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Alceu Júnior Paz da Silva

Programa de Pós-Graduação em Educação - Doutorado em Educação


Educação Científica, Matemática e Tecnológica

Os desafios atuais da formação de professores de ciências.

Desde o limiar do século XXI, vemos a consolidação do debate sobre a crise na Educação
Científica e, dentro dele, as implicações sobre o professor de Ciências, o qual, para além da crise da
escola (sob aspectos amplos como políticas públicas, carreira e infraestrutural escolar), isto é, da perda de
poder e a desvalorização profissional, está imerso em dilemas de sua especificidade, como o desafio de
dar sentido ao estudo de sua disciplina para jovens, cada vez mais, cercados por um mundo tecnologizado
e informatizado, e a histórica ênfase, em sua formação, de uma dimensão técnica em face a uma dimensão
educativa, conforme (FOUREZ, 2003, p. 111).
Num olhar menos atento, incorreríamos no erro de se pensar que os processos de formação de
professores de Ciências no Brasil, e no mundo, não se transformaram ao longo do tempo, sendo certa
estagnação a sua contribuição maior para um retrocesso ou uma defasagem na formação profissional
docente e suas limitações na superação da crise. Num amplo e diversificado espectro, vimos, num período
de 1950 a 1995 e sob influência de fenômenos políticos e econômicos, uma educação voltada para a
formação de uma elite almejar a formação de cidadãos; um ensino de ciências limitado na transmissão de
informações passar a abordar as relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade; uma visão de Ciência
neutra ideologicamente é vista como produto de relações econômicas, políticas e sociais e; estratégias de
ensino centradas em laboratório dão lugar a mediações envolvendo a informática (promotora de um
ensino multimodal), como nos mostra (KRASILCHIK, 2001, p. 136).
Desse quadro acima, podemos questionar: se os campos de pesquisas (e práticas) sobre o ensino e
a formação de professores de ciências se desenvolvem e produzem novos conhecimentos, quais seriam os
desafios para que um avanço na qualidade da formação de professores promovesse transformações
efetivas nas aulas de ciências? Na busca por traços de respostas, passamos pelo difícil ato de se ensinar
Ciências e chegamos à complexidade que caracteriza a ação docente.
Transformar o ensino de ciências é entrar na caixa preta da educação, ou seja, a sala de aula.
Assim como na caixa preta de um avião, que na verdade é alaranjada, nela estão as informações mais
valiosas porém encontram-se, hermeticamente, fechadas. Romper os limites e conhecer o ensino de
ciências praticado é a porta de entrada para se pensar numa melhoria na formação de professores, a qual,
necessariamente, estará imersa no conteúdo valioso e, arduamente, acessado, os saberes e a identidade
docente.
A formação da identidade profissional docente e de seus saberes, perpassando a história de vida e
as socializações anteriores à carreira e no exercício dela, levam Tardif e Raymond (2000, p. 225) a

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defender que as investigações nesse campo de estudos devem se dar de forma dinâmica, genética e
diacrônica, pois o
[….] tempo não é, definitivamente, somente um meio – no sentido de um “meio marinho” ou
“aéreo” – no qual estão imersos o trabalho, o trabalhador e seus saberes; também não é unicamente
um dado objetivo caracterizado, por exemplo, pela duração administrativa das horas ou dos anos
de trabalho. É também um dado subjetivo, no sentido de que contribui poderosamente para
modelar a identidade do trabalhador. É apenas ao cabo de um certo tempo – tempo da vida
profissional, tempo da carreira – que o eu pessoal, em contato com o universo do trabalho, vai
pouco a pouco se transformando e torna-se um eu profissional (TARDIF; RAYMOND, 2000, p.
239 – grifos do autor).

