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Bianca Walsh1
RESUMO: Este artigo tem por objetivo a comparação entre a Análise de Discurso
peucheutiana e a Análise Crítica do Discurso de Fairclough. São consideradas suas
concepções de discurso e sujeito, assim como suas implicações no quadro analítico
de cada corrente. Essa comparação é relevante para a avaliação da coerência interna
de cada programa científico analisado, sem a pretensão de juízos de valor absolutos
como melhor e pior. No limite, a intenção é fornecer um panorama das correntes para
que os analistas se posicionem de acordo com seus objetivos específicos de pesquisa.
Palavras-chave: análise de discurso pecheutiana; análise crítica de discurso de
Fairclough; conceitos de sujeito e discurso; quadro analítico.
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A autora é doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense. Seus interesses
são gêneros do discurso, argumentação e ensino de línguas para fins específicos com ênfase no discurso
científico.
INTRODUÇÃO
mudanças. Sobre isso, Hall (1998, p. 21) argumenta: “Uma vez que a identidade
muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a
identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se
politizada.” Essa perspectiva de sujeito filia-se à epistemologia do Realismo Crítico.
Todos os componentes da vida social estão em interação mediada constantemente,
mas não são redutíveis uns aos outros. Pensa-se em articulação, em vez de deter-
minação. A estrutura não determina o sujeito; ela constitui e é constituída por
ele: “dualidade da estrutura” (GIDDENS, 1989 apud RESENDE; RAMALHO,
2006, p. 34).
Trata-se de um sujeito localizado na modernidade tardia, elemento importante
de reflexão na ACD. Alguns traços desse período contribuem para essa visão de
sujeito (HALL, 1998, p. 7-9; FAIRCLOUGH, 2006, p. 33-34). Primeiro, o fato de
que na pós-modernidade a tradição não tem o mesmo papel que tinha em estabilizar
identidades e posições sociais. Segundo, o sujeito pós-moderno está constantemente
em busca de uma auto-identidade. Essa busca, no entanto, é atravessada por uma
“reflexividade”, resultante de um novo estado social imerso na informação e nos
“sistemas de especialidades” (conhecimento). Há uma ruptura com a “identidade
mestra da classe social”, que seria um pressuposto para o pensamento de estrutu-
ralistas como Althusser. A classe social não pode determinar uma identidade una e
fixa. O sujeito pós-moderno é necessariamente fragmentado, constituído de várias
identidades contraditórias, que se rearranjam politicamente. A instabilidade está na
articulação dessas identidades, que dependerá do momento social.
Esse sujeito é simultaneamente constituído e constitutivo do social, das estrutu-
ras, da ideologia e da ordem hegemônica. Nessa perspectiva, o conceito de hegemonia
é de extrema importância para se entender discurso. Por ora, é possível perceber
que a visão de sujeito na ACD é coerente com a semântica de ação na definição de
discurso. Não se trata de um sujeito autônomo e “senhor do seu dizer”, mas que
pode operar mudanças no discurso pela sua natureza também política.
Da mesma forma, a língua é simultaneamente constitutiva e constituída pelo
social. Os significados são inerentemente instáveis porque são históricos (HALL,
1998, p. 38-39). Não se pode, então, admitir sistemas linguísticos isolados na sua
interioridade, mas em constituição dialética com o social (RESENDE e RAMALHO,
2006, p. 45-47). A ACD concretiza essa visão teórica na parceria com a Linguística
Sistêmico-Funcional de Halliday, que pensa língua na interdependência forma/
função.
O discurso, seguindo nessa esteira dialética, é articulado com outros elementos
do social. Ele é pensado como um dos momentos da prática social. Essa articulação
se desdobra para cima em redes de práticas sociais (esquema sobre as redes de práticas
c.f. RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 42). As articulações são de especial interesse
para a ACD, porque é nelas que são encontradas as brechas para mudanças sociais.
Isso significa, em última instância, que as relações de poder materializadas nessas
articulações são instáveis. A noção de hegemonia, então, é de grande relevância:
Temos visto, então, que o discurso nas correntes teóricas estudadas nas seções
1 e 2 não é autônomo, é materialidade simbólica da ideologia e se materializa na
língua. As diferenças entre as perspectivas se dão na relação entre discurso e sujeito
e na relação discurso e social (historicidade).
As duas palavras que opõem as correntes na definição de discurso são AÇÃO
(ACD) e EFEITO (AD). A noção de ação pressupõe um sujeito que pode ser criativo
no seu meio sócio-histórico. Para a ACD, as condições da pós-modernidade fazem
desse sujeito o resultado de uma busca reflexiva de auto-identidade. A identificação
é fragmentada e contraditória, mas se direciona politicamente de acordo com o
momento social. Trata-se de um sujeito político.
A noção de efeito, por outro lado, demonstra claramente a impossibilidade
de qualquer controle do sujeito. Ele é determinado historicamente. Além do mais,
o discurso e o sujeito se constituem simultaneamente no ato do dizer. Isso porque
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de estudo é externo.
