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Revista de Filosofia

Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

ISSN 0104-8694

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007.


Princípios – Revista de Filosofia ISSN 0104-8694
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Princípios, UFRN, CCHLA


v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, Natal (RN)
EDUFRN – Editora da UFRN, 2007.
Revista semestral
1. Filosofia. – Periódicos
ISSN 0104-8694
RN/UF/BCZM CDU 1 (06)
Revista de Filosofia
v. 14, n. 21, jan./jun. 2007
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

SUMÁRIO

ARTIGOS
Poder, autoridade e tradição 05
José N. Heck

A teoria óptica de Hobbes 39


Cláudio R. C. Leivas

Jonh Locke e o realismo científico 55


Marcos Rodrigues da Silva

Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética


ambiental 67
Darlei Dall’Agnol

Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 83


Inês Lacerda Araújo

Racionalidade e natureza humana


na visão da epistemologia evolutiva 105
José Claudio Morelli Matos

Crença no mundo exterior:


um diálogo entre Hume e Berkeley 125
Andrea Cachel

A excelência moral e as origens da ética grega 147


David de Souza

Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 175


Dennys Garcia Xavier

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007.


A poesia grega como paidéia 195
Jovelina Maria Ramos de Souza

A razão em Feuerbach como base


da unidade do homem e da natureza 215
Eduardo Ferreira Chagas

TRADUÇÃO
Sobre os diferentes métodos de traduzir,
de Friedrich E. D. Schleiermacher 233
Tradução de Celso Braida

RESENHAS
Rhetorical argumentation, de C.Tindale 267
Jorge Alberto Molina

Introdução à retórica, de Olivier Reboul 277


Glenn W. Erickson

Ética: questões de fundamentação,


de Adriano Naves de Brito (Org.). 282
Ivanaldo Santos

Logos & poesis: neoplatonismo e literatura,


de Sandra Erickson e Glenn W. Erickson 289
Pablo Capistrano

The Salt Companion to Harold Bloom,


de Roy Sellars e Graham Allen 294
Sandra S. F. Erickson

A caminho do silêncio: a filosofia de Escoto Eriúgena,


de Oscar Federico Bauchwitz 303
Soraya Guimarães da Silva

A linha dividida: uma abordagem matemática


à filosofia platônica, de Glenn W. Erickson e John A. Fossa 307
Jorge dos Santos Lima

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007.


Poder, autoridade e tradição

José N. Heck *

Resumo: O artigo inicia com o enfoque do absolutismo hobbesiano à luz da


doutrina tradicional do direito natural. A seguir expõe a complexa relação de
Hobbes com a democracia e a noção hobbesiana de representação política. Depois
de reconstruir algumas das objeções básicas de Hobbes ao pensamento político
clássico, o texto procura mostrar que o filósofo inglês opera, em relação a
Aristóteles, com um conceito relativamente inalterado de natureza. Objetivo maior
do trabalho é configurar o Estado como produto genuíno do desempenho intelectual
do teórico político inglês.
Palavras-chave: Autoridade, Estado, Filosofia política, Hobbes, Representação

Abstract: The article starts focusing on Hobbes' absolutism under the scope of the
traditional doctrine of natural right. Then exposes the complex relation between
Hobbes and democracy and his notion of political representation. After
reconstructing some of Hobbes' basic objections to classical political thought, the
text tries to show that the English philosopher works, with respect to Aristotle, with
a relatively unaltered concept of nature. The major objective of the paper is to
configure the State as a genuine product of the intellectual performance of the
English political theoretician.
Keywords: Authority, Hobbes, Political Philosophy, Representation, State

Introdução
Comparada ao dinamismo conceitual do espírito objetivo hegeliano,
que acolhe o jusnaturalismo no universo ético estatal, a positivação
das leis naturais é feita por Hobbes de forma seletiva e com uma
semântica inventiva. Do acervo das leis naturais o teórico político
inglês assume, no catálogo das tarefas estatais, o estabelecimento da
paz interna, o embrião de um sistema jurídico e a garantia da
coexistência pacífica.

*
Professor do Departamento de Filosofia da UFG/UCG. E-mail:
heck@pesquisador.cnpq.br. Artigo recebido em 13.08.2007 e aprovado em
17.10.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 05-38.


6 José N. Heck

O mandatário hobbesiano exerce o poder político voltado


para uma única finalidade – a segurança. “O cargo do soberano...”,
escreve Hobbes, “consiste no objetivo para o qual lhe foi confiado o
soberano poder, nomeadamente a obtenção da segurança do povo” 1 .
Tal objetivo primordial, Hobbes não o ancora sobre o contrato, mas
o fundamenta à maneira jusnaturalista, ao explicitar que a esse o
soberano “está obrigado pela lei de natureza e do qual tem de prestar
contas a Deus, o autor dessa lei, e a mais ninguém além dele” 2 . A
passagem ilustra o caráter refratário do absolutismo político de
tradição hobbesiana. Por um lado, o primeiro e último objetivo da
soberania apenas indiretamente tem a ver com uma fundamentação
contratualista, prescrito que é por lei natural, mais exatamente por
Deus, o autor das leis da natureza. Por outro lado, o absolutismo
leviatânico não tem apenas caráter jurídico, mas está precipuamente
a serviço do bem-estar dos subordinados ao mando político, à moda
da tradição da filosofia política de proveniência aristotélica. “Por
segurança”, esclarece Hobbes, “não entendemos aqui uma simples
preservação, mas também todas as outras comodidades da vida, que
todo homem, por uma indústria legítima, sem perigo ou
inconveniente do Estado, adquire para si próprio” 3 .

Absolutismo e direito natural


Em torno do absolutismo político giram, desde Locke, as
controvérsias acerca do espólio filosófico da obra de Hobbes.
Confrontado com a doutrina hobbesiana da soberania suprema e
ilimitada, Locke propõe que se considere “que tipo de paz seria esta
no mundo, que consiste apenas em violência e rapinagem, a ser

1
Leviathan II, 30, p. 231. “The Office of Soveraign, (be it a Monarch, or an
Assembly,) consisteth in the end, for which he was trusted with the Soveraign
Power, namely the procuration of the safety of the people ...”; versão portuguesa,
p. 204.
2
Ibidem. “... to which he is obliged by the Law of Nature, and to render an account
thereof to God, the Author of that Law, and to none but him”.
3
Ibidem. “But by Safety here, is not meant a bare Preservation, but also all other
Contentments of life, which every man by lawfull Industry, without danger, or
hurt to the Common-wealth, shall acquire to himselfe”.
Poder, autoridade e tradição 7

mantida apenas para benefício de ladrões e opressores” 4 . Tal estado


de paz entre fortes e fracos, induzindo o “cordeiro a oferecer, sem
resistência, a garganta para ser rasgada pelo lobo imperioso”, é tão
admirável quanto o covil homérico de Polifemo 5 . Para Locke, a
situação de homens honestos e inocentes, chamados a ceder a tudo
em nome da paz, são iguais a Ulisses e companheiros, sem
alternativa senão a de submeterem-se pacificamente para serem
devorados. “E sem dúvida”, avalia Locke, “Ulisses pregava a
obediência passiva ..., mostrando-lhes quanta importância tinha a
paz para a humanidade, e que inconvenientes poderiam advir caso
resistissem a Polifemo, que então tinha poder sobre eles” 6 .
Voltado contra Hobbes, Kant escreve, por sua vez, que,
“considerada em sua generalidade, a afirmação” em De cive VII, 14,
de que o chefe de Estado não pode cometer injustiça contra o
cidadão, “é terrível” 7 . Enquanto a posição liberal-crítica lockiana
incide diretamente sobre a tese hobbesiana do contrato de
desistência, pelo qual os cidadãos desistem de se opor às ações do
soberano, a crítica do liberalismo exigente kantiano afeta sobremodo
a concepção filosófica do contrato originário hobbesiano. Para
Locke, o direito à resistência é inextinguível e consiste, em oposição
a Hobbes, “no poder do povo de prover novamente à própria
segurança por meio de um novo legislativo, quando seus

4
Locke. Two Treatises of Government II, 228. Ed. by P. Laslett. Cambridge:
University Press, 1994, p. 417. “... I desire it may be consider’d, what a kind of
Peace there will be in the World, which consists only in Violence and Rapine; and
which is to be maintain’d only for the benefit of Robbers and Oppressors”; versão
portuguesa, p. 586.
5
Ibidem. “... when the Lamb, without resistance, yielded hisThroat to be torn by the
imperious Wolf? Polyphemus’s Den gives us a perfect Pattern of such a Peace ”.
6
Ibidem. “And no doubt Ulysses ... preach’d up Passive Obedience ..., by
representing to them of what concernment Peace was to Mankind; and by shewing
the inconveniencies might happen, if they should offer to resist Polyphemus, who
had now the power over them”.
7
Kant, Immanuel. Vom Verhältnis der Theorie zur Praxis im Staatsrecht (gegen
Hobbes). Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt
aber nicht für die Praxis. Hrsg. von H. Klemme. Hamburg: Meiner, 1992; versão
portuguesa, p. 90.
8 José N. Heck

legisladores agirem contrariamente ao encargo a eles confiado,


violando a propriedade alheia” 8 . Kant acentua, contra Hobbes, a
diferença essencial existente entre acordos sociais, por meio dos
quais homens se dão as mãos uns aos outros para executarem um
fim determinado, e um contrato constituinte, de caráter fundador e
unificador, pelo qual seres humanos se associam para alcançar um
fim que a todos cabe por direito e cada um tem o dever de realizar 9 .
Quando não é avaliada exclusivamente pelo visor
contratualista, a doutrina hobbesiana da soberania ostenta traços
eminentemente jurídicos, característicos do aforismo sed authoritas,
non veritas, facit legem 10 e que, de maneira menos retórica,
encontram-se embutidos na definição hobbesiana de lei positiva: “E,
em primeiro lugar”, enuncia Hobbes, “é evidente que a lei, em geral,
não é um conselho, mas um comando” 11 . Uma vez sob a óptica
juspositivista, o absolutismo hobbesiano mostra a configuração de
uma teoria imperativa de direito.
À semelhança do teórico político inglês, J. Austin distingue
leis impostas por Deus de leis dadas pelos homens. Estas são
divididas entre leis não políticas, de foro privado, e leis políticas de
caráter genérico-abstrato. Somente as últimas pertencem aos
domínios do direito e mapeiam a province of jurisprudence, ao
passo que as leis de Deus e as leis humanas, de cunho não político e
relativas à vida privada, compõem o domínio das convicções e
crenças, próprias ao universo da moral e dos bons costumes. A
teoria austiniana das leis é imperativa porque explicita a lei em geral

8
Locke. Op. cit. II, 226, p. 415. “That this Doctrine of Power in the People of
providing for their Safety a-new by a new Legislative, when their Legislators have
acted contrary to their trust, by invading their Property”; versão portuguesa, p.
584.
9
Kant. Op. cit., p. 20; versão portuguesa, p. 73-74.
10
Höffe, Otfried. “Sed authoritas, non veritas, facit legem”. Zum Kapitel 26 des
Leviathan. In: Kersting, Wolfgang Hrsg.). Thomas Hobbes – Leviathan oder Stoff,
Form und Gewalt eines bürgerlichen und kirchlichen Staates. Berlin: Akademie
Verlag, 1996, p. 235-257 (Klassiker Auslegen, Bd. 5).
11
Leviathan II, 26, p. 183. “And first it is manifest, that Law in generall, is not
Counsell, but Command”; versão portuguesa, p. 165.
Poder, autoridade e tradição 9

como ordem e as normas jurídicas como mandados, ou seja, não há


comando sem alguém que ordena e tampouco há quem ordene sem
visar a obter de outrem um comportamento intencionalmente
desejado. Para Austin, “um comando distingue-se de outras
significações do desejo não pelo estilo no qual o desejo está vazado,
mas pelo poder e o propósito da parte que ordena para cominar uma
pena ou um castigo no caso em que o desejo for descumprido” 12 .
Enquanto ordem, o comando perfaz um uso diretivo da linguagem –
e não constitui mera externação de desejos – e é passível de
execução, ameaçando o destinatário infrator com um desprazer
dosado de acordo com as circunstâncias. Caracterizados pela
superioridade do emissor 13 , aos comandos é coexistente, segundo
Austin, o “poder de infligir a outrem danos ou perdas e forçá-los,
pelo temor ante esses males, a adequarem sua conduta a nossos
desejos” 14 .
Cotejado com a teoria imperativo-sancionadora de Austin, o
absolutismo estatal hobbesiano perde a aura despótico-tirânica. O
teórico político inglês não considera vinculante a lei positiva pelo
fato de que sua observância pode ser forçada pelo emissor do
comando legal. O poder vinculante do direito positivo não chega a
ser, em Hobbes, uma função de exeqüibilidade das leis estatais.
Diferentemente do que ocorre com a doutrina imperativa do uso
diretivo da linguagem, de linhagem austiniana, a teoria hobbesiana
do poder supremo e ilimitado do soberano político está ancorada
sobre a concessão de poderes e a especificação de competências. O
absolutismo político de Hobbes se caracteriza pela distância
semântica entre a obrigatoriedade das leis estatais e a força

12
Austin, John. The province of jurisprudence determined. Ed. by W. Rumble.
Cambridge: University Press, 1995, p. 2. “A command is distinguished from other
significations of desire, not by the style in which the desire is signified, but by the
power and the purpose of the party commanding to inflict an evil or pain in case
the desire be disregarded ...”.
13
Ibidem, p. 29. “Laws and other commands are said to proceed from superiors,
and to bind or oblige inferiors”.
14
Ibidem, p. 30. “Power of affecting others with evil or pain, and of forcing them,
through fear of that evil, to fashion their conduct to one’s wishes”.
10 José N. Heck

necessária para sua execução. Às conseqüências juspositivistas da


soberania absoluta, de feição hobbesiana, antecede o esforço titânico
do teórico político inglês para lastrear o soberano com uma
consistente teoria de autoridade. A racionalidade contratualista
hobbesiana desqualifica, por um lado, a concepção da inerência
imperativa do ser das coisas e, por outro, denega a imperatividade
intrínseca das leis positivas divinas.
Possivelmente é Hegel quem melhor desentende o
absolutismo hobbesiano quando recompõe a liberdade jusnaturalista
do direito moderno com as noções substanciais da lei e da justiça 15 .
O espírito inovador do teórico político inglês situa-se num plano
programático subestimado pelo dialético. Hobbes contraria a
clássica relação entre homem e pólis, mas não a anula senão que a
recompõe. Na carta dedicatória ao De corpore, Hobbes se auto-
avalia como Galileu da philosophia civilis. A conjunção entre
matemática e física significa, para Hobbes, uma res novitia, graças a
Galileu que iniciou a aetas physicae (idade da física). Para o teórico
político inglês, mais recente do que a física é, porém, a filosofia
política. Na verdade, constata Hobbes, “ela não é mais velha do que
o livro que tenho escrito – Do cidadão” 16 . O caráter cientificista da
obra política de Hobbes tem menos a ver com uma suposta reação
dogmático-naturalista ao ceticismo da época do que com o abandono
da retórica humanista em torno da scientia civilis. Para compreender
a visão hobbesiana da filosofia civil, garante Skinner, “é preciso que
a vejamos como moldada, em grande parte, como alternativa a essas
ortodoxias humanistas vigentes, e como uma tentativa de substituí-
las por uma teoria da política pautada em premissas autenticamente
científicas” 17 .

15
Cf. Adam, Armin. Despotie der Vernunft. Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel.
Freiburg/München: Verlag K. Alber, 1999.
16
De corpore (Dedicatoria de 1655) “Sed philosophia civilis multo adhuc magis; ut
quae antiquior non sit ... libro quem De Cive ipse scripsi”; versão inglesa, p. 3.
17
Skinner. Reason and rhetoric in the philosophy of Hobbes. Cambridge:
University Press, 1996, p. 299. “To understand his own vision of civil philosophy,
we need to see it as framed in large part as an alternative to these prevailing
Poder, autoridade e tradição 11

O absolutismo hobbesiano se distingue do direito natural


abstrato pela sustentação contratual da instância política suprema, e
do positivismo jurídico pela teoria autorizadora do poder soberano.
Por um lado, não existem deveres no universo semântico do
jusnaturalista Hobbes. Toda obrigação é voluntária e auto-
referencial. Por outro lado, não são as regras do direito positivo que
autorizam o soberano a vincular a conduta dos cidadãos, mas sim o
experimento mental da vinculação contratualista.
As oscilações da ciência civil hobbesiana refletem o modo
peculiar como a doutrina política de Aristóteles troca de lugar ao
longo da trajetória intelectual do teórico político inglês. Quando
poder-se-ia supor que, devido às pretensões científico-inovadoras do
“Galileu político”, Aristóteles estivesse sendo contradito
frontalmente, Hobbes continua fazendo a corte ao Estagirita. À
época em que está convencido de que a nova ciência política
principia com o De cive, o autor encontra-se em companhia do
pensador grego, honrando a cidadania como princípio da
participação política e o governo democrático como expressão
fidedigna da clássica equivalência entre liberdade cidadã e
democracia popular. Hobbes está convencido de que liberdade não
tolera sujeição e, como esperança comum dos homens, manifesta-se
pela participação nos negócios do governo. E acrescenta: “(E) isto
não pode ser feito senão em um estado democrático popular” 18 . A
afirmação adquire relevância especial à luz da revisão feita por
Hobbes da Retórica do filósofo grego. No momento em que se auto-
intitula como mentor de uma nova ciência civil, Hobbes recua mais
uma vez ao pai do Ocidente e assegura: “E Aristóteles diz bem no
livro 6, capítulo 2, da sua Política: O fundamento ou a intenção
duma democracia é a liberdade; e confirma-o nestas palavras: de
fato, diz-se comumente que ninguém pode ter a liberdade

humanist orthodoxies, and as an attempt to replace them with a theory of politics


based on authentically scientific premises”; versão portuguesa, p. 402.
18
Elements II, 8, 3, p. 170. “And that can be no where but in the popular state, or
democracy”; versão portuguesa, p. 215.
12 José N. Heck

partilhada, a não ser numa democracia popular” 19 .


Aproximadamente dez anos depois, o equivalente em inglês ao
termo latino civis (cidadão) desaparece de sua obra e é substituído
pelo designativo subject (súdito).
À primeira vista, tal substituição sinaliza o caráter totalitário
da concepção político-estatal hobbesiana. Na verdade, ela perfaz a
quintessência da modernidade filosófica no teórico político inglês,
ou seja, o binômio súdito-Leviatã configura em Hobbes o que B.
Constant denomina “la liberté des modernes” 20 . Como súditos
incondicionalmente submissos ao Estado, os cidadãos hobbesianos
de outrora contam agora, como súditos, com o manto da obscurité, 21
sob o qual podem fruir livremente a privaticidade da vida,
protegidos não apenas das ingerências do soberano, mas livres
também dos olhares de seus semelhantes. As chamadas liberdades
negativas hobbesianas não equivalem nem a direitos fundamentais
defensivos, embutidos nas constituições liberais, nem se identificam
com a liberdade restritiva do liberalismo anti-hobbesiano de índole
lockiana. Nada mais estranho a Hobbes do que a idéia segundo a
qual os súditos dever-se-iam poder defender-se contra a suposta
excessiva presença do Estado em suas vidas. Ao contrário, a
obediência absoluta os súditos não devem ao Estado, mas uns aos
outros entre si.
Um Estado incapaz de garantir a convivência pacífica
desobriga automaticamente seus súditos do compromisso da
obediência 22 . O contratualismo hobbesiano não visa a habilitar os
homens a participarem da atuação do Estado e, muito menos,
objetiva submeter a vida privada à vontade geral da coletividade. O
contrato político hobbesiano assegura ao indivíduo a busca
constante da satisfação, o usufruto dos prazeres e as benesses da
prosperidade, à revelia de qualquer existência virtuosa, de extração
19
Ibidem.
20
Constant, Benjamin. De la liberté des Anciens, comparée à celles des Modernes.
In: Gauchet, Marcel (ed.) De la liberté chez les modernes. Paris: Pleîade, 1980, p.
509.
21
Ibidem, p. 421.
22
Leviathan II, 21, p. 153; versão portuguesa, p. 139.
Poder, autoridade e tradição 13

aristotélica, por parte dos subordinados. Comparada à liberdade dos


antigos – toda ela voltada para a participação na vida pública – a
liberdade civil hobbesiana se caracteriza pela indiferença dos súditos
perante o Estado, correspondida por parte do Leviatã pelo silêncio
das leis 23 . O minimalismo rigorosamente absolutista tem por aliado,
em Hobbes, o mais permissivo liberalismo dos tempos modernos e
faz do teórico político inglês o belzebu da Modernidade. 24

Democracia e contrato de autorização


A substituição do cidadão pelo súdito, no Leviatã, corre paralela à
mais incisiva crítica da doutrina política de Aristóteles. Depois de
observar que a questão acerca do melhor homem não pode ser
decidida no estado de natureza e constatar que a desigualdade
existente entre os homens resulta da introdução das leis civis, o
teórico político inglês escreve:

Bem sei que Aristóteles, no livro primeiro de sua Política, como


fundamento de sua doutrina, afirma que por natureza alguns homens têm
mais capacidade para mandar, querendo com isso referir-se aos mais
sábios (entre os quais se incluía a si próprio, devido a sua filosofia), e
outros têm mais a capacidade parar servir (referindo-se com isso aos que
tinham corpos fortes, mas não eram filósofos como ele) 25 .

Hobbes insiste que constitui um atentato à razão e é


contrário à experiência admitir que o senhor e o servo tenham algo a
ver com os diferentes graus de inteligência, “pois poucos há tão
insensatos que não prefiram governar-se a si mesmos a ser

23
Leviathan II, 21, p. 152. “As for other Liberties, they depend on the Silence of
the Law. In cases where the Soveraign has prescribed no rule, there the Subject
hath the Liberty to do, or forbeare, according to his own discretion”; versão
portuguesa, p. 138.
24
Tuck, Richard. Hobbes. Oxford: University Press, 1989, p. 141-147.
25
Leviathan I, 16, p. 107. “I know that Aristotle in the first booke of his Politiques,
for a foundation of his doctrine, maketh men by Nature, some more worthy to
Command, meaning the wiser sort (such as he thought himselfe to be for his
Philosophy;) others to Serve, (meaning those that had strong bodies, but were not
Philosophers as he;)”; versão portuguesa, p. 95.
14 José N. Heck

governados por outros” 26 . Sustentada pelo status naturalis da


humanidade, a afirmação é tão pouco empírica quanto o estado de
natureza hobbesiano é historicamente localizável. Como pedra
angular e premissa maior da concepção moderna de Estado, a
igualdade natural dos seres humanos decide acerca da proximidade
e distância entre o filósofo político grego e o teórico político inglês.
A doutrina do estado natural impede que Hobbes identifique
a societas civilis como realidade social anterior a qualquer senhorio
político. Já nos Elementos, a comunidade política aparece como
uma criação do nada 27 , de modo que povo, cidadania e mando
político são concebidos como produtos simultâneos do engenho
contratual humano. À sombra de Aristóteles, a fundação hobbesiana
do estádio civil do homem coincide, inicialmente, com a
democracia. A multidão é transformada em povo e atua soberana
como poder constituinte 28 . Cronológica e logicamente anterior à
monarquia e à aristocracia, o contrato originário resulta sem
quaisquer mediações na forma democrática citadina. Hobbes
escreve: “A primeira destas três formas, na ordem do tempo, é a
democracia, e tem que ser assim por necessidade, pois a aristocracia
e a monarquia requerem a nomeação de pessoas sobre as quais se
esteja de acordo” 29 . A forma de governo aristocrática e monárquica
supõe, para Hobbes, a vontade soberana do povo, e nenhuma delas
tem prioridade sobre a democracia; pelo contrário, ambas devem
sua constituição a decisões majoritárias da assembléia popular
constituída em pessoa jurídica por vínculo contratual. “A
democracia gera”, afirma Hobbes, “a instituição duma monarquia

26
Ibidem. “For there are very few so foolish, that had not rather governe
themselves, than be governed by others”.
27
Elements II, 1,1, p. 108. “... there be two ways of erecting a body politic; one by
arbitrary institution of many men assembled together, which is like a creation out
of nothing by human wit”; versão portuguesa, p. 144.
28
Herb, Karlfriedrich. Bürgerliche Freiheit. Politische Philosophie von Hobbes bis
Constant. Freiburg/München: Verlag K. Alber, 1999, p. 94.
29
Elements II, 2,1, p. 118. “The first in order of time of these three sorts is
democracy, and it must be so of necessity, because an aristocracy and a monarchy,
require nomination of persons agreed upon”; versão portuguesa, p. 155.
Poder, autoridade e tradição 15

da mesma maneira que geraria a instituição da aristocracia, quer


dizer, por uma decisão do povo soberano de repassar a soberania a
um homem nomeado e aprovado pela pluralidade dos votos” 30 .
Ressalta à vista o senso rousseauniano de democracia nos
primórdios da ciência civil hobbesiana. Para o teórico político
inglês, o povo que não se tenha autodissolvido, ao escolher um rei
por toda vida, é sempre soberano “e o rei não é senão um ministro
que exerce esta inteira soberania” 31 , de modo que após a morte do
rei, o povo reunido não tem que constituir uma nova autoridade,
mas a antiga que tinham por fazer, “pois eles permaneceram o
soberano o tempo todo” 32 . E ainda mais, continua Hobbes, “mesmo
se, elegendo-se um rei por toda a vida, ... o povo pode não obstante,
se vê uma razão para o fazer, retirá-lo antes da hora”. Isso tudo é tão
verdadeiro, para Hobbes, porque “os cargos que implicam zelo e
muita atenção são repassados como fardos (onera) àqueles que os
ocupam, razão por que retirá-los não é injustiça senão favor” 33 . À
luz do experimento rousseauniano de consolidar o contrato social
como lei permanente da volonté générale, a percepção hobbesiana
do mecanismo democrático se confronta com a bifurcação política
que caracteriza o surgimento da Modernidade. Rousseau vê no
repasse da soberania popular a uma vontade particular o infanticídio
democrático, ao passo que Hobbes visualiza o futuro da soberania
na transferência da soberania popular a uma representação
governamental.

30
Ibidem II, 2, 9, p. 121-122. “Out of the same democracy, the institution of a
political monarch proceedeth in the same manner, as did the institution of the
aristocracy (viz.) by a decree of the sovereign people, to pass the sovereignity to
one man named, and approved by plurality of suffrage”; versão portuguesa, p.
158-159.
31
Ibidem. “... and the king a minister thereof only, but so, as to put the whole
sovereignity in execution”.
32
Ibidem. “For they were the sovereign all the time ...”.
33
Ibidem, p. 122-123. “And farther, though in the election of a king for his life ...
yet if they see cause, they may recall the same before the time ...; inasmuch as
offices that require labor und care, are understood to pass from him that giveth
them as onera, burthens, to them that have them; the recalling whereof are
therefore not injury, but favour”.
16 José N. Heck

Para ambos os autores é comum o pressuposto de que o


domínio democrático constitui-se necessariamente num poder não
representativo de todos, exercido direta e imediatamente por todos.
Enquanto Hobbes tem por referência as armações democrático-
citadinas da Antigüidade, Rousseau toma por objeto democrático o
contrato social pelo qual “‘cada um, unindo-se a todos, só obedece
contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.
Esse é o problema fundamental cuja solução o contrato social
oferece’” 34 .
A doutrina hobbesiana da soberania absoluta não descarta
em princípio a democracia como o pior regime e nem postula em
tese a monarquia como o melhor estado de governo. Para o
absolutista político Hobbes, o estado civil é a única premissa
inescusável para o exercício da soberania. Tal estado civil resulta de
um contrato de união da multidão, celebrado entre si pelos futuros
súditos, do qual um titular da soberania não pode logicamente fazer
parte, estabelecido que será pelo povo reunido em união civil. A
matriz democrática, lógica e cronologicamente atribuída por
Hobbes ao instante do pactum unionis, não predefine nenhuma das
três espécies de governo aventadas pelo teórico político inglês. As
razões aduzidas para preterir a democracia como forma institucional
de governo são de conveniência histórico-política.
Reportado às antigas cidades, Hobbes destaca como
inconveniente a distância que separa os indivíduos das assembléias
populares, o cansaço resultante da freqüência de reuniões, bem
como a negligência econômica para com as respectivas famílias,
advinda do estado mais ou menos permanente de deliberação
política. Hobbes argumenta: “Nas assembléias tão numerosas como
estas devem ser, onde cada um pode tomar parte como lhe agradar,
não há meios de deliberar e de aconselhar, a não ser por longos

34
Rousseau, Jean-J. Du contrat social; ou, principes du droit politique. In: Oeuvres
complètes III. Paris: Gallimard, 1964, p. 360; versão portuguesa, p. 38.
Poder, autoridade e tradição 17

discursos complicados, por meio dos quais cada um pode mais ou


menos esperar que incline e interesse a assembléia a seu favor” 35 .
Com base nessas observações pontuais, o absolutista
doutrinário generaliza o fato de que em todas as democracias, ainda
que o direito da soberania caiba à assembléia, “é sempre um homem
ou um pequeno número de particulares que fazem uso desse
direito”, de modo que “este homem ou este pequeno número de
homens devem necessariamente seduzir o conjunto”, com o
resultado de que “a democracia, na verdade, não é nada mais do que
uma aristocracia de oradores, interrompida vez por outra pela
monarquia temporária de um orador” 36 . Avançando de
inconveniência em inconveniência, o final da argumentação localiza
a forma democrática da soberania popular num beco sem saída, 37 o
que equivale a uma redução ao absurdo. No caso em que o povo,
reunido em união civil, faça de algum dos seus um rei, com a
intenção de preservar a sua soberania, é inutilmente que a preservou
– raciocina Hobbes – se o povo “não preserva o poder de reunir-se
em tempos e lugares comuns e escolhidos”, e conclui apodítico:
“[P]orque ninguém é obrigado a obedecer aos decretos e decisões
daqueles que se reúnem sem autoridade soberana” 38 .

35
Elements II, 2, 5, p. 120. “For in such great assemblies as those must be,
whereinto every man may enter at his pleasure, there is no means any ways to
deliberate and give counsel what to do, but by long and set orations; whereby to
every man there is more or less hope given, to incline and sway the assembly to
their own ends”; versão portuguesa, p. 157.
36
Ibidem, p. 120-121. “In a multitude of speakers therefore, where always, either
one is eminent alone, or a few being equal amongst themselves, are eminent above
the rest, that one or few must of necessity sway the whole; insomuch, that a
democracy, in effect, is no more than an aristocracy of orators, interrupted
somestimes with the temporary monarchy of one orator”; versão portuguesa, p,
157-158.
37
Cf. Maluschke, Günther. A soberania popular: enigma não-resolvido da
democracia. Philósophos. (Goiânia), v. 5, n. 1, 2000, p. 62-80.
38
Elements II, 2, 9, p. 123. “... the reservation of their sovereignty is of no effect,
inasmuch as no man is bound to stand to the decrees and determinations of those
that assemble themselves without the sovereign authority”; versão portuguesa, p.
159-160.
18 José N. Heck

A figura jurídica da autorização, Hobbes a usa pela primeira


vez no Leviatã, reportado ao cenário teatral. Assim como nos palcos
de teatro pessoas representam outras pessoas, no plano do direito
uma pessoa pode ser representada por outra. De acordo com
Hobbes, a primeira é chamada de pessoa física, a segunda de pessoa
artificial ou fictícia, de acordo com a atribuição que fazemos de
suas ações. À diferença do teatro, na esfera jurídica é necessário que
àquele, ao qual atribuimos palavras e ações de outrem, tenha antes
aceito que sejam consideradas como suas. Quando isso ocorre, o
primeiro constitui o representado, denominado também autor, e o
segundo é o representante, chamado também ator. “Quanto às
pessoas artificiais”, escreve Hobbes, em certos casos algumas de
suas palavras e ações pertencem àqueles a quem representam.
Nesses casos a pessoa é o ator, e aquele a quem pertencem suas
palavras e ações é o AUTOR, caso este em que o ator age por
autoridade” 39 . Em consonância com a terminologhia usada, Hobbes
equipara o direito de alguém às coisas com seu direito de ter
palavras e ações alheias para si. Hobbes argumenta: “Porque aquele
a quem pertencem bens e posses é chamado proprietário, em latim
Dominus, e em grego Kyrios; quando se trata de ações é chamado
autor. E tal como o direito de posse se chama domínio, assim
também o direito de fazer qualquer ação se chama autoridade” 40 .
Por autoridade Hobbes entende fazer qualquer coisa cujo direito de
fazer provém daquele a quem pertence o direito de fazê-la.
Vistos a partir do representante que age com autoridade, os
direitos do representado estão à disposição de ambos, da pessoa
artificial não menos do que da pessoa física. Tanto o autor do
direito quanto o ator de direito podem dispor dos direitos. Graças à

39
Leviathan I, 16, p. 112. “Of Persons Artificiall, some have their words and
actions Owned by those whom they represent. And then the Person is the Actor;
and he that owneth his words and actions, is the AUTHOR: In which case the
Actor acteth by Authority”; versão portuguesa, p. 100.
40
Ibidem. “For that which in speaking of goods and possessions, is called na
Owner, and in latine Dominus, in Greeke Ku/rioj speaking of Actions, is called
an Author. And as the Right of posssession, is called Dominion; so the Right of
doing any Action, is called AUTHORITY ...”.
Poder, autoridade e tradição 19

autorização, nem uma pessoa é substituída por outra e tampouco os


direitos às coisas de uma pessoa passam ipso facto a serem coisas
da outra pessoa. O que ocorre, estabelecida a representação, é que o
ator está em condição de dispor, em relação a terceiros, sobre os
direitos do autor de modo como antes da autorização somente ele o
fazia e, depois da autorização, o pode fazer lado a lado com o ator
que o representa com autoridade. Enquanto o representante não
dispõe sobre os bens a favor de terceiros, o representado continua
sendo o único titular desses direitos. A autorização não equivale,
para Hobbes, à renúncia de direitos ou ao estabelecimento do pátrio
poder por parte do ator. O teórico político inglês desconhece a
figura do autonegócio, vale dizer, não habilita o representante a
contrair uma obrigação para consigo mesmo com os direitos do
representado, mas está limitado ao poder de obrigá-lo perante
terceiros como autoridade de direito. Hobbes explicita:

De onde se segue que, quando o ator faz um pacto por autoridade, obriga
através disso o autor, e não menos do que se este mesmo o fizesse, nem
fica menos sujeito a todas as conseqüências do mesmo. Portanto tudo o
que ... se disse sobre a natureza dos pactos entre os homens em sua
capacidade natural, é válido também para os que são feitos por seus
atores, representantes ou procuradores, que possuem autoridade para tal
dentro dos limites de sua comissão, mas não além disso 41 .

A criação do Estado perfaz, no Leviatã, um contrato de


autorização dos chamados autores dos direitos em favor de um
homem ou assembléia de homens. Para Hobbes, a única maneira de
entender a unidade de uma multidão é graças à representação da
mesma constituída numa pessoa por aqueles que compõem a
multidão, “porque é a unidade do representante”, diz Hobbes, “e
não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja una” 42 .
Essa pessoa contém a essência do Estado, a qual Hobbes define
como sendo “uma pessoa de cujos atos uma grande multidão,

41
Ibidem.
42
Leviathan I, 16, p. 114. “For it is the Unity of the Representer, not the Unity of
the Represented, that maketh the Person One”; versão portuguesa, p. 102.
20 José N. Heck

mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por


cada um como autor ...” 43 .
Diferentemente do que acontece em textos anteriores, a
passagem do estado natural para o estado civil ocorre, no Leviatã,
exclusivamente pela constituição da autoridade com os recursos da
autorização, isto é, sem exigência à renúncia automática de direitos
por parte dos contratantes. O nome de Estado merece, segundo
Hobbes, a referência instituída por uma multidão de homens ao
concordarem e se unirem, cada um com cada um dos outros, que a
qualquer homem ou assembléia de homens “a quem seja atribuída
pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou
seja, de ser seu representante), todos sem exceção ... deverão
autorizar todos os atos e juízos desse homem ou assembléia de
homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões” 44 .
A constituição da autoridade estatal – via autorização
incondicional – não anula, esvazia ou suprassume por si só a
titularidade jusnaturalista dos contratantes como seres humanos
nascidos com direitos. Para o teórico político inglês, inexiste mundo
afora um Estado que tenha regulado todas as ações e palavras dos
homens. Tal empreendimento é, escreve Hobbes, “uma coisa
impossível, com a conseqüência de que em todas as espécies de
ações não previstas pelas leis, os homens têm a liberdade de fazer o
que as razões de cada um sugerirem como o mais favorável a seu
interesse” 45 . O teórico político inglês infere a situação de súditos
sob soberania absoluta da fórmula autorizadora que estabelece o
Estado, insistindo: “Novamente, o consentimento de um súdito ao

43
Ibidem II, 17, p. 121. “And in him consisteth the Essence of the Commonwealth;
which (to define it,) is One Person, of whose Acts a great Multitude, by mutuall
Covenants one with another, have made themselves every one the Author ...”;
versão portuguesa, p. 110.
44
Ibidem II, 18, p. 121. “... that to whatsoever Man, or Assembly of Men, shall be
given by the major part, the Right to Present the Person of them all (that is to say,
to be their Representative;) every one ... shall Authorise all the Actions and
Judgements, of that Man, or Assembly of men, in the same manner, as if they
were his own ...”; versão portuguesa, p. 111.
45
Ibidem II, 21, p. 147; versão portuguesa, p. 134.
Poder, autoridade e tradição 21

poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou assumo


como minhas, todas as suas ações, nas quais não há qualquer
espécie de restrição à sua antiga liberdade natural” 46 . Também a
obra póstuma, o Diálogo, atesta que o representado continua na
posse do mesmo poder cujo exercício, em seu nome e sob a sua
autoridade, confia ao representante, contrariamente àquele que, ao
transferir seu poder sobre algo a algum outro, fica privado desse
poder 47 .
Por mais relevantes que sejam as diferenças entre os dois
modelos da constituição estatal, ambos resultam na concepção
hobbesiana de soberania absoluta. No primeiro caso, os homens
renunciam entre si, pelo pacto de união, a favor de um terceiro ao
direito de resistência. Beneficiário dessa união civil é o soberano
não-partícipe do contrato de desistência, destinatário único que é da
soma de direitos liberados por todos e por cada um em relação aos
demais. O pactum unionis equivale a um pactum subjectionis, ou
seja, o futuro súdito somente poderá contar com direitos que lhe
forem devolvidos pelo Estado. Embora no segundo modelo o
soberano tampouco seja parceiro contratual e todas as suas ações
devam ser reconhecidas como próprias por cada um dos autores do
pacto, a autorização não implica a renúncia automática dos direitos
dos representados em favor do representante soberano. Por não
fazer parte do contrato, o representante-ator não pode, igual ao
soberano no primeiro modelo, praticar injustiça a qualquer um dos
súditos, mas isso não significa que a autorização do segundo
modelo torne sua autoridade mais absoluta do que ela é pela
renúncia incondicional em virtude da união civil primordial 48 .

46
Ibidem, p. 151; versão portuguesa, p. 137.
47
Dialogue, p. 52. “He that transferreth his power, hath deprived himself of it: but
he that committeth it to another to be exercised in his name and under him, is still
in the possession of the same power”; versão portuguesa, p. 65.
48
Cf. Gauthier, David. The logic of Leviathan. The moral and political theory of
Thomas Hobbes. Oxford: Clarendon Press, 1969, p. 125-127 e 149; Dix, Bruno.
Lebensgefährdung und Verpflichtung bei Hobbes. Würzburg: Königshausen &
Neumann, 1994, p. 35-40. Outra opinião: Hampton, Jean. Hobbes and the social
22 José N. Heck

Ambos os modelos não prevêem prazos ou contêm cláusulas de


rescisão e têm em comum a desistência do autogoverno por parte
dos cidadãos 49 .
A diferença do segundo modelo para o primeiro consiste no
abandono da etapa democrática intermediária entre o status civilis e
as diferentes formas de governo. Para Hobbes, o conceito da
representação política, ausente no primeiro modelo, não é menos
incompatível com a soberania popular do que para Rousseau. Com
o modelo da autorização irrestrita, a concepção hobbesiana de
soberania perde a contigüidade democrática originária. A soberania
passa a ser concebida como conseqüência da representação, quer
dizer, “a unidade do Estado não é mais concebível fora da
representação” 50 , razão pela qual o teórico político inglês relega a
democracia devido à representação e Rousseau rejeita a última em
nome da democracia.
O encaminhamento dado por Hobbes à incompatibilidade
entre representação e democracia inverte a lógica rousseauniana da
vontade geral. O teórico político inglês acaba privilegiando a
monarquia, entre outras razões, porque entende que nela o interesse
pessoal é idêntico ao interesse público e, enquanto tal, as paixões do
monarca promovem necessariamente o bem da coletividade. “A
riqueza, o poder e a honra de um monarca”, escreve Hobbes,
“provêm unicamente da riqueza, da força e da reputação de seus
súditos”, de modo que não pode ser do seu interesse que os súditos
sejam pobres, desprezíveis ou fracos por carência ou dissensão. “Ao
passo que numa democracia ou numa aristocracia”, conclui Hobbes,
“a prosperidade pública contribui menos para a fortuna pessoal de
alguém que seja corrupto ou ambicioso do que, muitas vezes, uma

contract tradition. Cambridge/London: Cambridge University Press, 1986, p. 126-


127.
49
Kersting, Wolfgang. Vertrag, Souveränität, Repräsentation. Zu den Kapiteln 17
bis 22 des Leviathan. In: Thomas Hobbes – Leviathan oder Stoff, Form und
Gewalt eines bürgerlichen und kirchlichen Staates. Hrsg. von W. Kersting. Berlin:
Akademie Verlag, 1996 (Klassiker Auslegen, Bd. 5), p. 221.
50
Herb. Op. cit., p. 101.
Poder, autoridade e tradição 23

decisão pérfida, uma ação traiçoeira ou uma guerra civil” 51 . Contra


tal raciocínio Rousseau profere um veredicto contundente, ao
escrever:

Os melhores reis querem ser maus, caso lhes agrade, sem deixar de ser os
senhores. Será grato a um pregador político dizer-lhes que, sendo sua
força a do povo, seu maior interesse estará em ser o povo florescente,
numeroso, temível; eles sabem muito bem que isso não é verdade. O seu
interesse pessoal estará principalmente em ser o povo fraco, miserável, e
nunca possa oferecer-lhes resistência 52 .

Avaliado pela posteridade, ambas as posições se


condicionam mutuamente. O estado democrático de direito é
inconcebível sem representação política e inviável sem soberania
popular.

Hobbes e a tradição político-aristotélica


A tese de que Hobbes é o fundador do direito natural moderno é
unilateral. A concepção hobbesiana de lei natural continua
caudatária do direito pré-moderno e de seus pressupostos
metafísicos. A articulação entre direito natural objetivo e subjetico
segue as pegadas do nominalismo ockhamiano 53 . Novo é o conceito
polar de direito, fincado na voluntas corpórea do homem. Com sua
noção jusnaturalista de direito, isento de qualquer vinculação
constitucional, Hobbes abala a tríade medieval de lex, ius e potestas
e lança as bases das teorias políticas e jurídicas modernas 54 .

51
Leviathan II, 19, p. 131. “The riches, power, and honour of a Monarch arise
onely from the riches, strength and reputation of his Subjects ... Whereas in a
Democracy, or Aristocracy, the publique prosperity conferres not so much to the
private fortune of one that is corrupt, or ambitious, as doth many times a
perfidious advice, a treacherous action, or a Civil warre”; versão portuguesa, p.
119.
52
ROUSSEAU, Jean-J. Du contrat social; ou, principes du droit politique. In: Op.
cit., p. 409; versão portuguesa, p. 95. Cf. Cell & MacAdam. Rousseau's response
to Hobbes. New York: P.Lang, 1988.
53
Cf. Tuck, Richard. Hobbes. Oxford: University Press, 1989, p. 136.
54
Zarka, Yves Ch. Hobbes et la pensée politique moderne. Paris: Presses
universitaires de France, 1995.
24 José N. Heck

A tradição do direito natural, o político teórico inglês não a


assume senão como designativo. Vertido em direito exclusivo de
indivíduos, o direito natural clássico torna-se desconexo, destituído
que fica do tradicional fim político maior, chamado de soberano
bem. Como critério primevo e absoluto vale, para Hobbes, “um
preceito ou regra geral da razão”, de acordo com o qual “... todo
homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha
esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e
usar todas as ajudas e vantagens da guerra” 55 . Concebida
desatrelada da pólis, a naturalidade racional e física do homem
constitui, ao mesmo tempo, o suporte da lei e do direito. A primeira
parte do preceito ou da regra geral e encerra, em Hobbes, “a lei
primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-
la”, e a segunda parte contém “a suma do direito de natureza, isto é,
por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós
mesmos” 56 .
A redução dos objetivos da atividade humana à
sobrevivência individual exige redefinição do telos político maior,
adequando-o à consecução de fins imediatos e à objetivação de
eventuais empreendimentos coletivos. Os componentes da
redefinição hobbesiana do direito natural resultam da aplicação da
regra tradicional definitio fit per genus proximum et differentia
specifica. Enquanto a liberdade natural constitui o gênero no qual o
direito natural é enquadrado, a autopreservação perfaz a diferença
específica, habilitando o homem ao uso de todos os meios julgados
apropriados para manter-se vivo. Ambas, liberdade e
autopreservação, têm por referência única os indivíduos empíricos.
“Pela palavra direito”, escreve Hobbes, “nada mais se significa do
que aquela liberdade que todo homem possui para utilizar suas

55
Leviathan I, 14, p. 91. “And consequently it is a precept, or generall rule of
Reason, That every man, ought to endeavour Peace, as farre as he has hope of
obtaining it; and when he cannot obtain it, that he may seek, and use, all helps,
and advantages of Warre”; versão portuguesa, p. 82.
56
Ibidem.
Poder, autoridade e tradição 25

faculdades naturais em conformidade com a reta razão” 57 . A


individuação física e a individuação jurídica do ser humano são,
para Hobbes, indistinguíveis por origem e finalidade. “Por
conseguinte, a primeira fundação do direito natural consiste em que
todo homem, na medida de suas forças, se empenhe em proteger sua
vida e seus membros” 58 , ou na versão do Leviatã, “para a
preservação de sua própria natureza” 59 .
Encarado do ponto de vista da tradição – onde a lei natural
remete a uma comunidade política cujos costumes e instituições
mantêm-se fora do raio de ação dos indivíduos – as definições
hobbesianas do direito natural promovem uma nadificação
teleológica. O argumento equivale a dizer que, devido à perda dos
fins políticos naturais, a modernidade política nasce de todo
desprovida de fins e objetivo, de sorte que à atividade política
restaria, como única e exclusiva referência, a existência biológica
dos seres humanos, sujeita aos imperativos da manutenção nua e
crua da vida e condenada a técnicas de sobrevivência postas a
serviço de indivíduos carentes de rumo e morada ontológica.
Tal recepção do binômio individualismo/absolutismo
obedece a uma estratégia de terra-arrasada em relação ao
fundamento do direito natural hobbesiano, ignorando a repetida
distinção de Hobbes entre vivere e bene vivere, assim como entre
esse e bene esse 60 . Quando o teórico político inglês declara que
“todo homem, por necessidade natural, empenha-se por defender

57
De cive I, 7. “Neque enim Iuris nomine aliud signifactur, quam libertas quam
quisque habet facultatibus naturalibus secundum rectam rationem utendi”; versão
inglesa, p. 70; versão portuguesa, p. 35.
58
Ibidem. “Itaque Iuris naturalis fundamentum primum est, ut quisque vitam &
membra sua quantum potest tueatur”.
59
Leviathan I, 14, p. 91. “... for the preservation of his own Nature”; versão
portuguesa, p. 82.
60
Cf. De homine 11, 6, onde sua cuique conservatio equivale a sibi bene esse, e, De
cive XVII, 12, onde se distingue vivere de bene vivere; versões inglesas,
respectivamente, p. 48 e 194.
26 José N. Heck

seu corpo e as coisas que julga necessárias para protegê-lo” 61 , ele


não apenas está-se referindo ao status quo biológico, mas sim à
segurança da vida no futuro (securitatem futuri temporis) 62 . Com
isso, o conceito de conservação, à primeira vista estático e
reducionista, adquire a dinâmica do auto-incremento civilizatório,
englobando para além da preservação física toda gama de
ingredientes relativos ao bem-estar humano.
Contrariamente à tese da inversão teleológica, que reduz a
conservação àquilo que de qualquer forma é e aí está, o conceito
hobbesiano de autoconservação implica uma programação
metafísica entre nascimento e morte natural do ser humano, à luz da
qual o indivíduo postula a melhor maneira de lidar com o seu meio
e suas circunstâncias, ponderando alternativas, fazendo escolhas e
consolidando o ser que se é por natureza 63 . Longe de nadificar a
dimensão teleológica, Hobbes concebe o fim do homem como
modo de estar vivo, gerando continuamente acréscimos a si mesmo
pela acumulação ininterrupta de poder. O novum dessa concepção
de finalidade consiste em substituir a figura de um ente político cujo
fim atualiza uma essência de ser, pela figura do vivente político que
acumula poder com vistas àquilo que naturalmente lhe é dado
querer. O fim que está continuamente junto a si mesmo
dessubstancia o telos essencialista do agente político clássico, e
acaba firmando uma estrutura de ação que tem no poder o
derradeiro e indeclinável objeto da existência. Na obra do teórico
político inglês inexiste a inversão teleológica que antecipe o
finalismo apolítico supostamente intrínseco a um exemplar
biológico que produz, segundo Marx, seus meios de vida e gera,
conforme Nietzsche, o material do super-homem. A distância que

61
De cive II, 3. “Quisque enim & Corpus suum, & ea quae corpori tuendo
necessaria sunt, necessitate naturae conatur defendere”; versão inglesa, p. 33;
versão portuguesa, p. 46.
62
De homine 11, 6. “Cujus ut capaces esse possint, necesse est cupiant vitam,
sanitatem, et utriusque, quantum fieri potest, securitatem futuri temporis”; versão
inglesa, p, 48.
63
Zarka. La décision métaphysique de Hobbes. Conditions de la politique Paris: J.
Vrin, 1987.
Poder, autoridade e tradição 27

vai do revolucionário ao profeta é incomensuravelmente menor do


que a distância que separa o hábitat do homem natural do cidadão
hobbesiano.
Desconsiderada a polêmica circunstancial com Descartes, o
Estagirita é o único clássico da filosofia que Hobbes critica
impiedosamente, mas do qual se distancia com um mal-disfarçado
respeito. Comparado com Aristóteles, mesmo Platão, “the best
Philosopher of the Greeks ...” 64 , não recebe a mínima atenção do
teórico político inglês. Skinner escreve que, ao final da vida,
“Hobbes identificou sua principal realização no fato de haver
criado, pela primeira vez, uma ciência objetiva da virtude, uma
ciência fundamentada nas leis da natureza e, por conseguinte, no
supremo imperativo moral de buscar a paz” 65 . Mesmo tomando tal
escopo como exemplar da ciência civil hobbesiana 66 , a obsessão do
teórico político inglês pela filosofia prática aristotélica afigura-se
paradoxal. Em nenhuma parte do corpus aristotélico são
desenvolvidos argumentos dos quais possa ser extraída uma teoria
geral acerca das relações entre o que é justo por natureza e o que é
justo segundo as leis da pólis e, muito menos, ser adquirida a idéia
de que a physis constitui uma boa justificação para a existência do
nomos. Pelo contrário, de inúmeras passagens da obra de Aristóteles
se depreende que a natureza não presta como princípio norteador de
legislação para as cidades. Isto vale sobremodo para a noção de
physei dikaion.
Onde se lê, na Ética nicomaquéia, que o justo na pólis é em
parte naturalmente justo e parcialmente justo por lei 67 , o filósofo
grego não assume o justo por natureza como fonte de sustentação

64
Leviathan IV, 46, p. 461; versão portuguesa, p. 390.
65
Skinner. Op. cit., p. 326. “Hobbes viewed his main achievement, in short, as that
of having created for the first time an objective science of virtue, a science
grounded on the laws of nature and hence on the paramount moral imperative of
seeking peace”; versão portuguesa, p. 430.
66
Cf. Tuck. Hobbes’s moral philosophy. In: Sorell, Tom (Ed.). Hobbes.
Cambridge: University Press, 1996, p. 175-207.
67
Aristóteles. Ethica nicomachea 1134b18-20, p. 103; versão inglesa, p. 1790;
versão portuguesa, p. 91.
28 José N. Heck

para o que é politicamente justo. Nem as constituições políticas


fazem parte, segundo Aristóteles, daquilo que é natural, mas
assentam sobre o que é legal por acordo ou conveniência. Mesmo
onde escreve que há uma constituição que é a melhor por natureza
e, como tal, não necessita de mudança, Aristóteles não diz que
aquilo que a torna possível equivale à ordem natural do cosmo. Na
Retórica, o filósofo da pólis dá dois exemplos para o que entende
por physei dikaion, a saber: enterrar os mortos e não matar os
vivos 68 . Tais ações são justas em desconsideração ao fato de
estarem ou não prescritas pelas leis da cidade. Quem a bel-prazer se
omite, no primeiro caso, ou age ad libitum, no segundo, está
praticando algo que por natureza é injusto. Mas disso não se infere
que matar alguém nomou, portanto, amparado pelas leis da pólis
possa não ser justo, ou esteja excluído que deixar alguém sem
sepultura possa não estar justificado de acordo com as leis da
cidade.
Aristóteles não partilha da opinião daqueles que vêem no
dikaion politikon uma mera convenção. Ele refuta o argumento, que
aparentemente legitima tal modo de pensar, a saber: coisas por
natureza são imutáveis e têm em toda parte a mesma força, “como o
fogo, que entre nós queima tão bem quanto na Pérsia”, ao passo que
registram alterações nas coisas reconhecidas como justas.
Aristóteles contesta a tese de acordo com a qual a mutabilidade é
critério suficiente para estabelecer a não-naturalidade das leis do
justo político, ao contrapor que o que foi dito “não é verdadeiro de
modo absoluto, mas apenas em certo sentido, ou melhor, para os
deuses talvez não seja verdadeiro de modo algum”, uma vez que
neles não há movimento, enquanto para nós existe alguma coisa que
é justo mesmo por natureza, embora esteja sob as leis do
movimento, mas nem por isso deixa de ser verdadeiro que algo é
por natureza e algo não é por natureza. Quanto à distinção entre o
que, naquelas coisas que também podem ser de outro modo, é
naturalmente justo e o que não o é, porque justo por lei e

68
Idem. Retórica 1373b3-18. Ed. by J. Barnes, vol. II. Princeton: University Press,
1995, p. 2187.
Poder, autoridade e tradição 29

convenção, Aristóteles diz que ela é por si mesma evidente, desde


que admitido que um e outro justo são de igual maneira variáveis.
“A mesma distinção”, assevera, “vale em todas as outras coisas: por
natureza, a mão direita é a mais forte; e no entanto é possível que
todos os homens venham a tornar-se ambidestros” 69 .
Hobbes passa ao largo dessas considerações. Homens cujo
fim consiste em serem politicamente felizes, numa vida virtuosa
comum, não precisam ser forçados a agir ou a omitir-se. Eles
concordam pacificamente sobre o que é necessário fazer para
usufruírem da felicidade, ou se põem facilmente de acordo acerca
de regras que ditam como essa necessidade tem que ser
estabelecida. Com a mesma naturalidade, tais homens admitem a
justificação pedagógica de neutralizar a possibilidade de alguém
opor-se ao bem comum, razão por que também é natural que não
concebam uma lei segundo a qual seja necessário exigir o emprego
da força com vistas à promoção do fim maior que a todos congrega
na cidade. De qualquer maneira, não é com base numa lei natural
que tal coerção venha a adquirir caráter legal. O direito outorgado
por lei natural consiste na faculdade de cada homem vincular o
outro ao fim ético que é próprio a todos por natureza. De todo
inconcebível permanece a idéia segundo a qual assiste a cada
homem o direito de recorrer à força em relação aos demais, tendo
em vista a liberdade, própria a cada homem, de agir da maneira que
melhor lhe apraz.
A crítica hobbesiana a Aristóteles não incide sobre a idéia
conseqüente do filósofo grego de que a comunidade política é,
como o todo em relação às partes, lógica e ontologicamente anterior
às demais agregados humanos. Hobbes tampouco questiona o tipo
de continuidade e descontinuidade estabelecido por Aristóteles
entre a pólis e as formas comunitárias do lar e do vilarejo,
cronologicamente anteriores à comunidade política soberana. A
incidência crítica ocorre na concepção do fim político maior
sustentado pelo Estagirita. Hobbes raciona sobre o telos aristotélico

69
Idem. Ethica nicomachea 1134b24-34-1135a-1, p. 103-104; versão inglesa, p.
1791; versão portuguesa, p. 91.
30 José N. Heck

e vê que o homem é por ele afetado enquanto há comunidade


política. Aristóteles não diz que o homem é um animal político
independentemente do fato de haver ou não pólis, quer dizer,
indiferente à condição de o homem ser membro ou não da
comunidade política. Para o filósofo grego, o homem somente é
naturalmente político porque depende da cidade para ser o que é por
natureza. Aristóteles não dispõe de uma conceito naturalista de
anthropos cujo fim político lhe pudesse advir de uma vida justa e
boa, alheia a um comunidade política autárquica. “E por
conseguinte”, argumenta Aristóteles, “se as formas anteriores de
comunidade são naturais, assim é a pólis, porque ela é o fim delas, e
a natureza de uma coisa é seu fim” 70 .
O termo physei tem um duplo significado, sendo entendido
como causa e fim de um processo que vai do lar à comunidade
política soberana. “A cidade,” continua Aristóteles, “é fim das
sociedades precedentes, mas isto precisamente é assim porque a
constituição que cada coisa é quando tem completado o seu
desenvolvimento nós chamamos de natureza, seja o homem, o
cavalo ou o lar, isto é, sendo o fim e o objetivo o melhor, a auto-
suficiência é o fim e o melhor” 71 . Na medida em que a natureza é
condição do desenvolvimento de todas as coisas, como por exemplo
do homem, do cavalo e da casa, a pólis é condição sine qua non da
existência do homem como ser natural, e na medida em que ela é
fim último de cada coisa, como homem, cavalo ou casa bem
desenvolvidos, a pólis é a auto-suficiência do homem enquanto fim
do que há de naturalmente melhor. Fica manifesto, conclui
Aristóteles, “que a cidade é uma criação da natureza, e o homem é,
por natureza, um ser político” 72 , ou, ao inverso, se a pólis não é
physei, o homem não se distingue por natureza dos demais seres dos
quais, a exemplo de cavalos e casas, a natureza é causa e fim.
A objeção de Hobbes à teleologia aristotélica procede na
medida em que, pela physis, o homem é tanto o fim da pólis quanto

70
Idem Politica 1252 b-3032; versão inglesa, p. 1987; versão portuguesa, p. 15..
71
Ibidem 1252b-32-1253a-1.
72
Ibidem 1253a3.
Poder, autoridade e tradição 31

esta é o fim do homem, pois, argumenta Aristóteles, “destruído uma


vez o corpo por inteiro não haveria mais pé nem mão, à exceção de
nomes, assim como podemos falar de uma mão de pedra” 73 . É
graças à natureza que a pólis é o fim do animal político – chamado
de homem – e, como tal, é logicamente anterior a ele como o todo
em relação às partes, e é graças à mesma natureza que o homem,
chamado de animal político, é o objeto da pólis e, como tal, existe
cronologicamente antes dela como organismo corpóreo.
A crítica hobbesiana não consiste em submeter a concepção
da physis de Aristóteles ao princípio da contradição – integrando,
como Hegel faz, ser e nada no devenir do grande conceito – mas em
inverter a dinâmica conceitual aristotélica, raciocinando a partir de
nomes que significam o nada político clássico em direção a nomes
que significam o ser político moderno. Longe de constituir uma
subversão, nadificação ou superação do pensamento político do
Estagirita, a chamada inversão teleológica de Hobbes cria uma
alternativa metafísica antinômica ao clássico fim político da
tradição. O ser humano não é mais o substrato natural que faz a
pólis ser por natureza, mas apenas o material de uma vontade cuja
atuação, movida por um ditado da reta razão, cria o Estado.
Referida à voluntas hobbesiana, a posição aristotélica, de acordo
com a qual o que um ser tem que ser é o que ele é, não configura
uma contradição, mas, sim, um simples movimento contrário ao
raciocínio do pensador grego.
O ditame do fim político, Hobbes o formula da seguinte
maneira; “Muito embora nada do que os mortais fazem possa ser
imortal, contudo, se os homens se servissem da razão da maneira
como fingem fazê-lo, podiam pelo menos evitar que seus Estados
perecessem devido a males internos” 74 . A novidade do telos político
moderno está na pretensão racional de estabelecer uma ordem de
convívio indiferente ao lugar, ao tempo e às circunstâncias que

73
Ibidem 1253a22-22; versão inglesa, p. 1988; versão portuguesa, p. 15.
74
Leviathan II, 29, p. 221. “Though nothing can be immortall, which mortals make;
yet, if men had the use of reason they pretend to, their Common-wealths might be
secured, at least, from perishing by internall diseases”; versão portuguesa, p. 196.
32 José N. Heck

historicamente a situam, bem como no fato de ser imune a tradições


éticas, científicas ou culturais anteriores ao evento da convivência
civil. A razão usada como ditado dispensa uma convergência
natural entre vida justa e vida boa, uma vez que propõe aos
indivíduos o bem-viver de uma ordem correta de relações
recíprocas. “Portanto,” raciocina Hobbes, “quando acontece serem
dissolvidos [os Estados, J.N. Heck], não por violência externa, mas
por desordem intestina, a causa não reside nos homens enquanto
matéria, mas enquanto seus obreiros e organizadores” 75 . Voltado
contra Aristóteles, isso significa que o desaparecimento da pólis
grega, na medida em que ocorre endogicamente, é devido a um uso
incorreto da razão ou, como Hobbes diz, não por causa do uso que
os homens pretendem fazer da razão, mas devido ao uso que dela
fazem.
Somente no âmbito da filosofia prática de Aristóteles tal
objeção constitui uma novidade política. Caso a interdependência
entre pólis, enquanto comunidade política natural, e o homem,
como ser nela subsistindo naturalmente, apenas seja subvertida,
anulada ou suprassumida, o novum da ciência civil hobbesiana
permanece meramente retrospectivo. O teórico político inglês
estaria fingindo que faz uso da razão, ao elencar uma série de
explicações para o fato de que as sociedades políticas se dissolvem
ao longo da história, sem poder indicar, com a mesma razão, por
que as sociedades dissolvidas algum dia foram constituídas como
agregações políticas. De acordo com esse tipo de explanação post
festum, os homens apenas sabem das razões pelas quais suas obras
fracassam, mas ignoram de todo a razão pela qual subsistem. Tal é a
morbidez lógica do idealismo hegeliano, cujo espírito faz de conta
que retorna à natureza, quando dela em momento algum consegue
sair.
Em contrapartida, e parafraseando a doutrina política do
Estagirita, nada é mais distante da doutrina política hobbesiana do

75
Ibidem. “Therefore when they come to be dissolved, not by externall violence,
but intestine disorder, the fault is not in men, as they are the Matter; but as they
are the Makers, and orderers of them”.
Poder, autoridade e tradição 33

que a ratio negativa dos empreendimentos fracassados da espécie


humana. Um indício por que Hobbes concentra toda tradição
política ocidental em Aristóteles é o dado histórico elementar de
que a teologia cristã recorre invariavelmente ao pensador grego
quando se trata de justificar racionalmente o domínio da civitas.
Mesmo para uma doutrina revelada como a cristã, a excelência das
comunidades humanas é sublunar e ostenta um caráter telúrico
inconfundível.
Para Hobbes, não obstante mortal como seus usuários, a
razão da qual os homens fazem uso é consistente, assim como são
acertados os procedimentos racionais que resultam no Estado, “pois,
pela natureza de sua instituição” – escreve Hobbes – “[os Estados,
J.N. Heck] estão destinados a viver tanto tempo quanto a
humanidade, ou quanto as leis de natureza, ou quanto a própria
justiça, que lhes dá vida” 76 . A declaração honra Aristóteles como o
pai político do Ocidente, sob a condição de que o fim metafísico
seja estabelecido pelo uso correto da razão, e não por um uso
incorreto dela por amor à natureza, da qual, segundo Hobbes, os
homens não são senhores senão imitadores, obreiros em condições
de comporem um animal artificial.
De acordo com o raciocínio hobbesiano, ao decompor o
corpo biológico em suas partes, o filósofo grego está pretendendo
usar a razão, mas na verdade apenas a usa como exemplo, uma vez
que a decomposição do organismo humano é providenciada pela
natureza, à revelia de qualquer contribuição por parte dos homens.
Em contrapartida, o autômato estatal, feito pelo homem ao imitar a
natureza, é um autêntico corpo político. À diferença do animal
politico clássico, cuja dissolução é obra da natureza, o animal
político moderno – o Estado – pode ser decomposto em partes por
seu criador, imitando a natureza que procede bem com tudo o que é
feito por ela, seja compondo, seja decompondo. Ao mostrar que o
Deus mortal tem tão pouco uma causa formal quanto o Deus

76
Ibidem. “For by the nature of their Institution, they are designed to live, as long
as Mankind, or as the Lawes of Nature, or as Justice it selfe, which gives them
life”.
34 José N. Heck

imortal, o teórico político inglês demonstra que a ausência de uma


constituição é o pressuposto metafísico tout court da soberania
absoluta do Estado moderno.

