You are on page 1of 218
oO DIREITO A MEMORIA PATRIMONIO HISTORICO E CIDADANIA DEPARTAMENTO DO pee oNter SORE SECRETARIA MUNICIPAL DE C! PREFEITURA DO MUNICIPIO DE 0 PAULO pyright Jilio Assis Simées juura Antunes Maciel ison Carlos Moulin Louzada ‘aimir de Souza ‘ROJETO GRAFICO ‘DP/DPH ROCESSAMENTO DE TEXTOS lircia Regina Leal anda Regina Placone da Costa ATALOGACAO NA FONTE [lisabete Satiko Takimoto IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL DEPOSITO LEGAL NA BIBLIOTECA NACIONAL, GONFORME DECRETO N.° 1.825, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1907 APA omografia de cérebro. Detalhe do cartaz de divulgagao do ongresso Patriménio Histdrico e Cidadania’’ — Sao Paulo 1991. Maria Clementina Pereira Cunhi DIFERENTES SUPORTES PARA A MEMORIA Nilson Moulin Louzada... MEMORIA, PRESERVAGAO BE TRADIGOES POPULARES Olga Brites da Silva. © PUBLICO E 0 PRIVADO: PROPRIEDADE E INTERESSE CULTUR Cassia, Magaldi . ie MEMORIA, HISTORIA E CIDADANIA: O DIREITO AO PASSAD: Maria Célia Paoli. POLITICAS CULT Déa Ribeiro Fenelon Parte I! — TEXTOS RICO Marilena Chaut. OS LUGARES DA MEMORIA OPERARIA Madeleine Rébérioux .. PATRICK GEDDES E A PI BANO Riccardo Mariani... i PATRIMONIO HISTORICO E CIDADANIA: A EXPERIENCIA ING! Bill Schwarz * A CIDADE HISTORICA COMO SUPORTE DA MEMORIA Giorgio Lombardi ... MUSEU, PATRIMONIO E CULTURA: REFLEXOES SOBRE A EXPE. RIENCIA MEXICANA Miriam Arroyo de Kerriou HAVANA: O RESGATE SOCIAL DA MEMORIA Roberto Segre... ARQUIVOS, DOCUMENTOS E INFORMACAO Antonia Heredia Herrera HISTORIA, MEMORIA E COMUNIDAD! CONSTRUIDO. Ramén Gutierrez... MEMORIA E CIDADANIA Edgar S. De Decca .... ‘A CIDADE COMO ESCRITA Willi Bolle... (MEMORIA DA CIDADE: LEMBR. NCAS PAULISTANAS Feléa Bost — = P calpeeemarrennnncsas MMB MEMORIA E HISTORIA EM WALTER BENJAMIN Olgaria Mattos....0.-1- 3 © ccgunamigerse nse HISTORIA ORAL: OS RISCOS INOCENCIA Michael M. Hall ... ceanizgetvessanrteeierene scenoencmns UST CIDADES: ESPACO MEMORIA 161 Maria Stella M Bresciani ...- MORIA: CONCEITO! 1 CRITERIOS DE INTERVENCAO ESPACO E MEM Nestor Goulart Reis FINO wean re oe 167 TRADICAO, MEMORIA E HISTORIA DOS. TRAB. LHADORES 169 Marco Aurélio de A. Garcia." ae ayseaienes a ‘ACREDITAM OS BRASILEIROS NOS SEUS MiTOs? O CINEMA BRAS" LEIRO E SUAS ORIGENS TenChande Bemardet nen iT TCO EC geijesnennetes ATS GRAL ENTRE 0 PUBLICO E O PRIVADO © PATRIMONIO CULT! Ulpiano Bezerta de Menezes 189 Parte Il] — DEBATES PRESERVACAO E MODERNIDADE secceseee 197 ik, Hugo Segawa, Leila R Diégoli.. MINHOS DA PRESERVACAO Raquel Rolnil aturino S. da Luz, Romew Chap-Chap- Déa R. Fenelon, 211 OS (DES)CAI Carlos Lemos, Mi Parte IV — RESOLUCOES DO CONGRESSO 229 233 DOCUMENTO FINAL «9 en MOCOES APROVADAS EM PLENARIO APRESENTACAO O titulo deste volume — O direito & meméria — nio nos deixa esquecer de que a totalidade dos textos aqui publicados sio parte do material apresentado e discutido no Congresso Internacional Patriménio Histérico e Cidadania, promovido pelo Departamento do Patriménio Hist6rico da Secretaria Municipal de Cultura de Sio Paulo, entre os dias 11 e 16 de agosto de 1991. Concebida para ser uma simples ‘chamada no cartaz do Congreso, a expressio transformou-se em um slogan rapida- mente incorporado pelos especialistas presentes ao encontro, € tornon-se objeto de um debate que apenas se inicia em nosso Pais. ‘Adotd-lo como titulo desta publicagdo foi uma estratégia que. ao mesmo tempo, revela nosso entusiasmo com as perspectivas abertas por esie debate e as dificuldades efetivas de trabalho com as questées do patriménio histérico no Brasil. Impossibilita- dos de efetivar a publicacdo integral do material do Congreso, sob a forma de ‘Anais, em virtude de dificuldades financeiras ¢ operacionais, decidimo-nos pela organizagio de um livro que trouxesse algumas das contribuigGes a esta discussao apresentadas durante aquele encontro de especialistas. Nao foi facil, no entanto, efetuar uma selecdo do vasto e importante conjunto de textos produzidos para aquela ocasido, ou dos debates empreendidos durante aqueles dias. Foi necessdrio, apesar das muitas diividas ¢ do desconforto por deixar de lado textos importantes e oportunos, cruzar alguns critérios que nos permitissem chegar a esta forma final. Em primeiro lugar, levamos em conta o grau de interesse ¢ curiosidade despertados entre os profissionais da area pelas diferentes contribuigdes de especialistas de miiltiplas areas do conhecimento — © que podemos medi. ao menos, pela insisténcia com que cépias destes textos nos io solicitadas. Temos assim neste volume paginas produzidas por fildsofos, psicélogos, professores de literatura e cinema que dialogam com as contribuigdes de arquitetos, historiadores, arquivistas € musedlogos que costumam estar mais presentes na discussio das questées relacionadas a0 patriménio hist6rico. Certamente, os textos trazidos pelos convidados internacionais presentes a0 Congreso — entre os quais alguns podem ser considerados como “estrelas de primeira grandeza” em suas respectivas areas de trabalho — foram traduzidos © publicados na fntegra, permitindo que a reflexdo sobre as questées do patrimOnio hist6rico e cultural no Brasil sejam iluminados por experiéncias diversas de outros paises, Habitando 0 mesmo planeta, podemos as vezes perceber como estamos a hnos-luz de distancia dos padres praticados em lugares dos quais estamos fisica- mente separados por poucas horas de v6o: Finalmente, um outro critério para a escolha dos textos que compéem este Volume esta dado no seu préprio contetido. Incluimos prioritariamente as contribui- ges relacionadas aos temas mais candentes de discussio entre profissionais que atuam na Area do patriménio histérico — n&o apenas durante o Congreso mas, sobretudo, no interior da pratica e dos embates cotidianos de seu trabalho, Os textos hao publicados neste volume, no entanto, estio longe de terem sido abandonados constituem material a ser incorporado aos préximos mimeros da Revista do Arquivo Municipal ¢ outras publicagdes do Departamento do Patrimdnio Histérico de Sao Paulo, para alimentar o debate e 0 intercdmbio entre os técnicos desta area. © caréter desta publicagio — estreitamente relacionada ao Congreso Patrimé- ico Cid ja, mas sem pretensao de Jou também a uma forma de organizacdo e apresentagio do seu contetido. O livro © inicla com textos produzidos por membros da equipe do DPH em torno dos cinco pontos que compunham o temario do Congresso. Estes textos — intencionalmente urtos — foram publicados naquela ocasidio em um ntimero especial do Boletim do DPH distribuido aos participantes do evento, ¢ so republicados aqui para funcionar “como uma espécie de introducao aos demais textos, conferindo as diferentes contri- bulges um eixo comum de problematizago e debate. ‘A segunda parte do livro é composta pelos textos apresentados em diferentes inesas-redondas e semindrios do Congreso, ordenados sem a preocupacdo de refazer 4 seqiiencia € a dinamica destas ocasides: cada texto vale por si, ¢ dialoga com todos ‘oy demais. Na terceira parte, selecionamos dois debates — estes mantidos integral- mente, com suas diversas falas e intervengdes. Entre os muitos debates, estes dois hos parecem exemplares e significativos para aqueles que attam na drea de patrimé- iio histérico: no primeiro deles, estio em dicussao diferentes concepgdes — no interior do préprio governo municipal de Sio Paulo sobre a questao da preservacdo © papel que ela deve ou no ocupar no processo de decisdes relativas ao ambiente urbano. © enfoque téenico e o debate politico aparecem aqui indissocidveis, expondo us contradigdes € os conflitos inerentes & gestiio da cidade. O segundo debate expde um outro conflito permanente — entre técnicos, membros do governo & empresarios -— sobre as questdes envolvidas nas concepgdes € priticus da preservagao © seus instrumentos legais. Finalmente, 0 volume se encerra na dimensio do registro, com a publicagéo do Documento Final do Congresso Patriménio Histérico e Cidadania — que contém diretrizes estimulantes para todos aqueles que militam neste campo profissional, bem como as ementas das mogées aprovadas pelo plendrio, que compoem um bom retrato dla situagao enfrentada pelas instituicdes de preservacdo do patriménio histérico e cultural no Brasil nestes anos dificeis que abriram a década de 1990. Sio, sem dtivida, anos dificcis para 0s profissionais desta drea — € nfo apenas para eles. Mas, em meio & dificuldade, pensamos que 0 Congresso conseguiu abrir uma brecha de esperangas, e que a experiéncia desenvolvida em S.Paulo e outras cidades brasileiras, apesar das contradigdes, dos limites e de tudo aquilo que vai permanecer como objetivo nio concretizado, constitui um alento importante para aqueles que j4 se aproximavam perigosamente da descrenga. Entéio, que este livro venha ajudar a proverbial teimosia daqueles que continuam acreditando que 0 direito ao passado constitui uma das dimensdes fundamentais da plena cidadania. M.C.P.C. PARTE | TEMAS PARA UM DEBATE Maria Clementina Pereira Cunha "como ficou chato ser moderno. ‘Agora quero ser eterno." (Carlos Drummond de Andrade) Decididamente, este é um pais preocupado em ser “moderno” . Partidos politicos, empresdrios, executivos, sindicalistas "de resultados”, jovens jor- nalistas bem-sucedidos, todos reivindicam para sia bandeira da modernidade como se ai residisse a chave do futuro. Pelo menos desde o final do século passado, ofuscados pela opuléncia ou inferiorizados diante da imagem relu- Pente daquilo que chamam "primeiro mundo”, as elites, brasileiras tém Euseado volocar © pais no que considera ser os trilhos do progresso, na mao tinica da histéria. Hoje, mais que antes, a palavra esti impregnada de sentidos ambiguos € perigosos. Em sen nome, elegeu-se um Presidente, que se aprosenton a nagdo pom uma aparéncia cuidadosamente construfda: jovem, atlético, dindmico, arrojado - a propria corporificacdo messidnica da “modernidade", capaz de itualizar 0 pafs ¢ guindé-lo para fora do seu atraso secular. Rapidamente, no entanto, o sonho da modernidade transformou-se em pesadelo. Talvez seja um bom momento para rediscutir o futuro, mas também os lagos que nos ligam ao passado. Em um pais obcecado pelo "moderno”, a vida dos profissionais que exercem suas atividades na area da preservacao do patriménio histérico nao tem sido nada facil. De forma geral, tem faltado empenho em sucessivos & diferentes governos em fazer deste trabalho algo mais que um apéndice intitil da burocracia estatal. Nao que as elites brasileiras tenham abandonado qualquer preocupagdo com o assunto: afinal, elas criaram os Oredos publics de protecio do patriménio historico. Ao fazé-lo, porém, trataram de cristali- var uma memoria que reside em poucos lugares € pertence a muito poucos. Sintomaticamente, esta preocupagéo despontou no pais na conjuntura do Estado Novo, um dos momentos em que a modernidade era freneticamente perseguida - e, neste caso, em uma versio bastante proxima do fascismo. Nesta perspectiva, a preservacdo daquilo que se definiu como patriménio histérico buscava precisamente afirmar 0 triunfo daquilo que se auto- intitulava como "novo". Os vestigios de um pasado construido para ser cultuado serviram para reforgar uma concepeao de patriménio que o destitufa de toda historicidade: reiteravam e sacralizavam a histéria do Estado como fosse a historia de todos os homens; erigiam no plano simbélico a unidads nagio capaz de ocultar as diferengas e os conflitos, & acima de ; constituam © mais imponente testemunho do prdprio progress que se” buseava afirmar como uma linha de inteligibilidade do passado e de ocullie ‘conflitos. Quase sessenta anos depois, ainda nos perguntamos como escapar de tal heranga, até hoje presente em muitas concepgdes & Witicas profissionais nesta drea de trabalho. Apesar do esforgo de muitos profissionais ¢ especialistas, poucas vezes o ler do patriménio histérico conseguiu se impor, no Brasil, como pauta de lohites ou preocupagdes politicas de maior félego. E, no entanto, todos hemos que papel desempenha esta questao no interior dos mecanismos de so, gerir um 6rgao publico de preservacdo do patriménio \stOrico em suas varias modalidades foi, desde o inicio, um desafio para um Aa municipal com um perfil democratico ¢ popular, como o da cidade le Sio Paulo. Mesmo no interior desta gestao - capaz de enfrentar, por exemplo, as pressdes do lucro imobiliério - a questéo tem provocado polémicas nas quais alguns setores do préprio governo municipal, marcados ainda pela velha heranga intelectual que supde um antagonismo entre 0 “moderno” e o “antigo”, questionam iniciativas como o tombamento de janchas urbanas por consideré-las antagdnicas aos projetos de renovacdo ou intervengao urbanas. O debate, portanto, permanece necessdrio: em Sao Paulo e em todo o pafs, muitos entendem ainda a ac3o do Patriménio Histérico como uma atividade meramente académica, que tem pouco a contribuir com a gestéo da cidade ou com as lutas pela democracia € pelos direitos & plena cidadania, que marcam a vida brasileira mesmo anos apés 0 final da ditadura militar. a Com este Congresso, gostarfamos de contribuir para retomar este debate entre os profissionais desta érea, que nao tém tido oportunidade de se desenvolver em féruns mais amplos desde muitos anos. Pretendemos criar um espaco para que profissionais se reencontrem a fim de avaliar suas experiéncias e ouvir as alheias - pelo Brasil afora, mas também de outras partes do mundo; criticar opgdes e pontos de vista, debatendo livremente as alternativas que se abrem 4 nossa frente, mesmo quando temos a impressao de que no ha muitas razGes para otimismo. Este € lm encontro de especialistas do patrim6nio histérico, € isto envolve certa- mente os aspectos técnicos do nosso trabalho. Mas deve ser também uma alividade de sujeitos hist6ricos que sabem o significado politico € social do seu oficio. Esperamos, por isso, que os resultados deste Congresso nao se cncerrem por aqui: que ele possa reabrir o debate, reacender as esperangas & Jornecer instrumentos de retomada dos nossos objetivos mais caros e perma- hentes Foi exatamente por estas razdes que propusemos um temério que se desdobra em torno de trés objetivos basicos para 0 Congresso, que convém explicitar, Poderiamos dizer que 0 primeiro deles volta-se para um debate interno aos profissionais sobre suas técnicas e procedimentos. Apesar de hoje cm dia muitos expressarem a mdxima de que © conceito de patriménio histrico nao se reduz apenas as edificagdes e manchas urbanas, a maior parte dos profissionais, drgdos e entidades ligados & preservacao acaba, na pratica, por reiterar esta. restrigao. Fruto de uma longa tradicao no Brasil, esta nocao restrita de patriménio histérico vem sendo questionada ha muito tempo ¢ em vérias direcoes, mas os resultados deste debate tém aparecido pouco no nosso trabalho. Trata-se, por isso, de aprofundar a discussao entre P jes que AsSegureM silt 4m a clarificagho de seus signi f Por isso, 0 Congreso nao deve elidir seus objetivos politica em geral ¢ as politicas e: pecificas para o setor, A © entidades piiblicas dedicadas a preservagiio do patrimdnie cultural no. Brasil tem sido endemicamente preedria; faltam verbas, obstaculos para a implantagao de projetos que nem sempre tem sua dade assegurada, a formagao de quadros técnic especializados fol conseguida a duras penas. Por outro Jado, as medidas implant governo federal desde margo de 1990, com a desmontagem de institi importantes na drea da cultura e do patriménio histérico no plano fede ainda nao esgotaram seus efeitos. Se o encerramento da "Era Ipojuen’ nos dar alguma sensacao de alivio, nada indica que a situagi revertida. Nos planos federal, estadual e municipal praticas difereneit orientagdes por vezes opostas indicam ainda que a memoria constitu campo privilegiado da politica - e em torno dela se desenvolve surdamel um embate nem sempre explicitado, Nesta perspectiva, & nossa condigile sujeitos do conhecimento deve se juntar a de sujeitos da hist da memoria como uma dimensao fundamental da ci jadania aparece como um ecixo fundamental da discussdo capaz de associar nosso profissional com a dimensao politica de nosso trabalho, Finalmente, um terceiro objetivo do Congresso mantém ainda seu ¢ politico, mas com um enfoque mais especifico. Julgamos que a exp que desenvolvemos na cidade de Sao Paulo deve ser submetida avaliacao ampla e democratica. Expor e discutir com os especialistas | populaco da cidade as diretrizes ¢ préticas adotadas nesta area por governo municipal através do Departamento do Patriménio Historica CONPRESP, confrontando-as com experiéncias realizadas em outros Mf pios ou com seus equivalentes nas areas ¢staduais e federal, constitu Compromisso do qual nao queremos fugir. Mais que a afirmacao d "modelo", busca-se a avaliagio, o intercdmbio e a critica que permitin ampliagiio do debate entre os especialistas ¢, sobretudo, destes cori sociedade, Na verdade, desejamos explicitar