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UFPB
2017
2

Nota de tradução:
O quadro abaixo objetiva apresentar a equivalência entre os anos escolares
adotados no Brasil e na França. Importante se faz esclarecer que os conteúdos
desenvolvidos nas disciplinas em cada um desses anos diferem entre os dois países.

Devido à essa diferença de conteúdo, foi feita a opção de não traduzir os anos escolares,
mantendo-os tal qual mencionados no texto em língua francesa.

Brasil France

EDUCAÇÃO INFANTIL MATERNELLE

Creche Petite Section

Pré- Escola Moyenne Section

Grande Section

ENSINO FUNDAMENTAL I ÉCOLE PRIMAIRE

1° Ano CP

2° Ano CE1

3° Ano CE2

4° Ano CM1

5° Ano CM2

ENSINO FUNDAMENTAL II COLLÈGE

6° Ano Sixième

7° Ano Cinquième

8° Ano Quatrième

9° Ano Troisième

ENSINO MÉ DIO LYCÉE

1° Ano Seconde

2° Ano Première

3° Ano Terminale
3

Tradução de Arthur Santos e Edilza Detmering

O CONCEITO DE RELAÇÃO COM O SABER


RELAÇÃO PESSOAL, RELAÇÃO INSTITUCIONAL, RELAÇÃO OFICIAL
Yves Chevallard

INSTITUTO DE PESQUISA PARA O ENSINO DA MATEMÁTICA (IREM) de Aix-Marseille


Faculdade de Ciências de Luminy

0. PREFÁCIO
0.1. Por uma antropologia didática

A questão do saber e dos saberes, de sua produção e gestão sociais, é central em


toda sociedade humana. Para esta, o problema da aprendizagem e do ensino dos saberes
é vital, e tem importância cada vez maior.

Da mesma forma, o surgimento de uma antropologia dos saberes – hoje


fragmentada em uma variedade de disciplinas e subdisciplinas – deve ser recebido como
um evento histórico determinante. No cerne dessa antropologia dos saberes, se
desenvolve, por décadas, toda uma antropologia da didática. Naturalmente, é nesse
contexto, que convém situar a didática da matemática: enquanto que uma antropologia
da matemática deve definir o ser humano – ou seja, as sociedades – como campo de
estudo, “lutando com a matemática”, incluindo o ser humano que produz e usa a
matemática, a didática da matemática, no coração dessa antropologia da matemática,
centra-se no estudo do ser humano aprendendo e ensinando matemática.

Imagina-se que tal estudo não poderia ser conduzido adequadamente dentro de
um isolamento cauteloso, no confinamento que atende a um âmbito arbitrariamente
limitado, timidamente e ciosamente administrado, e completamente entregue a uma
epistemologia oficial. Também não é de admirar que se encontre, em seguida, um
conjunto de considerações que só se aplicam à matemática, e que ganham terreno em
4

relação à problemática didática aperfeiçoada, a fim de situar esta (a matemática) e


aquele (o estudo) em um contexto mais amplo, o qual não estamos convencidos de
poder dispensar, de uma ecologia social e cultural dos saberes.1

0.2. Aprofundamento e reconceitualização

A teoria apresentada na sequência inscreve-se na continuação da teoria da


transposição didática, da qual pretende constituir, ao mesmo tempo, uma ampliação
(com a noção de transposição institucional) e um aprofundamento (com a noção de
relações institucional e pessoal).

Esse movimento “abrangente” só surpreenderá àqueles que – em parte, pelas


razões relacionadas ao estado do sistema das posições dentro do campo didático –
quiserem visualizar, na teoria da transposição didática, o estudo de um “aspecto”
apenas, dentre muitos outros possíveis, distintos e até mesmo disjuntos, dessa realidade
que temos denominado a didática – enquanto que, para nós, ela foi unicamente um
ponto de entrada privilegiado2 na antropologia didática dos saberes, e em particular, dos
saberes matemáticos.

Nessa perspectiva, nos pareceu, da mesma forma que para outros que nos
antecederam e que tinham outros propósitos, que o aprofundamento da teoria assumiu,
além da ampliação que falamos, uma verdadeira reconceitualização, na medida em que
os conceitos, alógenos e alóctones, emprestados pelos educadores, seja na cultura atual,
seja nos campos de estudo culturalmente relacionados, nos pareciam incapazes de
explicar os fatos observados, incapazes especialmente de nos fazer ver, por trás dos
fatos, os fenômenos didáticos que deveríamos poder explicar.

A este respeito, uma breve cautela se faz necessária. A expressão ‘relação com o
saber’, que serve como emblema para a reconceitualização pretendida é, em certo
sentido, enganadora: ela não designa uma inclusão ou uma “correção” no mundo já
repleto de conceitos, com os quais se costuma descrever o cognitivo e suas extensões
(“afetivas”, por exemplo). Em outras palavras, não se trata, com a introdução dela, de

1
Destacamos que, para nós, não se trata de forma alguma de desenvolver aqui uma “meta-didática” (e,
muito menos, uma “filosofia” da didática), da mesma maneira que um matemático que, há algumas
décadas, teria prefaciado uma topologia geral durante uma apresentação básica da teoria dos conjuntos –
indispensáveis numa época em que estes conceitos ainda não eram difundidos - poderia ser suspeito de
querer elaborar uma “meta-topologia” ...
2
Privilegiado em vista da ecologia social e cultural corrente da didática da matemática.
5

simplesmente aumentar o repertório de conceitos postos em prática, hoje em dia, na


didática da matemática. Trata-se, porém, de reformular os termos primitivos da teoria –
uma série de termos antigos, tais como aprender e saber (usado como verbo), por
exemplo, tornando-os, doravante, termos derivados.

Em especial, o conceito de ‘relação com o saber’ não abre um novo setor a ser
explorado, não inaugura uma nova especialidade no campo da didática, à qual poderia
corresponder uma Literatura especializada. Ele permite reformular e reproblematizar
várias questões já trabalhadas (ou, para alguns, não trabalhadas, por permanecerem
transparentes), e trazer questões novas, não formuláveis na antiga conceitualização.

Na realidade, a expressão ‘relação com o saber’ é apenas uma breve síntese de


um sistema conceitual (ou melhor, de um sistema de conceitualização) em que os dois
conceitos (formais) fundamentais são objeto e relação com o objeto. Esses conceitos
devem permitir que se formule “o cognitivo”, sem se limitar a este – os “objetos” que
somos levados a considerar, não são necessariamente “objetos cognitivos”, no sentido
que essa expressão pode ter no uso habitual do qualificativo.

Estes conceitos, entre outros – o do saber e o da instituição, em particular –,


serão considerados a seguir, como conceitos fundamentais da antropologia dos saberes,
e portanto, da didática da matemática.

1. O CONCEITO DE RELAÇÃO INSTITUCIONAL


1.1. Áreas de realidade, saberes e instituições

Partirei do conceito de saber (a palavra sendo usada como um substantivo). A


cultura de uma determinada sociedade reconhece a existência de saberes, que, para esta
instituição que é a cultura (“corrente”) da sociedade, são os objetos institucionais – ou,
neste caso, os objetos culturais.

No sistema de objetos culturais, esses “objetos” particulares – os saberes – são


de um tipo específico. Culturalmente, há possibilidade de reconhecimento de um saber,
quando, do ponto de vista da cultura, se recorta, no tecido das práticas sociais, um
sistema de práticas sociais. Tal sistema, em relação a uma determinada área de
realidade (ela própria, objeto cultural), marca a sua diferença, cujos atores são vistos,
6

portanto, como que realizando uma “performance” social determinada, sendo associada
a uma “competência” específica.

É a este sistema de práticas sociais que denominaremos instituição. Um trio


desse tipo (área de realidade, instituição, saber) constitui o que chamaremos de
formação epistemológica. Notamos, imediatamente, que a uma mesma área de realidade
pode ser (e, geralmente, é) associada uma pluralidade de instituições, onde emerge uma
pluralidade de saberes.

Todo saber S é então ligado a pelo menos uma instituição I, na qual ele está
inserido em relação a uma área de realidade D. O ponto chave é que, um saber não
existe in vacuo, em um vazio social: todo saber aparece, em um momento determinado,
numa sociedade determinada, como que enraizado em uma ou mais instituições.

Em consequência, um indivíduo concreto só pode entrar em contato com um


saber ao interagir com uma ou mais instituições. O surgimento da relação pessoal de
um indivíduo X com um saber S requer o estabelecimento de relações institucionais
entre esse indivíduo e essas instituições.

1.2. Instituições, objetos de saber e relações institucionais

Uma instituição I em que um saber S aparece define uma relação institucional


com S, representada por RI (S). No caso em que, por exemplo, S = M = “matemática”, e
em que I = “a comunidade de matemáticos”, essa relação terá como conteúdo principal
uma problemática de produção de matemática (“matemática é algo que tem a ver com
produzir”); se I = “o sistema de ensino da matemática”, a problemática será a do ensino
(a matemática é algo que tem a ver com ensinar”); de modo mais geral, em outras
instituições, “de teor matemático”, RI (M) será uma relação de uso (“a matemática é
algo que se utiliza”, desta ou daquela forma). Numa reunião entre matemáticos e não-
matemáticos, a matemática pode ser algo que não se produz, não se utiliza, não se
ensina, mas simplesmente “de que se fala”. (Todo saber pode ser problematizado dentro
de instituições específicas.)

Em geral, numa instituição I em que S está presente, ocorre um “recorte”


institucional de S, análise do saber próprio da instituição (mas que segmenta
amplamente o recorte operado nas outras instituições em que S está presente), segundo
7

um processo que resulta, num dado momento, em uma definição de um sistema de


objetos de saber Os, articulado em um texto do saber S, atrelado à instituição I.

Para cada um desses objetos institucionais de saber OS existe, então, uma


relação institucional RI (OS). A relação institucional com OS “enuncia”, basicamente, o
que é feito em I “com” OS, como OS está envolvido; ou, ainda, em termos mais
imagéticos, qual é o “destino” de OS em I.

De forma mais específica, a análise da ecologia institucional do saber S leva ao


estabelecimento, dado um objeto OS, dos seus habitats, quer sejam os “lugares” onde se
encontra, e os objetos OS’ com os quais ele se associa, e que é, em cada um dos seus
habitats, seu nicho ecológico; quer seja o conjunto de todas as inter-relações que o
objeto OS em pauta mantém com os objetos associados OS’, bem como a estrutura e as
funções dessas inter-relações.3

A relação institucional RI (OS) é o que aparece quando se observa o destino de OS


na instituição I vista como um todo (como um sistema): diremos que é a relação
sistêmica com o objeto OS. Porém, essa relação sistêmica, que registra “o que é feito
com OS” em I, ou seja o que se faz com OS em I, não registra esse “se”, quer dizer, ainda
não registra quem faz o quê – ou pelo menos, a quem compete fazer o quê – no que se
refere a OS.

