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A escrita sobre o corpo

Dernival Venâncio Ramos


0.
Não sei como funciona a memória. Lembro-me de algo e dali a
um minuto o esqueço; milhares de pequenas experiências se perdem
todos os dias, somem em um nunca mais. Aí um dia voltam e ficam
aqui com a gente, para sempre. Mas esse não parece ser um princípio
geral. Nunca sabemos o que está esquecido até o dia em que nos
lembramos e o tomamos de volta para a consciência.
Pois é.
Foi o melhor título da literatura, Escrito sobre um corpo, de
Severo Sarduy que trouxe o Índio de volta à minha memória. Isso deve
ter acontecido em algum momento de 2004. Ou 2005.

1.
A primeira coisa a dizer é que o Índio não era índio. Era um
trabalhador andarilho, sem eira nem beira; dos que gastam-se na vida
e na aventura. E só pude conhecê-lo porque trabalhara como
motoqueiro, dos que manejam motosserras, para o nosso vizinho – que
ademais era o pai de meu futuro cunhado, o Carlim, e de meu melhor
amigo, o Bibica, e de outros meninos que não importavam, o Carlim, o
Darco.
O Carlim, então com 17 anos, se embrenhava com o pai, o Seu
Luis, e o irmão, Fabim, nas matas e trazia toras de mogno de 2,5
metros de diâmetro, que nós chamávamos de 2,5 m de rodo. Eles as
depositavam na porta de casa e ali nós fazíamos a nossa praça pública
nos finais daquelas tardes quentes, do mundo amazônico. No interim
entre o fim da tarde e o início da noite, antes que as mães nos
chamassem para o jantar ou para ir à Igreja, mentíamos uns para os
outros e, algumas vezes, escutávamos o Índio contar como era a vida.
Como eram as mulheres na vida. Como era ser homem no mundo.

2.
A segunda coisa a dizer sobre o Índio é que ele tinha uma cara
de gato, com bigode e riso de felino macho. Lembro dele como alguém
com certa malícia nos modos e umas memórias nas quais tropeçava,
que o faziam respirar fundo, bufar como um boi, e de um jeito corporal
terminar o assunto, saltando no chão e indo embora, nos deixando com
a história pela metade.
Mas um dia, no meio do verão, o Índio sumiu. O tempo passou.
Começaram as chuvas e as chuvas passaram. Veio o tempo dos ipês e
o tempo dos Ipês passou.

3.
A terceira coisa a dizer é que num dia de vento frio, calhou que
estávamos na porta de uma casa vizinha. Havia um castanheiro e uma
imensa pedra branca. Esperávamos, sentado sobre ela, um assunto do
qual falar ou o grito de nossas mães chamando para o almoço.
Vendo-nos ali, alguém chegou e disse que procurava a Patrícia.
A Patrícia era irmã de meu cunhado e a paixão de minha vida. Em um
lugar em que ninguém chega nas casas procurando pelas moças,
perguntamos:
- Por quê?
- Por que morreu um cara aí, tá lá.
- Lá onde? – perguntamos.
- Na Funerária.
- Ah…
- E daí?, disse o Flávio.
- No bolso dele tinha o nome dessa moça Patrícia e o endereço daqui.
Quero saber se vocês são parentes dele - o agente funerário disse.
Como ainda não erámos homens para assumir algo assim, o
Flávio chamou a mãe. Naquela época não era incomum esse tipo de
visita. Os mortos da noite, espólios macheza e da virilidade das
diversos encontros violentos, ficavam expostos em uma vitrine, nus,
com um pano sobre as vergonhas, até os donos chegarem. Havendo
uma forma de acelerar o processo e dar destino ao defunto – se, se
encontrava um endereço no bolso da calça ou um nome, por exemplo
–, lá iam os trabalhadores da funerária pela cidade como mensageiros
da dor e carteiros da morte. O fim do dia, então, convocava seus
mortos a se apresentarem.
Os mortos sem dono eram enterrados no fim do dia. Por isso era
comum que as mães nos enviassem a ver os mortos.
Como o seu Luis, Fabim e o Carlim estavam embrenhados na
mata há vários dias, o Flávio era o homem mais velho em casa e coube
a ele ir até lá ver o morto, dizer quem era. Nos chamou e avisamos as
nossas mães que havia morto, vestimos a roupa do domingo,s
melhores roupas, as de sair, e fomos. Caminhamos uns dois
quilômetros sob o sol mas não lembro do que falamos durante o
trajeto.