A respeito dos quadros analíticos, para a ACD, o quadro analítico será tri-
dimensional. Ele une o texto (linguístico) à prática social, mediados pela prática
discursiva. Esta última diz respeito à produção e à compreensão dos textos, que
são as formas mesmas em que o texto atua no social. Essa interação do linguístico
e do social através do discurso é materializada num aparato analítico consonante,
a LSF. Integrando forma e função, a LSF estabelece que a língua sempre terá três
funções básicas, que serão lidas na ACD como significados básicos: representacional,
identificacional e acional. A análise contará sempre com essas três categorias que se
referem, respectivamente, a: formas de representação dos aspectos do mundo (ligado
a discursos, no sentido de representações particulares das coisas, como o discurso
feminista); construção e negociação de identidades (ligado a estilos); e modo de
interação, forma do texto (ligado a gêneros). A ACD parece ter o interesse de cada
vez mais atuar em cooperação com a LSF, na medida em que seus pressupostos
básicos se afinizam. Percebe-se que esse entendimento permite a concretização no
instrumento analítico da crença de dupla constituição entre o linguístico e o histórico.
Fairclough (2001, p. 36) resume o modo de análise da ACD
A análise do texto é uma análise de forma-e-significado
– formulo isto dessa maneira para enfatizar sua interde-
pendência necessária. Como indiquei acima, qualquer texto
pode ser tomado como um entrelaçamento dos significados
“ideacional”, “interpessoal” e “textual”. Seus domínios são
respectivamente a representação e a significação do mundo e
da experiência, a constituição (estabelecimento, reprodução,
negociação) das identidades dos participantes e as relações
sociais e pessoais entre eles, e a distribuição da informação
dada versus nova e da informação foco versus aquela de
pano de fundo (no sentido mais amplo). [...] A análise desses
significados entrelaçados nos textos desce necessariamente
até a análise das formas dos textos, incluindo suas formas
genéricas (a estrutura geral de, por exemplo, uma narrativa),
sua organização dialógica (em termos, por exemplo, de
tomadas de turno), relações coesivas entre frases e relações
entre as orações em frases complexas, a gramática da oração
( incluindo questões de transitividade, modo e modalidade),
e o vocabulário.
Na AD, trabalha-se com dois dispositivos: o teórico e o analítico. O teórico
diz respeito às noções básicas que operam nessa perspectiva, tais como: de discurso,
de sujeito, de Formação Discursiva, etc. Vale lembrar que essas noções estão no
entremeio das filiações epistemológicas do materialismo histórico, da psicanálise,
do entendimento de ideologia na linguagem de Foulcault. O dispositivo teórico
determinará o dispositivo analítico.
Visto que o discurso nessa perspectiva é objeto teórico e que a análise é um
modo de leitura possível, o dispositivo analítico variará conforme o material ana-
lisado e o objetivo do analista. Trata-se de objeto simbólico e trabalho simbólico.
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Não é o texto, portanto, tomado como unidade empírica de análise, mas como
unidade “material”, ou seja, na sua discursividade, isto é, investido de historicidade.
O resultado da análise é, então, interpretado à luz do dispositivo teórico. Vejamos
como Orlandi (2006, p. 16-17) esquematiza tudo isso
O analista então fará o seguinte percurso:
Em um primeiro passo da análise, ele toma o material
bruto lingüístico como tal (o corpus, os textos) e por
um primeiro lance de análise ele procederá à de-su-
perficilização desse material, sua de-sintagmatização.
Obterá assim o que chamamos o objeto discursivo. O
objeto discursivo corresponde ao material analisado,
mas já resulta de um passo de análise. Nele já começa-
mos a pressentir o desenho das formações discursivas
que presidem a organização do material. Em um
segundo passo da análise agora o analista trabalha
sobre o objeto discursivo procurando determinar que
relação este estabelece com as formações ideológicas.
Chegamos assim ao processo discursivo. Quando co-
nhecemos o processo discursivo podemos dispensar o
material de análise inicial, pois estaremos de posse do
funcionamento discursivo que pode ser generalizado
para outros conjuntos de materiais, outros textos.
Como se lê no trecho, de posse do funcionamento discursivo, é possível a gene-
ralização para outros textos – necessário lembrar que discurso se dispersa em textos.
No entanto, essa não é uma generalização como se entende nas práticas científicas
tradicionais, sob o crédito da validade; mas uma generalização resultante do processo
de compreensão da análise (da relação entre o que se analisa e o dispositivo teórico),
que é, por sua vez, sempre determinada ideologicamente pela posição discursiva que
o próprio analista ocupa. Aliás, esse entendimento é essencial para a AD pecheutiana
e será explorado, quando discutirmos a reflexão sobre a prática de análise.
Em suma, quanto ao aparato analítico, a ACD trabalha com um aparato cons-
tante para análise, resultante da complementação entre LSF e ACD. Tal aparato ma-
terializa a crença de que o linguístico (texto) e o social (prática social) estão mediados
pelo simbólico (prática discursiva). Trabalha com o simbólico e sua relação com os
componentes do evento social. Em contrapartida, a AD trabalha no simbólico, seu
objeto mesmo é teórico. Por isso o aparato analítico varia de acordo com a análise.
Nesse universo simbólico, os componentes parecem ser redutíveis uns aos outros.
Não se pensa exterioridade, porque ela está investida no discurso, não se toma o
texto como unidade empírica, mas como unidade já investida de historicidade.
No que se refere ao objetivo da ACD, para além de entender as relações assimé-
tricas de poder naturalizadas na ordem discursiva, ela se presta a um instrumento de
mudança social. É um recurso de luta contra ordens hegemônicas. Para entender isso,
importa levar em consideração o conceito de hegemonia como fundamentado em
articulações relativamente estáveis e cujo mecanismo de manutenção é antes baseado
no consenso do que na força, ou qualquer mecanismo coercitivo. A desnaturalização
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CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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blico: as universidades. In: MAGALHÃES, C. (Org.). Reflexões sobre a análise crítica do discurso.
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