Na realidade, existe em uma determinada instituição um sistema de posições p


(ou lugares, topos), a cada um dos quais corresponde uma relação institucional R I,p (OS).
Nessa relação, se inscreve o que é feito com O S quando se está na posição p na
instituição I. Assim, quando I for um sistema didático relativamente a um saber S,
distinguir-se-á, em particular, dois lugares, o do educador e o do educando, e, assim,
duas relações, RI,E (OS) e RI,e (OS).

Essas relações institucionais RI,p (OS) constituem o sistema essencial das


condições e das restrições sob as quais se forma e evolui a relação pessoal dos atores da
instituição4 com OS. Por outro lado, são as relações pessoais dos atores – desde que elas
sejam suficientemente apropriadas às relações institucionais correspondentes – que

3
Pode-se descrever a noção de habitat, afirmando que é o endereço do “objeto” em questão, e o nicho,
afirmando que é a profissão que esse “objeto” exerce nesse habitat.
4
A clivagem topo-genética da relação sistêmica com relação ao educador e ao educando também se aplica
ao objeto OS = S: no primeiro caso (p = E), S é visto como algo que se ensina; no segundo (p = e), como
algo que se aprende.
8

“sustentam” as relações institucionais, as quais, por sua vez, “sustentam” a ecologia do


saber S na instituição I.

O corte – institucionalmente produzido – em objetos de saber O S irá evoluir,


tanto no tempo interno da instituição tI (o tempo institucional) quanto no tempo externo
T (o “tempo da sociedade”). Objetos de saber desaparecem, novos objetos de saber
surgem, e as próprias relações institucionais mudam. Veremos que, quando I for uma
instituição de ensino do saber S, a dupla evolução – em relação à história interna e em
relação à história externa da instituição – constitui um fenômeno fundamental,
inerentemente conectado à relação RI (S) na sua especificidade didática.

1.3. O sistema de objetos e de relações institucionais

O surgimento das relações RI,p (OS) com objetos institucionais de saber OS não
acontece in vacuo. Ele se torna possível por existir, na instituição, todo um universo de
objetos institucionais O, ou seja, de objetos “reconhecidos” pela instituição (e,
geralmente, designados por ela, pelo menos em seu léxico interno), que não são
necessariamente os objetos de saber OS (mas, dentre os quais estes se posicionam), aos
quais estão conectadas uma relação sistêmica RI (O) e as relações institucionais RI,p (O).

Assim, o sistema de posições institucionais p constitui um conjunto de objetos


institucionais, para cada um dos quais é definido um conjunto de relações institucionais
RI,p’ (p), em que p’ é uma posição institucional. No caso de uma instituição de ensino,
encontram-se os objetos “educador” e “educando” e as relações institucionais com esses
objetos, para o educador e para o educando, respectivamente.

O sistema de objetos e de relações institucionais constitui um saber “prático”5,


que surge no funcionamento da instituição, eventualmente não percebido como tal, de
um ponto de vista institucional 6. No caso de uma instituição de ensino, falaremos aqui
de saber didático.

O sistema de relações institucionais com esses objetos, em relação à posição p,


constitui o contrato institucional, CI,p, que “enuncia”, ou onde se registra, a maneira,
prescrita pela instituição, de os atores na posição p se comportarem em I.
5
Os saberes práticos, ou institucionais, são marcados por um tipo de regime epistemológico - o regime
“profissional” - que já não será mais discutido aqui.
6
A afirmação anterior significa que nós o percebemos como tal, a partir da perspectiva da antropologia
dos saberes.
9

Para cada objeto institucional O, a ecologia institucional traz certos objetos


institucionais o como pertinentes em relação a O no que concerne à posição p, isto é, ela
traz os objetos, tais que a relação R I,p (O) pressupõe certas propriedades das relações R I,p
(o). No caso em que estes requisitos estão satisfeitos, diremos que a relação R I,p (o) é
apropriada a RI,p (O); caso contrário, falaremos de ruptura do contrato institucional.
Veremos que, no caso de instituições de ensino, tais rupturas são sistematicamente
provocadas7 por meio de perturbações “externas”, cujo efeito é a evolução do sistema de
objetos e de relações institucionais. O problema fundamental do ensino é, então, a
criação e o controle dessas perturbações, a fim de se desenvolver o contrato didático8.

1.4. Desinstitucionalização e função “meio”

No decorrer da evolução temporal da instituição (em relação ao tempo interno


tI), os subsistemas do sistema geral dos objetos institucionais vão, definitivamente, se
estabilizar, no sentido em que as relações institucionais com esses objetos vão, durante
um longo período, deixar de evoluir, se revelar “sólidas” diante de perturbações
externas9, e se “naturalizar”, tornando-se transparentes para os atores da instituição. Este
é o fenômeno de desinstitucionalização aparente dos objetos e das relações
institucionais, contemporâneo de um declínio relativo nas relações institucionais com os
objetos considerados, processo pelo qual os atores podem viver a ilusão de um “acesso”
a esses objetos, que não está sujeito à instituição. Em outras palavras, para o ator, o
contrato institucional só se tornará visível, pelo menos localmente, para ser rompido.

Tais subsistemas de objetos vão assumir, para os atores da instituição, uma


função10 de meio, parecendo este ser dotado de uma objetividade além do controle e da
intencionalidade da instituição: podemos dizer que o meio é “a-institucional”.
7
Existem também rupturas erráticas, não controladas, que levam a conflitos contratuais, permanentes ou
não.
8
Mais precisamente, chamaremos contrato institucional, em relação a p, referente ao objeto institucional
O (de saber ou não), e com notação C I,P (O), o sistema de relações institucionais R I,p (o), em que ‘o’ é
institucionalmente relevante para ‘O’.
9
Essa robustez é, obviamente, relativa às perturbações externas suportadas. Assim, no Collège, a questão
da fatoração primária de um número inteiro aparecerá como regulada e transparente, enquanto que não
está na esfera erudita: a perturbação que padronizaria a robustez e, portanto, o caráter transparente e
natural da relação institucional com o objeto “fatoração primária de um número inteiro” poderia consistir,
simplesmente, em expor o problema da fatoração efetiva de um número muito grande, por exemplo, de
uma centena de dígitos.
10
Será mais preciso dizer que esse ou aquele sistema de objetos institucionais funciona como um meio
para os atores da instituição nessa ou naquela posição.
10

O “jogo” do ator com esses objetos, lhe parece um jogo de um só jogador, um


jogo “contra a natureza”, dependendo unicamente das propriedades intrínsecas à
“natureza” e de suas próprias escolhas (e não deste ou daquele acordo relativo à
natureza). Assim será, em especial, para todos os objetos culturais para os quais a
instituição em pauta “assume”, a título de relação institucional, a relação cultural
corrente. Temos como exemplo, na escola primária e nas séries subsequentes, o objeto
“proprietário dos objetos materiais”11, tal como ele está envolvido nas atividades de sala
de aula12.

2. “SABER”

2.1. Localismo e relativismo epistemológicos

Sejam OS um objeto de saber, e X um indivíduo concreto. A pergunta que se


deve examinar é: sob que condições dir-se-á que X sabe, ou conhece, OS? Esse
julgamento só poderá ser emitido pelo exame de um indivíduo Y 13, sobre o
“comportamento” de X, a respeito de OS. (Esse “comportamento” poderá ser constituído
de declarações, de gestos, de atitudes, etc.). Tal conjuntura, com notação V (Y, X, O S)14,
só pode ocorrer como parte de uma instituição I, em que participem, pelo menos
temporariamente, X e Y, e na qual o objeto de saber OS estiver envolvido15.

Em outras palavras, tal veredito é necessariamente relativo a uma determinada


instituição I, na qual prevalece uma relação institucional RI,p (OS) determinada (onde p é
a posição de X, ou, mais especificamente, a posição atribuída a X por Y). Diremos que
o veredito da avaliação de X a respeito de O S por Y é local para a instituição I. Então,

11
A palavra objeto é empregada nessa última expressão no sentido mais comum, mais restritivo (em
francês) do que na conceituação onde a inserimos aqui.
12
Por exemplo, na manipulação de áreas correspondentes aos domínios de plano materializados no papel,
a relação cultural proporcionará uma objetividade (ou seja, uma certa independência em relação à
instituição), e fornecerá, em determinadas condições, os critérios de validade para as declarações que os
alunos terão de fazer; mas o mesmo não acontecerá, no Lycée, quando os alunos encontrarem pela
primeira vez uma porção do plano não limitado, delimitada por um segmento de reta, uma semirreta e a
linha de uma curva de assíntota a essa semirreta: o fato de a área poder ser finita, e o limite ser infinito,
não corresponderá a nada na relação cultural com o objeto “área”. O mesmo se aplica a uma soma finita
de uma infinidade de números finitos não nulos no que concerne ao objeto “soma dos números”.
13
Endereçado a um indivíduo ou a uma “instância” Z: mas não aprofundaremos este ponto aqui. (Ver
Chevallard 1988f.)
14
Esta é uma situação de avaliação, em que Y “pronuncia” um veredito sobre X em relação a OS. Em
textos anteriores, a notação adotada era E (Y, X, O), em que O é um objeto (institucional) qualquer.
15
A presença de uma instituição já é necessária para, simplesmente, poder se referir a OS.
11

um julgamento do tipo “X conhece OS”, ou “X não conhece OS” deverá ser percebido
alusivamente a I (e a RI,p (OS)).

Para ilustrar o ponto anterior, consideremos o seguinte exemplo. Dentro de uma


instituição I, um indivíduo Y se dirige a um indivíduo X, perguntando se este conhece
“a seguinte coisa”, que aquele indica, desenhando em uma folha de papel um retângulo
contendo linhas horizontais e verticais16.

Consideremos, então, os três “eventos” a seguir.

No evento 1, X e Y são dois professores que ensinam matemática no Terminale


D; eles conversam na sala dos professores. A resposta de X poderá ser: “Sim, claro ...
Calcular o número de retângulos? Todo ano, eu lhes repasso essa questão. Basta ver que
um retângulo é determinado por duas horizontais e duas verticais ... Porém, muitas
vezes, eu falo isso pra eles, do contrário eles não pensam a respeito”.

Essa seria uma descrição aproximativa da relação institucional com O S pelo


professor de matemática do Terminale D. O objeto OS evocado pertence ao saber
didático. Y poderá, então, dizer a outro professor Z que X conhece bem OS. Conhecer,
aqui, significa conhecer OS como um exercício a ser proposto, em tais e tais condições
(“no Terminale D”, “após o curso de análise combinatória”, “dando-lhes tal indicação”,
etc.).

