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Cherie Claire Gabrielle

Gabrielle
(Cherie Claire)
Título Original: Gabrielle
Saga os Acadianos - 01
Copyright © 2001 by Cheré Dastugue Coen
Originalmente publicado em 2001 pela Kensington Publishing Corp.
© 2006 Editora Nova Cultural Ltda.
Digitalização: Polyana
Revisão: Kátia Regina

RESUMO: Louisiana, 1769


Sob o sol do Mississípi
Desde o primeiro instante em que Gabrielle viu o capitão Jean Bouclaire, nas margens
pantanosas do majestoso rio Mississípi, seu inocente coração palpitou mais forte e sua
imaginação criou doces fantasias com aquele homem perigosamente bonito e atraente.
E quando Jean a envolveu em seus braços, tudo mais deixou de ter importância para
Gabrielle... até o dia em que Jean se envolveu em um duelo de desfecho trágico.
Da noite para o dia, o destemido corsário a quem Gabrielle desejava além dos limites,
tornou-se um fugitivo com a cabeça a prêmio. Somente um milagre poderia uni-los
outra vez... ou a coragem de uma mulher apaixonada que arriscaria tudo para ficar ao
lado do homem que amava!

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Cherie Claire Gabrielle
Capítulo I

New Orleans, Dezembro de 1768

Nada superava a visão de uma embarcação preparada e pronta para zarpar,


pensava Delphine Delaronde ao olhar a escuna do pai. Os conveses do La Belle Amie
haviam sido esfregados, os cabos da mastreação devidamente esticados e a âncora
limpa da ferrugem e das cracas. Os esticadores de bronze brilhavam ao sol da tarde
enquanto uma leve brisa de inverno agitava as velas recém-lavadas e deixadas a secar
nas docas de New Orleans.
Delphine suspirou, pensando nas possibilidades da escuna de dois mastros.
Bastaria um passo sobre a prancha de acesso e seus problemas estariam resolvidos.
— Não, você não pode me acompanhar.
Delphine virou-se ao ouvir a voz do pai. A figura alta, escura, lançava uma
sombra sobre sua pequena estrutura, ainda infantil, apesar dos treze anos. Delphine
levou as mãos aos quadris, preparando-se para uma discussão. Não seria fácil desafiar
o pai, um dos melhores capitães marítimos do território da Louisiana.
— Terminarei meus estudos até o Natal. Prometeu me levar quando eu tivesse
idade suficiente.
Um sorriso se esboçou nos lábios de Jean Bouclaire, acentuado pela covinha na
face direita. Dificilmente Delphine conseguiria seu objetivo, mas estava claro que o
pai admirava sua tenacidade. Afinal de contas esse era um traço familiar. Nesse
momento, uma carruagem passou e o sorriso desapareceu.
— Não devia estar aqui — repreendeu Jean, pegando a menina pelo cotovelo e
afastando-a da vista dos transeuntes. — Sua mãe e eu concordamos que nós dois não
nos encontraríamos em público.
Delphine sentiu raiva e frustração e sua face ficou corada. A mãe concordara
com muitas coisas, mas, nos últimos tempos, não cumprira nenhuma promessa.
— Se você contar a sua mãe que esteve a bordo, darei para Carmeline os
presentes que lhe trouxe — ameaçou Jean empurrando a menina com gentileza para a
prancha de acesso ao navio.
— Bobagem — replicou Delphine. — Você trouxe presentes para Carmeline
também.

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— Mas posso dar tudo para ela — objetou Jean, sorrindo ao ajudar a filha a
subir a bordo.
No minuto em que Delphine sentiu os pés tocarem o convés, ficou animada. As
correntes do caudaloso rio Mississippi, sob a escuna, traziam-lhe a promessa de praias
exóticas.
— Já fiz treze anos — insistiu Delphine. — É hora de me levar junto com você.
Jean sacudiu a cabeça, frustrado. Embora seus olhos exprimissem alegria por
rever a menina, a discussão o deixava cansado.
— Estarei correndo o risco de perder meu cargo, Capitão? Talvez Delphine
deseje tornar-se seu primeiro-imediato?
Delphine sentiu a presença de Philbert Bertrand antes de vê-lo. Era um homem
imponente como o pai. Os dois cruzaram os braços e a observaram, tentando não dar
risada.
— Ela podia lavar os conveses — comentou Jean.
— Ou melhor, o topo do mastro necessita ser pintado — troçou Phil.
— Farei qualquer coisa que me seja ordenado — afirmou Delphine, levantando o
queixo e enfrentando o olhar dos dois homens.
— Ótimo! — exclamou Jean. — Então vá para casa e volte a seus estudos.
Delphine sentiu as lágrimas aflorarem aos olhos. Jean olhou para as docas e,
como não havia ninguém a vista, abraçou a menina.
— Logo, pequena — sussurrou ele. — Logo.
Delphine apoiou a cabeça no peito de Jean e reconfortou-se ao ser abraçada.
Há quanto tempo ninguém a tocava? Não se lembrava.
— Vamos descer para a cabine antes que alguém nos veja — decidiu Jean.
Delphine seguiu o pai pelas escadas abaixo. Phil, sócio e melhor amigo de Jean,
abraçou-a e beijou-a na testa quando ela passou a seu lado.
— É bom rever você, Phyney — alegrou-se Phil usando o apelido que lhe dera
quando bebê.
— Sinto o mesmo, tio Phil.
Entraram na pequena cabine na popa. As vigias estavam abertas, permitindo a
entrada de uma brisa gelada que fazia esvoaçar os mapas abertos sobre a cama de
quatro colunas. Um cesto de frutas, no centro do leito, impedia os papéis de voarem
para fora e caírem no rio.
— Comprou uma cama? — espantou-se Delphine.
— Não se preocupe com isso — avisou Jean. — Você não deveria estar aqui?
Pensei que tínhamos um acordo.

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— Eu queria vê-lo. Carmeline avistou sua escuna pela manhã, a caminho do
mercado.
— Estava planejando ir visitá-la à noite. Alguma vez vim a New Orleans e deixei
de procurá-la?
Delphine observava a cama coberta por uma colcha de tecido macio. Seria de
seda? E por que um material tão delicado? Dois enigmas, pois, em geral, o pai preferia
uma rede e cobertas de algodão.
— Não — respondeu ela afinal. — Mas esta situação é ridícula. Você é meu pai.
Todo mundo sabe disso. Por que devemos guardar segredo?
Jean envolveu a filha nos braços e a apertou junto ao peito. Era um homem
dominador, alto e robusto. O mundo e todas as suas exigências sociais desapareceram
no momento em que abraçou Deiphine.
— Eu te amo — sussurrou a menina, sentindo as lágrimas correrem. — Quero
ficar junto com você. Não me importo com a sociedade. Por favor, leve-me.
— Não tenho esse direito, Phyney.
— Tem tanto direito quanto qualquer pai.
— Aos olhos do mundo não sou seu pai.
— Está se referindo aos olhos de minha mãe — replicou Deiphine, afastando-se.
— Sua mãe fez uma escolha — declarou Jean com um suspiro. — E precisamos
viver com as consequências.
Deiphine queria gritar que a mãe havia feito uma má escolha. Que estava
destruindo sua vida.
— Por que não se casou com você quando descobriu que esperava uma criança? —
indagou Delphine. — Você lhe pediu. Por que ela não o aceitou?
Era inútil propor questões que sempre traziam as mesmas respostas. No
entanto, Delphine não entendia como a mãe, uma mulher instruída da sociedade
crioula, como eram chamados os descendentes dos colonizadores franceses nascida na
Louisiana, havia decidido com tão pouco critério.
— Você sabe a razão. Por que desposar um contrabandista sem posição social
nem riqueza quando há homens ricos e proeminentes nas famílias de New Orleans? Sua
mãe conseguiu o que queria: dinheiro e um título. E o conde Delaronde acreditou que
estava desposando uma herdeira.
Delphine jamais havia encontrado "seu pai", o conde Delaronde. Após seu
nascimento, ele retornara à França com todos os fundos da família, inclusive o dote da
mãe. Ainda estavam casados, mas o conde não reconhecia a filha.
— Se ele acreditava que eu era sua filha, por que nos abandonou?
Mas Delphine sabia a resposta. Era tudo tão injusto. O homem que devia ter

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sido seu pai, que a amava e sustentava o lar em que vivia, precisava visitá-la à noite, às
escondidas, por medo de escândalo, enquanto o pai, com um título de nobreza se
divertia na corte francesa, indiferente à família americana.
Jean fez a filha se virar para ficar de frente para o espelho, outro
complemento feminino novo na cabine austera. Quando Delphine se fitou, enxergou o
que o conde Delaronde devia ter visto no dia de seu nascimento; cachos negros e
espessos que poucas pessoas da região apresentavam. Caíam em cascata às suas costas
e estavam amarrados com uma fita na altura da nuca, formando uma moldura para seu
rosto. Embora o cabelo de Jean só chegasse ao colarinho e caísse em ondas, a
semelhança era inegável.
Os olhos do pai e os da filha também se assemelhavam na cor e na intensidade.
E na face direita da menina também havia uma covinha. Carmeline costumava dizer que
apenas tolos e cegos duvidariam de seu parentesco.
— Mas o conde foi embora—insistiu Deiphine. — E você está aqui.
— E sempre estarei — garantiu Jean. — Mas as pessoas comentam e precisamos
ser discretos. Você deve ser instruída e criada de modo apropriado, sem o escândalo
que minha ligação lhe traria.
Deiphine rolou os olhos. O pai detestava vê-la fazer isso, mas sua instrução e
aprendizagem de etiqueta eram risíveis. A maior parte do dinheiro que Jean dava para
tais finalidades era usada pela mãe para manter seu guarda-roupa e seu estilo de vida
decadente. Um preceptor havia sido contratado, um indivíduo semi-instruído, saído
das docas do Haiti francês, que preferia saborear o vinho dos Delaronde a ensinar
línguas e leitura. A aprendizagem de etiqueta de Delphine se resumia a participar nos
trabalhos de caridade das freiras Ursulinas, segundo as quais somente um
comportamento piedoso e sacrifícios extremos salvariam sua alma, criada durante uma
noite de pecado entre uma caçadora de fortunas e um pirata bêbado.
— Não importa o que sucedeu — declarou Jean com firmeza, lendo os
pensamentos da filha.—Nunca lamentei o que aconteceu. Jamais.
Percebendo a tristeza do pai, Delphine arrependeu-se de ter trazido à tona o
assunto doloroso e delicado. No entanto, sentia-se reconfortada por ouvir palavras
afetuosas, tão raras ern sua vida.
O capitão Jean Bouclaire não era um homem dado a declarações apaixonadas. A
ações, sim, mas não a palavras de amor. Porém, não fazia diferença. Seus olhos
exprimiam adoração pela filha e isso bastava.
Um leve movimento do barco desviou a atenção de Delphine para o maravilhoso
leito e a elegante colcha. De repente, compreendeu.
— Há uma mulher em sua vida — adivinhou Delphine.
— O que está dizendo? — perguntou Jean assombrado pela percepção da filha.
— A cama. Uma colcha de seda e um espelho. Por que você compraria tudo isso?

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— Que tal por conforto? Não acha que seu pai merece as coisas boas da vida?
Delphine apertou a mão do pai, desarmando-o. Nada em sua vida se comparava
ao amor da preciosa filha. Conquistaria oceanos se preciso fosse para mantê-la a salvo.
— Acho que você merece ser feliz — respondeu Delphine. — Espero que se case
com essa mulher.
Jean sentiu um aperto no coração. O leito e os demais itens haviam sido
comprados nas índias Ocidentais com a idéia de propor casamento a Gabrielle Gallant,
mas ele se recusava a reconhecer tal plano até a si próprio. Ainda não estava
convencido de que podia oferecer a Gabrielle algo a sua altura.
— Qual mulher? — indagou, temendo que Delphine soubesse a resposta.
— A mulher acadiana sobre a qual você tanto falou em sua última viagem. Aquela
que vive na fronteira com a família. Que tem um nome angélico.
Jean relutava. Se dissesse o nome, a filha teria expectativas.
Mas quem estava ele enganando? Em seu bolso havia um anel de esmeralda, a cor
perfeita para acentuar os dedos longos de cor marfim da mulher amada.
— Gabrielle Gallant — emendou Jean, sentindo o coração se acelerar ao som do
nome. Ao conhecê-la no forte espanhol de San Luis de Natchez, à beira do rio
Mississippi, logo se sentira hipnotizado pela jovem de olhos luminosos, cabelos escuros
e sedosos e de postura despretensiosa. Gabrielle acompanhava a família na viagem em
busca do pai, e Jean a seguiria, conseguindo, de vez em quando, um beijo fortuito.
Agora, Gabrielle estava na região Attakapas, a oeste de New Orleans, à espera do
retorno do pai, nas terras a ele doadas pelo governo. E também à sua espera,
acreditava Jean.
— Então é Gabrielle — comentou Delphine, sentando-se na cama.
Os Gallant eram da Acádia. Esta região oriental do Canadá, que incluía a Nova
Escócia, fora colonizada por franceses e, mais tarde, cedida aos ingleses. Diante da
recusa dos acadianos de se submeter à autoridade da coroa inglesa, o governador
inglês, em 1755, deu a ordem de expulsá-los. Milhares de acadianos foram deportados
pelos britânicos para os territórios do sul, inclusive para a Louisiana. Durante o”grand
dérangement”, como passou a ser chamado o grande deslocamento forçado, Marianne
Gallant e as três filhas ficaram separadas do pai e foram enviadas à colônia de
Maryland. Lá, a família soube que Joseph Gallant estava no território da Louisiana e as
quatro viajaram para New Orleans, na esperança de se reencontrarem. Entretanto,
Joseph também ouvira sobre a família e embarcara num navio em direção a Maryland.
Cruzaram-se no golfo do México, mas em embarcações diferentes. Agora Gabrielle e a
mãe esperavam pelo retomo de Joseph a Louisiana, no posto Attakapas, onde viviam
nas terras doadas ao pai.
A imagem de Gabrielle assombrava os sonhos de Jean e o acompanhava durante
o dia. Ele sofria por sua mulher acadiana. Tão logo terminasse sua visita a Delphine,

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Cherie Claire Gabrielle
partiria para o posto Attakapas e pediria a mão de Gabrielle.
— Então é dela, não é? — indagou Delphine.
— É ela — corrigiu Jean. — Que tipo de instrução está recebendo?
— Nenhuma. Pierre Lamont é um bêbado. Aprendi muito sobre os diferentes
tipos de vinho ao seguir suas garrafas vazias pela casa. É um inútil. Obrigou-me a
limpar suas botas ontem. E não gosto do modo como me olha. Parece que está fitando
um belo pedaço de carne.
Jean sentiu o sangue subir ao pescoço. Parecia que uma veia ia explodir.
— Por que sua mãe gasta meu dinheiro com um vilão imbecil? — esbravejou
furioso.
Delphine pegou uma maçã na fruteira e tentou dar uma mordida. Receava falar
demasiado sobre a mãe, mas Jean precisava saber a verdade.
— Maman gasta o dinheiro com roupas — sussurrou Delphine. — Na semana
passada não tínhamos nada para comer porque ela gastou o que restava de nosso
dinheiro num novo chapéu, só para impressionar um homem que, a seu ver, é a resposta
à nossas orações. Carmeline vendeu uma parte da prataria, sem mamãe saber.
Jean ouvira o suficiente. Abotoou o colete e vestiu o casaco. Pegou os papéis
sobre a cama, segurou a mão de Delphine e a conduziu para o convés.
— Vou levar Phyney para casa — avisou a Phil.
— Não prefere que eu a leve? Ao menos espere até escurecer. Você poderá ser
visto.
Mas Jean só se daria por satisfeito quando Louise Delaronde se explicasse.
Entregou os papéis de transporte a Phil e ajudou Delphine a transpor a prancha de
embarque para as docas.
Quando estavam acomodados dentro de uma carruagem de aluguel, Delphine
começou a chorar.
— Não grite com mamãe. Ela já me critica por tudo o que acontece.
— Você não tem culpa de nada — consolou Jean. — Não é sua culpa se duas
pessoas tomaram muito vinho numa noite de festa ao ar livre. Não é culpa sua se sua
mãe nunca se sentiu grata pelo que tem.
— Mas só vai piorar tudo — alegou Delphine soluçando.
— Como pode piorar? — indignou-se Jean. — Dou a sua mãe uma bela renda. Ela
não tem o direito de privá-la de uma boa educação.
— Não quero educação — argumentou Delphine, enxugando o nariz com a manga.
— Quero ir com você. Detesto este lugar.
— Não vai detestar mais depois que eu conversar com sua mãe. Vai ser feliz
recebendo uma instrução formal, encontrará jovens e irá a bailes. Que tipo de vida
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posso lhe oferecer? — insistiu Jean. — Um navio mal cheiroso, cheio de homens rudes
não é lugar para uma moça.
— É lugar para Gabrielle.
— Ainda não a pedi em casamento. E talvez nunca o faça — replicou Jean, que
sentia dúvidas sérias sobre a idéia de propor a Gabrielle para compartilhar sua vida.
— Papai, Gabrielle e eu o amamos. Por que não nos deixa fazer parte de sua
vida?
Jean ansiava contar que gostaria de levá-las embora, de passar seus dias
cercado pelas mulheres a quem amava. Mas era por causa desse amor que as mantinha
em terra firme. Conhecia os perigos do mar. Como arriscar a filha e Gabrielle por seus
desejos egoístas?
— Nós o amamos — sussurrou Delphine. — Não sacrifique nossa felicidade
porque somos mulheres.
A carruagem parou e as portas foram abertas diante de uma casa que
obviamente necessitava de reparos. Jean saltou da carruagem e ajudou a filha a
descer. Ambos entraram na casa sem bater.
— Capitão Bouclaire — cumprimentou Carmeline, quase deixando um vaso de
flores cair das mãos. — A condessa não o esperava.
Ainda segurando a mão de Delphine, Jean parou no corredor e examinou a
escrava de pele clara, dez anos mais velha do que Delphine.
— Onde está a senhora? — Jean tentava não mostrar sua ira, mas tantos anos
sujeito aos jogos de Louise e os maus tratos infligidos a Delphine faziam sua têmpora
latejar.
— Ela está... — Carmeline olhou de relance em direção à sala de visitas, depois
abaixou a cabeça. — Não sei.
Jean fazia uma boa ideia do que estava acontecendo naquele recinto. Soltou a
mão de Delphine, entrou na saía e fechou a porta atrás de si. Encontrou Louise usando
um belo traje, com um grande decote que deixava o colo à mostra. Estava sentada
numa cadeira e um jovem de uniforme, ajoelhado a sua frente, beijava seu braço. Os
dois saltaram em pé ao vê-lo entrar.
— O que está fazendo? — esbravejou Jean.
— Como ousa invadir...
— Como ouso? Como ousa gastar meu dinheiro tão suado em frivolidades e
sujeitar Delphine a uma vida de dificuldades? E quem é esse Pierre Lamont, que
encara minha filha de modo impróprio?
— Não tem o direito de me acusar ou fazer exigências— insistiu Louise. —
Nenhum direito.

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— Tenho todo o direito. Sou o pai de Delphine.
— Como ousa, senhor?
Jean virou-se ao sei interpelado pelo jovem de uniforme. Era quase um rapaz.
— Quem é esse? — interrogou Jean. — Seu novo lacaio?
Os olhos do jovem brilhavam de fúria e Louise sufocou um grito.
Então esse jovem era a resposta a suas preocupações, um rapaz demasiado
ignorante para compreender a trama de uma mulher interessada em adoração
constante e em recursos para alimentar seu apetite insaciável por festas e vestidos
de moda.
— Fique fora disso — alertou Jean ao jovem.
— Recuso-me. A senhora deseja que o senhor se retire.
— A senhora? — Jean deu risada. — Se tiver um pouco de juízo, jovem, partirá
neste instante. Antes que a senhora tire todo o seu sangue.
— Não vou repetir, cavalheiro, a senhora deseja sua partida.
Jean cruzou os braços diante do peito, admirando a coragem de um adversário
tão jovem. Mas coragem era uma coisa, bom senso, outra muito diferente.
— Meu nome é capitão Bouclaire.
— Sei quem é o senhor.
— Então deve saber que não me deve dizer o que fazer nesta casa.
— Mareei — interveio Louise. — Eu o chamarei mais tarde. Jean e eu vamos
conversar a sós.
— Não vão conversar nada — continuou Mareei — Você lhe pediu para ele partir
e vou obrigá-lo a se retirar.
Jean sentia a raiva crescer. Mais uma palavra da boca do tolo e ia dar-lhe um
soco.
— Mareei — sussurrou Louise. — Por favor.
— Sim, Mareei — acrescentou Jean. — Você deve partir.
— O senhor insultou esta casa com sua presença. — Mareei deu um passo à
frente. — O alarde do senhor como pai de Delphine ameaça esta bela senhora com um
escândalo. Não permitirei isso.
— Louise — disse Jean, tentando ficar calmo. — Diga a este menino para sair de
minha frente antes que eu arranque todos os membros do corpo dele.
— Mareei — começou Louise, mas o jovem nada ouvia.
— Exijo reparação mediante um duelo. Amanhã cedo, atrás da casa Faed, nos
arredores da cidade. Ao alvorecer.

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Antes que Jean pudesse responder, o jovem curvou-se diante de Louise e se
retirou.
— O que você fez? — exclamou Louise ao ouvir a porta da frente ser fechada.
— O que eu fiz?
Jean fitou com desprezo a bela mulher que virava cabeças a torto e a direito.
— O que você fez? Privou minha filha de uma educação e de uma criação
decentes, desperdiçou dinheiro com enfeites inúteis. E agora está decidida a explorar
um jovem!
— Não ouse ferir Mareei — enfureceu-se Louise. — Ele quer to mar conta de
nós, o que é mais do que você tem feito com seu dinheiro minguado.
Jean estava cansado das exigências intermináveis, dos ressentimentos e das
acusações de Louise. Mais do que tudo, estava cansado de ser censurado por que ela
fora abandonada pelo marido. Essa mulher sempre o desprezaria. Ressentia-se de sua
liberdade. Ressentia-se por que Delphine o amava tanto.
— Seu menino não morrerá amanhã — declarou Jean. — Mas quando eu voltar do
posto Attakapas, levarei Delphine comigo.
Louise não recusou o pedido. Estava claro que não se importava com a filha.
Agora que um jovem e belo cortejador entrara em sua vida, não precisava mais de
Delphine.
— Sinto pena de você, Louise. Está jogando fora sua única oportunidade para
ser feliz.
— Está enganado, Jean. Joguei fora minha oportunidade de ser feliz na noite
em que dormi com você.
Jean ouviu as palavras no mesmo momento em que elas se registraram no rosto
da filha, no corredor. Delphine parecia mais vulnerável do que o vaso nas mãos de
Carmeline.
— Engraçado, essa é a única parte de nosso relacionamento que não lamento —
disse Jean fitando a filha.
Delphine tentou sorrir. Mas estava abalada. Nenhuma palavra bondosa apagaria
o fato de a mãe não se importar com ela.
— Três semanas, Phyney — disse Jean ao passar pela filha. Depois a beijou na
testa. — Esteja pronta para partir dentro de três semanas.

Capítulo II

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Posto de Attakapas, Janeiro de 1769

Intrigada, Gabrielle fitava-se no espelho. Como conseguira apertar o busto em


tão pouco tecido? Tentou suspirar, mas isso a fez lembrar-se das barbatanas nas
costas.
— Como as mulheres vestem essas roupas todos os dias? — indagou à mãe. Acho
que vou desmaiar.
— Madame Vincent afirma que esse é o último estilo para moças — explicou
Marianne Gallant.
Juliette Vincent, uma rica crioula, assim chamada por ser descendente de
colonizadores franceses, desposara o homem mais abastado da região sudoeste da
Louisiana. Embora o posto Attakapas fosse de fronteira, a casa dos Vincent era
requintada.
— Madame Vincent sabe que hoje você completa vinte e um anos e quer
comemorar esse dia na casa dela, durante a festa do Dia de Reis — lembrou Marianne.
— E também foi muito gentileza emprestar-lhe um de seus mais belos trajes para a
ocasião.
Gabrielle fitou no espelho o maravilhoso vestido de seda verde-esmeralda. As
incômodas barbatanas alisavam seu abdome e enfatizavam suas curvas.
— Está maravilhosa — elogiou Marianne. — O vestido faz jus a seus vinte e um
anos.
— É a segunda vez que diz isso — queixou-se Gabrielle.
— Digo o quê?
Gabrielle virou-se para a mãe, ainda bela e graciosa. Mas o fato de viver em
exílio há muitos anos e longe do marido, havia tornado grisalho seu cabelo outrora cor
de ébano. Desde que fora forçada a sair de seu lar na Nova Escócia, no Canadá, treze
anos antes, Marianne sofrera diversas adversidades: separação da família, intensa
pobreza, doenças. Mas os últimos meses vinham sendo os piores.
Ao chegarem a Louisiana, quase um ano antes, souberam que Joseph estava à
procura delas e por isso decidiram esperar por seu retorno. Primeiro viajaram na

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Cherie Claire Gabrielle
direção oeste, para o posto Opelousas, depois na direção sul, para o posto Áttakapas.
No entretempo. Rose, a irmã mais nova de Gabrielle, casou-se com um americano
chamado Coleman Thorpe e ficou grávida. O casal, a irmã mais velha, Emilie, e seu
marido Lorenz, ficaram em Opelousas aguardando o nascimento da criança.
Fitando o rosto que lhe dera forças ao longo dos anos, Gabrielle percebeu a
intenção da mãe. Marianne a queria casada e feliz, como as irmãs, que viviam sob a
bênção do matrimônio. Isso ajudaria a aliviar a dor pela desintegração da família.
— Você repetiu vinte e um, duas vezes — comentou Gabrielle. — Está tentando
me dizer algo?
— Quero que se divirta. Hoje é seu aniversário.
— Se não a conhecesse melhor, mamãe, pensaria que me considera uma
solteirona.
— Você não é uma solteirona. É uma jovem bela e exuberante.
— Mas...
— Mas não será jovem para sempre.
De repente, Gabrielle compreendeu. A mãe conhecia a agonia da espera por um
homem. O rio Mississippi tem vários braços navegáveis ou estuários, conhecidos como
bayous. O mais importante era o Bayou Teche, em cuja margem Marianne esperava
pelo marido todos os dias. Mas sempre voltava sozinha para casa.
Pela primeira vez, em treze anos, desde que haviam sido expulsos de seu lar em
Grand Pré, na Nova Escócia, Gabrielle duvidava que um dia reveria o pai.
Mas Joseph não era o único homem que Gabrielle esperava.
— Jean disse que voltaria — sussurrou a moça.
— E se não voltar? — contestou Marianne. — Sabe que gosto muito de Jean e
aprovo que se case com ele, mas na verdade o capitão não é do tipo casadouro. Sem
mencionar que há meses vocês não se encontram.
A mãe falava a verdade, mas Gabrielle se recusava a ouvir. Devia haver um meio
para ficarem juntos. Amava Jean e sabia que o sentimento era recíproco.
— É urn marinheiro—continuou Marianne. — Sei quanto você ama o mar, mas não
pode criar uma família a bordo de uma embarcação. Que tipo de vida ele pode lhe
oferecer?
Uma vida excitante, pensou Gabrielle. Mas depois se lembrou da razão por que a
família estava separada e sentiu-se culpada. Não podia ser egoísta nem deixar a mãe
sozinha, mesmo que Jean retomasse.
— O que quer que eu faça, mamãe?
- Quero que se divirta na festa. Conheça bons homens. Dance. Seja feliz.
Gabrielle fitou as mãos cruzadas no colo. Felicidade não era algo a que estava
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acostumada, exceto quando Jean estava por perto.
— Talvez Jean nunca volte — argumentou Marianne. — E, se voltar, estará
disposto a se casar? Não perca a juventude à espera de alguém cujo retorno é incerto.
Gabrielle não podia imaginar uma vida sem Jean, que vivia em seus sonhos todas
as noites. Ansiava ser envolvida em seus braços e ser beijada por ele.
— Prometa alegrar-se com a atenção dos homens na festa — exigiu a mãe. —
Prometa que, se vierem visitá-la amanhã, não os desencorajará como costuma fazer.
Gabrielle concordou. Era seis de janeiro, Dia de Reis, a data do início das festas
profanas, que terminavam na quarta-feira de cinzas. E, nesse mesmo dia, completava
vinte e um anos. Era época de desfrutar a vida, de ser feíiz. Mas para isso precisaria
escapar à dor que morava em seu coração...

Jean seguiu a criada para o vestíbulo do lar de Vincent, Viera sem aviso e pelo
jeito ia surpreender o amigo num momento inoportuno. A casa estava fervilhando de
atividade e ouvia-se música vindo da sala de jantar, misturada ao suave zumbido de
conversas.
— Se este é um mau momento, posso visitar monsieur Vincent amanhã —
explicou Jean à criada.
— Não seja ridículo, seu velho tolo.
Jean virou-se e avistou Antoine Vincent, em traje de festa, chegando pelo
corredor.
— Tomarei conta de meu bom amigo — explicou Vincent a criada. Depois abriu a
porta palha do seu estúdio e fez um movimento para ambos entrarem.
A casa de Vincent não tinha a sofisticação da sociedade de New Orleans, no
entanto, era de um requinte raro na cidade. Havia apenas três aposentos: uma sala, o
estúdio e um quarto de dormir. No entanto os três eram espaçosos e davam para
varandas. Ao redor da casa havia um pátio e o jardim descia até o bayou.
— O que o traz aqui, meu amigo? — indagou Antoine, servindo a Jean um copo de
conhaque. — Trouxe alguma carga preciosa e deseja que eu a compre? Estou surpreso
que tenha conseguido vir pelo bayou com a seca que estamos atravessando. Os níveis
da água estão perigosamente baixos.
Jean aceitou a bebida e tomou tudo de um trago. Sentiu-se reconfortado, pois o
álcool amortecia seu desespero.
— O que aconteceu?
Jean sentiu a mão de Vincent no ombro. Embora se desprezasse por falar sobre
sua dor, precisava confidenciar-se com alguém. E precisava ter notícias de Gabrielle.
Antoine nada disse e encheu outra vez os copos. Jean sorveu o conteúdo de um

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gole e caminhou até a lareira.
—Matei um homem — contou. —Minha cabeça está a prémio.
— Como? — indagou Antoine perplexo.
— Foi num duelo — explicou Jean. — Louise tinha um amante, um rapaz. Um dia
entrei furioso em sua casa, surpreendi os dois juntos, mas isso não me importou.
Discutimos a respeito de Delphine, fiz exigências e o cortejador me desafiou para
proteger a honra de sua amada. Como se aquela mulher tivesse alguma honra.
—Duelos não transformam homens em criminosos. — Antoine encheu os copos
outra vez. — Você disse que sua cabeça está a prémio.
— O pai do rapaz é um oficial espanhol e bem relacionado com o novo
governador. — Jean sentiu o sangue ferver ao se lembrar de como Edouard Prevost o
havia chamado de criminoso, enquanto o filho tolo morria em seus braços. — Dei-lhe
diversas chances para desistir do duelo. Jamais tive a intenção de levar aquilo adiante.
O rapaz deve ter ouvido falar sobre minha reputação na esgrima, pois estava disposto
a retirar o desafio. Mas o pai não permitiu que o filho fizesse isso.
— O que aconteceu?
— Cruzamos espadas. Eu o feri, dando-lhe um pretexto para parar a luta. Mas o
pai o impediu e impeliu o rapaz a terminar a luta. Que pai é esse que prefere ver o
filho morto a terminar razoavelmente um duelo?
— O mundo está cheio de tolos — comentou Antoine.
— Naquele momento desisti. Não ia matar o rapaz. Virei-me para partir, mas o
pai gritou algo e o filho deu-me uma estocada.
— Por trás?
Jean anuiu, ainda assombrado que um soldado cometesse algo tão desonesto
num duelo entre cavalheiros, mas os pais têm esse poder sobre os filhos.
— Ergui minha espada para me defender, a relva estava molhada pela neblina da
manhã, ele escorregou e caiu contra minha lâmina. Morreu no mesmo instante.
— Mas foi um acidente. Não havia testemunhas?
— Philibert era meu padrinho — contou Jean.
Antoine nada disse. Philibert era o melhor dos homens. Um grande esgrimista e
um marinheiro excelente,. Mas estivera envolvido num escândalo na França e, num
tribunal, seu caráter seria questionado, em particular no caso de um homem próximo
ao governador.
— E o pai do rapaz alega que foi um assassinato?
— O degenerado prefere censurar um pirata a admitir que enviou o filho para a
morte. Sou um alvo fácil, Antoine. Em poucas horas, New Orleans ficou coberta de
cartazes pedindo minha captura.

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Cherie Claire Gabrielle
— Escreverei cartas. Vou ver o que posso fazer — prometeu Antoine.
— Agradeço-lhe. Preciso deixar o território, mas antes quero pedir-lhe um
favor.
— O que quiser.
— Escreva para Delphine, envie-lhe dinheiro e diga para ela manter contato.
Precíso saber que minha filha está bem. Por favor, passe-lhe essa informação.
— É claro.
Jean levantou-se. Sentia-se oprimido. Gabrielle estava tão perto e talvez nunca
mais a visse.
— Há algo mais.
— Escute, Jean. Estamos dando uma festa e preciso estar presente na sala.
Venha comigo. Vamos encontrar um canto tranquilo para conversarmos.
— Não estou vestido de modo adequado — disse Jean.
— Tolice. É uma festa a fantasia. Vamos fingir que você é um pirata — sugeriu
Antoine, tirando uma máscara do bolso.

