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Como foi possível que políticas antes aplaudidas pela maioria da população
brasileira, apesar da insistente guerra contrária da mídia e, mais recentemente,
da ação dos “donos do dinheiro”, fossem abandonadas e sua reversão tolerada,
por muitos que antes lhes davam apoio? Há quem atribua a responsabilidade de
tal degringolada à política ortodoxa de ajuste fiscal de Dilma aplicada em 2015.
Foi, mas apenas em parte. Neste artigo busca-se ver “no antes” os fundamentos
do que ocorre agora, propondo-se ir “más allá” dos erros de Dilma, em seu
primeiro e, sobretudo, em seu segundo governo. O que se indaga é se não haveria
limites postos ao prosseguimento do ciclo virtuoso dos períodos Lula e, em parte,
de Dilma. Será que nesses limites não estariam presentes substratos que
ajudariam a explicar, de um lado, o momento atual e, de outro, a timidez dos
“anos dourados”, para dizer o mínimo, para outras mudanças, como na área
tributária e na política macroeconômica?
Com clareza, o gráfico mostra que, até os anos 80, o Brasil viveu um período
econômico virtuoso, de crescente ampliação da renda per capita, sob o comando
do processo de industrialização que tanto fazia crescer a produção e o emprego,
quanto aprofundava a estrutura interna, estendendo-se para os subsetores mais
nobres e tecnologicamente mais avançados. O país entrou em crise a partir de
então tanto no plano externo pelo acúmulo de dívidas, chegando à moratória,
com interno com uma crise fiscal permanente fragilizando o aparelho do
Estado, levando a uma dependência para o financiamento de seu passivo
financeiro a custos altíssimos. O que se presenciava era a dívida gerando dívida,
em um país que se acostumou a conviver com pornográficos níveis de taxa de
juros, tanto em relação ao refinanciamento da dívida pública, quanto aos juros
cobrados do público pelo sistema bancário em geral.
A partir de 1980 (apenas para fixar data de referência) o país começou seu passo
de caranguejo.Andava de lado, hesitante, vivendo de espasmos tipo “stop and go”.
No entanto, de 2003 a 2013, a economia ganhou novo fôlego, com resultados
virtuosos no processo de redução da pobreza, incremento de políticas sociais e
aumento do salário mínimo que melhoraram sensivelmente o padrão de vida dos
90 % de menor renda. O clima era de otimismo e confiança, realidade que a taxa
revelada média de 2,4 % de crescimento real da renda per capita subestimava. O
ganho desse segmento, sem dúvida, foi superior a 2,4 % ao ano. Em seguida, o
desastre, com já praticamente três anos seguidos de queda na renda das pessoas
(em 2014 a taxa foi de 0,1 %). Teria o novo período de crescimento pós 2003,
chamado por alguns de “novo desenvolvimentismo” não passado de um voo de
galinha dentro de período mais amplo caracterizado por estagnação histórica e
desajuste estrutural? Há razões para tal preocupação. Tanto em face do que
ocorreu no campo da política, com o golpe de 1964 e sua radical mudança quanto
às regras democráticas que se seguiram até a vigência da Constituição de 88,
quanto da própria política econômica e do aprofundamento do ensaio neoliberal
dos anos FHC, “après la lettre”, se me permitem um trocadilho esnobe. Ou seja,
quando já derrocada essa ideologia no plano mundial. Caminhou que nos levou à
decadência e à corrosão social.
Fonte: Ipeadata;
O gráfico 4 mostra que, após anos e anos de superávits primários, como parte dos
esforços de continuar seguindo os cânones da política macroeconômica iniciada
no plano real, em 2014, esse superávit perseguido virou déficit. A perda da
vitalidade econômica se transforma logo em queda de receitas, em razão da sua
estrutura procíclica, assim como o foram as medidas de corte de gastos, tomadas
ao início do segundo mandato de Dilma. Diante de uma estrutura tributária
altamente regressiva, onde quanto menos renda o cidadão aufere, mais impostos
paga em proporção à sua renda, o peso do ajuste recai sobre o mais pobre, tanto
pelo corte dos gastos que o beneficava como pela manutenção da carga que o
penaliza. Talvez aí esteja a explicação da adesão dos segmentos de menor renda
às teses da austeridade e do corte de gastos.
Essa, em síntese, a questão que este artigo coloca: será que não haveria uma
latência represada, que os demais indicadores da economia já estavam a revelar,
como indicam os gráficos anteriores, de tal modo que ainda que tivessem sido
outras as decisões da presidenta Dilma no seu segundo mandato, a crise estaria
instalada, mesmo que de forma mais moderada? O Grafico 6 traz outra
evidência de que já havia sinais dos limites ao modelo e de como se nutriam os
problemas fiscais, manifestação mais explorada pela oposição e pela mídia. Os
juros pagos pelo governo mesmo com os superávits primários sobiam desde FHC,
sistematicamente. Isso redundou em um resultado nominal que explodiu nos
anos Dilma, devido, basicamente, à divida financeira (embora esta tivesse se
mantido em baixa até 2014-2015). Eles vinham crescendo sistematicamente,
governo a governo, desde Lula, apesar dos superávits. Esse fato evidencia o
verdadeiro caráter das dificuldades fiscais, que passam longe de qualquer
excesso das despesas primárias e que se constituiu no bode expiatório da crise.
Fica a questão: outra política deve ser buscada para além da mera, para ser
breve, retomada keynesiana via investimento público. O caráter de longo prazo de
inserção da economia brasileira no mundo capitalista está a exigir ações mais
poderosas e que demandam um grau de sustentação social e política que não se
tem conseguido, nem mesmo nos “anos dourados”. Em suma, sem isso,
persistindo com a metáfora irônica do mundo animal, o país continuaria, no
longo prazo, em seucaminhar de caranguejo, tornando o período Lula e parte de
Dilma apenas em um voo de galinha, de prazo historicamente curto, sujeito a
grande reversão e esgotado em razão dos nossos problemas estruturais profundos
instalados a partir dos anos 80 e que não se conseguiu reverter nos anos recentes
de crescimento. E, para que não se pense que a vaca foi para o brejo, tem-se que ir à
famosa pergunta de Lenin em 1902 sobre o quê fazer: examinar o que passou e
ver, talvez, que é necessário “liquidar o terceiro período” e trabalhar para escapar
da camisa de força que a economia do país está colocada, obediente e restringida
aos ditames da Finança internacional. Não consola, mas situa melhor saber que
não somos os únicos no mundo presos a essa encruzilhada. Que o diga nosso rival
futebolístico mais ao sul.