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UFPB
2017
2
Nota de tradução:
O quadro abaixo objetiva apresentar a equivalência entre os anos escolares
adotados no Brasil e na França. Importante se faz esclarecer que os conteúdos
desenvolvidos nas disciplinas em cada um desses anos diferem entre os dois países.
Devido à essa diferença de conteúdo, foi feita a opção de não traduzir os anos escolares,
mantendo-os tal qual mencionados no texto em língua francesa.
Brasil France
Grande Section
1° Ano CP
2° Ano CE1
3° Ano CE2
4° Ano CM1
5° Ano CM2
6° Ano Sixième
7° Ano Cinquième
8° Ano Quatrième
9° Ano Troisième
1° Ano Seconde
2° Ano Première
3° Ano Terminale
3
0. PREFÁCIO
0.1. Por uma antropologia didática
Imagina-se que tal estudo não poderia ser conduzido adequadamente dentro de
um isolamento cauteloso, no confinamento que atende a um âmbito arbitrariamente
limitado, timidamente e ciosamente administrado, e completamente entregue a uma
epistemologia oficial. Também não é de admirar que se encontre, em seguida, um
conjunto de considerações que só se aplicam à matemática, e que ganham terreno em
4
Nessa perspectiva, nos pareceu, da mesma forma que para outros que nos
antecederam e que tinham outros propósitos, que o aprofundamento da teoria assumiu,
além da ampliação que falamos, uma verdadeira reconceitualização, na medida em que
os conceitos, alógenos e alóctones, emprestados pelos educadores, seja na cultura atual,
seja nos campos de estudo culturalmente relacionados, nos pareciam incapazes de
explicar os fatos observados, incapazes especialmente de nos fazer ver, por trás dos
fatos, os fenômenos didáticos que deveríamos poder explicar.
A este respeito, uma breve cautela se faz necessária. A expressão ‘relação com o
saber’, que serve como emblema para a reconceitualização pretendida é, em certo
sentido, enganadora: ela não designa uma inclusão ou uma “correção” no mundo já
repleto de conceitos, com os quais se costuma descrever o cognitivo e suas extensões
(“afetivas”, por exemplo). Em outras palavras, não se trata, com a introdução dela, de
1
Destacamos que, para nós, não se trata de forma alguma de desenvolver aqui uma “meta-didática” (e,
muito menos, uma “filosofia” da didática), da mesma maneira que um matemático que, há algumas
décadas, teria prefaciado uma topologia geral durante uma apresentação básica da teoria dos conjuntos –
indispensáveis numa época em que estes conceitos ainda não eram difundidos - poderia ser suspeito de
querer elaborar uma “meta-topologia” ...
2
Privilegiado em vista da ecologia social e cultural corrente da didática da matemática.
5
Em especial, o conceito de ‘relação com o saber’ não abre um novo setor a ser
explorado, não inaugura uma nova especialidade no campo da didática, à qual poderia
corresponder uma Literatura especializada. Ele permite reformular e reproblematizar
várias questões já trabalhadas (ou, para alguns, não trabalhadas, por permanecerem
transparentes), e trazer questões novas, não formuláveis na antiga conceitualização.
portanto, como que realizando uma “performance” social determinada, sendo associada
a uma “competência” específica.
Todo saber S é então ligado a pelo menos uma instituição I, na qual ele está
inserido em relação a uma área de realidade D. O ponto chave é que, um saber não
existe in vacuo, em um vazio social: todo saber aparece, em um momento determinado,
numa sociedade determinada, como que enraizado em uma ou mais instituições.
3
Pode-se descrever a noção de habitat, afirmando que é o endereço do “objeto” em questão, e o nicho,
afirmando que é a profissão que esse “objeto” exerce nesse habitat.
4
A clivagem topo-genética da relação sistêmica com relação ao educador e ao educando também se aplica
ao objeto OS = S: no primeiro caso (p = E), S é visto como algo que se ensina; no segundo (p = e), como
algo que se aprende.