Dessa forma, vão se constituindo os saberes profissionais, pela interação entre concepções
pessoais e o ambiente de trabalho (escola, sala de aula, etc.). Se, por um lado, a formação da identidade
profissional é inerente e influencia a prática pedagógica, por outro, a complexidade da ação docente pode
ser vista pelo seu carácter integrador (reconstrutor ou adaptador) de diferentes tipos de conhecimento.
Investigações de Shulman (2005, p. 11) procuraram organizar os conhecimentos de base (Base
Knowledge) em sete categorias: i) conhecimento do conteúdo; ii) conhecimento didático geral (princípios
e estratégias gerais de condução e organização da sala de aula); iii) conhecimento do currículo (materiais
e programas); iv) conhecimento didático do conteúdo (específico do professor, constituída pela amalgama
entre conhecimento objeto de ensino e a pedagogia); v) conhecimento sobre os alunos (características);
vi) conhecimento sobre os contextos educativos (do funcionamento da aula, do sistema educacional até o
da comunidade e da cultura) e; vii) Conhecimento dos objetivos, das finalidades e dos valores educativos
(seus fundamentos filosóficos e históricos).
Por sua vez, o autor localiza as principais fontes desses conhecimentos de base para o ensino,
vindos a) da formação acadêmica na disciplina objeto de ensino; b) dos materiais e o contexto do
processo educativo institucionalizado (currículo, livro didático, organização escolar, etc.); c) da
investigação sobre a escolarização (fenômenos socioculturais que influenciam o quefazer dos professores)
e d) da sabedoria produzida na própria prática.
Diante isso, quais seriam os aspectos fundamentais que assumiriam um processo formativo inicial
ou continuado que tomasse como ponto chave e de apoio a prática pedagógica em Ciências? Como
promover a formação de diferentes saberes sobre a docência em Ciências? Uma vez que, recai sobre eles
a necessidade de uma ruptura com visões simplistas sobre o ensino; uma formação sólida sobre a
disciplina objeto de ensino; o entendimento teórico sobre a aprendizagem em Ciências; saber planejar
atividades de ensino efetivas; saber avaliar, entre outros, conforme (CARVALHO; PÉREZ-GIL, 1998).
Nos parece que uma aposta em ciclos auto reflexivos, como forma de suscitar os problemas
vindos da prática pedagógica, pode promover a problematização e a elaboração dos saberes necessários a

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docência em Ciências, sem perder o vínculo orgânico (vivo) com os dilemas do cotidiano escolar ou com
as dificuldades curriculares (fragmentação dos conhecimentos disciplinares, visão vaga da prática
educativa, etc.) no âmbito da formação inicial.
Nessa esteira, e que comporta aspectos de uma pesquisa ação, nos ressaltam Azevedo e Abib
(2013), a formação de professores assume “a ideia de um coletivo que transforma suas dificuldades em
problemas de ensino e se desafia a resolvê-los, identificando objetivos, planejando ações, implementando-
as com controle sobre as mesmas e avaliando os seus resultados com a intenção de melhorar a prática
(TRIPP e FORMOSINHO apud AZEVEDO; ABIB, 2013, p. 57)”. Aqui, vemos um afastamento de uma
compreensão técnica e instrumental (treinamento ou “reciclagem”) para uma compreensão educativa
(como cooperação), reforça Abib (2003, p. 89).
Como forma de mobilizar e operacionalizar, em conteúdo e forma, a ação docente em suas
múltiplas dimensões, vemos no planejamento de ensino um dos lugares privilegiados para problematizar
os saberes necessários a docência em Ciências. O planejamento de sequências de ensino (Unidades
Didáticas Temáticas - UDT) assume uma intenção didática, ou seja, como uma relação ternária
(professor/aluno/conhecimento), na qual, um conhecimento não é usado, mas, ensinado, tendo em sua
essência o desejo de uma das partes (o professor) de fazer com que a outra parte (o aluno) aprenda,
fundando-se nisso a existência da intenção de ensinar. A elaboração de uma UDT, ao seguir a concepção
de transposição didática do conhecimento científico, como enunciado por Chevallard, parte do
pressuposto de que ocorre uma “transição do conhecimento considerado como uma ferramenta a ser posto
em prática, para o conhecimento como algo a ser ensinado e aprendido (CHEVALLARD, 2014, p. 09).
Da intenção de elaborar e organizar recursos didáticos para o ensino de conceitos de Química, o
processo de docência vai se configurando por meio de UDT assumidas, aqui, como uma sequência
didática (Teaching-Learning Sequences – TLS), isto é, tanto uma atividade de pesquisa intervencionista
quanto um produto, o qual inclui atividades de ensino e aprendizagem cuidadosamente pesquisadas e
empiricamente adaptadas ao raciocínio do estudante, conforme (MÉHEUT; PSILLOS, 2004, p. 516). As
pesquisas envolvendo TLS têm sofrido influências de distintas investigações, tais como, sobre as
concepções dos alunos, as características do conhecimento científico específico, pressupostos
epistemológicos, perspectivas de aprendizagem, abordagens pedagógicas e características do contexto
educacional.
Shulman (2005, p. 20) coloca, numa dimensão cíclica, uma série de momentos inerentes ao
processo de reflexão e ação docentes, os quais, em linhas gerais, compreendem a Compreensão (das
finalidades, do conhecimento a ser ensinado e das ideias exteriores a esse último); a Transformação,

