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O que é a língua portuguesa?

O PORTUGUÊS é a língua que os portugueses, os brasileiros, muitos africanos e alguns


asiáticos aprendem no berço, reconhecem como património nacional e utilizam como
instrumento de comunicação, quer dentro da sua comunidade, quer no relacionamento com as
outras comunidades lusofalantes.
Esta língua não dispõe de um território contínuo (mas de vastos territórios separados, em
vários continentes) e não é privativa de uma comunidade (mas é sentida como sua, por igual,
em comunidades distanciadas). Por isso, apresenta grande diversidade interna, consoante as
regiões e os grupos que a usam. Mas, também por isso, é uma das principais línguas
internacionais do mundo.
É possível ter percepções diferentes quanto à unidade ou diversidade internas do português,
conforme a perpectiva do observador.
Quem se concentrar na língua dos escritores e da escola, colherá uma sensação de unidade.
Quem comparar a língua falada de duas regiões (dialectos) ou grupos sociais (sociolectos) não
escapará a uma sensação de diversidade, até mesmo de divisão.

Unidade

Uma língua de cultura como a nossa, portadora de longa história, que serve de matéria prima e
é produto de diversas literaturas, instrumento de afirmação mundial de diversas sociedades,
não se esgota na descrição do seu sistema linguístico: uma língua como esta vive na história,
na sociedade e no mundo.
Tem uma existência que é motivada e condicionada pelos grandes movimentos humanos e,
imediatamente, pela existência dos grupos que a falam.
Significa isto que o português falado em Portugal, no Brasil e em África pode continuar a ser
sentido como uma única língua enquanto os povos dos vários países lusofalantes sentirem
necessidade de laços que os unam. A língua é, porventura, o mais poderoso desses laços.
Diz, a este respeito, o linguista português Eduardo Paiva Raposo:

A realidade da noção de língua portuguesa, aquilo que lhe dá uma dimensão qualitativa
para além de um mero estatuto de repositório de variantes, pertence, mais do que ao
domínio linguístico, ao domínio da história, da cultura e, em última instância, da
política. Na medida em que a percepção destas realidades for variando com o decorrer
dos tempos e das gerações, será certamente de esperar, concomitantemente, que a
extensão da noção de língua portuguesa varie também.
[Algumas observações sobre a noção de "língua portuguesa", Boletim de Filologia, 29,
1984, 592]

Diversidade

A diversidade linguística que o português apresenta através do seu enorme espaço


pluricontinental é, inevitavelmente, muito grande e certamente vai aumentar com o
tempo.
Os linguistas acham-se divididos a esse respeito: alguns acham que, já neste momento,
o português de Portugal (PE) e o português do Brasil (PB) são línguas diferentes; outros
acham que constituem variedades bastante distanciadas dentro de uma mesma língua.
Consulte, a este respeito, o Fórum dos Linguistas.

Unidade e diversidade da língua portuguesa


Celso Cunha defende flexibilidade normativa:

No particular (...), o nosso pensamento coincide com o que há tempos externou Diego Catalán
Menéndez-Pidal com relação à unidade superior da língua espanhola:

«A unidade da língua não exige a imposição de uma norma única. Longe de favorecer uma
política idiomática que propugne o ensino de uma ortologia rígida e artificiosa em todo o âmbito
do espanhol,

escreve ele,julgo que se deve reconhecer como característica essencial da língua espanhola
sua enorme liberdade normativa.»