que nossa concepcao de pi Tnonio hist6rico implica retirar do especialista o poder da “vitima palayril” se 0s registros da meméria social constituem nosso objeto de trabalho, 6 cory a socieade que temos de dialogar em primeiro lugar. Os textos que se seguem contém algumas indicacdes preliminares sol nossas concepces a respeito dos cinco temas gerais que compoem 0 te! do Congreso, Ao explicité-las e submeté-las a critica, pretendemos mani tar publicamente nossa Unica certeza: a de que o confronto de idéias @ debate livre e criterioso constituem o melhor caminho, seja para o aperfel goamento profissional, seja para cultivar a esperanca na possibilidade de Sociedade cm que 0 "moderno” nao negue o passado, e o exercicl Cidadania esteja ancorado em uma meméria capaz de afirmar a diver’ © conflito como dimensdes constitutivas da hist6ria. DIFERENTES SUPORTES PARA A MEMORIA Nilson Moulin Louzada Um babalad me conou: “Antigamente, os orixds eram homens Homens que se tornaram orixds por causa de seus poderes Homens que se tornaram orixds por causa de sua sabedoria. Eles eram respeitadas por causa de sua forca. Eles eram venerados por causa de suas virtudes. Nos adoramos sua meméria e os altos feitos que realizaram. Foi assim que estes homens se tornaram orixds. Os homens eram numerosos sobre a terra Antigamente, como hoje, muitos deles néo eram valentes nem sébios. A membria destes no se perpetuou. Eles foram completamemte esquecidos. Nao se tornaram orixds. Em cada vila um culto se estabeleceu sobre a lembranca de um ancestral de pres € lendas foram transmitidas de geracdo em geragio para render-thes homenagem.” Lendas Africanas dos Orixds Numa Europa que tenta reinventar-se, um historiador chamado Carlo Ginzburg sai A caca de processos de bruxas locais ¢ acaba por integrar a0 corpus de sua pesquisa as primeiras versées do conto de Cinderela — com matriz na China. No prosseguimento dos trabalhos, ird relacionar Cinderela, Edipo e Aquiles. (E onde fica o rigor analitico que inseria tais personagens em tradigGes diferentes e estanques entre si?) Em Hanoi, o Museu da Guerra expée restos de avides “made in USA" e maquetes de batalhas navais que explicam estratégias bélicas que remontam aos séculos XI e XII, quando os chineses eram os adversdrios principais. Numa sala ao lado, montada em clave de cendrio teatral, o insdlito: dezenas de faixas de passeatas, em intimeras linguas, resumindo uma idéia, um momento politico — "O Vietname somos todos nés” — durante a segunda guerra da Indochina, terminada em 1975. Unindo Oriente e Ocidente, a rota da seda funcionou durante 15 séculos como uma via de comércio que transportava cultura junto com os preciosos fardos, os quais superavam barreiras de qualquer tipo para enriquecer os mercadores, especialmente os venezianos. Hoje, um projeto interdisciplinar. patrocinado pela UNESCO, de 1988 a 1993, do qual participam varios paises, propde-se a reunir as infindéveis memérias de uma travessia que desde seus primérdios mesclou fantasia e realidade. Sem pretender definir os 12. outra, estdo sendo jnventariadas tradig6es orais, registros gus de Marco Polo aos textos que, no riocorrente da umento”) e também tecidos que limites entre uma ¢ eseritos (das narratl historia, vieram a adquirir 0 estatuto de “doct set inteiras sobreviveram ao uso. Desde 1988 j4 foram produzidos por geracie: : i eer ccc de filmes que retomam, in loco — terras © mares —. antigas frilhas da seda com olhos, técnicas ¢ aparato conceitual contemporaneo. E fdo o que resultar dos diversos levantamentos. das sucessivas triagens {eritérios politicos? cientificos? estéticos?) sera transferido para suporte cletronico e sob esta forma mutiplicado ¢ devolvido a todas as nacdes que participaram da enorme viagem. Num Brasil supostamente periférico, uma pesquisadora, A. Claudia de Oliveira, defende tese que termina publicada sob 0 titulo de Neolitico: arte moderna, Outro autor, J. A. Maudit, ja trouxera piblico um provocante Quarenta mil anos de arte moderna. Em ambos os casos, ndo apenas a categoria de moderno ~ colocada em xeque. Mais importante ainda, af se questiona a nogio de progresso € Sua rede de infinitos equivocos, que se Gpresenta hoje como uma das esfinges que nos cabe decifrar. Continuando esta listagem de sabor incongruente, consideremos 0 acervo do Museu de Imagens do ‘Inconsciente (Manicémio do Engenho de Dentro, RJ). Neste caso, aqueles que, de alguma forma, perderam (ou ganharam?) a batalha na arena da “normalidade”, foram reclusos com @ etiqueta de Mioycos”. Desde o momento em que pincéis e tintas so colocados ao alcance da mao dos internos, eles se transformam em produtores de textos que retracam/desvelam trajet6rias de represssoes individuais e coletivas. Aqui, 0 Trabalho dos presos rompe com o simplismo das categories patolégicas © nega o arsenal de torturas inventadas © odificadas por instituigdes sacerdo- tais, médicas e carcerdrias de todos os matizes. Essa experiéncia vai confluir can uma trilogia cinematografica que chega ao publico sob a poética rubrica de Barca do sol Até aqui foram justapostos elementos aparentemente dispares. Seria iguma coeréncia? Se considerarmos os diferentes suportes possivel dar-Ihes al Para a meméria como um problema que ainda necessita SF equacionado, talvez sim. ‘Ao falar de diversas formas ¢ fontes para a memé6ria_ poderfamos entender os mesmos suportes usados ha séculos (os que foram até aqui mais) ¢ também aqueles surgidos com as tecnologias mais elencados e tanto: ce aeaee Porém, 0 que existe de novo neste contexto? Uma ret ampliacao quantitativa? Algum tipo de garantia de "fidelidade” do registro? Ou estaria AWorrendo algum outro género de mudanca? ‘Uma das novidades talvez consista na ruptura da hierarauia entre as modalidades de registro: por exemplo, © escrito com carimbo institucional comeca a deixar de ser a tinica fonte "fidedigna”. O reconhecimento da tradigao oral como fonte valida, inclusive enquanto Contraposi¢ao aos regis- Maes escritos de cérater univoco, contribui para subvertet “meméria do rei” e questionar a historia oficial, “yerdadeira” , a partir do que A. Jolles, ja em 1930, chamava de "formas simples”. Nenhuma espécie de cédigo pode a tonsiderado inferior a outro, tendo como base de comparacao parametros de complexidade. E isso que vai permitir ao nosso pesquisador de bruxas contrapor relatos de camponeses analfabetos As mui coerentes sentencas dos Juizes da Inquisicao. A voz da igreja romana pode passar a ter tanto peso quanto o discurso de uma prostituta acusada de feitigaria. Em outro caso, a pintura em seda, matéria tio preciosa como sé alguns metais sabem ser, freqiientadora de nobres salées, pode ser equiparada a faixas de passeatas, feitas de panos frageis, efémeros, saidos diretamente das Tuas para um espaco que fabrica e referenda (as vezes desvenda) valores — o museu. © que est mudando? Nao apenas os critérios para estabelecer 0 que é principal ¢ secunddrio, grande ¢ pequeno, valioso e ordinario. Com risco de ser redundante, convém lembrar que a formagio dos escribas quase sempre constituiu reserva de caca das classes dominantes, Durante séculos, a educacao para a escrita, sua manutengio e preservacao, quase sempre foi apandigio de seus agentes, eclesidsticos ou civis. Aqui, a difusio da imprensa veio a constituir uma revolugao de fato. Nesta nossa era de aceleracao da reprodutibilidade técnica, 0 aumento de possibilidades de registro e, em certos casos, a facilidade para apropriar-se de novas linguagens, tende a favorecer o inicio da quebra do monopélio da fabricagao de versdes socialmente verossimeis. Mas nao se trata nunca de um processo linear. Atualmente, ja se coloca a questi da qualidade do registro e de sua ampliacdo permanente. A diferenca do que agora acontece em telacio a Idade Média, por exemplo, um historiador que, dentro de cem anos investigue 0 nosso cotidiano talvez tenha o problema de excesso de dados. Em relacdo aos suportes relativamente novos (séculos XIX-XX), tome- mos em consideracao 0 caso da fotografia. Varios autores j4 destacaram a importancia do "2 album de familia” como fonte de pesquisa: a fotografia tornou-se “democratica” e hoje permite a criacao de arquivos domésticos sem regras rigidas impostas pelas instituicdes estatais e outras de algum modo autorizadas a ditar normas. Contudo, para a producio da memoria nacional ou de quaisquer outras com algum nivel de institucionalidade, sao “cleitos” poucos fotdgrafos, segundo critérios politicos (fatos e personagens rigorosamente enquadrados, selecionados ¢ legendadlos) ¢ estéticos (a codifi- cacéo de enfoques e estilos tampouco € casual ¢ muito menos a sua aceitagao/difusio pelo mercado). ” Antigamente, como hoje, muitos deles nao eram valentes nem sdbios A meméria destes nfo se perpetuou. Eles foram completamente esquecidos.” Inconcluindo (se nos € permitido o neologismo), poderiamos tentar estabelecer algumas aproximacées entre a “memoria do rei”e as memoérias Populares no que concerne aos processos de selecdo. Em cada geracio, em cada periodo hist6rico (outra convengao perigosa) que grupos sociais ¢ que critérios determinam 0 que deve ser preservado? Embora alguns insistam em tentar construir uma tinica meméria, a multiplicago quase infinita de regi tros jd no o permite. Por exemplo, se nos restringissemos a guardar apenas a memoria de “valentes” e "sdbios”, mesmo que se tratasse de contestadores de ordens estabelecidas, universos inteiros seriam imediatamente colocados fem segundo plano, temporariamente ‘sancelados ou até mesmo perdidos. Se fo longo do. tempo, ¢ de forma muito ‘acelerada nas tltimas décadas, 0 ae minio tecnico contribuiv para ampliar os suporeS ‘da meméria e tornd-los cada ve mais acessiveis a diferentes grupos socials (a pelicula cinematogré- fica, o video, os gravadores, as cAmaras populares de fotografia, 0 disco. etc, etc), os registros da diversidade das experiéncia sociais € dos valores culturais tornam mais premente 2 necessidade de questionar 0s critérios que definem. quais sao as fontes @ formas mais abrangentes para tentar dar conta da multiplicidade de vivencias ¢ lutas, que se engendram sem cessar em toda e qualquer formacao social. 16 MEMORIA, PRESERVACAO E TRADICOES POPULARES Olga Brites da Silva Quem fala sobre patriménio histérico? Hd vozes bastante conhecidas: historiadores, arquitetos, arquedlogos, gedgrafos, socidlogos, antropdlogos, juristas... Palas geralmente respaldadas por um saber que se pretende “cien- tifico” © por um lugar de onde se esté "autorizado” a emitir julgamentos. Técnicos e administradores puiblicos, ancorados em suas organizacdes burocriticas, anunciam politicas para esta drea. Imaginam as vezes que podem substituir, com seu enfoque de “especialistas”, a diversidade de concepedes e de experiéncias que permeiam a sociedade. Ao mesmo tempo. outros segmentos sociais que se definem por critérios variados (étnicos,” geograficos, politicos, profissionais, classistas ou reivindicatérios) exprimem suas demandas com relacio 4 meméria. Reivindicam muitas vezes a imple- mentacio de politicas piblicas, ou desenvolvem autonomamente praticas de preservacao, indicando — mesmo quando nao sdo percebidos — novos espacos de historicidade. Por um lado, a presenca dos técnicos ¢ uma reivindicago constante na maior parte destas situagdes como uma forma de legitimacao do prdprio esforco de construgio ¢ registro de uma "memoria popular”. Por outro lado, as relacdes que se estabelecem entre as duas partes sdo sempre marcadas pela tensio entre a historicidade buscada nas tradigoes que conferem identidade a esses grupos e a concepcao generalizada que atribui aos especialistas a condigao de exclusividade na competéncia para falar e executar pelos “leigos” Esta tensio é geralmente resolvida pelo caminho mais fécil: a desqualifi cacao de concepcdes, praticas e saberes populares diante da fala autorizada do especialista. Em nome da ciéncia, da razio ou da téenica, acaba-se por retirar da maioria a possibilidade de um saber-fazer: destroem-se experién- cias, eliminam-se propostas e projetos em construcdo. As tradigdes populares sao subjugadas a outras tantas tradigdes “inventadas” — como diria Eric Hobsbawm — na perspectiva de ocultar os conflitos e produzir a imagem de uma sociedade harménica. Erigindo sobre todas as coisas uma idéia da Nagao una _e indivisa, regimes politicos tém criado simbolos que expressam e reafirmam uma tinica versao do passado. Pode-se lembrar, para mencionar apenas as situacdes-limite, da sudstica, posturas marciais, bandeiras, hinos, fardas e cores, criados pelo fascismo em sua expressao teatralizada do poder. Como é sabido, esse tipo de tradicao — que certamente conserva ainda sua forca — esta calcada sobre a recriacao institucionalizada de antigas tradicdes populares, agora destitufdas de qualquer espaco de autonomia. Nesta batalha simb6lica, 0 “povo” nao estara totalmente esquecido: a ele € atribuido o cardter de "ingenuidade”, romantismo ¢ espontaneidade — como se houvesse na sociedade lugares idilicos, sem conflitos, marcados pela natureza em estado puro, como lindos cartées-postais. A folclorizacéo da cultura popular constitui a marca mais visivel deste processo de desqualifica~ cao da experiéncia ¢ do saber dos dominados. A critica a esta visdo cemantica € espontinea da cultura popular nfo é nova. ‘Algumas de suas formulacgdes mais importantes sio devidas a hhistoriadores como Raphael Samuel e outros fundadores da History Workshop Journal. Preocupados em abrir espacos para trabalhadores alijados do restrito circulo académico, a trajetdria desse grupo de historiadores € exemplar no sentido de politizar 0 saber sobre 0 passado ¢ 0 presente. reconhecendo nos trabalhadores & Condigao de sujeitos e produtores de conhecimento Evidentemente, nao se trata de transformar o conhecimento histérico em uma tola oposicdo entre bandidos e mocinhos, ou vildes e herdis. Esta tem sido, alids, uma pratica comum no interior dos debates sobre a questio no Reel’ Bem longe do clima intelectual e politico que cere 2° intensa polémicas desenvolvidas na History Workshop Journal, tanto os 6rgdos pliblicos de preservagao ‘como os circulos técnicos & académicos brasileiros poucas vezes conseguiram escapar do velho dilema populista — mesmo Guando se tenta uma alternativa ao que chamanos historia “oficial”. Por isto aaa e consideramos esta questao como um dos desafios mals importantes para todos os profissionais que trabalham hoje neste pais na area de preserva- cao da meméria & do patriménio histérico. Cabe destacar que a multiplicidade das tradicoes populares € de suas experiéncias ndo pode ser reduzida a ” Gominadores comuns” que fornecam aos profissionais de patriménio hist6rico referenciais abstratos e genéricos Sobre 0 que deve ser considerado "preservavel” Este alerta nos convida a pensar sobre as diferencas internas entre estes movimentos e grupos: diferen- pe modalidades de organizacao tem por conseqiiéncia 9 desenvolvimento de formas especificas e registros diferenciados impossivel hierarquiza-los ou transformar qualquer um deles em “modelo” a partir do qual se defina 0 que way indo € “popular”. Uma politica de preservacie que st yolte para 0 universo das tradicdes populares precisa manter os olhos atentos para estes riscos e livres para essas possibilidades. Muitos movimentos sociais recentes, & exemplo de boa parte do movi- mento operério do inicio deste século, tem desenvolvido praticas diferencia- tie ¢ destinadas 4 construit sua propria memoria. preservando registros © fradigdes plenas de signifiegdo do ponto de vista de sua experiéncia © identidade social cultural. E 0 caso, por exemplo, do Movimento de Satide da Zona Leste de Sao Paulo ou dos sem-terra de diferentes regides do Brasil, que também se empenham em manter vivos seus poemas, cangdes ¢ lembran- dhs de luta, como seus textos, fotografias ¢ ‘documentos. De outra forma, mas talvez com as mesmas jntengoes, 0 Centro de Cultura Social dos anarquistas do Brés — que ainda ‘mantém viva suas antigas tradigoes — permanece encenando antigas pecas teatrais como instrumento de "educacao social”. A cidade de Sao Paulo esté cheia de outros exemplos, quase Secondidos em seus bairros mais longinquos, sedes sindicais ou de movimen- tos populares, grupos feministas, movimentos negros © tantos outros. ‘A dimensao politica deste esforco reveste-se de uma importancia crucial — pois todos sabemos que a memoria Social constitui um dos mais sdlidos alicerces da dominacao e do poder. A possibilidade de construgao fechada de aan verano univoca do passado repousa no poder de decidir sobre 0 que sera 18 ou nao preservado enquanto registro 2 disposicio da posteridade. Se as priticas populares de construgao e preservacao da meméria so estratégicas deste ponto de vista, elas se defrontam cotidianamente com o desafio de sua propria fragilidade diante de um inimigo que, como dizia Walter Benjamin, "nao tem cessado de vencer”. Cabe aos