Dez vezes. Gabrielle contara as danças. Com dez diferentes homens. Já havia
cumprido seu dever, sorrira, elogiara e agora só queria ir para casa. Nenhum de seus
pares a atraíra. Nenhum se comparava a Jean.
— Está se divertindo? — indagou Felicite Hébert.
— É claro — afirmou Gabrielle. — E você?
As duas jovens sorriram. Ambas eram as mais recentes protegidas de Juliette
Vmcent e haviam sido convidadas à festa, embora não fizessem parte da sociedade
privilegiada do posto. A anfitriã pretendia ver as duas acadianas casadas com
prósperos proprietários de gado da região.
Felicite fora separada do pai durante seu exílio do Grand Pré. A mãe e duas
filhas foram enviadas a colônia da Geórgia, mas a mãe foi obrigada a servir numa
plantação, e as duas filhas foram enviadas a outra. A irmã morreu de varíola, poucos
meses depois, e Felicite fugiu, mas só conseguiu encontrar o túmulo da mãe. Os
Doucet, uma família acadiana, adotaram a menina e a levaram para a Louisiana., onde
ela passou a viver como membro da família. Felicite começou a conversa com Gabrielle
sobre o rapaz a quem amava, Silvestre Doucet, também acadiano e, no momento,
apenas um auxiliar de estábulo.
— Acha que madame Vincent vai se importar se eu me casar com Silvestre? Sua
família tem sido muito generosa comigo. Sinto-me como uma filha.
— Case-se com quem quiser — declarou Gabrielle.
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Cherie Claire Gabrielle
Animada com o assunto, Felicite começou a falar sobre Silvestre e seus planos,
mas a atenção de Gabrielle estava em outra parte. Uma voz, alguns passos atrás,
chamara sua atenção. Era a voz de seus sonhos, do homem por quem estava à espera
há vários meses de agonia.
Reconheceria a voz de Jean em qualquer lugar. Gabrielle sentiu o coração
acelerar, apertou a máscara no rosto e fingiu prestar atenção à conversa de Felicite.
Mas ouvia cada palavra pronunciada por Jean a seu amigo.
— Então, qual o outro favor que deseja me pedir? — Gabrielle ouviu Antoine
perguntar a Jean.
— Há uma família no posto sobre a qual desejo ter notícias.
— Por que não se informa por conta própria?
— Em minhas circunstâncias não devo me aproximar da família, É uma situação
delicada.
— Está se referindo a uma mulher? — Antoine deu uma risada.
— Mais ou menos — respondeu Jean nervoso.
Gabrielle sentiu uma dor aguda no peito. Jean estava falando a sério? Sua
amizade fora apenas um flerte de um pirata em terra? A muito custo, continuou
fingindo interesse pela conversa da amiga.
— Nunca o imaginei fugindo de uma mulher que caiu em suas garras — comentou
Antoine. — Você sempre foi bom em se descartar de suas conquistas.
— Se não fizer diferença para você, prefiro não ver essa mulher — disse Jean.
Gabrielle ficou pálida. Não conseguia respirar. Tirou a máscara e agarrou o
braço da amiga.
— Desculpe-me, Felicite, preciso tomar ar.
Antes que a amiga pudesse chamar por ajuda, Gabrielle saiu para o jardim.
Tentou normalizar a respiração, caminhando pela trilha de pedras que levava ao bayou,
e sentou-se num banco próximo a um carvalho.
Não podia ser verdade. Jean a amava. Tinha certeza. Não poderia ser apenas um
flerte.
Gabrielle levantou-se e deu alguns passos. Sentia a cabeça latejar. Como pudera
ser tão tola? Como não vira quem Jean era de fato? Lembrou-se da primeira noite em
que haviam conversado, logo depois da chegada de sua família à Louisiana. Haviam se
sentado a bordo de sua embarcação, no rio Mississippi, sob o luar.
Jean rira quando ela o chamara de pirata e dissera que, na melhor das
hipóteses, era um francês tentando ganhar a vida nas florestas da Louisiana como
contrabandista. Falara com afeto sobre a filha, confessara sua ligação escandalosa
com Louise. Haviam compartilhado muito naquela noite. Inclusive Jean a beijara de

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Cherie Claire Gabrielle
leve. Esse comportamento não fora convencional nem típico de um gentleman. Mas
Gabrielle quisera ser beijada. Se Jean estivesse a sua frente, desejaria ser beijada
outra vez. Amava-o. Jean preenchia todos os seus anseios e ela havia acreditado que o
sentimento fosse recíproco.
Fechou os olhos, lutando contra a dor que afligia seu coração. Afinal a mãe
estivera sempre certa. Jean não era o tipo casadouro. E pelo jeito tampouco o tipo
honrado.
— Como pude ser tão ingênua? — exclamou em voz alta. Decidiu voltar. O que
Juliette estaria pensando? Desaparecer no meio de uma festa não era uma conduta
apropriada para uma jovem. Bem, isso não tinha importância. Só queria ir para casa,
livrar-se do vestido sufocante e ir direto para a cama. E não queria ver o capitão Jean
Bouclaire, nunca mais.
Gabrielle levantou as saias e começou a subir o caminho de volta, pelo lado
esquerdo da casa. Retornaria à festa, colocaria sua máscara e imploraria a Juliette
para deixá-la ir embora por causa da dor de cabeça.
Mal começou a andar colidiu com uma enorme figura masculina.
Jean não se conformava. Em que estava pensando quando pediu a Antoine para
ver se Gabrielle estava bem? Devia ter imaginado que o amigo suspeitaria de conduta
imprópria de sua parte. Agora estava preso numa mentira. Não podia revelar o nome
da moça para Antoine, pois arriscaria arruinar a reputação de Gabrielle, mas tampouco
podia inquirir sobre sua saúde. Ia precisar inventar desculpas para se inteirar sobre
ela de outro modo.
Por sorte, antes que Antoine tivesse tempo de perguntar o nome, ele foi
chamado pela esposa, e isso deu a Jean oportunidade de sair para o jardim. Estava a
três metros da casa, quando uma convidada de cabelos escuros se chocou contra ele.
— Cuidado! — disse Jean segurando a moça que estava quase caindo.
Ao perceber que se tratava de Gabrielle, ficou atônito. A moça parecia um
sonho, vestida em seda verde-esmeralda, o cabelo negro entrelaçado no alto da
cabeça. Era mais bela do que imaginara em suas noites solitárias no mar. Que tolo fora
ao pensar que podia visitar o posto Attakapas e não vê-la. Sua imagem lhe era tão vital
quanto respirar, E agora partir seria muito mais difícil. Para ambos.
— Gabrielle! O que está fazendo aqui?
A moça ficou em silêncio, condenando-o com o olhar e depois se apressou a ir
embora pelo atalho. Mas Jean a impediu de prosseguir. O bom senso o aconselhava a
não continuar o relacionamento, a abandonar a região e deixá-la viver uma vida normal,
casar-se com um homem capaz de lhe oferecer uma existência melhor. Mas precisava
encontrá-la uma última vez.
— O que há de errado, minha criança? — perguntou Juliette ao avistar
Gabrielle, muito pálida, voltar à festa.

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Cherie Claire Gabrielle
— Preciso ir para casa, por favor, estou com uma dor de cabeça muito forte.
— É claro, querida. Vou pedir uma carruagem. — Juliette saiu logo para
providenciar o transporte.
Gabrielle aceitou o copo de água trazido por Felicite e tomou um gole.
Tranquilizou a amiga, dizendo que estava tudo bem, que era um mal passageiro.
— A carruagem já foi chamada — avisou Juliette ao retornar. — Antoine vai
acompanhá-la para casa.
— Não será preciso — ouviu-se alguém declarar.
O som da voz de Jean afligiu Gabrielle. Por que a estava torturando, se não
queria revê-la?
— É muita bondade sua, capitão Bouclaire — agradeceu a anfitriã. —Mas ambos
ainda não foram apresentados.
Gabrielle virou-se esperando Jean reconhecer que eram velhos amigos, um fato
que explicaria sua gentileza.
— Então apresente-nos — pediu Jean.
Gabrielle sentiu-se ferida e ultrajada. Ia precisar suportar a companhia de
Jean. Agradeceu a bondade e a atenção de Juliette e pediu desculpas por causar-lhe
transtorno.
Jean acompanhou a moça à porta e a ajudou a entrar na carruagem. Depois subiu
e fustigou os cavalos para partirem. Percorreram um bom trecho em silêncio, até Jean
começar a falar. Estavam muito perto um do outro e seus braços se tocavam.
— Está doente? É por isso que foi tão fria comigo?
Gabrielle não sabia como responder. Ainda estava enfurecida por ter sido
considerada por ele, como pouco mais que uma escapada no porto. Mas algo em seu
íntimo recusava-se a acreditar que isso fosse verdade.
— Por que eu deveria ter agido de modo diferente? Não fomos apresentados
até esta noite!
— Não sabia o que responder — explicou Jean hesitante.
— Talvez não quisesse que seus amigos da alta classe soubessem que se envolveu
com uma mulher de classe inferior.
— Isso é um absurdo! — indignou-se Jean. — Desde quando me importo com
distinções de classe?
— Então por que não revelou nossa amizade? Receou que, se Antoine e Juliette
soubessem de nossos beijos secretos, passariam a esperar algo honrado de sua parte?
Gabrielle havia falado com amargura e elevara a voz. Mas só percebeu ter
mencionado a idéia de casamento ao pronunciar as últimas palavras. Sentiu-se
humilhada por ter revelado seus sentimentos.
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Cherie Claire Gabrielle
— Eu estava agindo de modo honrado — argumentou Jean. — Mas sei por que
você foi à festa. Deve ser mais uma das protegidas de Juliette. Quem estava tentando
atrair, Gabrielle, um dos irmãos Masse, ou o filho mais velho de Dauterive, que vai
herdar belas terras junto ao rio?
Gabrielle não conseguia acreditar. Há meses, Jean não enviava nenhuma notícia,
e estava zangado por ela aceitar a aproximação de outros homens? Estaria
desapontado por não ter tido a oportunidade de romper seu relacionamento?
— Juliette convidou-me a participar da comemoração e, sim, Felicite e eu somos
suas atuais protegidas — disse Gabrielle com o máximo de calma que lhe era possível,
apesar de sentir-se furiosa. — Como não sou comprometida com ninguém, não entendo
suas objeções.
— Não é isso — declarou Jean tenso. — Minha objeção é por você estar zangada
comigo por interferir em seus planos maritais.
Gabrielle não acreditava. Jean queria romper seu relacionamento, ir embora sem
se despedir e, no entanto, censurava-a por estar zangada a respeito de uma ridícula
hipótese de ela desposar outro?
— Por que está aqui? Por que veio ao posto? — Gabrielle inquiriu.
Jean não respondeu e continuou fitando a estrada à frente. Chegariam dentro
de poucos minutos.
— Como estão passando você e sua mãe?
— Estamos bem, obrigada.
— E seu pai?
A dor de Gabrielle foi tão intensa que ela chegou a temer que seu coração
parasse de bater. Lágrimas afloraram a seus olhos.
— Ainda não chegou — sussurrou ela.
— Oh, Gabi! Sinto muito. — Jean virou-se e passou o braço ao redor do ombro
da moça.
Gabrielle saboreava a lembrança de mar aberto, provocada pela proximidade do
rosto de Jean. E reconfortou-se no calor de seu abraço.
Mas ao lembrar as palavras de Jean para Antoine, afastou-se. Marianne devia
estar à sua espera, aguardando a notícia de que a filha encontrara o homem de seus
sonhos. O que ia lhe contar?
— E suas irmãs? — indagou Jean, segurando as rédeas.
— Rose não está bem para viajar, espera um bebê para o fim da primavera. Por
isso planejam ficar em Opelousas alguns meses. Ela e Emilie, junto com os maridos,
devem se juntar a nós após o nascimento.
— Colernan e Lorenz estão bem?

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Cherie Claire Gabrielle
— Escrevem regularmente — contou Gabrielle sobre os cunhados, a quem
devotava grande afeto. — Fizeram uma boa colheita. Perguntam sempre sobre você e
quando irá visitá-los.
— Íamos ser sócios num negócio de peles — contou Jean.
Gabrielle estava a par dessa idéia. Lorenz e Coleman conseguiriam as peles na
fronteira e Jean as levaria ao mercado em New Orleans.
— E agora, isso não vai mais acontecer?
Jean parou a carruagem na frente da casa. Acariciou a face da moça e a
observou. Quando seus olhos se encontraram afinal, Gabrielle jurou que ele nutria
sentimentos por ela. O amor estava estampado em sua face.
Algo estava errado. Aquilo que Jean dissera a Antoine não fazia sentido. Não
desejava dispensá-la como uma conquista fácil em terra, não era possível, pois seus
olhos exprimiam afeição. Mas palavras mentiam?
— Apenas se despeça, Jean — disse Gabrielle com suavidade. — Você sempre
foi bom em se descartar de suas conquistas. Ou não seria melhor eu lhe poupar o
trabalho e descartá-lo?
Os olhos de Jean se arregalaram ao ouvir essas palavras, mas não teve tempo
para responder. Gabrielle saiu da carruagem, subiu pela trilha e entrou em casa.
Pela segunda vez nessa noite, Jean sentiu-se como um barco à deriva. Todos os
seus planos para ter notícias de Gabrielle e deixar o território se haviam desfeito,
arruinados por uma conversa permeada de bravatas entre dois homens. Não devia ter
pedido a Antoine para se informar sobre ela. Não deveria ter deixado o amigo
conduzi-lo a uma conversa ridícula sobre mulheres em geral. Havia agido como um
adolescente, negando uma associação perfeitamente inofensiva com Gabrielle, como se
o reconhecimento de sua amizade significasse um escândalo sobre a cabeça da moça.
Gabrielle deixara cair seu lenço no chão da carruagem. Jean o pegou e levou-o
aos lábios, saboreando o perfume de lavanda. Quem estava enganando? A moça era
dona de seu coração.
Talvez fosse melhor desse modo. Ela o odiaria, mas deixaria de esperar por seu
retorno e se casaria com outro. Com sua beleza conquistaria um bom marido. Viveria
numa casa segura, com uma boa renda, cercada pela família. Era muito mais do que
Jean tinha a oferecer. Mas como viver sem ela?
— Boa noite, capitão — ouviu-se uma voz à direita.
Jean virou-se e avistou Charles Maase montado a cavalo, a seu lado. Não o
ouvira aproximar-se.
— Está se sentindo bem, Jean? Não está com boa aparência, meu velho.
— Estou bem, Charles. O que está fazendo aqui? — indagou, fingindo
indiferença à alusão a sua idade.

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Cherie Claire Gabrielle
— Fiquei preocupado com Gabrielle. Soube que saiu cedo da festa e queria me
certificar de que chegou bem em casa. — Charles desmontou e amarrou as rédeas na
cerca da frente da casa Gallant.
— Ela está bem — informou Jean com frieza. — Acho que foi direto para a
cama.
Gostaria de dar um soco em Charles, mas era errado. Devia encorajar os
pretendentes de Gabrielle, não expulsá-los. Mas algo em Charles fazia seu sangue
ferver.
— Bem, vou me certificar, já que estou aqui.
Charles fez um aceno para Jean e encaminhou-se confiante à porta da frente.
Antes de completar três passos, Jean saltou da carruagem e o alcançou.
— Gabrielle esqueceu o lenço — explicou a Charles.
Marianne abriu a porta e cumprimentou Jean com um abraço caloroso.
— Jean, é tão bom revê-lo! Onde esteve tanto tempo?
—Nas índias Orientais, Marianne. Tentando garantir o sustento de minha filha.
Marianne voltbu-se para Charles e estendeu-lhe a mão. Pelo jeito conheciam-se
Jean sentiu ciúme outra vez.
— Charles, que bom vê-lo. Entrem, por favor.
Gabrielle estava em pé, junto a uma parede, torcendo nervosamente as pontas
do xale que cobria seus ombros. Fúria e dor brilhavam em seus olhos. Jean queria
abraçá-la e beijá-la, dissipar o mal-entendido.
— Precisamos conversar — sussurrou ao passar a seu lado antes de se dirigir
para uma cadeira no fundo da sala.
— Sentem-se — Marianne falava mais à filha do que aos visitantes, que já
estavam acomodados.—Estávamos para tomar café.
Gabrielle começou a servir a bebida aos homens, enquanto Marianne perguntava
a Jean sobre suas viagens e a filha.
— Acho que está faltando uma xícara. Vou buscar — avisou Gabrielle em voz
entrecortada.
— Devíamos partir, Charles. É tarde — disse Jean.
— Gabrieile, gostaria de convidá-la a um piquenique amanhã — falou Charles sem
a menor intenção de partir. — Tenho novidades que gostaria de compartilhar. Os
Vincent irão. Por favor, aceite.
Jean queria agarrar Charles pelo colarinho e atirá-lo para fora da casa. Mas
seus pensamentos foram interrompidos.
—Jean, preciso fazer café fresco e a bomba é de manejo difícil. Poderia me

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Cherie Claire Gabrielle
ajudar? — pediu Marianne.
— É claro. — Jean levantou-se e seguiu para a cozinha.
Marianne demonstrava estar insatisfeita com o comportamento de Jean.
Cruzou os braços e o fitou, como um juiz pronto para proferir uma sentença.
Jean soube então, que Gabrielle ouvira sua conversa com Antoine.
— Foi um mal-entendido — explicou Jean, sentindo-se culpado.
— Você ficou longe muito tempo. E Gabrielle esperou por seu retorno todos os
dias. Se não deseja mais essa amizade, então, por favor, deixe-a livre. Não a mantenha
na esperança de algo que nunca acontecerá.
— Partirei amanhã e duvido que retorne algum dia — afirmou Jean, pois não
desejava magoar Gabrielle nem causar dor à família Gallant.
— Por quê? — indagou Marianne com ar de desaprovação.
Havia muitas razões, mas uma em particular Jean não tinha coragem de contar,
a de que havia matado um homem da mesma idade de Gabrielle.
— É melhor assim — declarou Jean. — Deixe Gabrielle casar com um homem
próspero como Charles, alguém com grandes terras e centenas de cabeças de gado.
Quando vierem filhos, você estará perto para ajudar, em vez de se perguntar em qual
porto seu neto nascerá.
— É o que sempre desejei para Gabrielle — contou Marianne com delicadeza. —
Seu lar e uma fazenda peito de mim, netos e uma renda sólida. Mas não é o melhor
para ela. E você sabe disso.
Jean anuiu, beijando os dedos calejados de Marianne. Gabrielle amava o mar e
era seu par perfeito. No entanto, ele nada disse, virou-se e encheu a bilha de água.
Quando o café ficou pronto, voltaram à sala e a animada conversa de Charles Maase.
— Se eu encontrar a sepultura do chefe, poderei provar que eram canibais —
dizia o jovem a Gabrielle. Não haveria mais dúvidas de que os Attakapas se
alimentavam da carne de seus inimigos.
— E como acha que vai provar isso? — indagou Jean.
— Se os índios Attakapas eram canibais, então enterravam os ossos dos inimigos
em seus túmulos — respondeu Charles. — Contaram-me que comiam os inimigos que
matavam e reverenciavam seus ossos como evidência de suas proezas. Planejo escavar
os túmulos e encontrar os ossos.
— Está planejando profanar uma sepultura sagrada para provar sua teoria? —
inquiriu Jean.
— Que importância tem isso agora? Os Attakapas estão quase extintos.
— Vários trabalham nas plantações e vi um pequeno grupo na loja do posto —
informou Gabrielle. — Acho que não vão gostar que o lugar de repouso de seus

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Cherie Claire Gabrielle
ancestrais seja perturbado.
— São índios, Gabrielle. Não são como nós — afirmou Charles surpreso.
Jean estava indignado. Era esse tipo de pensamento da classe alta originária do
Velho Mundo que estava tornando Louisiana um lugar tão sufocante quanto a França.
—Os ingleses nos expulsaram de nosso lar, Charles — explicou Marianne. — Eu
detestaria pensar que pudesse profanar as sepulturas de nossos ancestrais, na Nova
Escócia, apenas porque não somos como eles.
Charles sorriu nervoso. Não era sua intenção insultar a mãe da mulher que
desejava cortejar.
— Não foi o que quis dizer, sra. Gallant — Charles tentou explicar. — Examinar
os túmulos indígenas é pesquisa científica, garanto-lhe.
— Sabe onde fica esse túmulo? — perguntou Jean.
— Não, mas contaram-me que fica na costa norte do lago Espanhol, próximo à
entrada para o hayou. Planejo ir lá e examinar a área.
— Sei onde fica o túmulo — comunicou Jean. — Mas não é no lago Espanhol. Lá
há vários túmulos, mas nenhum é do chefe.
—Então venha conosco. Mostre-nos onde fica — pediu Charles animando-se.
Pela primeira vez Gabrielle virou-se para Jean. Implorou com o olhar para que
ele não a deixasse enfrentar o piquenique sozinha com aquele homem arrogante.
— Irei se você me prometer que o túmulo ficará intacto — concordou Jean, pois
não desejava partir sem dissipar o mal-entendido.
Charles estava para recusar, mas acabou concordando. Estava claro que voltaria
sozinho em outro dia, mas Jean pretendia dar uma lição ao jovem.
Quando Charles começou a explicar sua teoria dos Attakapas para Marianne,
Gabrielle levantou-se e pegou a bandeja. Disse que ia buscar bolo na cozinha.
— Jean, precisamos de mais água, sabe como a bomba é difícil de manejar —
pediu Marianne.
Grato pela oportunidade de ficar a sós com Gabrielle, Jean apressou-se para
fora da sala.
— Por que está fazendo isso? — indagou Gabrielle ao ver-se sozinha com Jean.
— Se deseja livrar-se de minha companhia, por que veio aqui esta noite?
— Não desejo me livrar de você, Gabi. Você entendeu mal. Preciso deixar o
território. Não queria vê-la porque isso tornaria mais difícil nossa despedida.
A moça continuava zangada, mas mesmo assim aguçava todos os sentidos de
Jean, que colocou as mãos em sua cintura e a atraiu para junto de seu corpo. Depois a
beijou no alto da cabeça.

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Cherie Claire Gabrielle
Gabrielle suspirou em sinal de derrota. Não conseguia lutar contra o desejo de
tocá-lo. Abraçou-se a Jean e quase perdeu o equilíbrio. Ele a segurou com firmeza e
beijou-lhe o lóbulo da orelha.
Gabrielle o queria. Uma palavra de Jean e o seguiria a qualquer parte. Mas a dor
em seu coração persistia. Precisou reunir todas as forças para se livrar do abraço.
Seus olhos se cruzaram e ela sentiu que havia alguma coisa errada.
— O que aconteceu?
Em vez de responder, Jean a atraiu para mais perto e a beijou nos lábios.

Capítulo III

Em outras ocasiões, quando Jean roubava um beijo, sempre fora suave, quase
casto, com uma sugestão apaixonada. Agora, não havia dúvida sobre suas intenções e
desejos. Seus lábios devoravam os de Gabrielle, suas mãos a acariciavam.
Gabrielle correspondeu a esse desejo. Abraçou Jean pelo pescoço, permitindo-
lhe acesso a seus lábios e a seu corpo.
— Oh, Gabi — sussurrou ele entre os beijos. — Senti tanta sua falta. Como
poderei viver sem você?
Lembrando que era apenas uma aventura no porto para esse pirata, Gabrielie
forçou-se a pensar com clareza. E afastou-se do homem cujas carícias acabara de
aceitar.
— Espere — pediu Jean. — Você não compreende.
Num momento Gabrielle tinha certeza de ser uma diversão passageira para
Jean e no seguinte acreditava que ele a amava e que algo indizível os separava.
— Não me deteste — pediu Jean. Depois a soltou e recuou alguns passos. — Não
suportaria se você pensasse mal de mira.

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Cherie Claire Gabrielle
— O que você deseja que eu pense? — Gabrielle queria respostas.
Algo que fizesse sentido.
— Aquilo que falei a Antoine não significa nada.
— Então o que tem significado para você?
Jean não respondeu. Colocou a mão no rosto de Gabrielle e acariciou sua face.
Seus olhos falavam as palavras que ela queria ouvir. Parecia decidido a explicar, mas
depois mudou de ideia. Em vez disso, beijou-a uma última vez.
— Boa noite, mon amour — sussurrou ele.
Antes de Gabnelle poder esboçar qualquer reação, ouviu o som de botas ecoando
no caminho que levava de volta para a casa. Ficou na cozinha. Não sentia vontade de
retornar para a companhia de Charles Maase. Estava sendo rude com o convidado, mas
faltavam-lhe forças para voltar.
— O que aconteceu? — indagou Marianne entrando. — Jean foi embora e insistiu
que Charles o acompanhasse. Não está se sentindo bem?
— Não sei o que aconteceu, mamãe. Nada faz sentido.
— Por que não tomamos o café que você acaba de preparar e me conta tudo?
Gabrielle concordou. Mas duvidava que a mãe compreendesse os atos de Jean.

A barcaça de Jean flutuava na superfície da água, livre da mercadoria


costumeira trazida de Plaquemine. Um barco vazio costumava ser razão para
comemorar, pois significava dinheiro no bolso. Neste dia, entretanto, a barcaça era um
símbolo de fracasso. Não haveria mais viagens para o interior, nem contrabando entre
os residentes da Louisiana, nem visitas às pessoas amadas.
— Vai partir com sua barcaça hoje? — indagou Antoine, servindo a Jean outra
xícara de café. Os dois estavam à mesa da varanda, que dava para o bayou.
— Sim — confirmou Jean ao amigo. — Meus homens estão a bordo de meu navio
na baía de Cote Blanche, à espera para zarparmos para o Caribe.
— Pena — comentou Antoine. — Esperava contar com sua ajuda. Charles e
Juliette planejaram um piquenique que requer navegar por alguns bayous.
Jean havia concordado em acompanhar Charles naquele piquenique, mas, depois
de sua falta de controle com Gabrielle, mudara de ideia e decidira partir nessa manhã.
— Qual é o nome daquela família que você desejava que eu averiguasse? —
inquiriu Antoine.
— Não importa — respondeu Jean tenso. — Já tratei desse assunto.
— Já? Quando fez isso, enquanto levava Gabrielle para casa ontem à noite?

25
Cherie Claire Gabrielle
Antoine entendera. Conseguia descobrir quase tudo e por essa razão juntara
uma riqueza enorme ainda tão jovem. Mas Jean não estava disposto a conversar sobre
sua vida pessoal com ninguém.
— Eu devia ter percebido — continuou Antoine. — Gabrielle não é apenas outra
beldade. É diferente, espirituosa, inteligente. Tem algo maravilhoso que não consigo
explicar.
— Então não tente.
— Nesta temporada, Gabrielle é a protegida de Juliette, você sabe. E ela
favorece Charles como pretendente. Não é uma má escolha, pois ele possui boas
terras.
— No momento eu gostaria que você parasse de falar — queixou-se Jean,
levantando-se.
— Correm boatos, Jean. Marianne Gallant passa todos os dias à espera do
marido à margem do bayou.
— E?
Antoine levantou-se para olhar o amigo frente a frente.
— Marianne senta-se numa árvore em sua propriedade. Espera do alvorecer ao
anoitecer.
— A pobre mulher foi separada do marido durante o exílio — defendeu Jean. —
Certamente você conhece os detalhes. Joseph está vindo de Maryland. Por que ela não
deveria esperá-lo?
— É tempo demais — insistiu Antoine. — O marido já deveria ter chegado há
vários meses. Marianne se recusa a enxergar os fatos. Além disso, mesmo que Joseph
esteja vivo e a caminho, o que duvido, não é saudável uma mulher passar o dia inteiro
esperando ao lado de uma árvore pela volta do marido.
Marianne parecera perfeitamente sã para Jean na noite anterior, mas suas
ações de fato eram estranhas.
— A vida de Gabrielle não é muito melhor — prosseguiu Anotoine. — Quase não
sai de casa e, às vezes, espera ao lado da mãe durante horas. Por isso Juliette a tomou
sob sua proteção.
Jean sentiu-se culpado. Prometera a Gabrielle retornar no outono, mas não
viera. Agora que estava ali, perdera o controle e a tomara nos braços
apaixonadamente, depois a desertara no dia seguinte. Enfiou as mãos nos bolsos e
fitou o plácido bayou a sua frente.
— Por que está me contando isso?
— Acho que é um palpite. — Antoine deu de ombros.—Talvez seja um jeito para
convencê-lo a ficar. Philibert pode cuidar dos negócios em sua ilha. E você
transportaria as mercadorias para o interior. Ninguém conhecerá sua identidade.
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Cherie Claire Gabrielle
— Exceto os vários clientes que eu visitar nesta região.
— Daremos um jeito. Suborne os funcionários se precisar.
— E depois? — Jean suspirou. — Em todos esses anos trazendo contrabando
pelo território tenho sido pouco melhor do que um pirata. Agora sou um fugitivo.
Independente de onde eu viva ou o que faça, nada posso oferecer a uma mulher, em
particular a Gabrielle.
Antoine começou a rir em vez de mudar de assunto.
— O que foi? — perguntou Jean.
— Você costumava dizer que qualquer homem que amasse uma mulher era um
tolo. É claro, seu exemplo era Louise. Está apaixonado por Gabrielle, não é?
— Não sou o tipo com quem as mulheres devem se casar — disse Jean com
dureza. — Nada tenho a lhes oferecer. Diga a Juliette para encontrar um marido
adequado para Gabrielle, alguém cuja cabeça não esteja a prémio.
— Alguém como Charles Maase?
A flecha atingiu o alvo. Jean fechou os olhos na tentativa de dominar a raiva.
Por um momento, não se importou que Antoine testemunhasse seus verdadeiros
sentimentos.
— Se você permitir que ela se case com aquele tolo insípido e arrogante,
cortarei sua garganta durante o sono — ameaçou Jean antes de ir embora.
Olhava para o chão, furioso e, quando enxergou quem estava a sua frente, era
demasiado tarde. Esbarrou em Gabrielle, que acabava de chegar.
Jean segurou os braços da moça, impedindo-a de cair, e nesse momento suas
esperanças de deixar a região se esvaíram. Gabrielle vestia o traje acadiano usual:
uma saia listada tecida a mão e um bolero azul índigo que acentuava os quadris e o
busto generoso. Um xale cobria seus ombros. O olhar triste não diminuía sua beleza
estonteante.
Jean lembrou-se dos alertas do amigo. Sabia tão pouco sobre a situação das
mulheres Gallant. Como podia abandoná-las à espera do retorno de Joseph enquanto o
resto da família se encontrava em Opelousas?
— Capitão! — exclamou Charles ao cruzar a porta. — Estou tão contente por
encontrá-lo. Pensei que não viria depois do que me disse ontem à noite.
Chegara a hora de recuperar o controle, de Jean insistir em partir para seu
navio, mas a ideia de deixar a companhia de Gabrielle era insuportável.
— É claro que o capitão irá conosco — afirmou ela. — Foi o que nos prometeu.
— Quando partiremos para a profanação do túmulo? — inquiriu Jean.
O sorriso de Charles desapareceu. O rapaz queria impressionar Gabrielle e isso
só fez reforçar o desejo de Jean de ir ao piquenique tolo. Se tudo funcionasse como

27
Cherie Claire Gabrielle
planejara, conseguiria passar alguns momentos sozinho com ela.
Pela segunda vez na vida, Gabrielle subiu na barcaça de Jean, a embarcação
achatada que ele usava para transportar mercadorias pelo Mississippi e através dos
pântanos e charcos. Havia uma vela improvisada e um convés elevado, no centro, para
dormir. Faltava a garrafa de rum que Jean costumava pendurar no mastro para
anunciar que estava na cidade a negócios. Por que viera ao posto?
Gabrielle sentia-se a vontade. Aprendera a velejar quando menina. Foi para a
proa e sentou-se, animada pelo simples fato de estar numa embarcação rústica,
atravessando um bayou. Lembrou-se da primeira vez em que subira na barcaça e sentiu
o coração apertado. Ela e Jean haviam dado risadas, tomado vinho e compartilhado
histórias. Depois ele a levara à praia e despedira-se com um beijo. Nessa noite,
Gabrielle lhe dera um colar, para dar sorte, e uma cruz de mogno que havia esculpido,
A barcaça deu uma guinada quando Juliette e Antoine subiram, seguidos pelo
falante Charles. Jean ainda estava em terra supervisionando as provisões para o
piquenique.
—Tudo pronto, meu velho? — indagou Charles.
Jean lançou um olhar tão zangado ao rapaz, que Gabrielle teve dificuldade em
não rir. Jean nunca contara a idade, mas era claro que tinha mais de trinta anos. Fios
grisalhos começavam a aparecer no cabelo, acima das orelhas, mas Gabrielle não se
importava, pois amava tudo nele.
Antoine e Jean soltaram as amarras do barco e começaram a movê-lo, cada um
com uma vara, para longe da margem,
Gabrielle desfrutava a sensação da brisa no rosto, a água correndo sob a
superfície do barco. Ouviu passos aproximando-se da proa.
— Está gostando?
Gabrielle virou-se e viu Jean a seu lado. Antoine e Charles estavam na popa
impelindo o barco com as varas.
— Sim, muito.
— Lamento por ontem à noite — declarou Jean.
— Qual parte?
— Certamente não a última parte.
Gabrielle também não lamentava, apesar de talvez ser a maior tola da região.
—Lamento sobre o baile — explicou Jean depressa.—Antoine gosta de me
provocar em relação a mulheres, por isso eu... quero dizer, ele sabe que nunca desejei
um relacionamento e eu não queria que ele pensasse... Droga! Foi apenas uma conversa
masculina!
— Compreendo — disse Gabrielle, muito tensa.

