
— Ei, cêis tão escuitando? — perguntou Jerônimo. Eles pararam e ficaram atentos.
Parecia uma voz de mulher cantando.
A Pato Bravo Três abriu em cunha e foi se aproximando do local de onde vinha
aquele estranho som. Era mesmo uma mulher cantando.
"Peguei um ita no norte, Pra vir pro Rio morar. Adeus meu pai, minha mãe, Adeus
Belém do Pará..."
Quando eles chegaram mais perto, por detrás de uma árvore surgiu um galho com
um lenço branco amarrado na ponta, agitado pela mão de uma pessoa.
— Queremos paz! Queremos nos entregar! Não atirem! — gritou uma voz de
homem. O canto havia cessado.
— Puta que pariu! Grande, grande, graaande garoto! — comemorava Gil a notícia da
prisão dos quatro elementos do grupamento B dos Caianos. — A operação psicológica está dando
certo, Dr. Oran. Precisamos intensificar os voos do "boca-de-ferro".
— Realmente, foi uma grande vitória. Não esperava tanto em tão pouco tempo.
— O Paquera informou que eles, agora, estão se deslocando para o ponto de resgate
da patrulha. Amanhã, o Sapão vai trazê-los direto para cá — disse Zeca.
— Vê se você e o seu pessoal pegam mais leve com esses quatro, não é, Zeca? Afinal,
eles se entregaram de livre e espontânea vontade — falou Oran.
— Tudo vai depender deles mesmos, doutor. Se eles abrirem o bico logo, menos
porrada. O senhor sabe, mais do que eu, quais são as ordens de Brasília.
— Infelizmente, sei. Mas não é preciso fazê-los sofrer tanto antes de viajarem.
— Está certo. Vou entregá-los para o Gordo, que é mais maneiro. O Mustafá só entra
em cena se eles não quiserem falar.
O Gordo voltara há alguns dias, para substituir Tarquínio. "O Mustafá é que não vai
gostar de perder essa", pensou Zeca.
Tiago e João Pedro estacionaram a abreviatura num canto da rua e se dirigiram para
a casa de dona Mundinha, mãe de Dulcilene. Era uma casa modesta, de pau-a-pique e adobe, sem
reboco e sem forro. Era, porém, acolhedora na sua simplicidade.
— Minino, hoje tou feliz. Meu veio chegou da mata. Vou ter uma custela pra me
esquentar por uns dias. Cêis vão conhecer ele, o meu Jerônimo. Ô Jerônimo, chega aqui pra
conhecer os minino da mineradora — gritou ela para um quarto ao lado da sala.
Não era propriamente uma sala. Era um cômodo grande com uma mesa e quatro
cadeiras rústicas, um banco comprido de madeira encostado na parede e, no fundo, um fogão a
lenha que havia enegrecido a parede com a fuligem dos anos de uso. Sobre ele crepitava uma
chaleira para o café que Mundinha sempre oferecia aos dois. Para esta sala davam dois quartos e,
na parede detrás, havia uma porta que se abria para uma puxada, ou espécie de varanda. Depois
vinha o quintal e, nos fundos deste, a "casinha", ou banheiro. O chão era de barro batido, mas tudo
muito limpo e cuidado.
— Tombém já vi o sinhô e o doutô Tiago. Pois num foi ôceis que resgataro nóis, hoje
lá na mata!
— Ah, quer dizer que você estava lá quando eles prenderam aqueles quatro? —
perguntou Tiago.
— Ué, então, você vai contar pra nós como foi aquilo, não vai — disse João Pedro.
Joaninha e Dulcilene se chegaram aos seus respectivos namorados, e eles ficaram ali,
ouvindo Jerônimo relatar a aventura da Pato Bravo Três. Naquela noite não haveria arrasta-pé no
Quentão, pelo menos para eles.
— E tem uma guerrilheira que está grávida, japonês — comentou Joãozinho depois,
quando eles pararam no botequim da Janoca para tomar uma cerveja, antes de seguirem para a
mineradora.
— Tenha calma, Lúcia — disse o Gordo, colocando a mão no ombro dela. — Você,
agora, está entre amigos. Vamos conversar com tranquilidade, sem pressa. Está bem assim? — o
interrogador tentara conversar antes com ela, mas a moça não respondera quase nada. Zeca quis
chamar Mustafá, mas o Gordo pediu-lhe mais um pouco de tempo. O interrogatório estava
recomeçando agora.
"Meu Deus, aquele lugar horrível que eles me colocaram. Não quero voltar para
aquele cubículo nunca mais", pensava ela, sem conseguir conter as lágrimas que lhe escorriam pela
face.
— Eu estou aqui para ajudá-la, mas é preciso que você também colabore comigo.
Podemos começar?
— Depois que você me disser o que desejo saber, você será muito bem-tratada.
Fique calma, não é necessário chorar.
— Mas vocês não compreendem, estou grávida e vocês me colocaram naquele
cubículo horroroso... — soluçou ela, cobrindo o rosto com as mãos.
— Você não voltará mais para lá. Vamos lhe dar uma cama limpa para dormir. Agora,
vai ser diferente, prometo.
— Está bem, pergunte o que você quiser. Mas, antes, me diga só mais uma coisa.
Você conhece um sujeito chamado Simplício, João Simplício de Arruda? — disse ela, engolindo um
soluço.
— Não, Lúcia, não conheço ninguém com esse nome — respondeu o Gordo
calmamente, acrescentando: — Eu deveria conhecê-lo?
— Ele é o pai do meu filho, e eu penso que ele poderia ser um de vocês.
— Não, não temos ninguém com esse nome. Que tal eu lhe fazer algumas
perguntinhas agora?
— Qual é o seu nome verdadeiro? — Esta era uma pergunta inócua, cuja resposta ele
já sabia. Entretanto, a boa técnica dizia que não se devia ir com muita sede ao pote. Era preciso
começar com questões inocentes, para não espantar a caça.
— Completei cinco, estou entrando no sexto mês. Você não conhece mesmo o
Simplício? — Voltou ela ao assunto do pai da criança.
— Desculpa... Por favor, não se irrite por isso, mas é que saber dele é tão importante
pra mim...
O Gordo observou-a calado por alguns momentos. "Era isso, então, que o Gabriel
estava escondendo!", pensava ele.
— Que depósitos?
— Você sabe do que estou falando. Seus amigos já falaram. Vamos, quantos?
— Conheço apenas dois — disse ela, convencida de que era inútil esconder.
O interrogatório continuou por mais algum tempo. Quando o Gordo saiu da sala,
mandou que dessem roupas limpas para ela, lhe permitissem um banho e providenciassem uma
refeição quente. Além disso, pediu que o médico da Casa Azul a examinasse.
— Tá, e daí?
— Fora de brincadeira, é verdade, o Gabriel, aquele agente que nós infiltramos nos
Caianos, na fase da operação de inteligência, tá lembrado?
— Não pode ser, mas é. Foi por isso que ele deu aquele monte de alteração aqui,
quando voltou da mata. Queria dar porrada em todo mundo. O filho da puta tava lá, comendo a
subversiva, e acabou fazendo um filho nela, porra.
— Ih, cacete! Vai dar merda se não tomarmos providências urgentes. Ele está para
voltar para cá a qualquer momento. Brasília me comunicou isso ontem. Disse que vai fazer várias
substituições aqui, e o nome do Gabriel estava relacionado.
— Vou mandar uma mensagem urgente pra corte, agora. Deixa comigo!
— Arre égua, Silvério! Como é o nome desse doutor novo de vocês que chegou esses
dias? — perguntou Valquíria.
— Traz eles pra gente conhecer, Silvério. O moreno é até bonitão, mas tem uma cara
de sério, vixe!
— Todos dois são boa gente. Qualquer hora dessas eu os trago aqui pra você
conhecê-los. Pode deixar comigo!
— A Maria Preta foi que ficou toda ouriçada quando viu esse tal de João Pedro
passar aqui na frente — gargalhou Val.
— Não estou nem aí. Meu papo com ela já acabou. Ela ficou de frescura, tirando uma
de gostosa, dançou! — disse Silvério. Estavam ele e Val conversando na sala de almoço, enquanto
Dora se aprontava.
— Também, né, Silvério, diz que você tava a fim de comer o rabo dela?
— Quê que é isso, Val? Porra, fala baixo. Quem lhe contou?
— Ih, meu nego, eu sei das coisas, né? Muito mais do que você tá pensando, Silvério.
Quando é pra saber de chafurdo, é comigo mesmo. Por falar nisso, me diga, vocês quando falam
em chafurdo tão querendo dizer o quê?
— Isso eu sei. Mas vocês falam isso com outro significado. O Fábio mesmo outro dia
teve aqui com o Beto e falou chafurdo de maneira diferente.
— Traz o careca aqui, pra chafurdar comigo, Silvério — gritou ela, quando os dois
pombinhos iam saindo pela porta da rua. Silvério só ouviu a gargalhada dela.
— Ali na frente, do lado esquerdo da PA-70, tem uma clareira... Tá vendo, Jorjão? —
falou Zeca, usando o interfone do artilheiro, a bordo do Sapão.
— Positivo, Zeca, estou vendo. É ali que você quer ser desovado? — respondeu o
piloto.
— Afirmativo. O resgate vai ser, também, naquele mesmo lugar. Eu aviso pro
Paquera, quando chegar a hora.
— Cauda para a direita dois graus. Mantenha proa, pode ir baixando devagar — disse
o controlador de cauda. — Esqui quase tocando... devagar, tem um toco à nossa esquerda, mas tá
tranquilo.
Quando o pessoal acabou de desembarcar e se afastou uns vinte metros, o Sapão fez
uma decolagem vertical e tomou o rumo de volta para Marabá.
Zeca, três outros agentes, Lúcia e Fernando ficaram observando, ao abrigo das
árvores.
Durante todo aquele dia eles caminharam na mata. Fernando indicou a localização
de um depósito. Era meio-dia quando eles terminaram de desenterrar oito recipientes de
alimentos.
— Tem um outro depósito perto daqui — disse Lúcia. Ela estava mais animada. Há
vários dias eles a vinham tratando bem. Boa comida, uma cama confortável, banhos de sol no pátio
da Casa Azul tinham lhe restaurado as energias e levantado o seu espírito. "Além disso, o médico foi
tão gentil. Aquelas vitaminas estão me fazendo muito bem", pensava ela.
— Pessoal, vamos nos apressar então — falou Zeca, depois de terem destruído o
material daquele depósito.
Eram quase quatro da tarde quando concluíram o serviço no local indicado por Lúcia.
— Vamos acampar e dormir aqui mesmo. Gerson, pode preparar o fogo, estou morto
de fome — disse Zeca alegremente.
— Ora, claro. Será ótimo. Afinal, um toque feminino na bóia é sempre bem-vindo.
Depois que eles comeram, ficaram ainda ali, ao pé do fogo, conversando
amenidades.
— ... Ah, bons tempos aqueles de criança, lá na minha terra — comentou Fernando.
A noite já estendera o seu manto por toda a floresta.
— Pessoal, o papo está bom, mas tá na hora de dormir — falou Zeca, acrescentando:
— Fernando e Lúcia, vocês não vão ficar aborrecidos conosco, mas é que, por questão de
segurança, temos que algemar vocês.
O dia seguinte foi semelhante ao anterior. Eles apenas terminaram mais cedo, por
volta de duas da tarde. Quatro depósitos ao todo haviam sido estourados.
Quando o último recipiente foi destruído, Zeca deu uma risada de satisfação.
O que atendia pelo nome de Gerson agarrou Lúcia pelo braço. Os outros dois
seguraram Fernando.
— Você já vai ver o que é isso, Lucinha, sua vaca filha da puta!
— Não acredito que vocês possam fazer isso conosco, depois de tudo, da nossa
colaboração!? — explodiu Fernando, lutando para se desvencilhar de seus algozes. Ele foi algemado
ao galho de uma árvore.
— Eu estou grávida! Tenham piedade de mim, por favor — gritou ela em lágrimas,
sendo algemada da mesma forma que o outro.
— Tá grávida, né, sua putinha sem-vergonha! Quer dizer que o Gabriel enfiou o
cacete nessa sua boceta fedorenta, né, sua cagona! É isso mesmo, o Gabriel, ou Simplício, como
você queira, sua vaca subversiva!
"Meu Deus, não pode ser! Estes caras não são seres humanos, são animais!", pensou
Lúcia.
— O Gabriel, quem diria?!... — Zeca continuava a insultá-la, mas ela já não ouvia
mais nada. Tudo tinha desabado, seu cérebro entrou num torvelinho...
Não ouviu sequer o estampido do tiro que estourou os miolos de Fernando, a poucos
metros dela.
— Esse grupamento dos Perdidos está foda, porra. Até agora, só caíram dois de lá —
disse Gil, acabando de marcar no quadro mais dois X em vermelho, sobre as fotos de Eliza Viana, a
Marlene, e de Orlando Moreira, o Márcio. Na semana anterior ele fizera o mesmo em relação a
Rosalindo da Silva, o Fernando, e a Jana Maria de Barros, a Lúcia.
