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Mestre em Educação nas Ciências/História pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul; professor na rede pública de escolas estaduais. Contato: ed_lemos_leal@hotmail.com.
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Doutor em Educação nas Ciências/Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul; professor no Curso de Direito e no Mestrado em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da
Universidade de Cruz Alta. Contato: tbrutti@unicruz.edu.br.
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O termo “civiltà” também pode ser empregado, de acordo com Dini, para “indicare il complesso dei valori
morali, dell’organizzazione politica, delle tradizioni, delle idee estetiche sul bello e sul brutto, che caratterizza la
vita di um popolo in un particolare momento della sua storia. In quest’accezione il termine si avvicina molto aol
significato della parola cultura” (2000, p. 10).
limites da atuação do cidadão, aquele indivíduo que estabelece um contrato ético com seus
iguais em troca da estabilidade social que deve ser administrada pelo Estado.
A cidadania contemporânea, por essa via, engloba em sua essência importantes
garantias sociais, civis e políticas, as quais permitem aos cidadãos o direito de participação na
esfera pública. Os cidadãos são responsáveis tanto pela elaboração como pela ratificação das
regras sociais destinadas a todos os membros da comunidade. Não obstante, é necessário
reconhecermos que o conceito de cidadania não apresenta na história da humanidade uma
linearidade e uniformidade em sua estrutura, até porque sua acepção estará sempre
relacionada a uma realidade singular na qual os homens redefinem suas características de
acordo com as convicções de cada povo em seu respectivo período histórico.
Em todo caso, o termo cidadania sempre esteve relacionado com a vida em
sociedade, tendo sua origem no desenvolvimento das atividades comerciais da antiguidade
clássica, culminando no surgimento das “polis” gregas, pois é nesse período, sobretudo na
cidade-Estado de Atenas (após as reformas políticas de Clístenes em 509 a.C.), que surge um
modelo de administração pública (democracia) que reconhece aos homens livres nascidos na
cidade o direito de participação na vida política que definia os rumos da administração de toda
a comunidade.
Aristóteles (1988, p. 45) define como cidadão o indivíduo apto a governar e a ser
governado. Não se poderia julgar que fossem cidadãos todos aqueles que a cidade não
pudesse prescindir. Hannah Arendt (1972) percebe que a dupla definição aristotélica de
homem - enquanto animal político (“zôonpolitikón”) e enquanto animal racional
(“zôonlógonékhon”) - não teria por objetivo a disseminação da cidadania para todos, até
porque, naquele contexto, “aqueles que trabalhavam não eram cidadãos, e os que eram
cidadãos eram, antes de tudo, os que não trabalhavam ou que possuíam mais que sua força de
trabalho” (1972, p. 45). Convém lembrar junto com a autora que, para os gregos, o trabalho
era uma questão apolítica em sua essência, e por esse motivo o ócio era tido como condição
necessária para a atividade do cidadão, cuja dedicação deveria ser integral com questões
públicas no intuito de bem ordenar o destino de sua cidade. Romão esclarece:
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“Não se deve, portanto, deixar passar esta ocasião a fim de fazer com que a Itália, depois de tanto tempo,
encontre um redentor. Não tenho palavras para exprimir o amor e o entusiasmo com que seria ele recebido em
todas as províncias que sofreram ataques e invasões estrangeiras, nem com que sede de vingança, com que fé
obstinada, com que piedade, com que lágrimas” (MAQUIAVEL, 1996, p. 138).
Este segredo, este grande segredo de amor e de nostalgia, é à Itália. Um
violento amor da pátria despedaçada, subjugada e devastada, arde no íntimo
do coração desse funcionário de espírito tão implacavelmente positivo, de
olhos frios, tão abertos sobre a dureza e a realidade, sobre a sua selvageria
até. O sonho de um libertador, de um redentor da Itália, atormenta
Maquiavel [...]. Republicano de coração, Maquiavel imaginara, sem dúvida,
a realização de uma república italiana (1982, p. 42).
