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DAS TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO DE CIDADANIA

NA HISTÓRIA DAS IDEIAS


Eduardo Lemos Leal1
Tiago Anderson Brutti2
Investiga-se, aqui, o caráter dinâmico da cidadania ao longo da história antiga,
medieval e moderna, em sua transição da teoria para as práticas sociais. A história das ideias
políticas nos auxiliam a verificar em que medida as noções antigas e modernas podem servir
de parâmetro para a análise do sentido em que pode ser entendida a palavra cidadania na
atualidade, ou seja, das características fundamentais que a ideia de cidadania adquire
conceitualmente no mundo contemporâneo.
As palavras civilização e civilidade podem ser relacionadas com uma preocupação de
valor. Essas palavras derivam de “civiltas” e do adjetivo “civilis”, ligados, por sua vez, ao
termo “civis”, ou seja, concidadão, membro da comunidade de uma cidade, com todos os
direitos e deveres que essa condição instituída lhe autoriza. Ser civilizado significa, nesse
sentido, propriamente ser um cidadão. Dini (2003) assinala que a palavra “civilitas” foi usada
em oposição à palavra “rusticitas” para indicar a boa maneira e a mansidão da vida da cidade
contraposta à rudeza e a vilania dos habitantes do campo. É de “civilitas”, ou melhor, do
acusativo “civilitatem”, que teria derivado no Trezentos a forma culta italiana “civiltà”,
originariamente usada em dois significados latinos: como valor da comunidade dos cidadãos e
como gentileza ou boa maneira. O significado moderno do termo, segundo o autor, iniciou a
tomar forma durante o Renascimento, quando intelectuais europeus adquiriram uma
consciência mais aprofundada da diferença entre o seu próprio modo de vida, aquele das
populações extraeuropeias e aquele da idade antiga. Com “civiltà” começamos, assim, a
entender, em oposição à barbárie, o progresso de certa forma da vida social3.
A ideia geral que abrange o termo cidadania pode ser descrita atualmente, conforme
Pinsky (1998), como a concessão de um “status” de identidade que permeia as relações entre
os indivíduos em uma determinada sociedade, caracterizando-se, assim, como o fundamento
responsável pela legitimidade dos direitos e deveres que determinam tanto o espaço como os

1
Mestre em Educação nas Ciências/História pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul; professor na rede pública de escolas estaduais. Contato: ed_lemos_leal@hotmail.com.
2
Doutor em Educação nas Ciências/Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul; professor no Curso de Direito e no Mestrado em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da
Universidade de Cruz Alta. Contato: tbrutti@unicruz.edu.br.
3
O termo “civiltà” também pode ser empregado, de acordo com Dini, para “indicare il complesso dei valori
morali, dell’organizzazione politica, delle tradizioni, delle idee estetiche sul bello e sul brutto, che caratterizza la
vita di um popolo in un particolare momento della sua storia. In quest’accezione il termine si avvicina molto aol
significato della parola cultura” (2000, p. 10).
limites da atuação do cidadão, aquele indivíduo que estabelece um contrato ético com seus
iguais em troca da estabilidade social que deve ser administrada pelo Estado.
A cidadania contemporânea, por essa via, engloba em sua essência importantes
garantias sociais, civis e políticas, as quais permitem aos cidadãos o direito de participação na
esfera pública. Os cidadãos são responsáveis tanto pela elaboração como pela ratificação das
regras sociais destinadas a todos os membros da comunidade. Não obstante, é necessário
reconhecermos que o conceito de cidadania não apresenta na história da humanidade uma
linearidade e uniformidade em sua estrutura, até porque sua acepção estará sempre
relacionada a uma realidade singular na qual os homens redefinem suas características de
acordo com as convicções de cada povo em seu respectivo período histórico.
Em todo caso, o termo cidadania sempre esteve relacionado com a vida em
sociedade, tendo sua origem no desenvolvimento das atividades comerciais da antiguidade
clássica, culminando no surgimento das “polis” gregas, pois é nesse período, sobretudo na
cidade-Estado de Atenas (após as reformas políticas de Clístenes em 509 a.C.), que surge um
modelo de administração pública (democracia) que reconhece aos homens livres nascidos na
cidade o direito de participação na vida política que definia os rumos da administração de toda
a comunidade.
Aristóteles (1988, p. 45) define como cidadão o indivíduo apto a governar e a ser
governado. Não se poderia julgar que fossem cidadãos todos aqueles que a cidade não
pudesse prescindir. Hannah Arendt (1972) percebe que a dupla definição aristotélica de
homem - enquanto animal político (“zôonpolitikón”) e enquanto animal racional
(“zôonlógonékhon”) - não teria por objetivo a disseminação da cidadania para todos, até
porque, naquele contexto, “aqueles que trabalhavam não eram cidadãos, e os que eram
cidadãos eram, antes de tudo, os que não trabalhavam ou que possuíam mais que sua força de
trabalho” (1972, p. 45). Convém lembrar junto com a autora que, para os gregos, o trabalho
era uma questão apolítica em sua essência, e por esse motivo o ócio era tido como condição
necessária para a atividade do cidadão, cuja dedicação deveria ser integral com questões
públicas no intuito de bem ordenar o destino de sua cidade. Romão esclarece:

Quando Aristóteles usava o vocábulo ‘cidadão’, ele estava se referindo às


minorias privilegiadas, as quais competiam às tarefas humanas, isto é, as
artes do pensar e da direção, reservando aos demais as embrutecedoras
atividades manuais que, por sua natureza, impediam a cidadania (2000, p.
222).
Tanto em Atenas como na maioria das cidades-Estado da Grécia antiga, só eram
considerados cidadãos os homens livres e filhos de pais e mães bem nascidos, ou seja,
homens de posse pertencentes à aristocracia, o que correspondia, aproximadamente, a um
décimo da população total daquelas cidades. Nesse cenário, mulheres, escravos (geralmente
estrangeiros cativos) e camponeses não possuíam o “status” de cidadãos, o que demonstra o
significado um tanto elitista deste conceito naquele período. Todavia, foi por esse modelo
hierarquizado de sociedade que os gregos instituíram sua ideia de ordem pública, a qual foi se
deteriorando em virtude da inexistência de um Estado grego unificado. A Grécia acabou
sendo dominada pelos romanos em meados do século III a.C.
A Roma antiga apresenta características convergentes com a experiência política
grega no que diz respeito à adoção do sistema escravagista, mas também apresenta distinções
no que se refere à ideia de cidadania. Segundo Cremonese (2001, p. 41), “se o homem grego
era um homem contemplativo com direito à reflexão filosófica, à participação nos interesses
da ‘polis’, o homem romano era voltado para a ‘práxis’”, pois, inclinados para uma visão
endógena de mundo, os romanos compreenderam que o Estado deveria garantir a perpetuação
de seus costumes através da imposição de suas leis a todos os povos governados por eles.
Dessa maneira, o modelo de cidadania proposto pelos romanos deixou de ser algo
restrito ao sentimento comunitário daqueles que regiam a ordem social de um determinado
território específico para representar, também, todos os habitantes livres que se encontravam
sob a tutela de Roma, o que garantia ao povo o direito de escolher seus representantes nas
assembleias constituídas. Mas se, a princípio, a cidadania romana foi concebida para um
contexto republicano, posteriormente foi redefinida para o modelo autoritário do Império, e ao
passo que todo o poder se concentrava nas mãos dos imperadores, o antes privilegiado
“status” de cidadão foi perdendo sua característica original, o que na prática transformava os
cidadãos em súditos da vontade imperial, bem como das regalias usufruídas pelas classes mais
abastadas.
Com o declínio do Império romano em 476 d.C., ocorreu um gradual processo de
descentralização política no continente europeu, o que favoreceu a instituição do sistema
feudal, que foi predominante no período medieval. Com o desaparecimento do Império que
garantia a unidade administrativa naqueles territórios, boa parte da sociedade, antes
predominantemente urbana, se viu forçada a refugiar-se nos campos em busca da proteção dos
grandes proprietários de terra que mantinham exércitos particulares para a defesa de suas
posses.