No evento 2, X e Y são dois pedagogos franceses de matemática. Eles trabalham


juntos. Desta feita, a resposta de X a Y poderá ser a seguinte: “Bem, sim e não. Essa é a
tese de Nicolas, correto? Eu conheço. Na verdade, eu já não me recordo do que se
trata”.

O objeto OS mencionado é uma “situação-problema” ligada a questões


específicas de pesquisa em didática de matemática: numa determinada orientação da
mesma, conhecer OS, poderia indicar os “procedimentos que os/as estudantes mobilizam
espontaneamente diante do problema de contagem de retângulos”, etc. Y pode, então,
16
Ver a figura abaixo.
12

dizer a outro pedagogo Z: “Trabalhamos com X esta manhã, mas como ele não sabe
muito bem o que Nicolas fez com seus retângulos – você sabe, quando se precisa
determinar o número de retângulos dentro de um retângulo – empacamos no problema”.

Por fim, o evento 3: X e Y pertencem a uma profissão, imaginária e imaginada


aqui pelas necessidades da causa, na qual precisam, frequentemente, “contar os
retângulos dentro de um retângulo”; Y é veterano na profissão, X é um jovem recém
formado. Y suspeita que X conhece “a teoria” mas ignora “a prática”. Daí, a sua
pergunta-teste. X poderá lhe responder: “Sim, já fizemos diversas vezes. É assim ...”. X
então escreve17, da esquerda para a direita, os números inteiros a partir de 1 na primeira
linha da figura desenhada por Y, numerando todas as casas dessa linha; em seguida, ele
calcula de cabeça e escreve na margem direita a soma dos números escritos, que dá 15
e, logo abaixo, escreve, na margem direita, os números obtidos com o dobro dessa
soma, em seguida, com o triplo, e assim por diante, de forma a percorrer todas as linhas
da figura retangular; ele soma os números escritos na coluna da margem direita, escreve
o resultado obtido e o enquadra. “Aí está! 150 retângulos”. O veterano, Y, pode dizer a
outro veterano, Z: “Esse jovem é bom ... Veja, ele conhece bem o cálculo dos
retângulos18, fez isso sem problemas!”.

1 2 3 4 5 15
30
45
60
150

Temos três instituições e, portanto, três diferentes relações institucionais (cada


qual relativa a uma determinada posição na instituição em causa). Não há razão, a
priori, para que as declarações “X conhece bem O S” sejam equivalentes nas diferentes
instituições em que são pronunciadas. Poder-se-á, por exemplo, ser considerado bom
conhecedor de OS, enquanto professor de Terminale D ou como pedagogo da
matemática francesa, sem passar pelo teste do evento 3.

17
Ver a figura abaixo.
18
Podemos imaginar que, no jargão da profissão, o tipo de gesto que X acaba de realizar é conhecido
como “cálculo de retângulos”.
13

Notaremos, ainda, que a diferença de relações institucionais com o objeto O S


“cálculo de retângulos”19 se traduz, no uso institucional (escolar, profissional, etc.) da
linguagem corrente, por nuances sutis.

Se, em uma instituição de ensino, como é o caso no evento 1, um professor Y


pode muito bem perguntar a outro professor X se ele “conhece OS”, quando OS é visto
como um exercício (que pode ser proposto, ou não, aos estudantes), ele dificilmente
poderá fazê-lo se OS tiver o estatuto de teorema – a questão sendo considerada, então,
como pertinente ou impertinente.

Por outro lado, nesse mesmo caso em que OS é um teorema, mas X é um aluno,
um professor Y poderá dizer “X sabe OS”, afirmação que teria um significado diferente
se OS tivesse o estatuto de exercício, e significaria que X “já fez” O S, já que, de acordo
com o contrato didático usual, um exercício não precisa ser “sabido”, mas “ser feito”.

Se, no entanto, a instituição descreve o exercício O S como pertencente a um


determinado tipo de exercício, o professor Y poderá concluir, no entanto, que “X
conhece bem este tipo de exercício”, fazendo referência aqui a um sobreobjeto O S’, o
mesmo que poderá ser dito de um engenheiro que conhece bem esse tipo de problema.

Contudo, no evento 3, OS não é um exercício, ou representante de um tipo de


exercício, mas uma tarefa que sabemos fazer ou não, que “conhecemos” ou não (o que
poderá levar a declarações do tipo “Ele conhece seu ofício!”), uma tarefa cujo resultado
é inerentemente significativo (institucionalmente, fora da situação de teste em pauta no
evento 3, o resultado encontrado é valioso, ele é o desafio de cumprimento da tarefa),
embora não o seja na esfera didática, em que o resultado encontrado no exercício
correspondente não tem valor algum em si mesmo20.

Se voltarmos, agora, à escola profissionalizante de onde saiu aquele jovem


professor, e contrariamente ao que Y pensava, OS poderia ter aparecido no texto do
saber ensinado como um teorema (ou, pelo menos, como uma regra), tendo o estatuto de
objeto a ser conhecido, do qual o professor Y poderá dizer, em relação ao aluno X, que

19
Adotamos, nesse comentário, o jargão profissional emprestado aos protagonistas do evento 3.
20
Deve-se notar, com efeito, que alguns didáticos puderam fazer uso da palavra tarefa na análise didática,
emprestando-a, como se fosse evidente, e sem considerar as variações institucionais do estatuto dos
objetos, à psicologia do trabalho, onde, sem dúvida, ela tem seu lugar.
14

ele o sabe, ou que o conhece, ou não: “para calcular o número de retângulos, nós
numeramos as casas da primeira linha, etc.”21

Vemos como, através da divisão em objetos institucionais e das relações


institucionais (das quais o que chamamos de estatuto do objeto é um aspecto), a
realidade da instituição à qual o saber está vinculado é nele impressa e afeta o sentido
que ele assume para os atores da instituição.

2.2. A transposição institucional dos saberes

Ao mudar de uma instituição para outra, com a qual possamos dizer que o saber
S está “envolvido”, vemos esse saber S e os objetos de saber O S serem tomados em
várias relações institucionais diferentes. De fato, o próprio corte do saber S em objetos
OS varia. A ecologia institucional dos objetos OS – o sistema dos objetos e das relações
institucionais que constituem o ambiente no habitat onde esses objetos vão “viver” –
varia também.

Porém, o que, então, nos permite dizer que encontramos o mesmo “elemento” do
saber S em instituições diferentes, sob objetos institucionais diferentes? Aqui, devem ser
distinguidos dois tipos de problemas.

Em uma análise sincrônica de situações institucionais, o observador participante


de uma instituição de saber relativa a S (por exemplo, um pedagogo do saber S, ou mais
extensivamente, um antropólogo do saber S) tenderá a ver o “saber S” (por exemplo, a
“matemática”) ou elementos desse saber (elementos matemáticos ou “matematicóides”)
onde um observador assujeitado a outro tipo de instituição não os verá.

Um sistema de práticas sociais, na verdade, sempre procede do imbricamento de


elementos de saber muito diferentes. A cisão entre “objetos institucionais de saber O S” e
“outros objetos institucionais O”, adotada anteriormente, mas não problematizada até
agora, não é de modo algum dada. Ela supõe, de fato, um determinado ponto de vista,
que é em primeiro lugar, o do observador-analista.
21
No âmbito da escola, o objeto OS poderia ser incluído em muitos outros estatutos. Assim, no início de
um curso de algoritmo (ou de programação) para iniciantes, o algoritmo do evento 3 poderia aparecer
como um exemplo de algoritmo entre um ou dois outros, que o aluno X teria que conhecer como tal (isto
é, para o qual se precisaria especificar o problema que ele resolve e descrever sua execução); ou como um
exercício, no qual seria necessário demonstrar que o algoritmo realmente fornece o número de retângulos,
ou no qual seria necessário programar o algoritmo, etc. No ensino de didática da matemática, o objeto O S
poderia aparecer para ilustrar o fenômeno de desmatematização característico da matemática
“cristalizada” nas práticas profissionais, etc.
15

Tal ponto de vista emerge, sempre, de um certo tipo de prática institucional do


saber S, em que a classificação entre o que pertence e o que não pertence a S, o
reconhecimento do que é institucionalmente ligado a S, mas que aparece
epistemologicamente ocasional, constitui uma operação fundamental. É o
assujeitamento do observador a este tipo de relação institucional com S que nos parece
ser a raiz essencial da sua capacidade de “ver” o saber S – ou de, pelo menos,
obscurecer o “resto”.22

Essa capacidade de “ver” S pode, contudo, ser, em parte, comum a todos os


membros de uma sociedade, atores ou não das instituições de saber “relativas a S”, de
forma que a relação cultural com S deriva-se da relação institucional, que se tornou
culturalmente dominante ou hegemônica, de uma dessas instituições de saber, que
permitirá fazer com que S apareça, culturalmente, como um objeto natural, que é
evidente por ser culturalizado e, assim, naturalizado.

Em geral, é no domínio cultural de tal perspectiva, adquirida, em especial, pelos


saberes eruditos, que se deverá ser capaz de reconhecer, culturalmente, o “mesmo”
saber S em diferentes instituições. É sobre tal fenômeno que o leitor terá que pensar, em
relação à ilustração dada nos eventos 1, 2 e 3, que, além das variações superficiais, foi
possível inserir um invariante “verdadeiramente matemático”, um elemento de
conhecimento matemático intrínseco, ponto de vista sem o qual nosso exemplo não teria
valor23.

Por outro lado, uma instituição I poderá, através da noosfera a que pertence,
buscar reconhecimento de uma instituição de saber relativa a S – aparecendo como
árbitro cultural, e dotada de poder de investidura reconhecido pela cultura –, que “é
realmente o saber S” que está envolvido no jogo em I – problema que se torna essencial,
especialmente quando I for uma instituição de ensino de S.

