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COLEÇÃO AGENDA BRASILEIRA

NEM PRETO
NEM BRANCO,
MUITO PELO
CONTRÁRIO
COR E RAÇA
NA SOCIABILIDADE
BRASILEIRA
Lilia Moritz Schwarcz

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Copyright © 2012 by Lilia Moritz Schwarcz

Grafia atualizada segundo o Acordo


Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

CAPA E PROJETO GRÁFICO


warrakloureiro

FOTO DE CAPA
Arquivo do Estado de São Paulo/
Fundo Última Hora

PREPARAÇÃO
Alexandre Boide

ÍNDICE REMISSIVO
Luciano Marchiori

REVISÃO
Ana Luiza Couto
Jane Pessoa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Schwarcz, Lilia Moritz
Nem preto nem branco, muito pelo contrário : cor e raça
na sociabilidade brasileira / Lilia Moritz Schwarcz. — 1ª- ed.
— São Paulo : Claro Enigma, 2012.
isbn 978-85-8166-023-3

1. Brasil — Relações raciais 2. Miscigenação I. Título.


12-11780 cdd -305.800981

Índice para catálogo sistemático:


1. Brasil : Relações raciais : Sociologia 305.800981

[2012]
Todos os direitos desta edição reservados à
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Telefone: (11) 3707-3531
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SUMÁRIO

Histórias de miscigenação e outros contos 10


O laboratório racial brasileiro 20
Raça e silêncio 30
Pela história: um país de futuro branco
ou branqueado 37
Nos anos 1930 a estetização da democracia
racial: somos todos mulatos 45
Nas falácias do mito: falando da desigualdade racial 69
Cultura jurídica: raça como silêncio e como afirmação 79
Quando a desigualdade é da ordem da intimidade
e escapa à lei 88
Censo e contrassenso: nomes e cores
ou quem é quem no Brasil 97
Para terminar: “a descendência da falta,
ou levando a sério o mito” 107

NOTAS 121
BIBLIOGRAFIA 132
SOBRE A AUTORA 137
ÍNDICE REMISSIVO 139
CRÉDITOS DAS IMAGENS 147

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NEM PRETO
NEM BRANCO,
MUITO PELO*
CONTRÁRIO
COR E RAÇA
NA SOCIABILIDADE
BRASILEIRA

* Este texto representa uma releitura e atualização de alguns outros ensaios


de minha própria autoria, que fui publicando ao longo dos anos. Em primeiro
lugar, é largamente pautado no ensaio homônimo a este, e escrito original-
mente para o quarto volume da História da vida privada no Brasil: Contras-
tes da intimidade contemporânea (São Paulo: Companhia das Letras, 1998).
Em segundo lugar, apresenta reflexões presentes no ensaio “Nina Rodrigues:
um radical do pessimismo”, parte da coletânea Um enigma chamado Brasil,
coordenada por André Botelho e por mim (Companhia das Letras, 2009).

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HISTÓRIAS DE MISCIGENAÇÃO E OUTROS CONTOS

O livro Contos para crianças, publicado no Brasil em 1912 e na


Inglaterra em 1937,1 contém uma série de histórias cujo tema
central é muitas vezes o mesmo: como uma pessoa negra
pode tornar-se branca. Esse é, também, o núcleo narrativo do
conto “A princesa negrina”. Na história — que parece um mis-
to de “Bela Adormecida”, “A Bela e a Fera” e “Branca de Neve”,
tudo isso aliado a narrativas bíblicas nos trópicos —,
um bondoso casal real lamenta-se de sua má sorte: depois de
muitos anos de matrimônio, Suas Majestades ainda não ha-
viam sido presenteadas com a vinda de um herdeiro. No en-
tanto, como recompensa por suas boas ações — afinal, nos
contos de fadas os reis e cônjuges legítimos são sempre gene-
rosos —, o casal tem a oportunidade de fazer um último
pedido à fada madrinha. E é a rainha que, comovida, excla-
ma: “Oh! Como eu gostaria de ter uma filha, mesmo que
fosse escura como a noite que reina lá fora”. O pedido conti-
nha uma metáfora, mas foi atendido de forma literal, pois
nasceu uma criança “preta como o carvão”. E a figura do
bebê escuro causou tal “comoção” em todo o reino que a
fada não teve outro remédio senão alterar sua primeira dádi-
va: não podendo transformar “a cor preta na mimosa cor de
leite”, prometeu que, se a menina permanecesse no castelo
até seu aniversário de dezesseis anos, teria sua cor subita-
mente transformada “na cor branca que seus pais tanto al-
mejavam”. Contudo, se desobedecessem à ordem, a profecia
não se realizaria e o futuro dela “não seria negro só na cor”.
Dessa maneira, Rosa Negra cresceu sendo descrita pelos
poucos serviçais que com ela conviviam como “terrivelmen-
te preta”, mas, “a despeito dessa falta, imensamente bela”.
Um dia, porém, a pequena princesa negra, isolada em seu
palácio, foi tentada por uma serpente, que a convidou a sair
pelo mundo. Inocente, e desconhecendo a promessa de seus
pais, Rosa Negra deixou o palácio e imediatamente conheceu