Cabe lembrar que esse período coincidiu com o fortalecimento do cristianismo no
Ocidente, o que também transformou a Igreja Católica romana numa importante instituição
política que dava sustentação ao regime de suserania e vassalagem. Nesse contexto, “a ideia
de cidadania desaparece na medida em que a ‘polis’ e a república [...] são substituídas pela
concepção da coletividade organizada como república ‘Cristiana’, que associa a ordem e a
unidade da sociedade cristã à coordenação da igreja” (ANDRADE, 2002, p. 38).
Na Europa medieval ocorre a submissão dos poderes temporais terrenos diante da
universalidade atemporal da moral “Cristiana” difundida pela Igreja, a qual não se opunha
diretamente a valores comuns daquele período, tais como a conformidade social, muito menos
com relação à divisão das sociedades em três categorias distintas - Senhores (nobres), Servos
(trabalhadores rurais) e Clero (membros da Igreja) - que apresentavam em si mesmas os
limites da atuação de cada uma delas de acordo com uma suposta interpretação da vontade
divina.
É nesse cenário que desponta a contribuição de Agostinho na definição do papel do
indivíduo cristão em sociedade. Considerado um dos grandes arquitetos intelectuais do
cristianismo medieval, Agostinho utilizou-se da razão legada pela filosofia clássica para
justificar sua interpretação teológica, na qual ficou evidenciada a necessidade da submissão
dos fundamentos da cidade terrena aos desígnios da “Cidade de Deus”, até porque, segundo o
autor, “sabemos que há uma Cidade de Deus da qual aspiramos ser cidadãos movidos pelo
amor que seu fundador infundiu a nós” (2000, p. 988).
De acordo com essa doutrina, o homem terreno seria, antes de tudo, um ser dotado de
alma; daí decorre que seu principal dever consistiria na obediência aos mandamentos divinos
em uma hierarquia na qual tudo estava voltado para Deus, ficando os valores terrenos em um
patamar secundário, seguidos pela política e, por último, pelo indivíduo. Em síntese, pensa-se
o homem fundamentalmente como um servo de Deus, consequentemente, súdito das
instituições terrenas que o representam. Limitado aos fundamentos da “Cidade de Deus” e da
cidade dos homens de Agostinho, não resta muito para se pensar o homem como cidadão, ao
menos não nas modelagens fundadas anteriormente, as quais só seriam restauradas com maior
ênfase entre os séculos XIV e XV sob a influência da Renascença italiana, que anunciou ao
mundo o surgimento de um paradigma humanista que se efetivará gradativamente no
pensamento moderno:

Na prática intelectual dos inícios dos tempos modernos, humanista é a figura


humana ligada à rejeição das formas culturais da Idade Média e à renovação
do pensamento da Antiguidade clássica [...]. Humanista é aquele que, no
interior de sua relação com o divino, renasce pela busca de uma verdade
captada e interrogada por um homem na direção e em benefício do homem.
Ir ao encontro de uma verdade humana como construção e como objeto: essa
mudança de perspectiva será o eixo de reflexão dos humanistas
renascentistas (HILSDORF, 1998, p. 13).