8
O surgimento das relações RI,p (OS) com objetos institucionais de saber OS não
acontece in vacuo. Ele se torna possível por existir, na instituição, todo um universo de
objetos institucionais O, ou seja, de objetos “reconhecidos” pela instituição (e,
geralmente, designados por ela, pelo menos em seu léxico interno), que não são
necessariamente os objetos de saber OS (mas, dentre os quais estes se posicionam), aos
quais estão conectadas uma relação sistêmica RI (O) e as relações institucionais RI,p (O).
2. “SABER”
11
A palavra objeto é empregada nessa última expressão no sentido mais comum, mais restritivo (em
francês) do que na conceituação onde a inserimos aqui.
12
Por exemplo, na manipulação de áreas correspondentes aos domínios de plano materializados no papel,
a relação cultural proporcionará uma objetividade (ou seja, uma certa independência em relação à
instituição), e fornecerá, em determinadas condições, os critérios de validade para as declarações que os
alunos terão de fazer; mas o mesmo não acontecerá, no Lycée, quando os alunos encontrarem pela
primeira vez uma porção do plano não limitado, delimitada por um segmento de reta, uma semirreta e a
linha de uma curva de assíntota a essa semirreta: o fato de a área poder ser finita, e o limite ser infinito,
não corresponderá a nada na relação cultural com o objeto “área”. O mesmo se aplica a uma soma finita
de uma infinidade de números finitos não nulos no que concerne ao objeto “soma dos números”.
13
Endereçado a um indivíduo ou a uma “instância” Z: mas não aprofundaremos este ponto aqui. (Ver
Chevallard 1988f.)
14
Esta é uma situação de avaliação, em que Y “pronuncia” um veredito sobre X em relação a OS. Em
textos anteriores, a notação adotada era E (Y, X, O), em que O é um objeto (institucional) qualquer.
15
A presença de uma instituição já é necessária para, simplesmente, poder se referir a OS.
11
um julgamento do tipo “X conhece OS”, ou “X não conhece OS” deverá ser percebido
alusivamente a I (e a RI,p (OS)).
dizer a outro pedagogo Z: “Trabalhamos com X esta manhã, mas como ele não sabe
muito bem o que Nicolas fez com seus retângulos – você sabe, quando se precisa
determinar o número de retângulos dentro de um retângulo – empacamos no problema”.
1 2 3 4 5 15
30
45
60
150
17
Ver a figura abaixo.
18
Podemos imaginar que, no jargão da profissão, o tipo de gesto que X acaba de realizar é conhecido
como “cálculo de retângulos”.
13
Por outro lado, nesse mesmo caso em que OS é um teorema, mas X é um aluno,
um professor Y poderá dizer “X sabe OS”, afirmação que teria um significado diferente
se OS tivesse o estatuto de exercício, e significaria que X “já fez” O S, já que, de acordo
com o contrato didático usual, um exercício não precisa ser “sabido”, mas “ser feito”.
19
Adotamos, nesse comentário, o jargão profissional emprestado aos protagonistas do evento 3.
20
Deve-se notar, com efeito, que alguns didáticos puderam fazer uso da palavra tarefa na análise didática,
emprestando-a, como se fosse evidente, e sem considerar as variações institucionais do estatuto dos
objetos, à psicologia do trabalho, onde, sem dúvida, ela tem seu lugar.
14
ele o sabe, ou que o conhece, ou não: “para calcular o número de retângulos, nós
numeramos as casas da primeira linha, etc.”21
Ao mudar de uma instituição para outra, com a qual possamos dizer que o saber
S está “envolvido”, vemos esse saber S e os objetos de saber O S serem tomados em
várias relações institucionais diferentes. De fato, o próprio corte do saber S em objetos
OS varia. A ecologia institucional dos objetos OS – o sistema dos objetos e das relações
institucionais que constituem o ambiente no habitat onde esses objetos vão “viver” –
varia também.
Porém, o que, então, nos permite dizer que encontramos o mesmo “elemento” do
saber S em instituições diferentes, sob objetos institucionais diferentes? Aqui, devem ser
distinguidos dois tipos de problemas.