Conclusão
As doutrinas filosófico-políticas de Hobbes e Aristóteles remetem
uma à outra na medida em que ambas invocam a natureza a seu
favor. Animais aristotélicos e hobbesianos sobrevivem lado a lado.
Esses têm a natureza por lei, aqueles a tomam por alvo e fim. O
contraponto político-metafísico somente é resolúvel à luz do
fragmento mais antigo do Ocidente, de acordo com o qual a morte é
a senhora da justiça, ou seja, nada há em Anaximandro que
diferencia entre o que é indefinido e aquilo que quer porque quer ser
definido.
A crítica do teórico político inglês ao pensamento clássico
continua pertinente enquanto o absolutismo moderno não é
deconstruído metafísicamente. Em contrapartida, poderes capilares
inapreensíveis teoricamente prodigalizam cidadania ateniense aos
modernos como, inversamente, a tradição político-filosófica não
oferece mais resistências à Modernidade no momento em que a
concepção grega de physis está humanizada. Ambas as versões
reivindicam de um dos clássicos o que o outro de melhor tem para
dar. No primeiro caso, por reverência a um bios que Hobbes
simplesmente transverte em corpo e, no segundo caso, por amor a
uma atividade que em Aristóteles permanece de todo apolítica – o
trabalho.

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A teoria óptica de Hobbes *

Cláudio R. C. Leivas **

Resumo: O presente artigo procura apresentar as linhas gerais da teoria óptica de


Hobbes. Antes de examinarmos o desenvolvimento de seus estudos ópticos, porém,
faremos um breve resumo de concepções ópticas anteriores na tentativa de situar o
leitor no contexto da história da óptica.
Palavras-chave: Percepção, Representação visual, Teoria óptica

Abstract: The present article intends to bring out the general lines of Hobbes´s
optical theory. However, before examine the development of his optical studies, we
will make a preliminary résumé concerning opticals conceptions prior to Hobbes´s,
with the purpose to situate the reader in the context of optic’s History.
Keywords: Optical theory, Perception, Visual representation

Do ponto de vista do conhecimento científico e filosófico o século


XVII pode ser considerado uma época de rupturas e inovações.
Noções como verdade, certeza e novidade eram freqüentemente
usadas pelos novatores 1 em seu criticismo da tradição escolástica

*
Estou em dívida com o Prof. Carlos Ferraz, do Departamento de Filosofia da
UFPel, por suas sugestões sobre partes deste artigo.
**
Professor adjunto da Universidade Federal de Pelotas, UFPel. E-mail:
clleivas@hotmail.com. Artigo recebido em 04.09.2007e aprovado em 18.10.2007.
1
De acordo com C. Leijenhorst “a separação em Hobbes entre razão e fé e sua
distinção entre filosofia e teologia o situava num amplo movimento no século
dezessete”, de forma que “como muitos dos novatores Hobbes sente que tinha de
defender a autonomia da filosofia, a libertas philosophandi, contra as tendências
imperialistas dos teólogos” (cf. The Mechanisation of Aristotelianism, p. 27). Já
P-F. Moreau diz que “o mundo que se inaugura então é um mundo em crise: pois
se vê ele mesmo como que lutando por uma nova forma de pensamento contra
uma outra que ainda não morreu; combatendo a tradição ... [e] edificando os
sistemas inovadores (systèmes novateurs) ... [Hobbes] está perfilado
inegavelmente no campo dos nouveaux philosophes da idade clássica, daqueles
que querem, cada um ao seu modo, tirar do conjunto do pensamento as
conseqüências dessa mudança radical” (Hobbes: Philosophie, science, religion, p.
27-28).

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 39-53.


40 Cláudio R. C. Leivas

para ensejar o que entendiam ser um novo e verdadeiro sistema de


pensamento fundado no rigor que é próprio do raciocínio cientifico.
Imprescindível à nova filosofia e à nova ciência era a separação
entre razão e fé – separação essa que se traduzia por sua vez num
relativo 2 afastamento entre filosofia e teologia.
Estreitamente alinhado com esse amplo movimento de
filósofos e cientistas que acreditavam na necessidade de uma
reforma radical de idéias para preparar o advento de uma nova
concepção de mundo, Hobbes estava convencido que antes de
Galileu e Harvey “não havia nada de certo na Física” e que depois
deles “Kepler, Gassendi e Mersenne promoveram de forma
extraordinária a Astronomia e a Física universais” (De Corpore, ep.
ded. p. 29-30).
Pressupostos metafísicos associados a certas reflexões
pertinentes à esfera da ciência óptica era um recurso bastante usado
pelos novatores para pensar o novo mundo e as descobertas
científicas. A. Koyré diz no clássico Do mundo fechado ao universo
infinito, por exemplo, que Kepler recorre a razões metafísicas para
negar a doutrina da infinitude do mundo bem como à óptica porque
em se tratando do mundo que nós vemos, segue que “a Astronomia
está estreitamente relacionada com a visão, ou seja, com a óptica, [e]
não pode admitir coisas que contradigam as leis da óptica” 3 .
Penso que não será sem propósito observarmos aqui que a
primeira obra de Hobbes – isto é, o Curto Tratado – e a sua última
obra – isto é, o De Homine – tratam de questões relativas à óptica.
Antes de adentrarmos no exame da teoria óptica de Hobbes, porém,
parece oportuno que consideremos alguns pontos relativos aos
estudos ópticos que antecedem as reflexões de Hobbes sobre o
assunto em questão.

2
A autonomia da filosofia em relação à teologia varia nessa época de acordo com
as convicções religiosas de cada pensador. Nesse sentido, Kepler se mostra
intimamente atrelado à religião para negar a infinitude do mundo enquanto
Hobbes afirma a radical separação entre o Estado e a igreja, preconizando assim a
exclusão das igrejas do exercício do poder político.
3
Koyré, A. Do mundo fechado ao universo infinito, p. 63-66.
A teoria óptica de Hobbes 41

1 Da óptica antiga à óptica moderna


G. Simon diz que a óptica antiga visa explicar menos as causas
físicas da luz que a visibilidade, de forma que os estudos ópticos da
antiguidade estão assentados “na hipótese da emissão do raio visual
a partir do olho” 4 . Ele chega a essa conclusão através da leitura de
textos relativos ao fenômeno óptico da antiguidade, textos esses que
nos permitem constatar que nessa época o objeto de estudo da óptica
é o conceito de raio visual ao invés do conceito de raio luminoso.
Em sua obra O olhar, o Ser e a Aparência na óptica da antiguidade
Simon denuncia a tendência dos modernos em interpretar a óptica
antiga na perspectiva do conceito de raio luminoso, desconsiderando
dessa forma a fundamental distinção entre cones visuais e cones de
luz.
De fato, na concepção de Euclides, cuja obra é ponto de
referência para o estudo da óptica antiga, não se pode separar o olhar
da faculdade que julga e que conhece porque “a figura circunscrita
pelos raios visuais é um cone que tem seu cume no olho e sua base
nos limites daquilo que é visto” 5 . A redução da luz e das cores ao
cálculo que estabelece a forma e os contornos do visível conduz a
óptica antiga em seu conjunto para uma espécie de geometria do
olhar. Evidencia-se pois que na teoria da emissão da luz dos antigos
a emissão material dos feixes luminosos é compreendida nos termos
de uma abstração geométrica:

[A óptica antiga] foi em primeiro lugar uma analítica do olhar. Invenção


capital, metodicamente explorada por Euclides, ela imagina fazer
corresponder termo a termo a um componente (élément) do visível um
componente da vista (vue). O vínculo entre um e outro é o raio visual: a
retidão (rectitude) que lhe atribuímos permite transformar o problema
imensamente complexo da visão – o que é ver e como vemos? – numa
investigação propriamente geométrica: como percebemos as direções, as
distâncias, as grandezas, as formas, os movimentos? 6

4
Simon, G. Le regard, l´être et l´apparence dans l´optique de l´antiquité, p. 16.
5
Euclides, Óptica. In: Simon, G., op. cit., p. 21.
6
Simon, G., op. cit., p. 187.
42 Cláudio R. C. Leivas

Esse modelo óptico que explica a luz através da noção de


visibilidade – ao invés de explicá-la através de suas propriedades de
propagação – começou a sofrer alterações significativas a partir dos
estudos ópticos medievais de Al-Hazen no século X e de Vitelo no
século XIII. Al-Hazen introduz no campo da óptica a teoria da
recepção pelo olho dos raios de luz bem como formula as bases da
teoria da propagação da luz que dominará a óptica moderna.
Posteriormente Vitelo deu continuidade aos escritos ópticos de Al-
Hazen. Porém, apesar das descobertas dos medievais no campo da
óptica, essa permanecia ainda definida como ciência da luz e da
visão e o vidente e o visível unificados como os dois lados de uma
mesma moeda 7 .
A idéia da teoria óptica como física da luz surge com Kepler
no século XVII a partir da descoberta da “formação de uma imagem
real sobre a retina, produzida pela convergência do cristalino
concebido como o análogo de uma lente” 8 . A partir dessa descoberta
o olho passa a receber o estatuto de dispositivo óptico, de forma que
a idéia do olho como um órgão sensorial reduzido à sensibilidade –
isto é, à sensibilidade qua projeção material e psíquica – perde
gradativamente sua força argumentativa.
O raio de luz é doravante concebido como uma realidade e
não mais como uma projeção do visível. A teoria física da luz dos
modernos tem então como objeto a propagação dos raios luminosos,
o que implica um afastamento da idéia de raio visual dos estudos
ópticos antigos. O que não significa, bem entendido, que a idéia de
visibilidade seja ali descartada em definitivo 9 . O que podemos
afirmar com certeza é que a partir das novas descobertas a ciência
óptica passa por um processo de bifurcação que termina por dividi-
la em teoria da luz e teoria da visão.

7
Cf. Prins, J., Kepler, Hobbes and medieval optics.
8
Simon.G,. op. cit., p. 12-12.
9
Os estudos ópticos de Descartes podem ser sintetizados, conforme diz M. Fichant,
na idéia de uma “geometria do olhar”. Ver também a analise que M. Ponty faz de
Descartes em “O olho e o espírito”, em especial a concepção de “pensamento
visual” que M. Ponty atribui como sendo um modelo óptico cartesiano.
A teoria óptica de Hobbes 43

Os estudos ópticos de filósofos como Hobbes e Descartes


seguem rigorosamente essa nova classificação que estabeleceu os
contornos do campo de estudo da óptica renascentista. Como o meu
principal interesse aqui é abordar a teoria da visão de Hobbes para
compreender como ele opera a construção do seu conceito de
representação visual, examinarei a seguir en passant a parte física
da sua óptica para depois abordar a sua teoria da visão.

2 Hobbes e as causas físicas da luz


A teoria da intromissão da luz de Al-Hazen (isto é, a idéia que
vemos através de raios de luz que entram nos olhos a partir do
exterior) substitui gradativamente a teoria da emissão da luz dos
antigos (isto é, a idéia que vemos através de raios visuais emitidos
pelo olho). Vitelo continua os estudos de Al-Hazen e acrescenta que
o raio de luz deve ser definido como um feixe de linhas
matemáticas 10 . A explicação física da luz recebe com Vitelo um
“tratamento puramente geométrico” de forma que o fenômeno
óptico passa a ser explicado em termos de “pontos e linhas” 11 . Prins
sugere que os estudos desenvolvidos pelos ópticos medievais
reduzem a óptica à geometria de forma que a natureza da luz é por
eles formulada a partir de um tratamento puramente geométrico de
problemas físicos justificado pelo conceito de raio de luz 12 . Em
resumo, a forma geométrica como os antigos explicavam a visão
através da noção de raio visual sofre uma readequação com os
medievais de forma a conduzir a uma explicação física da luz
justificada pela geometrização do raio de luz.
A teoria física da luz de Hobbes parece compatível com a
teoria da intromissão da luz dos ópticos medievais. Hobbes utiliza,
por exemplo, o termo lux para se referir à fonte original de luz que
irradia de um corpo luminoso antes de se dirigir para o centro do
olho. Lux, dessa forma, é distinto de lumen, visto que esse último

10
Prins,. op. cit., p. 296.
11
Idem, ibid.
12
Idem, ibid.
44 Cláudio R. C. Leivas

termo se refere não à luz original mas à luz refletida – isto é, à luz
como fantasma, que pertence à sua teoria da visão 13 .
A objetividade da causa física da luz – lux – é diferenciada
em Hobbes da subjetividade da qualidade sensível – lumen –, que
surge como uma reação no interior do dispositivo óptico em
decorrência de estímulos nervosos no cérebro e no coração. A óptica
hobbesiana remete dessa forma a uma teoria da intromissão da luz
ao definir as causas físicas da luz pelo termo lux e a uma teoria da
emissão da luz compreendida como lumen ou fantasma 14 . A
primeira explicação do fenômeno óptico na terceira seção do Curto
Tratado evidencia a objetividade da causa da luz respaldada na idéia
clássica da emissão da luz pelas espécies através de um medium:

Luz, cor, calor e outros objetos próprios da sensação ... nada mais são do
que as diferentes ações das coisas exteriores sobre os espíritos animais,
pelos diferentes órgãos. Pois se a luz e o calor fossem qualidades
inerentes em ato às espécies, e não diferentes modos de ação – porque as
espécies entram por todos os órgãos para ir aos espíritos – se deveria ver
o calor e sentir a luz, o que é contrário à experiência” (CTr., p. 45).

13
É de se observar que já no CurtoTratado Hobbes se refere ao termo lux como luz
primitiva e ao termo lumen como luz derivada. Na medida que “por luz primitiva
se entende lux [e] por [luz] derivada lumen” surge então como corolário que assim
como “a luz primitiva e a cor estão para os corpos luminosos ou coloridos assim a
luz derivada e a cor estão para as espécies”.
14
Segundo Prins a óptica de Hobbes não é geométrica uma vez que ela está
determinada causalmente pelo movimento. A óptica de Hobbes estaria, ainda
segundo Prins, situada no plano da física matemática. Zarka sugere, ao contrário,
que ela é geométrica e remete ao começo do De Homine onde Hobbes diz que a
óptica é uma ciência demonstrativa da mesma forma que a geometria, de modo
que, continua Zarka, é importante não confundir “os movimentos da matéria que
produzem em nós a representação da luz ou do calor com as qualidades
sensíveis”. Em nossa opinião, são dois diferentes enfoques da teoria óptica de
Hobbes que não precisam ser necessariamente excludentes. Sugiro que há em
Hobbes a compatibilidade entre uma mecanização da luz e uma geometrização do
olhar, o que podemos observar, por exemplo, através da passagem em Hobbes das
razões físicas da luz para o ato da construção geométrica do visível, ou ainda pela
comparação do termo lux com o termo lumen.
A teoria óptica de Hobbes 45

O Curto Tratado apresenta dessa forma uma explicação da


teoria mediúnica da luz fundada no conceito de Species. O
fundamento lógico dessa explicação – conforme estabelecido por
Hobbes na terceira seção do Curto Tratado – consiste em que a
causa eficiente está do lado do objeto e não do lado do sujeito. De
fato, a terceira seção do Curto Tratado esclarece que “o objeto é a
causa eficiente ou agente do desejo e os espíritos animais o
paciente” (CTr., p. 53). Uma vez estabelecido que o princípio de
causalidade é da ordem do objeto e não da ordem do sujeito segue
como corolário que a natureza mediúnica da luz é compatível com a
teoria da emissão das Species: – “Todo agente que age sobre um
paciente à distância o toca seja pelo Medium, seja por alguma coisa
que sai dele mesmo, a qual será denominada Species” (CTr., p. 25).
Essa concepção começa porém a sofrer mudanças a partir do
Tractatus Opticus I onde Hobbes afirma que “se não houvesse visão
não haveria nada que chamaríamos de luz” (T. op. I, O. L., V, p.
220). A aparição da luz e das cores é doravante um fenômeno
subjetivo e situa-se em claro contraste com a tese objetivista da
emissão da luz pelas espécies do Curto Tratado. Se no plano da
origem da luz a teoria da luz de Hobbes – dada a inserção das teses
do Tractatus Opticus I – indica um movimento que articula a ação
do meio a partir da fonte luminosa, esse movimento, concebido
como propagação da luz a partir do meio, vem a ser luz somente
quando há um sentimento da luz em nós, sentimento esse que é
definido como visão.
Em resumo, lux e lumen são agora explicados de forma
subjetiva. A conclusão das teses ópticas no pensamento maduro 15 de
Hobbes parece indicar o que segue: a ação física da luz não basta
para explicar todas as modalidades da visão 16 . A passagem das
causas físicas da luz para a explicação da visão através da
constituição do conceito de representação visual é o que
pretendemos examinar no próximo item.

15
Isto é, no Tractatus Opticus I e II, no De Homine, etc.
16
Cf. Zarka, idem, p. 137.
46 Cláudio R. C. Leivas

3 A formação das representações visuais


Estabelecida a hipótese de que a ação física da luz é insuficiente
para produzir a visão, a teoria óptica hobbesiana remete a um
complexo sistema psíquico-fisiológico para adequar a teoria da luz à
teoria da visão:

A ação de um objeto luminoso, quando propagada para o fundo do olho e


conseqüentemente para o cérebro, é a causa da reação pela qual um
movimento é transmitido para fora do cérebro, através do olho, na direção
dos objetos externos. O último movimento, contudo, é experimentado não
como movimento mas como fantasia ou imagem ... de algum corpo
luminoso. Essa fantasia chamamos iluminação ou luz (De Mundo, IX, p.
102).

Doravante a luz e a cor são consideradas “não como


emanações do objeto mas como fantasmas de nosso mundo interior”
(De Homine, II, p. 43). É de se observar que a idéia de fantasma
como recurso para explicar o fenômeno visual faz parte da literatura
óptica dos medievais e dos renascentistas. Vitelo, por exemplo,
recorre à idéia de fantasma para explicar a ilusão visual e podemos
constatar, além disso, que o Optical Thesaurus de 1572 traz uma
identificação entre fantasma e imagem refratária 17 .
Outra observação que nos parece relevante é que se na
Critica do 'De Mundo' Hobbes se refere à luz como fantasia, no De
Homine ele se refere à luz como fantasma. Seria devido ao fato que
na Critica do 'De Mundo' ele em muitos aspectos se mostra disposto
a seguir Aristóteles para quem a raiz etimológica da palavra fantasia
é dada pelo vocábulo luz? De fato, Dherbey sugere que a
identificação de fantasia e luz em Aristóteles serve para dissipar o
erro de não se diferenciar a sensação da imaginação. “A confusão
feita por Protágoras entre sentir e imaginar se explica se atentamos à
etimologia de phantasia que, nos diz Aristóteles, vem de phaos, a
luz” 18 .

17
Cf. Prins, op. cit., p. 303-304.
18
Dherbey, op. cit., p. 61.
A teoria óptica de Hobbes 47

Diferentemente de Aristóteles, conforme podemos observar


nos escritos ópticos do De Homine, Hobbes não está preocupado em
identificar fantasia e Luz para separar sensação e imaginação e sim
identificar fantasma e luz para separar a imagem visual do objeto da
visão. Com efeito, após definir a luz no De Homine como fantasma
de nosso mundo interior, Hobbes pode operar uma distinção
fundamental entre o que é da ordem da representação visual e o que
é da ordem da própria coisa:

Uma luz, uma cor assim figurada [isto é, representada], isso se chama
uma imagem. E, segundo uma instituição da natureza, todo ser animado
começa por julgar que essa imagem é a visão da coisa mesma ... [Sendo
que] mesmo os homens ... confundem a imagem com o próprio objeto (De
Homine, II, p. 43).

Lembremos que essa idéia de uma separação radical entre o


fenômeno visual e a própria coisa (conforme estabelecida por
Hobbes no De Homine de 1658) remonta ao ano de 1649 quando ele
escreve o tratado óptico A Minute or First Draught of the Optiques.
Essa constatação se deve ao fato de que a parte óptica do De Homine
corresponde quase que integralmente à segunda parte do First
Draught, parte essa que Hobbes dedica ao estudo da visão 19 . A

19
O motivo pelo qual Hobbes deixou a primeira parte do First Draught, isto é, a
teoria da luz, fora do De Homine ainda hoje é um mistério para os que estudam
sua teoria óptica. Seria porque ao tratar do homem (De Homine) ele pensava que
as razões físicas da luz podem ser subsumidas na noção de luz como fantasma de
nosso mundo interior? O fato é que dois anos depois do First Draught Hobbes
escreve no inicio do Leviathan (1651) – sua obra política maior – que embora “o
próprio objeto real pareça confundido com a aparência que produz em nós, mesmo
assim o objeto é uma coisa, e a imagem ou ilusão uma outra”. A critica à doutrina
óptica escolástica da emissão da luz por species visível é o recurso que Hobbes
usa no Leviathan para sustentar a diferença entre percepção visual e a realidade.
Aristóteles criticou Protágoras por não diferenciar sensação e imaginação. O
primeiro capítulo do Leviathan é dedicado ao exame da sensação e o segundo
capítulo ao exame da imaginação. Mas ao contrário de Aristóteles, embora
Hobbes num primeiro momento diferencie sensação e imaginação, num segundo
momento ocorre a subsunção da imaginação à sensação, isto pelo fato que para ele
“a imaginação é uma sensação diminuída”.
48 Cláudio R. C. Leivas

construção óptica da representação em Hobbes começa a ser


delineada enfim através da justaposição de uma fundamental
diferenciação entre o que é da ordem do aparecer e o que é da
ordem da realidade.
Tendo isso em mente podemos constatar que a imagem é
construída visualmente em nosso cérebro na medida em que somos
afetados por um objeto externo e que quando essa imagem é
projetada de dentro para fora por reação dos estímulos nervosos
centrais temos a ilusão que o que vemos é a coisa mesma. Constata-
se pois que as teses ópticas de Hobbes se posicionam de forma
antagônica com a óptica antiga uma vez que “aquilo que um Antigo
vê num espelho é a coisa mesma” 20 . Em A teoria aristotélica da
visão Cappelletti diz, por exemplo, que é importante sublinhar que
existe em Aristóteles uma teoria realista da sensação visual segundo
a qual o sujeito capta qualidades que se encontram verdadeira e
realmente no objeto, de forma que os “erros e ilusões se referem aos
sensíveis comuns (distância, magnitude, etc.) e não são na realidade
erros da vista mas do entendimento” 21 .
Explicar como se formam as imagens visuais a partir de uma
separação radical entre o que é da ordem do fenômeno e o que é da
ordem das coisas é o tema do primeiro capítulo da parte óptica do
De Homine. De fato, a noção de representação visual orienta ali o
processo de formação das imagens. A percepção visual da irradiação
do corpo luminoso é enviada através do dispositivo óptico para o
sistema nervoso central provocando ali uma reação para fora que
consistirá nas aparições ou fantasmas de nosso mundo interior. O
que segue disso tudo é uma síntese dos múltiplos pontos de visão
que irão constituir a imagem visual do objeto segundo uma
correspondência ordenada:

Uma visão [isto é, uma imagem visual] distinta e figurada ocorre quando
a luz ou a cor forma uma figura cujas partes tem por origem as partes do
objeto, e lhes corresponde uma à uma na ordem. Uma luz, uma cor assim

20
Simon, G. op. cit., p. 197. O itálico é meu.
21
Cappelletti, A. J. La teoria aristotelica de la vision, p. 91.
A teoria óptica de Hobbes 49

figurada [isto é, representada], isso se chama uma imagem (De Homine,


II, p. 43).

Sugiro que o estatuto representacional da visão da forma


apresentada nessa passagem no De Homine óptico é plenamente
compatível com o que Hobbes descreve na Crítica do 'De Mundo'
nos termos de uma superfície aparente imaginária. “A área aparente
do sol ou de qualquer outro objeto não é inerente no próprio objeto
mas é meramente imaginária” (De Mundo, III, p. 40). A superfície
aparente imaginária é constituída ponto por ponto a partir das
informações visuais que temos das partes do objeto luminoso. Ora,
no De Homine Hobbes enuncia justamente que a configuração dos
pontos de visão justapostos numa linha reta no centro retinal do
aparelho óptico se chama linha de visão:

Cada ponto visto é situado sobre uma linha reta que passa primeiramente
pelo centro da retina, depois por um ponto de sua superfície ... [sendo
que] essa linha reta chamar-se-á linha de visão (De Homine, II, p. 44).

O lugar aparente das imagens que temos dos objetos – a


saber, “a forma como aparecem na visão direta” – é então explicado
no capítulo terceiro do De Homine a partir da mencionada noção de
linha visual:

Por conseguinte, se damos a distância aparente de um objeto (colocado


em linha reta), [bem como] a sua grandeza aparente e a sua figura
aparente, [segue que] o seu lugar aparente é igualmente dado (De
Homine, III, p. 59).

A localização dos objetos na representação é dessa forma


estabelecida na linha de visão – isto é, na linha reta – pela
determinação do lugar e da distância real dos objetos a partir de seu
lugar e de sua distância aparente. Sobre essa questão Zarka
esclarece que em Hobbes “a constituição visual da representação
governa o problema da determinação da distância e do lugar real do
50 Cláudio R. C. Leivas

objeto a partir de seu lugar aparente” 22 . O lugar e a distância real


são dessa forma reduzidos ao que aparece. A imagem visual,
formada a partir da linha de visão, é percebida pelo indivíduo
receptor “como se” 23 fosse a própria coisa. Nos Elementos da lei,
lembremos novamente, Hobbes esclarece essa questão da seguinte
forma:

Por isso, segue-se também que quaisquer acidentes ou qualidades que os


nossos sentidos nos fazem pensar que existam no mundo, não estão lá,
constituindo apenas aparências e aparições. As coisas que realmente
estão no mundo, fora de nós, são os movimentos que causam essas
aparências (El. Lei., p. 56).

Existindo no mundo apenas aparências e aparições, a


realidade se encontra subsumida nas representações visuais. A
forma como vemos as coisas é então a forma como o visível se
manifesta. Tudo isso constitui a instigante e ainda hoje pouco
explorada teoria óptica de Hobbes. A relação do desejo com as cores
ou a metafórica comparação da filosofia política com um telescópio
(telescopii) – conforme constatamos no Leviathan em latim – são
algumas das questões que surgem de forma surpreendente diante de
nossos olhos quando examinamos o mundo predominantemente
visual de Hobbes.

22
Cf. Zarka, op. cit., p. 138.
23
É de se observar, porém, que o componente racional não está presente nesse
estágio de argumentação. Em outras palavras, as correções efetuadas pelo
raciocínio – por exemplo, aquelas relativas às ilusões ópticas – remetem a um
plano objetivo que não interessa a Hobbes nesse estágio do argumento. (A critica
de Hobbes das Species invisíveis dos escolásticos, por exemplo, é uma critica da
razão dirigida a todos aqueles que postulam raciocínios equivocados por não
conseguirem decifrar os enganos da visão natural a partir da distinção entre a
dimensão do aparecer e a dimensão da realidade ou ainda a partir da distinção
entre o que é da ordem da subjetividade e o que é da ordem da objetividade.) O
que realmente importa aqui é que “por natureza” a luz e a cor são compreendidos
como fantasmas puramente subjetivos que determinam o modo como vemos as
coisas.
A teoria óptica de Hobbes 51

Referências
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Court traité des premiers principes, edição bilíngüe inglês-francês,
sob os cuidados de J. Bernhardt, Paris, P.U.F., 1988.
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Paris, Éditions Sirey, 1981.
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Librairie Scientifique et Technique, 1974.
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Citizen, Cambridge, Haackett Publishing Company, 1991.
De la Liberté et de la Nécessité, tradução de F. Lessay, Paris, Vrin,
1993.
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barão d´Hilbach, comentário de E. Roux, Saint-Amand-Montrond,
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Do Cidadão, tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo, Martins
Fontes, 1993.
Exame do ‘De Mundo’ de thomas White, tradução inglesa do Latim
feita por Harold Whitmore Jones cujo título é Thomas White´ s De
Mundo examined, editado por Bradford University (1976).
Leviatã, edição Martins Fontes, São Paulo, 2003 (traduzido para o
português por João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva).
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London, Penguin Books, 1985.
Natureza Humana (primeira parte dos Elementos da Lei), editado
pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa 1983.
Optical Treatise (Tratado Óptico I), tradução de G. M. Ross, texto
extraído do seguinte site: http:// www. Philosophy.leeds.ac.uk
The English Works of Thomas Hobbes, editado por W. Molesworth.
London: 1839 (edição eletrônica em CD-ROM - Intelex
Corporation, 1993).
Tratado sobre el cuerpo, na tradução castelhana do De Corpore
realizada por J.R. Feo, Madrid, Editorial Trotta, 2000.
52 Cláudio R. C. Leivas

2 Estudos sobre Hobbes


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PUF, 1992.
BERNHARDT, J. Hobbes, Paris, PUF, 1989.
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DERBHEY, G. R. Les choses mêmes: la pensée du reel chez
Aristote, Lausanne, Editions l´Age d´Homme, 1983.
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Paris, P.U.F., 1998.
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Columbia University Press, 1966.
GRUNDSTEIN, N. The Future of Prudence: Pure Strategy and
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Janeiro, Forense Universitária, 2001.
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A teoria óptica de Hobbes 53

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L´Antiquité, Paris, Éditions du Seuil, 1988.
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SPRAGENS, T.A. The Politics of Motion, London, The Trinity
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ZARKA, Y.C. La Décision Métaphysique de Hobbes, Paris, Vrin,
1987.
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siecle, n° 8, Paris, CNRS, 1986.
Jonh Locke e o realismo científico

Marcos Rodrigues da Silva *

Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir a inserção de John Locke na filosofia
do realismo científico no que diz respeito ao debate realismo/empirismo. Para
atingir este objetivo apresentarei a hipótese de Maurice Mandelbaum de que, com
relação ao problema da explicação científica, Locke parece estar alinhado com os
realistas. Para discutir esta hipótese, procurarei oferecer uma caracterização de
empirismo que seja apropriaada para o debate realismo/empirismo – caracterização
esta que buscarei na filosofia de Bas van Fraassen. Contudo, por meio desta análise,
não pretendo forçar o leitor à conclusão de que Locke não é um empirista; pois, por
mais que a conclusão deste artigo seja a de que Locke, com respeito ao problema
da explicação científica, não é um empirista, não se segue disto que Locke, com
respeito a outros problemas filosóficos, não o seja.
Palavras-chave: Empirismo, Filosofia da ciência, John Locke, Maurice
Mandelbaum, van Fraassen

Abstract: This article has as its aim to discuss the insertion of John Lock in the
philosophy of scientific realism in what concerns to the debate realism/empiricism.
To achieve this goal I’ll present the hypothesis of Maurice Mandelbaum in which,
on the topic of to the scientific explanation’s problem, Lock seems to be on the
same path as the realists. To discuss this hypothesis I’ll present a characterization of
empiricism which is appropriate to the debate realism/empiricism – characterization
that I’ll look for in Bas van Fraassen. However, through this analysis, I do not
intend to push the reader to the conclusion that Locke isn’t an empiricist, because,
even being the conclusion of this article that, about to the problem of the scientific
explanation, he is not an empiricist, it doesn’t mean that, in relation to other
philosophical concernments, he isn’t as well.
Keywords: Empirism, John Locke, Maurice Mandelbaum, Philosophy of Science,
van Fraassen

Introdução
Parece algo altamente anti-intuitivo afirmar que John Locke não é
um filósofo empirista. Seu tratamento acerca do problema da
recepção das idéias, do conhecimento a priori, da percepção etc nos

*
Professor adjunto da UEL (Londrina). E-mail: mrs.marcos@uel.br. Artigo
recebido em 30.09.2007 e aprovado em 20.11.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 55-65.


56 Marcos Rodrigues da Silva

impede, por certo, de classificá-lo fora do empirismo. Não obstante,


algumas passagens do texto de Locke colocam dúvidas taxonômicas
para o historiador do empirismo e, na hipótese de Maurice
Mandelbaum, tais dúvidas se acentuam ainda mais, sobretudo
quando comparamos os programas de Locke e Berkeley. Estas
passagens, é bom registrar, não dizem respeito à discussão
racionalismo/empirismo, mas ao debate realismo/anti-realismo
(sendo o empirismo um representante deste último). Aqui, focarei a
filosofia de Locke apenas no que toca ao debate realismo/anti-
realismo, que será denominado, neste artigo, debate
realismo/empirismo. Apresentarei a hipótese de Mandelbaum de
que, com relação ao problema da explicação científica (que é, em
linhas gerais, o ponto central da disputa entre realistas e empiristas),
Locke parece estar alinhado com os realistas 1 . Para discutir esta
hipótese, procurarei oferecer uma caracterização de empirismo que
seja apropriaada para o debate realismo/empirismo – caracterização
esta que buscarei na filosofia de Bas van Fraassen. Contudo, por
meio desta análise, não pretendo forçar o leitor à conclusão de que
Locke não é um empirista; pois, por mais que a conclusão deste
artigo seja a de que Locke, com respeito ao problema da explicação

1
De modo geral realistas argumentam que a aceitação de uma teoria bem sucedida
empiricamente implica a crença na sua verdade e, se a teoria contém entidades e
processos inobserváveis, aceitá-la significa acreditar igualmente na existência
destas entidades e processos; esta crença é fundamental, alegam os realistas, se
queremos preservar a idéia de que a ciência expressa conhecimento. Naturalmente
esta é uma apresentação simplificada do realismo científico; com efeito, é a
apresentação (igualmente sumária) de um (dos tantos disponíveis) argumento
realista: o argumento da inferência da melhor explicação. A importância deste
argumento reside em sua ênfase epistemológica; ou seja: por meio deste
argumento se pode compreender o realista científico como um filósofo que atribui
ao cientista boas razões (no caso, o sucesso de uma teoria) para suas crenças em
inobserváveis. Deste modo, por meio deste argumento, os cientistas têm boas
razões para crer em inobserváveis tendo em vista o sucesso das teorias que os
abrigam. Para importantes referências acerca da apresentação e discussão do
argumento da inferência da melhor explicação a partir de uma perspectiva realista
sugere-se Lipton (1991) e Psillos (1999).
Jonh Locke e o realismo científico 57

científica, não é um empirista, não se segue disto que Locke, com


respeito a outros problemas filosóficos, não o seja.
Este breve artigo inicia com uma rápida apresentação da
caracterização de empirismo de Bas van van Fraassen. Em seguida,
de posse dessa caracterização, procuro aplicá-la à a um aspecto da
filosofia de Locke, a saber, sua discussão da idéia de solidez.
Concluo o artigo mostrando que, apesar de Locke ter violado a
caracterização de empirismo de van Fraassen, não se segue que ele
não deva ser considerado um empirista, uma vez que a
caracterização de van Fraassen parece bastante apropriada para o
problema da explicação científica, mas não o é necessariamente para
outros problemas que estão presentes na literatura empirista.

1 Bas van Fraassen e uma caracterização do empirismo 2


Em seu Empirical Stance van Fraassen retoma uma proposta já em
curso desde ao menos 1994 (van Fraassen, 1994), proposta esta que
diz respeito a uma caracterização da filosofia empirista. Em linhas
gerais o argumento de van Fraassen é de que o empirismo não é uma
filosofia contrária ao realismo científico, uma vez que um empirista
(ao contrário de um realista) não precisa se comprometer com teses
epistemológicas acerca da realidade. Um realista é aquele que
acredita que as entidades inobserváveis postuladas por uma teoria
científica realmente existem 3 ; um empirista, ao contrário, não afirma
que elas não existem. Ao invés da crença o empirista precisa adotar
uma atitude (stance); no caso, ele deve rejeitar explicações por
postulados (que remetem a inobserváveis) e deve rejeitar a própria
demanda pelas explicações por postulados. É importante registrar
que van Fraassen não rejeita a idéia de que a ciência deve procurar
explicações; o que ele pretende é interditar a demanda por um certo

2
Este artigo não tem como objetivo reconstruir a argumentação de van Fraassen
acerca de sua caracterização da atitude empirista. Para esta reconstrução (e apenas
para esta reconstrução) ver Silva (2005a).
3
Isto não significa que esta crença seja desqualificada. Nos últimos tempos os
realistas têm procurado sofisticar cada vez mais as razões para esta crença; um
exemplo disto é o argumento da inferência da melhor explicação, apresentado
sumariamente na nota anterior.
58 Marcos Rodrigues da Silva

tipo de explicação: explicações que garantam a crença na existência


de inobserváveis. (Isto não significará, é claro que o empirista
deverá acreditar que os inobserváveis não existam.)
De acordo com van Fraassen, ao crer na existência das
entidades inobserváveis da ciência, o realista adota uma posição
filosófica, posição esta expressa por algum enunciado tal como: “eu
acredito na existência de entidades inobserváveis das melhores
teorias científicas vigentes”. Para van Fraassen, este enunciado é
distintivo da posição a ser assumida; portanto, um empirista, ao
assumir sua posição filosófica, teria de acreditar em algum
enunciado rival, tal como: “eu não acredito na existência de
entidades inobserváveis das melhores teorias científicas vigentes”,
ou ainda: “a experiência é a única fonte de informação sobre a
realidade”. O problema, para van Fraassen, seria a sustentação deste
enunciado empirista, sustentação esta que, de acordo com o autor
(2002, p. 41), não é possível de ser obtida. Assim se coloca a
pergunta: se o empirista não consegue enunciar sua posição
filosófica – ou seja: não consegue justificar sua crença -, talvez esta
filosofia nem chegue a ser uma posição filosófica. Entretanto, como
nenhum empirista gostaria de alcançar esta conclusão, van Fraassen
propõe que uma filosofia empirista não é uma posição filosófica que
se estruture em crenças acerca da realidade; ao invés da crença o
empirista deve adotar uma atitude (stance).
Esta caracaterização de empirismo proposta por van
Fraassen é bastante adequada para discussões a respeito do problema
do significado cognitivo da ciência, problema para o qual ele
apresenta sua própria alternativa: o empirismo construtivo (van
Fraassen, 1980). Como um dos objetivos de van Fraassen não é o de
desqualificar o realismo mas sim o de mostrar que há ao menos uma
outra alternativa para tratar do problema acima mencionado, então
pode-se compreender por que, em sua caracterização de empirismo,
o empirista não tenha necessidade de se preocupar com questões de
crença. Pois, para van Fraassen, é possível explicar o sucesso da
ciência (e com isso seu significado cognitivo) a partir de outros
parâmetros que não o exclusivamente epistemológico; seria possível,
Jonh Locke e o realismo científico 59

por exemplo, explicar o sucesso a partir de parâmetros pragmáticos


– levando-se em consideração outras razões (pragmáticas) que não
apenas a crença dos cientistas nos mecanismos inobserváveis que
sempre acompanham as melhores teorias científicas (cf. van
Fraassen, 1980, p. 83). Deste modo um empirista pode explicar o
sucesso da ciência sem estar comprometido com a crença em
observáveis 4 , uma vez que os fatores pragmáticos mencionados
acima também transcendem o observável (ainda que não remetam a
inobserváveis). Por outro lado, é claro, o empirista não deve se
comprometer com a crença em inobserváveis. A conclusão de van
Fraassen nos conduz portanto a deslocar a discussão do significado
da ciência do âmbito da epistemologia para o domínio da
pragmática.
Fundamentalmente a caracterização de van Fraassen sugere
ao empirista uma forma de escapar do seguinte dilema: ou as
explicações científicas remetem a inobserváveis ou tornam-se
desinteressantes e deficitárias (cf. Wilson, 1985, p. 138). Deverá ser
possível ao empirista encarar este dilema e tentar mostrar que ele
pode evitado. A impressão que se tem é a de que Locke tentou
resolver o dilema.

2 Locke e o realismo
De acordo com a hipótese de Mandelbaum (cf. Mandelbaum, 1964,
p. 1), John Locke havia sido (como Boyle e Newton) um atomista.
Ora, a adoção de uma posição como esta, no interior de uma disputa
a respeito do significado cognitivo da ciência, não é nada
4
Embora deva deixar claro que, em caso de alguma crença estar envolvida, esta
crença será naquilo que van Fraassen denomina de “adequação empírica” da
teoria; ou seja: crença naquilo que a teoria afirme a respeito de observáveis (cf.
van Fraassen, 1980, p. 12). Este é um aspecto da filosofia da ciência de van
Fraassen que é freqüentemente explorado pelos críticos do empirismo construtivo,
sobretudo tendo em vista a relação que este aspecto apresenta com a filosofia
empirista, cujas teses acerca da obtenção e justificação do conhecimento (em
geral, e não apenas conhecimento científico) são sempre rejeitadas pelos realistas.
Para algumas críticas no que diz respeito ao aspecto epistemológico (empirista) do
anti-realismo de van Fraassen ver Psillos (1996, p. 34) e Alspector-Kelly (2001, p.
422).
60 Marcos Rodrigues da Silva

desprezível, uma vez que ela implica uma concepção filosófica que
é decisiva para a compreensão de um certo posicionamento em
relação à ciência; a adoção de uma metafísica atomista é altamente
relevante para, de acordo com a caracterização de empirismo
utilizada, investigarmos se o próprio Locke poderia enquadrar-se
numa tal caracterização. Vejamos então como se pode apresentar a
relação entre atomismo e empirismo em Locke, e quais suas
conseqüências para este artigo. Em nossa discussão nos centraremos
apenas na apresentação que Locke faz do conceito de “solidez”.
Dada a tradicional concepção lockeana de que todo
conhecimento deriva-se da experiência, como se pode admitir que
determinadas estruturas imperceptíveis (partículas insensíveis)
expliquem o comportamento de objetos diretamente perceptíveis?
Esta situação é encontrada na seguinte passagem, sobre a idéia de
solidez: “Recebemos a idéia [de solidez] pelo tato ... Denomino de
solidez aquilo que impede a aproximação de dois corpos quando se
movem em direção um ao outro ... Esta, de todas as outras, parece
ser a idéia mais intimamente conectada com o corpo e essencial a
ele, de modo que não deve ser encontrada ou imaginada em lugar
algum exceto na matéria. Embora nossos sentidos, exceto em
grandes quantidades de matéria, não a observem numa grandeza
suficiente para causar uma sensação em nós, a mente, tendo uma vez
obtido esta idéia a partir de tais corpos sensíveis mais volumosos,
leva-a adiante e considera-a, assim como a figura, como as
partículas mais diminutas da matéria que possam existir; e descobre-
a inseparavelmente inerente ao corpo, mesmo que este se
modifique” (Ensaio II, IV, p. 1). A passagem é bastante clara: por
um lado fica evidenciado o compromisso de Locke com o alguma
forma de empirismo, por outro porém se percebe que a mente,
partindo da experiência, transcende o sensível e alcança algum
conhecimento acerca da realidade.
É importante enfatizar que Locke está enunciando uma tese
acerca da realidade. Porém isto, de acordo com Larry Laudan
(1981), não teria maiores problemas, uma vez que Locke não o faz
de maneira categórica, mas ancorado numa posição falibilista. De
Jonh Locke e o realismo científico 61

acordo com Laudan (1981, p. 62) há uma distinção, produzida pelo


próprio Locke, entre conhecimento e julgamento, e seria nesta
última categoria que se enquadraria, por exemplo, uma tese acerca
da “correspondência” entre uma proposição acerca de um evento
observável (os corpos sensíveis volumosos) e outra que fizesse
referência a inobserváveis (as partículas mais diminutas da matéria);
pois, para Locke (Ensaio IV, XIV, p. 4), “julgar é presumir que as
coisas são assim, sem percebê-las”. Portanto Locke não é um
infalibilista e muito menos um correspondentista. Além disso, para
Laudan, a explicação do funcionamento dos processos
inobserváveis, em Locke, se dá mediante o uso da analogia (1981, p.
62-63), e não por acesso epistêmico aos inobserváveis. Agora, como
funciona esta analogia? De acordo com Mandelbaum (1964, p. 53),
ela parte dos efeitos observáveis para as causas inobserváveis; mais
importante: as causas inobserváveis são postuladas como
estruturalmente análogas aos efeitos percebidos, e portanto uma
explicação, para Locke, seria construída por analogia a partir
daquilo que é efetivamente observado.
O problema então se dá pelo fato de que, a despeito de partir
da experiência, Locke, mediante o uso da analogia, viola uma das
regras do empirismo tal como caracterizado por van Fraassen. Pois
mesmo que se aceite a distinção enfatizada por Laudan, não se pode
negar a pressuposição (ainda que num nível explicativo, ou melhor,
sobretudo no nível explicativo) da crença na existência de entidades
inobserváveis por parte de Locke. Ou seja, conquanto Locke tenha
proposto um método hipotético para a avaliação da ciência (cf.
Laudan, 1981, p. 60), o que importa (ao menos para este artigo) é a
forma pela qual são introduzidas as entidades inobserváveis; e esta
forma, inegavelmente, se identifica com o realismo científico 5 .
Não parece restar dúvida de que Locke estava de fato
procurando, mesmo mantendo sua fidelidade a certos princípios
empiristas, uma explicação para os efeitos observáveis por meio do

5
Para Michael Devitt este procedimento de Locke – da experiência para o
inobservável – é típico de uma forma de realismo, o realismo representativo (cf.
Devitt, 1997, p. 67).
62 Marcos Rodrigues da Silva

apelo a causas inobserváveis, ainda que por analogia. Ora, não seria
exatamente este procedimento que seria depois criticado por
Berkeley em seu De Motu? De acordo com Berkeley, uma
explicação científica não precisa estar comprometida com causas
inobserváveis; mas não pelo fato de que tais causas não existam,
mas sim porque é possível explicar os fenômenos de modo mais
econômico, a partir de parâmetros (empiristas, no sentido de van
Fraassen) mais modestos 6 . Este modo mais econômico, por sua vez,
não significará que a explicação estará fundamentada na
experiência 7 , mas também não significará que se deva apelar a
inobserváveis. (Neste sentido Berkeley é um dos que não aceitou o
dilema “ou explique a partir de inobserváveis ou a explicação será
deficitária”.) Para Berkeley explicar um fenômeno não é, como
parecia ser para Locke, explicar a partir de causas inobserváveis (cf.
De Motu, 17); tampouco é explicar a partir da própria experiência
(cf. De Motu 31); com efeito, para Berkeley, explicar um fenômeno
é apresentar a conexão entre o próprio fenômeno e as leis que o
regem (cf. De Motu, 16/17) 8 .

6
Este parâmetro modesto seria seu instrumentalismo, o qual pode ser considerado
uma posição filosófica que nega que as leis científicas devam ser consideradas
verdadeiras. Uma apresentação do instrumentalismo de Berkeley feita pelo autor
pode ser conferida em Silva (2003).
7
Alhures argumentei, baseado em Newton-Smith (1985, p. 165) que o
instrumentalismo de Berkeley não está fundamentado em sua posição empirista
geral, fenomenalista (Silva, 2005b). Contudo acredito que, apesar de não estar
fundamentado em sua epistemologia empirista, o instrumentalismo de Berkeley
possui efetivamente uma forma de relação com esta esta epistemologia empirista;
ou seja: sua epistemologia empirista ocupa um papel em seu instrumentalismo. Há
um artigo em preparação no qual tratarei desta relação.
8
Deve-se também lembrar que alguns comentaristas de Berkeley não são
simpáticos à idéia de que Berkeley se preocupava com o problema da explicação
científica. Para Newton-Smith, Berkeley não estava interessado no problema da
explicação científica (Newton-Smith, 1985, p. 153), tendo em vista que ele tratava
os termos científicos como não possuindo significado; ou seja: como ficções úteis.
Para Buchdahl (1988, p. 285), Berkeley teria feito um movimento que o permitiria
aceitar o uso dos termos da mecânica, mas sem contudo atribuir-lhes significado.
Para Popper (1994, p. 136), Berkeley distingue entre termos significativos (com
referência empírica) e não-significativos (sem referência). Em outro artigo (Silva,
Jonh Locke e o realismo científico 63

Conclusão
John Locke nunca deixou de ser um empirista, pois a experiência,
para ele, é sempre a fonte que deve ser acionada para a busca de
conhecimento; no entanto é preciso registrar a robusta convicção
lockeana de que os objetos existem independentemente do
conhecimento humano; e, além de existirem, existem de uma certa
forma e por uma certa razão: por sua constituição atômica, a qual
causa a idéia que temos de um certo corpo (cf. Mandelbaum, 1964,
p. 60). Portanto, por mais precário que seja o conhecimento que
temos desta constituição (e ele, para um empirista, sempre será
precário), ele é ainda uma boa razão para formarmos crenças
garantidas sobre o mundo externo (cf. Mandelbaum, 1964, p. 54); e,
se o ponto em questão para a avaliação da inserção de Locke no
empirismo tal como caracterizado por van Fraassen é menos uma
questão de alcance do conhecimento (na qual Locke estaria
emparelhado com outros empiristas) do que propriamente de
justificação de crenças a partir da experiência, parece que Locke está
bastante distante da caracterização proposta por van Fraassen 9 .
Evidentemente seria uma injustiça condenar os esforços de
Locke de interpretar a ciência e, com base no resultado destes
esforços, considerá-lo um “não-empirista” pois, se é verdade que
Locke admitiu uma ontologia e uma epistemologia que continha e
remetia a inobserváveis, também é verdade que são suas algumas
das declarações mais contundentes contra o conhecimento a priori
das causas dos fenômenos observáveis; e, diante disso, parece
inegável que Locke deva ser considerado um empirista. Talvez, e
esta é minha hipótese, Locke não deva ser incluído na tradição
empirista tal como caracterizada por van Fraassen. Mas é claro que
fica aqui a questão de saber se esta caracterização é, de modo geral,

2006) apresentei a proposta de considerar Berkeley como um filósofo cuja


concepção da ciência nem sempre está comprometida com análise de termos, o
que poderia ser evidenciado por algumas passagens do De Motu, tais como os
parágrafos 11 e 43.
9
Em todo caso, permanece a questão de uma avaliação mais ampla da própria
filosofia da ciência de Locke, algo que não esteve presente no objetivo deste
artigo.
64 Marcos Rodrigues da Silva

oportuna - questão esta que foge aos limites tanto do artigo quanto
de minha compreensão atual sobre o tema. Em todo caso o que
posso dizer é que, direcionada para a discussão realismo/anti-
realismo, ela é bastante promissora.

Referências
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Empiricist?. Philosophy of Science n. 68, 2001.
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Scientiae Studia, v. 4, n. 1., 2006.
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Lanham: University Press of America, 1988.
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Princeton University Press, 1997.
LAUDAN, L. Science and Hypothesis. Dordrecht: D. Reidel, 1981.
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1991.
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Books of Western World. Chicago: Britannica, 1952.
MANDELBAUM, M. Philosophy, Science and Sense Perception.
Baltimore: Johns Hopkins Press, 1964.
NEWTON-SMITH, W.H. Berkeley’s Philosophy of Science. Essays
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PSILLOS, S. Scientific Realism: How Science Tracks Truth.
London: Routledge,1999.
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Berkeley. Scientiae Studia, v. 4, n. 1.,2006.
SILVA, M. O Instrumentalismo de George Berkeley. Ideações n.
11, 2003.
SILVA, M. Van Fraassen e a Caracterização do Empirismo.
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Jonh Locke e o realismo científico 65

SILVA, M. A Relação entre Empirismo e Instrumentalismo em


Berkeley. Temas e Matizes, n.8, 2005b.
VAN FRAASSEN, B. Against Transcendental Empiricism. The
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WILSON, M. Berkeley and the Corpuscularians. Essays on Berkeley
(ed. Foster, J. & Robinson, H.). Oxford: Clarendon Press, 1985.
Pressupostos metaéticos e normativos
para uma nova Ética ambiental

Darlei Dall’Agnol *

Resumo: O trabalho discute os pressupostos metaéticos e normativos para a


construção de uma nova ética ambiental. Em especial, ele procura mostrar que a
metaética realista que está presente nos escritos da assim chamada “ecologia
profunda” é problemática. Como alternativa, o trabalho apresenta uma análise
conceitual diferente de valor intrínseco e examina as suas implicações normativas e
práticas para uma ética ambiental.
Palavras-chave: Ética, Ética ambiental, Valor intrínseco

Abstract: This paper deals with the meta-ethical and normative assumptions for a
new environmental ethics. Particularly, it tries to show that the realistic meta-ethics
about intrinsic value underlying many of the writings of the so-called “deep
ecology” is flawed. It presents, then, a different conceptual analysis of intrinsic
value and sorts out its normative and practical implications for an ethics concerned
with the environment.
Keywords: Environmental ethics, Ethics, Intrinsic value

A visão verdadeiramente apocalíptica do mundo é a de que as coisas não


se repetem. Não é absurdo acreditar, por exemplo, que a era da ciência e
da tecnologia é o princípio do fim da humanidade; que a idéia de um
enorme progresso é uma ilusão; que nada há de bom ou desejável no
conhecimento científico e que a humanidade, ao procurá-lo, está caindo
numa armadilha. Não é de modo algum óbvio que as coisas não sejam
assim. (Wittgenstein, 2000, p. 86.)