Inspiradas por esse espírito reformista e pelo ressurgimento das atividades


comerciais no Mar Mediterrâneo, as cidades-Estado italianas tornaram-se fecundas para a
disseminação dessas tendências que se opunham ao teocentrismo medieval. Também
ressurgiram discussões acerca de um projeto ideal de cidadania, sensivelmente endividado
com o idealismo da filosofia clássica grega, fato que se materializa no pressuposto segundo o
qual havia pontos de convergência entre a afirmação do cidadão na antiga “polis” e as
aspirações ambicionadas pelos humanistas italianos, até porque, para eles, “ambas
enfrentavam a problemática do homem livre e sua inserção no mundo natural e social, e os
antigos lhes davam uma orientação, uma resposta para seus problemas” (HILSDORF, 1998,
p. 13).
Distanciado de seus contemporâneos ao criticar a ordem idealista dos filósofos
clássicos da antiguidade, Maquiavel dedicou-se a analisar a possibilidade da instauração de
um regime estável que garantisse a ordem social na Península Itálica, fato que em seu tempo
caracterizava um problema cíclico de oscilações entre momentos de paz sucedidos por
barbárie nas constantes lutas entre importantes famílias rivais que reivindicavam o poder para
si. Portanto, a solução de Maquiavel para essa questão estaria na política, mais
especificamente na formação de um governo forte o suficiente para fazer reinar a paz e
difundir o bem comum aos seus cidadãos. O conteúdo de sua obra abriria precedentes para
uma interpretação depreciativa: foi atribuída a ele a ideia de que os fins justificariam os
meios, e que caberia ao governante utilizar-se de todos os artifícios possíveis, éticos ou não,
para que este viesse a consolidar-se no poder.
Chevallier (1982) afirma haver em “O príncipe” um grande segredo revelado apenas
ao final de seu último capítulo4, intitulado “Exortação à tomada da Itália e à sua libertação dos
bárbaros”, no qual se anuncia um Maquiavel idealista e patriota, esperançoso por um novo
tempo, por uma nova configuração política. Chevallier contemporiza o habitual enfoque
acusatório recaído sobre o caráter do pensador florentino:

4
“Não se deve, portanto, deixar passar esta ocasião a fim de fazer com que a Itália, depois de tanto tempo,
encontre um redentor. Não tenho palavras para exprimir o amor e o entusiasmo com que seria ele recebido em
todas as províncias que sofreram ataques e invasões estrangeiras, nem com que sede de vingança, com que fé
obstinada, com que piedade, com que lágrimas” (MAQUIAVEL, 1996, p. 138).
Este segredo, este grande segredo de amor e de nostalgia, é à Itália. Um
violento amor da pátria despedaçada, subjugada e devastada, arde no íntimo
do coração desse funcionário de espírito tão implacavelmente positivo, de
olhos frios, tão abertos sobre a dureza e a realidade, sobre a sua selvageria
até. O sonho de um libertador, de um redentor da Itália, atormenta
Maquiavel [...]. Republicano de coração, Maquiavel imaginara, sem dúvida,
a realização de uma república italiana (1982, p. 42).

Ao que tudo indica, ao redigir sua inflamada carta endereçada ao “Magnífico


Lourenço de Médicis”, Maquiavel não procurava por um tirano cruel e sem escrúpulos, mas
sim por um governante virtuoso engajado em suas atribuições, embora não rejeitasse o uso da
força quando necessário. Pensado desse modo, o conteúdo de “O príncipe”, que em tese
poderia parecer um empecilho para a disseminação dos princípios necessários para a
cidadania, seria, para Maquiavel, o único meio capaz de proteger seu povo da autodestruição:
através da formação de um Estado Soberano.
Igualmente convencido de que o fortalecimento do Estado seria o caminho mais
apropriado para garantir a paz entre os homens, Hobbes difundiu na Inglaterra do século XVII
o ideal contratualista como fundamento-chave para tratar essa questão. No horizonte do
contrato social hobbesiano, o Estado, dotado de um poder soberano e absoluto, centralizado
na figura do monarca, torna-se condição para a própria definição da sociedade,
responsabilizando-se por meio das leis e pela mediação das relações entre seus membros
associados pela ideia de contrato. Essa conformação só seria possível pelo consentimento de
que isso seria benéfico a todos, uma vez que conformaria os interesses individuais a um poder
maior que representasse o coletivo.
Cumpre salientar que a proposta de Hobbes parte de uma compreensão da natureza
humana que, sendo originalmente má, causaria, por si própria, uma luta de todos contra todos.
Vem daí a tese defendida pelo autor segundo a qual os homens deveriam abrir mão de certos
direitos ao conformarem-se num contrato:

O direito de todos os homens a todas as coisas não deve ser retido, mas
alguns direitos devem ser transferidos ou renunciados, pois se cada um retém
seu direito sobre tudo, segue-se necessariamente que alguns, através do
direito, podem invadir e outros, pelo mesmo direito, se defendem contra os
primeiros, pois na necessidade natural de todo o homem está o empenho em
preservar seu corpo e tudo aquilo que considera necessário para protegê-lo
(HOBBES, 2004, p. 41).

Se, a princípio, a tese de Hobbes parece encaminhar o destino político da


humanidade ao absolutismo monárquico, devemos antes considerar que sua doutrina limitou a
liberdade - que seria natural no homem - justamente por considerá-la possível geradora da
barbárie. Tem-se presente a medida limitada em que o exercício da cidadania poderia se dar
nessa conformação social. Contudo, não é incabível supor que entre os fins da obra de Hobbes
está incutido um pretencioso projeto de cidadania, não aquele legado da antiguidade grega -
que correspondia à participação política como condição - mas sim um novo, que buscava a
realização do homem pelo Estado sob a regência das leis.
Locke, na via contrária, questiona o ideal político de Hobbes ao apresentar
proposições compatíveis com as aspirações de uma burguesia ascendente que, já naquele
momento, cobrava por maior representatividade nas decisões de ordem política e, sobretudo,
econômicas, no âmbito do Estado inglês. Os contextos históricos vivenciados pelos dois
pensadores influenciaram fortemente suas teses em torno da cidadania. Hobbes é
contemporâneo da Revolução inglesa de 1640, ao passo que Locke vive na época da
Revolução gloriosa de 1688. Weffort (2006) comenta que o primeiro procurou defender em
sua obra o reestabelecimento da monarquia, como forma de conter os excessos observados
quando da instauração da república, comandada com mão de ferro pelos puritanos entre 1649
e 1653. Já o segundo rechaçava veementemente o modo pelo qual a monarquia havia sido
restaurada em 1660, exigindo que o poder real fosse limitado por assembleias que deveriam
representar os interesses do povo, o que só haveria de ser posto em prática com a Declaração
dos Direitos de 1689 (“Bill of Rights”), na senda dos acontecimentos da Revolução gloriosa e
da instituição do parlamentarismo na Inglaterra.
O poder soberano proposto por Hobbes traz em si mesmo um modo de organização
da sociedade, cuja direção deveria ser conferida ao monarca e exercida com rigidez para o
bem maior da sociedade. Por essa perspectiva, todos se encontram na condição de súditos do
poder real. Com Locke, por sua vez, a ideia de cidadania surge amparada pela adoção da
representatividade política dos interesses do povo, como forma de proteger o indivíduo contra
os abusos do Estado e da nobreza, o que acrescentaria direitos civis e políticos aos cidadãos,
sobretudo o direito à vida, à liberdade, à propriedade e ao usufruto dos bens constituídos pelo
seu trabalho. Locke também propôs a adoção de dois poderes distintos para a composição de
um governo ideal. Contudo, tais poderes seriam complementares entre si. Ter-se-ia, então, o
poder legislativo, sustentado pela participação representativa dos cidadãos na regulamentação
jurídica do Estado, e o poder executivo, que deveria garantir o cumprimento das leis que
fossem provenientes da vontade expressa nas assembleias, assegurando-se os pressupostos da
liberdade enquanto uma lei natural positiva:
A liberdade dos homens sob governo importa em ter regra permanente pela
qual se viva, comum a todos os membros da sociedade e feita pelo
legislativo nela erigido: a liberdade de seguir minha própria vontade em tudo
quanto à regra não prescreve, não ficando sujeito à vontade inconstante,
incerta e arbitrária de qualquer homem; como a liberdade de natureza
consiste em não estar sob qualquer restrição que não a lei da natureza
(LOCKE, 1978, p. 43).