— O negócio é a gente lançar mais patrulhas nos Perdidos. Podemos tirar uma dos
Caianos, o quê que tu achas? — perguntou Tomé.
— Parece que é uma boa ideia. Além disso, veja, tudo indica que os oito restantes
dos Caianos estão se deslocando para o sul. Eles já assaltaram dois sítios nesta direção — disse Gil,
mostrando com a ponta do dedo indicador o local no mapa.
— Porra, a merda é que a operação psicológica, que tinha começado tão bem, parou
de dar resultados.
— Ué, por que estás perguntando isso, tchê? Fui dar umas voltas, estive lá nas
pombas.
— Ah, então está explicado. Você não ouviu o noticiário da Tirana ontem. A porra da
rádio noticiou que "as forças da repressão" estão eliminando os guerrilheiros que se entregaram.
Depois exortaram os "bravos guerrilheiros do Araguaia" a não caírem no canto da sereia. Filhos da
puta! Só queria saber como eles estão obtendo as informações dos acontecimentos daqui.
— Porra, tchê, logo, logo os subversivos vão ficar sabendo disso e, aí, podemos
aposentar o "boca-de-ferro", mano velho.
— O pior é que é verdade! E esse babaca do Clementino não descobre a fonte que
está enviando informação para a Albânia. A portadora de Brasília também não está resolvendo
nada. É só você sintonizar bem que a Tirana entra rachando.
— E o tal Clementino, todo pilchado de entendido, não entende de nada! Bá, tchê,
que merda!
A patrulha Capivara Um se posicionou na borda nordeste do sítio da Jipioca. As
ordens que Pedro Pinga recebera eram para ficar ali aguardando.
— A Pato Bravo Três está no rastro de um grupo que está se deslocando nesta
direção — explicara o Dr. Elesbão, mostrando o mapa. — Tudo indica que os subversivos estão se
dirigindo para o sítio da Jipioca. Vocês vão ficar lá na es-pera. Quando eles chegarem ao sítio, vocês
não devem fazer nada. E só esperar com calma, pois a Pato Bravo está umas duas horas atrás deles.
Apenas, quando a outra patrulha chegar, vindo mais ou menos de sudoeste, vocês, em conjunto,
vão atacar, fechando o cerco nos subversivos, certo? O sinal convencionado para o ataque é um tiro
para cima, que vai ser dado pela Pato Bravo quando ela entrar em posição. Ela está ciente do
posicionamento de vocês, mas é bom tomar cuida-do com o fogo cruzado, certo, Pedro Pinga?
Agora, estavam ali, na espreita. Ao lado direito dele, o mateiro e guia Chicão, Diabo
Louro e Gervásio. Do lado esquerdo, Bonca e Trindade. Lá no tapiri, eles não tinham visto ninguém
ainda, mas devia haver gente, pois saía uma fumaça do fogo atrás da casa. "O doutor falou que era
pra ter paciência, diacho!", pensou Pedro Pinga.
— Óia lá, só Pedro, tá vindo gente ali — cochichou Chicão, cutucando o outro.
Pedro Pinga fez sinal de silêncio, e eles ficaram observando por entre o arvoredo. Os
paulistas foram chegando devagar, saindo da mata e indo para os fundos da palhoça.
— Aqui não! Cêis pode pega o caminho de vorta — gritou uma voz de homem.
— Que voltar coisa nenhuma, seu velho besta. Queremos comida, e você vai dar
mantimento pra nós, por bem ou por mal, seu cabra.
O velho correu para o pátio e pegou uma foice que estava sobre um jirau. De sua
posição, Pedro Pinga espreitava a cena.
— Cêis vão simbora daqui, seus paulista, qui eu num quero cumplicação cum as
tropa... — O velho não acabou de falar. Um tiro de chumbo de caça arrebentou-lhe o peito, e ele
caiu para trás, com uma golfada de sangue.
— Vamos abrir uma cova, enterrar o velho e pegar o que pudermos. Depois vamos
voltar para a mata. Não estou gostando deste lugar — disse o que atendia pelo nome de Zenóbio.
Eles começaram a cavar a cova. Á mulher estava prostrada num canto do terreiro,
chorando baixo e se lamentando. A Capivara Um observava.
— Quem estiver na casa que saia com as mãos na cabeça, se não quiser morrer —
esbravejou Matias, o chefe da Pato Bravo Três, fazendo sinal para Pedro Pinga avançar mais com
seus homens.
Diabo Louro deu uma rajada com seu fuzil-metralhadora na janela da casa. Um pano
branco foi agitado na ponta de um cabo de enxada.
— Saiam com as mãos na cabeça! — repetiu Matias. Três paulistas saíram do tapiri
com as mãos para cima.
— Amarrem os três! Socó e Marinaldo, vasculhem a casa pra ver se tem mais
alguém. Cuidado! — recomendou o chefe da Pato Bravo.
Estava próxima a hora do contato com o Paquera. Era quase duas horas da tarde.
Às três e quarenta, um Sapão pousava no Jipioca. A bordo vinha o Gordo para fazer a
identificação dos guerrilheiros mortos.
— Porra, doutor, eu vou dizer pro senhor, eu criei ódio desses caras — dizia Diabo
Louro para João Pedro, Tiago e Fábio, no pátio de estacionamento de aeronaves da mineradora. A
patrulha Capivara Um acabara de desembarcar de um Sapão. Um cheiro nauseabundo exalava de
seus corpos. Era suor, sujeira, mato, terra, tudo misturado. — Quando atirei e vi o desgraçado subir
no ar e cair mortinho, trespassado pela bala do meu fuzil, eu vou dizer, tive um orgasmo, por Deus
do céu que tive!
"Este cara está desvairado, está virando um animal, porra. Ele tem que ser retirado
da área com urgência. Precisa de um tratamento psiquiátrico, não é possível!", pensava João Pedro.
Logo depois chegava outro Sapão com a Pato Bravo Três. A cena foi semelhante,
apenas mudou um pouco porque Tiago arrastou o Gordo para a sala de operações da mineradora e
mandou vir uma água gelada para o companheiro de farda.
— Hoje foi foda. O Gil é que deve estar vibrando lá na Casa Azul, embora a ideia de
fechar o cerco com duas patrulhas tenha sido do Tomé — comentou o Gordo.
— Porra, porra, caralho, quê que vocês tão fofocando aí? — disse Jorjão entrando na
sala. — Quero toalha, sabonete cheiroso e duas camas, pra mim e pro Gordo? Não trouxemos
nada, só a roupa do corpo, porra,
— Hoje não é dia de Quentão? Então, nós vamos pro Vietinam tomar cerveja. O
Gordo não, vai trabalhar, né Gorducho? Tou falando com você, porra, responde!
— Oh, desculpe, Jorjão, estava distraído. Realmente, vocês vão pra putaria e eu vou
trabalhar na agropecuária, pra fazer os passarinhos abrirem o bico. Enquanto vocês fazem as
sacanagens de vocês lá, eu faço as minhas aqui — disse, rindo.
— Pegamos seis numa porrada só, e você ainda está reclamando, Gil?
— Não, doutor, não estou reclamando. Estou até satisfeito, mas esse tal de Zenóbio
tinha que ter caído. De qualquer forma, está pra lá de bom. Desbaratamos quase todo o
grupamento B dos Caianos. Quer dizer, estamos em março, com cinco meses de operação de
combate, caíram vinte e dois subversivos, quase a metade. Nessa toada, com mais uns seis meses a
gente liquida a fatura.
— Acho bom não ser tão otimista assim, pra depois não se decepcionar e ficar dando
chilique aí, feito uma mulher que eu tinha — falou Oran, rindo e gozando da cara do outro. Ele
também estava satisfeito com os resultados da missão.
— Porra, porra e porra! Que boca, hein, doutor? Parece que o senhor estava
adivinhando — disse Gil. O mês de março terminara, abril estava quase no fim e não caíra mais
nenhum paulista.
— Não falei? Vamos ter calma. Temos que repensar os nossos planos táticos — falou
Oran com o cenho franzido.
— É isso o quê, Tomé? Desembucha logo, fala, cacete! — disse Gil, ansioso. Ele sabia
que o gaúcho sempre tinha uma boa idéia.
— Gil, não estou falando de granada de combate. Não! Estou falando de granada de
efeito moral, sem o invólucro de ferro, só com a capa de plástico...
— Pode parar, já entendi, porra. Afinal, sou de artilharia e sei do que você está
falando — disse Gil, irritando-se ao perceber que o outro estava tentando lhe dar aula sobre
granadas. — Mas aí do que adiantariam as granadas de efeito moral? Não vai matar nem
passarinho, porra.
— Mas se foi você mesmo que disse que temos de arranjar um jeito de desentocar
os subversivos — interferiu Oran. — O Tomé tem razão. A ideia é boa e pode funcionar. Você não
percebe?
— Mas, é claro, doutor. Com a barulheira das granadas explodindo por todos os
lados, eles vão sair correndo e, aí, nós os pegamos de jeito.
— É mais ou menos isso. Ao saírem correndo, eles não vão poder pensar em
esconder os rastros. Logo a seguir, nós colocamos as patrulhas nos calcanhares deles —
complementou Tomé.
— Então, está acertado, não é, Dr. Oran? Podemos programar para lançar esta
operação granada logo, amanhã — disse Gil.
— Creio que ainda não. Vou ter que solicitar a Brasília o material. O Elesbão, em
Xambioá, tem algumas granadas de efeito moral, mas não em quantidade suficiente. Ele tem
muitas de combate, mas estas não têm servido pra nada. Os chefes de patrulha levam sempre
algumas, mas nunca as usaram.
— Égua do macho! Que história é essa que ocê tá contando, aí, Armandino? —
perguntou Valquíria.
— É a notícia que tá correndo. Diz que os avião, esses que ês chama de Sapão, vai
passando por riba das árvores, na mata, jogando bomba a torto e a dereito, e elas papocando pra
todo lado, os bicho gritando, macaco, maritaca, tudo. A maior zueira. Cê pricisava de vê os pessoal
que viero da mata contando, dona Val.
— Arre égua! Quer dizer que agora eles estão jogando bomba? Minino, isso é lá coisa
que se faça? Intempo d'ua bomba dessa matá coureiro ou outro quarqué trabaiadô, Deus me
defenda! — comentou Paulo Boto.
— E os bicho!? Cêis num acha que já deve de tê uma ruma de bicho morto lá? Esses
home devia de tê pena ao meno dos bichinho! Ês qué caçá paulista, tá certo. Mais mata os
bichinho!? Isso é mardade deles.
Zé Geraldo estava só escutando a conversa. Logo depois, levantou-se discretamente
e foi embora. "Hoje, vou sair para pescar", pensava ele.
— Nossa, mas que cara de enterro é essa, pessoal? — disse Silvério, notando as
fisionomias carregadas dos frequentadores da porta da Baleia.
— Tá todo mundo comentando que vocês estão jogando bomba na mata. Que
história é essa, ô Silvério? — disse Val que não estava séria, mas também não estava sorrindo,
como era de seu feitio.
— Tá todo o pessoal que veio da mata falando. Diz que já morreu bicho a valer e que
pode tá morrendo até gente com as bomba.
— Ah, meu Deus do céu! Esse pessoal inventa cada uma. Que bomba coisa nenhuma,
Val. Nós jogamos foram uns traques, mais fracos do que bombinha de São João, só. São umas
granadas de plástico, só pra assustar o povo da mata — disse Silvério. Todavia, o estrago já estava
feito. Ia levar algum tempo para o dito ficar pelo não-dito.
A plateia olhou para os dois aviadores desconfiada. Beto deu de ombros, e eles
entraram para falar com Dora e Dag.
— Porra, porra, Gil, tá pegando mal. As informações que recebi do meu pessoal, em
Xambioá, dizem que a população está revoltada com a operação granada, porra — disse Jorjão.
— Tá na hora de ouvir a Tirana. Vamos lá, Gil, não desanime — disse Oran.
"... e numa atitude covarde as forças da repressão estão lançando potentes bombas,
indiscriminadamente, nas selvas do Araguaia. Inúmeros animais estão sendo mortos, bem como
humildes trabalhadores que tiram o seu sustento da flo-resta. Brasileiros, uni-vos contra esse
governo de vândalos e corruptos..."
— Puta que me pariu! Não é possível! Essa merda de rádio é foda. Como é que
pode!?
— Não adianta esbravejar, Gil. Já estava esperando por isso. A Tirana não perde nada
do que acontece aqui. O jeito é ir convivendo com isso e torcer para descobrir quem é o
informante.
Eram três e pouco da tarde. A patrulha Jabuti Dois estava no rastro de um grupo que,
segundo o mateiro, devia ser de, pelo menos, quatro elementos. Eles pararam às margens de um
igarapé, enquanto Nonato analisava os sinais da pas-sagem dos paulistas.
— Me esperem aqui, estou louco pra dar uma cagada — disse Tião, o chefe da Jabuti
Dois, dirigindo-se para trás de uma touceira de bambu nativo.
— ...logo ali, perto daquele bambuzal — contou Tião para os seus homens.
