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ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUÇÃO DE 19881

Maria Tereza Leopardi Mello

A análise da Ordem Econômica constitucional leva à discussão de um espectro


variado de temas que vão desde restrições à atuação do capital privado (monopólios
estatais) e estrangeiro (incluindo as antigas previsões sobre reserva de mercado), até
diferentes tipos de políticas públicas, inclusive formas de intervenção na propriedade
privada imóvel (políticas urbana e agrária). São temas, como se vê, freqüentemente
relacionados a questões econômicas mais gerais (não explicitamente presentes no texto
constitucional) como abertura da economia, privatização, desregulação etc., e
apresentam o traço comum de se relacionarem, fundamentalmente, com o debate acerca
do papel do Estado na Economia (sobre qual deve ser esse papel).
Assim, a abordagem da Ordem Econômica na Constituição deve
necessariamente passar pela análise das formas - constitucionalmente previstas - pelas
quais o Estado pode (e em alguns casos, deve) intervir na esfera econômica.
O Título da Ordem Econômica se estrutura da seguinte forma: um primeiro
capítulo, dispondo sobre princípios, definições e regras gerais envolvendo
atuação/intervenção estatal na esfera econômica; e mais três capítulos especificamente
voltados para a Política Urbana, a Política Agrária (Agrícola e Fundiária) e o Sistema
Financeiro Nacional.
O texto que se segue tenta apresentar uma visão panorâmica da OEC, iniciando
pela análise dos conceitos e princípios gerais mais relevantes - dentre os quais se
destacam as diferentes formas de ação estatal constitucionalmente previstas; em
seguida apresentam-se os tratamentos constitucionais dispensados às políticas urbana e
agrária e ao sistema financeiro.

1. Princípios da Ordem Econômica


Entendemos por princípios aquelas proposições de caráter geral que descrevem
objetivos coletivos da ordem jurídica a serem buscados por meio de implementação de
diversos tipos de políticas. Devem ser observados por todos os agentes do setor público
em suas decisões, em todas as esferas de governo; dirigem-se não apenas ao Poder
Executivo (que deve formular e executar políticas de acordo com tais princípios,
principalmente para criar situações novas condizentes com eles), mas também ao
Legislativo (que deve fazer leis que os aplique) e ao Judiciário. Dentre os princípios da
Ordem Econômica estabelecidos no art. 170, observa-se que alguns são mais
“concretos” e dão, inclusive, origem a certos direitos; outros, no entanto, permanecem
como orientação genérica a ser observada pelos governantes, mas não lhe impõem
deveres, nem atribuem direitos a quem quer que seja.
Assim, afirmar que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho
humano ...e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social..., devendo pautar-se pela busca do pleno emprego e redução das
desigualdades ... pode, é verdade, ser mais do que mera retórica, no sentido de que o
1
Texto preparado para o curso de Instituições de Direito do Instituto de Economia da UFRJ, 1 o semestre
de 2000; revisado em 2010.
2

Estado deve promover políticas públicas compensatórias, mas não existe nenhum
mecanismo (jurídico) que permita inferir sua obrigatoriedade. Além dessa possível
implicação para políticas públicas, todavia, essas normas não atribuem direitos a quem
quer que seja, e, portanto, não propiciam direito de ação contra o Estado. Não se
garante, aí, por exemplo, o direito de uma pessoa a um emprego...
A Constituição estabelece uma ordem econômica fundada na livre iniciativa e
na propriedade privada2 (entre outros princípios) - cf. arts. 170, caput e II, c/c/ art. 5o ,
XXII. Trata-se, como é óbvio, de um sistema econômico capitalista, de uma economia
de mercado em que a atividade econômica (empresarial) é um espaço
predominantemente privado, o que não afasta de todo o Estado.
A livre iniciativa consiste na liberdade de comércio e indústria que abrange: a) a
faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado, e b) a não
sujeição a qualquer restrição estatal, senão em virtude de lei (Grau, 1991:224).
Segundo Grau, a livre iniciativa, no sentido de liberdade de empresa, é mais um dos
aspectos das liberdades (públicas) constitucionalmente garantidas e, na sua origem, está
disposta como limite à ação do Estado; salvaguardando a liberdade de iniciativa, o
dispositivo constitucional implica que esta não se sujeita a restrições por parte dos
poderes públicos, salvo aquelas impostas por lei; nesse sentido, é também uma outra
face do princípio da legalidade - “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei” - que encontra uma formulação específica
dirigida à atividade econômica no § único do art. 170: “é assegurado a todos o livre
exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de
órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” 3.
Outros tantos daqueles princípios - que são previstos concretamente pelo
sistema jurídico - na verdade são objeto de legislações específicas; penso, por exemplo,
na livre concorrência, na defesa do consumidor e do meio ambiente, no tratamento
favorecido a pequenas empresas (art. 170, IV, V, VI e IX, respectivamente).