Cabe destacar que o sentido de liberdade advogado por Locke favorece o respeito aos
direitos individuais de cada cidadão, tendo sido capaz de influenciar a instituição da noção
moderna de cidadania ao longo da Revolução inglesa (1640-1688). A obra do autor inspira o
ideal capitalista liberal burguês em meio ao desenvolvimento progressivo da Revolução
industrial iniciada ainda no século XVIII. O direito à participação política, contudo, foi, pelo
menos até o final do século XIX, uma prerrogativa associada à posse de bens materiais.
Mondaini comenta que “seus fundamentos universais [...] traziam em si a necessidade
histórica de um complemento fundamental: a inclusão dos despossuídos e o tratamento dos
iguais com igualdade” (2010, p. 131).
De acordo com Marshall (1967), a evolução do conceito de cidadania na Inglaterra
deveria ser descrita em três momentos distintos5, os quais simbolizam as conquistas graduais
dos direitos civis (século XVIII), dos direitos políticos (século XIX) e dos direitos sociais
(século XX). Esses três direitos estiveram, por assim dizer, fundidos num só, o que indiciava
inicialmente um sentido geral para a concepção de cidadania. O governo concentrava as
funções legislativas, executivas e judiciárias. Contudo, com as frequentes pressões da
sociedade civil organizada, esta lógica foi sendo modificada a ponto de estender
sensivelmente o grau de direitos e de participação a todos os membros da sociedade em um
processo histórico de longa duração:

O surgimento sequencial dos direitos sugere que a própria ideia de direitos,


e, portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico. O ponto de
chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo menos na
tradição ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos são
distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios e
retrocessos, não previstos por Marshall. O percurso inglês foi apenas um
entre outros. A França, a Alemanha, os Estados Unidos, cada país seguiu seu
próprio caminho (CARVALHO, 2012, p.12).

5
“O autor que desenvolveu a distinção entre as várias dimensões da cidadania [Marshall] sugeriu que ela se
desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no
século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no século XX.
Segundo ele, não se trata de sequência apenas cronológica: ela é também lógica. Foi com base no exercício dos
direitos civis, das liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo do
seu país” (CARVALHO, 2012, p. 11).
Muitos pensadores, na França do século XVIII, identificados com o movimento
iluminista, também vieram a escolher a liberdade como condição social a ser garantida.
Dentre esses intelectuais, destacam-se Montesquieu, Voltaire e Rousseau, os quais, embora
apresentassem divergências entre si, instigaram os debates que constituíram a ideia moderna
de cidadania. Com efeito, no cenário que antecedeu a queda do absolutismo francês, questões
como a divisão racional dos poderes do Estado (Montesquieu), a liberdade de expressão
(Voltaire) e a soberania popular (Rousseau) foram amplamente discutidos. Defendia-se, no
geral, uma ruptura com os paradigmas vigentes naquele período. Exigiam-se reformas
amparadas nos princípios da igualdade e da liberdade. Na América, contudo, é que essas
tendências vieram a se estabelecer na prática pela primeira vez.
Os filósofos das luzes buscavam, em geral, interpretar livremente a condição humana e
o mundo social do qual participavam. Eles, não obstante, entendiam ser imprescindível ir
modificando as configurações desse mundo que os comovia e, em certos aspectos, os
desapontava. Para compreender esse movimento filosófico, há que se distinguir os sentidos
das palavras Ilustração e iluminismo6: a primeira diz respeito a um amplo movimento
intelectual cujo auge se deu no percurso do século XVIII em torno de filósofos como Voltaire,
Rousseau e Condorcet, enquanto que a segunda pode ser entendida como a designação de um
movimento cultural não reduzível ao conjunto do que foi pensado e ensinado pelos
pensadores mais proeminentes do período.
O iluminismo, na opinião de Cassirer (1994), não se destaca da soma e da sucessão
cronológica das opiniões ilustradas, isso porque o que singulariza esse movimento está, de
modo geral, na arte e na forma de conduzir um debate de ideias. A filosofia já não mais
significa um domínio particular do conhecimento situado a par das verdades da física, das