E acrescenta:

«poder-se-ia chegar ao reconhecimento de uma básica diversidade de normas linguísticas


dentro da língua espanhola, não só no campo léxico e no campo fonético, mas também no
sintático. Esse liberalismo normativo livraria grandes setores da população hispano-falante da
inútil e deformante carga provocada pela aprendizagem na própria língua materna de todo um
conjunto de “normas” estranhas completamente ao seu saber linguístico prévio. O ensino do
idioma, concebido então como científica reflexão sobre um sistema e uma norma cujo
conhecimento pré-científico se possui de antemão, conseguiria do falante comum uma
correção linguística e um domínio das possibilidades expressivas da língua, inalcançáveis
presentemente em regiões com parcial diglossia. Ao mesmo tempo, a língua literária,
firmemente assentada em cada caso sobre uma estrutura normativa sentida como própria,
despojar-se-ia de todo lastro inoperante, ganhando em flexibilidade e naturalidade. Tal
variabilidade normativa, convenientemente codificada, longe de atentar contra a unidade do
idioma, contribuiria para estabelecer uma maior intercompreensão entre as diversas
modalidades do espanhol hoje em uso.» [El español de Canarias, Presente y futuro de la
lengua española, I, Madrid, 1964, 228-249]

Este liberalismo normativo, que já começa a ser a aplicado em Portugal e, particularmente, no


Brasil, pode e deve estender-se ao ensino do português nas novas repúblicas africanas, que o
têm como segunda língua, mas uma segunda línmgua muito especial, porque durante séculos
foi imposta na escola como se fosse a língua materna dessas nações.

[Celso Cunha, Em busca de uma norma objetiva, A questão da norma culta brasileira, Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985, 56-57]

Celso Cunha e as “variantes nacionais”

O próprio status da modalidade linguística de que nos servimos não está claramente definido,
ou melhor, as conceituações propostas se fundam em razões extra-linguísticas. de regra
eivadas de preconceitos historicistas ou nacionalistas. Daí as denominações variadas, que vão
desde as jacobinas (do tipo língua brasileira) às subservientes (como dialeto brasileiro). Isso
sem falar nas neutras, anódinas (a exemplo de língua ou idioma nacional), que mais de uma
vez têm valido para acalmar zelos patrióticos, mas que, em verdade, deixam a língua
inominada, pois não há país soberano que não possua o seu idioma nacional.

Como classificar o português do Brasil? E qual a metodologia de que nos devemos servir para
descrevê-lo e explicá-lo?

Duas questões prévias e fundamentais, e sobre elas nos permitimos tecer breves
considerações, resumindo em alguns casos observações anteriores.

Quando, em fins do século passado, o sábio filólogo português José Leite de Vasconcelos
chamou dialeto brasileiro à modalidade que o português assumiu na América, orientou-se pelo
parentesco historicamente condicionado entre o português básico, originário, e suas formas
ultramarinas. Numa época em que a ciência só se interessava pelos fatos linguísticos em sua
história, a classificação genética de Leite de Vasconcelos justificava-se plenamente.

Hoje, porém, com os progressos da dialectologia hispânica, o emprego do termo dialeto para
designar o espanhol e o português americano em seu estado atual é não só perturbador, mas
carece de apoio científico. Numa contrapartida nacionalista, poderíamos ser tentados - e alguns
já o foram - a considerar também dialeto à modalidade européia em seu conjunto, o que, como
pondera Manuel Alvar, é um contra-senso, e implica a confusão das noções de língua e dialeto,
funcionalmente distintas. [Manuel Alvar, Hacia los conceptos de lengua, dialecto y hablas.
Nueva revista de filologia hispánica, XV, México-Austin, 1961, 51-60, especialmente 52-53]

Em primeiro lugar (e isto não sofre dúvidas), o termo dialeto evoca a “idéia de dependência
(mais unilateral que recíproca) entre o dialeto, modalidade linguística tida como inferior. e o
idioma nacional, concebido sempre como a síntese superior”. [G.V. Stepanov, Algunas
cuestiones metodológicas del español americano, Actele celui de al XII-lea Congres
International de Linguistica si Filologie Romanica, II, Bucarest, 1971, 1166].

