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A ação transcendente dos medicamentos

Joaquim Prado P. Moraes Filho


Faculdade de Medicina -
Universidade de São. Paulo

Thelma A. Bombona1ti
Faculdade de Saúde Pública-
Universidade de São ~aulo

Ingenuidade pensar que o tratamento passa a palpar, cortar, interpretar núme-


médico se baseia exclusivamente na ação ros e exames e, fmalmente, prescrever
farmacolõgíca de drogas, no efeito cura- veterinariamente ..
tivo .de certas dietas ou no corte certeiro Mas não percamos o fio da meada: in-
de uma intervenção cinírgica. Tais ações genuidade atribuir aos remédios ou ao
diretas e objetivas podem efetivamente bisturi dons maiores do que aqueles que
ocorrer, mas terão campo mais fértil na realmente têm. Na realidade, à ação obje-
Veterinária, onde a ação médica é suma- tiva da prescrição sempre se soma outra,
mente técnica. De fato, na ciência que subjetiva, exercida pela figura do médico.
versa sobre as doenças dos animais, o re- Há um valor simbólico no ato médico que
sultado final da ação médica é conseqüên- se inicia antes mesmo que a intervenção
cia exclusiva das medidas propostas pelo farmacol6gica, propriamente dita, venha a
veterinário, sejam elas farmacol6gicas, ocorrer. Impossível defmir o que real-
dietéticas ou cinírgicas. É mister, contu- mente vem a ser essa força imponderável
do, não confundir Veterinária com Medi- que exerce a figura do médico. É possível
cina pela intensa subjetividade que tam- que a postura, o olhar, a voz, o toque du-
bém faz parte desta última. Com efeito, a rante o exame ffsico, a segurança no ex-
Medicina tem caráter totalmente diverso crever a receita tenham importância, É
da Veterinária, precisamente pela nature- possível até que outras forças em nível
za do seu objetivo: o animal tmpar. anímico interajam entre os dois seres ali
O Homo sapiens, mamífero da ordem presentes - médico e paciente. Mas não
dos primatas, ao contrário de todos os importa definir de onde vem a força do
outros animais, foi dotado de duas ex- médico: esse invisível elo com o chamã,
traordinárias características as quais, por com o curandeiro, com o pajé, com o
si sõ, o tornam sui generis. Em primeiro santo milagreiro é a mágica que envolve a
lugar, a enorme capacidade de aprender, relação com o paciente. Observa-se que o
sentir a emoção e interpretar o mundo que comportamento místico do médico em fa-
o cerca e, em segundo, a habilidade de ce da doença pouco muda ao longo dos
estruturar e manipular o meio a seu gosto, séculos. Existem, obviamente, notáveis
necessidade e prazer, de modo a gerar diferenças no estabelecimento do diag-
cultura. Essas características, somadas n6stico, nos cuidados assistenciais, na
à cooperação social, fazem do ser huma- prescrição e na técnica operat6ria das di-
no um "animal" extraordinariamente es- ferentes épocas, mas, no que tange à ex-
pecial, isso, para não falar na natureza, pectativa de cura do paciente que procura
origem e determinação do Homem, que o médico, não há diferenças fundamentais
ainda mais o diferencia dos demais seres entre um civilizado de nossa época, um
da criação. Assim, o tratar e mitigar as papua que se dirige ao enfeitado feiticeiro
dores do Homem diferenciam in essentia, ou um egípcio do segundo milênio que se
Medicina de Veterinária. São importantes entrevista com o sumo sacerdote.
estas considerações porque tais diferenças Consideremos uma consulta médica. A
não são sempre lembradas e, algumas ve- complexa relação ali estabelecida se re-
zes, o médico assume diante do seu pa- sume, aparentemente, na instituição do
ciente uma postura nitidamente veteriná- tratamento por meio da prescrição de uma
ria. A partir desse momento, ele perde de droga. Vale dizer que, no entanto, a prõ-
longe a dimensão maior da sua profissão e pria relação entre o médico e seu paciente
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AÇÃO FARMACOLÓGICA
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Atividade cllnlca da droga: resultante de um componente concreto (farmacol6glco)


e de um componente abstrato (transcendente)

é por si s6 curativa. O ato médico. por ação transcendente que faz com que o sa-
outro lado, envolvendo seus jargões e ber seja de forma menor ou maior trans-
posturas próprias, pode ser considerado formado em poder curativo. Da terapêu-
como um ritual: sem consagração ritual o tica faz parte, portanto, a própria consulta
remédio é inoperante, Assim, a atividade com seu conjunto de palavras, toques e
clinica do medicamento pode ser consi- símbolos escritos. Existe uma atitude de
derada conseqüência de uma ação pura- cura onde está implícita a vocação, a qual
mente farmacolôgica, ponderável, e uma permite o surgimento do afeto, aliás tam-
ação transcendente. imponderável (figu- bém terapêutíco, É, precisamente, esse
ra). Já se vê que é o uso maior ou menor momento mágico que envolve, de um la-
da ação transcendente que dará ao médico do a expectativa de vida e, de outro;
maior ou menor poder curativo, já que a a atitude de cura. que faz a Medicina e
ação farmacológica isolada é relativa- que confere ao médico o dom de curar.
mente limitada e bem estabelecida. É a

REV. BRAS. CLÍN. TERAP. - VOL. XV ~ N2 9- PÁG. 265- SETEMBRO DE 1986

C.Permissão.

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