É este problema de reconhecimento cultural que convém ser distinguido, em


diacronia, do problema da origem do saber S presente na instituição I. De onde vem, de
fato, o saber S que o observador vai acreditar que pode identificar como “em jogo”
numa instituição I? Se não houver dúvida de que esse saber, como um sistema de
22
Notaremos que, de forma contrária, a divisão institucional de S em sua instituição de pertença, muitas
vezes, impedirá o observador de ver S: muitos matemáticos ou professores do Collège ou do lycée, terão
dificuldade em ver “matemática” numa classe de Maternelle, por exemplo.
23
Ademais, é um fenômeno desse tipo que permite o desenvolvimento atual dos chamados estudos
etnomatemáticos - que são tornados possíveis em todo o mundo estendendo o que Alan Bishop chamou
de cultura MT, cultura matemático-tecnológica (ver Chevallard 1989b).
16

objetos institucionais de saber e de relações institucionais com esses objetos, surgirá,


dentro da instituição I, no próprio funcionamento de I dentro de seu ambiente cultural e
social, e se não houver dúvida de que se produzem em I criações institucionais de
objetos de saber “S–óides”24, e que o saber S “trabalha” ou é trabalhado nas instituições
as mais diversas, então a questão do caráter endógeno ou exógeno do “saber S” que o
observador acreditará que pode identificar permanece, no entanto, colocada.

Contudo, em muitos casos, o observador descobre o seguinte esquema: há


socialmente, uma instituição de produção, de gestão e de controle (incluindo controle
cultural) do saber S, que assume o papel de totalização, de onde se deriva, por um
fenômeno de transposição institucional, o elemento essencial do saber S presente em
outras instituições, e onde as criações alogênicas de saber S são retomadas,
padronizadas, totalizadas, logo que adquirem uma certa visibilidade cultural25.

Em uma instituição relativamente opaca à cultura, como muitas instituições


profissionais culturalmente dominadas, as práticas de “saber S” podem, sem dúvida,
surgir e se sustentar permanentemente (como saber institucional, “prático”) sem serem
afetadas, em profundidade, pelo processo de totalização de S26. Porém, para a maioria
das instituições “preocupadas” com o saber S, a instituição totalizadora desempenhará o
seu papel, sobretudo pelo desvio da formação profissional, uma vez que esta deixou de
ser uma formação “prática”, situando-se apenas no interior da instituição de formação
profissional. Notar-se-á, de passagem, que as instituições de ensino (de formação
profissional, neste caso) desempenham um papel na renormalização das práticas sociais
e, portanto, de (re)definição da realidade social27.

3. ENSINAR

3.1. O pacto original


24
No caso de I ser uma instituição de ensino, falaremos sobre criação didática de objetos (matemáticos,
por exemplo). Porém, esse processo não se limita, de modo algum, à esfera didática: que se pensa aqui
sobre a criação de objetos matemáticos ou “matematicóides” em Física, principalmente, como a noção de
função de Dirac. Ou, ainda, a noção de agrupamento, introduzida por Piaget; etc.
25
Essa instituição relacionada ao saber S, dotada do poder cultural de legitimação e de totalização, pode
muito bem não ser única; ou, pelo menos, pode haver concorrência, em um determinado período, entre
várias instituições para assumirem esse papel.
26
É nestes casos que surgem conflitos de interpretação entre observadores - como o mencionado em
relação à etnomatemática -, conflitos que são, meramente, o reflexo de uma situação objetivamente
ambígua. (Ver Chevallard 1989b.)
27
Sobre este último tema, ver Chevallard 1989b.
17

A existência de instituições de ensino28 relacionadas a um saber S, culturalmente


identificado e socialmente totalizado em uma instituição de produção, de gestão e de
controle desse saber, é, sem dúvida, um fenômeno muito antigo em nossas sociedades29.

Tais instituições baseiam sua razão de ser social em um pacto original,


formulado em termos culturalmente fáceis de compreender, e que legitima
culturalmente e garante socialmente a sua relação institucional com o saber S, R (S):
essas instituições nos dizem que existe um saber S, que elas se oferecem a ensinar
àqueles que a sociedade designará ou àqueles que se autodesignarão para tanto – isto é,
elas estão empenhadas em criar condições que, em certa medida, permitirão que se
aprenda S, a fim de sabê-lo.

Porém, esse pacto original é, em essência, um desafio, uma aposta perdida por
antecipação. Seja qual for, de fato, a maneira como são criadas as condições que nós
mencionamos, estas se reduzirão, em essência, a um sistema de objetos institucionais O
(de saber ou de outro tipo) e de relações institucionais R(O), como seria o caso em
qualquer outra instituição (em que o saber S estivesse presente).

Como qualquer outra instituição desse tipo, a instituição com pretensão didática
está sujeita a essa necessidade, e deve assumir a natureza arbitrária – igualmente
necessária – do contrato institucional (neste caso, didático) que ela estabelece. Portanto,
a intenção de ensinar S não estabelece em si mesma a legitimidade do empreendimento
educacional. Isso porque o sistema de objetos e as relações institucionais em que se
materializa o destino de S dentro de uma instituição de ensino é a priori um sistema
entre outros possíveis, e sobretudo, entre outros realmente existentes. Porém, a
adequação entre aquele e este é improvável de se realizar. Mesmo em uma instituição de
formação profissional, a relação R(S), já não pode se sobrepor à relação R P (S)
prevalecente na profissão P. Em um dos casos, o saber aparece por um lado como a
ensinar e por outro como a aprender, até mesmo a ser usado (implementado); no outro
caso, afigura-se desde o início como a utilizar30.

Essas diferenças de problemática vão se agregar a cada um dos objetos e


relações institucionais prevalecentes na instituição de formação: a resolução de um

28
A intenção didática que as estimula está inscrita na relação institucional R I (S), aqui com notação (por
padrão) R(S).
29
Ver Chevallard 1988d.
30
Eventualmente, para produzir o saber S (é o caso das instituições acadêmicas).
18

“problema” – por exemplo, a fabricação de uma mesa com uma característica particular
– servirá para o educador fazer com que se aprenda ou verificar que se aprendeu, para o
educando aprender ou mostrar que aprendeu, enquanto que para o especialista no
assunto, o seu interesse, o seu valor e o seu significado se encontrarão na solução
fornecida – que, aliás, transformará o “problema” em uma “tarefa”31.

Então, para reivindicar legitimamente o ensino de S, a instituição deve fazer o


contrato institucional (didático) particular aparecer como o “bom”, e se afirmar
detentora de uma ortodoxia epistemológica que tem, por assim dizer, valor universal. A
escola, então, é obrigada a “ensinar a lição”, não só aos alunos, mas também,
implicitamente, a todas as instituições nas quais o saber S esteja reconhecidamente
envolvido, ao referir cada uma delas às suas idiossincrasias epistemológicas, quando
essas (instituições) simplesmente não a (escola que ensina a própria lição) rejeitam no
inferno de heterodoxia.

Dessa forma, toda instituição de ensino se estabelece, necessariamente, dentro de


uma polêmica indefinidamente renovada, e deve, periodicamente, enfrentar os rumores
ou os protestos que sua própria existência cria. Daí, o grande problema que nenhuma
instituição de ensino pode ignorar: como silenciar estes concertos destoantes, e afirmar
sua legitimidade?

3.2 A resolução do conflito sócio-epistemológico

A escola, qualquer que seja, é uma instituição polêmica, no coração de um


conflito sócio-epistemológico consubstancial a qualquer intenção didática.
Supostamente, preparando práticas sociais – profissionais ou não – que nos aparecem
como dados na sociedade, ela se instala, entretanto, no núcleo da sociedade, num
conflito contínuo com essas práticas, que ela necessariamente trai.

A maneira usual de resolver este conflito cada vez mais recorrente pode ser
resumida, essencialmente, em dois pontos.

31
Notar-se-á que a tendência, atestada, em especial, em uma série de trabalhos de engenharia didática, de
assegurar aos próprios alunos, e depois lhes “institucionalizar”, certos “resultados” que o contrato
didático tradicional normalmente atribui ao curso e ao professor constitui objetivamente uma tentativa de
aproximar o universo didático do universo profissional. Sob o slogan da “construção por parte do aluno
de seu próprio saber” (ao qual retornamos mais tarde), descobre-se uma tentativa parcial de resolver o
conflito epistemológico fundamental, cuja superação, no entanto, passa essencialmente por outros meios,
como veremos.
19

Primeiro ponto, a instituição de ensino busca a validação e a legitimação da


parcela das práticas sociais de referência culturalmente dominantes, capazes de lhe
trazer uma investidura epistemológica que impõe às outras práticas sociais, dominadas
ou silenciadas.

Por razões que não mais examinaremos aqui, o modelo de dominação


historicamente perene, nas sociedades ocidentais, é aquele das instituições de saber ditas
acadêmicas. Daí, o fenômeno segundo o qual todo saber ensinado se autoriza, ou busca
se autorizar, de um saber acadêmico correspondente, capaz de silenciar as críticas
advindas de outras instituições de referência em potencial. Esta estratégia é
normalmente implementada quando um saber acadêmico “correspondente” não existe
“espontaneamente”: existe, por exemplo32, elaboração, na noosfera ou em sua
vizinhança imediata, de um saber de aparência acadêmica33, de acordo com um
fenômeno dito de contra-transposição didática.

Segundo ponto: a instituição de ensino busca a legitimação acadêmica por uma


dialética entre visibilidade e opacidade, dialética cujo principal instrumento é o léxico
da instituição, que permite um conjunto de declarações, hierarquizadas de maneira
descendente, e proibe outras – porque não permite formulá-las –, segundo um processo
que normalmente leva ao desinteresse progressivo da instância de poder cuja investidura
social e cultural é desejada.

A instituição de ensino declarará, então, constantemente, ensinar “matemática”,


“números complexos”, “aplicações geométricas dos números complexos”,
“semelhanças por números complexos”. Se o desinteresse não apareceu nesta fase – o
que já é pouco improvável –, ela poderá declarar então que, sob esta rubrica, ela trata
apenas das semelhanças diretas, etc. Neste caso, a negociação, deportada na noosfera, e
abafada, poderá achar pertinente tratar apenas das semelhanças diretas, ou tratar
também de semelhanças indiretas (inversas), etc. Mas, há uma grande chance de não
poder se enxergar além.

O término do processo de declaração descendente termina, em todos os casos,


quando o limiar “inferior” de descriptibilidade das práticas didáticas eficazes é

32
Assim acontece com inúmeros saberes ditos “profissionais”. Neste caso, a sapientização pode ser feita
através de empréstimo e de integração (mais ou menos vistosos) de fragmentos de vários saberes
acadêmicos.
33
Ou saber “sapientóide”. Tais processos de sapientização podem afetar um saber além de qualquer
vontade de ensiná-lo.
20

alcançado, lá onde as palavras compartilhadas, que permitiriam descrever, falar, fazer


referência e comentar essas práticas, começam a se esgotar; lá onde, em outras palavras,
a estrutura dá lugar ao evento, e a organização, à história. A configuração de
visibilidade da instituição jamais poderá ser total.