2. Formas de atuação do Estado na atividade econômica


Participação
Embora caracterizada como área própria do setor privado, a atividade
econômica também pode ser diretamente explorada pelo Estado, embora a Constituição
estabeleça essa possibilidade em caráter excepcional que, além dos casos previstos na
própria Constituição, ...só será permitida quando necessária aos imperativos de
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (art.
173). Pelo enunciado, portanto, há uma ‘regra geral’ implícita segundo a qual as
atividades econômicas são sujeitas à livre iniciativa, e devem ser desenvolvidas pelo
setor privado – em outras palavras, é uma área própria do setor privado.

2
Propriedade privada já é consagrada como direito fundamental no art. 5 o , sendo inerente a uma
economia capitalista (na verdade, ela vem junto com a livre iniciativa); por outro lado, a função social
da propriedade é princípio que apenas tem alguma concreção no bojo das políticas urbana e agrária,
que serão analisadas mais adiante.
3
Pode-se observar que liberdade e legalidade são princípios que sempre andam juntos, o que é
característico de um estado de direito, não apenas no caso da livre iniciativa, mas da liberdade em
geral. Consubstancia-se, assim, a liberdade típica da esfera privada, definida no sentido negativo: tudo
o que não é proibido (expressamente e por lei) é permitido; ou dito de outro modo - toda atividade cujo
exercício não é legalmente condicionado, pode ser livremente exercida...

2
3

A participação do Estado na produção de bens e serviços para o mercado não é,


contudo, uma mera opção política de governo, já que a decisão não caberia apenas ao
poder executivo: os casos de segurança nacional e interesse público que ensejam essa
participação devem ser definidos em lei.
Nessa hipótese, o Estado ao exercer atividades econômicas se iguala ao
particular (no sentido de não poder ter privilégios nessa atuação): a CF obriga que as
entidades públicas que exercem atividade econômica (empresas públicas e sociedades
de economia mista - genericamente chamadas de empresas estatais) sujeitem-se ao
mesmo tratamento jurídico das empresas privadas, no sentido de não poderem gozar de
privilégios, principalmente fiscais e relativos às obrigações trabalhistas (art. 173, §§ 1o
e 2o).
Grau (1991) designa essa forma de atuação do Estado de participação - quando
o Poder Público atua como agente econômico em atividade empresarial4.
Note-se, ainda, que o texto do artigo começa mencionando ressalvas –
“Ressalvados os casos previstos nesta Constituição ...” -, que não se sujeitam à regra
geral (pela qual a atividade econômica é área própria do setor privado) nem se referem
às hipóteses de segurança nacional e interesse público definidas em lei. Essas principais
ressalvas, estão as seguintes: as atividades relacionadas à exploração de petróleo e
minerais nucleares (art.177), de recursos minerais e potenciais de energia hidráulica
(art.176), que constituem monopólios da União, sendo, assim, subtraídas da esfera da
livre iniciativa. Ambos os arts. sofreram emendas em 1995: no caso da exploração do
petróleo, a modificação foi no sentido de permitir a contratação de empresas privadas
para a realização de pesquisa e lavra da jazidas, refinação, importação, exportação e
transporte, antes vedada pelo texto constitucional (Emenda n o 9/95). No caso do art.
176, a exploração dos recursos minerais e energia hidráulica já podia ser feita por
concessão, limitada, porém, às empresas brasileiras de capital nacional. A emenda n o
6/95 retirou esta restrição. Note-se que, apesar das alterações, a União manteve o
monopólio das referidas atividades, apenas permitindo a participação do capital privado
e estrangeiro.