Das muitas questões éticas desse início de Século XXI, a situação de


risco da vida como um todo sobre o nosso planeta é de longe uma
das mais importantes. Por essa razão, uma reflexão crítica sobre os
pressupostos metaéticos e normativos de uma nova ética ambiental
deve enfrentar o tema das relações entre princípios bioéticos e
princípios ecoéticos. Assim, se a bioética não for entendida apenas

*
Professor do Departamento de Filosofia da UFSC e pesquisador do CNPq. E-mail:
darlei@cfh.ufsc.br. Artigo recebido em 28.09.2007 e aprovado em 19.10.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 67-82.


68 Darlei Dall’Agnol

como uma ética profissional ligada às ciências biológicas e da saúde,


particularmente à biomedicina, mas como uma reflexão sobre o
início, o meio e o fim da vida como um todo, então ela
necessariamente precisa ocupar-se com questões ambientais.
Problemas como a diminuição da camada de ozônio, o
desmatamento, a degradação das terras cultiváveis, a eliminação de
várias espécies, a poluição da atmosfera, dos oceanos e dos rios, etc.
ameaçam o bem-estar de todas as formas de vida deste planeta,
incluindo a do ser humano. Além disso, se essas questões ambientais
não podem ser tratadas apenas em termos prudenciais, isto é, como
simples problemas para a sobrevivência humana, ou instrumentais (a
natureza como mero meio para usufruto humano), mas possuem
uma especificidade própria colocando questões únicas tais como o
valor da biodiversidade, então elas se constituem como um
problema ético a ser examinado dentro dos domínios de uma ética
ambiental, ou seja, da ecoética. Desse modo, a bioética e a ecoética
complementam-se como partes aplicadas de alguma ética normativa
sólida sob o ponto de vista metaético. Finalmente, ambas estão
interligadas na medida em que podem estar baseadas em princípios
normativos comuns que garantem a correta aplicação a problemas
particulares da vida como um todo.
Para compreender melhor as relações entre a bioética e a
ecoética, é necessário entender a ética como uma reflexão filosófica
sobre a moralidade, a qual é constituída por questões metaéticas,
normativas e práticas. Questões metaéticas são as relativas à própria
natureza da ética: se ela pode ser uma ciência, sobre a natureza dos
julgamentos morais, sobre a relação entre fatos e valores, sobre o
significado dos termos éticos básicos tais como “bom”, “correto”,
“valor,” etc. Questões normativas dizem respeito ao estabelecimento
de um critério (princípios, modos de ser, costumes, tradições, etc.)
para se diferenciar bom/mau, correto/incorreto, etc. As questões
práticas dizem respeito à aplicação desse critério, no presente caso,
de princípios ou valores, aos problemas particulares cotidianos
relacionados com a ação. Nesse sentido, a ecoética, a bioética, a
Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética Ambiental 69

zooética, a ética econômica, as diferentes éticas profissionais são


todas esferas da ética prática.
No presente trabalho, vou examinar de forma mais detalhada
a conexão metaética e normativa entre a bioética e a ecoética.
Particularmente, vou procurar analisar um princípio que geralmente
é invocado como elo entre questões bioéticas e ambientais, apesar
das especificidades das questões de cada uma dessas esferas da ética
aplicada. O princípio comum seria este: Reverencie o valor
intrínseco da vida. 1 É claro que esse princípio não é o que vigorou
ao longo da tradição ocidental ainda dominante baseada na descrição
bíblica da criação ou numa filosofia da natureza aristotélico-tomista
ou até mesmo kantiana. Todavia, essa visão segundo a qual a
natureza e os animais não-humanos não possuem nenhum valor em
si mesmos está sendo – e precisa ser– superada. Na verdade, a
noção de valor intrínseco possui uma aplicação que vai muito além
da bioética e da ecoética. Como já sustentei em outro lugar, “... as
questões práticas sobre a vida e a morte (por exemplo, o aborto, a
eutanásia, o suicídio, etc.), o meio-ambiente (por exemplo, o usos de
recursos naturais, a biodiversidade, etc.), a política (por exemplo, a
cidadania participativa, um governo democrático, etc.), a economia
(a produção e distribuição de bens materiais) e muitas outras podem
ser discutidas levando em consideração o conceito de valor
intrínseco.” 2 Assim, a democracia não seria boa somente porque
tem bons efeitos (por exemplo, garante a legitimidade do Estado e
incrementa o bem-estar geral), mas também em si mesma (por
exemplo, ela garante a participação igualitária das pessoas na
determinação dos arranjos sociais nos quais vivem).
Agora, na ética ambiental, a idéia de que a natureza possui
valor intrínseco não é nova e tem sido muito discutida nos últimos
1
Por exemplo, O’Neil sustentou que “manter uma ética ambiental é manter que
seres não-humanos e estados de coisas no mundo natural possuem valor
intrínseco.” Cf. O’Neil, J. Ecology, Policy and Politics. Human Well-Being and
the Natural World. London/New York: Routledge, 1993. p. 8.
2
Dall’Agnol, D. Valor Intrínseco. Florianópolis: Edufsc, 2005a, p. 355. O presente
trabalho é, basicamente, uma tentativa de estender aos problemas da ética
ambiental a concepção de valor intrínseco desenvolvida naquela obra.
70 Darlei Dall’Agnol

anos. O filósofo norueguês A. Naess, por exemplo, sustenta que


defender uma ética ambiental é manter que seres não-humanos e
estados de coisas do mundo natural possuem valor intrínseco. Em
seus próprios termos, “o bem-estar da vida não-humana na Terra
tem valor em si. Este valor é independente de qualquer utilidade
instrumental para propósitos humanos limitados.” (1984, p. 266) 3 . O
problema é que Naess usa “valor em si,” “valor intrínseco,” “valor
inerente” e “valor objetivo” como sinônimos e esse é um grave erro
metaético. Assim, há vários problemas de compreensão do que
significa atribuir valor intrínseco a algo. Geralmente, tal idéia é
entendida a partir de bases filosóficas insustentáveis, tanto
epistêmica quanto axiologicamente, e minha intenção é também
analisar o significado da atribuição de valor intrínseco à vida, além
de procurar extrair algumas das suas conseqüências normativas para
certas questões pontuais.
Inicialmente, vou comparar melhor, estabelecendo as
semelhanças e as diferenças, a bioética e a ecoética. Quando o
médico americano V. R. Potter usou pela primeira vez o termo
“bioética”, no início da década de 1970, ele pensou basicamente
numa ciência da sobrevivência humana, cuja existência estava – e
ainda está – afetada por graves problemas incluindo a destruição do
meio ambiente. Segundo Potter, seria necessário criar uma nova
ética capaz de re-unir fatos e valores que haviam sido separados pela
filosofia e ciência modernas cuja expressão máxima seria a
concepção positivista da neutralidade axiológica da ciência. 4 Como
pode ser visto, havia um claro entrelaçamento entre questões
bioéticas e ambientais.

3
No artigo “Deep Ecology,” os autores apresentam a concepção de Naess de valor
intrínseco nesses termos metaéticos: “The presence of inherent value in a natural
object is independnet of any awareness, interest, or appreciation of it by a
conscious being.” (Devall & Sessions 2000, p.153). Temos, aqui, uma concepção
realista, no sentido transcendente, de valor intrínseco ou inerente (os autores usam
essas expressões como sinônimas).
4
Para uma exposição mais detalhada da história da bioética e seus princípios
básicos ver: Dall’Agnol, D. Bioética. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética Ambiental 71

É interessante observar que Potter pensou na bioética como


a expressão de “uma nova sabedoria,” ou seja, “o conhecimento de
como usar o conhecimento” para a sobrevivência e para melhor a
qualidade de vida (Potter, 1971, p. 1). Também Naess (numa
entrevista reproduzida em Devall & Sessions, 2000) sustentou a
necessidade de uma expansão do pensamento ecológico em direção
a uma “ecosofia,” a qual exige uma virada da “ciência para a
sabedoria.” Percebe-se, assim, a necessidade de uma nova
epistemologia moral, não mais baseada no saber-que da ciência, mas
num saber-como, por exemplo, cuidar e respeitar o valor intrínseco
da natureza. Claramente, as atitudes de cuidar e respeitar a natureza
requerem mais do que um conhecimento informativo, ou seja,
requerem um saber-como. 5
Alguns anos antes de Potter, o ecologista americano A.
Leopold defendeu “uma nova ética” capaz de melhorar a relação do
ser humano com a terra, os animais e as plantas que nela vivem. 6
Foi a partir de idéias como essa que Naess estabeleceu a distinção
no movimento ecológico entre uma tendência profunda e outra
superficial. 7 O pensamento ecológico superficial trata a natureza a
partir da moral tradicional e assim não se deveria poluir as águas
porque elas são necessárias para a nossa sobrevivência. Segundo
essa tendência ecológica, a natureza teria apenas valor instrumental
para o ser humano. O pensamento ecológico profundo, ao contrário,
procura preservar a biosfera por ela possuir valor em si mesma, isto
é, independentemente dos benefícios que ela possui para os seres

5
Enquanto o saber-que pode ser definido como crença justificada em proposições
verdadeiras, o saber-como pressupõe a capacidade adquirida através do
treinamento de poder aplicar normas constitutivas de certos atos, atitudes ou
práticas morais.
6
“Toda ética até agora desenvolvida está baseada numa única premissa: que o
indivíduo é um membro de uma comunidade de partes interdependentes ... A Ética
da Terra alarga as fronteiras da comunidade para incluir solos, águas, plantas e
animais, ou coletivamente: a terra.” Leopold, A. 2000. p. 140. Essa afirmação
constitui-se na declaração fundamental de uma ética biocêntrica ou holista.
7
Naess, A. “The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movement.” Inquiry.
16 (1973): 95-100.
72 Darlei Dall’Agnol

humanos. Tal idéia é a base da chamada “ecologia profunda,” ou


seja, que o bem-estar da vida como um todo, tanto humana quanto
não-humana, possui valor intrínseco. É claro que há outras idéias
importantes que constituem a ecologia profunda como, por exemplo,
as suas bases metafísicas holistas e a crença na necessidade de
identificação do ego individual com o ego cósmico na busca da
auto-realização recíproca, a qual se constitui numa espécie de
experiência mística. Por exemplo, F. Mathews sustenta “a tese de
que nós, egos humanos, estamos numa relação holista – uma relação
de ‘unicidade’ (oneness) – com o próprio cosmos promete mais do
que uma lista de prescrições éticas. Ela promete uma chave para as
questões perenes de quem somos, porque nascemos, qual é a razão
da nossa vida, etc. Ela promete, brevemente falando, jogar luz sobre
o sentido da vida.” 8 Todavia, essas pretensões metafísicas da
ecologia profunda não serão abordadas aqui. 9
Com o passar dos anos, entretanto, as esferas bioéticas e
ecoéticas da ética aplicada tornaram-se distintas, embora não sejam
absolutamente separáveis. Nesse sentido, a bioética possui
princípios normativos específicos como, por exemplo, respeite as
pessoas, aja em benefício dos outros e não cause danos, trate
eqüitativamente as pessoas e distribua os bens da saúde segundo a
necessidade, etc. Esses princípios servem para legitimar uma série
de regras particulares (obtenha o consentimento informado, não
cause dor ou sofrimento, previna o dano, trate os direitos de todos
igualmente, etc.) como também virtudes específicas (discernimento,
compaixão, etc.). A ecoética também possui princípios normativos
próprios como, por exemplo: preserve a pluralidade (diversidade)
das formas de vida. Dele derivam-se deveres específicos tais como:

8
Mathews, F. “Value in Nature and Meaning of Life.” In: Elliot, R. (ed.)
Environmental Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 142.
9
Tampouco abordaremos todas as relações desse movimento com outras
orientações teóricas do ambientalismo tais como ecoconservacionismo,
ecofeminismo, ecoanarquismo, ecocapitalismo, etc. Para um estudo sociológico
sobre o impacto dos diversos movimentos ecológicos no ambientalismo brasileiro
ver: Alexandre, A. F. Ambientalismo Político, Seletivo e Diferencial no Brasil.
UFSC: DICH, 2003 (Tese de doutorado).
Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética Ambiental 73

a necessidade de salvar espécies em extinção, de proteger os


diferentes ecosistemas, etc. Todavia, como pode ser percebido, a
bioética e a ecoética possuem em comum o princípio de reverência
ao valor intrínseco da vida.
A questão central, então, que vai nos ocupar aqui é esta: o
que significa atribuir valor intrínseco à vida? Para responder a essa
questão é necessário, inicialmente, esclarecer que a análise que será
apresentada a seguir não é, no sentido filosófico, realista-
transcendente, ou seja, valor intrínseco não é tomado como uma
propriedade não-relacional. Vários defensores de uma ética
ambiental a partir do valor intrínseco da natureza usam esse conceito
num sentido transcendente. Por exemplo, Naess e Rothenberg
definem valor intrínseco como aquilo que é valioso
“independentemente de nossas valorações” (1989, p. 11). Naess é
um claro exemplo de alguém que toma valor intrínseco num sentido
realista não-relacional. Antes dele, G. E. Moore escreveu: “Vamos
imaginar um mundo por demais belo. Imagine-o tão belo quanto
você possa; coloque nele o que mais você admira – montanhas, rios,
o mar; árvores, os pores-do-sol, as estrelas e a lua. E então imagine
o mundo mais feio que você possa imaginar. ... [Eles são assim]
independentemente de qualquer contemplação por seres humanos.”
(1993, p. 135) Temos, aqui, claramente uma concepção realista não-
relacional de valor intrínseco. Mais tarde, entretanto, Moore
elaborou outra forma de analisar valor intrínseco em termos daquilo
que é “valioso de se ter por si mesmo” o que é claramente um
modelo relacional. Todavia, esse modelo não precisa ser tomado em
termos subjetivistas. Alguns autores, de forma equivocada, definem
valor intrínseco de forma subjetivista e, então, compreensivelmente
não conseguem elaborar uma ética ambiental a partir de tal conceito.
Singer, por exemplo, em seu capítulo sobre meio ambiente em Ética
Prática, não leva a sério um projeto de uma ética ambiental baseada
na noção de valor intrínseco por possuir uma concepção subjetivista
desse conceito. Em seus próprios termos: “Uma coisa tem valor
intrínseco se for boa ou desejável em si; o contraste se dá com o
‘valor instrumental’, que é um valor em forma de meio para a
74 Darlei Dall’Agnol

obtenção de algum outro fim ou objetivo”. 10 Entre essa noção


subjetivista de valor intrínseco, baseada naquilo que é desejado, e
uma realista no sentido transcendente, há uma outra alternativa que é
mais sólida tanto axiológica quanto epistemicamente. Essa “terceira
via” possui implicações práticas distintas que serão exploradas a
seguir.
Uma análise, no sentido estrito, de valor intrínseco tem sido
por mim apresentada nos seguintes termos: a atribuição de valor
intrínseco a um estado de coisas deve satisfazer as seguintes
condições: p escolhe x; x é bom, belo, correto, etc. em si; p está
escolhendo x por si mesmo. Nesse modelo, p representa um sujeito
cognitivo e valorativo capaz não apenas de interessar-se ou de
desejar algo, mas também de escolher algo que é bom. Fica aberta
aqui a questão de saber se somente seres humanos são capazes de
preencher essas condições ou não. A análise permanece válida
mesmo sem decidir essa questão. Quanto a x, pode-se tomar essa
variável como podendo representar qualquer objeto bom, belo,
correto, etc. em si mesmo, isto é, cuja fonte de seu valor não lhe seja
externa. Em outros termos, que seu valor lhe seja inerente. Supera-
se, assim, a polarização entre teorias éticas teleológicas e
deontológicas, pois tanto bom quanto correto são portadores de
valor inerente. Finalmente, a última condição estabelece que
qualquer que seja o indivíduo relacionando-se com x, tal relação
deve ser apropriada, ou seja, não pode tratar x como um mero meio,
mas como um fim em si. Por exemplo, p deve contemplar um objeto
belo por si mesmo. Em outros termos, tal relação não pode ser
instrumentalizadora. Satisfeitas as três condições, tem-se um estado
de coisas intrinsecamente valioso.
Esse é o momento adequado para esclarecer alguns
pressupostos filosóficos sobre análise de valor intrínseco acima
apresentada. Uma objeção que poderia ser feita é que uma ecoética
fundada no modelo acima apresentado seria antropocêntrica ou
cometeria a “falácia antropocêntrica”. Para responder a essa
objeção, é necessário esclarecer dois pontos. Primeiro, não é

10
Singer, P. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 289-290.
Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética Ambiental 75

possível ver o mundo a não ser com “olhos” humanos, isto é, não
podemos saber senão analogicamente como os outros seres vivos
que não possuem uma linguagem proposicional vêem o mundo.
Como Kant e Wittgenstein mostraram (o primeiro a partir da razão e
o segundo da linguagem), não podemos saber como é o mundo
independentemente do modo como o representamos. Nesse sentido,
o realismo transcendente é um equívoco filosófico que muitas vezes
está na base da atribuição de valor intrínseco à natureza como é o
caso dos defensores da assim chamada “ecologia profunda”. Assim,
qualquer tentativa de construir uma ecoética biocêntrica deve
reconhecer esse ponto, mas isso não significa que o ser humano
deva ser colocado no centro ou acima da natureza como
tradicionalmente foi feito. Ao contrário, somos uma forma de vida
entre outras. Por conseguinte, o modelo acima apresentado é
“antropocêntrico,” mas apenas num sentido fraco, a saber, diz
respeito ao modo como nós humanos podemos conhecer e valorar o
mundo, mas não é antropocêntrico num sentido forte, pois na
verdade descentraliza a forma de vida humana e seu lugar na
natureza. Isso pode ser claramente percebido, como foi dito
anteriormente, também quando não se fecha a questão de quem são
as pessoas no sentido estrito capazes de escolher e, por conseguinte,
de poder relacionar-se adequadamente ou não (instrumentalmente)
com algo valioso em si. Por conseguinte, fica aberta a questão de
saber se outros seres não-humanos, por exemplo, bonobos são
capazes de valorar intrinsecamente estados de coisas (i.e.,
prazerosos).
Outro pressuposto importante do modelo analítico acima
apresentado é que há uma divisão tríplice, como já é sabido desde
Platão e Aristóteles, entre os bens: alguns são meros meios para
outros bens (uma caneta é um mero instrumento para escrever),
outros são valiosos em si, mas também contribuem para o valor de
outros bens (virtudes tais como a justiça, conhecimento, etc. são
boas em si, mas podem se constituir em ingredientes para a vida
feliz) e alguns são absolutamente valiosos (por exemplo, a
felicidade). Assim, afirmar que um estado de coisas é
76 Darlei Dall’Agnol

intrinsicamente valioso não significa dizer que ele não possa


contribuir para o bem de outro estado de coisas. Nesse sentido, a
atribuição de bondade, beleza, etc., por exemplo, à biodiversidade e
a conseqüente possibilidade desta ser parte de um estado de coisas
intrinsecamente valioso não significa que ela não possa ser uma
fonte de inspiração artística ou um objeto de investigação científica
contribuindo para um estado de coisas com maior valor intrínseco.
Dada essa forma de analisar valor intrínseco, que
implicações se seguem para a ecoética? Claramente, uma primeira
conseqüência é a necessidade de superação da visão tradicional que
instrumentalizava a natureza como mero meio para as necessidades
e desejos humanos. Essa concepção está eliminando muitas formas
de vida, ameaçando outras e colocando a nossa própria
sobrevivência em jogo. Não se trata apenas de garantir um meio
ambiente que possibilite uma boa qualidade de vida para nós
humanos. Nesse sentido, a relação não pode ser simplesmente a de
manter as árvores e plantas necessárias para que se tenha um ar
limpo e respirável. Assim, reflorestar o mundo, por exemplo, com
pinus americanos poderia suprir a necessidade de madeira e manter
a atmosfera com o nível de oxigênio necessário para que os seres
humanos sobrevivam. Mas essa pode não ser uma relação
apropriada com a natureza. A biodiversidade é bela em si mesma.
Por isso, não podemos, por exemplo, destruir araucárias até a sua
completa extinção para reflorestar o mundo com pinus. Uma
araucária é bela em si mesma e a pluralidade na flora e na fauna é
boa em si mesma. Por conseguinte, uma relação apropriada com a
natureza não pode ser instrumentalizadora.
Outra implicação importante diz respeito à necessidade de
superação do tipo de racionalidade presente na economia neo-
clássica. Nesse sentido, cabe apontar, com Amartya Sen, que
“recentemente, vários filósofos morais ressaltaram – com acerto, a
meu ver – a importância intrínseca de muitas considerações que a
escola ética dominante do pensamento utilitarista julga terem um
valor instrumental.” (2002, p. 26). Assim, uma das pressuposições
da economia moderna do bem-estar, baseada no utilitarismo, foi
Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética Ambiental 77

exatamente a de que a soma total de utilidade era a única portadora


de valor intrínseco (Idem, p.46). Todavia, Sen procura mostrar a
necessidade de superação desse pressuposto e da conseqüente
insistência na eficiência econômica bem como da concepção dos
agentes humanos como sujeitos unicamente interessados em
maximizar o auto-interesse. Nesse sentido, Sen insiste na
necessidade de combinar restrições deontológicas (por exemplo,
direito à liberdade de escolha, etc.) com políticas de
desenvolvimento do bem-estar baseadas nos raciocínios
conseqüencialistas da economia. 11 Numa mesma linha de crítica dos
pressupostos da economia neo-clássica, John O’Neil, em Ecology,
Policy and Politics, critica as bases econômicas do mercado,
principalmente, as suas análises exclusivamente feitas em termos de
custo-benefício, como sendo incapaz de dar o devido valor às
questões ambientais. Tem-se, então, uma relação inapropriada,
denunciável a partir do modelo analítico acima apresentado, entre
sujeitos, que não podem ser entendidos apenas como agentes
buscando maximizar o auto-interesse, mas como capazes de
responder adequadamente àquilo que é valioso em si.
Outra implicação importante diz respeito ao modo como os
seres humanos relacionam-se com os animais não-humanos. É óbvio
que temos que manter aqui, como Callicott (1998) corretamente
chamou a atenção, as diferenças entre a ética ambiental e o
movimento de libertação dos animais baseado em direitos.
Claramente, o modelo analítico acima apresentado exige uma
relação apropriada com os animais não-humanos, isto é, nenhum ser
vivo pode ser considerado uma mera comodidade, ou seja, como
mero bem de consumo para o ser humano. Nesse sentido, as
pesquisas científicas, principalmente as biotecnológicas, precisam
ser conduzidas dentro de padrões éticos rigorosos. Elas são
moralmente permissíveis se contribuírem para a vida como um todo,
isto é, se produzirem benefícios inclusive para a espécie que está
sendo investigada e não apenas para os seres humanos. A questão do

11
Sobre esse ponto ver o item “Avaliação Conseqüencial e Deontologia” em: Sen,
A. Sobre Ética e Economia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.90-94.
78 Darlei Dall’Agnol

uso de animais não-humanos para alimentação é mais delicada, mas


certamente o modelo acima apresentado coíbe a caça se ela for feita
para fins de pura diversão humana. Trata-se de uma relação
inapropriada com algo que possui beleza em si mesma e isso
constitui um estado de coisas que não é intrinsecamente valioso.
São exatamente as relações inapropriadas com a natureza
que estão levando a uma situação de risco para a vida como um todo
aludido no início desse trabalho. Mesmo que se sustente que
estamos num mundo pós-natural, ou seja, que já interferimos
demasiado no meio ambiente do planeta como um todo a ponto de
transformá-lo em algo artificial e que uma visão romanticamente
naturalista somente subsiste em mentes nostálgicas, há um perigo
eminente de irreversibilidade de alguns processos industriais
destrutivos da vida. 12 Nesse sentido, somente o devido respeito à
vida poderá contribuir para uma verdadeira mudança de atitude do
ser humano suficiente para impedir uma catástrofe causada pela má
aplicação de uma tecnologia supostamente neutra sob o ponto de
vista axiológico, isto é, livre de valores.
Essas considerações devem levar a uma discussão mais
aprofundada sobre o papel que o conhecimento científico
desempenha na nossa sociedade e sua relação com o princípio
ecoético aqui examinado. Freqüentemente, a ciência e a tecnologia
são apontadas como as responsáveis pela destruição do meio
ambiente e, nesse sentido, representariam um desrespeito ao valor
intrínseco da vida. Uma visão baconiana da ciência, cuja premissa
fundamental é “saber é poder” e, por conseguinte, a ciência existe
para dominar e subjugar a natureza aos interesses humanos, pode
realmente ter conseqüências desastrosas. O nascimento da bioética e
da ecoética na segunda metade do Século XX, como vimos acima,
não é mero acaso e se constitui numa resposta a essa visão do
mundo. Assim, se considerarmos a ciência como uma forma de
conhecimento cuja aplicação é a tecnologia, então podemos

12
Sobre esse ponto ver: Rouanet, L. P. “Ética ambiental e irreversibilidade.” In:
Dutra, L. H. Mortari, C. Ética. Anais do IV Simpósio Internacional Principia.
Parte 2. Florianópolis: NEL: 2005, p. 143-155.
Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética Ambiental 79

sustentar que o que precisa ser superado é a visão positivista que


estava baseada na suposta neutralidade axiológica da aplicação do
conhecimento científico. 13 E é exatamente essa concepção da
relação entre ética e tecnociência que tem predominado
ultimamente.
Nessa linha de raciocínio, Resnik, em The ethics of science,
procura estabelecer alguns padrões éticos de conduta no
desempenho da atividade científica. São eles: 1) Honestidade:
cientistas não devem fabricar, falsificar ou adulterar dados ou
resultados; devem ser objetivos, abertos (sem pré-juízos) e honestos
em todos os aspectos do processo de pesquisa. 2) Cuidado:
cientistas devem evitar erros na pesquisa, especialmente ao
apresentar resultados; devem minimizar erros experimentais,
metodológicos, humanos e evitar o auto-engano, o preconceito e o
conflito de interesses. 3) Publicidade: cientistas devem partilhar
dados, métodos, idéias, técnicas e ferramentas; devem permitir que
outros cientistas revisem seus trabalhos e devem estar abertos à
crítica e às novas idéias. 4) Liberdade: cientistas devem ser capazes
de conduzir a pesquisa sobre qualquer problema ou hipótese; eles
devem ser capazes de perseguir novas idéias e criticar as antigas. 5)
Devido Reconhecimento: os créditos da pesquisa devem ser dados a
quem mereça. 6) Educação: cientistas devem educar iniciantes e
assegurar que eles aprendam a conduzir bem a ciência; cientistas
devem educar e informar o público sobre a ciência. 7)
Responsabilidade Social: cientistas devem evitar causar dano à
sociedade e devem procurar produzir benefícios sociais; cientistas
devem ser responsáveis pelas conseqüências de suas pesquisas e
devem informar o público sobre estas conseqüências. 8) Legalidade:

13
Não entrarei, aqui, na difícil questão da relação entre fatos e valores. Todavia, é
necessário salientar que não se pode cometer a falácia naturalística (ver
Dall’Agnol, 2005a, p. 150-190), mas, ao mesmo tempo, também não se pode
negligenciar o fato de que a ciência enquanto atividade e, principalmente, a
tecnologia enquanto aplicação do conhecimento científico estão imbuídas de
valores. Para uma recente discussão sobre esse tópico ver: Putnam, H. The
collapse of the fact/value dichotomy and other essays. Massachusetts: Harvard
University Press, 2002.
80 Darlei Dall’Agnol

no processo de pesquisa, cientistas devem obedecer às leis


relacionadas com seu trabalho. 9) Oportunidade: não deve ser
negada ao cientista a oportunidade de uso dos recursos científicos
para o progresso do conhecimento. 10) Respeito mútuo; cientistas
devem tratar seus colegas com respeito. 11) Eficiência: cientistas
devem usar os recursos sejam naturais sejam financeiros,
eficazmente. 12) Respeito pelas pessoas: Cientistas não devem
violar os direitos ou a dignidade quando usam pessoas em
experimentos; cientistas devem tratar animais não-humanos com o
devido respeito e cuidado quando estão sendo usados em
experimentos. Dentro desses padrões éticos, a atividade científica e
a suas aplicações tecnológicas não se constituirão em desrespeito ao
princípio básico da ecoética acima examinado.
A tecnociência e a ecoética não precisam necessariamente
opor-se, mas podem e devem complementar-se. Uma questão
interessante nessa relação é, por exemplo, a dos transgênicos e seus
efeitos no meio ambiente. Ela será discutida aqui somente com
finalidades ilustrativas. Muitos argumentam que os transgênicos não
são naturais, que podem prejudicar a saúde humana e animal, que
podem destruir outras espécies de plantas, provocando até mesmo
um desastre ambiental. Mas outros argumentam que não há
evidências suficientes para mostrar que esse é o caso. Ao contrário,
a tecnologia responsável pela produção de transgênicos não apenas
teria beneficiado o meio ambiente ao diminuir os pesticidas como
também pode contribuir para salvar ou incrementar a biodiversidade.
Por exemplo, muitos conhecimentos advindos da biologia molecular
podem, hoje, salvar várias espécies de plantas e animais em
extinção. 14 Todavia, há sérios argumentos contrários à produção e
comercialização de plantas e animais transgênicos. O debate está
longe de atingir um consenso mínimo. Seja como for, visto que a
biodiversidade é boa em si mesma, tais usos do conhecimento
científico se enquadram no devido respeito ao valor intrínseco da
vida.

14
Ver: Watson, J. D. DNA: o segredo da vida. São Paulo: Companhia das Letras,
2005. p.151s.
Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética Ambiental 81

Para finalizar, sem pretensões conclusivas, gostaria de


citar mais um pensamento de Wittgenstein sobre a ciência e a
tecnologia: “A ciência e a indústria, e o seu progresso, podem vir a
ser a coisa mais duradoura no mundo moderno. Provavelmente,
qualquer especulação sobre um futuro colapso da ciência e da
indústria não é, por enquanto e por um longo período de tempo,
mais do que um sonho; talvez a ciência e a indústria, responsáveis
por misérias infinitas no decorrer do tempo, venham a unir o mundo
– quero dizer, a condensá-lo numa única unidade, em que decerto a
paz será a última coisa a habitar.” (2000, p. 95) Pergunta, então, para
refletir: a ciência, a tecnologia e a indústria não deveriam estar à
serviço da vida para reverenciá-la dando-lhe o devido valor?

Referências
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MOORE, G.E. Principia Ethica. Cambridge: Cambridge University
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82 Darlei Dall’Agnol

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NAESS, A. & ROTHENBERG, D. Ecology, Community and
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WATSON, J.D. DNA: o segredo da vida. São Paulo: Companhia
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WITTGENSTEIN, L. Cultura e Valor. Lisboa: Edições 70, 2000.
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes?

Inês Lacerda Araújo ∗

Resumo: Quando o pensamento se volta para a subjetividade, a linguagem está


ausente. E quando a linguagem é questão, a subjetividade fica de fora, como
mostrou Foucault em As Palavras e as Coisas. Serão elas mutuamente excludentes?
Desde fins do século XIX a linguagem tem sido abordada pela lógica, pela
lingüística, pela filosofia analítica. Pensar só é possível se houver uma estrutura
semântica, segundo Frege e Wittgenstein. Dá-se a virada lingüística. Porém esse
modelo não dá conta da fala, do contexto, limita-se à sentença proposicional. Após
a virada pragmática, subjetividade e linguagem se relacionam num outro nível, a
questão passa a ser a intersubjetividade, e nesse sentido, sujeito e linguagem não se
excluem. É o que se pode depreender da concepção de jogos de linguagem de
Wittgenstein, de racionalidade comunicativa de Habermas e de crítica à
representação de Rorty, através de suas respectivas noções de formas de vida,
entendimento comunicativo e uso de discursos. O sujeito é constituído pela ação e
pela fala.
Palavras-chave: Subjetividade, Virada lingüística, Virada pragmática

Abstract: Whenever philosophy is occupied with subjectivity, language is absent.


And whenever language is focused, subjectivity is not, as Foucault argues in The
Order of Things. Since the ending of the 19th century language has been a central
matter in logic, linguistics and analytic philosophy. Thinking is possible just if there
is a semantic structure, following Frege and Wittgenstein (linguistic turn). But in
this kind of thinking, the speech and the context do not count, just the sentence in
its form of proposition. It is necessary to take into account speakers, the speech acts
and the dialogue context. After the pragmatic turn, language is a matter of
“intersubjectivity”, and in this sense, language and subjectivity are not mutually
exclusive. These is clear in Wittgenstein’s conception of language game, of
Habermas’ communicative rationality and in Rorty’s critique of representation;
following their concepts of life forms, understanding and the use of discourse, the
subject is a construction, a result of action and language.
Keywords: Linguistic turn, Pragmatic turn, Subjectivity


Professora do Departamento de Filosofia da PUCPR. E-mail:
ineslara@matrix.com.br. Artigo recebido em 02.08.2007 e aprovado em
18.10.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 83-103.


84 Inês Lacerda Araújo

1 A virada lingüística e a virada pragmática


O tema da “linguagem” só se tornou objeto de preocupação
filosófica a partir do final do século XIX. Para caracterizar a
linguagem, sob as formas nas quais ela foi analisada desde então,
tem-se as seguintes dimensões: a de signo pelo qual a linguagem se
estrutura e as significações são articuladas; assim há simbolização e
“semiotização” da realidade; a de proposição que representa estados
de coisa através de recursos lógico-lingüísticos (sintáticos e
semânticos); a de ato de fala como execução de uma ação lingüística
que demanda um tipo de comportamento e um uso em situação; a de
discurso pelo qual se efetivam o dizer e o dito, lugar de constituição
do sujeito nas formações discursivas e lugar de comunicação
intersubjetiva, com valor e força social, política. A subjetividade é o
tema central da fenomenologia, pelo menos se entendermos
subjetividade no sentido de interioridade pessoal, fonte de sentido e
da intencionalidade da consciência. Não se trata mais do sentido
transcendental kantiano de razão e nem do sentido hegeliano de
subjetividade imanente à progressão da razão humana. No sentido
fenomenológico há uma aproximação com o cogito cartesiano, visto
como mente cuja substância é o pensamento.
As dimensões acima mencionadas da linguagem (signo,
proposição, ato de fala e discurso) se articulam, não é possível isolar
umas das outras, a não ser para efeito de análise. Isso porque a
linguagem não se limita ao aspecto gramatical, ou semântico ou
lógico ou pragmático-discursivo. Se um desses recursos ou
características faltar, ou se eles forem sobrepostos e confundidos, o
resultado é uma concepção equivocada e limitada do fenômeno
“linguagem”. Após a virada lingüística o pensamento ocidental
volta-se para questões lógicas, filológicas, semióticas, semânticas,
no âmbito da lingüística e na filosofia da linguagem. Houve um
corte epistemológico a partir do qual a linguagem, até então tida
como simples meio de representação do pensamento, passa a ser um
dos focos centrais da filosofia, especialmente com a lógica
proposicional em fins do século XIX e a lingüística estrutural no
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 85

início do século XX. Após a virada pragmática, a análise se volta


para o uso, o contexto, os falantes, o discurso.
Nas concepções clássicas de filosofia, a linguagem era vista
como mero instrumento para o pensamento representar o mundo. No
momento em que a linguagem passa a ser levada em conta para a
compreensão do pensamento, o que fica excluída é a subjetividade
no sentido de propriedade de um sujeito que apreende e representa o
mundo. Para a fenomenologia husserliana o que conta é a
intencionalidade da consciência. Dá-se uma verdadeira revolução
quando a questão se inverte: no lugar de ser expressão do
pensamento, de um logos pensante, algo residual com relação às
formas puras e transcendentais, a linguagem passa a ser analisada
enquanto uma estrutura articulada, independente de um sujeito ou
de uma vontade individual, não mais submetida à função exclusiva
da referência e da nomeação. Para significar é preciso que a
linguagem se estruture semanticamente, e este é o papel das
proposições.
A virada lingüística produz uma radical transformação de
perspectivas e de temas; não cabe mais enfatizar os fundamentos
últimos e a busca de certeza; ao invés de buscar as fontes, critérios e
substrato do conhecimento, checar os limites e propriedades da
razão, há uma preocupação com a estrutura significante da
linguagem, a capacidade de “semiotização da realidade”, a relação
entre pensamento e realidade por ele apreendida, se faz através do
enunciado lingüístico. São exemplos dessa renovação, a lingüística
do signo de Saussure, precursor do movimento estruturalista (anos
50 e 60), a lógica matemática (Frege, Russell, I Wittgenstein), o
neopositivismo (Carnap, Neurath). A virada lingüística leva a uma
reformulação da filosofia, que assume características de pensamento
pós-metafísico, i. e., não mais a busca de certeza e de um
fundamento último para a verdade, ela é “desse mundo”, diz
Foucault.
Seguiu-se a esse, um novo movimento, o da virada
pragmática que se deve à semiótica de Peirce, à concepção de jogos
de linguagem de Wittgenstein a partir de Investigações Filosóficas,
86 Inês Lacerda Araújo

de atos de fala (Escola de Oxford), de formações discursivas, objeto


de análise de Foucault (As palavras e as coisas e Arqueologia do
saber), a teoria da ação comunicativa de Habermas, para mencionar
as contribuições mais relevantes. O momento crucial é a passagem
da análise lógico-lingüística, cujo núcleo é a proposição, com seus
dois componentes, o significado e a referência (Frege) e que alcança
seu ponto máximo na teoria da figuração tractariana – para a análise
da linguagem ordinária, sem núcleo algum. “Compreender uma
sentença é compreender uma linguagem. Compreender uma
linguagem significa dominar uma técnica”, diz Wittgenstein (2001,
p. 68, § 199). A relação entre linguagem e
representação/pensamento, se dá não por propriedades mentais da
significação, pois o significado não é “mental”, como argumenta
Quine. A significação é uma função de regras e combinações de
signos que funcionam em um sistema lingüisticamente estruturado e
nele assumem determinado valor. Pelo aprendizado dessas regras
públicas, torna-se possível significar, comunicar, referir, executar os
inumeráveis jogos lingüísticos. As línguas se estruturam
gramaticalmente (sintaxe e semântica) e cada fala realiza um ato
específico (afirmação, pedido, ordem, descrição, entre outros). Por
isso mesmo a significação não se dá pela relação entre a palavra que
designa e o objeto designado, resultado de uma suposta relação
direta com a coisa nomeada, mas por pertencer ao sistema da língua,
que tem suas regras próprias, cujo funcionamento não depende de
uma consciência individual, limitada a expressar o pensamento. Em
Investigações filosóficas Wittgenstein argumenta que a nomeação é
um jogo primitivo de linguagem, há inúmeros outros jogos. A
linguagem é uma ferramenta pública, ordinária, do dia-a-dia, suas
regras têm um caráter pragmático, não se restringem à forma lógica
da proposição, aliás, não são suscetíveis de formalização, pois se
prestam a um uso contextual. Os jogos de linguagem e suas regras
apontam numa direção, obedecem a semelhanças de família, não
havendo estrutura alguma privilegiada para mostrar que as coisas se
dispõem no espaço lógico da afiguração, como pensava no
Tractatus. Há uma multiplicidade de jogos de linguagem, como
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 87

prometer, ordenar, descrever, contar histórias, sugerir, ironizar, etc.


Essa multiplicidade corresponde a ‘formas de vida’. Não há um
núcleo comum, um fio único a amarrar os jogos ou os usos
lingüísticos todos. Tal como numa corda, a trama é tecida com
vários fios que garantem sua resistência (cf. 2004, p. 106).
Em Word and object (1961), Quine mostra que essa relação
depende do aprendizado lingüístico e de uma ontologia de objetos
cuja função decorre da lida prática com o mundo das coisas.
Enfim, após a virada lingüístico/pragmática, a filosofia
deixa de lado a análise das representações mentais, e passa a analisar
a linguagem cujas expressões gramaticais, proposições com valor de
verdade, atos de fala e discursos, não são produtos de uma
subjetividade, e sim formas culturais, simbólicas, que foram
aprendidas e que têm um uso determinado.

2 O sujeito e a linguagem
Como explicar que a linguagem tenha sido objeto de estudo recente
da filosofia? Como entender que sua presença anula a subjetividade,
conduz à “morte do homem”? Ou, dito de outro modo, por que na
história do pensamento ocidental, quando o homem foi questão
(concepção clássica nas diversas correntes humanistas), ou o sujeito
(concepção de um cogito, de uma mente pensante cartesiana), ou um
eu transcendental (como para Husserl), ou ainda uma subjetividade
(a consciência do pour soi de Sartre), a linguagem não foi questão?
Trata-se, como pergunta este texto, da exclusão mútua entre
subjetividade e linguagem? O surgimento da linguagem como
problema central para o pensamento ocidental, se deve, segundo
Foucault em As palavras e as coisas (1966) à formação discursiva
do final do século XVIII que vem até nossos dias. Numa formação
discursiva, conceitos se modificam, novos objetos surgem para o
saber, em “um solo positivo sobre o qual serão construídas as teorias
dos ordenamentos das coisas e as interpretações que elas produzem”
(Foucault, 1966, p. 12). Nesta perspectiva, quando acontece a
ruptura com o pensamento clássico que analisava o mundo pelas
representações, pelas classificações, pela ordenação das coisas num
88 Inês Lacerda Araújo

espaço empírico, um novo ordenamento do saber entra em cena. E


nele o sujeito é o homem, que vive, trabalha e fala; nessa figuração
do saber, em que o homem conhece através de condições finitas (a
linguagem é fruto da evolução histórica, a vida é finita, e o trabalho
é precário), aquilo que ele é, não há mais lugar para o cogito.
Em nossa formação discursiva, a linguagem sofre uma
transformação, não há mais a gramática que a unifica. No final do
século XIX, a linguagem se dispersa nas análises da filologia, na
formalização que a despe de seu conteúdo concreto, na
hermenêutica, e na literatura. Ao contrário da biologia e da
economia política, centradas na vida e no trabalho, respectivamente,
a linguagem se reparte e “talvez seja essa a razão pela qual a
reflexão filosófica esteve durante tanto tempo distante da
linguagem”, afirma Foucault (1966, p. 316). No espaço da filologia
e da filosofia que Nietzsche abriu, a linguagem surge de modo
disperso e enigmático, no qual a pergunta sobre quem fala, tem
como resposta: é a própria linguagem, a significação não é obra de
um sujeito, não é possível que um sujeito detenha os códigos de
significação. Quando o discurso se desprende da representação, o
pensamento caminha na direção da linguagem, de “seu ser único e
difícil” (Foucault, 1966, p. 317). O fim da era da representação é
também o fim do sujeito cognoscente. Nessa nova ordem do saber o
ser do homem é deslocado pela psicanálise, pela lingüística e pela
etnologia. O inconsciente, o sistema de signos e a diversidade de
culturas “formam”, estruturam o homem. Toda “subjetividade”
passa por esses filtros, quer dizer, pensar, falar e usar utensílios são
atividades que constituem o homem. O pensamento resulta dessas
possibilidades concretas e não de um princípio unificador,
transcendental, fonte de identidade, reduto do “si mesmo”. Não há
mais pensamento inocente ou primordial, fruto de uma consciência
subjetiva livre para apreender, pensar, conhecer. Daí a crítica de
Foucault às filosofias do sujeito: elas pressupõem que a
subjetividade constitui o homem, que a consciência intencional é a
fonte e a essência do conhecimento. A fenomenologia e o
existencialismo respondem à pergunta de Kant, “O que é o
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 89

homem?”, afirmando que ele tem uma essência, que para a primeira
é a consciência intencional, para o segundo, a existência. Essa
resposta é ingênua, circular, uma vez que surge de condições
empíricas que produzem um pensamento sobre o homem, mas que
são consideradas, pelas filosofias do sujeito, como transcendentais;
tomar o empírico como transcendental é tentador, porém inviável,
impensável depois de Kant.
A linguagem é necessária ao pensamento, à constituição do
mundo, à significação das coisas. Então não há mais lugar para a
subjetividade? Entendida no sentido de um sujeito pensante, de um
ego transcendental, esta subjetividade flutua no vácuo. É preciso
fazer uma análise das capacidades lingüísticas que se dão
primeiramente no nível lógico/lingüístico e depois no nível
pragmático das formas de vida culturais para entender subjetividade
como intersubjetividade. O modelo de subjetividade fundadora se
dissolve na medida em que o homem é um ser vivo, falante, finito, e
que não pode alçar a si mesmo fora das formas culturais e sociais
que o constituem. De Nietzsche a Heidegger, o sujeito humano é
visto como aquele que resulta dessas condições empíricas,
históricas, culturais e, em seu saber, apreende essas condições e as
analisa. O horizonte do conhecimento é formado e transformado por
aquelas mesmas condições. Não é possível sair da linguagem sem a
linguagem, afirma Habermas, também um crítico das filosofias do
sujeito (cf. Pensamento pós-metafísco). Filosofias de cunho
transcendental, de veio humanista, com propostas salvíficas, não têm
mais lugar no pensamento pós-metafísico, que passa pelo giro
lingüístico e pelo giro pragmático.
Paralelamente, nesse modelo, não há algo absolutamente
exterior, como uma realidade em si mesma. A revolução lingüística
só foi possível após a revolução kantiana. Sujeito e objeto não são
pólos absolutos do conhecimento. O pensamento pós-metafísico foi
o primeiro passo para mostrar que somos formas de vida que
desenvolveram meios para pensar, calcular, planejar, ordenar, fazer
ciência, fazer filosofia, entre tantas outras atividades. Nessas formas
cotidianas de vida há necessidade de lidar com as diversas situações,
90 Inês Lacerda Araújo

solucionar problemas, conduzir propósitos e intenções, perseguir


desejos, firmar crenças, e muito mais.
Neste sentido, se pode inclusive chamar a essas atividades
de “subjetivas”, próprias de certa pessoa, com seu modo peculiar de
ser e pensar. E isto se dá em formas de vida que agem e se
comunicam não por possuírem uma consciência subjetiva
ordenadora, transcendental, e sim pelas ações intersubjetivas, pelas
quais se compartilham formas simbólicas, significações, linguagens.
Ou seja, aquilo que se chama de “subjetividade”, não é a essência
humana, pois depende de condições históricas, culturais, sociais; há
jogos de linguagem, próprios a certas circunstâncias, com certa
finalidade, em que supor uma subjetividade faz sentido, por
exemplo, para diferenciar de objetividade no âmbito de apreciação
valorativa (cf. Rorty, 1969).

3 Da proposição aos jogos de linguagem e aos atos de fala


Sem a proposição, para Frege, não é possível referir-se e significar.
E para falar de algo com sentido, não é necessário que esse algo
exista. A linguagem sendo meio de comunicação e de conhecimento
permite a transmissão e compreensão do “sentido” (Sinn), sem
precisar recorrer à referência. Sentenças que negam, sentenças que
descrevem o rei da França ou a Grécia de Péricles têm significado,
mesmo que o referente esteja no passado histórico ou que não possa
ser verificado. Numa sentença assertiva completa, Frege distingue o
sentido, que ele chama de pensamento e a referência ou significação
da sentença (Bedeutung). A referência de uma sentença possibilita
atribuir um predicado de um sujeito. “O pensamento perde valor
para nós tão logo reconhecemos que a referência de uma de suas
partes está faltando” (Frege, 1978, p. 68). O que mostra que além do
pensamento é preciso haver valor de verdade, pelo menos no caso
das asserções que demandam algum tipo de verificação, pois o
sentido de uma sentença acerca de um personagem de ficção, por
exemplo, não exige nenhuma preocupação com valor de verdade.
Essa distinção foi decisiva, como lembra Quine. É perfeitamente
possível falar com sentido a respeito de entidades e de suas
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 91

propriedades sem implicar a existência, em qualquer sentido do


termo, da coisa referida, nomeada, designada.
Diz Quine: “... há um abismo entre significar e nomear,
inclusive no caso de um termo singular que seja genuinamente nome
de um objeto” (1962, p. 34). Frege “desontologiza” a linguagem. Há
expressões com sentido mesmo que não tenham referência. Duas
afirmações podem referir-se a uma mesma situação, mas ter modos
de apresentação diferentes, portanto, permitem o progresso do
conhecimento.
Carnap, preocupado com as ciências naturais, propõe algo
diverso, a construção lógica do mundo requer que a proposição
tenha conteúdo empírico. A concepção tractariana de significação
como figuração do mundo, é reformulada por Carnap em função das
sentenças das ciências naturais. As proposições da ciência têm
significado por serem as únicas suscetíveis de verificação
(testabilidade ou corroboração). O sentido de uma asserção depende
da relação referencial entre linguagem e realidade, construída pela
sintaxe da proposição. Sem aquela relação, não há valor de verdade,
sem valor de verdade não há o que verificar, nem como verificar.
Quine e Rorty criticam essa abordagem, a forma lógica da
proposição não é o passe para a referência, esta é uma função não da
sentença, mas do uso da sentença. A semântica formal limita a
linguagem à sentença. Ora, é o pensamento, no sentido de Frege,
que apreende um estado de coisa, que exprime um estado de coisa.
Quer dizer, há uma diferença entre uma proposição expressar um
fato, julgar a validade de um juízo, afirmar, e a representação de um
objeto feita pela consciência individual. Uma asserção ou afirmação
é um ato lingüístico pelo qual se pretende que tal ou tal estado de
coisa pode ser caracterizado como um estado de coisas permanente,
sobre o qual faz sentido falar. Pode-se afirmar ou fazer uma asserção
sobre os jardins suspensos de Nabucodonosor ou sobre as
intervenções de Bush no Iraque. Importa que algo foi dito e pode ser
transmitido, compreendido; a asserção como que “imobiliza” o
sentido. Na formulação de uma proposição verdadeira, o sentido não
pode ser confundido com a existência de um ente (propriedade
92 Inês Lacerda Araújo

extensional); se fosse assim, a proposição, que transmite um


pensamento completo, teria que conter um ente ideal. Essa condição
é que levara a semântica formal a pressupor a necessidade de uma
ligação entre a linguagem afirmando algo (o que não depende de um
tempo “real”) e o ente afirmado ou pressuposto pela asserção (num
tempo). Justamente a relação ontológico-referencial entre linguagem
e mundo. Neste sentido, é preciso ir além de Frege, com Frege, pois
para ele o sentido e referência independem do uso da proposição.
Ora, pelo uso os interlocutores acertam entre si o valor semântico de
uma afirmação, na medida em que se posicionam com relação ao
conteúdo de um ato de fala dito naquela situação, naquele contexto,
com certo propósito.
Assim, para referir não basta a sentença com significação
que diz algo, tem um conteúdo proposicional (semântica veritativa).
O significado da sentença não é algo que fica “pairando na cabeça
de alguém” (para usar uma expressão de Wittgenstein), ela é dita por
alguém em situação real de emprego, quando passa a valer como
afirmação, ou como outro ato de fala, com força ilocucionária 1 . Nos
atos de fala como uma ordem, um pedido, um protesto, o que está
em questão não é a referência a um estado de coisa, nem o valor de
verdade de uma proposição.
A dimensão pragmática da linguagem, com Wittgenstein,
Dewey, Austin, Strawson, Quine, Davidson, Rorty, Habermas, tem
como ponto comum o uso em contexto, de modo que a significação
não depende da relação referencial entre língua e mundo. O que é
afirmado ou pressuposto é dito em uma situação de emprego, em um
contexto dialógico, como parte de culturas e formas de vida. Nessa
dimensão pragmática dos jogos de linguagem, dos atos de fala com
suas características operatórias, e no solo discursivo de produção da
linguagem, além da competência de um falante pela qual há
compreensão lingüística, há os componentes situacionais. Não nos

1
Para Austin em todo ato de fala há três dimensões, a locucionária em que contam
a forma gramatical e a referência; a ilocucionária, que é a força do dito em
situação, caracteriza um ato de fala como tal ou tal; e a perlocucionária, que é o
efeito provocado no ouvinte.
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 93

comunicamos com frases geradas pela gramática e sim através de


enunciações ditas por alguém, a alguém em dada situação.

4 Subjetividade e linguagem após a virada pragmática


No item 2 mostramos que linguagem e subjetividade são
incompatíveis na perspectiva da virada lingüística. O que não
significa eliminar a dignidade e a responsabilidade da pessoa
humana. A constituição do sujeito por práticas históricas mostra que
pressupor uma subjetividade como essência do homem, após a
virada lingüístico-pragmática, conduz às filosofias do sujeito. Com a
virada pragmática, pelo uso da linguagem em situação, em contexto,
a atividade não é a de uma consciência subjetiva, e sim a atividade
intersubjetividade entre falantes que “acertam” entre si aspectos da
situação, do mundo. Para que a filosofia chegasse a este tipo de
visão, foi necessário percorrer um caminho que vai da sentença até
os jogos de linguagem e os atos de fala. O modelo da linguagem
ordinária rompe com o modelo lógico-lingüístico. As abordagens
pragmático-discursivas são mais ricas e produtivas para
entendermos a questão da relação entre linguagem e subjetividade.
Limitar a linguagem à função assertórica, calcada na proposição,
tem por detrás uma epistemologia que opõe interior a exterior. O
interno é propriedade de uma subjetividade pensante, de um cogito
que representa o mundo, que ordena o caos empírico, em resumo,
uma subjetividade. Esta é a responsável pela representação da
realidade. A consciência intencional, como princípio de
inteligibilidade das coisas, dos objetos, da realidade, não leva em
conta a linguagem, e está ligada ao modelo representacional. De um
lado o sujeito que pensa, de outro lado, a realidade representada.
A teoria tractariana da figuração ainda se faz sob o modelo
representacional, na medida em que, apesar de a linguagem ser
imprescindível, há necessidade de estabelecer uma relação com a
realidade, com estados de coisa; essa relação entre linguagem e
realidade se faz com pressupostos ontológicos, de modo que a virada
lingüística, neste aspecto, ainda está ligada a uma epistemologia da
representação. No Tractatus lógico-philosophicus, a referência é
94 Inês Lacerda Araújo

uma questão central; a relação de projeção entre proposição e estado


de coisa, faz da questão semântica o fulcro da filosofia da
linguagem; ela implica numa tomada de posição relativamente à
linguagem, importa dizer o que é o caso, isto é, formular
proposições com significação e capacidade referencial, do contrário
não é possível atribuir valor de verdade. A prioridade na filosofia é
resolver o problema epistemológico, encontrar um critério de
verdade, buscar a certeza lógica e a objetividade empírica pelo
confronto entre as representações mentais e os estados de coisa do
mundo. No caso de Wittgenstein o mundo é representado pela
projeção da forma lógica da proposição sobre os estados de coisa
(teoria da figuração). Esse modelo foi repensado pelas análises da
linguagem ordinária, a começar pelo próprio Wittgenstein.
Em suma, a questão clássica da relação entre pensamento e
coisa pensada se transforma em uma questão lingüística, a da
referência e esta, após a virada pragmática, é uma entre outras
possibilidades da linguagem, um entre outros atos de fala, para
Austin; e para Wittgenstein um jogo de linguagem sem privilégio
lógico ou epistemológico.
Para Austin as asserções seguem as mesmas regras e
condições que regem todo ato de fala, elas podem ser ou não bem-
sucedidas. Strawson critica Russell (Sobre o referir, 1950),
mostrando que uma sentença iniciada por uma descrição definida
apenas ao ser usada cumpre a tarefa de fazer a referência. É o uso da
sentença em uma situação de diálogo que permite um ato
referencial. Assim, a relação entre linguagem e estado de coisa
depende do falante, de seus propósitos, do tipo de ato lingüístico.
Somente em contextos lógicos, formalizados é que a relação entre
sentença e objetos/estados de coisa referidos é simples. Mas na
linguagem ordinária é necessário o uso da sentença a fim de que a
função referencial seja bem-sucedida.
A mudança de direção na filosofia decorrente da virada
lingüístico/pragmática, ou seja, o reconhecimento de que conhecer,
referir, designar e simbolizar, se inter-relacionam, não implica como
muitos críticos da filosofia da linguagem pressupõem, que a
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 95

filosofia está sob o império da lógica e da análise semântica da


linguagem, e que, assim, relega a um segundo plano as questões da
subjetividade, da liberdade, questões éticas e políticas. As análises
lógicas e semânticas são pertinentes e procedentes, mas não
suficientes. A virada pragmática tampouco pretende resolver
questões epistemológicas. Neste sentido vale lembrar a função
terapêutica da filosofia proposta por Wittgenstein em Investigações
filosóficas. A necessidade de comensuração, de um critério fixo, ou
para sermos mais exatos, a busca de um transcendental, é isto que
não faz mais sentido. O que dá sentido à crítica à filosofia analítica,
segundo Rorty, é evitar que o modelo lingüístico substitua o modelo
representacionista e venha a ser considerado como apto para
resolver as questões que o modelo epistemológico tradicional não
conseguiu. Com Rorty, a crítica ao modelo do confronto
sujeito/objeto sobe de tom. Sua proposta de um relativismo
contextual radical decorre da renúncia ao fundacionalismo. A
filosofia não precisaria da verdade obtida por confrontação. Em
nossa cultura pragmatizada, afirma ele, a conversação não deve
cessar sob hipótese alguma. A argumentação de Rorty é consistente
com a necessidade de a virada lingüística ser completada pela virada
pragmática. A filosofia analítica se detém no patamar em que a
linguagem fica restrita à análise lógico-semântica de sentenças com
conteúdo proposicional, em que apenas as discussões relativas à
referência e ao significado são consideradas pertinentes. Ora,
significação e referência são recursos que dependem para seu
funcionamento, de outros recursos, que são as condições
pragmáticas do discurso (contexto do discurso, falante, propósitos,
situação concreta de fala, auditório, etc).

5 Para além da representação


As abordagens analíticas são reducionistas e acabam por cair
naquilo que proscrevem, ou seja, a análise da essência do mundo e
da linguagem funciona como fundadora da realidade e como
fundamento do pensamento e do conhecimento. Para verificar uma
proposição é preciso contrapor sentença com a realidade empírica
96 Inês Lacerda Araújo

que esta sentença descreve. Salta à vista um paradoxo: não é a


linguagem que organiza a realidade, que “semiotiza” a realidade?
As condições lógico-empíricas que permitem o teste de
teorias dependem da adoção de um paradigma (no sentido de Kuhn).
Da necessidade de regras próprias aos contextos da prática científica
normal, não se segue que a análise das formas proposicionais
assertóricas basta para entender a questão da referência e do
significado, e, assim, a da relação entre subjetividade e linguagem.
Nas práticas lingüísticas, funcionam condições pragmáticas, tais
como falantes trocando atos lingüísticos em uma situação dialógica,
como pensam, além de Rorty, Habermas e Davidson. Tal se deve ao
caráter auto-referencial da linguagem, um ato de fala não somente
veicula um conteúdo, uma informação que diz algo acerca de uma
situação; além de dizer o que é o caso (segundo a semântica
veritativa isso é imprescindível para dar inteligibilidade à sentença),
a cada em enunciação, há a realização de um ato de fala que vale
como ação produzida pela fala. Habermas explica assim essa
característica da linguagem:

os atos realizados numa linguagem natural são sempre auto-referentes.


Eles revelam, ao mesmo tempo, como devemos compreender e como
devemos utilizar o que é dito. Essa estrutura reflexiva da linguagem
cotidiana torna-se palpável na forma gramatical da ação de fala singular.
O componente ilocucionário determina em que sentido o conteúdo
proposicional é utilizado e como deve ser compreendido o proferimento,
ou melhor, a que tipo de ações ele se refere (1990, p. 113).

