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MOSSORÓ/RN
2017
GLEIDSON CARLOS XAVIER PEIXOTO
MOSSORÓ/RN
2017
GLEIDSON CARLOS XAVIER PEIXOTO
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profª. Drª. Maria Cristina Rocha Barreto (UERN)
ORIENTADORA
__________________________________________
Prof. Dr. Elias Ferreira Veras (UERN)
MEMBRO
__________________________________________
Profª. Drª.
MEMBRO
À Helena, minha avó, que se foi
enquanto eu trabalhava nestas páginas.
AGRADECIMENTOS
The construction of facades is a strategy used by the michês, subjects of manly prostitution, to
keep prostitution practices secret and to protect their own honor, which can lead to a
differentiation in the perception of one's own sexuality and in the ways of relating to the
people in around. The objective of this dissertation is to observe how the boys of the program
perceive their sexualities from factors such as the secret and the facade involved in daily
activities in the spheres of public, private and transitory life experiences. The analysis
visualizes a small part of the society and collaborates with the studies of prostitution,
sexuality, corporality and masculinity, raising questions pertinent to the current moment of
political debates focused on gender issues. The theoretical basis on which this research is
based is formed by authors such as Perlongher, Goffman, Simmel, Schutz, Foucault and
Butler. Incursions were made to the field, between virtual and concrete worlds, followed by
semi-structured interviews. The delimitation of a third sphere of life experiences, the
transitory sphere, is what allows the sexuality among the respondents to assume an
incoherence that gains meaning in the whole of the experiences, having the particular feature
of being doomed to oblivion.
Lista de Figuras:
AGRADECIMENTOS ............................................................................................................. 5
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7
1.4.1. Ser um homem de verdade, ser michê: sobre a construção das masculinidades
e as posições do garoto de programa no universo da prostituição viril ..................... 33
4.2 Para além da divisão das esferas da vida: A sexualidade “oficial” e os marcadores
de limites simbólicos de outras sexualidades.................................................................. 100
esfera privada das experiências de vida e ao mesmo tempo àquela outra, na qual se inscrevia
tudo aquilo ligado ao segredo.
Com o desenrolar da conversa, cobertos por um pedido e uma promessa de silêncio
implícitos, o rapaz me falou de algumas dificuldades encontradas na atividade dita
profissional ao se ver na cama com alguém por quem não sentia desejo: um homem, por
exemplo, ou com mulheres mais velhas que lembravam sua mãe ou tias. Nessas ocasiões, ele
se valia de técnicas de excitação que iam além de um esforço mental, como um barbante ou
uma camisinha amarrada em torno do pênis ou estímulos visuais a partir de vídeos
pornográficos vistos no quarto do motel durante o programa.
A heterossexualidade, de acordo com as falas de Moisés, era assegurada tanto pela
relação mantida publicamente com a namorada conhecida de seus amigos e completamente
alheia às suas experiências como garoto de programa, quanto pelo sentimento afetivo que
alimentava pela parceira. Do mesmo modo, as posições assumidas no coito quando em
atividade com os clientes, sempre como dominador, já que havia a recusa a realizar qualquer
ato que diminuísse a sua masculinidade ou ferisse a sua vida pública, reafirmavam a sua
heterossexualidade.
Quando eu alcancei a fase de conclusão de curso e tive que eleger um objeto de
pesquisa para elaboração de uma monografia, optei por adentrar no campo da prostituição
masculina abordando perspectivas da corporeidade como ponto inicial de investigação. Tinha
em mente a hipótese de que as técnicas corporais, que são para Marcel Mauss as “maneiras
como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus
corpos” (MAUSS, 2003, p.401), mantidas pelos garotos de programa durante a atividade
profissional poderiam ser até certo ponto condicionadas pelos valores da masculinidade, como
a honra, o pudor e a virilidade, ensinados ao homem nos processos de socialização
(BOURDIEU, 2012).
O trabalho foi intitulado “Ser um Garoto Homem: Masculinidade e Técnica Corporal
entre Michês da cidade de Mossoró-RN” (PEIXOTO, 2014) e analisou algumas práticas
corporais relacionadas ao ato sexual que deixavam claros os ideais de virilidade e honra
valorizados socialmente.
A conclusão de que haveria a interdição do olhar profundo, da fala e do beijo durante
o sexo com os clientes faz pensar a presença do social, por meio de valores da masculinidade
moduladores das ações do indivíduo, em um momento em que se julga no senso comum estar
completamente alheio à dimensão social da vida (PEIXOTO, 2014). Para Breton (2011, p.43),
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“as posições dos amantes mudam de fato de uma sociedade para outra”, variando “a duração
das trocas, a possibilidade de escolha de parceiros etc”, o que mostra que também no sexo
somos influenciados pela sociedade.
No caso dos michês, para quem a masculinidade inscrita em seus corpos funciona
também como um valor simbólico a ponto de gerar uma relação de poder entre estes (Cf.
SANTOS, 2008), as técnicas do ato sexual sofrem interferências consideráveis pelas noções
de virilidade, de honra e pudor na medida em que estimulam a atitude de dominação e
desencorajam a subordinação, bem como níveis mais profundos de intimidade que coloquem
em risco a honra cultivada na esfera pública. Essa relação de influência foi percebida, então,
desde o preparo do corpo até momentos subsequentes ao programa.
Se o trabalho talvez não tenha conseguido responder a todas as questões propostas de
forma satisfatória, a meu ver, por não terem sido feitas análises mais aprofundadas de
aspectos importantes como os atos performativos de gênero ou, devido à necessidade de
recorte, ter deixado de lado elementos essenciais do universo da michetagem, como o segredo
e o conflito entre as diferentes dimensões da vida do garoto de programa, ao menos serviu
como base para a formulação de novos problemas e também como um pré-conhecimento do
campo a ser explorado presentemente na pesquisa de mestrado.
Questões que abordem a maneira como os michês agem para manter em segredo a
atividade da prostituição realizada em uma esfera transitória de sua vida e não permitir que
isso atinja de alguma forma a sua vida privada junto a familiares e amigos próximos bem
como a dimensão pública perante a sociedade de um modo geral foram levantadas tão logo
percebi, em um mesmo indivíduo, a existência de identidades variadas, complementares e
contraditórias conforme chamou a atenção Hall (2006), como pano de fundo de suas
experiências.
Para Simmel (1983), o conflito “é um modo de conseguir algum tipo de unidade, ainda
que através da aniquilação de uma das partes conflitantes” (SIMMEL, 1983, p.122). No caso
ora em análise, a questão seria se, entre os garotos de programa, essa aniquilação seria
utilizada como estratégia de conciliação entre as experiências de vida. O garoto busca algum
tipo de unidade no nível de suas vivências? A masculinidade funcionaria como elemento
regulador desse tipo contraditório de comportamento assim como regula as técnicas
corporais? E, afinal, o que definiria a visão tanto da sexualidade quanto o exercício de uma
performatividade de gênero dos michês, tendo em vista as diversas experiências sexuais
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mantidas nas diferentes esferas da vida? Alguma noção de sexualidade se sobressairia sobre
as outras? Em que momento e por quais motivos?
Não obstante o grande número de questionamentos que surgem a partir da pesquisa já
elaborada, alguns têm me instigado um pouco mais. É dessa forma que estabeleci como foco
principal para a presente dissertação compreender como o michê elabora estratégias de
convivência entre suas identidades nas esferas de experiências de vida pública, privada e
transitória e como a fachada, definida por Goffman (2011, p.14) como “uma imagem do eu
delineada em termos de atributos sociais aprovados”, construída em variadas espécies para
permitir o trânsito entre as diferentes esferas da vida se relacionam na definição de sua
sexualidade.
Para tanto será necessário trilhar por três caminhos diversos que convergem para o
objetivo geral citado acima. Em primeiro lugar, será necessário entender o aspecto do segredo
como elemento primordial na separação das diferentes dimensões das experiências da vida do
michê. Em seguida, buscarei esmiuçar os meios de construção das fachadas, visando o papel
da masculinidade e seus valores no processo de sua elaboração, relacionando ao mesmo
tempo a criação da fachada com a necessidade do sigilo. Em terceiro lugar, observarei
finalmente como as fachadas construídas e vivenciadas pelos garotos de programa no círculo
de atividades ditas profissionais podem se relacionar com as performances e suas respectivas
sexualidades assumidas nas diferentes dimensões da vida.
Em tempos de intensos questionamentos acerca da sexualidade humana, a contribuição
dada pelo trabalho a essas deliberações pode ser de grande valia. Os debates acerca do sexo e
da posição do indivíduo nas relações de gênero estão presentes nos dias atuais nas artes, nas
mídias de comunicação, nas ruas e cenários políticos do país. Nesse sentido, o trabalho
proposto poderá fornecer subsídios às discussões ao investigar as realidades vivenciadas pelos
michês, explorando o conhecimento dessa questão existente na nossa sociedade e
contribuindo assim com a diminuição da força do mecanismo que o encerra sob um véu de
mutismo.
Além disso, com a globalização, o advento da internet, as novas tecnologias de
comunicação e informação que avançam de forma muito rápida e influenciam as maneiras de
relacionar-se, de estabelecer redes de contato e formas de ver tanto o outro quanto a si, houve
uma crescente modificação também em questões relacionadas ao mundo da prostituição,
principalmente no que diz respeito às novas masculinidades, ao reconhecimento de si
enquanto profissional do sexo ou indivíduo pertencente a uma determinada categoria de
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gênero, aos meios de se firmar relações, criando outras redes, outros espaços de deriva
(PERLONGHER, 2008) para além das ruas e esquinas. Devido a isso, requerem-se novas
abordagens, novos estudos sobre essas realidades constantemente reformuladas, sendo, então,
“necessária e urgente a implantação de um olhar personalizado para esse novo ser” (VIANA,
2004, p.296).
Para que essa mutabilidade das características típica dos garotos de programa seja
percebida de forma mais nítida, utilizei como base principal um trabalho de destaque nas
ciências sociais que contribuiu para a compreensão do universo da prostituição masculina,
realizado na década de 80 por Nestor Perlongher, intitulado O Negócio do Michê, que revela
entre outras coisas a imprecisão que ronda o enquadramento de determinadas práticas sociais
em termos como prostituição viril, negócio do michê ou prostituição homossexual
(PERLONGHER, 2008). Ao mesmo tempo em que alguns traços causam a impressão de
imutabilidade, outros, devido principalmente a interferência das tecnologias de comunicação
nas interações humanas, sofreram modificações consideráveis e isso consiste em uma das
questões que serão aqui levantadas, principalmente no que se refere a utilização de fachadas.
Nesse trabalho, o termo michê foi definido por Perlongher (2008) em dois sentidos
diferentes. O primeiro diz respeito ao ato de prostituir-se, enquanto que o segundo se refere
aos “varões geralmente jovens que se prostituem sem abdicar dos protótipos gestuais e
discursivos da masculinidade em sua apresentação perante o cliente” (PERLONGHER, 2008,
p.43). Ainda segundo ele, “a variedade de denominações possíveis, os recortes alternativos
que cada uma delas traça, é um reflexo dessa imprecisão” (PERLONGHER, 2008, p.64).
Trata-se, portanto, de uma dificuldade em se definir o que de fato seja um ato típico da
prostituição viril, o que, por sua vez, refletirá no reconhecimento do garoto de programa
enquanto tal, já que este poderá não considerar a sua experiência como uma atividade
prostitutiva.
Como reflexo disso, os michês oscilam entre várias denominações que deixam clara a
intenção de suavizar o estigma da prática ou até mesmo a fuga do enquadramento na categoria
garoto de programa que carrega um peso a ser evitado pelos próprios. Assim, é possível se
deparar com inúmeras designações para o rapaz que vende favores sexuais, passando de
garoto de programa, michê, GP, acompanhante, gigolô, atolador, bofe, até formas mais
discretas, como Becker, Loverboy ou Scort, todas elas se encaixando dentro da atividade da
prostituição ainda que de forma indireta.
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Essas denominações sugerem práticas diferentes, mas que na realidade são muito
próximas umas das outras. Enquanto o garoto de programa pode dar a entender que o rapaz
pode estar disposto a realizar os mais variados desejos, desde que receba uma recompensa
monetária à altura de um valor atribuído a si mesmo, o michê, o atolador, o gigolô e o bofe
estão associados ao sujeito que assume tão somente o papel ativo da relação. O Becker, o
Loverboy e o Scort, por sua vez, impõem-se uma postura de superioridade em relação aos
outros, tal qual o Acompanhante que não está disponível somente para o sexo, mas também se
mostra dotado de um certo capital cultural, estando assim preparado para um diálogo que gire
em torno dos mais diversos temas com o cliente, como também disposto a viagens e passeios
em lugares públicos. Outras variações ainda podem ser vistas, como boy ou garoto, tendo sido
o termo programa suprimido da expressão garoto de programa, ambas se referindo ao rapaz
jovem, muitas vezes menor de idade.
Neste trabalho utilizo as denominações garoto de programa, garoto, rapaz e michê
para me referir ao indivíduo entre 18 e 35 anos que vende favores sexuais. A escolha se dá
pelo fato de serem estas as nomenclaturas mais utilizadas pelos próprios entrevistados para
referirem-se a si mesmos enquanto sujeitos da prostituição viril. Por outro lado, também são
as denominações utilizadas pelos autores aqui empregados para dar bases às discussões acerca
de aspectos ligados à michetagem, como Perlongher (2008), Braz (2009) e Santos (2008).
Nos caminhos teóricos por mim traçados durante a formulação desta pesquisa, percebi
que abordagens acerca de temas como o erotismo, o desejo, a masculinidade e o corpo em
contextos de práticas sexuais findam por tocar muitas vezes o universo da prostituição
masculina. Porém, trata-se de abordagens feitas de forma indireta, por esses se tratarem de
aspectos presentes marcadamente na michetagem, mas que figuram igualmente em ambientes
voltados para a prática sexual entre homens envolvendo ou não a intermediação do dinheiro,
como saunas e clubes de sexo.
Braz (2009), por exemplo, discorre a respeito das experiências em clubes de sexo para
homens focando, entre outras coisas a corporeidade, tanto a dos indivíduos presentes nas
situações vistas quanto a do próprio pesquisador. Para ele, as “experiências ‘à meia-luz’ estão
norteadas por marcadores de diferença diversos, que contextualmente podem resultar em
desigualdades, hierarquizações e mesmo em exclusões” (BRAZ, 2009, p.88).
Isso quer dizer que fatores como a masculinidade inscrita nos corpos dos indivíduos
geram relações de distinção capazes de categorizar o sujeito em “desejável” ou “indesejável”
e, a partir daí, garantir ou não a possibilidade de se participar de uma cena de sexo mantida
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diante de outras pessoas em ambientes preparados para tal prática ou até mesmo a exclusão do
sujeito dos ambientes em questão (BRAZ, 2009).
Os atos sexuais realizados às vistas dos outros em locais fechados, onde muitas vezes
se entra vestindo apenas a própria masculinidade em forma de músculos trabalhados em
academias, pelos, pênis em constante ereção e postura masculina exagerada (BRAZ, 2009;
SANTOS, 2008), mostram que a masculinidade se trata de um forte valor simbólico dentro de
um ambiente restrito a homens que buscam trocas sexuais. Sendo assim, para que exista o
desejo seria necessária a presença de outros corpos tão masculinos quanto possível, inclusive
por parte do pesquisador que aí adentra e reconhece que a sua própria corporeidade não está
invisível, mas é notada e influencia no acesso aos entrevistados que decidem se irão ou não
colaborar com o trabalho, muitas vezes levados pelo nível de desejabilidade do corpo daquele
que está em campo para investigar tal realidade (BRAZ, 2009).
A pesquisa de Braz (2009) é importante na medida em que aponta que contornos
ganham o explorador em um trabalho que visualize a corporeidade em ambientes fechados,
permeados de desejos e erotismos; abre os olhos para a atitude a ser mantida pelo observador
e a possibilidade de, a partir do momento em que se adentra um ambiente assim, o corpo do
indivíduo será modificado pela subjetividade alheia, trate-se de um frequentador experiente
ou de um pesquisador, como aconteceu comigo em campo. Retomarei esta discussão mais no
desenrolar da dissertação.
Nessa linha de raciocínio que visualiza a corporeidade dos sujeitos imersos nesses
contextos de práticas sexuais, Santos (2008) examina as relações de poder estabelecidas a
partir da masculinidade dos corpos dos michês em saunas de São Paulo. O autor diz que
michês mais “bem” dotados, com corpos mais bem trabalhados, “malhados”,
com membros sexuais considerados maiores que a média pelos clientes, têm
mais poder de negociação, tanto no ganho monetário como em posições
sexuais que seriam, supostamente, inadmissíveis para um homem (SANTOS,
2008, p.3).
Esses corpos seriam, então, discursivos por encerrarem em si uma mensagem que
ganha significado a partir do contexto em que estão inseridos e do desejo dos outros
indivíduos presentes nos locais abordados pelo autor. Segundo ele, é possível notar que “tais
corpos buscam uma valorização da ‘masculinidade’ ou do que é considerado socialmente
‘masculino’, ‘viril’” (SANTOS, 2008, p.3).
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Nesse sentido, Foucault (2011b) também contribui de forma destacada ao salientar que
o cuidado de si “não constitui um exercício de solidão, mas sim uma verdadeira prática
social” (FOUCAULT, 2011b, p.57). Isso quer dizer que, ao buscar adequar o próprio corpo
aos critérios elaborados por um grupo de pessoas – que no caso da prostituição viril tem como
referência a masculinidade -, o sujeito está se envolvendo em uma prática que não diz respeito
unicamente a si, porém, ele age em relação a todo o grupo social envolvido no contexto,
mesmo sendo a nível de seu corpo.
Os trabalhos acima citados convergem ao constatarem a masculinidade como um valor
simbólico em circunstâncias de sexo voltado para homens, mesmo sem a troca do ato por
dinheiro ou qualquer tipo de retribuição material. Estar presente nesses ambientes, portanto, já
implica ser imerso em uma hierarquia de tipos masculinos, independente de quem seja.
No meu caso, enquanto pesquisador se inserindo em um espaço onde se deve obedecer
a determinados rituais de interação específicos do meio, o processo de descoberta com os
sujeitos da pesquisa se dava de forma recíproca, uma vez que a avaliação de minhas
identificações, de minhas falas, de minha postura e de meu rosto exibido por meio de webcam
na sala de bate-papo era uma maneira que os entrevistados encontravam para julgarem a mim
como confiável, e assim merecedor de suas revelações um tanto íntimas, ou não.
Esse mesmo tipo de situação foi vivenciado por outros autores de etnografias virtuais
como o já referido Braz (2009), Miskolci (2013) em seu estudo sobre as relações
homoafetivas possibilitadas por meio da inernet e Pelúcio (2015) ao pesquisar relações
extraconjugais intermediadas por um site especializado em promover encontro entre homens
casados e possíveis amantes. Os autores perceberam a idêntica necessidade de se mostrarem e
se comportarem minimamente da forma como o fazem os sujeitos investigados para que a
pesquisa se tornasse possível.
Ao mesmo tempo, para investigar as fachadas construídas pelos garotos de programa e
me mostrar como alguém interessado pelas histórias dos sujeitos, porém não em buscar
parceiros para sexo pago, eu enfrentei os mesmos dilemas que Braz (2009), Miskolci (2013) e
Pelúcio (2015), passando pela dúvida sobre que identificação utilizar, como me comportar
inicialmente, entre outras coisas. Afinal, eu também precisei construir uma fachada de
cientista social amparada, principalmente, pela linguagem por mim utilizada, formal na maior
parte do tempo, pelos limites impostos nas próprias interações, bem como pelo meu esforço
muitas vezes exaustivo em manter o foco dos diálogos nas questões a serem investigadas.
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Por outro lado, observando agora do ponto de vista dos interlocutores, o ato de
conversar com alguém pertencente ao meio acadêmico parecia se mostrar como uma forma
segura de o indivíduo superar a proibição, o mutismo, a condenação da qual fala Foucault
(2011a). E ao mesmo tempo, se o sexo é interdito, “o simples fato de falar dele e de sua
repressão possui como que um ar de transgressão deliberada” (FOUCAULT, 2011a, p.12), o
que parecia funcionar como estímulo ao garoto de programa habituado a reprimir as suas
experiências e a deixá-las confinadas em uma esfera de segredo.