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o horror e a traição, conforme previra sua madrinha. Em
meio ao desespero, e tentando salvar-se do desamparo, con-
cordou, por fim, em se casar com “o animal mais asqueroso
que existe sobre a Terra” — “o odioso Urubucaru”. Após a
cerimônia de casamento, já na noite de núpcias, a pobre
princesa preta não conseguia conter o choro: não por causa
da feição deformada de seu marido, e sim porque nunca
mais seria branca. “Eu agora perdi todas as esperanças de
me tornar branca”, lamentava-se nossa heroína diante de seu
não menos desafortunado esposo. Nesse momento, algo sur-
preendente aconteceu: “Rosa Negra viu seus braços envolve-
rem o mais belo e nobre jovem homem que já se pôde imagi-
nar, e Urubucaru, agora o Príncipe Diamante, tinha os meigos
olhos fixos sobre a mais alva princesa que jamais se vira”.
Final da história: belo e branco, o casal conheceu para sem-
pre “a real felicidade”.2
Dizem que “quem conta um conto aumenta um ponto”.
Se o dito é verdadeiro, a insistência na ideia de branquea-
mento, o suposto de que quanto mais branco melhor, fala
não apenas de um acaso ou de uma ingênua coincidência em
uma narrativa infantil, mas de uma série de valores disper-
sos na nossa sociedade e presentes nos espaços pretensa-
mente mais impróprios. A cor branca, poucas vezes explicita-
da, é sempre uma alusão, quase uma bênção; um símbolo
dos mais operantes e significativos, até os dias de hoje.
Afinal, desde que o Brazil é Brasil, ou melhor, quando era
ainda uma América portuguesa, o tema da cor nos distin-
guiu. Os primeiros viajantes destacavam sempre a existência
de uma natureza paradisíaca, mas lamentavam a “estranhe-
za de nossas gentes”. Muito se comentou sobre essas novas
gentes desse igualmente novo mundo, mas do lado dos rela-
tos ibéricos o mais famoso é talvez o do viajante português
Gândavo, que deu forma canônica ao debate que, desde Ca-
minha e Vespúcio, mencionava a ambivalência entre a exis-
tência do éden ou da barbárie nessas terras perdidas. O Brasil