— Vamos escavar em volta do local, quem sabe a gente descobre mais coisa!? —
falou Batista.
— Tá legal, não custa nada tentar. Depois, tá quase na hora de parar pra acampar. A
gente fica mesmo por aqui.
— E agora, o que a gente faz com isso tudo? Levar não dá, é peso demais — disse
Bapu, um soldado alto e forte, com os olhos um tanto arregalados.
A partir daí, vários outros depósitos passaram a ser descobertos pelas próprias
patrulhas de forma semelhante. Antes elas não estavam alertadas sobre o assunto. A Jabuti Dois foi
a pioneira.
— Pois é, doutô Tiago, tá se vendo que o sinhô é home de respeito, e esse seu
namoro cum minha fia Dulcilene, faço gosto! — disse Jerônimo.
— Ô Jerônimo, pare com isso, cê vai deixá o Tiago sem jeito, home — falou
Mundinha. — Num tá vendo que o moço tá ficando sem graça!?
— Tudo bem, seu Jerônimo, foi bom o senhor falar nisso. Já falei pra Dulcilene, e
agora falo pro senhor. Tenho o maior respeito por sua filha, mas, por favor, ainda é muito cedo
para se pensar em coisas mais sérias. O senhor sabe que tanto eu como todo o pessoal da
mineradora estamos aqui apenas passando uma chuva.
— Mas, seu Jerônimo, mudando de assunto, como foi a história daquele soldado que
chegou ontem amarrado? Ele era da sua patrulha, não era? — perguntou João Pedro, pegando a
mão de Joaninha.
— Vixe Maria, aquilo foi muito feio, seus doutô! Vou contá pra ocêis, tintim por
tintim. Espera só nóis tomá o café da Mundinha, sinão nóis garra a cunversá, o café esfria e adispois
ela briga cumigo, né Mundinha?
— É isso mesmo, tem que tê inducação. Premero os minino tem que tomá o café
deles quentinho, dispois cêis pode cunversá quanto quisé — respondeu ela risonha.
Depois do café, Jerônimo acendeu um cigarro, no que foi acompanhado por Tiago e
João Pedro, e começou:
— Nóis tava tudo escondido no mato, na tocaia duns paulista que o Ferreira, o chefe
da patruia, disse que ia passá ali. E nóis tão lá, esperando, esperando e nada. Esperemo pra mais de
duas hora, quetinho, e nada. Quando é di repente um tar de sordado Bapu, ês trata ele assim, num
sabe, alevantou do mato com os zóio arregalado e danou de dá tiro pra todo lado. Nóis se
abaixemo cum medo de arguma bala acertá ni nóis, morrendo de medo. E foi aquele deus-nos-
acuda! Aí, o Ferrera gritou, "esse fio da puta vai acaba matando um de nóis". Um outro sordado,
um tar de Pirata, falou, "intão, vou dá um tiro nesse fio du'a égua!" O Ferrera ficou brabo e gritou
traveis, "ninguém atira nele, quem atira morre tombem!"
"Aí, um sordado piquitinho, chamado de Rineu, oh bichinho valente! Os doutô
pricisava de vê! O Rineu foi rastejando por ditrais do tar de Bapu e, quando nóis demo fé, ele sartô
no cangote do Bapu! E deu uma porrada no escuitadô de carimbó do outro, qui o tar tontiou. Aí, o
Rineu tomou a arma dele. Foi a sarvação, seus doutô!
"O Ferreira mais os otro correro, garraro o tar e marraro ele. Agora, cêis pricisava de
vê, o Bapu tava qui fazia pena, variando, doido, doido — finalizou Jerônimo.
De fato, o rapaz tinha sofrido um colapso nervoso agudo, devido à tensão e à fadiga.
Foi encaminhado de volta a Manaus, para o hospital e ficou sob cuidado psiquiátrico por um longo
período de tempo, até se reajustar novamente.
O caminhão vinha devagar pela estrada esburacada. Estava pesado, com duas
enormes toras de mogno. Poeira muita por todos os lados, o caminhoneiro, um mulato forte, de
seus vinte e poucos anos, ia guiando tranqüilo. Não adiantava ter pressa. Ele chegaria ao
entroncamento com a Transamazônica quando Deus quisesse.
De longe avistou as duas figuras caminhando sob o sol quente, no meio daquela
poeirada. Quando chegou mais perto, viu que era um casal de camponeses. O homem virou o rosto
para trás, e o motorista observou que o sujeito era entrado em anos; a barba grande e o chapéu de
palha não permitiam que avaliasse com precisão. O indivíduo era baixo, e a mulher parecia mais
alta que o homem.
A mulher fez um sinal afirmativo com a cabeça. O homem não demonstrou qualquer
sentimento. A mulher entrou na boleia, e o homem a seguiu.
— O senhor aí é seu marido? — perguntou o rapaz, que já estava arrependido por ter
dado a carona. "Pois se eu queria companhia para conversar, dancei. O sujeito, até agora, não disse
uma palavra. A mulher só responde a saca-rolha. Que fria!", pensou.
— Diz aí pra ele que um bate-papo não faz mal não, dona.
— Não se apoquente.
Daí para a frente a viagem transcorreu sem qualquer outro evento digno de
consideração. Na travessia da balsa para cruzar o rio Itacaiúnas, o motorista perguntou:
— Muito obrigada pela carona, você foi muito gentil — falou a mulher.
— Não tem de quê, dona. Té logo — disse o jovem. "Que mulher mais esquisita!
Parece matuta, mas tem uma fala diferente. É capaz de ser da cidade, quem sabe até de São Paulo",
pensou, dando de ombros.
— Ah, ah, ah, ah, ah, ah. Grande piada, ô Gordo! — falou Gil, rindo a bandeiras
despregadas. Ele estava feliz.
— Vamos ao trabalho, agora — disse Oran. — Temos que conferir esses dados para
mostrar pra essa merda de comitiva que está vindo de Brasília. Esses caras só vêm aqui pra encher
o saco.
— Desculpe, doutor, mas hoje estou rindo à toa. Recebi a notícia de que vou ser
promovido no mês que vem. E, ainda por cima, esse informe, que não foi confirmado ainda, de que
a Jabuti Três fez dois prisioneiros no Saranzal. Tá bom demais!
— Estou vendo. Estes dois últimos meses, maio e junho, foram ótimos. Olha só o
quadro do Gil cheio de cruzinhas — falou o Gordo, examinando a ordem de batalha dos
guerrilheiros. — Dez em dois meses, se for confirmada a prisão desses dois de hoje.
— Deve ser isso mesmo. Vamos conferir, eu vou lendo a minha relação, e você
verifica se bate com o quadro — disse Gil. — Maio, grupamento A dos Perdidos, Carlos e Tânia,
respectivamente, Guilherme Lemos e Luiza Garcia, que foram presos e já viajaram. No grupo C do
Saranzal, Teodoro da Costa, o Sampaio, Dinaelsa da Silva Palmeira, a Iracema, e Lúcio Pequeno, o
Celso. Confere?
— É isso aí. Esses oito mais os dois de hoje que o Paquera não conseguiu copiar
direito, dá um total de dez. Média cinco, você passou raspando, mas passou — brincou o Gordo.
— Olá, Jorjão! — Oran saudou o aviador que adentrava a sala. — Como é que foi
aquela história do Paquera, no Saranzal? Você já apurou?
— Porra, porra, foi só uma falha de comunicação. O piloto disse que estava falando
com a patrulha e, de repente, ouviu uns gritos. Logo depois, a transmissão da Jabuti Três sumiu. Ele
chamou várias vezes, mas não conseguiu mais contato. O resto vocês já sabem, né? — falou Jorge.
— Porra, esse Mustafá é sempre assim, cheio de mistérios. Em vez de falar logo, ele
fica amoitando a informação para criar expectativa. É um tabacudo! — disse Tarquínio, que chegara
dois dias antes para substituir o Gordo.
Às duas da tarde, um Sapão pilotado por João Pedro e Silvério chegava de volta à
Casa Azul, trazendo o Dr. Mustafá.
— Porra, Mustafá, que mistério é esse, conta logo o que foi que houve — disse Gil.
— Que merda. E aí, quem são eles, o prisioneiro e a mulher que eles esfriaram?
— Porra, tem alguma merda errada nisso, a Sueli é do grupamento dos Perdidos.
Como é que ela foi encontrada no Saranzal? — perguntou Gil.
— O Jorjão não está aí. Foi pra Xambioá passar uns dias. Quem tá aí é o João Pedro,
chegou hoje — disse Mustafá, meio sem graça.
Uma hora depois o Sapão pousava na pista de Bacaba, com Tarquínio e uma equipe
de agentes. Eles se dirigiram para o local onde a mulher fora enterrada. Alguns membros da
tripulação os acompanharam. Ela havia levado um tiro que entrara abaixo da axila direita e saíra na
altura do seio esquerdo. Fora enterrada nua. Tarquínio examinou o cadáver, colheu impressões
digitais e mandou que fosse enterrado novamente.
— Seu filho da puta, comigo você fala é na marra! — disse Mustafá, desferindo uma
porrada com a palmatória na mão do prisioneiro. Alberto já levara uns vinte bolos daquele em cada
palma. Elas estavam vermelhas, inchadas e cheias de bolhas. O preso era obrigado a ficar com a
mão aberta em frente ao rosto. Caso ele a retirasse, a pancada vinha do mesmo jeito, e atingiria a
cara do indivíduo, fazendo obviamente muito mais estrago. Alberto estava quase desfalecido.
— Coloquem a maquininha nos colhões dele. Quero ver se este puto vai continuar de
bico fechado — disse Mustafá.
— Por favor... favor... não, não façam isso... — suplicou ele, reunindo suas últimas
forças. O agente começou a apertar. Alberto desmaiou.
E assim por horas, dias, ele não sabia quanto. Num certo momento o rapaz teve
consciência de que estava tudo em silêncio. Tentou articular os dedos da mão. Primeiro a direita.
Uma dor dilacerante obrigou-o a interromper a tentativa.
— Coloquem-no embaixo do chuveiro — disse uma voz que não era a do que se
chamava Mustafá. Dois sujeitos o levantaram do chão e o levaram para um banheiro. Uma água
tépida começou a cair sobre o seu corpo. Depois um jato de ducha fria, bem fria. Alberto despertou
de seu estupor.
"Meu Deus, onde estou?" Foi o seu primeiro pensamento lúcido, ou quase lúcido. A
seguir, foi se lembrando de tudo. A água parou de cair. Alguém deu-lhe uma toalha. Ajudaram-no,
inclusive, a se enxugar e a se vestir. "Será que vão parar com as sessões de tortura?", pensou
Alberto. "Mais uma daquelas, não resistirei. Mas, afinal, de que adianta viver? Melhor morrer com
dignidade a me submeter à vontade daqueles carrascos."
— ....
— Estou aqui como amigo. Mas, se você não quiser falar, vou embora. Os outros
virão me substituir. Você é quem decide. Será como você achar melhor.
— ....
Aos poucos, o preso foi ficando mais loquaz e cordato. Após uns quarenta minutos
de interrogatório, Tarquínio tocou no assunto dos depósitos.
A Casa Azul não estava mais dando tanto valor a esse tipo de depósito. Outro
prisioneiro, anteriormente, é que alertara para a inutilidade dos remédios e dos instrumentos, que
se destinavam, principalmente, à conquista da população local. Como os guerrilheiros haviam
perdido, há muito, o apoio dos nativos, tal material perdera quase toda a finalidade.
Tarquínio percebeu o leve rebrilhar dos olhos do outro à menção do nome do chefe
guerrilheiro. "Ele tá mentindo", pensou.
— Pois vou lhe dizer, enquanto você estava aqui ele foi morto nos Perdidos.
— ....
— Vamos, responda. Ou talvez você queira falar disso com o Mustafá, hein?
— Como?
— Porra, agora está ficando difícil achar os putos. Restam apenas treze subversivos
na área. Sete do grupamento dos Perdidos, dois dos Caianos, sendo que um destes dois é
importante pra caralho, o Zenóbio. E mais quatro do Saranzal — disse Gil para Tomé.
— É verdade. Mas agora é a hora de não desanimar. Se estes poucos ficarem, dentro
de mais um tempo eles organizam outra guerrilha.
— Porra, sei disso. Vamos recomendar cada vez mais empenho às patrulhas. Vamos
pegar todos eles, não tenho dúvida — disse, todo imbuído de responsabilidades, o novo tenente-
coronel.
— Ganhei um comando, e o Gil foi designado para outra comissão — falou Oran, não
demonstrando se estava satisfeito ou aborrecido.
— Porra, quer dizer que o final da missão aqui vai ser conduzido por gente nova, ou
seja, demos um duro desgraçado e os louros do encerramento vão ficar com outros.
— Que louros coisa nenhuma, Gil. É uma substituição normal, como outra qualquer.
— Ainda não sei, mas creio que não devem demorar. Provavelmente mais uns quinze
dias e eles estão chegando. No máximo, lá para o fim de agosto estaremos, nós dois, fora daqui.