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Cherie Claire Gabrielle
Gostaria que Jean se calasse.
— Não, você não compreende — negou Jean em voz firme.
— Você quer partir e não se preocupar que eu sofra por sua causa. Então vá.
Garanto-lhe que não vou definhar e morrer.
Nada estava mais longe da verdade, mas Gabrielle estava cansada de pretextos.
No entanto, pressentia que lhe faltava alguma informação.
— Por que sua mãe passa tanto tempo na margem do bayoui — indagou Jean.
Gabrielle sentiu-se indignada. Era evidente que Jean ouvira os boatos de que a
mãe estava insana e que ela, uma bela jovem, recusava a corte dos homens da região.
— É insuportável, sabia? — reagiu ela, em voz baixa para os outros não ouvirem.
— Você irrompe na cidade na esperança de não me ver, depois fica zangado porque
outro homem deseja minha companhia. Agora, está se sentindo culpado porque meu pai
não chegou e ouviu boatos de que minha mãe está mal da cabeça. Pode ir para o
inferno, capitão Jean Bouclaire.
Gabrielle ficou em pé, levantou as saias e foi para a plataforma erguida no
centro. Charles logo se aproximou, segurou-a pelo cotovelo para ajudá-la, mas ela
recusou.
— Sou capaz de me mover num barco, Charles. Fui criada no mar.
Todos ficaram em silêncio e Gabrielle arrependeu-se de ter sido tão rude.
Juliette veio em seu socorro e perguntou aonde estavam indo.
— Para um lugar mágico — contou Jean. — Perto do Bayou Portage há um
cipreste que os índios Chitimacha consideram sagrado.
— Pensei que estávamos indo para o túmulo do chefe dos Attakapas —
espantou-se Charles.
— Tudo a seu tempo — respondeu Jean.
— O que há de mágico numa árvore? — indagou Juliette.
— Há uma lenda de que um homem de pele clara, inteligente, surgiu do nada
entre os Chitimachas, falando sua língua e versado em suas tradições — contou Jean.
— O estranho ensinou-lhes muitas coisas úteis. Um dia, declarou que precisava partir,
mas antes contou à tribo que, sempre que necessitassem de chuva, bastava pedir
ajuda à árvore. Depois disso desapareceu.
— Parece uma história inventada para ensinar religião — comentou Juliette. —
Tem certeza de que não ouviu isso dos missionários?
— Quando eu era um menino — contou Antoine —, meu pai costumava viajar para
o Bayou Portage e pedia chuva à árvore sempre que necessitava.
— E conseguia? — perguntou Juliette.
— Constate por si própria — disse Antoine, trocando um olhar com Jean.
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Cherie Claire Gabrielle
— Uma chuva viria bem a calhar — comentou Gabrielle. — Minhas roseiras estão
sofrendo. Nunca vi um inverno tão seco.
Viajaram quase uma hora até alcançar a "árvore sagrada", um velho cipreste
vermelho com os galhos caindo sobre o bayou. Perto, havia um montículo de terra
coberto por pequenas conchas, usado pelos índios locais como túmulos. Charles o
examinou, mas perdeu o interesse quando descobriu que era dos Chitimacha, uma tribo
pacífica que havia guerreado com seus vizinhos mais agressivos, os Attakapas. Os
Chitimachas não eram suspeitos de canibalismo.
Antoine levou o grupo para o famoso cipreste, mas Jean pegou o braço de
Gabrielle antes de ela descer do barco.
— Fique — pediu, fazendo um gesto para Gabrielle segui-lo para a cabine
improvisada. — Iremos logo — avisou ele ao grupo.
Charles franziu a testa ao perceber que Gabrielle ficara para trás, mas sua
curiosidade venceu e ele seguiu Antoine e Juliette da margem do bayou para a famosa
árvore. Entretanto, Gabrielle não ficou satisfeita por ficar sozinha na companhia de
Jean.
— Acho que deixei bem claro... — começou ela.
— Gabrielle — sussurrou Jean emocionado. — Já estou no inferno.
Outra vez a expressão dolorosa estava estampada no rosto de Jean, lembrando-
a de que havia algo errado. Mas por que não lhe contava?
Na margem, Antoine abriu um guarda-chuva e começou a recitar uma oração
junto ao tronco. Estava claro que os dois amigos estavam se divertindo à custa de
Charles, mas acreditar que uma árvore sagrada causava chuva?
Jean segurou Gabrielle pelo braço e a puxou para dentro da cabine.
— O que está fazendo? — perguntou Gabrielle.
— Espere — pediu ele, prestando atenção.
Em poucos segundos, o céu escureceu e trovões ecoaram. Gabrielle observava
atônita enquanto uma chuva torrencial batia no pequeno barco.
Gabrielle esqueceu de seus problemas enquanto a mágica da chuva os envolvia.
— Como fez isso?
— Já lhe contei. É um lugar mágico.
Ela não acreditava, mas como explicar a chuva? Não poderia ter sido manipulada.
— Pensei que estavam pregando uma peça em Charles.
— Adivinhou — reconheceu Jean com um largo sorriso. — Estamos aquecidos e
secos e ele é o único sem guarda-chuva.
— Pobre Charles — comentou Gabrielle. — Acho que deve estar falando sem

30
Cherie Claire Gabrielle
parar.
— Sem dúvida está escavando o túmulo, à procura de vestígios de canibais.
Jean trouxe uma garrafa de vinho, duas canecas e queijo. Sentaram-se perto
um do outro.
Gabrielle tomou o vinho, encantada pelo som da chuva caindo no bayou. Há muito
tempo não chovia. E há quanto tempo ela e Jean não davam risada juntos?
— Senti falta disso — sussurrou ela.
— Da chuva?
— De tempos mais felizes.
— Por que sua mãe passa tanto tempo junto ao carvalho provocando tantos
comentários? — perguntou Jean pegando a mão da moça e beijando-a.
Gabrielle não queria conversar sobre assuntos dolorosos. Queria rir e saborear
o cheiro da primeira chuva em muitas semanas. Mas sentiu-se triste.
— Não fique assim, chérie, amo vê-la sorrir. Seu rosto se ilumina quando está
contente.
— Você é a única pessoa que me pode fazer feliz — confessou Gabrielle.
— Preciso partir. Mas necessito saber que você e sua mãe estão bem cuidadas.
Devo saber que você está feliz.
— Por que tem de partir?
— Por que sua mãe age desse modo?
—Jean Bouclaire, você é o homem mais irritante que já conheci.
— Minha filha concordaria. — Jean bebeu vinho. — Agora, por que sua mãe
provoca os boatos?
— Espera por meu pai. Teve uma visão na qual ele retornaria pelo bayou e ela
estaria junto ao carvalho e o veria chegar.
— Uma visão? — indagou Jean.
Gabrielle não costumava contar que a mãe via acontecimentos futuros. Mas se
Jean podia fazer chover, certamente estava aberto para outros fenômenos
inexplicáveis.
— Minha mãe tem visões — explicou Gabrielle. — Pressagiou perigo no dia em
que os ingleses mandaram todos os homens de Grand Pré a igreja, para uma reunião.
Enquanto todos ficaram presos lá dentro, puseram fogo nas casas. — Gabrielle fez
uma pausa. Treze anos haviam se passado e aquela tarde permanecia tão nítida como
se tivesse sido no dia anterior. — Mamãe sabia que íamos ser exilados. Não sei como,
mas sabia. E que ficaríamos separadas de meu pai.
— E agora Marianne acredita que Joseph vai retornar!

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Cherie Claire Gabrielle
— Ela teve uma visão na qual Emilie e Rose estariam a seu lado quando meu pai
chegar de barco. — Gabrielle fez outra pausa. Como seria isso possível, se as irmãs
estavam em Opelousas? — Mamãe também viu Rose grávida antes de o casamento
acontecer.
— Mas Rose só chegará aqui depois que o bebê nascer — objetou Jean.
— Sei disso. Acho que mamãe teve duas visões ao mesmo tempo.
— E onde você estava nessas visões?
— Em nenhuma.
Jean refletiu sobre o que ouvira e encheu outra vez as canecas, enquanto
trovões ribombavam no céu. Estranhamente, os outros ainda não haviam voltado.
— Minha mãe ama meu pai. Apaixonaram-se no instante em que se conheceram.
Como faz uma mulher parar de esperar pelo homem a quem ama? — perguntou
Gabrielle.
— Você não deve esperar por mim — pediu Jean. — Preciso deixar o território.
Talvez não consiga retornar.
— Por quê?
— Estou com problemas junto às autoridades.
— O que aconteceu? —insistiu Gabrielle.
— Prometa, Gabrielle, que não vai esperar por mim. Talvez eu nunca retorne.
Deve casar com alguém que a mereça e tome conta de você.
— Não quero me casar com ninguém mais.
— Há homens melhores do que eu. Não tenho nada para lhe oferecer, e minha
cabeça está a prémio.
Gabrielle inclinou-se e sua testa tocou na pequena cabine.
— Não me importa o que você tenha feito — sussurrou ela, com as lágrimas
aflorando em seus olhos. — Eu o amo. Não há outro homem melhor.
— Não suporto a idéia de você desperdiçar sua vida a minha espera.
— Minha mãe não está desperdiçando a vida — objetou Gabrielle.
— Sua mãe é outra história.
— O que você fez? Por que não me deixa participar de sua vida? Conte-me,
Jean.
—- Gabi, sou um contrabandista e levo uma vida perigosa, não entende?
Esqueça-me e continue sua vida.
— É impossível.
Não era a resposta que Jean queria ouvir. Mas Gabrielle não se preocupava em

32
Cherie Claire Gabrielle
diminuir suas preocupações. Queria ficar com ele. Para sempre.
— Se eu a levar comigo, como será? Está disposta a deixar sua mãe agora,
sozinha, sem família?
Gabrielie sentiu-se consumida pela culpa. Por um momento havia esquecido da
mãe. É claro que não poderia deixá-la. Quando entenderia que seus sonhos de viver no
mar não passavam de desejos impossíveis?
Jean sentiu a dor da jovem. Aproximou-a mais e beijou-a na testa e no cabelo.
Por um momento, pensou em confessar seu amor, mas continuou silencioso.
A chuva começou a diminuir e ouviram-se vozes cada vez mais próximas. Jean
endireitou-se, depois pegou um lenço do bolso.
— Você o achou? — Gabrielle, aproveitou para enxugar as lágrimas na face; —
Achei que o havia perdido.
— Perdeu. Mas não planejo devolvê-lo.
Gabrielle não entendeu, mas sua atenção foi desviada para o pequeno objeto que
Jean estava tirando do lenço. Era um anel de esmeralda, e Jean o colocou em sua mão
direita.
— Comprei para você em Hispaniola. Esperava dar-lhe em circunstâncias mais
felizes.
Gabrielle fitou o elegante anel, brilhando à luz do raio de sol que atravessava a
cabine. Lágrimas afloraram outra vez a seus olhos.
— É muito bonito, vou guardá-lo para sempre — sussurrou. — Mas por que sua
cabeça está a prémio?
Jean pegou a mão com o anel, acariciou-a com amor. Nesse momento, Gabrielle
sentiu tudo girar.
De repente, não estava mais na cabine de um pequeno barco. Estava em mar
aberto, dentro de uma escuna, o vento batendo no cabelo, muitas estrelas no céu! Era
como nos sonhos que tinha havia anos, nos quais ficava no leme de uma embarcação
escurecida, tendo um homem desconhecido a suas costas. Desta vez, sentia o barco
inclinar, o movimento das ondas embaixo dos pés e o homem atrás a enlaçá-la pela
cintura. Quando a mão com o belo anel se estendeu para trás, ela a apoiou sobre uma
perna robusta. Uma onda de bem-aventurança a invadiu, pois descobrira afinal quem
era o homem em seus sonhos e que a felicidade era possível.
Então a escuna desapareceu e surgiu outra visão. Gabrielle pairava sobre o
ombro de uma menina com um vestido azul, que conversava animadamente com um
homem, num jardim. A menina se parecia com Jean. Em suas mãos estava uma cruz e a
menina lia uma carta escrita por Gabrielle.
A visão começou a ficar mais clara, e ela sentiu algo inusitado no homem ao lado
da menina. Uma força poderosa a impeliu a olhar seu rosto. Porém, alguém a estava

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Cherie Claire Gabrielle
chamando e a visão desapareceu.
Gabrielle abriu os olhos. Estava deitada na cama da cabine e avistou o rosto
aflito de Jean e os outros, preocupados, fitando-a do convés.
— Gabi, fale comigo — sussurrou Jean.
O que havia acontecido? Gabrielle se lembrava de ter recebido um anel e em
seguida... Ergueu a mão para se certificar de que o anel também não fora um sonho. A
esmeralda brilhava à luz do sol.
— O que aconteceu? — Perguntou ela a Jean.
— Estávamos conversando e eu a perdi.
— Perdeu-me onde? — Gabrielle lembrava-se do barco, da sensação vívida do
vento no cabelo.
— Você desmaiou — explicou Antoine. — Ficou desacordada vários minutos.
— Sua filha se parece com você.
Jean franziu a testa. Será que a moça era tão louca como diziam da mãe? Mas,
Gabrielle sorriu e tentou aliviar aua preocupação.
— Sua filha tem cabelo comprido, amarrado atrás com uma fita — continuou. —
Gosta de um vestido azul com diminutas flores brancas, seu favorito, porque foi
presente seu.
— Como sabe disso? — indagou Jean perplexo.
— Uma escuna de dois mastros — sussurrou Gabrielle, para ninguém mais ouvir.
Pequena, mas veloz. Linhas sóbrias, equipada com suportes giratórios. Seu melhor
amigo o ajuda a manejá-la — Gabrielle sorriu, lembrando-se do som do vento inflando
as velas. — É uma beleza.
Jean estava começando a ficar assustado. Resolveu levar Gabrielle de volta para
casa o mais rápido possível. Por sorte, Antoine havia mandado sua carruagem vir
buscá-los. Dada a situação, Jean decidiu levar Gabrielle no veículo. Os demais
voltariam na barcaça.
— O que me aconteceu? — indagou Gabrielle depois de ser levada à carruagem.
— Não sei, mon amour.
Gabrielle lembrou-se da menina, tão parecida com Jean e da cruz em suas mãos.
Teria Jean dado a cruz à filha? Gabrielle tocou a camisa de Jean procurando o
pendente.
—Ainda está comigo — contou ele.— Está debaixo da camisa. — Nunca a tirei do
corpo.
Nesse momento, Gabrielle teve certeza do amor de Jean. Todas as suas dúvidas
desapareceram.

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Cherie Claire Gabrielle
— Oh, Jean, o que, vamos fazer? — Sua voz era muito fraca e logo em seguida
ela adormeceu.
Seria tão bom poder levar Gabrielle e Delphine junto comigo, pensou Jean.
Acordar todos os dias ao lado da mulher amada e poder acompanhar o crescimento da
filha. Impossível! Como fizera no dia do duelo, partiria à primeira luz da manhã em
direção ao mar e à sua escuna. Gabrielle e Delphine o esqueceriam com o tempo,
encontrariam outros homens com quem compartilhar a vida.

— Está me dizendo que Jean partiu?


Gabrielle acordou com a cabeça dolorida, mas isso não a impediu de sair da
cama.
— Gabi, vá devagar — advertiu a mãe. — Você passou por um grande choque.
Marianne não ficara surpresa ao saber que a filha tivera uma visão. Entretanto,
ficou alarmada pelo fato de a visão incluir a filha de Jean e sua escuna.
—Não pode partir—protestou Gabrielle vestindo-se depressa. — Jean não pode
me largar aqui e partir.
— Ele não a largou em lugar algum. Ficou a seu lado a noite inteira.
— Mamãe, o que devo fazer?
Marianne gostaria de conhecer a resposta, Entendia a dor pela partida de um
homem e a possibilidade de jamais revê-lo. Só restava esperar.
— Somos mulheres. Temos pouca escolha na vida quando se trata de amor —
explicou à filha.
Gabrielle não gostou da resposta. Começou a dar passos pelo quarto. Não era o
tipo de ficar à espera.
— Esqueça-o, Gabrielle.
— Não consigo, mamãe.
Alguém bateu à porta e Marianne apressou-se a atender. Era Mathurin Dugas, o
filho mais velho da viúva Dugas, que acabara de dar à luz. Marianne havia prometido
cuidar das crianças mais velhas durante a recuperação da mãe.
—Não ficarei muito tempo fora — explicou Marianne. — Dois ou três dias, no
máximo.
— Não se preocupe comigo, mamãe. Ficarei bem. Esperarei por papai junto ao
bayou.
A idéia da filha sozinha, num momento tão delicado, preocupava Marianne.
—Ah, ia me esquecendo—disse, parando junto à porta. — Chegou uma carta de

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Cherie Claire Gabrielle
Rose e Emilie. Está sobre a mesa da cozinha. Há outra carta, também. De New
Orleans, sem endereço do remetente.
Depois que a mãe partiu, Gabrielle leu primeiro a carta das irmãs. Gozavam de
boa saúde e estavam com muitas saudade. Pegou então a outra carta, selada com
motivos elegantes ao redor da letra D. Ao abri-la, seu dia mudou. Como a luz do sol
rompendo no horizonte, seu coração sentiu-se infinitamente melhor.

Capítulo IV

Jean terminou de carregar os suprimentos em sua barcaça. Precisava de frutas


frescas e de carne para a longa jornada, e Antoine lhe fornecera tudo.
Quando amarrou a última caixa, à luz da aurora, deparou-se com Gabrielle. Sua
beleza natural era encantadora, mas não era quem Jean pretendia ver nessa terrível
manhã.
— Gabrielle, por favor, não torne esse momento mais difícil do que o necessário.
— Só queria lhe contar que sua filha me escreveu. Se estiver interessado, a
carta está em minha casa.
— O que Phyney disse? Ela está bem?
Gabrielle recusou-se a responder. Sorriu apenas e começou a caminhar para sua
casa.
— Droga, Gabrielle! O que Phyney contou?
Jean já havia passado um dia extra no posto. Sua embarcação e seus homens o
aguardavam. E se a notícia de sua presença em Attakapas se espalhasse, oficiais
seriam chamados para prendê-lo. Mesmo assim, precisava saber notícias da filha.

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Cherie Claire Gabrielle
Gabrielle colocou a carta sobre a mesa, contou até dez, depois foi à cozinha.
Encontrou Jean na porta de trás.
— Está sobre a mesa — contou-lhe. — Vou fazer café.
Jean estava furioso e frustrado por não poder partir. No entanto, Gabrielle não
se arrependia por retardá-lo. Preparou o café com esmero e arranjou uma bandeja
cheia de pães, dando tempo a Jean para ler a longa carta. Delphine contara tudo,
desde o momento em que Jean aceitara o desafio para o duelo. Contou sobre a mãe, e
como Louise Delaronde lamentava seu nascimento. Louise desmaiara ao ouvir a notícia
da morte de Mareei Prevost, adoecera e desde então, jamais deixara o leito. A menina
vivia solitária na casa, ansiando pelo retorno do pai.
Gabrielle suspirou. Se Jean pudesse levá-la e à filha, em sua escuna, para o
Caribe! Isso era impossível. Jean devia partir e Gabrielle precisava ficar perto da
mãe. Mais um último momento juntos e se despediriam.
Jean estava à frente da janela, observando o horizonte sombrio. Segurava a
carta, muito tenso, a dor estampada no olhar. Estar separado da filha estava
destruindo ambos.
— Preciso ir— sussurrou Jean. — Meus homens estão à minha espera.
Gabrielle abraçou-o e encostou a cabeça em seu peito. Nesse momento, raios
riscaram o céu e a tempestade desabou sua fúria. Viajar nesse tempo era impossível.
Jean beijou Gabrielle nos lábios. Foi um beijo insistente, faminto, exigente e
correspondido.
— Deveria partir amanhã ao nascer do sol — aconselhou Gabrielle.
O ribombo de um trovão sacudiu a casa e Jean suspirou, mas afastou a moça.
— Onde está sua mãe?
— A viúva Dugas teve um bebê. Mamãe foi ajudá-la. Vai ficar fora alguns dias.
Apesar da seca, o tempo continuava frio nas pradarias da Louisiana. Jean
prendeu a porta de trás e Gabrielle fechou as janelas.
— Quer que eu acenda um fogo? — perguntou Jean.
— Não é necessário.
— Se eu ficar, poderá acontecer algo muito importante entre nós, mon amour —
disse Jean aproximando-se, mas mantendo uma pequena distância entre ambos. —
Tenho algo que poderá prevenir que concebamos uma criança, mas...
— Então fique — pediu Gabrielle, sentindo o coração acelerar ao pensamento de
fazerem amor, de tornar-se íntima do homem a quem amava. — Quero isso. Eu o amo
— declarou ao vê-lo hesitar. — Se vai sair de minha vida para sempre, dê-me ao menos
este dia. Pare de se preocupar com meu bem-estar e só considere minha felicidade.
— E amanhã? — indagou Jean.

37
Cherie Claire Gabrielle
— Amanhã será outro dia. Não falaremos sobre isso até o sol nascer.
Jean segurou Gabrielle pelos braços e a levou ao quarto dela. Ela se sentou na
cama. Jean tirou o casaco, sentou ao lado e a abraçou, beijando-lhe o pescoço e
descendo em direção à abertura da blusa.
— Oh, Gabi — sussurrou, quando seus lábios alcançaram o vale entre os seios.
Começou por desabotoar-lhe o vestido, depois o corpete e jogou tudo sobre a
cadeira.
Gabrielle contemplava o peito viril, o corpo amplo, bronzeado, os músculos
firmes, desenvolvidos durante anos de vida no mar, o ventre liso. Jamais vira alguém
tão magnífico em sua vida. Sentiu uma corrente de energia sensual atravessá-la,
provocando calafrios por todo o corpo.
— Está com frio, mon amour? — perguntou Jean.
Gabrielle queria rir, mas estava assustada com seus pensamentos. A irmã Emilie
sempre dizia que ela pensava como um homem, e queria coisas que a vida não oferece
às mulheres. Estava sentindo emoções como uma mulher licenciosa. Porém, Emilie havia
encontrado paixão em sua vida. Por que era errado sentir desejo?
— Em que está pensando? — perguntou Jean, acariciando-lhe o pescoço e os
ombros nus.
O que ele pensaria se soubesse que seu corpo ansiava por sua união? Sempre
haviam compartilhado tudo, mas Jean aceitaria uma mulher com paixões tão ocultas e
intensas?
— Eu o quero — respondeu Gabrielle, decidindo ser honesta. — Quero tocá-lo,
mas sinto medo.
— De que tem medo?
— Pensava que apenas homens sentiam-se desse modo.
— Não, mon amour. Devemos sentir tudo juntos — respondeu Jean acariciando
seus seios.
Após um breve tempo, que pareceu uma eternidade, Jean começou a retirar
suas meias, beijando cada centímetro de suas pernas. Em seguida, retirou a saia e a
anágua. Em poucos segundos, Gabrielle ficou nua e sentiu um calafrio, devido ao
nervosismo. Jean cobriu ambos com um lençol, mas foi o calor de seu peito que
eliminou o calafrio.
Ao ser tocada, Gabrielle sentiu uma faísca atravessar todo o seu corpo.
Arqueou as costas e uma onda de euforia a inundou.
— Como vê, a paixão não é só dos homens — disse Jean.
— E quanto à sua paixão? — indagou ela.
— Tudo a seu devido tempo. Não vamos apressar as coisas.

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Cherie Claire Gabrielle
— Estou cansada de esperar — afirmou, oferecendo os lábios outra vez. — Não
sou paciente. Ouvi dizer que sempre dói na primeira vez, é verdade?
— Não sei — replicou Jean nervoso. — Nunca dormi com uma virgem antes.
Gabrielle não sentiu ciúme. Suspeitava que houvera muitas mulheres antes.
Jean recomeçou a beijá-la e a acariciar seu corpo devagar até ela sentir a
mágica de sua união. Sentiu o prazer aumentar como se estivesse navegando no
oceano, e cada onda em seu corpo, aumentava de intensidade, enviando o navio em
direção às estrelas.
— Oh, Gabi — pronunciou Jean em tom tão sedutor, que ela sentiu o corpo
retesar-se por inteiro.
Juntos dançaram em ritmo mútuo, até Gabrielle gemer alto e sentir-se
envolvida pela mais gloriosa sensação, como se tivesse chegado ao paraíso.
Outra vez Jean gritou seu nome, em êxtase, e ambos desfaleceram um nos
braços do outro. Ficaram unidos, beijando-se, acariciando-se, até finalmente serem
vencidos pelo sono.
À tarde, a chuva ainda batia nas janelas e um vento forte tentava atravessar as
paredes de cipreste da casa, anunciando a ocorrência de outra tempestade. Um trovão
despertou Jean.
Ao fitar Gabrieíle adormecida em seu peito, Jean desejou ficar nessa posição
para sempre. Jamais havia sentido tanta alegria com uma mulher, nem tanta plenitude.
— Está acordado?
— Não — gracejou Jean.
— Estou morrendo de fome — disse Gabrielle. — Vou buscar alguns pães e fazer
café fresco, se prometer não me olhar.
— Prometo — declarou Jean sorridente.
Gabrielle saiu da cama, vestiu-se apressada, mas percebeu Jean encarando-a.
— Mentiroso!
— Regra número um, Gabrielle, nunca confie num pirata.
— Regra número dois, Jean. Nunca aborreça a mulher que o alimenta.
Jean saiu da cama e se vestiu, tentando não pensar na separação iminente.
Pretendia aproveitar cada momento precioso. Foi para a sala e acendeu a lareira, pois
a casa estava ficando gelada. A tempestade trouxera tempo frio.
Gabrielle voltou da cozinha com passos leves. A tristeza havia desaparecido de
seus olhos. Colocou a bandeja no chão, sentou-se ao lado de Jean em frente à lareira e
encheu duas xícaras de café. Jean cortou pedaços de pão e os besuntou com geléia de
morango. Após saciarem a fome, aninharam-se num abraço afetuoso, apreciando o
calor do fogo.
39
Cherie Claire Gabrielle
— Há algo que preciso saber — disse Gabrielle.
— O quê?
— Você disse que havia um meio de nos impedir de conceber uma criança. O
que... — interrompeu-se ela hesitante.
— Intestino de ovelha.
— Como?
— É um velho segredo pirata. A viagem para as índias Ocidentais é muito longa e
os homens ficam muito desinibidos nos portos. Protegem-se para não serem
contaminados por doenças de mulheres menos respeitáveis.
Jean pegou um estojo estranho no bolso e o mostrou. Gabrielle olhou de relance,
mas logo abaixou os olhos.
— Os piratas carregam isso para todos os lugares?
— Gabrielle, está querendo saber se há outras mulheres, se é por isso que
carrego o estojo comigo?
Jean entendera a pergunta. Na verdade, convencera-se de que viera ao posto
apenas para ter notícias da família Gallant. Mas outras mulheres? Gabrielle era dona
de seu coração e de sua alma.
—Garanto-lhe, Gabi, nunca mais olhei para outra mulher desde que a conheci.
— Então por quê...
— Porque sou um tolo. Jurei que só vinha ao Attakapas para saber se você
estava bem e depois partiria. Porém, no fundo de meu coração, esperava revê-la uma
última vez. Reconheço que eu desejava que isso acontecesse, que encontraríamos
algum tempo para ficarmos sozinhos.
— Você me ama, não é? — Gabrielle sorriu com doçura.
Jean nunca fora bom com palavras. Ficou calado, sem saber o que dizer.
— Não precisa dizer nada. Delphine contou que você não é de muitas palavras no
que. se refere a afeto. É um homem de ação.
Um homem de ação? Jean sentiu-se pouco à vontade. Nesse momento não tinha
poder para proteger a única pessoa que dele necessitava.
— Escreva para Phyney — implorou ele. — Por favor, escreva-lhe e certifique-se
de que está bem e em segurança.
— Não se preocupe. Farei isso.
— Delphine é diferente. Não é como outras meninas. Não se sente feliz com
amigos de sua idade, nem se interessa por vestidos e danças. Quer navegar comigo.
— Entendo muito bem — afiançou Gabrielle rindo. — Vamos ter muito o que
conversar.

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Cherie Claire Gabrielle
Jean não perdeu tempo. Puxou Gabrielle para seu colo e começou a beijá-la. Sim,
era um homem de ação.
Recomeçaram uma exploração sensual. Gabrielle sentia-se extasiada, pois as
sensações que experimentara horas antes retornaram.
— Quer fazer amor outra vez? — sussurrou ela.
— Não, querida, é melhor não exagerar na primeira vez.
— Jean, há uma coisa que preciso lhe contar.
— O que é? — indagou Jean, percebendo a tristeza voltar aos olhos de
Gabrielle. — Você estava tão contente. O que a entristeceu?
— Fiz algo terrível — sussurrou Gabrielle.
— O que fez, minha querida?
— Sou culpada por ter separado meu pai de nós. — Gabrielle respirou fundo ao
se lembrar de que fora a causa da ruína familiar.
— Por que acredita nisso? — inquiriu Jean com estranheza.
Gabrielle lembrou-se do dia horrível na praia, onde as famílias foram levadas à
força para longe de seus lares. Marianne e as filhas aguardavam, na beira da água, a
chegada de Joseph, que ia ser solto junto com os outros homens encurralados na
igreja. Quando o avistaram na ribanceira, acenaram-lhe da praia.
—Havia muitos navios — explicou Gabrielle.— Muitos. Papai advertira para não
me aproximar da água, para ficar longe dos ingleses e de suas embarcações, mas eu
queria olhar melhor e me afastei. Mamãe ficou preocupada com meu desaparecimento
e saiu da praia com Emilie e Rose, à minha procura. Quando olhamos para trás, papai
havia sumido. Então forçaram-nos a entrar numa fragata, enviaram-nos a Maryland e
nunca mais o vimos.
—Não é responsável pela separação de sua família — declarou Jean com
firmeza.
— Como sabe? Você não estava lá!
—Não, eu não estava lá. Mas uma menina, de seis ou sete anos, no meio do caos,
não deve ser censurada por perder seu pai.
—Se eu não tivesse saído do lugar, como meu pai recomendara...
— Ainda assim ele teria se separado da família.
— Não acredito. Se não fosse por mim, todos nós teríamos conseguido nos
reunir.
— Gabi, você não é a única nessa situação. Há tantas famílias acadianas
separadas. Os ingleses enviaram seu povo para vários lugares da costa leste e ao
Caribe.

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Cherie Claire Gabrielle
Gabrielle queria acreditar, aliviar a dor que lhe pesava no coração. Marianne
repetira incontáveis vezes que ela não era responsável pela separação da família, mas
algo em seu íntimo afirmava o contrário. Mesmo nessa manhã, sabendo que a mãe não
podia ficar sozinha, queria ir embora com Jean. Isso provava como seus desejos eram
egoístas.
— A última coisa que papai me recomendou foi para me esquecer das
embarcações — contou Gabrielle, lágrimas rolando por sua face. — Pediu-me para
cuidar de minha mãe e ficar longe da água.
— Não posso eliminar sua dor nem trazer seu pai de volta. E sei que você não é a
causa da separação de sua família, minha querida.
— Mas quero ir com você!
— Querer deixar sua mãe e partir comigo prova que é uma má pessoa?
— Eu não deveria sequer pensar nisso.
— Não deveria é compartilhar sua cama comigo! — Jean riu nervosamente.
— Não lamento o que fizemos — declarou Gabrielle, pensando que talvez Jean
estivesse certo. Talvez as coisas fossem mais complicadas do que imaginava. Apesar
de continuar duvidando da própria inocência, sentia-se aliviada por confidenciar sua
dor.
Jean a beijou carinhosamente, deslizando os braços por suas costas. De
repente, ambos foram invadidos por um desejo avassalador e seus beijos se
intensificaram.
Gabrielle ainda estava sensível pela primeira relação, mas desta vez não sentia
medo, e entregou-se por inteira, multiplicando seu prazer. Foi uma união lenta e
completa, levando-os juntos ao auge.

Gabrielle sentiu a aurora aproximar-se antes de abrir os olhos. O ar denso que


pairava no quarto e o silêncio absoluto prenunciavam o nascer do sol. A cama a seu lado
estava vazia. Não havia sinal de Jean.
— Estou aqui — disse ele.
Estava sentado na beira da cama, trajado, calçando as botas.
— Ia partir sem se despedir? — indagou Gabrielle em pânico.
— Não, meu amor. Acabo de me levantar.
— Que horas são?
— Está na hora — respondeu ele.
— Vou fazer mais café

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Cherie Claire Gabrielle
Desta vez, vestir-se na frente de Jean foi natural, pois ele a levara a
ultrapassar um limiar. Seu coração pertencia-lhe para sempre.
Gabrielle foi à cozinha, imaginando como ia conseguir viver depois de sua
partida? De repente sentiu o vazio da solidão.
O dia estava clareando, embora o sol ainda não tivesse surgido no horizonte.
Sentaram-se à mesa e tomaram café em silêncio, tentando não se olhar. Se o
fizessem, a separação seria mais dolorosa.
— Nunca imaginei que um dia eu detestaria a luz do alvorecer. — Gabrielle
mordeu os lábios, tentando não chorar.
Jean levantou-se sem nada dizer, vestiu o casaco e estendeu a mão para
Gabrielle, ajudando-a a se levantar. Abraçaram-se, cada um saboreando a última
carícia.
Ao vê-lo partir, Gabrielle sentiu o sangue deixar seu corpo e sua energia se
desvanecer. A cabeça latejava pela tristeza da partida de Jean e por que jamais o
reveria. Seu corpo parecia vazio, derrotado, seu coração estava despedaçado. Precisou
se sentar.
Não, ordenou a si própria. Não estava pronta para desistir. Sentou-se à
escrivaninha, onde estava a carta de Delphine, Pegou um pergaminho e uma pena.
Respirou fundo, na tentativa de dispersar a dor que abalava seu coração, mergulhou a
pena na tinta e escreveu para a única pessoa que compreendia o significado de perder
o amor de Jean Bouclaire.
“Minha queridíssima Delphine, Há tanto a contar.”

Capítulo V

A sineta lembrava um dobre funebre, mas Delphine continuava imóvel.


— Delphine, sua mãe a está chamando outra vez — disse Carmeline. — Por que
você não a atende?
A casa estava silenciosa e apenas sons ocasionais das comemorações da terça-
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Cherie Claire Gabrielle
feira de carnaval irrompiam na rua. E o tilintar de uma sineta.
— É sua mãe, Phyney. Vá — exortou Carmeline.
Desde a manhã da notícia da morte de Mareei e de Jean ter sido declarado um
fora-da-lei, Louise se recolhera ao leito e não se levantara mais. Naquela mesma
manhã, Delphine parou de falar com a mãe. E ainda que o médico viesse três vezes por
semana, a menina persistia nessa atitude.
A sineta tocou outra vez, seguida por um grito de Louise chamando a filha pelo
nome.
Para manter a própria saúde mental e a dos criados, Delphine suspirou
derrotada e começou a subir os degraus.
A mãe sempre se fazia de doente quando precisava de atenção e esse era um
momento similar. A morte de Mareei não apenas arruinara suas chances de amor e
prosperidade como também interrompera o apoio financeiro de Jean. E criara um novo
escândalo na família. Louise não era mais bem-vinda à ópera, ao teatro ou a outras
reuniões sociais e ninguém voltara a visitá-la. Fazer-se de doente era a reação típica
de uma mãe melodramática. Esperava ser declarada inocente por causa da saúde frágil
e que os amigos perdoassem seu erro e trouxessem chás e bolos para alegrá-la. Mas
somente o médico vinha.
Delphine aproximou-se da cama e pegou a odiosa sineta das mãos da mãe.
— Onde estava? — queixou-se Louise. — Chamei por você a manhã inteira.
A palidez da mãe era mortal. Os olhos estavam congestionados, os lábios
rachados e inchados. Sua respiração era irregular e estava demasiado magra. Mas a
dor de Delphine tinha raízes profundas e era difícil falar à mulher que provocara toda
aquela situação.
— Por que não fala comigo? — implorou Louise, em voz fraca. — Não sou nada no
mundo. Preciso de você.
— Como necessita de mim, maman, quando não passo de um lamentável erro que
você cometeu uma noite? Ou é porque não há ninguém mais além de mim?
Louise tentou apoiar-se nos cotovelos para se erguer, mas suas forças falharam.
— Não era essa minha intenção — disse Louise com lágrimas nos olhos. — Eu a
amo. Sempre a amei. Não sabe disso?
— Você tem um modo estranho de demonstrar isso. — Lágrimas afloraram aos
omos.da menina, que tentou repeli-las.
— Eu queria fazer um bom casamento. Por isso deixei a França e vim para este
lugar horrível.
— Podia ter se casado com meu pai. — Delphine cruzou os braços e fitou a mãe.
— Você pensa que é simples. — Louise fechou os olhos. — Nós somos as últimas

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Cherie Claire Gabrielle
pessoas que deveriam se casar um com o outro. Terminaríamos por nos odiar.
Ao menos uma vez, a mãe falava a verdade. Jean e Louise viviam mundos à parte
de vários modos. Mas se Jean esteve disposto a aceitar sua responsabilidade, por que
ela recusou?
— Você gastou o dinheiro de minha educação em roupas — acusou Delphine,
tentando não deixar sua raiva aflorar. — Trouxe aquele homem desprezível para esta
casa para me instruir.
A mãe nada disse, dando a Delphine a oportunidade de desabafar. A ira a
queimava por dentro e irrompia como fogo.
—Precisamos vender metade dos objetos da casa para mantê-la com suas
rendas e babados, enquanto mal tínhamos o que comer.
—Havia uma razão. Eu estava tentando melhorar nossa situação.
— Você obrigava meu próprio pai a entrar à noite pela porta de trás da casa,
como um serviçal, enquanto entretinha homens que não serviriam sequer para limpar
suas botas.
— Não me deteste. Só estava tentando melhorar nossa vida. Eu a amo de
verdade.
— Não a odeio, maman. — Delphine chorava, apesar da raiva que ainda sentia.
— Desculpe-me.
Delphine ficou preocupada. A mãe não se defendia mais, não alegava inocência.
Seu tom de voz tornara-se distante e frio. Isso não era fingimento.
Louise estendeu a mão e Delphine a aceitou, sentindo os dedos frios, fracos e
sem vida. A mãe virou a cabeça como se cada movimento provocasse dor.
— Você cresceu — sussurrou Louise, notando que as mangas não cobriam os
pulsos da filha.
— Desde o Natal cresci quase três centímetros — contou Delphine, observando
a mãe com cuidado e percebendo que lhe era difícil engolir.
— Você ficou grande demais para seus vestidos — disse a mãe, devagar,
tentando sorrir. Então suas pálpebras tremularam, fecharam-se e Louise ficou imóvel.
Delphine sentiu um medo intenso, mas os olhos da mãe se abriram. Respirou
aliviada quando Louise a olhou.
— Se algo me acontecer, quero que vá para Paris, encontrar seu pai, o conde.
— Não — negou Delphine. — Não quero ir para a França.
— Esta casa lhe pertence — continuou Louise. — Mande avisá-lo e ele tomará
conta de você. É obrigação dele.
— Não quero deixar a Louisiana — declarou Delphine com teimosia.