Em suma, nas situações em que são empregados atos de


fala, o modo como o contexto funciona, mostra que ao falarmos não
estamos comunicando proposições que expressam um valor de
verdade, ou cujos nomes fixem referentes; fazemos mais do que
isso.
Rorty argumenta que uma teoria da referência é requisitada
apenas nas concepções de linguagem que se atêm à função de
representar o mundo, apenas no tipo de epistemologia que demanda
o confronto entre mente e mundo. A semântica veritativa situa-se no
quadro epistemológico que exige representações exatas que a mente
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 97

reflete, espelha. A certeza viria de a mente que representa ser


igualmente apta a examinar se o que ela representa está ou não de
acordo com os fatos, com os estados de coisa. Disso resultam
montagens de representações exatas. E, como elas retratam fatos
empíricos, não podem ser questionadas, são objetivas. Mais uma
vez, trata-se da ingenuidade pré-kantiana, um retorno a Descartes
(exigência de exatidão e certeza) e mesmo a Locke, que concebeu a
“idéia de idéia”, a idéia como representação do material empírico
montado pela combinação dos dados dos sentidos (cf. Rorty, 1969,
p. 142-147).
A necessidade de uma epistemologia que fornece dados,
representações, critério para obtenção de verdade, enfim, a
verificação como resultado da relação entre a sentença proposicional
e o estado de coisa que ela descreve ou projeta, são alguns dos
pressupostos que estão por detrás da filosofia analítica.
Compreende-se por que há necessidade para Frege de uma distinção
entre pensamento e valor de verdade, por que a teoria da figuração
de Wittgenstein busca uma resposta para a pergunta acerca da
essência do mundo e da linguagem, e também a razão pela qual a
teoria verificacionista de Carnap se baseia na repartição entre
verdades analíticas, as verdades que o são pelo significado, e
verdades contingentes, advindas da experiência.
Quine, em contrapartida, ao sustentar a relatividade
ontológica e a inescrutabilidade da referência, situa-se já no quadro
teórico que leva em conta a linguagem ordinária, a
incomensurabilidade das teorias, e o aprendizado da linguagem. Ele
mostra que a relação entre palavra e objeto, entre linguagem e
realidade decorre da ação humana no mundo e não de certos fios
mágicos que ligariam linguagem e realidade. “Realidade” não deve
ser entendida como substrato ou locus de objetos, entidades
individuais, seres discriminados com suas propriedades intrínsecas,
essenciais. A realidade ao mesmo tempo em que é conceptualizada
cultural, lingüística e semioticamente, é algo com que se lida, entra
nas justificações e crenças. É no contato ativo com a realidade, que
98 Inês Lacerda Araújo

surgem situações em que há necessidade (ou não) de pessoas, grupos


e comunidades se defrontarem.
Para Quine, a significação não é uma questão de
significados como entidades mentais, como que pairando na mente
de cada indivíduo. A linguagem serve às atividades humanas, faz
parte dessas atividades, fixa significados e formas gramaticais que
servem para certos fins, que permitem gerar um número
suficientemente amplo de crenças verdadeiras. Portanto, referir e
nomear são atividades que fazem sentido e se adaptam para a
produção de juízos objetivos, também eles uma conseqüência e uma
exigência da atividade humana, de sua plasticidade e capacidade de
adaptação a este mundo.

6 A subjetividade como intersubjetividade


A significação dos termos não deriva de propriedades intrínsecas
dos objetos nem da mente pensante, como mostramos acima. Rorty
concorda com Quine, não há como escrutar a mente, não há o que
escrutar. Há pessoas em convívio social, aquilo que Wittgenstein
chamou de formas de vida. Pessoas interagem em meio à
diversidade de culturas, de ontologias e de linguagens. Para
Davidson a semântica não é uma questão de valor de verdade da
proposição, mas uma questão de interação comunicativa, cuja
abordagem deve ser feita através de interpretações, quer dizer, nos
moldes de uma hermenêutica, num paradigma que é o da
intersubjetividade. Quer dizer, é preciso uma teoria de verdade que
funcione para uma certa linguagem, e cada sentença ao ser usada por
um falante e interpretada por um ouvinte, poderá ser considerada
como verdadeira a cada combinação de objetos com palavras que
fornece a interpretação adequada àquela situação.
A subjetividade no sentido de mente intencional, como a
fenomenologia a vê, é incompatível com a nova abordagem que leva
em conta a capacidade discursiva. A intersubjetividade é o requisito
e o modelo que dá conta de que, para expressar um fato, é preciso a
formulação de juízos por parte de usuários em situação, capazes de
avaliar o que está sendo dito.
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 99

Um ato de fala que dê conta da capacidade referencial e que


demanda avaliação com relação à sua verdade ou falsidade, requer,
não representações privilegiadas da mente pensante, requer o
reconhecimento por parte dos usuários da língua de que se trata
disso ou daquilo, e esse saber não é algo “mental”, mas é um saber
disso, do que se trata, sob qual ângulo tal e tal objeto ou situação
está sendo considerado, que tipo de garantia é levantada, com quais
propósitos. Sentenças são empregadas, analisadas, articulam o
pensável. Elas não são a representação mental de um indivíduo. A
estrutura lógica da proposição é uma idealidade, não há como
relacionar estados de coisa fixados idealmente e as coisas
transitórias, exatamente a dificuldade que moveu Kant.
Como estamos num momento de filosofia pós-metafísica,
um retorno a Kant não resolve o problema. Em nossa atual epistémé,
para usar um conceito foucaultiano, o “transcendental” habita as
categorias da linguagem. Segundo Habermas, a razão se
“destrancendentaliza” (1999, p. 186). Daí ser imperioso transpor os
limites impostos pela proposição e pelas condições lógicas e
semânticas em direção à linguagem vista sob condições pragmáticas
que permitem o uso do discurso e sua interpretação. Se a linguagem
se limitasse às sentenças com conteúdo proposicional, ficaríamos
impedidos de nos comunicarmos uns com os outros.
Assim, a subjetividade, que após a virada
lingüístico/pragmática fica absorvida pelas funções da linguagem,
retorna sob outra forma, não a da consciência intencional, não a da
mente cartesiana, não a das formas transcendentais, mas a de uma
intersubjetividade. A comunicação é uma função de atos de fala, de
jogos de linguagem, e mais, o modo como a “realidade” é objetivada
através das significações, depende de certas formas gramaticais e de
seu uso em atos de fala, por exemplo, para nomear certa entidade,
esclarecer um fato, decidir entre dois postulados, etc. Há três pólos:
o da linguagem como um tipo de comportamento humano
aprendido, o dos atos de fala e o das situações que são trazidas à
tona, que são “negociadas”, como diz Habermas. O paradigma da
intersubjetividade, ao contrário do paradigma das filosofias do
100 Inês Lacerda Araújo

sujeito, vê a estrutura racional interna da ação comunicativa como


fruto de uma razão “encarnada simbolicamente e situada
historicamente” (Habermas, 1987, vol. I, p. 11). A racionalidade
comunicativa conduz a entendimento, não coage, os falantes trocam
atos de fala, e neles suas convicções asseguram a unidade do mundo
objetivo e a intersubjetividade do contexto em que vivem. A
racionalidade comunicativa não requer a apresentação do mundo
como conjunto de estados de coisa, e sim a possibilidade de
questionar, de problematizar. A objetividade decorre dessa
necessidade, os participantes na comunicação que pertencem a uma
comunidade de sujeitos capazes de linguagem e de ação, devem
poder reconhecer e tratar daquelas situações. Só há entendimento se
houver essa possibilidade de objetivar situações que forem alvo de
discussão entre falantes no contexto “do mundo da vida que
compartilham intersubjetivamente” (1987, vol. I, p. 30-31).
Não faz sentido recorrer à noção de mente que representa
coisas em atividades lingüísticas corriqueiras como descrever,
julgar, representar-se um quadro, recordar-se da infância, mostrar a
adequação de um exemplo, fazer uma analogia, narrar, descrever
algo já ocorrido, apostar, visar algo como, preocupar-se, entender-se
com alguém, dirimir uma dúvida, entre outros inumeráveis usos da
linguagem. Nenhum deles é derivação pura e simplesmente da
sentença proposicional nem de significações mentais, como mostrou
Wittgenstein em Investigações filosóficas.
Indo nessa mesma direção, os filósofos pragmatistas norte-
americanos, além de considerar a linguagem como cultural, pública,
com enorme diversidade de funções e pluralidade de usos –,
ressaltam o papel instrumental da linguagem. Dewey é cético quanto
a qualquer verdade essencial, de tipo metafísico; quanto ao
significado, sua posição é antiplatônica; o significado não é
considerado como tendo uma “existência” ideal (caso da teoria
abstrata do significado de Frege). O significado não surge da
comparação entre coisas, pelo reconhecimento do que têm em
comum, mas é genérico e universal. Essa capacidade de generalizar
decorre de os significados funcionarem como regras para uso e
Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? 101

interpretação; possibilitam, por exemplo, prever o alcance de algo,


fornecem um “método” para usufruir algo, ou são o indicador
objetivo para algo que importa, que integra modos de agir sociais.
Para o pragmatismo norte-americano, a lógica e a linguagem não
podem ser separadas das necessidades da vida. Com a virada
pragmática, a idealidade do significado passa a ser objeto ou tema
da conversação. As vivências da consciência tal como a
fenomenologia descreve, não passam de recursos para se ter acesso
aos fenômenos, recursos esses que habitam a linguagem em suas
múltiplas funções, não são fruto de um eu ou de uma consciência
transcendental.
Nessas novas perspectivas, lingüístico-pragmáticas, a
subjetividade é repensada. A pessoa, enquanto alguém que se
expressa, pensa, se comunica, as condições em que esses processos
se dão, nada disso se faz sem levar em conta o(s) outro(s) ao qual os
atos de fala são remetidos. Quer dizer, há necessidade de considerar
a si mesmo e o outro, as situações demandam compreensão, tomadas
de posição; neste sentido a subjetividade não exclui a linguagem,
mas a pressupõe. Essa subjetividade, que se realiza enquanto
intersubjetividade, não é a fonte absoluta de conhecimento, e sim
uma decorrência de pessoas agirem e decidirem. Ao lado do
reconhecimento recíproco, público, que autoriza o consenso
alcançado pelo discurso, há necessidade de chegar a acordo e este
depende de conhecer a situação, os fatos, avaliá-los à luz de
interpretações e do surgimento de evidências. Assim, são pessoas
que se valem destas condições discursivas e epistemológicas.
Verdade objetivada, legitimidade normativa, pessoas íntegras,
capazes de argüir e sustentar seus pontos de vista, tudo isso exige
uma relação entre linguagem e subjetividade, que se dá num nível
pragmático.
Tanto para falar como para agir é necessário que haja
informação, conhecimento, argumentos bem fundamentados,
possibilidade de abertura para a crítica e a revisão permanente. O
caráter transcendental de um juízo reside nessa idealização que
102 Inês Lacerda Araújo

surge no processo de fundamentação da objetividade. Esta é


alcançada através de processos comunicativos, intersubjetivos.
Em resumo, é num mundo permeado de signos, interpretado
por signos, “semiotizado” pela linguagem e objetivado por atos de
fala que pessoas (e não uma subjetividade restrita à mente, ao
cogito, ao eu transcendental) se comunicam e têm em vista certos
propósitos, em função dos quais agem, argumentam, valoram,
produzem saber, cultura. É evidente que os discursos também
produzem dissenso, ilusão, manipulação, estratégias cujo fim é o
convencimento, a censura, o controle. Esses discursos produzem
saber e poder, e também carregam verdade, saber, poder. Mas essa
já é outra perspectiva, a de Foucault a partir de Vigiar e punir. O
objeto de análise deste texto tem como pano de fundo a
intersubjetividade lingüística, e não as estratégias de saber e poder.

Referências
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Linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
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______. Philosophical Investigations. 3 ed. Oxford/London:
Blackwell, 2001.
Racionalidade e natureza humana
na visão da epistemologia evolutiva

José Claudio Morelli Matos *

Resumo: A epistemologia evolutiva é uma corrente que tenta explicar o


conhecimento humano em conformidade com a descrição feita dele pelas ciências
biológicas. Deste ponto de vista a seleção natural concorre como causa da presença,
no ser humano, da atitude racional. Uma das principais críticas contra esta corrente
epistemológica, proposta por Thomas Nagel, apóia-se no argumento de que um
conceito de racionalidade derivado das realizações de uma teoria científica – a
teoria da evolução – não pode ser utilizado para explicar a validade universal das
regras segundo as quais esta racionalidade opera. Esta crítica pode, segundo a tese
aqui proposta, ser suficientemente respondida, a partir de uma consideração
adequada da noção de natureza humana, como composta de princípios e
mecanismos que estariam na origem da capacidade racional encontrada no ser
humano. Michael Ruse oferece uma estratégia de resposta do ponto de vista
naturalista. O que se afirma neste trabalho é que há uma outra estratégia de resposta
possível à crítica de Nagel contra a legitimidade da epistemologia evolutiva, que se
apóia na analogia entre a evolução biológica e a evolução do conhecimento no
ambiente da cultura.
Palavras-chave: Epistemologia evolutiva, Natureza humana, Racionalidade

Abstract: Evolutionary epistemology is a tendency that tries to explain human


knowledge in conformity to his description made by biological sciences. From this
point of view, natural selection counts as a cause of the presence of rational attitude
in human beings. One of the major criticisms against this view, proposed by
Thomas Nagel, bears on the argument by wich a concept of rationality, derived of
the results of a scientific theory – the evolutionary theory – cannot be employed to
explain the universal validity of rules by wich this very rationality operates. This
criticism may, in accord to the thesis here proposed, be thoroughly responded,
taking as a starting point an appropriate approach of human nature, as composed by
principles and mechanisms that could be in the origin of human rational capacities.
Michael Ruse offers a strategy to answer this criticism based on naturalistic
approach. What this work wants to claim is: that there are another strategy in deal
to Nagel’s criticism against the legitimacy of evolutionary epistemology. This
strategy is based on the analogy between biological and epistemic evolution in
cultural environment.
Keywords: Evolutionary epistemology, Human nature, Rationality

*
Professor adjunto da UDESC. E-mail: doutortodd@gmail.com. Artigo recebido
em 17.08.2007 e aprovado em 20.10.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 105-123.


106 José Claudio Morelli Matos

1 A epistemologia evolutiva: suas principais versões


Este trabalho pertence ao ambiente de discussão a que se tem dado o
nome de Epistemologia Evolutiva. Embora a história da formação
desta corrente leve retrospectivamente, possivelmente até a Origem
das Espécies da Darwin, é possível recortar adequadamente o tema
situando entre seus autores, nomes da atualidade como Karl Popper
(1995, 1972), Donald Campbell (1974), David Hull, Michael Bradie
e Michael Ruse. Falando mais genericamente, não tanto de temas da
teoria do conhecimento, mas da importância da teoria da evolução –
da seleção natural em especial – para o empreendimento filosófico,
pode-se elencar ainda as obras de Daniel Dennett e de Richard
Dawkins.

A epistemologia evolutiva parte de uma concepção do ser humano como


um ser vivo, cujas características desenvolveram-se em uma história
evolutiva, determinada – totalmente ou em sua maior parte – pelo
processo de seleção natural. Assim, os princípios que dão origem às
capacidades do ser humano para o conhecimento podem ser
compreendidos e explicados em função de seu valor de sobrevivência, e
de sua origem biológica através de um processo de variação e retenção
seletiva de características (Campbell, 1974).

Dir-se-ia que o nível mais elevado e aperfeiçoado de


comportamento cognitivo, entre todas as espécies de seres vivos do
planeta, é alcançado pela espécie humana na forma da acumulação e
transformação cultural realizada pela atividade científica. Assim,
entende-se que a ciência é resultado, no mínimo em parte, de um
conjunto de capacidades transmitidas e desenvolvidas
biologicamente. Por exemplo: a capacidade de produzir expectativas
referentes a regularidades ou leis naturais, a partir da experiência.
Admitindo a relevância da descrição biológica do ser
humano para a epistemologia, poder-se-ia explicar a razão pela qual
a racionalidade científica apresenta-se na forma atual, pelo fato de
os princípios nos quais ela se baseia terem sido desenvolvidos no
processo evolutivo que deu origem a todas as outras características
detectáveis na natureza humana. E este processo, sabemos, é
explicado pelo modelo darwiniano de variação e retenção seletiva de
Racionalidade e ... epistemologia evolutiva 107

caracteres transmitidos hereditariamente. Esta posição é defendida


por autores como Michael Ruse, que afirma em seu artigo “The
View From Somewhere: A Critical Defense of an Evolutionary
Epistemology” (1989):

Nós acreditamos que 2+2=4, não porque este é um reflexo da realidade


absoluta, ou porque alguns dos nossos ancestrais fizeram um pacto para
acreditar nisso, mas porque aqueles proto-humanos que acreditaram em
2+2=4, antes de 2+2=5, sobreviveram e se reproduziram, e aqueles que
não acreditaram, não o fizeram. Hoje, são estas mesmas técnicas e regras
seletivamente produzidas que governam a produção do conhecimento
(Ruse, 1989, p. 193).

Assim, esta postura declara, entre outras coisas, que o


conhecimento, e mesmo a cultura humana como um todo, é um
fenômeno natural cuja produção, por parte dos seres humanos,
submete-se àquelas regularidades biológicas que moldaram as
características de seus produtores. Chamemos a esta abordagem de
modelo literal da epistemologia evolutiva. Este é o modelo adotado
por Michael Ruse. Seu artigo, ao qual aqui me refiro, é uma “defesa
critica” da epistemologia evolutiva, por assumir e defender a postura
naturalista, em contraposição a uma postura que se pode chamar de
analógica, acerca da epistemologia evolutiva.
Nesta concepção, o próprio método crítico de seleção e
exame das teorias científicas é um método que opera de modo
análogo à seleção natural entre os seres vivos. A cultura pode ser
examinada de modo relativamente independente de seus produtores
animais, como se ela mesma constituísse um meio ambiente em
evolução. Uma vez que os seres humanos são capazes de realizar a
crítica e os testes que funcionam como condição de aceitação ou
rejeição de expectativas que desenvolvem acerca do mundo, eles
criaram um outro ambiente, onde indivíduos de diferentes espécies,
e com variações favoráveis e desfavoráveis, competem pela
perpetuação: o ambiente da cultura humana habitado pelas
explicações, crenças e teorias, e do qual a racionalidade científica é
um dos principais elementos. E, segundo as regras e critérios que
compõem esta racionalidade, as tentativas de explicação, de
108 José Claudio Morelli Matos

regularização, de generalização, submeter-se-iam a uma seleção


semelhante à seleção natural. Esta visão tem entre seus principais
defensores, Karl Popper, que afirma o seguinte:

o crescimento de nosso conhecimento é o resultado de um processo


estreitamente semelhante ao que Darwin chamou de ‘seleção natural’; isto
é, a seleção natural de hipóteses que mostraram sua aptidão (comparativa)
para sobreviver até agora em sua luta pela existência, uma luta de
competição que elimina aquelas hipóteses que são incapazes (Popper,
1972, p. 238).

Em linhas gerais, propor hipóteses equivale à reprodução


com variação, a atitude crítica (ou outras pressões que interfiram na
aceitação ou rejeição de afirmativas) à seleção; e a aceitação
provisória das hipóteses, à perpetuação ou sobrevivência 1 .
A escolha por um modelo literal ou por um modelo
analógico de evolução por seleção natural para o projeto de explicar
o conhecimento, é o que tem feito a diferença entre as versões
disponíveis da epistemologia evolutiva.

2 A crítica contra a legitimidade da epistemologia evolutiva


Embora não represente uma corrente completamente uniforme de
pensamento, a epistemologia evolutiva tem representado uma
pretensão teórica legítima o bastante para ser submetida a, pelo
menos, uma crítica relevante. Ela consiste em que, ao tentarem
apoiar a epistemologia na moderna biologia evolutiva, autores como
Michael Ruse e outros, pressupõem a validade do conhecimento
científico para explicá-lo. Ao fazerem isso, admitem de saída como
válido justamente o que está em questão.

1
Sabe-se que Popper se compromete com uma versão literal da epistemologia
evolutiva, mas é difícil decidir até que ponto, uma vez que sua insistência em um
padrão objetivo e universal de racionalidade, e sua consideração do aspecto
formal da epistemologia o levam a não considerar como relevantes para um
estudo dos fundamentos do conhecimento objetivo, as considerações acerca das
capacidades de seus portadores. Ou seja, por se concentrar numa epistemologia
normativa, Popper assume uma postura controversa acerca do modelo literal, que
o tempo não permite explorar aqui (ver Popper, 1972).
Racionalidade e ... epistemologia evolutiva 109

Uma versão mais elaborada desta crítica alega que uma


epistemologia que se apóia no valor adaptativo do conhecimento não
pode adequadamente explicar a validade objetiva deste
conhecimento. Como seu horizonte é um conjunto de idéias
herdadas das ciências naturais, a epistemologia evolutiva não pode
atingir um nível explicativo que dê conta da possibilidade da
racionalidade objetiva de nossas tentativas de conhecer o mundo.
Esta crítica é bem caracterizada por Thomas Nagel, em seu livro The
View From Nowhere (A Visão Desde Lugar Nenhum) (Nagel, 1986),
bem como em The Last Word (A Última Palavra) (Nagel, 1997).
Sua argumentação parte da idéia de que deve haver um padrão de
racionalidade mais universal do que uma racionalidade gerada pela
evolução mediante seleção natural. Somente assim, a própria
explicação da evolução em termos de seleção natural faria sentido.
Ou seja, a racionalidade tem que poder contar com um alcance
profundo e amplo o bastante para não ter que ser avaliada, por
exemplo, por seu valor na sobrevivência de certos animais.
Conforme Nagel apresenta a situação em The View From
Nowhere,

a perseguição do conhecimento objetivo requer uma concepção muito


mais desenvolvida da mente e do mundo do que possuímos atualmente:
uma concepção que explicará a possibilidade de objetividade. Isto exige
que venhamos a entender as operações de nossa mente de um ponto de
vista que não seja apenas o nosso próprio (Nagel, 1986, p. 78).

Tal afirmação expressa a exigência de um critério de


validade para as realizações do conhecimento humano que é
altamente – demasiado até – elevada. Nagel espera que a
possibilidade da validade objetiva das afirmações de conhecimento
se estabeleça sobre um padrão universal, independente de
contingências tais como a formação biológica do ser humano, ou
seus instintos e princípios naturais. Nagel anuncia a demanda por
um argumento que explique por que a razão humana é capaz de
desenvolver teorias objetivamente válidas, e este argumento não
pode depender de nenhuma destas teorias, posto que ele é condição
110 José Claudio Morelli Matos

de possibilidade de qualquer teoria deste tipo. Deve haver, para


Nagel, uma explicação primeira, ou fundamental, da possibilidade
do conhecimento objetivo.
Uma necessidade de explicação da possibilidade do
comportamento racional elevada a um tal nível de exigência,
também conduz Nagel a desqualificar diversas tentativas de dar
conta desta tarefa. Nagel está colocando a situação em termos de
que seria preciso um ponto de vista externo ao ponto de vista
humano para, a partir dali, oferecer a explicação exigida. Faz isso
por meio do procedimento de elevar a exigência em relação a uma
explicação da objetividade, e assim criticar como falhas as tentativas
realizadas de explicação. De seu ponto de vista, uma investigação
epistemológica em termos de seleção natural e de valor adaptativo,

é um exemplo da tendência para tomar uma teoria que foi bem sucedida
em um domínio e aplicá-la a qualquer coisa que não se entende – não
exatamente aplicá-la, mas vagamente imaginar tal aplicação. É também
um exemplo do naturalismo perverso e redutivo de nossa cultura, onde o
“valor de sobrevivência” é agora invocado para lidar com tudo, de ética a
linguagem (Nagel, 1986, p. 78).

Segundo esta colocação, a tendência evolutiva em


epistemologia é uma confusão entre domínios distintos de
conhecimento. Uma vez que o mecanismo de seleção natural é bem
sucedido em alguns assuntos, o epistemólogo, é o que Nagel sugere,
sente-se motivado a aplicá-lo em suas explicações, voltando-o para
assuntos alheios a seu escopo, o que resulta em uma explicação
epistemológica parcial e inaceitável.
Veja-se que Nagel não dirige sua crítica a uma ou outra
proposta epistemológica em particular, mas à própria intenção de
explicar o conhecimento fazendo uso do modelo evolucionista. O
naturalismo também é alvo de sua crítica. Tomando o termo em um
sentido amplo, como a consideração do homem como parte do
mundo natural, pode-se ter uma visão mais clara do que Nagel
espera propor. O naturalismo entende o conhecimento como um
fenômeno natural e, portanto, derivado de causas naturais. Assim, na
Racionalidade e ... epistemologia evolutiva 111

falta de fundamentos definitivos, universais ou absolutos para o


conhecimento, o epistemólogo naturalista opera com os
fundamentos que considerar plausíveis diante das condições e do
tema de sua investigação. Há, para o naturalista, diferentes níveis de
certeza, dir-se-ia, mas trabalhar com conhecimento conjetural ainda
é trabalhar com conhecimento. Mas é isso justamente o que Nagel
quer impedir o naturalista – e mais precisamente o epistemólogo
evolucionista – de tentar fazer.
Para ele o valor das regras do pensamento racional tem que
ser universal. Portanto, nada menos pode ser esperado do que uma
explicação universal, ou absoluta, da possibilidade do pensamento
racional. Ele diz: “A possibilidade de mentes capazes de formar
progressivamente mais concepções objetivas da realidade não é algo
que a teoria da seleção natural possa tentar explicar, desde que ela
não explica possibilidades em geral, mas apenas a seleção entre
elas” (Nagel, 1986, p. 79). Deixando de lado todos os níveis
intermediários em que um epistemólogo da seleção natural
compromete-se com este mecanismo explicativo, o que se pode
afirmar é que Nagel não atribui confiança alguma a esta forma de
explicação do conhecimento.
De seu ponto de vista, a epistemologia da seleção natural,
por basear-se nas realizações da ciência natural, não se situa num
patamar de onde possa fornecer um fundamento para a possibilidade
do conhecimento objetivo. Neste sentido, ela nem sequer seria uma
legítima explicação epistemológica, uma vez que, para Nagel, o
termo “explicar” designa algo bem mais crucial. Para ele, não se
trata da questão de mostrar como o fenômeno do conhecimento
objetivo realmente ocorreu ou ocorre, mas de mostrar a razão pela
qual ele tinha que acontecer. É isso o que Nagel espera de uma
genuína explicação da objetividade do conhecimento: “Ela deve
mostrar por que isso tinha que acontecer, dado o tempo
relativamente curto desde o Big Bang, e não meramente que isso
pode ter acontecido – como é tentado pelas propostas darwinianas”
(Nagel, 1986, p. 81).
112 José Claudio Morelli Matos

Considero basicamente que a crítica de Nagel é digna de ser


considerada seriamente por alguém interessado em uma descrição
evolutiva do conhecimento humano. Parece ser possível desarmar
esta crítica por meio de uma reflexão sobre a relação deste conceito
de racionalidade – assim entendido – e o conceito de natureza
humana, desenvolvido no cenário do pensamento moderno, e ligado
em grande medida ao paradigma darwiniano. Um epistemólogo
evolucionista poderia adotar a seguinte estratégia a fim de resolver o
impasse:
O padrão de universalidade (universalidade da validade das
declarações objetivas de conhecimento) exigido por Nagel, como
premissa de seu argumento crítico seria não só contra-producente do
ponto de vista das propostas de explicações epistemológicas. Seria
um padrão demasiado exigente, e em desacordo com as limitações
de que sofre a razão humana, em sua tentativa de propor explicações
e teorias. Este ponto de vista vem situar a racionalidade humana
como um produto das regularidades naturais. O uso da racionalidade
é o resultado de um processo natural e, portanto, a pretensão de
universalidade só poderia fazer sentido, a partir deste contexto mais
fundamental. Contra Nagel dir-se-ia que a racionalidade não é um
acidente, não é um produto do acaso: ela é o único resultado
possível das condições em que de fato se realizou o processo
evolutivo da vida humana na Terra. E como não haveria um ponto
de vista mais elevado ou anterior, a partir do qual estabelecer a
validade das regras universais da razão – já que a própria razão
desenvolve-se por causas naturais – a crítica de Nagel contra a
legitimidade do projeto da epistemologia evolutiva não faria sentido.

3 Tentando responder ao criticismo de Nagel


Aqui há pelo menos duas considerações que podem ser feitas acerca
das reservas de Nagel quanto à epistemologia evolutiva ou de
seleção natural. Estas considerações funcionam como uma resposta
ao dilema de Nagel, e podem tornar mais compreensível o ponto
referente aos fundamentos de uma epistemologia em termos de
seleção natural.
Racionalidade e ... epistemologia evolutiva 113

1. A primeira observação é a de que o próprio Nagel não


está fazendo estas críticas do satisfatório ponto de vista de uma
proposta alternativa, que venha a explicar a possibilidade do
conhecimento objetivo. Sua crítica proclama a insuficiência da
explicação em termos do mecanismo de seleção natural atuando
sobre o conhecimento. Mas mesmo assim não representa uma outra
posição, a não ser a desta exigência altamente elevada por um nível
de explicação que, ele mesmo reconhece, não foi possível atingir até
então. Segundo suas palavras:

Qual, poder-se-ia perguntar, é minha alternativa? Criacionismo? A


resposta é que eu não tenho uma, e não preciso de uma para rejeitar todas
as propostas existentes como improváveis. Alguém pode não assumir que
a verdade sobre este assunto já foi considerada – ou apegar-se a uma
visão apenas porque ninguém apareceu com uma alternativa melhor
(Nagel, 1986, p. 81).

É possível que o autor não admitisse, mas esta postura é


facilmente identificável com uma modalidade de ceticismo radical a
respeito da razão humana. Lançar críticas e contra-argumentos
contra um ponto de vista, mostrando que ele não explica o que
pretendia explicar, e depois refugiar-se em uma suspensão de
julgamento, parece caracterizar uma atitude cética.
O que se percebe é que o próprio estabelecimento do dilema
cético indica a fraqueza e limitação da razão especulativa, que é tão
cara a Nagel. Mas, por outro lado, os instintos e princípios naturais
acabam por moldar o comportamento de modo relativamente bem
sucedido, independentemente da debilidade das operações da razão.
Isto significa que o impasse em que Nagel pretende terminar seu
argumento, na forma de uma crítica contra a epistemologia da
seleção natural, não é definitivo. Não há uma visão da racionalidade,
a não ser da racionalidade humana, de realizações humanas de
conhecimento. Ao invés de tentar contornar esta aparente
deficiência, o naturalista desloca este ponto de vista para o cerne de
seu empreendimento investigativo. Conforme se pode notar, trata-se
de um recuo, mas um recuo do território além do alcance da razão
114 José Claudio Morelli Matos

humana, para o território do que pode adequadamente ser conhecido


por ela. Aqui, Nagel perde totalmente seu ponto.
Um ceticismo extremo, na visão do naturalista, é uma
futilidade tão grande quanto um dogmatismo extremo. O fato de
uma explicação ser conjetural, ou hipotética, ou falível, não implica
a necessidade de abrir mão da explicação disponível. Ao contrário, a
busca pela melhor explicação prossegue sempre, reconhecendo os
limites aos quais a razão humana tem que se restringir.
Tanto pior para Nagel, para quem a capacidade de
objetividade nas tentativas de conhecimento permanece um mistério.
Sua recusa em aceitar que a razão humana é parte da natureza
humana e, portanto, submete-se a suas leis e regularidades, o impede
de aceitar as explicações, ou soluções, que esta admissão acarreta
como conseqüências. Finalmente, é a natureza que leva o homem a
confiar na objetividade de seu conhecimento do mundo, no sentido
de que é impossível viver e agir sem um comportamento na forma
de crenças, mesmo provisórias. Então, esta alegação de Nagel de
que, sem um fundamento absoluto, a racionalidade fica inexplicada,
não acaba tendo efeitos significativos sobre o modo como os seres
humanos entendem sua própria racionalidade. E isto encontra-se em
pleno acordo com o fato de que, como seres vivos interagindo com o
ambiente, continuamos tendo comportamentos, inclusive
investigativos, mesmo que a possibilidade de racionalidade objetiva
não esteja completa e absolutamente elucidada.
2. A outra observação que se pode formular acerca da última
citação de Nagel, é em parte decorrente desta primeira. Trata-se do
fato de que a seleção natural é, sim, um legítimo princípio
explicativo. Ela explica, ao contrário do que Nagel dá a entender, a
possibilidade de racionalidade objetiva. Dada a variação entre as
formas de vida na natureza, e a luta ou disputa entre estas, somente
as mais bem adaptadas ao ambiente acabam obtendo sucesso na
disputa pela vida e pela transmissão de suas características. Assim, a
racionalidade objetiva desenvolveu-se porque, dentre as inúmeras
variações possíveis, aquelas que ocasionaram seu surgimento eram
as que forneciam maiores vantagens a seus portadores. Em termos
Racionalidade e ... epistemologia evolutiva 115

um pouco mais diretos, a racionalidade objetiva, enquanto forma de


reconhecer leis e regularidades no ambiente que cerca um indivíduo,
é a melhor opção disponível como mecanismo de sobrevivência. Em
um ambiente onde a variação é ampla o bastante, o surgimento de tal
racionalidade objetiva é uma conseqüência possível, a tal ponto que
é o que, de fato, ocorreu no caso do ser humano 2 .
Por outro lado, exigir uma explicação da necessidade do
surgimento da capacidade cognitiva é forçar demasiado o poder de
explicação, não só da seleção natural, mas de qualquer teoria do
conhecimento. Nem se pode imaginar a qual tipo de causa um
estudioso deveria recorrer se quisesse afirmar que a razão objetiva é
absolutamente necessária. Assim como não se pode imaginar a que
ponto de vista deverá recorrer para garantir a validade de
argumentos racionais, se não for por meio de um argumento racional
e, portanto, do mesmo estatuto que os outros. De acordo com todos
os métodos do pensamento teórico, que têm dado resultados
confiáveis em diversos campos de investigação, a explicação em
termos de seleção natural conta como um mecanismo explicativo
genuíno, e que pode com razão ser aplicado em questões do
conhecimento humano. É como se a validade do pensamento
racional possa estar justificada por seus efeitos no conhecimento
humano, e pela reconstrução de sua origem no processo evolutivo,
uma vez que não há ponto de vista anterior e mais fundamental,
como o naturalismo não se incomoda em admitir.
Em sua obra mais recente, mencionada acima, Nagel retorna
ao tema da epistemologia da seleção natural, partindo da mesma
postura crítica. Sua argumentação pretende novamente enfatizar o
aspecto parcial e, portanto, ineficaz, da epistemologia da seleção
natural. Assim, em A Última Palavra Nagel afirma que,
2
Existe a noção, bastante razoável, de que a racionalidade objetiva seja o resultado
indireto do acúmulo de complexidade resultante de capacidades cognitivas mais
simples, estas sim ligadas diretamente, por sua vez, a vantagens adaptativas. Por
exemplo, a capacidade de formar expectativas a partir do reconhecimento de
similaridades em contextos diversos (ver Quine, 1969). Ou a capacidade de
reproduzir comportamentos por imitação ligeiramente modificada. Ela não
invalida o espírito do que aqui está sendo proposto.
116 José Claudio Morelli Matos

uma compreensão externa da razão como meramente um fenômeno


natural – um produto biológico, por exemplo – é impossível. Razão é seja
o que for que consideremos necessário usar para compreender qualquer
coisa, incluindo ela própria. E se tentarmos compreendê-la meramente
como um fenômeno natural (biológico ou psicológico), o resultado será
uma explicação incompatível com nosso uso dela e com a compreensão
que temos dela ao usá-la (Nagel, 1997, p. 166-167).

Esta sua posição em relação ao território da razão implica


em que a validade das regras de inferência, e da lógica de um modo
geral, deve reclamar uma objetividade independente das
características biológicas do sujeito que a utiliza. Finalmente, para
ele, a epistemologia evolutiva comprometeria nossa confiança na
racionalidade, uma vez que a submete à ação de princípios
instintivos de sobrevivência.
Um passo da argumentação de Nagel, ao desenvolver sua
crítica, refere-se a uma característica peculiar do modelo explicativo
de seleção natural. Este modelo, conforme já dissemos, é uma
alternativa bastante plausível a ser oferecida contra explicações da
natureza, e alguns imaginam que da mente humana, em termos de
intenção ou desígnio externo. Historicamente, os críticos da
Teologia Natural têm se valido com relativo sucesso das
argumentações em termos de evolução e seleção natural. Por causa
disso, aqueles intelectuais que tendem a rejeitar explicações em
termos de intenção e desígnio particular tendem a adotá-lo. No lugar
da explicação pela criação intencional, pode-se com muito mais
razão considerar a explicação por seleção natural. Então, no
ambiente desta polêmica, a situação leva Nagel a afirmar que

esse problema de autoridade cósmica não é uma eventualidade rara e é


responsável por muito do cientificismo e do reducionismo do nosso
tempo. Uma das tendências que aí encontra apoio é o abuso absurdo da
biologia evolucionista para explicar tudo sobre a vida, incluindo tudo
sobre a mente humana (Nagel, 1997, p. 153).
Racionalidade e ... epistemologia evolutiva 117

Nagel espera detectar um sentimento anti-religioso na


utilização ampla que tem sido feita das realizações da biologia
evolutiva. Mas será este seu único argumento? Afirmar que a atitude
de recorrer à biologia evolutiva denota medo do avanço das
explicações teológicas nem chega a ser um argumento. É uma
acusação que, no mínimo, esconde uma falácia ad hominem. A
desconfiança do leitor acerca deste ponto pode evidenciar-se da
seguinte maneira: Nagel recusa-se a aceitar que a racionalidade seja
resultado de um processo natural, mas alguém perguntaria se ele
estaria à vontade com a idéia de que o processo natural é o resultado
da racionalidade. Se for esse o caso, a racionalidade seria entendida
como um princípio de ordenação do mundo, ou como a mente de um
Arquiteto da Natureza: Deus? Naturalmente Nagel não se declara a
favor do Desígnio, embora pareça querer criticar os adeptos da
evolução como manifestantes deste moderno medo da religião.
Na verdade, Nagel vai mais longe do que isso. A exigência
que ele faz é a de um fundamento para justificar a existência do
conhecimento, e a da mente, que ultrapasse a contingência de um
processo biológico pretensamente explicado por uma teoria
científica. Nagel se mostra insatisfeito com a estreiteza do
mecanismo da seleção natural para explicar a possibilidade da
racionalidade. Segundo ele:

a existência da mente é certamente um dado para a construção de


qualquer imagem do mundo; no mínimo, sua possibilidade deve ser
explicada. E parece difícil acreditar que sua aparição decorresse de um
acidente natural, como o fato de que há mamíferos (Nagel, 1997, p. 155).

Em outras palavras, uma teoria que explique por que o


conhecimento é possível, por que as tentativas de explicar o mundo
são confiáveis, deve basear-se em algo mais universal, diria Nagel,
do que o processo de luta dos animais pela sobrevivência.
Esta demanda de fundamentos corresponde a que a validade
das relações entre proposições, que é o que chamamos de raciocínio
correto, não deve ser considerada como decorrente de mecanismos
meramente instintivos, resultantes da formação evolutiva do cérebro
118 José Claudio Morelli Matos

humano. Se não pudermos ter confiança na capacidade cognitiva do


ser humano, independentemente da explicação evolutiva, a própria
explicação evolutiva não poderá ser admitida com segurança. Nas
palavras de Nagel,

o reconhecimento de argumentos lógicos independentemente válidos é


uma precondição para a aceitabilidade de um relato evolucionista sobre a
fonte desse conhecimento. Isso significa que a hipótese evolucionista é
aceitável apenas no caso de a razão prescindir do seu apoio (Nagel, 1997,
p. 159).

Esta parte da crítica de Nagel oferece um desafio a uma


teoria evolutiva do conhecimento, que pretenda fundar o
conhecimento, de maneira literal, no processo de seleção natural.
Afinal a racionalidade, para pretender a alguma validade,
precisa de nada menos que contar com uma validade universal, sem
submeter-se a qualquer condição contingencial ou subjetiva. Nagel
não nega a possibilidade de que a seleção natural seja uma
apreciação correta da natureza: seu ponto de vista é um pouco mais
sutil. Segundo suas palavras: “Estou negando apenas que o que seja
racionalidade possa ser compreendido por meio da teoria da seleção
natural. O que ela é, o que ela nos diz e quais são seus limites só
podem ser compreendidos de dentro dela” (Nagel, 1997, p. 160).
Assim, o que Nagel tem afirmado em sua crítica parece consistir
basicamente nos seguintes pontos:
1. Que uma teoria científica como a da seleção natural não
tem alcance e nem a forma lógica necessária, para dar origem a uma
explicação do sucesso do conhecimento humano.
2. Que não podemos subordinar a possibilidade de
raciocínios válidos à formação biológica da mente humana.
Parece que o primeiro ponto constituinte desta posição – a
exigência de uma objetividade universal para a racionalidade – é
mais relevante, mas que a segunda – que rejeita uma epistemologia
da seleção natural – denuncia um pouco de ingenuidade da parte de
Nagel. Porque não é o caso de que a teoria evolutiva do
conhecimento pretenda estar fora da racionalidade, como parece
Racionalidade e ... epistemologia evolutiva 119

estar sendo insinuado nesta última citação de Nagel. Na verdade,


não seria difícil para um epistemólogo evolutivo responder que:
embora os argumentos lógicos possam aspirar a uma validade assim
objetiva e universal, poder-se-ia ainda assim falar da utilidade
adaptativa da capacidade dos humanos de reconhecer e formular tais
argumentos. Ou seja, a epistemologia evolutiva não tem que alegar
que a racionalidade objetiva é causada unicamente pela evolução
biológica, mas simplesmente que a seleção natural favoreceu o ser
humano ao permitir que ele desenvolvesse um comportamento
formatado pela racionalidade, ou que tomasse parte na
racionalidade, se alguém preferir.

4 A posição naturalista frente à posição analógica


Se alguém estiver pretendendo afirmar que toda a validade objetiva
de argumentos é resultado da formação do aparelho cognitivo dos
humanos, não parece difícil imaginar quais seriam os argumentos
em favor desta tese. Esta resposta foi tentada por Ruse em seu
artigo. Sua estratégia é insistir no progresso do conhecimento – em
especial o conhecimento científico – como um fato constatável
empiricamente, cuja possibilidade não pode ser contestada por
nenhum argumento teórico. Diz ele:

Eu pretendo que minhas afirmações sejam tomadas como genuinamente


empíricas, e partes da ciência natural. Elas não são entendidas como
meras meditações filosóficas; ainda que eu admita que, estando no
primeiro plano da ciência, nosso conhecimento sobre estes assuntos nem
sempre é definitivo (Ruse, 1989, p. 189).

Mas parece que isso faz justamente o serviço de submeter a


validade objetiva do conhecimento ao seu valor de sobrevivência. Se
Nagel e Ruse operam em campos diferentes – o primeiro referindo-
se a condições de possibilidade, e o segundo, a processos ocorridos
segundo certas regularidades, então a melhor resposta de Ruse aos
argumentos de Nagel é a de não se considerar ameaçado por suas
críticas. Ruse, de fato, não se sente ameaçado por Nagel e sua
crítica, não está comprometido por uma racionalidade de regras
120 José Claudio Morelli Matos

válidas universalmente, e o despede como a alguém que peca por


não compreender a ciência atual:

O conhecimento que nós temos no momento é incompleto. Mesmo assim,


por tudo o que sabemos, ele está na pista certa. Isto não é tudo, mas é
muito mais do que nada. Tomar este tipo de atitude é a resposta completa
à crítica de Nagel (Ruse, 1989, p. 198).

Esta é exatamente a atitude que ele manifesta em seu artigo,


bem mais interessado em analisar diferentes aspectos da própria
postura evolutiva em teoria o conhecimento.
Mas, insistindo um pouco mais no ponto da racionalidade
levantado por Nagel, pode-se imaginar uma resposta a sua crítica
acerca da inviabilidade do projeto evolutivo para explicar a
possibilidade de validade objetiva.
Tomemos provisoriamente a posição analógica, aquela em
que o mundo da cultura é de certo modo independente do mundo
natural, por conter suas próprias regularidades, e seus habitantes
particulares: as teorias, afirmações de conhecimento, estruturas
lingüísticas. Pensemos que, dadas certas condições ordenadas por
princípios básicos, independentes da mente de um ou outro sujeito
particular, então certos movimentos ou certas estruturas são
conseqüências necessárias destas condições e destes princípios.
O que esta posição sugere é que a validade das afirmações
de conhecimento não depende somente de seu valor adaptativo. A
objetividade, embora seja um atributo do mecanismo cognitivo da
espécie homo sapiens, funda-se antes disso, e de modo
independente, nas próprias condições em que as afirmações estão
situadas no ambiente da cultura humana. Em termos popperianos:

Muito antes da crítica houve crescimento de conhecimento – de


conhecimento incorporado ao código genético. A linguagem permite a
criação e a mutação de mitos explicativos, e isto é ainda mais ajudado
pela linguagem escrita. Mas é só a ciência que substitui a eliminação do
erro, na luta violenta da vida através da crítica racional não violenta, e que
nos permite substituir a morte (mundo 1) e a intimidação (mundo 2) pelos
argumentos impessoais do mundo 3 (Popper, 1972, p. 88).
Racionalidade e ... epistemologia evolutiva 121

Lembrando que, segundo a concepção que Popper mantém,


o mundo 1 é o mundo físico, o mundo 2 o mundo psíquico e o
mundo 3 o mundo da cultura, ou das afirmações objetivas de
conhecimento.
Assim, há a possibilidade de encarar frente a frente o desafio
de Nagel à legitimidade do empreendimento da epistemologia
evolutiva, defendendo que a única forma de compreender a
possibilidade de racionalidade – ou melhor, de conhecimento
avaliável objetivamente – é imaginar que este conhecimento está
condicionado por princípios e regularidades seletivas, tais como
ocorre com os seres vivos no ambiente natural.

5 Conclusão
A validade objetiva é necessária para a racionalidade do
conhecimento. Por um processo algorítmico (como diria Daniel
Dennett) de desenvolvimento de capacidades por seleção natural, a
espécie humana chegou ao estágio de poder avaliar objetivamente
suas afirmações formuladas em linguagem. Não se pode dizer que o
ser humano tinha que ter desenvolvido a racionalidade. Mas sim,
que tinha que tê-la desenvolvido para que se pudesse observar na
cultura humana o fenômeno do progresso do conhecimento válido
objetivamente. E o mecanismo que levou a tal nível de
complexidade é o mecanismo da seleção natural (através do qual,
indivíduos podem transmitir características – com variação – a suas
réplicas, e acumular complexidade ao longo do processo).
Assim, o modelo analógico (seja ele o modelo popperiano
ou uma variante mais atual) atua em um nível explicativo que,
embora não desperte o interesse de um naturalista como Michael
Ruse, pode representar uma possibilidade viável para explicar como
a racionalidade objetiva torna-se – pela evolução por seleção natural
– acessível como instrumento de compreensão da ordenação do
ambiente para a natureza humana. Esta própria racionalidade
apresentando possivelmente os mesmos mecanismos de variação
cega e retenção seletiva de alegações e tentativas de conhecimento.
122 José Claudio Morelli Matos

Referências
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Crença no mundo exterior:
um diálogo entre Hume e Berkeley

Andrea Cachel *

Resumo: No Tratado, Hume procura investigar as causas da crença nos objetos


exteriores, admitindo ser impossível provar se os mesmos existem ou não. Sua
análise consistirá na investigação da origem da inteligibilidade das noções de
continuidade e distinção dos objetos sensíveis, em última instância, a crença do
senso comum na continuidade e distinção das próprias percepções. Este texto
pretende mostrar como essa discussão humeana é um diálogo direto com a filosofia
berkeleyana, a defesa humeana da crença na matéria implicando inicialmente uma
certa aceitação da filosofia de Berkeley, para, na seqüência, representar uma
dissensão direta com o seu princípio fundamental: ser é ser percebido. Tais
colocações têm, entre outras, a finalidade de argumentar que Berkeley exerce um
papel central na filosofia humeana, nesse caso como seu interlocutor direto, e que a
compreensão desse papel é parte obrigatória de um melhor esclarecimento do
problema da objetividade em Hume.
Palavras-chave: Ceticismo, Crença, Objeto externo, Senso comum

Abstract: In the Treatise, Hume intends to investigate the causes that induce us to
believe in the existence of the body, admitting it is possible to prove if such a thing
exists or not. His analysis will consist in investigating the origin of the
intelligibility of the notions of continuity and distinction of sensible objects, which
is, to say, the belief of the common sense in the continuity and distinction of its
own perceptions. This paper aims to demonstrate that this humean discussion is a
direct dialogue with Berkeley. Hume’s defense of the belief in matter initially
implicating in accepting, to some degree, Berkeley’s philosophy to, further on, turn
into a direct opposition to his fundamental principle: esse is percipi. Such
statements have, among others, the purpose of arguing that Berkeley plays a central
role in humean philosophy, in this particular case, as his direct, immediate
interlocutor, and that the understanding of this role is an obligatory part in making
the objectivity problem, in Hume, more clear.
Keywords: Belief, Common sense, External objects, Skepticism

*
Doutoranda em Filosofia na USP. E-mal: andreacachel@gmail.com. Artigo
recebido em 30.09.2007 e aprovado em 20.12.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 125-146.


126 Andrea Cachel

Hume, especialmente no Tratado, analisa a questão da crença no


mundo exterior, estabelecendo, desde o início, uma distinção entre o
problema da existência dos objetos externos e o da origem da crença
nos mesmos. Segundo observa, sua análise se propõe a desvelar
apenas o segundo problema, e, dessa forma, não pressupõe a prova
de que objetos externos existam, mas sim do modo através do qual
chegamos a conceber de forma vivaz que esses objetos existem.
Mais especificamente, conforme esclarece, sua investigação é
concernente à atribuição de continuidade e distinção aos objetos
sensíveis, sejam os sentidos, a razão ou a imaginação a sua origem
(Hume, 1978, p. 187). Trata-se de investigar, portanto, uma noção
particular de objetividade, segundo a qual crer no mundo exterior é
crer que há objetos que existem mesmo quando não percebidos e
que são independentes da situação no sujeito e exteriores ao mesmo
(Hume, 1978, p.188). São esses os limites do problema, limites esses
que, de certo modo, condicionam a sua própria solução. Ademais,
são eles que nos evidenciam que a questão é pertinente à busca da
inteligibilidade da crença vulgar e que essa busca é um diálogo
direto da filosofia humeana com o modo pelo qual Berkeley
procurou refutar o ceticismo quanto aos sentidos.
Esses recortes estabelecidos pela filosofia humeana –
investigar a crença e não a existência dos objetos e, mais do que
isso, pesquisar a atribuição de continuidade e distinção aos objetos
sensíveis como aquilo que corresponde à crença no mundo exterior
– já têm como pressuposto o fato de que se trata de pensar a
inteligibilidade de uma noção de objeto externo. É a própria
ininteligibilidade da noção de objeto externo como existência
especificamente diferente das percepções que desloca o problema
para a crença na continuidade e distinção. Essa tese é melhor
desenvolvida por Hume na sua discussão sobre as idéias de
existência e existência externa (Hume, 1978, p. 66-68) e
basicamente provém da postulação de uma indissociabilidade entre
idéia de existência e idéia de objeto existente, em compromisso com
a sua teoria das idéias: “a idéia de existência é exatamente a mesma
que a idéia daquilo que concebemos como existente ... e a idéia de
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 127

existência, quando conjugada com a idéia de um objeto, não


acrescenta nada a esta” (Hume, 1978, p. 66-67) 1 . É dessa postulação
que decorre a opinião segundo a qual todos os objetos da mente
seriam concebidos como existentes: “Não há impressão ou idéia de
qualquer espécie, de que tenhamos alguma consciência ou memória,
que não seja concebida como existente.” (Hume, 1978, p. 94). Em
conseqüência, dela derivaria a impossibilidade de se explicar a
crença pela atribuição da idéia de existência à idéia de um objeto
concebido e, ademais, pela inserção de uma idéia de existência
externa, caso essa idéia também quisesse significar uma existência
especificamente diferente das percepções.
Hume mostra que a idéia de existência externa não pode ser
diferente da idéia de objeto externo e, nesse sentido, estabelece a sua
ininteligibilidade. Afirmar a inteligibilidade dessa existência exigiria
que fosse possível concebê-la. O princípio da cópia, entretanto,
mostraria o contrário. Segundo ele, idéias seriam cópias de
impressões, as quais seriam, por sua vez, percepções da mente. Em
outras palavras, o universo da imaginação seria inteiramente
composto por percepções da mente: “Odiar, amar, pensar, sentir, ver
– tudo isso não é senão perceber” (Hume, 1978, p. 67). Toda idéia,
portanto, seria sempre percepção, o que tornaria a concepção de
existências, a elas diferentes em natureza, impossível. Em
contrapartida, esse sentido determinado de existência externa tornar-
se-ia ininteligível. Contudo, ainda está em jogo pensar a
inteligibilidade de uma tal atribuição.
Principalmente na seção acerca do ceticismo quanto aos
sentidos, no Tratado, o que Hume justamente precisará fazer é
explicar as causas da crença nos objetos externos, sem postular, para
tanto, que a idéia de um objeto externo, entendido como algo
especificamente diferente das percepções, seja concebível, algo que
ele já havia recusado. Contudo, por outro lado, não se trata

1
Nas palavras de Cescato (2002, p. 175): “Hume está afirmando em seu
vocabulário da teoria das idéias que a existência não é um predicado atribuível
quer analítica quer sinteticamente ao sujeito do juízo”. Dessa mesma opinião é
Pears (1990, p.34). Para uma opinião diferente ver Wilson (1991).
128 Andrea Cachel

simplesmente de justificar a crença na existência dos objetos


enquanto objetos percebidos, portanto, enquanto percepções, mas
sim a crença na existência externa ou no objeto externo, cuja noção
necessitará ser precisada. Concebemos nossos objetos como
existentes e a crença nos objetos concebidos deve-se sempre à maior
força e vivacidade dessa concepção, força essa decorrente das
impressões originadoras da idéia. A externalidade desses objetos
envolve mais que a sua concepção enquanto percepções e Hume
procura a noção que representa esse “algo mais”, a qual avivada
receba assentimento e constitua a nossa crença nos objetos externos.
Como não seria possível ter idéia de existências
especificamente diferentes das percepções, as noções escolhidas são
a de continuidade e distinção, as quais tão somente significariam a
atribuição de “relações, conexões e durações diferentes aos objetos
da percepção” (Hume, 1978, p. 68). Assim, implicitamente a
exigência é a apresentação de uma noção concebível de existência
ou objeto externo. Essa é a noção em questão na discussão sobre a
crença nos corpos. É por isso que a discussão sobre o ceticismo
quanto aos sentidos consistirá na investigação de como as noções de
continuidade e distinção dos objetos se constituem como objetos do
nosso pensamento, para, na seqüência, examinar como cremos
nessas noções, ou seja, como esses objetos do nosso pensamento se
tornam vivazes. Para Hume, três seriam as possibilidades – sentidos,
razão e imaginação – voltando-se a análise para as mesmas. Na
realidade, o problema dirá respeito à continuidade e independência,
tendo em vista que a externalidade não será considerada tão
importante na discussão 2 . Hume procurará discutir a idéia de

2
Hume afirma: “Enquanto isso podemos observar que, quando falamos de
existências reais e distintas, temos mais em vista a sua independência que a sua
situação espacial externa; pensamos que um objeto tem realidade suficiente
quando seu Ser é ininterrupto e independente das incessantes transformações de
que temos consciência em nós mesmos” (Hume, 1978, p. 191). A partir dessa
observação, no Tratado, Hume passa a discutir apenas independência e
continuidade, portanto, independência torna-se equivalente à distinção. Isso
parece indicar que o problema inicial acerca da matéria é uma questão acerca da
objetividade e não da existência de objetos espacialmente localizados ou
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 129

continuidade e distinção separadamente e, conforme esclarece,


entende ser fundamental essa separação para a melhor compreensão
do problema (Hume, 1978, p. 188). Porém, como também deixa
claro, considera haver uma correlação entre continuidade e
distinção, ou seja, uma implicação entre a existência contínua de um
objeto e a sua existência distinta e vice-versa: “Pois, se os objetos
dos nossos sentidos continuam a existir, quando não são percebidos,
é evidente que sua existência é independente e distinta da percepção;
e vice-versa, se sua existência for independente e distinta da
percepção, precisam continuar a existir, mesmo quando não
percebidos” (Hume, 1978, p. 188). É isso que permitirá que apenas a
origem da idéia de existência contínua seja explicada, mas que essa
explicação abranja também a crença na existência independente.
Hume buscará, então, mais especificamente, o fundamento
da crença na continuidade dos objetos, seja ele os sentidos, a razão
ou a imaginação. Mais do que isso, o reconhecimento de que não se
pode inferir existências diferentes das perceptíveis conduz a
filosofia humeana à explicitação de que só se pode falar em objetos
quando não se cria uma distinção entre eles e as percepções,
portanto, quando, ao contrário do que afirmaria o sistema filosófico
qualificado como “sistema da dupla existência” (Hume, 1978, p.
211), compreende-se que aquilo diretamente presente à mente na
percepção são objetos e não aparências. Assim, na análise humeana,
a crença nos objetos externos passará a ser a crença na existência
externa de algumas de nossas percepções (as constantes ou
coerentes) e uma discussão sobre a origem dessa crença será
representada pela análise da forma pela qual se torna possível a
atribuição de continuidade a alguns conteúdos sensíveis. Crer nos
objetos externos significará, para Hume, crer na existência contínua
de nossas próprias percepções constantes e coerentes, partindo-se da

organizados. Dessa mesma opinião são, por exemplo, Price (1940, p. 19) e Pears
(1990, p. 196). Um objeto externo ou espacialmente localizado deve ser também
independente. Ou seja, constatando-se a impossibilidade de justificar
racionalmente a noção de independência, a questão da externalidade nem se
coloca.
130 Andrea Cachel

pressuposição de que elas são a única existência – ou seja, não são


representações – pressuposição essa que, embora não justificada por
Hume, é por ele apresentada como a base do que ele chama de
“sistema vulgar” (Hume, 1978, p. 209). Como é célebre, a filosofia
humeana sustentará que é a imaginação que cria essa crença ou
“ficção”, a qual será responsável pela noção de existência
independente. Toda a análise da origem da crença no mundo exterior
será a discussão sobre o que permite que se atribua continuidade e
distinção a impressões constantes e coerentes, cuja resposta será a
intermediação de determinados princípios da imaginação, como, por
exemplo, a tendência de prolongar certas disposições.
Nesse sentido, a busca pela inteligibilidade da noção de
existência externa, na filosofia humeana, terá como princípio uma
circunscrição a um sistema de existência simples. Hume reconhece o
que Berkeley já havia admitido, a saber, que supondo uma diferença
entre objetos e percepções não é possível conhecer o “mundo
exterior” ou, na questão discutida pelo primeiro, explicar de que se
origina a crença nos corpos. Hume, como Berkeley, entende que só
concebemos percepções e que não temos acesso a existências
diferentes delas, ainda que por meio de uma inferência, via relação
de causação e representação. A existência simples, portanto, é
também para Hume a forma encontrada para a oposição ao ceticismo
em relação aos sentidos, ainda que nele o problema esteja vinculado
à determinação da inconcebilidade de uma dupla existência e não de
sua impossibilidade. Desse modo, a filosofia humeana reconhece a
pertinência da crítica berkeleyana à dupla existência e evidencia que
a existência simples é um pressuposto necessário da crença no
mundo exterior.
Mas é fundamental entender, em contrapartida, que a sua
discussão sobre a crença nos objetos e o modo como pretende
justificá-la não é, em Hume, uma simples repetição, (inserida apenas
em contexto um pouco diverso), da filosofia berkeleyana 3 . Ao

3
Essa é a opinião de Bennett (1971, p. 350-351), o qual considera que o sistema
vulgar representa a filosofia berkeleyana e que, portanto, a crítica que Hume faz
ao sistema da dupla existência é uma forma de sustentar que a filosofia
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 131

contrário, a defesa humeana da consistência da crença vulgar, exige


de Hume a subversão do princípio central de Berkeley: o princípio
segundo o qual ser é ser percebido. Nesse sentido, a tentativa de
explicar a crença universal na matéria é antes uma oposição direta
da filosofia humeana à filosofia berkeleyana. E, em especial, que
essa oposição se revele na análise da crença no mundo exterior é o
que nos permite compreender de que forma a diferença no ponto de
partida de cada filósofo implica em uma distinção frontal nos
estatutos de suas filosofias. Ao pretender defender a consistência da
crença vulgar, a filosofia humeana se colocará no terreno
berkeleyano – o da pressuposição de existência simples – mas irá
retirar desse terreno conseqüências opostas às implicadas pela
filosofia de Berkeley, o que decorre de uma inversão da perspectiva
filosófica, a de adequar a filosofia ao vulgo (o que não significa
meramente uma confirmação da verdade das crenças comuns, cabe
ressaltar) e não o contrário.
Conforme afirmamos, a oposição humeana a Berkeley, na
questão do ceticismo quanto aos sentidos, realiza-se no terreno
preparado por esse autor. Berkeley é bastante claro em relação às
intenções centrais, tanto dos Princípios como dos Diálogos. Ainda
que boa parte desses textos represente críticas também a outras
correntes filosóficas, desde o início a refutação do ceticismo é
apresentada como um de seus objetivos principais. Mais
especificamente, as discussões realizadas nos Princípios e nos
Diálogos têm como opositor mais direto o ceticismo em relação aos
sentidos, já que é para negar que seja possível duvidar da existência
dos objetos sensíveis ou da evidência dos sentidos (Berkeley, 1998a,
p. 89) que Berkeley afirma propor seu idealismo.

berkeleyana é mais coerente que a de Locke. Nesse sentido, afirma: “A questão


'Porque Hume identifica a crença na forma vulgar com a posição de Berkeley?'
admite a mesma resposta: porque ele acredita que apenas percepções estão
presentes à mente. Combine isso com a visão característica do vulgo de que
objetos são percebidos e você chega à conclusão de que objetos são percepções.
Esta é a conclusão de Berkeley”.
132 Andrea Cachel

Para a filosofia berkeleyana, o idealismo seria a forma


adequada de assegurar a existência dos objetos sensíveis e distinguir
as sensações das ilusões, ao contrário do que afirmaria a tradição
cética. Isso porque Berkeley atribui à suposição da dupla existência
a causa direta do ceticismo:

Em primeiro lugar, em relação às idéias ou coisas não pensantes, nosso


conhecimento destas tem sido muito obscuro e confuso, e temos sido
conduzidos a erros muito perigosos ao supor a dupla existência dos
objetos dos sentidos, uma inteligível ou na mente, e outra real e fora dela,
pela qual se considera que as coisas não pensantes têm uma subsistência
natural própria, distinta do fato de serem percebidas pelos espíritos.
Suposição essa que, se não estou enganado, mostramos ser a mais
infundada e absurda, é a verdadeira raiz do ceticismo. Porque, à medida
que os homens pensam que as coisas reais subsistem fora da mente, e que
seu conhecimento é real só se estiver de acordo com as coisas reais,
segue-se que nunca poderão estar certos de possuir conhecimento real.
Pois como poderia saber que as coisas percebidas são semelhantes
àquelas que não o são ou que existem fora da mente? (Berkeley, 1998a,
p.133-4).