Direção
O art. 174, por sua vez, refere-se ao papel do Estado como agente normativo e
regulador da atividade econômica, o que abarca inclusive as funções de incentivo e
planejamento5.
Atuar como agente normativo e mediante sistema de incentivos são tipos de
intervenção não direta, diferentes da exploração de atividade econômica (prevista no
art. 173), na qual o Estado se coloca em posição de igualdade com o setor privado;
aqui, ao contrário, o Estado assume seu papel público - acima dos particulares, podendo
até restringir-lhes a liberdade de atuação ou iniciativa pelo exercício do poder de
polícia. Nessa atuação, entretanto, o Estado não substitui o mercado na configuração
estrutural da economia; não substitui as decisões privadas.

4
O autor faz também uma subdivisão dessa forma em participação e absorção; esta implicaria o
exercício de atividade econômica em regime de monopólio, aquela, em regime concorrencial.
5
Na verdade, planejamento, segundo Grau, não é uma nova modalidade de intervenção do Estado (v. p.
165); apenas qualifica essa intervenção, fazendo-a mais racional - pela formulação explícita de
objetivos, pela definição de meios de ação coordenados, por tratar programas de ação de forma
sistemática (diferente de ações aleatórias...). Trata-se de planejamento do desenvolvimento, e não da
economia.

3
4

A menção explícita à capacidade normativa e reguladora do Estado, aí


especificamente voltada para a atividade econômica, além do óbvio - i. e., que o Estado
detém o monopólio da produção jurídica, de impor normas com força obrigatória - ,
implica o estabelecimento das “regras gerais do jogo” econômico (e, portanto, limites à
ação dos agentes privados). O Estado atua, aí, por direção: impõe normas cogentes,
comandos imperativos de certos comportamentos6 (ou proibitivos de certas condutas);
nessa atuação freqüentemente restringe a liberdade dos agentes econômicos,
conformando as condutas desejáveis e as proibidas. Podem-se citar como exemplos, a
política antitruste, leis de defesa do consumidor e proteção ao meio ambiente, previstas
na própria Constituição com o status de princípios da ordem econômica (arts. 170, IV,
V e VI, respectivamente7)