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Cherie Claire Gabrielle
— Preciso dormir. — Louise soltou a mão da filha. — Conversaremos pela manhã.
Delphine sentiu duas mãos sobre os ombros levando-a para longe da cama, mas
resistiu. O que estava acontecendo? A mãe não podia estar tão doente.
— Está fingindo, não é? — perguntou a Carmelina
— Venha, menina. Vamos tomar nosso café — respondeu a criada.
As duas desceram, mas Delphine não queria se alimentar. Precisava conversar
com seu amigo, que lhe ofereceria conforto e proteção.
— Vou ao convento.
— Reze por sua maman — aconselhou Carmeline chorando.
Delphine saiu de casa e começou a caminhar pelas ruas em festa de New
Orleans. As pessoas estavam fantasiadas, rindo e desfrutando os ritos do Mardi Gras,
a terça-feira de carnaval. Diante da perspectiva de quarenta dias de sacrifício pela
frente, os residentes de New Orleans festejavam o dia, comendo e bebendo à
vontade. As folias anuais não afetacam Delphine, que só gostaria de ter uma máscara
para esconder as lágrimas.
— Qual seu problema? — irmã Marguerite indagou ríspida, quando a mocinha
chegou ao Convento das Ursulinas. A maioria das freiras eram generosas e gentis, mas,
por azar, Delphine fora designada para a mais intolerante.
— Olhe só sua aparência! — exclamou a religiosa estendendo um lenço. — Limpe
o rosto.
—Minha mãe está doente—contou Delphine, assoando o nariz com força.
— Então o que está fazendo aqui? Deveria estar em casa tomando conta de sua
mãe, ajudando-a a compreender os pecados de seu passado antes que seja demasiado
tarde.
— Preciso ver monsieur LeBlanc. — Delphine desejava correr de volta para casa,
para fugir dessa mulher horrível e de sua insistência de que ela era um produto do
pecado, mas precisava ver seu amigo, a única pessoa que a ajudava a chegar ao fim de
cada dia.
Monsieur LeBlanc gostava que a menina o chamasse de Parrain, a palavra
francesa para padrinho.
— Monsieur LeBlanc não dorme direito há várias semanas. Não está bem. —
Irmã Marguerite bloqueou a passagem de Delphine, fitando-a com dureza. — Não
permitirei que o aborreça.
Delphine queria argumentar, dizer o que pensava, mas precisava ver Parrain e
seu desafio poderia lhe custar essa oportunidade.
— Não quero aborrecê-lo — explicou calmamente.
— Você devia analisar sua vida, Delphine, quando conversar com monsieur

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Cherie Claire Gabrielle
LeBlanc. Muitas pessoas sofrem mais do que você.
Delphine sentiu-se culpada. Monsieur LeBlanc já sofrera bastante. Ele havia
chegado ao convento meses atrás, quase à morte, explicando que estava atravessando
o território para encontrar sua família. Delirando de febre, uma noite, tentara deixar
o convento, caíra e sofrera um ferimento na cabeça. Desde então, não conseguia
lembrar sua identidade e a razão pela qual estava em New Orleans. Por seu dialeto e
sotaque, presumia-se que fosse um acadiano viajando para a Louisiana à procura de
seus familiares. Passaram a chamá-lo de René LeBlanc, um dos nomes acadianos mais
comuns.
— Prometo que não o aborrecerei — garantiu Delphine.
A freira cedeu e Delphine atravessou o portão e entrou no pátio. Encontrou
monsieur LeBlanc no jardim, do lado de fora da enfermaria.
—Phyney, que bom vê-la! — cumprimentou Parrain, saudando a menina com um
beijo na testa.
Embora não pretendesse sobrecarregá-lo com seus problemas, ela começou a
chorar.
— O que foi, pequena? — indagou Parrain, levando a menina para um banco do
jardim para se sentarem. — É seu pai? Recebeu notícias?
À lembrança de Jean, Delphine começou a soluçar e enterrou o rosto na camisa
de Parrain.
— O que aconteceu? Conte-me.
— Minha mãe está muito doente. Achei que estava tentando chamar atenção,
mas acredito que esteja morrendo.
— Oh, pequena! Como posso ajudá-la?
—Já tem muitos problemas. Não quero que se preocupe comigo.
— Só porque uma pessoa tem problemas não significa que não haja espaço em
seu coração para ajudar outros — replicou Parrain.
Delphine fitou o homem de meia-idade, terno e generoso, ao qual se havia
afeiçoado desde o primeiro dia em que começara seu trabalho como voluntária no
convento.
— Lembrou-se de algo mais? — perguntou ela.
— Vejo imagens em meus sonhos, mas não consigo entendê-las. Quando
aparecem, sofro terríveis dores de cabeça. Mas nada faz sentido.
— Deve ser horrível não saber quem é.
— O pior é saber que eu deveria estar em algum lugar onde sou necessário, mas
não consigo colocar as peças do enigma no lugar certo. — Parrain suspirou, a tristeza
estampada no olhar.

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Cherie Claire Gabrielle
— Acabará entendendo. Tenho certeza — confortou Delphine.
— Ah,ia esquecendo — disse Parrain, animando-se. — Tenho uma surpresa para
você. — Podem ser notícias de seu pai, mas não entendo por que foi enviada para cá. —
Parrain tirou uma carta do bolso e a estendeu.
— É de Gabrielle! — exclamou Delphine sorrindo. — É do posto Attakapas.
— Gabrielle?
Por um momento, òs olhos de monsieur LeBlanc ficaram sombrios.
— Gabrielle é a noiva de meu pai. Vive na fronteira. Pedi-lhe para escrever para
cá porque minha mãe costumava esconder as cartas que meu pai me enviava.
— Leia — encorajou Parrain.
Delphine abriu o envelope.
“Minha queridíssima Delphine. Não consigo exprimir como sua carta me fez
feliz. Percebo, por sua escrita, que você é a jovem notável sobre quem seu pai tanto
fala. Sempre se refere com orgulho a sua querida Phyney.
Jean partiu há pouco, após ter arriscado a vida para me visitar uma última vez.
Está bem, mas se a saúde fosse determinada pelo estado do coração, eu diria que seu
pai está deprimido. Sente muita falta de você e nossa separação não foi fácil.
Escrever-lhe esta carta me dá forças porque sei que você compreende o que significa
perder alguém muito caro. E, em nosso caso, trata-se da mesma pessoa, não é”?
Parrain levantou-se e fitou as paredes do pátio. Azáleas estavam florescendo.
Logo o tempo ficaria quente e ensolarado, e a primavera explodiria em flores. Delphine
continuou a ler.
“Ainda não soubemos nada sobre meu pai. Todos os dias, minha mãe espera junto
ao bayoupor sua chegada. Mas até agora em vão. Não perde a esperança de que ele
retorne, mas agora, com a partida de Jean, pergunto-me se terei forças para
continuar esperando pelo retorno dos homens em nossa vida... Paciência nuncafoi minha
virtude. E receio muito por meu pai. Treze anos são um longo tempo para ficarmos
separados, e Maryland representa uma jornada muito grande para a Louisiana”.
— Ela é acadiana? — indagou Parrain ao ouvir as últimas palavras.
— Sim.
— Continue a ler, minha querida. Não se preocupe comigo. — Monsieur LeBlanc
começou a esfregar a testa, pois lembranças estavam surgindo em sua memória.
Delphine ficou preocupada, mas terminou de ler.
“Por favor, escreva-me, queridíssima Phyney, e prometo responder-lhe. Preciso
saber que está bem. Pode contar comigo se precisar. A qualquer tempo. Sua amiga,
Gabrielle Gallant”.
Algo deslizou de dentro do envelope e caiu no colo de Delphine.

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Cherie Claire Gabrielle
— Veja, é uma cruz como a que papai tem!
A menina pegou a cruz de carvalho, apreciando a maciez da madeira entre os
dedos, mas algo a sobressaltou. Parrain não parava de tremer, pois sua cabeça estava
doendo muito e seus olhos exprimiam alarme.
— Parrain, o que foi?
— Gabrielle... Ela tem irmãs, Rose e Emilie.
— Sim — confirmou Delphine. — Como sabe?
— Sua mãe se chama Marianne.
— Sim — sussurrou Delphine.
Parrain pegou a cruz que viera dentro da carta, depois tirou um pendente
debaixo de sua camisa. As cruzes eram idênticas.
— Um pregador em Maryland deu-me esta. Lembro-me agora. Contou que
Gabrielle fazia as cruzes para ajudar no sustento da família quando viveram lá.
— Mon Dieu! — exclamou Delphine. — O senhor é Joseph Gallant!
Parrain tentou se firmar apoiando-se nos braços de Delphine. Seu cabelo estava
desalinhado e os olhos desvairados.
— Elas estão em minhas terras. Na região Attakapas — disse ele ansioso.
— Sim — confirmou Delphine. — Estão a sua espera.
— Preciso ir para lá.
— Tem certeza de que está bem o suficiente?
— Precisb ir — declarou Joseph. — Devo partir hoje.
— E aonde vai, sr. LeBlanc? — A irmã Marguerite aproximou-se olhando para
Delphine com ar de censura. — O que essa menina fez para aborrecê-lo?
— Seu verdadeiro nome é Joseph Gallant e sua família se encontra na fronteira.
— Preciso ir para lá, irmã. — Parrain pôs a mão na testa e deu alguns passos
trôpegos em direção à porta.
A irmã Marguerite estalou os dedos e dois homens vieram segurar Joseph.
— Não! — gritou Delphine. — Ele é Joseph Gallant. Precisam deixá-lo partir. Sua
família o espera há muito tempo.
Parrain tentou afastar os homens, mas os dois eram muito fortes e o
arrastaram para dentro da enfermaria aos gritos e protestos.
— Deixe-o ir — pediu Delphine à irmã. — Ele precisa ir para casa. Sua família o
aguarda com ansiedade.
— Você precisa ir para casa! — A irmã Marguerite pegou a mocinha pelo
cotovelo e a levou para o portão. Depois a empurrou para a rua. — Já fez estragos

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Cherie Claire Gabrielle
suficientes por um dia!

Diante do portão de ferro, Delphine sentiu as lágrimas brotarem de seus olhos.


De repente, lembrou-se da cruz em seus dedos e sua imagem deu-lhe forças. Colocou o
pendente de Gabrielle no pescoço, fechou os olhos e rezou por orientação.
Uma vez Jean mencionara o nome de um homem, o procurador do marido de
Rose, que vivia em New Orleans e fora orientado para ficar atento ao retorno de
Joseph e para informar a família no momento em que ele fosse encontrado. Qual era
seu nome? Onde vivia? Delphine tentava se lembrar.
Rose havia se casado um homem chamado Coleman Thorpe. Se conseguisse
encontrar a casa desse procurador, ele poderia ajudá-la. Precisava tentar.
Após inquirir junto a vários soldados e mercadores, Delphine acabou
encontrando a casa. Bateu à porta de entrada e um homem bem-vestido surgiu,
fitando-a apreensivo.
— Desejo falar com o procurador do sr. Thorpe — pediu, endireitando o vestido
e ajeitando os cachos desalinhados.
— Por que está procurando esse homem?—indagou o gentleman.
— Acredito ter encontrado Joseph Gallant. — Delphine respirou fundo.
— Por favor, entre — pediu o homem.
Ela o seguiu até o segundo andar, onde havia um escritório confortável, com
prateleiras repletas de livros e um fogo aceso na lareira.
— Posso lhe oferecer algo?
Delphine negou com um gesto de cabeça, preocupada. Estava sozinha no
aposento de um desconhecido.
— Beba — pediu o homem, oferecendo-lhe um copo de água. — Sente-se. Parece
que vai desmaiar.
— Desculpe-me, senhor. Tive um dia difícil.
O homem sentou-se à frente de Delphine e a examinou. A mocinha sentia-se
pouco à vontade no vestido apertado, o nariz escorrendo e os olhos inchados por ter
chorado.
— Meu nome é Michel Bernard — explicou o desconhecido. — Sou o procurador
de Coleman Thorpe. Conhece sua família?
— Sim, meu pai é Jean Bouclaire e está noivo de Gabrielle Gallant.
— Conheci o capitão Bouclaire.
— Tenho ajudado as freiras no Convento das Ursulinas e lá encontrei um homem

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Cherie Claire Gabrielle
chamado LeBlane. No entanto, esse não é seu verdadeiro nome. Até há pouco não se
lembrava quem era. Bateu a cabeça uma noite e esqueceu tudo.
— E acredita que esse homem seja Joseph Gallant?
— Ele usa uma cruz como esta, que veio dentro de uma carta que recebi hoje de
Gabrielle. Ele se lembrou de tudo ao ver a cruz, inclusive dos nomes de Rose, de Emilie
e da esposa.
— Onde está esse senhor? — Michel levantou-se, inteiramente convencido.
— No convento. Não querem deixá-lo partir. Alegam que é insano.
Michel dirigiu-se a uma mesa e pôs-se a escrever algo sobre um pergaminho,
enquanto Delphine lhe dava mais detalhes. Depois chamou seu criado e lhe entregou a
carta.
— Esta carta é para o sr. Thorpe — explicou o procurador. — Vou ao convento
ver o que posso fazer.
— Obrigada, sr. Michel — agradeceu a menina aliviada.
— Vá para casa, mademoiselle — aconselhou ele com gentileza. —Mandarei
avisá-la tão logo essa situação fique esclarecida.
Michel acompanhou-a até sua casa e depois foi em direção ao convento. Pela
primeira vez, nesse dia, Delphine sentiu esperança.
Entretanto, ao entrar na casa, o sentimento desapareceu. Carmeline estava na
entrada, chorando, e o médico estava ao pé da escada conversando com um padre.
Quando perceberam sua chegada, todos a olharam consternados.
— Não! — gritou Delphine.
— Lamento, querida, mas sua mãe acaba de falecer — contou o padre,
aproximando-se e colocando a mão em seu ombro para confortá-la.
De repente, não havia lágrimas nem dor. Seus joelhos cederam e Delphine
começou a cair no chão, deixando a escuridão levá-la aonde nada podia magoá-la.
Mas antes de desmaiar, fez uma súplica.
— Papai, volte para mim!

Era uma bela manhã de primavera. Após uma noite de tempestade violenta,
soprava uma brisa suave. O sol brilhava sobre o rosto de Philibert. Os dias frios
haviam terminado.
Phil fitou as ondas de cristas espumosas que arrebentavam na praia da ilha. nas
últimas duas semanas havia acumulado um belo lote de contrabando. Pretendia vender
a mercadoria nas plantações fora de New Orleans, talvez até se aventurar na cidade.

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Cherie Claire Gabrielle
Já sentia as moedas tilintarem no bolso.
A manhã também produzira uma aquisição interessante, que não daria lucro, mas
seria valiosa de outro modo.
Phil entrou na casa modesta de Jean e deparou-se com a vista habitual. Mobília
fora de lugar, utensílios de cozinha imundos e roupas sujas.
— Você é uma desgraça! — acusou Phil, batendo com o pé na rede e despertando
Jean de seu estupor alcoólico. — Quando tomou banho pela última vez? No Natal?
— Vá embora — resmungou Jean.
— Já cansei de vê-lo mergulhado em autopiedade. Vou lhe fazer um café.
— Vá embora!
— Nós deveríamos estar nas índias Ocidentais! E você só faz ficar largado aí,
nessa imundicie.
— Não tenho forças para deixar o território — alegou Jean. Phil compreendia.
Além de Phyney havia também Gabrielle.. —Bem, ao menos as autoridades não o
encontraram aqui. Ainda não descobriram nossa ilha. Antoine tem razão. Você pode
entrar e sair do interior da região e ninguém dirá uma palavra. Particularmente se
você levar aquela caixa de rum Henri Chevalier que pegamos em Barbados.
Phil lamentava pelo amigo. Gabrielle era a primeira mulher que tocara o coração
de Jean. Perder as duas pessoas mais significativas na vida era dor demais para um
coração.
— Lembra-se de Jacques Boutté? — indagou Phil. — Aquele fuinha medroso que
queria se juntar a nós?
— Sim, lembro-me — replicou Jean impaciente.
— Pois esteve aqui esta manhã. Veio vender-me contrabando.
— O que Boutté teria para vender? — indagou Jean perplexo.
— Boutté está decidido a se tornar um pirata — continuou Phil. — Navegou em
seu deplorável barco até o Mississippi e atirou no primeiro navio que encontrou.
— Não é possível! Atirou num navio espanhol!
— E o afundou! — Completou Phil.
Ao ouvir a notícia, Jean começou a rir
— Ninguém ficou ferido — explicou Phil. — Acho até que não foi intencional. O
tolo navegou em direção à escuna espanhola, foi pego por uma corrente do rio e colidiu
de frente com a embarcação. A proa foi atingida e o navio afundou.
Os dois homens caíram na risada.
— Mas o melhor ainda está para vir.

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Cherie Claire Gabrielle
— O que mais o idiota fez?
— Tentou pilhar a escuna — contou Phil. — Mas como o barco afundava muito
depressa, a única coisa que ele conseguiu agarrar foi este fardo de correspondência,
tecido para roupa feminina e um barril de açúcar.
— Então agora o tolo está fugindo dos espanhóis — concluiu Phil. — Quer se
juntar a nós, pois agora se considera um pirata.
— Você não comprou isso de Boutté, comprou? — Jean fitava o fardo nas mãos
de Phil.
— É correspondência para os postos. Acho que podíamos fazer algo pelo pessoal
da fronteira e levar-lhes o correio.
— Como assim?
— Seria um meio de quebrar sua melancolia — alegou Phil.
— Impossível. Perdi tudo o que me era caro!
— Entendo. Eu estava lá, lembra-se?
— Não, você não compreende. Nunca o censurei por nada e jamais o farei —
afirmou Jean.
— Mas se, naquele dia, você tivesse uma testemunha de peso, alguém cuja
reputação...
— Vamos mudar de assunto.
Phil abriu o fardo e jogou as cartas sobre a mesa.
Jean aproximou-se e começou a procurar por uma carta da filha. Mas encontrou
um envelope endereçado a Coleman Thorpe, a cuidado do posto Attakapas.
— É para o cunhado de Gabrielle. Deve ser do procurador que entraria em
contato com a família assim que tivesse alguma informação sobre Joseph Gallant. Essa
informação pode ser importante. Faça a tripulação se preparar para partirmos dentro
de uma hora.

Marianne fitou o plácido bayou a sua frente. Como a vida a levara a esse lugar?
Apesar de tantos anos de separação, ainda sentia a mão de Joseph na face e
lembrava-se do som de sua risada. Talvez os moradores locais estivessem certos e ela
estivesse perdendo a razão.
Não podia continuar desse jeito. Se Joseph não retornasse, então que Deus a
levasse e acabasse com seu sofrimento. Não aguentava mais esperar.
Mas havia Gabrielle. Suas outras filhas estavam casadas e felizes. Já fazia mais
de um mês da partida de Jean e cada dia Gabrielle ficava mais tri ste.

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Cherie Claire Gabrielle
Nesse momento a filha apareceu a seu lado.
— Trouxe-lhe o almoço.
Gabrielle ofereceu à mãe um cesto com maçãs e pães. Nenhuma das duas sentia
o menor apetite.
— Não podemos continuar assim — declarou Marianne.
— Que escolha temos? — Gabrielle apontou o bayou.
— Não aguento mais esperar. Às vezes acho que vou morrer. Vamos para casa.
As duas afastaram-se do bayou e a primeira coisa que Marianne fez foi
preparar um banho para a filha que, nas últimas semanas, pouca importância dava à
aparência. Sem mencionar que ficava o dia inteiro na cama, como desculpa para não
aceitar visitas e para declinar os convites de Juliette Vincent.
Durante o banho, Gabrielle contou o que acontecera entre ela e Jean em sua
última noite juntos. Fazer amor era algo precioso, que se guardava para a noite de
casamento, Marianne olhou para a filha, mas seus olhos não a condenavam. Se fosse
tão jovem como Gabrielle e soubesse que ela e o amado iam ficar separados em exílio,
teria feito o mesmo.
— Por que detesta tanto seus cabelos? — perguntou a mãe enquanto os lavava.
— Por que demoram uma vida para secar. Gostaria de ter nascido homem. Iria
para New Orleans ou para as colônias inglesas procurar papai, em vez de ficar aqui
como uma filha inútil.
—Não é inútil. Tem sido minha salvação — afirmou Marianne.
Gabrielle foi para a varanda para secar o longo cabelo ao ar livre. Sentou-se num
banco, fechou os olhos e deixou-se aquecer pelo sol.
Talvez tivesse chegado a hora de parar de sentir pena de si própria. Jean e
papai não retornariam, mas Emilie e Rose sim, com suas famílias. Gabrielle sentiu tanta
dor à lembrança de Jean que teve medo de seu coração parar. Como fazer para
esquecê-lo?
De repente, sentiu uma sombra passar sobre seu rosto e, por um momento,
Gabrielle imaginou ser uma nuvem. Então, sentiu uma presença. Ao abrir os olhos,
achou que Jean estava em pé a sua frente. Mas isso era impossível, pois ele devia
estar a caminho das índias Orientais. Fixou o olhar e a imagem tornou-se real. Era
Jean.
— Onde está sua mãe?
—Dentro de casa — explicou Gabrielle à aparição.
Estaria ela vendo coisas como sua mãe? Jean sorriu e estendeu a mão para
ajudar Gabrielle a levantar-se. Ela fechou os olhos e entregou-se à maravilhosa
sensação do abraço dele.

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Cherie Claire Gabrielle
— Jean? — indagou Marianne entrando na varanda.
Então Gabrielle acreditou que não estava sonhando.
— Tenho algo para lhes mostrar — disse Jean depois de cumprimentar
Marianne.
Entraram na casa, mas Jean não soltou a mão de Gabrielle e a manteve perto de
seu braço.
— Interceptei uma carta — explicou ele. — É uma longa história, mas é do
procurador de Coleman, em New Orleans.
— A pessoa que nos faria saber quando Joseph fosse localizado. — acrescentou
Marianne.
Abriram a carta após decidirem que, se fosse algo pessoal para Coleman, ela
seria outra vez selada com um pedido de desculpas pela indiscrição.
Gabrielle sentia medo de ler. E se fossem más notícias? Mas, encorajada por
Jean, abriu a nota que estava dentro do envelope e leu rapidamente o conteúdo.
— Meu pai está vivo! — Pela primeira vez, em muito tempo, Gabrielle sentiu
alguma esperança. — Foi visto em New Orleans.
Jean pegou a carta e a leu enquanto mãe e filha se abraçavam chorando.
— Joseph foi ferido e perdeu a memória — acrescentou Jean. — As freiras
Ursulinas estão tomando conta dele. Minha filha o encontrou — completou Jean
surpreso.
Marianne perdeu os sentidos e foi amparada por Jean que a levou para uma
cadeira.
— Oh, maman. — Gabrielle ajoelhou-se diante da mãe e pegou-lhe as mãos. — Eu
devia ter compreendido. A visão que tive no barco naquele dia, foi de Delphine e de
papai. Não compreendi na ocasião, mas algo me dizia que ele estava a salvo.
Jean pôs-se a andar pela sala, agitado, mas ao mesmo tempo aliviado pelas
notícias. Era estranho ter sido sua filha a encontrar Joseph, mas isso seria
esclarecido no devido tempo.
— Vou partir imediatamente para New Orleans — decidiu ele. — Encontrarei
Joseph e o trarei de volta.
— Vou com você — declarou Gabrielle, levantando-se.
— Não, mon amour, deve ficar aqui. Não me demorarei, prometo.
— Não pode me deixar aqui.
Jean quis argumentar, mas Marianne levantou-se.
— Você vai precisar de alimentos para a viagem, Jean. Vou buscar provisões na
cozinha.

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Cherie Claire Gabrielle
Gabrielle e Jean discutiram. Ela, desafiadora, afirmava que iria a New Orleans.
Ele não aceitava essa decisão. Continuaram a se enfrentar até Marianne aparecer
dizendo que Jean tinha razão e que precisava da filha para lhe fazer companhia.
A moça sentiu o mundo desabar e foi para seu quarto. Não sentia nada, exceto a
escuridão envolvê-la. Deitou-se, entorpecida pela dor.
Alguns minutos depois, Marianne entrou no quarto e colocou algo na cama.
— Levante-se, Gabrielle. Temos trabalho pela frente.
A moça sentou-se, sentindo-se culpada e envergonhada por sua atitude.
— Jean tem algum lugar que possa servir como esconderijo em sua barcaça? —
perguntou Marianne.
— Tem um compartimento em sua cabine, onde guarda alimentos. Por quê?
Gabrielle olhou afinal para os objetos sobre a cama. Uma camisa e calças
masculinas, provavelmente roubadas do varal do vizinho. Viu que a mãe segurava uma
tesoura.
— Acho que está na hora de realizar seu desejo — disse Marianne.

Capítulo VI

—Eu sabia que Jean não concordaria em levá-la — disse Marianne, enquanto
cortava o cabelo da filha. — Por isso concordei que você devia ficar comigo.
Gabrielle estava em silêncio, ouvindo o barulho da tesoura cortando suas longas
mechas de cabelo negro. Sentia-se consumida pela culpa, embora o coração batesse
acelerado ao pensamento de seguir Jean.
— Sei em que está pensando — afirmou Marianne. — Acha que deveria ficar aqui
comigo.
— Foi o último pedido de papai para mim — sussurrou Gabrielle.

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Cherie Claire Gabrielle
— Bobagem, — Marianne estendeu-lhe um espelho. — Disse para tomar conta de
mim, não para desperdiçar sua vida.
Gabrielle fitou sua imagem, mas só conseguia pensar nas palavras da mãe.
— Não estou desperdiçando minha vida ficando a seu lado — insistiu.
— Tive uma visão — disse Marianne com firmeza, segurando os ombros da filha.
— Vi seu pai chegar por aquele bayou. Emilie e Rose estavam a meu lado, mas você não.
Já pensou na razão disso?
Gabrielle já havia pensado, mas abanou a cabeça.
— Porque você estava no barco, trazendo-o para cá.
Antes de Gabrielle ter tempo para digerir essa informação, Marianne puxou seu
cabelo para trás das orelhas e colocou um chapéu em sua cabeça.
— Não era para você esperar, filha. Você é uma mulher de ação e está na hora
de assumir essa condição.
Marianne nada mais disse. Pegou uma grande bolsa a tiracolo e saiu para fora na
noite sem luar. Gabrielie a seguiu, ouvindo o farfalhar das saias da mãe pelo caminho
que conheciam tão bem. Quando chegaram ao bayou, Gabrielle avistou a barcaça de
Jean na margem.
— Tenha cuidado, minha querida — pediu Marianne, abraçando a filha. — Eu amo
muito você.
— Também a amo, maman. Prometo trazer papai para casa — sussurrou
Gabrielle, sentindo medo pelo que enfrentaria e pelo receio de fracassar em cumprir a
promessa.
— Esconda-se — disse a mãe ao ouvir um barulho vindo da barcaça e dando um
passo para trás.
Gabrielle escondeu-se entre as árvores próximas ao barco.
— Jean! — chamou Marianne.

Gabrielle observou Jean sair do barco e conversar com a mãe na praia. Os dois
se falaram um momento e subiram pela trilha sumindo de vista. Gabrielle deslizou a
bordo, depois entrou na cabine. Abriu um pequeno compartimento onde Jean guardava
alimento e vinho. Havia apenas uma garrafa quase vazia dentro. Arrastou-se para
dentro do cubículo e precisou dobrar o corpo para se acomodar, mas estava resolvida
a seguir Jean para o golfo.
Ouviu vozes outra vez, e a barcaça começou a se movimentar, Gabrielle fechou
os olhos e forçou-se a dormir, embora sentisse cãibras e o cheiro a nauseasse. Depois
do que pareceram horas de desconforto, adormeceu.

57
Cherie Claire Gabrielle
Quando despertou, a barcaça estava parada e o ar parecia mais leve. Um
pequeno raio de luz se filtrava através da parede. Gabrielle prestou atenção aos sons
provenientes do exterior, abriu a porta do compartimento e se viu novamente na
cabine.
Era dia, mas algo escondia a luz do exterior, mantendo a cabine escura.
Gabrielle tentou sentar-se, mas a dor nas pernas era martirizante. Estendeu-as para
forçar o sangue a circular. Necessitava sair dali.
Alcançou a porta de entrada da cabine e a abriu. Ramos de palmeira ocultavam a
barcaça contra invasores.
Com cautela, Gabrielle abriu caminho através da camuflagem. Precisou se
arrastar por causa das cãibras nas pernas. Alcançou a proa e, finalmente, pôs os pés
na lama perto da margem. Isso aliviou a tensão dos músculos de seu corpo. Olhou ao
redor para descobrir onde estava.
Sentiu uma brisa, ouviu o som de pássaros, mas, a sua frente, havia apenas
terras pantanosas. Lutando contra o medo de atravessar os charcos, reuniu toda a sua
coragem e caminhou por uma pequena trilha. Em diversas ocasiões o solo úmido cedeu
e duas vezes quase torceu o tornozelo na lama esverdeada.
Continuou caminhando, preocupada. Não sabia aonde estava indo, talvez
estivesse penetrando mais no pântano, mas a brisa era cada vez mais forte e havia
algo diferente no vento. Seria sal?
Finalmente, quando já estava acreditando ter se perdido, a vegetação terminou
numa praia. A sua frente, com o sol se pondo a oeste, avistou a Cote Blanche Bay, as
águas brilhantes do golfo do México e a mais bela escuna ancorada a distância.
Gabrielle ajoelhou-se na praia, fechou os olhos e desfrutou o vento marítimo
beijando sua face. Não via a hora de subir a bordo do La Belle Amie, navegar para New
Orleans e sentir o vento do golfo nas costas,
— O que temos aqui, um pregador?
Gabrielle levantou os olhos e viu dois homens a sua frente, um deles sem vários
dentes e o outro muito malcheiroso.
—Por que está rezando? Talvez sejamos a resposta a suas preces.
Os dois desataram a rir e Gabrielle sentiu calafrios. Teria sido reconhecida
como mulher? Usava calças longas e uma camisa larga, que escondia seus atributos
femininos. E um chapéu cobria seu rosto.
— Preciso falar com o capitão Bouclaire — disse, tentando falar em voz
profunda.
— Para quê? — Os dois continuaram a rir. — Espera servi-lo?
— Tenho muita experiência em veleiros. Quero ser contratado por Bouclaire.
— Há anos o capitão não contrata ninguém.
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Cherie Claire Gabrielle
— Mas se está procurando trabalho, podemos dar um jeito — acrescentou o
malcheiroso.
Os dois deram uma gargalhada sinistra.
— Sim, rapaz — disse o desdentado. — Podemos lhe ensinar alguns truques.
— Como se chega ao navio de Bouclaire? — insistiu Gabrielle.
— O único jeito para chegar lá é a nado — disse o desdentado em tom
ameaçador.
- Gabrielle continuou recuando para a água, avaliando a distância entre a praia e
a escuna. Era um trecho grande, mas possível.
— Venha cá, rapaz — disse o malcheiroso. — Só dói na primeira vez.
Gabrielle não entendia a que os homens se referiam. Mas pressentia o perigo.
Deu alguns passos para trás, tirou os sapatos e os colocou dentro da bolsa a tiracolo.
Depois amarrou a bolsa ao redor da cintura.
— O que vai fazer? Nadar? — inquiriu o desdentado com um sorriso diabólico.
— Você disse que era o único meio de chegar lá. — Gabrielle tirou o chapéu e o
deslizou para dentro do cinto. Virou e começou a nadar furiosamente, para longe dos
homens que gritavam na praia. Mas a meio caminho, ela percebeu que a distância era
muito maior do que calculara. Começou a sentir cãibras nas pernas, ainda doloridas
pelo confinamento na barcaça. Forçou-se a continuar nadando. Seus braços se
rebelavam duplicando a dor nas pernas.
Gabrielle não desistia. Estava perto. Já enxergava a escada de cordas da escuna
pendurada na borda. Em poucos minutos chegaria. Tinha de conseguir.
Finalmente, sentiu a corda entre os dedos. Segurou-se com firmeza e soltou o
corpo. Descansou a cabeça e sentiu o movimento das ondas enquanto tentava controlar
a respiração. Receando ser surpreendida, tirou o chapéu da cintura e o colocou na
cabeça.
Depois de descansar alguns minutos, começou a subir. Cada músculo protestava,
todo o corpo doía, mas ela se forçava a prosseguir. Precisava ser cuidadosa, tinha de
deslizar a bordo sem ser vista.
Mas um pouco antes de sua cabeça alcançar a borda da escuna, dois braços
enormes a agarraram pelos ombros e a puxaram para o lado. Com a mesma força, um
homem robusto a deixou cair sobre o convés.
— Que é isso? — alguém vociferou.
À frente de Gabrielle estavam duas botas de couro, mas não eram as de Jean.
Por um momento, imaginou estar no navio errado, mas lembrou-se da descrição de
Delphine e teve certeza de que era a escuna certa.
— Levante-se, ratazana — ordenou a voz.