4.
A quarta coisa a dizer é que o Índio era o morto, mas isso todos
já entenderam. Ao vê-lo sobre a mesa de cimento, talvez eu tenha dito,
“que porra!” Ou “Meu Deus.” Ou não tenha dito nada. Não lembro. O
certo é que fomos informados que o nome dele era José Silva, nascido
no Maranhão. Soubemos que além de nosso amigo, era pistoleiro.
Matador por encomenda ou por vingança. O corpo havia sido
encontrado na beira de uma estrada, picotado à facão e a polícia o
havia entregue, com as informações, à funerária.
Nós confirmamos que o conhecíamos mas falamos que o defunto
não era de nossas famílias. No caminho de volta fomos preenchendo
as lacunas, lançando hipóteses, e inventando uma enredo mais
adequado às histórias de sua vida que nos contara. Nós decidimos mais
verossímil que a briga tinha sido por mulher, que o mataram à traição.
Os dois ou três covardes que o mataram não haviam dado chance de
defesa. Sabiam que não eram páreo para o Índio. Decidimos que ao se
defender dos agressores, as facãozadas se cruzaram e foram tatuando
letras no seu corpo. Aqui um ‘t’, no ombro um ‘r,’ nas costas, “monti.”
Outras marcas que não pudemos ler porque se não éramos os donos do
morto que fôssemos ao caralho.
A irmã Deta, mãe do Flávio, nos recebeu na porta, enxugando as
mãos em um pano de prato:
- Quem é? – perguntou.
- O Índio – respondemos.
- Ai, Deus.
- Mataram o Índio em uma briga por muiê.
- E como foi?
- A facãozadas.
- Jesus!
- As facadas deixaram marcas estranhas, como se fossem letras
– disse um de nós.
- Nas costas deram uma chapada tão forte que ficou escrito a
marca do facão, Tramontina! – disse o Flávio.
- Tramontina – repitimos em coro.
- Tramontina – repetiu a irmã Deta, engolindo a palavra.
- Tramontina – repetiu o Flávio.
- Tramontina – rimos.
A irmã Deta nos disse que respeitássemos o morto. Que o Flávio
entrasse e que os demais fossem avisar as mães de que não, o morto
não era de nossa rua. O que fizemos, repetindo, “Tramontina,
Tramontina!”
Depois disso outros mais morreram, alguns eram nossos. Meu
avô, tios, amigos. Nos mudamos de lá. A Patrícia se casou com o Zezim,
o Zezim morreu e Patrícia foi pra Suiça; o Carlim e minha irmã foram
flagrados dentro do caminhão e se casaram dois dias depois. O Flávio
casou, separou, casou-se de novo. Eu peguei um ônibus em uma tarde
qualquer de 1998 e não voltei.
17 anos depois li Sarduy, lembrei-me de Índio e senti saudades
do adolescente que era ouvindo as histórias que ele tinha. Da vida que
então, pensava que teria e que, claro, não tinha em 2005 e não tenho
em 2018.
E de novo, me esqueci do Índio.

5.
A última coisa a dizer foi que hoje, 11 anos depois de ler Sarduy,
desenhava em uma A4, procurando uma memória de infância para a
segunda atividade do Curso de Escrita Criativa.
Talvez tenha sido a ansiedade que me travou. Comecei a rabiscar
a mão, na palma e no dorso, depois do braço. Desisti.
Fui ao jardim, peguei o facão e fui podar o mamoeiro. Minha mão
marcada, riscada, segurava o terçado Tramontina.
- O Índio, pensei. A história do Índio. As palavras escritas sobre
seu corpo.

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