profissionais da meméria — aos historiadores e todos os que atuam na preservacao do patriménio histérico ¢ cultural — escolher 0 seu campo de luta e enfrentar decididamente o problema. Algumas instituigdes tém-se preocupado em resgatar conjuntos documen- tais que foram pacientemente armazenados por militantes ou grupos e movi- mentos no passatlo. O Arquivo Edgard Leuenroth, por exemplo, hoje sediado na UNICAMP, originou-se da descoberta de um acervo deste tipo — e desde entéo tem continuado a recolher documentos em diferentes suportes relacio- nados sobretudo & histria do movimento operdrio no Brasil, até constituir-se em um dos mais importantes arquivos sobre 0 tema na América Latina, Com registros diferentes, o CEDIC da PUC de Sao Paulo ou ainda o CEDI, vinculado & Igreja Catélica, mantém importantes acervos com a dupla funcao de formar militantes e informar pesquisadores. No entanto, a acdo destas instituigdes — ainda que extremamente importante e valiosa — mantém uma substancial diferenca com relagao as formas de atuacdo ¢ intervencao que competem aos drgios governamentais de preservacao do patriménio hist6rico e cultural. Talvez de uma forma intuitiva — mas plenamente justificada — os movimentos costumam desconfiar das intencdes dos érgaos governamentais. Hesitam em abrir-lhes seus registros, repudiam a instrumentalizacio de suas lutas e qualquer forma de interferéncia na construgao de sua memoria. Temem, com razio, ser despojados de suas tradicdes e de sua identidade. E de fato esta tem sido a melhor forma de preservé-las. No entanto, 0 respeito a sua autonomia nao deve significar para nds apenas a remota esperanga de que, um dia, seus registros possam ser resgatados por algum arquivo ou centro de documentagao que, por sorte, os salve do total esquecimento e recortem, por critérios geralmente estranhos a sua experiéncia, os registros do passado. Qual seria entiio papel a ser desempenhado por estes Grgdos governa- mentais em sua relagto com a memGria e as tradicées populares que, teimosamente, resistem aos esforcos sistematicos de ocultamento? Cer mente nao cabe a eles recolher esta documentacao ou empreender expedicdes a periferia das cidades em busca de algum tipo de registro das tradicdes populares vistas como um retrato folclorizado do “outro”. A meméria social € as tradigdes populares constituem experiéncias que nao podem ser dissocia- das, coisificadas ou reduzidas & condi¢do de meros objetos de contemplacio. Nesta hipstese, clas seriam (como foram muitas vezes) profundamente desvitalizadas, espoliadas da propria forca que as constituiu. Ao invés de retirar este patriménio de seu circuito proprio, € fundamental respeitar compreender scus vinculos profundos com aqueles que 0 produziram: trata-se de reconhecer que, neste saber-fazer, preservar, difundir, aprender e refazer praticas sao elementos indissocidveis. Por isto, é necessdrio afastar 19 qualquer tentacdo de congelar este patriménio, como se esta fosse a tinica forma de garantir sua sobrevivéncia Por tudo isso, a acdo dos érgaos governamentais de preservacio nao deve se pautar pela intengao de guarda ou apropriagio destes acervos. Ao contrério, sua acto sé poderd ser bem-sucedida se contemplar a necessidade de contribuir para dar sustentacao a estas atividades sem interferir na sua dinamica, respeitando acima de tudo o principio de sua autonomia. Enfrentar a questo da sua fragilidade, fornecendo-lhes as armas técnicas indispensé~ veis através de assessorias ou oficinas de trabalho, ¢ socializando 0 acesso aos instrumentos te6ricos e procedimentos necessérios & preservacao de suas préprias referencias culturais. Trabalhando com as tradigoes populares temos diante de ndés a oportunidade de refazer nossas relagdes com a sociedade, oferecendo servicos e simultaneamente aprendendo dimensoes fundamentais da historia, Em uma palavra, contribuir para o exercicio e a geracio de direitos sem jamais pretender substituir os diferentes sujeitos. Aceitar 0 desafio de incorporar outras formas de saber como legitimas e capazes de alargar 0 nosso proprio trabalho. Mas saber que, por outro lado, a nossa aco — enquanto profissionais — ainda faz sentido desde que abdique- mos da velha “tradicio" (nada popular) de reiterar a unicidade do passado O PUBLICO E O PRIVADO: PROPRIEDADE E INTERESSE CULTURAL Cassia Magaldi Aos conceitos atuais de identificagao da urbis, poderiamos acrescentar que a cidade deve ser pensada como uma estrutura onde se realizam, em constante interacdo, as relagdes sociais: todas as espécies de atividades aces humanas espacialmente concentradas. Ela pressupde uma participagao diferenciada dos homens nos processos de producao, distribuicio e consumo de bens materiais ¢ culturais. Por isso, a problematica urbana sera melhor desvendada se entendida como parte de um contexto mais amplo — como parte de um movimento histérico de permanente transformacao, que afeta tanto 0 campo quanto a cidade. Esta problematica nao se esgota, portanto, hos aspectos ecolégicos, demograficos, ou funcionais que, na verdade, constituem a aparéncia superficial de um processo bem mais profundo. Vista como parte do proceso histérico, a cidade possui o mesmo cardter de mobilidade que caracteriza as relacdes sociais, ¢ esté marcada pelos mesmos conflitos. Sua configuracao, resultante das formas assumidas pela sociedade, pelas formas histéricas de apropriagao do espaco e pelas inter- relagdes dos elementos que compoem a sua estrutura, esta sujeita a uma dinamica que nao pode ser dissociada da politica. A cidade guarda em si as cicatrizes de varios momentos diferentes de uta: as teimosas marcas de uma meméria inscrita nas pedras do calcamento, os monumentos aos sucessivos vencedores, og rastros de um passado que permanentemente se tenta ocultar ou maquiar. E sabido que, ao longo da histéria, a luta pela construgao de uma memoria social passou pela tentativa de julgar o passado, visto sempre como inferior ao presente — e estas tentativas se concretizaram fisicamente nos procedimentos de destruir e edificar. Nas cidades brasileiras, ainda com maior forca, as idéias de progress e modernidade tém levado a uma sistemdtica destruigéo das marcas do passa- do. A sintomdtica auséncia de preocupagio com o problema e a virtual fragilidade dos drgios ptiblicos de preservacdo ¢ planejamento urbano tém criado uma situacao de extrema gravidade no que diz-respeito & necessdria convivéncia entre 0 “antigo” e 0 "novo". Se no “antigo” reside uma parcela importante da meméria social e da identidade cultural dos habitantes da cidade, desconsiderar a questio do patriménio histérico-ambiental urbano € exilar 0 cidadao, alijé-lo de seu proprio meio — fazer da cidade um ambiente hostil ¢ estranho & maioria da populagdo. Como diz o documento publicado pelo SPHAN-PRO-MEMORIA em 1982, "do equilibrio entre 0 nove e o velho depende o equilibrio cultural de uma cidade, de uma sociedade. E esse equilibrio garante a continuidade do seu singular”. Assim como o patriménio ambiental urbano pode ser considerado a materializacio das relacées sociais que interagem no espaco da cidade, funcionando como elemento de identidade, a sua preservacao deve ser vista como parte de uma luta. A luta pela apropriacdo da cidade visando resguar- dar seus significados culturais que testemunham modos de vida e experién- cias. Como afirma o Manifesto de Amsterdam, em 1975, “nds sabemos que a preservagio da continuidade hist6rica, no meio urbano ou rural, € essencial para a manutencao ou criagdo de um quadro de vida que permita 20 homem encontrar sua identidade, e provar um sentimento de seguranga em face as mudancas brutais da sociedade”. Mas esta dimensiio de conflito que cerca o tema da preservagdo do patriménio histérico, nao se manifesta com a mesma intensidade com relacao pos seus diversos suportes. O Brasil possui, em nivel constitucional, legisla- ao especifica de protecio a bens culturais desde 1937. Com 0 passar do fempo, 2 existéncia dos Grgéos federais de patriménio historic foram se somando instituicdes estaduais de preservagao — sobretudo na década de 70, © 0 aparecimento dos conselhos municipais ao longo dos anos 80 — como € 0 caso do CONPRESP da cidade de Sio Paulo. Assim, legal e institucional- mente hd 0 reconhecimento da necessidade de protecdo dos bens culturais em diversas modalidades. Mas a aplicago desta legislacio ¢ a agdo dos drgaos publicos de preservacio implicam resultados diversos ¢ suscitam reacoes Giferentes quando aplicadas a bens méveis ¢ iméveis. As razGes para esta disparidade nio sao dificeis de compreender: aplicadas a bens moveis como objetos de arte, colegdes de documentos privados, fotografias, mobilitio, e assim por diante. a legislacao de protecio ao patriménio histérico contribui para valorizé-los ao maximo perante as leis de mercado, por significar na pratica uma espécie de certificado de autenticidade ¢ valor cultural — que, has sociedades capitalistas, significa igualmente valor financeiro no restrito © sofisticado negocio das "antiguidades”; mas quando aplicada aos bens imo- veis de significacdo histérica ¢ cultural, esta mesma legislacao tem sido entendida ¢ duramente combatida entre nés como um verdadeiro atentado aos. direitos de propriedade, por que significaria na pritica a desvalorizagdo de bens particulares, na maioria das vezes com alto valor monetério. Esta disparidade caracteriza a permanente tentativa de controle das classes dominantes sobre os critérios € as praticas de preservacdo neste pais. gue se materializa por um lado pelo cultive do, consume sofisticado ¢, por Gutro, na aposta quanto & permanéncia do jogo di espectilacdo imobilidria ¢ 0 lucro desenfreado como ultimo critério no uso do*solo urbano. Se em uma grande metropole como Sao Paulo a preservacdo do patriménio ambiental urbano imovel encontra tantos obstdculos. desencadeia tanta discussdo e dé origem a tantos protestos de proprietarios © incorporadores indignados, € justamente por ser considerada antagénica aos conceitos e politic ditadas pelos grandes especuladores © empreiteiras, que transformam a cidade de Peorda com suas diretrizes privadas — e, pelo menos até aqui, com a anuéncia explicita ou implicita dos poderes constituidos. Nao é outra a razao pela qual, na prdtica, persiste a recusa em incorporar a preocupacdo com 0 patrimonio historico © sua preservacio a idéia de planejamento urbano. Este €o principal problema a ser enfrentado se queremos tornar a acdo dos Srgios do patriménio hist6rico em algo efetivo e capaz de contribuir para a transformacio do presente. 22 Na verdade, mesmo quando a a¢do dos 6rgdos de patriménio hist6rico consegue efetivar a preservacdo dos espacos piiblicos lancando mao dos instrumentos legais disponiveis, 0 proprio poder piblico tende a reagir negativamente — nos moldes da iniciativa privada — em nome dos planos & projetos urbanfsticos que ndo consideram a formula PRESERVACAO IDENTIDADE CULTURAL + QUALIDADE DE VIDA como premissa basica do planejamento urbano e regional. Disto tem resultado a sistemdtica destrui¢do do patriménio construfdo das cidades, travestida de “renovacao urbana”, mascarada por princfpios sanitérios, estéticos ou funcionais, e apresentada como processo de "modernizacio”. Muitas vezes inadvertida- mente, outras tantas por serem incapazes de ultrapassar a mentalidade tecnocratica, os responsaveis pelo planejamento acabam por compactuar com 0 jogo da especulacdo imobilidria, desconsiderando completamente o objetivo maior do urbanismo que é a garantia da qualidade de vida dos habitantes da cidade. No entanto, embora em Sao Paulo e na maior parte das cidades brasilei- ras a questao seja vista deste Angulo, nao € esta a tinica maneira possivel de encaré-la. Certamente, a preservacdo do estoque construido das cidades justifica-se também — para além das preocupacdes com a cultura e as identidades sociais — pelo viés mais imediato da economia de recursos, além de evitar 0 custo social acarretado pela destruigio sistematica de manchas urbanas inteiras. J4 no documento claborado em 1975, em Amsterdam, o Conselho da Europa enfatizava "que a preservaciio das construcdes existentes contribui para a economia de recursos e para a luta contra a dissipacdo, uma das grandes preocupacoes da sociedade contemporanea”. No Brasil, 0 pro- fessor Paulo Ormindo de Azevedo reforca este argumento ancorado no conhecimento da situagdo especffica do pafs: "a manutencéio de uma unidade habitacional obsoleta, a renovag&o, a reciclagem desta unidade custa muito menos do que a reposic¢do da mesma em caso de sua ruina. Por outro lado se considerarmos que a operacio de renovacio urbana, comparativamente com a criagdo de areas periféricas, tem a grande vantagem de nao implicar despesas de instalacio de infra-estrutura uma vez que ela jd existe no setor, verificamos que a manutencdo do estoque construido é uma politica economi- camente valida e importantissima num pais como o Brasil.” Para Harry Weese, finalmente, “atualmente a economia é uma razdo suficiente para justificar a preservagao. Seré que possuimos recursos para construir nosso entorno a cada geracio? Com a multiplicacdio dos custos da construco nos Ultimos anos, novas obras esto fora do mercado, tornando a reciclagem nao um exercicio sentimental, mas uma necessidade” Assim, bem longe dos exercicios sentimentais, devemos apostar nas recomendagoes da UNESCO para reafirmar que as decisdes sobre a preser- vacio de bens culturais devem estar acima de injungdes politicas imediatas, que tendem sempre a beneficiar a minoria dominante. Surge dai a orientagao sobre a instituigao de leis especificas nos moldes do tombamento municipal por meio de “conselhos”, 0 que pode garantir uma participacio efetiva da sociedade na definicdo das diretrizes e das praticas de preservacio. Reafir- mamos ainda que o tombamento torna-se ineficaz se estiver dissociado das demais diretrizes da politica urbana. E preciso deixar claro que se as diretrizes de preservagio estiverem incorporadas aos planos de desenvolvi- mento urbano, nao haver4 anacronismo nas agoes: a lei de tombamento municipal nao deverd sobrepor-se 4s demais leis urbanisticas. Ao contririo, somente se estiverem somadas & que podem constituir instrumento regulador da produgo do espaco urbano e resultar em uma cidade que, aberta a0 futuro, mantenha os lagos de identidade para os homens que nela habitam. ‘A Constitui¢io Brasileira de 1988 traz inscrita em seu artigo 170 a garantia da "funcao social da propriedade" convivendo com 0 direito — Tsagrado” , entre nés — da propriedade privada. Segundo Pontes de Miran- da, entende-se por funcao social da propriedade "o conjunto de condigdes que impoe ao direito de propriedade a fim de que seu exercicio nélo prejudique o interesse social”. Evidentemente 0 problema permanece de pé Pirpois a quem cabe decidir sobre em que consiste o "interesse social”? Certamente nao temos o poder de decidir sobre isto, mas pelo menos podemos afirmar nossa certeza de que este seria um termo para ser usado no plural. E, entre as muitas demandas dos mtiltiplos agentes que produzem a Cidade, aquela que diz respeito & preservacdo da meméria € tao importante quanto qualquer outra: se nao esta ligada diretamente a “interesses”, incide sobre a identidade cultural e social dos habitantes da cidade, sobre o controle do seu passado em suas relagdes com o tempo presente, em seus direitos de cidadania (indissocidveis da dimensiio temporal) que implicam a luta de apropriagao e gestio dos espagos urbanos para todos os cidadaos, na luta pela democracia. Se estes direitos nao podem estar subordinados a nenhum outro, entdo no constitui nenhuma heresia afirmar que ele pode mesmo sobrepor-se a0 sagrado direito de uso do solo urbano. Amém. 24 MEMORIA, HISTORIA E CIDADANIA: O DIREITO AO PASSADO Maria Célia Paoli A estas alturas da discusséo sobre histéria, meméria. patriménio, passa- do, sabemos todos que nenhuma destas palavras tem um sentido’ tinico. Antes, formam um espaco de sentido miuiltiplo, onde diferentes versdes se contrariam porque safdas de uma cultura plural ¢ conflitante. A noc&o de "patriménio histérico” deveria evocar estas dimens6es miltiplas da cultura como imagens de um passado vivo: acontecimentos € coisas que merecem ser preservadas porque sao coletivamente significativas em sua diversidade. Nao 6, no entanto, 0 que parece acontecer: quando se fala em patriménio hist6rico, pensa-se quase sempre em uma imagem congelada do passado. Um passado paralisado em museus cheios de objetos que ali esto para atestar que ha uma heranca coletiva — cuja funcio social parece suspeita. Monumentos arquiteténicos © obras de arte espalhadas pela cidade, cuja visibilidade se achata no meio da paisagem urbana. Documentos e material historiografico que parecem interessar somente a exéticos pesquisadores. Modos de expres- sdo artistica folclorizados e destituidos de seu sentido original. A atitude externa que habitualmente se tem com relagao