Capítulo XVI
— Não adianta ficar dando volta feito peru bêbado, pessoal. Aqui perto, mais ou
menos a uma meia hora de marcha, existe um sítio que é uma beleza para a gente descansar —
disse o chefe da Jabuti Um, abrindo o seu cantil e tomando um generoso gole de água. Eles
estavam na mata há três dias, procurando, sem resultados, rastros de um grupo que, segundo os
informes fornecidos por moradores das redondezas, indicavam ser dos quatro últimos
remanescentes do Saranzal.
— O senhor é que sabe, doutor. Por mim acho que uma parada até amanhã ia ser
ótima. Depois que o Paquera informou que o nosso resgate vai ser adiado por um dia, perdi o
ânimo — falou um dos membros da patrulha.
— Então, vamos lá. Quem sabe a gente até fila um feijão do Valdomiro? Você
conhece o sujeito, né, Tião?
— Cunheço, sim sor. O sítio dele é um dos mais mió daqui. Tem de um tudo lá, inté
mio verde é capaz de nóis encontrá — respondeu o guia.
— Tem paulista aí! Cerquem a casa! Marinaldo e Tião, corram atrás daquele que
fugiu por ali! Depressa! — gritou Vargas, o chefe da Jabuti Um.
— Quem estiver aí dentro saia com as mãos na cabeça, se não quiser morrer! —
berrou Vargas, maldizendo-se intimamente por sua negligência na chegada.
Uma mulher madura, de seus quarenta anos, saiu da palhoça com as mãos na
cabeça.
— Pidiu um prato de fejão, dei, ele cumeu e disse qui ia simbora, quando ocêis
chegaro.
— Você não sabe que é proibido dar guarida pra esse povo da mata?
— Sei sim sinhô, mais num sabia que o tar era paulista, nunca tinha visto ele aqui.
— Nada, chefe. O cabra entrou por dentro de um banhado que tem aculá e sumiu
nas brenhas — disse o soldado.
Vargas mandou que a casa fosse revistada e depois disse a seus homens.
— Adeus descanso. Vamos tentar achar o rastro do subversivo. Esse é peixe grande.
— Ele deve estar tentando contato com o grupamento C, ou então está tentando
fugir, buscando atingir e cruzar o Araguaia. O que é que você acha, Zeca? — perguntou Gil.
— Acho mais provável que ele esteja tentando fugir. Mas a chance dele por essa rota
é mínima. Vamos pegar o puto, não tenha dúvida. É questão de mais dia menos dia.
— Vai observando como as coisas funcionam aqui, Viola. Tá tudo calmo. De repente,
chega uma informação dessas que faz agitar todo mundo.
— Estou vendo, e já deu para perceber que as coisas são muito dinâmicas na área,
exigindo mudanças de tática a toda hora — disse o novo chefe de operações, recém-chegado à
Casa Azul.
— Mais alguns dias e você vai ficar por dentro de tudo — falou Gil.
— Acho que vou programar o lançamento de mais patrulhas no Saranzal para fazer
um pente-fino naquela área. O Zenóbio já escapou várias vezes do nosso cerco. Desta vez, temos
que pegá-lo.
— O filho da puta parece um genuíno gato de sete vidas, mas a sorte dele está no fim
— comentou Zeca.
— ... de maneira que é essa a situação na região. Guerrilha propriamente não existe.
Na verdade, estamos aqui conduzindo uma tremenda caçada. Não há qualquer tipo de oposição
por parte deles. Os caras se instalaram na área para uma missão para a qual estavam
completamente despreparados. A liquidação dos poucos que ainda restam, no entanto, é de suma
importância para não ficar nenhuma semente da subversão, num local cujo caldo de problemas
sociais é tão amplo que, se ficar um, este um fará germinar novamente a guerrilha — dizia Oran a
Nilo, o novo comandante da Casa Azul.
Nilo ouvia mais do que falava. Era um velho coronel, aguardando uma promoção a
general que nem ele próprio acreditava que viesse. Aquela, talvez, seria a sua última missão na
ativa. Nilo era calmo, observador e, principalmente, reservado. Poucos privavam de sua intimidade.
Um desses poucos era, justamente, Viola, o chefe de operações que ele trouxera. Este era mais
dinâmico sem ser agitado, inteligente sem ser brilhante, e batalhador sem ser obstinado.
— Por tudo que você me disse, creio que já estou quase pronto para assumir. Além
disso, o pessoal que continua na missão será capaz de tirar dúvidas que eu venha a ter quando você
partir.
— O Paquera acabou de informar que a Capivara Dois chafurdou três nos Perdidos —
disse o operador de rádio.
— Não, doutor, estava aqui conversando com o Viola, não prestei atenção.
O avião pousou, rolou até a cabeceira oposta e fez cento e oitenta graus de curva,
iniciando o táxi para o estacionamento.
— O general disse que quer visitar primeiro o acampamento de vocês, João Pedro. A
fama das melhorias que vocês estão incrementando já chegou na corte — disse Elesbão com uma
ponta de ciúme.
O velho Douglas estacionou, a porta foi aberta e o general e sua comitiva começaram
a desembarcar. Cumprimentos, apertos de mão, sorrisos.
— Ah, ah, ah, ah, então vocês levam mesmo a sério a camuflagem, hein? E aí, vocês
estão acompanhando direitinho as trilhas dos guerrilheiros e a progressão das tropas no terreno?
João Pedro olhou surpreso para o coronel. "Esse cara não pode estar falando sério.
Ele deve estar me gozando", pensou.
"O sujeito não está brincando, meu Deus! É realmente um perfeito idiota! Não sabe
de nada!", pensou João Pedro, não se dando o trabalho de responder. Apenas olhou a tarjeta de
identificação do oficial: "Cel. Maranhão", leu Joãozinho, virou as costas e se dirigiu calmamente ao
general:
— Excelência, vamos para a sombra da mineradora. Temos um refresco gelado para
os senhores. Tenha a bondade, por aqui, por favor.
— Que coisa mais fantástica vocês montaram aqui — disse o general, elogiando e
admirando tudo. — Olha isso! Até um bar, ao estilo do western norte-americano, com porta de
saloon, mesa redonda de feltro verde!! A FAB é rica, pode se dar estes luxos, não é?
— Tudo isso, meu general, foi feito com nossos próprios recursos, com a
contribuição de cada um, aos poucos, para propiciar mais conforto às tripulações que aqui
permanecem, por dias e dias, longe dos familiares. De certa forma, isso tudo que o senhor está
vendo é fator importante da segurança de voo. Conforto e bem-estar não são luxos, meu general...
— explicou o aviador ao velho troupier, mostrando que em quase um ano de operação, não havia
ocorrido nenhum aci-dente. "É possível que ele não tenha entendido. Afinal, a psicologia do
combatente terrestre é muito diferente daquela de quem tem por teatro a imensidão do espaço",
pensou João Pedro mais tarde, depois que a comitiva foi embora.
— Porra, cara, não é possível! Você tá de brincadeira! — disse Tiago, sem acreditar
no que Joãozinho lhe contara.
— É verdade, eu estava perto e ouvi tudo — confirmou Rafael, aliás, tenente Parise.
— Cacetada, esse tal de coronel Maranhão deve ser mesmo um completo imbecil!
Eles estavam no bar da Janoca. O cardápio de sempre, cerveja gelada e pacu frito
com pimenta.
— Porra, que milagre você aparecer aqui. Vai, no mínimo, chover hoje — falou o
japonês.
— Grandes merdas! Você tá cansado de ficar e, até, dormir lá. Ele também é filho de
Deus, porra — disse Rafael.
— Uai, vocês é que não estão entendendo. O Tenório tá dormindo com a Baleia!
Amanhã, vai ser a maior gozação quando ele chegar ao acampamento. Ah, ah, ah, ah...
A risadaria foi geral.
— Cacetada, hoje é o dia das piadas, porra — falou o nipônico, quase arrebentando
de rir.
— Puta que pariu, será que não tinha coisa melhor pra ele comer? É perigoso, ele se
afogar no meio de tanta banha — disse João Pedro, rindo alto também.
— Sabe o que eu descobri outro dia? Aqui tem um tal de casamento por contrato —
falou Tiago.
— O sujeito se engraça com uma mulher, aí propõe casar por contrato. Eles
negociam o tempo do casamento e a indenização que deve ser paga à mulher ao final do prazo.
Quando está tudo acertado, o contrato é redigido e registrado no cartório. Pronto — explicou o
japonês.
— Mas esse contrato não tem valor jurídico algum! — disse Rafael.
— Claro que tem, todos são livres para contratar o que quiserem, uai — opinou
Silvério.
— As pessoas são livres para contratar, e o contrato faz lei entre as partes, desde que
não seja ferida a lei do país. Isso é o que sei. Portanto, acho também que esse contrato não tem
validade — comentou João Pedro.
— Pessoal, não adianta ficarmos discutindo se é válido ou não. O fato é que a coisa
funciona assim em toda a região. A Baleia me deu um monte de exemplos. Aqui é desse jeito, o
cartório aceita e as partes cumprem o que foi contratado. Fim — disse Silvério.
— Ô Janoca, traz mais cerveja e peixinho frito pra nós! — gritou o japonês.
— Vocês querem ver uma coisa? Tá vendo aquela putinha que está atravessando a
rua ali? — apontou Silvério. — Ela é uma menina nova, com no máximo dezoito anos, e já está aqui
desde os dezesseis. Agora, o que é pior, é filha de um fazendeiro de Araguaína cheio da grana. Dá
pra acreditar?
— Como é que você sabe disso? Cê vem tão pouco ao Vietinam — perguntou Tiago.
— A Baleia me contou. Ela sabe de tudo que acontece aqui e me fala muita coisa.
Essa tal aí, Isadora, perdeu a virgindade, o pai não pensou duas vezes, expulsou-a de casa. É a lei
deles.
— Pessoal, em vez de ficar só caçando guerrilheiro, nós devíamos fazer alguma coisa
para diminuir a miséria e o sofrimento desse povo. Isso é uma obrigação nossa. Afinal, o paisano diz
que somos o governo. Vamos assumir, vamos tomar alguma providência — sugeriu Tiago.
— Acho uma boa ideia. Vamos pensar sobre isso com carinho. O fato é que o japonês
tem razão, temos que fazer algo. Agora, convenhamos que o papo está, hoje, muito sério. Vamos
tomar nossa cerveja e deixar o assunto para o acam-pamento — disse Silvério.
A conversa tomou outros rumos, e o tema sugerido só veio a ser discutido dias
depois.
— Estou fechando a minha estada aqui com chave de ouro, hein, Viola? — disse Gil,
fazendo uso pela última vez, na Casa Azul, do pincel vermelho que marcava os X sobre as fotos dos
paulistas postos fora de ação.
— Realmente, espero poder dar continuidade ao seu trabalho à altura — disse Viola.
A Capivara Dois fizera três mortos. O agente designado para fazer a identificação
ficara em dúvida com relação a um dos cadáveres. Somente dias depois se confirmou pela
datiloscópica que se tratava de Daniel Cantagalo, o Darci.
— Veja só, quem diria, o Darci escapou várias vezes nos Caianos e foi cair nos
Perdidos — comentou Gil, olhando o quadro. Os dois outros mortos ele marcara no dia anterior:
António de Paula Castro, o Hélcio, e Humberto Brasil, o Tadeu.
— Restam cinco nos Perdidos e quatro no Saranzal. Sem contar o Zenóbio, que é
uma incógnita. Depois que cheguei aqui, volta e meia aparece um informe de que ele está num
determinado lugar. As patrulhas vasculham o local e não en-contram nada. No entanto, esse tem
que ser encontrado — disse Viola.
— Estou gostando de ver. Você já está por dentro de tudo. Parto amanhã, tranqüilo.
A operação está em boas mãos.
— Bom dia, seu Valdemar — disse Jairo, um dos capatazes da agropecuária, como
fazia sempre, todas as manhãs, ao buscar a cota de pão da empresa.
— Seu Jairo, o sinhô não me leve a mal, mas é que tou em difirculdade — iniciou
Valdemar a conversa que vinha ensaiando há vários dias.
— O senhor falou, tá falado. Vou comunicar pro Dr. Cosme, mas se prepare porque
ele não vai gostar da notícia não — disse Jairo, pegando o saco de pães e transportando-o para a
abreviatura.
— Se ele num gosta, paciença. Não pode é fica do jeito que tá — falou ele para a
mulher, a Maria Preta.
— Valdemar, Valdemar, esses home da federal vão criá causo com nóis. Inda se fosse
os da mineradora, não tinha pobrema. Nóis aumentemo o preço, ês pagaro e num falaro nada.
Mais esses otro, vixe, Deus me defenda!
— Se continuar assim, hoje vamos ser obrigados a ficar aqui, coçando o saco —
comentou Beto.
Na noite anterior, eles haviam discutido o assunto da operação Aciso, levando a ideia
aos demais companheiros.
— João Pedro, acho a iniciativa de vocês muito louvável e de grande valor, inclusive
para a própria operação de combate. Entretanto, companheiro, não tenho disponibilidade de
recursos para me engajar nisso. Nem material nem pes-soal. Posso, no máximo, ceder o nosso
médico para participar. Mais do que isso, impossível. A não ser que venham ordens e recursos da
Casa Azul — falou Elesbão, depois que o chefe da mineradora expôs a idéia.