Para uma melhor compreensão de como esses fatores, notados por outros autores e
presentes também no campo aqui tratado, operam na vida dos sujeitos investigados, esta
dissertação se divide em quatro capítulos. No capítulo 1, dedicado a uma definição do campo
e dos sujeitos, é abordada a atividade da prostituição masculina na cidade de Mossoró-RN em
suas especificidades, englobando as formas de divulgação, negociação e aproximação. Para
tanto, é feito um mapeamento do campo, delineando os espaços onde os indivíduos estudados
podem ser encontrados e traçando o perfil dos sujeitos pesquisados, privilegiando a internet
como o principal local de interações e artifício utilizado nas negociações, sendo, por isso
mesmo, destacado como parte primordial de um campo em constante reformulação.
O Capítulo 2 é voltado para a análise do segredo como elemento presente na vida dos
michês de maneira a influenciar as práticas da prostituição, buscando verificar o modo como a
masculinidade influencia na atitude do resguardo da imagem pessoal, desde a divulgação até
os percursos feitos e o local da realização do programa. Simmel (2009) fornecerá arcabouços
teóricos para facilitar a visibilidade deste aspecto em campo. Schutz (1979), por sua vez,
fornecerá a noção de província finita de significado como um “conjunto de experiências onde
se firma a realidade” (SCHUTZ, 1979, p.248) para auxiliar no entendimento das vivências
dos garotos de programa em dimensões opostas da vida. Nesse sentido, tomo as dimensões da
vida pública, privada e transitória como províncias de significado distintas, cada uma com
seus aspectos, relações e sentidos próprios.
O Capítulo 3 discorre a respeito da construção e utilização das fachadas e o seu papel
na preservação da honra do garoto e na separação das vivências nas diferentes dimensões de
suas experiências. A masculinidade é levada em consideração na medida em que noto traços
do macho estereotipado nas fachadas construídas e algumas vezes materializadas nas
experiências ditas profissionais. Erving Goffman é a coluna teórica a dar sustentação às
discussões sobre fachada, levando em conta que no contexto da prostituição masculina, a
noção de masculinidade se constitui um elemento de valor, portanto, servindo como critério
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“Ninguém vai me dizer como devo me virar. Eu quero, quero muito, quero
agora. O meu desejo, ninguém vai roubar”. Sonhos roubados, Maria Gadú.
aspectos inerentes aos seus atos em sociedade que caracterizam uma prática dentro de uma
localidade, mas que podem facilmente extrapolar qualquer barreira geográfica.
O fato de não haver espaços próprios dos quais os sujeitos se utilizem especificamente
para a prática da prostituição aponta para outro traço observado que é, ao mesmo tempo, a sua
causa e consequência: a ausência de organização na forma de grupos de características
marcadamente próprias em contraste com o restante da sociedade e que se reconheçam entre
si como michês.
Isso deixa claro que não é a minha intenção pensar os michês partindo unicamente da
categoria da diferença, tão valorizada por alguns pesquisadores, tendo em vista que o que
chama a atenção nos indivíduos visualizados aqui é justamente uma categoria oposta,
essencial para pensar as suas experiências: a semelhança com qualquer outro ator social. O
confundir-se com os indivíduos ordinários liga-se a outros aspectos observados como, por
exemplo, o de buscar fugir do estigma que sofrem os profissionais do sexo e de buscar uma
valorização de si muitas vezes a partir de um forjado ineditismo na prática da michetagem. O
comportamento dos garotos de programa seria, assim, influenciado em grande parte pelo que
se considera socialmente como um ideal de masculinidade buscado pelos sujeitos como forma
de não deixarem de lado uma certa normalidade.
Esses são traços fundamentais da atividade de michê, o que gera, ao mesmo tempo,
outro contratempo metodológico quando dificulta o reconhecimento dos indivíduos por parte
do pesquisador a partir do momento em que torna mais fluido o campo e quase invisíveis as
suas redes de contato. Falo de uma disposição dos sujeitos e, por assim dizer, um mimetismo
por parte deles que torna necessária uma certa medida de descentralização do olhar inquiridor
de um espaço fechado para um campo mais amplo.
Foi exatamente isso, portanto, que me levou a enxergar a cidade de Mossoró-RN mais
como um local de atuação dos indivíduos michês, do que mesmo o lugar de pertencimento
destes.
dentro de um modelo clássico, nas ruas, onde os sujeitos estão dispostos nas esquinas, becos e
avenidas visando chamar a atenção dos possíveis clientes.
Para ele, a melhor estratégia encontrada foi “procurar uma interação sistemática e
eficiente com a população” (PERLONGHER, 2008, p.56). Ou seja, o próprio pesquisador se
dispôs a perambular pelas ruas tal qual os michês estudados. O seu objetivo era estar além da
observação de como os indivíduos se comportavam; era sentir na pele o que seria estar na rua
à mercê do olhar dos clientes e dos próprios garotos, percebendo entre outras coisas o desejo
que permeava a realidade e as atitudes dos michês.
Outro autor que manteve uma atitude semelhante à de Perlongher, foi Braz (2009) que
ao eleger os clubes de sexo para homens como objeto de sua etnografia, foi aconselhado por
um dos entrevistados a focar o seu olhar não mais sobre os clubes em si, mas sobre o tesão
das pessoas que frequentavam os locais. Somente dessa forma ele compreenderia, de fato, o
que se passava nos ambientes abordados por sua pesquisa. Trata-se, portanto, de uma visão
mais intimista do objeto de pesquisa que ultrapassa uma descrição superficial do grupo
estudado.
Desse modo, para a presente pesquisa, vislumbrei igualmente a utilidade de me
aproximar do mundo da prostituição masculina de modo a observar o mais perto possível
como os fatores aqui investigados influenciam nas ações do indivíduo que se envolve em tal
prática. Aliei, assim, a inserção no campo por meio da internet ao trottoir, como realizado por
Perlongher (2008), praticando uma espécie de trottoir virtual, porquanto me coloquei através
das salas de bate-papo e sites especializados em divulgação de serviços sexuais, no cenário de
atuação dos sujeitos pesquisados.
Entre 10 de Abril e 24 de Junho de 2016, fiz incursões ao campo com a frequência
média de uma a duas vezes por semana, dirigindo-me de automóvel aos pontos físicos de
prostituição, de forma intercalada, no intuito de observar a presença e a movimentação dos
rapazes nesses locais, o que na grande maioria das vezes foram constatados resultados
negativos.
Concomitantemente, visitei sites especializados em divulgação de garotos de
programa, redes sociais voltadas para o público adulto que busca contatos para experiências
sexuais e salas de bate-papo, o que se mostrou ser um método satisfatório para estabelecer
contato com os possíveis interlocutores. Essa atitude, contudo, refere-se a um primeiro
momento oficial da pesquisa, onde visei as articulações de contato de forma preliminar,
fazendo um reconhecimento tanto dos espaços quanto dos indivíduos envoltos na atividade da
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prostituição. Mas houve também para mim um momento que Braz (2010b) denomina de pré-
campo, que se trata de um contato prévio com o campo e os sujeitos com o intuito de se fazer
“observações livres” (PERLONGHER, 2008), anotações em diários de campo e recorte para
futuras observações mais detalhadas. Trata-se do espaço de tempo entre 25 de Março de 2014
à 09 de Abril de 2014, correspondendo ao período em que pela primeira vez tive contato com
garotos de programa no intuito de produzir uma monografia (PEIXOTO, 2014).
No total, foram cinco entrevistas aprofundadas, sendo duas realizadas online, por meio
de salas de bate-papo UOL onde os garotos se apresentaram um como Eduardo e o outro
como Renato. Para os dois, vi a necessidade de exibir o meu rosto através da webcam por um
momento para que eles ganhassem confiança em mim a ponto de conversarem abertamente.
As outras três entrevistas se deram pessoalmente, em locais e espaços de tempo variados; No
período de pré-campo encontrei em salas de bate-papo e conversei em seguida pessoalmente
com Artur Castro na UERN e com Caio em uma parada de ônibus e pelas ruas do bairro onde
o rapaz residia, o Abolição II; com Jales, entre Fevereiro e Junho de 2017, tive várias
conversas mantidas em diferentes encontros e locais. Destas três, somente um garoto, Jales,
chegou até mim de forma espontânea e se revelou do meio após me ouvir falar desta pesquisa
de mestrado e se dispôs, então, a conversar sobre a sua experiência.
Além desses contatos, conversei superficialmente com outros garotos através das salas
de bate-papo em dias variados. Para me referir a esses, utilizarei as próprias identificações
adotadas pelos mesmos na ocasião dos diálogos dentro das salas virtuais ou outras
designações que alguns deles sugeriram.
A faixa etária dos interlocutores varia entre 18 e 32 anos. Os nomes dos garotos foram
substituídos por nomes fictícios, alguns escolhidos pelos próprios, outros por mim, como
medida de proteção de suas identidades.
O perfil de cada garoto e os detalhes de cada encontro serão traçados conforme os
mesmos apareçam no texto ou seja necessário enfatizar um ou outro aspecto. As falas dos
garotos foram preservadas na forma, o que significa dizer que, nas transcrições, preservei
algumas gírias, palavrões e erros de português. Alguns rapazes optaram por não revelar
algumas informações, como o bairro em que residem, relato de como se iniciaram na prática,
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Os garotos expuseram muitas vezes as suas descrições em uma única fala, utilizando-
se de uma linguagem típica do meio virtual onde não se leva em consideração as regras
gramaticais do português. Isso demonstra o desejo de economizar tempo e adiantar a
negociação, falando diretamente do que seriam boas qualidades dentro do contexto da
michetagem, como as características viris que possuem, a discrição e a capacidade de
proporcionar o prazer buscado pelos clientes.
Por outro lado, alguns garotos preferem que as conversas se deem de forma lenta, com
trocas de informações recíprocas e com falas que despertem o desejo naquele com quem se
fala. Foi participando dessas conversas, guiadas pelos próprios pesquisados, que pude traçar o
perfil de alguns garotos e enxergar o comportamento dos mesmos quando em atividade.
Para uma melhor esquematização do processo de interação, algumas entrevistas
ocorreram em dois níveis de contato diferentes:
1. Primeiro nível: as conversas são tidas dentro das salas de bate-papo, onde busco
informalmente traçar um perfil do michê (identificação, idade, grau de profissionalismo,
bairro de residência e público atendido). É feito o recorte de idade, já que os garotos menores
de 18 anos não serão levados em consideração por motivos éticos. Podendo o sujeito se
enquadrar realmente dentro da prostituição viril, passamos para um outro estágio;
2. Segundo nível: a entrevista é feita de modo aprofundado, pessoalmente ou pela
internet, através das salas de bate-papo. É guiada por um roteiro semiestruturado, envolvendo
as principais questões que motivam a pesquisa, sejam elas em torno do segredo, da fachada ou
sexualidades dos garotos. Alguns entrevistados se sentiram à vontade para narrar fatos
1
https://batepapo.uol.com.br/beta/Cidades-e-regi%C3%B5es/Rio-Grande-do-
Norte/M/Mossor%C3%B3/Mossor%C3%B3-(4) (Acesso em 18/01/2017).
24
ocorridos em suas vidas que tocam a questão da prostituição de uma forma ou de outra.
Somente Artur Castro aceitou que a conversa fosse gravada, pois o receio de serem
identificados impedia que os rapazes permitissem o uso de gravador de voz por considerarem
a gravação uma exposição excessiva. Para o registro fonográfico fiz uso do meu próprio
aparelho celular onde instalei um software para smartphones chamado Smart Recorder que
permite gravar áudios de longa duração2.
A divisão das entrevistas em níveis diferentes se deu conforme foi percebida a
interação entre cliente e michê dada de forma semelhante. Foi, portanto, a própria observação
do campo e do comportamento dos sujeitos que indicou o método mais eficiente para a coleta
de dados.
2
FONTE: http://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/smart-voice.html (Acesso em 27/02/2017)
25
Foi percebido que, na maioria das vezes, os mesmos garotos encontrados em um local
também estavam presentes em outros, demonstrando a ligação entre os pontos na forma de
uma espécie de circuito, uma rede circulatória, um campo em continuum.
Beco do Cu. No Bairro Boa Vista, entre os fundos do Hospital Rafael Fernandes e a
lateral do SESC, a Travessa do SESC é uma rua estreita, calçada com pedras e com montes de
entulho em alguns pontos espalhados na via pouco iluminada. Durante a noite, podem ser
vistos alguns garotos perambulando por ali ou fazendo ponto no local, em sua maioria
vestindo roupas que denunciam o pertencimento a classes sociais mais baixas, o que por sua
vez indica a possibilidade de os garotos residirem em outros bairros.
Dentro do período de minhas idas a campo, algumas vezes, menos do que seria anos
atrás, como na ocasião da pesquisa por mim realizada em 2014, deparei-me com situações que
pude interpretar como atividades de prostituição. As cenas pareciam se repetir por sua
semelhança tanto na forma de os sujeitos se portarem, seu comportamento, posturas, olhares,
quanto na sequência dos fatos verificados. Como exemplo, narro uma cena observada na noite
do dia 24 de Abril de 2016, um domingo, entre as 21:00 e 22:00 horas.
Eu estava parado do outro lado da rua no interior de um carro, ligeiramente afastado
para ser percebido mais como um visitante do hospital ao lado do que como um cliente em
potencial de algum garoto. Logo notei que um jovem negro, magro, vestindo bermuda e
camisa perambulava entre a esquina do hospital e a Travessa do SESC olhando sempre para
os lados com ares de apreensão. Em um determinado momento, ele parou. Escorado em um
ponto escuro do muro, um pé apoiado na parede, braços cruzados, não se demorou muito, pois
um carro que, segundo observei, já perambulava pelas ruas do quarteirão havia um certo
tempo, após sinalizar com os faróis, aproximou-se devagar e parou junto ao meio fio. O
garoto, sem se aproximar muito e aparentando pouco interesse, conversou com o motorista
olhando para os lados e balançando a cabeça ora negativamente, ora positivamente. Em
seguida, ele entrou no veículo que partiu devagar com os faróis em luz alta.
Após a partida do rapaz, demorei-me no local por mais cerca de vinte minutos e na
mesma noite não se verificou mais a presença de garotos em trottoir.
26
Este novo espaço com áreas de privacidade [...] é um suporte aos processos
cognitivos, sociais e afetivos, os quais efetuam a transmutação da rede de
tecnologia eletrônica e telecomunicações em espaço social povoado por
seres que (re)constroem as suas identidades e os seus laços sociais nesse
novo contexto comunicacional (SILVA, 2011, p.153)
3
Skype é um software desenvolvido para permitir a comunicação à distância por meio de voz e vídeo através da
internet.
4
O Whatsapp é um aplicativo para celular com versão Web para ser utilizado também em computadores que
permite a troca instantânea de mensagens de texto, fotos, vídeos e áudios.
29
[...] o cara tirou a carteira do bolso, o celular e tal aí pegou e tirou uma arma
do cós da calça e colocou em cima da mesinha, ó. Eu já tava tirando minha
roupa assim, meu primo já tava agarrado com a dona [risos] aí eu gelei logo,
cara, travei as pernas e subi a calça de novo, daí eu falei pra ele que não ia
dar certo e que num sei o quê, despistando e tal. E o cara ficou todo nervoso
dizendo que era policial e que num sei quê, porra de policial... daquele jeito?
A dona começou a rir e meu primo gelou também. Ele soltou a dona e foi
logo pra porta dizendo que ia embora e eu fui também atrás dele. Ta doido?
Vive tendo assassinato em motel. Eu só pensava no outro dia meu pai indo
ver meu corpo e do meu primo no motel... porque geralmente, né? Ia pensar
que a gente era veado. Aí eu nem com documento tava. A dona viu a gente
nervoso e disse que não ia acontecer nada e que se a gente ficasse nervoso o
pau não ia subir porque o sangue foge. Aí depois ela disse que a gente já não
ia servir porque tava com medo, mandou a gente relaxar, mas quanto mais
mandava se acalmar mais eu tinha medo... foi deus, viu? A gente ia pedir
ajuda a quem ali? Ninguém ia querer abrir a porta, deus me livre. Depois ela
disse assim pro marido ir deixar a gente lá fora. E o medo de sair com ele no
carro? Meu primo queria sair só de cueca, a pé, correndo, sei lá... aquele
doido [risos]. Eu rio hoje porque lembrando é engraçado. Mas sei que a
gente vestiu a roupa bem rápido, a dona ligou lá na recepção e avisou que a
gente ia sair e tal e eles iam continuar lá dentro. A gente saiu andando no
meio do motel quase correndo, o desespero da porra, porque num tinha
ninguém pra pedir ajuda, sei lá, ninguém ia querer ajudar ali não, ta
entendendo? Cada um transando na sua, tudo escuro, trancado. Meu amigo,
foi aventura louca. E depois quando a gente saiu do motel ainda teve que
andar no mato assim pra chegar numa rua. Mas a gente andou que só até
chegar ali no CEFET e pegar um ônibus (Artur Castro, 22 anos).
31
Dessa forma, o rapaz aponta outro lado a ser visto pelo isolamento proporcionado
pelos motéis. O que em um momento funciona em favor dos envolvidos na transação, ao
protegê-los do olhar das pessoas, em outro pode se transmutar em risco na medida em que, em
caso de perigo como o exemplificado pelo michê, não se tem a quem recorrer sem a
possibilidade de ser descoberto em atividade e invadir ao mesmo tempo a privacidade de
outras pessoas confinadas em outros quartos.
Contudo, os motéis ainda são os locais preferidos pelos rapazes para a realização dos
programas. O fato de a prática do sexo, principalmente aquela tida como fruto de um desvio
da biologia de nosso corpo ou consequência de um problema psiquiátrico, ter sido interdita ao
longo da história da nossa sociedade Ocidental, como nos fala Foucault (2011a), influencia na
escolha do motel como local preferencialmente adequado para a prática do sexo pago,
porquanto nos faz pensá-lo como um ambiente onde se pode agir em conformidade com a
lógica da interdição, sendo, portanto, em certa medida aceito pelo restante da sociedade, tendo
em vista que está se obedecendo à regra de se manter oculto aquilo que não deve existir.
Além disso, a impessoalidade do local parece garantir a descartabilidade da
experiência tida ali e facilitar o retorno à sua vida pública ao partir do local. Por ser formado
de coisas e objetos que não pertencem nem a um, nem a outro participante da transação, e
principalmente por não ser um lugar de vivência pessoal e diária, o quarto de motel não
evocará em momentos posteriores a lembrança do que se foi feito quando em atividade
prostitutiva em instantes em que se está vivenciando experiências dentro da esfera privada,
por exemplo. Nesse sentido, o quarto de motel pode evitar o inconveniente do choque entre as
experiências de vida do garoto de programa. Trata-se, portanto, mais de um local de passagem
e ao mesmo tempo um ponto de retorno que um local de pertencimento.
Por outro lado, alguns poucos michês utilizam a própria residência como local onde se
podem fazer os programas. Nesses casos, os riscos de o cliente ter acesso à identidade privada
ou pública do garoto e tornar conhecida a prática da prostituição a partir dele se torna alto,
além da pessoalidade inevitável quando se convida um estranho para adentrar a sua própria
residência.
A ideia de continnum se aplica dessa forma ao campo estudado pelo fato de as
localidades e meios utilizados pelos garotos a partir dos momentos diferentes da transação,
estão ligados, como uma rota a ser percorrida desde o momento da articulação dos contatos
até o local da realização do ato sexual. Por outro lado, as diferentes formas de divulgação, os
diversos pontos de encontro e locais de realização dos programas podem servir de
32
complementos de uns para os outros, o que será definido pela ocasião e os sujeitos envolvidos
na transação.