a este passado mostra o quanto a sua preservacao — como produgao simbolica e material — € dissociada de sua significagao coletiva, ¢ 0 quanto esté longe de expressar as experiéncias sociais. Por que este “legado”, esta “heranca”, esta “historia” enfim, apresenta-se sem referéncias ao presente ¢ sem ligacdes significativas com as constantes modificagdes da cidade e das formas de vida que ela comporta? Talvez seja interessante determo-nos nos pressupostos do debate que se desenvolve atualmente (e que, em si mesmo, tem uma histéria) em torno de concepedes como "preservacdo” e "construgio do passado”. Ha, de um lado, os que sustentam 0 pouco siginificado que tém 0 passado e seu registro diante daquilo que constitui o moderno e a modernidade: a constante produ- co do novo, que desafia a compreensio e a intervenciio na cidade. Se neste caminho a histéria perdeu sua aura, seria inttil (¢ pouco rentével) manter algo com pouco significado presente, a nao ser o de ser exatamente testemu- nho de um passado superado. Nesse raciocinio, passado e historia parecem virar 0 “antigo”, o que sobrou do movimento de recriacao continuada da cidade. Sua preservagio deve, portanto, seguir critérios exclusivamente estéticos ou aqueles ditados pela racionalidade do mercado, j4 que a expe- riéncia coletiva e pessoal do presente deve ser remetida para o futuro. Este, por sua vez, é concebido como.novamente uma ruptura com que ai esta... Em uma palavra, a historia é concebida nestes termos como um processo acabado e fechado aos significados sociais. De outro lado, hé uma atitude oposta — a de gostar do passado, de qualquer coisa que parega “antigo”. Tal atitude, que parece oposta a primeira, esta fundada implicitamente nas mesmas premissas: a de nao se reconhecer ou importar com a inscricao do significado coletivo no “legado” do, a idemtidade como “antigo” parece estar apenas do passado. Neste senti de preservacio dos documentos, no sentimento de perda — € 0 critério objetos & monumentos, constitui uma forma de nostalgia de algo que nao existe mais. Novamente, de uma histéria que se fechou. Uns e outros, enfim, parecem recriar sua vontade uma jdéia de tempo histérico ¢ de seus Palores’ Mais que isto, acabam por montar uma discussao impossivel de set pensada sem que se nomele, Painal, o que vem a ser a felaboragao 0 Significado do passado como experiéncia coletiva de formagao da cultura ¢ da Sociedade. Parece claro que uma Mociedade onde se pensa que tudo pode ser destrufdo ou conservado, tem uma nociio de histéria — passado © presente — completamente abstrata. Nestas condicées, ela nao € uma forma de conheci- mento, nao € um chao de enraizamento,, nao se produz como referéncia com q qual se possa refletit sobre @ experiencia social. _é_ Isto aponta claramente para ume sociedade destituida de cidadania, em seu sentido pleno, se por esta palavra entendermos 2 formacao, informagao & participacio maitiplas na construcde Sa cultura, da politica, de um espace © Be um tempo coletives. Embora 2 via fT go seia © nico caso conhectdo, parece claro que aqui a historia ore um papel formador de identidades, Por isto, parece a dofundamental importncia que © debate, ¢ particularmente aquele entre os profissi muito recentemente, até mest ‘onais desta area, S© debruce sobre essa questa. Até mo as acesas polemicas académicas sobre temas re mediata vinculagao com o presente como, por exemplo, o significado da aboligao, da Republica ou da era tulista provocavam bocejos (em sua insisténcia sobre as virtudes técnicas do trabalho documental) ou varios graus de alheamento social 20s Seus ‘achados. Fazer com que nossa producao incida Sobre a questio da cidadania implica fazer passar a historia ¢ a politica de preservacao & ‘construcdo do passado pelo crivo de sua significacao coletiva e plural. De alguma forma critica e a de constru Critica a uma historia jsto vem sendo feito como uma dupla tarefa: a de ‘0 historiografica de horizontes de validade histérica. que Walter Benjamin chamou ‘dos vencedores” , sobre cujos feitos foram produzidos os “gumentos ¢ crigidos os monumento’, referéncia nica ao que Se ensina nas escolas, se mostra aos turistas, Se celebra nos feriados nacionais. AO esconder ¢ silenciar as outras narrativas dos acontecimentos passados & presentes, essa historia se torna oficial”: a histéria necessdria & documentavel, em referencia & qual © valor de outros projetos e de outras presencas, quando aparecem — sto medidos e julgados. A politica de patriménio que dai deriva conserva esta significado ‘ao preservar apenas estes testemunhos. Pouco importa se neles nao tenha restado nem um taco das serviddes que custaram, nem dos conflitos neles inscritos. Afasta-se 0 sentido da histéria ‘do da memoria social ou, em outros termos, aposta-se que nao hé meméria popular c/ou aiternativa 2 do poder que seia suficientemente Valiosa (ou documentada) para poder ser recriada. Esta escolha — que tem ‘caracterizado a maior parte das politicas de preserva- cao no Brasil — decreta a insuficiéncia © até a jlegitimidade da meméria SScial ou popular, Mas nao é & espeito de suas intengoes, uma escolha sem riscos: ela tenta também criar 0 que Benjamin chamou uma identificacao Festiva eom o yencedor”, tarefa que no emo exige ume eficiéncia técnica 26 raramente alcancada entre nds. Veja-se como exemplo as tiltimas tentativas de se fazer memoriais aos avés de Presidentes, ou de substituir nomes de ruas pelos dos pais ou outros ancestrais de politicos — iniciativas quase sempre patéticas de produzir o passado. As vezes foi necessdrio matar presidentes para consegui-lo... A construcao de um outro horizonte historiografico se apéia na possibili- dade de recriar a meméria dos que perderam nao s6 o poder, mas também a visibilidade de suas acées, resisténcias e projetos. Ela pressupde que a tarefa principal a ser contemplada em uma politica de preservacdo e produgao de patrim6nio coletivo que repouse no reconhecimento do direito ao passado enquanto dimensao basica da cidadania, é resgatar estas acdes e mesmo suas utopias nao realizadas, fazendo-as emergir ao lado da mem@ria do poder e em contestagao ao seu triunfalismo. Aposta, portanto, na existéncia de memérias coletivas que, mesmo heterogéneas, so fortes referéncias de grupo mesmo quando tenham um fraco nexo com a histéria instituida. E exatamente af que se encontra um dos maiores desafios: fazer com que experiéncias silenciadas, suprimidas ou privatizadas da populacdo se reen- contrem com a dimensao histérica. Por esta via, pode-se constituir uma politica de preservagao (e uma historiografia) que deverd ter em mente o quanto 0 poder desorganizou a posse de um sentido das participacoes coletivas, destruindo a possibilidade de um espaco puiblico diferenciado. Trazé-las & luz deve também implicar nao sacralizar a sua presenca: uma histéria "dos vencidos” néo pode ser a construcao de novas mitologias, mas a producao de um direito ao passado que se faz como critica e subversio constantes das versdes instituidas. Se os historiadores e 6rgdos de preserva- cHo se desinteressaram pela meméria popular, certamente n&o foi porque pertenciam, a qualquer titulo, as classes dominantes — da mesma forma que, por exemplo, nao ¢ legitimo supor que os historiadores nao tenham se interessado desde sempre pelas experiéncias participativas das mulheres pelo simples fato de serem homens. Por isto, é necessario ter claro que 0 espaco da cidadania, que permite a produgio de uma histéria e de uma politica democratica de patriménio histérico, néo necessita de ser preenchido por um novo herdi. Ela trabalha em torno da disputa pela meméria social, que constantemente desmonta os mecanismos de institucionalizagao do signifi- cado que a sociedade constrdi a respeito de si mesma — de seus cidadaos, de suas diferencas, de suas identidades e de suas desigualdades. reconhecimento do direito ao passado esta, portanto, ligado intrinseca- mente ao significado presente da generalizacao da cidadania por uma socie- dade que evitou até agora fazer emergir 0 conflito ¢ a criatividade como critérios para a consciéncia de um passado comum. Reconhecimento que aceita os riscos da diversidade, da ambigilidade das lembrancas e esqueci- mentos, e mesmo das deformagdes variadas das demandas _unilaterais. Arrisca-se a encontrar as solicitagdes por uma meméria social que venham baseadas em seu valor simbélico, mesmo que sejam locais, pequenas, quase familiares. Nao teme restaurar e preservar o patriménio edificado sem pretender conservar o antigo” ou fixar o “moderno”. Orienta-se pela producao de uma cultura que nao repudie sua prépria historicidade, mas que se conta dela pela participacdo nos valores simbélicos da cidade, otto de fazer parte” de sua feitura mdltipla. Tnventa novos meios de operar e de se produzir como Fsboce tas todas as significagoes de que € feita uma possa dar- como 0 sen Por isto, pablico, onde possam estar ins cidade. 28 POLITICAS CULTURAIS E PATRIMONIO HISTORICO Déa Ribeiro Fenelon No Brasil, a politica cultural do Estado tem sido conceituada como o conjunto de principios filosdficos, politicos e doutrindrios que orientam a acdo dos érgaos governamentais, marcando sua interven¢ao nas mais diver- sas manifestacdes sociais — sempre pautada pelos critérios do mercado e do consumo cultural. No tocante as politicas de preservacio do patriménio hist6rico, seja no Ambito federal como no estadual e municipal, estas acdes guardaram sempre a marca da improvisacao e da empiria, ou da manipulacdo e do uso politico da cultura. A criagiio do SERVICO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTIS- TICO NACIONAL - SPHAN, em 1937, pelo esforco e acao de intelectuais paulistas ¢ minciros dentre os quais Mario de Andrade, correspondeu a intengao de "abrasileirar os brasileiros” — como afirmou o mestre modernis- ta, fiel aos principios de trabalhar para 0 que pretendia fosse a descoberta do Brasil valorizando temas, objetos, sons, cores, construgdes brasileiras. Ainda que teoricamente os modernistas nao cansassem de chamar a atengao de todos para o “interior”, realizando expedicdes, viagens e excur- sdes destinadas a registrar a cultura do povo — e buscando sempre acentuar 0 valor criativo da cultura autenticamente “nacional” — no trabalho pratico pouco se conseguiu incorporar ou mesmo reconhecer da experiéncia social, dos valores e do conhecimento dos diversos segmentos da populacdo. Nascida nos meandros e contradig6es do autoritarismo do Estado Novo, esta concepgdo de patriménio histérico, mesclada de rebeldia modernista, acabou por cristalizar os elementos do nacionalismo autoritério com as intengdes modernistas, na tentativa e com o objetivo de recuperar 0 passado para alcangar uma definicao da identidade nacional. Em suas falas e em suas mem6rias, os intelectuais que deram forma e contetido & politica de preserva~ cao do SPHAN sempre se consideraram nao apenas como portadores de uma grande autonomia em relagdo ao Estado, mas também como vanguardas de cunho liberal que propugnavam a identificacdo, a defesa, a restauragdo e a conservacao dos grandes monumentos e obras de arte que dariam consistén- cia & chamada cultura brasileira. Deste modo, 0 trabalho de constituigio do patriménio histérico nacional foi produzido rapidamente apés a criago do SPHAN e do Decreto n.° 25, de novembro de 1937, que conceituava e definia critérios de tombamento. De maneira coerente com as concepgdes de cultura enunciadas, e certamente exprimindo mais uma vez a conciliagdo e 0 arranjo em torno do poder, o trabalho de preservacdo ganhou férum e status de conhecimento cientifico. Organizou-se uma estrutura administrativa compativel com as propostas, & unidades orcamentdrias foram criadas — ainda que sempre deficientes, pois o lugar da cultura era secundario e as verbas sempre escassas... 29 Enquadrado no aparelho purocrdtico, 0 SPHAN passou a ser considerado uma espécie de “refrigério da cultura oficial” pela proclamada autonomia que seus dirigentes sempre buscaram resguardar. Apesar de sempre se pretender técnica € neutra em sua atuacdo, @ politica de preservacao deste Breao constitu’ talvez o exemplo mals Fecundo da intervencao governamental he area, da cultura, empenhada em construir uma meméria e uma identidade nacionais. Nao foi necessdrio muito tempo para se jdentificar e se colocar sob protecao € égide do Estado, através do instituto do tombamento regulamen- tado pelo Decreto 25, um conjunto de bens culturais que constituem até hoje, grosso modo, 0 nticleo do assim chamado patriménio historico oficial do Brasil. Significativamente, a predominancia do patrim@nio edificado & avas- caladora: igrejas, capelas, quartéis, fortes, cadelas, paldcios, casas da cAima- ta, imponentes casardes, 10g0 surgiram nas listagens ¢ foram paciente (¢ we erocamente) restaurados € postos & visitacao publica como simbolos do passado da Nacio. Estavam pesim consagrados e definidos os elemeno® Parmplicos dignos de preservagao e de inteprarert este patriménio — as sedes do poder politico, religioso, militar, da classe dominante com seus feitos ¢ modos de vida. A servico do poder, Gultura se submete ¢ consagra-se & "fungao anestésica” da nogao tradicional de patrimonto histdrico e de tudo que ela procura preservar. Vencia outra vez a perspectiva de consagrar como obras da arte ¢ da cultura os simbolos do poder constituido. Desprovida assim de_meméria cBietiva que The permitisse a consciéncia hhistériea — pelo efeito desagrega- dor da impossibilidade de acumular suas realizagdes como cultura — @ caaioria da populagao continuou sem se reconhecer nestes simbolos. Com isso, foi expropriada também de sua memoria ¢ da sua historia. No entanto, sempre € preciso reconhecer ¢ afirmar 0 significado deste patriménio que 0 SPHAN e outros Srgdos de patrimOnio hist6rico consegui, im preservar ao identificar, restaurar conservar bens culturais de inegdvel valor hist6rico e artistico — sobretudo o legado barroco, ‘como testemunho ae condicdes da presenga portuguesa ao longo dos séculos de colonizacao. O que se quer destacar, entretanto, é a politi cultural que orientou esta preservagao: a0 tentar apresentar somente estes registros € acervos, carre- gando nas tintas do seu significado como fator de unidade nacional, atuou como fator de solvéncia das contradigoes reais e retirou da memoria 0 Significado de luta social que ela possu ‘A preocupacao em. consagrar um patrimonio que acenfuava apenas, presenca do Estado, das instituicSes Petabelecidas ¢ classes sociais dirigentes, spagou marcas importantes do totidiano e da experiéncia social see reiada por grandes contingentes da populacao, alijada da reflexao para constituir-se em cultura vAlem desse carter ideotdgico, important destacar que a orientacdo dada pelos 6rgaos oficiais como 0 SPHAN e outros que foram criados nos Eatados e municipios, fez desenvolver wre politica de tombamento, que eaforizava aspectos formais de caracteriZacao das obras de arte "puras” , ou ‘os espécimes representativos de estilos arquitetonicos, acentuando o lado téenico dessa identificacao © © carter de colegao dos bens registrados enquanto patriménio — registro quase sempre desprovido das relacdes SO- 30 ciais que os tornaram possfveis. Tal orientagao terminou por corporificar uma concepcio ¢ uma forma de praticar a preservacéo como a tnica possiyel, sempre com o cardter institucional e oficial como elemento defini- dor. E precisamente este cardter institucional da experiéncia brasileira no que diz. respeito ao patriménio histérico que julgamos importante colocar em discussao, Quando propomos o debate € a reflexiio sobre as politicas de patriménio histérico, queremos tratd-lo nao apenas no Ambito restrito das técnicas de intervencdo ou dos critérios de identificacao e preservago e seus conceitos operacionais. Para além desses aspectos, € preciso politizar o tema, reconhe- cendo as condigdes histéricas em que se forjaram muitas das suas premissas — e articulando-as com as lutas pela qualidade de vida, pela preservacio do meio ambiente, pelos direitos & pluralidade e sobretudo pelo direito A cidadania cultural. Com isso esperamos retomar um sentido de patriménio histérico que nos permita entendé-lo como pratica social e cultural de diversos e muiltiplos agentes. No social, esta luta se concretiza entre diferentes sujeitos histéricos, assumindo formas diversas ¢ resultando em diferentes memérias. Por isso, destacamos entre diretrizes da Secretaria Municipal de Cultura de Sao Paulo para esta gestdo a idéia de que a "cultura é mais do que as belas artes. E mem6ria, € politica , é historia, é técnica, é cozinha, é vestuario, é religiao etc. Ali onde os seres humanos criam simbolos, valores, praticas, hé cultura. Ali onde € criado o sentido do tempo, do visivel e do invisivel, do sagrado do profano, do prazer e do desejo, da beleza e da feitira, da bondade e da maldade, da justica e da injustiga, ali hd cultura” Assim, o principio da cidadania cultural — diretriz bésica da politica cultural desta gestio — se desdobra em diversas priticas que possibilitam garantir, em todos os niveis, o direito 4 cultura a toda uma populacdo socialmente diferenciada, diluindo as fronteiras hierarquizadas das experién- cias culturais na cidade. Este principio leva necessariamente & concepeao de que os equipamentos culturais da Prefeitura Municipal constituem bens puiblicos e, enquanto tais, devem ser colocados a servico da populacio. Envolve também a democratizacZo da producio cultural, seja do ponto de vista de guarnecer os trabalhadores ¢ a populacao da cidade de instrumentos capazes de possibilitar sua produgdo cultural auténoma, tanto quanto a sua formacdo ¢ informacao culturais. Por outro lado. significa — por parte do governo — 0 acolhimento de projetos individuais ou coletivos fornecendo- Ihes, na medida das possibilidades e limites da municipalidade, mdximas condigdes de realizagéo. Pensada como uma diretriz geral, a cidadania cultural envolve também as questdes pertinentes a preservacdo e registro da memoria. Ao Departamento do Patriménio Histérico, especificamente, compete estabelecer e coordenar a politica de preservacao da cidade de Sao Paulo, através do reconhecimento, protecdo, tombamento, valorizacao e divulgacao de seu patrimdnio hist6rico, artistico, arqueolégico ¢ ambiental. Este patri- ménio € constituido de bens iméveis, méveis, documentos escritos e icono- graficos (particularmente os de suporte fotogréfico), cabendo-lhe ainda a custédia destes bens jé protegidos por lei. Entre as metas desta gestio poderiamos destacar: a) Implantacdo do Sistema Municipal de Arquivos, que pretende reunir todas as unidades arquivisticas da administragao municipal ¢ demais institui- goes similares da cidade para que, sob bases comuns, seja preservado & Organizado 0 seu acervo documental —¢ que constitui um. dos projetos prioritdrios desta gestao Para a construcéio desse sistema, é fundamental o Estabelecimento de canais formais para a troca de informacdes que poss ibili- fem 0 acesso ptiblico ao patriménio arquivistico municipal, bem como a implantagio do arquivo intermedidrio, para os documentos produzidos pela administracao municipal. J4 a partir de 1990, a criagio da Coordenacio Cientifica, constituida de especialistas nas dreas de arquivologia, historia. administracao ¢ direito, ¢ das Comissdes Setoriais de Avaliagao de Docu- mentos vem permitindo um trabalho constante nesta diregao. b) Reorganizago e rearranjo dos acervos documentais nos suportes textual, aréfico ¢ fotogréfico, promovendo atividades de restauro ou recupe- ragao fisica, produzindo inventérios e outros instrumentos capazes de garan- tir 0 acesso pliblico aos seus registros ¢) Implantacdo de projetos de histéria oral, através da coleta de depoi- mentos relativos a vida cotidiana da cidade, & memoria do trabalho fabril & de movimentos sociais, visando ampliar o universo de registros relativos & memoria e & histéria da cidade. 4) Subsidiar tecnicamente os movimentos populares na cidade, no sentido da organizacdo dos registros de sua prépria meméria ¢ da preservacao de suas tradigdes e referéncias culturais, em condigdes de autonomia ) Organizaciio do acervo de equipamentos fotograficos antigos ¢ de outros acervos dispersos € desorganizados no interior de drgios da adminis- tragdo municipal, bem como repensar a organizacio do Museu do Teatro Municipal, dotando-o de um projeto museolégico compativel com a impor- tancia de seu acervo. f) Retomar as atividades de registro fotografico sistematico da cidade de Sao Paulo, alimentando 0 acervo permanente neste suporte. g) Promover a dinamizagao das casas histéricas sob guarda do Departa- mento, fazendo com que suas atividades multipliquem 0 interesse da popula- ao pela histéria da cidade e po sibilitando seu uso multiplo de modo a fornd-las pélos culturais efetivos, ¢ ndo meros objetos de reveréncia a uma meméria mitica do passado. hh) Retomar e ampliar as visitas e passeios monitorados, voltados priorita- riamente para a rede piblica de ensino, a edificios puiblicos, logradouros ou espacos da cidade de significagao histérica e social, que possibilitem uma reflexio critica sobre a hist6ria de Sao Paulo. }) Implementar um programa de publicagées que se desenvolve em dupla direcao: o debate intelectual ¢ técnico sobre 0 passado da cidade € os seus Grvos documentais, e a producao de instrumentos de pesquisa ¢ de trabalho didético com a historia da cidade. j) Garantir a extroverstio dos acervos da municipalidade, promovendo exposicdes fotogrificas ou de pecas do acervo municipal em diferentes pontos da cidade, atingindo um publico pouco familiarizado com os circuitos habituais da cultura. a Em relacao ao conjunto dos acervos da cidade, trata-se também de atuar Junto ao CONPRESP (Conselho Municipal de Preservacao do Patriménio Historico, Cultural e Ambiental da Cidade de Sao Paulo), subsidiando o tombamento e 2 preservagdo de edificios, logradouros, manchas urbanas, obras-de-arte, monumentos, colegdes etc. O CONPRESP, criado através da Lei n.° 10.032, de 27 de dezembro de 1985, ¢ alterado pela Lei n.° 10.236, de 16 dezembro de 1986, é 0 érgao colegiado de assessoramento cultural integrante da estrutura da Secretaria Municipal de Cultura, composto por representantes de varias Secretarias e entidades da sociedade civil, Apesar de ter sido criado em 1985, © CONPRESP teve sua primeira investidura somente no final de 1988. Dessa forma, é a gestio democritica e popular do Partido dos Trabalhadores que esté tendo a responsabilidade de definir ¢ cumprir com seriedade e coragem a politica de preservacdo dos bens cultu- rais paulistanos — responsabilidade que comeca pela proposta, j4 em tramita- cao, de promover sua propria ampliagio e democratizar sua composicao. O CONPRESP, dentro de sua politica de atuactio, rem como premissa desmistificar 0 instrumento legal do tombamento. Tombar nao ‘significa congelar, cristalizar ou perpetuar modos de organizacao do espaco urbano com suas edificagdes e usos. A postura desse Conselho pressupde que o tombamento deve ser um instrumento maledvel e articulado com a dinamica da cidade, na medida em que trata da preservacdo de espacos urbanos significativos a nivel da identidade cultural. O CONPRESP tem como orientacdo conceitual romper com a visio monumental da preservacio, deixando de considerar um elemento urbano isolado em contraposigio & protegao do patriménio ambiental urbano, que compreende um conjunto de bens méveis ¢ iméveis que caracterizam a vida da cidade. Segue, por isso, as resolugdes da ONU e da UNESCO de privilegiar 0 tombamento por “manchas”, e nio de edificios isolados, sempre que possivel. Além desses critérios ¢ para instituir uma politica de preservacdo no nivel do municipio, este Conselho vem discutindo em suas resolugGes © significado dos valores simbdlicos de referéncia cultural e dos modos de viver da populacéio, uma vez que a Secretaria Municipal de Cultura desenvolve um trabalho, inédito em 6rgaos puiblicos desta natureza, em torno da meméria social da cidade. Evidentemente, nada disso pode se desenvolver sem conflitos — que convém enfrentar e debater. Diferentemente da maior parte das metrépoles de todo 0 mundo — mas a semelhanca de Nova lorque nos anos 40 e 50 — Sao Paulo tende a destruir sistematicamente a memoria objetiva, deixando aos seus cidacios apenas as lembrancas subjetivas, quase sempre desqualifi- cadas pelos mecanismos de um saber que confere aos especialistas a capaci dade exclusiva de decidir sobre o valor e a relevancia dos sinais e registros do passado. 33 PARTE Il TEXTOS POLITICA CULTURAL, CULTURA POLITICA E PATRIMONIO HISTORICO Marilena Chaui{*) Em 1989, numa madrugada silenciosa, a Avenida Paulista foi sacudida por um rufdo que quebrou vidracas, tremeu a terra € assustou os cidadaos Membros da familia Matarazzo haviam tentado implodir a mansio para poder negociar o terreno mais valioso da cidade de Sao Paulo. O ato foi realizado porque, desde 1987, havia entrado no Condephaat um pedido de tombamento da casa e da drea verde. Temendo 0 tombamento ¢ os prejuizos que traria para a cspeculacdo imobilidria, tentou-se derrubar a casa. A alegacdo cra a de que se tratava de uma propriedade privada e, portanto, sob a soberania inquestiondvel dos proprietérios. Houve, porém, um esquecimen- to: tratando-se de uma intervengao que envolve as cercanias e afeta a vida da regido, implodir ou demolir exige autorizagao por parte do poder ptiblico municipal. A autorizacdo nao foi pedida — afinal, 0 Estado nao € 0 brago legal e © brago armado da classe dominante? Nao esta af para servi-la? A auséncia de autorizacao levou o poder publico municipal a interditar a area para verificacdio dos danos e punicao dos responsaveis. Todavia, ainda sob a interdigéio, alguns membros da familia tentaram novamente a implosio e entraram em conflito aberto com 0 novo governo municipal. Este, represen- tante da autoridade publica, decidiu iniciar dois processos: um de tomba- mento da casa e outro de desapropriacdo do imoével A reagao pelos meios de comunicagao de massa nao se fez esperar. Para alguns, tratava-se da escalada comunista contra a propriedade privada e 0 primeiro degrau na subida do Palacio de Inverno. Para outros, tratava-se da arbitrariedade da esquerda radical, sempre pronta a desrespeitar a proprie- dade privada ¢ a tomar atitudes infantis e arbitrdrias. Outros, enfim, alegs ram a falta de "valor histérico” do imével que tornaria injustificado 0 pedido de tombamento. Estou relatando esse episédio, do qual retirarei algumas conseqiiéncias para a politica cultural, para observar, por enquanto, um outro aspecto: a celeuma da midia em torno da mansdo Matarazzo; a seguir, a celeuma da midia em torno do tombamento da mancha do Bexiga e, posteriormente, a celeuma da midia em torno do tombamento da mancha do Vale do Anhangabati fariam supor um grande interesse dos meios de comuni- cago a respeito das questées do patriménio histérico e faria supor que. ao ser realizado um congresso internacional sobre o assunto, os meios de comunicacao se fizessem presentes, colocassem as questdes para os cidadios, € polemizassem com os especialistas aqui reunidos. Em vez disso, os meios de comunicacao estio silenciosos, discretissimos. fazem pequenas mengoes as personalidades estrangeiras aqui presentes, mas nao participaram’ do ( Fildsofa, Sceretiria Municipal de Cultura de $0 Paulo. a7 debate piiblico que juntos estamos realizando. © silencio e a discrigao nao vesuais, mas exprimem o confronto entre ‘duas politicas culturais e entre has culturas politicas. Vejamos qual diferenca em jogo. Trata-se, funda- mmemtalmente, da recusa em discutir as elagdes entre 0 piblico ¢ o privado nas questées de meméria ¢ de patriménio. Creio que a leitura do texto produzido pelo Departamento ‘dp Patrimonio Histérico de Sao Paulo é esclarecedora: ~ © Brasil possui, em nivel constitucional, legislagdo espectfiea de proteciio a bens culturais desde 1937. Com © passar do tempo, a existéncia Bos credos federais de patrimonio historico foram-se somando instituicoes estaduais de preservagao — sobretudo na década de 70, e 0 aparecimento dos conselhos municipais 20 longo dos anos 80 — como € 0 caso ‘do CONPRESP da cidade de Sao Paulo. Assim, legal € institucionalmente ha o reconheci- ‘mento da necessidade de protecae dos bens culturais em diversas modalida- Tes Mas a aplicagdo desta legislagio € & aco dos Srgios piblicos de preservagao_implicam ceeultados diversos e suscitam reagdes diferentes quando aplicadas a bens méveis © jméveis. As razdes para esta disparidade Tio sio dificeis de compreender: aplicadas a bens moveis como objetos de tite, colecdes de documentos privados, fotografias, mobilidrio, ¢ assim por Hiante, a legislacdo de protecdo a0 patriménio “histérico_contribui para valorizd-los ao maximo perante as leis Je mercado, por significar na pratica uma espécic de certificado de ‘autenticidade ¢ valor cultural — que. nas wmedades capitalistas, significa, igualmente valor financeiro no restrito & sofisticado negécio das “antiguidades” mas quando aplicada aos bens imé- Veis de significagao historica © atural. esta mesma legislacao tem sido ententida e duramente combatida entre nds como um verdadeiro atentado aos direitos de propriedade, porque significaria na pritica a desvalorizagao de bens particulares, na matoria das vezes com alto valor monetirio. Esta disparidade caracteriza a permanente tentativa de controle das classes dominantes sobre os critérios © a! priticas de preservacao neste pais. que se materializa por um Jado pelo cultivo do consumo sofisticado ©, por aiiro, na aposta quanto & permanéncia do jogo da especulagio imobilidria € 0 lucro desenfreado como ultimo critério no USO do solo urbano. Se em uma grande metropole como S20 Paulo a preservacao do patrimonio ambiental tirbano imdvel encontra tantos ‘obstaculos, desencadeia tanta discussio e da origem a tantos protestos de proprietarios © incorporadores indignados, € justamente por ser considerada antagonica aos conceitos e politicas ditadas pelos grandes especuladores ¢ empreiteiras, que transformam @ cidade de heordo com suas diretrizes privadas — ¢, pelo menos até aqui, com a weeencia explicita ou implicita dos poderes com ‘aidos. Nao é outra a razao pela qual, na pratica, persiste a recusa em incorporar preocupacao com 0 patriménio historico € sua preservacio idéia de planejamento ‘urbano. Este & 0 principal problema a ser ‘nfrentado se queremos tornar a agao dos drgaos do patriménio histérico em _ algo efetivo e capaz de contribuir para @ transformacao do presente. on Nossa mesa-redonda indaga sobre as relagoes entre politica cultural & preservagio do patriménio histérico, € pede aos responsdveis pelo setor Piiltural nos poderes publicos que explicitem suas politicas. Assim sendo, 38 tomarei aqui duas dimensdes do que nos € solicitado: expor brevemente as linhas gerais da politica cultural para o municipio de S40 Paulo e expor brevemente as agdes que o Departamento do Patriménio Histérico vem realizando para concretizar essa politica cultural. A Secretaria Municipal de Cultura de Sao Paulo estabeleceu como diretriz politica a idéia e a prética da Cidadania Cultural que define a cultura como dircito do cidadio € determina esse direito sob trés aspectos: como direito de acesso a informa ‘do cultural; como direito de producao das obras culturais; e como direito de participacao nas decisdes de politica cultural. A cultura é por nds entendida sob um duplo registro: no sentido antropolégico amplo de invengao coletiva e temporal de praticas, valores, simbolos ¢ idéias que marcam a ruptura do humano em face das coisas naturais com a instituicao da linguagem, do trabalho, da consciéncia da morte e do tempo, do desejo como diverso da necessidade, do poder como diverso da forga e da violéncia, do pensamento como diferenciagao entre o io e © possivel, 0 contraditério € 0 idéntico, 0 justo € 0 injusto, o verdadeiro € o falso, o belo € 0 feio, o bom e o mau, a determinagao ética da existéncia pela liberdade e pela culpa, 2 determinacdo politica da existéncia pelo trabalho realizado sobre as diferencas e conflitos sociais. Neste primeiro sentido a cultura € um dado ou um fato e somos todos seres culturais. Num segundo registro ou num segundo sentido, tomamos a cultura como trabalho —entendendo por trabalho o movimento pelo qual os seres humanos capazes de uma relacio com o ausente e 0 possivel, so capazes de negar condigdes imediatas de sua experiéncia e sdo capazes de criar 0 novo como plenamente humano. Tomamos o trabalho cultural como criagao das obras culturais, pela capacidade humana de ultrapassar os dados imediatos da experiéncia e dota-la de um sentido novo trazido pela reflexdo e pela escrita/leitura — trata-se das obras de pensamento — ou trazido pela sensibi- lidade, pela imaginagao, pela inteligéncia e pela invencao de formas ¢ contetidos — trata-se das obras de arte. Neste segundo sentido, a cultura nao € um dado, mas uma valor e uma avaliagao que os humanos fazem de seu proprio mundo. Ao definirmos a politica cultural como Cidadania Cultural e a cultura como direito, estamos operando com os dois sentidos da cultura: como um fato ao qual temos direito como agentes ou sujeitos histéricos; como um valor ao qual todos tém direito numa sociedade de classes que exclui uma parte de seus cidadaos do direito 4 criagio e a fruigéo das obras de Pensamento ¢ das obras de arte, Nossa politica cultural tem-se proposto a enfrentar o desafio de admitir que a cultura é simultaneamente um fato e um. valor, a enfrentar o paradoxo no qual a cultura € 0 modo de ser dos humanos €, no entanto, precisa ser tomada como um direito daqueles humanos que nao podem exercer plenamente o seu ser cultural — no caso, a classe trabalhado- ta. A decisio de enfrentar esse paradoxo (que nio existe para as classes dominantes porque para elas ser cultural e ter direito 4s