6
O texto “Dilemas da moral iluminista”, de Rouanet (2007), opera com uma distinção similar a essa. Ainda
sobre o iluminismo, Cassirer (1994) realça que esse modo de pensar “não acredita mais no privilégio nem na
fecundidade do ‘espírito de sistema’: vê neste não a força, mas o obstáculo e o freio da razão filosófica” (p. 10).
A filosofia já não significa “um domínio particular do conhecimento situado a par ou acima das verdades da
física, das ciências jurídicas e políticas, mas o meio universal onde todas essas verdades formam-se,
desenvolvem-se e consolidam-se” (p. 10). Fortes (2004) assinala que as luzes são caracterizadas pela valorização
do homem e por “uma profunda crença na razão humana e nos seus poderes”, e que “revalorizar o homem
significa antes de tudo encará-lo como devendo tornar-se sujeito e dono do seu próprio destino, é esperar que
cada homem, em princípio, pense por conta própria” (p. 9). O universo “deixava de ser visto como manifestação
de uma transcendência no limite absolutamente incompreensível e se convertia em um campo de exploração a
ser submetido livremente à capacidade de julgar, comparar, pesar, avaliar, juntar ou separar” (p. 18). O filósofo
comenta, ainda, que “um novo objeto de estudos começa a se desenhar no horizonte: o próprio homem”, e que
“uma nova ‘ciência’ começa a se impor: a História”. Com o estudo do seu passado, os homens percebem “que a
massa de conhecimentos adquiridos pode ser utilizada e posta a serviço do seu próprio bem-estar”. Emerge daí,
“como um corolário necessário de todas estas descobertas, um novo mito, um novo ideal, uma nova ideia
reguladora, ou seja, a ideia de Progresso” (p. 20).
ciências jurídicas e políticas, mas o meio universal onde todas essas verdades são formadas,
desenvolvidas e consolidadas.
Comprometidos em descobrir e propagar verdades e em expulsar os preconceitos dos
lugares nos quais eles mais se refugiavam, isto é, nos governos, nas escolas, nas igrejas e nas
corporações, esses filósofos investiram contra os abusos dos regimes políticos e das
confissões religiosas proclamando a independência da razão, advogando o direito inegociável
à liberdade de opinião e de iniciativa, e oferecendo outras compreensões e conceitos para
combater uma ordem social assentada sobre a autoridade dos preconceitos e das superstições.
Cingidos dessa postura crítica e revolucionária, esses homens de espírito e ação empregaram a
filosofia e o talento de escrever:

“[…] desde o gracejo até o patético, desde a compilação a mais erudita e a


mais vasta até o romance ou o panfleto do dia [...] acariciando os
preconceitos com habilidade para desferir-lhes golpes mais certeiros [...]
poupando o despotismo quando este combatia os absurdos religiosos, e o
culto quando este se dirigia contra a tirania [...] mas sempre unidos para
mostrar a independência da razão, a liberdade de escrever como o direito,
como a salvação do gênero humano; dirigindo-se com uma infatigável
energia contra todos os crimes do fanatismo e da tirania; perseguindo na
religião, na administração, nos costumes, nas leis, tudo aquilo que trazia o
caráter da opressão, da crueza, da barbárie; ordenando, em nome da
natureza, aos reis, aos guerreiros, aos magistrados, aos sacerdotes, respeitar o
sangue dos homens […] tomando, enfim, como grito de guerra: razão,
tolerância, humanidade” (1993, p. 143-44).