Essa opacidade intrínseca desempenha um papel vital na obtenção da


investidura. O discurso que a escola assume sobre si mesma – pelo seus agentes e seus
atores, bem como pelo endereço do mundo exterior – só consegue descrever, por
necessidade discursiva34, e ainda de uma maneira esquemática, estilizada, incompleta,
uma pequena parte das situações atravessadas pelos educandos em sua história concreta
dentro da instituição. Em particular, os fenômenos de amnésia institucional,
identificados e estudados por Guy Brousseau em sua pesquisa sobre “a memória do
sistema”, aparecem aqui como o efeito necessário da pobreza do léxico da instituição,
ela própria correlativa da escotomização, em situações encenadas, de uma profusão de
objetos didaticamente pertinentes, que educando e educador deverão,
consequentemente, gerar numa “linguagem” privada, ou seja, não institucional35.

Porém, a pobreza do próprio léxico está ligada à necessidade de preservar a


opacidade do funcionamento “real” da instituição, a fim de reduzir o conflito
epistemológico. De fato, essa necessidade é especialmente grande, porque a relação
institucional com um objeto OS evolui dentro do tempo didático, e porque,
consequentemente, verdadeira contradição nos termos, a ortodoxia epistemológica de
pretensão universal, que a escola deve promover, muda continuamente de conteúdo36.
Ao mesmo tempo, a escola vai apresentar uma ilusão, um proscênio, que
denominaremos o momento do ensino.

3.3. A face visível da instituição: a relação oficial

34
Essa necessidade está relacionada ao fenômeno geral de redução da espessura semiótica, que faz com
que o “vivido” não possa exaustivamente render-se a um dito.
35
Ver Chevallard 1988f.
36
A amnésia, externa e interna, da escola em relação a si mesma, é, portanto, um constrangimento
consubstancial à sua missão na sociedade. Nesse sentido, poderemos dizer da escola que ela se exclui - se
não por si só -, seu próprio passado e sua própria substância, e que a sua afirmação social e cultural passa
pela escotomização das práticas sociais da escola. Essa negação, a escola a aplica mesmo às práticas da
esfera acadêmica, das quais ainda aguarda legitimação - de acordo com um distanciamento de práticas
acadêmicas que conduzem a escola diretamente ao empirismo: ver Chevallard 1989a, pp.68-69.
21

A "representação de si” da instituição em relação ao exterior se faz por meio do


sistema declarativo que foi exemplificado acima e que permite a produção de um texto
de ensino. O texto de ensino é tão importante por aquilo que mostra, ou insinua, quanto
por aquilo que dissimula. É sobre a base deste sistema, que contrasta elementos visíveis
e ocultos (ou opacos) do currículo 37, que acontece a negociação entre escola e sociedade
(ou seja, no melhor dos casos, e em essência, entre saber ensinado e saber acadêmico).
É na referência explícita a este texto de ensino que a instituição educadora mostrar-se-á
realizando sua missão38.

Para isto, a escola explicitará os objetos do saber a serem ensinados in statu


nascendi, neste primeiro momento das suas vidas dentro da instituição, onde eles são
introduzidos como desafios didáticos, concomitantemente, objetos de ensino e objetos
de aprendizagem.

É este momento primitivo e efêmero, mas sempre reiniciado com a sucessão


contínua dos objetos a ensinar, que constitui essencialmente a face visível da instituição
educadora, enquanto que sua representação oficial expõe o educador (supostamente)
ensinando, e o educando (supostamente) aprendendo.

É sobre esta que a atenção do mundo exterior se concentra, e é ela que contribui
em nos designar, como a cena primordial, onde o pacto original deve se realizar - e onde
ele poderá se encontrar rompido. Durante momentos como estes, indefinidamente
revividos, a instituição de ensino reencontra seu experimentum crucis, e são estes
episódios da vida da instituição que encontram-se negociados na “representação de si".
É em relação a estes que a escola recebe o aval da instância de investidura cultural e
social que a legitima aos olhos da sociedade.

Quando o objeto a ensinar OS é posto em jogo, no contexto do contrato didático


existente, em outras palavras, sobre a base dos objetos e relações institucionais que já
emergiu anteriormente, se criará uma relação institucional com esse objeto que
chamaremos, durante todo o período em que este for um desafio didático, de relação
oficial com OS. Como toda relação sistêmica, esta é segmentada em uma relação oficial
realizada pelo educador, R*E(OS), e uma relação oficial realizada pelo educando,

37
O currículo é o conjunto dos estados percorridos pelo sistema de ensino ao longo do tempo didático,
sendo o estado, ele mesmo, definido como o sistema dos objetos e das relações institucionais.
38
É esta realização, por exemplo, que registra oficialmente o, tão adequadamente denominado, cahier de
textes (agenda escolar de textos).
22

R*e(OS) – clivagem topo-genética que define, em dado momento, o lugar do educador e


lugar do educando relativos ao objeto de saber em questão.

Estas relações oficiais devem satisfazer condições gerais (passíveis,


historicamente, de evolução e que, de fato, evoluem), cujo conteúdo é ditado pela
relação institucional-cultural com os objetos “ensinar” e “aprender”. Mais precisamente,
as relações R*E(OS) e R*e(OS) são tais que o educador E e o educando e devem fazer
“certas coisas”, certos “gestos”, solidários uns com os outros para além da fronteira
topo-genética, em relação ao objeto OS. (Desta maneira, dentro de um estado antigo –
visto hoje em dia parcialmente como obsoleto – das relações institucionais com os
objetos “ensinar” e “aprender”, o educador devia “elaborar um curso” e “propor
exercícios”, enquanto que o aluno devia “aprender a matéria”39 e "fazer seus
exercícios”.)

Se, de fato, o educador não tivesse o que fazer para o aluno aprender, ou melhor
se o educador não fizesse nada culturalmente visível para o aluno aprender, a instituição
educadora da qual este participa perderia sua razão de existir, e o pacto original se
encontraria rompido40. E se, da mesma maneira, o educando não tivesse o que fazer para
aprender, se ele não realizasse um gesto qualquer que demonstrasse culturalmente que,
de fato, ele está aprendendo, ou ao menos que ele utilize os "meios” à sua disposição
para aprender, então os próprios gestos do educador seriam suspeitos de não passarem
de uma simples paródia de ensino41.

No proscênio didático, o gesto do educador e o gesto do educando se entrelaçam,


interagindo entre si, se justificando e ganhando um sentido, um graças ao outro. Eles
formam uma totalidade coordenada que apenas possui uma importância prévia. A
39
Num estado arcaico (porém sempre observável, pelo menos residualmente), “aprender a matéria”
possuía assim o sentido de “aprender de cor o texto do curso”.
40
Donde se constata a frágil viabilidade cultural, e portanto social, dos modos de ensino que aparentam
ser (e várias vezes se apresentam como) “não-diretivos” demais. Outrossim, a menção do computador
vem frequentemente acompanhada pela observação de que este não poderia substituir o professor, o que é
indubitavelmente e estritamente verdadeiro, mas que primeiramente deve ser compreendido como a
expressão da defesa da legitimidade da instituição de ensino, ainda que os meios de ensino e,
correlativamente, o teor do papel de seus agentes (ou seja, da relação institucional com o ensino que lhe é
próprio), evoluem de uma maneira que a cultura não consegue imediatamente identificar.
41
Daí a crítica à “passividade” dos alunos e o destaque da importância da “atividade” destes - o
reconhecimento da existência desta atividade do aluno que se realiza segundo os critérios institucionais-
culturais, eles mesmos evolutivos: escutar bem o mestre, “sendo todo ouvidos”, era outrora a garantia de
uma atividade interior intensa, emblemática do estado de aprendizagem; essa relação cultural com o
aprender mudou, e a relação atual leva a formas de atividade mais exteriores (manuseios, tomadas de
palavra, etc.).
23

clivagem topo-genética é ocultada do observador exterior pelo fato de que, aqui, mais
do que nunca, o sistema didático funciona como um sistema, que integra a atividade de
seus atores em suas diversas posições, prestando “serviços”, cuja produção não é
inteiramente feita nem pelo educador nem pelo educado.

3.4. A outra cena: O trabalho do contrato

O espetáculo assim imposto é, até certo ponto, uma ilusão, um trompe-l'oeil,


criado para satisfazer as expectativas da sociedade. A dramatização deste espetáculo
encenado pela instituição de ensino se vale de todas as manobras, se apoia em todas as
falsas semelhanças, produz esses “efeitos” e vive desses “paradoxos” que Guy
Brousseau analizou tão sutilmente42 e nos quais os próprios atores se envolverão.

Pois, contrário ao observador exterior que vê o todo (isto é, a relação sistêmica


R(OS)) e atribui um sentido aos gestos dos atores em função deste todo, cada uma das
partes envolvidas na relação didática, confinada ao seu topos, tende - segundo uma
problemática de construção da relação didática - a ver de início apenas seu próprio
papel que está associado às relações R*E(OS) e R*e(OS), e a ignorar o jogo didático
como um todo com o qual cada um coopera objetivamente na produção.

Para se compreender os verdadeiros desafios em torno destes episódios de


introdução de objetos de saber inéditos, é necessário situá-los em relação a uma outra
cena, que foi anteriormente exposta, aquela do sistema dos objetos e relações
institucionais, ou seja, do contrato didático existente.

Colocar em prática um novo objeto de saber constitui, nessa visão, uma


perturbação local do contrato (e portanto da instituição), a qual este deverá “absorver”.
Mais precisamente, esta perturbação caracteriza uma provação da instituição - e do seu
meio interior - por parte do “meio exterior”, que se apresenta assim sob a forma de
objetos de saber a ensinar. Observamos aqui que é nestes episódios de ensino que a
sociedade “aguarda” a escola43. Essencialmente, deve ser feita a prova de que aquilo que
foi ensinado e aprendido permite que se possa novamente ensinar e aprender, e que o
antigo permite que se possa lidar adequadamente com o novo.
42
Ver, em especial, Brousseau 1986.
43
Este proscênio que constitui o momento de ensino funciona também como uma interface, um
intermediário, entre a instituição de ensino e a sociedade: é a seu respeito que a noosfera negocia com a
sociedade; e é a ele que a sociedade tende a limitar a instituição educadora.
24

A chegada de objetos de saber a ensinar alógenos - e até então alóctones -, é


assim o momento sensível da vida da instituição de ensino. Ela, inevitavelmente,
provoca nesta instituição remanejamentos e reajustes, pelo menos parciais, do contrato
didático, vivenciados pelos educadores como rupturas de contrato, na medida em que a
relação institucional Re(o) com certos objetos institucionais o, introduzidos
anteriormente, se apresenta abruptamente inapropriada à relação oficial R*e(OS), que
está a emergir.