Indução
Mas regular também significa “estabelecer diretrizes” do processo econômico, o
que inclui as mencionadas políticas de incentivo que direcionam os comportamentos
dos agentes privados (particularmente, os Investimentos). Essas políticas afetam
variáveis do cálculo econômico (no nível microeconômico), na medida em que, por
meio de oferta de crédito a juros baixos ou incentivos fiscais, por exemplo, afetam a
rentabilidade esperada dos investimentos, tentando atraí-los para determinados setores
ou regiões, induzir certos comportamentos etc.
Seguindo a classificação acima mencionada, a atuação do Estado por indução
manipula os instrumentos de intervenção em conformidade com as leis que regem o
funcionamento dos mercados. Implica estabelecer sistemas de estímulos, procurando
induzir decisões dos agentes, pela oferta daquilo que se convencionou chamar de
sanções premiais8; entretanto, permanecem autônomas/ privadas; os agentes
destinatários de tais normas não são obrigados a aderir aos fins propostos pelo poder
público.
Um exemplo de uma política específica desse tipo pode ser encontrada na
própria Constituição, art. 187, no capítulo da política agrária, que contém algumas
linhas gerais da política agrícola (relativa a incentivos à produção agropecuária) dentre
as quais se destacamos instrumentos fiscais e creditícios.
Deve-se observar, ainda, que, em conjunto, esses dois arts. comentados (173 e
174) evidenciam uma diferença importante no papel do Estado, em relação à
6
O que, em geral, é feito pelo Legislativo, embora administrado pelo Executivo.
7
Além de princípios, essas três áreas de regulação encontram fundamento constitucional em outros
dispositivos específicos: 173, § 4o (a defesa da concorrência), 5o, XXXII (defesa do consumidor) e 225
(defesa do meio ambiente).
8
O atributo da sanção é inerente às normas qualificadas de jurídicas - a sanção organizada é um
elemento constitutivo do direito; normas jurídicas são definidas como aquelas "cuja execução é
garantida por uma sanção externa e institucionalizada", Bobbio (1989:27-29) . Entretanto, apesar de
sanção ser normalmente associada a punição, existem tipos de normas - particularmente aquelas que
incidem sobre a atividade empresarial num sistema capitalista, em que os agentes são centros
autônomos de decisão - que não apenas proíbem ou permitem comportamentos ou iniciativas mas,
principalmente, tentam incentivá-los ou desencorajá-los. Esses tipos -cada vez mais freqüentes na
economia moderna, na qual a atuação do Estado não se limita à sua “função protetora-repressora”,
mas vai além, montando um “um imenso sistema de estímulos e subsídios” - conferem ao ordenamento
jurídico uma “função promocional” (Ferraz Jr., 1989). Reconhecem-se, pois, sanções positivas que não
são punições, mas recompensas por determinado comportamento (as chamadas sanções premiais).
Normas portadoras de sanções premiais não determinam o comportamento de maneira absoluta, mas
apenas delimitam um campo de atuação possível, desejável ou indesejável no qual a ação dos agentes
econômicos pode ou não se efetivar: a decisão é autônoma e individual - da firma.

4
5

Constituição anterior, na qual facultava-se explicitamente a intervenção estatal no


domínio econômico e o monopólio de atividades para organizar setor que não possa
ser desenvolvido ... no regime de competição e de liberdade de iniciativa (CF de
1967/69, art.163).

Prestação de serviços públicos


Finalmente, outra forma de atuação estatal prevista é a prestação de serviços
públicos, uma esfera própria do Estado (que, portanto, não estaria, aqui, intervindo em
área alheia), cuja execução lhe é atribuída – não só como poder, mas principalmente
como dever – pelo art. 175. Mesmo que tal execução se dê de forma indireta (por
concessão ou permissão), as empresas privadas concessionárias atuam em regime
jurídico de direito público, sob controle do poder público, que detém a titularidade da
atividade em questão.
Coloca-se, desse modo, a questão: o que caracteriza uma atividade como
serviço público? em que ele se diferencia da atividade econômica mencionada no art.
173? A literatura jurídica apresenta diferentes abordagens na resposta a essas perguntas:
alguns autores (por exemplo, Grau, 1991) vêem diferenças substantivas entre atividade
econômica em sentido amplo (que constituiria um gênero) e serviços públicos e
atividade econômica em sentido estrito (que constituiriam espécies daquela). A
atividade econômica estritamente considerada seria aquela área afeta à iniciativa
privada, na qual o Estado pode intervir apenas excepcionalmente (atuando em área
alheia)9.
Autores como Di Pietro, por exemplo, tendem, de forma mais pragmática, a
defini-los como aquilo que a lei determina como tal, reconhecendo que “é o Estado,
por meio de lei, que escolhe quais as atividades que, em determinado momento, são
consideradas serviços públicos; ... isso exclui a possibilidade de distinguir-se,
mediante critérios objetivos, o serviço público da atividade privada; esta permanecerá
como tal enquanto o Estado não a assumir como própria”. Têm, portanto, as duas
atividades uma fronteira imprecisa e mutável, que varia no tempo e no espaço. Daí a
definição de serviço público dada pela autora: toda atividade que a lei atribui ao Estado,
que deve exercê-la direta ou indiretamente (por concessão) para satisfazer necessidades
coletivas, sob regime total ou parcialmente público.
Do ponto de vista apenas jurídico, acho que essa definição é suficiente. Se se
quiser, entretanto, aprofundar o conceito de serviço público é melhor fazê-lo no âmbito
econômico. O trabalho de Farina et alii (1997), por exemplo, aponta para características
econômicas dos serviços de utilidade pública (que podem ser considerados parte dos
chamados setores de infra-estrutura): existência de monopólios naturais em alguma
etapa da cadeia produtiva, separação entre geração e distribuição dos serviços, oferta
caracterizada por estrutura de redes, necessidade de ativos específicos e irrecuperáveis,
demanda generalizada (consumo universal) pouco sensível a variações de preços.
Como se pode perceber, a distinção entre atividade econômica e serviço público
só faz sentido do ponto de vista jurídico: é uma classificação jurídica que tem
implicações jurídicas (no sentido de que as regras aplicáveis às atividades econômicas
são diferentes das aplicáveis aos serviços públicos).
De qualquer modo, o que é juridicamente relevante é que naquelas atividades
que a lei define como serviço público, os particulares só podem atuar em regime de
9
Diferentemente, quando o art. 174 se refere ao Estado como agente normativo da atividade econômica,
estar-se-ia tomando-a em sentido amplo, que abarca todas as atividades que compõem a ordem
econômica, inclusive aquelas afetas ao próprio Estado, como os serviços públicos.

