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Fernando Lefevre 1
Ana Maria Cavalcanti Lefevre 2
Maria Cristina da Costa Marques 1
Abstract The aim of the present work is to discuss Resumo O presente trabalho busca apresentar al-
some consequences of the method called “Discourse guns desdobramentos do método do discurso do su-
of the Collective Subject” concerning the semantic jeito coletivo no que toca à densidade semântica por
density of the qualitative data, that implies a signif- ele provocada, que implica a presença significativa-
icantly and more relevant presence of the collective mente mais relevante, nas pesquisas sociais que en-
thought as empirical reality in qualitative researches. volvam coleta de depoimentos, do pensamento cole-
Such a presence of the empirical material, associat- tivo como realidade empírica. Tal presença mais
ed to the understanding of the collective thought as significativa do material empírico, aliada ao enten-
referent, allows a dialogue of the descriptive and in- dimento do pensamento das coletividades como re-
terpretative moment in this variety of research. This ferente, permite o diálogo do momento descritivo
in turn alludes to a new possibility that points out to com o momento interpretativo neste tipo de pesqui-
the uncertain and unexpected contributing to a re- sa, podendo assim, como nova possibilidade que
newed understanding of the nature and processes of aponta para o incerto e para o inesperado, contri-
the social representations as complex realities. buir para um entendimento renovado da natureza
Key words Discourse of the collective subject, Com- e do funcionamento das representações sociais como
plexity, Collective thought, Self-organization realidades complexas.
Palavras-chave Discurso do sujeito coletivo, Com-
plexidade, Pensamento coletivo, Auto-organização
1
Departamento de Prática
de Saude Pública, Faculdade
de Saúde Pública,
Universidade de São Paulo.
Av. Dr. Arnaldo 71,
Cerqueira Cesar.
01246-000 São Paulo SP.
flefevre@usp.br
2
Instituto de Pesquisa do
Discurso do Sujeito
Coletivo.
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Lefevre F et al.
este autor faz entre racionalidade científica e racio- emitirem, no cotidiano de suas vidas, juízos ou
nalidade mítica. A racionalidade científica pretende opiniões, que são condições necessárias para viver
um controle da realidade concreta por meio da técni- e se comunicar em sociedades complexas.
ca, por sua vez, a racionalidade mítica é a que explica Estes esquemas sociocognitivos, acessáveis atra-
os aspectos da existência no plano dos desejos e valores, vés de depoimentos individuais, são entidades vir-
desta forma criando também a ética, conforme vivida tuais que, por isso, precisam ser reconstituídas atra-
pela maioria dos indivíduos e grupos sociais. vés de pesquisas sociais que comportem uma di-
Na reflexão sobre esta questão, o autor evi- mensão qualitativa e quantitativa.
dencia que as experiências de dor e de prazer de cada Tais pesquisas revelam um primeiro nível de
um são memorizadas em função de sua história in- complexidade do fenômeno das representações
dividual e coletiva e, sob efeito da memória e da sociais, que se traduz na constatação que o estudo
imaginação, o bem e o mal associados às experiênci- e o entendimento do pensamento coletivo implica
as sensoriais presentes são estendidos na duração e uma démarche complexa, na medida em que diz
deslocados no espaço. Nesta direção, podemos atri- respeito à articulação entre o virtual, ou seja, os
buir ao outro as mesmas experiências que as nos- esquemas, o individual, ou seja, os depoimentos e
sas, concebendo um bem ou um mal coletivos, re- o coletivo, isto é, o uso destes esquemas internali-
lativizados na forma de sublimar desejo e sofri- zados nas interações e comunicações sociais.
mento de cada grupo humano. O segundo nível, mais interno, de complexida-
A complexidade, como foi assinalado, pressu- de da problemática aqui discutida é dado pela pro-
põe comunicação e interação entre as partes do dução propriamente dita, nas pesquisas que usam
sistema e o todo. A comunicação estabelece a pos- o DSC, das representações como painéis de discur-
sibilidade de sobrevivência e auto-organização dos sos coletivos.