O termo michê, em sua definição clássica traçada por Perlongher (2008), é tido em
dois sentidos diferentes. Em primeiro lugar, refere-se ao próprio ato da prostituição, enquanto
que, em uma segunda acepção da palavra, alude aos sujeitos do sexo masculino que vendem
favores sexuais (PERLONGHER, 2008). Assim, para o autor, tanto é possível deparar-se com
expressões do tipo fazer michê quanto com o termo sendo utilizado em categorizações, onde
se insere o indivíduo em uma classe na qual se é michê.
Dessa forma, o ser michê implica em uma série de questões que caracterizam a prática
da michetagem enquanto tal, traçando ao mesmo tempo limites simbólicos que a distinguem
de outras atividades semelhantes, assim como também o faz em torno do sujeito em questão.
Porém, a distinção a ser feita entre as diferentes formas de práticas prostitutivas entre homens
é, na realidade, um processo instável, uma vez que facilmente pode se confundir o sujeito
envolvido e as suas performances com outros indivíduos e outras atividades do sexo pago.
Sendo assim, Perlongher (2008) cunhou a expressão prostituição viril para designar a
prática da venda de favores sexuais realizada por jovens do sexo masculino que não deixam
de portar em si as características físicas e performáticas do que é esperado socialmente do
homem macho, muitas vezes de forma exagerada (PERLONGHER, 2008). Nessa modalidade,
a masculinidade incorporada e performatizada pelos indivíduos seria o principal elemento de
distinção, colocando os sujeitos que não se portam como homens viris em outros modelos de
prostituição.
Tem-se, portanto, que fazer aqui uma diferenciação da prostituição viril de outros tipos
de prostituição dentro do universo masculino, como aquela em que os homossexuais
efeminados atendem a clientes do sexo masculino e cumprem, comumente, o papel de passivo
no ato sexual, caracterizando a prostituição homossexual em contraponto com a prostituição
da travesti, que abdica em parte de suas características masculinas e investe na encenação de
uma feminilidade sintética, cobrando por ela (PERLONGHER, 2008).
Para Barreto, Silveira e Grossi (2013, p.512), em seu trabalho sobre os michês em
Florianópolis, “existem grandes diferenças em relação ao trabalho e à sexualidade entre estes,
33
1.4.1. Ser um homem de verdade, ser michê: sobre a construção das masculinidades e as
posições do garoto de programa no universo da prostituição viril
Então, são essas formas de utilização do corpo, ou práticas corporais, que delineiam a
identidade masculina do sujeito, caracterizando-o socialmente como um ser macho, homem,
homem de verdade. Embora o indivíduo algumas vezes seja enquadrado nessas categorias a
partir da imagem que cria com o próprio corpo e que as outras pessoas apreendem e as
utilizam como base para se estabelecer relações sociais, não é apenas essa imagem física
externa que conta nesse processo de categorização. Uma série de atitudes públicas também
serão cobradas como prova de virilidade desde a infância, como espécies de ritos que servem
como formas de se inscrever a virilidade no corpo e na mente (WEZER-LANG, 2001;
BOURDIEU, 2012). Tais atitudes devem ser mantidas tanto publicamente, o que estabeleceria
uma hierarquização em relação às mulheres, quanto dentro de espaços que Wezer-Lang
(2001) chama de casas-dos-homens. Estas são formadas por grupos masculinos, envolvidos
34
nos processos de socialização dos mais jovens e provocando inevitavelmente uma distinção
entre os próprios homens.
Dentro dessas situações, em momentos que Bourdieu (2012) chama de ritos de
instituição, o habitus é inscrito no corpo do indivíduo, envolvendo as brincadeiras típicas de
meninos como jogar bola, brincar de polícia e ladrão, de luta, peão, pipa, entre outras
brincadeiras – quase sempre explorando a rua, oposta à casa que é destinada à menina
(BOURDIEU, 2012). São instantes da vida social que fazem o menino se familiarizar com
possíveis atividades a serem desempenhadas por homens adultos, incluindo até outras atitudes
de cunho sexual.
Para Wezer-Lang (2001, p.462), esses instantes estão repletos de brincadeiras
envolvendo “competições de pintos, maratonas de punhetas (masturbação), brincar de quem
mija (urina) o mais longe, excitações sexuais coletivas a partir de pornografia olhada em
grupo”. O autor complementa o seu raciocínio ao afirmar que “através dessa iniciação se
aprende a sexualidade” (WEZER-LANG, 2001, p.462).
Em concordância como esse pensamento, Bourdieu (2012) diz igualmente que:
Para Wezer-Lang (2001, p.462), essa seria, inclusive, uma fase de “homossoabilidade
na qual emergem fortes tendências e/ou grandes pressões para viver momentos de
homossexualidade”, sem, contudo, firmá-la como permanentemente aceitável sob o risco de
se ser diminuído perante os outros homens.
Durante a adolescência, as cobranças de virilidade passam a ser feitas de formas mais
diretas, como quando, por exemplo, os tios cobram a presença da namorada do rapaz e a
defloração da mesma, quando os amigos comparam seus corpos para ver quem é o mais forte,
o mais viril, e mantém conversas sobre quem possui o maior pênis, portanto, o mais
capacitado para exercer o papel do macho. É, desse modo que “escondidos do olhar das
mulheres e dos homens de outras gerações, os pequenos homens se iniciam mutuamente nos
jogos do erotismo” (WEZER-LANG, 2001, p.462).
Por outro lado, a presença de homens mais experientes é de fundamental importância
para a institucionalização da masculinidade de forma mais ou menos padronizada. Segundo
35
Wezer-Lang (2001, p.462), “os mais velhos, aqueles que já foram iniciados por outros,
mostram, corrigem e modelizam os que buscam acesso à virilidade”. Existem também casos
extremos, como os estupros coletivos, onde o homem prova sua força e superioridade em
relação ao sexo feminino diante dos outros, entre os demais atos que “são esperados de um
homem que seja realmente um homem” (BOURDIEU, 2012, p. 20).
Em concordância com este pensamento, Wezer-Lang (2001, p.462) fala que “para ser
um verdadeiro homem, eles devem combater os aspectos que poderiam fazê-los serem
associados às mulheres”, sendo “necessário sempre se distinguir dos fracos, das femeazinhas,
dos ‘veados’, ou seja, daqueles que podem ser considerados como não-homens” (WEZER-
LANG, 2001, p.465). Desse modo, torna-se claro o primeiro objetivo da socialização do
menino no universo masculino: distingui-lo das mulheres e inseri-lo na lógica da denominada
“dominação masculina” (WEZER-LANG, 2001; BOURDIEU, 2012).
Alguns valores estão diretamente ligados à noção da masculinidade, formando um
amplo conceito que determinará a atitude do indivíduo perante a esfera pública, fazendo com
que o mesmo esteja sempre buscando algo que lhe traga honra, ao mesmo tempo fugindo de
seu oposto, a vergonha, momento em que o pudor estará presente. Segundo Bourdieu (2012),
Como a honra [...], a virilidade tem que ser validada pelos outros homens,
em sua verdade de violência real ou potencial, e atestada pelo
reconhecimento de fazer parte de um grupo de “verdadeiros homens”.
(BOURDIEU, 2012, p. 65)
sexo, quando é esperado que o homem dirija o ato sexual se colocando como dominador da
situação e da mulher.
Mas esse processo de construção de uma masculinidade não é tão simples e unitário
como pode parecer. Segundo Almeida (1995),
O que Danilo deixou implícito através de imagens, Artur Castro colocou em palavras o
que é necessário, segundo ele, para ser um michê mais desejável que outros. Diz ele que o
garoto deve possuir “um pênis grande, perna grossa, peito malhado e também não pode ter
barriga muito grande não”. As características do corpo masculino, dentro do que é tido como
virilidade corporificada, estão intrinsecamente ligadas à desejabilidade do profissional do
5
Preto e branco
39
sexo. Nessa medida, o michê macho gozaria de um maior prestígio perante a clientela que
passeia pelos espaços à procura daquele que o satisfaria sexualmente.
Os michês, que Perlongher (2008, p.43) define como “varões geralmente jovens que se
prostituem sem abdicar dos protótipos gestuais e discursivos da masculinidade”, mantém suas
práticas sexuais envoltas em uma esfera de segredo, que para Simmel (2011) é um elemento
que regula as relações sociais na medida em que o indivíduo controla o que é exposto de si ao
outro. É, portanto, utilizado largamente pelos michês como proteção da própria imagem
perante a esfera pública, ou seja, como preservação de sua honra. A ocultação do rosto,
portanto, de sua identidade real, comprova a preocupação do garoto em deixar intacta a sua
honra e ao mesmo tempo a honra do cliente, pois o mesmo não gostaria de ser visto em
companhia de alguém sabidamente com a honra manchada.
Era por volta das 14h30min da tarde do dia 10 de Abril de 2016 quando entrei na sala
do bate-papo UOL6 para observar a movimentação e o comportamento dos garotos de
programa naquele espaço virtual.
Para entrar em uma sala do bate-papo, o internauta deve selecionar em qual tipo de
sala deseja entrar de acordo com os temas de seu interesse. As salas são divididas em oito
categorias diferentes: Amizades, Idades, Namoro, Papo sério, Sexo, Cidades e regiões,
Criadas por assinantes e Todas as salas.
Conforme mostrado nas Figuras 3 e 4, o site exibe banners no layout da página que
divulgam salas voltadas para temáticas que se referem quase sempre, de uma forma ou de
outra, à busca de possíveis parceiros sexuais ou amorosos, o que pode ser interpretado como
sendo essa uma das principais atividades proporcionadas pelo site.
Frases provocativas são exibidas em cada banner. O primeiro, retratado na Figura 3,
direcionava o usuário para salas com a temática Sexo, dizendo: “Nestas salas tem um monte
de gente com vontade de sair do zero a zero”; o segundo, É namoro?, dizia: “Para quem quer
andar de mão dada, mudar o status do Face7 e se comprometer”; o último, Sarados,
convidava: “Se você está a fim de um homão bem trincado, vem que tem”.
6
https://batepapo.uol.com.br/
7
Referência feita ao Facebook, uma rede social mundialmente conhecida onde é possível expor inúmeras
informações da vida pessoal do usuário, inclusive o status de relacionamento.
40
Em uma outra visita realizada no dia 23 de Fevereiro de 2017, pude observar que os
banners permaneciam divulgando salas que giravam em torno das mesmas temáticas,
conforme mostrado abaixo:
Figura 4: Banners da página do Bate-papo UOL9
Apesar de o site oferecer logo em sua página inicial as salas exibidas em banners, eu
sabia que não seria através delas que eu encontraria os garotos de programa da cidade de
8
https://batepapo.uol.com.br/ (Acesso em 10/02/2017)
9
https://batepapo.uol.com.br/ (Acesso em 23/02/2017)
41
Mossoró por já ter conhecimento de que as salas utilizadas por eles estavam separadas por
Cidades e regiões. Sendo assim, naveguei avançando pelo seguinte caminho: Cidades e
regiões >Rio Grande do Norte > Mossoró. A Figura 5 mostra, com destaque em vermelho, as
etapas seguidas por mim até a escolha da Sala 6 que na ocasião comportava o número de 16
usuários10.
10
As salas de Bate-papo UOL comportam, individualmente, 50 pessoas. 30 lugares são disponíveis a qualquer
usuário e os outros 20 lugares reservados exclusivamente para assinantes, que devem autenticar e-mail e senha
para entrar caso a capacidade já tenha excedido o número 30 ocupantes. FONTE:
https://batepapo.uol.com.br/faq/perguntas-e-respostas-sobre-o-bate-papo-uol.html (Acesso em 30/03/2017)
11
https://batepapo.uol.com.br/ (Acesso em 10/02/2017)
42
contexto, esse modelo de coleta de dados serviu como uma visão geral do que mais tarde
deveria ser explorado com maior atenção, destacando em detalhes alguns pontos essenciais.
Sentia-me inseguro pelas dúvidas que me ocorriam. Era um terreno estranho, já que,
apesar de já ter realizado uma pesquisa abordando o mesmo objeto sob uma ótica diferente e
de ter utilizado a mesma forma de inserção no campo, eu não conseguira localizar nenhum
dos informantes interpelados anteriormente para realizar outras entrevistas.
Por este motivo, eu teria que recomeçar desde a articulação de um primeiro contato
que pudesse me auxiliar no acesso a outros sujeitos e a possíveis redes de contato dadas de
outras formas além do espaço virtual.
Ao entrar na sala de bate-papo, notei que havia seis participantes, um número que se
elevou rapidamente nos instantes seguintes, passando para 35 em um momento de pico. A
quantidade de participantes, na realidade, é difícil de mensurar, já que o fluxo de visitantes é
intenso e antes mesmo de se encerrar uma contagem, pode haver alterações. Porém, um
número isolado talvez não queira dizer nada se não for comparado com a quantidade de
garotos de programa encontrados no decorrer do tempo. Fiz contagens a cada quinze minutos
num espaço de tempo de uma hora. Os dados ficam como organizados no Quadro 1, onde
utilizei a denominação Michê Evidente para designar aqueles que se apresentaram já desde a
sua identificação dentro da sala de bate-papo como um atuante do sexo pago.
Quadro 1 - Relação comparativa por horário entre número de participantes e michês evidentes
NÚMERO DE
HORA PARTICIPANTES MICHÊS EVIDENTES
15:40 12 ----------------------
A associação dos sujeitos com a atividade prostitutiva se deu, nos casos registrados,
através de termos como Acompanhante e Bofe, bem como a utilização dos cifrões ($)
compondo seus nomes e indicando assim que a interação sexual se daria por meio da
intermediação do dinheiro.
43
término do diálogo com o cliente, o michê pode, já perante outro cliente, indicar uma posição
diferente em relação a seus relacionamentos não-prostitutivos.
negoodotado se descreveu como sendo alto, negro, olhos pretos e cabelos raspados.
Ele tem 26 anos e disse possuir um pênis de 19 cm. No decorrer da conversa, ao ser
informado que o meu interesse ali estava restrito à coleta de dados para uma dissertação de
mestrado, negoodotado saiu e eu aguardei na sala que algum michê evidente entrasse para que
eu pudesse abordá-lo.
Foi quando Bofe gostoso $$$ entrou e logo me chamou a atenção tanto o termo Bofe
quanto os cifrões utilizados em sua identificação. Então eu o abordei. O rapaz logo se mostrou
interessado na conversa, curioso por saber descrições físicas minhas e dizendo-se excitado,
"com vontade de gozar", no que reconheci ser na realidade uma estratégia do profissional para
estimular o desejo em quem cumpriria o papel de cliente. Percebi, nesse momento, que eu era
ao seu olhar um provável contratante, ou seja, eu não estava invisível naquele espaço, mas
possuía uma corporeidade a influenciar na interação com os colaboradores, na medida em que
meus aspectos físicos o interessavam. Como foi narrado por Braz (2009) durante a sua
inserção em campo,
Desse modo, foi inevitável para mim que eu correspondesse em certa medida às
curiosidades do garoto em relação ao meu tipo físico, cor da pele, olhos, cabelos e dados
como local onde resido, ocupação, entre outros. O desenrolar das interações dependia dessa
reciprocidade, porquanto parecia ser obrigatório seguir esse roteiro de apresentação feita de
ambas as partes, seguido em todas as outras conversas que tive nas salas de bate-papo, para
somente em seguida poder abordar temas de meu interesse.
Após a primeira parte do diálogo, composta das apresentações e da exposição dos
interesses de cada um, Bofe gostoso $$$ pareceu decepcionado com a minha posição de
pesquisador naquela interação que significava para ele tempo perdido. O garoto decidiu
concordar em contribuir, porém se mostrava sempre apressado e até desinteressado,
demorando nas respostas e tecendo comentários os mais breves possíveis. Isso se dava pelo
fato de que para o michê, tempo online significa oportunidade de clientes novos. A nossa
45
conversa, portanto, lhe daria prejuízo. Então resolvi ser direto e incisivo em algumas questões
preliminares.
Bofe gostoso $$$ mora no bairro Liberdade II, atende em motéis, faz programa com
homens e com mulheres sempre na posição de ativo, pois, segundo disse, "não curto ser
passivo". Quando perguntado pelo termo Bofe e pelos cifrões, ele respondeu que “bofe é só o
apelido por causa do que eu faço mesmo e o cifrão é porque recebo grana”.
É "moreno", forte, malhado, 1,75 m de altura e 22 cm de pênis, segundo sua fala. Após
se descrever, o garoto enviou um link e pediu que eu clicasse. Ao clicar, uma foto do rapaz
sem roupas, exibindo pênis rijo em evidência, peito, barriga, braços e pernas trabalhadas em
academias, abriu-se em baixa resolução na tela do meu computador.
Em seguida, ele anunciou os preços. Seria R$ 50,00 para receber sexo oral do cliente e
R$ 80,00 para ser ativo. Porém, logo fui alertado que o valor de R$ 80,00 se tratava de um
preço exclusivo para aquele dia, já que o mesmo tinha pressa por se dizer excitado. O valor
cobrado normalmente seria R$ 100,00.
12
https://batepapo.uol.com.br/ (Acessado em 10/04/2016)
46
ao ponto visado por mim, deveria passar inicialmente por aquele itinerário como aconteceria
com qualquer outro.
Já no Whatsapp, pedi que o garoto fornecesse uma identificação diferente da utilizada
na sala de bate-papo, um nome comum pelo qual eu poderia tratá-lo dentro da pesquisa.
“Danilo”, ele respondeu prontamente. O mesmo me enviou outras fotos13 como garantia de
um “produto de qualidade”, exibindo o seu pênis em ereção de dois ângulos diferentes. Por
último, enviou-me uma foto sua mostrando a parte posterior de seu corpo, em P&B, dentro de
seu quarto com objetos pessoais ao fundo.
Apesar de rápidas, essas primeiras incursões feitas às salas de bate-papo serviram
como base para se analisar alguns aspectos básicos do sujeito investigado e assim demarcar a
quem especificamente se refere esta pesquisa.
A pressa presente nas falas dos garotos que se anunciam nas salas de bate-papo indica,
por exemplo, uma urgência que destoa da postura do michê que opta pela prostituição de rua,
dentro da prática do trottoir (PERLONGHER, 2008), onde o sujeito perambula pelas calçadas
e ruas nas quais aguardam o surgimento do cliente. Tal pressa requer do pesquisador uma
maior objetividade exigida pela própria velocidade na qual se dá a interação e, ao mesmo
tempo, uma maior preparação anterior à entrada nesses espaços para melhor aproveitamento
do pouco tempo disponível dos interlocutores que buscam a mesma objetividade dos clientes
que já surgem com uma afirmação positiva em relação ao desejo da realização do programa.
Por outro lado, a pressa está relacionada com a incerteza da continuidade da prática,
como alertou Danilo sobre a importância de “se decidir logo se quer ou não” a sua contratação
para o dia em questão, pois ele não sabia dizer se os motivos pelos quais ele ofertava seus
serviços sexuais naquele momento, como a sua excitação e a necessidade do dinheiro,
estariam presentes no dia seguinte.
Nesse sentido, é lugar comum entre os michês considerar a prática da prostituição
como sendo provisória (PERLONGHER, 2008; BARRETO, SILVEIRA & GROSSI, 2013),
já que tanto o corpo é modificado pelo tempo, quanto o desempenho sexual, assim como se
espera que no correr dos anos, sempre o mínimo possível, se esteja desempenhando uma outra
carreira profissional. Além disso, a fuga do estigma é algo notável como fator influenciador
na forma de encarar a prostituição como algo praticado somente para se “descolar uma
grana”, como falou Danilo, e não algo permanente.
13
Ver Figura 2
47
O foco da pesquisa gira em torno da prostituição viril que tem como sujeito o michê
que não abre mão de suas características masculinas, mas, ao contrário, reconhece-as como
valor simbólico dentro do universo no qual se está inserido (SANTOS, 2008) e que pode
atender, em sua atividade profissional, tanto apenas homens ou apenas mulheres quanto
homens, mulheres e casais.
A masculinidade como um fator de marcada presença no fenômeno da prostituição
masculina tanto como fator de diferenciação entre os sujeitos envolvidos quanto delineador da
própria prática é um elemento de demasiada importância na compreensão do fenômeno e se
constitui como a base para a compreensão de outros aspectos presentes na atividade da
michetagem.