obras culturais sao uma sd e mesma coisa), esta consignada no cartaz e no titulo deste Congres- so: a tomografia do cérebro mostra que a meméria é um fato’ biolégico, anatmico, fisiolégico, que todos somos memoriosos ¢ memorialistas, mas 0 titulo do congresso lembra que a meméria, numa sociedade que exclui, oprime, oculta os conflitos ¢ as diferengas sob ideologias da ‘dentidade, é um valor, um direito a conquistar. Procuramos, assim, com & proposta da Cidadania Cultural tornar insepartivels politica cultural ¢ cultura politica que buscam a democratizagio dos direitos. Se tomarmos os cinco temas propostos para este Congresso, notaremos que cada um deles € todos exprimem esse laco entre politica cultural © cultura politica e que todos eles ¢ cada um deles procura as formas pelas quais a memsria ¢ 0 patrimdnio sao trabalhados © concebidos para garantir a cidadania cultural — o direito & memoria € a meméria como trabalho de criagao das obras histéricas no pensamento ¢ nas artes, Na vida urbana e nos textos, nos objetos ¢ nas relagdes sociais. No tema dos diferentes suportes da memoria, 0 DPH nao tem simplesmente procurado “modernizar-se” , isto é, fazer com que novos instrumentos tecnoldgicos venham suporsar velhas idéias de patriménio ¢ meméria, mas vem discutir tanto as nogoes de antigo moderno (€ a ideologia neoliberal da modernidade cultural definida pela indtistria cultural e, portanto, pelas tecnologias de ponta como suportes do antigo travestido de novo), quanto as hierarquias que estabeleciam inferiori- dade e superioridade de determinados suportes, que conferiam credibilidade e Nesconflanca a outros, dignidade e irrelevancia a outros. Numa palavra, 0 primeiro tema indica uma prética critica em face dos objetos e espacos postos como memoraveis numa hierarquia tacita de exercicio da dominagao. social ¢ politica. Trata-se, fundamentalmente, do questionamento da aparéncia de unidade e de identidade da memoria. No tema obre memoria, preservacao ¢ tradicdes populares, o Departamento do Patriménio Histérico vem questio- nando a divisao competente do trabalho que coloca, de um lado, os especia- listas, qualificados para decidir o que € ¢ 0 que nao é memordvel, o que éeo que nao ¢ preservavel, o restante dos cidaddos sendo tidos como incompeten- tes. Tem buscado a multiplicidade, a pluralidade e a diversidade das mem6- rias ¢ tradiges e tem buscado desenvolver nas Casas Histéricas ¢ nas varias regides da cidade o trabalho da histéria oral dos movimentos sociais, dos navimentos populares € dos movimentos operdrios, para quebrar a imagem jdeoldgica de um passado univoco e de um presente idéntico, esforgando-se para ndo ser produtor ¢ guardigo oficial dos acervos da tradicio popular € Pbalhadora, mas de oferecer servigos € técnicos para que os movimentos sejam sujeitos ¢ autores do trabalho memorialista. No tema sobre o direito ao pasado, a prética do Departamento do Patrimonio Histérico tem-se pautado pela visao critica do “antigo” enquanto chave ideolégica de invencio da identidade © legitimacao das excluso ‘Aqui, a entrega da Casa do Sertanista 2 Unido das Nacoes Indigenas, para a criacdio € autogestio do Nicleo de Cultura Indigena ¢ da primeira Embaixada Gos Povos da Floresta no Brasil, exprime a orientac&o de uma cultura politica cow thdvia A identidade do passado e a idéia do “antigo” como residuo, folclore eC morto, No tema sobre o puiblico © © privado, propriedade interesse cultural, o Departamento do Patrim6nio Historico tem. desenvolvido viet raflexio sobre a cidade enquanto parte de um movimento histérico complexo € diferenciado, que nio pode ser compreendido sem a politica corr naterialidade espacial das lutas pela apropriagio da cidade nos conflitos entre a intervengao predatéria e 0 preservacionismo irrestrito © domina 40 quase irracional. Aqui, tanto a atuagao do CONPRESP quanto as propostas para uma nova legislacao no campo da preservacdo tém marcado uma pratica publica que opera no fio da navalha com os conflitos entre interesses ¢ direitos. Finalmente, no tema sobre politicas culturais e patriménio histérico, © Departamento do Patriménio Histérico vem discutindo e questionando as propostas © praticas dos érgaos federais e estaduais de preservacio do patrimOnio historico, na medida em que operam com as nocdes de identidade nacional € regional, com a consagracao do consagrado pelo Estado e pelos simbolos do poder constituido, sem que os cidadaos se reconhecam naquela identidade e nestes simbolos celebrativos. Critica ainda a politica tradicional dos 6rgdos federais ¢ estaduais quando buscam preservar retirando as obras, os documentos, os monumentos do contexto hist6rico, social e politico que thes da sentido, fazendo-os absolutos abstratos. E 0 cardter oficial ¢ institu- cional celebrativo da preservagao 0 que 0 DPH vem contestando em suas praticas, contestando sobretudo que a questio da preservagdo seja apenas uma questao técnica e operacional Se considerarmos as praticas ¢ as idéias do DPH, se considerarmos tudo quanto foi dito e discutido neste Congreso, se considerarmos a situacdo da meméria e do patriménio no plano federal, ndo temos porque nos surpreen- der com o siléncio dos meios de comunicagao de massa: os congressistas estiio questionando 0 institufdo ¢ as instituicées, as idéias e as praticas estabelecidas, as legislagdes vigentes, a alternncia entre a valorizacao indiscriminada do antigo e a acdo predatéria do moderno, 0 modo de relacio dos servicos piblicos de preservacdo e 0 espaco privado, isto é, estio tocando em tabus perigosos, estao politizando antiguidade e modernidade ¢ é melhor nao divulgar 0 que esto dizendo e propondo. E dessa quebra dos tabus que eu gostaria de thes falar, retirando minha comunicagao do Ambito municipal e propondo uma reflexao sem tais frontei- ras. Nao pude acompanhar os trabalhos da quarta e da quinta-feiras e por isso © que eu vou lhes dizer se refere ao que ouvi nos dois primeiros dias deste congresso. O que mais me impressionou nas intervengdes dos dois primeiros dias — tanto nas mesas-redondas como nos workshops ¢ nas comunicacdes foi a coragem dos expositores para lidar com os limites e as transformacdes de suas dreas de trabalho: Rébérioux mostrou os limites de uma historiogra- fia baseada apenas na meméria militante e a necessidade de uma outra historiografia que resgate a meméria operdria mais ampla e complexa do que a militante; Lombardi e Mariani mostraram ndo s6 os limites da preservacio e modernizacao ditas cientfficas que tomam a arquitetura como pritica auto-suficiente que intervém sobre as cidades sem considerar-lhes as historias € mostraram trabalhos nos quais a intervencdo se faz a partir de uma concepeao multidisciplinar e politica; Kerriou mostrou os limites das concep- gdes do museu como consagraco do consagrado, enquanto exterioridade face as comunidades onde o museu é implantado e apontou a necessidade de inventar um outro museu, vivo e definido pela participagaéo da propria comunidade que determina o que € e 0 que nao é memoravel e preservavel: Bill Schwarz apontou os limites ¢ os riscos da historia oral praticada nos anos 60 e 70 © a necessidade de repensd-la e refazé-la a partir de tenses internas (epistemoldgicas) ¢ externas (politicas), idéia que, em modos diferentes foi a retomada por Hall, Olgéria Mattos, Paoli, Bosi; Bernardet nos mostrou os limites e problemas de uma histéria do cinema brasileiro que oculta 0 carditer industrial, comercial e ptiblico do cinema ¢ a necessidade de um novo Giscurso historiogratico que dé conta do presente reinventando a memoria do paxsado; Garcia apontou os riscos de uma historia do movimento operdtio Feita & luz da experiéncia de um partido politico e, portanto, substituindo a classe pela vanguarda militante. Semindrios e comunicacoes discutiram 0 papel das instituigées puiblicas no tratamento dado & documentacdo, aos fronumentos, ao espaco urbano, 2 qualidade ambiental e & diversidade historica e social, 2 precariedade de recursos financeiros ¢ humanos, 3 falta de uma legislacao que auxilie na tarefa de preservacdo como algo que seja um bem para toda a sociedade, 2 falta de clareza nas relagdes entre o passado 0 desejo imoderado da modernidade a qualquer custo. Essas reflexdes © discussoes apontam para trés ordens gerais de questes que valem a pena explicitar: 1, O que € a memoria? 2. O que € a modernidade? 3. Qual o papel do Estado no que toca & meméria e & preservacao? O que é a meméria? Na Arte Poética, Aristételes afirma que a poesia é superior a histéria porque se refere ao universal e ao possivel, enquanto a historia se refere ao particular e ao fato acontecido. Séculos depois, Cicero diria exatamente contrério e faria da histéria a Mestra da Vida, dando a ela a tarefa de produzir exemplos, modelos e paradigmas de exceléncia para serem imitados no presente, imitacio que Aristoteles atribuira A poesia, isto é, 2 literatura. Embora opostas, essas duas posigdes possuem um pressuposto comum, qual seja, a natureza peculiar da memoria. Mnemosyne ¢ Memoria € a deusa que impede 0 esquecimento, est do lado da luz, da vidéncia inspirada,, da antevisio do futuro pela compreensao profunda do sentido do passado. Clio ¢ Historia estio do lado de Mnemosyne ¢ da Meméria como deusas que nao esquecem e que permite a vinganga dos crimes do passado por um presente que redime Essa idéia da exemplaridade do passado € 0 que interessa ao historiador antigo: para Herddoto, narrar a guerra entre os gregos © os persas, se faz segundo o paradigma da roda da Fortuna que nos ensina que © vencedor de hoje poderd ser 0 vencido de amanha ¢ por isso ambos devem ser tratados com justica: para Tucidides, narrar a guerra do Peloponeso desde seus priméiros sinais (isto é desde a formacaio do império ateniense e desde a irrupeao da peste em Atenas) é oferecer ao presente um remédio para seus males a luz da compreensao de suas causas ou de sua origem. Para Xeno- fonte como para os romanos, a questao da origem ¢ decisiva: os homens sao mortais, mas se imortalizam pelos seus feitos e os feitos dos antepassados, criando a origem da sociedade dao a ela a imortalidade E, pois, a consciéncia aguda da diferenca dos tempos, do papel da fortuna (contingéncia ¢ adversidade), da morte individual ¢ da preservacao coletiva, que guia o historiador antigo. Quando a essa consciéncia vier acrescentar-se a idéia de uma redencao universal que retirard 0 homem da corroséo do tempo e lhe dard eternidade, isto é, com o cristianismo, a memGria nao poderé mais ser apenas a da cidade — ¢ das grandes mutacdes que a atingem, isto é, as guerras — mas também a dos individuos, porque sero eles julgados no fim dos tempos. Ao lado da historia das cidades e dos império: ce a crénica como tradigao dos individuos e dos grupos. A historiografia moderna procurou conciliar a histéria antiga exemplar dos estados — e a crénica medieval dos individuos, produzindo uma historia civica onde os feitos dos grandes homens e das cidades se equiparas- sem. E quando a figura do individuo tornou-se central, nao foi por acaso que a historia hegeliana afirmasse que 0 movimento da meméria era coletivo ou do Espirito e que 0 individuo era apenas 0 suporte empirico do trabalho do Absoluto, ¢ que cada época precisava ter a memoria de todas as outras para superé-la e realizar a tarefa do presente. Quando, portanto, Marx disser que existe apenas uma ciéncia, a ciéncia da historia ¢ que seu objeto € o presente, © que ele afirma & que o presente s6 é inteligivel 2 luz do passado que suprimiu, mas 0 presente sé se transforma verdadeiramente se compreender © passado para nao repeti-lo. A meméria, seja como histria da sociedade seja como crénica das classes sociais ¢ de seus homens ilustres, tem o papel de nos liberar do passado como fantasma, como fardo, como assombracao e como repeticao. Foi a licao do 18 Brumario. Uma compreensio politica da meméria é atenta a diferenca temporal entre 0 passado e o presente, é atenta a diferenca das memérias sociais que constituem o presente, é atenta 4 necessidade de liberar a meméria e de explicité-la para que o presente se compreenda a si mesmo e possa construir/inventar o futuro. Uma politica cultural que idolatre a meméria enquanto meméria ou que oculte as memorias sob uma tinica memiria oficial esté irremediavelmente comprometida com as formas pre- sentes da dominacao, herdadas de um passado ignorado. Fadada & repeticao e impedida de inovacao tal politica cultural é cimplice do statu quo. O que € modernidade? Poderia parecer, pelo que foi dito ha pouco, que terfamos de nos livrar rapidamente da memoria para cair na modernidade. Equivoco que o atual governo da reptiblica, centros de pesquisa e documentacao, universidades e os meios de comunicagéo nao cessam de alimentar. Se pudéssemos resumir em poucas palavras a modernidade — isto é, um pensamento e um conjunto de praticas que se desenvolvem na Europa com 0 advento do capitalismo — dirfamos, sem respeitar cronologias, que a moder- nidade se constrdi a partir das seguintes idéias: — desdivinizagio da realidade ou desencantamento do mundo, isto é, a realidade € regida por principios racionais que podem ser inteiramente conhecidos por nos, nela estando ausentes as forcas que caracterizam as explicagdes religiosas e magicas, a supersticao: — instrumentalizacdo do real, isto é, a realidade, porque pode ser inteiramente conhecida pela razdo pode também ser inteiramente dominada e 43 controlada pela razio e, mais do que isto, pode ser refeita, reinventada € jnteiramente transformada pelos instrumentos yacionais, isto é, pela tecnolo- gia; -onsciéncia ou da razao como forma de definicao da — valorizacao da ¢ da idéia liberal do humanidade dos homens e com tal valorizagao, elabor individuo livre e igual perante as leis; subjetividade; — percepsio de que nao ha comunidade, mas soc edade e, posteriormen- te, compreensio de que a sociedade ¢ constiturda pela divisio origindria das classes sociais ¢ seus antagonismos; — separacio entre natureza € cultura; separagao entre o piblico e 0 privado; separacao entre sujeito € objeto, @nfase nos aspectos jurfdicos da politica; idéia de desenvolvimento ¢ de progresso; — surgimento do Estado como instancia da dominacdo impessoal ¢ legal, operado pelos representantes dos cidadios ¢ pela burocracia dos servidore pliblicos; o Estado como dotado do ‘monopolio do uso da forga e da violénci institucional, portanto, comandante do aparato policial ¢ militar; — surgimento, em politica, das idéias de direitos dos cidadaos, de representagao, de reptiblica democratica; w manutencao do prinefpio da igualdade formal que abriga as desigual- dades materiais (mulheres, criangas, velhos, trabalhadores, etnias, sexualid: de). ses tracos, evidentemente, nfo esgotam a modernidade, mas_sao relevantes na medida em que o que chamamos hoje de pos-modernismo indicaria a desaparigao de todos esses tracos, particularmente 2 distingao entre 0 publico eo privado, a separacdo entre natureza ¢ cultura, a igualdade formal, e a crenga numa’ fazio capaz de alcancar 0 verdadeiro. Como resultado, uma diferenca fundamental se ‘estabelece entre modernidade ¢ pds-modernidade, qual seja: a modernidade jamais abandonou a consciéncia Te seus proprios limites € nao cessou de refazer seus pressupostos (movimen- tos sociais, movimentos populares, feminismo, revolucées, marxismo, psica~ nalise etc. foram elaboracoes modernas) tendo como fundamento a nocao de fazio (sempre devendo ser alargada) e de consciéncia, e alcangando uma claboracdo tedrica € pratica muito aguda das diferencas sociais © hist6ricas © pos-modernismo abandona tudo isso e opera com as nogées de desconstru- 9 € construcdo, valorizando 0 relativismo e a perda do racional e do yerdadeiro como fundamento € como finalidade. Para a questo da memdria edo patrimdnio, tanto 9 modernidade quanto a pés-modernidade em sua versio brasileira sdo interessantes. No caso da 2 Pemidade, 0 discurso oficial da classe dominante sempre & instalouw num lugar determinado de onde era proferido o discurso sobre a sociedade, a politica e a historia, isto é, o Estado — im, modernidade e memoria © preservacdo do patriménio como ‘determinacdo estatal sobre 0 social decor- fem da maneira mesma como, no pais. & modernidade foi interpretada, isto &, tendo como sujeito ¢ agente preferencial ou tinico o Estado e como instrumento a tecnologia. Como se vé, nao sé a modernidade no Brasil nao guarda os tracos do conceito original, como ‘ainda ganha um cunho autorité- rio predominante. Nao por acaso. os governantes sempre Se afirmam moder- rose correndo atrés da modernidade, uma ve7. que moderno € produzido 44 através do Estado que decreta, por exemplo, que € moderno 0 Estado nao ter empresas, nao ter servicos culturais, que € moderno deixar tudo por conta do mercado — isto é, enquanto nos paises modernos a dindmica do mercado se impés, no Brasil ser moderno é o Estado decretar que a cultura pode ser feita pela Rede Globo e pela iniciativa privada (observa-se a diferenca entre a lei de incentivos fiscais & cultura proposta em Sao Paulo e a proposta por Rouanet). No caso da meméria, a modernidade definida a partir do Estado produz as politicas de patrimdnio histérico que foram objeto de discussio ¢ eritica neste Congresso ¢ particularmente a ilusio de que moderno é o instrumento técnico usado para preservar. Quanto & pés-modernidade, é no Brasil um fenémeno da midia, de-uma certa imprensa “yuppie” ¢ de um tipo de Pesquisa que se atola no trivial do cotidiano para fazé-lo raiz de desconstru. GGes © construgdes sem nenhum compromisso com o ideal da verdade. No caso da meméria, tudo se iguala e tudo perde o relevo, tornando-se exata- Mente 0 que Merleau-Ponty chamou de esquecimento: a desdiferenciacdo do passado © a desdiferenciacdio do presente. Qual o papel do Estado no que toca A meméria e a preservagao? O Estado nao pode colocar-se como centro de onde se define e se irradia a meméria pois, ao fazé-lo, destr6i a dindmica e a diferenciacao interna da memoria social e politica; ndo pode ser produtor da memsria nem o definidor do que pode e deve ser preservado. O Estado deve comportar-se como Servigo ptiblico aos cidadiios ¢, para deixar mais claro o que julgamos ser uma politica realizada pelo Estado nesta drea, peco licenca ‘para citar o programa de trabalho do nosso Departamento do Patrimonio Hist6rico que consta do Boletim n.