5
6

concessão ou permissão10. A concessão é um contrato pelo qual o poder público


transfere ao particular a execução do serviço (o poder de explorar economicamente a
aquela atividade), mas não a sua titularidade, de modo que o pode público mantém seus
poderes (e obrigações) de direção e controle sobre o serviço. Em outras palavras, o
poder público não se desonera de ter que constantemente fiscalizar e regular o serviço
concedido.
A literatura jurídica costuma classificar os serviços públicos - entre outras
classificações - em privativos e não privativos, conforme a norma atribua a
exclusividade ou não do poder público na prestação do serviço. A Constituição prevê
com serviços públicos privativos o serviço postal e correio aéreo (art. 21, X),
telecomunicações (art. 21, XI), radiodifusão, energia elétrica, navegação aérea, alguns
transportes e portos (art. 21, XII) atribuídos à União; gás canalizado, atribuído aos
Estados-membros (art. 25, § 2o); e transporte coletivo (e outros serviços de interesse
local) aos Municípios (art. 30, V).
Os serviços públicos não privativos podem ser executados pelo Estado e/ou pelo
particular, neste caso mediante autorização do poder público. Encontram-se, na
Constituição, exemplos desse tipo: saúde, educação, previdência social, assistência
social - serviços previstos no título VIII da CF, concernentes à Ordem Social11.
É necessário ainda observar que o modelo institucional dos setores
caracterizados como serviços públicos passou por uma transição importante nos anos
90. A grande maioria dos serviços públicos no Brasil, até então, eram executados por
empresas estatais monopolistas, caracterizando um modelo de modelo de serviços
públicos prestados diretamente pelo Estado. Em alguns setores, esse modelo está sendo
substituído por outro que inclui o aumento da participação privada na execução de
serviços públicos - via concessões ou parcerias, ou mesmo privatização de algumas
estatais.
Essa participação do setor privado se dá via contratos de concessão, permissões,
autorizações, ou mesmo arrendamento de áreas e outras formas de parcerias, mantendo
o controle do Estado, mas com atribuições regulatórias e fiscalizatórias, principalmente.
Em parte, tais mudanças foram permitidas pelas Emendas Constitucionais nos 5,
e 8 de 1995, que atingiram, respectivamente, os arts. 25, § 2 o (relativo ao monopólio
dos estados-membros nos serviços de gás canalizado) e 21, XI (sobre o monopólio da
União s/ serviços de telecomunicações). Pelo texto constitucional anterior, essas
atividades podiam ser exploradas apenas por empresas estatais. O que mudou, na
verdade, não foi a natureza de serviço público dessas atividades; apenas propiciou-se
que elas pudessem ser exploradas por empresas privadas mediante regime de
concessões (ou outras formas de parcerias) do poder público, que continua titular das
atividades em pauta12.