O direito de todos os homens a todas as coisas não deve ser retido, mas
alguns direitos devem ser transferidos ou renunciados, pois se cada um retém
seu direito sobre tudo, segue-se necessariamente que alguns, através do
direito, podem invadir e outros, pelo mesmo direito, se defendem contra os
primeiros, pois na necessidade natural de todo o homem está o empenho em
preservar seu corpo e tudo aquilo que considera necessário para protegê-lo
(HOBBES, 2004, p. 41).
Cabe destacar que o sentido de liberdade advogado por Locke favorece o respeito aos
direitos individuais de cada cidadão, tendo sido capaz de influenciar a instituição da noção
moderna de cidadania ao longo da Revolução inglesa (1640-1688). A obra do autor inspira o
ideal capitalista liberal burguês em meio ao desenvolvimento progressivo da Revolução
industrial iniciada ainda no século XVIII. O direito à participação política, contudo, foi, pelo
menos até o final do século XIX, uma prerrogativa associada à posse de bens materiais.
Mondaini comenta que “seus fundamentos universais [...] traziam em si a necessidade
histórica de um complemento fundamental: a inclusão dos despossuídos e o tratamento dos
iguais com igualdade” (2010, p. 131).
De acordo com Marshall (1967), a evolução do conceito de cidadania na Inglaterra
deveria ser descrita em três momentos distintos5, os quais simbolizam as conquistas graduais
dos direitos civis (século XVIII), dos direitos políticos (século XIX) e dos direitos sociais
(século XX). Esses três direitos estiveram, por assim dizer, fundidos num só, o que indiciava
inicialmente um sentido geral para a concepção de cidadania. O governo concentrava as
funções legislativas, executivas e judiciárias. Contudo, com as frequentes pressões da
sociedade civil organizada, esta lógica foi sendo modificada a ponto de estender
sensivelmente o grau de direitos e de participação a todos os membros da sociedade em um
processo histórico de longa duração:
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“O autor que desenvolveu a distinção entre as várias dimensões da cidadania [Marshall] sugeriu que ela se
desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no
século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no século XX.
Segundo ele, não se trata de sequência apenas cronológica: ela é também lógica. Foi com base no exercício dos
direitos civis, das liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo do
seu país” (CARVALHO, 2012, p. 11).
Muitos pensadores, na França do século XVIII, identificados com o movimento
iluminista, também vieram a escolher a liberdade como condição social a ser garantida.
Dentre esses intelectuais, destacam-se Montesquieu, Voltaire e Rousseau, os quais, embora
apresentassem divergências entre si, instigaram os debates que constituíram a ideia moderna
de cidadania. Com efeito, no cenário que antecedeu a queda do absolutismo francês, questões
como a divisão racional dos poderes do Estado (Montesquieu), a liberdade de expressão
(Voltaire) e a soberania popular (Rousseau) foram amplamente discutidos. Defendia-se, no
geral, uma ruptura com os paradigmas vigentes naquele período. Exigiam-se reformas
amparadas nos princípios da igualdade e da liberdade. Na América, contudo, é que essas
tendências vieram a se estabelecer na prática pela primeira vez.
Os filósofos das luzes buscavam, em geral, interpretar livremente a condição humana e
o mundo social do qual participavam. Eles, não obstante, entendiam ser imprescindível ir
modificando as configurações desse mundo que os comovia e, em certos aspectos, os
desapontava. Para compreender esse movimento filosófico, há que se distinguir os sentidos
das palavras Ilustração e iluminismo6: a primeira diz respeito a um amplo movimento
intelectual cujo auge se deu no percurso do século XVIII em torno de filósofos como Voltaire,
Rousseau e Condorcet, enquanto que a segunda pode ser entendida como a designação de um
movimento cultural não reduzível ao conjunto do que foi pensado e ensinado pelos
pensadores mais proeminentes do período.