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Cherie Claire Gabrielle
Gabrielle tentou se levantar, mas suas pernas não obedeceram.
— Disse para se levantar — repetiu a voz.
Gabrielle apoiou-se na amurada e conseguiu ficar em pé. Ao espreitar sob o
chapéu, avistou um homem do tamanho de Jean.
— Quem é você? — inquiriu o desconhecido.
— Estou à procura de trabalho — tartamudeou a jovem.
Diversos homens começaram rir. A maior parte da tripulação havia se juntado
ao redor.
— Não contratamos ratazanas — replicou o homem alto. — Acho que vai ser um
longo nado até a praia.
— Não — gritou Gabrielle, — Foi difícil chegar aqui. Não conseguirei voltar
— Quem pediu para nadar para cá? — gritou um membro da tripulação enquanto
os outros continuavam a rir.
—Devem ter-lhe contado que não contratamos rapazes em nosso barco. Aliás,
não contratamos ninguém —disse o homem, aproximando-se com olhos frios e
irritados.
— Por favor — pediu Gabrielle, rezando para que sua voz feminina não a
delatasse. — Preciso ir a New Orleans.
— O que o faz pensar que vamos para New Orleans?—inquiriu o homem,
retrocedendo.
Gabrielle sentiu medo por sua vida e lembrou-se que ninguém devia saber para
onde estavam indo. Eram contrabandistas, homens com a cabeça a prémio.
— Por favor, senhor — pediu, percebendo que só lhe restava mesmo enfrentar
Jean e sua ira. — Devo falar com o capitão Bouclaire.
O desconhecido tirou uma longa faca da cintura e a apertou contra o pescoço de
Gabrielle.
— Neste barco matamos espiões — ameaçou. — Agora, a menos que queira ser
amarrado ao mastro e ter suas vísceras à mostra, conte-me onde conseguiu essa
informação e quem lhe pagou para vir a este barco.
Gabrielle sentiu a lâmina fria na pele e de repente todas as dores
desapareceram de seu corpo.
— Ninguém, senhor. Sou amigo de Jean.
— Não queira me enganar! — O homem aproximou a faca mais perto da pele,
fazendo-a estremecer.
— Contei a verdade. Pergunte-lhe!
— Maurice, vá buscar o capitão — gritou o homem para um tripulante, antes de

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Cherie Claire Gabrielle
dar um passo para trás e, com um sorriso astucioso, guardar a faca. — Daqui a pouco
vamos concluir este embuste.
Estou indo de mal a pior, pensou Gabrielle enquanto esperava Jean chegar. Seria
preferível uma faca na garganta a enfrentar sua fúria. Mordeu o lábio sentindo-se
como ura homem condenado à morte e à espera de ser enforcado.

— O que é isto? — inquiriu Jean ao chegar.


— Esta ratazana alega que o conhece — explicou o homem alto.
— Não conheço nenhum rapaz — replicou Jean.
— Ele acha que estamos indo para New Orleans — contou um tripulante.
Seguiu-se um silêncio mortal e Gabrielle fechou os olhos aguardando o momento
fatal.
— Por que se interessa por nós? — indagou Jean zangado.
Gabrielle engoliu em seco, receosa de levantar os olhos.
— Olhe para mim, rapaz — ordenou Jean.
Era agora ou nunca, pensou Gabrielle, Mais um minuto e poderiam jogá-la fora
da escuna. Levantou a mão devagar, tirou o chapéu e olhou para Jean. Este ficou
chocado.
— Por favor, não fique zangado comigo — pediu a moça.
Jean começou a proferir obscenidades enquanto Gabrielle esperava que sua
fúria se acalmasse. Finalmente, ele agarrou-a pelo cotovelo e a levou para longe dos
homens, que fitavam a cena com estranheza. Jean levou-a para sua cabine, embaixo do
convés e bateu a porta com força ao fechá-la.
— Droga! O que tem na cabeça? — gritou ele indignado.
— Quero ir com você.
— Acho que deixei bem claro...
— Sim, deixou perfeitamente claro — retrucou ela, igualmente furiosa. — Você
sempre deixou bem claro como minha segurança é mais importante do que minha
felicidade.
— Meus homens quase a mataram. Isso não significa nada? Só Deus sabe o que
teria acontecido se você tivesse se deparado com alguns dos homens que trabalham no
porto.
Gabrielle lembrou-se dos dois homens na praia e precisou reconhecer que Jean
tinha razão..Mas isso não importava. Queria ir com ele, ajudá-lo a encontrar o pai.

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Cherie Claire Gabrielle
— Você precisa de mim — insistiu ela.
— E sua mãe? Deve estar morrendo de preocupação.
— Foi idéia de minha mãe.
— E espera que eu acredite nisso?
— Quem acha que cortou meu cabelo?
— Você é louca. As duas são loucas — vociferou Jean.
— Bem, isso não é novidade. Todos sabem que as mulheres Gallant
enlouqueceram.
Seguiu-se um longo silêncio. Gabrielle virou-se para olhar Jean, em pé, os braços
cruzados contra o peito, franzindo a testa e rangendo os dentes.
— Olhe a seu redor — disse ele em tom solene. — Acha que minha vida é uma
grande aventura! É nisso que se envolveu.
Gabnelle olhou a cabine na popa, com escotilhas e vigias que permitiam a entrada
de uma brisa suave. No centro havia um leito de mogno coberto com lençóis de seda.
Gabrielle não resistiu à vontade de sorrir e olhou para Jean, fazendo-o saber que era
esse o tipo de vida que desejava.
— Mulher teimosa — acusou ele, abanando a cabeça. — Um dia vai se
arrepender.
— Você também? — indagou temerosa.
— Há roupas naquela arca — disse-lhe, evitando a pergunta. — Troque-se.
Voltarei dentro de uma hora.
Saiu batendo a porta.
Gabrielle sentia calafrios por causa das roupas molhadas e seus músculos doíam
por ter nadado uma grande distância. Olhou-se no espelho e ficou chocada com sua
aparência. Por um momento sentiu-se insegura. Teria tomado a decisão certa ao impor
sua presença a Jean? Endireitou-se resoluta. Não ia esmorecer. Precisava encontrar o
pai. Devia acompanhar Jean a New Orleans. Ia se limpar, trocar de roupa e o faria
compreender.
Encontrou roupas femininas no fundo da arca, embaixo de camisas e calças.
Havia um vestido, uma anágua e uma capa curta. Tirou as roupas molhadas e se trocou,
tornando-se uma mulher outra vez. O vestido era de tamanho muito pequeno e os
botões não fechavam, mas a capa curta permitia esconder a parte aberta atrás da
saia. Como não havia meias nem sapatos, decidiu ficar descalça. Considerando tudo,
sentia-se metade mulher.
Passou o tempo restante tentando secar o cabelo e penteá-lo de modo atraente,
mas a tentativa foi infrutífera. As mechas escuras, espessas, caíam à altura dos
ombros, cacheando nas pontas em direção ao queixo. Nenhuma mulher jamais

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Cherie Claire Gabrielle
apresentara essa aparência.
Ouviu vozes no convés, depois passos tevando à cabine. Uma batida na porta e
logo em seguida Jean entrou acompanhado do homem alto e de um padre.
— Gabrielle Gallant — apresentou Jean. — Philibert Bertrand e padre Freleaux.
A moça fez uma mesura, mas nada disse. Por que Jean trouxera um sacerdote?
— Tem uma Bíblia? — perguntou o religioso.
Jean foi até a arca, lançando um olhar sarcástico para Gabrielle ao passar a seu
lado. Pegou uma velha Bíblia e a estendeu ao padre.
— Bem — disse o padre Freleaux. — Vamos começar.
Foi somente quando o sacerdote iniciou a cerimônia de casamento que Gabrielle
compreendeu a intenção de Jean. Este só a fitou quando o padre perguntou o nome
completo da noiva.
— É isso o que quer? — indagou nervosa.
— Não importa o que quero. Onde acha que vai dormir esta noite? Está sozinha,
num barco cheio de homens. Não serei acausa de sua ruína.
Gabrielle começou a objetar que não planejara forçá-lo a se casar, mas os olhos
de Jean se suavizaram e ele pediu ao padre para continuar. O religioso aguardava e
até o homem alto e tenebroso, que tentara cortar-lhe, parecia fitá-la com desprezo.
— Seu nome é Gabrielle Gallant — afirmou Jean.
A moça sentiu lágrimas aflorarem aos olhos, mas encontrou força e vontade
para afastá-las.
— Sou Gabrielle Gallant de Grand Pré, Nova Escócia.
Quando chegou sua vez, Jean enunciou uma longa lista de nomes aristocráticos,
que deviam ter passado em sua família por gerações. Jean falava pouco sobre sua
origem na França. O que pensariam seus familiares sobre seu casamento com uma
pobre acadiana com cabelo apenas cobrindo o pescoço?
O padre iniciou a cerimônia habitual, porém Jean o interrompeu várias vezes,
instando-o a acelerá-la.
— A maré não espera — explicou ao padre.
Os noivos trocaram votos e assinaram os nomes na Bíblia.
— Onde está seu anel? — indagou Jean enquanto Gabrielle assinava o nome.
A jóia de esmeralda estava presa numa tira de couro ao redor do pescoço, ao
lado de uma cruz de madeira. Jean pegou a jóia e a colocou no dedo anular da mão
esquerda de Gabrielle. Durante o breve contato ficou claro que ainda estava furioso.
Philibert assinou a Bíblia como testemunha, depois se endireitou e ofereceu a
mão a Gabrielle.

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Cherie Claire Gabrielle
— Gostaria de beijar a noiva, mas na presente circunstância, acho mais
apropriado um aperto de mão.
Gabrielle aceitou a oferta, mas sua opinião sobre o homem horrível continuou
inalterada.
— Parabéns, minha querida—cumprimentou o padre beijando Gabrielle em ambas
as faces, imaginando, entretanto, que eram mínimas as chances de felicidade de uma
moça com um cote de cabelo masculino, num navio pirata e com um noivo nada animado.
— Vinho? — sugeriu Philibert.
— Não seja ridículo — criticou Jean. — Precisamos levantai-as âncoras e partir.
Um de meus homens o levará de volta à praia, padre. Muito obrigado por ter vindo.
O padre Freleaux virou-se e olhou para Gabrielle pela última vez. Então os três
homens saíram da cabine e a porta foi fechada.

Jean estava no tombadilho superior e vigiava as velas enfunando-se ao vento


norte, enquanto o barco prosseguia seu curso através das águas lamacentas da Cote
Blanche Bay. A têmpora ainda. latejava de raiva, mas começou a lamentar sua conduta
ríspida na cabine.
— Algum sinal de outras embarcações? — perguntou a Phil, que estava
esquadrinhando o horizonte com sua luneta.
— As duas baías estão calmas. Quem quer que tenha inquirido a nosso respeito
não nos seguiu.
Nessa tarde, tão logo Jean voltara à escuna, Phil informara-lhe que diversas
pessoas haviam feito perguntas a seu respeito no litoral. Marinheiros sempre
esperavam pela oportunidade de se juntar a sua tripulação, e perguntas não eram
incomuns. Mas, nesses dias, Jean precisava ser cuidadoso. Já era de conhecimento
geral que sua cabeça estava a prémio.
— Vamos navegar com todas as velas abertas — decidiu Jean. — Vamos voltar
para a ilha St, Charles o mais depressa possível.
Phil começou a esbravejar ordens para os homens no convés. Pela primeira vez
desde que reconhecera Gabrielle no convés, Jean tentou relaxar.
— Mulher teimosa — murmurou, pensando em Gabrielle em pé em sua cabine,
molhada até os ossos, em roupas masculinas.
Mais surpreendente ainda fora Marianne chamá-lo à praia para dar-lhe um
cesto de laranjas enquanto a filha se esgueirava a bordo da barcaça. Talvez os
moradores locais estivessem certos, e as duas tivessem enlouquecido.
Jean ouviu passos e sentiu a presença de Gabrielle, que andava com cuidado pelo

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Cherie Claire Gabrielle
convés entulhado de cabos, canhões e outros suprimentos.
Embora ainda estivesse preocupado com a temeridade das ações da esposa,
Jean reconhecia que estava muito atraente em seu corte de cabelo repicado. Não se
parecia mais com um rapaz, pois as mechas soltas, negras e sedosas acentuavam as
curvas suaves da face e brilhavam ao luar.
Ao se aproximarem do estreito, onde a baía abria para o golfo, o vento mudou
de direção e a escuna deu uma guinada. Jean mudou o curso e os homens ajustaram as
velas.
Gabrielle espreitou o horizonte e sorriu. Fechou os olhos e apreciou a sensação
da brisa salgada e cálida. Suspirou de contentamento.
— Madame Bouclaire!
Gabrielle não respondeu. Seus olhos ainda estavam fechados e o sorriso ainda
brincava em seus lábios.
— Gabrielle!
Desta vez o nome foi reconhecido e ela olhou para trás, cautelosa, como se
temesse ser outra vez alvo da ira do marido.
— Gostaria de pegar na roda do timão?
O rosto da jovem se iluminou. Aceitou e depois mordeu o lábio para controlar
seu entusiasmo.
Jean quase deu risada ao observá-la se aproximar do timão tentando conter a
própria ansiedade. Deu um passo para trás e deixou-a segurar a roda do timão,
localizada no meio do tombadilho superior. Ela segurou a madeira pelas manoplas
externas e Jean colocou as mãos mais perto do centro da roda do timão.
— Não tão afastadas — sussurrou ele, notando seu perfume delicioso. — Se
tivermos de virar depressa, você precisa ter controle melhor da embarcação.
Ela concordou, ainda temendo outro sermão.
— Torceria seu pescoço se você não estivesse tão adorável nesse corte de
cabelo — resmungou Jean.
Gabrielle o olhou de esguelha, depois voltou a atenção para a proa. Ao entrarem
nas águas azuis do golfo, as ondas bateram na embarcação e Gabrielle moveu a roda do
leme enquanto a escuna entrava no vento. Jean inclinou-se e guiou sua mão na roda.
— Vigie as velas — alertou-a. — O vento está vindo do lado esquerdo e você
deve dirigir o navio para manter as velas sempre cheias.
— O vento está vindo de bombordo pela popa — corrigiu Gabrielle. — Se você
ajustar a vela-mestre e as vergas das velas de mezena, iremos mais depressa.
Ela conhecia a linguagem e dirigia como um marinheiro experiente. Jean
observou os homens puxando as escotas das velas e a escuna ganhou velocidade. Ela

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Cherie Claire Gabrielle
estava com os pés plantados com firmeza no convés, em nada preocupada com a
dramática inclinação da escuna. Mas estaria de fato preparada para a vida no mar?
Jean não acreditava nisso.
— Tem idéia do que acaba de fazer? — indagou ele.
— Já lhe afirmei que não seria deixada outra vez para trás. — Você precisa de
mini.
— Preciso? Por que pensa assim? — Jean cruzou os braços.
— A embarcação é rápida. Aposto que seu calado raso permite navegar naquelas
baías pantanosas lá atrás—comentou Gabrielle, fitando o golfo e o lençol de estrelas
acima no céu.
— Não é uma embarcação fácil de se manobrar em mau tempo —informou Jean,
que, embora impressionado pelo conhecimento da esposa, não considerava isso
suficiente para mudar os fatos.
Gabrielle levantou o queixo, preparando-se para o sermão que estava para ouvir.
— Faz alguma idéia do que comemos nesta embarcação? E do cheiro? —
prosseguiu ele.
— Se está tentando me assustar, saiba que já passei por duas viagens marítimas
em minha vida, mais terríveis do que qualquer coisa que você já tenha vivido.
— Duvido — contestou Jean com um sorriso afetado, lembrando-se dos
inúmeros perigos que enfrentara nas viagens ao Caribe.
Gabrielle o fitou e seus olhos exprimiam dor. Jean lamentou suas palavras,
lembrando-se de que ainda criança, na Nova Escócia, ela havia sido empurrada a bordo
de um navio de guerra inglês, e transportada num porão apinhado de pessoas, numa
longa viagem para Maryland.
— Desculpe-me, Gabi. Havia esquecido.
— Fui criada no mar. Não o desapontarei. Farei tudo o que esperar de minha
parte.
— Sou eu quem teme desapontá-la, mon amour — declarou Jean, aproximando-se
por trás da moça e acariciando seu pescoço.
Uma onda quebrou contra a proa, que mergulhou. Gabrielle perdeu o equilíbrio
por um instante e segurou-se em Jean para se firmar.
— Nada até agora—comunicou Phil, aproximando-se do casal.
Gabrielle logo se afastou do marido.
— Bom — comentou Jean. — Se nos depararmos com uma embarcação espanhola,
vamos hastear a bandeira. Agiremos como se estivéssemos tratando de negócios, como
de costume.
— Hasteia a bandeira espanhola? — indagou Gabrielle incrédula.
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Cherie Claire Gabrielle
— Navegamos sob nossa própria bandeira — explicou Phil. — Temos uma carta
de autorização dos espanhóis para fazer negócios na Louisiana e para atacar e pilhar
embarcações inglesas, em seu nome. Hasteamos a bandeira nessas ocasiões.
— Então são corsários.
—Não exatamente, senhora. Somos mercadores marítimos. Fazemos negócios
com piratas e particulares e apelamos para qualquer governo que nos ajude a ganhar
dinheiro. Entretanto, dispararemos contra os ingleses em qualquer oportunidade, em
nome da Espanha, e nesse caso, sim, somos corsários — explicou Phil.
Não escapou a Jean que Gabrielle observava Phil com cautela e que seus olhos
se arregalaram ao ouvi-lo falar em disparar contra os ingleses. Phil devia tê-la
assustado bastante antes de Jean salvá-la de um possível enforcamento.
— Suplico, senhora, que não tenha ficado ferida no tumulto algumas horas atrás
— pediu Phil com sobriedade.
— Estou bem, senhor. — Mas o medo persistia nos olhos dela.
— Ferida? — O que Phil teria feito?
Jean sentiu o sangue subir ao rosto antes de fazer a pergunta a seu sócio e
contramestre. Este parecia culpado e começou a gaguejar algo, mas Gabrielle o in-
terrompeu.
— Feri-me quando escalei o parapeito — apressou-se ela a explicar.
— Nada teria acontecido se você tivesse ficado no posto — esbravejou Jean,
que não acreditava na resposta, mas preferia desconhecer a verdade.
Gabrielle fez uma careta e voltou a atenção outra vez para a proa.
— Como conseguiu vir da praia? —. indagou Phii. — Foi uma grande distância.
─ Gosto muito de nadar. Meu pai costumava me chamar de Caçadora da Maré.
— Caçadora da Maré? — indagou Phii, sorrindo.
— Havia marés enormes onde morávamos. Rios inteiros desapareciam — explicou
Gabrielle.
— É difícil imaginar.
— É por isso que nado bem. Precisava ser boa nadadora quando entrava a maré.
Gabrielle e Phil iniciaram uma longa troca de idéias sobre as diferenças entre as
águas canadenses e as da Louisiana. Conversaram amigavelmente sobre navegação,
temperaturas da água e correntes, até Jean se cansar.
— Precisamos atravessar o Estreito — informou Jean ao olhar à sua frente.
— Estamos quase chegando — alegou Phil. — Além disso, posso dirigir esta
escuna através do Estreito como em qualquer outro lugar.
Apesar de seu desligamento escandaloso da Marinha, Phil era um dos melhores

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Cherie Claire Gabrielle
marinheiros que Jean conhecia. Mas o La Belle Amie sempre fora dirigido por seu
capitão.
— Boa noite — despediu-se Phil ao notar a indecisão de Jean.
— Os recifes... — começou Jean, grato por se lembrar da razão pela qual
precisava comandar a escuna. — Alguns lugares são rasos e devem ser evitados. Logo
depois do Atchafalaya, você pode ficar preso dentro da baía Four League.
Phil virou-se de costas para o casal e acenou com a mão, em despedida. Em
algum lugar na proa os tripulantes deram risada. Jean começou a ficar irritado, mas
foi pego pela mão e levado para a escada. Ao avistar os olhos amorosos de Gabrielle,
rendeu-se afinal.
— Ai, ai, capitão. Durma bem. Viveremos sem você — gracejou Phil.
Jean seguiu Gabrielle para o convés inferior, ainda nervoso pelo estrépito dos
tripulantes. Não estava acostumado a deixar outros tomarem decisões em seu barco,
embora comandasse a melhor tripulação do território. Quando chegaram ao último
degrau, Jean suspirou e abriu a porta da cabine, dando passagem a sua esposa.
Ela segurou a mão de Jean para o caso de ele decidir escapar. Jean não fugiu,
mas tampouco se sentia feliz, pois sua testa estava franzida.
— Lamenta ter-me desposado?
A pergunta o despertou. Ele se endireitou e seus olhos se suavizaram.
— Por que pensa isso?
— Você não parece estar feliz aqui comigo.
— Está vendo aquela cama? — sussurrou ele em tom sedutor. — Comprei-a para
você.
— Para mim, quando?
— Em minha última viagem, quando estive em Hispaniola. No mesmo lugar em que
lhe comprei o anel.
Ao ouvir essas palavras, Gabrielle sentiu-se aliviada. Ele quisera desposá-la.
Estivera planejando retornar ao posto Attakapas.
— Jean, se queria me desposar naquela ocasião, por que não agora?
— Não se trata do que quero, Gabrielle. Trata-se do que é melhor para você.
— Para mim o melhor é ficar a seu lado.
— Uma nave comandada por um fugitivo não é lugar para uma mulher.
— Quer sacrificar nossa felicidade porque sou mulher? — indagou Gabrielle
começando a sentir uma fúria crescente.—Então devo envelhecer sozinha para não
enfrentar o perigo a bordo de sua embarcação? Fui mandada para o exílio. Vivo na
fronteira. Posso perecer a qualquer momento, com ou sem você e sua teimosa cabeça a

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Cherie Claire Gabrielle
prémio.
— O que vai acontecer, Gabi, quando vierem filhos? — retorquiu Jean. — Já
pensou nisso? Onde vamos criar nossa família, entre os barris de pólvora e as carnes
podres?
— Daremos um jeito. — Ela não havia pensado em filhos, mas se sobrevivera a
uma travessia no Atlântico, aos seis anos de idade, então podia criar uma família a
bordo de uma escuna que lhes pertencia.
Jean soltou as mãos de Gabrielle e de repente sentiu frio. Sentou-se na beira
da cama, passando as mãos pelo cabelo.
— Houve uma época em que eu queria me associar a seus cunhados, levando
peles da fronteira para vender em New Orleans ou no Caribe e trazendo mercadoria
de volta para os postos — contou ele. — Phil assumiria a escuna e poderíamos navegar
quando fosse de nossa conveniência.
— E agora? — Gabrielle sentiu um aperto no coração.
Quando Jean levantou a cabeça, a luz do luar refletiu a imensa dor em seus
olhos e Gabrielle ficou chocada.
— Agora não tenho escolha, exceto fugir do território — declarou Jean. — Ou
passar meus dias escondido numa ilha minúscula.
Gabrielle lembrou-se de Delphine. O que aconteceria à pobre menina que tanto
necessitava do pai? Ela própria conhecia essa necessidade e, ainda que precisasse usar
o último de suas forças, iria para New Orleans para reencontrar o pai e a menina
triste.
— Eu o amo e quero viver com você — disse com suavidade, ajoelhando-se diante
de Jean. — Resolveremos juntos o resto.
Entreolharam-se e, por um momento, Jean Bouclaire, o protetor, desapareceu,
dando lugar a um homem grato.
— Sua mãe fez mesmo isso? — indagou Jean passando a mão pelo cabelo curto
de Gabrielle.
— Está tão feio assim?
— Combina com você.
Antes de ela ter tempo de registrar o elogio, Jean a levantou e a fez ficar em
pé, entre suas pernas.
— O que vou fazer com você? — indagou ele ainda hesitante,
— Estou pensando numa porção de coisas. — Gabrielle inclinou-se e roçou os
lábios de Jean com os seus.
Ele cedeu afinal e começou a beijá-la e a tirar-lhe a roupa.
— Está contente por ter-me desposado, não está, Jean?
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Cherie Claire Gabrielle
Como em muitas ocasiões antes, ele nada disse, mas suas ações falavam tudo.
Seus olhos não a deixaram enquanto ele chutava para longe as botas de couro. Depois,
tirou a camisa e a jogou sobre a cama. Ainda fitando-a, pegou o vestido que ela ainda
estava segurando e o deixou cair no chão. Gabrielle ficou completamente nua.
— A única mulher que jamais se aproximou deste leito foi minha filha. E na
ocasião conversávamos sobre você.
Não era o que Gabrielle havia esperado, mas bastava. Abraçou o e seus lábios se
uniram num longo beijo antes de ele a deitar de costas sobre a cama.
— Oh, Gabrielle, eu a quero tanto.
Gabrielle não saberia dizer se era o balanço do navio ou o ritmo dos corpos ao
fazerem amor, mas o movimento balançava todo o seu ser. O prazer intenso e a paixão
se transformaram em ondas que quebraram na costa. Ambos alcançaram o êxtase
juntos, os corpos estremecendo pela libertação.
Não se afastaram. Jean continuou a beijá-la no rosto enquanto as mãos de
Gabrielle o acariciavam. Afinal, ele a soltou e se deitou de costas.
— Gabrielle — sussurrou ele. — Eu...
Mas Jean não terminou seu pensamento. Pela cadência de sua respiração era
visível que adormecera.
— Eu o amo também — sussurrou ela.

Capítulo VII

— Alguma notícia de monsieur LeBlanc? — indagou Delphine à freira através do


portão de ferro. Há várias semanas, Joseph havia escapado do edifício depois de se
lembrar de sua identidade e atacar dois dos homens do convento. Se ao menos alguém
pudesse confirmar que havia retomado a sua família, fazê-la saber que estava em
segurança!
— Nada ainda, Delphine — murmurou a freira.

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Cherie Claire Gabrielle
A mocinha rezou para Joseph ter conseguido chegar ao Attakapas. Mas, no
íntimo, ansiava por revê-lo, sentia falta de sua orientação e de seu afeto.
— Vá para casa, minha filha — aconselhou a freira. — Descanse um pouco.
Delphine concordou e se encaminhou para casa, mas descansar estava fora de
cogitação. Dez dias. Era o tempo de que dispunha. Em menos de duas semanas ficaria
sem um teto.
Não era a ameaça de perder o lar que a assustava mais. Continuava a receber
dinheiro do pai, por meio de Antoine Vincent, e venderia a prataria se fosse preciso.
Também poderia embarcar num navio e ir para oeste, para o posto Attakapas, ao
encontro de Gabrielle.
Mas Edouard Prevost, em nome do governador, a avisam para não sair da cidade.
A casa e tudo dentro, inclusivo Delphine ou escravos, deviam ficar à disposição das
autoridades até que chegassem notícias do conde Delaronde. Se no prazo de um mês
isso não acontecesse, Delphine perderia tudo, seria expulsa de sua casa e tudo seria
confiscado pelo governo. Se o conde enviasse dinheiro, ela seria enviada para viver na
França e talvez jamais voltasse a rever o pai.
Delphine teria optado pelo primeiro desfecho não fosse por Carmeline e os
outros escravos. Não suportava pensar que sua melhor amiga seria enviada para outro
lugar. Se ao menos tivesse poder para libertar Carmeline! Se ao menos as posses da
mãe tivessem passado para seu nome. ela teria recuperado o patrimônio e enviaria os
escravos para serem livres no oeste.
Edouard Prevost visitava Delphine todos os dias pedindo notícias. Esperava.
Observava. Algo em seus olhos a fazia gelar de medo. O que teria em mente ao fitá-
la? Infelizmente, ao chegar em casa, avistou-o parado junto ao portão.
— Onde esteve? — inquiriu Edouard, passeando o olhar por seu corpo,
demorando-se nos seios enquanto molhava os lábios. — As roupas de sua mãe lhe caem
bem — comentou ele de um modo que fez Delphine desejar tomar um banho.
— Não recebi nenhuma notícia hoje, senhor. Agora, se não se importa...
Edouard agarrou-lhe o braço e com o polegar começou a massagear um pouco da
pele exposta embaixo da manga.
— Como ousa tocar-me desse modo? — Delphine libertou o braço com um
movimento brusco. — Tenho apenas treze anos.
—Já é uma mulher—respondeu ele aproximando-se demasiado para uma
companhia educada. — Como a prostituta de sua mãe.
Delphine deu um tapa no rosto de Edouard. Este deu um passo para trás e levou
um lenço à face atingida,
— Vadia! — vociferou irritado.
— Saia de minha casa — ordenou Delphine tentando não mostrar na voz a

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Cherie Claire Gabrielle
vontade de chorar. — Vá embora.
— Dez dias. Você dispõe de dez dias. — Os olhos de Edouard ficaram gélidos. —
O governo vai confiscar esta casa, senhorita, mas você me pertence. Seu pai levou meu
filho, mas eu a terei, tendo Deus por testemunha.,
Depois que Edouard foi embora, Delphine deixou-se cair no banco mais próximo.
Como chegara a esse ponto? Era tão estranho usar o vestido frívolo da mãe! No
decurso de poucos meses, crescera o suficiente para usar as roupas maternas, seu pai
fora declarado um fora-da-lei e estava com a cabeça a prémio, ela havia perdido seu
amigo, monsieur LeBlanc, e estava presa numa armadilha dentro de casa. E, pior de
tudo, um estranho desejava vingança pela morte do filho e estava à espreita para
molestá-la na primeira oportunidade.
Estava indefesa e tinha consciência disso. Só lhe restava rezar. Deus a ouviria?
Delphine fechou os olhos, sentindo uma brisa cálida tocar os cachos da testa.
Lembrou-se de como se sentira nas águas agitadas do golfo quando Jean a levara a
navegar. Onde estaria o pai? Pensaria na filha? Estaria perto o suficiente para ouvir
suas preces e salvá-la?
Uma sensação de desamparo a invadiu, mas ainda assim rezou.
— Querido Deus. Mande meu pai de volta para mim.

Jean teve um sonho assustador, que o fez despertar suando frio. Sua
respiração estava entrecortada e o coração batia acelerado. As súplicas de Delphine
ecoavam em sua cabeça. Mas sonhos e visões eram coisas que impressionavam as
mulheres. Não podia dar crédito a pesadelos. Delphine estava em segurança, aos
cuidados de Louise. Antoine estava lhe enviando dinheiro. Porém, gostaria de ter
certeza de que isso estava ocorrendo.
Gabrielle se virou na cama e Jean lembrou-se de que estava casado. Olhando
para a esposa, lembrou-se das muitas razões pelas quais Gabrielle não devia estar ali,
as mesmas razões de porque não podia clamar pela filha. No entanto, não suportava
mais as noites infindáveis preocupado com a segurança de Delphine. Louise estaria
tratando bem a filha? Ou a estaria maltratando? A agonia dilacerava sua alma.
— O que foi? — Gabrielle afastou o cabelo dos olhos.
— Um pesadelo — murmurou Jean. — Sobre Phyney.
Gabrielle puxou o lençol sobre o peito e sentou-se. Apoiou a face no braço de
Jean, que se sentia feliz por tê-la a seu lado. Se alguém conhecia a dor da separação
entre um pai e uma filha, era Gabrielle.
— Precisamos tirá-la de New Orleans.
As palavras dela deram voz aos pensamentos de Jean, mas os temores
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Cherie Claire Gabrielle
persistiam. Que vida podia oferecer à filha a bordo de uma escuna?
— Jean, você vai buscar Delphine, não vai?
— O dia ainda não raiou. — Jean atirou as pernas para o lado da cama e vestiu
as calças. — Volte a dormir.
— Se não fizer isso, eu o farei. — Gabrielle encostou a cabeça no travesseiro e
suspirou.
— Ela tem mãe, Gabrielle — lembrou Jean, mais para se tranquilizar. — Tenho
certeza de que está sendo bem cuidada.
— Você leu sua carta. Delphine está muito infeliz.
— Tem treze anos. É natural sentir-se infeliz. — Jean passou a camisa por cima
da cabeça, calçou as botas e depois se levantou. — Um dia, quando ela encontrar um
bom rapaz, a última coisa que vai querer é ficar presa num navio, e vai me agradecer.
Mas Gabrielle não acreditava nisso e estava claro. Jean, ainda atormentado pelo
pesadelo, pegou o chapéu e foi para o convés.
Gabrielle sentia fome. E não queria dormir. Afastou as cobertas e se
encaminhou na semi-escuridão para o lugar onde suas roupas estavam penduradas para
secar. Vestiu-se e apanhou um pente a fim de pentear os rebeldes cachos que
insistiam em cair-lhe nos olhos.
Uma batida na porta interrompeu-lhe.
— Entre — respondeu Gabrielle.
— Jean disse que estava acordada — explicou Phil ao entrar cauteloso, trazendo
uma bandeja cheia de comida.
— Estamos casados há um dia e ele já lê minha mente!
—Acho que Jean encontrou seu par perfeito, madame Bouclaire.
— Infelizmente para ele.
— Aposto que não, senhora. — Phil colocou o alimento sobre a cama e a fitou
antes de se virar para sair.
— Espere — pediu Gabrielle. — Preciso comer aqui?
— O que tem em mente?
— Posso comer no convés? Estaria quebrando alguma lei masculina do mar? —
indagou Gabrielle, pensando em ar puro, na brisa marítima, no sol rompendo no
horizonte.
— Acho que nós homens podemos nos acostumar com uma mulher em nosso
barco.
— Ótimo!