Ora, quanto ao português e ao espanhol, ninguém mais contesta, “à bon droit”, a existência, em
cada caso, de uma comunidade linguística ibero-americana. Também não se pode negar que
as modalidades americanas do português e do espanhol, que forjam e continuam forjando suas
próprias normas, inclusive no campo da expressão literária, devem qualificar-se como objetos
sociolinguísticos especiais, em certo sentido autônomos, que coexistem nos limites da referida
comunidade linguística, sólida, mas não estática, antes de acentuado dinamismo evolutivo.

A esse novo objeto sociolinguístico - subsistema de um arqui-sistema - Stepanov dá o nome de


variante nacional.

Para ele,

«a diferença básica do valor metodológico entre o dialeto e a variante nacional consiste em


distintos modos de funcionamento social: o primeiro (o dialeto) é utilizável só por uma parte da
comunidade humana no seio de uma nação: a segunda (a variante) é um instrumento usado
pela nação inteira.»

[E acrescenta:

A variante caracteriza-se por uma estruturação mais complicada que o dialeto tradicional: 1)
pluralismo de normas diastráticas, entre as quais a forma superior (que é o falar culto informal)
se opõe às diferentes modalidades incultas (dialetais, semidialetais, rurais, populares, etc.); 2)
representa um subsistema estilístico funcional que não coincide com o de outras variantes nem
com o sistema literário espanhol. Estas peculiaridades estruturais da variante são próprias da
linguagem falada, mas podem refletir-se também na linguagem escrita de cada área nacional.
(Ibidem)]

Sob este aspecto todas as variantes são paritárias, e as peculiaridades da variante peninsular
podem também qualificar-se como “desvios” (iberismos) em comparação com particularidades
linguísticas americanas (americanismos).

Acontece, porém - e são ainda palavras de Stepanov -, que o prestígio da protovariante


peninsular condiciona uma situação especial entre as variantes paritárias e leva ao dualismo
das normas utilizáveis e à realização assimétrica destas na variante americana.

Daí a vacilação permanente da língua culta do Brasil, a dificultar padrões para o ensino,
mesmo depois que certas atitudes radicais dos escritores modernistas conseguiram, em alguns
casos, diminuir o vácuo enorme que separava a expressão falada da escrita.

Essa interferência, historicamente explicável, ainda hoje consentida - e por muitos gramáticos
até ardentemente desejada -, não é, como se costuma afirmar, uma riqueza idiomática, pelo
acréscimo de opções estilísticas. Ao contrário, não tendo raízes na língua viva, torna-se uma
possibilidade de escolha irreal, um claro empecilho à expressão habitual do brasileiro a perder-
se nas flutuações diassistemáticas.

Sirva de exemplo - entre muitos que poderíamos aqui aduzir - o chamado problema da
colocação dos pronomes átonos na frase, e a forma inaceitável por que tem sido, em geral,
solucionado por nossos gramáticos.

É facto sabido que a colocação dos pronomes átonos no Brasil difere apreciavelmente da atual
colocação portuguesa e encontra, em alguns casos, similar na língua medieval e clássica.

Em Portugal, esses pronomes se tornaram extremamente átonos, em virtude do relaxamento e


ensurdecimento de sua vogal. Já no Brasil, embora os chamemos átonos, são eles, em
verdade, semitônicos. E essa maior nitidez de pronúncia, aliada a particularidades de
entoações e a outros fatores (de ordem lógica, psicológica, estética, histórica, etc.), possibilita-
lhes uma grande mobilidade de posição na frase, que contrasta com a colocação mais rígida
que têm no português europeu.

Infelizmente, certos gramáticos nossos e grande parte dos professores da língua, esquecidos
de que esta variabilidade posicional, por ser em tudo legítima, representa uma inestimável
riqueza idiomática, preconizam, no particular, a obediência cega às atuais normas portuguesas,
sendo mesmo inflexíveis no exigirem o cumprimento de algumas delas, que violentam
duramente a realidade linguística brasileira e que só podem ser seguidas na língua escrita, ou
numa elocução altamente formalizada.