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seria o paraíso ou o inferno? Seus habitantes, ingênuos ou
viciados? Ou seja, a presença do motivo edênico e paradisía-
co da terra começou com os primeiros europeus que dela se
acercaram. Está presente já em Caminha, e logo depois em
1503, na carta de Américo Vespúcio, que ficou conhecida
como Mundus novo — na qual declarou que o paraíso terreal
não estaria longe dessas terras —, e também em Gândavo,
em sua História da Província de Santa Cruz de 1576, que des-
creveria o país a partir de sua fertilidade e de seu clima
ameno e receptivo.3 Mas Gândavo também seria autor de
uma máxima que definiria de forma direta não tanto a natu-
reza do Brasil, mas seus naturais: povos sem F, sem L e sem
R: sem fé, sem lei, sem rei. Pero Magalhães de Gândavo,
provavelmente um copista da Torre do Tombo, um criado e
moço da Câmara de d. Sebastião e, por fim, um provedor da
fazenda em 1576, discorreu sobre essa “multidão de bárba-
ros gentios”. Não se sabe ao certo quem teria sido Gândavo,
assim como não se tem absoluta certeza de sua estada no
Brasil, mas o fato é que o próprio Pero Magalhães, na dedi-
catória a d. Luis Pereira, confessa ter escrito sua história
como “testemunha vista”. Além do mais, por ocasião da de-
dicatória do Tratado da Província do Brasil a d. Catarina, rai-
nha de Portugal, declara o autor tê-lo feito para dar “novas
particulares destas partes a V. A. onde alguns anos me achei
e coligi esta breve informação na maior parte das coisas que
aqui escrevi e experimentei”.4 Portanto, muita fábula cerca
esse relato, cuja veracidade e a própria ideia de viagem pare-
cem estar em questão. Existem duas versões de seu livro,
cujo título definitivo viria a ser História da Província de San-
ta Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, possivelmente
publicado entre 1570-2. O Tratado deve ter sido escrito antes
da História, mas de toda maneira a versão mais acabada
aparece em 1576, publicada em Lisboa.
No Tratado, Gândavo fala rapidamente do descobrimen-
to, dá o nome dos donatários, menciona plantas, frutos, ani-

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mais, bichos venenosos, aves e peixes, comenta os naturais
da terra, e termina seu relato elevando os louvores e as
grandezas da terra. O livro logo se tornou, porém, uma rari-
dade, quem sabe por conta do receio que tinham os portu-
gueses de que as riquezas da terra fossem descobertas e di-
fundidas. Afinal, Gândavo começa seu relato com um “prólo-
go ao leitor”, no qual afirma que sua intenção é “denunciar
em breves palavras a fertilidade e abundância da terra do
Brasil, para que essa fama venha à notícia de muitas pessoas
que nestes reinos vivem com pobreza e não dividam escolhê-
-la para seu remédio: porque a mesma terra é tão natural e
favorável aos estranhos que a todos agasalha e convida
como remédio”.5 Essa era uma boa propaganda para portu-
gueses desempregados e à procura de aventuras, mas era
também, e infelizmente, um sinaleiro poderoso que alertava
os inimigos, sobretudo franceses e ingleses, de olho nas ter-
ras divididas entre as coroas de Portugal e Espanha.
Gândavo em geral elogia a natureza local, as “qualidades
da terra”, menciona o clima e a terra fértil e viçosa, a clarida-
de do sol, as águas sadias para beber e finalmente “esta terra
tão deleitosa e temperada que nunca nela se sente frio nem
quentura sobeja”. Sobre os “mantimentos da terra”, destaca o
uso da mandioca, com o que fazem bolos e pão fresco, legu-
mes, leite de vaca, arroz, fava, feijões. E conclui: “legumes
não faltam […] há muita abundância de marisco e de peixe
por toda esta Costa; com estes mantimentos se sustentam os
moradores do Brasil sem fazerem gastos nem diminuírem
nada em suas fazendas”.6 Algo semelhante diz da caça e das
frutas da terra: sempre abundantes no caso das frutas, as
mais saborosas e variadas. Como se vê, todo o tom do livro é
de clara propaganda da colônia do reino. Essa seria mesmo a
terra da abundância e de uma eterna primavera.
No entanto, quando começa a falar dos índios locais,
Gândavo parece bem mais cuidadoso em seus elogios. Co-
meça dizendo: “Não se pode numerar nem compreender a

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multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda
essa terra do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão den-
tro caminhar seguro, nem passar por terra onde não ache
povoações de índios armados contra todas as nações huma-
nas e, assim, como são muitos, permitiu Deus que fossem
contrários uns aos outros, e que houvessem entre eles gran-
des ódios e discórdias, porque se assim não fosse os portu-
gueses não poderiam viver na terra nem seria possível con-
quistar tamanho poder de gente”. E continua mais à frente:
“a língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três
letras — scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa
digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem
Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamen-
te”.7 Povos sem F, L, R — sem fé, nem lei, nem rei —, eis a
representação desses “naturais”, caracterizados a partir da
noção da “falta”.
Seus costumes também causavam estranhamento: “an-
dam nus sem cobertura alguma, assim machos e fêmeas;
não cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem desco-
berto quanto a natureza lhes deu”.8 Se por um lado a nature-
za era edenizada, os “naturais” não passavam no crivo do
viajante. Gândavo também lamenta o fato de serem sempre
“muito belicosos”. Explica como tratam os prisioneiros, men-
ciona as cordas que os amarram e como o atam pela cinta.
Descreve ainda como os matam e os comem — “isto mais
por vingança e por ódio que por se fartarem”. Diz ainda que,
se a moça que dormiu com o cativo estiver prenhe, “aquela
criança que pare depois de criada, matam-na e comem-na”.9
De fato, Gândavo parecia não mostrar qualquer identificação
com os selvagens brasileiros, afirmando: “finalmente que
soa estes índios muito desumanos e cruéis, não se movem a
nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem
nem concerto de homens, soam muito desonestos e dados à
sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não
houvera razão de humanos […] Todos comem carne humana