A honra, valor da masculinidade, por exemplo, exige de alguns rapazes que suas
práticas prostitutivas sejam realizadas em segredo. Sendo assim, no próximo capítulo, o
segredo será o ponto a ser observado nos sujeitos pesquisados por ser um aspecto que irá
condicionar, e de certo modo guiar, a postura dos garotos perante os relacionamentos
mantidos ao mesmo tempo em que está ligado a outros fatores, como as diferentes esferas de
experiências de vida e as fachadas construídas por eles, que culminarão na discussão sobre o
caráter contraditório das sexualidades dos garotos de programa.
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CAPÍTULO 2
O SEGREDO E O TRAÇO DAS ESFERAS DE EXPERIÊNCIAS DE VIDA
“Não te abras com teu amigo, que ele um outro amigo tem. E o amigo do teu
amigo possui amigos também...” Da discrição, Mário Quintana.
Simmel diz que “o segredo significa uma enorme ampliação da vida, porque muitas
das suas manifestações não se poderiam produzir na completa publicidade” (SIMMEL, 2009,
p. 235). Assim, a internet faz parte dessa ampliação do mundo dos garotos de programa, já
que ela segue criando espaços para além da vida dada no mundo concreto. Tais áreas possuem
seus próprios códigos interacionais, normas e valores a serem levados em consideração,
dentre os quais estão o respeito pelo outro, a discrição e outros aspectos ligados ao sigilo.
Desse modo, se essa expansão da vida é regida por uma espécie de código de conduta
estabelecido tendo como base elementos do segredo, qualquer ofensiva em direção a essas
áreas de ampliação faz com que o indivíduo se esquive como um mecanismo de autoproteção
e defesa do próprio espaço para que o mesmo não perca as finalidades atribuídas por eles e
não sofra modificações em seus sentidos.
Por outro lado, o que talvez seja a maior motivação das evasões dos michês é que eu
provocaria, a partir de perguntas direcionadas aos garotos, reflexões que fariam com que
houvesse um conflito interno de valores, identificações que talvez ainda não se dessem de
forma clara ou afirmações que eles queriam evitar por diversas razões particulares. Ou seja, a
prática da prostituição parece em muitos casos permanecer sombreada ou mistificada até para
si mesmos, o que demonstram que alguns garotos de programa ainda não pareciam dispostos
a desvendar os próprios segredos, já que isso implicaria em descortinar as próprias
fragilidades.
Eduardo aceitou uma conversa no dia 09 de Janeiro de 2017 sob a condição de ter
algumas de suas informações preservadas, como bairro em que reside, instituição na qual
estuda e cidade de origem. Ele atende homens e mulheres, é especialista em casais e sabe
fazer massagens. Descreveu-se como “moreno, 1,77 de altura, 70 quilos, 19 cm de pau,
cabeça raspada, macho, sem trejeitos”, conforme demonstra a imagem abaixo:
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Eduardo fez o seu primeiro programa aos 17 anos, após uma noite de festa em uma
cidade do interior do Estado do Rio Grande do Norte, a qual não quis identificar. Ele conta
que, por volta das 02:00 horas da manhã, foi abordado por um homem com cerca de 45 anos
enquanto saía do banheiro químico situado na lateral do palco onde uma banda de música
conduzia a festa. A princípio, o rapaz achou estranho aquele homem que nunca havia visto lhe
propor algo do tipo. Jamais havia pensado na possibilidade de fazer sexo em troca de dinheiro
e muito menos com um homem com idade suficiente para ser seu pai.
Apesar de estar certo de que recusaria o convite, Eduardo se limitou a não responder e,
quando retornou para junto de seus companheiros com quem se divertia na festa, não falou
nada sobre o ocorrido. Mas a proposta não saiu de sua cabeça pelo resto da noite e, mesmo se
considerando heterossexual, começou a considerar a possibilidade de ganhar um dinheiro
fácil.
Quando já conversávamos em uma sala privada do bate-papo, Eduardo falou sobre o
desenrolar de sua primeira experiência como garoto de programa:
Eu já tava indo embora, daí o coroa pegou e veio atrás de mim de novo perto
da saída aí pegou e perguntou se eu não queria dinheiro pra ir pra festa de
novo no outro dia que ia ter outra festa. Aí eu queria né, já tava bêbado
mesmo, ninguém ia saber. Só disse que ele esperasse que eu ia despachar os
cara que tavam comigo. Aí depois eu peguei e fui com ele pra um motel no
carro dele, vidro fumê e tudo. Rico o coroa. Ganhei R$ 100,00. [...] Não
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https://batepapo.uol.com.br/beta/Cidades-e-regi%C3%B5es/Rio-Grande-do-
Norte/M/Mossor%C6%B6/Mossor%C6%B6-(6) (Acesso em 09/01/2017).
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lembro muita coisa não. Sei que depois eu ainda fiquei com ele umas três
vezes (Eduardo).
Tem que ter cuidado, boy, pra não estragar tudo, minha vida. Eu sempre
conheço o pessoal aqui na net como todo mundo, tá todo mundo querendo
sexo aqui, e por aqui é o jeito mais seguro mesmo, sem dúvida. Se você for
pra rua, tipo, você tá tipo se suicidando. Nunca fui. Ninguém vai mais pra
rua hoje em dia quase. Conheço uns cara que faz até faculdade também e
ninguém nem desconfia porque fica tudo por aqui mesmo (Eduardo).
“Fica tudo por aqui mesmo” não quer dizer que ao sair da internet a realidade se
desfaça por completo, mas que o segredo da prática é compartilhado somente entre os
indivíduos que interagem por meio da internet. Em um encontro presencial para a realização
do programa é óbvio que os envolvidos na situação terão conhecimento, porém este
conhecimento deverá sair do foco das atenções logo que a cena se dissolva. Falar que tudo
ficará por “aqui”, portanto, passa a ideia da reclusão, do confinamento de informações e atos
dentro de uma esfera composta por indivíduos compromissados com o segredo e ambientes
que tenham a capacidade de preservar o seu conteúdo em sigilo.
Eduardo, ao ser questionado sobre quais os motivos que o levam a esconder a sua
prática da prostituição de determinadas pessoas, disse que “é que ninguém vai entender, vai
achar que sou bicha, vagabundo, que não quero nada com a vida”. Em seguida, quando
questionei qual a importância do segredo na prática, obtive a resposta de que “é total, se não
fosse segredo eu nem era gente em casa nem em canto nenhum.”
Em concordância com Eduardo, Renato disse que
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Mas é claro que é segredo. O cara não pode sair falando assim de boa uma
coisa assim. Não é todo mundo que sabe [...] saber, não sei se to falando
errado, você entende. Mas não é todo mundo de confiança. O bom daqui é
isso, a gente só vai pra cama se ganhar confiança mesmo (Renato).
O “saber saber” está querendo dizer que aquele que não tem a consciência da
importância de se manter o segredo sob o véu da ocultação não é digno de confiança e,
portanto, não está apto a vivenciar uma experiência sexual dentro daquele círculo.
Miskolci (2013), ao tratar da importância do segredo em relações homoafetivas
intermediadas pela internet, observa que
É preciso saber, portanto, manipular as informações que se tem em mãos para não
colocar em risco a vida social do garoto. Através da fala de Renato, percebemos também que
o segredo condiciona a prática da prostituição e o envolvimento do sujeito na medida em os
interlocutores selecionam os lugares frequentados, as pessoas, pautam seus diálogos, suas
interações, seus códigos e valores com base na medida do que deve ser preservado ou
exposto.
Ocultar informações e se esquivar de situações e pessoas, são as primeiras atitudes e
os primeiros sinais de que a ordem do espaço regido pelo segredo foi desafiada. Evita-se a
desordem, pois ela implicaria em consequências na vida pública que dificilmente seriam
contornadas, principalmente em uma cidade de médio porte como Mossoró, onde a
probabilidade de algum cliente ou alguém que tenha conhecimento do envolvimento do rapaz
com a prostituição conhecer um familiar ou amigo do rapaz é bem maior que em grandes
capitais, por exemplo.
Desse modo, um jogo de cintura é necessário para lidar com as pessoas e
circunstâncias. É o nível de confiança que estabelecerá a medida do quanto se pode permitir a
aproximação de uma pessoa, regulando assim as relações mantidas com todos que fazem parte
da vida do garoto de programa.
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nunca atenderia, por exemplo, uma pessoa que todo mundo soubesse que é
gay porque geralmente vão falar pros amigos e até indicar e ir passando pros
outros. E de repente tá todo mundo sabendo de você, do que você faz.
Porque eles não tem mais o que perder, por isso eles fazem isso (Artur
Castro).
Com isso em mente, Renato diz garantir um completo sigilo ao cliente e isso se dá
tanto pelo fato de que, segundo o próprio, absolutamente ninguém sabe de sua prática, quanto
pelo fato de que seus meios de manter relações dentro de sua atividade prostitutiva se dão
unicamente pela internet, o que, para ele, garante a preservação de sua identidade assim como
a identidade do cliente que só precisará se revelar caso, em um encontro presencial, dado
sempre em lugares públicos de grande movimentação, aprovar o que vê no garoto. Caso
contrário, o programa não acontece e os envolvidos na transação voltam a viver como se
nunca tivessem tocado o universo da michetagem.
O rapaz seleciona os seus clientes pelos mesmos critérios que Artur Castro, mas abre
uma possibilidade de ele ser também alvo de uma seleção, deixando claro que o cliente é
quem deve realizar o primeiro ato seletivo: ao ver suas fotos, conversar e, no encontro, avaliar
a postura do michê e grau de desejabilidade de seu corpo (BRAZ, 2009).
Renato também falou sobre as suas relações mantidas com as pessoas de diferentes
círculos e destacou o fato de ter poucos amigos de confiança e viver apenas com pai e mãe,
com quem não mantém uma boa relação. Diz ele:
Eu não teria nem pra quem contar se eu fosse falar pra alguém, deus me
livre. [...] Eu escolho mesmo com quem vou sair, todo mundo escolhe, tem
muita coisa em jogo, só quem é do meio entende. [...] É que eu sou de
poucas amizades, porque mesmo você querendo esconder uma hora ou outra
você cai na confiança e acaba contando pra um amigo, daí eu tento evitar.
Tem uns gp que ainda conta, que eu sei, parece até que contam vantagem
nisso, mas muitos devem se arrepender porque esse é o tipo de notícia que é
fogo no palheiro. Ninguém consegue controlar. Tem bicha que acha muito
excitante saber quem faz programa, como se elas tivessem tipo acesso
ilimitado, ta entendendo? Mas eu escolho quem sai comigo, não é só
dinheiro não, tem muita coisa em jogo sim por isso acho que eu distancio
sim certas pessoas de mim. E muito (Renato).
Eu sinto que minha relação em casa poderia ser melhor, então deve afetar
sim o que eu faço. Se eu não fizesse [programa] talvez eu me abrisse mais
com minha mãe, com meu pai não. Mas eu me afastei dela depois que
comecei, ela parece que tem uma bola de cristal, adivinha as coisas, sei lá.
Em casa eu escondo tudo, as camisinha... Quando eu comecei a fazer eu pedi
pra ela deixar de lavar minhas cuecas. Ela não falou nada, mas parou. Mas
acho que isso muda também. Pronto, eu comecei a comprar umas cuecas
diferente, mais bonitinha e tal e não quero que ela veja. É estranho. Daí eu
guardo tudo num baú que eu tenho, eu boto embaixo das redes. Ela deve até
ter visto já, mas eu só não quero deixar assim junto com as outras não
(Renato).
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Esconder de todo mundo mesmo é impossível, porque claro que todo mundo
com quem já saí fica sabendo. E eu até me preocupo com isso porque a gente
não tem como controlar. Sempre pode acontecer de uma pessoa indicar a
outra e assim vai, daí não tem como controlar a quantidade de pessoas. Tem
uns caras que fica dizendo que ninguém sabe, que isso, que aquilo, mas
como é que eles pode dizer isso? E os cara tudo com quem eles sai, não
conta? [...] Eu até digo também, mas assim, eu digo tipo assim pra garantir
que a pessoa vai se sentir segura. Mas também num é coisa rasgada que todo
mundo sabe não, eu falo só do pessoal com quem já saí. [...] é, isso afeta
muito a relação com a família principalmente, por motivo que tá todo mundo
por perto e isso a gente tem que saber como fazer pra não ser invadido. [...] o
que eu posso fazer é afastar, sim. Porque se não der uma recuada no pessoal
que tá perto, pode prejudicar tudo. [...] Assim, não sei dizer o que, só sei que
prejudica sim. (Eduardo)
Assim, claro que não é todo mundo que pode saber que eu faço isso, muito
menos o que eu faço porque, ta, tudo bem, todo mundo faz sexo de todo jeito
que der na telha, mas eu não vou sair falando que eu já chupei a porra de um
cacete, tá entendendo? Mas grana é grana. [...] Pra minha mãe eu só falo que
vou sair. Ela nem sonha onde eu perambulo, entendeu? Ela é evangélica,
daquelas que usa saia e dá dinheiro pro pastor andar de carro. É complicado,
claro. Quando vou sair num encontro eu fico sem jeito, nem gosto de mentir
pra ela, mas é o jeito, ela não sabe de nada, né? (Eduardo).
É difícil assim, porque se a minha família não sabe, claro que eu vou fazer
de tudo pra ninguém descobrirem. Nem gosto de imaginar a treta se
souberem um dia. Mas é uma bagunça mesmo. Uma coisa prejudica a outra e
não tem remédio (Renato).
Fica expresso nas falas dos entrevistados, portanto, um fator de elevada importância na
análise de seus modos de vida, que é o conflito. Segundo Simmel, o conflito “é uma maneira
de conseguir algum tipo de unidade, mesmo que seja através da aniquilação de uma das partes
em litígio” (SIMMEL, 2011, p.568).
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Essa assertiva corrobora com o que se pode observar nos modos de vida dos garotos
de programa na medida em que é possível perceber que o conflito e a contradição em suas
vidas não servem unicamente para confundir ou desarmonizar a unidade do indivíduo, mas
são ao mesmo tempo partes constituintes do eu e que o integram e o caracterizam de forma
marcada em uma realidade onde cada indivíduo que interage com o garoto de programa,
receberá deste uma parte que lhe cabe em determinado contexto vivido. Renato, por exemplo,
fala que
todo esse malabarismo faz parte, é normal. Não tinha como ser diferente
porque também, a gente faz uma coisa aqui e lá faz outra. E é assim com
todo mundo que faz programa. A gente só tem que ter cuidado pra não se
embananar e misturar tudo. Mas é a minha vida (Renato).
Em concordância com este autor, Roberto DaMatta (1997) fala a respeito de um traço
sociocultural do brasileiro em relação ao seu comportamento diante dos diferentes espaços da
vida social, podendo assim se sustentar uma postura coerente com os princípios de uma moral
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valorizada socialmente enquanto que em outro espaço poderá divergir da primeira postura.
Trata-se da casa e da rua, que para o autor funcionam como verdadeiras categorias
sociológicas para o brasileiro, no sentido de que
Isso se refere, já que se trata de uma “categoria sociológica”, ainda segundo o autor, ao
modo como uma sociedade pensa e institui os seus valores e ideais, ao seu sistema de
classificação, ao mesmo tempo em que traça um plano de ação do indivíduo.
Tanto Hall quanto DaMatta compreendem que as experiências de vida delimitam
espaços em que podemos nos transmutar em diferenciadas identificações com suas
características particulares. Mas talvez mais importante que falar em espaços que nos sugerem
ou requerem de nós determinados traços em nossa identidade, é falar em situações nas quais
nos inserimos e nos vemos de alguma maneira coagidos a assumir um comportamento
condizente com os valores e modelos de ação e conduta ali identificados.
Quando analisamos essa perspectiva no âmbito da sexualidade em nossa sociedade
moderna, observamos que o discurso sobre o sexo, incitado muito mais que interdito, deve
estar circunscrito em espaços especificamente preparados para a produção tanto dos próprios
discursos quanto do conhecimento sobre o sexo e o próprio comportamento dos indivíduos no
que diz respeito à sua sexualidade (FOUCAULT, 2011a).
É desse modo que para vivenciar, trocar experiências, falar sobre a prática da
prostituição e também sentir-se confortável com o que se faz, delimita-se espaços específicos.
Os garotos de programa, assim, constroem barreiras em torno desses espaços para evitar
qualquer ofensiva que os ponham em risco e ao mesmo tempo superar o conflito gerado pela
divergência no modo de agir e conciliar as suas atitudes um tanto contraditórias.
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Simmel (2004) diz que “o segredo levanta uma barreira entre os homens” (SIMMEL,
2004, p.238). Isto é uma ideia que se torna muito clara quando analisamos as estratégias
utilizadas pelos michês para conciliar as suas experiências de vida e, na medida do possível,
não permitir que as suas contradições se confrontem diretamente.
Sendo assim, é possível localizarmos essas barreiras construídas como verdadeiras
muralhas em diversos momentos da vida do garoto de programa e em momentos diferentes da
prática da prostituição, como por exemplo na divulgação, na articulação dos contatos e na
realização dos programas.
Ao tentar coletar informações sobre aspectos da vida dos michês que não deveriam ser
expostos naquele momento, naquele espaço e para qualquer pessoa, por diversas vezes eu me
deparei com essas barreiras de isolamento, que, por terem como matéria prima o segredo,
garantiram por vezes o meu distanciamento e a preservação de suas informações pessoais,
assim como afastavam também a possibilidade de outras pessoas indevidas terem acesso a tais
informações.
O que eu falo pode ser exemplificado pelas atitudes de recusa da grande maioria dos
rapazes com quem tentei conversar. E mesmo entre aqueles com quem dialoguei através da
internet, houve momentos em que me foi vetada a possibilidade de prosseguir um diálogo
focado em certos temas como a família ou atividade sexual com a namorada com a
justificativa de que se falaria apenas sobre a prostituição; família e relações afetivas não
faziam parte deste círculo.
Mas a prática da prostituição, como vem sendo debatida, implica em um tipo de
moldagem das relações sociais mantidas pelos garotos com todas as pessoas a sua volta, o que
significa dizer que, independente do tipo de relacionamento mantido, todos eles serão
atingidos de uma forma ou de outra.
Assim, o sujeito que se prostitui tem o seu modo de agir modificado pelo segredo que
guarda, inclusive diante de pessoas que não tem conhecimento de tal aspecto de sua vida. Em
termos práticos, o rapaz, quando diante de seu círculo familiar, por exemplo, evita conversar
sobre assuntos ligados à sua sexualidade ou a temas que exijam uma abertura maior sobre a
quantidade de parceiros (as) tidos nos últimos dias. Por outro lado, evita-se a todo custo os
diálogos a respeito de sua vida particular com os clientes. Diz Renato:
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De repente você tá lá e o cara ou a mulher com quem você tá, sei lá, aí
começa a perguntar das suas coisas... do que você faz e tal, onde estuda,
essas coisas. Eu corto logo porque eu sei que a pessoa tem curiosidade e
acaba passando pelo sentido, mas num pode né? Cliente é cliente e de vez
em quando a gente tem que lembrar eles disso (Renato).
A fala de Renato mostra a sua perspectiva sobre os limites do relacionamento com o/a
cliente. Ele se esforça na criação de uma barreira entre os dois que limita o tipo de
relacionamento mantido e o deixa recluso dentro de uma situação profissional que deve se
desfazer logo que o programa tenha um fim.
Da mesma forma, os outros tipos de relacionamento são limitados ou orientados
conforme o garoto julgue necessário. Assim, os amigos têm informações podadas e
mistificadas para se criar uma imagem falsa de um macho heterossexual com grande número
de parceiras, apenas, excluindo os parceiros homens que muitas vezes são em maior número
(PERLONGHER, 2008; BARRETO, SILVEIRA & GROSSI, 2013).
O esforço em ocultar informações é tão grande quanto o de criar situações fictícias que
garantam diante de algumas pessoas tanto uma heterossexualidade quanto uma suposta
indiferença em relação ao mundo da prostituição.
Essas são algumas das formas que os garotos utilizam para criar barreiras entre eles e
as pessoas com quem se relacionam.