Por outro lado, uma instituição I poderá, através da noosfera a que pertence,
buscar reconhecimento de uma instituição de saber relativa a S – aparecendo como
árbitro cultural, e dotada de poder de investidura reconhecido pela cultura –, que “é
realmente o saber S” que está envolvido no jogo em I – problema que se torna essencial,
especialmente quando I for uma instituição de ensino de S.
3. ENSINAR
Porém, esse pacto original é, em essência, um desafio, uma aposta perdida por
antecipação. Seja qual for, de fato, a maneira como são criadas as condições que nós
mencionamos, estas se reduzirão, em essência, a um sistema de objetos institucionais O
(de saber ou de outro tipo) e de relações institucionais R(O), como seria o caso em
qualquer outra instituição (em que o saber S estivesse presente).
Como qualquer outra instituição desse tipo, a instituição com pretensão didática
está sujeita a essa necessidade, e deve assumir a natureza arbitrária – igualmente
necessária – do contrato institucional (neste caso, didático) que ela estabelece. Portanto,
a intenção de ensinar S não estabelece em si mesma a legitimidade do empreendimento
educacional. Isso porque o sistema de objetos e as relações institucionais em que se
materializa o destino de S dentro de uma instituição de ensino é a priori um sistema
entre outros possíveis, e sobretudo, entre outros realmente existentes. Porém, a
adequação entre aquele e este é improvável de se realizar. Mesmo em uma instituição de
formação profissional, a relação R(S), já não pode se sobrepor à relação R P (S)
prevalecente na profissão P. Em um dos casos, o saber aparece por um lado como a
ensinar e por outro como a aprender, até mesmo a ser usado (implementado); no outro
caso, afigura-se desde o início como a utilizar30.
28
A intenção didática que as estimula está inscrita na relação institucional R I (S), aqui com notação (por
padrão) R(S).
29
Ver Chevallard 1988d.
30
Eventualmente, para produzir o saber S (é o caso das instituições acadêmicas).
18
“problema” – por exemplo, a fabricação de uma mesa com uma característica particular
– servirá para o educador fazer com que se aprenda ou verificar que se aprendeu, para o
educando aprender ou mostrar que aprendeu, enquanto que para o especialista no
assunto, o seu interesse, o seu valor e o seu significado se encontrarão na solução
fornecida – que, aliás, transformará o “problema” em uma “tarefa”31.
A maneira usual de resolver este conflito cada vez mais recorrente pode ser
resumida, essencialmente, em dois pontos.
31
Notar-se-á que a tendência, atestada, em especial, em uma série de trabalhos de engenharia didática, de
assegurar aos próprios alunos, e depois lhes “institucionalizar”, certos “resultados” que o contrato
didático tradicional normalmente atribui ao curso e ao professor constitui objetivamente uma tentativa de
aproximar o universo didático do universo profissional. Sob o slogan da “construção por parte do aluno
de seu próprio saber” (ao qual retornamos mais tarde), descobre-se uma tentativa parcial de resolver o
conflito epistemológico fundamental, cuja superação, no entanto, passa essencialmente por outros meios,
como veremos.
19
32
Assim acontece com inúmeros saberes ditos “profissionais”. Neste caso, a sapientização pode ser feita
através de empréstimo e de integração (mais ou menos vistosos) de fragmentos de vários saberes
acadêmicos.
33
Ou saber “sapientóide”. Tais processos de sapientização podem afetar um saber além de qualquer
vontade de ensiná-lo.
20
34
Essa necessidade está relacionada ao fenômeno geral de redução da espessura semiótica, que faz com
que o “vivido” não possa exaustivamente render-se a um dito.
35
Ver Chevallard 1988f.
36
A amnésia, externa e interna, da escola em relação a si mesma, é, portanto, um constrangimento
consubstancial à sua missão na sociedade. Nesse sentido, poderemos dizer da escola que ela se exclui - se
não por si só -, seu próprio passado e sua própria substância, e que a sua afirmação social e cultural passa
pela escotomização das práticas sociais da escola. Essa negação, a escola a aplica mesmo às práticas da
esfera acadêmica, das quais ainda aguarda legitimação - de acordo com um distanciamento de práticas
acadêmicas que conduzem a escola diretamente ao empirismo: ver Chevallard 1989a, pp.68-69.
