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O caranguejo, a galinha, e a vaca: algumas

ideias sobre a crise brasileira


Como foi possível que políticas antes aplaudidas pela
população fossem abandonadas e sua reversão tolerada
por muitos que antes lhes davam apoio?
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/O-caranguejo-a-galinha-e-a-vaca-
algumas-ideias-sobre-a-crise-brasileira/7/37248
Acesso em: 21 de nov. 2016

Por Carlos Eduardo Silveira

Neste momento grave da vida brasileira, em que se busca implantar, a ferro e


fogo, uma política que já se evidenciou falida em todo o mundo – a da
austeridade fiscal – este artigo procura entender os fundamentos da crise que se
vive. Crise profunda, tanto nos seus aspectos econômicos quanto políticos, sociais
e ideológicos. Para tanto, levanta questões a partir de três tempos (um tempo
mais longo, que se segue a 80; um tempo médio, do período Lula e Dilma; e o
atual com a perspectiva do futuro), fazendo uso de 6 gráficos simples sobre
certos indicadores econômicos dos últimos vinte anos, na perspectiva de que esse
olhar para o passado ajudará a entender melhor o que ocorre no presente e
discernir alternativas abertas para o futuro em tempos tão conturbados.

Como foi possível que políticas antes aplaudidas pela maioria da população
brasileira, apesar da insistente guerra contrária da mídia e, mais recentemente,
da ação dos “donos do dinheiro”, fossem abandonadas e sua reversão tolerada,
por muitos que antes lhes davam apoio? Há quem atribua a responsabilidade de
tal degringolada à política ortodoxa de ajuste fiscal de Dilma aplicada em 2015.
Foi, mas apenas em parte. Neste artigo busca-se ver “no antes” os fundamentos
do que ocorre agora, propondo-se ir “más allá” dos erros de Dilma, em seu
primeiro e, sobretudo, em seu segundo governo. O que se indaga é se não haveria
limites postos ao prosseguimento do ciclo virtuoso dos períodos Lula e, em parte,
de Dilma. Será que nesses limites não estariam presentes substratos que
ajudariam a explicar, de um lado, o momento atual e, de outro, a timidez dos
“anos dourados”, para dizer o mínimo, para outras mudanças, como na área
tributária e na política macroeconômica?

O primeiro dos gráficos, o Gráfico 1, traz um quadro inquietante, num horizonte


analítico mais amplo.

Fonte: Ipeadata; *baseado em dados trimestrais; 2016, apenas dois trimestres.

Com clareza, o gráfico mostra que, até os anos 80, o Brasil viveu um período
econômico virtuoso, de crescente ampliação da renda per capita, sob o comando
do processo de industrialização que tanto fazia crescer a produção e o emprego,
quanto aprofundava a estrutura interna, estendendo-se para os subsetores mais
nobres e tecnologicamente mais avançados. O país entrou em crise a partir de
então tanto no plano externo pelo acúmulo de dívidas, chegando à moratória,
com interno com uma crise fiscal permanente fragilizando o aparelho do
Estado, levando a uma dependência para o financiamento de seu passivo
financeiro a custos altíssimos. O que se presenciava era a dívida gerando dívida,
em um país que se acostumou a conviver com pornográficos níveis de taxa de
juros, tanto em relação ao refinanciamento da dívida pública, quanto aos juros
cobrados do público pelo sistema bancário em geral.

A partir de 1980 (apenas para fixar data de referência) o país começou seu passo
de caranguejo.Andava de lado, hesitante, vivendo de espasmos tipo “stop and go”.
No entanto, de 2003 a 2013, a economia ganhou novo fôlego, com resultados
virtuosos no processo de redução da pobreza, incremento de políticas sociais e
aumento do salário mínimo que melhoraram sensivelmente o padrão de vida dos
90 % de menor renda. O clima era de otimismo e confiança, realidade que a taxa
revelada média de 2,4 % de crescimento real da renda per capita subestimava. O
ganho desse segmento, sem dúvida, foi superior a 2,4 % ao ano. Em seguida, o
desastre, com já praticamente três anos seguidos de queda na renda das pessoas
(em 2014 a taxa foi de 0,1 %). Teria o novo período de crescimento pós 2003,
chamado por alguns de “novo desenvolvimentismo” não passado de um voo de
galinha dentro de período mais amplo caracterizado por estagnação histórica e
desajuste estrutural? Há razões para tal preocupação. Tanto em face do que
ocorreu no campo da política, com o golpe de 1964 e sua radical mudança quanto
às regras democráticas que se seguiram até a vigência da Constituição de 88,
quanto da própria política econômica e do aprofundamento do ensaio neoliberal
dos anos FHC, “après la lettre”, se me permitem um trocadilho esnobe. Ou seja,
quando já derrocada essa ideologia no plano mundial. Caminhou que nos levou à
decadência e à corrosão social.