O iluminismo, na opinião de Cassirer (1994), não se destaca da soma e da sucessão
cronológica das opiniões ilustradas, isso porque o que singulariza esse movimento está, de
modo geral, na arte e na forma de conduzir um debate de ideias. A filosofia já não mais
significa um domínio particular do conhecimento situado a par das verdades da física, das
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O texto “Dilemas da moral iluminista”, de Rouanet (2007), opera com uma distinção similar a essa. Ainda
sobre o iluminismo, Cassirer (1994) realça que esse modo de pensar “não acredita mais no privilégio nem na
fecundidade do ‘espírito de sistema’: vê neste não a força, mas o obstáculo e o freio da razão filosófica” (p. 10).
A filosofia já não significa “um domínio particular do conhecimento situado a par ou acima das verdades da
física, das ciências jurídicas e políticas, mas o meio universal onde todas essas verdades formam-se,
desenvolvem-se e consolidam-se” (p. 10). Fortes (2004) assinala que as luzes são caracterizadas pela valorização
do homem e por “uma profunda crença na razão humana e nos seus poderes”, e que “revalorizar o homem
significa antes de tudo encará-lo como devendo tornar-se sujeito e dono do seu próprio destino, é esperar que
cada homem, em princípio, pense por conta própria” (p. 9). O universo “deixava de ser visto como manifestação
de uma transcendência no limite absolutamente incompreensível e se convertia em um campo de exploração a
ser submetido livremente à capacidade de julgar, comparar, pesar, avaliar, juntar ou separar” (p. 18). O filósofo
comenta, ainda, que “um novo objeto de estudos começa a se desenhar no horizonte: o próprio homem”, e que
“uma nova ‘ciência’ começa a se impor: a História”. Com o estudo do seu passado, os homens percebem “que a
massa de conhecimentos adquiridos pode ser utilizada e posta a serviço do seu próprio bem-estar”. Emerge daí,
“como um corolário necessário de todas estas descobertas, um novo mito, um novo ideal, uma nova ideia
reguladora, ou seja, a ideia de Progresso” (p. 20).
ciências jurídicas e políticas, mas o meio universal onde todas essas verdades são formadas,
desenvolvidas e consolidadas.
Comprometidos em descobrir e propagar verdades e em expulsar os preconceitos dos
lugares nos quais eles mais se refugiavam, isto é, nos governos, nas escolas, nas igrejas e nas
corporações, esses filósofos investiram contra os abusos dos regimes políticos e das
confissões religiosas proclamando a independência da razão, advogando o direito inegociável
à liberdade de opinião e de iniciativa, e oferecendo outras compreensões e conceitos para
combater uma ordem social assentada sobre a autoridade dos preconceitos e das superstições.
Cingidos dessa postura crítica e revolucionária, esses homens de espírito e ação empregaram a
filosofia e o talento de escrever:
Creio que uma das poucas coisas que nos separam de uma queda acelerada
nas trevas é o conjunto de valores herdados do Iluminismo do século XVIII.
Não é uma concepção muito popular nesse momento, quando o Iluminismo
pode ser descartado como algo que vai do superficial e intelectualmente
ingênuo até uma conspiração de homens brancos mortos usando perucas
para fornecerem fundamento intelectual ao imperialismo ocidental. Pode ser
ou não isso tudo, mas é também o único fundamento para todas as aspirações
de erigir sociedades adequadas a todos os seres humanos que viverão em
algum lugar desse planeta, e para a afirmação e defesa de seus direitos
humanos enquanto pessoas.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 15. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
DINI, Vittorio. Premessa. In: CONDORCET. Riflessioni sulla schiavitù dei negri.
[Tradução de Sabina Cassanelli]. Nápoles: Colonnese, 2003. p. 9-14.
FORTES, Luis Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense,
2004.
PINSKY, Jaime (Org.). 100 textos de história antiga. São Paulo: Contexto, 2012.
PINSKY, Jaime (Org.); PINSKY, Carla Bessanezi (Org.). História da cidadania. São Paulo:
Contexto, 2010.
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LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
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TODOROV, Tzvetan. O espírito das luzes. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo:
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WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os clássicos da política. 14. ed. Vol. I. São Paulo: Ática,
2006.