21
É sobre esta que a atenção do mundo exterior se concentra, e é ela que contribui
em nos designar, como a cena primordial, onde o pacto original deve se realizar - e onde
ele poderá se encontrar rompido. Durante momentos como estes, indefinidamente
revividos, a instituição de ensino reencontra seu experimentum crucis, e são estes
episódios da vida da instituição que encontram-se negociados na “representação de si".
É em relação a estes que a escola recebe o aval da instância de investidura cultural e
social que a legitima aos olhos da sociedade.
37
O currículo é o conjunto dos estados percorridos pelo sistema de ensino ao longo do tempo didático,
sendo o estado, ele mesmo, definido como o sistema dos objetos e das relações institucionais.
38
É esta realização, por exemplo, que registra oficialmente o, tão adequadamente denominado, cahier de
textes (agenda escolar de textos).
22
Se, de fato, o educador não tivesse o que fazer para o aluno aprender, ou melhor
se o educador não fizesse nada culturalmente visível para o aluno aprender, a instituição
educadora da qual este participa perderia sua razão de existir, e o pacto original se
encontraria rompido40. E se, da mesma maneira, o educando não tivesse o que fazer para
aprender, se ele não realizasse um gesto qualquer que demonstrasse culturalmente que,
de fato, ele está aprendendo, ou ao menos que ele utilize os "meios” à sua disposição
para aprender, então os próprios gestos do educador seriam suspeitos de não passarem
de uma simples paródia de ensino41.
clivagem topo-genética é ocultada do observador exterior pelo fato de que, aqui, mais
do que nunca, o sistema didático funciona como um sistema, que integra a atividade de
seus atores em suas diversas posições, prestando “serviços”, cuja produção não é
inteiramente feita nem pelo educador nem pelo educado.
44
Estas relações de poder se estabelecem num contexto de cooperação entre educador e educandos,
segundo uma lógica de progresso que descrevemos sob o nome de tempo didático (Ver Chevallard e
Mercier, 1987).
45
Esta palavra ainda não foi definida na teorização exposta aqui: nós voltaremos a este ponto mais à
frente.
46
Essa discrepância entre ensino e aprendizagem é uma crítica em potencial da quantidade de trabalhos
de didática, cujos autores, recuperando sem analisar as ficções da instituição e da sociedade, se deixam
fascinar pelo que nós denominamos de “momento de ensino”.
25
A discrepância da qual nós falamos é, sem dúvida, mais visível nas primeiras
situações de avaliação, internas ao sistema didático, que oficialmente visam verificar se
os alunos aprenderam - o que supõe que o ensino relativo a O S, ou no mínimo uma parte
deste, foi “dado”. De tais situações, efetivamente, se distinguem as situações
anteriormente percorridas pelos atores da relação didática visto que o “corpo a corpo
didático” inicial52 abre espaço a uma organização onde o educando só entra em contato
com o educador, a respeito do desafio didática OS, indiretamente, pela intervenção do
enunciado dum dever53.
51
A conceitualização aqui apresentada faz referência às funções didáticas, onde a familiaridade cultural e
institucional com o sistema de ensino nos leva a ver as estruturas didáticas (“o curso”, “os exercícios",
“os deveres”, etc.), que são todas objetos institucionais. Referente a isso, observaremos que a descrição
estrutural é ambígua: desta forma, o curso pode constituir o gesto essencial do educador no contexto da
relação didática oficial se, enquanto estrutura didática, ele acontece (e encontra sua função) dentro da
organização didática tradicional (com o curso e em seguida trabalhos dirigidos, ou o curso e em seguida
exercícios); entretanto ele pode constituir as premissas da institucionalização, ou seja, da saída da relação
didática oficial, se ele acontece dentro da organização didática prevalente hoje na França na maior parte
dos trabalhos de engenharia didática.
52
Caracterizado, em particular, pela atenção que o educando deve prestar aos "gestos" do educador.