— Porra, se resolvi! Desculpe, bom dia, Dr. João Pedro — disse Cosme, agitado. —
Esses matutos de merda pensam que nós somos otários. Mandei buscar o tal de Valdemar e uns
choquinhos com o "brinco-da-princesa" resolveram o problema. Ele me disse os custos de
produção, fiz as contas, acrescentei dez por cento de lucro e cheguei ao preço final de quanto deve
ser vendido o pão. O filho da puta estava querendo nos explorar. Depois, esses paisanos de merda
ficam dizendo que nós é que somos os exploradores do povo. Mandei fixar na porta da padaria uma
tabela com os preços. Esses caras estão pensando o quê? — esbravejou Cosme, gesticulando,
enquanto contava as providências tomadas em relação ao aumento do preço do pão.
— Porra, doutor, me desculpe, mas qual é a sua!? Comigo não tem essa lei que o
senhor falou aí, não. A lei aqui somos nós! Os caras têm que vender pelo preço justo!
— É, você deve ter razão... — disse João, com um sorriso de mofa que o outro não
percebeu.
— E tem mais: agora vou começar a dar duro nos outros comerciantes da cidade.
Vou tabelar tudo. É assim que tem que ser, o povo vai ficar satisfeito. Quer melhor Aciso do que
esse? — completou Cosme, que já ouvira o zunzum da operação que os aviadores estavam
planejando.
"Pobre coitado! Não adianta discutir com um sujeito desses. Pura perda de tempo",
pensou João Pedro, despedindo-se e voltando para a mineradora.
Capítulo XVII
— Não tem jeito, camaradas, se quisermos sobreviver, temos que nos alimentar de
coco pra não cairmos em balanço protêico negativo — ensinara Olavo, quintanista de medicina,
antes de cair prisioneiro.
— Como será que tá minha muié e meus fio, minha Vige Maria? — lamentava-se
Viriato, o ex-soldado de polícia que desertara para se unir aos paulistas.
— Pára com isso, Viriato, você se juntou a nós porque quis. Porra meu, aguenta firme
ou se manda! — disse Eraldo.
— Se eu for simbora, ês vão me prendê na certa. Tenho mesmo é que ficá com ocêis.
Tumei o bonde errado, agora o jeito que tem é güentá esse sufrimento.
— Psiu! Silêncio, parece que ouvi alguma coisa — falou Rosa baixinho. Eles pararam
de ralar o coco e prestaram atenção. Nada. Parecia que estava tudo normal.
Eraldo fez sinal para que eles se afastassem de onde estavam. Pegou uma pedra,
jogou na direção apontada por Rosa e correu.
A patrulha Jabuti Quatro estava se aproximando bem devagar, com cuidado para
surpreender o grupo guerrilheiro. O mateiro ouvira o barulho do coco sendo ralado e alertara o
chefe.
Quando o chefe da patrulha fez sinal para seus homens abrirem a formação e
envolverem o inimigo, um soldado precipitou-se e, afobado, escorregou e caiu no chão,
provocando o barulho que a guerrilheira Rosa ouvira.
— Atrás deles! — gritou Fulgêncio, o chefe da Jabuti Quatro, quando a pedra atirada
por Eraldo caiu ao seu lado, assustando-o. Os soldados correram atrás do inimigo, atirando no que
viam e no que não viam.
— Puta que pariu! Nós íamos pegá-los todos de calça na mão. O Bosco, esse bicho
enrolado, tinha que escorregar bem na hora!
— Desculpa, né, pessoal, não foi por querer — disse o soldado Fernandel Bosco
encabulado.
— Tudo bem, está desculpado. Vou tentar, agora, contato com o Paquera — falou
Fulgêncio.
— Arre égua, e esse tal de doutor Cosme tá pensando o quê, que é o dono da
cidade!? — disse Valquíria. O comentário na calçada era sobre o tabelamento dos preços que
estava sendo implantado.
— Meus peixe, vendo por quanto os pessoal me pagá! — falou Paulo Boto.
— É que ocêis não levaro choque e porrada que nem o pobre do Valdemar. Deixa ês
pegá um dôceis. Vai tudo se cagá todo — disse um outro.
— Uai, falar o quê? Não tenho nada a ver com isso, gente! Isso é coisa da
agropecuária. Pertenço à mineradora.
— O senhor sabe como é, por oito tomo prejuízo. Compro por sete, tem mais o frete
de Araguaína pra cá, o senhor compreende, né?
— Pois quero cinco quilo, a oito. Se o senhor não quisé vendê, vou dá uma
palavrinha com o doutô Cosme.
— Porra, a situação é esta. O sujeito é maluco. Ele se arvorou de intendente-mor. Pra
ele não tem lei, não tem concorrência, não tem nada. Ele é a lei, porra — relatou Jorge ao
comandante da Casa Azul as informações que recebera de Xambioá.
— Quem foi que deu autoridade ao Cosme para fazer isso? — perguntou ele a Viola.
— Bem, ô Dr. Nilo, se ele está exorbitando, ele não é culpado sozinho. Existe um
comandante na agropecuária, o Elesbão, e este deve ser igualmente responsabilizado — opinou
Viola.
— Pelo que conheço do chefe, vai dar merda. Tanto o Cosme como o Elesbão que
preparem o rabo que vem truta grossa por aí — falou Viola.
— Porra, porra, eu tinha que comunicar, né? Não podia esconder a informação, né?
— disse Jorjão se desculpando.
— Claro, Jorge, não se preocupe. Você cumpriu sua obrigação. — E, virando-se para
Tomé, determinou: — Você fica na chefia de operações enquanto eu estiver fora, certo, Tomé?
— Pode deixar comigo. Era assim no tempo do Gil. Quando ele viajava, eu segurava o
pincel.
— Ele ainda não chegou, mas não deve demorar. Por coincidência, Zeca entrou na
sala naquele momento. Vinha suado e esbaforido.
— Porra, perdi um tempo filha da puta para identificar os presuntos. Um deles foi
fácil. É o Demerval, ou Uiranjê Alves Belo. Agora, o outro nem eu nem ninguém sabia quem era. Até
que, pelas tantas, o mateiro da patrulha disse que o sujeito era parecido com um soldado da PM do
Pará, que desertou o ano passado, quando servia em São Raimundo. Peguei os dados dele, inclusive
a ficha datiloscópica. Tudo confere. Acho que devemos comunicar ao comando da PM do Pará —
disse ele, terminando seu relatório.
Um Paquera procedente de Marabá pousou e taxiou. A bordo vinham Jorge e Viola.
— Belo vôo! Há muito tempo eu não voava num avião pequeno. Achei o Paquera
espetacular — disse Viola, quando eles desceram da aeronave, no pátio de estacionamento, em
Xambioá.
— Porra, também com um pilotaço assim como eu, né? — falou Jorjão, satisfeito por
ter um dia livre na mineradora.
— Bom dia, Elesbão, bom dia para todos. Até mais tarde, Jorge — cumprimentou
Viola, afastando-se com Elesbão em direção à agropecuária.
— Foi bom você ter vindo, Jorjão. Temos umas coisas importantes para tratar com
você. Vamos para a sala de operações — disse João Pedro, sem maiores preâmbulos.
— Porra, porra, não posso nem tomar um cafezinho antes, caralhos? — perguntou
ele risonho.
— Porra, claro que pode. Desculpe pela falta de lembrança em lhe oferecer o café,
mas é que estamos ansiosos para lhe contar sobre umas idéias que tivemos.
Depois de tomar seu café, Jorge foi levado para a sala de operações, onde os rapazes
o colocaram a par dos planos da operação Aciso.
— Porra, porra, ideia do caralho! Topei, negão. Depois que o Viola terminar de
investigar as babaquices que o tal de Cosme andou aprontando, vou trazê-lo aqui pra gente
mostrar os planos. O apoio da Casa Azul é muito importante para uma operação desse tipo. Se o
Viola ficar convencido de que a idéia é boa, ele mesmo faz a cabeça do Nilo.
— Muito bom. Vou falar com o Dr. Nilo e convencê-lo de que devemos todos nos
engajar no projeto. Só uma perguntinha: em que local, ou locais, seria feita a operação?
— Bem, Dr. Viola, o senhor sabe, estamos no fim de setembro. Uma data adequada
seria 23 de outubro, Dia do Aviador — disse Tiago, um pouco desajeitado, temendo provocar o
ciúme do representante da Força Terrestre.
No entanto, Viola era um homem afável, cordato, e não tinha os vícios da
mesquinhez.
— Grande data, muito bem escolhida. Assim, a gente caracteriza a ação cívico-social
num dia de grande significado nacional — disse, com entusiasmo.
— Arrumo e é já já. Tem de graviola e de açaí. Qual é o que você prefere, Silvério?
— Prefiro de graviola.
— Mas, você está sabendo de quê, Val? — perguntou o rapaz, depois que Bartira
entrou para buscar o refresco.
— Você sabe que, sentada aqui na calçada, fico sabendo de tudo, né? Pois então
vocês estão fazendo essa movimentação toda dessa tal de Aciso, e o Tiago mais o João Pedro já
convidaram a Dulcilene e a Joaninha pra andar no Sapão. Quero é saber se você não vai chamar
Dora e Dagmar pra esse passeio! — disse Valquíria, se roendo de ciúmes.
— Mas oh terrinha de muro baixo! Val, em primeiro lugar, isso que você chama de
"tal de Aciso" não é nenhum passeio. É um trabalho, trabalho muito sério. Em segundo lugar, fique
sabendo que a Dora e a Dag já foram relacionadas para trabalhar numa das equipes. Estou aqui,
hoje, para falar com elas, sua linguaruda.
— Ainda bem! Se Dora e Dag não estivessem nessa tal de Aciso, o quê que o povo ia
dizer!? Pois se até aquela nega boazuda que trabalha no posto de saúde, a Nena, passou rebolando
a bunda por aqui e disse que ia passear de Sapão com o cacho dela, um tal de Pauro Piroto.
— Porra, Val, você é foda! As pessoas que estão sendo chamadas para colaborar é
porque têm com quê contribuir. Não é pelo tamanho da bunda! A Egmar, que vocês chamam de
Nena, é enfermeira. Ela vai trabalhar pra cacete na operação Aciso.
— Ih, minino, fiquei sabendo também que o tal de Cosme mais o Elesbão foram
mandados embora. Como foi isso, me conte!? — disse Val, mudando de assunto.
— Uai, depois das merdas que o Cosme fez, você queria o quê? Os substitutos já
chegaram...
— Os formulários da Secretaria de Segurança Pública do Pará devem chegar ainda
hoje. Vem também um funcionário deles pra ensinar o nosso pessoal a preenchê-los. Conseguimos
também seis máquinas de plastificação portáteis. Só não vai tirar carteira de identidade quem não
quiser — dizia Viola para Nilo.
— Eles chegam depois de amanhã, trazendo todo o material para fornecimento das
carteiras de trabalho. Dois vão ficar aqui e quatro vão para Xambioá. Eles vêm no C-47 semanal da
FAB — falou Viola.
— Brasília informou que está vindo uma carga pra cá com mais de quinhentos quilos
de medicamentos. O pessoal do Ministério da Saúde está dando todo o apoio — disse Nilo.
— Eu estava tentando conseguir uma porrada de pacotes de bala para distribuir para
as crianças, mas o dentista do Incra vetou. Disse que bala dá cárie. Porra, mas umas balinhas para
os curumins ia ser uma festa, hein? — disse o Gordo.
— Ei, Alexandre, olha isto aqui! — falou a Japonesa, apoiando um joelho no chão e
apontando para algo que lhe pareceu, inicialmente, uma pedra.
— Ela vai morrer de qualquer modo. Temos que comer proteínas, e esta jabota caiu
do céu. Vamos chamar os outros e decidir como prepará-la.
Os outros três, Lauro, Augusto e Paulo, se reuniram aos dois, em torno da jabota.
— Ela é bem grande. Deve ter uns cinquenta centímetros de casco. A carne é muito
gostosa. Comi dela certa vez, preparada por um colhedor de castanhas — disse Lauro.
— Aí é que está o problema. Vamos ter que fazer um fogo e colocar a jabota apoiada
num jirau baixo, com o casco em contato com o calor — explicou Lauro.
— Você diz cozinhar o animal vivo!? — exclamou a Japonesa, fazendo uma expressão
de horror.
— Sim, foi dessa maneira que vi um jabuti ser cozido, como falei há pouco.
— Fazer um fogo agora é querer ser descoberto pelas tropas. É muito arriscado —
opinou Paulo.
— Ficar aqui aguardando o anoitecer é quase tão arriscado quanto acender o fogo
agora. Os milicos da repressão devem estar no nosso rastro, pela quantidade de barulho de
helicópteros que temos ouvido — falou Augusto.
— Desistirmos da idéia de sacrificar o animal — disse ela, nem tanto pelo bicho em
si, mas pela imagem em sua mente de vê-lo morrer queimado vivo, e depois comer daquela carne.