Evidentemente, este processo de remanejamento do contrato didático pode ser


fonte de disfunções, e alvo de verdadeiras relações de poder entre educador e
educandos44. O peso do contrato didático anterior à introdução de um novo objeto de
saber, peso que está ligado à impropriedade eventual das relações institucionais
estabelecidas anteriormente, poderá manifestar-se através da emergência de uma relação
oficial insatisfatória de várias formas - segundo uma sintomatologia cujas análises de
Guy Brousseau, previamente citadas, atualmente são a melhor descrição. Ao mesmo
tempo, e inversamente, estes remanejamentos necessários se apresentam, entretanto,
como causas e condições da aprendizagem45, porém - tal é o paradoxo na visão da
ficção oficial - de uma aprendizagem relativa aos objetos de saber anteriormente
introduzidos e institucionalizados.

Aqui, mais uma vez, o “momento de ensino” - o momento da emergência da


relação oficial - aparece como uma ilusão e um trompe-l’oeil. Ainda que seja realmente
um “momento de aprendizagem”, entretanto, pela modificação que este introduz nas
condições da atividade dos educandos, essa aprendizagem não se foca primeiramente no
objeto de saber que a instituição exibe e destaca. O objeto de saber ensinado, o desafio
didático oficial, é portanto uma causa da aprendizagem - ou seja, da evolução da relação
pessoal dos alunos com os objetos de saber ensinados - antes de ser ele mesmo um
objeto de aprendizagem46.

44
Estas relações de poder se estabelecem num contexto de cooperação entre educador e educandos,
segundo uma lógica de progresso que descrevemos sob o nome de tempo didático (Ver Chevallard e
Mercier, 1987).
45
Esta palavra ainda não foi definida na teorização exposta aqui: nós voltaremos a este ponto mais à
frente.
46
Essa discrepância entre ensino e aprendizagem é uma crítica em potencial da quantidade de trabalhos
de didática, cujos autores, recuperando sem analisar as ficções da instituição e da sociedade, se deixam
fascinar pelo que nós denominamos de “momento de ensino”.
25

3.5. A institucionalização da relação oficial

A construção dum primeiro estado da relação didática em torno do novo objeto


ensinado OS absorve, indubitavelmente, a energia dos atores - e, em primeiro lugar, a
energia do educador. Porém essa construção, no fim, não é viável, já que a relação
oficial com OS que brevemente aí emerge, sob as restrições de visibilidade das quais
falamos, se vê com poucas chances de adaptar-se bem à busca desta interação com o
meio exterior que constitui o processo de ensino. A relação oficial não poderá, em geral,
formar uma “boa” relação institucional com OS, susceptível de conter o choque da
subsequente introdução de novos objetos a ensinar, aos quais O S se apresentará como
um objeto pertinente.

A evolução da relação oficial R*e(OS) deve, portanto, ir na direção de uma


relação institucional Re(OS), suficientemente livre das restrições do proscênio didático -
isto é, o momento de ensino - para permitir que o sistema didático manifeste sua
“robustez” no que diz respeito às práticas sociais alóctones, colocando OS em jogo, as
quais se manifestam perante a instituição sob a forma negociada de perturbações
ulteriores vindas do meio exterior no estado de novos objetos de saber a ensinar47.

O processo de institucionalização da relação oficial é, fundamentalmente, um


processo contínuo, e podemos citar novamente a institucionalização da relação
institucional, evolução marcada por fases de interrupção da institucionalização48 e por
momentos de resumo da institucionalização 49. Contudo, uma tal evolução supõe, em
todos os casos, uma desconstrução da relação didática primária, “oficial”, tendo
permitido a introdução do objeto OS, movimento pelo qual o objeto de saber OS, o
educando e o educador50 “saem” desta sujeição inicial.

O primeiro distanciamento da relação didática oficial a respeito do objeto O se


produz com aquilo que hoje em dia, entre os pedagogos franceses, se chama
47
Uma evolução semelhante - da qual não falaremos aqui - afeta R*E(OS).
48
Essas fases de interrupção (ocasionalmente definitiva) são evidentemente correlativas da emergência do
meio interior.
49
A respeito da evolução da relação R*E(OS) - e da relação RE(OS) -, notemos aqui que convém distinguir
uma evolução interna (dentro do sistema de ensino) duma evolução externa: a primeira é registrada no
currículo, já a segunda resulta de uma evolução deste. Desta forma, se OS = “as frações”, RE(OS) não será
a mesma no fim do quatrième que no fim seconde (mudança interna); e ela também não será a mesma,
no fim do seconde, antes e depois de uma reforma dos programas, por exemplo em 1972 e 1982
(mudança externa).
50
Se essa saída da relação didática não ocorresse também com o educador, a saída do educando não teria
qualquer significação para o interior do funcionamento didático.
26

restritivamente de “institucionalização”, realizada geralmente sob a forma de um corpus


organizado de declarações a respeito do saber ensinado - “o curso”51. Desde já, a
discrepância com a relação didática inicial, e a relação oficial que aí se engendra, pode
ser perceptível. Ao “terminar seu curso”, o educador começa a sair da relação didática
oficial a respeito de OS; ele continua saindo ao passar exercícios e consegue, enfim, se
distanciar ao propor, e em seguida ao corrigir, os deveres de classe e/ou de casa que
correspondem a esta “parte” do curso - após a qual ele terá “terminado seu ensino”
relativo a OS.

A discrepância da qual nós falamos é, sem dúvida, mais visível nas primeiras
situações de avaliação, internas ao sistema didático, que oficialmente visam verificar se
os alunos aprenderam - o que supõe que o ensino relativo a O S, ou no mínimo uma parte
deste, foi “dado”. De tais situações, efetivamente, se distinguem as situações
anteriormente percorridas pelos atores da relação didática visto que o “corpo a corpo
didático” inicial52 abre espaço a uma organização onde o educando só entra em contato
com o educador, a respeito do desafio didática OS, indiretamente, pela intervenção do
enunciado dum dever53.

Descrevemos noutro texto54 como essa intervenção, verdadeira intermediária


entre educadores e educandos em relação do saber ensinado, intervém na negociação
didática e no processo de institucionalização subsequente. A relação pessoal do aluno,
que terá emergido no cerne da relação didática oficial, é aqui submetida a um processo
de objetivação interna ao sistema didático, e que não cessará de aprofundar-se até que
ocorra a estabilização eventual da relação institucional.

51
A conceitualização aqui apresentada faz referência às funções didáticas, onde a familiaridade cultural e
institucional com o sistema de ensino nos leva a ver as estruturas didáticas (“o curso”, “os exercícios",
“os deveres”, etc.), que são todas objetos institucionais. Referente a isso, observaremos que a descrição
estrutural é ambígua: desta forma, o curso pode constituir o gesto essencial do educador no contexto da
relação didática oficial se, enquanto estrutura didática, ele acontece (e encontra sua função) dentro da
organização didática tradicional (com o curso e em seguida trabalhos dirigidos, ou o curso e em seguida
exercícios); entretanto ele pode constituir as premissas da institucionalização, ou seja, da saída da relação
didática oficial, se ele acontece dentro da organização didática prevalente hoje na França na maior parte
dos trabalhos de engenharia didática.
52
Caracterizado, em particular, pela atenção que o educando deve prestar aos "gestos" do educador.
53
A diferença se traduz concretamente de maneira visível. O aluno está face a face com o dever a ser
feito. O educador é provisoriamente colocado de lado; se ele intervir durante o trabalho dos alunos (por
exemplo, para lhes dar tal ou tal indicação complementar), ele terá dificuldade em obter as suas atenções:
assim se produz a relação institucional, para o aluno, com o educador, R e(E). O educador só voltará a
participar durante a correção do dever.
54
Ver Chevallard e Feldmann 1986.
27

Todo esse movimento, como muito já realçamos, é consubstancialmente


marcado por incessantes rupturas de contrato, que traduzem para os atores a existência
da instituição e refutam a ficção de um acesso “livre” ao saber. Entre a introdução
inicial do objeto OS e a relação institucional provisoriamente estabilizada que acabará se
estabelecendo, de fato, cresce uma diferença profunda. Na relação didática oficial, o
objeto OS é o objeto - o objetivo, se podemos dizer assim - da interação, a respeito do
qual ela se realiza. Mais tarde, OS não será mais, se necessário, do que um meio de uma
interação cujo objetivo será um novo objeto de saber O S’. No primeiro caso, os atores -
educador e educando - terão primeiramente que identificar e cumprir seu papel no jogo
didático em torno do objeto OS; no segundo caso, concernindo o “mesmo” objeto OS, se
tratará, por meio (entre outros) de uma relação institucional, supostamente apropriada,
com OS, de “sustentar” o jogo didático em torno do novo objeto O S’, em outras palavras,
de permitir a emergência de uma certa relação oficial com O S’. Nessa evolução, em
particular, a fronteira topo-genética poderá mudar; o que antes estava “do lado do
educador” deverá ficar frequentemente a cargo do aluno, que se tornará eventualmente
responsável pelo conjunto do “jogo” com OS, enquanto que até então ele possuía apenas
um papel particular no interior deste jogo55.

A evolução das relações institucionais é, por conseguinte, uma condição de


possibilidade da busca do jogo, compreendida pelos atores do sistema didático como
totalidade dinâmica, e não somente a partir do lugar que nele ocupa tal ou tal jogador
segundo sua posição dentro da instituição. O contrato didático constitui nesta visão uma
realidade fora do centro dos desafios didáticos, uma realidade que será vivenciada ora
como infra-didática (quando a continuação do jogo didático aparecerá sem conexão
com sua evolução), ora como supra-didática (no caso contrário, onde sua evolução
aparecerá como uma condição de possibilidade da busca do jogo didático): poderemos
55
Daremos aqui apenas um exemplo, cujo único interesse é de ilustrar este comentário explicitando, sob a
forma voluntariamente amplificada, um fenômeno constante da evolução do contrato didático. Na classe
da terminale B, os alunos podem ter que estudar as progressões do tipo u n+1 = aun + b, com u0 = c
(“progressões aritmético-geométricas”). Por intermédio do enunciado, o educador intervém na produção
de uma solução através de uma seqüência de questões que correspondem ao esquema a seguir: “1.
Considerando a progressão vn = un + d [onde d é dada como função de a e b]. Demonstre que v é uma
progressão geométrica. 2. Exprima vn em função de n. 3. Exprima un em função de n e calcule seu limite”.
E continuará assim até, e inclusive durante, a prova de matemática do baccalauréat. Mas se, no ano
seguinte, o aluno submeter-se ao ensino utilizado na classe preparatória para o Haut Enseignement
Commercial, ele se deparará com exercícios do tipo: “Estude a progressão u n+1 : aun + b, com u0 = c”. Será
necessário portanto que ele tome como seu o que, até então, pertencia ao “lado do professor”: ou seja, o
esquema de passagem por uma progressão geométrica, a determinação desta progressão (a escolha de d),
e outros fenômenos diversos (por exemplo, o fato de que a razão da progressão geométrica relacionada é
a, conhecimento que permite que se guie o cálculo e que fornece um controle sobre o seu resultado).
28

descrevê-lo como o adidático interior, ativado ou não pelo didático alimentado por
objetos do saber provenientes do exterior. As situações de avaliação, referentes aos
objetos OS desafios didáticos, dão lugar aqui às situações de validação, que são a
reflexão, relativa aos objetos antigamente ensinados, das situações de avaliação em
relação aos objetos desafios didáticos. Num lugar mais afastado em relação ao do
educando (the taught), organiza-se a rede onde o indivíduo vai se constituir como aluno
(the student), e donde o aprendiz (the learner) poderá emergir56.