53
A diferença se traduz concretamente de maneira visível. O aluno está face a face com o dever a ser
feito. O educador é provisoriamente colocado de lado; se ele intervir durante o trabalho dos alunos (por
exemplo, para lhes dar tal ou tal indicação complementar), ele terá dificuldade em obter as suas atenções:
assim se produz a relação institucional, para o aluno, com o educador, R e(E). O educador só voltará a
participar durante a correção do dever.
54
Ver Chevallard e Feldmann 1986.
27
descrevê-lo como o adidático interior, ativado ou não pelo didático alimentado por
objetos do saber provenientes do exterior. As situações de avaliação, referentes aos
objetos OS desafios didáticos, dão lugar aqui às situações de validação, que são a
reflexão, relativa aos objetos antigamente ensinados, das situações de avaliação em
relação aos objetos desafios didáticos. Num lugar mais afastado em relação ao do
educando (the taught), organiza-se a rede onde o indivíduo vai se constituir como aluno
(the student), e donde o aprendiz (the learner) poderá emergir56.
4. “APRENDER”
De acordo com a teorização apresentada até aqui, não podemos dizer de alguém
que este sabe (ou não) Matemática (ou as matemáticas) - ou qualquer outro saber. Um
indivíduo X só pode ter, com um dado objeto de saber, O S, uma relação pessoal,
emergente de um sistema de relações institucionais (tal qual a relação didática),
relações estas ternárias onde o indivíduo X participa com o objeto de saber O S e um ou
mais agentes da instituição I.
Desta relação pessoal resulta, notavelmente, tudo aquilo que acreditamos poder
ser dito - em termos de “saber”, “saber-fazer”, “concepções”, “competências”,
"maestria”, “imagens mentais”, "representações”, “atitudes”, “fantasias”, etc. - de X a
respeito de OS. Tudo aquilo que pode ser enunciado - corretamente ou não,
pertinentemente ou não - deve, na melhor das hipóteses, ser compreendido como um
aspecto da relação pessoal de X com OS. O conceito de relação (pessoal) com um
(objeto de) saber apresenta-se, assim, englobando os aspectos fragmentários nos quais,
geralmente, o dissociamos. Ele não faz referência a um novo aspecto da cognição, e não
é uma adição inédita à, já bastante rica, “teoria” cultural da cognição.
Nas sociedades ocidentais, a relação cultural RC($) nos diz que de fato o saber é
uma “coisa”, que adquirimos, da qual nos apropriamos e tornamos nossa, como
faríamos com um bem econômico. O modelo primário é aqui talvez aquele da
manducação e da ingestão (portanto da “interiorização”) de um bem alimentar,
transmitido pelo tema da apropriação - eventualmente pelo furto - de saberes e de saber-
fazer ocultos, mantidos ciosamente em segredo, e de saberes rituais e/ou esotéricos, cuja
eficácia (eventualmente, apenas simbólica, mas constantemente vista como vital) os
torna desejáveis.
Na estrutura abstrata, essa relação cultural “enuncia” que o saber aparece, para o
sujeito, como um bem que lhe é exterior, que caberá a ele interiorizar. Observando que
o lugar de interiorização-apropriação-assimilação dos bens alimentares é o aparelho
digestivo, e, através dele, todo o soma, o corpus; temos também que o lugar de
interiorização-apropriação-assimilação dos saberes é a cabeça, a psique, a mens.
Finalmente, o modelo primitivo da interiorização dos dois é a tesaurização.
peso de RC($) sobre R(X,$) é visível em certas “patologias” da relação pessoal, onde o
sujeito aparenta desejar absorver tudo do saber que lhe é apresentado - na escola e para
além dela60. Mas ele afeta também a relação institucional RD($) da comunidade dos
pedagogos da matemática, a qual, por sua vez, exerce um peso sobre a relação
institucional com as matemáticas, RD(M) , que prevalece nesta comunidade.