— Qual é, Japonesa? Os nipônicos comem peixe cru, você está com frescura em
relação à jabota cozida? Quem sabe a gente arranja um pouco de shoiu pra você!? — disse Paulo
rindo para não chorar da situação em que eles se en-contravam.
— Tenho uma sugestão que pode dar certo. Fazemos o fogo na margem do igarapé e
colocamos a jabota para cozinhar. A seguir, nos afastamos para um terreno mais alto e ficamos
observando escondidos no mato. Se até o cozimento terminar não acontecer nada, um de nós vem
aqui, apaga a fogueira e leva a jabota para o nosso esconderijo. O que vocês pensam desse plano?
O máximo que pode acontecer é a tropa descobrir o fogo. Se isso ocorrer, nos afastamos de
mansinho, e eles que façam proveito da comida e tenham uma indigestão — falou Augusto.
— O casco da jabota vai estar pelando de quente, e ela é um bocado pesada. Dois de
nós devem descer para buscá-Ia, quando ela estiver pronta, levando dois galhos para serem
atravessados sob a carapaça. Cada um segura, com as duas mãos, um em cada ponta, e levanta
nosso banquete, sem o perigo de queimar as mãos.
Às sete horas, decolava o primeiro Sapão com uma equipe e seu respectivo material:
medicamentos, caixas de leite em pó, vacinas, uma plastificadora, uma máquina de escrever,
formulários e demais objetos necessários à missão. A equipe era composta de médico, dentista,
enfermeiro, encarregado de identificação, representante da delegacia do trabalho para emissão das
carteiras e três auxiliares de serviços diversos. A alegria animava a todos.
E assim sucessivamente. Cada Sapão faria duas viagens para levar o pessoal e duas
para resgate, no final da tarde.
— Você, japonês, levou a sua e a minha namorada para Santa Isabel. No resgate,
quero buscar a Joaninha. Feito? — disse João Pedro.
— Seu minino, nunca se viu por aqui uma coisa dessa. O gunverno agora se alembrou
de nóis... — dizia um.
— Arre égua! Entonces, virei gente! Qui antes era mesmo que bicho. Caderneta de
trabaio e essa mais piquitita pra prová que me chamo Raimundo da Conceição Silva. Sim sinhô!! —
falou outro, saindo do posto montado na praça.
— Não vai doer nadinha, meu querido — acalmava Joaninha um garotinho de cinco
anos, no colo da mãe, apavorado com a agulha de aplicação da vacina tríplice.
— O disgramado do doutô me arrancô treis dente. Mais ô menos, agora, os fio du'a
égua num vai mais duê. Vixe Maria, foi Deus qui mandô esses cabras aqui!
Às cinco e trinta da tarde, o Sapão pilotado por João Pedro e Rafael pousava em
Santa Isabel para resgatar a equipe. Joaninha mandou ao comandante da aeronave um beijo com a
ponta dos dedos, antes de embarcar. Um sorriso radiante nos lábios.
— Foi o dia mais feliz da minha vida! — disse ela, sentando e ajustando o cinto de
segurança.
— Tá emocionada, guria, de voar aí com o doutor João Pedro, seu xodó? — disse
Gauchão, folgado como ele só, no ouvido dela.
— Ele é o homem mais lindo e o melhor piloto do mundo — gritou ela, suplantando
o ruído da aceleração do rotor.
— Bá, tchê, isso é que é amor! Mais firme do que catarro em parede. Barbaridade —
falou o gaúcho, não percebendo que o seu interfone estava aberto.
— Psiu... cêis num tá sintindo o chero? — falou o mateiro Zeferino, fazendo sinal de
parada e colocando o dedo na boca, indicando silêncio.
— Tem gente fazendo fogo aqui perto. Deve de tá a uma meia hora daqui.
— Vamos chegar devagar. Sem precipitação e sem fazer barulho. Pode ser algum
caçador ou colhedor de castanha. Prestem atenção aos meus sinais e aos do Zé.
Reiniciaram a caminhada com todo o cuidado. Dez ou quinze minutos depois, todos
eles estavam sentindo o cheiro da fumaça. Redobraram a cautela.
Zeferino fez sinal de parada. Todos ficaram estáticos. Ele apontou na direção do
igarapé, e Léo foi rastejando lentamente. Do outro lado do pequeno curso d'água, ele viu a
fogueira, o jirau e um jabuti com os costados para o fogo. Fez sinal para os outros se aproximarem
devagar.
— Ês tem que tá por perto. Aquele jirau é de paulista — falou Zé no mesmo tom.
Mais de uma hora depois, quando eles menos esperavam, dois guerrilheiros
desceram do terreno alto da outra margem. Cada um carregava um galho não muito grosso de
madeira lisa e reta. Chegaram à margem do igarapé, apagaram o fogo e passaram os varais por
baixo do jirau.
Quando levantaram a trapizonga com o jabuti em cima, Léo fez um sinal e a patrulha
fechou de um salto qualquer possibilidade de fuga.
— Amarrem os dois! — gritou ele, mantendo-os sob a mira de seu fuzil. — Depois,
acharemos os rastros dos que estão fugindo.
— Foi excelente, Jorge. Vocês todos estão de parabéns . Melhor dizendo, todos nós
estamos de parabéns. Tudo funcionou como planejado — disse Nilo.
— Porra, as pombas adoraram. Aliás, elas nos convidaram para tomar um licor, logo
mais, lá no pombal. Essa não perco, né!?
— Porra, porra, já entreguei. O piloto não conseguiu contato com uma patrulha.
Parece que foi a Capivara Um — respondeu o outro.
— Amanhã temos que verificar isso. Localizar a patrulha e saber o que houve — disse
Viola.
— São dois amigos nossos que estão passando uma temporada no acampamento da
agropecuária. Alexandre e Paulo. Eles estão cooperando conosco, são de paz, e demonstraram
interesse em conhecer a mineradora, antes de viajarem — respondeu Pinho.
— Alô, como vão vocês? Fiquem à vontade. Podem sentar — falou Tiago. — Ô
Batista, traz um refresco aqui pró pessoal.
— Ô Pirata, pode tomar o seu refresco e, depois, ficar esperando lá fora, tá? — disse
Pinho para o soldado que portava o fuzil.
— Prestei vestibular para o ITA, passei, mas depois me envolvi com o movimento
estudantil e acabei desistindo. Gosto de aviação. Foi por isso que pedi para vir aqui — respondeu
Paulo, com uma voz tranquila, as palavras bem articuladas.
— Há vários dias estamos sem informes a respeito do Zenóbio. O último foi a semana
passada, dizendo que ele teria sido visto perto de Oito Barracas. Lancei na área quatro patrulhas e,
até agora, nada — falava Viola para Tomé.
— Temos que insistir, tchê. Convidar o cavalo nas puas, com essas patrulhas, tchê! O
Zenóbio é esperto, mas é um só.
— Estão faltando sete, para acabar essa guerrinha. Parece até conta de mentiroso.
Três nos Perdidos, três no Saranzal, e o Zenóbio, que não sabemos onde anda. Que ele está na
região, não tenho dúvida. Com o esquema que montamos, ele não consegue escapar da área —
considerou Viola.
— O negócio é sentar na presilha, tchê, não desistindo enquanto não comer o peito
da franga, como dizem os mineiros.
— Isso é sintomático. Vou conversar com o Nilo sobre isso. O general pode estar
querendo encerrar as operações, mas acho que ainda não chegou a hora. Sete subversivos fazem
outro melê aqui se abandonarmos a região agora — falou Vio-la, levantando-se de sua cadeira e
saindo para procurar o Dr. Nilo.
— Ô Janoca, traz mais cerveja gelada e peixinho frito! — gritou o japonês para a
bodegueira.
— O quê que você está me dizendo!! Foi bom eu não estar lá, falo demais, ia acabar
soltando os cachorros pra cima do Pinho. E, afinal, ele não é culpado dessa situação — disse João
Pedro.
— Porra, cara, você precisava ver. Todos dois tranquilos, conformados, pensando
que vão realmente viajar pra São Paulo. Disseram calmamente, pra mim e pro Amâncio, que
queriam ser julgados, cumprir a pena que lhes dessem e, depois, recomeçar vida nova, retomar os
estudos. Cacete, fiquei ali feito babaca! Sem poder fazer nada — relatou Tiago.
— Porra, Joãozinho, não tenho vergonha de dizer. Depois que o Pinho levou os dois
embora, fui pró alojamento e chorei. Sem sacanagem, chorei mesmo! É muita putaria o que esses
caras da comunidade estão fazendo.
— Se algum dia contarmos isso para alguém, não vão acreditar, japonês! É
sacanagem e covardia demais — lamentou João.
— Porra, vamos mudar de assunto! Falar de mulher, comer pacu frito até amanhecer
e tomar um porre...
Na tarde do dia seguinte, a oito mil pés de altitude, os fones do piloto do Paquera
recebiam:
Era uma casa branca, o telhado arqueado em forma de sela com telhas coloniais,
toda avarandada. O curral ficava ao fundo e, espalhadas sem critério, aqui e ali, as choupanas mais
humildes dos peões e outros empregados.
— Égua, seu minino! Quem é aquele cabra aculá na porteira? — disse um peão,
parando no meio do pátio e apontando a direção para os outros.
— Sei não. Num tá paricendo gente daqui, não. Tá bão de nóis i lá vê que arrumação
é essa. Vamo lá, gente! — falou mais alto o que parecia ser o líder, talvez o capataz.
— Vamo levá ele pra casa da fazenda e dá uma água e um cumê pro pobre, gente —
disse o capataz.
— É capaiz qui esse cabra seje daqueles paulista qui as tropa anda percurando na
mata, Neco.
— Será capaiz qui ocê teje certo. É mio nois mandá avisá no Xambioá, pra invitá
cumpricação pra nóis dispois.
— Nóis prende ele na tuia, tá vazio lá que o sô Noleto num mandô os saco de mio
ainda. Tem só um tiquim de fejão lá.
— Que guerra ingrata! Um mês inteiro sem conseguirmos nenhum resultado. Os dois
últimos X que fizemos no quadro foi no início de novembro, Cilon Baeta, o Alexandre, e Renê dos
Santos, o Paulo — disse Viola para Tomé.
— A Jabuti Quatro informou hoje de manhã que está seguindo rastros frescos de
três. Vamos rezar para que eles peguem os que faltam do Saranzal, Eraldo, Ananias e Rosa. Nos
Perdidos as patrulhas continuam sem pista, tchê.
— O Zenóbio, esse então, parece que se escafedeu — falou Viola, com o cenho
carregado.
— É só falar no diabo que o tinhoso aparece, pessoal — disse Zeca, entrando na sala
a tempo de ouvir a última frase de Viola.
— E o que estamos esperando? Vamos mandar logo um Sapão lá, buscar o bicho,
tchê! — exclamou Tomé, ansioso.
— Você já olhou a hora, Tomé? São quase cinco da tarde. Não há mais tempo hoje.
Amanhã pela manhã, o Sapão vai lá, com uma equipe, e traz o cara direto pra cá — disse o chefe de
operações da Casa Azul.
— Não, não sei quem são, nem quais as patentes — respondeu Ricardo.
A espera não foi demorada. Logo depois, a equipe veio em direção ao helicóptero,
arrastando um homem algemado, dando-lhe socos e pontapés. Quando eles chegaram mais
próximo, Filomeno observou:
— Também concordo. O sujeito, preste atenção, tem um olhar parado, parece mais
um débil mental — falou Ricardo.
Filomeno tirou calmamente seu capacete de voo, virou-se para trás e berrou:
Havia pelo menos um oficial mais antigo do que Filomeno, mas ninguém ousou
desrespeitar sua ordem.
— Isso que vocês estão fazendo é sacanagem! O cara não tem característica
nenhuma de guerrilheiro e, mesmo que fosse, está algemado, indefeso. Vocês são uns covardes...
— disse Filomeno, ao descer da aeronave, para Tarquínio, que estava perto.
— Que é isso, Filomeno! Você está nervoso sem motivo. Deixa o pessoal se divertir
um pouco. Urnas porradas não fazem tanto mal assim — replicou Tarquínio com um sorriso
sarcástico.
"Seu filho da puta, você chama isso 'se divertir'!!", pensou Filomeno, balançando a
cabeça em sinal de desaprovação.
Três dias depois, Nilo mandou reunir todo o pessoal da segunda seção, inclusive os
da equipe que trouxera o prisioneiro.
Os outros abaixaram a cabeça, sem dizer nada. Não havia o que dizer. Contudo,
vergonha eles também não sentiam. Aquela gente era incapaz de qualquer sentimento.
Capítulo XIX
— Parece que está tudo normal. De qualquer forma, temos que ter cautela para não
acontecer conosco o mesmo que ocorreu com a Jabuti Um, ir chegando displicente e ver um
guerrilheiro escapar nas barbas da patrulha. Vamos cercar a casa. Depois, eu vou entrar no terreiro.
Vocês ficam por trás, me dando cobertura — instruiu o chefe da Jabuti Dois.