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Cherie Claire Gabrielle
Phil pegou a bandeja das mãos de Gabrielle e os dois subiram a escada para o
convés, iluminado por duas lanternas que balançavam à brisa. Jean a avistou enquanto
comandava a escuna, mas nada disse ao vê-la sentar-se no tombadilho e começar a
comer o pão amanhecido e a tomar café. Os homens a fitaram por um momento e
depois continuaram suas tarefas.
— Não se preocupe com eles — sussurrou Phil para Gabrielle. —Estão um pouco
chocados por que o capitão se casou, é só isso.
— E ainda mais surpresos por que a noiva nadou para chegar ao local da
cerimônia — acrescentou Gabrielle.
Phil desatou a rir, atraindo a atenção da tripulação. Jean fez cara feia para
seus homens e os mandou voltar ao trabalho, depois olhou na direção da esposa.
Gabrielle encheu uma caneca de café e a levou ao marido, junto com um pedaço
de pão. Ele aceitou a oferta e levou a mão da esposa aos lábios, sem deixar de
controlar o timão.
— Quanto tempo falta para chegarmos a New Orleans? — indagou Gabrielle.
— Em poucos dias alcançaremos nossa ilha, onde nos abasteceremos de novas
provisões e deixaremos alguns homens. Depois precisaremos de um dia ou dois para
chegar a New Orleans. Dez dias no máximo,
— Não navegaremos pelo Mississippi?
— Não. Os espanhóis vigiam a desembocadura. Se subirmos pelo passo
Barataria, chegaremos por trás. Cruzarei o rio e entrarei na cidade à noite.
— Quer dizer que nós entraremos na cidade à noite — corrigiu Gabrielle,
sentindo o coração se acelerar, receando ser outra vez deixada para trás.
— Gabrielle, não discuta comigo — sussurrou Jean. — Sei o que é melhor.
Então era esse seu plano, deixá-la para trás enquanto ele arriscava a vida em
New Orleans!
— Está louco se acha que ficarei aqui. E se você for preso? Quem poderá ajudá-
lo?
— Não quero falar sobre isso na frente de meus homens.
Gabrielle afastou-se para seu lugar no tombadilho e sentou-se zangada. Perdera
o apetite. Como fazer para forçá-lo a entender?
— A refeição não lhe apetece, madame?
Gabrielle levantou a cabeça e viu um homem de meia-idade, em pé, a sua frente,
trajando roupas acadianas e vagamente familiar.
— Não deixe o capitão assustá-la — disse ele afável. — Cachorro que late não
morde Quanto a ele entrar em New Orleans, não irá sozinho.
Gabrielle sentiu-se melhor por Jean ter companhia, mas ainda estava zangada
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Cherie Claire Gabrielle
por não ir junto.
— Já nos encontramos antes, senhora?
— Estava pensando a mesma coisa — contou Gabrielle,. depois de engolir um
pedaço de pão e tomar um gole de café.
— Faz-me lembrar de alguém que conheci. Não coma mujto de uma vez. É melhor
fazer pequenas refeições para não ficar mareada.
— Não fico mareada — contestou Gabrielle, pegando outro pedaço de pão.
— É o que todos dizem.
— Não, fui criada na água. Nunca fiquei mareada em minha vida.
O sorriso do homem desapareceu e ele a fitou com atenção.
Gabrielle sentiu um calafrio, tentando se lembrar do rosto a sua frente.
— Qual o seu nome, senhora?
De repente Gabrielle lembrou-se das palavras de Jean na noite anterior. Havia
um acadiano chamado Mathurin Hébert a bordo. Poderia ser o mesmo homem que a
havia ensinado a velejar, quando pequena, em Grand Pré?
— Sr. Hébert? — sussurrou Gabrielle.
— Gabrielle Gallant! Gabrielle Gallant! — repetiu Mathurin. — A garotinha
travessa que costumava me seguir por toda parte, implorando-me para levá-la a
velejar?
Os dois sorriram e apertaram as mãos.
— É bom vê-lo monsieur Hébert.
— Mathurin, minha querida. E sua família? Como passaram pelo exílio?
— Tão bem quanto seria de se esperar. Minha mãe e irmãs gozam de boa saúde.
Rose e Emilie se casaram.
— E seu pai?
Toda a dor dos últimos treze anos caiu pesada sobre os ombros de Gabrielle. De
repente, sentia-se outra vez com sete anos, pedindo conselho ao vizinho.
— Oh, monsieur Hébert. Fomos separados na praia e nunca mais vimos meu pai.
Quando estávamos em Maryland soubemos que ele estava na Louisiana, mas quando
chegamos na região, ele já havia deixado o território e ido para Maryland a nosso
encontro. Maman e eu estamos vivendo nas terras doadas no posto Attakapas até ele
retornar.
— Receberam alguma notícia?
— Há pouco soubemos que estava no Convento das Ursulinas, em New Orleans.
— É uma boa notícia — alegrou-se Mathurin. — É por isso que vamos para a

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Cherie Claire Gabrielle
cidade?
Gabrielle anuiu.
— Então fique tranquila que Jean e eu faremos tudo em nosso poder para levar
Joseph de volta para você e sua família. Pode ter certeza.
— Mas devo ir com vocês — queixou-se desapontada por ser deixada para trás.
Mathurin virou-se e olhou de relance para Jean, que estava ocupado, dando
ordens à tripulação. Depois voltou a atenção para ela.
— Alimente-se. Sei que não ficará mareada, por isso coma.
Sentaram-se em silêncio por vários momentos. Então ela se lembrou de Felicite
e quase engasgou.
— Monsieur Hébert...
— Mathurin — corrigiu ele.
— Mathurin, o que está fazendo aqui?
Ele pareceu surpreso ao ouvir a pergunta e Gabrielle estremeceu. Será que não
sabia o que havia acontecido à família?
— Sua família, Felicite?
— Eu os perdi — sussurrou desolado. — Segui-os até a Geórgia, mas era
demasiado tarde.
— Felicite está viva — disse Gabrielle pensando na melhor amiga e na
perspectiva de seu encontro com o pai. — Vive no posto Attakapas.
Mathurin empalideceu e começou a tremer, Apertou as mãos de Gabrielle com
força, quase lhe causando dor.
— Não sabia disso? — indagou ela.
— Contaram-me que minha família havia morrido — sussurrou o pobre homem,
incrédulo.
— Felicite fugiu do lugar para onde foi enviada — explicou Gabrielle. — Ao se
ver órfã, foi viver com os Doucet, que a acolheram como filha e a trouxeram para a
Louisiana.
—Ela está bem?—indagou Mathurin com os olhos marejados.
— Tão bem quanto uma filha pode estar sem seu pai.
Mathurin levou a mão ao coração e inclinou-se para frente, corno se sentisse
dor e Gabrielle pegou seu braço.
— Mathurin, o que foi? — gritou ela.
Logo Jean se aproximou e sustentou Mathurin em pé. No entanto, o homem dava
a impressão de que sofreria um colapso a qualquer momento.

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Cherie Claire Gabrielle
— O que aconteceu? — perguntou Jean.
— Acabou de saber que a filha está viva — contou ela.
— A filha? Onde?
— Ela vive perto de minha casa, no posto Attakapas. Acho que você a avistou na
festa de Vincent. Felicite Hébert. Ela me acompanhou até a porta quando partimos.
—A jovem bonita que olhava para o cavalariço?—Jean sorriu.
Gabrielle sentia vontade de chorar. Pobre Felicite e pobre monsieur Hébert,
vivendo tão perto um do outro sem saberem.
— Estou bem. — Afinal Mathurin se endireitou e seus olhos se firmaram. — Foi
somente o choque.
Jean examinou o acadiano com atenção. Estava preocupado com o velho amigo.
— Quer que o deixemos aqui? — indagou Jean. — Podemos ir para a praia e dar-
lhe um bote para você retornar ao Attakapas.
—Não, obrigado. Devo ajudá-lo a entrar e a sair de New Orleans,
— Há muitos membros da tripulação que podem me ajudar — insistiu Jean. —
Você precisa encontrar sua filha.
— Não, esperarei pela viagem de retorno.
Nesse momento, vários tripulantes reuniram-se ao redor. Ninguém proferiu
palavra, mas estava claro que havia algo errado.
— Jean, estamos sendo seguidos — declarou Phil.
— Há quanto tempo estamos sendo seguidos? — indagou Jean. — Por que não me
avisaram antes?
— Não há razão para nos preocuparmos. — Phil cruzou os braços diante do peito
e estava tão calmo quanto as águas era que navegavam. — Começaram a nos seguir
depois que entramos no golfo, mas já pusemos alguma distância.
— De onde vieram? — Jean pegou a luneta de Phil e esquadrinhou o horizonte.
— Acho que estavam escondidos na enseada de Côte Barataria — interveio
Mathurin. — Surgiram logo após a nossa entrada.
— Estavam a nossa espera — declarou Jean, e seu tom de voz atingiu Gabrielle em
cheio, fazendo-a sentir calafrios.
— O que faremos? — indagou ela.
Jean fitou a esposa e em seus olhos transparecia o medo que sentia por sua
segurança. Começou a bradar ordens para os tripulantes ajustarem as velas e
alterarem o curso.
— Estamos com boa velocidade — comentou Phil. — Nunca encontramos uma

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Cherie Claire Gabrielle
embarcação capaz de ultrapassar o La Belle Amie.
— Precisamos alcançar a ilha o mais cedo possível — disse Jean. — Não podemos
sequer pensar na hipótese de alguém subir a bordo.
— Sua esposa está segura conosco, meu amigo — assegurou Phil. — Nada de mal
lhe acontecerá.
Phil deu uma piscadela e um sorriso para Gabrielle, que ainda sentia nervosismo
diante do homem enorme. Não esquecera como a olhara ao apertar o punhal contra sua
garganta. Mas se Jean o aprovava, então Phil devia ser boa pessoa.
— Fique longe de problemas, Caçadora da Maré — alertou Mathurin, também
dando uma piscadela para Gabrielle antes de ir para a proa.
— Gabi — chamou Jean.
Ela atendeu ao chamado do marido e foi para perto do timão. Pela primeira vez,
desde que vestira roupas masculinas e se escondera na barcaça no bayou, Gabrielle
duvidou de ter tomado a decisão correta. Sua presença não seria um obstáculo para
essa tripulação experiente?
—Está vendo aquela linha de nuvens?—perguntou Jean, apontando na direção da
embarcação que os seguia.
O sol se levantara afinal e um brilho escuro e avermelhado se espalhava no
horizonte.
— Uma tempestade — sussurrou Gabrielle, sentindo o peso da culpa tornar-se
mais agudo.
— Deve nos alcançar no fim da tarde — comentou Jean. — Mas isso será a nosso
favor. Se o vento vier de noroeste, poderemos mudar de rumo perto da costa.
— E a outra embarcação?
— Não consegue acompanhar uma escuna como a minha nesse tipo de vento —
explicou Jean com uma ponta de orgulho.
— Posso fazer alguma coisa?
— Não se preocupe, Caçadora da Maré.
— Por que não? Você está preocupado.
— Faz parte de minha posição. Todos os capitães se preocupam por sua
tripulação e pelos passageiros. Mas Phil está certo, nunca fomos ultrapassados. Aliás,
já enfrentei enrascadas muito mais difíceis.
— Gostaria de ajudar.
— Rasgamos a vela de ré — explicou Jean. — Sabe costurar?
— Está com sorte. Essa é uma das poucas habilidades femininas que possuo.
—As habilidades femininas que possui, querida, são suficientes para mim.

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Cherie Claire Gabrielle
— Diga-me o que fazer, mon capitaine — pediu Gabrielle.
A tempestade fazia a escuna balançar. As ondas batiam dos lados, enviando
água para o porão e as cabines. Por toda parte formavam-se poças. Até as cobertas da
cama e as roupas no topo do baú foram salpicadas por gotas.
Gabrielle havia fechado as vigias quando a tempestade começara e a cabine
ficara demasiado quente. Estava se afogando num mar de transpiração. Odiava ficar
confinada na cabine, mas não desejava atrapalhar ninguém. Havia muito a aprender, e
esse não era o momento oportuno.
Depois de consertar a vela, Jean a fizera descer para o convés inferior. Agora
estava remendando uma camisa rasgada.
Tentava concentrar-se na tarefa, mas gotas de suor caíram dentro dos olhos e
embaçaram sua visão. O barco deu uma guinada e o carretel de linha caiu no chão.
Quando se abaixou para pegar, o carretel rolou para o outro lado, parando numa poça.
Gabrielle finalmente conseguiu agarrar o carretel, mas o fio estava ensopado.
Enfiou a agulha na frente da camisa e guardou o fio sob o travesseiro. Apagou a
lanterna e deitou-se na cama, observando através das escotilhas de popa os raios
riscarem o céu.
Pensou em Delphine, sofrendo em New Orleans, e em seu pai desaparecido,
imaginando onde poderia estar. Temia pela mãe, sozinha no posto Attakapas. E pelas
irmãs em Opelousas. Já estaria chegando a hora de Rose dar à luz?
Apertou a camisa de Jean contra o peito, para confortar-se.
— Querido Deus. Cuidai daqueles a quem amo. Velai por nós.
Gabrielle foi desperta do sono pelo silêncio. E pela falta de movimento. Homens
gritavam no convés. Seus perseguidores os teriam alcançado? Então a porta foi aberta
e Jean entrou sorridente.
—Levante-se, bela adormecida—disse ele inclinando-se sobre a cama e
beijando-a. — Temos trabalho pela frente.
As roupas de Jean estavam molhadas e ela lhe estendeu a camisa seca que
consertara.
— Preciso fazer alguns reparos. Phil vai levá-la à praia. Acho que você podia nos
ajudar com as provisões.
— É claro — concordou Gabrielle. — Mas irei sozinha com ele?
Jean vestiu a camisa e passou a mão no remendo, agradecido. Depois trocou de
calças e enfiou a camisa seca dentro da cintura.
— Phil é um bom homem. Não tem nada a temer.
Gabrielle pegou suas roupas e se vestiu. Desta vez, calçou os sapatos e usou o
chapéu enorme para evitar que o sol lhe bronzeasse o rosto. Ao se avistar no espelho,

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Cherie Claire Gabrielle
seu reflexo não parecia tão estranho. Estava começando a gostar de sua nova
aparência.
— Madame Bouclaire!
Gabrielle abriu a porta e deparou-se com Phil.
— Gabrielle. — Meu nome é Gabrielle.
— Muito prazer, Gabrielle. — Phil fez uma reverência galante. — Sou Philibert
Bertrand de Poitou. a seu serviço. Mas, por favor, me chame de Phil.
Era um homem alto e viril, parecido com Jean, embora mais esguio. Seus olhos
azuis faiscavam, e o belo cabelo cor de bronze estava amarrado na nuca com um
pedaço de couro.
Gabrielle o seguiu ao convés, notando que haviam ancorado numa baía isolada,
cercada por florestas de ciprestes de três lados. Entre a escuna e o golfo avantajava-
se uma ilha desabitada. Gabrielle subiu pela amurada e saltou para dentro de um bote.
— O que aconteceu à embarcação que estava nos seguindo? — indagou Gabrielle.
— Ficou para trás, — Phil deu de ombros como se a ameaça não tivesse passado
de um mosquito voando perto de seu rosto. —Ninguém alcança o La Belle Amie. — Ele
se inclinou para frente abruptamente e Gabrielle ficou pálida.
— Não está com medo de mim, está? — indagou Phil.
— Não — disse Gabrielle tentando sorrir.
Ainda se lembrava da lâmina na garganta.
— Mentirosa.
— Acho que eu me sentiria mais à vontade se minha vida não tivesse sido
ameaçada quando subi a bordo.
— Ninguém sobe a bordo de nossa escuna sem ser convidado, Gabrielle.
Ninguém.
— Estou contente por Jean ter você como sócio. Ainda que haja uma mancha em
seu passado.
— Mancha? — Phil levou a mão ao coração, num gesto dramático. — Imagino que
meu sócio lhe contou sobre minha exoneração da Marinha:
—Disse que você matou um homem, mas não explicou a razão.
— Você se parece tanto com Delphine — observou Phil, mudando de assunto.
— Pelo jeito você gosta muito da menina.
— É claro. Eu a vi crescer desde que era um bebê.
— Precisamos tirá-la de New Orleans — afirmou Gabrielle. — Delphine parecia
tão infeliz em suas cartas. Algo está errado. Tenho certeza.

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Cherie Claire Gabrielle
Phil continuou a remar pensativo e logo chegaram a ilha, coberta de palmeiras e
trepadeiras.
— Para onde está me levando? — indagou Gabrielle sentindo medo.
O bote bateu na areia. Phil desceu e arrastou-o sobre a pequena praia. Deu a
mão a Gabrielle, que estava paralisada.
— Não vou machucá-la, Gabrielle. Uma vez Jean salvou minha vida. Eu mataria
qualquer homem que ferisse alguém de sua família.
Phil estava sendo sincero. Mas havia algo obscuro nele, alguma coisa que a fazia
sentir calafrios.
Ela deu-lhe a mão e desembarcou. Então Phil puxou o bote para os arbustos e o
cobriu com folhas de palmeiras.
Percorreram uma distância curta antes de Phil entrar na moita cerrada,
afastando a folhagem para Gabrielle passar. Havia uma trilha logo à frente.
— Siga-me — alertou Phil.
Andaram um pouco até entrarem numa clareira onde havia diversos tipos de
engradados na frente de várias choças.
— Contrabando — explicou Phil, piscando para Gabrielle. — E se você deixar
transpirar uma única palavra sobre isto para alguém, eu a amarrarei no topo da verga e
a chicotearei.
— Mentiroso!
— Ah, então não sente mais medo de mim? Mesmo com meu passado?
— Aposto que Jean nunca lhe falou sobre mim — provocou Gabrielle. — Sobre os
soldados ingleses e as gargantas que cortei enquanto dormiam.
— É mesmo? — Phil cruzou os braços e a fitou, tentando não sorrir.
— Se eu fosse você, dormiria com um olho aberto — alertou Gabrielle com um
olhar arrogante.
— Vou me lembrar disso — disse Phil, dando uma gargalhada,
Gabrielle sentiu-se triunfante, ainda que fosse bobagem trocar galhofas com
um homem adulto. Queria mostrar a Phil que era capaz de fazer parte da tripulação,
ainda que apenas numa guerra de palavras.
— As provisões estão na casa de Jean — contou Phil, dirigindo-se a habitação de
pior aparência. — Devo adverti-la que é muito precária.
Então era isso que acontecia aos homens na ausência de mulheres, pensou
Gabrielle ao entrar e se deparar com um quati comendo no guarda-louça de Jean e
três galinhas bicando no chão de terra muito sujo. A única mobília era uma mesa
rústica, duas cadeiras e uma rede que já vira dias melhores.

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Cherie Claire Gabrielle
— Em geral Jean é mais asseado — contou Phil em defesa do amigo. — Nos
últimos meses esteve muito preocupado.
Gabrielle pensou outra vez que ia precisar esperar a bordo do navio enquanto os
homens entrariam furtivamente na cidade à procura de seu pai. Lembrou-se da querida
Delphine, que não sabia que agora tinha uma madrasta, uma jovem que simpatizava com
seu desejo de viver no mar.
— Preciso acompanhá-lo — sussurrou Gabrielle, esperando que Phil discutisse,
que repetisse o que Jean lhe dizia.
Mas Phil ficou em silêncio. Apanhou um engradado do chão e o levou para fora.
Gabrielle pegou outro engradado e o seguiu. Trabalharam em silêncio, levando munição
e provisões para o início da trilha.
— Fique aqui — disse Phil afinal, dando-lhe uma maçã. — Vou levar tudo isso
para o bote.
Gabrielle sentou-se num degrau da casa de Jean, prestando atenção aos sons a
seu redor. As águas do golfo marulhavam perto da ilha enquanto pássaros coloriam o
céu. Quando Phil retornou, depois de terminar seu trabalho, apoiou uma bota no
pórtico onde ela estava sentada e o cotovelo no joelho.
— Uma vez eu me apaixonei — começou a contar sem olhar para Gabrielle. — A
jovem estava prometida a outro, por isso procurei refúgio na Marinha. Na noite
anterior a seu casamento, deram-me licença para ir a terra, e a tentação foi
demasiado forte.
Ele fez uma pausa e olhou para longe. Gabrielle engoliu a custo o pedaço de maçã
parado em sua garganta.
— Seu noivo nos apanhou juntos e me desafiou para um duelo. Matei o futuro
marido de minha amada na manhã de seu casamento.
Finalmente, a maçã deslizou pela garganta, mas Gabrielle começou a sentir
dificuldade para respirar.
— Peguei um navio que ia para o Caribe e enterrei minhas mágoas no rum —
continuou Phil. — Uma noite, depois de eu me envolver numa luta com seis piratas,
Jean livrou-me de ser surrado até a morte. Deu-me um trabalho e uma chance para me
redimir. Devo-lhe tudo.
— Por que me contou tudo isso? — indagou Gabrielle.
— Acho que deve saber que o Novo Mundo está cheio de homens como eu. É um
lugar perigoso.
— Você quer que eu pare de pedir para ir a New Orleans junto com vocês —
concluiu ela, desapontada. — Quer que eu fique para trás na escuna.
— Ao contrário — refutou Phil estendendo a mão. — Quero que saiba com quem
vai se defrontar.

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Cherie Claire Gabrielle
Gabrielle olhou a mão a sua frente, tentando entender o que significava e aonde
ele a levaria em seguida.
— Venha — convidou Phil. — Vou ensiná-la a atirar.
— Atirar?
— Para nos acompanhar precisa saber se defender. — Com um puxão, Phil fez
Gabrielle ficar em pé.

Capítulo VIII

Jean puxou o bote sobre a areia e a escondeu dentro da moita. Avistou o outro
bote escondido, o que o aliviou um pouco, mas ainda sentia um vago receio.
Ha várias horas Phil e Gabrielle haviam partido para buscar uns poucos
engradados de provisões, e a noite estava se aproximando. Apenas algum perigo
poderia tê-los impedido de retornar. Por que estariam demorando? Sua mente doía de
preocupação.
— Tenho certeza de que deve haver uma explicação razoável — disse Mathurin
ao se aproximar de Jean e reconhecer o bote.
Jean consentiu, com medo de dar voz a seus temores. Caminharam pela trilha,
observando suas costas. Ao ouvirem um tiro vindo do centro da ilha, os dois correram
até alcançarem a clareira.
Jean chegou primeiro, seu coração batendo acelerado. Deparou-se com Phil, em
pé ao lado de Gabrielle, que segurava, radiante, uma pistola ainda fumegando na mão.
— Bem na hora — disse Phil. — Você não imagina como essa mulher tem jeito
para armas de fogo.
Jean não sabia se devia estrangular o sócio ou abraçar a esposa por gratidão.
Pela primeira vez em várias horas sentiu alívio.
— Qual o problema, Jean? — indagou Gabrielle. — Está sem fôlego.

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Cherie Claire Gabrielle
Quando Mathurin chegou, ofegante, os sorrisos dos rostos de Phil e de
Gabrielle desapareceram.
— Não estavam preocupados conosco, estavam? — indagou Phil.
Jean respirou fundo para controlar a irritação. Ainda sentia vontade de
estrangular o sócio.
— É claro que estávamos preocupados! Não percebeu que está escurecendo?
— Bobagem — respondeu Phil, dando um tapa nas costas de Jean. — Falta ainda
uma hora antes do pôr-do-sol e preciso ensinar sua esposa a manejar uma espada.
“Armas e espadas?” — pensou Jean. O que estava ocorrendo ali?
— O que está fazendo com uma pistola carregada?—perguntou a Gabrielle.
— É uma exímia atiradora — respondeu Phil antes que Gabrielle pudesse
pronunciar uma palavra.
Jean deu um passo à frente para tirar a pistola da mão de Gabrielle, mas ela
recuou.
— Acertei todos os alvos. Também sei como carregar a arma.
— Para que precisa disso? — indagou Jean.
— Para o caso de nos defrontarmos com problemas — explicou Gabrielle.
Jean levou um momento para registrar o que ouvira e quando isso aconteceu,
abanou a cabeça, frustrado. A mulher se recusava a ceder.
— Você não vai comigo — declarou Jean, tentando não ranger os dentes. Mas
Gabrielle cruzou os braços diante do peito, a pistola quente ainda na mão. — Você não
vai para New Orleans — repetiu ele.
Lágrimas afloraram aos olhos dela, que piscou tentando escondê-las.
— Lamento, Gabi, mas é demasiado perigoso.
Phil se aproximou de Jean, colocou os braços em seus ombros e o levou para
longe.
— A resposta é não — disse Jean, imaginando que Gabrielle já teria
transformado seu sócio em aliado.
— Ouça, Jean. Só peço que você reflita sobre isso.
— Refletir sobre o quê? Quer que eu leve minha esposa para dentro de uma
cidade onde poderei ser preso?
— Estaremos com você, Jean — interveio Mathurin. — Nada acontecerá a ela,
garanto-lhe.
— Você também pode ser preso — contestou Jean.
— Quem ia prender um inocente acadiano? — respondeu Mathurin. — Ninguém

84
Cherie Claire Gabrielle
vai me incomodar.
Jean sentiu-se encurralado pela incompreensão dos amigos. Gabrielle era
corajosa e inteligente, mas, era mulher. Não temiam por sua segurança como ele? Ou
talvez fosse a profundidade de seu amor que o levasse a ser mais protetor. Ao olhar
para a esposa, com os braços ainda teimosamente cruzados à frente do peito, desejou
abraçá-la, mantê-la isolada do mundo cruel que os cercava.
— Quero a segurança de minha esposa. Por que não entendem isso?
— Porque ela não é um pássaro para viver numa gaiola — explicou Mathurin. — É
uma mulher que quer encontrar o pai. Não deve ficar dentro de uma embarcação
enquanto você se esgueira por New Orleans à procura de um homem que jamais viu.
— Gabrielle agora também é mãe de sua filha — acrescentou Phil. — E está na
hora de levar Delphine para casa.
O pesadelo retornou. Jean planejara visitar Delphine, certificar-se de que
estava sendo bem cuidada, que estava recebendo o dinheiro que ele enviava. Buscá-la
era uma opção.
— Se entrarem na cidade como marido e mulher, à noite, serão menos notados
— comentou Phil. — Gabrielle pode usar vestido e capa. As pessoas vão achar que é um
casal indo ao teatro. Nós os seguiremos por toda parte. Quando você entrar no pátio
da casa de Phyney, acompanharemos Gabrielle ao convento para encontrar o pai.
— Não a deixaremos sozinha um momento — insistiu Mathurin.
— E o que acontecerá se as autoridades também a levarem? — Jean começava a
ceder, mas ainda não estava convencido.
— Jean? — chamou Gabrielle.
Os três homens se voltaram e viram-na carregar a pistola, depois engatilhar a
arma e apontar para o céu. Devagar, ela se virou, mirou uma vela acesa no outro lado e
disparou. Enquanto os homens fitavam atónitos, a ponta da vela apagou.
— Ora, vejam só! — exclamou Mathurin.
Quando Gabrielle se virou, os olhos exprimindo autoconfiança e o cabelo curto
caindo até os ombros, Jean admirou sua habilidade e coragem. Desde que se juntara à
tripulação, Gabrielle havia desabrochado. Como poderia negar seu pedido? Finalmente,
após anos de culpa pela separação da família, ela teria oportunidade para mudar a
difícil situação que, em sua imaginação, havia criado na Nova Escócia. E como era
exímia no manejo da pistola! Mathurin estava certo. Gabrielle não era uma mulher para
ficar engaiolada. O mesmo se aplicava a Delphine.
— Nunca se afaste de meu lado — insistiu Jean suspirando, derrotado. — Siga
minhas ordens. Sem discussões.
Gabrielle reprimiu um sorriso, enquanto ele começava uma longa lista de
instruções.

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Cherie Claire Gabrielle
— Não vou desapontá-lo — sussurrou ela e o abraçou.
Jean sentiu-se pouco à vontade pela demonstração de afeto na frente de seus
homens, mas colocou as mãos na cintura de Gabrielle e deu-lhe um ligeiro aperto.
— Venha — pediu ele. — Precisamos retornar.
— E quanto a lição de esgrima? — indagou Phil.
— Lição de esgrima? Estamos planejando alguma luta a caminho da cidade? —
retrucou Jean.
— Só estava curiosa — explicou Gabrielle, tentando aliviar a ansiedade de Jean.
— Acho que devemos partir.
Todos se movimentaram, exceto Jean, que começou a dar passos para frente e
para trás na areia.
— Imagino que você pretendia ensinar-lhe. — Para surpresa de todos, Jean
retirou a espada da bainha e a apontou para Phil.
— E por que não? — replicou o amigo sorridente.
— Porque você não pode sair de um convento esgrimindo — provocou Jean.
Phil deu um passo para trás, pegou sua espada e os dois homens começaram a
andar em círculos.
— Observe com atenção, querida — disse Jean, — Vou lhe mostrar como vencer
um inimigo.
— Está sonhando, meu velho — retrucou Phil, e as espadas se encontraram.
Os dois começaram a dar estocadas um contra o outro, o aço das espadas
brilhava ao sol do fim da tarde. Riram e se insultaram enquanto avançavam e se
defendiam, felizes por estarem se confrontando.
— Estão loucos? — indagou Gabrielle.
—São meninos e sempre serão meninos — respondeu Mathurin dando risada.
Phil rasgou a manga de Jean com um movimento hábil. Jean avançou para o
amigo, agitando sua lâmina com rapidez até encurralá-lo contra uma choça. Então, com
um rápido movimento da espada, Jean arrancou a faixa ao redor da cintura de Phil.
— Era de seda. Vai pagar por isso, meu velho.
— Velho? — indagou Jean com um sorriso. — Não confunda idade com destreza.
Phil adiantou-se, ansioso para provar o contrário, mas se desequilibrou, Com dois
golpes rápidos, Jean pressionou a ponta da lâmina contra a garganta de seu adversário.
— Agora você sabe o que é ter uma lâmina espetada na garganta — disse
Gabrielíe para Phil.
— É esse o agradecimento que ganho por ensiná-la a atirar?

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Cherie Claire Gabrielle
— Não, este é o agradecimento. — Gabrielle ficou na ponta dos pés e beijou Phil
na face.
—Mulheres — queixou-se Phil, embora Gabrielle tenha notado um ligeiro rubor
em seu rosto.
— Nunca fique demasiado ansiosa —instruiu-a Jean, enquanto caminhavam de
volta pela trilha. — Use a espada para se defender e deixe o oponente avançar, faça-o
gastar sua energia. Só avance quando perceber uma oportunidade.
Ao alcançarem apraia, Jean estendeu-lhe a espadae lhe mostrou como segurá-la.
— Mantenha os pés plantados firmes no chão e a lâmina alta a sua frente. Nunca
tire os olhos de seu adversário.
— Obrigada — agradeceu Gabrielle seguindo as instruções, muito emocionada.
Jean a estava ensinando a esgrimir! Será que fazia ideia do quanto isso significava
para ela?
— Vamos. Está na hora de irmos para New Orleans — declarou Jean afinal.

Os dias transcorreram com tempo turbulento e Gabrielle ansiava pelo conforto


de roupas secas e um lugar fresco para dormir. Mas mesmo no meio da fúria da
natureza, ela se maravilhava por ter se tornado útil à tripulação. Ajudava a consertar
as velas, revezara-se em turnos junto ao timão, aprendia muito sobre navegação e
remendava as roupas dos homens. Estes não diziam muito, mas o reconhecimento era
evidente em seus semblantes.
A escuna subiu pelo passo Barataria o máximo possível, depois dois botes foram
baixados para o percurso através do bayou. Phil, Mathurin, Jean e Gabrielle foram
num bote, enquanto dois outros tripulantes foram no outro.
Remaram várias horas, à luz do luar, até o bayou se alargar e encontrar o rio
Mississippi. Os homens fizeram uma pausa à vista das águas agitadas, recuperando o
fôlego antes de enfrentar as fortes correntes.
— Como vamos atravessar? — perguntou Gabrielle.
— Depressa — respondeu Jean. — A corrente vai nos levar algumas léguas rio
abaixo, e é exatamente o que desejamos.
Mathurin fez um sinal. Os botes se afastaram da praia e foram imediatamente
arrastados pelas águas impetuosas. Remaram com toda as forças. Gabrielle temeu
jamais alcançarem o outro lado sem serem varridos para o golfo, mas, como Jean
predissera, aproximaram-se da terra bem ao norte da cidade. Os homens saltaram dos
botes e os puxaram para a margem.
Do outro lado da barragem havia uma choça erma, oculta por uma fileira de
carvalhos. Os botes ficariam ali a cuidado dos tripulantes.
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Cherie Claire Gabrielle
O grupo dirigiu-se para New Orleans, seguindo ao longo da estrada a margem do
rio. O número de casas aumentava a medida que caminhavam. De repente, viram-se
descendo a Decatur Street, em meio ao burburinho da cidade portuária. Jean pegou o
braço de Gabrielle e passou a tocar a ponta de seu chapéu em cumprimento polido aos
passantes. Phil e Mathurin seguiam atrás do casal.
Ao chegarem aos portões do Convento das Ursulinas, Jean segurou o braço de
Gabrielle.
— Preciso encontrar Delphine. Phil e Mathurin ficarão com você.
Uma freira se aproximou do portão, por isso Jean se inclinou para não ser
ouvido.
— Devo falar com Louise sobre minha filha e é melhor que eu faça isso sozinho.
— Não se preocupe Gabrielle — tranquilizou Phil. — A casa fica uma rua acima e
Jean sempre segue a viela para a entrada dos fundos. Não corre perigo. Nós o
seguiremos logo que soubermos de seu pai.
— Mas por que um de vocês não pode...
A freira perguntou a razão da visita do grupo. Gabrielle explicou sua situação e
pediu para visitar a enfermaria. Quando a freira abriu o portão, Gabrielle se virou
para falar com Jean outra vez, mas ele já havia partido.
— Venha — chamou Mathurin pegando Gabrielle pelo braço. — Vamos encontrar
seu pai.
As intermináveis provações familiares iam chegar ao fim. No entanto, ela sentia
dúvidas, achava que estava faltando algo. Enquanto seguia a freira para o pátio do
convento, temeu não encontrar o pai. E, de algum modo, sabia que Jean corria perigo.

Jean pulou o muro do pátio, evitando o ranger do portão que denunciaria sua
chegada. A casa estava escura e silenciosa, exceto por uma única vela na cozinha dos
escravos. Onde estariam Delphine e Louise?
Desembainhando a espada, Jean entrou no pátio e se dirigiu à casa. Havia dado
apenas alguns poucos passos quando avistou Louise sentada num banco na varanda,
estranhamente silenciosa e imóvel. Não conseguia enxergar seu rosto nas sombras,
mas reconheceu o vestido favorito de seda violeta, que um admirador lhe trouxera de
Paris. Recolocou a espada de volta na bainha e suspirou grato por encontrá-la em casa
e por tudo estar do mesmo modo como deixara. Agora, precisava convencê-la a deixar
Delphine partir.
— Louise — disse ele a poucos passos.
A figura sentada saltou em pé e se virou. Antes de Jean perceber que Delphine
estava a sua frente, ela se lançou em seus braços.
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Cherie Claire Gabrielle
— Graças a Deus você veio, papai.
O tom de voz da filha o alarmou. Jean tentou afastá-la, para poder perguntar o
que havia acontecido, por que ela estava usando as roupas da mãe, mas Delphine não o
soltava.
— Minha filhinha — sussurrou ele.
— Maman morreu — contou Delphine, afastando-se afinal, lágrimas correndo
por seu rosto.
— Quando? Como?
— Um mês atrás, dois meses, não lembro. — Delphine abanou a cabeça, agindo
como uma pessoa em choque. — Foi tudo repentino. Após o duelo, ela ficou doente e
nunca mais se recuperou.
— Lamento, querida. — Jean abraçou outra vez a filha. — Já avisou o Conde?
— Não vou para a França — negou Delphine com firmeza,
— É claro que não — respondeu Jean. — Vai embora comigo esta noite. Diga a
Carmeline para preparar suas coisas imediatamente.
— Já estou preparada. — Delphine pegou um lenço do bolso e assoou o nariz.
— O que aconteceu?
— Aquele homem horrível, o pai de Mareei Prevost, tem me ameaçado — contou
Delphine.
Jean visualizou com clareza o rosto do homem espicaçando o filho aterrorizado
para prosseguir o duelo.
— Ameaçou você? Como? — indagou Jean furioso.
— Afirmou que se o conde não enviar uma mensagem até esta noite, eu ficarei a
seu cargo e ele assumirá a casa em nome do governador. Carmeline vai trazer o coche
por trás da casa. Estávamos para fugir da cidade.
— Isso é loucura — disse Jean. — Prevost não tem o direito de fazer isso.
— Precisamos partir, papai — pediu Delphine assustada. — Ele não pode
encontrá-lo aqui. Mandaria prendê-lo.
— Prevost vai encontrar a ponta de minha lâmina se chegar — afirmou Jean.
Mas Delphine continuava ansiosa. Segurou a mão do pai e o levou ao portão do
pátio.
— Por favor, papai. Devemos nos apressar.
— Delphine, não se preocupe. Ninguém vai tirá-la de mim. Quero esperar o
degenerado para resolver o caso tirando-lhe a vida.
— Vai ser o contrário — afirmou Edouard Prevost, chegando por trás.