Nesse sentido, a realidade total da vida do michê dentro do contexto pesquisado seria
dessa forma constituída por três campos de possibilidade complementares e conflituosas, a
saber, a esfera de experiências de vida pública, onde se afirma a honra do homem de verdade,
a dimensão privada, estruturada por relacionamentos onde as trocas de intimidade devem ser
estabelecidas a nível de igualdade ou o mais próximo disto e a esfera de experiências de vida
transitória, envolvida por uma nuvem de segredo onde as trocas de informações nem sempre
se dão de forma igualitária e as próprias relações aí dadas estão destinadas ao esquecimento. É
nesta esfera onde se percebe com maior intensidade o sombreamento, a falsificação e a
fachada como medidas de proteção da honra do rapaz.
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Embora existam muitos brasileiros que falam uma mesma coisa em todos os
espaços sociais, o normal – o esperado e o legitimado – é que casa, rua e
outro mundo demarquem fortemente mudanças de atitudes, gestos, roupas,
assuntos, papéis sociais e quadro de avaliação da existência em todos os
membros de nossa sociedade. O comportamento esperado não é uma conduta
única nos três espaços, mas diferenciada de acordo com o ponto de vista de
cada uma dessas esferas de significação (DAMATTA, 1997, p.44).
contatos inesperada para que as pessoas ao redor não percebam absolutamente nada ou o
mínimo possível.
Uma situação vivida por Eduardo no interior de uma conhecida loja de roupas no
centro da cidade de Mossoró, a Riachuelo, é narrada pelo garoto e ilustra o que eu digo, além
de demonstrar ao mesmo tempo o modo como as barreiras podem ser erguidas em torno de si:
Teve uma vez que eu tava na Riachuelo aí veio um cara que eu já tinha feito
programa com ele e ele veio tentar falar comigo. Só que ele dava muita pinta
e eu não queria que ninguém me visse [...] O povo ia pensar que eu ando
com viado e tal. É porque é diferente, eu só faço programa. E eu nem
gostava dele, tive meio nojo, ele era velho, tinha barriga, peludo [...] ele veio
falar comigo, acenou e tudo, eu fingi que não vi e fiquei olhando camisa lá,
aí uma vendedora vinha chegando e o cara pegou e falou comigo ó, me
chamou de Eduardo, só que meu nome de verdade nem é esse. Eu peguei,
virei, saí andando rápido achando que ele já tinha se tocado. Pensei em
entrar no vestiário pra me esconder, mas aí ele ia achar que eu tava querendo
uma rapidinha com ele, aí eu peguei e arrudiei e desci na escada rolante e fui
embora. (Eduardo)
Acredita-se que reações como a relatada tornem possível evitar que se instale a
desconfiança na mente de qualquer pessoa que transite pelos espaços compartilhados com a
coletividade e testemunhe o contato do garoto com qualquer outra pessoa oriunda de uma
outra esfera. Além disso, a situação demonstra como o cliente se deparou com uma barreira
existente entre ele e o rapaz, apesar de, num paradoxo, os dois estarem conectados
mentalmente ao tentar prever constantemente qual seria a próxima atitude do outro e, com
base nisso, traçar e executar o próprio plano de ações ou reações.
Ao mesmo tempo, assim se evita que os diferentes espaços se choquem ou se
misturem. E como lembrou DaMatta (1997), isso não pode ocorrer “sem criar alguma forma
de grave confusão ou até mesmo conflito” (DAMATTA, 1997, p.46). As consequências de
um conflito dessa natureza envolvem prejuízos morais que dificilmente seriam reparáveis, o
que faz com que os michês, cientes dessas possibilidades, reforcem o discurso equiparado ao
que é propagado pela sociedade de um modo geral e utilizem a esfera pública de forma
completamente alheia à esfera transitória.
Para Renato, a sua esfera pública é sobretudo um espaço de fingimentos. Diz ele:
Em público a gente finge, né? Eu sou normal... Hoje acho que to mais
tranquilo, mas tive um tempo que eu não falava com ninguém mesmo. Saiu
da porta do motel, tchau, nunca vi. [...] pra fingir é mentir, ter cuidado com
quem eu saio, quem encontro na rua. Daí tem o perigo de o outro não
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É possível notar através da fala de Renato que o ato de fingir está atrelado a
sustentação de um discurso de normalidade que é expresso em palavras e em ações e envolve
riscos verificados em certos momentos da vida pública, como o risco de o outro conhecedor
do segredo não querer colaborar e acabar propagando as informações secretas ou agindo de
modo a levantar suspeitas nos outros.
Para Miskolci (2013, p.303), em seu estudo sobre as relações homossexuais dadas por
meio da web, ser normal está associado a “ter a capacidade de desaparecer como parte da
maioria”. Porém, isso não se dá de forma tão simples. O discurso da normalidade configura
uma série de atitudes bem como uma postura de observação perspicaz do meio que faz com
que o garoto de programa esteja o tempo todo atento e consciente do espaço onde se encontra
para que se possa identificar qualquer coisa que venha de fora e ameace a sua estabilidade.
Isso também pode ser exemplificado pela seguinte fala de Eduardo:
Ah, em público a gente é normal, não tem nada de diferente, ninguém nota,
ninguém percebe nada porque é tudo muito escondido e a gente ainda tem
outras coisas pra cuidar né [...] tipo namorada, família, os estudos... [...] a
gente precisa saber agir numa situação dessa, pra disfarçar, pra sair tranquilo
(Eduardo. Destaque meu).
“A gente ainda tem outras coisas pra cuidar” aponta, para além da prostituição, a
existência de outras tramas, responsabilidades, relações e sentidos em uma esfera pública que
devem ser resguardados de qualquer coisa que possa afetá-la. A separação entre as dimensões
da existência se torna muito clara a partir dessa fala que igualmente mostra o quanto que o
garoto é ciente dessa separação, dos limites estabelecidos e dos elementos que a compõem.
“[...] namorada, família, os estudos” são, então, como apontados pelo próprio rapaz,
elementos constituintes dessa esfera pública que devem ser preservados e respeitados como
elementos sagrados em oposição completa às práticas prostitutivas, socialmente consideradas
devassas, profanas, portanto, completamente destituídas de moral.
O discurso da normalidade é, desse modo, importante para os rapazes verem a si
mesmos como, apesar de se prostituírem, ainda detentores de uma honra que é laboriosamente
cultivada nessa esfera pública. O esforço para se igualar aos outros homens ditos normais ou
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homens de verdade como fala Bourdieu (2012), é que impulsiona o garoto de programa a se
utilizar do segredo como estratégia de preservação de si e, como consequência, impede que a
prostituição aconteça a olhos vistos, sendo, portanto, impelida a se dar em locais reclusos.
Essa preocupação com o segredo faz com que os interlocutores tenham sempre
buscado deixar claro ao longo das entrevistas que, por sustentarem o discurso e a postura de
uma normalidade numa busca pela preservação de si, os relacionamentos nas diferentes
esferas não estão de forma alguma imunes a essa forma de se comportar. Sendo assim, todos
eles, de uma maneira ou de outra, sofrem limitações.
Renato, por exemplo, afirma ter poucos amigos verdadeiros. E sua afirmação é
complementada pela informação de que um amigo verdadeiro seria aquele a quem poderia
confiar o seu segredo sem ser discriminado posteriormente. Para ele, esta seria a condição
para poder se declarar uma amizade legítima e que alcançasse o seu ser em uma maior porção.
O rapaz ainda reforça a ideia dizendo que “Todo mundo fala que amigo de verdade é só pai e
mãe, mas pra quem não pode contar tudo, nem pai, nem mãe”.
Fica explícito, dessa forma, a limitação existente em um relacionamento familiar no
qual o sujeito não possa confessar o seu envolvimento com a prostituição e compartilhar suas
experiências.
Mas as relações familiares não fazem parte somente de uma única dimensão da vida.
Ela se situa em uma região de interseção entre a esfera pública e a esfera de experiências de
vida privada, na qual se firmam as relações afetivas e se desempenham papeis sociais ligados,
principalmente, à família.
Em outras palavras, a esfera de experiências de vida privada está relacionada com os
elementos íntimos do sujeito, o que envolve os sentimentos, os laços consanguíneos e os
espaços onde as experiências íntimas se dão, como o lar onde se vive. Trata-se do ambiente da
casa, como lembra DaMatta (1997).
Nessa região situada entre uma esfera e outra, existe um outro tipo de relacionamento
na esfera pública que ganha destaque por ser mais interessante a forma como é encarado pelos
próprios garotos e também pelas outras pessoas, que, por desconhecerem completamente a
forma como os rapazes se mantém financeiramente, acabam por atribuir significados que
testemunham a favor do garoto de programa.
Refiro-me à figura da namorada para aqueles que a possuem, configurando um tipo de
relação afetiva-sexual que adquire um caráter sagrado porque românticas, além de cumprir
uma função primordial de proteção e zelo da imagem do michê.
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Eu tenho porque é bom o cara ter com quem fazer amor de verdade, fazer
carinho, a gente se sente menos sozinho, pô. No programa é muito [...]
mecânico, cansa. A gente precisa de uma coisa mais da gente (Eduardo).
Dessa forma, podemos pensar a figura da namorada na esfera privada, onde se requer
certos níveis de intimidade e afeto entre os indivíduos, como tendo acesso a um grau de
intimidade que envolve principalmente as trocas românticas-afetivas-sexuais ao mesmo tempo
em que lhe seriam ocultadas informações de sua vida profissional.
A namorada teria acesso da mesma forma à esfera pública pelo fato de sua presença
servir como uma forma de assegurar uma possível heterossexualidade do garoto perante a
sociedade bem como a aparente impossibilidade do enquadramento na categoria michê. No
entanto, as trocas de intimidade eminentemente recíprocas entre michê e namorada,
envolvendo o sexo e o sentimento afetivo de forma indissociável, devem ter um caráter de
exclusividade para que o relacionamento amoroso se firme enquanto tal e cumpra a função
esperada.
Já os relacionamentos que se dão sem uma troca de carinho com impulsão afetiva e
sem reciprocidade de entrega delineiam um outro espaço, uma terceira esfera repleta de
códigos próprios, discursos específicos e relacionamentos que ganham características
próprias. Entre estes caracteres definidores, está a rapidez e a superficialidade com que se dão
e por serem impulsionadas por um desejo provocado e estimulado tanto pelo dinheiro quanto
pela própria sexualidade.
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Porra, só quem ta ali comigo, entendeu? Num é uma coisa que eu chegue
contando pra uma pessoa, ei, comi num sei quem, fiz isso e aquilo outro, to
fazendo por dinheiro e tal. Acho que isso nem precisa de resposta.
(Eduardo).
A fala do rapaz deixa claro o fato de que a esfera transitória de sua vida é bem definida
e apenas as pessoas que fazem parte de sua clientela podem aí adentrar e receber informações
sobre sua vida profissional. Mas isso se dá apenas pelo fato de que eles estão compartilhando
os mesmos atos e dividindo os mesmos ambientes e, em alguns casos, os mesmos segredos.
O fato de estarem os garotos de programa dividindo um espaço comigo - a internet -
fez com que se abrisse nessa esfera uma fresta por onde eu poderia visualizar um pouco de
suas experiências, mas não sem antes passarem todas elas por um processo de seleção, já que,
como eu era visto como um elemento externo, representava uma ameaça à segurança de
todos, o que me fez deparar com barreiras e limites bem traçados. Quando, por exemplo, em
alguns momentos das entrevistas, eu toquei em questões que podiam dizer respeito
diretamente a seus familiares, os garotos algumas vezes expressaram uma incisiva resistência,
demonstrando assim um caráter sagrado atribuído a essas relações dadas em outra esfera.
O cliente, por estar inserido na dimensão das práticas prostitutivas do garoto de
programa, depara-se com um alto nível de mistificação, mendacidade e ocultação na medida
em que o michê busca simultaneamente a atenção de quem solicita seus serviços, bem como a
proteção de sua honra. É dessa forma que um acordo tácito entre os sujeitos assegura que
nenhuma informação acerca da situação ali vivida deve extrapolar os limites da esfera
transitória.
Assim, é quando as diferentes dimensões são confrontadas ou se tornam inconciliáveis
que o segredo surge como estratégia de conciliação ao delimitá-las e separá-las. Trata-se de
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um jogo de reservas onde cada indivíduo deve estar recluso à dimensão que lhe cabe. E para
observar isso de uma forma mais completa, é necessário observar também outros elementos
que transitam em torno de um relacionamento e que funcionam como marcadores simbólicos
que, assim como o segredo, tem a sagrada atribuição de traçar o limite entre as esferas. Eles
precisam, para tanto, estarem presentes ou ausentes para indicar se uma situação ocorre dentro
da vida privada, pública ou transitória.
Segundo Blumer (1980), “a vida e os atos do homem são necessariamente alterados
conforme as mudanças ocorridas em seu universo de objetos” (BLUMER, 1980, p.129). É
dessa forma que a presença ou a ausência do dinheiro, do prazer e da afetividade tem o poder
de definir em qual esfera de experiências de vida se dá uma relação ou ato na medida em que
esses elementos alteram o significado de cada ocorrência na vida do garoto de programa.
Para ilustrar o que digo, reproduzo aqui um fato ocorrido com Ricardo, narrado pelo
mesmo, onde o garoto deixa clara a importância de deixar o prazer ausente e ao mesmo tempo
efetuar a troca monetária para assegurar a localização de uma experiência dentro da esfera
transitória.
Ricardo estava em um motel com um cliente a quem já atendera diversas vezes,
sempre em troca de uma quantia de dinheiro estabelecida como seu valor fixo e igualitário
para todos os clientes. Porém, o rapaz observava que o cliente em questão nutria um
sentimento afetivo por ele e isso ficava explícito nas carícias mais demoradas que lhe fazia,
nas perguntas sobre sua vida privada que ele sempre evitava responder com verdade e
também na grande constância com que o mesmo lhe procurava, uma a duas vezes por semana.
No motel, naquele último programa, o cliente aparentava o tempo todo estar tristonho.
Quando a gente terminou tudo né, nesse dia eu tinha até gozado porque ele
me masturbou forte, ele meio que forçou, eu tinha pedido pra ele parar e
tudo, mas ele fez ainda meio que à força. Ele sabia que se eu não gozasse eu
ia sair com outro cliente depois dele. Mas aí ele fez isso né. Eu quase briguei
com ele, mas deixei quieto. Daí eu tomei banho e vesti minha roupa e
quando fui ver nas minhas coisas ele tinha tirado o dinheiro de volta. Boy, eu
surtei. Eu perguntei: cadê a grana? Ele fingiu que não ouviu. Daí eu
perguntei de novo com raiva pra ele ver que eu tava falando sério. Aí ele
pegou e disse: você gozou hoje, achei que não fosse querer a grana. Aí eu
surtei, quase bati nele. Eu disse que ele deixasse de ser doido que aquilo era
um programa e que eu não ia nunca ter nada com ele e exigi que ele me
devolvesse o meu dinheiro. Ele pegou e jogou o dinheiro na cama e começou
a chorar. Ele esperava que eu fosse consolar? Uma ova, eu fiz foi discutir
com ele, ele queria que eu fosse viado e tivesse romancezinho com ele. Eu
tenho namorada e tudo... nem faz muito tempo isso. [...] Depois ele ainda me
procurou de novo, sim, mas eu subi o preço, cobrei 500 reais e ele ainda
71
disse que topava, mas aí eu subi mais e ele continuou. A praga era rica...
chegou em mil ele desistiu. [...] Nunca mais apareceu, graças a Deus
(Ricardo).
CAPÍTULO 3
FACHADAS: TRANSITANDO ENTRE AS DIFERENTES ESFERAS DA VIDA
“Em mim nada está como é. Tudo é um tremendo esforço de ser”. Angústia,
Secos & Molhados.
São muitas as possibilidades de apresentação do eu, ou, como disse Goffman (1999),
de representações do eu na vida cotidiana. Os elementos que nos rodeiam poderão influenciar
na forma como deveremos nos portar diante do outro, bem como os valores que buscamos
cultivar e que funcionam muitas vezes como norteadores de uma conduta.
Quando Bourdieu (2012) fala de uma honra masculina e o quanto que se faz
necessário preservá-la acima de tudo sob a punição de sermos desacreditados socialmente e
relegados a uma posição inferior em relação aos outros em uma escala em que somos medidos
pela moral com a qual nos afinamos ou não, fica-se subentendida a busca pela utilização de
artifícios que favoreçam a vivência em espaços específicos. Essa situação ganha contornos
diferenciados quando se trata do indivíduo que experiencia circunstâncias que não podem ser
de conhecimento público.
Goffman (2011, p.14) define a fachada como “uma imagem do eu delineada em
termos de atributos sociais aprovados”. Tais atributos dependerão do contexto onde se
encontra o indivíduo, ou seja, aquilo que é valorizado em um determinado círculo pode não
ser em outro, o que exigirá do sujeito uma habilidade em apresentar, em sua representação
cotidiana, os chamados atributos socialmente aprovados, muitas vezes implicando em ocultar
outros atributos possivelmente depreciativos.
Dentro de um universo de masculinidades é o conjunto de características típicas ou
próprias de uma masculinidade hegemônica que se configurarão como um valor almejado.
Apesar de hoje se buscar em alguns círculos desconstruir esse modelo impositivo da
heteronormatividade compulsiva, na dimensão da michetagem ainda se busca resgatar traços
do macho estereotipado para se evocar o desejo sexual ou se exibir uma suposta maior
capacidade sexual a partir de características discursivas e corporais. Sendo assim, temos como
pressuposto o fato de que são as características do que se enquadra na performatividade do
gênero masculino como o que irá influenciar na construção das fachadas dos garotos de
programa.
74
Como vimos no capítulo anterior, o discurso da normalidade está presente na fala dos
rapazes de forma marcante, e isso ao mesmo tempo constitui uma das características que
transmitirão aos clientes um tanto de confiança em não serem percebidos acompanhados por
sujeitos marcados pelo estigma da homossexualidade, o que seria automaticamente estendido
ao cliente.
Sendo assim, é válido ressaltar que a utilização de fachadas sociais por parte dos
garotos de programa pode ser visto como um dispositivo de acionamento da normalidade,
porquanto a partir do momento em que se assume um comportamento diverso do comum, do
estigmatizado, do socialmente inaceitável, o rapaz está adentrando ao mesmo tempo em uma
postura conformada com o normal.
Segundo Bourdieu,
Por esse ponto de visto proposto pelo autor, torna-se óbvio que os garotos analisados
não se enquadram na categoria da normalidade por não serem previsíveis e não estarem
construindo uma história linear e inteligível, já que a porção de experiências mantidas na
esfera das experiências transitórias da vida não estão de acordo com uma postura mantida em
outras esferas da vida.
75
Relatarei agora um fato observado por mim em uma das primeiras entrevistas que
realizei dentro do campo da michetagem, quando ainda na fase de pré-campo, no dia 09 de
Abril de 2014. Pelos acontecimentos peculiares que marcaram essa incursão em especial,
julgo-a emblemática para se pensar aspectos importantes no conhecimento a respeito da
prostituição masculina, o que me fez retomar as anotações do diário de campo e transcrever
algumas das impressões e observações provocadas pelos acontecimentos.
Chamarei o rapaz de Caio. Muito embora aparentasse menos, ele dizia possuir 18 anos
quando eu o encontrei em uma das salas de bate papo do site UOL. Na ocasião, eu utilizava a
identificação de Pesquisador. Ainda era início de tarde, por volta das 12:30, e a sala estava
bastante movimentada. Fui eu que o abordei, não obstante o fato de o garoto não apresentar
em sua identificação nada que o remetesse ao sexo pago. Era apenas o seu nome fictício
seguido de sua suposta idade (Caio 18). Mas acontece que eu já havia percebido a estratégia
76
que alguns utilizavam de não se mostrarem como um garoto de programa desde as suas
identificações. Sendo assim, havia passado a abordar mesmo aqueles que não eram evidentes.