sistemas complexos, como as comunidades hu- O presente nível encerra uma problemática com-
manas. Alguns parâmetros podem apontar o mo- plexa na medida em que revela a presença e a neces-
vimento de complexidade de um sistema segundo sária articulação teórico-metodológica entre o ní-
Parreira7: o nível de informação utilizado pelo sis- vel anterior, mais teórico, cuja principal tarefa con-
tema nas suas decisões de ação, o grau de varieda- siste na “desvirtualização” das representações soci-
de interna do sistema, ou seja, a diversidade das ais e este segundo nível mais propriamente meto-
suas partes ou componentes, no plano cultural, dológico, que implica um encadeamento de opera-
socioemocional e estrutural, o grau de variedade ções que envolve a transformação do depoimento
externa do sistema, o número de entidades cultu- bruto em depoimento trabalhado, identificação do
ral e estruturalmente diferentes que interagem de sentido ou sentidos de cada depoimento, categori-
forma permanente e o grau de exposição da varie- zação, ou seja, agrupamentos de depoimentos se-
dade interna e externa, expresso em decisões e ações melhantes em conjuntos, denominação destes con-
que efetivamente dela resultam e a aproveitam. juntos, reunião de conteúdos de depoimentos se-
Assim sendo, pode-se colocar que ciência e a melhantes num depoimento único, entre outras.
pesquisa, munidas da intuição sobre complexida- O terceiro nível de complexidade diz respeito
de, estariam convergindo para a solução de ques- às relações entre este substrato empírico constitu-
tões a respeito de um mundo não mais fragmen- ído pelo painel de DSCs que expressam, descritiva-
tado e estratificado, mas complexo e que exige, mente, as representações sociais e o metadiscurso
portanto, soluções também complexas. teórico do pesquisador na sua tarefa de interpre-
Em conformidade como o referencial acima tação dos dados.
exposto, optou-se por segmentar em níveis a temá- Reunindo-se estas três “complexidades”, pos-
tica aqui discutida, para com isso poder revelar mais tula-se que a novidade do DSC, pela grande im-
claramente a complexidade inerente seja às relações portância que tal pesquisa confere aos discursos
intra-partes, seja às relações inter-partes, nas pes- das representações sociais como fenômeno empí-
quisas de representação social que usam o DSC. rico com alto poder de auto-organização, consiste
Antes, porém, de entrar, em nível analítico, no em que, nesta metodologia, as relações entre des-
detalhamento de cada uma das partes de nosso crição e interpretação, entre discurso e metadis-
argumento central, que busca indicar as possíveis curso na pesquisa do pensamento coletivo devem
relações entre o DSC e a idéia de complexidade, ser muito mais horizontais, ou seja, de diálogo, do
convém, sinteticamente, enunciar nossa tese, nes- que costuma acontecer normalmente, em que o
tes termos: mundo empírico aparece demasiadamente subor-
As representações sociais são esquemas socio- dinado ao metadiscurso teórico (digamos arro-
cognitivos de que as pessoas lançam mão para gante) do pesquisador.
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respostas que apresentam sentidos semelhantes ou De fato, um dos testes para saber se tal mode-
complementares, consubstanciando um depoi- lo/metodologia foi de fato implementado numa
mento síntese. O conteúdo deste depoimento sín- dada pesquisa concreta consiste em verificar se
tese é, por sua vez, editado, com o uso de uma série sujeitos entrevistados numa pesquisa que utiliza o
de técnicas para constituir o produto final que é o DSC, colocados diante dos discursos do sujeito
discurso do sujeito coletivo, ou seja, uma opinião coletivo que ajudaram a constituir, são, efetiva-
coletiva de uma pessoa coletiva, redigida na pri- mente capazes de se identificar com o mesmo e
meira pessoa do singular. dizer: “eu também acho tudo isso!” Temos experi-
Finalmente, as representações sociais sobre o ências concretas de “devoluções” de resultados de
assunto pesquisado, ou mais precisamente, seu pesquisas feitas com o DSC nas quais tal senti-
substrato discursivo, são constituídas pelo con- mento foi diversas vezes manifestado por partici-
junto dos discursos do sujeito coletivo relativos pantes das “devolutivas”. Foi o caso de trabalho
aos temas e subtemas pesquisados. que desenvolvemos em Itapecerica da Serra, São
Esta complexidade nível II revela a necessidade, Paulo10, envolvendo avaliação de um programa de
para se configurar as opiniões coletivas, de por em humanização do atendimento de saúde, e no Rio
prática um grande número de operações encadea- de Janeiro11, envolvendo avaliação da implantação
das que culminam no painel de discursos coletivos. um processo de vigilância à saúde com os funcio-
Com efeito, o processamento das respostas que nários da Secretaria da Saúde deste estado.