Os enunciados binários comuns - que opõem “saber” e “não saber” - podem ser
considerados como descrições da relação pessoal, vista nesse caso como sistema, cujo
espaço dos estados será constituído apenas de duas posições antagônicas. Na relação
cultural com o saber, RC($), a descrição da relação pessoal com todo (objeto do) saber se
reduz assim a dois estados possíveis: “saber”, “não saber” - uma descrição mais
aguçada, mas ainda unidimensional, da relação pessoal sendo, contudo, expressa: “Ele
alterações que levaram ao destaque do saber como um bem que (re) construímos nós mesmos e para nós
mesmos - como faríamos para nossa casa, ou qualquer outro bem de posse pessoal. Daí, por projeção
sobre a esfera dos saberes da relação cultural dominante com instrumentos e bens econômicos, a
insistência, dita construtivista, mas verdadeiramente individualista-de classe média, na “construção, por
parte da criança, do seu próprio saber”, etc. O cada-um-por-si “liberal”, que deve permitir que a criança
“floresça”, substitui a soupe populaire (sopão), que deveria ser tomado pois este auxilia no crescimento e
permite constituir a capacidade de trabalho economicamente indispensável.
60
O sujeito poderá, por exemplo, se interrogar constantemente sobre a “realidade” de “seu saber”,
relacionada à sua capacidade de representá-la, para si mesmo, mentalmente, a todo instante, em sua
integralidade. Neste ponto, oporemos esta relação àquela de muitos dos pesquisadores, para os quais o
saber do domínio no qual se foca a sua pesquisa é antes de tudo - e mesmo unicamente - uma ferramenta,
cuja “posse” só é valorizada na medida em que o seu emprego aparenta ser necessário para produzir um
saber.
61
No terceiro parágrafo
62
Pois a mudança em RC($) é um outro problema, muito mais vasto.
31
conhece o bastante pra conseguir fazer” “Com o pouco de inglês que conheço, eu
consegui fazê-lo compreender”, etc.
Deve ser óbvio que este tipo de descrição é eminentemente redutivo63. O que é
saber inglês? Ou matemática? Ou mesmo, o que é saber resolver os sistemas lineares de
equações com duas incógnitas? A descrição binária culturalmente comum tem,
entretanto, uma funcionalidade evidente, que é também o fator essencial do seu sucesso
social. Ela possui um aspecto claramente operacional – que, aliás, tende a atenuar-se a
partir do momento que passamos de uma binariedade estrita para uma pluralidade
unidimensional de modalidades64 -, visto que ela se mostra dotada de uma informação
suficiente para a tomada de decisão nos contextos institucionais onde ela é posta em
prática.
63
Todavia acrescentando que a relação cultural com $ oferece uma análise mais aguçada (!) sob a forma
de uma dicotomia ancorada na história das sociedades ocidentais, distinguindo entre “saber” e “saber-
fazer”, entre “saber que” (to know that) e “saber como” (to know how), etc. Se trata neste caso de
variantes, significativas dentro da cultura, mas que a conceitualização aqui apresentada não pode retomar
por conta própria.
64
“Eu não conheço bem este modelo, prefiro não mexer nele; vá antes falar com o distribuidor da marca”,
poderíamos, por exemplo, ouvir dizer.
65
Pegando apenas um exemplo, “saber mecânica automotiva” só pode ter um sentido amplo - fora da
oficina mecânica determinada - se o ofício correspondente é bastante homogeneizado; se, em suma,
aquele que ontem “sabia” a mecânica automotiva enquanto trabalhava em tal garagem, “saberá” ainda
numa nova oficina onde ele irá trabalhar amanhã. Podemos aqui fazer referência às notas de D’Alembert
sobre o estado de fragmentação das artes e ofícios que foram descobertas por aqueles que investigavam
em nome da Enciclopédia.
32
Ainda que, de fato, em outras instituições só seja necessário dizer que “X sabe”
ou que “X não sabe”, e que é possível ignorar a alquimia do ensino e da aprendizagem 66,
o mesmo não é válido aqui. As formulações binárias permitem dar uma descrição
culturalmente significativa disto que temos chamado de proscênio didático. Elas não
permitem exprimir o que se passa neste outro momento em que se produz o "trabalho do
contrato", a evolução (interna, mas também externa) das relações institucionais e, no
fim das contas, a evolução da relação pessoal dos alunos com os objetos de saber
ensinado.