Esta é, a nosso ver, a primeira distinção que as duas variantes nacionais da língua portuguesa
apresentam em sua forma culta: a vigência de uma só norma em Portugal; no Brasil, a
ocorrência de dualidade ou de assimetria de normas, com predominância absoluta da norma
portuguesa no campo da sintaxe, o que dá a aparência de maior coesão do que a real entre as
duas modalidades idiomáticas, principalmente na língua escrita.

É a história que vai explicar-nos esta relativa unidade da língua culta de Portugal e do Brasil e
as sensíveis, por vezes profundas, diferenças da língua popular em áreas dos dois países.

[Celso Cunha, Política e cultura do idioma, Língua, nação e alienação, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1981, 15-18]

Sílvio Elia: Lusitânia

A exemplo do sentido que dou à palavra România no mundo neolatino, vou chamar Lusitânia
ao espaço geolinguístico ocupado pela língua portuguesa, no conjunto de sua unidade e
variedades.

Esse será o espaço próprio da lusofonia: os seus usuários serão os lusofalantes. Como
“estágio atual da língua portuguesa no mundo”, considerarei a situação da Lusitânia após a
Segunda Guerra Mundial.

Nessa perspectiva, vejo cinco faces na Lusitânia atual, que assim denominarei: Lusitânia
Antiga, Lusitânia Nova, Lusitânia Novíssima, Lusitânia Perdida e Lusitânia Dispersa.

A Lusitânia Antiga compreende Portugal, Madeira e Açores.

A Lusitânia Nova é o Brasil.

A Lusitânia Novíssima abrange as cinco nações africanas constituídas em consequência do


processo dito de “descolonização” e adotaram o português como língua oficial: Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

Lusitânia Perdida são as regiões da Ásia ou da Oceania onde já não há esperança de


sobreviência para a língua portuguesa.
Finalmente, Lusitânia Dispersa são as comunidades de fala portuguesa espalhadas pelo
mundo não lusófono, em consequência do afluxo de correntes imigratórias.

[Sílvio Elia, A língua portuguesa no mundo, São Paulo, Ática, 1989, 16-17]

Martin Harris

Portuguese in Brazil, influenced by the diverse origins of both the immigrants and the
administrators sent from Lisbon, rapidly developed norms of its own, particularly in the more
popular registers. The overall position is that while the official and literary standards on both
sides of the Atlantic do vary, not least because of the changes which took place in metropolitan
but not Brazilian Portuguese from the seventeenth century onwards, apparently as part of a
process of fairly conscious linguistic distancing from Castilian, ease of communication ensures
that this variation is kept within limits; no such constraints affect common speech, however, in
which divergences at all linguistic levels can readily be perceived. Again as elsewhere, there
have been attempts to demonstrate that the divergences between Brazilian Portuguese and that
of Portugal are due to the influence either of Tupi and/or of the Portuguese-based creole which
developed subsequent to the importation of black slaves; but whereas as usual no influences
other than on the lexicon have been established to general satisfaction in respect of the
standard language, the widespread simplification of suffixed morphology in particular in spoken
Brazilian Portuguese is strongly reminiscent of a typical result of the process of creolisation.

[Martin Harris, The romance languages, The romance languages, London, Croom Helm, 1988,
10]

Stephen Parkinson

Portuguese, like English, has spread too far and wide to be described solely in terms of its
European forms. The polarisation of European Portuguese varieties (abbreviated EP) and
Brazilian Portuguese varieties (BP), and the relative decline in the cultural and economic
position of Portugal are such that the Brazilian standard must be given equal status with the
European.

The processes of convergence and divergence inside the Portuguese speaking world are still
working themselves out. While European and Brazilian varieties are drawing closer together,
partly through the realisation that Brazilian norms need not be opposed to Portuguese ones,
partly through the influence of Brazilian television on Portugal, the former Portuguese colonies
in Africa are looking for linguistic independence in the recognition of local standards.
Portuguese can nevertheless claim ‘unity in diversity’ and as such can only increase in
prominence as a major world language.