A origem da dúvida sobre os conteúdos sensíveis seria a


pressuposição de uma diferença entre coisas e idéias e,
conseqüentemente, de que objetos são existências distintas e
contínuas. Portanto, não seria a obscuridade das coisas, nem a
limitação do conhecimento humano, os fundamentos do ceticismo,
mas sim a pressuposição de haver uma dupla existência, uma
mental, outra real (Berkeley, 1998a, p. 89). Essa pressuposição faria
a verdade acerca dos objetos sensíveis ser compreendida como a
correspondência entre idéias e objetos externos. A dúvida apareceria
como conseqüência inevitável da tentativa frustrada de se procurar
estabelecer a correspondência entre objetos externos e idéias e, nesse
sentido, o ceticismo em relação aos objetos sensíveis seria produto
da impossibilidade de se determinar se o objeto sensível é, de fato,
verdadeiro ou ilusão.
Não é por outro motivo que a sustentação de que há uma
única existência, a das idéias, é apontada como método eficaz para
evitar a dúvida quanto à evidência dos sentidos ou a negação da
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 133

realidade dos objetos sensíveis. O idealismo berkeleyano procura


demonstrar que apenas idéias e espíritos existem (Berkeley, 1998a,
p. 105), portanto que, em relação aos conteúdos sensíveis, não há
diferença entre objetos inteligíveis e objetos reais. Se é a dupla
existência a introdutora da possibilidade de questionamento acerca
da verdade ou falsidade da sensação – por exigir que um conteúdo
sensível seja verdadeiro apenas se correspondente a uma existência
dele diferente e, a princípio, ininteligível – o idealismo seria o modo
de negar tal possibilidade. Mostrando que apenas o objeto sensível
inteligível e não distinto da mente existe, Berkeley entende não ser
coerente aventar a hipótese de que os objetos percebidos sejam
ilusões, portanto, como desprovido de fundamento o ceticismo
quanto aos sentidos.
Assim, o modo pelo qual Berkeley pretende se contrapor ao
ceticismo, um dos objetivos principais dos Diálogos e dos
Princípios, é argumentar não existir objetos distintos das idéias e,
em contrapartida, asseverar que os objetos reais têm natureza
dependente da mente. Isso será realizado sobretudo a partir de uma
análise da natureza das idéias, a qual permitirá afirmar a inexistência
da matéria e, portanto, em relação aos objetos sensíveis, que só há
uma única existência 4 . Segundo Berkeley, ademais, essa estratégia

4
Nesse sentido, ver Fogelin (1996, p. 334). Nos Princípios não fica muito
demarcada a diferença entre os argumentos que provam a contradição de um
sentido de matéria e aqueles que provam apenas a sua inconcebilidade. Já nos
Diálogos, Berkeley enfrenta claramente as objeções resultantes da sua
sustentação, em alguns casos, da impossibilidade da matéria apenas pela
inconcebilidade. Uma das objeções de Hylas a Philonous, que representa a
filosofia berkeleyana, é justamente a de que os argumentos contra as noções de
ocasião e causa, por exemplo, não provariam que a matéria não existe, mas tão
somente que não se tem idéia dela. Imediatamente antes da passagem que
acabamos de comentar, Hylas argumenta que esses sentidos de matéria não são
impossíveis, mas apenas inconcebíveis. É essa objeção que Berkeley refuta
afirmando que mostrar que não há idéias é também uma forma de provar uma
impossibilidade, como vimos. Berkeley reconhece que provou a contradição
apenas da idéia de substrato de qualidades primárias e não de sentidos como causa
e ocasião. Sua estratégia é “inverter o ônus da prova”, pois Philonous (Berkeley,
1998b, p. 109) argumenta que seu único dever era mostrar a contradição da noção
134 Andrea Cachel

contra o ceticismo seria plenamente compatível com a compreensão


vulgar acerca dos objetos. Ou seja, para ele, sua estratégia idealista
não significaria uma nova forma de ceticismo. Não se retiraria a
realidade dos objetos, apenas se falaria em realidade num novo
sentido. A maior vividez, constância e regularidade das idéias dos
sentidos as tornam reais, ao contrário das idéias que não possuem
tais características: “As idéias impressas nos sentidos pelo Autor da
Natureza são chamadas coisas reais, enquanto aquelas suscitadas
pela imaginação, sendo menos regulares, vívidas e constantes, são
mais propriamente chamadas de idéias, ou de imagens de coisas, as
quais elas copiam e representam” (Berkeley, 1998a, p. 114). Os
objetos sensíveis seriam reais e não quimeras, embora por realidade
já não se compreenda a sua existência externa ou independente. Tal
compreensão de realidade, além disso, como deixam claro os
Diálogos, seria plenamente compatível com a opinião vulgar. De
acordo com Berkeley, embora se afirme que os homens acreditam na
matéria, isso na verdade não ocorre, porquanto não se poderia crer
em uma contradição (Berkeley, 1998a, p.121-2). No modo como
expõe a crença vulgar nos Diálogos, ao contrário, a realidade
atribuída pelo vulgo aos objetos sensíveis teria, justamente, o
mesmo sentido de realidade a eles conferidos pelo seu idealismo:

Philonous: Agrada-me apelar para o senso-comum para estabelecer a


verdade da minha noção. Pergunte por exemplo ao jardineiro por que ele
pensa que a cerejeira existe neste jardim: e ele lhe dirá que acredita
porque a vê e a apalpa; numa palavra: porque ele a percebe pelos seus
sentidos. Pergunte-lhe por que crê que não existe por aqui uma laranjeira:
e dir-lhe-á que assim crê porque não a percebe. Àquilo que percebe pelos
sentidos dá o nome de real, e diz que é, ou que existe; mas do que não é
perceptível diz que não tem existência.” (Berkeley, 1998b, p. 117)

Para o vulgo, aliás, na visão a ele atribuída por Berkeley, o


que aparece aos sentidos são as coisas reais, de forma que a

já estabelecida de matéria e que quanto às outras noções de matéria caberia aos


seus proponentes antes provar que elas são concebíveis, para que só depois se
pudesse mostrar a sua contradição.
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 135

afirmação de que o ser real é o percebido (pois é o único ser) seria a


confirmação da opinião vulgar. Por outro lado, a sustentação de que
esse ser real existe somente quando percebido seria uma espécie de
depuração dessa opinião, por intermédio da sua compatibilização
com aquela que Berkeley julga ser a opinião filosófica:

Philonous: Não pretendo ser formulador de noções novas. Meu esforço é


só o de unificar e colocar à clara luz aquela verdade que antes era
compartilhada entre vulgo e filósofos: aquele opinando que as coisas que
imediatamente percebe são as coisas reais e este que as coisas
imediatamente percebidas são idéias que existem apenas na mente. Essas
duas noções juntas são o núcleo daquilo que eu defendo “ (Berkeley,
1998b, p.142)

Enquanto os filósofos reconheceriam que o conteúdo


imediato da sensação é idéia, o vulgo consideraria que percebe as
próprias coisas reais. Quando se traduz a opinião vulgar com base na
linguagem filosófica – e para Berkeley vulgo e filósofos
compartilhariam uma mesma verdade – poder-se-ia afirmar que,
para o vulgo, os objetos reais são dependentes da mente. O
idealismo berkeleyano apenas tornaria mais explícita a
compatibilidade entre vulgo e filósofos, sintetizando ambas as
opiniões. Por um lado, mostraria que o que aparece à mente na
sensação são as próprias coisas, à medida que não há outra
existência a ser chamada de real em contraposição a uma chamada
de aparência, e, por outro lado, evidenciaria que os objetos têm
existência apenas na mente. Isso porque, partindo da opinião
atribuída à filosofia, Berkeley conclui que qualquer idéia relativa da
matéria ou representa uma contradição ou é, no fundo, destituída de
sentido, não sendo propriamente uma idéia. Sendo a idéia de matéria
ininteligível (seja essa idéia ininteligível porque é contraditória ou
apenas por ser inconcebível), seguir-se-ia que tudo o que existe ou é
substância imaterial ou é idéia. Com exceção dos espíritos, os quais
em nada contribuiriam para o ceticismo quanto aos sentidos, não
existiriam coisas diferentes das idéias, subsistentes à mente e
impercebidas, portanto, como nem o cético negaria haver um
136 Andrea Cachel

conhecimento integral do sujeito em relação a suas idéias, não se


teria razão para duvidar.
Dessa forma, o idealismo seria, para Berkeley, o método
eficaz de “combate” ao ceticismo, tendo em vista que este se
apoiaria na pressuposição de uma dupla existência. O que Hume
mostrará é que a “solução” berkeleyana é inadequada por resultar
em uma refutação do ceticismo que subverte, ao mesmo tempo, a
crença do senso comum. Em contrapartida, para não a subverter,
Hume terá que se opor ao princípio segundo o qual ser é ser
percebido. Nesse sentido, é ao próprio idealismo como estratégia
contra o ceticismo que a filosofia humeana se contraporá, mostrando
como a defesa da crença no mundo exterior implica, antes, a sua
prova de insuficiência. Todo o esforço de Hume é justificar como a
opinião vulgar de que as percepções (ou os objetos) são contínuas se
torna possível, o que o remete a princípios da imaginação. Seria a
imaginação que originaria a suposição da existência contínua de
impressões coerentes e constantes. Entretanto, o problema em Hume
fica restrito ao domínio da inteligibilidade e não representa a
afirmação de que a existência contínua das percepções é verdadeira.
A suposição da continuidade das percepções é, para a filosofia
humeana, assim como para o sistema filosófico, uma falsidade.
Contudo, como falsidade e possibilidade não são incompatíveis
(pelo menos quando falamos de duas faculdades, razão e
imaginação, com atuação alternativa), ainda que se constate a
falsidade da idéia de que percepções são contínuas e distintas, a
possibilidade da crença não é abalada, embora se deva admitir, a
partir dessa constatação, que ela é uma ficção da imaginação. No
entanto, se a falsidade da opinião vulgar não restringe a sua
possibilidade, para defender a inteligibilidade é preciso que Hume
encontre um modo dessa idéia não ser contraditória e é aí que parece
ser possível estabelecermos um diálogo direto entre ele e Berkeley.
Era precisamente o princípio segundo o qual ser é ser percebido que
permitia a Berkeley sustentar, em primeiro lugar, que a noção de
existência contínua de objetos sensíveis, ou de coleções de idéias, é
contraditória:
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 137

É de fato uma opinião estranhamente predominante entre os homens que


casas, montanhas, rios e, numa palavra, todos os objetos sensíveis, têm
uma existência natural ou real distinta de seu ser percebidos pelo
entendimento. Não obstante, por maior confiança e aquiescência que este
princípio possa ter recebido no mundo, quem tiver coragem de discuti-lo,
poderá perceber, se não me engano, que ele envolve uma contradição
manifesta. Pois o que são os objeto acima mencionados senão coisas que
percebemos pelos sentidos? E o que percebemos além de nossas próprias
idéias ou sensações? E não é claramente contraditório que algumas destas
ou alguma combinação destas possa existir impercebida? (Berkeley,
1998a, p. 66-7) 5

A afirmação de que ser é ser percebido, tendo em vista que


determinava a contradição da atribuição de continuidade às idéias,
tinha como efeito, em segundo lugar, a consideração de que a crença
na continuidade dos objetos sensíveis, ou seja, na noção vulgar de
objeto, é impossível (Berkeley, 1998a, p. 90-1). Para Berkeley, se o
vulgo afirma que crê na existência contínua e distinta dos objetos, é
apenas porque não compreende o sentido da proposição, ou, em
outras palavras, ele não crê efetivamente no que significa a
existência contínua e distinta dos objetos sensíveis: a existência
contínua e distinta das idéias. Tanto é assim que, nos Diálogos, a
crença vulgar na realidade dos objetos é apresentada de forma
análoga à compreensão berkeleyana sobre o sentido de realidade
aplicado aos objetos sensíveis, ou seja, como existências
dependentes, porém distintas das idéias da imaginação.
Para Hume, a consistência da crença também envolve a
consistência da suposição de continuidade das impressões coerentes
ou constantes, o que lhe exigiu encontrar um modo de explicar como
percepções podem existir impercebidas, ainda que seja falso que elas

5
É bastante interessante observar que Berkeley usa aqui casas, montanhas e rios, e
que Hume, ao falar da constância de algumas percepções utiliza-se de casas,
montanhas e árvores, como exemplos (Hume, 1978, p. 194). Mais do que isso,
também é bastante pertinente considerar que a constância e coerência são
qualidades que Berkeley atribui às idéias que passam ser identificadas como reais,
em contraposição às idéias da imaginação.
138 Andrea Cachel

existam dessa forma. Trata-se de sustentar que essa é uma questão


de fato e não demonstrativa, de forma que a falsidade pode, assim
como o lado verdadeiro da questão, ser concebida. Hume reconhece
que apenas percepções são concebíveis e que a noção da existência
contínua e distinta dos objetos é a noção da continuidade e distinção
das próprias impressões sensíveis. Mas ao assumir que a noção de
objeto é a da continuidade e distinção, ele precisa negar a tese
berkeleyana de que o que o vulgo chama de objeto é, na realidade,
uma idéia contraditória e, conseqüentemente, que a crença nessa
noção é impossível. Hume, como Berkeley, entende que para o
vulgo o que é imediatamente percebido é o objeto original. Porém,
assim como reconhece Berkeley, Hume considera que o que é
imediatamente percebido são percepções (ou seja, seu ponto de vista
é o filosófico e não o vulgar) e, nesse sentido, compreende que a
discussão acerca da consistência da crença vulgar é pertinente à
possibilidade de percepções, e não objetos, existirem impercebidas.
É por isso que a sustentação de que não há contradição na suposição
da existência contínua dos objetos parece exigir que Hume refute a
posição de Berkeley, segundo o qual o ser de uma idéia ou
percepção é ser percebido.
Hume, de fato, parece reconhecer que, se o ser de uma
percepção for ser percebida, torna-se contraditório supor a sua
existência contínua. No início da sua discussão sobre a consistência
do sistema vulgar, ele afirma: “como a aparência de uma percepção
na mente e sua existência parecem a primeira vista ser a mesma
coisa, pode-se duvidar que algum dia sejamos capazes de concordar
com uma contradição tão palpável e supor que uma percepção exista
sem estar presente à mente” (Hume, 1978, p. 206). Reconhecendo
que, se a aparência de uma percepção na mente e sua existência
forem a mesma coisa, a afirmação de existência contínua das
percepções é contraditória, portanto, não pode ser pensada e,
conseqüentemente, não pode ser objeto de crença, Hume desenvolve
uma estratégia que consiste em argumentar que ambas são
diferentes. Berkeley mostrara que se elas não são diferentes – e ele
considerava que não eram – a afirmação de que os objetos existem
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 139

mesmo quando não percebidos depende da teoria das idéias abstratas


(Berkeley, 1998a, p. 67).
Como Hume acompanha Berkeley na crítica à abstração, a
defesa da consistência da suposição da existência contínua das
percepções depende de que se evidencie que a existência de uma
percepção e sua aparição na mente são diferentes, portanto que a
separação entre ambas (que na discussão em pauta é realizada pela
imaginação) não é uma abstração, pelo menos no sentido em que a
abstração é rejeitada por esses autores. Além disso, a defesa da
consistência do sistema vulgar exige que a filosofia humeana
justifique como a existência contínua dos objetos não implica na sua
criação e aniquilação constantes – considerando-se que, embora o
vulgo identifique percepções e objetos, o ponto de vista humeano é
o ponto de vista filosófico, para o qual apenas percepções estão
presentes à mente. Nesse sentido, ele admite que seria preciso
responder a duas questões: “Primeira, como podemos admitir que
uma percepção pode estar ausente da mente sem ser aniquilada.
Segunda, de que maneira nós concebemos que um objeto se torna
presente à mente sem uma nova criação de uma percepção ou
imagem; e o que entendemos por ver, sentir e perceber “ (Hume,
1978, p. 207). Berkeley já havia respondido a essa possível objeção,
no entanto sua resposta envolvia justamente o princípio contestado
por Hume:

Em quarto lugar, objetar-se-á que dos princípios precedentes se segue que


as coisas são aniquiladas e criadas a cada momento. Os objetos dos
sentidos existem somente quando são percebidos; as árvores, portanto,
estão no jardim, ou as cadeiras na sala, só enquanto existe alguém para
percebe-las. Ao fechar meus olhos toda a mobília da sala é reduzida a
nada e, ao abri-los, ela é criada de novo. Em resposta disso remeto o
leitor ao que foi dito na Seção 3, 4, e etc. e desejaria que considerasse se
expressa algo ao falar da existência real de uma idéia, distinta do fato de
ser percebida” (Berkeley, 1998a, p. 85-6)

Berkeley responde à objeção afirmando que não há sentido


em falar em criação e aniquilação se ser é ser percebido ou, mais
adiante (Berkeley, 1998a, p. 87-8), que sempre há uma mente
140 Andrea Cachel

percebendo o objeto, dando uma resposta assentada no princípio que


Hume precisa refutar. Como o objeto de contestação da filosofia
humeana foi a necessidade da existência dependente das percepções,
ela precisa encontrar um modo de responder à objeção enfrentada
por Berkeley, sem recorrer a tese empregada por esse autor. Assim,
para defender a possibilidade da crença nos corpos é preciso
justificar como os objetos não seriam criados e aniquilados a todo
instante, mesmo existindo quando não percebidos. Para tanto, Hume
utiliza-se da sua teoria da identidade pessoal, à qual certamente se
fazer várias críticas 6 , mas que devemos reconhecer como o recurso
empregado para mostrar como podemos assentir à suposição da
existência contínua, embora se determine a posteriori que esse lado
é o falso, ou seja, o que não é objeto da relação de causa e efeito,
mas sim da imaginação.
Como vimos, com base na opinião de que a mente é um
feixe de percepções e não uma substância, Hume conclui que
percepções-objetos podem estar presentes ou ausentes da mente,
sem que isso signifique alteração na sua existência. Para ele, a mente
seria um feixe de percepções, unidas por uma relação. Essas
percepções seriam distintas, portanto separáveis umas das outras
(Hume, 1978, p. 207). Por isso, uma delas poderia ser separada da
mente (que é o conjunto dessas percepções distintas), sem que isso
significasse a sua aniquilação. Da mesma forma, uma percepção
poderia se tornar presente à mente, ou seja, entrar em conexão com o
feixe, sem que isso implicasse a criação de novas idéias. Ser

6
Podemos citar como exemplo as críticas de Penelhum (1966) e Stroud (1995, p.
123-140). Em linhas gerais, Penelhum afirma que Hume parece ter misturado a
noção vulgar e filosófica de identidade e, no fundo, tentado justificar uma opinião
que não é totalmente compatível com a opinião vulgar, mas com base em parte da
opinião vulgar. Uma das críticas de Stroud é em relação ao fato de Hume explicar
a unidade ou individualidade conferida ao feixe de percepções por meio de
tendências da mente, ou seja, por meio de operações daquilo que está em questão
na análise, o que significaria, para esse comentador, a existência de uma
circularidade, circularidade essa que também apareceria na dependência que a
identidade pessoal tem da relação de causa e efeito que, por sua vez, é dependente
da unidade da mente.
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 141

percebido representaria adquirir uma relação com esse feixe de


percepções, portanto, poder-se-ia conceber que um objeto se torna
presente à mente sem a criação de uma nova percepção. Nas
palavras do autor: “Objetos externos são vistos, sentidos e tornam-se
presentes à mente, isto é, adquirem tal relação com um feixe
conectado de percepções que as influenciam consideravelmente,
aumentando o seu número com reflexões e paixões e abastecendo a
memória de idéias” (Hume, 1998, p. 207). Para Hume, isso indicaria
que um objeto pode, após ter sua percepção interrompida, voltar a
ser percebido sem a criação de uma idéia nova ou diferente daquela
que se tinha anteriormente desse objeto. Poder-se-ia supor, a partir
disso, que um objeto da mente (ou percepção) existe mesmo quando
não percebido e, em decorrência, crer nessa suposição. Tal
suposição, dessa forma, é concebível, tendo em vista que não
representa uma contradição.
Assim, apresentando uma nova definição de mente, a qual
caracteriza a sua unidade como ficção, e dando um novo sentido ao
que significaria “ser percebido”, a filosofia humeana parece ter
procurado garantir que a existência de uma percepção e sua aparição
na mente (o seu ser conhecido) possam ser concebidas como coisas
distintas e que, por isso, seja possível separá-las mentalmente. De
certa forma, por meio dessa hipótese, Hume parece ter enfrentado o
seguinte desafio de Berkeley:

... estou disposto a apostar tudo nisso: se o leitor puder meramente


conceber que é possível que uma substância extensa e móvel, ou, em
geral, que qualquer idéia ou qualquer coisa semelhante a uma idéia, exista
de outra forma que não em uma mente que a perceba, abandonarei
imediatamente a causa. E quanto àquela coleção de corpos exteriores que
o leitor defende, admitirei que ela existe, ainda que não possa dar-me
nenhuma razão por que acredita que ela existe, ou mostrar que ela tem
algum uso ao supô-la existente. Ou seja, a simples possibilidade de que
sua opinião seja verdadeira será considerada como um argumento de que
efetivamente é assim (Berkeley, 1998a, p. 75)

Mais do que avaliar a resposta humeana propriamente dita,


que expusemos em linhas gerais, cabe-nos aqui perceber que a
142 Andrea Cachel

defesa da inteligibilidade da crença na distinção e continuidade dos


objetos é a negação do que Berkeley inferira em relação a ela. Isso
porque, de certo modo, a questão em Hume parte da filosofia
berkeleyana. O problema humeano é o problema da crença nos
objetos e a estratégia de refutação do ceticismo em relação aos
sentidos, seja ela adequada ou não, é explicar as causas dessa crença.
A crença nos corpos, em Hume, só pôde ser explicada com base na
suposição vulgar de que há uma única existência, ou de que, como a
própria filosofia berkeleyana admitira, as coisas que imediatamente
percebe são as coisas reais. Portanto, mesmo sem envolver a
negação de uma dupla existência, mas sim a argumentação de que a
pressuposição de uma diferença entre objetos e percepções torna
impossível inferir a existência dos primeiros por meio da razão, a
discussão sobre a crença nos objetos, na filosofia humeana, num
certo sentido colocou-se num terreno preparado por Berkeley.
Entretanto, se a pressuposição de existência simples foi
condição indispensável para a explicação humeana, a defesa da
consistência da suposição vulgar de que as percepções são
existências originais, ou, de que percebemos diretamente as “coisas
reais” (os próprios objetos), parece ter invertido a identidade
proposta por Berkeley entre objetos e percepções. Para garantir a
inteligibilidade da crença nos corpos, Hume, justamente por fundá-
la na pressuposição de que há uma única existência, precisou romper
com o princípio segundo o qual, nas idéias, o seu ser é igual ao seu
ser percebido, que é, como vimos, a base da demonstração
berkeleyana acerca da contradição da idéia de matéria ou de
substância material. Em outras palavras, a defesa da consistência da
crença vulgar, tenha sido ela especificamente direcionada a Berkeley
ou não, significou uma oposição à espinha dorsal do idealismo
berkeleyano, à medida que representou a “transformação”, embora
apenas no nível da inteligibilidade (que, diga-se de passagem, é
também o nível em que Berkeley discute várias noções de matéria),
de percepções em existências distintas e contínuas 7 . Isso porque,

7
Dessa forma, embora Bennett (ver nota 3) esteja correto ao considerar que Hume
entende que o sistema da dupla existência é pior que a pressuposição de uma
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 143

assim como os filósofos, Hume admite que o imediatamente


percebido é percepção ou idéia, mas também reconhece que a crença
nos corpos é um dado universal e irrenunciável. Por isso, traduz a
crença nos corpos, que é a crença vulgar na continuidade e distinção
dos objetos imediatamente presentes à mente na sensação, pela
possibilidade da suposição de existência contínua e distinta das
percepções.
É preciso perceber, para finalizarmos, que essa constatação
de uma oposição entre Hume e Berkeley em relação à possibilidade
de se supor a existência contínua das percepções pode, num contexto
mais geral, fazer-nos compreender o próprio ponto de partida da
discussão realizada no Tratado, o que nos parece um ganho muito
importante. A investigação acerca da causa da crença nos corpos
inicia-se pelo estabelecimento de um corte no problema, corte esse
que condiciona toda a resposta da filosofia humeana. Tendo em vista
a ininteligibilidade de existências especificamente diferentes das
percepções, tratar-se-á de buscar a origem da atribuição de
continuidade e distinção dos objetos. Hume parece considerar que só
há duas opções: ou existência especificamente diferente ou
continuidade e distinção dos objetos. O fato de que se existências
especificamente diferentes das percepções são ininteligíveis, só resta
a noção da continuidade e distinção dos objetos como noção
inteligível de existência externa, entretanto, não parece ser de modo
algum evidente.
Hume não oferece pistas para nos fazer compreender porque
só haveria essas duas alternativas. Mas, que a crença vulgar seja

única existência, parece estar equivocado ao considerar que o sistema vulgar


representa a filosofia berkeleyana. Bennett afirma que a forma vulgar é a posição
de Berkeley porque o resultado da união entre a opinião humeana da presença
exclusiva de percepções à mente com a opinião vulgar de que objetos são
diretamente percebidos é a afirmação de que objetos são impressões, ou seja, a
posição berkeleyana. O que parece mais correto, entretanto, é que, pelo menos do
ponto de vista da inteligibilidade, em Hume, a união da opinião de que apenas
percepções estão presentes à mente, com a opinião vulgar de que objetos são
diretamente percebidos, resulta na afirmação de que percepções são objetos
(existências contínuas e independentes), visão oposta à de Berkeley.
144 Andrea Cachel

apresentada por Berkeley do mesmo modo que ela aparece na


filosofia humeana parece ser um fato que não deve ser desprezado.
Se pensarmos que em Berkeley, no fundo, a única inteligibilidade
possível para a idéia de objeto externo acaba sendo a da existência
distinta dos objetos ou qualidades sensíveis (hipótese, para ele,
contraditória), tendo em vista que noções como ocasião de idéias,
causa de idéias, etc., são por ele rejeitadas por serem consideradas
ininteligíveis, podemos cogitar que a origem da discussão em Hume
esteja bastante vinculada à estratégia empregada pelo idealismo
berkeleyano para se contrapor ao problema do ceticismo em relação
aos sentidos 8 . Também em Berkeley o que se exige é a
inteligibilidade da noção de objeto externo e, de algum modo, essa
inteligibilidade passa pelas idéias, que ele identifica com as
qualidades sensíveis. É a contradição que ele aponta em supor que
essas qualidades (ou um conjunto dessas) existem quando não
percebidas que determina a contradição de um sentido específico de
matéria (o de substância, suporte de qualidades primárias), que ele
confessa, nos Diálogos, ser o sentido que seu idealismo precisa
refutar. Isso mostra a amplitude da resposta humeana em relação ao
idealismo berkeleyano. Bem ou mal, ao mostrar que a imaginação
pode justificar a noção de existência contínua das percepções, Hume
atinge o núcleo central do idealismo berkeleyano.
Porém, é fundamental, sobretudo, entender que evidenciar
que a discussão humeana parece estar vinculada ao contexto de
debate da filosofia de Berkeley com o problema da crença no mundo
exterior nos permite, especialmente, iniciar um debate acerca do
próprio estatuto da filosofia de Hume. A discussão entre Hume e
Berkeley quanto à crença no mundo exterior revela que entre ambos
há diferenças essenciais no que se entende por sistema vulgar e na
relação entre esse e o sistema filosófico. Se para Berkeley seu
idealismo não representaria uma contraposição ao vulgo, mas sim a
depuração da realidade conferida pelo senso comum aos objetos

8
A despeito de opiniões como a de Popkin (1980, p. 289-295), segundo o qual,
embora seja necessário afirmar que Hume leu Berkeley, ter-se-ia que concluir que
tal leitura não exerceu grande influência na obra humeana.
Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley 145

sensíveis, para Hume a afirmação de que o imediatamente percebido


na sensação é uma existência dependente da mente é incompatível
com a opinião vulgar sobre os sentidos. Se Berkeley sustentou que
seu idealismo representava a união entre sistema vulgar e filosófico,
Hume procurou evidenciar, primeiramente, que tal união é uma
impossibilidade, mostrando que as opiniões filosófica e vulgar não
são tão intercambiáveis e que a tradução filosófica para as crenças
do vulgo não se faz sem problemas. Isso significa que Hume mostra
que fazer uma filosofia que não subverta as crenças do senso comum
exige do filósofo uma base inteiramente nova, não o afaste da
filosofia e, ao mesmo tempo, sendo ainda um filósofo, não o torne
incompatível com a vida comum. Novos conceitos de mente e razão,
por exemplo, passam a ser exigências que a vida faz à filosofia,
quando os conceitos antigos não conseguem senão entrar em
contradição com as crenças do homem comum. E, possa ser uma tal
filosofia ainda caracterizada como “cética” é um assunto cuja
análise deixamos para outro momento 9 .

Referências
BENNETT, J. 1971 Locke, Berkeley Hume Central Themes. Oxford:
Clarendon Press
BERKELEY, G. 1998a. The Principles of Human Knowledge.
Jonathan Dancy. Oxford University Press.
________ 1998b. Three Dialogues between Hylas and Philonous.
Jonathan Dancy. Oxford University Press.
CESCATO, M. C. 2002. Síntese e Discursividade na Crítica da
Razão Pura de Kant. São Paulo: Tese de Doutorado em Filosofia,
USP.
CONTE, Jaimir. 2000. Berkeley e o Ceticismo. Florianópolis:
Dissertação de Mestrado em Filosofia, UFSC

9
Este texto é parte da dissertação defendida em 2005, no programa de pós-
graduação em filosofia da UFPR.
146 Andrea Cachel

DANCY. 1998a. Introduction to The Principles of Human


Knowledge. In The Principles of Human Knowledge. Oxford
University Press.
________1998b Introduction to The Three Dialogues between
Hylas and Philonous. In Three Dialogues between Hylas and
Philonous. Oxford University Press.
FOGELIN, R J. 1996. The Intuitive Basis of Berkeley's
Immaterialism. In History of Philosophy Quaterly, v. 13, n.3, Julho.
HUME, D. 1978. Treatise of Human Nature. Selby-
Bigge/P.H.Nidditch. 2ed. Oxford: At The Clarendon Press.
LEBRUN, G. 1988. Berkeley ou le sceptique malgré lui.
Manuscrito, v. XI, n. 2, p. 33-48.
PEARS, D. 1990. Hume's System. An Examination of the First Book
of his Treatise. Oxford University Press.
PENELHUM, T. 1966. Hume on Personal Identity. Modern Studies
in Philosophy (Hume), ed. V.C. Cappell, Londres: University of
Notre Dame Press
POPKIN, R. 1980. So, Hume did Read Berkeley. The Righ Road to
Pyrrhonism. San Diego: Austin Hill Press, p. 289-295.
PRICE, H. 1940 Hume's Theory of The External World. Oxford
University Press.
SMITH, P. J. 1995. O Ceticismo de Hume. São Paulo: Loyola, 1995.
STROUD, B. 1995. Hume. London and New York: Routledge,
1995.
WILSON, F. 1991. Hume on Abstract Idea of Existence: Comments
on Cummins “Hume on the Idea of Existence”. Hume Studies, v.
xviii, n. 3, novembro, p. 167-201.
A excelência moral e as origens da ética grega

David de Souza *

Resumo: Este artigo trata das origens da ética grega a partir dos sete sábios e dos
filósofos pré-socráticos, destacando os elementos que formarão a ética do período
clássico (séc. V, IV, a.C.) e do período greco-romano.
Palavras-chaves: Ética; Filosofia antiga; História.

Résumé: Cet article-ci porte sur les origines de l’éthique grecque à partir des sept
sages et des philosophes avant Socrate, en en détachant les éléments qui formeront
l’éthique de la période classique (5ème et 4ème siècle a.C.) et de la période gréco-
romaine.
Mots-clé: Éthique, Philosophie politique, Histoire

Voltarei ao início.
Demôcritos

1 Dados históricos
Ao se analisar no surgimento da pólis grega, percebe-se uma
transmutação de valores – queda dos valores aristocráticos e
ascensão de valores religiosos e políticos – semelhantes àquela
descrita na genealogia da moral de Nietzsche.
De fato, a queda do império micênico deixou em
desarmonia forças sociais que se chocam e se desequilibram. “De
um lado as comunidades aldeãs, de outro uma aristocracia guerreira
cujas famílias mais eminentes detêm igualmente, como privilégio de
genos, certos monopólios religiosos” 1 . Nascerá a partir desse
confronto uma busca de consenso em torno da ordem social, que
fará surgir “uma reflexão moral e especulações políticas que vão
definir uma primeira forma de ‘sabedoria’ humana” 2 . Esta primeira
sabedoria, que aparece no início do século VI, é reflexo e espelho

*
Mestre em Ética e Filosofia Política pela PUCRS e doutorando em Literatura,
UFSC. E-mail: chelyfer@zipmail.com.br. Artigo recebido em 30.09.2007 e
aprovado em 08.11.2007.
1
J-P. Vernant, As origens do pensamento grego, p. 34.
2
Ibid..

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 147-174.


148 Davi de Souza

dos sophoi – sábios – aos quais está ligado o nome de Tales, Sôlon,
Pitágoras, etc.. Esta sophia não objetiva o conhecimento da
natureza, da physis, mas “o mundo dos homens: que elementos o
compõem, que forças o dividem contra si mesmo, como harmonizá-
las, unificá-las, para que de seus conflitos surja a ordem humana da
cidade” 3 .
O surgimento da pólis data do século VIII/VII a.C., e já
pelos fins do século VII e início do VI entra em uma crise
dependente de vários fatores. Fatores estes, e crise esta, que irá
derribar os velhos valores homéricos da aristocracia de então.
Esses valores, nesta época educada pelos poemas homéricos,
ensinavam que a areté 4 (excelência, virtude) é um privilégio de
poucos, quer ligada ao sangue familiar ou às qualidades particulares
do espírito. De certo modo “nasce-se” com areté, ou não. Em cada
herói homérico vivia “uma poderosa individualidade, cujo valor
fundamental é a honra e a glória que necessariamente deve
acompanhá-la” 5 . “Honra e glória”: coisa que o homem comum não
possui, pois a “a areté é o atributo próprio da nobreza” 6 . Em
Homero, em geral, areté designa “a força e a destreza dos guerreiros
ou lutadores e, acima de tudo, heroísmo, considerado não no nosso
sentido de ação moral e separada da força, mas sim intimamente
ligado a ela” 7 . Riqueza, força e sabedoria estavam assim, aliadas
naquele que possuía areté.
Esta concepção da areté homérica permanecia ainda na
idade arcaica, ou lírica (séc. VII); mas aí já tem seus dias contados.
O ideal de vida aristocrático, seus privilégios e sua própria areté, é
diluído e perdido pelas transformações econômicas e sociais que se

3
Ibid..
4
Uso os termos ‘virtude’ e ‘excelência’ como traduções do termo grego ‘areté’.
Mesmo sabendo da preferência pelo termo ‘excelência’ por parte dos tradutores
atuais (M. Gama Kury, por exemplo). Penso que o termo ‘virtude’ está tão
enraizado em nossa cultura, como significado de excelência moral, que não vejo
motivos para deixar de usá-lo.
5
G. N. M. Barros, Sôlon de Atenas, p. 26.
6
W. Jaeger, Paidéia, p. 26.
7
Ibid., p. 27.
A excelência moral e as origens da ética grega 149

operam no seio da sociedade grega. O próprio Homero é atacado (no


século VI) por Xenofanes de Colofon 8 e por Herácleitos de Éfeso 9 .
Pode-se apontar alguns fatores que interferiram diretamente
nesta tresvaloração dos valores, para usar o termo de Nietzsche, e
que acabaram por alterar o sentido da areté: O surgimento da
moeda, que provoca o empobrecimento do homem do campo; a
popularização da escrita, que ao registrar as leis, dá à dike, justiça,
uma proximidade maior com o mundo dos homens; também o
avanço técnico das armas de guerra provoca grandes mudanças nos
valores guerreiros, que são os mesmos do aristocrata; o
florescimento de seitas religiosas que, buscando uma salvação
pessoal, corrobora também na alteração do sentido da areté; e
finalmente, como um coroamento e ao mesmo tempo sustentação, o
generalizado sentimento de aversão contra a hybris, o excesso, da
aristocracia e dos novos ricos, que fará da sophrosyne, moderação, a
essência da areté. No campo de batalha, no domínio econômico, na
ágora, e até mesmo na expressão dos sentimentos, a moderação fará
a excelência.
Com a retomada das relações comerciais dos gregos com o
oriente, restabelecidas desde o século VIII, onde são exportados e
trocados os produtos da agricultura helênica, aumentam o ouro e a
prata, e, conseqüentemente, a riqueza das cidades. Cunha-se moedas
– fim do século VII e início do século VI – e a pólis entra em crise,
ao concentrar a nova riqueza, as moedas, nas mãos de poucos,
provocando a miséria dos agricultores. Também a própria riqueza e
luxo do oriente inspiram os gostos e costumes da aristocracia grega,
que doravante passa a ostentar seu poder econômico, que unido ao
seu valor guerreiro e às qualificações religiosas, chega ao excesso, à
desmedida, à hybris. Então “Personagens novos aparecem no
próprio seio da nobreza: o homem bem-nascido, o kalós kagathós,
que, por espírito de lucro ou por necessidade, entrega-se ao tráfico

8
Cf. Fr. 11 DK e D. Laêrtios, Opus cit., IX, 18: “Xenofontes ... escreveu elegias e
iambos contra Hesíodos e Homero”.
9
Fr. 42 DK: “Homero merecia ser expulso dos certames e açoitado”; trad. Os
Pensadores, p.83.
150 Davi de Souza

marítimo” 10 . A propriedade territorial concentra-se nas mãos de


poucos, e as “relações sociais aparecem marcadas pela violência,
pela astúcia, pela arbitrariedade e pela injustiça” 11 . Xenofanes de
Colofon, sábio e rapsodo errante do século VI, nos apresenta a
seguinte imagem dos nobres de sua cidade: “iam à ágora vestindo
túnicas purpúreas, /em geral em número não inferior a mil,
/soberbos, orgulhosos de seus cabelos bem tratados, /respingando
perfume de ungüentos artificiais” 12 .
Além disso, a partir de meados do século VII as mudanças
ocorridas nas técnicas de combate, nas armas de guerra, vão se
refletir diretamente nos valores morais da sociedade grega. O
hoplita, soldado com armadura pesada, vem tirar o privilégio dos
hippeis, elite militar cavaleira, à qual se associava “o brilho do
nascimento, a riqueza de bens de raiz e a participação de direito na
vida pública” 13 . Agora, todos aqueles pequenos proprietários
pertencentes ao povo que podiam adquirir seu equipamento de
hoplita, se elevavam em honra à mesma altura dos cavaleiros.
A areté desses cavaleiros lembra ainda o herói homérico; o
que conta para o cavaleiro é “a façanha individual, a proeza feita em
combate singular” 14 , onde executando ações brilhantes movido pela
lyssa, furor belicoso, e, protegido pelos deuses, assegura a sua areté.
O hoplita, por sua vez, faz parte de uma falange, de um grupo que
deve se manter unido e executar ações conjuntas. “A falange faz do
hoplita, como a cidade faz do cidadão, uma unidade permutável, um
elemento semelhante a todos os outros, e cuja aristeia, o valor
individual, não deve jamais se manifestar senão no quadro imposto
pela manobra de conjunto” 15 . Assim a areté guerreira deixa de ser
thymós (ardor), passa a ser sophrosyne; é preciso controle sobre si
mesmo para não se deixar levar pelos impulsos e perturbar a
ordenação da falange. A vitória da batalha também depende disso. O

10
J-P. Vernant, opus cit., p. 58.
11
Ibid., p. 59.
12
Fr. 2 DK, (Ateneu, XII, 526A), trad. Os Pensadores, p.63.
13
J-P. Vernant, opus cit., p. 39.
14
Ibid., p. 50.
15
Ibid., p. 51.
A excelência moral e as origens da ética grega 151

guerreiro não pode deixar que seu desejo de conflitar com o inimigo,
supere a união que deve coexistir na falange.
Paralelo a isso, há, com o crescimento da pólis, uma espécie
de “democratização” da religião. “Todos os antigos sacra, sinais de
investidura, símbolos religiosos, brasões, xôana de madeira,
zelosamente conservados como talismãs de poderio no recesso dos
palácios ou no fundo das casas de sacerdote, vão emigrar para o
templo, morada aberta, morada pública” 16 . No entanto, a religião
não permaneceu apenas no domínio público. Ao lado dos cultos
públicos da cidade desenvolveram-se seitas e confrarias fechadas,
permeadas de segredos, mas que oferecem a todos a oportunidade de
penetração nos seus mistérios, através de iniciações, de ritos e
provas. “A todos os que desejam conhecer a iniciação o mistério
oferece, sem restrição de nascimento nem de classe, a promessa de
uma imortalidade bem-aventurada, que era na origem privilégio
exclusivamente real” 17 .
Essas seitas, entre as quais se encontrava a dos pitagóricos,
vão contribuir em dois pontos importantes da cultura grega: o do
direito e o da moral. Epimenides, por exemplo, que fora chamado a
Atenas para purificá-la, onde travou amizade com Sôlon,
“introduziu o culto de Apolo, até então um culto aristocrático, na
religião nacional de Atenas” 18 . E, segundo Plutarco, ainda
purificando-a com seus ritos, como que abriu caminho para a
legislação de Sôlon: “porque com os ritos sagrados fez mais
econômicos os atenienses e mais moderados em suas lamentações”;
e a cidade como um todo fez “mais obediente ao justo e mais
disposta à concórdia” 19 .
No campo jurídico a legislação sobre o homicídio faz do
criminoso um inimigo social, e o assassínio “deixa de ser uma
questão privada” 20 , como havia sido até então. Na economia e na

16
Ibid., p. 45.
17
Ibid., p. 47.
18
F.M. Cornford, Principium sapientiae, p. 122.
19
Vidas paralelas, Sôlon XII.
20
J-P. Vernant, opus cit., p. 59.
152 Davi de Souza

política busca-se o ideal de moderação, sophrosyne, para se alcançar


um equilíbrio social, a eunomia. E acaba-se por condenar como
excesso, descomedimento, como hybris, do mesmo modo como se
condenava o furor do guerreiro na busca de uma glória puramente
particular: “a ostentação da riqueza, o luxo das vestimentas, a
suntuosidade dos funerais, as manifestações excessivas da dor em
caso de luto, um comportamento muito ostensivo das mulheres, ou o
comportamento demasiado seguro, demasiado audacioso da
juventude nobre” 21 .
É nesse contexto histórico do mundo helênico que a areté
aristocrática – do homem bem-nascido, nobre, guerreiro, que a
possui como qualidade natural e que a manifesta no combate e na
opulência de sua vida – será doravante condenada como desmedida,
como perniciosa; e uma nova imagem da areté nasce, e sob a
contribuição da religião. Pois de fato, no interior dos grupos
religiosos, “não somente a areté se despojou de seu aspecto
guerreiro tradicional, mas definiu-se por sua oposição a tudo que
representasse como comportamento e forma de sensibilidade, o ideal
de habrosyne: a virtude é o fruto de uma longa e penosa áskesis, de
uma disciplina dura e severa, a meleté; emprega uma epiméleia, um
controle vigilante sobre si, uma atenção sem descanso para escapar
às tentações do prazer, à hedoné, ao atrativo da moleza e da
sensualidade, a malachia e a tryphé, para preferir uma vida inteira
votada ao ponos, ao esforço penoso” 22 . Ou nos termos de Nietzsche:
moral de escravos contraposta à moral da aristocracia, moral de
senhores.
No entanto, afastando-se de Nietzsche e de sua
“tresvaloração dos valores”, importa aqui fazer notar que a areté não
se tornou domínio exclusivo dos sacerdotes. Não apenas migrou da
aristocracia para a religião, mas desceu da nobreza para se espalhar
também por entre os cidadãos da pólis. Uma resposta do fabulista
Esopo ao poeta elegíaco Quílon, mostra-nos numa bela metáfora tal
queda: Quílon perguntou certa vez a Esopo “o que Zeus estava

21
Ibid., p. 52.
22
Ibid., p. 62.
A excelência moral e as origens da ética grega 153

fazendo e recebeu a seguinte resposta: Está humilhando os altivos e


exaltando os humildes.” 23 .
O que está desaparecendo aí é o par de opostos que os
gregos denominavam Eris-Philia, o poder de conflito e o poder de
união, que assinalava “como que os dois pólos da vida social no
mundo aristocrático que sucede às antigas realezas” 24 . Na guerra, na
religião e no domínio “pré-jurídico” das relações entre famílias,
manifestava-se um espírito de combate, agón, de concorrência e
rivalidade: “um combate codificado e sujeito a regras, em que se
defrontam grupos, uma prova de força entre gene comparável à que
põe em combate os atletas no curso dos jogos. E a política toma por
sua vez forma de agón: uma disputa oratória, um combate de
argumentos cujo teatro é a ágora, praça pública, lugar de reunião
antes de ser um mercado” 25 .
Na ágora, símbolo e sentido da pólis, o privilégio é todo do
discurso, do lógos. A palavra toma a forma de um novo poder, poder
de persuasão, de peithós, e a própria noção de poder passa a ter um
novo conteúdo. Não são mais apenas riquezas e armas que compõem
o poder, o saber persuadir pela palavra será também um poder, um
novo tipo de poder. A arte política torna-se então essencialmente
exercício da linguagem. “E o lógos, na origem, toma consciência de
si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, através de sua função
política” 26 . Em pouco tempo, desta concepção do lógos, uma idéia
de igualdade parece irromper lentamente: breve surge a retórica e a
sofística, e, juntamente, a concepção de que qualquer um pode
domar a linguagem, possuir o poder de persuadir 27 .

23
D. Laêrtios, opus cit., I, 69. Interessante notar: algo semelhante encontra-se em
Lucas, c. 1, v. 52, da Bíblia cristã.
24
J-P. Vernant, opus cit., p. 38.
25
Ibid., p. 39.
26
Ibid., p. 42.
27
Tal concepção é ironizada, no século V, por Aristófanes em sua comédia As
Nuvens, onde o personagem Estrepsíades procura Sócrates para aprender a fazer o
argumento fraco vencer o argumento forte, crendo assim poder se livrar dos
credores.
154 Davi de Souza

E a escrita, enquanto cristalização de um lógos, de um


discurso, pôde contribuir para isso. Era também uma característica
da pólis a de atribuir alta publicidade às manifestações do espírito
humano. A escrita faz parte desta publicidade. Tanto o segredo
religioso do sacerdote, como a verdade do sábio que a ouvia dos
lábios da Musa, “é revelação do essencial, descoberta de uma
realidade superior que ultrapassa muito o comum dos homens, mas
entregue à escrita, ela é destacada do círculo fechado das seitas para
ser exposta em plena luz aos olhares da cidade inteira” 28 . O que
significa o reconhecimento de que pode ser acessível para todos, e
algo justo, como sugere Tales numa carta a Ferecides: “Tomei
conhecimento de tua pretensão de ser o primeiro iônio a expor a
teologia aos helenos. Talvez seja um critério justo pôr uma obra ao
alcance do público, em vez de confiá-la sem qualquer benefício a
uma pessoa isolada” 29 . Também o ato de Herácleitos, mais tarde, de
depositar sua obra no templo de Ártemis, tem ainda lá seu sentido de
publicidade.
Sobre este contexto cultural bastante caótico se sobressai a
fama de algumas personalidades que se denominou sophoi, sábios.
O seu número e identidade são bastante discutíveis; não obstante a
famosa lista dos sete sábios, que é, aliás, variável 30 . Fato importante
a se notar é que, apesar da diferença que podemos apontar entre eles
– um guru purificador como Epimenides, um astrônomo como
Tales, um advogado como Bias, etc. –, o papel político e social que
se lhes atribuiu, os aproximam bastante, tanto quanto as máximas
morais que lhes são atribuídas.

28
J-P. Vernant, opus cit., p. 44.
29
D. Laêrtios, opus cit., I, 43. Apolônio Díscolo em Sobre os pronomes (65,15) faz
referência a uma obra de Ferecides com o título Teologia; isto contribui, mesmo
que pouco, para a veracidade da carta de Tales: “Ferecides na Teologia e ainda
Demôcritos no Sobre a Astronomia e nas obras supérstites usam a forma contrata e
não contrata do genitivo do pronome pessoal da primeira pessoa do singular”. Fr.
13DK (Demôcritos), Os Pensadores, p.317.
30
Quatro nomes constam com mais freqüência: Tales, Bias. Pítacos e Sôlon. A
estes se acrescenta: Períandros, Cleôbulos e Quílon, formando, assim, sete.
A excelência moral e as origens da ética grega 155

Não haveria, por certo, exagero em se afirmar que o


pensamento moral já estava presente neles; bem antes de Sócrates,
portanto. Não apenas o dito oracular gnothi sautón, conhece-te a ti
mesmo, atribuído a Tales, e a sophrosyne, moderação, que
encontramos em Sôlon, perpassa as máximas dos velhos sábios 31 ,
como até mesmo aquilo que parece próprio dos sofistas, o senso de
momento oportuno, o kairós, já encontramos em Quílon, Pítacos e
Cleôbulos. São elementos que farão parte do pensamento ético
posterior, do século V a.C. ao século II d.C..
Esta condenação do excesso, da hybris, na filosofia moral
grega, é na verdade algo que já está no interior do próprio
pensamento helênico desde os sete sábios. Assim, o que constituía a
areté a partir de Tales e Sôlon, e o que a constitui nos dias de
Sócrates, não é muito diferente: um caráter moderado, justo e com
um senso do momento certo para se agir. A questão que parece ser
recente no período clássico é a de se decidir a origem da areté, se
esta é natural ou adquirida, bem como o que seja a areté. Mas o que
faz identificar um homem excelente ou não, é algo que parece não se
ter modificado muito.

2 O ente ou o eu?
Costuma-se afirmar que a filosofia, ou ao menos uma proto-
filosofia, surgiu com Tales de Míletos, e quase sempre se procura
reduzir isso numa única sentença: “tudo é água”. E a partir desta
sentença, que se interpreta comumente como de significado
ontológico, se traça uma história da filosofia “pré-socrática”, que na
maior parte dos historiadores da filosofia termina no atomismo de
Demôcritos de Abdera, contemporâneo de Platão. Ora, como esses
historiadores são nitidamente influenciados pelo modo em que
Platão e Aristóteles tomaram o pensamento desses “pré-socráticos”,
privilegiando aquilo que neles lhes interessa, a saber, tudo o que

31
“Estes sábios, reunindo-se, ofereceram conjuntamente a Apolo as premícias de
sua sabedoria e fizeram gravar no templo de Delfos essas máximas que estão em
todas as bocas: conhece-te a ti mesmo e nada em demasia”. (Platão, Protágoras,
343a-b) M. Spinelli, Filósofos pré-socráticos, p. 16.
156 Davi de Souza

haviam escrito sobre questões referentes ao ser e à physis 32 , também


esses historiadores privilegiam em suas histórias da filosofia “pré-
socrática” normalmente apenas o seu caráter ontológico, ou
“fisiológico” 33 . E raros são os que se explicam sobre aquilo que de
linguagem, política e moral, etc., deixaram de lado ao dar privilégio
apenas ao ontológico 34 . Ora, se para a metafísica esses primeiros
pensadores colocaram pressupostos aos quais se pode ainda hoje
recorrer, também a eles devemos “algumas das noções fundamentais
que vieram sedimentar o pensamento ético-político dos sofistas e de
Sócrates” 35 , como o diz N. F. Oliveira; e que hoje, entre os
historiadores da filosofia “pré-socrática”, me parece, não é muito
considerado 36 . Vale aqui ainda acrescentar uma percepção de J-P.
Vernant que contraria a visão da maior parte dos historiadores dos
‘pré-socráticos’: “é no plano político que a Razão, na Grécia,
primeiramente se exprimiu, constituiu-se e formou-se” 37 .
Se fôssemos escrever uma história da filosofia “pré-
socrática” procurando levar em conta não as questões ontológicas,

32
O termo ‘Physis’ é tomado aqui em seu sentido de “natureza das coisas”, ou
seja, ligada a princípio, essência, enfim, a questões ontológicas.
33
Nietzsche, por exemplo, é um dos poucos, talvez o primeiro, a interpretar a
sentença (fr. 1 DK) de Anaxímandros como de teor moral. Cf. Pré-socráticos, Os
Pensadores, (C – crítica moderna) p. 17.
34
Kirk, Raven e Schofield, constituem-se numa dessas raras exceções, cf. prefácio
à primeira edição de Os filósofos pré-socráticos: “limitamos a nossa esfera de
ação aos principais ‘físicos’ pré-socráticos e seus precursores, cuja preocupação
fundamental incidia sobre a natureza (physis) e a coerência das coisas como um
todo”.
35
N. F. Oliveira, Tractatus ethico-politicus, p. 19.
36
Cito como exemplo algumas obras publicadas no Brasil nos últimos anos que
privilegiam nos “pré-socráticos” questões ontológicas, e que excluem, por
exemplo, o nome de Sôlon de Atenas: Pré-socráticos, col. Os Pensadores; Os pré-
socráticos, Gérard Legrand; Os pré-socráticos, Jean Brun; Filósofos pré-
socráticos, Miguel Spinelli; Filósofos pré-socráticos, Jonathan Barnes. Este último
difere dos anteriores por ser mais amplo na seleção dos fragmentos, mas ainda
assim exclui Sôlon, apesar de incluir Alcmeão, e traz na introdução a visão comum
de que “a preocupação fundamental deles [dos ‘pré-socráticos’] era a física”, e
mais, “todos são igualmente dignos do título honorífico de physicos”, p. 15.
37
Opus cit., p. 103.
A excelência moral e as origens da ética grega 157

mas àquelas referentes ao homem em relação aos outros homens, a


convivência social, ao conhecimento de si, das relações
comportamentais, etc., acabaríamos por modificar bastante nossa
visão acerca desses primeiros pensadores. Mas é claro que aí tudo
depende do interesse do historiador; ou, como o formula D. Schüler:
“o que é mais importante, a descoberta do ser, escondido atrás do
ente, ou a descoberta do eu? A avaliação muda conforme as
preferências” 38 .
Visitando os pensadores a partir de Tales de Míletos,
procurarei aqui explicitar alguns elementos morais que lhes são
comuns; elementos estes que iremos encontrar no pensamento ético
do período clássico: em Sócrates mesmo. E que a partir daí,
tomando raízes mais profundas, irão se estabelecer naquelas
filosofias, que por vezes se denomina “filosofias de vida”, do
helenismo (séc. III a.C.) ao período greco-romano (séc. II d.C.).