66
A esse respeito, pode ser que as coisas mudem: a afirmação, válida para as práticas sociais congeladas,
ou em lenta evolução, pode não ser bem assim, mesmo no próprio cerne das práticas profissionais, desde
que haja uma evolução rápida das relações institucionais estabelecidas no interior da instituição
(profissional), através de “perturbações exteriores” que exprimam a mudança acelerada, ligada, em
grande parte, aos progressos técnicos, estes concretizados na aparição, sempre repetida de novos objetos.
Essa mudança leva a uma maior penetração do didático e do profissional.
67
Disto encontraremos uma repetição nestes leitmotiv que, regularmente, nos lembram de que “os alunos
não sabem calcular” ou “não sabem ler um enunciado”, etc.
33
entretanto - e por um bom motivo! - a idoneidade exigida. “Mas eu o sei!”: tal poderia
ser o desabafo do aluno que está preso na armadilha das formulações da cultura. Pois,
aquilo que é “o saber” certamente terá mudado tanto, de uma maneira indizível na
linguagem oficial da instituição, que ele não poderá nem mesmo notar.
68
Em relação a isto, é sempre inquietante se escutar um educador universitário (que pode, até certo ponto,
escolher seus ensinos) dizer que está disposto a assegurar o ensino desta ou doutra matéria porque ele “a
conhece bem”, se subentende: por tê-la ensinado diversas vezes. Trata-se neste caso de uma forma
culturalmente insidiosa de “secundarização” do ensino superior e de um fator objetivo de
conservadorismo (e desta maneira de regressão científica).
34
A sujeição é esta ligação que nos permite existir como ser social: ela é o lado
negativo do poder, e pelo qual nós temos acesso ao real e à ação 70. É neste sentido, em
particular, que é preciso compreender a afirmação, feita mais acima, segundo a qual
“um indivíduo concreto só pode se relacionar com um saber ao entrar numa relação com
uma ou mais instituições”. Longe de se opor à liberdade do indivíduo, sua sujeição
apresenta-se como a renúncia que permitirá efetivar a sua liberdade, ao fornecer formas
concretas, inclusas no real social.
69
As notações que são frequentemente expressas na própria linguagem da cultura: de onde resulta o seu
tom, de certa forma dissonante, em relação às análises que precedem.
70
A ideia não tem nada de original: se a corrente não está corretamente sujeita ao pedal, a bicicleta não
pode se mover. Desta forma, existe uma dialética da liberdade e do poder que facilmente se revelará como
paradoxal a quem, de maneira simples, se opõe aos dois: se desejo me deslocar de um lugar a outro, eu
pego o trem, assim me sujeitando a uma instituição e às suas regras (suas relações institucionais); se
desejo escapar desta sujeição para preservar minha “liberdade”, eu posso também pedir carona, mas então
eu estarei, na melhor das hipóteses, a me submeter a outro tipo de sujeição que - tal é o paradoxo - poderá
revelar-se ainda mais restritivo.
71
Ver Chevallard 1989c.
72
Para certas observações sobre este ponto, ver Chevallard 1988a.
73
Em contraste, a relação institucional não é a relação de pessoa alguma; ela não é a relação de pessoa, e
sim a relação do sujeito ideal-imaginário da instituição.
35
Referências
74
Em particular, estudos como "concepções de alunos do cinquième em relação à perspectiva" - para
mencionar aqui somente um exemplo - são passíveis de trazer apenas indicações sobre o que, nessa
instituição onde participam especificamente “as crianças do cinquième”, não é outra senão a relação
institucional com o espaço e sua representação. Associando a relação assim evidenciada com a pessoa do
aluno - impropriamente, mas usualmente, chamado de “sujeito”- tais estudos, incorretamente
problematizados, só podem servir para ocultar a pessoa e, ao mesmo tempo, integralmente, (N.T.: o
arquivo finda, incompleto, neste ponto)
36