Logo nas primeiras falas, percebi que, como eu suspeitava, tratava-se realmente de um
garoto de programa que buscava em um primeiro momento ocultar como estratégia de auto
enaltecimento a sua familiaridade com a atividade prostitutiva. Perlongher (2008) também se
deparou com michês que negavam a prática inicialmente para em seguida se revelar de dentro
do meio, em uma atitude semelhante à negativa da homossexualidade. Para o autor, ambas as
atitudes estão relacionadas à fuga do estigma e à valorização de si, do serviço prestado, já que
aquele que se apresenta como um neófito tem a seu favor a possibilidade de demonstrar uma
falsa exclusividade para determinado cliente, portanto, podendo cobrar um valor elevado. Ao
mesmo tempo, esse mesmo garoto pode ser visto como “pouco usado” ou “pouco rodado” e
por isso possuir um valor simbólico maior que aquele experiente com quem um grande
número de pessoas já teve relações sexuais (PERLONGHER, 2008; SANTOS e PEREIRA,
2016).
No desenrolar da conversa com Caio, ainda no espaço virtual, realizei uma série de
perguntas dentro do que eu buscava conhecer. Em um dado momento, eu propus que
fizéssemos uma entrevista pessoalmente, já que o garoto se mostrava aberto a dialogar a
respeito de suas experiências enquanto michê. Caio concordou, mas com a condição de que o
nosso encontro se desse ainda naquela mesma tarde, pois era o dia em que seria possível para
ele. Aceitei a condição sem questionar, ciente de que o pesquisador, na maior parte do tempo,
é guiado pelo próprio campo e está posicionado meramente como um observador que
posteriormente se concentrará em tecer as suas interpretações (GEERTZ, 2008).
Acertamos, então, os detalhes do encontro, a maioria impostos pelo garoto. Nos
encontraríamos em um ponto de ônibus localizado no bairro Abolição, próximo a um
supermercado, às 15:00 horas, sozinho. Eu iria vestido com calça jeans, camisa com gola
estilo polo, mochila nas costas e estaria sentado em um dos bancos como alguém que espera
um transporte coletivo.
Sentia-me como deve se sentir um cliente quando na eminência de um encontro:
ansioso para saber que rosto eu encontraria, se eu seria reconhecido pelo garoto como o
Pesquisador que o havia abordado na internet ou mesmo se eu seria capaz de identificá-lo. Ao
mesmo tempo, pensava nas possibilidades de o encontro não poder ocorrer por fatores que nos
fugissem ao controle, como, por exemplo, a aproximação de alguém conhecido.
77
Cheguei ao local no horário combinado. O sol forte refletia nos para-brisas dos carros
que transitavam na avenida ao lado. Sentei-me no último banco do ponto de ônibus de onde
eu poderia observar todo o local e aguardei apreensivo ser abordado a qualquer momento.
Tinha em mente o modo como deveria me portar diante do garoto, deixando clara mais uma
vez a minha intenção ao solicitar um encontro, e, com uma atitude razoavelmente objetiva,
tentar manter o foco da conversa nos temas a serem abordados. Isso, a meu ver, evitaria ser
confundido com um possível cliente, confusão esta que poderia dificultar a coleta de dados.
Esperei no local por quase uma hora e ninguém com as características descritas pelo
garoto apareceu. Apenas pessoas comuns chegavam, aguardavam alguns instantes pelos
transportes coletivos, embarcavam e partiam. Eram pessoas de diversos tipos: senhoras
carregando sacolas de supermercado, jovens estudantes vestindo fardas escolares, senhores
trabalhadores com roupas surradas. Bicicletas passavam logo ao lado, seus condutores
paravam, conversavam com um senhor de meia idade responsável por uma banca de jogo do
bicho que em um dado momento se instalou no ponto de ônibus, trocavam bilhetes, riam e se
despediam.
Após algum tempo, notei que um rapaz com aparência um pouco mais jovem do que
eu esperava rondava o lugar com o celular na mão. Apesar de não estar vestido como disse
que estaria, algo em sua atitude o denunciava. Ele olhava em minha direção vez ou outra e
desviava o olhar sempre que eu o espiava de volta, perdido entre análises de seu aparelho
celular e de minha fisionomia. Naquele momento eu suspeitava que a entrevista não fosse
acontecer por algum motivo fora de meu alcance, talvez algum conhecido seu estivesse por
perto ou talvez suspeitasse que eu não fosse o pesquisador que o abordara mais cedo na
internet e talvez um desses fatores o impedisse de se aproximar. Mas finalmente o garoto se
acercou de mim.
Caio era um rapaz magro e de baixa estatura. Tinha a pele queimada pelo sol, olhos
sorridentes e pequeno alargador preto no lóbulo da orelha direita. Ele vestia roupas diferentes
das que disse que usaria e, mais tarde, quando perguntado sobre os motivos da alteração do
que seriam os seus sinais identificadores, ele respondeu que “Todo mundo faz igual. É que se
for alguém conhecido ou eu não gostar, eu vou embora.”
O rapaz sorria demasiadamente feliz. Falava com espontaneidade como se fôssemos
velhos conhecidos, numa atitude que se tratava claramente de uma tentativa de convencer os
participantes circunstantes da interação, como nomeia Goffman (2013) aqueles que estão
78
a mim sinais de que ele era o garoto de programa por quem eu aguardava; 3. E comportar-se
concomitantemente segundo os rituais de interação dados entre desconhecidos que, de fato,
éramos.
Esses sinais eram expressos sobretudo por seu olhar. Caio me fitava com curiosidade,
receio e ao mesmo tempo como quem tenta transmitir uma mensagem, porém com cuidado
para não se demorar em mim. Em seguida, percorria todo o ambiente em volta com olhares
furtivos e analíticos que demonstravam uma preocupação em averiguar as reações das pessoas
e em não ser surpreendido por alguém de qualquer outra esfera de sua vida.
Esse tipo de atitude regida e direcionada por duas situações e espaços com sentidos
diferentes confrontados em uma circunstância de interseção de esferas da vida, reflete todo o
cuidado que o garoto de programa é coagido a ter para que não se perca a sua fachada. Dessa
maneira, foi possível perceber que Caio acabou assumindo alinhamentos divergentes de modo
simultâneo para poder sustentar sua fachada já em andamento e que deve permanecer ativa
enquanto as outras pessoas permanecerem observando.
Nesse sentido, Blumer fala que nós “formamos os objetos de nós mesmos por
intermédio da forma como os outros nos vêem ou nos definem” (BLUMER, 1980, p.129-
130). Isso expressa a necessidade da preocupação com a visão dos outros presentes na
interação sobre nós mesmos. Essa questão leva a um outro ponto de análise: a sensibilidade
do indivíduo em reconhecer que tipo de sujeito e suas respectivas formas de se comportar
devem emergir em uma dada situação. Geraria um conflito maior, portanto, caso alguém da
esfera privada da vida de Caio nos descobrisse, provocando uma nova alteração em nossa
interação.
Passado o primeiro momento do encontro em que nos detivemos no cumprimento de
pequenos rituais de interação como as saudações, a forjada preocupação pelo bem-estar do
outro e demonstração de uma forjada felicidade pelo encontro, Caio, consciente de que era
preciso apresentar elementos que nos dessem credibilidade em relação aos outros presentes,
iniciou uma atitude de mistificação que eu deveria continuar correspondendo, mas, agora, de
uma outra forma.
Caio mistificou situações de um contato passado entre nós que não existia, ao
perguntar, por exemplo, por onde andaria uma fictícia amiga em comum e onde faríamos as
telas para pintar as camisas de um evento igualmente fantasioso. Eu me vi, portanto, em uma
nova situação, talvez mais delicada que o primeiro momento.
80
A partir do instante em que Caio me tratou como um amigo que possuía um passado
em comum sem um consentimento prévio, as nossas fachadas de amigos ganharam
profundidade e eu tinha que ter o cuidado de não contradizer com as informações que
passavam pela sua cabeça. Eu não era mais apenas um pesquisador desconhecido fingindo ser
amigo do entrevistado. Eu era agora um amigo com um passado em comum e um projeto
futuro a ser desenvolvido com a minha participação ativa, muito embora não conhecesse
absolutamente nada do projeto.
Senti na própria pele o quanto que a manutenção de uma fachada é um processo
demasiado delicado e complexo e o quanto pesa a responsabilidade pela segurança de uma
fachada que, se perdida, poderia colocar em risco tanto o andamento de minha pesquisa
quanto a honra e a convivência de um indivíduo com sua família e amigos.
Conversamos então sobre o suposto evento por cerca de sete a dez minutos. Eu
respondi as suas perguntas com o máximo de firmeza que consegui e ainda adicionei
comentários do tipo “acredito que irão participar mais pessoas do que imaginamos”. Ou
“estou com a arte aqui na minha agenda, podemos adiantar o trabalho”. Porém, “adiantar o
trabalho”, na realidade, significava para mim um convite a irmos logo ao encontro onde
realizaríamos a entrevista, mais por falta de confiança na minha capacidade de sustentar as
nossas fachadas naquela conjuntura do que mesmo boa vontade em colaborar ou domínio
sobre a situação.
Essa circunstância se enquadra no que Goffman chama de “interação desfocada”. Para
o autor, ao falar do indivíduo dentro de uma situação do tipo, é paradoxal o fato de que “a
maneira pela qual ele pode transmitir a menor quantidade de informação sobre si mesmo [..] é
encaixando-se e agindo como se espera que pessoas do seu tipo ajam” (GOFFMAN, 2010,
p.45).
Principalmente a primeira parte de nossa interação se enquadra nesses moldes. De
forma simultânea, foram essas características de uma interação desfocada que nos
impulsionaram a assumir alinhamentos até então não esperados, ao menos por mim que vivia
pela primeira vez um contexto com tais características.
A alternância entre os alinhamentos assumidos por nós reflete a ação de forças
externas atuando de forma marcada, como o estigma da prostituição e da homossexualidade
que o garoto buscava evitar, refletindo em mim que, para ganhar o colaborador, teria que
igualmente contribuir fazendo parte de sua encenação.
81
no ramo como cliente. E os encontros prosseguiram até que o garoto começou a perceber que
sua família desconfiava de que ele estava praticando furto, o que o obrigou a parar.
Mas as primeiras experiências com o cliente que ele mesmo chamou de Coroa, serviu
mais como indicadoras do que poderia e o que não poderia ser feito. E foi através delas que o
garoto percebeu a necessidade de preservar a sua prática em segredo, o que passou a fazer
desde então sempre com grande cautela.
O fato de sua família o manter sob constante vigilância era outro fator que obrigava
Caio a ser rígido em relação ao sigilo. “Se meu tio descobrir alguma coisa, ele me coloca pra
fora de casa. Aí eu vou pra onde?” “O que você diz quando vai sair de casa?”, eu perguntei.
“Que vou fazer trabalho na casa de alguém, vou pra escola, essas coisas.” “Mas como você é
em casa, seu comportamento? Ninguém desconfia de nada?” “Claro que não. Em casa eu sou
normal, estudo... fico na internet”, disse ele.
Dessa forma, Caio utilizava em casa uma fachada com características aceitas
socialmente para não sofrer reprimenda de nenhuma natureza, ocultando práticas
repreensíveis na visão da sociedade, mas principalmente na do patriarca da família, seu tio.
Simmel (2011) diz que “a mentira consiste no fato de que o mentiroso oculta da pessoa a
quem é passada a ideia, a verdade que detém” (SIMMEL, 2011, p.113), algo que, podemos
notar a partir do relato de Caio, faz parte do processo de construção e manutenção de suas
fachadas.
Ao mesmo tempo, a preocupação de Caio em manter a prostituição em segredo, já que
o conhecimento da parte de seus familiares atingiria de forma intensa a sua vida privada já tão
delicada com seus parentes, fazia com que a sua atitude verificada em nosso encontro, se
repetisse nos encontros mantidos com seus clientes.
Segundo Caio, ele nunca usava as roupas que dizia aos clientes que utilizaria nos
primeiros encontros - sempre realizados de preferência em lugares movimentados para passar
despercebido em casos de o cliente ser um conhecido ou não se sentir atraído sexualmente
pelo mesmo - , e que serviriam como sinais identificadores para facilitar uma possível evasão.
Além disso, o seu comportamento em seus encontros se dava de forma semelhante ao modo
como foi comigo, arquitetando fachadas e comportamentos de velhos conhecidos a variar em
duração de tempo conforme o ambiente e a quantidade de pessoas presentes como
circunstantes. Para ele, um comportamento como um garoto de programa ganhava contornos
melhor delineados somente a partir do momento em que se via a sós com quem realizaria o
programa, fosse dentro do automóvel do cliente ou do quarto de motel.
83
O encontro que tive com Caio serve para pensar tanto a utilização das fachadas por
parte dos michês no mundo concreto em meio à esfera pública da vida, diante das pessoas
comuns e alheias à prostituição quanto em várias questões resultantes do uso da fachada,
como, por exemplo, a habilidade em lidar com as delicadas exigências de alternância de
alinhamentos.
O jogo de cintura necessário para se manter um alinhamento coerente com demandas
opostas em seus sentidos, é um esforço considerável que se irradia ao outro com quem a
interação se dá, seja um programa a ser realizado ou uma entrevista como foi no caso narrado.
As consequências da não observância de detalhes das interações seriam algo como prejuízos
morais para o garoto que busca se preservar, porquanto a sua imagem na esfera pública seria
seriamente atingida pelo estigma.
Resta dizer que o meu envolvimento com a situação narrada me possibilitou enxergar
os interlocutores e suas atitudes com uma maior nitidez, na medida em que pude entender
melhor os mecanismos que atuam nas interações dadas entre michês e clientes. A semelhança
do meu posicionamento com o de um cliente em um primeiro encontro com um garoto
igualmente me ajudou a perceber a realidade que busquei visualizar de um ponto de vista
como estando inserido naquela esfera de prostituição.
E, além disso, o fato de o garoto ter agido da forma narrada queria demonstrar que, se
eu desejava ter acesso à sua esfera transitória, deveria adentrá-la da mesma maneira como
qualquer outra pessoa o faria, seguindo todos os passos da interação, demonstrando que estes
eram necessários para o próprio garoto ir se revestindo paulatinamente com a sua fachada de
michê.
Uma outra situação vivida por mim em campo pode ilustrar uma circunstância de
perda de fachada. Refiro-me a entrevista realizada com Artur Castro, em 25 de Março de
2014, que, além dos dados que eu buscava acerca da prática da prostituição, participou, como
poderemos ver, de uma cena que nos serve para pensar que tipos de situações e riscos que os
garotos de programas devem enfrentar em seu cotidiano.
Assim como os outros interlocutores, eu localizei Artur Castro em uma sala de bate-
papo. Era tarde, entre as 15:00 e as 16:00 horas. Sua identificação era precedida pela sigla GP,
o que o fazia ser visto por mim como um michê evidente. Eu o abordei, então, como
84
15
http://lattes.cnpq.br/9405123556506759 (Acessado em 24 de Fevereiro de 2017)
85
Eu cheguei à guarita da UERN por volta das 18:10. Não demorou muito para que um
rapaz negro, alto, com olhos entre o verde e o castanho se aproximasse em uma moto,
olhando-me fixamente antes de me acenar com a mão.
No mesmo instante confirmei a minha suspeita de que o perfil do Facebook que Artur
Castro me enviara era falso, já que todas as características que ele havia descrito assim como
exposto na foto– branco, magro, piercing na orelha – mostrava algo completamente diferente
do que ele era. Além disso, todos os sinais identificadores eram diferentes do que ele dissera
como seria. O rapaz que se apresentou vestia bermuda rosa e camisa preta e calçava um
chinelo de borracha. Para completar a sua estratégia, a moto que pilotava era preta e o
capacete, branco. Usava ainda uma mochila preta surrada.
Após Artur Castro se apresentar como o garoto com quem eu conversara mais cedo,
ele perguntou em que local exato ocorreria a nossa entrevista. Eu ainda não havia decidido,
pois esperava que caminhássemos um pouco pelo campus e ele indicasse o local onde se
sentisse mais seguro. Porém, eu disse num impulso que poderia ser em frente a biblioteca,
onde havia pouco movimento por ser um local afastado, nos limites do Campus, e poderíamos
sentarmos à uma mesa e conversarmos sem sermos ouvidos, já que a maior preocupação do
rapaz era ser percebido pelos passantes.
Já em frente a biblioteca, sentamos à uma mesa circular de concreto que fica entre dois
prédios, bem ao lado da larga passarela em aclive que liga o bloco do setor administrativo ao
prédio onde se encontra o acervo de livros e sala de estudo individual.
A movimentação era pouca. O local era parcamente iluminado. O segurança nos
observava ali próximo e tanto as paredes de pedra quanto as plantas do jardim que nos
rodeavam detiveram a atenção do rapaz durante todo o tempo em que eu retirava de minha
mochila o meu bloco de anotações com o roteiro de entrevista, a caneta e o meu aparelho
celular, que, dessa vez, seria utilizado para gravar as nossas falas.
Ao iniciar a entrevista, logo percebi que um problema técnico em meu celular fazia
com que a gravação travasse de tempos em tempos. Interrompi a entrevista para tentar
solucionar a falha, mas, vendo que o problema persistia, informei que o diálogo não poderia
ser prejudicado e ocorreria normalmente, sendo que a partir dali eu tomaria nota em meu
bloco de anotações.
Durante a entrevista, Artur Castro buscava utilizar uma linguagem típica de alguém
com um certo grau de instrução e para isso o rapaz se valia repetidas vezes do termo
geralmente no meio de suas falas e compreendido e pronto quase sempre logo após ouvir as
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minhas perguntas ou comentários. Esse comportamento denotava que ele não queria ser visto
como uma pessoa sem educação formal, desvalida de valores ou inferior em relação à mim.
Fazia questão de frisar o fato de que já havia terminado o ensino médio em escola pública e
agora cursava um curso técnico em mecânica. Além do mais, o garoto transparecia uma
enorme vontade de um dia entrar na universidade pública e conseguir um emprego formal.
Em um determinado momento da nossa conversa, o rapaz ofereceu o próprio celular
para que eu o utilizasse como gravador. No instante em que ele propôs isso, nós não
percebemos o risco que ele corria.
Nessa interação em específico, não houve muito esforço de nossa parte em manter
uma fachada para além de nós mesmos, já que eram poucas as pessoas transitavam por ali. O
celular, mesmo sendo utilizado como gravador, nada nos denunciava aos circunstantes por
estar simplesmente posto sobre a mesa como em qualquer outra situação.
Foi somente no momento final da entrevista em que o arquivo gerado com a gravação
no celular de Artur Castro seria passado para mim que a fachada do michê foi completamente
perdida. O dispositivo utilizado para compartilhar o arquivo foi o bluetooth, uma tecnologia
que possibilita que aparelhos eletrônicos troquem dados entre si utilizando-se de ondas de
rádio16.
No momento em que Artur Castro me enviou o arquivo de áudio com a nossa
conversa, apareceu no visor de meu celular o nome real do garoto. Inicialmente, eu pensei em
fingir não ter visto e aceitar sem nada dizer. Porém, o garoto, desconcertado, falou sem muita
segurança: “esse celular é de um primo meu, ele esqueceu na minha casa”.
O rapaz passou a olhar a sua volta impaciente pela lentidão do envio do arquivo e
colocou sua mochila nas costas. Disse que precisava ir embora, pois estava atrasado para a sua
aula e mal esperou que eu agradecesse antes de sair apressado em busca de sua moto.
Como já foi esclarecido no capítulo anterior, sabemos que o que pertence a uma esfera
de prostituição torna-se segredo e, desse modo, não deve ser descortinado por pessoas que
pertencem a outra esfera.
No instante em que o nome verdadeiro de Artur Castro se mostrou para mim, que
naquele momento visitava a esfera transitória de sua vida de uma perspectiva analítica, foi
como se uma barreira rompesse bruscamente entra as duas esferas e eu pudesse, mesmo sem
intenção, vislumbrar uma das faces de seu segredo, quiçá a mais preciosa.