10
Pelo menos naqueles serviços classificados como privativos, como se verá a seguir.
11
Segundo Di Pietro, essas atividades são consideradas serviços públicos porque atendem a necessidades
coletivas, mas impropriamente públicos, porque falta um dos elementos do conceito de serviço público
(a gestão, direta ou indireta, pelo Estado). Grau observa que tais serviços quando exercidas pelo
Estado, assumem caráter de serviço público; quando exercidas por particulares, seriam atividades
econômicas em sentido estrito! Esta afirmação denota, mais uma vez, a inconsistência da tentativa de
distinguir serviços públicos e atividade econômica empresarial. Afinal, se uma empresa particular atua
em área definida como serviço público mediante concessão, nem por isso ela deixa de estar exercendo
atividade empresarial.
12
No caso das emendas relativas ao gás canalizado e telecomunicações, retirou-se do texto original a
expressão “..concessão a empresas sob controle acionário estatal...”. Sem essa especificação
restritiva, as concessões podem ser feitas a qualquer empresa (estatal ou privada).

6
7

Esse processo, em geral chamado de privatização13, foi acompanhado pela


criação de agências reguladoras setoriais instituídas com o papel de normatizar as
atividades em seus respectivos âmbitos de ação, proceder às licitações para concessões
ao setor privado, elaborar e gerir os contratos de concessão, fiscalizar atividades,
compor conflitos entre os agentes, garantir direitos dos consumidores etc.; atinge
setores diversos, tais como telecomunicações, energia elétrica, portos.

Intervenção na propriedade imóvel: políticas urbana e agrária


No tratamento das políticas urbana e agrária 14, destaca-se um elemento comum
que é a possibilidade de intervenção do Estado na propriedade privada, na tentativa de
direcionar as formas de uso do solo. Em ambas, também, está mais ou menos implícita
a idéia de que a propriedade do solo (as propriedades imóveis) deve cumprir uma
função social.
Na área urbana, uma propriedade imóvel cumpre essa função quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 182,
§ 2o) que é, este plano, obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes,
constituindo-se instrumento básico da política de desenvolvimento urbano, a ser
executada pelos municípios (182, caput e § 1o ). O poder público municipal pode,
inclusive, exigir do proprietário do solo não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento (art. 182, § 4o ).
A propriedade rural tem as características de sua função social estabelecidas no
art. 186, que inclui: a) aproveitamento racional e adequado (basicamente rendimento da
produção por área); b) preservação do meio ambiente; c) observância da legislação
trabalhista e d) exploração que favoreça o bem estar de trabalhadores e proprietários.
Função social é, assim, um modo de estabelecer uma obrigação para o
proprietário: a propriedade obriga..- deve ser usada de certa forma (para fins
produtivos e socialmente relevantes) e não de outra (para fins meramente especulativos,
por exemplo). Nesse sentido, o princípio da função social impõe que o uso da
propriedade se faça para uma finalidade outra que não apenas o interesse particular de
seu proprietário; condiciona seu uso a uma finalidade de interesse social, portanto.
Deve-se observar, também, que a imposição dessa obrigação difere de outros
tipos de limites colocados à propriedade (relacionados ao direito civil e
administrativo15), à medida que estes freqüentemente dizem respeito a proibições (a
obrigações de não fazer), enquanto a função social imporia prestações positivas
(classificadas como obrigações de fazer).
O que importa, no entanto, é que para ser mais do que mera retórica, as
previsões legais sobre função social precisam apresentar sanções pelo seu
descumprimento. A questão que se coloca, então, é: quais as possíveis conseqüências
13
Ressalve-se que, juridicamente, nem sempre se trata de privatização propriamente dita. Esta consiste
na transferência da propriedade de ativos públicos para empresas privadas - ou, mais claramente:
venda de empresas estatais. Concessões, por exemplo, como as que estão sendo efetivadas nos Portos -
em que se arrendam áreas, terminais de cargas, e outras instalações essenciais para que sejam operados
por empresas privadas, não constitui privatização, estritamente falando. O sentido óbvio no qual se usa
o termo - mais geral - é o de que, com ou sem venda de ativos públicos, está-se ampliando a
participação privada nessas atividades.
14
A Constituição fala em política agrícola (que diz respeito à atividade econômica rural - produção) e
fundiária (que diz respeito à distribuição da posse da terra). É habitual, entretanto, designar por agrária
às duas em conjunto.
15
Como direitos de vizinhança (no direito civil) e exercício do poder de polícia (no direito
administrativo).