Embora não seja prudente afirmar a dependência da Revolução americana com


relação ao movimento iluminista francês, é possível verificar que os fundadores da república
norte-americana compartilhavam das aspirações difundidas na França do século XVIII, pois
ambas defendiam reformas amparadas nos pressupostos da liberdade e da igualdade entre os
homens, fato que transparece na “Declaração de independência dos Estados Unidos da
América”, redigido por Jefferson no ano de 1776:

Consideramos estas verdades auto-evidentes: que todos os homens são


criados iguais, dotados pelo seu criador de certos Direitos inalienáveis; que
entre eles estão a Vida, a Liberdade e a busca da felicidade; que para
assegurar esses direitos Governos são instituídos entre os homens, derivando
seus justos poderes do consentimento de seus governados; que, sempre que
qualquer forma de Governo se torne destrutiva desses fins, é Direito do povo
alterá-la ou aboli-la, e instituir um novo governo, assentando sua fundação
nesses princípios e organizando os seus poderes da forma que lhe pareça
mais conveniente para a realização de sua Segurança e Felicidade (2009, p.
219).
Apesar do caráter local da “Declaração” de 1776, seu conteúdo repercutiu na França
como exemplo salutar a ser seguido por aqueles que desejavam abolir o absolutismo naquele
país durante a Revolução que se iniciou no fim do século XVIII. Embora estes eventos
revolucionários apresentassem características e motivações singulares em si, a linguagem
universalista adotada pelos americanos também pôde ser percebida na “Declaração dos
Direitos do Cidadão de 1789”, texto no qual se anunciou que todos os cidadãos, e não apenas
os franceses, “nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, da mesma forma que todos
devem ter o direito de participação na elaboração das leis do país.
Liberdade, igualdade e humanidade: eis os precedentes históricos mais próximos da
noção contemporânea de cidadania. Há de se considerar o caráter liberal que essas aspirações
tomaram nas décadas e nos séculos seguintes: não foram mais admitidas e toleradas as regras
que naturalizavam a desigualdade entre os homens, desigualdade que emergiu veladamente de
uma variedade de fatores que se relacionam tanto com a forma de acesso à propriedade
privada quanto com a estruturação das economias nacionais capitalistas.
Todorov sustenta que, para os defensores do liberalismo, são os indivíduos que
devem demonstrar iniciativa em suas atividades particulares, até porque a lógica do
pensamento liberal sugere “a suspensão das intervenções públicas no domínio econômico”
(2012, p. 96). Foi por esse ideário individualista que se desenvolveu a noção contemporânea
de cidadania. Estamos cercados de direitos igualitários (civis, políticos e sociais) que
supostamente contemplam a liberdade humana, mas que, na prática, são limitados em sua
acessibilidade pela condição social ou mesmo econômica do cidadão. Vale considerar as
palavras de Hobsbawn (1998, p. 269-270) acerca da importância do legado intelectual do
século XVIII:

Creio que uma das poucas coisas que nos separam de uma queda acelerada
nas trevas é o conjunto de valores herdados do Iluminismo do século XVIII.
Não é uma concepção muito popular nesse momento, quando o Iluminismo
pode ser descartado como algo que vai do superficial e intelectualmente
ingênuo até uma conspiração de homens brancos mortos usando perucas
para fornecerem fundamento intelectual ao imperialismo ocidental. Pode ser
ou não isso tudo, mas é também o único fundamento para todas as aspirações
de erigir sociedades adequadas a todos os seres humanos que viverão em
algum lugar desse planeta, e para a afirmação e defesa de seus direitos
humanos enquanto pessoas.

Os fundamentos competitivos que se criaram em torno da ideia de livre mercado


ainda parecem muito distantes de garantir uma inclusão social justa e igualitária, tal qual
preconizaram os filósofos das luzes. Este excurso relativo aos sentidos em que se pode
entender a palavra cidadania nos indica que ela, com efeito, não pode ser definida de uma
maneira unívoca. A disputa sobre como se deve entendê-la pode até ter pontos de apoio, mas
deixaríamos de ser humanos caso essa disputa pudesse ser decidida definitivamente.

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