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Fonte: https://www.infowester.com/bluetooth.php (Acesso em 03/02/2017)
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Esse rompimento brusco marcado pela perda da fachada desequilibrou por completo a
interação que se estabelecia entre nós e, assim, a entrevista não pôde prosseguir, pois a
confusão fazia com que o garoto não soubesse mais quem estaria dando a entrevista: Artur
Castro, personagem vivido dentro da esfera transitória ou o verdadeiro eu do rapaz, que
habitava igualmente a esfera pública e privada. Em outras palavras, a estrutura na qual se
baseava a nossa interação foi quebrada, impossibilitando que a nossa conversa desse
prosseguimento por não ter mais base sólida onde se apoiar. Pois que não era mais Artur
Castro, o personagem sobre o qual se dava a entrevista, quem estava diante de mim.
O constrangimento sentido pelo garoto reflete o medo de que a sua honra fosse afetada
tanto na esfera pública quanto a sua segurança na esfera privada. Cabia somente a mim buscar
garantir que aquilo não afetaria a sua vida da forma como ele temia. Desse modo, mesmo que
em vão, eu tentei rapidamente assegurar que a sua identidade assumida em outras esferas não
me importava e que eu buscava tão somente coletar relatos de suas experiências e impressões
acerca de sua própria vida.
Jales teve uma infância difícil, tendo que trabalhar fazendo bicos, situação que
perdurou até o fim da adolescência, meio tempo em que nos encontrávamos ocasional e
acidentalmente pelo centro da cidade e trocávamos meia dúzia de palavras; eu, um passante
comum, ele, ora conversador, ora introspectivo, com sua caixa de madeira ao lado escondendo
em seu interior as suas ferramentas de trabalho.
Na noite de 11 de Fevereiro de 2017 estávamos eu e um grupo de amigos que incluía
Jales conversando sobre coisas banais quando alguém me perguntou sobre o que eu andava
fazendo da vida. Foi então que eu falei para todos a respeito da minha pesquisa de mestrado e,
então, o tema de minha dissertação acabou norteando todo o desenrolar da conversa até o fim
da noite. Ao nos despedirmos todos, Jales me perguntou em reservado se eu poderia lhe
fornecer uma carona em meu carro. Caso contrário, ele deveria voltar caminhando para sua
casa que ficava distante e, pelo horário que já passava das 21:00 horas, seria demasiado
perigoso. Eu concordei.
No caminho para casa, Jales falou que estava fazendo faculdade, porém continuava
trabalhando de autônomo no centro da cidade, de onde tirava o dinheiro suficiente para bancar
a sua alimentação e gastos com transporte público. Ele falou de seu último relacionamento
fracassado com uma mulher da mesma idade e de como ela o tinha ajudado a se equilibrar na
vida. Falou também de religião. Ele era protestante, mas estava afastado por não se sentir
mais tanto bem entre os evangélicos, sempre tão bem vestidos e excessivamente moralistas.
Em um determinado momento, ele perguntou: “sabe porquê eu perguntei aquelas coisas?”.
Ele se referia às perguntas que houvera feito à mim diante de nossos amigos mais cedo,
perguntas como “você pesquisa só homem ou mulher também?”, “Você encontra eles no bate-
papo UOL?” e, por último, “Você estuda os que tem HIV?”
Eu reduzi a velocidade do carro para ganhar mais tempo conversando com Jales. “Eu
não sei porque você me perguntou aquilo”, eu disse, embora já desconfiasse. Sem jeito, ele
falou: “É que eu sou portador daquele vírus, HIV. Eu descobri quando tinha 28 anos, foi
muito difícil pra mim, eu achei que minha vida tinha acabado, quis até me matar. Mas hoje eu
estou bem”. “Isso tem alguma coisa a ver com prostituição?”, perguntei. “Sim”, ele respondeu
olhando pela janela. Havíamos chegado ao local onde ele reside, um apartamento em um
primeiro andar estreito localizado em uma rua pouco iluminada do Bairro Santo Antônio.
Antes de descer do carro, Jales me deu um abraço inseguro, agradeceu a carona e saiu.
Somente na semana seguinte, no dia 18 do mesmo mês, eu o perguntei se ele poderia
conversar comigo sobre a sua experiência com a prostituição. Ele disse que colaboraria de
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bom grado e eu expliquei como faria para preservar a sua identidade, porquanto ele se
mostrara preocupado em relação a sua preservação.
No dia 25 de Fevereiro de 2017 nos encontramos novamente e eu perguntei se
poderíamos conversar. Jales se fez de desentendido, mas depois disse que não estava bem
para falar sobre aquilo. Em 28 de Fevereiro nos encontramos no centro da cidade. Antes que
eu o cumprimentasse, ele abriu a sua mochila e tirou de dentro um vidro de remédio. “É por
isso que não estou bem. Esse vírus se transforma sempre e a gente tem que ficar trocando de
remédio. Mas não se preocupe, aquela conversa vai dar certo”, ele disse já encerrando o
assunto e em seguida começou a falar que estava apaixonado por uma nova menina.
Por diversas vezes, Jales se mostrou tão preocupado em se manter preservado que
assumiu fachadas completamente diferentes umas das outras, muitas vezes em um mesmo dia,
mesmo estando nós dois conversando longe de qualquer outra pessoa. Para exemplificar o que
digo, narro uma situação ocorrida no dia 30 de Março de 2017, na biblioteca da Universidade
Federal Rural do Semi-árido – UFERSA, onde eu costumava ir para escrever e Jales ia para
estudar para suas provas, embora estudasse também em outra instituição. Ambos
aproveitávamos o fato de a biblioteca da UFERSA funcionar 24 horas e ser aberta à
comunidade.
Na ocasião, conversamos na área externa da biblioteca sobre assuntos corriqueiros de
nossas vidas, o que, para Jales, incluía o andamento de suas aventuras amorosas fracassadas
com mulheres diferentes. Para mim, a colaboração de Jales já não seria levada em conta, uma
vez que eu percebia a relutância do garoto em conversar sobre aquele aspecto de sua vida.
Insistir, em minha opinião, seria um tanto antiético.
Mais tarde, no mesmo dia, eu estava trabalhando no texto de minha dissertação,
sentado à uma mesa do grande salão de estudos coletivos localizado no piso superior da
biblioteca quando percebo Jales se aproximar sorrateiro e sentar na mesa ao lado. Chamou-me
para que me contasse algo. Ao me debruçar ao seu lado para ouvir o que ele tinha a dizer,
ouvi-o falar subitamente quase como num sussurro: “Meu primeiro programa foi com um
professor da UERN, que me levou para um motel com uma garota de programa. A gente fez
de tudo lá. Na segunda vez ele já levou só eu. Foi com esse cara que eu comecei.” Ele não
quis falar mais nada, então eu apenas voltei para o meu lugar onde tomei nota em meu
caderno do que acabara de ouvir.
Desse dia em diante, Jales mudou mais uma vez o seu comportamento. Ele passou a se
portar como se não me conhecesse ou se o seu passado não existisse. Certa vez, por exemplo,
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eu falei que lembrava de quando ele andava na mesma linha de ônibus que eu. Ele negou,
dizendo: “Eu nunca peguei o Juvenal17”. No entanto, no mesmo dia, ele confirmou
espontaneamente que andava no Juvenal, sem que eu houvesse mais tocado no assunto.
Em 08 de Abril de 2017, Jales perguntou-me, na mesma biblioteca, se não seria
possível outra forma de ele me passar as informações que eu desejava receber. Então eu
sugeri que ele me enviasse um texto por e-mail narrando qualquer experiência tida na esfera
transitória de sua vida, a importância para ele de se manter tudo em segredo e a visão que ele
tinha a respeito de sua sexualidade. Porém, nunca recebi resposta.
Nos dias seguintes eu ouvi alguns amigos comentarem que viram Jales bêbado, sem
noção de si, durante uma festa em uma boate da cidade, fumando, apanhando as garrafas de
cerveja de cima das mesas já desocupadas como também dos cestos de lixo e bebendo os
restos. No dia 15 de Abril eu o perguntei, durante outro encontro na biblioteca, se ele ainda
continuava fazendo programas e ele disse que sim, do contrário, como se manteria? Aquilo
me preocupou e eu me limitei a aconselhá-lo a usar camisinha sempre.
Em 20 de Maio de 2017, Jales me perguntou quando ocorreria a entrevista. Eu disse
que não precisaria mais, caso ele me autorizasse a falar um pouco do que eu conhecia dele e
narrasse algumas coisas ocorridas durante nossas conversas. Ele concordou e eu notei que foi
como se ele houvesse se livrado de um fardo, pois percebi que a minha presença para ele
evocava a prática que ele queria deixar de lado, apesar de precisar retomá-la por necessidade
de tempos em tempos, como também, talvez pior, a sua doença. Era exatamente isso que
provocava no garoto a atitude de oscilar entre múltiplas fachadas, tão contraditórias a ponto
de me confundir.
Além dessas experiências vividas no mundo concreto, onde o limite entre uma esfera
de vida e outra ganha um aspecto mais delicado pela facilidade que alguém pode encontrar em
transpor os limites, existe um outro local onde tais limites ganham contornos mais bem
delineados, o mundo virtual.
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Linha de ônibus já extinta da cidade de Mossoró-RN que circulava entre os bairros Bom Jardim, Santo
Antônio, Barrocas, Paredões e Centro. No horário de 12:00, ia até o bairro Nova Bethânia para deixar os
estudantes nas Escolas Estaduais Eliseu Viana e Abel Coelho.
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A internet se trata do ambiente em que as fachadas tem início. Todos os garotos com
quem conversei, tiveram um momento de interação comigo no mundo virtual ou disseram
fazer uso da internet para articularem seus contatos. É o caso de Caio, Artur Castro, Jales,
Eduardo e Renato. Os cinco interlocutores desta pesquisa que destacaram para si a
importância que tem a dimensão virtual para impulsionar a prática da prostituição sem que se
sintam prejudicados. É, por isso mesmo, que é possível dizer que as fachadas com as quais me
deparei em campo tiveram seus primeiros caracteres delineados no mundo virtual, sendo o
mundo concreto uma extensão do primeiro dentro da esfera transitória.
No contexto virtual, incluindo sites de anúncio e divulgação de serviços sexuais, blogs
e salas de bate-papo, a fachada ganha outros contornos na medida em que outras ferramentas
são utilizadas para lapidar uma imagem de si. É desse modo que o discurso e fotografias
digitais ganham importância na construção de fachadas em uma interação dada através da
internet.
Os anúncios feitos na internet se esforçam por funcionarem como as preliminares de
um sexo onde o corpo ganha contornos de um discurso descritivo da carne e de atos a serem
consumados em um encontro presencial. É nesse sentido que os anúncios buscam comumente
exibir partes desejáveis do corpo do garoto de programa, bem como frases de estímulo.
Para Breton (2003), “nas telas, o sexo transforma-se em texto, aguardando
combinações sensoriais que permitem estimular, a distância, o corpo do outro, sem tocá-lo”
(BRETON, 2003, p.164). Em concordância com ele, Miskolci diz que
É assim que o anúncio tem a dupla função de criar um canal de acesso entre cliente e
garoto e ainda estimular, tal como recomenda uma espécie de script sexual, o corpo de quem
o busca como em uma preliminar, uma amostra do que poderá ser experimentado de forma
mais intensa em um programa. Ao mesmo tempo indica a capacidade do michê em, mesmo à
distância, provocar sensações físicas no outro, deixando, dessa forma, na imaginação de quem
vê, as possibilidades do que pode ser vivido de forma intensa em um programa.
Coadunando com todas essas assertivas, torna-se clara a ideia da masculinidade como
um valor simbólico, principalmente na exposição constante de partes do corpo associadas à
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Apesar de se tratar de uma outra sociedade, os princípios ainda são aplicáveis à nossa
que encara a divisão dos sexos da mesma forma binária e excludente, o que faz com que o
comportamento de todos os indivíduos, tanto a nível corporal quanto moral, seja influenciado
por essa lógica. A partir da fala do autor, então, é possível deduzir que tipo de comportamento
dos sujeitos é esperado em um espaço de virtualidades.
O mesmo fato faz com que se torne absolutamente comum a exposição dessas mesmas
partes por parte de vários garotos diferentes, o que faz com que os anúncios sejam muito
semelhantes entre si, seguindo uma formatação com os mesmos elementos presentes e a busca
por provocar sensações específicas de uma atividade sexual.
A discussão sobre o uso de fachadas por parte dos michês observados aqui se torna
indissociável da ideia de performatividade de gênero proposta por Butler (2015). Isso decorre
do fato de que é possível notar claramente como a tentativa de se enquadrar em um modelo
hegemônico de masculinidade influencia fortemente no laborioso processo de elaboração da
fachada a ser exposta em contextos vividos na esfera transitória.
Essa questão, por sua vez, se liga à definição de sexualidade pensada pelos sujeitos,
uma vez que a apresentação de si deixa a subentender o papel a ser desempenhado no
programa. Dessa forma, o comportamento do rapaz, tanto no meio virtual quanto no mundo
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CAPÍTULO 4
FRÁGEIS SEXUALIDADES: UM JOGO DE INCOERÊNCIAS E
PERFORMANCES
A delicadeza com que deve ser trata a questão reside no fato de que tendemos a
enxergar o outro a partir do ponto de vista da matriz heteronormativa que não admite
incoerências e, por isso, apegados a uma forma de pensar excludente e acrítica,
inevitavelmente inserimos no outro uma identificação fixa e supostamente coerente para que
se torne inteligível às nossas mentes adequadas a uma forma de pensar preestabelecida. Assim
sendo, o que está atrelada a essa tentativa de imprimir no sujeito uma identidade
obrigatoriamente homossexual talvez seja a própria ação de uma dominação que se coloca em
lugar de superioridade para marcar o outro e encerrá-lo em um ponto estratégico de reclusão e
estigma. Nesse sentido, Perlongher questiona:
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As discussões a respeito de sexualidade e gênero feitas por autores como Butler (2015)
e Bento (2006) colocam em evidência aspectos da sexualidade humana que ultrapassam
qualquer visão biológica-determinista ou a-histórica, ideia esta concordante com Foucault
(2011a). Ambos os autores falam de um processo de incorporação da sexualidade dado no
tempo, onde o sujeito irá assimilar características de um gênero e o performatizar dali em
diante.
Tal performance de gênero, no entanto, não se dará de forma igualitária entre todos os
sujeitos, mas dependerá do meio no qual eles vivem. Entre os michês que vivem atravessados
pela ideia da masculinidade como um capital simbólico, buscar-se-á performatizar o gênero
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Tinha um campo perto de casa que quando não tinha ninguém, a gente ia pra
brincar e depois ficar sentado nos bancos vendo a lua e conversando besteira,
porque lá parecia uma praia de noite. Era escuro, frio, a gente gostava. Daí
tinha um colega mais velho que ia pra lá também e ele ficava mandando a
gente colocar o pinto pra fora pra ver quem tava com o pau mais duro. Ele
nunca mostrou o dele, ele só queria ver, dava confeito e a gente batia
punheta pra ele ficar olhando (Jales).
Nessas ocasiões, todos os que participavam do ato sabiam que o ocorrido deveria ficar
sempre em segredo e eram raras as oportunidades de os garotos comentarem uns com os
outros sobre o que haviam feito sem a vigilância constante dos adultos. Pelas suas
recordações, Jales considera essas noites no campo de futebol como as primeiras vezes em
que percebeu o seu próprio corpo como dotado de um sexo. E, mais que isso, embora não
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considere isso como prostituição, notou, pelas primeiras vezes, a possibilidade de troca
existente entre bens e a sua sexualidade ainda em formação.
Essas experiências narradas por Jales são emblemáticas para se pensar os primórdios
da associação, em sua vida, entre segredo, fachada e sexualidade, uma vez que ele deveria
modificar algo em seu comportamento ao retornar para casa, para que ninguém desconfiasse
de suas idas ao campo, como também ao frequentar o campo outras vezes em busca daquelas
situações que eram, para ele, excitantes. Lá, falava-se em mulheres, do que os meninos fariam
com elas quando crescessem, enquanto o rapaz mais velho, em torno dos dezessete anos, no
papel de experiente, passava-os instruções de como deveriam agir nos jogos de conquista e no
sexo que um dia fariam.
Tudo aquilo coagiu Jales a agir “como homem”, ao mesmo tempo em que a turma de
garotos começou a categorizar seus próprios integrantes, a partir daquelas experiências e as
brincadeiras constantes de comparação de força física, em os fortes e os veados. “Eu sempre
fui muito magro, daí você pode imaginar do quê me chamavam”, disse ele.
Daquela turma de garotos, as expectativas de virilidade e masculinidade se estenderam
às garotas do bairro, com quem alguns dos amigos tiveram as suas primeiras transas mais
tarde.
As experiências no campo de futebol entre os meninos, assim como as que dali
sucederam – flertes e romances forjados com as meninas da rua –, inculcaram em Jales
algumas características em seu comportamento que o posicionaram, dentro da matriz
heterossexual, em um ponto de sexualidades conflitantes. Não obstante, é notável que essas
mesmas experiências se dão como um modo de reproduzir a heterossexualidade, uma vez que
se trata de um processo em que se assimila um modo de ser, de parecer, ou seja, um tipo de
comportamento.
Sobre esse processo de incorporação de uma sexualidade, Butler fala que
Existe um fator primordial, particular ao universo dos garotos de programa, que são os
contrapontos entre o desejo declarado publicamente, a prática mantida em público e a prática
mantida na esfera de experiências transitórias. Para pensar a sexualidade do sujeito michê, os
fatores a serem levados em consideração serão selecionados pelos próprios indivíduos em
questão, que decidirão quais dimensões e elementos de sua vida privada e transitória serão
tomadas como critérios de análise.
Por exemplo, o fato de algumas posições sexuais serem preferidas, como a de ladinho,
de quatro, de pé, estando o passivo de costas para o ativo, está ligado a aspectos da
masculinidade como a virilidade e a honra, na medida em que essas são posições que
facilitam a dominação física e evitam um contato mais intimista que permitiria um acesso
recíproco à identidade dos envolvidos na relação. Dessa forma, preserva-se alguma parte de si
que não deve emergir nessas situações e ao mesmo tempo possibilita ao michê sustentar a
postura que se espera de um dominador.
Em relação às sexualidades, existe, como foi dito por Butler (2015), uma inconstância
muito grande no que se refere a delimitação de gênero e identidade sexual do indivíduo que
no contexto analisado ganha uma flutuação maior. O que diferenciará isso no garoto de
programa pode ser tanto a prática, o desejo e o prazer presentes na atividade do sexo pago,
levando muito em consideração as técnicas e posições sexuais exercidas no programa, quanto
a prática e o discurso mantidos diante da esfera pública.
Isso dá abertura para que outros fatores, relacionados com a prática, o desejo e o
discurso, surjam como influenciadores na percepção de si e no discurso a ser sustentado
perante os outros. São eles a afetividade, o dinheiro e o prazer.
A separação e enquadramento das experiências da vida em esferas diferentes permite
aos garotos de programa categorizarem as suas práticas sexuais em níveis diversos de
coerência com uma suposta “essência”, o que significa dizer que nesta escala de sexualidades,
haveria uma dita “oficial” e outras periféricas ou transitórias. A fala de Jales pode
exemplificar o que digo:
Assim, oficial mesmo, eu sou hétero porque eu me apaixono por mulher, né?
Com homem eu só faço por dinheiro, e eu nem gosto, é só o dinheiro, nem
conta (Eduardo, grifo meu).
101
A justificativa de passar a “sentir tesão pela grana” e não mais pelo corpo da outra
pessoa com quem se está, nos faz pensar em um possível processo de transição do que seria
uma sexualidade “oficial” para aquela sexualidade periférica, passível de sofrer mudanças de
acordo com as situações. Esta última, sendo colocada em prática preferencialmente na esfera
das experiências transitórias, em contraponto à “oficial” exibida na esfera pública e privada.
A afirmação de uma heterossexualidade pública, tida como a “sexualidade oficial”,
apesar de na esfera transitória fazer sexo com outros homens, foi corriqueira em campo.