7
8

jurídicas que decorrem do descumprimento da função social? Desde logo, é bom


observar que, embora muitos autores atribuam ao cumprimento da função social o
caráter de justificador do direito de propriedade, é certo que o descumprimento não
acarreta a perda do direito; apenas (e em alguns casos) dá margem à ação interventiva
do estado, e mesmo assim sob restrições.
No caso da propriedade urbana, a não edificação ou não utilização do solo - que
podem ser visto como não atendimento às exigências do plano diretor, permite que o
Município intervenha de 3 formas: impondo parcelamento da propriedade ou edificação
compulsória, IPTU progressivo ou desapropriação (com indenização por títulos da
dívida pública).
Para a propriedade rural que descumpra sua função social, a CF prevê a
possibilidade de desapropriação por Interesse Social para Reforma Agrária, mediante
indenização (prévia e justa) em títulos da dívida agrária (art. 184). Contudo, existe uma
contradição implícita no texto constitucional, pois logo a seguir, o art. 185 proíbe as
desapropriações para reforma agrária de propriedades pequenas e médias, e das
produtivas. A caracterização de função social, todavia, em princípio independe de
tamanho e vai bem além do critério da produtividade 16 (que cobriria apenas o requisito
do aproveitamento racional e adequado previsto no inciso I do art. 186). Isso implica
que, na verdade, a desapropriação pode levar em conta apenas um dos requisitos para
cumprimento da função social, e mesmo assim, só sobre imóveis caracterizados como
grandes.
Percebe-se, assim, que neste caso dos imóveis rurais o alcance efetivo do
princípio da função social da propriedade é bastante restrito.
De qualquer modo, a atribuição legal de uma função social à propriedade atinge
alguns atributos importantes desse direito tal como tradicionalmente previsto no direito
civil. Neste, a propriedade é constituída de vários direitos a ela inerentes: direito de
usar (como quiser), de fruir (de se apropriar dos frutos dessa propriedade) e dela dispor;
todos esses poderes atribuídos à propriedade podem ser exercidos pelo proprietário da
forma mais absoluta, sem restrições. Atribuir a esse direito uma obrigação (de fazer) e
uma sanção pelo seu descumprimento implica, pois, relativizar o direito de livre uso e
livre disposição do bem.
A propriedade, lembre-se, tal como vem sendo disciplinada no direito civil de
vários países desde o século passado, tem sua origem como direito individual
fundamental a ser protegido contra o poder do Estado. Daí que atribuir-lhe uma
obrigação, por definição legal, implica uma novidade 17 no direito e a exigência de um
esforço contínuo para superar a sua tradição civilista bem como seus fundamentos.

3. Restrições ao capital estrangeiro


Ainda no Capítulo dos conceitos gerais da Ordem Econômica, é preciso
mencionar - pela importância que tiveram no passado e pelas polêmicas que
envolveram sua alteração - os dispositivos que estabeleciam restrições à atuação do
capital estrangeiro.