° 5: — Implantacdo do Sistema Municipal de Arquivos, que pretende reunir todas as unidades arquivisticas da administrago municipal e demais institui- ges similares da cidade para que, sob bases comuns, seja preservado © organizado o seu acervo documental — e que constitui um dos projetos prioritarios desta gestAo; reorganizacao e rearranjo dos acervos documentais nos suportes textual, gréfico e fotografico, promovendo atividades de res. tauro ou recuperacio {isica, produzindo inventarios ¢ outros instrumentos capazes de garantir 0 acesso puiblico aos seus registros; implantacao de Projetos de historia oral visando ampliar o universo de registros relativos 2 memoria e¢ & histéria da cidade; subsidiar tecnicamente os movimentos sociais para a organizacio de sua propria meméria e preservagao de suas tradigdes e referéncias culturais, em condigdes de autonomia; organizacéo de acervos museolégicos: retomar as atividades de registro fotografico sistema- tico da cidade, alimentando 0 acervo neste suporte: dinamizar as casas histéricas sob guarda da Secretaria Municipal de Cultura, possibilitando seu uso muiltiplo pela populacdo, para que se tornem pélos culturais efetivos, nao meros objetos de reveréncia de uma meméria mitica: ampliar as ativida- des do servico educativo, voltadas prioritariamente para a rede ptiblica de ensino; implementar um programa de publicacoes que ponha 2 disposi¢éio do 45 piiblico especializado instrumentos de pesquisa ¢ de trabalho didético, mas que também empreenda o debate intelectual sobre o passado da cidade; finalmente, garantir através da extroversao dos acervos da municipalidade, o ‘acesso a cultura e A informacao a um ptblico pouco familiarizado com os seus circuitos habituais. ‘Numa perspectiva democratica, Mnemosyne se diz em muitos sentidos e, particularmente, naquele que teve nas origens: desvendar o passado para reconhécer a diferenca do presente ¢ liberd-lo para inventar o futuro. Numa. perspectiva socialista, Historia se diz em muitos sentidos e particularmente naquele que teve nas origens: compreender 0 passado como pressuposto do presente que o presente repde e repete enquanto 0 ignorar como seu passado e que ultrapassaré quando dessa compreensao nascer a préitica de emancipa- Ao, em que o futuro € 0 novo como realizacdo das promessas nao realizadas no passado nem no presente. Mnemosyne ¢ Clio, interpretadas como prag- miaticas, isto €, como ligadas aos feitos do fazer humano e a esperanca de reparacao. Remédio e cura. Texto apresentado na mesa-redonda "Politica cultural e preservacdo do patriméaio no Brasil: um balango do presente” 46 LUGARES DA MEMORIA OPERARIA : Madeleine Rébériouxi") Antes de tudo, gostaria de expressar minha alegria por estar aqui, nao sé porque nao conheco o Brasil mas também pelo fato de vocés terem me convidado para falar sobre um tema que me & muito caro. Pensei em denominar esta comunicagao "A memGria do patriménio revoluciondrio” em vez de "A memoria operdria”. Trata-se de uma deusa antiga, Mnemosyne, velha deusa que produz memérias. Ela foi associada & vinganca bem antes que, na trilha aberta por Herddoto, Clio viesse ao mundo. Ela foi parte integrante de toda transmissao cultural. Scu reaparecimento com plena forga, hoje em dia, sem diivida registra o fim de uma época. E chegado 0 tempo da beleza do morto, um morto a quem desejamos devolver a vida. Mas os problemas do patriménio assumiram, na Franca, um estatuto particular desde a Revolucao Francesa. Abrindo esta comunicagao, gostaria de sublinhar aquilo que, neste cam- po, constitui a excepcionalidade francesa: a emergéncia precoce e poderosa da vontade de conservagao sistematica dos vestigios do passado. Inseparavel da Revolucao Francesa, ela se traduz, desde seus primeiros meses, por uma ruptura radical com 0 que constitufa alé ento 0 passado nacional, ou melhor, pela promocio de novos modos de existéncia de uma parte desse passado. As razdes eram claras: tratava-se daquele desejo de regeneracao — $0 mais tarde se falard de revolucéo — que arrebatava os homens de 1789. Nao era 0 caso de destruir todos os monumentos, isto é, todos os testemunhos, em especial os testemunhos plasticos do passado feudal odiado. Pelo contrario, a ‘Repti blica conclamou no sentido de conserva-los e criou para eles os primeiros museus. Mas era necessdrio confronté-los para criar 0 presente e o futuro. Condorcet falava, naguela época, de preparar 0 momento em que o homem se libertaria da hist6ria, Os proprios artistas tinham de cancelar séculos de baixezas e de adulacdo, consagrando-se, dai em diante, a fazer odiar a tirania, Entretanto, de fato, néo convinha fazer tabula rasa de todo o ado. Impunha-se uma triagem. Com Cornélia, a mae dos Gracos, a antiguidade classica fora salva e 0 pintor David, autor de Brutus ¢ dos Horacios, era louvado por ter, gracas a seu génio. precedido a Revolugio, anunciado os novos tempos. E esse ato premeditado de eliminagdo e de promogdo que, contra a tradi¢ao, visou criar um futuro para o patriménio, recolhendo 0 que podia servir ao mesmo tempo de ornamento, de troféu ¢ de apoio a liberdade e @ legalidade. Assim, eis-nos claramente perante uma politica voluntarista da lembran- ca. Por que, desde entdo, a Revolugdo ndo encorajou a destruicio dos testemunhos da tirania: timulo do rei na abadia de Saint Denis, tesouro real, pinturas de género consideradas licenciosas por legisladores austeros, até mesmo aguelas igrejas da provincia cujos campandrios foram muitas vezes (#) Historiadora, Universidade de Paris. VII. abatidos pelo povo pois sua altura atentaya contra a igualdade? Acontece que be artistas, mais vitimas do que ctimplices, ndo podiam ser acusados em ploes, O sistema é que era considerado maul. Parecia igualmente possivel fazer bom uso dos erros. Mostrar como yerdadeiros talentos foram desviados & ensinar 0 6dio pelos maus. Enfim, era também necessirio evidenciar 0 carater eterno dos valores exaltados em 1789. Apesar de terem sido desvii dos, cles preexistiam & Revolucao. Portanto, era possivel regenerar a sociedade francesa POT inteiro e. eventualmente, outras sociedades. E para isso servird, em particular, o culto faico dos grandes homens aos quais se dedica esse grande monumento de Paris, o Panteon, a partir de 1791. A ‘Convencio dele faré, € a expresso empregada por ela propria, a "réplica republicana” da Basilica de Saint Denis Os grandes enciclopedistas tinham vocacdo pare figurar ali: de Voltaire, o patriarca de Ferney a Rousseau, 0 cidada de Genebra. Abaixo 0s patriménios comunitarios! Viva 0 patriménio universal, que se encarnava na Franca regenerada! © século XIX vai ampliar, sem recusi-la, esta. Vsao de patriménio nacional universal, com pretensdo universal, com ambicao universal. Guizot explica, na década de 30 do século pas ‘ado, que dali em diante, cabe & ceiedade civil e nfo a0 estado selecionar o que deve, set conservado. Hugo reconcilia Voltaire e Jesus, nao sem alguma ousadia: Jesus chorou, escreve Hugo, Voltaire sorriu". Ou entio: 7x guerra de Jesus Cristo foi bem conduzida e ganha por Voltaire” ‘Com Mérimée, os poderes puiblicos instituem um corp) de delegados para o trabalho da'memaéria, ou seja, os inspetores gerais dos monumentos histéricos. Este € 0 nome oficial deles. Doravante, os lugares de meméria escapam da dominagao direta do poder estatal, passam para o controle do servico pubblico. Surgem especialistas, homens comperentes, os do servigo publico e os museus se tornam aqueles lugares onde € possivel, até mesmo Hlesejavel, lio apenas conservar os fragments de um passado nacional ampliado desde a Revolugdo, mas também exibir tais fragmentos ao olhar. Nab s6 a missio de conservagdo, mas a misao de transparencia ¢ de abertura a todos, ao pliblico, esta instancia indiferenciada Entdo, em que ponto nos encontramos hoje? A busca patrimonial nacio- nal visa englobar 0 que acreditamos ser 0 qnovimento da civilizacio — Civilizacdo francesa que, por uma pret i sdo caracteristica dos franceses, © {que os torna ridiculos perante os estrangeiros. coincide com a civilizacdo ‘iindial. © inventério geral do patrimOnio, este grande projeto nacional concebido em 1834, pretende, com tal espirito, ultrapassar oS limites de um panorama exauistivo. ‘A idéia do inventirio dos ‘artefatos da humanidade prravés do espaco terminou por ganhar algumas cores. Trata-se de um dos dusatios de 1992 saber que papel iré desempenhar a comemoracao disso que ora se chama de encontro de Cristévao Colombo com a América — encontro ou submissio, encontro ow colonizacio, talvez ambos. Enfim, talvez seja af que os historiadores do movimento social tenham pebido o essencial de suas energias renovadoras: a busca da memoria patrimo- ial visa hoje uma abordagem renovada dos grupos sociais, Ela se alimenta de modo pluralista, para empregar uma palavra na ‘moda, de diferentes maneiras. 4g Na Franga, € preciso confronta-la com a crise mundial do sistema comunista, com a perda de referéncias que ela provoca, corn a debilidade tradicional, neste campo. do socialismo francés desde a cisdo de 1920 com os comunistas. E confronté-la igualmente com os traumatismos que as transformagses ideolé- gicas ¢ a incapacidade que ele manifestou para superd-las provocaram no movimento sindical em todos os seus componentes. Desde entio, o passado encontrou um futuro — dispomos de menos futuro diante de nds, 0 que reencontramos € 0 passado. Procuramos, para além das organizacdes operdrias detentoras de esperanca durante muito tempo, e que assim permanecem, ou além dos movimentos politicos detento- res de cidadania e que assim permanecem, procuramos entrar em contacto com "os quadros sociais da memoria” — para retomar o titulo de um livro célebre do socidlogo Maurice Halbwachs, morto durante a deportagio. De repente, s40 os operdrios ¢ nao sé os militantes que se tornam objeto de pesquisas de memoria, mas também as mulheres, por tanto tempo destituidas de historia herdica: elas nao faziam a guerra, nao votavam, elas nao dirigiam as greves ji que os homens estavam ld. Entao, ignoradas as mulheres, temidos os operarios mas, na Franga, desprezados os estrangeiros, ds vezes detestados hoje em dia. Sobretudo porque cles cram mais tteis para a prosperidade de uma sociedade francesa pobre em niimero de filhos e relativamente orgulhosa de suas qualificacées operdrias. Nos tiltimos anos, s6lidas minorias se juntaram para definir sua contribuicao, a dos estrangeiros na "composicao francesa”. E na direcdo destes trés grupos que se orientou a busca de meméria, que cla se orienta neste momento. Mil novecentos e oitenta foi o Ultimo ano da direita no poder na Franga e foi declarado “Ano do Patriménio”. No ano seguinte, a esquerda chegou ao poder. Dois anos decisivos para o que thes quero dizer agora. Foi no perfodo de Giscard d’Estaing, Presidente da Reptiblica, que a nogio de patriménio passou a incluir os humildes, 0 mundo camponés, no momento em que aquele mundo camponés deixava de ser perigoso e quando suas marcas podiam aceder & dignidade de sobrevivéncia da meméria coleti- va. E foi com a monarquia republicana de Francois Mitterrand que nao somente os créditos indispensaveis puderam ser obtidos, gracas ao orcamento quase dobrado do Ministério da Cultura — ele € enorme — mas também o direcionamento da meméria para os explorados urbanos do mundo operario péde ser levado adiante e associado 4 grandeza industrial. Cultura cientifica e técnica, cultura do patriménio industrial ¢ cultural operario, porém, € a cultura operdria que pretendo abordar, agora, a propésito dos lugares de meméria. Com efeito, os trabalhos recentes foram particularmente produtivos: lugares de trabalho, lugares de sociabilidade, lugares simbélicos. Proponho que respeitem esta ordem. Comecemos pelos lugares de trabalho, E a atividade industrial que cria 0 operdrio, que o distingue, seja qual for seu grau de qualificacdo e seu oficio, dos empregados aos de “maos finas”, independentemente de seu lugar na produgao, existe certa Iégica em interrogar primeiro os lugares desse trabalho: a oficina, a fabrica, a usina. O que nos interessa neles, no que hoje constitui a minha perspectiva, € sua presenca na meméria operaria, ¢ aquilo que os operdrios interrogados nos dizem a seu respeito. Em suma, ¢ o lugar que eles ocupam 49 em seus imagindrios € 0 que tal lugar, tal lembranca pode nos ensinar. Contudo, algumas ressalvas, em poucas palavras Os operdrios se movimentaram durante todo o seéculo XIX e ainda numa parte do século XX. Eles nfo permaneceram no mesmo lugar, viajaram bem vrais de quanto possamos imaginar: companheirismo, aprendizagem do bom dperdrio que, como se diz na Franca, ramasse ses clous quand le travail lui a deplu-(1). £ o lugar onde, jovem aprendiz, descobriu ao mesmo tempo as Timitagdes ¢ as alegrias da Usina, Enfim, nao podemos esquecer que, no século XX, com os depésitos de Gnibus, as linhas de metré, 0 pessoal Sirculante das ferrovias € uma boa parte dos trabalhos do giis e da eletricice de. a atividade operdria se exerce em lugares especiais, em que a memoria se localiza em pontos restritos do espaco global da empresa. Na verdade, nao é quase sempre assim, excetuando os militantes que tentam obter uma Visao de Conjunto da empresa? Um velho operdrio de Creusot observava, por ocasiao Se um encontro entre historiadores e operarios, em 1976, e essa observacdo ultrapassava muito sua pessoa: "Voces sabem, dizia ele, numa_usina como Le Creusot — cmblematica da siderurgia francesa — é muito dificil para um operrio que se encontra numa determinada oficina formar uma ‘opiniao. A memria operdria no € a da fabrica nem da empresa, mas sim a da oficina Onde ele trabalha, onde ele encontra os mesmos companheiros”.. Hoje, cribo-se em Creusot uma maquete da forja de 1912, feita 30 anos mais tarde por um operario que Ii trabalhara por muito tempo. Um por um. seus pomaradas estio ki, com scus tipos fisicos, hi quem tenha um nariz bem grande, pequenos narizes arrebitados, bonés @ gorros, camisas © blusdes Porém, sé a memoria oral nos restitui, nessa usina que se acreditava um modelo, a desordem, a negligéncia, até mesmo a sujeira das oficinas, com seus cantos sombrios e sacos de juta ou de algodao propicios para os Jogos de baralho ou para beber um trago. ‘assim, 2 evocagio do espaco de trabalho pelos prdprios operirios acreseenta uma nota complementar € nova aquela desordem, as vezes percep- tivel nas maquetes ou nos desenhos dos arquitetos ou sugerida através das Velhas construcdes que sobreviveram @ nos sugerem que a resisténcia & exploragdo nao vinha somente, antes de qualquer tipo de sindicalismo, dos melhores operdrios indispensaveis para a empresa. Ela existia também para operdrio recém-chegado, pois se 0 patrdo, por pouco que fosse como. no Cretisot, tivesse a pretensio de gerir a cidade, isto é, ser eleito por sufrigio tniversal, nao podia abusar na oficina. E este nao era apenas o lugar de exploracdo, mas também o local de diversas formas de lazer, toleradas na pratica. Cultura de resisténcia & exploracdo mas também, na fabrica, nasceu no espaco do trabalho uma cultura de solidariedade ou, se preferirmos, de fraternidade. Convém nao sonhar: a competicao entre as equipes € forte, A hierarquia no tanto entre os operdrios das vidrarias quanto nas minas interior das equipes de trabalhadores é tanto mais dura porque, freqliente- vieate, ela revtera a hicrarquia familiar. Podemos dar muitos exemplos. Contudo, ¢ na oficina que se constroem as primeiras solidariedades. A disposicdo das maquinas, de que 08 