[Stephen Parkinson, Portuguese, The romance languages, London, Croom Helm, 1988, 131,
168]

Paul Teyssier

O português é a língua de Portugal e do Brasil, assim como dos diversos países da África e da
Ásia que estiveram, até recentemente, sob administração portuguesa.

Existem diferenças entre o português de Portugal e o do Brasil. Essas diferenças abrangem


todos os aspectos da língua, - fonética, vocabulário, morfologia, sintaxe. A própria ortografia
não está ainda totalmente unificada. Assim, cada uma das duas formas que toma a língua
escrita e falada deve ser considerada, no seu domínio geográfico próprio, como a única válida
e «correcta». Há portanto duas normas do português, cada uma das quais forma um sistema
autónomo e coerente. O estrangeiro que aprende a língua deverá pois optar, à partida, quer
pela norma portuguesa, quer pela norma brasileira, e não sair daí. Mas quem quiser dominar
verdadeiramente o português deverá, depois de estar seguro dos mecanismos próprios
daquela das duas normas que tiver escolhido, adquirir um certo conhecimento das principais
características da outra.

A norma linguística dos países lusófonos da África e da Ásia é a de Portugal.

[Paul Teyssier, Manual de Língua Portuguesa (Portugal – Brasil), Coimbra, Coimbra Editora,
1989, p. 15]

Mary Kato

Mas os resultados fornecem uma descrição bastante instigante do que vem mudando no
português do Brasil, e o conjunto desses resultados é uma evidência de que o que ocorre não é
um processo de ‘deterioração da gramática’, como pensam os escolarizados pela ótica da
gramática prescritivista, mas uma reorganização interna coerente, uma mudança radical
(paramétrica) na língua. Entre os aspectos mais extraordinários do PB estão o progressivo
empobrecimento de sua morfologia flexional, o uso extensivo de categorias vazias cuja
identificação não pode ser feita através da flexão; a falta de mobilidade, ou de movimentos
longos, de elementos distintos, como verbos, pronomes interrogativos e clíticos. Por outro lado,
mesmo quando a morfologia é capaz de identificar um pronome nulo, é o pronome lexical que
se manifesta. O ‘sujeito’, seja como a categoria que concorda com o verbo, seja como tópico,
pede realização fonológica. Apesar dessa aparente “desgramaticalização” do PB, o
entendimento entre as pessoas é tão perfeito (ou imperfeito) como o que ocorre com falantes
do italiano ou espanhol, línguas de complexa morfologia, cheia de movimentos de subida ou de
inversão, ou com falantes de línguas como o inglês ou francês, com pouca morfologia flexional
e com pouco uso de pronomes nulos.

A consciência dessas mudanças sistemáticas, que desembocam em uma língua distante de


suas irmãs românicas, até mesmo do português de Portugal, é necessária para entender por
que os estudantes escrevem como escrevem e por que a língua dos textos escolares, para as
camadas que vêm de pais iletrados, pode parecer tão estranha quanto a de um texto do século
XVIII para o lingüista iniciando-se em estudos dacrônicos. O Brasil apresenta assim um caso
extremo de ‘diglossia’ entre a fala do aluno que entra para a escola e o padrão de escrita que
ele deve adquirir.

[Mary A. Kato, Como, o que e por que escavar? Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica,
Ian Roberts, Mary A. Kato (orgs.), Campinas, Editora Unicamp, 1993, p. 19-20]

Fernando Tarallo

O principal objetivo deste capítulo é delinear algumas bases lingüísticas em torno das quais se
centrava toda a discussão na virada do século, isto é: esboçar a emergência de uma gramática
brasileira que, ao final do século XIX, mostrava claras diferenças estruturais em relação à
gramática portuguesa. Tais diferenças, conforme bem o atestam os trabalhos de Galves
tornaram-se ainda mais acentuadas neste final do século XX. Quatro grandes mudanças serão
aqui apresentadas:

1. a re-organização do sistema pronominal que teve como conseqüências mais importantes a


implementação de objetos nulos no sistema brasileiro de um lado, e sujeitos lexicais mais
freqüentes de outro (...);

2. a mudança sintática ocorrida nas estratégias de relativização como conseqüência direta da


mudança no sistema pronominal (...);

3. a re-organização dos padrões sentenciais básicos (...) e, diretamente relacionado a esta


ordem SVO rígida em estado de emergência à época, o enrijecimento do princípio de
adjacência na marcação do acusativo (...);
4. e, finalmente, uma quarta mudança no sistema brasileiro, diretamente ligada às três
anteriores, será apresentada como evidência cabal de que os dois sistemas continuam a
distanciar-se um do outro: os padrões sentenciais em perguntas diretas e indiretas (...)

Os quatro casos sintáticos apresentados na seção anterior devem ser tomados como evidência
quantitativa de que mudanças dramáticas aconteceram na passagem do século XIX para o
atual. Fica claro a partir do retrato oferecido que um novo sistema gramatical – chama-se de
gramática brasileira ou de dialeto com sua própria configuração uma vez tratar-se de uma
questão meramente ideológica – emergiu ao final do século XIX, estabelecendo uma nova
gramática radicalmente diferente da modalidade lusitana (...)

[Fernando Tarallo, Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d’aquém e d’além-


mar ao final do século XIX, Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica, Ian Roberts, Mary A.
Kato (orgs.), Campinas, Editora Unicamp, 1993, p. 70]

Sousa da Silveira (entrevista com Homero Senna)

HOMERO SENNA: Existe uma língua brasileira?

SOUSA DA SILVEIRA: Não. O que existe é a modalidade brasileira da língua portuguesa.

HOMERO SENNA: Mas não há probabilidade de que venha a formar-se, à semelhança do que
aconteceu com as línguas românicas derivadas do latim?

SOUSA DA SILVEIRA: Não se pode comparar o processo de diferenciação do latim vulgar em


línguas românicas com o de evolução da língua portuguesa no Brasil. Estamos diante de
fenômenos diversos. O que se deu com as línguas românicas foi o seguinte: desaparecido o
poder central no Império Romano do Ocidente, o latim vulgar dos territórios romanizados ficou
sem o freio da antiga unidade e as forças diferenciadoras puderam, então, atuar livremente.
Note que esse latim não se escrevia, era apenas falado, e que à centralização do poder
sucedeu a descentralização, ocorrida sobretudo, com o aparecimento de vários reinos
bárbaros, alguns de efêmera duração. O caso do Brasil é outro: desde os nossos primeiros
tempos, a língua portuguesa aqui se ensinava e se escrevia; no século XVII o Padre Vieira
pregava e escrevia, entre nós, sermões numa prosa das mais vigorosas e vernáculas; em
português escreveram os nossos grandes épicos do século XVIII (Durão e Basílio da Gama),
bem como os poetas do grupo mineiro, um dos quais, Cláudio Manuel da Costa, teve
declaradas clássicas, pela Academia de Lisboa, as suas obras. Os nossos poetas do
romantismo também escreviam em bom idioma português, embora com alguma liberdade em
relação às normas de além-mar. Acresce que hoje há outros elementos que favorecem a união
e, portanto, a unidade linguística. Quem poderá prever qual será nesse sentido o papel da
aviação, do rádio e da gravação da fala em disco? Eu, por mim, nada prevejo.

HOMERO SENNA: Que atitude devem a esse respeito adotar os escritores: trabalhar para que
cada vez mais se acentue a diferença entre o português d'aquém e d'além mar, ou, ao
contrário, procurar fazer com que o idioma se mantenha um só? Adiantará alguma coisa a
posição que a propósito tomem os escritores?