3 O oráculo e o eu
Assim, se do ponto de vista ontológico toma-se Tales como o
primeiro filósofo, a partir da implicação da sentença “tudo é água”,
de uma perspectiva moral pode-se partir de outras sentenças. Como
por exemplo, do provérbio do oráculo de Delfos gnothi sautón,
“conhece-te a ti mesmo”, que segundo Diógenes Laêrtios era um
provérbio atribuído a Tales. Tal provérbio, provenha de onde provir,
é interessante por não se encontrar somente em Tales, mas em
outros sábios, e em Sócrates. Tal idéia de conhecer-se a si mesmo
carrega consigo dois pontos importantes no que tange a moralidade.
Primeiramente nos chama a atenção para certa individualidade, tal
conhecimento se dá em si mesmo e, em segundo lugar, está aí
considerada a possibilidade de se auto-conhecer, o que implica em
ascese, que será algo fundamental na ética do período clássico e
greco-romano.
A referência à idéia de individualidade em Tales, parece-me,
justifica-se por vários motivos: pela própria fórmula gnothi sautón,
onde já se evidencia um singular, o ‘ti mesmo’; pelo fato desta
38
D. Schüler, Heráclito e seu (dis)curso, p. 170.
158 Davi de Souza

máxima ser comum aos outros sábios da época, ter sido gravada no
oráculo de Delfos; por ser contemporânea da individualidade na
poesia, pois no mesmo século VI a individualidade já se expressava
nos poemas de Safo de Lesbos, assim como pouco antes em
Arquíloco (séc. VII).
No entanto, não se trata de individualidade no mesmo
sentido em que se usa esta palavra com referência à modernidade.
Pois “para os Gregos, como observa Jaeger, o eu está em íntima e
viva conexão com a totalidade do mundo circundante, com a
natureza e com a sociedade humana, nunca separado e solitário” 39 .
É em Arquíloco, “filho da mesma atitude espiritual que deu
nascimento à filosofia e a ciência” 40 , que se marca “na literatura
grega a primeira grande explosão da individualidade” 41 , na
expressão forte de Gilda Barros. Mas também Francisco Adrados é
da mesma opinião; em sua tradução para o espanhol dos fragmentos
de Arquíloco, diz que Arquíloco “é um exemplo do ardente e
exagerado individualismo da época” 42 . No entanto, o mais comum é
considerar Safo de Lesbos como a expressão mais completa deste
individualismo ‘primitivo’, se me é permitido assim se expressar.
Pois é Safo quem insere na poesia lírica seus próprios, e
personalíssimos, sentimentos com uma maior intensidade. Até então
a poesia era marcada pela presença dos deuses, dos guerreiros, dos
heróis e de todo um conjunto de referências exteriores ao poeta.
Diferentemente da poesia épica, a lírica “põe em primeiro plano o
‘agora’, o ‘aqui’, o ‘eu’’’ 43 , diz Francisco Adrados. A lírica de Safo
expõe seu íntimo, seus gostos, seu coração, enfim, seu eu. É com
ela, portanto, que o fenômeno da individualidade “é levado à
expressão mais alta” 44 , na afirmação de Gilda Barros.
Como de tantos outros, a poesia de Safo nos chegou em
fragmentos, mas ainda assim suficientes para perceber sua

39
Opus cit., p. 151.
40
G.N.M. Barros, Sôlon de Atenas, p. 32.
41
Ibid., p. 36.
42
Liricos griegos, p. 16.
43
Ibid., p. 15.
44
Opus cit., p. 36.
A excelência moral e as origens da ética grega 159

individualidade, e beleza. Para não ser extenso neste ponto, cito


apenas um exemplo de sua lírica, que deixa transparecer isso que
nela se aponta como sendo um traço marcante de individualidade.
Trata-se da ode à Anactória:

“Um esquadrão de cavaleiros, dizem alguns,


é a mais bela coisa sobre a terra negra;
São soldados, dirão outros, ou uma frota: para mim
é o que se ama.
Muito fácil torná-lo de todos entendido,
pois Helena, que aos imortais ultrapassava
em formosura, abandonou o mais nobre
dos maridos
e, num navio, para Tróia lá se foi...
Da filha, dos parentes tão queridos,
de tudo esqueceu; desviou-a para longe
num instante
O Amor. ... ...
cegamente
e, agora, faz-me lembrar de Anactória
que está ausente!
Quisera eu ver o encanto de seus passos,
a vívida expressão do seu semblante,
e não carros da Lídia, ou soldados combatentes
em suas armaduras!” 45

Aqui é Safo falando de Safo, de seus sentimentos; expondo,


de modo até mesmo revolucionário, a idéia de que o belo é o que se
ama, não aquilo que o coletivo (masculinizado) supunha, não
“carros da Lídia, ou soldados combatentes”. A lírica de Safo,
diferentemente da de Arquíloco, nas palavras de Jaeger, “chega
muito mais longe e converte-se em pura expressão do sentimento”,
“exprime a própria intimidade da vida individual” 46 .
Se a poesia lírica fez esta abertura para um individual até
então não existente na cultura grega, onde encontramos, além de

45
Fr. 16 L-P; trad. Gilda Maria Reale Starzynski; citado por Gilda Barros, opus
cit., p. 37/8.
46
Paidéia, (Livro primeiro: A autoformação do indivíduo na poesia jônico-eólica)
p. 167.
160 Davi de Souza

Arquíloco e Safo, Mimnermo e Alceu, por outro lado a


popularização das seitas e a crítica aos deuses homéricos trazem a
religião para um espaço mais “democrático”; e aqui me parece
importante enfatizar mais um fato a este respeito. É o fragmento 11
DK de Xenófanes de Colofon: “tudo aos deuses atribuíram Homero
e Hesíodo, /tudo quanto entre os homens merece repulsa e censura,
/roubo, adultério e fraude mútua”. Isto numa sociedade que “desde o
início” aprendeu “seguindo Homero...” (fr. 10 DK), me parece ser
algo bem importante de se notar. Pois atacar Homero e Hesíodo (no
século VI) não significa apenas desprezar dois poetas, mas também
dois educadores, e uma areté. Mas coisa compreensível, talvez,
partindo de alguém que foi expulso de sua cidade, e que parecia ter
gosto em criticar seus antecessores e contemporâneos 47 . Mas há
também Herácleitos. Este também criticou Homero dizendo que ele
“merecia ser expulso dos certames e açoitado” (fr. 42 DK).
Ora, negar a tipologia dos deuses, criticar os poetas que
representavam os valores aristocráticos, e voltar-se para a expressão
de sentimentos individuais, é parte da efervescência cultural do
século VI e está em acordo com o espírito dos “filósofos da natureza
pré-socráticos”.
E no meio disso encontramos então o princípio délfico:
“conhece-te a ti mesmo”. Foucault observa que este “não era um
princípio abstrato referido a vida, mas um conselho prático, uma
regra a ser observada para consultar o oráculo”; e nesse sentido,
segundo alguns comentadores significava: “não suponhas que és um
deus”; ou segundo outros: “estejas seguro do que realmente
perguntas quando vens consultar o oráculo” 48 .
No entanto, pelo fato de ser uma máxima constantemente
referida em toda a história antiga ao conhecimento de si, é de se dar
crédito que se refira, já no século VI a.C., a esse sentido. Primeiro
porque o tom em que Diógenes Laêrtios descreve a relação desse
princípio com a pessoa de Tales, não parece ser a de um simples
provérbio que se refira ao oráculo: “é dele [Tales] o provérbio

47
Cf. D. Laêrtios, opus cit., IX, 18.
48
M. Foucault, Tecnologias del yo, p. 50/1.
A excelência moral e as origens da ética grega 161

‘conhece-te a ti mesmo’, que Antístenes, em sua obra Sucessões dos


filósofos, atribui a Femonoe, embora admitindo que o mesmo fora
plagiado por Quílon” 49 . Segundo, se acaso se referisse apenas às
consultas do oráculo, Platão incorreria em erro ao dizer que os sete
sábios, “reunindo-se, ofereceram conjuntamente a Apolo as
premícias de sua sabedoria e fizeram gravar no templo de Delfos
essas máximas que estão em todas as bocas: conhece-te a ti mesmo e
nada em demasia” 50 ; pois aí se percebe que a máxima fazia parte da
sabedoria dos sábios. Terceiro, é atribuído a Herácleitos, que é do
final do século VI, a sentença: “a todos os homens é compartilhado
o conhecer-se a si mesmo (gignóskein heautous) e pensar
sensatamente” (fr. 116 DK); e ele próprio ‘procurou-se a si
mesmo’ 51 . E por último, esta máxima não teria se tornado popular se
já não houvesse um “espírito de época”, no qual uma idéia de
subjetividade ‘primitiva’ já se apresentava para absorvê-la. E há de
se lembrar ainda que Sôlon distinguiu entre kakós e agathós, os
cidadãos de Atenas, em função do valor moral (aretés) de cada um,
e não mais por sua condição social.
Mas enfim, o que se queria dizer com “conhece-te a ti
mesmo” no século VI a.C.? Com certeza não era o mesmo que com
isso se dizia no cristianismo ou na modernidade. Mas não vejo
motivos para não supor que já na época de Tales isso sugeria um
incipiente prestar atenção a si mesmo, ou mesmo “a requerer um
comportamento intelectual cognoscitivo”, como diz Miguel
Spinelli 52 . A maior parte das sentenças dos sophoi parece estar
aliada a isso. Todas chamam a atenção do indivíduo para consigo
mesmo, e não são sentenças para guerreiros ou sacerdotes, mas para

49
Opus cit., I, 40.
50
(Protágoras, 343a-b) Spinelli, Opus cit., p. 16.
51
“Heráclito prolonga o indagar dos líricos”; D. Schüler, opus cit., p. 172. Schüler
chama a atenção para a “troca de verbos”: do ‘conhece-te a ti mesmo’ oracular
para o “comecei a procurar-me a mim mesmo”, que é como traduz o fr. 101:
“‘conhece-te’, manda o oráculo; ‘comecei a procurar-me’, responde o pensador. O
que na voz oracular é conhecimento decai em busca no projeto de quem pensa”.
52
Spinelli, opus cit., p. 16.
162 Davi de Souza

todos os homens. “Guarda-te a ti mesmo” 53 , “aprende a ser um


senhor sábio em tua própria casa” 54 , “ama a prudência” 55 , aprende
“a suportar com dignidade as mudanças da sorte” 56 , “fica em teu
lugar” 57 , etc., são conselhos práticos para homens, para cada um que
vive na turbulência do século VI, onde os velhos valores
aristocráticos estão em ruínas, onde a pólis se concretiza em torno
da isonomia de seus cidadãos; conselhos para homens que já
vislumbram uma excelência moral centrada na mestria de si; enfim,
conselhos que fazem parte da sabedoria (sophia) que é a “provisão
para a viagem desde a juventude até a velhice” 58 , no dizer de Bias
de Priene (amigo de Tales e Sôlon, e elogiado por Herácleitos 59 ).

4 O saber dos sábios


Deste modo, talvez se pudesse vislumbrar em Tales, por entre a
névoa da distância fragmentária da história, a pura e simples
sabedoria de que somos, não somente indivíduos, mas indivíduos
que podem se auto-conhecer.
No entanto, a alguém que lhe perguntou qual era a coisa
mais difícil, Tales respondeu: “conhecer-se a si mesmo” 60 . Difícil,
mas não impossível. Para se viver a vida da “maneira melhor e mais
justa” é preciso abster-nos “de fazer o que censuramos nos
outros” 61 , e para tanto é preciso reconhecer em nós os atos que
censuramos nos outros, para que deixemos de praticá-los. Tarefa que
sem dúvida requer esforço; mas justamente “esforço” é que é
preciso para nos tornar “belos no caráter” 62 .

53
D. Laêrtios, Opus cit., I, 70; Quílon.
54
Ibid..
55
Ibid., I, 88; Bias.
56
Ibid., I, 93; Cleôbulos.
57
Ibid., I, 80; Pítacos.
58
Ibid., I, 88.
59
Fr. 39 DK.
60
Ibid., I, 36.
61
Ibid..
62
Ibid., I, 37.
A excelência moral e as origens da ética grega 163

Tal imagem moral de Tales talvez seja falsa; pois “as


palavras dos sábios são registradas de maneiras diferentes, e
atribuídas ora a um, ora a outro” 63 , mas isso não importa para o
propósito aqui estabelecido – que é o de mostrar a moralidade dos
“pré-socráticos” – desde que aceitemos que as máximas citadas
pertençam aos sophoi. E se aqui a imagem deste sábio parece um
tanto “socrática”, é que longe de serem tratados éticos, as máximas
eram preceitos a serem refletidos, e na medida do possível, postos
em prática. E Sócrates é a prática mais radicalizada desses preceitos
antigos.
Evidentemente se está aqui num terreno não escrito. O
pensamento moral não só de Tales e Sócrates, mas de tantos outros,
era vivido e ensinado oralmente, nunca argumentativamente posto
em seqüência linha sobre linha num livro como a Ética a
Nicômacos. Isso nos afasta bastante de uma pretensão de estabelecer
a moral de Tales ou de Sócrates, mas não nos impede de captar,
através das raras referências históricas que encontramos em uma
obra como a de Diógenes Laêrtios, por exemplo, elementos que
destacam certas concepções morais que se preservam nas máximas
citadas.
Ora, o que se apresenta nas máximas dos sábios são
preceitos morais simples, comportamentais talvez pudéssemos dizer.
Mas que requerem esforço, não resta dúvida. Ser excelente não era
algo natural para Tales como transparece nas palavras de Diógenes
Laêrtios: “Tales nos diz ... que não devemos orgulhar-nos de nossa
aparência, e sim esforçar-nos por ser belos no caráter” 64 – como já
foi citado. E noutro olhar sobre ele, lembramos o fragmento de um
dos poemas convivais ainda cantados no século III d.C., que
segundo Diógenes Laêrtios guardam os seguintes versos de Tales,
que nos lembram a serena filosofia de Epícuros, e talvez por isso
mesmo ainda cantados na época: “Procura uma única sabedoria,

63
Ibid., I, 41.
64
Ibid., I, 37.
164 Davi de Souza

escolhe um único bem, pois assim calarás as línguas inquietas dos


homens loquazes” 65 .
Se em Tales encontramos a idéia de esforço para ser
excelente – para ter areté –, aliada a um conhecer-se a si mesmo,
noutros sábios encontramos preceitos semelhantes, como o de
Quílon: “guarda-te a ti mesmo”. Mas o que aparentemente os une
em torno de uma certa ‘moralidade comum’, está expresso na
máxima “nada em excesso”, atribuída a Sôlon, Quílon, Pitágoras, e
com segurança encontrar-se-ia também em Tales e em outros; afinal
é uma máxima que estará em todo o pensamento moral grego,
mesmo no hedonista Arístipos 66 , que fora discípulo de Sócrates.
Não há, portanto, em termos morais, nestes sábios “pré-socráticos”
algo como uma divergência de pensamento semelhante a que
encontramos na questão do ser, entre os eleatas, Herácleitos e
Anaxagoras, por exemplo. O que encontramos entre eles, no que se
refere à moral, é muito mais bem partilhado do que contradito.
Se voltarmos ao nosso ponto de partida em Tales, veremos
que também Herácleitos se lhe aproxima bastante. O efésio que se
procurou a si mesmo (fr. 101 DK), concordava com a concepção de
que “a todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmo e
pensar sensatamente” (fr.116 DK). E “pensar sensatamente é virtude
máxima”, ou noutra tradução: “a temperança é a excelência
suprema”, ou “prudenciar é a maior virtude”, ou ainda, “a maior
areté é o autodomínio” (fr.112 DK) 67 , em grego:
swfronei'n ajreth; megivsth.
Esta diversidade na tradução de sophronein: ‘pensar
sensatamente’, ‘temperança’, ‘prudenciar’, ‘autodomínio’ é notável
na medida em que significa que vários termos fundamentais das
escolas do helenismo e greco-romanas podem ser atribuídos a um
pensador do século VI.

65
Ibid., I, 35.
66
Ibid., II, 75: “...abster-nos de prazeres não é o melhor, e sim dominá-los e não
sermos prejudicados por eles”.
67
Respectivamente, traduções encontradas em: Pré-socráticos, “Os pensadores”,
p. 90; J. Barnes, opus cit., p. 128; D. Schüler, opus cit., p. 176; e Guthrie, Os
sofistas, p. 236.
A excelência moral e as origens da ética grega 165

De todo modo, a noção de “nada em excesso”, portanto de


moderação, está aqui presente, bem como não apenas a possibilidade
de se auto-conhecer, mas também a de sermos responsabilizados por
nossos atos.
A lógica moral aí é simples: se podemos nos conhecer e
podemos ter autodomínio, que em Herácleitos constitui-se na areté,
logo, não podemos nos esquivar da responsabilidade de nossos atos.
Não está mais aqui o valor da areté homérica de ser dominado por
alguma paixão, ou deus, que exima o indivíduo da responsabilidade
por seus atos. “O caráter é para o homem um dáimon” (fr.119 DK),
diz Herácleitos. E dáimon “significa aqui simplesmente um destino
pessoal do homem; este é determinado pelo seu próprio caráter,
sobre o qual exerce um certo domínio, e não por poderes
externos” 68 . – Em Sôlon também se encontra idéia semelhante de
responsabilidade, só que pensada ao nível social (cf. frs. 3 e 8) 69 .
E não apenas Herácleitos – e Sócrates e Antifonte 70 , para
traçar uma relação com os posteriores – mas também o já referido
contemporâneo de Tales, Quílon, partilha a máxima “conhece-te a ti
mesmo” e “nada em excesso” 71 . E mais do que isso, em Quílon se
encontra uma concepção de prudência que não é em nada estranha
àquela que podemos encontrar no período clássico, e que
encontraremos também no helenismo. A excelência de um homem,
diz Quílon, “consiste em prever o futuro até onde este pode ser
discernido pela razão” 72 . É isso, aliás, que diferencia um homem
culto de um ignorante, pois este possui esperanças infundadas, mas

68
Kirk-Raven-Schofield, Os filósofos pré-socráticos, p. 220.
69
Jaeger observa que em ambos os fragmentos de Sólon “se trata da mesma idéia
fundamental da sua política [de Sólon], o problema da responsabilidade, em
linguagem moderna, e o da participação do homem no seu próprio destino,
segundo a visão grega”; Paidéia, p. 181.
70
Fr. 58 DK: “porém, ninguém distinguiria mais retamente a prudência de um
outro homem do que aquele que contem os prazeres momentâneos do coração ao
fazer-se senhor de si mesmo e que recebe o prazer de vencer a si mesmo”; em
Sócrates: cf. D. Laêrtios, opus cit., II, 32.
71
D. Laêrtios, opus cit., I, 41.
72
Ibid., I, 68.
166 Davi de Souza

o homem excelente, sabendo calcular e prever o futuro, possui


“esperanças fundadas” 73 . Também a noção de prudência transparece
entre alguns de seus preceitos, como naqueles que diz: “domina a
língua”, “não deixes a língua antecipar-se ao pensamento”, “guarda-
te a ti mesmo” 74 ; e, num tom que nos lembra ainda Demôcritos 75 e
os epicuristas, nos diz: “domina a ira”, “não desejes o impossível” e
“cultiva a tranqüilidade” 76 .
A máxima “a moderação é ótima” 77 é também atribuída a
Cleôbulos, que aconselhava “a não nos deixarmos dominar pelo
prazer” 78 ; palavras que nos lembram a austera moral de Pitágoras:
que além de condenar qualquer excesso, “seja ao comer, seja ao
beber”, diz que os prazeres sexuais “são prejudiciais em todas as
estações e não são bons para a saúde” 79 . A mesma idéia de
moderação encontra-se ainda, a crer, sempre, em Diógenes Laêrtios,
nas palavras inscritas na estátua de Anácarsis, o cita: “Refreia a
língua, o ventre e o sexo” 80 .
Mas entre os antigos e lendários sete sábios, talvez seja com
Sôlon de Atenas que o ideal da sophrosyne tenha alcançado suas
proporções mais amplas a partir de um raciocínio filosófico.

5 Sôlon de Atenas: a sophrosyne como ideal político


Poeta elegíaco e homem de estado, Sôlon de Atenas se destaca entre
os sete sábios da antiguidade por transparecer “um pensamento de
tipo racional e iônico” 81 essencialmente moral e político. Arconte
em Atenas em 594 a.C., Sôlon foi o autor da “Lei da Liberação”,

73
Ibid., I, 69. Um século depois Demôcritos dirá: “irracionais são as esperanças
dos tolos” (fr. 292 DK).
74
Ibid., I, 69/70.
75
Cf. fr. 191 DK (...Deves, portanto, voltar o pensamento ao que é possível e
satisfazer-te com o que está à mão...”); cf. também o fr. 236 DK).
76
D. Laêrtios, opus cit., I, 70.
77
Ibid., I, 93.
78
Ibid., I, 92.
79
Ibid., VIII, 9.
80
Ibid., I, 104.
81
F. R. Adrados, Líricos griegos, p.175. “...aqui [em Sôlon] se trasluce un
pensamiento de tipo racional y jónico”.
A excelência moral e as origens da ética grega 167

Seisakhtheia, que tinha por objetivo livrar as pessoas que, por


dívida, acabaram se tornando escravas. Porque naqueles dias “os
homens tomavam dinheiro emprestado mediante garantia de suas
próprias pessoas, e muitos foram forçados pela pobreza a tornar-se
servos” 82 , narra Diógenes Laêrtios.
Sôlon tomou às mãos uma Atenas dividida entre aristocratas
e novos ricos, que pavoneados exibiam sua riqueza, e uma multidão
de empobrecidos e endividados. A cidade encontrava-se em uma
crise não apenas política e econômica, mas também em crise de
valores morais. Aquela aristocracia que guardava e se orgulhava de
possuir as virtudes (areté) homéricas se via agora envolta por
turbulentas exigências sociais, provocadas em parte por uma nova
classe de ricos: artesãos e comerciantes que em condições de
adquirir sua armadura de hoplita, se igualavam em importância aos
cavaleiros da nobreza nos campos de batalha, e ao mesmo tempo
pela riqueza atingiam os privilégios políticos do aristocrata, sem
possuírem, no entanto, nobreza de sangue; de outra parte, pelas
exigências do povo, que explorado pelos ricos, vivia em extrema
miséria, e desejava a repartição das terras, concentradas nas mãos de
poucos.
Com tendência à democracia e inimigo declarado da tirania,
Sôlon, tomando a posição de mediador, “de pé, antepondo sólido
escudo entre uma e outra facção” (fr.5, v.5) 83 , procura estabelecer a
eunomia, a ordem social; não cedendo assim nem ao desejo
revolucionário do povo, nem as injustas ambições dos ricos.
Procurando remediar a situação do povo sem, no entanto, destruir
certos privilégios dos aristocratas, Sôlon, promulga leis de índoles
diversas. Desde a Lei da Liberação, que livra das dívidas todo o
povo – e como exemplo primeiro aplicou a lei a si mesmo –; até a lei
que impedia as mulheres de se exaltarem nos funerais, e a que
permitia reclamar-se uma injustiça cometida contra qualquer
cidadão.

82
D. Laêrtios, opus cit., I, 45.
83
Os fragmentos de Sôlon citados são traduções de Gilda Naécia M. de Barros,
opus. cit..
168 Davi de Souza

Com suas leis Sôlon buscou a ordem social, a eunomia,


porque “a disnomia, o desequilíbrio da ordem, diz ele, traz males
inúmeros à cidade, /mas a eunomia faz aparecer tudo em boa ordem
e bem ajustado” (fr. 3, v. 31-32). Quando reina a disnomia é porque
a adikia e a hybris (injustiça e ganância) estão presentes na
sociedade. A injustiça e a ganância para Sôlon, são conseqüências
do próprio comportamento dos homens 84 . Tanto do povo quanto dos
oligarcas. Pois aos primeiros diz: “vós mesmos aumentastes a força
destes homens [os chefes do povo], dando-lhes abrigo /e por isso
tivestes a infamante escravidão”(fr. 8, v.3-4); e aos oligarcas chefes
do povo que, cedendo à persuasão das riquezas, com injustiça
comandam, Sôlon lhes diz em tom de ameaça: “acalmai no peito
esse forte coração,/ vós que, de muitos bens, chegastes ao excesso,
/moderai a ambição” (fr. 4, v.5-6-7).
Aqui talvez se enxergasse o fraco diante do forte com o
escudo da “justiça”, a pedir moderação. No entanto, há de se pensar
que, uma vez estando em sociedade, faz-se necessário erguer-se tal
escudo, por simples questão de utilidade, o que parece ser a
concepção de Sôlon, no que se segue.
Sôlon, sendo consciente de que a ambição é insaciável no
homem, procura então um princípio de moderação e concórdia para
instaurar a eunomia. E recorre à dike e à sophrosyne para pôr a
cidade em ordem, e quando escolhido para arconte promulga então
suas leis para o kakós, o mau, e para o agathós, o bom. “Com Sôlon,
dike e sophrosyne, tendo descido do céu à terra, instalam-se na
ágora” 85 , observa Vernant.
Contra a hybris Sôlon opunha a máxima “nada em excesso”,
procurando um equilíbrio não apenas social, mas também moral,
uma vez que ambos caminham juntos. E como diz ainda Vernant,
“essa valorização do ponderado, do que é mediador, dá a areté grega
um aspecto mais ou menos ‘burguês’: é a classe média que poderá
desempenhar na cidade o papel moderador, estabelecendo um

84
Concepção também presente em Demôcritos, fr. B 175 DK, e como se sugeriu
poucas páginas atrás, em Heraclêitos a partir dos frs. 116 DK e 112 DK.
85
Opus cit., p. 68.
A excelência moral e as origens da ética grega 169

equilíbrio entre os extremos dos dois bordos: a minoria dos ricos


que querem tudo conservar, a multidão das pessoas pobres que
querem tudo obter” 86 .
Ou seja, Sôlon não se impôs; como diz Plutarco em suas
Vidas Paralelas, sendo mais do povo e da classe média, ele “não
abusou de seu poder, aspirando que tudo se fizesse com a vontade e
o consentimento dos cidadãos” 87 . Nesse sentido Sôlon compreende
que, para haver eunomia, é necessário consenso entre os cidadãos da
pólis.
O povo e seus chefes mergulhados na injustiça e na
desmedida destroem a cidade; o que significa que se destroem a si
mesmos 88 , “o mal público chega para cada um em sua casa /e já os
portões do pátio não podem detê-lo, /mas de um salto ultrapassa o
muro elevado e sempre encontra, /mesmo aquele que, fugindo,
estiver no recôndito do quarto.”(fr. 3,v.27 a 30). Está aí a concepção
da pólis como um todo, do qual todas as partes têm sua função e
responsabilidade, o que de certo modo tornar-se-á uma das
características da democracia grega. Xenofon, ao narrar um curto
diálogo entre Sócrates e Cármides, observa, ao final, que ao ser útil
ao estado, fazendo-lhe prosperar, “imenso serviço terás prestado não
somente aos cidadãos em geral como a teus amigos e a ti próprio” 89 .
Ou seja, cuidar da coisa pública é cuidar de si e dos amigos, tal
como cuidar de si e dos amigos é também cuidar da cidade. O que
fez Sócrates ironizar seus juízes dizendo que, por ter ensinado seus
concidadãos a cuidarem de si mesmos, merecia ser alimentado no
Pritaneu.
E para lembrar novamente um pensador do período clássico,
em concordância com Sôlon está Antifonte, o sofista, que diz em sua
obra Em torno do consenso: “sem consenso, nem a cidade se politiza

86
Ibid., p. 67.
87
Sôlon, XVI.
88
Demôcritos possui compreensão semelhante: “Porquanto uma cidade bem
conduzida é a melhor via para o êxito [de cada cidadão]: disso depende tudo, e se
isso é salvaguardado tudo é salvaguardado, ao passo que se isso é arruinado tudo é
arruinado”, fr. B 252 DK. Da trad. de J. Barnes, opus cit., p. 324.
89
Mem., III, VII, 9.
170 Davi de Souza

bem, nem a casa se dá belamente naquilo que é próprio da casa” 90 .


Concepção semelhante seria encontrada também em Protágoras,
segundo Gunthrie 91 .
Mas consenso não é algo de acesso fácil. Com a ascensão do
tirano Peisístratos ao poder, “incapaz de convencer o povo, Sôlon,
depôs as suas armas em frente ao quartel dos generais” 92 e retirou-se
de Atenas, convicto de que “em assuntos importantes é difícil
agradar a todos”(fr. 5, v. 11).

6 Kairós (conclusão)
Que a areté, como se viu até aqui, teve a moderação quase como sua
essência – tornou-se aos poucos algo “burguês” como afirma
Vernant –, não fora algo que ficou apenas entre o pensamento dos
“pré-socráticos”. Foi além; encontramos ênfase na moderação até
mesmo no hedonista Arístipos; e a sophrosyne está aliançada com a
tranqüilidade dos epicuristas, e exacerbada, a ponto de se tornar
privação, nos estóicos. E assim sendo, percebe-se como está
próxima a sabedoria moral dos “pré-socráticos”, com aquela do
período clássico, e dos posteriores (mesmo dos greco-romanos). Em
Sócrates, que teria se preocupado com a virtude em si, temos em
relevo o “por atos, não por palavras” 93 .
Esta idéia de “atos, não palavras”, que Sócrates parece ter
repetido bastante, nos leva a outro termo que faz parte da excelência
moral, o kairós, o momento oportuno, o tempo certo, o instante
exato. Se a sophrosyne, enquanto moderação, enquanto limite para o
impulso e para o excesso, nos passa a idéia de contenção, de refrear
os ímpetos, o kairós, por sua vez, nos traz uma idéia de movimento,
de ação, não simples ação, mas ação refletida, medida, é verdade,
mas que não pode ser perdida; é o ato oportuno, é o instante em que
se deve agir.

90
Fr. 44a (Xen., Mem., IV, 4, 16).
91
“Para Protágoras, então, autodomínio e senso de justiça são virtudes necessárias
à sociedade, que por sua vez é necessária para a sobrevivência humana”. Opus cit.,
p. 69.
92
D. Laêrtios, opus cit., I, 50.
93
Xenofon(te), Mem., IV, IV, 10; II, VI, 6; e Apologia, I, 3; II, 13.
A excelência moral e as origens da ética grega 171

Diógenes Laêrtios diz ser Protágoras “o primeiro ... a


enfatizar a importância de aproveitar o momento oportuno” 94 . Mas
ele mesmo fala que Pítacos aconselhava a perceber “a
oportunidade” 95 , e Cleôbulos, num fragmento de seus poemas,
também citado por Diógenes Laêrtios, diz que, na ignorância que
predomina entre os homens, “o senso da oportunidade te
preservará” 96 . E possuir o “senso da oportunidade” é próprio do
homem prudente, daquele que está atento na vida, daquele que sabe,
ainda segundo Pítacos, “prever as dificuldades para evitar que elas
se concretizem” 97 . E enfim, daquele que age no momento certo, na
hora exata em que se é necessário agir, porque, como dirá Quílon,
“no momento oportuno é belo” 98 . A palavra belo (kalós) aqui, não é
gratuita. – Lembrando que é creditada a Tales também a expressão
‘belos no caráter’ 99 .
O kairós também pode ser concebido como uma espécie de
medida, e pode até confundir-se com a sophrosyne. Se pensarmos,
por exemplo, naqueles fins do século VI a.C. – século de Tales,
Sôlon, Quílon, Pitágoras, etc. –, em que, como vimos, a moderação
elevou-se a ideal político, e se pensarmos também que o hábito de
beber vinho já estava bem enraizado no homem grego, este
fragmento de uma elegia de Xenófanes de Colofon parece pôr a
medida sobre a medida ao dizer que: “não é excesso beber quanto te
permita chegar à casa sem guia, se não fores muito idoso” 100 , ou
seja, é preciso ser moderado, mas cada qual deve saber a sua
medida, deve saber o momento de parar de beber, deve reconhecer
sua própria medida sabendo o seu próprio kairós.
Noutras situações, no entanto, a percepção do momento
oportuno é bem mais importante do que saber a hora de parar de
beber. Nas situações em que o seu ato ou o seu discurso está mais

94
Opus cit., IX, 52.
95
Ibid., I, 79; (Pítacos floresceu em 600 a. C.).
96
Ibid., I, 91.
97
Ibid., I, 78.
98
Ibid., I, 41.
99
Ibid., I, 37.
100
DK 21 (B 1, 17-18), trad. Os pensadores, p. 62.
172 Davi de Souza

diretamente relacionado com os outros; por vezes em questões que


envolvem vidas e mortes. Questões políticas. Em que momento deve
o diplomata propor um acordo, ou desfazê-lo, em função de uma
aliança, pró ou contra, com certo país envolvido numa guerra? Um
representante do povo em uma assembléia: em que momento dentro
de uma calorosa discussão ele deve propor seus argumentos, deve
lançar sua proposta, combater certo discurso predominante, ou
defender certo acusado? O kairós aí também se mescla à moderação.
Deve-se ter paciência para aguardar o momento oportuno.
Essa junção de kairós e sophrosyne talvez seja mais visível
na sofística, onde, como afirma Gutierrez, “se encontra uma clara
hipertrofia da virtude da prudência” 101 .
E esse talvez tenha sido o sentido do kairós que Protágoras
foi o “primeiro a enfatizar”, se o considerarmos como aquele que
ensinava a politiké areté. Pois no discurso, a percepção do momento
certo para afirmar, negar, fazer lembrar, desvirtuar, concluir,
recomeçar, etc., é importante para poder persuadir. E o ‘poder de
persuadir’ faz parte da sofística. A areté vai aí mesclar-se com o
discurso, e a persuasão, na medida em que, podendo ser ensinada, só
o pode através de um discurso, lógos – e do exemplo, como poder-
se-á notar em Protágoras e Sócrates.
Mas já é o tempo oportuno de aqui encerrar este discurso.
Visto ter atingido, ao menos em esboço, o objetivo de ter traçado as
origens da ética grega, sem ter ignorado os “fisiólogos” e sem ter
começado por Sócrates.

Referências
ADRADOS, F. R. Liricos griegos: elegiacos y yambógrafos
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Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão

Dennys Garcia Xavier *

Resumo: Neste artigo, submetendo a breve análise a digressão sobre a maiêutica


“socrática”, tentamos demonstrar em que medida a escolha dos personagens do
Teeteto de Platão determina a natureza do debate desenvolvido ali. Inspirados pelo
critério hermenêutico da escola de Tübingen-Milão, julgamos que a recomposição
dos perfis dramático-biográficos daqueles personagens, em plena harmonia com a
teoria do escrito-jogo de Platão apresentada na parte conclusiva do Fedro e
completada, em seu aspecto dramático-compositivo pelo livro III da República, seja
elemento central para um correto ajuste de perspectiva a partir da qual deve-se ler o
diálogo. Nesta sede, recorremos também a alguns passos do tratado matemático
exposto no VII livro da República de Platão, texto fundamental para a reconstrução
dramática dos personagens do Teeteto e, por via de consequência, para uma correta
justificação da leitura que propomos.
Palavras-chave: Imitação, Maiêutica, Narrativa, Personagens, Teeteto

Abstract: My aim in this article is, through a concise analysis of the “socratic”
midwifery digression, try to demonstrate the measure in which the Theaetetus
characters choice establish the nature of the debate developed in the dialoghe.
Emphasizing the Tübigen-Milan ermeneutical criterion, we also try to sketch a
biographical profile of those characters – in a complete harmony with Plato´s
written theory – to a correct adjustment of perspective on reading the dialoghe and
bring into focus some of the mathematical arguments extracted from the VII book
of the Republic, essencial to the Theaetetus philosophical drama.
Keywords: Characters, Imitation, Midwifery, Narrative,Theaetetus

1 Sobre a composição narrativa do


Teeteto à luz do livro III da República
Em República III (392d-398b), Platão estabelece três modos
diversos de composição narrativa: a “que usa o discurso indireto
para referir as palavras de um outro por meio de uma evidente

*
Doutorando em Storia della Filosofia pela Università degli Studi di Macerata,
Itália. Bolsista da CAPES. E-mail: dennysgx@gmail.com. Artigo recebido em
29.09.2007 e aprovado em 18.12.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 175-194.


176 Dennys Garcia Xavier

intervenção do autor; a imitativa, que usa o discurso direto, fazendo


falar o outro como se estivesse presente; e a mista, que alterna os
dois tipos de discursos” 1 . Não obstante tratar-se sempre de uma
“narração” (di»ghsij), no discurso de tipo direto – no qual fala-se
“sendo como um outro” (ìj tij ¥lloj ín) – o autor deve sempre
adaptar o seu modo de exprimir-se ao do imitado, escondendo
(¢pkrÚptw) a si mesmo e deixando falar, na medida das
possibilidades e de suas necessidades comunicativas, o personagem
do qual faz uso (393c). Ainda sobre o discurso por imitação (di¦
mim»sewj), eis o que diz nosso filósofo:

Sócrates: O homem que parece-me moderado (mštrioj ¢n»r), disse eu,


quando, na sua narrativa, chegar à ocasião de relatar um dito ou feito de
um homem bom (¢ndrÕj ¢gaqoà), quererá exprimir-se como se ele
fosse, e não se envergonhará de tal imitação, principalmente imitando
feitos de firmeza e bom senso do homem bom; deverá querê-lo menos e
em menor grau, quando essa pessoa se dobrar devido à doença ou à
paixão de amor, ou à embriaguez ou a qualquer outra desaventura do
gênero. Quando, entretanto, se tratar de algum personagem indigno dele
(˜autoà ¢n£xion), não quererá seriamente conformar-se a um indivíduo
inferior, a não ser brevemente, quando tiver feito algo justo; e mesmo
assim se envergonhará, a um só tempo pela inexperiência em imitar tais
coisas e por se aborrecer de se conformar e modelar sobre um tipo de
gente de qualidade inferior, que no coração não apreça, se não por
concessão ao jogo (Óti m¾ paidi©j c£rin). 2

Decomposto, o trecho supracitado deixa entrever que:


a) o homem moderado dispõe-se, de bom grado, a imitar em seu
relato ditos ou feitos de homens bons, sem envergonhar-se de
fazê-lo;
b) em seu relato, o homem moderado imita com menor favor ditos
ou feitos de homens bons quando sujeitos à doenças, paixão de
amor, embriaguez ou qualquer outra afecção semelhante a estas;

1
Migliori, M. La struttura polifonica del Fedro. I Quaderni Bombesi, Rivista
Semestrale di Filosofia e Scienze Umane della Scuola di Alta Formazione
Filosofica “B. Spaventa”, I, p. 15.
2
República, III, 396c-e. Nesta sede, é nossa a tradução das passagens em grego.
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 177

c) em seu relato, o homem moderado não se conformará seriamente


a personagens de natureza indigna, a não ser nos momentos em
que estejam praticando atos justos;
d) ainda que se proponha a imitar um homem que lhe é inferior, o
homem moderado se envergonhará ao fazê-lo, a não ser que o
faça tão-somente por concessão ao jogo de relatar.
Sabe-se que o Teeteto é o diálogo no qual a preferência pela
forma direta é inequivocamente declarada e justificada por um
Platão cansado do incômodo provocado pela recorrência das
intercalações exigidas pelo discurso indireto (143c). O Teeteto, por
isso mesmo, assinala um segundo momento de passagem referente à
natureza compositiva dos textos do filósofo, qual seja: a opção pela
forma direto-imitativa em detrimento do modelo narrativo-indireto –
característico dos diálogos do período intermediário – destinado, ao
que tudo indica, a não ser retomado até o fim de sua produção
literária e cujo tácito abandono inicialmente marca a composição do
Fedro e depois, de modo abrupto e definitivo, o início da segunda
parte do Parmênides, diálogo que imediatamente antecede o
Teeteto 3 .
Por certo não nos seria possível afirmar, a não ser baseados
numa interpretação de caráter meramente teorético, que a partir
daqueles diálogos Platão não precise mais se ocupar de personagens
que, não fosse pela exceção prevista pelo jogo dramatúrgico de
imitar, lhe causem algum tipo de embaraço. Tenderíamos a dizer,
todavia, que a arte compositivo-mimética de Platão, tal como
registrada daquele ponto de ruptura em diante, se enquadra com
justeza na definição aristotélica de formas “mais sérias” (t¦

3
Cf. Parmênides, a partir de 137c. Em geral, as mais criteriosas investigações
estilométricas colocam no início e no final do corpus de Platão os textos escritos
em forma direta, enquanto que no centro emergem aqueles em forma narrativa
(Protágoras, Eutidemo, Lísia, Cármides, Banquete, Fédon, República), ou seja,
textos que implicam na contínua presença de “disse”, “respondeu” etc. Sobre o
recurso estilométrico aplicado aos textos de Platão, cf. Lutoslawski, W. Origin
and grown of Plato´s Logic. London: Longman´s, 1905; Brandwood, L.
Stylometry and chronology. In: Kraut. R. The Cambridge Companion to Plato.
Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 90-120.
178 Dennys Garcia Xavier

spouda‹a) do imitar, cujo traço característico repousa na natureza


dos autores que “imitam as belas ações das mais belas personagens”
(t¦j kal¦j ™mimoànto pr£xeij kaˆ t¦j tîn toioÚtwn); um tipo
de imitação que parece encontrar um contraponto, por exemplo, no
Górgias, texto que – a pensar na composição fictícia de pelo menos
um dos seus interlocutores – ilustra de forma emblemática
exatamente a oposta definição aristotélica de “imitação de homens
inferiores” (m…mhsij faulotšrwn), marcada pelo aspecto comico-
grotesco característico da composição humorística 4 . Vale dizer,
entretanto, que no Teeteto assim como nos diálogos subsequentes, a
escolha pelo jogo dramático da narração direta parece obedecer
também a uma exigência didática de simplificação comunicativa que
se impõe a Platão de forma determinante. Com efeito, não é difícil
entender que os intrincados discursos dialéticos – presentes nos
diálogos tardios do filósofo – resultassem absolutamente
insuportáveis em forma não-imitativa, independentemente da
seriedade ou não seriedade da apropriação mimética dos
personagens 5 . Em linhas gerais, portanto, a teoria da composição de
discursos diretos delineada pelo nosso filósofo nos dá dele a imagem
de um autor de peças filosóficas de teatro, espetáculos
dramatúrgicos coerentes – ou, para dizer com Aristóteles,

4
Aristóteles, Poética, IV, 25-V, 30. Cf., por exemplo, a cortante ironia de Sócrates
para com Cálicles, personagem considerado ficcional pela maior parte dos
estudiosos (Górgias, 486d-488b).
5
Migliori, M. Op. Cit., p. 16. Para Chappell, por exemplo, a distância entre o que
Platão pensa e o que põe na boca de seus personagens pode ser uma questão de
“confiabilidade da testemunha”. Isto, a nosso ver, pode ser aceito apenas se temos
claro o uso estratégico-comunicativo desta confiabilidade (ou não confiabilidade)
do testemunho oferecido por um dado personagem do diálogo, e não apenas numa
suposta fidelidade histórico-doutrinaria do personagem evocado ali. Chappell,
Timothy. Reading Plato’s Theaetetus. Indianapolis/Cambridge: Hackett
Publishing Company, 2004, p. 13. Aliás, “que os personagens sejam significativos
no desenvolvimento do diálogo é afirmação óbvia; que eles sirvam para Platão
operar algum jogo é bastante menos óbvio”. Migliori, M. Tra polifonia e puzzle:
Esempi di rilettura del “gioco” filosofico di Platone. La struttura del dialogo
platonico. A cura di G. Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2000, p. 193.
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 179

“coerentemente incoerentes” (Ðmalîj ¢nèmalon) 6 – com as


virtudes e limitações ínsitas aos personagens que põe em cena e que
não podem não ser absoluta e inarredavelmente determinadas por
eles (que são, por sua vez, fruto de uma escolha livre e consciente do
seu autor-dramaturgo). Diga-se a este propósito, aliás, que essa
convicção se fortalece também nas informações extraídas do passo
277b–278b do Fedro, no qual Platão estabelece uma espécie de
código geral formado por claras regras de composição dos discursos
escritos a fim de que se possa neles reconhecer os concebidos a
norma d’arte – ou, mais precisamente, aqueles concebidos de
acordo com a adequada técnica de composição de discursos – e, ao
contrário, os discursos escritos sem arte, o que equivale a dizer, em
desacordo com aquela técnica (o† tšcnÊ kaˆ ¥neu tšcnhj
gr£fointo) (277b). Para que um discurso seja construído a norma
d’arte, diz Platão, é preciso que o seu autor:
a) “conheça a verdade sobre cada uma das coisas sobre as
quais fala ou escreve” (¢lhqj ˜k£stwn e„dÍ pšri ïn lšgei ½
gr£fei);
b) que “seja capaz de definir cada coisa em si mesma” (aÙtÒ
te p©n Ðr…zesqai dunatÕj gšnhtai);
c) que “saiba dividí-la em suas espécies até chegar ao que
não é ulteriormente divisível” (Ðris£menÒj te p£lin e‡dh mšcri
toà ¢tm»tou tšmnein ™pisthqÍ) 7 .
Por fim, depois de ter “penetrado na natureza da alma”
(yucÁj fÚsewj diinën) e “discernindo as espécies adequadas a
cada natureza” ((˜k£stÇ fÚsei edoj ¢neur…skwn), o autor do
discurso deve:
d) construir e ordenar o seu discurso em modo
correspondente ao das espécies divididas em relação à natureza da
alma, isto è, “oferecendo a uma alma complexa discursos complexos
e plenos de harmonia” e, oferecendo “a uma alma simples discursos

6
Aristóteles, Poética, XV, 25.
7
Fedro, 277b-c.
180 Dennys Garcia Xavier

simples” (poik…lÇ mn poik…louj yucÍ kaˆ panarmon…ouj


didoÝj lÒgouj ¡ploàj d ¡plÍ) 8 .
Eis que então se nos apresenta uma cornice que joga forte
luz sobre a natureza compositiva do Teeteto e que reforça, somada
ao passo do livro III da República já citado, a tese da composição
teatral do nosso diálogo e da limitação qualitativa do discurso em
função da presença dos personagens postos em cena na discussão
desenvolvida ali.
Um procedimento de comunicação filosófica que nada tem a
ver, vale destacar, com o que David Sedley denomina “estratégia
minimalista” que “insiste” na tese geral de que os diálogos são
dramas, amparada, segundo ele, no mero propósito de estabelecer
uma “distância radical” entre Platão e o que está sendo dito no texto,
isto é, um recurso estilístico ad hoc que de qualquer maneira blinda
o autor, protegendo-o de argumentos indignos dele. Contra tal
recurso, fruto de uma sua convicção pessoal, Sedley chega mesmo a
defender uma visão “mais conservadora” da relação
autor/personagens, definida pela idéia geral de que o interlocutor
principal do diálogo no mais das vezes vocaliza os argumentos e
crenças que são próprias do Platão-autor, ou seja, que faz dos
protagonistas dos diálogos verdadeiros porta-vozes da filosofia
platônica na trama geral da discussão dialética 9 . Tese que para ele
não implica, entretanto, na absoluta ausência de uma ocasional
separação entre autor e personagem, “nos casos em que a separação
possa realmente servir a um propósito” 10 .
Permitam-nos tentar esclarecer o nosso modesto – e em tudo
experimental – ponto-de-vista a propósito dessa questão; ponto-de-
vista diverso, vale dizer, do defendido pelos que “desde a
antiguidade” refletiram esta “prática hermenêutica” 11 .

8
Fedro, 277c.
9
Sedley, David. The Midwife of Platonism. Text and Subtext in Plato’s Theaetetus.
Oxford: Oxford University Pres, 2004, p. 6.
10
Id. p. 7.
11
Id. p. 6.
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 181

É razoável que boa parte dos especialistas defenda a tese da


“quase-plena-identificação” entre Platão e seus protagonistas. O
muitissimo difundido pressuposto do qual partem, projeta sobre o
texto do filósofo uma expectativa de acordo com a qual é preciso
encontrar nas falas dos personagens centrais dos diálogos o que ali
deve ou não haver de platônico e, por via de consequência, o que de
não platônico deve ser atribuído ou a uma autônoma personalidade
do interlocutor ou, ao contrário, à caprichosa mente do autor do
texto que eventualmente se presta a colocar na boca de seus
personagens falas que não se identificam nem com eles próprios,
nem com o que de sério pensa o seu autor. Tal como levada adiante,
todavia, essa proposta interpretativa depende, invariavelmente, de
um exercício hermenêutico muito complexo – porque impregnado
na teia de uma certa arbitrariedade – de análises apofântico-
comparativas relativas a cada sentença anunciada por um dado
personagem em relação a um arcabouço de filosofia provavelmente
platônica, cujo frágil alicerçe se revela muitas vezes no terreno
movediço da maior ou menor recorrência estatística de certas
construções temáticas ou ainda em passagens textuais
qualitativamente iluminadoras e mais ou menos reputáveis ao
filosósofo. Eis então o porquê de não ser diferente a postura pouco
amistosa daqueles estudiosos quando confrontados com tese
segundo a qual os diálogos de Platão são dramas filosóficos:
qualquer sopro mais contundente de autonomia dramática derivada
da relação autor/personagens – em especial dos protagonistas – leva
para longe qualquer possibilidade de reconstrução doutrinária da
filosofia de Platão exatamente porque, tal como concebido por eles,
o drama platônico, em larga medida, abre mão de seu autor. Não por
outro motivo, diz Sedley a esse propósito, “se o autor e o
interlocutor são sempre considerados como independentes um do
outro, nenhuma interpretação [como a que propõe] jamais poderia
sair do chão” 12 .

12
Sedley, D. Op. Cit. p. 7 (grifo do autor).
182 Dennys Garcia Xavier

A bem da verdade, não negamos a pertinência e utilidade de


uma tal estratégia interpretativa. Um ótimo lugar para se começar a
procurar o conteúdo eminentemente platônico dos diálogos é, sem
dúvida, na fala dos seus personagens centrais, analisadas, num
primeiro momento, individualmente e, a posteriori, num confronto
crítico entre elas. Discordamos entretanto da aplicação deste tipo de
análise sem o ajuste de perspectiva oferecido pelo aspecto
dramático-ficcional do texto; aspecto que, tal como delineado pelo
próprio Platão – e não por livre apropriação de caráter teorético –,
em nada implica numa “distância radical” entre o imitado e o
imitador, mas que, ao contrário, comporta sempre a tácita presença
de um autor que, a um só tempo, imita por concessão ao jogo da
escrita e põe em cena personagens que determinam decisivamente o
fluxo da argumentação dialógica. No exercício mimético de sua
criação literária, a nosso ver, Platão está sempre presente, tanto na
fala de personagens centrais quanto na fala de personagens
secundários – sejam eles históricos ou não. Cabe a ele, na condição
de imitador, dar vida a cada uma das presenças que escolhe,
sublinhar este ou aquele aspecto de personalidade que julga mais
importante em função do que pretende dar a conhecer e estabelecer,
em suma, os rumos que a investigação proposta deve seguir para
atingir os propósitos originalmente concebidos para um determinado
texto. Sedley, por exemplo, caminhando na contramão do que
propomos, chega mesmo a sugerir que, se sua interpretação do
Teeteto estiver correta, frases como “Platão diz que...” deixam de ser
justificáveis, exatamente porque ali estariamos diante de um dos
casos nos quais “boas razões emergem” para separar Platão do
Sócrates que faz atuar 13 . Pensamos, ao invés disso, que é sempre
Platão a falar em última instância, seja para demonstrar o que julga
ser a via justa a ser tomada, seja para, diversamente disso, indicar o
caminho a ser evitado. Assim, se nossa interpretação estiver correta,
qualquer estudo sobre o Teeteto de Platão deverá usar sempre a
fórmula “Platão diz que...”, exatamente porque a presença de um

13
Id. p. 7.
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 183

“outro” é sempre regulada pela ótica dele, autor, e em função do que


pretende comunicar, mesmo quando “sendo como um outro” (éj tij
¨lloj ín) 14 .
Platão, portanto, não precisa ser salvo de argumentos
indignos dele. Sua teoria do escrito o protege já deste tipo de perigo,
dado que prevê em seu arcabouço inclusive a exceção que regula o
uso de personagens e discursos assim considerados “inferiores”.
Mais útil do que salvá-lo de perigos inexistentes talvez seja
exatamente compreender os motivos que o levaram a fazer uso de
tais e quais argumentos na boca deste ou daquele personagem,
buscando sempre a mensagem de fundo que pretende transmitir,
revelada tão-somente no recíproco confronto das diversas
intervenções que compõem o diálogo. Interpretado a partir das
ferramentas que aqui propomos – todas extraídas dos próprios textos
do filófoso e, até que se prove o contrário, aplicáveis a eles – há
pouco sentido em se tentar estabelecer para o Teeteto um critério
histórico-objetivo a partir do qual possamos divisar, por exemplo,
uma distância entre Platão e o Sócrates do diálogo que de algum
modo seja capaz de justificar o final aporético do diálogo ou o fato
de o Sócrates ali presente parecer quase que totalmente inocente a
propósito da metafísica platônica (fato esse, diga-se de passagem,
que parece dever-se mais a uma escolha comunicativa de Platão do
que a um distanciamento cronológico entre autor e personagem
principal ou, o que é pior, a uma manifestação de crise de uma
doutrina metafísica amplamente formulada nos diálogos do período
intermediário). Como escritor de dramas, Platão não se compromete
com o fornecimento de dados históricos precisos: este é um
problema nosso, dos historiadores da filosofia, que, em geral,
imprimimos sobre a sua obra escrita uma perspetiva exegética tanto
estranha à sua composição quanto, por via de consequência, incapaz
de solucionar-lhe os problemas.
Tendo presente isso, mais do que se justifica a nossa escolha
pelo Teeteto. Trata-se de um texto único, um hapax legomenon no

14
República, 393c.
184 Dennys Garcia Xavier

qual as várias faces do filósofo parecem se entrecruzar, confundindo


o estudioso habituado a rotular o que lê. Se nossa proposta estiver
correta, o Teeteto deve ser interpretado como uma exceção que
confirma a regra geral da doutrina comunicativa do seu autor, isto é,
como um texto que não se deixa moldar por abordagens discursivo-
analíticas e cuja razão de ser se esconde por detrás do modo
“coerentemente incoerente” pelo qual Platão parece ter preferido
escrever filosofia e o qual bem fundamentou exatamente em parte de
seu legado como escritor.

2 Sobre a “maiêutica platônica” e a


composição ficcional dos personagens do Teeteto
Um dos passos do Teeteto nos quais o jogo de composição
dramática vêm à tona de modo mais significativo é o da digressão
sobre a arte maiêutica atribuida a Sócrates, consignado em 148e-
151d; passo que parece ter sua origem num problema psicológico do
personagem que dá nome ao diálogo: ele está “grávido”, sente as
contrações, diz Platão; e Sócrates é o homem certo no momento
justo para resolver o problema.
A digressão sobre a maiêutica é, muito justamente,
protagonista de um vivo debate sobre a sua paternidade. Pergunta-
se, por exemplo, se é realmente uma técnica socrática ou uma
invenção platônica, insólito resultado de alguma escolha proposital
de seu autor. De fato, no Teeteto, Platão faz Sócrates afirmar coisas
estranhas a propósito do tema, um texto tardio do filósofo que, entre
outras coisas:
a) diz que Sócrates mantém escondida a arte maiêutica;
b) diz que Teeteto (rapaz bem informado, filho de Atenas e
discípulo de Teodoro, amigo de Sócrates) nunca ouviu falar que
Sócrates praticasse a mesma arte da mãe;
c) mostra um Sócrates que pede a Teeteto para não dizer “por aí”
que pratica aquela arte 15 .

15
Teeteto, 149a-b.
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 185

Platão, em suma, parece dizer que ninguém, a não ser ele


próprio, sabia da arte “secreta” de Sócrates. A nosso ver, uma
confirmação de que se trata de uma releitura do método socrático e
do modo pelo qual faz filosofia, em função do que o autor da obra
pretende comunicar. A favor de tal interpretação depõe o fato de que
Platão é o único autor – entre os que transmitem testemunhos sobre
Sócrates – que faz alusão à maiêutica socrática (e, sublinhe-se, o faz
apenas no Teeteto).
É interessante notar, além disso, que a inteira digressão
sobre a maiêutica não apenas se abre fazendo referência àqueles que
não compreendem as habilidades de Sócrates, mas também se fecha
de modo semelhante, numa espécie de defesa aprioristica que deve
justificar a “torção dramática” feita ali:

Sócrates: ... afinal, maravilhoso rapaz, muitos de fato chegaram a tal


hostilidade para comigo a ponto até mesmo de me morder, se extirpo
deles alguma coisa de pouco valor; e não creêm que eu o faça pelo
interesse deles ... (151b-d).