16
Uma propriedade média e improdutiva, por exemplo, não cumpre sua função social (à medida que não
é aproveitada racionalmente), mas é isenta de desapropriação...; ademais, pode haver evidente conflito
de critérios: um imóvel pode apresentar um bom aproveitamento produtivo e justamente por isso ter
uma exploração predatória ao meio ambiente (um outro quesito do cumprimento da função social)
17
Uma novidade que vem dos anos 20, com a Constituição de Weimar.

8
9

A alteração constitucional fundamental, efetuada em 1995, nesse assunto,


consistiu na revogação total do art. 171 que diferenciava empresa brasileira de
empresa brasileira de capital nacional18, permitindo que o poder público estabelecesse
medidas protecionistas para estas últimas. Tais medidas poderiam ser tomadas para
setores considerados estratégicos ou imprescindíveis ao desenvolvimento tecnológico
nacional, consistindo nas seguintes: a) conceder benefícios especiais; b) exigir que o
controle efetivo das atividades tecnológicas fosse detido por pessoas físicas residentes
ou entidades públicas; c) estabelecer percentual de participação de pessoas físicas
residentes ou entidades públicas no capital da empresa; previa-se, ainda, o tratamento
preferencial às EBCN nas contratações com o poder público.
Secundariamente, acabaram as proibições de participação do capital estrangeiro
na pesquisa e lavra de minérios (art. 176, § 1 o) e na navegação de cabotagem (art. 178,
antigos §§ 2o e 3o ). Restam, entretanto, as vedações a essa participação na área de
saúde (art. 199, § 3o ) e na propriedade de empresas jornalísticas (art. 222).
Já de outra natureza - na medida em que apenas prevêem controle especial, e
não proibições - são os dispositivos sobre condições para aquisição de propriedade
rural por estrangeiros (art. 190); s/ a participação em instituições e atividades
financeiras, sujeita a controle especial por parte das Autoridades Monetárias (art. 192,
III, revogado pela Emenda 40/2003); e finalmente a previsão de lei que regule os
investimentos diretos e a remessa de lucros (art. 172). Estes dispositivos permanecem
inalterados.

4. Sistema Financeiro
O tratamento constitucional do sistema financeiro se resume a um art. (192) que
apresenta um conjunto de regras genéricas, remetendo-se sua regulação à lei
complementar19. A Emenda Constitucional n. 40/2003 revogou os diversos incisos da
redação original desse artigo, onde constavam, entre outras coisas, a fixação do teto
máximo para juros em 12% a.a., o fim do sistema de cartas-patente (documento que
autorizava a abertura e funcionamento de uma Instituição Financeira, e que era
negociável entre instituições), o monopólio estatal das atividades de resseguro (que já
tinha sido revogado em 1996), o controle da participação do capital estrangeiro nas
instituições financeiras etc.

Bibliografia

BOBBIO, N. (1989). Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo, Polis; Brasília,


Editora UNB.
DI PIETRO, M.S. (1997). Direito Administrativo. São Paulo: Atlas.

18
Definida como aquelas cujo controle do capital votante e poder decisório estivessem nas mãos de
pessoas físicas domiciliadas e residentes no país ou entidades governamentais. As empresas brasileiras
seriam aquelas apenas constituídas sob as leis do país.
19
Até agora, continua vigente a Lei 4.595/64, que criou o Conselho Monetário Nacional, transformou a
antiga SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito) no atual Banco Central do Brasil, dispondo
também sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias e as atribuições das
autoridades monetárias.

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FARINA, E., AZEVEDO, P.F. & PICHETTI. (1997). A Reestruturação dos Setores de
Infra-Estrutura e a Definição dos Marcos Regulatórios: princípios gerais,
características e problemas. In Rezende & Paula (coords.) Infra-Estrutura:
perspectivas de reorganização; regulação, Brasília: IPEA.
GRAU, E. (1991). A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e
crítica). São Paulo: Revista dos Tribunais.

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