SOUSA DA SILVEIRA: Penso que os escritores nossos devem cultivar a modalidade brasileira da
língua portuguesa, sem procurarem afastar-nos, de propósito, da literatura portuguesa. Isso
seria empobrecer-nos. Se já se tem dito que a grande força dos ingleses e norte-americanos se
deve, em parte, a falarem a mesma língua, e se já se tem pensado num imperialismo espiritual
por meio da difusão do idioma inglês pelo mundo, não é diminuir consideravelmente a nossa
capacidade de resistência o separar-nos de Portugal? E não será um desatino esforçarmo-nos
para que se deixe de ser também nossa a riquíssima literatura portuguesa e para que se nos
torne arcaica a apreciável literatura que já temos?

[citado por F. Tarallo, Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d’aquém e d’além-
mar ao final do século XIX, Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica, Ian Roberts, Mary A.
Kato (orgs.), Campinas, Editora Unicamp, 1993, p. 77-78]

Mattoso Câmara:

As duas subnormas do portuguêsComo quer que seja, as discrepâncias de língua padrão entre
Brasil e Portugal não devem ser explicadas por um suposto substrato tupi ou por uma suposta
profunda influência africana, como se tem feito às vezes, resultam essencialmente de se achar
a língua em dois territórios nacionais distintos e separados.

A partir do período clássico, em que o português se implantou no Brasil, cada país teve a sua
evolução lingüística, nem sempre coincidente uma com a outra apesar das estreitas relações
de vida social e cultura.

A fonologia brasileira, por exemplo, não apresenta, como sucede com a de Portugal a partir da
fase clássica, os fenômenos de ritmo em allegro e forte insistência na sílaba tônica, que lá
determinaram aspectos fonológicos importantes. A nossa fonologia resulta, também, não
obstante, de uma evolução, desde o momento em que ela se estruturou no território brasileiro
pelo contacto entre variados dialetos ultramarinos e a língua padrão.

Em referência ao léxico, os desencontros de significação, de renovação e conservação e de


empréstimos são evidentemente consideráveis. Aí, há para contar no Brasil com um apreciável
acervo de termos tupi e africanos, com que a língua comum se enriqueceu na época do
bilingüismo português-tupi e do português crioulo dos escravos negros.

O problema do português popular e dialetal do Brasil é, naturalmente, outro. Nele podem ter
atuado substratos indígenas, não necessariamente, tupi, e os falares africanos, na estrutura
fonológica e gramatical. Também se verificaram, por outro lado, sobrevivências de traços
portugueses arcaicos, que não se eliminaram de áreas isoladas ou laterais em relação às
grandes correntes de comunicação da vida colonial. A imensa vastidão do território brasileiro e
as modalidades de uma exploração intermitente e caprichosa já propiciavam, aliás, por si sós,
uma complexa dialetação, que ainda está por estudar cabalmente.

[Joaquim Mattoso Câmara Jr., História e estrutura da língua portuguesa, Rio de Janeiro,
Padrão, 1976, p. 30-31]

Eni Orlandi: variante nacional brasileira

Podemos referir aqui a questão da língua nacional no Brasil como um dos elementos de
definição da identidade brasileira. Esta questão leva à consideração da variação (e por aí da
diversidade) na medida em que ela pode caracterizar o Brasil como um país distinto de
Portugal. Mas, por outro lado, isto se inscreve na constituição da unidade necessária (ou de
uma nova unidade) nesse novo espaço que é o Brasil. Assim, os indigenismos, os
africanismos, os provincianismos, os regionalismos aparecem como diferenças “domesticadas”,
enquanto características do Brasil. Em outras palavras, todas as diversidades dos falares e a
diversidade do conjunto das línguas indígenas brasileiras e das línguas indígenas brasileiras e
das línguas africanas faladas no Brasil são referidas à unidade da língua nacional. Elas se
organizam em relação a essa unidade. O que há de específico é que esta unidade não é
referida ao português de Portugal mas ao do Brasil.

[Eni Orlandi, Ética e política lingüística, Línguas e instrumentos lingüísticos, 1, 1998, 10].

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