Platão constrói um modelo de apresentação da maiêutica,


por meio de uma analogia com a arte da parteira. Uma analogia que
parece forçada em pelo menos dois pontos essenciais:
1. a necessária esterilidade da parteira. De fato, diz ele, a
parteira pode operar apenas quando não se encontra mais em idade
fértil. A esterilidade neste caso, então, não deve ser considerada em
termos absolutos: quem ajuda a partejar deve, por sua vez, ter
enfrentado já a experiência do parto. O caráter humano é
sobremaneira frágil para que se aprenda uma arte da qual não se teve
uma experiência direta;
2. Platão diz que a arte da parteira se estende também à
combinação dos matrimônios, com o propósito de gerar filhos
melhores. Esta habilidade, diz ele, deixa a parteira particularmente
orgulhosa, ainda que com o risco de ser acusada de “alcoviteira” (¹
promnhstik») (150a). Mas nosso filósofo estranhamente “corrige”
este ponto, precisando que este é um trabalho feito pelas verdadeiras
parteiras, porque sabe que esta não é, em geral, uma característica
186 Dennys Garcia Xavier

própria das parteiras. A impropriedade da comparação é sublinhada


pela resposta de Teeteto que, perplexo com tudo aquilo que acaba de
escutar, diz nunca ter ouvido falar nada a propósito (149d-e).
Ao que parece, os pontos nos quais a analogia não se
sustenta são essenciais para dar de Sócrates um retrato extremo: de
fato, Platão deve dizer que a parteira é esteril porque Sócrates deve,
no contexto ficcional do diálogo, ser – ou pelo menos parecer ser –
estéril. Por outro lado, ele deve também “redimir” Sócrates porque
sua presença, diferentemente daquela da parteira (que não é
estritamente necessária para o parto), é verdadeiramente
fundamental. A digressão sobre a arte maiêutica se revela, deste
modo, uma curiosa mistura de humildade socrática e de inegável
atribuição de méritos e capacidades ao próprio Sócrates. De fato,
Sócrates repetidas vezes afirma que não é sábio, que não gera
sabedoria, que não sabe nada e que jamais fez descobertas sábias,
filhas de sua alma (150d). Por outro lado, o fato de reconhecer tudo
isso não o impede de atribuir-se, junto ao deus, o mérito de
favorecer partos de pensamentos explêndidos, o que termina por
caracterizar este duplo jogo da maiêutica no diálogo. O passo 151d
da digressão, em suma, indica que Sócrates não é sábio “acerca de
qualquer coisa” ou, por assim dizer, “sábio a propósito de tudo”.
Mas deixa claro, certamente, que não é ignorante a propósito de
tudo, como o demonstra o conhecimento da arte maiêutica e dos
princípios que a regulam.
Sócrates explica ter feito toda a digressão sobre a arte
maiêutica porque Teeteto lhe parece pronto para dar à luz a novos
conhecimentos (tal como demonstra o problema com os números
irracionais) (147e-148b). Neste contexto, a nosso ver, Teeteto está
pronto para começar, guiado por Sócrates, as suas primeiras lições
de dialética.
Mas quem é o personagem Teeteto que dá nome ao diálogo?
O matemático famoso, já adulto, teórico de alguns dos mais belos
sólidos regulares dos quais o filósofo fala no Timeu (55a-c)?
Dificilmente, dada a inequívoca e continuamente destacada
juventude do personagem que se propõe a ser examinado por
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 187

Sócrates, uma juventude comprovada por pelo menos quatro


elementos extraídos do diálogo:
a) os termos meir£kion (“jovem”) (142 c, 143 e, 146 b, 168 e) e
pa‹j (“rapaz” ou “filho”) (145 d, 151 d, 151 e, 156 a, 162 d)
com os quais é continuamente qualificado;
b) a irrefreável curiosidade de Sócrates por um notável ateniense
que jamais tinha encontrado, justificável apenas pela pouca idade
do rapaz (144c-e);
c) a natureza da admiração de Teodoro pelo seu discípulo,
decorrente, segundo ele próprio, não da sua beleza ou de uma
eventual paixão – natural numa relação entre o velho mestre e o
jovem aluno –, mas tão-somente da admirável natureza
(qaumastîj eâ pefukÒta)  do  moço (144a). Justificativa que
soaria risível, fosse Teeteto um homem adulto;
d) o talento precoce de Teeteto que leva Teodoro a registrar seu
espanto diante de um indivíduo que “com tão poucos anos já
tenha feito o que fez” (144b) 16 .
Teeteto aprende com notável facilidade (eÙmaqÁ) é
“benévolo” (pr´on) e possui “coragem superior à de qualquer um”
(™pˆ toÚtoij ¢ndre‹on), qualidades “dificilmente encontradas em
um outro” (æj ¨llù calepÕn) (144 a). É atlético, “penetrante”
(ÑxÚj), não apegado a coisas materiais, tem boa memória e enfrenta
os estudos com “calma” (le…wj), “segurança” (¢pta…stwj) e
“eficácia” (¢nus…mwj), o que lhe garante resultados
surpreendentemente incompatíveis com a sua pouca idade (144 b-d).
Do mestre Teodoro, diz aprender noções de “geometria”
(gewmetr…a), “astronomia” (¢stronom…a), “harmonia” (¡rmon…a) e
“cálculo” (logismÒj) (145 c–d). Um jovem, em suma, que, não por
coincidência, se nos apresenta como o protótipo, delineado na

16
Cf., a propósito da caracterização dramática de Teeteto, MELE, Alfonso. Il
Teeteto platonico tra storia e finzione letteraria, in Il Teeteto di Platone: strutture
e problematiche. A cura di G. Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2002, p. 246-
255 e NAILS, Debra. The people of Plato: A Prosopography of Plato and Other
Socratics. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2002, p.
274-278.
188 Dennys Garcia Xavier

República (VI-VII), do indivíduo apto a receber o enorme volume


de estudos e treinamentos próprios da formação do dialético; assim
mesmo, um matemático ainda incapaz de compreender, em ato,
todas as implicações e conseqüências que podem advir das
disciplinas às quais se dedica, ao menos aquelas de caráter
eminentemente dialético-filosófico 17 . Vejamos este ponto mais de
perto.
Após estabelecer, com a anuência de Teeteto, que ciência
(™pist»mh) e sabedoria (sof…a) são, no contexto do diálogo, uma só
e mesma coisa (145e-146a), eis o que dizem Sócrates e Teodoro 18 :

Sócrates: É exatamente isso o que me suscita dúvidas, e que não consigo


nunca compreender de modo satisfatório: o que seja ciência. Estaríamos
em condições de definí-la? Quem de nós falará primeiro? ... Talvez,
Teodoro, pelo meu amor às discussões, eu esteja sendo inoportuno, pelo

17
Vale a pena confrontar as passagens de Teeteto, 144a-d com República, VII,
535a-536b.
18
O Teeteto faz parte de um bloco de diálogos tardios cuja ordem deve ser:
Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Filósofo (não escrito), seguidos de Filebo,
Timeu, Crizia e Leis. Fica claro, pelo contexto dos diálogos que imediatamente o
seguem, que, a partir do Teeteto, ciência, sabedoria e filosofia devem ser
entendidas como intercambiáveis. Eis o que diz Migliori a propósito da relação
entre aqueles diálogos: “De fato, no Teeteto o Parmênides é citado
explicitamente, na medida em que se fala do encontro entre um Sócrates muito
jovem e um Parmênides bastante velho. Ademais, no final do diálogo marca-se
um encontro para o dia seguinte, para continuar a discussão. O Sofista inicia
exatamente com Teodoro e Teeteto que vão ao encontro acompanhados de um
Estrangeiro eleata; no curso da discussão, encontramos uma segunda referência ao
diálogo entre Sócrates e Parmênides (217c). Depois, no Sofista, os presentes
decidem por definir o sofista, o político e o filósofo. O primeiro tema é tratado
imediatamente no mesmo diálogo, o segundo encontra lugar no Político, obra na
qual temos uma explícita referência ao Sofista (284b), enquanto o terceiro resulta
não desenvolvido. Este sistema de referências entre diálogos é um fato único na
produção platônica e não pode ser considerado casual: a conexão e a sucessão
lógica Parmênides, Teeteto, Sofista, Político parecem certas; ademais, o modo
como Platão assinala tal conexão nos deve fazer pensar que esta sucessão de
diálogos tenha uma sua relevância para os fins da compreensão dos próprios
textos”. Migliori, M. Dialettica e Verità. Commentario filosofico al “Parmenide”
di Platone. Milano: Vita e Pensiero, 2000, p. 54.
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 189

desejo que tenho de empenhar-nos num diálogo capaz de fazer-nos


amigos e íntimos uns dos outros?
Teodoro: Tu não podes ser inoportuno, Sócrates. Porém, pede a esses
jovens que te respondam alguma coisa porque não estou acostumado a
este tipo de conversação e, além disso, não tenho nem mesmo idade para
aprender. A eles, no entanto, tudo isso convém, dado que podem fazer
progressos muito maiores. Por isso, prosegue como começaste, não largue
Teeteto, interroga-o. 19

Certo que Teodoro não pode senão declinar o convite de


Sócrates, deixando para Teeteto a tarefa de sustentar uma
conversação de caráter teorético, cujo tema era central para Platão.
Teodoro de Cirene é descrito no próprio diálogo como um discípulo
de Protágoras que abandonou cedo o terreno dos “argumentos puros
e sem provas” da filosofia para dedicar-se exclusivamente às
matemáticas, um expert em geometria cujo conhecimento filosófico
– se existente – é, no curso de todo o diálogo, solenemente ignorado
por Platão 20 .
A figura de Teodoro exerce um perfeito contraponto
dramatúrgico na comparação com o Teeteto do diálogo. Ambos, tal
como postos em cena por Platão, se dedicam ao quadrivium das
matemáticas composto por geometria, astronomia, harmonia,
cálculo. Teeteto, no entanto, dispõe de todas as condições para
tornar-se ciente das potencialidades filosóficas de tais
conhecimentos; o que não se pode dizer de Teodoro, cuja
pouquíssima disposição em tomar parte ativa no diálogo, reflete suas
graves limitações no terreno da dialética.
Mas reforça o aspecto não simplesmente conjectural de
nossa interpretação a summa matemática do livro VII da
República 21 . Nela, Platão fornece informações fundamentais acerca

19
Teeteto, 146a-b.
20
Teeteto, 165a. Essa constatação torna ainda mais peculiar a insistência do
personagem Sócrates em examinar Teodoro, que, a um certo ponto, vê-se
brevemente obrigado a ceder aos apelos do amigo (Teeteto, 169a). Ver também
Teeteto, 143d-e; 145a-b; 162a-c.
21
República, VII, 522c-535a. Sobre a leitura cruzada dos diálogos de Platão, cf.
Migliori, M. Tra polifonia e puzzle: Esempi di rilettura del “gioco” filosofico di
190 Dennys Garcia Xavier

não apenas dos diversos usos aos quais a matemática se presta, mas
também, em certa medida, do perfil dos homens que a cultivam, das
suas naturezas e modos de proceder: referências textuais explícitas
que jogam luz preciosa sobre os matemáticos do Teeteto.
Ao analisar o papel da matemática no interior do curriculum
formativo do filósofo, Platão sublinha que o seu conhecimento e sua
prática ocorrem em níveis diversos, poucos, no entanto,
verdadeiramente úteis à filosofia ou adequados à dialética, ciência a
qual antecede 22 . Tomada em si mesma, a matemática não chega a ter
caráter filosófico. A porosidade da fronteira que estabelece os
limites entre ela e a filosofia depende de uma sua inflexão
fortemente determinada pelo vértice do percurso que leva ao
conhecimento do Bem 23 . Apenas um certo uso pode fazer dela
conhecimento efetivamente protréptico ao exercício dialético, um
uso que lhe confere um extraordinário grau de intencionalidade
filosófica, inexistente se apreciada na condição de ciência autônoma
e, por assim dizer, separada. Não por outro motivo, para servir à
filosofia, a matemática precisa ser praticada exclusivamente “... em
virtude da sua capacidade de arrastar de todas as formas para a
essência da realidade” 24 . Ou ainda, “... para facilitar a conversão da
alma do mundo do vir-a-ser àquele da verdade e do ser. 25
Não escapa a Platão, portanto, uma espécie de hierarquia
ontológica da ciência matemática, assim como não lhe escapa o fato
de que a maior parte dos homens dedicados a ela julgaria ridículo e
inútil um seu uso declaradamente preparatório 26 .
Teeteto e Teodoro personificam no diálogo planos diferentes
daquela hierarquia, representando, cada um a seu modo, aspectos

Platone. La struttura del dialogo platonico. A cura di G. Casertano. Napoli:


Loffredo Editore, 2000, p. 201-206.
22
República, VII, 533b-e e 526b. Sobre as matemáticas como ciências que
propiciam o desenvolvimento do poder de pensamento abstrato, cf. Shorey, P.
What Plato Said. Chicago: The University of Chicago Press, 1968, p. 236.
23
República, VII, 531d-533c e 534c.
24
República, VII, 523a.
25
República, VII, 525c.
26
República, VII, 527d-e.
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 191

qualitativamente diversos de uma disciplina que risca


constantemente de não ser utilizada por ninguém de modo correto,
isto é, em virtude da sua capacidade de arrastar o Homem para a
essência da realidade 27 .
Aqueles que, como Teodoro, se detém nas disciplinas
potencialmente propedêuticas carecem de uma visão real do ser. São
como que sonâmbulos, diz Platão, incapazes de oferecer as razões
dos princípios que utilizam e dos quais partem 28 :

Sócrates: De fato, não penses que aqueles que adquiriram estas


competências sejam dialéticos. 29

Teeteto, diversamente disso, é a mais elevada


personificação do jovem condenado à dialética: protótipo do
indivíduo inclinado à filosofia, encarnação de todos os requisitos
físicos, intelectuais e morais, cujo destino Platão, num jogo
dramático-anacrônico, fez seu mestre profetizar: “se chegasse a ser
homem, fatalmente se tornaria célebre”. 30
Teeteto domina já os complexos meandros das artes
preparatórias, mas é preciso que o aspecto eminentemente
propedêutico dos conhecimentos científicos que acumulou venha à
sua consciência como tal, isto é, que aprenda a valer-se dele não
como um fim em si mesmo, mas como um meio cuja utilidade
depende ainda de algo que lhe é superior, e reconhecer que, tal
como descrita na República, a matemática é instrumento necessário,
mas não suficiente para se fazer filosofia. Que parece predisposto a
ocupar-se destas coisas, ele mesmo o declara:

Teeteto: Mas saiba, Sócrates, que frequentemente procurei enfrentar este


problema [definir conceitos], de ouvidos atentos às tuas perguntas,
quando me falavam delas. Entretanto, não consigo persuadir-me de poder
responder alguma coisa de forma adequada, nem de poder ouvir um outro

27
República, VII, 523a.
28
República, VII, 533c.
29
República, VII, 531e.
30
Teeteto, 142d.
192 Dennys Garcia Xavier

responder, como incitas a fazer; e, por outro lado, não sei nem mesmo
renunciar a ocupar-me delas.

No contexto dramático do diálogo, portanto, a maiêutica –


com todas as contradições lógicas e históricas que traz na sua
analogia com a arte da parteira – configura-se no primeiro passo
propriamente filosófico a ser dado por Teeteto, elemento basilar do
instrumental platônico, cuja finalidade é sublinhada por nosso
filósofo ao final do diálogo, numa espécie de reafirmação do seu
caráter positivo na busca pela verdade:

Sócrates: Se então depois dessas coisas voltares a conceber, Teeteto, e se


conceberes de fato, ficarás cheio dos melhores frutos, por esta
investigação. Se, no entanto, continuares vazio, serás menos inoportuno
aos que te acompanham, porque mais dócil e tolerante, por não pensares
saber o que não sabes. Pois apenas isso pode fazer a minha arte, nada
mais. Nem sei o que conhecem os outros, esses grandes e admiráveis
homens de hoje e de outrora. Esta arte de partejar eu e minha mãe a
recebemos de um deus: ela, para as mulheres, eu para os jovens bem
nascidos e para os belos. 31

Tal como descrita no Teeteto a maiêutica “socrática” ilustra


de forma emblemática o modo como Platão joga com o escrito, em
função da mensagem que quer deixar aos seus leitores. Exatamente
para comunicar filosofia, Platão, ao contrário do que diz Diógenes
Laércio, jamais abandonou a arte de compôr dramas 32 . Alguns de
seus diálogos deixam entrever que, no limite, o contato com
Sócrates o fez jogar ao fogo apenas e tão-somente um certo tipo de
composição artística, de perfil eminentemente trágico,
imediatamente substituído por uma de perfil filosófico. A escolha
por Sócrates como protagonista da maior parte de seus diálogos
homenageia o inspirador dessa conversão estética. Devemos também
isso a Sócrates: o fato de ter-nos revelado um filósofo com notável
domínio das técnicas de composição dramática. Não fosse aquela

31
Teeteto, 210c-d.
32
Diogene Laerzio, Vite e dottrine dei più celebri filosofi. Milano: Bompiani, 2005,
3-5.
Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão 193

conversão, talvez encontrássemos Platão ao lado de Sófocles,


Eurípedes e Ésquilo; não de Sócrates e Aristóteles 33 .

Referências
I. Textos-base de Aristóteles e Platão
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ed.
Globo, 1993.
PLATONE. Tutti gli Scritti (Giovanni Reale, Org.). Milano:
Bompiani, 2005.
______. Platonis Opera, ed. J. Burnet. Oxford, 1892-1906 (com
várias edições).

II. Bibliografia secundária


BRANDWOOD, L. Stylometry and chronology. In: KRAUT, R.
The Cambridge Companion to Plato. Cambridge: Cambridge
University Press, 1992.
CHAPPELL, Timothy. Reading Plato’s Theaetetus.
Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2004.
LUTOSLAWSKI, W. Origin and grown of Plato´s Logic. London:
Longman´s, 1905.
MELE, Alfonso. Il Teeteto platonico tra storia e finzione letteraria,
in Il Teeteto di Platone: strutture e problematiche. A cura di G.
Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2002, p. 246-255.
MIGLIORI, M. Dialettica e Verità. Commentario filosofico al
“Parmenide” di Platone. Milano: Vita e Pensiero, 2000.
______. La struttura polifonica del Fedro. I Quaderni Bombesi,
Rivista Semestrale di Filosofia e Scienze Umane della Scuola di Alta
Formazione Filosofica “B. Spaventa”, I.

33
Não são os finais aporéticos de alguns dos diálogos a marca de um irrequietum
cor que caracteriza o doloroso final de uma peça trágica? Em Platão, no entanto,
seu efeito catártico não tem por objetivo a purificação das emoções, mas a
purificação dos falsos conhecimentos que repousam impassíveis sobre o que as
coisas são de fato. Cf. Aristóteles, Poética. VI, 27.
194 Dennys Garcia Xavier

______. Tra polifonia e puzzle: Esempi di rilettura del “gioco”


filosofico di Platone. La struttura del dialogo platonico. A cura di
G. Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2000.
NAILS, Debra. The people of Plato: A Prosopography of Plato and
Other Socratics. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing
Company, Inc., 2002.
SEDLEY, David. The Midwife of Platonism. Text and Subtext in
Plato’s Theaetetus. Oxford: Oxford University Pres, 2004.
SHOREY, P. What Plato Said. Chicago: The University of Chicago
Press, 1968.
A poesia grega como paidéia *

Jovelina Maria Ramos de Souza **

Resumo: O presente artigo analisará a importância da Ilíada e da Odisséia no


processo de preservação da memória, da cultura e do passado grego, destacando sua
influência nas esferas da política, da arte, da ciência e da filosofia. Nossa análise se
dá a partir da influência da tradição poética no processo constitutivo da cultura
grega, tomando como base o papel educativo e normativo que a poesia sempre
exerceu entre os gregos. No tratamento dessa questão mostraremos que, de Homero
e Hesíodo a Platão, a cultura grega mostra-se completamente impregnada pelos
efeitos da poesia na formação ética, política e pedagógica das crianças e dos jovens.
Palavras-chave: Homero, Ilíada, Odisséia, Paidéia, Poesia

Abstract: In this article the Iliad and Odyssey will be analyzed as a process of
preservation of the memory, the culture and the Grecian past, pointing out their
influence in the fields of politics, art, science and philosophy. Our analyses begin
from the influence of the poetry tradition in the process and construction of the
Grecian culture, having as base the regulatory and education role of poetry that the
Greeks has exercised among themselves. To deal with this issue, it will be shown
how, from Homer and Hesiod to Plato, the Grecian culture reveals the effects of
poetry in the education and building of children in the fields of Ethic and Politics.
Keywords: Homer, Iliad, Odyssey, Paideia, Poetry

Pensar a poesia como fato de cultura significa remontar à história da


civilização grega. Missão árdua, dada a possibilidade de se recair em
generalizações precipitadas, ou mesmo, na pretensão de se refazer o
percurso histórico que inicia com Homero e Hesíodo até chegar a
Platão. Entre esses, diversas gerações de poetas-filósofos e de
filósofos-poetas ajudaram a constituir este fenômeno cultural
estruturador da mentalidade antiga, a poesia, que, aos poucos vai

*
O presente artigo reproduz parte de “A poesia como fato de cultura”, primeiro
capítulo de A dimensão ético-política da crítica platônica à mímesis na Politéia,
dissertação de Mestrado defendida na UFMG, em 30/01/2003.
**
Professora Assistente do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Pará. Doutoranda do Programa de Doutorado
Integrado em Filosofia UFRN-UFPE-UFPB. E-mail: jovelinaramos@uol.com.br.
Artigo recebido em 27.09.2007, aprovado em 19.12.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 195-213.


196 Jovelina Maria Ramos de Souza

sendo confrontada com outras modalidades de pensamento racional


tais como a história, as matemáticas e a filosofia e que, finalmente,
encontra em Platão um de seus maiores censores.
Não há dúvida que se trata de um tema que aceita múltiplas
abordagens, por isso é preciso deixar claro que o nosso enfoque
acerca dessa questão será de modo a destacar a dimensão ético-
política da poesia enquanto instância cultural educadora dos
cidadãos. É preciso esclarecer, também, que o alcance formativo
contido como dýnamis da poesia torna muito difícil sintetizar tudo o
que ela atinge, dada a multiplicidade de aspectos que ela envolve,
dentre eles, o ético, o político, o teológico, o social, o estético, o
cultural e o pedagógico, em razão de a mesma resgatar e transmitir
os costumes, as tradições, os valores, as crenças, os rituais, os jogos,
as táticas de guerra, a educação, a administração social, política e
militar da cidade, assim como as leis e as condutas pública e
privada. Através da fabricação e da recriação poéticas, Homero
empreende a fusão de dois fundos de cultura, o micênico e o arcaico,
que estarão na base da civilização helênica 1 .
Destacaremos, a partir da Ilíada e da Odisséia, alguns
elementos que nos permitirão mostrar a densidade daquilo que
geralmente designamos simplesmente por “poesia”. Poesia, pelo
menos na Antigüidade grega, é um fenômeno estruturador da
cultura, ou melhor, poesia coincide com cultura, no sentido de
educação e civilização. Os textos de Homero são relatos que
instituem práticas e determinam modos de viver e pensar que
constituirão o núcleo daquilo que chamaremos “cultura grega”.

1
Homero é considerado o educador da Grécia, em virtude de seus cantos conterem
a exigência de uma noção fundamental da mentalidade grega, a de paidéia, que
fomenta o desejo do poeta em formar e educar. Através da Ilíada e da Odisséia, os
gregos, literalmente, foram alfabetizados, assim como aprenderam a preservar e a
difundir seus costumes e tradições. A esse respeito consultar: Hadot, Pierre. O que
é filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1999; Havelock,
Eric. Prefácio à Platão. Trad. Enid Abreu Dobránzsky. São Paulo: Papirus, 1996;
Jaeger, Werner Wilhelm. Paidéia: A formação do homem grego. Trad. Artur M.
Parreira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989; Marrou, henri-irenée, História
da educação na antiguidade. Trad. Mário Leônidas Casanova. São Paulo: EPU,
1990; Romilly, Jacqueline. Fundamentos de Literatura Grega. Trad. Mario da
Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
A poesia grega como paidéia 197

Escolhemos aspectos que evidenciam temas e questões ético-


políticos que perpassam a obra daquele poeta que será um dos
interlocutores privilegiados de Platão. Nossa escolha prepara a
discussão da crítica dirigida por Platão aos poetas, no contexto de
sua proposta, não menos poética, de “refabricação” da cidade
através da filosofia.
A despeito de tudo o que foi dito, o que importa é o
reconhecimento da importância dos cantos homéricos para
entendermos a formação e a fixação de uma cultura própria e
exclusiva do povo grego. Inaugurando a tradição mitopoética, a
Ilíada e a Odisséia são as fontes de inspiração para Hesíodo e toda
uma geração de poetas e pensadores. Pela sua natureza
enciclopédica, em virtude de mostrarem-se como o repositório do
saber e da tradição, os cantos homéricos são o referencial para
pensarmos a consciência e a identidade cultural dos gregos arcaicos.
O que desejamos mesmo é destacar, para além de toda a
polêmica que o tratamento dado por nós a essa questão possa
suscitar, a importância que a Ilíada e a Odisséia têm por serem os
mais antigos meios de acesso de que dispomos às primitivas
tradições que servem de base a uma cultura que, ao se consolidar,
forneceu, para todos os povos civilizados, o protótipo de vida a ser
seguida nas mais variadas esferas, da política, passando pela arte, até
a ciência e a filosofia.
Partimos, portanto, do fato que tanto a Ilíada como a
Odisséia cumprem a função de preservação, na memória, da cultura
e do passado do povo grego. Tomadas por um viés didático-
pedagógico, pode-se dizer que, do ponto de vista formal, ambas
representam um esforço de síntese entre duas estratégias distintas de
conservação dos valores tradicionais: a oral, e a escrita, o que
permitiu à primeira, mais volátil, ganhar uma “solidez” de dado
histórico, documento, fixando, em texto, o conhecimento do passado
que agora se tornava mais resistente ao esquecimento. E de fato não
se trata da simples substituição de um formato literário por outro, o
mais recente assumindo o lugar do antigo e condenando-o ao
desaparecimento. A literatura escrita está profundamente marcada
198 Jovelina Maria Ramos de Souza

pela “oral”, que a alimenta. Esse fenômeno já foi indicado, pelo


menos, na produção poética de Homero (Romilly, 1984, p. 19-20).
Estamos falando de um período em que, na Grécia, aos poucos,
declina a narrativa oral e fixa-se a narrativa escrita, em um esforço
renovado de preservação da cultura dos antepassados. A Ilíada e a
Odisséia 2 representam justamente a intensificação das forças
intelectuais e morais do povo grego, traduzida na mescla dessas duas
formas de manter vivas suas tradições.
Essas duas obras contêm uma extensa e profunda análise do
mundo grego em todas as suas vertentes, das artes às ciências, da
prática individual à coletiva, resgatando o cotidiano do povo de
outrora para recriar o da época do aparecimento de ambas epopéias,
com a intenção de preservar vivos nas mentes dos helenos feitos
memoráveis atribuídos ora aos homens, ora aos deuses (Odisséia, I,
337). As epopéias homéricas valorizam a ação (práxis) e o
comportamento humano tanto no seu trato individual como coletivo.
Difundindo o ideal da aristocracia guerreira, os cantos épicos têm o
objetivo de “manter viva a glória através do canto” (Jaeger, 1989, p.
47). Não é fortuito, afirma Jaeger, o fato de o cantor do Canto I da
Odisséia chamar-se Fêmio, portador de fama, anunciador da glória
(kléos), pois esta é a função primordial do poeta épico, a de celebrar
as grandes ações do passado, dignas de elogio e de louvor, no intuito
de reforçar, diante dos que ouvem as narrativas, a nobreza de caráter
de seus personagens.
Os personagens de Homero são concebidos para serem
exemplares, para serem tomados como referência, cumprindo com
isso um papel social. Por meio deles podemos ler, por exemplo, o
elogio da honra, como o ideal mais alto a ser cumprido por quem
aspira a ter uma alma nobre e guerreira. Ao narrar as ações gloriosas
de seus heróis, Homero se utiliza do mito como o modelo para seus
personagens e ouvintes regrarem suas próprias ações. Se

2
A edição de referência para a Ilíada e a Odisséia são as publicadas pela GF-
Flammarion, traduzidas respectivamente por Eugène Lassere, 2000 e C. Garcia,
2001. As traduções adotadas, tanto para a Ilíada como para a Odisséia são as de
Carlos Alberto Nunes, Tecnoprint, s/d.
A poesia grega como paidéia 199

observarmos os diversos mitos que entram no discurso dos atores


postos em cena por Homero, encontramos sempre um personagem
dirigindo-se ao outro com a intenção de “aconselhar, advertir,
admoestar, exortar e lhe proibir ou ordenar qualquer coisa” (Jaeger,
1989, p. 47). Isso tudo coloca o mito como uma instância
predominantemente normativa, deixando de ser pura obra de ficção,
fantasia, passando a ter o poder de exprimir a universalidade de
ações rigorosamente escolhidas para ter um papel representativo na
educação (paideía) dos gregos. Através do mito narrado e recriado
poeticamente, Homero confere à ação do herói um estatuto
“idealizado”, apontando-o como modelo de ação a ser seguido na
vida cotidiana.
Jaeger ressalta que, nas epopéias, a bravura individual
(aristéia) de um herói contém sempre um elemento ético. Não é em
vão que o autor da Ilíada interrompe, ao longo de sua narrativa, os
fatos relativos à guerra de Tróia para destacar as façanhas
individuais de seus heróis mais célebres, como Aquiles, eixo
condutor das ações da Ilíada, modelo do heroísmo guerreiro
difundido pelas epopéias: a do herói que prefere morrer com glória
(kléos) a fugir de seu próprio destino (moíra) (IX, 410-416). O texto
da obra conteria então essa estratégia, o que permite lê-la como
tendo a finalidade de cultivar entre os gregos o ideal de
kalokagathía, a virtude por excelência do guerreiro, ao mesmo
tempo, belo e bom. Defendendo esse ideal, os poetas deixam de ser
meros contadores dos feitos heróicos, tornando-se intérpretes dos
valores de tradição a que suas obras servem de veículo. Em outras
palavras, tornam-se os educadores hegemônicos do povo grego.
Sem dúvida, a ação dos heróis não é ainda tomada no
sentido da proaíresis aristotélica, não é “escolha deliberada” (Ética
a Nicômaco, 1111b5-10) e regulada segundo um princípio baseado
no lógos. As ações praticadas estão impregnadas de uma profunda
heteronomia devido ao fato de poderem sofrer a interferência dos
deuses, dependendo das situações. Quando os personagens de
Homero encontram-se diante de uma decisão crucial, parece lícito, à
mentalidade de então, que a divindade intervenha e norteie suas
200 Jovelina Maria Ramos de Souza

ações. É claro que isso tem suas vantagens, pois, se os heróis


perdem a noção de limite e se entregam ao desvario, a desrazão
(áte), como a insensatez de Agamêmnon ao roubar Briseida, a
amante de Aquiles em compensação pela perda da sua, eles podem
muito bem reconhecer, posteriormente, não ter agido corretamente,
mas imputar não à sua vontade própria, mas à Zeus, ao daímon, à
moíra ou às Erínias, o seu excesso (Ilíada, XIX, 78-274). Ao
atribuir a causa de seus atos à vontade dos deuses, fica mais fácil a
Agamêmnon aceitar que errou e dispor-se a receber,
espontaneamente, os castigos provenientes de sua ação quando em
estado de áte. Isso diminui sua responsabilidade em relação às
conseqüências desastrosas, para o exército sob seu comando, dos
atos que ele, individualmente cometeu. Desse ponto de vista, esses
traços conferem à ética homérica um caráter ambíguo. Embora
sejam os deuses que impulsionem os homens a cair em tentação e a
agir insensatamente, as práticas incorretas acabam por ser punidas,
ainda que, no mundo homérico, a noção de livre arbítrio não exista.
Ao reconhecerem suas faltas como desígnios divinos, os
personagens homéricos purificam-se e são reconduzidos à prática da
virtude.
Toda a ação do herói homérico seja na Ilíada ou na Odisséia
é ordenada pelo decreto divino. Isso situa os seus personagens numa
esfera para nós ambígua: ao mesmo tempo religiosa e moral. Dessa
maneira, podemos compreender a fúria (áte) de Agamêmnon, ou
mesmo a de Aquiles, segundo Dodds 3 , como “um estado de espírito
– um obscurecimento ou confusão temporária da consciência
normal” (p. 12) que não tem uma causa fisiológica ou psicológica,
mas como resultado de uma inserção do divino no plano humano.
Na ética homérica, “qualquer afastamento do comportamento
humano normal, cujas causas não são imediatamente perceptíveis,
seja pela consciência do assunto, seja pela observação de outros, é
atribuído a um agente sobrenatural” (Dodds, 1988, p. 21), diríamos,
externo. Este agente estranho, que desvia os homens da prática de

3
Dodds, E. R. Os gregos e o irracional. Trad. Leonor Santos B. de Carvalho.
Portugal: Gradiva, 1988.
A poesia grega como paidéia 201

uma ação normal, ou seja, regular, e leva-os a agir em estado de áte


é sempre identificado como um daímon, um deus ou uma entidade
anônima, ou mesmo a moíra, a porção atribuída a cada ser humano
real ou fictício.
Nesse sentido, a noção de áte não implica em uma
culpabilidade autenticamente moral. O personagem reconhece o seu
descontrole emocional, como se dá com Agamêmnon e Aquiles na
Ilíada, mas seu comportamento para além da norma ética geral,
vincula-se à vontade divina. O personagem atribui à divindade e não
a si mesmo o fato de agir impulsivamente. Desse modo, sua
“consciência moral” se equilibra numa faixa estreita em que ocorre a
interação entre as esferas teológica e ética do pensamento humano.
O entrecruzamento das dimensões religiosa e moral, que cria uma
atmosfera cambiante, imprecisa para as decisões dos agentes nos
permite ler em Homero o desejo de criar seus heróis com a forma
mais humanizada possível. Encontramos a orientação das ações
ligada à advertência sobre possíveis punições e, apesar disso, cenas
marcadas por erros atribuídos à perda súbita da lucidez, logo
recuperada pela aceitação da punição. Nesse aspecto, o texto de
Homero parece justamente constituir essa textura que conecta, em
sua particularidade, a experiência que o indivíduo tem, dos outros e
de si mesmo, com suas possíveis significações maiores, mais
universais, seja através do deus que intervém, seja através do herói
que faz a mediação.
Homero traça com a maior precisão a estrutura psicológica
de seus personagens, sem perder de vista sua inserção social. Ciente
de sua função como educador na Grécia de seu tempo, onde as leis
escritas ainda estão sendo definidas e o código ético não está
sistematizado, Homero constrói seus personagens com todo rigor.
Apesar das ambigüidades de que falamos, o que não escapará a
Platão, o poeta inevitavelmente propõe modelos, exemplos a serem
seguidos pelos homens de sua época. A sociedade grega arcaica
dependia da eficácia do exemplo e utilizava os feitos dos heróis
épicos como parâmetro para mediar as ações dos homens reais.
Nessa interação estabelecem-se os valores a serem admitidos na
202 Jovelina Maria Ramos de Souza

sociedade, como a honra, a nobreza de caráter, a bravura, e até


mesmo a capacidade de se deixar guiar pelos deuses no
discernimento da melhor ação a ser adotada, em combate ou na vida
pessoal.
Um indício da consciência homérica da importância social
de sua obra se deixa ver na preocupação didática do poeta quando da
construção dos personagens dentro da trama. A personalidade dos
heróis de suas epopéias é composta a partir de um paradigma, o do
personagem mais velho, exemplo a ser seguido em todas as
situações. É o caso de Fênix, aconselhando Aquiles em Ilíada, I,
524-527, ou de Atena e Nestor, convencendo Telêmaco a seguir o
exemplo de Orestes em Odisséia, I, 298 e III, 195-200; 306-316.
Para Jaeger, “a evocação do exemplo dos heróis famosos e do
exemplo das sagas é para o poeta parte constitutiva de toda a ética e
educação aristocráticas” (1989, p. 41). Através dos exemplos dados
pelos poetas, o homem grego vai moldando a sua própria
personalidade e a de sua sociedade como um todo. Essa tradição da
tomada paradigmática do mito como um recurso para modelar as
ações do homem em seu convívio social e em atitudes individuais é
intrínseca ao espírito grego e ocorre não apenas entre os poetas e
prosadores, mas também em meio à filosofia. Platão é o exemplo
mais fiel dessa tradição. A despeito de suas diferenças relativamente
à tradição poética, seus diálogos são plenos de referências aos mitos,
na tentativa de resgatar o modelo da ética guerreira e adaptá-la ao
seu tempo, dada a sua necessidade de estabelecer valores ético-
políticos para a cidade.
Apesar do que dissemos sobre o entrecruzamento das
esferas da moral e da religião, na estrutura psicológica dos
personagens homéricos parece não haver uma interdependência
entre elas, ainda que o herói projete as suas faltas na figura de um
deus. Dodds explica esse processo como um fator inerente à cultura
grega da época, onde esses dois setores do pensamento humano
tinham raízes separadas. Desse modo, a religião pode ser vista como
um fato resultante das relações do homem com a natureza (phýsis) e
a moral da relação do homem com seus iguais. A dependência entre
A poesia grega como paidéia 203

esses dois pólos surge no momento que o homem passa a projetar no


universo circundante (kósmos) e não mais nos deuses, a
responsabilidade por seus atos. Em suma, quando o homem começa
a castigar a culpa ao sentir vergonha de seus atos, em vista de estes
não estarem de acordo com o ideal de justiça de seu grupo, passa-se
a selecionar os mitos e a condicionar o conteúdo das narrativas
poéticas às finalidades teóricas do pensamento reflexivo.
Ao censurar o ensinamento dos poetas e a opinião das
pessoas comuns, nas antigas epopéias, onde os atos injustos parecem
mais vantajosos que os atos justos, Platão combate, principalmente,
o fato de nessas narrativas os poetas atribuírem aos deuses, a causa
de males e de infelicidades para os homens de bem, e aos homens
opostos um lote (moíra) oposto. O filósofo não aceita o ideal da
purgação do erro, contido na moral homérica. Para este, nem o deus
pode ser responsabilizado pela prática de coisas más, nem pode ser
influenciado pelos homens. Opondo-se terminantemente aos antigos
rituais de libertação e purificação (katharmós) da injustiça
perpetuados pelos poetas épicos, Platão defende que o homem deve
responder individualmente pelos seus erros, caso contrário, a
injustiça (adíkema) reinará soberanamente na cidade.
Avesso à noção de intervenção psíquica que leva à
purificação do erro por um ato não intencional (áte) e ao mesmo
tempo atribui à divindade a responsabilidade por suas ações mentais
e físicas, como Agamêmnon que, em Ilíada, IX, 17-28, considera
sua áte um engano (apáte) deliberado de Zeus para que o mesmo
retorne a Argos sem glória (akleés), Platão adota sua perspectiva
“filosófica”, que implica em reconhecer que a ação humana é
determinada por valores ético-políticos adotados por cada um. Para
escapar ao impulso irracional da moral poética, que atribui ao deus a
causa dos males em razão de sua inveja (phthónos) da vida dos
homens e, a utilização de rituais de iniciação (teleté) para a purgação
dos males advindos de uma atitude irrefletida, Platão propõe-se
rever, na Politéia, as leis da cidade e o conteúdo dos poemas (II,
363e5-365a3).
204 Jovelina Maria Ramos de Souza

Essa questão, porém, é muito delicada e merece um


tratamento específico. Interessa-nos no momento, compreender
como se dá a incorporação do conglomerado cultural homérico no
processo de “racionalização” do saber e da cultura grega. Dodds
mostra que esse processo de apropriação do modelo homérico-
arcaico de moral, na história da Grécia, amplia-se tanto que acaba
por se romper, levando à dissolução gradual dos valores até então
agregados no interior da obra homérica. Hecateu, Xenófanes e
Heráclito e, posteriormente, Anaxágoras e Demócrito, foram alguns
dos pioneiros desse rompimento com a antiga tradição poética.
Criticando a narrativa dos poetas tanto por seu teor ético-político
como pela não confiabilidade de suas fontes, esses críticos apontam
para uma nova racionalidade discursiva, na qual se busca um novo
tipo de “saber” que se contrapõe às crenças arcaicas, incluindo
aquelas relativas à sorte e a tentação divina (Dodds, 1988, p. 26).
Contra a ética dos costumes (nómos) dos antigos poetas gregos,
surge a ética da lei da natureza (phýsis) dos primeiros filósofos
gregos. Os filósofos retomam e modernizam a noção de areté dada
por Homero na Ilíada e na Odisséia, de modo a preencher as novas
exigências éticas e políticas de suas épocas.
Platão é a principal expressão dessa tendência do
pensamento grego. Seus diálogos, sobretudo os da juventude, são
perpassados pela preocupação em definir a virtude (areté), de modo
a distanciar esse conceito de sua determinação homérica: a da
virtude como a nobreza associada a uma posição social. Entre os
poetas, a virtude tem a finalidade pragmática de distinguir os valores
da nobreza aristocrática, como o êxito na guerra e o talento político,
da prática dos cidadãos comuns. Tomada à luz da filosofia, a areté
transforma-se em um “conjunto de ações e de comportamentos
humanos que asseguram o pleno desenvolvimento das capacidades
do indivíduo, e, sobretudo, o cumprimento de seu papel de
cidadão” 4 . Se, antes, a virtude designava o valor de nascimento, ela
passa a compreender a ação do homem nela mesma e na sua relação

4
Canto-Sperber, Monique. Introduction à Ménon. In: Platon. Ménon. Trad.
Monique Canto-Sperber. Paris: GF Flammarion, 1991, p. 39.
A poesia grega como paidéia 205

com o outro. Em meio aos sofistas, os atuais educadores da cidade, a


virtude legitima-se como prática social, conservando a dimensão
política que tinha desde os tempos homéricos, mas sendo pensada
agora no contexto da pólis democrática: objeto de nova paidéia, a
virtude sofística inclui saber fazer e usar discursos, saber argumentar
e persuadir, saber gerir os bens próprios e públicos. Contudo é em
Sócrates e, posteriormente, Platão que esta noção atinge o seu
refinamento conceitual. Contrário à moralidade convencional de sua
época, herança do ensinamento dos poetas e dos sofistas, Sócrates,
segundo o testemunho de Platão, no Fédon 5 , criticava.

esta virtude demótica e política (demotikèn kaì politikèn aretèn) à qual se


dá o nome de temperança (sophrosýnen) e de justiça (dikaiosýnen) e que
produz, com seu uso e seu exercício, uma prática (éthous) desprovida
tanto de filosofia (philosophías) como de inteligência (noû) (82a8-b3).

Sócrates, como Platão, rejeita a definição de virtude dos


poetas e dos sofistas, realizando a fusão entre a antiga excelência
social e política dos guerreiros, legitimada pela tradição, e o ideal de
sabedoria e conformidade ao bem, defendido pelo filósofo. Segundo
os novos padrões, a virtude é definida, na Politéia, como um bem
próprio da alma (psykhé), cuja função é dirigir, deliberar e todas as
atividades (práxais) semelhantes (II, 353d3-4). Este bem é o saber
(sophía), “o princípio capaz de assegurar o uso correto de um objeto
qualquer e de garantir que uma justa direção seja exercida em toda
circunstância” (Canto-Sperber, 1991, p. 43). Ou então, um de seus
equivalentes, o conhecimento (epistéme), a razão (prhónesis), a
inteligência (noús), o que dá à virtude o estatuto de um
conhecimento moral.
Ao identificar a virtude com a razão, Platão distancia-se do
legado cultural deixado por Homero, pelo fato de considerá-lo
teoricamente insuficiente para atender às exigências de um saber, a
filosofia, que, na Politéia, está se constituindo, mostrando a sua
utilidade e o seu diferencial em relação à poesia, a sofística, a
5
Edição utilizada: Platon. Phédon. Trad. Monique Dixsaut. Paris: GF-Flammarion,
1991.
206 Jovelina Maria Ramos de Souza

retórica e a política, um saber que é sempre buscado através da


pesquisa dialética. Embora seus diálogos contenham freqüentes
alusões às narrativas dos poetas, estas são tomadas como recursos
para ele elaborar as definições do método que vem sendo moldado
ao longo de seus diálogos. Platão utiliza as metáforas e os mitos para
construir seu pensamento ético-filosófico. Na elaboração desse
projeto, o filósofo dissocia a opinião (dóxa) do conhecimento
(epistéme), recusando-se a reconhecer na produção do vidente,
assim como do poeta, um modo de conhecimento. Isso “não porque
as considerasse necessariamente infundadas, mas porque os seus
fundamentos não podiam ser apresentados” (Dodds, 1988, p. 234).
Nem o vidente, nem o poeta, nem, posteriormente, os sofistas,
possuem o devido conhecimento do objeto tratado. Isto limita sua
capacidade de discernimento, assim como esvazia suas pretensões
de continuarem governando a cidade.
Contra as limitações do saber poético, Platão propõe um
regramento racional e ético de todo o conglomerado cultural
herdado de Homero e dos demais poetas e pensadores gregos, que é
submetido aos princípios de sua filosofia. Dodds vê, na tentativa de
Platão em adaptar o saber de seus antepassados a seu projeto de
construção de uma cidade centrada em valores ético-políticos, uma
tentativa de salvaguardar a unidade da crença e da cultura gregas.
Essa preocupação em retomar o conglomerado cultural a partir de
uma perspectiva racionalista é realmente muito ambiciosa, tendo que
ser capaz de refletir sobre inúmeras contradições e incongruências, a
tensão entre o pensado e o vivido atravessa toda a obra platônica,
mas sempre na tentativa de infundir um no outro. A Politéia 6 propõe
para a cidade histórica um paradigma reflexivo, uma cidade
construída com palavras (V, 450c6-d3); mas o paradigma é
desenvolvido a partir da dita tensão, que aparece, por exemplo, entre
o que é de natureza filosófica e o que não é (VI, 486a1-2). A
natureza filosófica mostra-se predisposta a alcançar a totalidade e a

6
Edição de referência: Platon. La République. Trad. Georges Leroux. Paris: GF-
Flammarion, 2002, Tradução adotada em língua portuguesa: Platão. A República.
Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
A poesia grega como paidéia 207

universalidade do divino e do humano, enquanto a natureza não-


filosófica não se mostra suficientemente justa (dikaía) ou doce
(hémeros) para tomar parte na verdadeira filosofia (VI, 486b3-12).
Partindo do pressuposto que a obra de Homero contém em
seu bojo, uma coleção variada de costumes, convenções, prescrições
e procedimentos comuns aos gregos de sua época, passamos a
investigar a importância de sua poesia para a constituição das leis da
sociedade grega.
As duas obras de Homero contêm, em seus relatos, o
constante entrelaçamento entre o cenário político e militar da guerra
e os rituais, as crenças, os costumes, as tradições dos gregos em suas
relações familiares. De um lado, a ação dos heróis no campo de
batalha, do outro, o lado humano de seus heróis. Nesse sentido, a
Ilíada e a Odisséia, representam no período de seu surgimento a
instância privilegiada para o povo grego compreender melhor o seu
próprio mundo. Reunindo a tradição oral e a escrita em um mesmo
espaço, o da epopéia, Homero pensa a vida do cidadão grego, a
partir das noções de virtude (areté) e justiça (díke). Por areté,
Homero compreende, tanto as qualidades dos reis-guerreiros como
“as qualidades que tornam um indivíduo capaz de fazer aquilo que
seu papel exige” 7 . Díke, por seu lado, compreende tanto a ação
como a ordem que envolve essa ação. Macintyre mostra que, em
Homero, a noção de díke se encontra sempre associada à de thémis,
o que é ordenado como regra. A diferença entre as duas provém do
fato de a primeira ser uma ordem que vem de fora, enquanto a
segunda é uma ordem que se estabelece dentro do indivíduo. As
duas, no entanto, precisam estar conciliadas para que uma ação
possa ser considerada justa. A estrutura sócio-psicológica dos
personagens homéricos é inteiramente marcada pela interação entre
essas diversas ordens, de modo a permitir que o herói tenha a devida
compreensão e discernimento acerca de sua ação e de todo o
processo que envolve o seu agir, pois somente dessa maneira este se
tornará consciente de seu ato e justo (díkaios).

7
MacIntyre, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? Trad. Marcelo
Pimenta Marques. São Paulo: Loyola, 1991, p. 26.
208 Jovelina Maria Ramos de Souza

O herói homérico sabe da função que deve cumprir, no


entanto, pode “agir de um modo não adequado à preservação da
díke” (Macintyre, 1991, p. 26), sem com isso deixar de ser um
agathós, como Agamêmnon ao desonrar Aquiles no Canto I da
Ilíada. Havelock mostra que a contenda entre o atrida e o pelida
teria sido evitada se não houvesse na época convenções estritas que
regulavam a partilha dos espólios (Havelock, 1996, p. 84-85).
Agamêmnon reconhece seu erro, mas exige o cumprimento das leis
que regulam a partilha, onde o direito de escolha é um privilegio dos
homens superiores, daí o tom arrogante com que se dirige a Aquiles:

Mas em pessoa hei de o prêmio ir buscar à tua tenda, a Briseida


de belas faces, que, alfim, possas ver por esse ato de força, quanto te sou
superior (I, 184-186).

Mas Aquiles não se intimida com as ameaças de


Agamêmnon mostrando que a atitude do filho de Atreu não é a mais
apropriada pois, contrária às leis e aos preceitos estabelecidos por
Zeus (I, 225-244). Nestor intervém tentando apaziguar a ira dos dois
contendores. Dirigindo-se a Aquiles, o ancião retoma as leis da
cidade e mostra-lhe que a atitude de Agamêmnon, por mais
desregrada que possa parecer, é legítima, em partindo de um rei,
pois o cetro que ele ostenta “constitui o símbolo exterior de sua
autoridade” (Havelock, 1996, p. 86). Diz o ancião,

Nem tu, filho de Peleus, presumas que podes, assim, antepor-te


Ao soberano, porque sempre toca por sorte mais honras
Ao rei que o cetro detém, a quem Zeus conferiu glória imensa.
Se és, em verdade, robusto, e uma deusa por mãe te enaltece,
Agamêmnon é bem mais poderoso, porque sobre muitos domina (I, 277-
281).

Mas o bom-senso de Nestor não esfria a contenda. Diante


dessa situação incontrolável, Tétis, mãe de Aquiles, dirige-se a Zeus
pedindo-lhe sua interseção a favor do filho. Zeus consente em apoiá-
la fazendo um leve aceno com a cabeça, este sinal resgata uma
convenção antiga entre os gregos, é a prova de consentimento de um
A poesia grega como paidéia 209

superior ao pedido público de ajuda de um inferior (I, 518-527).


Outro exemplo da concentração do poder nas mãos do rei
encontramos na descrição do vidente Calcas a respeito da condição
política de Agamêmnon, representado aqui como

o guerreiro que manda


nos Aqueus todos e a quem os argivos de grado obedecem.
Contra os pequenos, se acaso se agasta, é o rei sempre excessivo.
Pois, muito embora refreie os impulsos da cólera um dia,
Continuamente revolve no peito o rancor contido (I, 78-82).

Havelock vê nesta descrição, o exemplo tanto de um código


de lei pública (nómos) como de um padrão de comportamento
privado (éthos). Diante de seu oponente, o rei decide se se torna
mais condescendente ou se dá vazão a toda sua fúria como faz
Agamêmnon. Embora Havelock valorize essa cena pelo fato de a
mesma conter o princípio sócio-político da psicologia do rei,
concentrada na figura de Agamêmnon, contudo não encontra nessa
ação, “nenhuma manifestação de um juízo moral” (Havelock, 1996,
p. 87). Calcas, quando revela a Aquiles, em assembléia, a causa do
conflito e o remédio para sua solução (I, 53-100), não está
defendendo a fúria do filho de Atreu, apenas a descreve naquilo que
ela tem de mais singular e de mais grandioso, pois é justamente essa
a sua função, a de contar os feitos nobres e gloriosos, sem inferir
nenhum juízo de valor com relação ao comportamento do
personagem, no caso, Agamêmnon. Havelock considera estes
exemplos como amostras dos inúmeros enunciados semelhantes que
encontramos ao longo da Ilíada e da Odisséia, acerca do modelo de
comportamento político a ser seguido pela sociedade grega.
Em muitas dessas passagens, as leis políticas estabelecidas
para o grupo confrontam-se com a organização religiosa sob a qual
todos viviam. A passagem supracitada da Ilíada, I, 101-246,
envolvendo o conflito entre Agamêmnon e Aquiles, ilustra bem esse
confronto entre o poder político e o poder religioso da época, porém
desde a abertura do Canto I, deparamo-nos com o embate entre essas
duas forças. Homero inicia a Ilíada profetizando que “a desgraça
210 Jovelina Maria Ramos de Souza

aguarda os gregos por causa de uma disputa entre seus líderes”


(Havelock, 1996, p. 88). A partir daí, o poeta passa a explicar o
motivo do conflito, iniciado quando Agamêmnon ultraja Crises,
sacerdote de Apolo, que se vinga do rei enviando uma peste a seu
exército (I, 8-52). No relato de Calcas temos, de um lado, o
representante do poder político e militar, do outro, a estrutura
religiosa grega e sua tradição de longa data. A questão de fundo
colocada por Homero, na voz do vidente, parece ser perpassada pela
preocupação em avaliar se de fato, na Grécia onde está escrevendo,
a dimensão religiosa ainda tem maior valor que a ação política.
Ao transgredir as regras seculares da religião grega,
Agamêmnon consolida sua condição de superioridade política e
militar diante de seus comandados. Diante desse impasse, Homero,
o autor, resolve punir seu personagem por ter descumprido um
ordenamento divino. Nessa ação, o poeta se mostra consciente não
apenas de seu papel como educador, mas da dificuldade em quebrar
com as antigas tradições religiosas, sem que isso tenha um efeito
direto sobre ele próprio. Homero pode até duvidar da eficácia do
código religioso de comportamento na Grécia atual, mas não pode
infringir os procedimentos habituais dessa sociedade. A presença de
Calcas em cena, descrevendo os cerimoniais religiosos que
envolvem tanto as oferendas como os sacrifícios, assim como a
benevolência e o agravo dos deuses reforça esse elo e, ao mesmo
tempo mostra a contradição entre o agir religioso e o agir político.
Sutilmente, Homero lembra a seus leitores, o tempo todo, da
importância do cumprimento das regras e dos costumes
estabelecidos pela tradição. A intervenção de Calcas parece colocar
o leitor diante da questão se “os costumes prescritos pela religião
são ao mesmo tempo os da organização política” (Havelock, 1996,
p. 93).
O discurso do vidente, na assembléia convocada por
Aquiles, marca sua condição dentro da sociedade grega. Seu
discurso manifesta o conhecimento tanto da lei pública (nómos)
como do costume (éthos) corrente nessa sociedade. Adaptado entre
essas duas ordens, Calcas, como o próprio Homero, expressa em seu
A poesia grega como paidéia 211

discurso o respeito pelos procedimentos socialmente padronizados


entre os gregos. O ancião demonstra o perfeito domínio das práticas
características de uma cultura predominantemente oral, e, através de
seus relatos, Homero coloca-nos diante de várias dessas convenções,
como a do acordo formal existente entre o orador e seu interpelante,
no caso Calcas e Aquiles, sob a forma do juramento falado. Quando
Calcas cede ao apelo de Aquiles e dispõe-se a revelar-lhe o motivo
da cólera de Apolo, incita o herói a prestar um juramento, o de
defendê-lo sem reservas da ira de Agamêmnon, seja através da força
de suas palavras ou de seus braços (I, 75-79). Nessa passagem,
Homero mostra a força representativa de tal hábito entre os gregos,
assim como reforça o valor do pacto que envolve o princípio de
lealdade de ambas as partes, tornando mais profundos os laços de
confiança e amizade entre os envolvidos. Havelock acredita que na
fórmula do juramento oral encontram-se reunidas às noções de
nómos e de éthos (Havelock, 1996, p. 95).
Aquiles celebra esse pacto prometendo cumprir o acordo de
proteger o vidente, apesar de reconhecer a superioridade social de
Agamêmnon (I, 86-91). Consciente das regras sociais hierárquicas
de seu grupo, o herói não se intimida pela ascendência nobre do rei.
Aquiles se concentra no fato de que Agamêmnon provocou a ira de
Apolo por subverter a ordem sob a qual estão estruturadas as
relações entre os deuses e os homens. O ato de Agamêmnon,
portanto, deve ser punido, pois este não apenas violou a regra
estabelecida por sua sociedade (díke), como infringiu a honra (timé)
de Crises e, posteriormente a do próprio Aquiles. E segundo os
preceitos da sociedade arcaica descrita por Homero, “se eu sou
desonrado, como Aquiles por Agamêmnon, devo buscar reparação”
(Macintyre, 1991, p. 26). Para reparar sua honra, a excelência
individual (areté) do guerreiro nobre e bom, o herói tem a liberdade
de transgredir o éthos de sua comunidade.
Buscar os indícios da lei pública e dos costumes na Grécia
antiga é encontrar na Ilíada e na Odisséia o lugar apropriado para a
descrição não apenas dos “costumes religiosos, mas também sociais,
fixados e conservados no poema épico” (Havelock, 1996, p. 95). Os
212 Jovelina Maria Ramos de Souza

versos de Homero contêm os padrões de comportamento cultivados


pelos gregos arcaicos. Seus personagens transitam o tempo todo
entre as esferas do público, do político, do religioso, do doméstico,
suas narrativas são constituídas de modo a representar não só a ação
excepcional do herói, mas também as atividades rotineiras do
cidadão grego. Enquanto veículo de conservação do padrão grego de
comportamento, os poemas homéricos descrevem os rituais dessa
sociedade em todos os seus detalhes. Nesse sentido, o Livro I da
Ilíada mostra-se como um guia não apenas para a compreensão da
vida social e individual, mas também para o justo entendimento
acerca dos deveres políticos e religiosos da Grécia representada nas
epopéias homéricas. Abordando essas práticas em suas narrativas,
Homero conserva no espírito grego o respeito por esses
procedimentos, tornando-se “ao mesmo tempo um contador de
histórias e também um enciclopedista” (Havelock, 1996, p. 101).
Centrados nessa perspectiva, fechamos este ciclo de nossa
discussão concluindo que, a poesia de Homero, numa sociedade pré-
alfabetizada como a Grécia, onde surgem a Ilíada e a Odisséia,
tornou-se “um veiculo de experiência conservada, de ensinamento
moral e de memória histórica” (Havelock, 1996, p. 64). Homero
como nenhum outro poeta de sua época mostra-se um profundo
conhecedor do complexo sistema ético e político vigente no período
arcaico. Resultante desse processo de formação do espírito grego, a
poesia de Homero mostra-se como uma fonte inesgotável de valores
ético-políticos a serem assimilados e incorporados à prática
cotidiana dessa sociedade. Dada a função utilitarista da poesia
homérica, a sua capacidade de conservar e transmitir os preceitos e a
educação prescritos pela tradição, a mesma assemelha-se a “uma
espécie de enciclopédia de ética, política, história e tecnologia que
os cidadãos ativos eram obrigados a aprender como a essência do
seu preparo educacional” (Havelock, 1996, p. 44). Pensada como
uma espécie de enciclopédia social, a poesia homérica mostra-se
como o receptáculo do “conhecimento e da sabedoria que a cultura
helênica havia acumulado e armazenado” (Havelock, 1996, p. 64).
A poesia grega como paidéia 213

Nesse sentido, ler Homero, é tornar-se inteirado de todo o processo


sócio-cultural e ético-político de sua época.

Referências
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antigua. Madrid: Alianza, 1981.
ALSINA, José. Teoría literaria griega. Madrid: Gredos, 1991.
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Paris: E. de Boccard, 1937.
DETIENNE, M. A invenção da mitologia. Trad. André Telles e
Gilza Martins Saldanha Filho. Rio de Janeiro: José Olympio;
Brasília: UnB, 1998.
EASTERLING, P. E.; KNOX, B. M. (Ed.) Historia de la Literatura
Clásica I: Literatura Griega. Madrid: Gredos, 1990.
GÖRGEMANNS, Herwig; LATACZ, Joachin. (Ed.). Die
grechische Literatur in Text und Darstellung. Bänden I-V. Stuttgart:
Reclam, 1991.
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University Press, 1962.
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1987.
ROMILLY, Jacqueline. La douceur dans la pensée grecque. Paris:
Les Belles Lettres, 1979.
ROMILLY, Jacqueline. Perspectives actuelles sur l’épopée
homérique. Paris: PUF, 1983.
SAÏDS, S.; TREDE, M.; LE BOULLUEC, A. Histoire de la
littérature grecque. Paris: PUF, 1997.
WEST, Martin L. The Invention of Homer. Classical Quarterly 49,
2 (1999) p. 364-382.
A razão em Feuerbach como base
da unidade do homem e da natureza

Eduardo Ferreira Chagas *

Resumo: Feuerbach trata a natureza, na sua primeira obra, A Razão Una, Universal
e Infinita, desde a perspectiva do panteísmo, no qual ele vê a superação do
dualismo entre o espírito e a natureza, ou seja, a reconciliação entre eles, que vale
simultaneamente como negação da subjetividade individual, abstrata, e da
personalidade como determinação de Deus. Trata-se aqui de um direcionamento de
Feuerbach para a natureza, em clara oposição à teologia cristã-monoteísta, que
manifesta um abandono completo à natureza (ao “não sagrado”, ao “não divino”).
Enquanto a teologia cristã está em oposição à natureza e, com isto, também à
natureza originária do homem, porque Deus é para ela um ser “exclusivo”,
“extramundano” ou “estranho ao mundo”, trata Feuerbach a natureza, a matéria,
panteisticamente, em unidade com Deus ou com o espírito.
Palavras-chave: A natureza no panteísmo, A natureza no jovem Feuerbach,
Feuerbach

Abstract: Feuerbach treats nature on his first work On the Infinitude, Unity, and
Universality of Reason from the view point of pantheism which is seen by him as a
source for superseding the dualism of spirit and nature, i.e., the reconciliation
between the two which is worth simultaneously as the negation of individual
abstract subjectivity and personality as determined by God. One deals here with a
directive from Feuerbach towards a clear opposition to the Christian monotheist
theology that displays a complete abandonment to nature (to the “un-sacred”, “un-
divine”). While Christian theology in its proposition that God is an “exclusive
extramundane being” opposes nature, and by so doing man’s original nature as
well, Feuerbach treats nature as matter which is pantheistically tied to God and
spirit.
Keywords: Feuerbach, Nature in pantheism, Nature in the young Feuerbach

Ocupar-me-ei, neste artigo, com um dos escritos juvenis de


Feuerbach, dos anos de 1820 a 1837, particularmente a sua
Dissertation, intitulada A Razão Una, Universal e Infinita (De
ratione una, universali, infinita ou Über die eine, allgemeine,
*
Professor do Departamento de Filosofia da UFC. E-mail: ef.chagas@uol.com.br.
Artigo recebido em 02.09.2007 e aprovado em 17.12.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 215-232.