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(ligamos à transposição didática de Chevallard) constituído por: i) preparação: interpretação e análise


crítica do conteúdo, sua estruturação, segmentação e registro curricular; ii) representação: uso de
representações como analogias, metáforas, exemplos, demostrações, explicações, etc.; iv) seleção:
escolha de uma modalidade de ensino, organização e planejamento; v) adaptação: um ajuste às
características dos alunos (nível conceitual, concepções alternativas, dificuldades, motivação, classe
social, gênero, idade, capacidade, cultura, etc).
O momento do Ensino (gestão, apresentações, perguntas, interações, trabalho em grupo, humor,
outros aspectos do ensino ativo e as demais formas observáveis de ensino em sala de aula). Seguido pelo
momento da Avaliação (consiste em investigar a compreensão dos alunos durante o ensino e após as
lições, bem como, avaliar o próprio desempenho). Na etapa seguinte, temos a Reflexão (a qual trata de
revisar, reconstruir, representar e analisar criticamente os desempenhos do professor e dos alunos da
turma, fundamentar as explicações em evidências). Ao final do ciclo, encontramos o momento de Novas
maneiras de compreender (aqui emergem novas compreensões dos objetivos, da matéria de ensino, sobre
os alunos, sobre o ensino e sobre si mesmo). Um esquema delineamos no Apêndice I.
Posto dessa forma, a constituição de sucessivos ciclos (Apêndice II) de planejamento,
implementação e reflexão sobre os problemas emergidos da prática pedagógica poderiam potencializar os
processos formativos, mediante a localização dos saberes docentes e os seus aperfeiçoamentos. Seja por
meio de diários de bordo, plausível numa escola ou numa universidade pública que não dispõem de
infraestrutura de ponta, e seu uso baseado no compartilhamento amigável de experiências, de angústias e
de achados práticos autênticos, a reflexão sistemática em direção a ruptura com o senso comum docente,
não se restringe a repensar o microcosmo da sala de aula, mas, a partir da escola, poder explorar as
relações mais amplas da sociedade contemporânea e com ela os limites e as possibilidades de se
empreender ações de caráter emancipatório, pois a reflexão
[…] como um empreendimento colaborativo em que os sujeitos buscam compreender os limites e
resistências de suas práticas, das condições em que trabalham, da elaboração e reinterpretação dos
currículos, do processo de ensino e aprendizagem e das relações entre pensamento e ação,
indivíduo e sociedade. Esse movimento dialético, realizado pela reflexão, desafia-nos a buscar
uma coerência entre as nossas finalidades e ações, do mesmo modo que permite uma ação
pedagógica mais lúcida que almeje ser mais justa e ética (TAUCHEN; ENRICONE, 2007, p. 129).

Posto assim, compreendemos que os atuais desafios da formação de professores se distribuem


pelos cursos de graduação (currículo, estágios, etc.) e pelos programas de formação continuada e que,
embora para cada um desses âmbitos existam sempre uma permanente renovação de lista de prescrições
de saberes necessários para a superação da crise do Ensino de Ciências, não podemos (Universidade e
Escola) perder do horizonte a criação de estratégias amistosas para adentrar na “caixa preta” da escola.

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Bibliografia:

ABIB, M. L. V. dos S. Formação de professores de ciências: treinamento ou cooperação? Conhecimento


científico e vida cotidiana. São Paulo: Terceira Margem, 2003.

AZEVEDO, M. N. de; ABIB, M. L. V. dos S. Pesquisa-Ação e a elaboração de saberes docentes em


Ciências. Investigações em Ensino de Ciências, 2013. v. 18, n. 1, p. 55–75.

CARVALHO, A. M. P. de; PÉREZ-GIL, D. Formação de Professores de Ciências: tendências e


inovações. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1998.

CHEVALLARD, Y. Sobre a Teoria da Transposição Didática: Algumas Considerações introdutórias.


Revista de Educação, Ciências e Matemática, 2014. v. 3, n. 2. Disponível em:
<http://publicacoes.unigranrio.com.br/index.php/recm/article/view/2338>. Acesso em: 1o jun. 2017.

FOUREZ, G. Crise no ensino de ciências? Investigações em ensino de ciências, 2003. v. 8, n. 2, p. 109–


123.

KRASILCHIK, M. Formação de professores e ensino de ciências: tendências nos anos 90. Formação
continuada de professores de ciências no contexto idero-americano. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 2001.

MÉHEUT, M.; PSILLOS, D. Teaching–learning sequences: aims and tools for science education research.
International Journal of Science Education, 16 abr. 2004. v. 26, n. 5, p. 515–535.

SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza: fundamentos de la nueva reforma. 00507: Profesorado:


Revista de curriculum y formación del profesorado, 2005. v. 9, n. 2, p. 1.

TARDIF, M.; RAYMOND, D. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação &
Sociedade, 2000. v. XXI, n. 73, p. 209–244.

TAUCHEN, G.; ENRICONE, D. Pesquisa e reflexão sistemática: estratégias formativas na prática de


ensino. Ações educativas e estágios curriculares supervisionados. Santa Maria: EdUFSM, 2007, p.
124–143.

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Apêndice I - Articulação entre as ideias de Chevallard (2014), Méheut e Psillos (2004) e Shulman
(2005).
Apêndice II - Ciclos de Implementação de Sequências de Ensino (UDT) e Reflexões sobre a prática.

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