— Se houver alguém aí dentro, que saia com as mãos na cabeça! — gritou ele.
— Égua do macho! Que alvoroço é esse!? — exclamou em voz alta Chico Boiuçu,
saindo pela porta da frente da choupana.
— Tem não sinhô, e houvera de tê!? Só tô eu mais a mulé Se achegue, moço — disse
Chico, com seu sorriso desdentado.
— Francisco, mais ês me chama de Chico Boiuçu. Dos paulista, escuitei falá que uns
treis deles tivero rondando o sítio do cumpadre Tonho, na sumana passada. Tá interando hoje oito
dia.
— Tá bão, Boiuçu? — disse o guia da Jabuti Dois, que conhecia o outro, ao chegar
com os demais.
Eles entraram. A casa era espaçosa, com quatro cómodos grandes. Uma mulher
cozinhava no fogão a lenha.
— Pode se ispaiá por aí. Agora mesmo vai tê fejão pronto e carne de cutia que Chico
caço — disse ela.
— Como foi essa história dos paulistas que você falou, Chico? — perguntou Zé Euler.
— O cumpadre disse que era dois home e uma muié. Vicente sabe adonde que fica o
sítio do cumpadre Tonho, num sabe, Vicente?
— Sei, tem u'a tria daqui inté lá. U'as treis horas de caminhada — informou o guia.
— Mais ocêis num vão simbora sem cume do fejão da Maria e da cutia insopada, né?
— Bem, sendo assim, vamos aceitar — disse Zé Euler, percebendo o olhar de gula de
seus homens. Ele mesmo estava com fome, e o cheiro das panelas lhe aguçava o apetite.
Ficaram por ali. Dentro da casa, estava bem mais fresco do que fora. Sentaram-se,
uns nos poucos bancos que havia, outros no chão mesmo.
O feijão não havia ficado pronto. A carne, da mesma forma, ainda cozinhava.
— Vem vindo gente aí — disse um soldado, olhando por uma fresta da janela. Todos
fizeram absoluto silêncio.
— Já intindi. Pode dexá qui já sei. Maria, mexa o cumê sem nervusia — disse o dono
do sítio.
— O quê qui ocêis qué aqui!? — perguntou Chico, na porta da choupana, fingindo
aborrecimento.
— Nós estamos com fome, Chico Boiuçu. Nos arrume qualquer coisa pra comer, por
favor. Depois, nós vamos embora, não queremos complicação pra você — falou Ananias,
suplicante.
— Ô Nanias, se as tropa subé qui tô ajudando ocêis, vai cumplicá, né, pra mim mais a
Maria, cêis mesmo sabe disso... — negaceou Chico, como se fora um ator.
— Tenha um pouco de piedade, Chico. Nós já fomos tão amigos! Você se lembra
daquela maleita que Maria teve, quem foi que curou!? — recordou Rosa, procurando sensibilizar
Boiuçu e sem desconfiar de nada.
— Óia aqui, minina Rosa, Nanias e esse otro aí qui num me alembro do nome, num
sou home de negá um cumê pra um vivente cum a fome qui ocêis tá. Mais tem uma coisa, ocêis
entra, come e, dispois, vai simbora logo. Pôso num posso dá procêis, não!
Era só o que eles queriam. Os três entraram. Ouviu-se o engatilhar das armas.
— Seus dois capachos da ditadura! Nojentos traidores! Filhos da puta, seu velho
cachorro, um dia vocês hão de pagar por esta traição!... — gritou Rosa, cuspindo na direção do
casal. Ananias e Eraldo espumavam de raiva igualmente.
— ...com esse informe de que o Zenóbio foi visto na região do igarapé Capim Alto,
vou lançar três patrulhas, aqui nestes pontos — disse Viola, mostrando os locais no mapa. — Elas
receberão ordem para convergir na direção da Grota Grande. Se ele estiver nessa área, nós o
pegaremos. O que vocês acham? — perguntou ele a Tomé e Zeca.
— Está perfeito, tchê, mas creio que seria bom lançar uma quarta patrulha, a jusante
deste trecho do igarapé, para bloquear a possibilidade de fuga por este outro lado — explicou
Tomé apontando a carta do aerolevantamento radar que fora fornecida à Casa Azul pelo Ministério
das Minas e Energia, órgão responsável pelo projeto Radam (Radar da Amazónia).
— Certo. Porém...
— Sim, doutor. A Jabuti Dois fez três prisioneiros. O Paquera informou que eles estão
no sítio do Chico Boiuçu, aguardando resgate.
— Ótima notícia!! Tomé, faça contato com o Jorge. Peça pra ele mandar um Sapão
buscar a patrulha e os prisioneiros e trazê-los direto pra cá — falou Viola eufórico.
— Não tem mais sentido trazer prisioneiros para cá. O interrogatório deles não vai
acrescentar mais nada. Acho melhor solicitar um Sapão de Xambioá para resgatar a patrulha.
Enquanto isso, uma equipe da segunda seção sai daqui, noutro Sapão, pega os prisioneiros, leva-os
para Bacaba, identifica-os e toma as demais providências. Isso nos causará menos transtornos.
— Certo. Vamos fazer assim, então. Vou apenas dar ciência disso ao Dr. Nilo — disse
Viola, aceitando a sugestão de Zeca.
— Zé Geraldo disapariceu. Tá cum uma sumana qui num aparece na oficina, dona
Val.
— Mais o Paulo Boto anda dizendo qui Zé Geraldo vorta mais não. Que ele inté ficou
sabendo qui o Zé vendeu o barco pra um moço lá de Santa Isabel.
— Que história é essa, Xingó!! Tá variando, minino, tá? Então, Zé Geraldo ia simbora
assim, sem mais nem menos, sem se despedir de ninguém?! — retrucou Val, com uma ponta de
dúvida nascendo-lhe no espírito.
— Tão dizendo tomém qui ele fugiu com Bartira — acrescentou o moleque.
— Que cunversa é essa!? Bartira foi passar uns dias com a mãe e o pai em Riachinho,
minino! — disse Valquíria, agora sem tanta certeza. — Vou já remexer no malotão onde ela guarda
as coisas dela. — Falou e agiu a Baleia. O baú estava vazio.
— É melhor vocês ficarem aqui. Não vamos demorar muito — disse Tarquínio para
Filomeno, atrasando-se em relação aos demais.
— Porra, meu, esses caras vão aprontar de novo — comentou Filomeno com seu
sotaque paulistano.
— Não tenho dúvida do que eles vão fazer atrás daquelas árvores. Você tem!? —
falou Rafael.
Cinco minutos depois, a tripulação do Sapão ouviu os disparos. Mais trinta minutos, e
o grupo retornou. Os agentes vinham com as pás e enxadas que haviam levado ainda sujas de terra.
Os prisioneiros ficaram. Isto é, haviam "viajado".
— Assassinos! — disse Filomeno entre dentes, após acionar o motor, sendo ouvido
apenas pelos membros da tripulação, no interfone.
— É melhor ficar calado, Lima, desculpa, Filomeno. Estes caras são capazes de tudo
— falou Rafael, procurando acautelar o companheiro dos perigos de uma atitude de rebeldia.
— Engraçado, há vários dias não consigo sintonizar a Tirana. Será que, com a
aproximação do Natal, ela resolveu dar uma colher de chá? — comentou Viola estranhando o
silêncio da rádio albanesa, cujos transtornos causados à Casa Azul já haviam virado rotina.
— Desconfio que ela desistiu. Também, quem é que vai gastar vela boa com defunto
ruim, tchê? Os comunistas sabem que essa guerra está perdida. Só faltam cair quatro pra tudo
terminar — disse Tomé, conferindo o quadro onde os três últimos X vermelhos estavam sobre os
retratos de André Guerra, o Eraldo, Rodolfo Teles, o Ananias, e Telma Camargo, a Rosa.
— É verdade. Só que pra achar esses quatro não está fácil. Os do grupamento dos
Perdidos, o Lauro, o Augusto e a Japonesa, pode ser que a gente descubra. Coloquei seis patrulhas
atrás deles, e uma está na pista de rastros promissores. Mas o tal de Zenóbio parece mágico.
Quando achamos que ele vai cair no laço, o coisa-ruim some — falou Viola.
— Quando é que o chefe vai voltar, tchê? — perguntou Tomé, mudando de assunto.
— ... foi do jeito que estou lhe contando, Dr. Nilo. O chefe da patrulha disse que
quando eles viram não acreditaram. Estavam os três lá, no pé de uma árvore, dormindo
tranquilamente. A patrulha não teve o menor trabalho — Viola relatava o episódio da captura de
Lauro, de Augusto e da Japonesa, enquanto eles se deslocavam do aeroporto de Marabá para a
Casa Azul.
— Quando foi isso? Eu estava em Brasília, no CMP, mas ninguém comentou nada
sobre estas três quedas aqui.
— Foi ontem, na parte da tarde. Só enviei a mensagem para lá hoje pela manhã,
depois que o Sapão resgatou os prisioneiros e os levou para Bacaba. O senhor devia estar a
caminho do aeroporto quando a mensagem chegou ao quartel-general.
— Será feito como determinado, Dr. Nilo — falou Viola, não ousando perguntar quais
eram as instruções da corte. Pelo que ele conhecia de Nilo, este só revelaria as tais instruções na
hora da reunião.
O chefe da Casa Azul recolheu-se a seus aposentos, enquanto Viola acionava seus
auxiliares, providenciando a expedição das mensagens para Xambioá e mandando avisar aos
demais.
— Agora, tudo depende de como vai ficar a situação aqui no Araguaia. Quanto às
aeronaves, não haverá problema. O esquadrão tem helicópteros suficientes para atender à missão
daqui e à do convênio com o Departamento Nacional de Pesquisas Minerais — disse João Pedro,
referindo-se ao órgão do Ministério das Minas e Energia condutor do Projeto Radam, uma vez que
o Ministério da Aeronáutica firmara convênio com aquela pasta para dar apoio aéreo ao referido
projeto.
— É por isso que as autoridades têm que dar logo uma definição. É incoerente
manter toda esta estrutura em Xambioá, para caçar um único remanescente, esse tal de Zenóbio!
— falou João Pedro com preocupação.
— Porra, cacete, vamos deixar que as autoridades resolvam, então. Não está no
nosso nível dar solução para o problema. Mudando de assunto, a Joaninha está louca pra ver você.
Está desesperada de saudade. Você vai vê-la hoje? — perguntou Tiago.
— Claro, né, japonês. Quero estar com a Joaninha e, depois, dar uma esticada, como
de costume, ao botequim da Janoca.
— Caralhos, hoje! Porra, mas são quatro horas da tarde! Era só o que faltava... Tá
legal, mande avisar ao Pinho. Decolagem dentro de quarenta minutos — falou João Pedro
desolado. Joaninha teria que esperar mais um dia.
O Dr. Nilo era pontual. Às oito horas da noite, ele entrou na sala de reuniões da Casa
Azul, acompanhado por Viola e Jorge. Os demais aguardavam expectantes as novas instruções que
seriam transmitidas.
— Meus senhores, boa noite — iniciou ele. — Antes mesmo de saber da queda dos
três últimos subversivos do grupamento A dos Perdidos, Brasília já havia decidido que a operação
devia ser encerrada até o dia 31 de janeiro. Com essas três quedas, só resta na área o Zenóbio, fato
que não modifica o propósito de terminarmos tudo ao final do mês As ordens são as seguintes: —
Prosseguiu ele — Primeiro, vamos reduzir drasticamente os efetivos. Sessenta por cento das tropas
da agropecuária devem retornar à sua sede, Manaus, depois de amanhã. Apenas umas oito
patrulhas, cerca de quarenta homens, permanecerão em Xambioá para serem lançadas em
atendimento aos eventuais informes que se obtenha sobre o Zenóbio. Pinho, quero que você tome
providências a esse res-peito, selecionando os que ficarão até o fim do mês. Certo?
“O efetivo da Casa Azul também será reduzido. Depois do dia 20 próximo, apenas o
pessoal da segunda seção permanece, para realizar uma missão da qual falarei dentro em pouco.
"No que diz respeito ao apoio aéreo, conversei com o Dr. Jorge aqui presente,
contaremos apenas com dois Sapões, um aqui e o outro em Xambioá, e um Paquera para fazer a
ligação, podendo estacionar aqui ou lá, como os aviadores decidirem.
"No período que vai de hoje até o dia 20, vamos, cada um na sua esfera de
responsabilidades, selecionar e destruir todos os documentos que possam vir a ser usados como
prova de que esta operação algum dia existiu.
"Do dia 20 ao dia 31, o pessoal da segunda seção vai realizar o que denominamos
'Operação Limpeza'. Esta operação tem por objetivo, literalmente, limpar a área para evitar que a
imprensa, que é muito abelhuda, venha bisbilhotar depois que formos embora e descubra corpos
enterrados por aí. Zeca e seus agentes devem, portanto, fazer um levantamento, o mais completo
possível, de onde se encontram, senão todos, mas a maioria dos subversivos mortos. Os res-tos
mortais dessa gente serão transportados para um local especial, onde ficarão livres da curiosidade
de jornalistas e repórteres ávidos por sensacionalismo. Pedi ao Dr. Jorge para lhes explicar como e
para onde se fará o traslado dessa carga. Ele fará isso agora. Os demais detalhes serão tratados
depois. O planejamento geral para o encerramento de tudo é o que lhes apresentei — concluiu
Nilo, passando a palavra a Jorge.