culmina na produção dos discursos do sujeito cole- Este sujeito coletivo pessoal ou pessoalizado e
tivo supõe: uma postura rigorosamente descritiva, seu discurso constituem, acredita-se, uma forma
a análise detalhada, a seleção do conteúdo relevante mais viva e mais “natural” de reconstrução e ex-
de cada resposta, a busca e a nomeação do(s) pressão das representações sociais, porque mais
sentido(s) manifesto(s) (as idéias centrais) e laten- “encarnada” em sujeitos. E isso porque se acredita,
tes (as ancoragens) presentes nos conteúdos das res- conforme explicitado na sessão “Complexidade
postas e, finalmente, a edição dos DSCs, condições nível I”, que é pela via das pessoas, que são seus
necessárias para que as pesquisas com o DSC sejam portadores, que as representações sociais funcio-
vistas como produções da ciência que possam, como nam, na prática, no dia-a-dia das interações so-
todo pensamento científico, ser criticadas nas suas ciais da vida cotidiana.
eventuais insuficiências ou erros e reproduzidas pe-
los pesquisadores que assim o desejarem.
Complexidade nível III: ressignificação
interpretativa das representações sociais
Pressuposto teórico-metodológico ou a emergência do diálogo
A soma destas duas complexidades pressupõe um O terceiro nível – o que classicamente é apresenta-
modelo sobre o que é o pensamento coletivo e uma do nos relatórios ou nos papers sob a rubrica “Dis-
metodologia destinada, através de pesquisas em- cussão e interpretação dos dados” – diz respeito às
píricas, a fazer emergir pensamentos coletivos so- perguntas: o que, do dado bruto das opiniões sob
bre temas específicos, que sejam conformes a este a forma de DSCs, pode ser destacado; por que as
modelo. pessoas pensam o que pensam; qual o contexto
Tal modelo/metodologia, esquematicamente, deste pensamento; quais suas consequências e quais
postula que : suas implicações práticas.
Os pensamentos coletivos ou representações Aqui, o lugar do sujeito da produção de sentido
sociais são metabolizações pessoais ou individuais das representações sociais muda de dono (o dono
de matrizes discursivas existentes virtualmente nas anterior era o sujeito empírico, o que produz o dis-
formações sociais, acessadas através de pesquisas curso da realidade) passando a ser ocupado, de
com indivíduos questionados através de pergun- modo explicito, pelo pesquisador-portador-da-teo-
tas abertas, metabolizações essas que, visando à ria ou do discurso sobre a realidade, ainda que,
atualização e expressão concreta, em forma de num primeiro momento (o da limpeza dos dados
opiniões coletivas, das matrizes discursivas virtuais, brutos), este pesquisador não esteja propriamente
são, sob a forma de constructos, agrupadas, por convocando um outro discurso, mas apenas desen-
semelhança semântica, em discursos síntese redi- volvendo um rearranjo interno das informações.
gidos na primeira pessoa do singular, de modo a Mas, da perspectiva do DSC – no qual o mate-
configurar um sujeito coletivo portador de uma rial empírico dos discursos individuais e coletivos
opinião, ou de um “eu acho...” social. das pessoas ganha um grande destaque – convocar
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POBLACIÓN
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Gráfico 1. Representações sociais de médicos e da população sobre a relação entre preço e qualidade dos
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Colaboradores
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