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e tem-na como a melhor iguaria de quantas pode haver […]
Estes índios vivem muito descansados, não têm cuidado de
coisa alguma senão de comer e beber e matar gente; e por
isso são muito gordos em extremo: e assim também com
qualquer desgosto emagracem muito: e como se agastam de
qualquer coisa comem terra e desta maneira morrem muitos
deles bestialmente”.10
Como se vê, ao descrever os indígenas brasileiros como
“atrevidos, sem crença na alma, vingativos, desonestos e da-
dos à sensualidade”, Gândavo estabelecia uma distinção fun-
damental entre a terra e seus homens: a edenização de um
lado, o inferno de outro. O modelo era evidentemente etno-
cêntrico, e o que não correspondia ao que se conhecia era
logo traduzido como ausência ou carência, e não como um
costume diverso ou variado.
Diferente seria o relato de Montaigne, que em seu texto
“Os canibais”, ao discutir a maneira como os Tupinambás
faziam a guerra, não só elogiou os “brasileiros”, os quais,
segundo ele, pelo menos sabiam por que lutavam, como, na
esteira de viajantes como Jean de Lerys, passou a ver na
América o alvorecer de uma nova humanidade. Informado
do contexto das Guerras de Religião na Europa, o filósofo
francês realiza um exercício de relatividade, encontrando
mais lógica na maneira como os Tupinambás realizavam a
guerra do que nos hábitos ocidentais: “Mas, voltando ao
assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que di-
zem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera
bárbaro o que não pratica em sua terra”. Muitas são as in-
terpretações possíveis desse famoso ensaio. No nosso caso,
importa sublinhar a construção de uma representação mais
laudatória dessas gentes, tendo por base (e sombra) as
guerras de religião que assolavam a Europa no século xvi:
“Por certo em relação a nós são realmente selvagens, pois
entre suas maneiras e as nossas há tão grande diferença
que ou o são ou o somos nós”.11

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Montaigne teria concebido seu texto apoiado nos diálo-
gos que estabeleceu com alguns índios que se haviam radica-
do no continente europeu após a festa em Rouen.12 O fato é
que a noção de diferença movimentava a imaginação de
lado a lado e, enquanto os europeus indagavam pela alma
dos indígenas e os traziam à Europa para deleite da “civiliza-
ção”, os nativos do Brasil afundavam os brancos em lagos a
fim de entender se possuíam corpo ou não.13
Essa imagem, e a estranheza diante do “homem brasilei-
ro”, continuaria forte enquanto representação, e seria in­
clusive potencializada quando, em pleno século xviii, J.-J.
Rousseau defende a ideia do “bom selvagem”. Tal qual uma
idealização por contraposição, o nativo americano (e em es-
pecial sul-americano) surgia no Discurso sobre a origem e o
fundamento da desigualdade entre homens (1775) como um
modelo melhor para pensar a civilização ocidental do que
sua própria natureza. O “bom selvagem” representava, aliás,
um exemplo de humanidade ainda não conspurcada, pura
em sua essência e positividade.
O importante é que no século xviii a questão da diferença
entre os homens é retomada tendo como referência o “homem
americano”. Mais uma vez, porém, as posições não foram uní-
vocas. De um lado, afirmava-se um tipo de postura que advo-
gava o voluntarismo iluminista e a ideia de “perfectibilidade
humana” — a capacidade que qualquer ser humano tem de
chegar à virtude ou mesmo de negá-la —, sem dúvida um dos
maiores legados dos ideais da Revolução Francesa. Ao mesmo
tempo, Humboldt com suas viagens não só restituía o “senti-
mento de natureza” e sua visão positiva da flora americana
como opunha-se às teses mais detratoras, que negavam aos
indígenas “a capacidade de civilização”.
De outro lado, nesse mesmo contexto, tomam força cor-
rentes mais pessimistas, que anunciam uma visão negativa
acerca desses povos e de seu território. Em 1749 chegam a
público os três primeiros volumes da Histoire naturelle do