O gráfico 2 mostra que, em 2007, quando o céu ainda parecia de brigadeiro, de


certo modo já se poderia antever a possibilidade de problemas mais à frente. Foi
quando a balança de transações correntes passou a não só manifestar-se negativa,
mas crescentemente negativa, passando a ser uma tendência contínua e
persistente.
Fonte: Ipeadata;

Já em meados da década dos 2000 o problema se manifestava. Creio que


estrutural e que guarda relação com o período de passo do caranguejo, qual seja, a
incapacidade de sua indústria de renovar-se diante das dificuldades econômicas
do país e suas dívidas com o passado, da incapacidade de concorrer com as
inovações aceleradas que ocorriam no plano mundial, por vezes chamada de
“terceira revolução industrial” e com as escalas e baixos custos da produção
chinesa. Os expressivos níveis das exportações mantidos eram, porém, cada vez
mais dependentes das commodities, absorvidas com fome pantagruélica pela
China que, de outra parte, concorria com nossa indústria tanto no mercado
interno, levando à elevação das importações industriais, quando no externo,
tomando mercados de nossos exportadores da indústria. Três políticas industriais
foram desenhadas nesse período sem conseguirem sequer deter esse processo.
Não há dúvida de que a política cambial, adstrita aos cânones ortodoxos do tripé
que, no caso determinava que o câmbio fosse flutuante, sem nenhum mecanismo
de controle de capitais mais efetivo fosse acionado, integrou tal cenário. Há
outros elementos que fazem parte do mesmo conjunto de dependência política e
econômica, como a influência de um câmbio valorizado para manter baixa a
inflação, dentre outros, mas não serão tratados nos limites do artigo.
O Gráfico 3 mostra já no ano de 2011 perda de força da economia pelo ângulo do
investimento, tanto público como privado. O investimento público, ao invés de
ampliado no governo Dilma, como se esperava, foi contido tanto pelo efeito
conjunto do atendimento às regras do “tripé”, em particular pela redução do
gasto público, quanto pela desorganização estatal pressionada continuamente:
por denúncias de corrupção; pela ação do jogo das empreiteiras; e, por erros de
avaliação diante dos limites políticos dados à Presidência. Um exemplo desses
erros, que se somou às pressões do oligopólio das empreiteiras, foi a discussão
sobre a limitação das taxas de retorno às concessões ou parcerias público-
privadas. No lado privado, a tentativa de redução das taxas de juros em 2012 e as
isenções progressivamente aplicadas em seu governo foram infrutíferas: não
despertaram o “espírito animal” dos empresários pátrios.

Fonte: Ipeadata;

O gráfico 4 mostra que, após anos e anos de superávits primários, como parte dos
esforços de continuar seguindo os cânones da política macroeconômica iniciada
no plano real, em 2014, esse superávit perseguido virou déficit. A perda da
vitalidade econômica se transforma logo em queda de receitas, em razão da sua
estrutura procíclica, assim como o foram as medidas de corte de gastos, tomadas
ao início do segundo mandato de Dilma. Diante de uma estrutura tributária
altamente regressiva, onde quanto menos renda o cidadão aufere, mais impostos
paga em proporção à sua renda, o peso do ajuste recai sobre o mais pobre, tanto
pelo corte dos gastos que o beneficava como pela manutenção da carga que o
penaliza. Talvez aí esteja a explicação da adesão dos segmentos de menor renda
às teses da austeridade e do corte de gastos.

No Gráfico 5 se vê o pior dos mundos quando, na virada de 2014 para 2015, o


desemprego dispara, atingindo os níveis pré-Lula acompanhado pelo aumento da
inflação. A economia abateu-se sobre todos, incluídos os eleitores de Dilma,
elevando rapidamente seu desgaste. O clima criado pela oposição,
hiperalimentado pela imprensa com suas denúncias diárias e ininterruptas de
corrupção, rompeu o dique da opinião pública e do apoio ao governo. O
impeachment foi resultado, com todas suas terríveis consequências que estamos
assistindo. Não creio que se possa atribuir esse violento e rápido aumento do
desemprego apenas às medidas ortodoxas de austeridade fiscal de Dilma, embora
tenham contribuição importante.

Essa, em síntese, a questão que este artigo coloca: será que não haveria uma
latência represada, que os demais indicadores da economia já estavam a revelar,
como indicam os gráficos anteriores, de tal modo que ainda que tivessem sido
outras as decisões da presidenta Dilma no seu segundo mandato, a crise estaria
instalada, mesmo que de forma mais moderada? O Grafico 6 traz outra
evidência de que já havia sinais dos limites ao modelo e de como se nutriam os
problemas fiscais, manifestação mais explorada pela oposição e pela mídia. Os
juros pagos pelo governo mesmo com os superávits primários sobiam desde FHC,
sistematicamente. Isso redundou em um resultado nominal que explodiu nos
anos Dilma, devido, basicamente, à divida financeira (embora esta tivesse se
mantido em baixa até 2014-2015). Eles vinham crescendo sistematicamente,
governo a governo, desde Lula, apesar dos superávits. Esse fato evidencia o
verdadeiro caráter das dificuldades fiscais, que passam longe de qualquer
excesso das despesas primárias e que se constituiu no bode expiatório da crise.
Fica a questão: outra política deve ser buscada para além da mera, para ser
breve, retomada keynesiana via investimento público. O caráter de longo prazo de
inserção da economia brasileira no mundo capitalista está a exigir ações mais
poderosas e que demandam um grau de sustentação social e política que não se
tem conseguido, nem mesmo nos “anos dourados”. Em suma, sem isso,
persistindo com a metáfora irônica do mundo animal, o país continuaria, no
longo prazo, em seucaminhar de caranguejo, tornando o período Lula e parte de
Dilma apenas em um voo de galinha, de prazo historicamente curto, sujeito a
grande reversão e esgotado em razão dos nossos problemas estruturais profundos
instalados a partir dos anos 80 e que não se conseguiu reverter nos anos recentes
de crescimento. E, para que não se pense que a vaca foi para o brejo, tem-se que ir à
famosa pergunta de Lenin em 1902 sobre o quê fazer: examinar o que passou e
ver, talvez, que é necessário “liquidar o terceiro período” e trabalhar para escapar
da camisa de força que a economia do país está colocada, obediente e restringida
aos ditames da Finança internacional. Não consola, mas situa melhor saber que
não somos os únicos no mundo presos a essa encruzilhada. Que o diga nosso rival
futebolístico mais ao sul.

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