operdrios se recordam ¢ que, alids, os (4) Tradugdo Livre: Junta sua trousa para mio ser trataco come tal, (N-T.) 50 engenheiros evocaram, permite compreender isso. E, nas zonas mineiras abandonadas, como as de Carmaux, das quais Jaurés, 0 maior dos socialistas franceses, foi deputado, 0s mineiros colocados na situacao de pré- aposentadoria, h4 pouco reconstituiram, de modo idéntico, 0 poco onde trabalhavam. Cada objeto em seu lugar, com o respectivo nome — nomes de objeto que vao desaparecer com as novas tecnologias — e até mesmo a mesa do chefe de equipe, o porion, um dentre eles por muito tempo, separado dos demais por esse simbolo de poder: uma mesa. Assim se prepara, no mesmo local onde as pessoas se encontram todos os dias, as dificuldades e as solidariedades que poderao desembocar na paralisacao do trabalho em co- mum, no confronto com as hierarquias visiveis. "A unio dos velhos camaradas nos leva a fraternidade”, diz uma cancdo vinda 14 do fundo. Fraternidade suscetivel de tomar forma em praticas simbdlicas alimentadas pela presenga comum no local de trabalho e que nao se reduz a ele: preparacao de festas do santo padroeiro dos trabalhadores sidertirgicos, festa em homenagem ao leal companheiro que se aposenta. Ela pode ter lugar no botequim, ao lado, no café, mas também acontece que a oficina seja escolhida, pelo menos para o inicio da ceriménia. E igualmente na fabrica que surge a perruque: um costume segundo o qual os operarios roubam o material que lhes confiado — eles julgam recuperar o que thes pertence — : remates de metal, pedacos de madeira com os quais decidiram fabricar, para suas mulheres ou amantes, um objeto raro e cuja fabricacdo e retirada sho protegidas dentro da oficina. Temos muitos exemplos neste sentido. Mesmo se o historiador, que vé aumentar seu volume, estiver, diversa- mente do etnélogo, menos preocupado com unanimismos do que com dife- rencas, se 0 historiador, que é apaixonado, por vocacao, pela mudanga, decide nao se deixar prender pela nostalgia de um passado morto, a atualizacao de tais praticas, ligadas ao local de trabalho, leva a reabilitar os lugares de trabalho mais concretos como lugares de meméria. Finalmente & ai que se forma uma figura operdria em geral pouco reconhecida pelos historiadores © que a pratica de meméria operdria nos levou a descobrir: trata-se da figura do bom operério. git hecessariamente 0 mais trabalhador ou 0 mais habil mas sim aquele qué“sabe se adaptar. que domina as pressdes mutdveis do trabalho, sabendo, quando necessdrio, enfrentar 0 contramestre; aquele que, por seu feitio, ajuda os demais a superar tais presses; em suma, um candidato, um postulante as fungdes de delegado de Fabrica quando elas surgirem na sociedade francesa, ou seja, no periodo da Frente Popular. No decorrer desse longo século XIX de que thes falo e que terminou ha cerca de quarenta anos. 0 horizonte operario jamais se limitou ao espaco do trabalho. Existem lugares operdrios de solidariedade, de sociabilidade fora da usina. Podemos evocar a chambrée, local de encontros noturnos para os solteiros — homens — € 0 caso dos pedreiros que vinham, todos os verdes, do Limousin, até o final do século XIX, trabalhar em Paris a fim de ganhar o pao para suas familias. Vou insistir com os cafés, estas novas igrejas do operdrio, tao caracteris- ticos dos tiltimos vinte e cinco anos do século XIX e do comego do XX, em sua dimensao propriamente operdria. Um café significa um baledo onde se bebe, uma lareira, um suporte em que cada freqiientador pousa seu cachim- 51 bo, algumas mesas 0¢; sionalmente cobertas de tela encerada, algumas cadei- siiedelo é tinico. Eles acabam de ser muito bem estudados no gue concerne 2 regido norte da Franca, velha regido industrial do nosso pais. F hove botequim de classe que triunfa a partir de 1880, nas pensdes de Thineiros, nas minas e nas portas das fabrica Eles se distinguem das hospedarias rurais que permanecem abertas para todos e dos cabarés instala- dos nas grandes pracas, invadides nessa €poca pelas classes médias urbanas (© espaco de sociabilidade diversificou-se socialmente. No pequeno café — na regiao norte, diz-se freqiientemente estaminet — o operdrio est em casa. Nao todos os operiirios, os companheiros de rua, de oficina, de fabrica. E vemos cafés que surgem como cogumelos. Um exemplo: em 1870, em Roubaix, uma cidade do norte, havia 1.000 cafés; vinte anos mais tarde, em 1990, 2.500; 1 para 50 habitantes ou | para [1 casas Acontece 0 mesmo noutras cidades do norte. ‘© que as pessoas fazem nos calés? Neste caso. is pessoas significa os homens: mesmo quando € operria, a mulher esta excluida deles. Ai se bebe, ce urna, se joga. se esquece de casa, pobre € quase sempre cheia de criancas e. sobretudo, se esté num lugar diferente da Fabrica. Mas também e isso € menos evidente, 0 café € 0 local de uma intensa atividade de associacio. No inicio do século XX, uma cidade como Anzin, que tem 10.000 habitantes, dispoe de 86 associacdes operirias cujas sedes esto instaladas nos cafés & muitas vezes, 0 dono, 0 arrendatdrio, € 0 tesoureiro. Desde entao, vem aparecer um novo mével no café: um ‘armério para guardar as fichas dos sécios € as bandeiras que abrem os desfiles da associagdo Nos dias de festa: cooperativas, sociedades de tiro, associacoes de livre-pensadores — 0S operdrios do norte sao muito freqiientemente catolicos Mas OS que V40 a0 café so livre-pensadores — sociedades de ‘criadores de pombos, sao conheci- Gos como colombéfilos, © as vezes o sindicato, quando 0 dono é um antigo responsavel sindical expulso da fabrica, Também € muito comum que o café eja o local, a sede da banda ou entao de uma mera associacao que se chama simplesmente “sociedade dos amigos". Ha alguns anos, um jovem pesquisé dor do norte encontrow 400 canoes escritas no botequim por operarios: eles faziam versos, que eram ali testados. Se as cangdes eram boas, depois se vendiam na rua sob a forma de folhetins para financiar uma boa refeicao ou para 0 carna al, para a festa chamada no norte de ducasse, Em sua maioria, tais cangdes cram compostas em patod € seu enraizamento numa ou noutra sociedade, estabelecidas num ou noutro café, cujo nome esta escrito no papel, garante a autents idade dessa palavra operéria, mesmo que tenhamos perdido © zunzum da sala que se ouvia de fundo, enquanto a cangéo era escrita e cantada pela primeira vez. Que nos informam esses verdadeiros jornais cantados dos trabalhadores da fibrica ou das Tuas? A vida no trabalho, suas alegrias € pesares, os conflitos e a fraternidade, af ocupam pouco espago- Vontade de esquecer ou divisio de territérios? Para a fraternidade € a desgraga no trabalho existe a fabrica, a oficina; para o res! ante existe o café ‘Aqui se fala do restante Fala-se, por exemplo, da patria, nada de tracos de internacionalismo nessas cangoes operirias, na mesma altura em que um miisico do norte, da cidade de Lille, escreve a Internacional, estamos em 1888. Grande entusiasmo Ba colonialista: € a Franga que conquista o Tonkim: aqueles homens sio felicitados com todo 0 coragao, aqueles soldados que nos trazem 0 pio, abrindo 0 caminho para as industrias téxteis; em geral, a tiltima copla aconselha morrer pela Franca quando se é operdrio. E de surpreender se 0 chanyinismo ocupa entao tanto espaco na cultura operaria? E bom saber o que dizem os trabalhadores na base ¢ nfo sé 0 que repetem os militantes. Chauvinismo intenso: debocham dos belgas que vem trabalhar na fronteira bem proxima, belgas que guardam seu dinheiro para visitar a terra natal no domingo, em vez de participar das refeigdes fraternas no botequim e de fazer viver o dono do café. E as mulheres? Tanto se a mulher trabalhar na fiagio ou se for obrigada a cuidar das criangas, o marido, segundo as cangdes, nao pode confiar nela. Seria motivo de riso no café, ninho de homens, se algum operdrio nao rimasse paixao com traicdo. A formacao catdlica que sobrevive A nao freqiiéncia da igreja garante aos operdrios de Roubaix que, sem divida, toda mulher carrega junto Eva e sua serpente. Portanto, inquietude perante as mulheres mas também ¢ ao mesmo tempo desrespeito, recusa de respeito em relacao a todos os notdveis: os patrdes, os burgueses, os comerciantes, os contramestres. Nés, os homens dessa socie- dade operaria, nesse botequim ou nesse café, somos nds € eles so 0s outros. A palayra elaborada cantada primeiro no cabaré acaba conferindo aquele lugar as cores de uma forte identidade operdria. A usina, 0 café, a rememo- racdo operdria ali se detém quando se interrogam os velhos operdrios e eles nos oferecem suas lembrancas a respeito daqueles lugares. Entre esses lugares e aqueles que deles se recordam, seja diretamente ou através das palavras de parentes, seja através dos textos de época que encontramos, se estabelece um vaivém que o historiador pode interrogar em seguida e que dd sentido 4 manutencao desses espagos na cidade, que torna tal projeto civico e simultaneamente histérico. © terceiro espago sobre 0 qual vou dizer-thes algumas palavras goza de outro estatuto, Trata-se de lugares simbélicos, promovidos a simbolos por um processo de memorizagéo consciente e militante, tornados simbdlicos pela vontade de vencer 0 esquecimento no qual se mergulha nao s6 a vida cotidiana operdria, mas também a luta dos dominados. Trata-se de lugares patrimoniais no mesmo sentido de um Arco do Triunfo mas cuja signifieacao triunfal, longamente negada pelo poder e pela sociedade, foi enfim reafir- mada pela vontade propagandista das associacdes operdrias. E a passagem do trabalho de luto ao trabalho de comemoracao que os constituiu e que lhes deu uma dimensao lenddria em pro! da causa ou, como se dizia no final do século passado, a servico da Idéia, com maitiscula. Nesta perspectiva, poderfamos estudar. para um periodo mais recente, 0 trajeto Nation-Bastille (2) , tantas vezes percorrido por cortejos operarios franceses a partir de 12 de fevereiro de 1934. Vou debrucar-me sobre o trabalho pelo qual as comemoracées anuais construiram um lugar simbélico por exceléncia da memGria militante operdria na Franca: 0 Mur des Fédé- 2) Regido central de Paris, tendo numa das extremidades do percurso a Praga da Bastitha, com longa (wadigao de manifestagies populares. (N-T.) 53 Acima do cemitério de Pére Lachaise, um cemitério cheio de arvoves, pissaros e ttimulos, foi ali que ocorreram os tiltimos combates da Comuna de Paris. Nao obstante a evidente desconsideracao que hoje cerca o Mur des Féderés ele ndo se recuperou da Guerra Fria nem da transferéneia para a periferia do povo operdrio, nem dos novos costumes criados por esse Povo o Muro nfo perdeu as re onancias a ele concedidas pela vontade militante; elas ainda hoje se fazem ouvir, em meio a uma cacofonia derriséria, na cacofonia do escérnio. Mas pior seria se nao houvesse nada ¢, na realidade, caer mando os anos decorridos, 0 movimento opersrio socialista, ao consti- faire Muro como lugar de culto, lugar de memoria operdria ¢ militante, fez dele mais freqiientemente o simbolo de suas divisoes. Desde 1888, menos de vinte anos depois da semana sangrenta, a tiltima semana da Comuna de Paris, im anarquista atirava num disefpulo de Blanqui, no tltimo domingo de maio, no momento da manifestagao no Muro. Em 1890, a batalha teve lugar entre velhos partidarios da Comuna ligados ao nacional-populismo de um general francés, o general Boulanger € aqueles que cerraram fileiras com os velhos Soclalisias. ito anos mais tarde, em pleno caso Dreyfus, foi necessdria a protecdo da policia, 6 vergonha, para que 0 antigo deportado da Comuna, Prenti Rochefort, tendo se tornado ferozmente anti-dreyfus € anti-semita, pudesse depositar sua coroa de flores, E preciso que se aiba disso. Talvez signo de vitalidade, elemento potencial de sucesso na elevagao do Muro a sua funcao simbdlica francesa & internacional € que tais memorias nao sejam apenas reuniclas mas também confrontadas e mesmo afrontadas; tremo® encontré-las depois da grande guerra socialistas contra comunistas até Dultimo domingo de maio de 1935, que marca a aurora da Frente Popular, esse momento da histéria da Franca do qual todos os operdrios hoje se recordam: a Frente Popular — 0 crepis culo em 35 nao estava longe. E redundante dizer, todos ja sabemos disso, até que ponto as lutas militantes de cada presente que passa investem inclusive os lugares mais simbolicos: os dos martires, os dos mortos em relagdo aos quais cada um faz © juramento de manter a lembranca, quando sobe ao Muro. Foram raros 0s anos em que 0 dia de luto se transformou em dia de festa ensolarada pela unidade Entretanto, errarfamos se acreditéssemos que as préticas comemorativas, desde'o dia seguinte da Comuna e até as primeiras cisdes, tém transformado © Muro num lugar que conclama os sobreviventes para o dever da vinganca & Ga vitéria, Foram necessdrios bem uns quinze anos para que o Muro se impusesse por varias razdes. Em primeiro lugar, porque 0 18 de marco, dia do nascimento da Comuna, foi celebrado por muito tempo — ela nao requeria espaco préprio para tanto — quando se hesitava em glorificar a hora Gavderrota, 2 hora do massacre. Esta s6 comecou a se tornar exemplar com a anistia dos deportados, af se misturando © restante no novo movimento socialista. O Pére Lachaise oferecia um territério onde os vencidos © seus filhos podiam se encontrar, um lugar fechado onde a Repiiblica deixaria desfraldar as bandeiras vermelhas, a bandeira da Comuna de Paris que a Republica interditava nas ruas Enfim, 0 Muro se impunha em detrimento da fossa cavada em sua base, onde haviam sido enterrados os tiltimos partidarios da Comuna. Acontece que nos intersticios do Muro era possivel fixar as rés. 54 coroas da recordagao militante. E também porque 0 Muro, por sua verticali- dade, relembrava que aqueles homens haviam morrido de pé. E foi Potier, 0 autor dos versos da Internacional, que, através de seus poemas e cancoes determinou mais ainda que outros a escolha definitiva e simbélica do Muro. Enfim, foi nele que, em 1908, apés longas negociagdes, fixou-se a placa onde ainda se pode ler: Aos mortos da Comuna Que contraste com os discursos inflamados, redundantes, dos anos em que 0s companheiros se reuniam sobre a fossa comum e mesmo nos anos sucessivos! Essa simplicidade nao advinha apenas das proibicdes do governo — para ele os partiddrios da Comuna estayam mortos, nao se tratava de mértires assassinados, podia-se dizer que eles estavam mortos: Aos mortos da Comuna. Acontece também que se distanciava o tempo das barricadas! O lugar operdrio mais carregado de simbolos, 0 Muro dos Federados, dizia isso 4 sua maneira. Os socialistas tinham outras armas 4 disposigao além da barricada, além do combate de rua: dispunham do sufrégio universal e da manifestacao; pelo menos estavam convencidos disso. Se me permitem, trés consideragdes gerais para terminar. Em primeiro lugar, minha comunicagao se deslocou constantemente dos lugares carrega- dos de meméria operdria para as operacdes de meméria cotidiana ou mili- tante que instituiram a lembranga e que, ao fazé-lo, transformaram a salva- guarda desses lugares num imperativo nao apenas para todos os dominados como também para todos aqueles a quem sua confianca levou a assumir responsabilidades na cidade, nesse caso, para a esquerda — no momento em que estd no poder Depois, cotidianas ou nao, socialistas militantes ou de base, todas essas operacoes, mesmo aquelas relacionadas com autobiografias e relatos na primeira pessoa, remeiem a lugares que foram ocupados por outros e servem de espelho para outras mem@rias. Acontece que s6 existe passado proletério quando compartilhado. Nao existe passado individual do proletério. O patri- ménio operdrio nao tem nada a ver com a heranca individual. A classe funciona como a nacgao. Finalmente, seria justo, teria fundamento formular a hipétese de uma grande descontinuidade entre a cultura operdria e a cultura militante? O estudo da obra de meméria e de seus lugares tende a conclusao inversa: foi da fabrica em aco que vimos surgir os detentores de mem@ria. Esse viveiro de operarios militantes sobrevive na meméria dos companheiros que nunca foram politicamente engajados. Os relacionamentos que sao revelados pelos lugares de meméria, longe de isolar os militantes, inserem-nos, freqtiente- mente, numa teia onde se cruzam o trabalho na oficina, a noitada no botequim, relacdes familiares e, finalmente, a subida ao Muro dos Federa- dos. E por isso que os historiadores nao sd0 os tinicos a se alegrar com a extensao que hoje aleancam, na Franca, a nocio de patriménio e sua preservacao. Inclusive nos museus stem meios para atribuir uma dimensao humana aos objetos mortos, colocando a corrente em marcha como fazem, por exemplo, os ecomuseus, criando em torno deles uma rede de memédria, com o evidente risco de fechamento sobre si mesmo que comporta toda reivindicacao de identidade, af incluindo toda rcivindicacio memorial, 585

You might also like