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Cherie Claire Gabrielle
Jean virou-se depressa. Mal teve tempo de desembainhar a espada, pois em
poucos segundos o pátio ficou repleto de homens.
— É exatamente o que planejo fazer — prosseguiu Edouard. — Do mesmo modo
como roubou meu filho de mim.
Vários soldados desembainharam as espadas e se aproximaram. Jean empurrou
Delphine em direção à cozinha.
— Seu filho me desafiou e você sabe muito bem disso — contestou Jean.
— Prendam-no — ordenou Edouard. — Este é Jean Bouclaire, procurado por
assassinato.
— Sobre meu cadáver — reagiu Jean.
— Isso é fácil, capitão Bouclaire. — Edouard deu uma risada. — Mas não tenha
medo. Cuidarei bem de sua filha.
Jean sentiu tanto ódio que se precipitou contra seus atacantes, cego para tudo,
exceto para o sorriso hipócrita de Edouard. Conseguiu ferir dois homens, mas havia
rompido as regras básicas da luta. Gastara sua energia e não vigiara as costas. Viu-se
cercado.
— Está planejando fazer seus homens me apunhalarem pelas costas, do modo
como ensinou seu filho a fazer?
Por um breve momento, o rosto de Edouard deixou transparecer um vestígio de
culpa.
— Levem-no — ordenou. — É um homem perigoso.
— Cuidado.
Jean ouviu o grito de Delphine antes de sentir o golpe na nuca. Tropeçou,
ajoelhou-se e se virou para a filha.
— Gabrielle! — sussurrou antes de mergulhar na escuridão.

Gabrielle ouviu a explicação da freira. Um homem anônimo, que as freiras


chamavam René LeBlanc, um dia ficara violento e atacara dois homens que tentavam
acalmá-lo. Havia fugido do convento e nunca mais se soubera de seu paradeiro.
— Por que não acreditou quando ele lhe disse que era meu pai? — indagou
Gabrielle a irmã Marguerite.
— Foi fudo culpa daquela criança desonrada que o visitava todos os dias —
respondeu a religiosa. — Criança horrível, nascida do pecado. Ela o incitou à raiva. Não
há modo de saber se é seu pai.
A face de Gabrielle queimou ao ouvir a resposta, mas não tinha tempo para

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Cherie Claire Gabrielle
replicar. Phil, que se havia encostado a um muro, ouvia em silêncio a explicação da
freira. De repente endireitou-se furioso.
— Aquela criança horrível é enteada desta mulher — gritou ele. — Como ousa
falar sobre Phyney desse modo?
Gabrielle levantou-se, pegou Phil pelo braço para acalmá-lo, mas sentia-se
igualmente indignada.
— Se Delphine disse que ele era meu pai, então era meu pai — afirmou ela,
refreando a ira. — Aonde foi o homem a quem chamavam LeBlanc?
— Não sei. Fizemos tudo o que podíamos por ele. Se for seu pai, sem dúvida está
a caminho do posto Attakapas. — A freira empalideceu, reassumiu a postura arrogante
e levantou-se para se retirar.
— Não! — Gabrielle sentia a cabeça latejar. Devia levar o pai para casa. A visão
de Marianne havia indicado isso. Joseph ainda devia estar em New Orleans.
— Lamento — disse a irmã Marguerite com sinceridade.
— Ela lamenta — caçoou Phil, dando passos pela pequena biblioteca. — Gostaria
de fazê-la lamentar-se de verdade.
— Phil — ralhou Mathurin. — Cuidado com o que diz.
Desapontados, não haviam percebido outra freira sentada no canto, uma mulher
miúda, cujos olhos castanhos se arregalaram ao ouvir os comentários de Phil.
— Faz alguma ideia de onde meu pai possa estar? — indagou-lhe Gabrielle.
— Só sei que Delphine tem perguntado por ele todos os dias. Deve ter
procurado em todas as enfermarias. Não será fácil encontrá-lo.
O pânico de Gabrielle se intensificou. Aonde fora seu pai?
— Por favor, não fique magoada com as palavras da irmã Marguerite —
acrescentou a jovem freira. — Delphine é uma menina persistente e a irmã Marguerite
não tolera descortesias.
O orgulho de Gabrielle pela enteada redobrou, mas o medo por sua segurança e
pela de Jean retornou. Sentia-se ansiosa por Jean ter ido sozinho à casa Delaronde.
Virou-se e avistou Phil e Mathurin conversando preocupados.
— Vamos para a margem do rio — explicou Phil. — Temos amigos lá que talvez
saibam o paradeiro de seu pai.
— O que devo fazer? — indagou Gabrielle.
— Fique aqui e espere por Jean ou por nós — disse Mathurin.
Os dois colocaram o chapéu na cabeça e saíram, deixando Gabrielle sozinha. A
pequena freira ofereceu-lhe algo para comer, mas ela estava preocupada demais para
aceitar.

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Cherie Claire Gabrielle
— Posso sair para tomar ar? — pediu Gabrielle.
— É claro — replicou a freira e a levou para um pátio fechado por paredes de
tijolos.
O jardim recendia a gardênias e a jasmim em flor, e o aroma pungente do ar
noturno aumentava-lhe a dor de cabeça. O que devia fazer? Onde começar
procurando?
Gabrielle começou a andar ao redor e seu coração se aquietou. A frente estava
o banco onde Delphine aparecera sentada, em sua visão, com Joseph ao lado.
— Onde está você? Oh, papai, onde está você? — perguntou Gabrielle em voz
alta.
Não houve resposta, nenhum sinal de que o fim de seu sofrimento estivesse
próximo. Deixou-se cair no banco, os ombros baixos ao peso da dor, enterrou a cabeça
nas mãos e começou a soluçar,
De repente, uma bolota caiu de um carvalho próximo, sobressaltando-a ao
atingir o pavimento de tijolos. Rolou para baixo do banco e parou contra algo branco.
Gabrielle inclinou-se e pegou um lenço, demasiado pequeno para ser de um
adulto. Examinou o tecido, sujo por ter estado exposto aa tempo. Não conseguiu
distinguir as iniciais, por isso aproximou-se da lanterna do jardim e o analisou com
atenção sob a luz. Ao passar os dedos sobre o bordado, soube quem havia segurado o
pequeno lenço.
—Posso buscar-lhe algo, senhora? — indagou a pequena freira. — Talvez queira
tomar chá no jardim?
Segurando o lenço, vendo as imagens correrem por sua mente, Gabrielle teve
certeza de que Delphine corria perigo.
—Não, obrigada—agradeceu, cobrindo a cabeça com o manto. — Mas gostaria de
saber onde reside a srta. Delaronde.
— Não deve ir lá a esta hora — respondeu a freira. — Deveria esperar pelos
homens para acompanhá-la.
—Não posso esperar—alegou Gabrielle, parando junto à porta. — Se não me
contar, descobrirei sozinha onde mora Delphine.
— Siga por Chartres um quarteirão, depois vire à direita e suba pela Rue Royal
— explicou a freira enquanto se dirigiam ao portão de entrada.—A casa fica no canto,
do lado do rio e tem venezianas verdes.
— Obrigada — agradeceu Gabrielle,
Depois, ignorando todas as instruções de Jean, deixou a segurança do convento
e caminhou sozinha na noite escura de New Orleans.

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Cherie Claire Gabrielle

Pela primeira vez em meses, Delphine não sentia medo. Edouard Prevost havia
atacado seu pai, mandara prendê-lo, retirara Carmeline da casa e a havia trancado
dentro da biblioteca. Somente Deus sabia o que o horrível homem planejava, mas
Delphine recusava-se a chorar. Só sentia ódio.
— Você é o homem mais desprezível que já encontrei — acusou a menina. —
Matou seu próprio filho. Atacou meu pai por trás. Agora quer molestar uma criança.
— Você não é criança — contestou Edouard, zangado.— Filhas de prostitutas
crescem para serem prostitutas.
Delphine tentou dar um tapa em seu agressor, mas ele pegou seu pulso e o
apertou com força.
— Você e sua família vão pagar pelo que fizeram contra mim — ameaçou o
homem virulento.
— Foi você quem levou seu filho à morte — acusou Delphine, antes de levantar
um joelho e atingir Edouard na virilha.
Ante o impacto, os olhos do homem reviraram, e ele soltou o pulso de sua presa.
Delphine correu para a porta, mas não havia chave para abri-la.
— Vadia idiota! — esbravejou Edouard. — Não vai conseguir escapar.
Delphine observou o ambiente, viu o abridor de carta sobre a escrivaninha e fez
um movimento para pegá-lo, mas Edouard agarrou-a pelo tornozelo e a derrubou. A
menina virou-se e começou a atacar o homem com os punhos.
— Não conseguirá me escapar, minha cara — avisou Edouard, forçando Delphine
a ficar de costas no chão. — Vou arruiná-la antes de você sair daqui.
Delphine cuspiu no rosto de seu agressor, mas isso só o enfureceu ainda mais,
levando-o a esbofeteá-la. A menina sentiu algo quente na boca. No entanto, ainda
assim, não se renderia ao medo.
— Miserável! Nunca conseguirá me arruinar.
Edouard segurou os braços de Delphine com uma das mãos e rasgou a parte da
frente de seu vestido com a outra. Agarrou seus seios com força animalesca. Delphine
fechou os olhos e se virou, concentrando-se na cruz de madeira em seu peito,
presente de Gabrielle. Enquanto Edouard puxava seu vestido para cima dos joelhos, a
menina lembrou-se da tarde em que Gabrielle lhe enviara a cruz, do dia em que Parrain
se lembrara do próprio nome, Edouard não a possuiria. Jamais macularia sua alma. Ao
sentir a mão deslizar por sua perna, Delphine encolheu-se e fechou os olhos. Apesar
de sua coragem, estava apavorada. Ouviu Edouard desabotoar as calças, mas recusou-
se a olhá-lo.
— Olhe para mim, vadia. Quero que veja eu arruiná-la.
Delphine apertou os olhos com mais força, mas poderia jurar ter ouvido uma
93
Cherie Claire Gabrielle
pistola ser engatilhada. Uma corrente de ar passou sobre suas pernas e Edouard
apertou com menos força suas mãos.
— Solte-a — ordenou uma voz. — Saia de cima de minha filha, neste instante!
Delphine pensou ter enlouquecido, até sentir que Edouard soltara seus braços.
Ela virou a cabeça em direção à voz e avistou uma mulher em pé, mas seu rosto estava
oculto por um manto.
— Quem é você? — indagou Edouard, ajoelhando-se. — Como ousa entrar aqui?
Delphine pegou um candelabro de bronze de uma mesa próxima e o bateu contra
a nuca de Edouard. Este tropeçou e caiu no chão. A menina levantou-se, apertando o
vestido rasgado contra o peito, e se aproximou da estranha. Para consternação de
ambas, Edouard gemeu e conseguiu ficar em pé.
— Vadias! Mandarei enforcar as duas!
—Eu o mandarei para o inferno primeiro — ameaçou a estranha que alegara ser
mãe de Delphine e continuava a olhar fixamente Edouard.
A estranha tirou o manto, revelando a cabeça com cabelos negros cortados na
altura do pescoço.
— Meu nome é Gabrielle e sou pirata. Onde está Jean?
Delphine observou a mulher que roubara o coração de seu pai, a mulher cujas
cartas a haviam enchido de amor e conforto, a filha do gentil Parrain. Pretendia
Gabrielle matar esse homem?
— Não me importa quem você é — retrucou Edouard. — Sou um oficial do
governo espanhol. Você não tem o direito de interferir nesta casa.
Gabrielle deu um passo a frente, a arma ainda engatilhada e carregada e
Delphine percebeu o medo nos olhos de Edouard.
— Onde está Jean? — repetiu Gabrielle.
— Os soldados o atacaram por trás — informou Delphine. — Meu pai foi enviado
ao cabildo, a sede do conselho municipal da cidade.
— Sente-se — ordenou Gabrielle, apontando para a escrivaninha com a ponta da
pistola.
— O quê? — indagou Edouard.
— Você ouviu — disse Carmeline junto à porta.
Delphine virou-se e viu sua criada e amiga segurando um rolo de corda.
— Vocês não vão escapar a uma punição por isso. — Desta vez Edouard parecia
receoso.
Gabrielle se aproximou e encostou a lâmina de seu punhal na garganta do homem
arrogante. Sua pistola continuava apontada e bastaria um tiro para acabar com ele.

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Cherie Claire Gabrielle
— Matarei qualquer um que ameaçar minha família. Faça um movimento qualquer
e cortarei sua garganta ou estourarei sua cabeça. Agora, a menos que deseje ter suas
vísceras expostas, sugiro que se sente.
Edouard obedeceu logo, tomando cuidado com a lâmina em sua jugular. Gabrielle
levantou a pistola um pouco para aumentar o impacto.
— Escreva uma carta reconhecendo sua culpa. Explique o que aconteceu de fato
no duelo, naquela manhã, inocente Jean de todas as acusações.
Edouard pegou uma pena e um pergaminho e começou a escrever.
— Delphine — chamou Gabrielle. — Pegue suas roupas e fique pronta para partir.
Por um instante, os olhos das duas se encontraram, Nesse breve momento,
Delphine sentiu esperança. Ainda tinha uma família, inclusive uma pirata acadiana de
cabelo curto, que ia tentar libertar seu pai. Nem tudo estava perdido.
A menina corria para a entrada, em direção à escada, quando se chocou contra o
peito de um homem alto. Pensou em gritar, para alertar Gabrielle que os soldados
haviam retornado, quando duas enormes mãos a agarraram e a seguraram.
— Phyney, você está bem?
— Tio Phil! Gabrielle está na biblioteca apontando uma arma contra Edouard
Prevost. Ela o está obrigando a escrever uma carta para inocentar papai.
— Onde está Jean? — indagou Phil, observando as roupas rasgadas da menina.
— No cabildo — contou Delphine.
— Vista-se, Phyney. — Phil tirou o casaco e o colocou nas costas de Delphine e
depois foi para a biblioteca.
Entrou no aposento e Delphine o seguiu. Edouard terminara de escrever a carta
e a estava entregando a Gabrielle quando os dois chegaram. Carmeline começava a
amarrar a corda ao redor do peito do homem.
—Nunca vão escapar à punição — praguejou Edouard. — Nunca deixarão a
cidade.
— E você jamais verá a luz do próximo dia — esbravejou Phil antes de dar um
soco na face direita do homem.
O sangue corria do rosto de Edouard e sua cabeça caiu para frente quando ele
ficou inconsciente. Phil pegou o punhal de Gabrielle e o ergueu em direção ao peito de
Edouard, mas ela o impediu.
— Não faça isso. Ele não vale a pena, Phil. Já conseguimos o que precisávamos.
Guarde sua energia para mais tarde.
— O miserável machucou minha Phyney!
Essas palavras fizeram irromper as emoções que Delphine reprimia, e lágrimas
afloraram a seus olhos. Ela segurou a maçaneta da porta para se firmar, temendo cair,
95
Cherie Claire Gabrielle
mas precisava acalmar Phil. Não podia permitir que o amigo arruinasse a vida por sua
causa.
— Não o mate — suplicou a menina.
Quando Phil se virou para olhar Delphine, seus olhos exprimiam uma mistura de
proteção e amor profundo.
Phil deixou cair o braço e devolveu o punhal a Gabrielle. Pegou a corda das mãos
de Carmeline e a enrolou apertada ao redor de Edouard. Depois o amordaçou com seu
lenço. Enquanto isso, Gabrielle se aproximou de Delphine e a abraçou.
— E papai? — perguntou a menina soluçando.
— Vamos libertá-lo, não se preocupe — declarou Phil aproximando-se. — Existe
algum cavalo para nós?
— Delphine tem um coche pronto para viaj ar — informou Mathurin entrando no
aposento. — O que está acontecendo aqui?
— É uma longa história, Mathurin — Delphine respirou fundo. As lágrimas
precisavam esperar. — Vou lhe contar tudo depois de tirarmos meu pai da prisão.
— Prisão? — Repetiu Mathurin confuso.
— Vamos logo — chamou Phil e o grupo atravessou o pátio para o coche
escondido na viela. Phil explicou seu plano e todos ouviram com atenção as instruções.
Se tudo corresse bem, resgatariam Jean e logo iriam embora da cidade.
Esperaram Delphine mudar de roupa e depois subiram no coche. Gabrielle
suspirou, seus ombros caíram pelo peso dos últimos acontecimentos. Quando fechou os
olhos e estremeceu, Delphine soube que tudo fora uma representação bem encenada.
— Não desista agora, Gabi — exortou Phil subindo no coche. — Só vencemos uma
batalha.
Gabrielle abriu os olhos, respirou fundo e concordou, mas estava assustada,
Depois de tudo o que acontecera com Edouard, agora iam se confrontar com um
possível fracasso na tentativa de libertar Jean da prisão.
— Foi magnífica — encorajou Delphine. — Estou feliz por você estar aqui.
— Tive bons professores — replicou Gabrielle com um sorriso. — E uma filha
corajosa que me ajudou.
Mathurin subiu no coche com a espada na mão. Carmeline já estava escondida
dentro do veículo. Phil fustigou os cavalos e o coche começou a descer a viela em
direção ao cabildo. Com um último olhar, Delphine observou a casa Delaronde
desaparecer junto com sua vida anterior.

O mundo ficara enevoado, mas Jean sabia onde se encontrava. Tentara resistir
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Cherie Claire Gabrielle
a entrar na cela do cabildo, pegara a espada de um soldado, mas estava atordoado pelo
latejamento na cabeça e o homem o vencera com facilidade. Se ao menos conseguisse
eliminar a sensação de náusea que o atormentava e pudesse voltar para perto de
Phyney!
O soldado o atirou dentro da cela e Jean tropeçou e caiu. Tentou levantar-se,
mas sentiu o chão girar e caiu de novo.
— Devagar — ouviu alguém dizer, mas ignorou a voz.
— Preciso procurar minha filha — disse ele ansioso, tentando levantar-se.
Outra vez, o mundo girou e ele escorregou para o chão.
— Tudo no devido tempo, meu amigo — disse a voz. — Você precisa descansar
um pouco.
—Não tenho tempo—replicou Jean, pensando em seu precioso anjo a mercê do
terrível Prevost. — Minha filha precisa de mim.
Aos poucos, o homem a sua frente ficou nítido. Era um homem de meia-idade, de
cabelo preto entremeado de fios brancos e olhos da cor do Mississippi. Fazia Jean se
lembrar de alguém.
—Está trancado numa cela, meu amigo — continuou o homem. — Não vai ajudar
sua filha antes de recuperar o senso de equilíbrio.
Jean rendeu-se, embora brevemente. Dobrou os joelhos a sua frente e inclinou
a cabeça contra o muro atrás. O lugar onde o golpe de Edouard o atingira latejava, mas
seu mundo começava a clarear.
— Quem é você? — indagou o homem sentado no catre e nada amigável.
— Preciso sair daqui — repetiu Jean, ficando em pé.
Devagar, chegou à frente da cela e olhou para fora.
Um soldado armado estava sentado junto a uma mesa, no fim do corredor,
conversando com outro soldado. A espada de Jean estava sobre a mesa, próxima a um
molho de chaves.
— E como sugere sair desta cela para pegar aquelas chaves? — indagou o
homem.
Jean virou-se e o movimento fez sua cabeça girar outra vez.
— Preciso alcançar minha família — repetiu Jean rangendo os dentes.
Sabia que isso era quase impossível, mas não ia ficar sentado sem fazer nada.
— Já tentei inúmeras vezes. — O semblante do desconhecido ficou sombrio e
ele passou os dedos no cabelo com nervosismo. — Não é o único que necessita
reencontrar a família.
— Deve haver um meio para sair daqui. — Jean começou a dar passos pela

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Cherie Claire Gabrielle
minúscula cela, para aliviar a ansiedade.
De repente, lembrou-se de suas armas. Tirou o casaco e procurou suas facas,
mas os soldados haviam encontrado todas. Quando sua mão passou por um lugar
quente, úmido sobre a camisa, percebeu que havia um corte no peito. Abriu a camisa,
para avaliar o ferimento. Ficou grato pelo corte não ser profundo, mas passou a ter
problemas de natureza diferente. Seu companheiro de cela aproveitou a oportunidade
para agarrá-lo peia frente da camisa e jogá-lo contra a parede.
— Droga! O que aconteceu? — perguntou Jean, esperando sua mente ficar
desanuviada para dar um soco no rosto de seu agressor.
— Onde conseguiu essa cruz? — gritou o homem.
— Tire suas mãos de mim! — esbravejou Jean, afastando o intruso.
Foi então que percebeu uma cruz de madeira, uma réplica idêntica à que usava,
pendurada no pescoço do homem. De repente, Jean soube por que ele lhe parecia
familiar.

Capítulo IX

— Meu Deus! — exclamou Jean. — Você é Joseph Gallant.


— E você quem é? — O homem soltou Jean ao ouvir seu nome e se afastou. — E
por que está usando a cruz de Gabrielle?
Jean endireitou a camisa e respirou fundo. Não estava preparado para
encontrar o sogro em condições tão embaraçosas.
— Gabrielle é minha esposa.
— O que está fazendo na prisão? — indagou Joseph com olhar acusador.
— Desculpe-me, senhor, mas estava para lhe fazer a mesma pergunta. '
— Eu estava a caminho do posto Attakapas, mas não tinha dinheiro. — Joseph

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Cherie Claire Gabrielle
começou a dar passos pela cela. —. Num ato de desespero, embarquei como clandestino
numa escuna que se dirigia a oeste, mas fui surpreendido e mandado para a prisão.
Se Jean não sentisse tanta dor de cabeça e não estivesse em pé diante do pai
de sua esposa, há tanto tempo desaparecido, teria dado risada.
— Deve ser um traço de família — disse ele.
A menção à família, fez Joseph se virar. Jean sentiu o poder enorme por trás
daqueles olhos preocupados. E compreendeu.
— Estão todos bem — tranquilizou Jean. — Emilie e Rose casaram-se e vivem no
posto Opelousas. Rose logo dará à luz e depois do nascimento da criança todos irão se
juntar a sua esposa, no Attakapas. Marianne está a sua espera nas terras que lhe
foram doadas. Todos gozam de boa saúde, exceto pelas mágoas do coração. Sentem
terrivelmente sua falta.
— Graças a Deus! E Gabrielle?
Jean sentiu um aperto no peito. Não deveria ter permitido que Gabrielle viesse
para New Orleans, não deveria tê-la exposto a tais perigos. Ao menos, ela estava em
segurança no convento.
— Gabrielle está bem e a salvo. Apesar de ter se casado comigo.
Joseph levantou-se e recomeçou a dar passos, parando junto às barras da porta
e segurando o metal com tanta força que impressionou Jean.
— Sua filha é Delphine Delaronde — afirmou Joseph de repente.
Jean sentia a cabeça começar a se desanuviar, mas ao ouvir o nome da filha o
latejamento recomeçou. Precisava sair dali. Logo.
— Sim — respondeu Jean nervoso.
— Então deve ser o capitão Bouclaire.
Jean nada disse, mas sabia que Joseph fizera a conexão. Delphine devia ter-lhe
contado tudo em suas visitas ao convento.
— Phyney está em perigo — disse Jean. — Preciso sair daqui.
— Tenho um plano — contou Joseph.
Após os dois homens tramarem sua fuga durante várias horas, Joseph chamou o
guarda.
— O que quer? — indagou o robusto crioulo.
— Aquele homem está ferido — replicou Joseph, batendo na cabeça e apontando
na direção de Jean. — Desfaleceu e não consigo acordá-lo.
— Então não o acorde — replicou o guarda.
— Ele está ferido — insistiu Joseph. — Tem um corte feio no peito. Parece
sério.

99
Cherie Claire Gabrielle
— Não tem importância. — O guarda se aproximou, mas ficou a alguns passos
das barras. — Provavelmente vai ser enforcado. Está sendo procurado por assassinato.
— Para mim não faz diferença se ele vai ser enforcado amanhã cedo —
prosseguiu Joseph, inclinando-se com displicência contra a pesada porta de metal. —
Está cheirando mal. E se ele sangrar mais um pouco, vou afogar aqui dentro.
Desta vez o guarda se aproximou mais e espreitou a cela, cauteloso. Incapaz de
avistar as condições de Jean, ele se aproximou das barras e olhou para dentro da cela.
Jean estava encolhido embaixo do catre e olhando para a parede. O guarda gritou-lhe,
mas não recebeu resposta. Jean não se moveu ao ser espicaçado pelo guarda com a
ponta do rifle, por isso o homem se inclinou para frente enfiando a cabeça através das
barras.
Joseph se moveu rápido e segurou a cabeça do guarda, imobilizando-o. O homem
tentou gritar, mas Joseph abafou sua boca com o lenço de Jean. O guarda levantou as
mãos para se defender, mas Jean agarrou-as e as prendeu contra a porta com tiras de
tecido rasgadas de sua camisa.
— Gabrielle não vai ficar satisfeita comigo — disse Jean. — Ela remendou esta
camisa.
— Estou surpreso por ela não estar aqui nos ajudando — disse Joseph. — A
última vez em que a vi...
Não havia, um momento a perder, mas Jean focou de leve o braço do sogro em
sinal de solidariedade. Depois ambos se endireitaram, pegaram as chaves e o rifle do
guarda e fugiram pejo corredor, deixando o homem amarrado às barras de ferro da
cela.
— Precisamos ser rápidos — alertou Jean. — O outro guarda pode suspeitar de
algo. Nosso amigo obeso está fazendo um barulhão apesar da mordaça.
Detiveram-se no fim do corredor e Jean espreitou o lugar. Para sua surpresa,
ninguém guardava a porta.
— É estranho.
— O quê? — indagou Joseph.
Como se a vista da prisão do cabildo sem guardas não fosse enigmática o
suficiente, avistar Gabrielle entrar apressada, uma pistola na cintura e um punhal na
mão, surpreendeu Jean mais ainda. Gabrielle o viu e ficou paralisada por encontrá-lo
livre, armado e na entrada da prisão. Finalmente, ambos se recuperaram.
— Deus amado, o que está fazendo aqui ?—indagou Jean preocupado.
— Não há tempo a perder — avisou Gabrielle. — Delphine está desviando a
atenção dos guardas.0 coche esíá a nossa espera do outro lado.
Joseph ficou tenso ao ouvir a voz da filha após treze anos de agonia. Mas Jean
só conseguia pensar que a esposa estava tentando livrá-lo da prisão e que sua filha

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Cherie Claire Gabrielle
estava fora, "desviando a atenção dos guardas".
— Jean, não pense em nada — suplicou Gabrielle, puxando-o pela manga. —
Precisamos sair daqui agora.
Ele obedeceu, sentindo-se melhor quando Phil chegou.
— Parabéns, meu velho — elogiou o amigo com um sorriso. — Você ainda sabe
lutar.
Jean pegou sua espada sobre a mesa do guarda, atirou outra para Joseph e
seguiu Gabrielle e Phil à porta.
— Delphine está com Mathurin — explicou Gabrielle esquadrinhando a rua. —
Não há tempo a perder. Precisamos agir com rapidez.
Joseph fitava com os olhos marejados a moça à frente.
— Reencontros ficam para mais tarde — declarou Jean.
Ao ouvir esse comentário, Gabrielle olhou para trás um instante, mas sua mente
estava preocupada com a fuga.
— Quem é ele? — perguntou Gabrielle ao marido.
— Um amigo — respondeu Jean. — Virá conosco.
Constatando que o caminho estava livre, os quatro seguiram ao longo do muro do
cabildo para a viela onde Carmeline aguardava, segurando as rédeas dos cavalos que
puxavam o coche. Em poucos segundos, Mathurin e Delphine apareceram num canto.
— É hora de partir — disse Mathurin em voz de comando, mas detendo-se ao
reconhecer Joseph.
— Agora não — sussurrou Jean que se apressou a segurar Gabrielie pelo
cotovelo e a levá-la para o coche. — Tomarei as rédeas, Carmeline. Vá se sentar junto
com os outros.
Jean fustigou os cavalos e o veículo disparou pela viela e atravessou veloz as
ruas escuras da cidade em direção ao rio.

Um bom tempo se passou antes de Gabrielle sentir o coração bater em ritmo


normal. Tinha certeza de que uma força invisível a guiara durante o confronto com
Edouard e a fuga armada da prisão. Mas havia um novo problema em seu coração.
Havia deixado a cidade sem o pai.
— Está muito calada, querida — comentou Jean suspeitando que algo estava
errado.
O corpo de Gabrielle havia ficado entorpecido pelo choque dos últimos
acontecimentos. No entanto, ela aquiesceu com um gesto de cabeça.
— Vai dar tudo certo — sussurrou ele, mas Gabrielle sabia que era uma mentira.

101
Cherie Claire Gabrielle
Conseguiram resgatar Delphine e tirar Jean da prisão, mas ela havia falhado em sua
missão pessoal. Não ia conseguir a reunião dos entes queridos. Fracassara e não ia se
redimir das mágoas que lhes infligira havia muito tempo na Nova Escócia.
A estrada estava se tornando cada vez menos transitável, mas restava apenas
uma légua para percorrer. Gabrielle fechou os olhos para repelir a imensa dor, mas seu
corpo estremeceu. Tentou reter as lágrimas e os soluços que ameaçavam explodir, mas
não conseguiu.
Jean a apertou contra o peito, beijou sua cabeça e sussurrou palavras de
conforto, mas Gabrielle só sentia o próprio fracasso. Será que nunca encontraria o
pai? Sua família nunca mais seria reunida? Enterrou o rosto na camisa de Jean e os
soluços tornaram-se gritos de dor incontroláveis.
— Gabrielle, olhe para mim — pediu Jean.
Mas ela enterrou ainda mais o rosto. De repente, sentiu que alguém tocava seu
braço e ficou alerta, apesar de seu desespero.
— Gabrielle — pronunciou uma voz.
Estaria imaginando coisas? Continuou a soluçar, mas algo naquela voz atingiu sua
memória e repercutiu em sua alma, O coche diminuiu de velocidade e parou.
— Gabrielle—repetiu a voz, e por um momento, ela imaginou que era seu pai. Mas
não podia ser. Haviam falhado na tarefa de encontrá-lo. Joseph não estava era New
Orleans e ninguém sabia de seu paradeiro.
— Gabrielle. Olhe para mim, filha.
Ali estava outra vez, o tom familiar, a voz de sua infância. Os soluços
diminuíram e ela levantou a cabeça. Jean sorria. Seria possível? Sentia muito medo de
ser vencida por outro desapontamento.
— Gabrielle — sussurrou a voz mais uma vez.
Não estava sonhando! Virou-se e fitou o homem a sua frente. Era da altura de
sua irmã Emilie, gentil como Rose e exibia os traços de seu próprio rosto. O receio de
ter esquecido como era o pai desapareceu num instante. Parecia que se haviam visto e
falado no dia anterior.
— Venha cá, minha Caçadora da Maré — sussurrou ele, lágrimas correndo por
seu rosto.
Gabrielle saltou do coche e se atirou nos braços fortes do pai, que a envolveram
e confortaram. Ele se afastou um breve momento para olhá-la no rosto, observou-a
como se ela fosse um sonho, depois beijou sua testa e a abraçou outra vez.
— Oh, minha menina, afinal eu a reencontrei.
Abraçou-a e, depois a afastou para examinar a mulher em que ela se tornara.
— Não consigo acreditar! Minha filha é pirata.

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Cherie Claire Gabrielle
— Não sou pirata — negou Gabrielle, olhando para Jean, que estava abraçando
Delphine. — Sou esposa de um contrabandista.
— Poderia até ser rainha da Inglaterra que eu não me importaria, minha filha.
Você é linda.
— Pensei que jamais o encontraria — sussurrou Gabrielle entre lágrimas.
— Nada poderia me manter afastado de minhas menininhas — disse Joseph
emocionado. — Você acreditou que um punhado de ingleses ia nos separar para
sempre?
Pensamentos do exílio voltaram à memória de Gabrielle e a lembrança de como
haviam se separado. Mas antes de o medo se infiltrar através da alegria, Phil se
aproximou empunhando a espada.
— Lamento interromper, mas precisamos sair daqui.
Nesse momento ouviram o som de galopes. Estranhos estavam se aproximando
pela estrada do rio. Jean, Phil, Mathurin e até Joseph desembainharam as espadas e
se posicionaram para enfrentar seus atacantes.
— Fique atrás com as mulheres — pediu Jean a Joseph. — Cuidaremos disso.
— Não confunda idade com habilidade, meu rapaz. — Joseph não se mexeu. —
Já lutei com inimigos muito piores.
— Fique atrás de mim — disse Gabrielle tirando a pistola da cintura e olhando
para Delphine. Esta, entretanto, ficou ao lado e estendeu a mão.
— Dê-me seu punhal — pediu Delphine confiante.
Gabrielle olhou para Jean, que parecia paralisado, mas não teve oportunidade
para objetar.
—Gabrielle, Delphine, escondam-se atrás do coche—ordenou Joseph.
Quatro homens estavam se aproximando. Seriam quatro contra quatro. Duas
mulheres armadas vinham a propósito.
— Ninguém vai separar minha família outra vez. — Gabrielle passou o punhal a
Delphine, depois se virou para o marido e para o pai. — Delphine e eu os ajudaremos.
Os desconhecidos se aproximaram. Eram oficiais, mas usavam uniformes
diferentes dos guardas do cabildo. Um em particular estava trajado com elegância, o
que era incomum para uma pessoa que vinha prender fugitivos no meio da noite.
—Capitão Jean Bouclaire—declarou um dos oficiais.—Apresente-se.
Gabrielle prendeu a respiração, imaginando o que aconteceria a seguir. Jean deu
um passo à frente, ainda empunhando a espada.
— Sou Jean Bouclaire.
— É o homem procurado pelo assassinato de Mareei Prevost? — indagou o

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Cherie Claire Gabrielle
desconhecido.
— Sou.
Gabrielle não conseguia respirar. Isso não estava acontecendo. Não depois de
tudo o que tinham passado e onde haviam chegado. Então, lembrou-se da carta.
— Por favor, senhor — falou Gabrielle. — Tenho uma carta que inocenta o nome
do capitão Bouclaire.
Todos se voltaram atónitos para ela. Todos exceto Phil, que sorria com
conhecimento de causa.
— Traga-me essa carta — pediu o homem elegante, falando francês, com
sotaque espanhol.
Gabrielle enfiou a pistola na cintura e se aproximou do gentleman. Quando
chegou a seu lado, percebeu a renda delicada na garganta, o colete de seda fina e a
casaca adornada com uma insígnia. Estendeu a carta e a mão adornada de anéis
preciosos aceitou o pergaminho.
O aristocrata leu a carta em silêncio depois que o oficial, a sua esquerda
providenciou uma vela e a acendeu. Em seguida fitou Gabrielle.
— Isto inocenta o nome do capitão Bouclaire. Mas foi escrito por um homem em
quem não confio. Portanto, não tem valor.
Gabrielle ficou desalentada. Outra vez iam precisar lutar.
— É por isso que estou aqui, madame.
— Não compreendo, senhor — disse Gabrielle sentindo-se confusa.
— A senhora está falando com o conde dom Alexandre O' Reilly, governador da
colônia da Louisiana — anunciou o oficial.
Gabrielle ficou tão surpresa que precisou se esforçar para não ficar de boca
aberta. Não sabia se devia curvar-se ou fazer uma mesura. Escolheu a última
alternativa.
— Sua Alteza — disse ela, rezando para ter acertado.
— Madame — disse 0'Reilly com um leve sorriso.