— Porra, o local para onde os Sapões vão levar os bonecos foi muito bem escolhido.
É muito difícil que seja descoberto por alguém, algum dia. É aqui, vejam! — disse Jorjão, apontando
o lugar na fotografia aérea da região. — Por-reta, né!!?
"Realmente, o local foi bem escolhido...", pensou João Pedro, analisando a coerência
da escolha.
— Mas existe um problema — continuou Jorge. — Se houver uma movimentação
muito grande de helicópteros para esse ponto, a população desse trecho do Araguaia — e ele
indicou no mapa — poderá desconfiar de alguma coisa. Então, porra, bolamos um esquema que
deverá ser obedecido pelos pilotos. Presta atenção, Joãozinho, pra depois você transmitir para os
outros, lá em Xambioá.
"Partindo de qualquer ponto da região, o piloto deve sempre se dirigir para este PI —
ponto de início para penetração de aeronaves numa rota de ataque aéreo. Jorge usou o termo por
analogia — donde, em voo rasante, entrará por este vale e seguirá até o local indicado. No
regresso, a rota será inversa, podendo o ponto de dispersão ser em qualquer lugar aqui ao norte,
dependendo do destino seguinte.
"Porra, vai ser uma missão foda, e eu não gostaria de estar na pele dos que vão
executá-la. Nos próximos dias, tenho que voltar para Belém para cuidar do nosso engajamento na
Operação Radam, portanto não estarei aqui, né!? Entretanto, já me entendi com o Dr. Nilo, e ele,
porra, vai tomar providências para que as tripulações recebam máscaras contra gases, pois
imagina-se que o 'perfume' não será dos mais agradáveis, né? — concluiu Jorge.
Depois disso, a reunião tomou outros rumos, com os membros da Casa Azul
discutindo questões referentes a pormenores de pouco interesse.
— Você me parece preocupada e tensa, minha querida. Houve alguma coisa que a
aborreceu? — disse o rapaz à moça que estava a seu lado, silenciosa e pensativa.
— Sim, João, esta manhã aconteceu uma coisa horrível. Não sei nem como lhe
contar... Estou envergonhada — falou Joaninha, abraçando-se a João Pedro e descansando a
cabeça em seu peito.
— Não há motivo para vergonha, Joaninha. Seja o que for, me diga — pressionou ele.
— Hoje de manhã, fui ao Armazém Barroso fazer umas compras. Quando eu estava
saindo de lá, a calçada cheia de gente, aquela mulher perdida, a tal de Isadora, ia passando. Ela me
viu e, sem mais nem menos, gritou pra mim: "Ô brancosa, o doutor João Pedro é meu!! Não se
meta a besta com o meu homem, viu, brancosa! Depois que você arreta ele, pelos cantos de muro,
ele termina a noite é lá na minha cama, viu sua branca pilantrosa..." Fiquei morta de vergonha,
João. Todo mundo ouviu. É verdade isso, que você, depois de me deixar em casa, vai dormir com
aquela perdida!?
— Joaninha — disse o rapaz, buscando palavras para explicar — não é bem assim,
sou homem, tenho necessidades...
— Oh, João, como fui burra esse tempo todo... Menti pra você, com medo de que
você me desprezasse... — disse ela, abraçando-o forte e beijando-o, um beijo úmido e sedento de
desejo.
E ali, sob o manto estrelado da noite amazônica, João e Joana uniram seus corpos.
Não como animais no cio, mas, sim, como dois seres humanos que se amavam e há muito vinham
represando o complemento natural do querer bem entre homem e mulher.
Uma coruja piou no arvoredo, única testemunha da torrente que explodia em ais, em
resfolegos de prazer, no orgasmo infinito de um átimo, na brevidade sem fim de corações em
chamas.
— Oh, Joaninha, minha querida e doce Joaninha, quanta saudade vou sentir de você!
— disse João, arrebatado de amor, porém consciente de que em breve teria que partir. Era 18 de
janeiro de 1975. O fim do mês estava próximo.
— João, não diga isso. Se você tiver que viajar, estarei aqui, esperando por você.
Como esperei em dezembro, quando você esteve fora — falou ela, ingénua, mas desconfiada de
que algo estava para acontecer.
— Não, minha querida, desta vez, infelizmente, creio que sua espera será muito mais
longa — disse ele, sem revelar toda a verdade para não a magoar.
— Esperarei quanto tempo for preciso. Quando você for embora, sei que não
esquecerá de mim, porque eu também não esquecerei de você. Onde você estiver, estarei também
em pensamento — asseverou-lhe ela com ternura.
— Sim, Joaninha, você tem razão, guardarei sempre, com muito carinho, estes
momentos lindos que tivemos juntos. Jamais esquecerei de você porque, em meio a tanta miséria e
sofrimento, você foi o único fato bom que me aconteceu em Xambioá. Acredite, você foi meu
alento para tanta coisa triste que presenciei...
— Compreendo tudo que você está dizendo, meu querido. Imagino o que pessoas
como você devem estar sentindo. O seu Jerônimo, pai da Dulcilene, nos contou muita coisa, mas
você deve saber muito mais. Porém, não vamos deixar que a maldade e os ódios estraguem esta
noite tão linda... — disse Joaninha, meiga e ternamente, acrescentando logo depois: — Está na
hora de voltarmos. Se mãe souber que estou no Poço Grande com você, a esta hora...
Na barraca do rancho, a última que seria desmontada, Tiago, Fábio, João Pedro e
Rafael conversavam.
— Puta que pariu, cacete, esta merda de máscara contra gás não resolve nada. Pra
falar no microfone, você tem que levantar a porra da máscara e, aí, entra aquele cheiro horrível no
seu nariz. Sem sacanagem, tá duro de aguentar! — disse Tiago, fazendo uma cara de repugnância.
— Vou adotar este seu método, pra ver se melhora um pouquinho. Negão, desde
que esta porra de Operação Limpeza começou, não consigo comer nada. Carne, nem pensar. Tomo
mil banhos, mas o cheiro permanece no meu nariz — disse João Pedro, com um semblante de nojo.
— Porra, hoje à noite, vou comer peixe no bar da Janoca e tomar cachaça, se vocês
querem saber. Só pinga, pra ver se dá pra esquecer este cheiro de carne podre, puta que pariu!... —
disse Fábio, abominando, como os demais, os terríveis momentos que eles estavam vivenciando,
naqueles últimos dias de operação no Araguaia.
— Pelo menos, apesar de tudo, estamos voando pra caralho. O mês ainda não
terminou, e já estou com mais de cem horas de voo — comentou João.
— Cuidado pra não ter estafa aérea, hein, Joãozinho!? — brincou o japonês.
O Sapão fez uma aproximação para a lateral direita da pista de pouso de Bacaba,
pousando no sentido leste-oeste. João Pedro cortou o motor e a equipe de agentes desembarcou
com suas ferramentas, pás, enxadões e gadanhos, este uma espécie de ancinho de cabo longo e
grandes dentes de ferro, geralmente usado para empilhar feno.
João Pedro e Rafael colocaram suas máscaras, com o lenço embebido em água-de-
colônia, e seguiram junto com os agentes. Uma espécie de curiosidade mórbida os levava a querer
presenciar a cena.
— Não é possível! — gritou um dos agentes, certa hora, ao terminar de abrir uma
cova. Todos se aproximaram para ver do que se tratava.
— Minha filha, você não quer vir por bem, vem então nos braços do papai, vem,
querida! — disse um mulato alto e forte, saltando dentro da cova e se abraçando ao cadáver.
— Vamos sair daqui, Rafael. Isso é demais para o meu estômago. Estes caras
perderam a noção de tudo. São loucos, irracionais, verdadeiras bestas... — disse João Pedro, com a
máscara levantada e o rosto num ricto de revolta. Os dois voltaram para o Sapão, completamente
transtornados.
— Observem os sujeitos que estão fazendo este trabalho imundo. Enquanto nós,
com máscaras e lenços no nariz, estamos fazendo um esforço sobre-humano para aguentar o
cheiro putrefato que impregna todo o ambiente, eles estão aí, sem qualquer aparato, como se nada
estivesse acontecendo — disse Rafael no interfone.
— Tem um deles que está fumando, tranquilamente, aqui atrás. Parece que eles
estão em viagem de turismo, rindo e brincando um com o outro — falou o mecânico de voo.
João Pedro apenas balançou a cabeça, em sinal de consternação. "Deus, onde
estou!? Esta é seguramente a pior missão da minha vida. Haverá algo mais bárbaro do que isso!?",
perguntou-se, remoendo pensamentos de revolta e nojo.
Minutos depois, o Sapão pousava a cerca de trinta metros de uma palmeira que,
aparentemente, era uma grossa carnaúba. A equipe transportou a carga macabra para o pé da
altaneira planta. Os sacos eram jogados sem qualquer outra formalidade.
— Que falta de respeito!! — Foi o único comentário que se ouviu nos fones.
Os pneus foram jogados por cima. Um agente espalhou a gasolina e outro ateou
fogo, afastando-se do local.
Depois que eles embarcaram novamente, o Sapão saiu do chão e, ainda sob o efeito
de solo, girou cento e oitenta graus, decolando no sentido inverso à aproximação.
— Não posso acreditar que isso tudo terminou, João. Parece que foi um pesadelo —
disse Rafael, acabando de fechar sua mala.
— Talvez não tenha terminado ainda, meu amigo. O Zenóbio não foi encontrado,
quem sabe o que acontecerá no futuro? — falou João Pedro, colocando na maleta um livro de
Hemingway. Triste ironia, Por Quem os Sinos Dobram — era o título da obra.
— Zenóbio! Não compartilho das idéias dele, mas tenho que admirá-lo. Lutou uma
guerra perdida, por suas convicções. Perdeu, mas será que ele é menos brasileiro que eu e você,
por pensar diferente de nós?!
— Acho que não. Admiro-o também. À sua maneira, ele buscou o melhor para o
povo. O mesmo povo, a mesma sociedade e a mesma nação de que fazemos parte. Mas chega de
filosofar. Vamos, você está pronto?
No pátio, Joaninha esperava João Pedro. Ela não permitiria que ele fosse embora,
sem que se despedissem.
— Volte um dia para me ver, João — disse ela, uma lágrima silenciosa correndo-lhe
pela face.
— Quem sabe um dia, minha querida!? — falou ele, colocando um beijo na face
úmida da moça.
Ela fez que sim com a cabeça. Os dois se abraçaram. O último abraço.
— Adeus...
João Pedro entrou no helicóptero, sentou-se no seu posto de comando e deu partida
na máquina.
— Acelerando para seis mil, TIT normal — disse ele, referindo-se à temperatura dos
gases da turbina.
— Centro Belém, Força Aérea oito meia cinco quatro, plano de voo visual, de
Xambioá para Belém, nível zero sete cinco, tempo estimado zero quatro horas mais dez minutos,
autonomia zero seis horas mais vinte minutos... — transmitia Rafael, pelo HF, àquele órgão de
controle de tráfego aéreo, o plano de deslocamento da última aeronave do 1º EMRA a deixar
Xambioá, após um ano e quatro meses de operação.
O UH-1H atravessou o rio Araguaia com proa norte, subindo. A dois mil pés,
estabilizou, mantendo a altitude.
— Ainda não, quero fazer uma passagem baixa ali na frente, antes de seguirmos
definitivamente para Belém — respondeu o comandante.
João Pedro inclinou para a direita, iniciando uma curva de trezentos e sessenta graus,
bem aberta, para poder observar.
Eles estavam circulando, a duzentos ou trezentos pés, sobre o ponto mais alto da
extremidade sul da Serra das Andorinhas, único relevo geográfico digno de nota em toda a região.
Não era uma serra propriamente. Era mais um serrote, onde nasciam diversos afluentes do
Saranzal e do Araguaia.
— Sim, meu amigo Parise, é impossível esquecer esse lugar. Ali estão os restos
mortais de meia centena de jovens que um dia sonharam um Brasil melhor. Que Deus tenha
compaixão por eles!! — disse João Pedro, emocionado. Uma lágrima rolou. O aviador ergueu a
viseira de seu capacete e enxugou-a com as costas de sua luva de voo.
— Não, não é preciso. Já vai passar. É apenas uma dor, lá no fundo da alma... —
respondeu o comandante.
Uma dor que venho guardando, no fundo de minha alma, por quase vinte anos. Eu
disse ao meu amigo Parise que ela ia passar, mas não passou!
Quem sabe agora, ao terminar de escrever este livro, possa eu remir, ao menos em
parte, o sofrimento que abriguei por tanto tempo neste meu coração pungido...
FIM
Marcadores: Xambioá
1 comentários:
A verdade dos fatos sobre nossa história recente é feita de depoimentos francos
como esse.
Grande abraço.
22 de novembro de 2008 18:42
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