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Nestes casos, o relacionamento tido com uma namorada serve como prova da
heterossexualidade publicamente declarada. O desejo estaria presente, então, tanto pelo
cliente quanto pela parceira afetiva, porém sendo estimulado por emoções diferentes: o desejo
pela namorada sendo estimulado pela paixão ou amor, enquanto que o desejo pelo cliente
pode ser estimulado tanto pela situação sexualmente excitante na qual o indivíduo se encontra
quanto pelo dinheiro em si.
Como vem sendo mostrado, o discurso elaborado pelos rapazes entrevistados busca
estar em conformidade com a heteronormatividade cultuada socialmente. Desse modo,
contradições em relação à sexualidade são apontadas a partir das falas de alguns garotos
quando eles afirmam, por exemplo, possuir namorada, o que asseguraria a sua
heterossexualidade reafirmada por sua performance de homem viril mantida na esfera pública,
e ao mesmo tempo, na esfera transitória, realizar programas com homens, inclusive, em maior
frequência do que com a parceira afetiva-sexual.
Nesse sentido, Jales foi o garoto que mais se esforçou por tentar assegurar a sua
suposta heterossexualidade ao guiar as nossas conversas ocasionais sempre para a sua vida
amorosa que envolvia, em seu discurso, sempre mulheres que não o correspondia
afetivamente em mesma medida. O garoto considera a si mesmo como heterossexual,
justificando o sexo praticado com homens pela sua extrema dificuldade financeira. Ele deixou
claro o esforço mantido, nas ocasiões em que se via com outros homens, para controlar a sua
repulsa pelo toque masculino. Disse ele:
Foram inúmeras as vezes em que Jales falou sobre uma ex-namorada com quem
casaria, porém a vida os afastou e igualmente sobre outras possíveis parceiras afetivas por
quem se apaixonara sem jamais ser correspondido. Isso demonstra a preocupação do garoto
em exibir um comportamento condizente com a situação de um homem heterossexual, o que,
para além do discurso, refletia na postura de seu corpo – sempre com os pés afastados, peito
inflado, queixo erguido, mãos cruzadas atrás de si, como um soldado -, sua forma de falar
com uma voz que oscilava entre empostada e relaxada, demonstrando que a voz às vezes
grave não era totalmente espontânea. Além disso, os gestos ensaiados de suas mãos exibiam o
103
cuidado em jamais transparecer qualquer coisa que não fosse masculinidade. Ele buscava o
tempo todo exibir em seu discurso o que Butler (2015, p. 43) chama de “gêneros inteligíveis”,
sendo estes “aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e
continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”. Porém, era no quesito da prática
sexual mantida na esfera transitória que Jales não conseguia assegurar a continuidade, caindo
assim na descontinuidade e na incoerência.
Artur Castro é um outro garoto que afirma a existência de um sentimento pela
namorada e a constante prática do sexo com a mesma. Para ele, estes são elementos que
garantem o seu papel de homem diante de si, da família e da esfera pública e torna
incontestável a sua heterossexualidade. Isso se mostra claro a partir da seguinte fala do garoto
proferida quando questionado sobre relacionamentos amorosos mantidos fora da esfera
transitória:
Eu tenho namorada sim. [...] amo ela e tal, cara, e a nossa vida sexual é ativa
até demais, diferente dos outros né? Assim... que geralmente tem namorada
só pra mostrar, mas nem fazem sexo com elas, ou fazem muito pouco...
porque são gay mesmo, entende? (Artur Castro, 22 anos).
As relações sexuais mantidas com outros homens, ainda que se deem tão somente no
âmbito profissional, configuram-se como práticas homoeróticas, dadas na grande maioria dos
casos em absoluto segredo. Porém, nesses casos, Artur Castro afirma que o desejo dito
ausente em razão de sua heterossexualidade pode ser substituído por técnicas de excitação,
como, por exemplo, ver a um filme pornô na televisão do quarto do motel, além do esforço
mental em se concentrar no que realmente sentiria desejo.
Em contrapartida, a relação com o cliente deve ser entremeada de cuidados específicos
para que os limites do envolvimento sejam bem traçados. Uma afetividade nascida no garoto
por qualquer cliente parece diminuir o sujeito, diminuir a masculinidade e principalmente
colocar em risco a preservação de si.
Sobre a afetividade em relações homossexuais, Miskolci diz que
O autor se refere a relações entre homens que buscam parceiros sexuais através da
internet, que funciona muitas vezes como o catalizador de uma primeira experiência
homossexual. A ideia é perfeitamente aplicável ao contexto da prostituição masculina, já que,
além da fuga do estigma da homossexualidade, eles fogem igualmente de um laço afetivo com
um cliente, já que isso faria com que a sua condição de garoto de programa estivesse de certo
modo fixada quando se trata na verdade de um laço superficial que deve ser rompido logo que
o programa finalize além de colocar em risco a condição de segredo buscada pelos mesmos.
Desse modo, é mais comum ver os rapazess se gabarem de clientes haverem se
apaixonado por eles. O relato de Renato sobre a afetividade na esfera transitória deixa claro o
modo como o ato de se apaixonar ou ser objeto de uma paixão pode colocar em risco todo o
sigilo construído e prezado pelos rapazes e representar da mesma forma um risco para a
própria vida. Disse ele:
Rapaz, isso dá um rolo que tu nem queira saber. Eu nem faço com uma
pessoa mais de duas vezes já pra evitar essa palhaçada. As vezes evito até de
comer viado quando eu vejo que é muito carente[...]. Por isso também que eu
prefiro mulher. Mulher tem mais cabeça. Um conhecido meu começou nessa
de fazer programa pra fazer uma grana, mas eu sempre soube que ele fazia
só porque era gay e era muito carente, ele, tanto que ele só fazia com
homem. Daí ele saiu com um coroa, pai de família e tudo, e como ele era
carente demais, acabou se envolvendo, se apaixonando, né? Isso é foda. Ele
ficava ligando pro cara, queria seguir o cara, até ameaçar de contar pra
esposa dele, aquele doido ameaçou, tá entendendo? Depois ele que recebeu
ameaça e teve que parar. (Renato)
Eu tenho medo disso porque só o que acontece é morte por causa disso[...].
Os viado se apaixona, tem uns que inventa de fazer programa mas só quer
ser sustentado pelas bicha, daí de repente amanhece morto ou então mata a
bicha. É só o que acontece. Eu num sou desse tipo não, graças a deus, sou
uma pessoa boa. Mas a gente tem que evitar pra não dar treta[...]. É, eu
recuso sempre que vejo que a coisa vai pra esse lado aí. Eu tenho família,
saca? Tenho irmão pequeno, tem minha mãe, meu pai, eles não merecem um
fracasso desse não. (Eduardo).
se tem em mente que o surgimento do afeto aumenta as chances de ser identificado por se
tratar de um envolvimento pessoal, contrário do buscado em uma experiência com ares de
profissionalismo.
Ainda dentro desse contexto, outro fator, em combinação com a prática sexual tida
com a namorada na esfera pública, protege mais uma vez a heterossexualidade: o papel do
dinheiro como intermediador e foco de interesse na relação.
Desse modo, a troca do sexo por dinheiro, no caso da prostituição viril, pode ser vista
como mais um artifício para se assegurar a heterossexualidade do michê em um âmbito onde a
mesma seria contestada e colocada em risco. Nesse sentido, é comum a afirmação do tipo
“faço programa pelo dinheiro” justificar a prática sexual com outros homens.
Há relatos nos quais os michês se classificam como heterossexual, apesar de não
possuírem namorada e fazerem programas apenas com homens. Mas nessas situações, a
posição de ativo no programa afirma a postura de macho, assegurando a honra em certa
medida. Situação oposta acontece com os michês que desempenham o papel de passivo no
programa e que sentem prazer em tal prática, sendo vistos pelos outros como alguém que
deseja viver a sua legítima sexualidade, porém sem a coragem para fazê-lo sem que a
presença do elemento dinheiro assegure para si mesmos a sua heterossexualidade.
A oposição feita entre ativo e passivo indica as partes do corpo estimuladas e
exploradas durante o ato sexual. O ativo tem no pênis o foco de seu desejo, enquanto o
passivo teria o ânus explorado sexualmente. Sobre as partes do corpo sexuadas e indicativas
de prazer estimulado ou dissimulado, Butler (2015), diz que
uma das estratégias relatada por Jales é afirmar ao cliente que não existe uma regularidade em
assumir tal papel, porém pode haver a possibilidade de se abrir uma exceção em troca de um
dinheiro a mais.
Assim, a verdade fabricada em discurso da qual a autora fala pode estar repleta de
desencontros em si mesma, uma vez que o indivíduo pode não estar a todo o tempo coerente
com as verdades produzidas ou com uma performance de gênero específica. Ainda para a
autora,
vistos conversando juntos, sempre afastados de todos, teria uma conotação homossexual,
impressão que só seria quebrada ao se invocar uma imagem contrária para si. Assim, os
nossos diálogos tinham sempre dois direcionamentos: criar a ilusão de coerência com a
heterossexualidade para mim e para as pessoas à nossa volta, num exercício constante de
manipulação de segredos e fachadas.
O que quero dizer é que tanto os segredos quanto as fachadas utilizadas por Jales e os
outros garotos de programa com quem tive contato, na realidade, fazem parte da ilusão da
heterossexualidade que se trata de uma grande performance em que se busca manter uma
imagem aceitável perante si mesmo e a sociedade como um todo, mesmo essa ilusão estando
apoiada numa frágil estrutura de elementos de significados simbólicos. Assim é que se busca
regular a própria sexualidade para que esta se adapte aparentemente à matriz heteronormativa,
como num esforço de se tentar demonstrar que há uma natureza sexual correta, porque dentro
da norma, que nasceu com ele.
Falo de uma grande performance, pois se trata não apenas de um momento específico
da vida em que se a exercita, ou muito menos que ela seja posta em prática seguindo apenas
uma forma, como uma performance unitária e constante no indivíduo. Pelo contrário, os
garotos se veem em situações em que trocam de fachadas constantemente, assumindo papeis e
direcionamentos diferentes em uma mesma interação para protegerem seus segredos e
escaparem do estigma da homossexualidade e da prostituição. É nesse sentido que o segredo e
a fachada fazem parte dessa grande performance que é ser um garoto de programa.
O caminho percorrido ao longo de todo este trabalho foi para afirmar, ao final, que
para se falar de sexualidade entre garotos de programa, pessoas para quem a sexualidade é tão
incoerente quanto as próprias experiências mantidas no cotidiano, é preciso levar em
consideração vários aspectos que ultrapassam a simplória abordagem de enxergar tão somente
as práticas sexuais em uma dimensão da vida pública ou privada.
Existem, para além disso, outros aspectos como o segredo e a utilização de fachadas
na lida com a própria sexualidade e a sua vivência como algo incoerente. Além disso, a
situação social na qual se encontram os sujeitos também irão conflitar as noções da própria
sexualidade a partir do momento em que um garoto que se diga heterossexual, mas que, por
necessidade financeira, veja-se coagido a transar com outro homem em troca de dinheiro,
alimento ou roupas.
Tendo tudo isso em vista, pode-se dizer que, concordando com o que Butler (2015)
nos diz a respeito de gênero e sexualidades, não existe no indivíduo uma sexualidade linear,
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perfeitamente coerente e imutável, mas uma performatividade que pode variar e ganhar
contornos diversos no âmbito da experiência. Falamos então de sexualidades, assim no plural,
como as possibilidades existentes de se experienciar, performatizando, uma ou outra
sexualidade daquelas padronizadas que a sociedade nos coloca como alternativas inteligíveis a
partir da matriz heteronormativa, sejam aceitáveis ou não.
Tudo isso, a título de hipótese, parece sugerir uma falta de necessidade de
categorização em uma ou outra identidade de gênero ou sexualidade, haja vista a
possibilidade de que aquilo que é perdido em uma dimensão da vida pode ser recuperado em
outra esfera e vice-versa. Como disse Perlongher (2008, p.199), “ainda que a dificuldade de
estabelecer uma identidade do prostituto viril seja bem reconhecida, fica a dúvida sobre o
sentido da tentativa”.
Resta-me, diante desta afirmativa, dizer que os sujeitos com quem mantive contato
durante minhas idas à campo, não costumavam refletir diretamente sobre suas sexualidades e
categorizações, mas muito mais sobre as consequências de se deixar ser visto como
homossexual ou garoto de programa. Era este o ponto crucial a ser pensado por eles mesmos
em cada momento de desconstrução e desafio à matriz heteronormativa. Assim, o sentido de
se buscar estabelecer uma identidade do prostituto viril parece não haver, haja vista que o
sentido de se prostituir não reside apenas em um ato prostitutivo, mas na necessidade de se
conseguir ser algo maior do que se é e além do que, para que se consiga prosseguir vivendo,
deverá ser destruído.
Aliás, a futura aniquilação das experiências passadas é um traço característico da
esfera de experiências da vida transitória. Todos os rapazes com quem conversei sustentaram
em suas falas a promessa de que tudo o que envolvia a prostituição em suas vidas era
passageiro e que um dia tudo seria esquecido, deixado de lado de forma definitiva para
cumprir finalmente o destino da esfera transitória. Porém, esse futuro talvez possa demorar a
chegar em alguns casos.
Uma situação que verifiquei quando a escrita desta dissertação já parecia finalizada me
fez refletir sobre tudo o que já havia escrito, mas principalmente sobre a promessa de deixar
de lado o que não é encarado pelos garotos como profissão, mas uma prática não muito gentil,
uma forma de ganhar dinheiro que pode implicar em perdas às vezes irreparáveis; fez-me
pensar a condição humana, no estarmos sujeitos à negarmos a nós mesmos em virtude de algo
que não faz parte de nós, mas que está tão dentro de nosso ser que molda o que somos e o que
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exibimos aos outros; essa parcela do social que nos preenche, nos forma, mas que pode nos
prejudicar ao mesmo tempo.
No dia 08 de Julho de 2017 recebi um aviso por intermédio de um amigo em comum
de que Jales estava bêbado, sem camisa, deitado na calçada de uma loja de carros localizada
ao lado de uma ponte na Avenida Presidente Dutra. Já era noite, passava das 20:30 e eu decidi
ir até ele saber o que houvera acontecido. Chegando lá, eu desci do carro e me aproximei um
tanto receoso, pois as pessoas que passavam na rua me observavam curiosas.
Jales estava de pé, tinha os olhos vermelhos, andava de um lado a outro. Ao chegar
mais perto, senti que ele cheirava a álcool e urina. Seu olhar vago pareceu não me reconhecer
quando me aproximei e tentei conversar. Ele se limitou a um breve aceno de mão como se
pedisse para que eu parasse onde estava e foi embora caminhando pela ponte ao lado,
indicando assim que não tinha mais nada a me dizer.
110
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo das sexualidades se mostra complexo por envolver muitas questões que
combinadas ou descontinuadas poderão delinear aquilo que é extremamente subjetivo,
volúvel, e, de certo modo, indefinível. Aventurar-me nessas discussões a partir de autores que
admirava ou aprendi a admirar me fez pensar, a partir dos relatos dos entrevistados, a minha
condição de pesquisador, costumeiramente sempre tão intocável, distante de seu objeto de
pesquisa como se os dois fossem de naturezas completamente diversas. Mas a fragilidade
humana é comum a todos nós em uma mesma medida.
Não foi a minha intenção, como foi para Loïc Wacquant (2002, p.07), “partir do
próprio corpo como instrumento de investigação”, embora o corpo tenha sido constantemente
retomado como foco de análise, direta ou indiretamente. Ao mesmo tempo, o meu corpo
esteve presente em campo como um fator que chegou a possibilitar a realização de entrevistas,
pois os garotos, sem disfarçar, diziam gostar de conversar comigo por me acharem “bonito”,
sendo eu, para eles, “desejável”. Exemplo disso foi quando, ao mostrar o meu rosto por meio
de webcam na sala de bate-papo, tanto Eduardo quanto Renato, dispuseram-se a conversar
demoradamente, envoltos em uma tensão da certeza de que o contato iria se desfazer a
qualquer momento, como acontece com eles quando se relacionam com os clientes na esfera
de experiências de vida transitória.
A percepção desta terceira esfera, independente da dualidade público/privado, é fruto
da percepção de que ela está além da esfera privada, porquanto os elementos e os sentidos que
as compõem sejam divergentes. Uma outra característica marcante dessa terceira dimensão, é
o fato de que ela está fadada à aniquilação, ao esquecimento, à inexistência, como uma
aparente condição para que os projetos pessoais dos garotos para o futuro possam dar certo.
Outro ponto chave percebido a partir das observações em campo, é que a fachada e a
performatividade se confundem ao passo em que uma coisa faz parte da outra e ganham
sentido em um mesmo processo de atuação ou representação do eu na vida social. Desse
modo se tornou evidente que, melhor que enquadrar os sujeitos em modelos de identidades
sexuais, foi encarar as sexualidades como situacionais, como um traço de uma
performatividade a ser desenvolvida em certos momentos da vida no interior da esfera
transitória.
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Assim, as percepções que os michês têm de suas sexualidades podem variar numa
frequência e rapidez estonteante. É sensato, portanto, considerar que as práticas corporais são
condicionadas pelas noções de masculinidades e que o desempenho do garoto no programa
não define ou enquadra a percepção de si e as suas sexualidades em uma ou outra categoria de
forma definitiva, mas transitória como é toda a esfera.
Em vários momentos, tanto no mundo concreto quando adentrei as esferas de
experiências transitórias da vida dos garotos, quanto no mundo virtual, eu, como pesquisador,
também me utilizei de fachadas semelhantes às utilizadas pelos michês, como a criação de
identificações meramente fictícias nas salas de bate papo do portal UOL. Nesses momentos,
eu sentia o que talvez se assemelhasse ao que os rapazes entrevistados disseram sentir: o
receio de ser descoberto e, por não saberem exatamente a situação que nos impulsionou a
adentrar nesses espaços – eu teria que explicar a cada um a minha pesquisa, algo inviável -,
julgarem-nos mal.
Mas era nesse contato que eu tive a impressão de estar oferecendo aos garotos tidos
como anormais, uma vez que os mesmos não se mostraram coerentes em si mesmos nem com
as próprias identificações, parecerem normais, ao ouvir os seus relatos, tornando-os
inteligíveis, já que nos discursos direcionados à mim, as esferas da vida se uniam em uma
única história de vida, linear, continuada, mesmo com todos os percalços do caminho. Ao
mesmo tempo, em um movimento oposto, estive fornecendo espaço para eles reafirmarem o
seu caráter de anormalidade ao pedi-los, por exemplo, um nome fictício, deixando-os assim
confinados em sua incoerência, para agora, no final de tudo, largá-los para darem
prosseguimento às suas múltiplas fachadas, experiências, sexualidades e projetos para o futuro
que, como um traço geral, é unicamente largar aquilo que os caracteriza por ora.
O que se vive na esfera das experiências transitórias da vida será descartado aos
poucos até que o que ali se é seja mais que dissimulado, seja apagado, esquecido e, em alguns
casos, superado, em nome de uma adaptação ao estilo de vida esperado socialmente.
Agora eu penso em uma fala de Jales que ficou em minha mente e que eu gostaria de
utilizá-la para finalizar esta dissertação por diversos motivos: Jales foi o garoto com quem
mais tive contato durante a pesquisa, o que me fez ficar acordado várias noites tomado por um
sentimento de piedade, pensando em sua saúde e em seu bem estar, o que me fez sentir que
havia uma ligação real entre eu e o campo de pesquisa; eu e os sujeitos pesquisados. Jales foi
o que precisou depositar mais confiança em mim para poder contar os seus segredos, tendo
em vista a gravidade de sua situação – a sua condição de garoto de programa e de
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soropositivo. Ele é o garoto que, apesar de haver sido o que me confidenciou mais segredos
de sua vida e eu ser seu amigo e continuarei o encontrando após o término deste trabalho, eu
não sei se posso dizer que realmente o conheço. Quando questionado sobre a possibilidade de
um dia ele deixar a prática da prostituição completamente de lado e esquecer tudo para
recomeçar uma nova vida, ele disse com o olhar vago e uma nota de tristeza em sua voz: “Eu
não sei. Eu estou tentando, fazendo faculdade e tal, mas isso é uma coisa que fica na gente, no
nosso sangue, entendeu?”.
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