4. “APRENDER”

4.1. O conceito de relação pessoal e cultura corrente

De acordo com a teorização apresentada até aqui, não podemos dizer de alguém
que este sabe (ou não) Matemática (ou as matemáticas) - ou qualquer outro saber. Um
indivíduo X só pode ter, com um dado objeto de saber, O S, uma relação pessoal,
emergente de um sistema de relações institucionais (tal qual a relação didática),
relações estas ternárias onde o indivíduo X participa com o objeto de saber O S e um ou
mais agentes da instituição I.

Desta relação pessoal resulta, notavelmente, tudo aquilo que acreditamos poder
ser dito - em termos de “saber”, “saber-fazer”, “concepções”, “competências”,
"maestria”, “imagens mentais”, "representações”, “atitudes”, “fantasias”, etc. - de X a
respeito de OS. Tudo aquilo que pode ser enunciado - corretamente ou não,
pertinentemente ou não - deve, na melhor das hipóteses, ser compreendido como um
aspecto da relação pessoal de X com OS. O conceito de relação (pessoal) com um
(objeto de) saber apresenta-se, assim, englobando os aspectos fragmentários nos quais,
geralmente, o dissociamos. Ele não faz referência a um novo aspecto da cognição, e não
é uma adição inédita à, já bastante rica, “teoria” cultural da cognição.

A relação pessoal do indivíduo X com um objeto do saber, que notaremos como


R(X,OS), não pode existir sozinha: ela realiza-se no interior de um universo de relações
pessoais com uma grande quantidade de objetos O, além do próprio objeto O = O S, das
quais algumas poderão ser ditas como pertinentes, pois podemos mostrar que as
relações pessoais correspondentes, R(X,O), “afetam” a formação e a evolução de
56
Ver Chevallard 1988c.
29

R(X,OS), e aparecem, portanto, como condições e restrições, entre outras, na


emergência de R(X,OS).

Dentre os objetos pertinentes na emergência de R(X,O S), é necessário levar em


conta, de maneira mais geral, o objeto “saber”, que notaremos aqui como $, e que deve
ser distinguido deste ou daquele saber particular. Porém, a cultura corrente, ou seja, a
cultura associada a esta instituição que é a sociedade considerada como totalidade 57,
carrega consigo uma relação institucional - então chamada de relação cultural - com o
objeto “saber”, $, da qual poucos escapam; e é nessa sujeição à RC($) que se forma R(X,
$) - e, portanto, R(X,OS).

Nas sociedades ocidentais, a relação cultural RC($) nos diz que de fato o saber é
uma “coisa”, que adquirimos, da qual nos apropriamos e tornamos nossa, como
faríamos com um bem econômico. O modelo primário é aqui talvez aquele da
manducação e da ingestão (portanto da “interiorização”) de um bem alimentar,
transmitido pelo tema da apropriação - eventualmente pelo furto - de saberes e de saber-
fazer ocultos, mantidos ciosamente em segredo, e de saberes rituais e/ou esotéricos, cuja
eficácia (eventualmente, apenas simbólica, mas constantemente vista como vital) os
torna desejáveis.

Na estrutura abstrata, essa relação cultural “enuncia” que o saber aparece, para o
sujeito, como um bem que lhe é exterior, que caberá a ele interiorizar. Observando que
o lugar de interiorização-apropriação-assimilação dos bens alimentares é o aparelho
digestivo, e, através dele, todo o soma, o corpus; temos também que o lugar de
interiorização-apropriação-assimilação dos saberes é a cabeça, a psique, a mens.
Finalmente, o modelo primitivo da interiorização dos dois é a tesaurização.

A escola moderna - desde o século XV-XVI - reforça a pregnância desta relação


cultural com o saber ao apresentar o saber espalhado sobre o eixo temporal da
aprendizagem escolar58. O saber, que para o especialista, é “de acesso direto”, se
apresenta aqui como sendo “de acesso sequencial”. Esta estruturação didática dos
saberes reforça a imagem do saber como realidade exterior tangível, já exteriorizada no
ensino utilizado pela escola, e que seria necessário deglutir, absorver e assimilar59.Este
57
A cada instituição está associada uma cultura: ver Chevallard 1988b.
58
É o fenômeno do tempo didático.
59
Além disso, este aspecto da relação cultural com $ é reforçado pela prática tradicional da aprendizagem
de cor, o saber sendo identificado com os enunciados deste saber. Nos tempos contemporâneos, marcados
pelo crescimento do individualismo e a imagem triunfante do self-made man, esta relação cultural sofreu
30

peso de RC($) sobre R(X,$) é visível em certas “patologias” da relação pessoal, onde o
sujeito aparenta desejar absorver tudo do saber que lhe é apresentado - na escola e para
além dela60. Mas ele afeta também a relação institucional RD($) da comunidade dos
pedagogos da matemática, a qual, por sua vez, exerce um peso sobre a relação
institucional com as matemáticas, RD(M) , que prevalece nesta comunidade.

A emergência da noção da relação pessoal (e da relação institucional), e sua


implementação na comunidade dos pedagogos, se “choca” com a barreira que formam
RD($) e, mais na frente, RC($). As análises conduzidas mais acima 61, sobre a noção
cultural de “saber”, mostram como essa relação cultural com $ está, ao mesmo tempo,
inscrita nas práticas institucionais relativas aos saberes e apoiadas por elas. A recepção
da noção de relação equivale (rá) a uma verdadeira revolução dentro da cultura dos
pedagogos, e dentro da cultura corrente; ou mais precisamente 62, na relação
(institucional) dos pedagogos com a relação cultura com o saber, nomeadamente
RD(RC($)).

4.2. A relação cultural RC($) como restrição

Os enunciados binários comuns - que opõem “saber” e “não saber” - podem ser
considerados como descrições da relação pessoal, vista nesse caso como sistema, cujo
espaço dos estados será constituído apenas de duas posições antagônicas. Na relação
cultural com o saber, RC($), a descrição da relação pessoal com todo (objeto do) saber se
reduz assim a dois estados possíveis: “saber”, “não saber” - uma descrição mais
aguçada, mas ainda unidimensional, da relação pessoal sendo, contudo, expressa: “Ele

alterações que levaram ao destaque do saber como um bem que (re) construímos nós mesmos e para nós
mesmos - como faríamos para nossa casa, ou qualquer outro bem de posse pessoal. Daí, por projeção
sobre a esfera dos saberes da relação cultural dominante com instrumentos e bens econômicos, a
insistência, dita construtivista, mas verdadeiramente individualista-de classe média, na “construção, por
parte da criança, do seu próprio saber”, etc. O cada-um-por-si “liberal”, que deve permitir que a criança
“floresça”, substitui a soupe populaire (sopão), que deveria ser tomado pois este auxilia no crescimento e
permite constituir a capacidade de trabalho economicamente indispensável.
60
O sujeito poderá, por exemplo, se interrogar constantemente sobre a “realidade” de “seu saber”,
relacionada à sua capacidade de representá-la, para si mesmo, mentalmente, a todo instante, em sua
integralidade. Neste ponto, oporemos esta relação àquela de muitos dos pesquisadores, para os quais o
saber do domínio no qual se foca a sua pesquisa é antes de tudo - e mesmo unicamente - uma ferramenta,
cuja “posse” só é valorizada na medida em que o seu emprego aparenta ser necessário para produzir um
saber.
61
No terceiro parágrafo
62
Pois a mudança em RC($) é um outro problema, muito mais vasto.
31

conhece o bastante pra conseguir fazer” “Com o pouco de inglês que conheço, eu
consegui fazê-lo compreender”, etc.

Deve ser óbvio que este tipo de descrição é eminentemente redutivo63. O que é
saber inglês? Ou matemática? Ou mesmo, o que é saber resolver os sistemas lineares de
equações com duas incógnitas? A descrição binária culturalmente comum tem,
entretanto, uma funcionalidade evidente, que é também o fator essencial do seu sucesso
social. Ela possui um aspecto claramente operacional – que, aliás, tende a atenuar-se a
partir do momento que passamos de uma binariedade estrita para uma pluralidade
unidimensional de modalidades64 -, visto que ela se mostra dotada de uma informação
suficiente para a tomada de decisão nos contextos institucionais onde ela é posta em
prática.

Ao mesmo tempo, entretanto, como já foi observado, sua funcionalidade


permanece necessariamente local, limitada a um tipo de prática social definida, em
média, pela relação institucional RI(S)65. Formalmente, diremos que o veredito “X sabe
S” é um julgamento de idoneidade de R (X,S) com RI(S).

Porém, fora de contextos relativamente estreitos - de contextos locais (no tempo


e no espaço sociais) -, que lhes fornecem seus critérios de validação, os enunciados em
termos de "saber” e de “não saber” tornam-se frágeis, insuficientes, e adquirem desde
então, e frequentemente, um valor polêmico. Desta forma, há quem poderá dizer que os
alunos “não sabem nada de matemática terminando o lycée”, enquanto que há, também,
quem dirá que os mesmos alunos “possuem um bom domínio da análise elementar”, etc.
Pois, a escola herda da cultura e de seus objetos, e, especial, da categoria do saber $.
Porém, se as formulações binárias culturalmente comuns permitem estabelecer o pacto

63
Todavia acrescentando que a relação cultural com $ oferece uma análise mais aguçada (!) sob a forma
de uma dicotomia ancorada na história das sociedades ocidentais, distinguindo entre “saber” e “saber-
fazer”, entre “saber que” (to know that) e “saber como” (to know how), etc. Se trata neste caso de
variantes, significativas dentro da cultura, mas que a conceitualização aqui apresentada não pode retomar
por conta própria.
64
“Eu não conheço bem este modelo, prefiro não mexer nele; vá antes falar com o distribuidor da marca”,
poderíamos, por exemplo, ouvir dizer.
65
Pegando apenas um exemplo, “saber mecânica automotiva” só pode ter um sentido amplo - fora da
oficina mecânica determinada - se o ofício correspondente é bastante homogeneizado; se, em suma,
aquele que ontem “sabia” a mecânica automotiva enquanto trabalhava em tal garagem, “saberá” ainda
numa nova oficina onde ele irá trabalhar amanhã. Podemos aqui fazer referência às notas de D’Alembert
sobre o estado de fragmentação das artes e ofícios que foram descobertas por aqueles que investigavam
em nome da Enciclopédia.
32

originário que funda a escola, elas influenciarão o funcionamento da instituição de


ensino de uma maneira específica.