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conde de Buffon, que lançava a tese sobre a “debilidade” ou
“imaturidade” do continente americano. Partindo da observa-
ção do pequeno porte dos animais existentes na América e do
aspecto imberbe dos nativos, Buffon pretendia ter encontrado
um continente infantil, retardado em seu desenvolvimento
natural: “Vejamos então por que existem répteis tão grandes,
insetos tão gordos, quadrúpedes tão pequenos e homens tão
frios nesse novo mundo. O motivo é a qualidade da terra, a
condição do céu, o grau de calor e umidade, a situação e ele-
vação das montanhas, a qualidade das águas correntes ou pa-
radas, a extensão das florestas, e sobretudo o estado bruto em
que a natureza se encontra”.14 Na visão do naturalista, por-
tanto, a natureza não se mostrara pródiga, ou ainda vital e
repleta de energia criadora, naquele local. E é assim que a
designação “Novo Mundo” passava a se referir mais à forma-
ção telúrica da América do que ao momento da colonização.
Buffon não representa, porém, um exemplo isolado. No
ano de 1768 o abade Corneille de Pauw editava em Berlim
Recherches philosophiques sur les américans, ou Memoires in-
teressants pour servir à l’histoire de l’espèce humaine, em que
retomava as noções de Buffon, mas radicalizando-as. O autor
introduzia um viés original ao utilizar a noção de “degenera-
ção” para designar o novo continente e suas gentes. Assola-
dos por uma incrível preguiça e pela falta de sensibilidade,
por uma vontade instintiva e uma evidente fraqueza mental,
esses homens seriam “bestas decaídas”, muito afastadas de
qualquer possibilidade de perfectibilidade ou civilização.
Ganhavam forma, dessa maneira, duas imagens mais ne-
gativas: a de um mundo gasto e degradado, de um lado, e a de
um mundo inacabado e imaturo, de outro. Nesta última pers-
pectiva se associará Hegel, com a sua interpretação sobre as
duas Américas: a anglo-saxônica e a ibérica, ou latina. Tam-
bém nesse período, incentivados pelo rei Maximiliano José i
da Baviera, o zoólogo J. Baptiste von Spix e o botânico Carl
Friedrich P. von Martius realizariam uma grande viagem pelo

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Brasil, que se iniciaria em 1817 e terminaria em 1820, após
terem sido percorridos mais de 10 mil quilômetros. O resulta-
do é uma obra de três volumes intitulada Viagem ao Brasil
(1834) e vários subprodutos, como O estado do direito entre os
autóctones do Brasil (1832). Sobretudo neste último texto,
Martius desfila as máximas de De Pauw ao afirmar que: “per-
manecendo em grau inferior da humanidade, moralmente,
ainda na infância, a civilização não altera o primitivo, ne-
nhum exemplo o excita e nada o impulsiona para um nobre
desenvolvimento progressivo”.15 Dessa forma, apesar do elo-
gio à natureza tropical, contido nos relatos desses “viajantes
filósofos”, a humanidade daquele local parecia representar
algo por demais diverso para que a percepção europeia en-
contrasse local certeiro, ou mesmo humanizado, em sua defi-
nição, mostrando-se mais disposta a apontar o exótico do que
dar lugar à alteridade. A América não era apenas imperfeita,
mas também decaída, e assim estava dado o arranque para
que a tese da inferioridade do continente, e de seus homens,
viesse a se afirmar a partir do século xix.
O fato é que, seja nas versões mais positivas, seja nas evi-
dentemente negativas, esse então Novo Mundo sempre foi “um
outro”, marcado por suas gentes com costumes tão estranhos.

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