— Esta é minha esposa — disse Jean, aproximando-se do governador e


embainhando a espada. — Madame Gabrielle Bouclaire.
— Filha de Joseph Gallant — acrescentou o pai, seguindo Jean.
Os homens curvaram a cabeça em cumprimento ao governador e este, por sua
vez, devolveu a saudação.
— Não vou detê-lo por mais tempo — falou o governador. — Só desejo informar-
lhe que todas as acusações contra a sua pessoa foram retiradas.

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Cherie Claire Gabrielle
Jean ficou surpreso, mas continuou alerta.
— Recebemos uma carta de Antoine Vincent, por quem tenho grande estima —
continuou 0'Reilly. — Explicou-me as mentiras de Prevost e por isso mandei meus
homens averiguarem os negócios desse homem. Também inquirimos sobre sua
reputação na cidade, monsieur Jean, e a voz geral é a seu favor. Inclusive soube que o
senhor tem acesso a bebidas alcoólicas maravilhosas do Caribe. — O governador se
inclinou para frente em sua sela.
— Vossa Excelência, eu me sentiria honrado em lhe oferecer algumas de minhas
melhores reservas de bebidas para que julgue a qualidade por si próprio — disse Jean.
— Está livre para partir, capitão. — O'Reilly endireitou-se, muito satisfeito. —
Edouard Prevost não vai mais incomodá-lo, nem à sua família.
— E talvez possamos ainda fazer negócios na Louisiana? — interveio Phil.
— Tomarei essa decisão depois que meu rum chegar. — O governador virou seu
cavalo para partir, deixando-os na indecisão.
Quando a comitiva deixou a clareira e seguiu a estrada do rio em direção a New
Orleans, todos respiraram aliviados. Gabrielle ainda se sentia embaraçada.
— Eu disse a coisa certa? Eu o chamei pelo nome correto?
— Não importa, filhinha — disse o pai, beijando-a na cabeça. — O pior terminou.
É hora de irmos para casa.

Uma vez a bordo da escuna, Gabrielle, Joseph e Delphine se refrescaram e


vestiram roupas limpas. Jean levou a embarcação para as águas do golfo e depois se
reuniu aos demais na cabine principal, onde já havia um prato enorme de alimento e
vinho.
— Então, o que aconteceu? — indagou Joseph a Gabrielle. — Como Lorenz
conseguiu convencer Emilie a casar-se com ele?
Gabrielle terminou de contar a história da união da irmã mais velha com Lorenz
Landry, o acadiano que ela conhecia desde a infância. Haviam se reencontrado na
Louisiana, e Lorenz precisou pedir a mão de Emilie diversas vezes, pois sempre era
recusado. Porém, tudo terminou bem.
— Você sabe como Lorenz é teimoso e impulsivo — comentou Gabrielle sobre o
cunhado. — Emilie estava preocupava que ele fizesse alguma tolice e acabasse sendo
exilado da Louisiana. Ela tinha medo de ficar separada do marido, como aconteceu com
você e mamãe.
Os olhos de Joseph ficaram sombrios e ele fitou as mãos entrelaçadas no colo.
— Desculpe-me, papai — pediu Gabrielle. — Não queria entristecê-lo.

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Cherie Claire Gabrielle
— Não estou triste, filhinha — Joseph levantou a cabeça, e seus olhos
brilhavam apesar da dor neles expressa. — Sinto-me grato por todo esse horror estar
terminando.
— Deve estar muito feliz por rever sua esposa — disse Delphine animada.
—Mais do que você possa imaginar, Phyney. E embora já tenha esperado treze
anos, estes ultimos dias são os que mais estão demorando a passar.
— Chegaremos logo — contou Jean. — Estamos navegando com todas as velas e
vento favorável para nosso rumo.
— Fale-me mais sobre nossa família — Joseph apertou a mão de Gabrielle. —
Ocupe minha mente enquanto espero.
— Há tanto a contar — disse Gabrielle.
— Rose está esperando um bebê?
— Logo deve ter a criança, acho que será no próximo mês. Quem sabe possamos
viajar para o posto Opelousas para vê-los?
— De repente Gabrielle sentiu-se tão ansiosa quanto o pai para se reunir às
irmãs e à mãe.
— Certamente — concordou Joseph, — E Coleman Thorpe, é um bom marido?
— Um bom homem — contou Jean. — Conheço-o há muito tempo e espero fazer
negócios com ele algum dia.
— Que tipo de nome é Coleman?
De repente, Gabrielle lembrou-se da nacionalidade do cunhado, a razão pela qual
Rose, no último verão, demorara em convencer a família de que ele era digno de sua
mão. Coleman era um bom homem, mas também era inglês. Como podia o pai, que havia
sido capturado, aprisionado e exilado pelos ingleses, aceitar ser parente de um?
— Coleman possui uma fazenda no posto Opelousas e herdou muito dinheiro
depois da morte do pai — contou Jean, lançando um olhar de preocupação para
Gabrielle.
— Também constraiu a casa onde mamãe e eu moramos nas terras doadas, um
belo lugar — disse Gabrielle. — Quando parti, seu genro estava construindo outras
casas para ele e Rose e para Emilie e Lorenz.
— Dinheiro é bom, mas não faz uma boa pessoa — respondeu Joseph. — Qual
sua origem?
Jean e Gabrielle trocaram olhares, perguntando-se como contar a notícia.
Delphine sentia algo estranho no ar e os olhava com curiosidade.
— Conheci o procurador de Coleman em New Orleans, quando soube sua
identidade, Parrain — interveio Delphine sentindo necessidade de prestar ajuda.—È
um homem muito generoso e disse que ia avisar sua família, além de também procurá-

106
Cherie Claire Gabrielle
lo.
— E avisou — disse Jean. — E é por isso que estamos aqui. Se não fosse pela
carta do procurador de Coleman, nunca teríamos sabido que você estava em New
Orleans.
— Parece um homem admirável, mas qual sua nacionalidade? — insistiu Joseph.
— Thorpe não me parece francês.
— Não é francês — disse Gabrielle com suavidade..
— Oh? Imagino que vai me contar que ele é inglês.
Gabrielle prendeu a respiração, temendo afirmar o inevitável.
— Gabi — disse Joseph, começando a sorrir. — A família de Coleman tomou
conta de mim na Geórgia quando eu estava viajando através da colônia a caminho da
Louisiana. Devo-lhes a vida.
Gabrielle esquecera que Coleman havia escrito a suas primas na colônia inglesa,
pedindo-lhes para cuidar de Joseph. Por causa dessa carta, a família de Coleman havia
não apenas acolhido o exilado, mas o tratara quando ficara doente e lhe dera
alimentos, armas e munição para a viagem através das regiões remotas do sul. A
assistência de Coleman fora a razão pela qual ele e Rose haviam se casado. Fora a
chave que abrira o coração de Marianne para o inglês.
— Então não está zangado? — perguntou Jean. — Porque seu genro é inglês?
— Não se pode censurar todos os homens pelas ações de sua Coroa — disse
Joseph com um suspiro. — Julgo um homem por seu coração e alma, não pelo uniforme
que enverga ou pela língua que fala.
— Nem pelo fato de ele ter sido jogado numa prisão? — comentou Jean com um
sorriso.
— Não deixe que isso aconteça nunca mais — retmcou Joseph apontando o dedo
para o genro.
— Não deixarei que isso aconteça, Parrain — disse Delphine pegando a mão do
pai. — Agora estou a bordo e tomarei conta dele.
Gabrielle tentou abafar a vontade de rir. Mas para sua surpresa, Jean envolveu
a filha em seus braços e beijou sua testa, parecendo resignado às intervenções
femininas em sua vida. Olhou para Gabrielle e suspirou derrotado.
— É tão mau assim ter-nos a seu lado para cuidar de você? — indagou Gabrielle.
— É o que sempre desejei — explicou Jean. — Mas é errado querer manter
minha família em segurança1?
— É um desejo impossível — disse Joseph. — Nada pode garantir isso.
Todos se sentiram melancólicos e, de repente, Gabrielle lembrou-se do olhar no
rosto do pai, treze anos antes, ao acenar para a esposa e as filhas do alto da

107
Cherie Claire Gabrielle
ribanceira enquanto todas se acotovelavam na praia fria. Seu olhar exibira emoções
diferentes. Gratidão pela família estar a salvo. Receio por seu futuro. Ultraje pela
perda de sua fazenda e de suas terras.
Fora a primeira vez que Gabrielle testemunhara a desesperança do pai, e isso a
assustara, pois ele sempre fora um exemplo de força e de segurança.
— Acho que você está certo — disse Jean. — Talvez não tenhamos controle
sobre nossos destinos e os de nossos entes queridos.
As palavras de Jean ecoaram na mente de Gabrielle e a atingiriam em cheio. Ela
havia interferido no destino de seus familiares. Por que se afastara da mãe, na praia,
quando estavam sendo exilados, ela os separara. Gabrielle não conseguia olhar para o
pai.
— Quero ver as estrelas — disse Delphine. — Sei que é tarde, mas posso dar
uma volta no convés antes de ir dormir?
—É claro que pode — respondeu Jean. — Voltaremos logo — avisou ele a
Gabrielle.
Depois de Jean e Delphine saírem, Gabrielle, que sentia um nó na garganta,
sentiu o pai apertar-lhe a mão.
— Gabi, há algo errado? — perguntou Joseph à filha.
Gabrielle ainda estava cabisbaixa. Sentia-se culpada.
— É por causa de Jean? — perguntou ele, mais surpreso do que alarmado.
— Não, papai.
— Por que está chorando?.É Marianne ? — desta vez a voz exprimia alarme.
— Não, mamãe está bem.
— Então o que é, minha filha?
— Fiz uma coisa horrível.
— O que você fez?
“Arruinei sua vida”, pensou Gabrielle.
— Filha, o que foi?
— Sou a culpada por nossa separação.
— Filha, não diga isso — Joseph levantou a cabeça da filha. — Olhe para mim.
— Você disse para eu não me afastar de maman — disse Gabrielle ainda
chorando. — Fui olhar as fragatas e maman precisou ir me procurar. Quando me achou
afinal, nós olhamos para a ribanceira e você havia partido. Então, forçaram-nos a
embarcar.
— Filha, você não foi a razão de nossa separação!

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Cherie Claire Gabrielle
Gabrielle queria acreditar no pai. Ansiava por acreditar nele. Mas com toda a
confusão do exílio, sabia que suas ações tinham contribuído para a situação penosa em
que haviam ficado.
— Mas papai...
— Eu estava com seu avô, meu pai. — Joseph pegou as mãos da filha. — Quando
nos encurralaram dentro da igreja, ele se sentiu mal, talvez devido ao choque.
Obrigaram-nos a caminhar em direção à praia, localizei você, sua mãe e suas irmãs,
mas naquele momento meu pai olhou o caos que nos circundava e teve um colapso.
Joseph parou de falar um momento para se recompor. Ninguém soube da sorte
de vovô Gallant.
— O que aconteceu? — indagou Gabrielle.
— Enquanto eu estava tentando ajudá-lo, os soldados nos empurraram para
frente, gritando conosco para continuarmos a descer pela trilha. Fiquei furioso por
estar sendo tratado como gado e traído de modo tão bárbaro. Dei um soco no primeiro
inglês que avistei. Fui atingido por trás e o mundo todo escureceu. Quando despertei,
soube que vocês haviam partido com a maré. E meu pai estava morto.
Pai e filha se fitaram como na Nova Escócia, anos atrás, mas agora havia uma
insondável mágoa no olhar do pai.
— Como vê, minha querida, sou a causa de nossa separação.
— Não — insistiu Gabrielle apertando as mãos do pai. — Você não fez nada de
errado. Os ingleses nos separaram.
— Eu não devia ter me enfurecido.
— Como podia evitar?
Gabrielle levantou as mãos do pai à altura de seu rosto, enquanto a dor de treze
anos de separação voltaram à superfície e irromperam livres através das lágrimas.
Então os dois se abraçaram, desfrutando a conexão entre pai e filha, o laço que
nenhum exército poderia cortar.

O ar parecia mais leve nesta manhã, livre da umidade usual. Os pássaros


apareceram muito antes da aurora, anunciando a chegada de um belo dia no Attakapas.
Marianne levantou-se e preparou uma xícara de café, depois se sentou na
varanda, apreciando uma grande garça azul pousada na margem do bayou. Avistava
esse pássaro todos os dias. Uma companhia bem-vinda para uma mulher que passara
quase metade da vida esperando.
Tomou o café e afastou os pensamentos tristes. Seu coração fraco não
resistiria a mais desapontamentos. Era melhor só esperar e olhar, mas sem desejar
mais do que a vida estava lhe dando. No entanto, não conseguiu resistir. Mexeu o resto
do café na xícara e depois a virou para deixar o líquido cair. Quando endireitou a
109
Cherie Claire Gabrielle
xícara, viu que a borra do café havia deixado uma linha clara perto da borda. Uma
linha reta indicava sorte grande.

Marianne sobressaltou-se. Há muitos anos não via uma linha perfeita na borra
do café. E ao lado da linha havia a imagem de um barco, um sinal de que a família
estava chegando.
Marianne sentiu emoções conflitantes. Entrou na casa e colocou a xícara sobre a
mesa- Sua mente a advertia para não ansiar pelo que talvez nunca acontecesse, mas
seu coração sentia esperança pela chegada de Joseph. E também havia Gabrielle.
Agira corretamente ao enviar a filha para ajudar Jean a procurar pelo pai. Mas
preocupava-se sem cessar por sua segurança.
Sentiu o mundo pesar sobre os ombros. Será que urn dia sua aflição terminaria?
A família voltaria a se reunir?
Também pensava na comunidade Attakapas a qual tantas pessoas se
preocupavam com sua saúde mental. Seu vizinho viúvo, Raymond Sonnjer, a visitava
todos os dias. Chegara até a sugerir casarem-se para aliviar seu sofrimento.
Casamento? Marianne riu à idéía absurda.
— Hoje não irei — falou em voz alta. — Desculpe-me, Joseph, mas não aguento
mais.
Mesmo ao pronunciar essas palavras, sabia que acabaria preparando um cesto
com alimento, iria até o carvalho e esperaria até escurecer. Mas, após treze anos, a
espera se tornava cada vez mais insuportável.
Ouviu-se o som de um coche na estrada, tirando-a da melancolia. Marianne
rezou para que não fosse Raymond vindo visitá-la. Não estava disposta a conversar
com ninguém.
— Mamãe? — O coração de Marianne deu um salto.
Lágrimas rolaram de seus olhos quando reconheceu o som da voz da filha mais
velha. Abriu a porta, apoiando a mão no peito à vista bem-vinda de sua família.
— Mamãe — gritou Emilie, saltando do coche e correndo para os braços de
Marianne. Oh, mamãe.
As duas se abraçaram, chorando e rindo ao mesmo tempo. Marianne olhou por
cima do ombro de Emilie e viu Lorenz e Coleman ajudando Rose, em estado avançado
de gravidez, descer do coche.
— Rose? O que vocês têm na cabeça? — exclamou Marianne.
— Estou bem, mamãe — disse Rose, colocando os pés no chão e envolvendo a
mãe pela cintura. — Eu teria vindo a pé se fosse preciso.
Algo estava errado, pensou Marianne. Por que haviam arriscado a saúde de
Rose? Quando olhou para Lorenz e percebeu seu sorriso furtivo, temeu o pior.
110
Cherie Claire Gabrielle
— O que aconteceu? Por que vieram? — indagou Marianne.
— Queríamos saber como você está — disse Rose segurando a mão da mãe.
— Onde está Gabrielle? — perguntou Emilie da porta.
— Por que estão aqui? — Marianne não entendia por que as filhas pareciam
ansiosas.
— Estávamos preocupados com você — explicou Coleman.
— Preocupados? — ecoou Marianne olhando um por um.
— Seu vizinho escreveu-nos uma carta — contou Lorenz. — Disse que Gabrielle
partiu e você não está bem. Viemos assim que recebemos a carta.
Marianne devia sentir-se furiosa por Raymond ter arriscado a vida de sua
preciosa filha por causa de sua solidão e dos boatos da cidadezinha. Mas na verdade,
estava feliz por terem vindo.
— Entrem. Vou preparar café e explicarei tudo.
— Onde está Gabrielle? — insistiu Emilie ao entrarem na casa.
Marianne contou como a carta enviada pelo procurador de Coleman fora
interceptada, sobre a decisão de Gabrielle se esconder na barcaça de Jean e sobre o
plano de buscar Joseph em New Orleans.
— Você permitiu que Gabrielle fosse com aquele pirata? — gritou, Emilie.
— É um bom homem, Emilie — disse Rose, sorrindo aprovadora para a mãe.
— Mas ela está em seu barco — insistiu Emilie, surpresa pela despreocupação
dos demais.
— Minha irmã está desacompanhada, numa escuna cheia de piratas.
— Jean não é um pirata — contestou Coleman. — É um bom negociante. ,
— Além disso, ficar a bordo de uma embarcação é exatamente o que Gabrielle
quer — acrescentou Lorenz. — Você sabe quanto ela ama o mar.
Emilie cruzou os braços, recusando-se a ceder.
— Gabrielle precisa trazer papai de volta — comentou Rose. — Talvez assim
encontre a paz.
Todos sabiam da culpa que Gabrielle carregava desde que começara o exílio.
— Você está bem, Rose? — indagou Marianne.
— Parece que engoli uma abóbora gigante — respondeu a filha.
Todos riram, exceto Coleman que empalideceu. Marianne sabia que o genro
temia o nascimento, pois perdera a mãe e o irmão durante o parto, anos antes.
— Com licença — disse Rose, dirigindo-se ao quarto de Gabrielle. — Preciso me
refrescar.

111
Cherie Claire Gabrielle
— Ela está tão grande — sussurrou Coleman para Marianne. — Não queria que
viesse, mas ela insistiu e disse que ia fugir no meio da noite e viria a pé para cá se eu
não a trouxesse.
— Você agiu corretamente — disse Marianne. A filha estava de fato muito
grande para sua delicada figura. — Ela vai ficar bem, Coleman. Cuidarei dela. Já
trouxe muitos bebes ao mundo.
— Marianne, desculpe-me — interferiu Lorenz. — Mas por que todos por aqui
estão preocupados com você? Por que passa tanto tempo à margem do bayou. Seu
vizinho contou...
— Meu vizinho se preocupa demasiado — reagiu Marianne zangada. — Ele
também quer se casar comigo.
— Você não pode! — exclamou Emilie.
— É claro que não posso. Vou esperar por seu pai até morrer.
— Mas por que junto ao carvalho? — indagou Lorenz. — Por que o dia inteiro?
Marianne suspirou, incerta sobre como explicar sua visão. A família estava a par
das imagens que passavam por sua mente, mas também podia questionar sua sanidade.
Ao voltar o olhar para a mesa a sua frente, avistou a xícara de café, com uma linha
reta perfeita perto da borda e o veleiro ao lado. E, nesse momento, se lembrou de que
em sua visão todos estariam juntos.
— Tive uma visão em Opelousas — explicou Marianne. — Vi seu pai retornar para
nós, vindo pelo bayou com Jean e Gabrielle no timão. Estávamos todos junto ao
carvalho. Em pé, como estamos agora. Esperando.
Rose retornou a sala e estranhou o silêncio de todos.
— Não estou louca — disse Marianne, mas em seu íntimo ela própria duvidava
disso.
— Onde fica a árvore, mamãe? — indagou Emilie, em cujo rosto as lágrimas
rolavam.
— Em nossas terras, entre a casa e o bayou. Não estou louca — repetiu
Marianne chorando.
— Vamos preparar um cesto para o almoço? — sugeriu Rose.
— Ninguém aqui disseque você está louca — declarou Lorenz, os olhos brilhantes
por lágrimas não vertidas.
— Vamos logo encontrar esse carvalho mágico — Coleman sugeriu.
Encaminharam-se para a enorme árvore, fazendo pequenas pausas para Rose
recuperar o fôlego. Coleman colocou uma grande coberta no chão e depois tirou
frutas, pães e vinho do cesto. Enquanto o sol subia ao zénite, contaram a Marianne
sobre os meses passados no posto Opelousas, fazendo colheitas e esperando pela

112
Cherie Claire Gabrielle
chegada do primeiro neto dos Gallant.
Quando começou a entardecer, Marianne, grata por estar perto do carvalho
com a família reunida a seu redor, começou a cantar. Tentando dissipar a ansiedade
que invadia seu coração com a penumbra se aproximando, fechou os olhos e se
concentrou nas palavras da canção que uma vez sua mãe lhe ensinara.
Não soube explicar o que a fez parar, mas uma poderosa força a invadiu,
comprimindo seus pulmões. Marianne ergueu-se, olhou o bayou, sem entender por que
sua pele estava gelada, pois a temperatura era de verão.
— Mamãe! — chamou Emilie, também se erguendo e se aproximando.
Marianne reconheceu o som de imediato. À distância e fraco. Os outros também
estariam ouvindo ou teria ela perdido de vez a sanidade?
— O que foi? — indagou Rose esforçando-se para se levantar.
As filhas seguraram as mãos de Marianne e olharam atentamente o bayou.
Emilie estremeceu, como se sentisse uma força ondulando através do ar. Então
ouviram o som de um canto acadiano.
Marianne se aproximou devagar da margem. O sonho que ela havia alimentado
durante treze anos estava se tornando realidade. Tinha certeza. Joseph estava na
Louisiana. Iam se reencontrar afinal.
Sentiu a presença do marido antes de a barcaça virar a curva do bayou e
Joseph aparecer sorridente na proa do barco. Como numa visão, Marianne andou em
direção à margem da água, seus olhos jamais deixando de fitar o rosto de seu
verdadeiro amor. Ouviu Jean dar ordens e Emilie gritar, mas tudo o que Marianne
compreendia era que seu marido estava chegando.
Quando Joseph saltou da barcaça e começou a andar, com água até a cintura,
em direção à margem, Marianne começou a mobilizar os pés. Caminhou depressa até
encontrá-lo onde o bayou tocava os ciprestes e se abraçaram.
Uma alegria intensa inundou Marianne quando Joseph a envolveu em seus
braços, levantando-a do chão e virando-a no ar. Ela apoiou-se em seus ombros, passou
os dedos por seu cabelo, e o apertou com todas as suas forças. Ele cobriu o rosto da
esposa de beijos e a abraçou outra vez.
— Oh, meu amor, nunca mais ficarei longe de você — sussurrou ele antes de
beijá-la.
Marianne enterrou o rosto junto ao pescoço do marido e saboreou o contato de
seu corpo. Depois o olhou para se certificar de que não era uma visão. Mas Joseph era
real. Pela primeira vez, desde o início do exílio, Marianne sentia-se inteira.
Sem soltar a esposa, Joseph olhou por cima de seus ombros em direção à
margem.
— Emilie? — disse ele com a voz entrecortada.

113
Cherie Claire Gabrielle
Marianne se afastou e o levou para a árvore onde a família esperava. Emilie
tentava controlar os soluços, e o pai logo a abraçou, mas sem soltar a mão da esposa.
— Minha bela Emilie! — sussurrou ele.
Rose aproximou-se devagar, fitando-o com curiosidade. Não podia se lembrar do
pai, pois quando ocorrera a separação era demasiado pequena.
— Rose, eu a teria reconhecido em qualquer lugar!
— Papai! — Os dois se abraçaram e Joseph beijou a testa da filha.
— Tenho certeza de que você é tão delicada corno no dia em que a deixei —
afirmou Joseph.
Joseph olhou para Lorenz, cujas faces estavam manchadas pelas lágrimas. A
última vez em que haviam se visto fora no dia em que os ingleses os haviam
encurralado na igreja de Grand Pré. Lorenz, então com doze anos, havia chorado de
medo, e Joseph lhe dissera para não sentir vergonha, pois mesmo homens crescidos
choravam. Agora, reunidos, os dois homens pareciam falar as mesmas palavras com os
olhos.
Lorenz estendeu a mão e Joseph a apertou, mas logo os dois se abraçaram.
— Sinto-me honrado por tê-lo como filho — disse Joseph. — Obrigado por
cuidar de minha família.
— Foi uma grande honra — afirmou Lorenz.
— Papai, quero apresentar-lhe meu marido — disse Rose em voz fraca.
Joseph não teve nenhum problema para encontrar Coleman entre os acadianos
morenos. Seu cabelo louro e os olhos azuis exprimiam ao mundo sua nacionalidade. No
entanto, quando se fitaram, logo se estabeleceu um entendimento entre ambos.
— Sr. Gallant — disse Coleman, estendendo a mão. — É um grande prazer
conhecê-lo.
— Meu nome é Joseph. Ou não fala francês ? — Joseph segurou a mão do inglês
com firmeza e sorriu.
— Ele fala francês, papai — interveio Rose.
— Agora sonho em francês — disse Coleman, sorridente.
— Bem-vindo à família, filho — disse Joseph. — E obrigado por tudo o que fez
para nos reunir. Sou-lhe muito grato.
— Não precisa agradecer — alegou Coleman com orgulho. — Sua família trouxe-
me grande felicidade. A dívida é minha.
De repente Marianne lembrou-se de Gabrielle. Ainda segurando a mão de
Joseph, ela se virou e olhou para o bayou, mas a barcaça estava vazia.
— Estou aqui mamãe — avisou Gabrielle saindo do pequeno grupo de ciprestes à

114
Cherie Claire Gabrielle
esquerda.
Gabrielle segurou a mão livre da mãe e beijou sua face.
— Fiquei tão preocupada — contou Marianne. — Senti muito a sua falta.
Emilie e Rose logo cercaram Gabrielle, comentando sobre seu cabelo e suas
roupas. Jean estava logo atrás, junto com uma jovem desconhecida.
— Essa é Delphine Delaronde, minha enteada — apresentou Gabrielle.
— Parabéns, minha querida — cumprimentou Marianne. — Estou muito orgulhosa
de você — abraçou a filha, exprimindo seu sentimento de gratidão.
— Jean? — Emilie cruzou os braços e examinou o capitão.
— Emilie! — exclamou Marianne retendo a custo a vontade de dar risada ao
fitar a filha superprotetora.
— Espero que você tenha tornado minha irmã uma mulher honesta — disse
Emilie com severidade.
— Não se preocupe, um padre nos casou, se é isso que quer saber — explicou
Jean.
— É exatamente a que me referia. — Emilie relaxou e então beijou de leve o
cunhado na face.
Gabrielle segurou a mão de Rose e Joseph fez o mesmo com Emilie. Reunidos,
numa linha familiar contínua. Marianne olhava para as filhas crescidas e para o homem
que adorava desde o dia em que o avistara saindo de um pomar de macieiras. Sua
alegria era tão imensa, que ela sentia dificuldade de respirar.
— Mamãe — disse Gabrielle, rompendo o silêncio. — Acho que sua filha mais
nova tem algo para nos contar.
Todos se viraram para Rose, inclusive os homens. Rose corou, depois ficou pálida
e fez uma careta. Mas nada disse.
— Ela está quase quebrando minha mão — contou Gabrielle. — Acho que o bebê
está nascendo.

Capítulo X

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Cherie Claire Gabrielle
Alguns segundos depois de Rose contar que estava sentindo dores, irrompeu o
caos. Marianne deu ordens para trazerem água, uma faca e muitos lençóis, enquanto
Coleman levantava Rose em seus braços e a carregava para dentro da casa. Rose re-
cusou-se a perder o pai de vista, por isso ele ficou ao lado do leito segurando sua mão,
enquanto Coleman segurava a outra. Marianne supervisionou o nascimento, assistida
por Gabrielle, Emilie e Delphine.
Lorenz e Jean saíram ao encontro de Felicite para reuni-la a Mathurin, e
Gabrielle sentiu-se grata por haver duas pessoas a menos. O calor do quarto havia
ficado insuportável enquanto o sol da tarde atravessava a janela do lado poente, e era
difícil concentrar-se com tantos falando ao mesmo tempo.
— Por que não me contou? — indagou Coleman à esposa. — Meu Deus, Rose, você
devia ter-nos alertado.
— Ontem à noite não doeu tanto.
— Ontem à noite! — repetiu Marianne empalidecendo.
— Se eu tivesse contado, Coleman, você não teria permitido que eu viesse.
— Com certeza — esbravejou Coleman, quase histérico,
— Acalmem-se todos — pediu Gabrielle. — Rose está sentindo dor outra vez.
Para surpresa de todos, as dores ocorriam com poucos minutos de intervalo.
Quando a dor começava, Rose se inclinava para frente, agarrava o braço de Gabrielle e
começava a fazer força.
— Tão depressa? — perguntou Emilie à mãe.
Marianne sentiu o ventre de Rose, que se havia tornado duro como pedra. Pegou
a mão da filha e afastou Joseph.
Gabrielle ouvira que os nascimentos levavam várias horas, em particular em
relação ao primeiro filho, mas a delicada e pequenina Rose estava quebrando essa
regra. Depois de fazer força quatro vezes, Gabrielle avistou uma cabecinha com
cabelo louro emergindo.
— É um menino— gritou Marianne ao puxar o bebê.
Todos festejaram, e Coleman segurou o rosto da esposa e a beijou várias vezes.
— Muito obrigado Deus — repetia o jovem pai. — Muito obrigado por ter dado
tudo certo.
— Eu lhe disse para não se preocupar — disse Rose, que, entretanto, ainda não
estava livre de perigo. Não se passou muito tempo e ela sentiu outro espasmo e se
dobrou de dor.
— É do pós-parto —explicou Marianne a Coleman, que parecia prestes a
desmaiar. Ela envolveu o recém-nascido numa manta e o entregou a Emilie. Quando
Rose se inclinou para frente e gritou, Gabrielle se assustou.

116
Cherie Claire Gabrielle
Marianne colocou a mão sobre o ventre de Rose e o sangue fugiu de seu rosto.
— Há gêmeos em sua família? — perguntou a Coleman.
— Meus tios eram gêmeos, por quê?
Gabrielle ficou perplexa. Espiou por baixo do lençol e gritou justo quando uma
cabecinha com cabelo escuro surgia.
— Há outro bebê — gritou Delphine, excitada e surpresa.
— É uma menina — informou Marianne, enrolando a recém nascida, que começara
a chorar, e depois a entregou a Gabrielle.
— Com essa voz é, sem dúvida, uma Gallant.
— Amo vocês duas muitíssimo, mas me passem meus filhos — pediu Rose às
irmãs.
Gabrielle e Emilie colocaram os dois recém-nascidos nos braços da jovem mãe e
os acomodaram. Coleman fitava a esposa e os filhos como se estivesse sonhando.
— Um de cada nacionalidade — disse Joseph.
— O menino vai se chamar Richard, nome do pai falecido de Coleman — explicou
Rose. — Quero chamar a menina de Josepha Marianne, pelos heróis de minha vida.
Marianne se inclinou para examinar os netos, com Joseph a seu lado, ambos com
os olhos inundados por lágrimas de orgulho.
— Nascidos de ascendência inglesa e acadiana no solo da Louisiana — comentou
Joseph. — O que isso os torna?
— "Cajuns" — disse Coleman com um sorriso.
Todos riram, exceto Joseph que se virou para o genro, sem entender.
— Quando nos encontramos pela primeira vez, Coleman tinha dificuldade em
pronunciar nosso apelido e abreviava acadiano para "cadjin" — explicou Gabrielle.
Achou que estávamos dizendo "cajun".
— Cajun? — repetiu Joseph rindo. — É isso que somos agora, cajuns?
— Por que não? Comentou Marianne, olhando para os olhos azuis do neto e os
olhos negros da neta. — É um nome tão bom quanto qualquer outro.
Gabrielle ajudou Marianne a mudar a roupa da cama de Rose e Delphine se
acomodou numa cadeira para embalar a agitada Josepha. Rose adormecera afinal, mas
Coleman permanecia a seu lado, afagando seu cabelo e segurando afetuosamente o
filho cora a outra mão. Lorenz retornara, seus olhos radiantes pela visão das novas
vidas e atraiu Emilie para um canto onde se abraçaram como amantes, sem dúvida
planejando a própria família.
No centro estavam Joseph e Marianne, em pé, deleitando-se com o olhar, os
dedos entrelaçados. Gabrielle havia se esquecido de como seus pais eram devotados

117
Cherie Claire Gabrielle
um ao outro.
De repente, Gabrielle sentiu uma imensa falta de Jean. Estaria ainda na casa
dos Doucet, reunindo Mathurin e a filha? Foi para a varanda a sua procura e o
encontrou apoiado numa coluna, observando o bayou.
— Um menino e uma menina — disse ele com suavidade ao ver Gabrielle se
aproximar. — Não é incrível?
Já havia escurecido e por isso não dava para ver os olhos de Jean, mas sua voz
revelava reverência pelos sucessos ocorridos neste dia.
— Sou um homem de sorte — sussurrou Jean. — Tenho uma família
surpreendente.
Gabrielle sabia que Jean a amava. Ele o demonstrava de vários modos todos os
dias. Mas ela necessitava ouvir aquelas três simples palavras, símbolo verbal do afeto
que fluía com tanta facilidade entre seus pais.
— Jean, você me ama? — perguntou, sentindo o coração bater acelerado.
Ele permaneceu em silêncio e ela logo lamentou ter feito a pergunta.
— Está tudo bem — disse Gabrielle suspirando. — Sei que você é um homem de
ação.
— Gabrielle, não sou um homem de grandes palavras. Não sei usá-las bem.
Gabrielle recuou, decidida a não se sentir desapontada num dia tão abençoado.
Mas sentia-se magoada. Estava se afastando quando Jean segurou sua mão e a fez
parsir. Com a outra mão ele segurou seu rosto e a fitou com amor.
— Apaixonei-me por você no dia em que nos encontramos pela primeira vez.
Nunca amei ninguém, exceto você. E a amarei, Gabrielle Gallant Bouclaire até o dia de
minha morte.
— Essas palavras são suficientes — sussurrou Gabrielle com dificuldade para
controlar o coração batendo acelerado.
Fitaram-se por um momento, o que pareceu uma eternidade, enquanto a estrela
vespertina se erguia brilhante no horizonte. Jean acariciou a face da esposa, sem
deixar de contemplá-la.
O mundo e o tempo pararam. Jean beijou Gabrielle, primeiro com suavidade,
depois com intensidade.
— Eu a amo, Gabrielle — declarou Jean enquanto a risada de Marianne e Joseph,
carregada pejo vento, os envolvia e reconfortava. — Eu a amo.

118

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