Ainda que, de fato, em outras instituições só seja necessário dizer que “X sabe”
ou que “X não sabe”, e que é possível ignorar a alquimia do ensino e da aprendizagem 66,
o mesmo não é válido aqui. As formulações binárias permitem dar uma descrição
culturalmente significativa disto que temos chamado de proscênio didático. Elas não
permitem exprimir o que se passa neste outro momento em que se produz o "trabalho do
contrato", a evolução (interna, mas também externa) das relações institucionais e, no
fim das contas, a evolução da relação pessoal dos alunos com os objetos de saber
ensinado.

Para evidenciar as limitações trazidas pela sujeição à relação RC($), é necessário,


primeiramente, considerar em que o conceito de relação pessoal permite exprimir as
formulações culturais “X sabe” e “X não sabe”. Sejam OS um objeto de saber ensinado,
e X um educando. Se OS é uma questão didática, o enunciado “X sabe O S” (ou “X
domina OS", etc.) equivale à afirmação de que a relação pessoal de X com OS, R(X, OS),
é adequada para a relação oficial R*(OS); se OS não é mais uma questão didática, o
mesmo enunciado será parafraseado de maneira a dizer que a relação pessoal de X com
OS, R(X, OS) é apropriada à relação institucional R(OS).

Porém, enquanto o veredito de adequação, referente a um objeto de saber


desafio didático, é sistematicamente situado - nas modalidades específicas -, o mesmo
não é válido para o veredito de idoneidade referente a um objeto de saber
institucionalizado, que, exceção à parte, aparecerá somente de maneira marginal,
errática e furtiva. É, por exemplo, na ocasião da avaliação da relação pessoal do aluno
com um determinado objeto de saber desafio didático que poderá surgir, lateralmente de
certa maneira, um sub-veredito de impropriedade de sua relação com tal objeto julgado
aqui pertinente67.Diante de tal veredito, o aluno ficará tentado a revisitar o ensino
recebido, e, consequentemente, a primeira aprendizagem realizada, sem atingir

66
A esse respeito, pode ser que as coisas mudem: a afirmação, válida para as práticas sociais congeladas,
ou em lenta evolução, pode não ser bem assim, mesmo no próprio cerne das práticas profissionais, desde
que haja uma evolução rápida das relações institucionais estabelecidas no interior da instituição
(profissional), através de “perturbações exteriores” que exprimam a mudança acelerada, ligada, em
grande parte, aos progressos técnicos, estes concretizados na aparição, sempre repetida de novos objetos.
Essa mudança leva a uma maior penetração do didático e do profissional.
67
Disto encontraremos uma repetição nestes leitmotiv que, regularmente, nos lembram de que “os alunos
não sabem calcular” ou “não sabem ler um enunciado”, etc.
33

entretanto - e por um bom motivo! - a idoneidade exigida. “Mas eu o sei!”: tal poderia
ser o desabafo do aluno que está preso na armadilha das formulações da cultura. Pois,
aquilo que é “o saber” certamente terá mudado tanto, de uma maneira indizível na
linguagem oficial da instituição, que ele não poderá nem mesmo notar.

A respeito disso, francamente, estamos todos no mesmo barco. Cada um pode


crer - legitimamente, se este adere às ficções institucionais que se tornaram para ele
realidades naturais e transparentes - “saber” estas ou outras coisas - e só perceberá com
grande dificuldade, se acontecer de algum dia ele perceber que esta maneira de saber
não é mais a “boa maneira”, em outras palavras, que sua relação pessoal com os objetos
de saber em questão terá deixado de ser adequada ou apropriada nesta ou noutra
instituição - com esta último sendo, além disso, mais difícil que a primeira. Os
educadores, particularmente, tomarão consciência disto, brutalmente, através de quase
toda mudança de programas, já que se produzirão - de maneira deveras visível para que
passem despercebidas - mudanças bruscas nas relações oficiais e institucionais -
relações com os objetos aclamados como “bem conhecidos” (enquanto objetos a
ensinar) -, os quais eles deverão, contudo - mais uma vez -, interpretar conforme a
própria relação pessoal. Da mesma forma que os alunos resistem, não necessariamente
de maneira consciente, às mudanças que afetam o contrato didático - ou seja,
consideravelmente, às mudanças nas relações institucionais com os objetos de saber já
ensinados -, os educadores resistirão de maneira nem sempre consciente, às mudanças
que afetam o currículo. Existe aí uma das fontes mais constantes do fracasso das
reformas curriculares, e a raiz de numerosos resultados “perversos” – porém, muitas
vezes, bastante previsíveis68.

4.3. O indivíduo, o sujeito, a pessoa.

O indivíduo quando compreendido dentro da instituição encontra-se submetido


ao contrato institucional (relativo à posição que ele vem a ocupar): ele é, desde então,
um sujeito da instituição. Desta maneira, cada um de nós é submetido a esta instituição
abrangente que é a cultura. Mas, antes de qualquer outra consideração, convém dissipar

68
Em relação a isto, é sempre inquietante se escutar um educador universitário (que pode, até certo ponto,
escolher seus ensinos) dizer que está disposto a assegurar o ensino desta ou doutra matéria porque ele “a
conhece bem”, se subentende: por tê-la ensinado diversas vezes. Trata-se neste caso de uma forma
culturalmente insidiosa de “secundarização” do ensino superior e de um fator objetivo de
conservadorismo (e desta maneira de regressão científica).
34

as conotações unicamente negativas que a cultura atualmente associa à palavra


sujeição69.

A sujeição é esta ligação que nos permite existir como ser social: ela é o lado
negativo do poder, e pelo qual nós temos acesso ao real e à ação 70. É neste sentido, em
particular, que é preciso compreender a afirmação, feita mais acima, segundo a qual
“um indivíduo concreto só pode se relacionar com um saber ao entrar numa relação com
uma ou mais instituições”. Longe de se opor à liberdade do indivíduo, sua sujeição
apresenta-se como a renúncia que permitirá efetivar a sua liberdade, ao fornecer formas
concretas, inclusas no real social.

O indivíduo concreto entra imediatamente no mundo das instituições,


ingressando na família e na língua desta instituição que é a infância, onde ele
permanecerá por um bom tempo - para entrar mais tarde, assim que tenha saído da
escola, na instituição da maioridade71, onde as sujeições institucionais, inicialmente, se
multiplicam para depois se estabilizarem. É assim, aprontada, tendo se tornado já numa
(pequena) pessoa, e que continua a se desenvolver como tal, que a criança entra na
escola, se tornando aluno72. É através de sua sujeição à escola, e assumindo o papel de
sujeito dela, que ele terá acesso aos saberes que a escola recebeu a missão de lhe
ensinar.

Podemos dizer que o sujeito é livre no interior dessas sujeições; e é da união


incerta das mesmas que ele nasce como pessoa. O que chamamos relação pessoal é
também a relação de uma pessoa73. Se trata, neste caso, de uma realidade difícil de
compreender, pois ela se constrói de sujeições institucionais que o observador ingênuo,
demasiadamente envolvido pela armadilha das ficções de instituição de ensino para ser

69
As notações que são frequentemente expressas na própria linguagem da cultura: de onde resulta o seu
tom, de certa forma dissonante, em relação às análises que precedem.
70
A ideia não tem nada de original: se a corrente não está corretamente sujeita ao pedal, a bicicleta não
pode se mover. Desta forma, existe uma dialética da liberdade e do poder que facilmente se revelará como
paradoxal a quem, de maneira simples, se opõe aos dois: se desejo me deslocar de um lugar a outro, eu
pego o trem, assim me sujeitando a uma instituição e às suas regras (suas relações institucionais); se
desejo escapar desta sujeição para preservar minha “liberdade”, eu posso também pedir carona, mas então
eu estarei, na melhor das hipóteses, a me submeter a outro tipo de sujeição que - tal é o paradoxo - poderá
revelar-se ainda mais restritivo.
71
Ver Chevallard 1989c.
72
Para certas observações sobre este ponto, ver Chevallard 1988a.
73
Em contraste, a relação institucional não é a relação de pessoa alguma; ela não é a relação de pessoa, e
sim a relação do sujeito ideal-imaginário da instituição.
35

honesto, atribuirá rapidamente à pessoa, muito embora elas sejam, primeiramente, a


parte do sujeito, participante de uma multiplicidade de sujeições que formam a pessoa e
que a pessoa “sustenta”. Os trabalhos “experimentais”, particularmente e
frequentemente, falham em considerar a relação pessoal - que continua quase que
inteiramente disponível para estudo - para, ao invés disso, levar em contar, na
metodologia, apenas aquilo que, nessa ou noutra sujeição, se imprime na relação
pessoal, e é expressa nela74.

Referências

CHEVALLARD Y. et FELDMANN S. (1986), Pour une analyse didactique de


l'évaluation, publications de l'IREM d’Aix-Marseille, 3, Marseille.

CHEVALLARD Y. et MERCIER A. (1987), Sur la formation historique du temps


didactique, publications de l’IREM d’Aix-Marseille, 8, Marseille.

RAJOSON L. (1988), L’analyse écologique des conditions et des contraintes dans


l‘étude des phénomènes de transposition didactique: trois études de cas, thèse de

74
Em particular, estudos como "concepções de alunos do cinquième em relação à perspectiva" - para
mencionar aqui somente um exemplo - são passíveis de trazer apenas indicações sobre o que, nessa
instituição onde participam especificamente “as crianças do cinquième”, não é outra senão a relação
institucional com o espaço e sua representação. Associando a relação assim evidenciada com a pessoa do
aluno - impropriamente, mas usualmente, chamado de “sujeito”- tais estudos, incorretamente
problematizados, só podem servir para ocultar a pessoa e, ao mesmo tempo, integralmente, (N.T.: o
arquivo finda, incompleto, neste ponto)
36

doctorat de troisième cycle en didactique des mathématiques, Université d’Aix-


Marseille Il, Faculté des Sciences de Luminy.

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