216 Eduardo Ferreira Chagas

unendliche Vernunft) (1828), que evidencia já a sua inclinação para


a filosofia da natureza. Antes que me refira aos pontos centrais da
Dissertation de Feuerbach, é necessário primeiro mencionar a
recepção de Feuerbach a Hegel durante seus estudos universitários e
sua mudança para a Faculdade de Filosofia durante os anos de 1823.
Embora as expectativas, com as quais Feuerbach foi, em 1823, para
Heidelberg, tenham sido frustradas, submete-se ele,
indubitavelmente, nessa cidade, à influência indireta de Hegel.
Desse tempo de estudo em Heidelberg, ele manteve, sob a impressão
do racionalismo teológico de Heinrich Gottlob Paulus, uma aversion
contra o subjetivismo religioso (religiöse Subjektivimus), a religião
do sentimento; mais tarde, depois do encontro com o filósofo da
religião da direita hegeliana, Karl Daub, aceita dele o uso do método
especulativo (uma version do sistema hegeliano) para a
reconciliação (Versöhnung) entre teologia (Theologie) e filosofia
especulativa (spekulative Philosophie), isto é, para a superação da
oposição entre fé (Glauben) e razão (Vernunft). Gradualmente
distancia-se Feuerbach em geral do estudo da teologia e volta-se
para a filosofia de Hegel. Em Berlim, tinha ele primeiro estudado
teologia com Schleiermacher e, já em 1824, freqüentava as
preleções filosóficas de Hegel e as experimentava como grande
libertação do estreitamento de seus estudos de teologia, razão pela
qual ele trocou em 1825 a faculdade de teologia pela de filosofia.
Nesse ano, ele escreve ao seu irmão o seguinte: “Eu troquei a
teologia pela filosofia. Extra philosophiam null salus [fora da
filosofia não há salvação].’’ E ao seu pai ele se esclarece assim: “Eu
renunciei a teologia, porém a renunciei não maligno ou
levianamente; não porque ela não me agrade, mas porque ela não me
liberta; porque ela não me dá o que requero, o que preciso. Meu
espírito se acha agora não nos limites do país sagrado; meu sentido
está num mundo mais amplo; ... eu quero a natureza, frente a qual a
profundidade dos teólogos recua; eu quero carregar em meu coração
o homem inteiro, que é objeto não para o teólogo, mas apenas para o
filósofo. Alegre-se comigo, que eu tenha começado em mim uma
nova vida, um novo tempo; alegre-se que eu tenha escapado da
sociedade dos teólogos e tenha espíritos, como Aristóteles, Spinoza,
A razão em Feuerbach como base da unidade do homem... 217

Kant e Hegel, como meus amigos.’’ 1 A teologia não podia dar a


Feuerbach mais nada, pois ela não é suficiente às exigências
empíricas da realidade concreta. “Palestina’’, diz ele, “é a mim
muito estreita; eu quero, eu devo prosseguir no mundo, e este
somente o filósofo traz em seus ombros’’ 2 , porque apenas ele, e não
o teólogo, trata dos fundamentos da natureza e do homem. A
admiração de Feuerbach por Hegel se manifesta como segue: “Ele
era aquele, [através do qual] eu pude tomar consciência de mim
mesmo e do mundo. Ele era aquele, o qual eu nomeava o meu
segundo pai, como Berlim, naquela época, minha cidade natal-
espiritual. Ele era o único homem, o qual me fez sentir e
experimentar o que é um professor; o único, no qual eu achei o
sentido para esta palavra antes tão vazia; por conseguinte, a ele eu
me sinto, em profundo agradecimento, ligado. ... Meu professor era,
portanto, Hegel, eu seu aluno; eu não nego, pelo contrário, isto eu
reconheço ainda hoje com agradecimento e alegria.’’ 3 Como
resultado desse encontro, Feuerbach troca, como expresso, a
teologia pela filosofia, e agora trata-se para ele não mais daquela
pronunciada reconciliação entre teologia e filosofia, mas da
libertação de toda a essência teológica. Assim, esclarece ele: “Eu
sabia o que eu devia e queria: não teologia, mas filosofia! Não
disparatar e vaguear, mas aprender! Não crer, mas pensar.’’ 4
No ano de 1826, Feuerbach tinha terminado seu estudo
sobre Hegel. Naquela época, valia a ele a Lógica de Hegel como
“corpus’’ e método da filosofia. Desse estudo filosófico, que
expressa e confirma a passagem de Feuerbach da teologia para a
filosofia, e, simultaneamente, anuncia também sua dúvida acerca da
filosofia hegeliana, resulta em 1828 a sua Dissertation, cuja tese
fundamental Peter Cornehl resume da seguinte maneira: “revelar a

1
Feuerbach, L. Fragmente zur Charakteristik meines philosophischen curriculum
vitae. Org. por Wener Schuffenhauer, Berlin: GW 10, 1971, p. 154-55.
2
Feuerbach, L. Ausgewählte Briefe,. Org. por W. Bolin e F. Jodl, Stuttgart: SW
XII/XIII, 1964, p. 243.
3
Feuerbach, L. Verhältnis zu Hegel. Org. por W. Bolin e F. Jodl, Stuttgart: SW IV,
1959, p. 417.
4
Id. Ibid., p. 417.
218 Eduardo Ferreira Chagas

absolutização do indivíduo no espírito da época filosófica e


teológica e, frente a isto, defender o conhecimento da ‘filosofia
especulatativa’ da unidade, universalidade e infinitude da razão - tal
como o título da obra já a formula: ‘De ratione una, universali,
infinita’.’’ 5 O ponto de partida, que serve de orientação à totalidade
desse escrito, é, com outras palavras, a oposição entre o singular
(Einzelne) (a individualidade, a sensibilidade) e o universal
(Allgemeine) (a generalidade, a razão): foi atribuído ao universal,
isto é, à razão infinita, o predomínio, pois ela é a substância
(Substanz) de todos os singulares; o individual-singular é limitado,
já que entre ele e um outro ser há sempre uma fronteira. Trata-se
aqui para Feuerbach particularmente do problema da relação entre a
universalidade e a individualidade, problema esse que Peter Cornehl
assim apresenta: “Ou o indivíduo é a verdade e substância (e, com
isto, negation) da razão universal ou é, ao contrário, a razão
universal a verdade e substância (e, com isto, negation) do
indivíduo.’’ 6 O desenvolvimento e a solução desta problemática
constituem o objetivo da Dissertation de Feuerbach, que consiste em
três partes: na primeira (§1-7), Feuerbach trata da natureza do
pensamento (die Natur des Denkens), do pensamento puro (das
reine Denken) ou da razão (die Vernunft); na segunda parte (§8-14),
ele tem como tema a consciência-de-si (das Selbstbewusstsein) ou o
pensamento, que pensa a si mesmo sem referência ao conhecimento,
e, finalmente, na última parte, §15-23, ele aborda o pensamento (das
Denken) e o conhecimento (die Erkenntis) como unidade, na qual se
encontra a razão infinita.
A Dissertation de Feuerbach parte do seguinte pressuposto:
a razão (ratio, ou seja, cogitatio cognoscens) é una, universal e
infinita (ratio enim communis sui universalis est), quer dizer, ela é a
essentia absoluta dos indivíduos, o gênero, a unidade do gênero
humano (genus humanum). Segundo Feuerbach, a filosofia vulgar

5
Cornehl, P., Feuerbach und die naturphilosophie. Zur Genese der Anthropologie
und Religionskritik des jungem Feuerbach. In: Neue Zeitschriftt für systematische
Theologie und Religionsphilophie. Berlim, 1969, v. 11, p. 42.
6
Id. Ibid., p. 43.
A razão em Feuerbach como base da unidade do homem... 219

declara, em oposição, por exemplo, ao seu pensamento, que “há


certos limites estabelecidos para a razão humana, os quais ninguém,
que tenha sua mente em sã juízo, deve transgredir’’, por isso ela “se
esforça arduamente em convencer que a verdade não pode ser
alcançada pela mente humana e que todos aqueles que se atrevem,
por razões de investigação, a ultrapassar os limites prescritos à
procura pela verdade, perdem o seu tempo num esforço inútil.’’ 7 Na
filosofia antiga, já se achavam determinadas designações para a
limitação da razão, especificadas como sentimento (Empfindung),
percepção sensível (sinnliche Wahrnehmung), opinião (doxa), nas
quais se fundamentam certezas não verdadeiras, puramente
subjetivas. Ante a esse saber subjetivo e individual, punha a antiga
filosofia o logos, o qual ela nomeava como o critério do saber
verdadeiro, universal ou divino. Heráclito, Sócrates, Platão,
Aristóteles, assim como filósofos modernos, por exemplo, Giordano
Bruno, Espinosa, Malebranche ou Hegel, falam da filosofia como
uma ciência universal ou divina e tomam a infinitude como télos do
conhecimento, já que eles renunciam, desde o princípio, a toda
finitude. É, precisamente, nesse sentido que Feuerbach, em sua
Dissertation, polemiza contra os “críticos da razão’’, os quais fazem
valer como princípio e conteúdo da razão apenas o que se poderia
conceber como convicção individual, opinião particular ou ponto de
vista privado. Diante de tal fato, Feuerbach objeta que a razão não é
mera capacidade individual ou qualidade particular do indivíduo,
como que um instrumento para poder compreender objetos infinitos;
pelo contrário, ela é em si e infinitamente a substância comum,
universal, de todos os indivíduos. Outras atividades ou forças do
espírito, como as potências, as qualidades ou capacidades dos
indivíduos isolados, são meramente determinações da própria razão.
Em oposição à idéia segundo a qual a razão é finita e individual,
demonstra Feuerbach, já na primeira parte de sua Dissertation, que
ela pertence a todo homem e, como tal, não pode ser extinta, porque
os homens, na medida em que são seres pensantes e inseparáveis do

7
Feuerbach, L. Über die eine, allgemeine, unendliche Vernunft. Org. por Werner
Schuffenhauer, Berlin: GW 1, 2000, p. 4-5.
220 Eduardo Ferreira Chagas

ato de pensar, não podem consistir fora da natureza da razão. Esta


natureza da razão (ou do pensar) é, de fato, “a forma do comum e do
universal. Quando penso, já deixo de ser indivíduo, e pensar é, por
conseguinte, o mesmo que ser universal.’’ 8 Todos os homens
coincidem nisso, a saber, que eles pensam, e o pensamento (a razão
absoluta) não é particular, mas, como expressei, geral, universal. A
razão constitui, então, a humanidade do homem, o seu gênero; ela é
uma razão comum aos homens. Feuerbach opõe à essência do
individual, que se limita ao sentimento, à sensibilidade, o
pensamento, que significa, para ele, a negação, o fim, de toda
particularidade. Com isto, deixa transparecer em seu pensamento
uma indicação para o dualismo entre a universalidade (a infinitude, a
razão) e a individualidade (a finitude, a natureza), o qual ele entende
como oposição entre o racional e o sensível. O que fundamenta a
essência da sensibilidade (Sinnlichkeit), da percepção sensível
(sinnliche Wahrnehmung), é, segundo ele, a singularidade pura, a
imediatidade, já que o homem não pode transmitir oralmente suas
emoções a outro. Na verdade, pode-se dizer a alguém: “‘Minha
cabeça dói’. ‘Este ou aquele objeto tem um sabor doce’ etc.’’ 9 ; mas
isto quer dizer apenas que se pode descrever, de facto, a um outro os
objetos que estimulam a sensibilidade, mas não o sentimento, a
sensação mesma, pois o sabor mesmo que o homem sente é inefável.
As percepções sensíveis dos objetos não são, pois, iguais e comuns,
mas se diferenciam de homem para homem e, por isso, são como
tais, nem dizíveis, nem comunicáveis. Logo que um homem tenta
comunicar suas condições sensíveis a outro, perde a sensibilidade
sua autonomia e se torna abstrata ou se transforma em conceito,
como os sentimentos interiores e espirituais, que se referem a
objetos inteligíveis, a saber, Deus, leis morais, convicções etc.
A base da comunicabilidade (Kommunikalilität), que
possibilita um entendimento dessas condições sensíveis do homem,
encontra-se, pois, não na sensibilidade, mas apenas no pensamento.
Já que a sensibilidade está caracterizada, particularmente, pela

8
Id. Ibid., p. 8-9.
9
Id. Ibid., p. 11-12.
A razão em Feuerbach como base da unidade do homem... 221

incomunicabilidade ou restringibilidade, o homem é nela e por meio


dela puramente indivíduo, isto é, remetido para si, fundado e
fechado em si mesmo. Com isto, ele não consegue superar as
limitações de sua singularidade, ou seja, de seu isolamento,
superação esta que constitui, para Feuerbach, o pressuposto para a
universalidade. Em contraposição à sua concepção madura, o jovem
Feuerbach situa a absoluta e completa comunicabilidade do homem
única e exclusivamente no pensamento, ou seja, na razão como
natureza interna e verdadeira do homem; não da natureza objetiva,
real, nem do amor, nem da religião, mas, pelo contrário, apenas da
natureza do pensar provém a superação do isolamento, da
singularidade do homem, e aqui se mostra e se realiza a mediação
entre os homens, isto é, a universalidade, na qual todos os homens,
apesar de suas diferenças individuais e qualidades particulares, são
iguais, ou melhor, semelhantes. Já que o pensamento universal é a
essência do homem e nele se manifesta a unidade do eu com o tu, do
eu com os outros, com muitos outros infinitamente, ou seja, a
unidade real do gênero humano, pode nele ser superada toda
particularidade (ou exclusividade) que ofereça resistência
(Widerstand) à união (ou associação) do homem singular com seu
próximo, com outros homens. Quando o homem sente, diz
Feuerbach, ele está isolado, mas quando ele pensa, ele “ultrapassa’’
seu eu, é universal. Por isso, o jovem Feuerbach nega, nessa época, a
frase cartesiana “cogito, ergo sum’’, para concebê-la e formulá-la da
seguinte maneira: “cogitans, ipse sum genus humanum, non-
singularis homo’’ (eu penso, logo eu sou todos os homens e não um
homem singular). 10 No pensamento, o homem não é este ou aquele,
nenhum singular, isto é, não um homem, mas pura e simplesmente,
sem limite e exceção, o homem, pensado não fora dos outros. Lá ele
é todos os homens, um com todos, precisamente porque o
pensamento (a razão) é a unidade de todos.
Feuerbach concebe, como há pouco mostrado, a comunidade
(Gemeinschaft), a comunicabilidade (Kommunikabilität) e o gênero
humano (menschliche Gattung) somente na forma do pensamento

10
Id. Ibid., p. 30-31.
222 Eduardo Ferreira Chagas

universal, no qual todo isolamento do indíviduo ou toda


particularidade individual desaparece. Como ser sensível-natural-
corporal, o homem não pode efetivar plenamente a comunidade
verdadeira e a unidade perfeita com o outro, já que ele, nesse âmbito
sensível, acha-se isolado e limitado. É evidente que se manifesta na
sensibilidade, na harmonia espiritual ou na “comunicação’’ de
sentimentos, como, por exemplo, no amor, na amizade, uma ligação
entre duas ou mais pessoas; mas o eu e o outro são aqui
diferenciáveis um do outro, como que pessoas separadas segundo o
sexo, a idade, o caráter etc. Aqui, o jovem Feuerbach concebe, pois,
a sensibilidade como o âmbito no qual os indivíduos se encontram,
sim, natural e corporalmente, mas nesse encontro sua particularidade
ou seu isolamento não pode ser superado. Nesse período de sua
juventude, Feuerbach vê, em todas as relações sensíveis, portanto,
apenas limitações, que impedem o homem de alcançar uma unidade
concreta com outros homens. Correspondendo a isto, escreve Hans-
Jürg Braun: “Homem e mulher não podem chegar pela sua
sensibilidade à realização da essência do gênero. ... Apenas quando
homem e mulher se encontram também no pensamento como seres
pensantes, realizam eles a comunidade e se tornam um.’’ 11
Enquanto o amor não vale como uma unidade perfeita, plenamente
constituída, mas apenas como “unidade sensível”, emocional-
sentimental, que não expressa nenhuma universalidade, constitui o
pensamento universal, para o jovem Feuerbach, a unidade perfeita,
absoluta, que realiza o gênero humano. Na sua nomeada
Dissertation, ele chama a atenção para o pensamento segundo o qual
o homem é, simultaneamente, ele mesmo e o outro, não um outro
determinado para si, mas um outro em geral. Assim, o pensamento
universal é, na Dissertation, o fundamento e a revelação do gênero
humano; ele acolhe, pois, em si todos os homens; é o vínculo do
homem com o homem.
Embora o homem se concentre no interior de seu
pensamento, por assim dizer como uma unidade não fora de si, mas

11
Braun, H.-J. L. Feuerbachs Lehre vom Menschen, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1971,
p. 51.
A razão em Feuerbach como base da unidade do homem... 223

sempre consigo mesmo, ele se abre simultaneamente, na medida em


que ele está colocado em conexão com seu gênero. Pensando, ele é,
afirma Feuerbach, todos os homens, ligado e em consonância com
todos. Feuerbach liga a existência do homem com a razão (com a
essência comum) para provar, com isto, o vínculo desde o princípio
entre a comunidade e a racionalidade. Da infinitude do pensamento
e da relação humana que disso resulta, segue-se que o homem está
também ligado mediante a ordem do Estado, da política e do direito,
com outros homens. Apesar disso, é necessário acentuar que o
princípio fundamental do direito reza, no entanto, o seguinte: “O que
é meu não é teu’’, e vice-versa; quer dizer, o Direito une e separa
simultaneamente os homens. Feuerbach não concebe o direito
acrítico e ingenuamente, pois nele vale o homem apenas como
indivíduo, como universalidade abstrata, não mesmo universal como
em pensamento. Enquanto a unidade do homem, nesta relação
jurídica, não está absolutamente fundada, porque o homem está
determinado nela apenas como indivíduo, isto é, de forma
puramente finita, encontra-se, então, no pensamento universal e
apenas nele a unidade essencial e absoluta do um e dos muitos,
unidade na qual se manifesta a essência do homem, de seu gênero. A
afirmação de que o indivíduo é, em stricto sensu, um, não se dá
conta de que tal unidade não representa uma unidade real, pois o
indivíduo é um entre muitos outros indivíduos e não pode, como tal,
de modo nenhum, ser concebido em comum com os outros. Ao
contrário disso, o verdadeiro um é em si um, pois seu conceito
contém nada mais do que este um mesmo. Este um é um universal
não em sua relação para com outros, mas segundo a sua própria
essência. Em certo sentido, há também nos animais uma unidade
particular, já que todo animal (seja macho ou fêmea) contém
germinalmente em si a potência para produzir um novo animal da
mesma espécie, e, assim, pode um e o mesmo animal ser igualmente
um outro ou muitos outros. Já que o animal (das Tier), porém, não
pensa, não há nele a substância racional necessária para uni-lo ao
gênero. Assim, sua unidade não persiste, não prossegue, e se
dispersa em diferentes indivíduos. Desta maneira, o animal é em si
nada mais do que um ser singular, isolado, separado
224 Eduardo Ferreira Chagas

substancialmente dos outros, sem uma relação real com sua origem.
O exemplo que Feuerbach cita é o cão (der Hund) que, como
totalidade, é do mesmo modo gênero, isto é, o animal como
totalidade no cão; mas o cão, como um animal particular, não pode
ser a essência dos demais animais, senão, fora dele, não poderia ser
nenhum outro animal e ele mesmo seria esses outros animais.
Não há a realidade do gênero nos animais em si; ela se
manifesta, pois, apenas na reprodução, porque os animais não têm
para si o gênero como objeto, isto é, como objeto da consciência. A
diferença do homem para o animal consiste nisto, a saber, que ao
homem seu gênero é objeto; por isso tem ele uma essência interna,
espiritual, que falta ao animal. Em oposição ao animal, o homem,
através da suprassunção de seu próprio ser sensível, se eleva ao
pensamento, no qual ele é “em geral ... [todos] os homens. Isto é,
todo singular compreende e abarca em si os outros ou todos os
homens, já que sabe que é homem. Pois, se eu sei que eu sou um
homem, então eu estou, certamente, consciente de mim mesmo. Na
verdade, sei que sou este singular – pois ambos não se deixam
separar –, e assim eu contenho simultaneamente, na consciência de
mim mesmo, também os outros de mim.” 12 Assim, o homem não é
um singular qualquer, como o é um ser da natureza, uma coisa
natural determinada, que não conhece a si ou não sabe nada de si. O
saber de si mesmo, como o do outro, é, então, o mesmo, e nesse
saber consiste a unidade de si e do outro. Se o homem não
contivesse simultaneamente, em seu pensamento, todos os homens,
ele não seria, segundo Feuerbach, homem, mas um ser vivo
qualquer, como um animal ou uma planta, que se apresentaria
isoladamente em sua função puramente vital, biológica, sem ralação
universal. Isto porque a natureza está submetida às sensações e
também não pensa, tem o gênero nela nenhuma existência. Não há,
por exemplo, a planta como gênero, mas apenas como ser disperso,
isto é, como uma planta singular entre muitas outras; na planta, há
apenas vida, crescimento, florescimento e alimento. Para ser gênero,
requer, em princípio, unidade, indiferencialidade de si, e, por isso,

12
Feuerbach, L., Über die eine, allgemeine, unendliche Vernunft. Op. cit., p. 23.
A razão em Feuerbach como base da unidade do homem... 225

ele não pode se dissolver no individual e no múltiplo. Enquanto falta


o gênero na natureza, no mundo animal e vegetal, estão todos os
homens pelo pensamento unidos numa unidade. Pensando, o homem
nem é um determinado este ou aquele, nem um ser próprio,
particular, mas pura e simplesmente o gênero humano, o universal.
Aqui já anuncia Feuerbach a tese principal de seu próximo escrito
Pensamentos sobre a Morte e a Imortalidade (Gedanken über Tod
und Unsterblichkeit) (1830): no pensamento, e do mesmo modo na
morte do individual, se manifestam o gênero e a absoluta igualdade
de todos os homens.
Além desse pensamento universal (da razão infinita), como
expressão do gênero humano, Feuerbach fala ainda de outro tipo de
pensamento, o pensamento limitado, abstrato (das abstrakte
Denken), que se refere unicamente a si, que é consciente apenas de
si mesmo. Na segunda parte da Dissertation (§ 8-14), ele faz,
precisamente, uma crítica a esse tipo de pensamento, entendido
como autoconsciência (Selbstbewusstsein), isto é, aquele
pensamento que pensa apenas a si mesmo e não se estende ao
conhecimento dos objetos. Este pensamento, como autoconsciência,
referido a si, que pensa a si e é recolhido em si mesmo, é o
pensamento puro, sem conhecimento do objeto, sem concretude; isto
é, tal pensamento, que opera em si, por si e para si ou em simples
unidade consigo mesmo, é pensável sem objeto. Como unidade
indeterminada, o pensamento abstrato (ou a autoconsciência) é
apenas pura forma de si mesmo, sem atributos ou qualidades, sem
relação para a diversidade e heterogeneidade dos objetos, e, por isso,
é ele, enquanto tal, individualidade carente de conteúdo. A
autoconsciência ou o pensamento abstrato, que não tem nenhuma
determinidade, é, não obstante, segundo sua forma, infinito. Como
vem o pensamento finito, porém, que pensa a si mesmo (a
autoconsciência), para a infinitude? Feuerbach esclarece tal
passagem da seguinte maneira: na medida em que a autoconsciência
renuncia ao conhecimento dos objetos e está separada de toda
determinidade, abrange ela em si mesma o infinito; como forma, ela
é sem medida e sem limite e, por isso, pode abranger em si mesma
coisas variadas, diversas e opostas. Nessa diversidade das coisas, no
226 Eduardo Ferreira Chagas

entanto, que a autoconsciência abarca, permanece ela para si mesma


e, simultaneamente, ilimitada, em concordância consigo e idêntica
apenas a si mesma. Feuerbach menciona que, “se a consciência se
tornasse também diversa com a diversidade das coisas, ela não
poderia ser mais consciente delas. É, assim, necessário que ela se
mantenha imóvel na íntegra unidade consigo. Precisamente, nessa
unidade, que é ela mesma, conecta ela as coisas, que ela contém.’’ 13
Trata-se aqui, no entanto, apenas de uma unidade formal entre a
autoconsciência e os objetos, já que a autoconsciência fica fora de
toda e qualquer matéria finita e não pode, por consegüinte, conter
nenhum outro objeto, a não ser a si mesma. Abstraída de todo
conteúdo e separada de toda determinidade, a autoconsciência põe-
se como infinita, como fundamento exclusivo da universalidade.
Disso resulta necessariamente uma inversão: em vez de se conceber
a ratio una, universali und infinita (a universalidade da razão
mesma) como a fonte, a essência e a condição do indivíduo, tornou-
se o indivíduo (ou a autoconsciência) a substância da razão, o
critério da verdade ou da falsidade ou, como na sofística, “a medida
de todas as coisas’’, ou seja, o princípio subjetivo da concepção da
totalidade do mundo. A frase de Protágoras do “homem como
medida’’ (“der Mensch als.Maß’’) vale a Feuerbach, de acordo com
seu conteúdo, como princípio inverdadeiro, porque o indivíduo per
ser (em e para si) é limitado, como tal incapaz de corresponder, em
seu ser e em seu conhecer, à verdade, à universalidade. A afirmação
do homo como mensura expressa apenas o homem singular e
empírico (homo singularis i.e. individuum), que foi pensado, no
entanto, como universal e infinito. O homo mensura é, portanto,
apenas o ponto de vista da singularidade, da subjetividade tornada
absoluta, isto é, da absolutização do indivíduo, não correspondente à
substância da razão, que diz respeito ao gênero humano. Essas
concepções, que tratam a razão como finita e o indivíduo como
infinito, fundamentam os príncipios da “filosofia da subjetividade’’,
que representa para Feuerbach o espírito do século XIX.
Feuerbach aceita, nesse contexto, a crítica de Hegel à

13
Id. Ibid., p. 43.
A razão em Feuerbach como base da unidade do homem... 227

consciência abstrata, isto é, ao subjetivismo, pois Hegel também se


propõe, por meio da razão universal, negar o sujeito singular.
Feuerbach interpreta, todavia, desde o princípio, a razão de forma
spinoziana: como a substância (Substanz), pensada no sentido de
Spinoza, é apenas uma, embora ela seja, simultaneamente, tudo, e
como Deus é uno, universal e não particular, como uma coisa
qualquer na abundância do seres singulares, assim deve ser também
a razão necessariamente una. Sua essência é a unidade, e seu
conceito exclui de si completamente, tal como a substância de
Spinoza, dois ou mais seres. A razão (Vernunft) é necessariamente a
mesma, igual, em si mesma una e infinita. Tudo deve ter seu
fundamento (Begründung) no interior da razão. Com isto, a verdade
(Wahrheit) não pode ser concebida fora da razão. A verdade não
consiste, no entanto, na unidade do pensamento e da coisa (não na
“adequatio mentis cum re’’), mas na unidade do sujeito pensante (do
sujeito que sabe) e do pensado (do objeto pensado). Feuerbach
diferencia, contudo, a autoconsciência do conhecimento (ou da
intuição cognitiva): a autoconsciência é pensamento, porém é aquele
pensamento abstrato e ilimitado, que só se refere a si mesmo,
relacionado unicamente consigo e sem determinidade; ao contrário,
o conhecimento, como um modo (Modus) determinado do
pensamento, é limitado, na medida em que ele se estende aos objetos
finitos, que são pura e simplesmente objetos pensados, objetos puros
do pensamento. Como pode, contudo, a autoconsciência vir ao
conhecimento das coisas, se ela está referida apenas a si mesma? A
resposta de Feuerbach reza assim: “Pode-se, com razão, qualificar a
consciência de gênero, porque, enquanto relação consigo mesma, é
ela uma relação primigênita [originária], de tal forma que só por ela
se pode produzir o conhecimento, e que ela se mantém tanto no
pensamento de si mesma como também no conhecimento.’’ 14
Feuerbach esclarece que essa autoconsciência como conceito
genérico, isto é, como totalidade indeterminada, é nada mais do que
forma, conceito abstrato, livre de toda a Konkretion e determinação,
já que seu conteúdo passa despercebido. Segundo a forma, o gênero

14
Id. Ibid., p. 53.
228 Eduardo Ferreira Chagas

da autoconsciência é infinito; mas na matéria, isto é, na natureza, na


qual o indivíduo, o singular, existe, o gênero é negado e
desintegrado na diversidade dos indivíduos. Resumindo, pode-se,
então, argumentar: se há na natureza o gênero como abstração da
autoconsciência, lá deixa de existir o ser singular, particular, e vice-
versa. Trata-se, aqui, correspondendo à separação, na natureza, entre
o indivíduo (o concreto) e o gênero (o abstrato), de uma diferença
entre a matéria e a forma, entre o ser e a universalidade vazia (a
autoconsciência). Na medida em que a razão suprassume em si a
separação desses momentos diferentes, livra-se ela das cadeias, dos
limites tanto da autoconsciência, como também da natureza. Para
isto é necessário realizar a passagem da autoconsciência para a razão
infinita. A autoconsciência é apenas consciente de si e se estende
unicamente para si mesma, isto é, em distância para com o outro, e,
com isto, torna-se fronteira e limite de si mesma. Ela contém, na
verdade, a forma universal do pensamento, mas apenas em relação a
si mesma, isto é, como forma geral da singularidade, na qual já há
uma dualidade, a saber, o pensamento em si, de um lado, e a
determinidade (como limitação), de outro. A forma do pensamento,
que é igual em todos os homens, não vem, pois, da autoconsciência
e não tem nela o seu lugar, mas na razão mesma, na razão objetiva.
Esta é em si totalidade, universalidade, a natureza de todos os
objetos e contém, por conseguinte, a unidade do conhecimento (do
objeto pensado) e do pensamento (do sujeito cognoscente),
simultaneamnete os momentos ativos e passivos, os momentos da
forma e da matéria. Com isto, a razão não pode, portanto, ser
reduzida ao individual, ao singular.
Como já mencionado, serve de base à Dissertation de
Feuerbach uma finalidade dupla: revelar a aparência da
subjetividade e, simultanemanete, estabelecer o domínio da razão
(Ration). Do até aqui exposto, torna-se claro que não é para se
entender a razão (Vernunft) de forma finita e individual, como uma
qualidade particular, mas, pelo contrário, como universal, comum e
una. A última parte (§15-23) desse escrito ocupa-se, por fim, com o
esclarecimento acerca da infinitude da razão (Unendlichkeit der
Vernunft). Com isto, quer Feuerbach mostrar que a essência do
A razão em Feuerbach como base da unidade do homem... 229

homem é universal, racional. Assim afirma ele: “se ... a razão não
fosse una e universal, nem poderíamos, em absoluto, sair de nós
mesmos para fora em direção a um outro, nem poderíamos nos
compreender mutualmente, nem quereríamos ou poderíamos
comunicar nossos pensamentos aos outros.’’ 15 Já que a razão
significa, portanto, essencialmente universalidade (Allgemeinheit),
infinitude (Unendlichkeit), travam os homens, através dela, relações
uns com outros e chegam, assim, a sua absoluta unidade, na qual os
homens singulares e isolados estão, não apenas segundo o conceito,
mas realmente superados e negados. Na medida em que o homem
pensa, está ele, como dito, não mais isolado, segregado dos outros,
mas, pelo contrário, aberto e em Kommunikation com os outros.
Aquelas uniões na forma do amor, da amizade etc., são apenas
associações particulares, imperfeitas e finitas, pois nelas não foi
realmente superada a condição natural da separabilidade, da
divisibilidade entre os homens. Por isso, somente no ato do
pensamento, no qual o eu e o tu não estão opostos um ao outro, pode
ser alcançado, segundo o jovem Feuerbach, a infinita, a absoluta e a
plena unidade realizada entre os homens; pois o homem é homem
apenas porque ele é um ser espiritual. O pensamento é,
precisamente, a atividade que constitui a causa e a finalidade do
espírito, e, com isto, o espírito não é anterior à sua atividade, porque
ele separado dela nada é.
Partindo desse fundamento, a vontade (der Wille) não é,
para o jovem Feuerbach, uma atividade ou um ato originário do
espírito, porque ela, na verdade, provém do pensamento. Vontade,
querer, requer determinação para pensar, por isso a vontade não tem
nenhuma primazia ante o pensamento. No fundo, o ato da vontade,
do querer, é também um pensar, mas apenas um pensamento, na
medida em que este pertence ao indivíduo e está inteiramente ligado
com este. Uma tal vontade, um tal querer, no entanto, que não se
refere ao universal, e sim ao individual, é apenas uma atividade do
pensamento sob a condição da diferença, da oposição e do limite; ao
passo que o pensamento universal é uma atividade, que permanece

15
Id. Ibid., p. 109
230 Eduardo Ferreira Chagas

completamente livre do individual, sem diferença e oposição, por


isso, ele é a essência absoluta do homem.
O que foi dito sobre a vontade (o querer) vale também para
a natureza (Natur). A concepção de natureza do jovem Feuerbach
está aqui inteiramente no sentido de Hegel, em concordância com
seu espírito, segundo o qual a natureza foi pensada como a idéia na
forma de um outro ser. Na Ciência da Lógica (Wissencschaft der
Logik) afirma Hegel que a natureza é um algo que é, que existe; mas
“algo é o que é só em seu limite.’’ Assim, “algo existe por sua vez
pelo seu limite. Na medida em que algo é o que limita, foi ele, sem
dúvida, reduzido a ser ele mesmo limitado; mas seu limite, enquanto
é um limitar do outro nele, é, por sua vez, apenas o ser do algo, ... o
ser em si do algo’’. 16 De maneira semelhante a Hegel, para quem a
natureza descansa no limite, diz Feuerbach: “Mas o limite de uma
verdadeira denominação é a particularidade [a propriedade], a
natureza, que é enraizada na coisa mesma, que a determina. Deste
modo, as qualidades da água são os limites da mesma, e se sair fora
destas, a água deixa de ser água; por conseguinte, o limite é também
aquilo pelo qual algo se diferencia e se separa de uma outra coisa.’’
“Pois, finito é, em geral, aquilo que está contido numa comunidade,
a qual, posta por cima do finito compreendido, é o ponto de
referência deste, ou, com outras palavras, o que simplesmente
consiste numa certa espécie.’’ 17 Para o jovem Feuerbach, a natureza,
o finito, é apenas possível no interior da razão universal, pois esta
compreende todas as determinações finitas. A razão é, para ele, não
o individual, o singular, mas o infinito, o universal, por isso tudo
pertence a ela. Ela é, simultaneamente, a causa e o fim do pensar e
do ser, um universal; por conseguinte, nada fora dela existe. Apenas
a razão é universal; a natureza como âmbito da diferenciabilidade
dos objetos, da sensibilidade, está limitada ao individual, ao
sensível. Desta maneira, a natureza não tem para o jovem Feuerbach

16
Hegel, G. W. F. Wissenschaft der Logik. Org. por F. Hogemann e W. Jaeschke,
Hauptwerke. Hamburg: Hauptwerke, v. 3, 1999, p. 114-15.
17
Feuerbach, L. Über die eine, allgemeine, unendliche Vernunft. Op. cit., p. 115-
17.
A razão em Feuerbach como base da unidade do homem... 231

nenhuma primazia perante o pensamento, porque ela, tal como a


vontade, é dependente da razão. A natureza real não é o ser
completo, realizado e infinito, pois em si mesma ela é a contradição,
já que ela não chega, em geral, a nenhuma verdadeira unidade, a
nenhum gênero. Por outro lado, se a razão não tivesse a natureza
contida em sua essência, não seria ela nenhuma razão universal.
Com isto, a verdadeira essência da natureza não é a natureza mesma,
mas a razão que se expressa e se afirma nela (na natureza). A
pretensão, que o jovem Feuerbach formula em sua Dissertation,
consiste, enfim, nisso, a saber, que a razão deve ser a forma
universal de contemplação das coisas, dos objetos, ou seja, a
absoluta Repräsentation dos elementos da exterioridade, da
natureza.
Embora Feurbach acentue expressamente, em seu escrito
dissertativo, sua afinidade teórica, seu parentesco espiritual com
Hegel, sua Rezeption de Hegel é uma produção e apropriação livre e
autônoma das idéias hegelianas. Para Hegel, a universalidade do
espírito se realiza na sua processualidade ou, melhor expresso, na
suprassunção (Aufhebung) das individualidades particulares e
isoladas. Em oposição à Interpertation de Feuerbach, porém, a
universalidade do espírito em Hegel significa não o gênero humano,
que se realiza na atividade do pensamento e obtém, no sentido de
uma relação humana, a unidade do eu e do tu. O espírito em si e para
si manifesta-se em Hegel, particularmente, na plenitude das formas
da história mundial. Com outras palavras: a história é a forma
própria de aparição do espírito, como que uma imagem deste
manifestada no mundo. Neste sentido, não se trata para ele, de modo
nenhum, da valorização da razão para o genus humanum, como
meio da comunicabilidade entre os homens ou como mediação da
comunidade humana, como no jovem Feuerbach, para quem o
gênero humano se realiza no pensamento como superação da
singularidade, do individual, da individualidade. De acordo com a
concepção de Feuerbach, a tarefa da filosofia consiste na
manifestação, ou seja, na secularização da unidade entre homem e
natureza na razão universal. A filosofia trabalha, como ele verifica,
desde há muitos séculos em seu aprimoramento; mas ela se insere
232 Eduardo Ferreira Chagas

sempre apenas numa particularidade ou num determinado conceito:


seja a determinidade ou o existente (Dasein) mesmo, seja a religião,
a natureza ou o eu etc., e, com isto, ela deixa sempre um outro fora
dela. Como acentua Feuerbach, deve agora, como a filosofia
hegeliana já fez, ser apresentado o todo mesmo na forma de um
todo. Para conceber a razão como fundamento da natureza e do
gênero humano, refere-se Feuerbach ao conceito hegeliano de
universalidade; mas, aqui se mostra já uma crítica a Hegel, que diz
respeito às idéias puras, que, para se efetivarem na realidade,
precisam ainda de uma posterior realização. Embora Feuerbach, em
sua Dissertation, não tenha ainda superado a Argumentation de
Hegel, encontra-se aí, como observa Reitemeyer, um novo acento,
que ele põe com esta pretensão, a saber: ser um “forte contrapeso à
filosofia hegeliana do espírito absoluto”. 18 Também Cornehl indiga
o seguinte: “Feuerbach repete aqui [na Dissertation] – se bem que
ainda bem simples – a crítica ao jovem Hegel do período de Berna,
mas não ao programa do Hegel maduro, o qual ele acredita
herdar”. 19 O desenvolvimento espiritual de Feuerbach segue, em sua
Dissertation, para dizer com as palavras de Cornehl, um “zigue-
zague” permanente, na medida em que Feuerbach, por um lado, se
refere a Hegel e expõe a filosofia hegeliana como apologeta, mas,
por outro lado, se põe como livre, como que um “crítico” da
filosofia de Hegel. Nas referências ao sistema de Hegel, está em
jogo para Feurbach o conceito de razão, entendido como crítica ao
subjetivismo, ao individual absolutizado, e, ao mesmo tempo, como
universalidade (como fundamento substancial), que inclui em si
mesma o homem e a natureza.

18
Reitemeyer, Ursula, Philosophie der Leiblichkeit. Frankfurt am Main 1988, p.
20-21.
19
Cornehl, Peter, Feuerbach e a Filosofia da Natureza. Op. cit., p. 49.
TRADUÇÃO

Sobre os diferentes métodos de traduzir *

Friedrich E. D. Schleiermacher
Tradução de Celso Braida **

O fato, que um discurso em uma língua seja traduzido em uma


outra, apresenta-se a nós sob as mais variadas formas por toda a
parte. Por um lado, desse modo podem entrar em contato homens
geograficamente muito afastados, e podem ser transpostas em uma
língua obras de uma outra extinta já há muitos séculos; por outro,
não precisamos sair do domínio de uma língua para encontrar o
mesmo fenômeno. Pois, não apenas os dialetos dos diferentes ramos
de um povo e os diferentes desenvolvimentos de uma mesma língua
ou dialeto, em diferentes séculos, são já em um sentido estrito
diferentes linguagens, e que não raro necessitam de uma completa
interpretação entre si; mesmo contemporâneos não separados pelo
dialeto, mas de diferentes classes sociais, que estejam pouco unidos
pelas relações, distanciam-se em sua formação, seguidamente
apenas podem compreenderem-se por uma semelhante mediação.
Sim, não somos nós freqüentemente obrigados a previamente

*
O texto Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens, redigido no período
em que Schleiermacher lecionava em Berlim, foi originalmente escrito como base
para uma conferência proferida em 24 de junho de 1813, na Academia Real de
Ciências. A presente tradução baseia-se na publicação inclusa na Friedrich
Schleiermacher’s sämmtliche Werke, Dritte Abteilung: Zur Philosophie, Zweiter
Bd., Berlin, Reimer, 1838, S. 207-245.
**
Professor do Departamento de Filosofia da UFSC. E-mail: braida@cfh.ufsc.br.
Tradução recebida em 30.09.2007, aprovada em 20.11.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 233-265.


234 Friedrich E. D. Schleiermacher

traduzir a fala de um outro que é de nossa mesma classe, mas de


sensibilidade e ânimo diferentes? A saber, quando nós sentimos que
as mesmas palavras em nossa boca teriam um sentido inteiramente
diferente ou, ao menos, um conteúdo aqui mais forte, ali mais fraco,
que na dele e que, se quiséssemos expressar do nosso jeito o mesmo
que ele disse, nos serviríamos de palavras e locuções completamente
diferentes. Na medida em que determinamos mais precisamente este
sentimento, trazendo-o ao pensamento, parece que traduzimos. As
nossas próprias palavras, às vezes, temos que traduzir após algum
tempo, se quisermos assimilá-las apropriadamente outra vez. E esta
prática não é usada apenas para transplantar em solo estrangeiro o
que uma língua produziu no domínio da ciência e das artes
discursivas, e assim aumentando o círculo de atuação destes
produtos do espírito, mas também esta prática é usada no comércio
entre diferentes povos e nas relações diplomáticas de governos
independentes entre si, quando estes apenas podem falar com o
outro em sua própria língua, se eles, sem servirem-se de um língua
morta, querem manter-se rigorosamente em uma igualdade.
Todavia, naturalmente, não queremos incluir nessa nossa
consideração tudo o que há nesse vasto domínio. Aquela
necessidade de traduzir também no interior da própria língua e
dialeto, mais ou menos uma exigência momentânea da mente, está
também em seu efeito limitada ao instante, para exigir uma outra
orientação que aquela do sentimento; e se houvesse a necessidade de
dar regras para isso, elas poderiam ser apenas aquelas que mantêm o
homem em uma disposição moral pura para os sentidos
permanecerem abertos também para o que se é menos afim.
Deixemos isto de lado e fiquemos a partir daqui com a tradução de
uma língua estranha para a nossa. Também aqui nós chegamos a
dois domínios: com certeza não inteiramente determinados, como é
raro acontecer, mas apenas com limites imprecisos, porém, com
claridade suficiente se enxergam os pontos extremos. O intérprete
efetivamente exerce o seu ofício no domínio da vida comercial, o
tradutor genuíno preferencialmente no domínio da ciência e da arte.
Se esta definição das palavras parecer arbitrária, uma vez que
Sobre os diferentes métodos de traduzir 235

habitualmente se entende por interpretação mais a oral e por


tradução a escrita, que ela seja aceita pela comodidade para os
presentes propósitos e mais ainda porque as duas determinações não
estão assim tão distantes. A escrita é própria dos domínios da arte e
da ciência, através da qual suas obras tornam-se duradouras; e a
interpretação de boca à boca das produções científicas ou artísticas
seria tão inútil quanto parece ser impossível. Para o comércio, ao
contrário, a escrita é apenas um meio mecânico; as transações orais
são aqui o primário, e toda interpretação escrita propriamente apenas
pode ser vista como registro de uma oral.
Em espírito e natureza, estão muito próximos desses
domínios outros dois, os quais, pela grande variedade de objetos a
eles pertencentes, já configuram uma transposição, um para o
domínio da arte e o outro para o da ciência. Pois, cada transação que
acontece pela interpretação é, por um lado, um fato cujo desenrolar-
se apreende-se em duas línguas. Mas, mesmo a tradução de escritos
puramente narrativos ou descritivos, que apenas traduz o desenrolar-
se de um fato para uma outra língua, pode ainda conter em si muito
da atividade do intérprete. Quanto menos o autor se sobressai no
escrito original, quanto mais ele coloque-se apenas como órgão
receptor do objeto e siga a ordem do tempo e do espaço, tanto mais a
transposição se aproximará da mera interpretação. O tradutor de
artigos jornalísticos e descrições de viagem comuns, assim, está
muito próximo do intérprete, e pode tornar-se risível se o seu
trabalho tenha maiores pretensões e que ele deseje ser visto como
artista. Ao contrário, quanto mais haja prevalecido na exposição o
modo de ver e combinar próprio do autor, quanto mais ele siga uma
ordem livremente escolhida ou determinada pela impressão, tanto
mais opera já o seu trabalho no domínio superior da arte, e também
o tradutor deve então aplicar outras forças e habilidades para realizar
o seu trabalho e estar familiarizado com seu escritor e sua língua
num sentido diverso daquele do intérprete. Por outro lado, em regra,
toda negociação em que se interpreta é a estipulação de um caso
particular conforme relações jurídicas determinadas; a tradução é
feita apenas para os participantes, os quais conhecem bem estas
236 Friedrich E. D. Schleiermacher

relações, e cuja expressão das mesmas está determinada em ambas


as línguas, ou por leis, ou pelo uso e esclarecimentos recíprocos.
Porém, é diferente com negociações em que, embora muitas vezes
sejam semelhantes a estas na forma, novas relações jurídicas são
determinadas. Quanto menos estas possam ser, por sua vez,
consideradas como particulares de um universal suficientemente
conhecido, tanto mais conhecimento científico e circunspeção
requer a sua redação, e tanto mais necessita o tradutor para o seu
trabalho de conhecimento científico do assunto e da língua. Desse
modo, por esta dupla escala eleva-se o tradutor cada vez mais sobre
o intérprete, até o seu domínio mais próprio, a saber, o das
produções da arte e da ciência, nos quais, por um lado, a capacidade
combinatória livre própria do autor e, por outro, o espírito da língua
com o seu sistema de intuições e matizações das disposições
mentais, são tudo; o objeto não domina de modo algum, mas é
dominado pelo pensamento e pela mente, mais ainda, com
freqüência apenas surge pelo discurso e apenas existe com ele.
Em que, porém, funda-se esta importante diferença, que se
percebe já no interior das fronteiras, e que se mostra claramente nos
pontos mais afastados? Na vida comercial trata-se na maior parte de
objetos visíveis ou, ao menos, que são bem determinados; todas as
negociações têm um certo caráter aritmético ou geométrico, por toda
parte número e medida podem ajudar; e mesmo naqueles conceitos
que, segundo os antigos, admitem o mais e o menos e são
designados por meio de uma hierarquia de palavras, que na vida
ordinária diminuem e crescem em conteúdo indeterminado,
assumem por meio de lei e costume um uso fixo para cada palavra.
Assim, se o falante não dissimula indeterminações ocultas com a
intenção de enganar, ou erra por inadvertência, torna-se
compreensível para todos que sejam versados no assunto e na
língua, e apenas ocorrem diferenças insignificantes no uso da língua.
Mesmo assim, pode ocorrer algumas vezes uma dúvida, acerca de
qual expressão de uma língua corresponde a da outra língua, que não
pode ser resolvida imediatamente. Por isso, nesse domínio a
tradução é quase um processo mecânico que qualquer um com um
Sobre os diferentes métodos de traduzir 237

conhecimento mediano de ambas as línguas pode realizar, e, quando


se evita abertamente o falso, ocorrem poucas diferenças entre o pior
e o melhor. Porém, nas produções da arte e da ciência, quando se
deve transplantá-las de uma língua para outra, há que se considerar
duas coisas que alteram completamente a situação. A saber, se nas
duas línguas cada palavra de uma correspondesse exatamente a uma
palavra da outra, expressando os mesmos conceitos com as mesmas
extensões; se suas flexões representassem as mesmas relações, e
seus modos de articulação coincidissem, de tal modo que as línguas
fossem diferentes apenas para o ouvido; então, também no domínio
da arte e da ciência, toda tradução, na medida em que por ela se
deve comunicar o conhecimento do conteúdo de um discurso ou
escrito, seria também puramente mecânica como na vida comercial;
e se poderia dizer de toda tradução, com exceção dos efeitos do
acento e do ritmo, que o leitor estrangeiro estaria na mesma situação
frente ao autor e sua obra que o nativo. Porém, com todas as línguas
que não são tão próximas, que pudessem ser consideradas como
simples dialetos, a situação é precisamente a oposta, e quanto mais
distantes estão uma da outra quanto à origem e ao tempo, tanto mais
nenhuma palavra em uma língua corresponde exatamente a uma da
outra, e nenhuma flexão de uma apanha exatamente a mesma
variedade de relações como uma da outra. Uma vez que esta
irracionalidade, como eu a denomino, penetra em todos os
elementos das duas línguas, ela deve afetar também o domínio das
relações sociais. Mas, é claro que aí sua pressão é pequena e, assim,
como que não tem nenhum influxo. Todas as palavras que
expressam objetos e atividades, sobre os quais importa, são
igualmente calibradas e, se uma sutileza vazia e demasiado
cautelosa quisesse ainda precaver-se contra uma possível
desigualdade do valor das palavras, a coisa mesma igualaria tudo
imediatamente. Bem diferente é a situação no domínio da arte e da
ciência, e onde quer que predomine o pensamento, que se identifica
com o discurso, e não a coisa, para a qual a palavra é apenas um
signo arbitrário, embora talvez firmemente estabelecido. Então,
quão infinitamente difícil e complicado torna-se aí o trabalho, que
238 Friedrich E. D. Schleiermacher

conhecimento específico e que domínio de ambas as línguas


pressupõe! E quantas vezes os mais entendidos no assunto e
conhecedores da língua se opõem, convencidos de que é impossível
encontrar uma expressão equivalente, quando eles querem dizer
apenas qual é a mais aproximada. Isto vale tanto para as expressões
vivas e pitorescas das obras poéticas quanto para as mais abstratas
que designam o mais intrínseco e universal das coisas da ciência
mais elevada.
O segundo ponto em que a tradução genuína difere
inteiramente da simples interpretação é o seguinte. Em toda parte,
onde o discurso não está inteiramente ligado a objetos visíveis ou
fatos externos, os quais devem apenas ser proferidos, ou seja, onde o
falante pensa mais ou menos espontaneamente, onde ele quer se
expressar, o falante se encontra em dupla relação com a língua, e seu
discurso agora apenas pode ser corretamente compreendido na
medida em que esta relação seja corretamente apreendida. Por um
lado, cada homem está sob o poder da língua que ele fala; ele e seu
pensamento são um produto dela. Ele não pode pensar com total
determinação nada que esteja fora dos limites da sua língua. A
configuração de seus conceitos, o tipo e os limites de suas
articulações estão previamente traçados para ele pela língua em que
ele nasceu e foi educado; o entendimento e a fantasia estão ligados
por ela. Por outro lado, porém, cada homem de livre pensar e
espiritualmente espontâneo molda também a língua. Pois, como,
senão por meio dessas influências, a língua teria se formado e
crescido desde seu estado primitivo e rude até a formação completa
na ciência e na arte? Nesse sentido, portanto, é a força viva do
indivíduo que produz novas formas na matéria maleável da língua,
originalmente apenas com o propósito momentâneo de compartilhar
uma consciência transitória, das quais, porém, ora mais ora menos,
algumas permanecem na língua e, recolhidas por outros, disseminam
seu efeito formador. Pode-se dizer que alguém merece ser escutado,
para além de seu domínio singular e imediato, apenas na medida em
que influi assim em sua língua. Todo discurso que pode ser
produzido por mil órgãos sempre do mesmo modo logo desaparece
Sobre os diferentes métodos de traduzir 239

necessariamente. Somente pode e deve durar mais aquele que por si


mesmo forma um novo momento na vida da língua. Por isso, todo
discurso livre e superior quer ser compreendido de dois modos; por
um lado, a partir do espírito da língua de cujos elementos ele é
composto, como uma exposição amarrada e condicionada por este
espírito, por este produzida e vivificada no falante; por outro lado,
quer ser compreendido a partir do ânimo do falante como sua ação,
como algo que apenas a partir de seu modo de ser poderia surgir
assim e ser esclarecido. Sim, qualquer discurso desse tipo apenas é
compreendido, no sentido mais forte da palavra, quando estas duas
relações são ambas apreendidas e em sua verdadeira proporção
recíproca, de tal modo que se sabe qual delas predomina no todo ou
nas partes individuais. Compreende-se o discurso como ação do
falante apenas quando, ao mesmo tempo, se percebe onde e como o
poder da língua o capturou, onde o efeito desse poder enrodilhou os
raios do pensamento, onde e como a errante fantasia ficou presa em
suas formas. Também, compreende-se o discurso como produto da
língua e como manifestação de seu espírito apenas quando, na
medida em que, por exemplo, se sinta que assim apenas um grego
poderia pensar e falar, que assim apenas esta língua poderia influir
no espírito humano, e se sinta também que assim apenas este
homem poderia pensar e falar em grego, que assim apenas ele
poderia manejar e configurar a língua, que se revela assim apenas a
sua posse viva da riqueza lingüística, apenas um sentido regente da
medida e da eufonia, apenas a sua capacidade de pensar e imaginar.
Agora, se a compreensão nesse domínio já é difícil mesmo na
mesma língua, e implica uma exata e profunda penetração no
espírito da língua e na singularidade do escritor: como não seria
muito mais uma arte superior quando se trata das produções em uma
língua estranha e distante! Com certeza, então, quem adquiriu esta
arte da compreensão por meio de esforços solícitos com a língua e
por meio do conhecimento rigoroso da vida histórica completa do
povo, e por meio da re-atualização vivíssima de cada obra e de seu
autor, esse, com certeza, e também apenas esse, pode desejar abrir
240 Friedrich E. D. Schleiermacher

ao seu povo e contemporâneos a mesma compreensão das obras


primas da arte e da ciência.
Porém, a cautela deve aumentar quando ele quiser iniciar a
tarefa, quando ele quiser determinar com exatidão os seus fins e
considerar os seus meios. Deveria ele se propor a estabelecer, entre
dois homens tão separados um do outro como o são os que falam a
sua própria língua e desconhecem a do escritor original, e o escritor
mesmo, uma relação tão imediata como aquela do escritor e seu
leitor original? Ou, ainda que ele queira oferecer aos seus leitores
apenas o mesmo entendimento e o mesmo prazer que ele
experimenta, que são a mescla da mostra dos vestígios do esforço e
do sentimento do estranho: como ele pode mostrar este e esconder
aquele com os meios de que dispõe? Para que os seus leitores
compreendam eles devem apreender o espírito da língua na qual o
autor era natural, eles têm que poder intuir a sua maneira singular de
pensar e de sentir; e para alcançar estas duas coisas, ele não pode
senão oferecer a sua própria língua, que nunca coincide
adequadamente com aquela, e a si mesmo, enquanto conhece o seu
escritor mais ou menos claramente, e admira e aprova mais ou
menos. A tradução não aparece, assim considerada, como um
empreendimento insensato?
Por isso, na incerteza de alcançar este fim, ou, se for
preferível, antes que isso fosse percebido claramente, inventaram-se,
não pelo singular sentido da arte e da língua, mas pela necessidade
espiritual de um lado e, por outro, pela habilidade mental, duas
outras maneiras de estabelecer conhecimento com as obras de
línguas estranhas, em que algumas daquelas dificuldades são
suprimidas violentamente, outras resolvidas inteligentemente, mas
abandonando inteiramente a idéia de tradução aqui proposta; estas
duas maneiras são a paráfrase e a imitação.
A paráfrase quer dominar a irracionalidade da língua, mas
apenas de um modo mecânico. Ela significa que mesmo que eu não
encontre uma palavra que corresponda a uma da língua original, eu
devo buscar me aproximar o mais possível de seu valor por meio do
acréscimo de determinações delimitadoras e ampliadoras. Desse
Sobre os diferentes métodos de traduzir 241

modo, ela trabalha entre o muito inoportuno e o pouco penoso por


meio de uma acumulação de detalhes soltos. Ela pode, talvez, repor
desse modo o conteúdo com uma acuidade limitada, mas perde
inteiramente a impressão; pois, o discurso vivo está
irrecuperavelmente morto, na medida em que todos percebem que
tal discurso não poderia originalmente provir assim de um espírito
humano. O parafraseador opera com os elementos de ambas as
línguas, como se eles fossem símbolos matemáticos que, por adição
e subtração, poderiam reduzir-se a um valor igual e, com essa
operação, nem o espírito da língua usada nem o da língua original
pode se manifestar. Se, além disso, a paráfrase pretenda indicar
psicologicamente os vestígios das ligações do pensamento, ali onde
elas são obscuras e deixam-se perder, através da incisão de frases:
então, ela aspira ao mesmo tempo, quando se trata de composições
difíceis, ocupar o lugar do comentário, e quer ainda menos se
adequar ao conceito de tradução.
A imitação, ao contrário, curva-se diante da irracionalidade
das línguas; confessa que não se pode reproduzir em outra língua a
imagem de uma obra de arte do discurso em que cada uma de suas
partes corresponda exatamente a cada uma das partes do original,
mas, que devido à diferença das línguas, a que estão ligadas tantas
outras diferenças, não resta senão elaborar uma cópia, um todo
composto de partes visivelmente diferentes das partes do original,
mas que no efeito se aproxime do outro, tanto quanto a diferença de
material permita. Uma tal imitação não é mais aquela obra mesma,
por isso também o espírito da língua original não mais é exposto e
atuante; mais ainda, a novidade que ela produziu é substituída por
outra coisa; uma obra desse tipo apenas deve produzir o mais
possível para seus leitores, levando-se em conta a diferença da
língua, dos costumes e da cultura, o mesmo que a original para os
seus leitores; ao querer salvar a igualdade da impressão, perde-se a
identidade da obra. O imitador também não pretende por em contato
o escritor e o leitor da imitação, porque ele não mantém nenhuma
relação imediata entre eles, mas apenas pretende produzir no último
242 Friedrich E. D. Schleiermacher

uma impressão semelhante, como aquela recebida da obra original


pelos seus contemporâneos.
A paráfrase é mais utilizada no domínio das ciências; a
imitação mais no das belas artes; e assim como todos admitem que
uma obra de arte perde seu tom, seu brilho e todo seu conteúdo
artístico quando parafraseada, também é certo que ninguém ainda
cometeu a loucura de tentar uma imitação da uma obra-mestra da
ciência tratando livremente seu conteúdo. Nenhum desses dois
procedimentos pode satisfazer aquele que, compenetrado com o
valor de uma obra-mestra, queira estender seu círculo de atuação aos
que falam sua língua e que pense no conceito rigoroso de tradução.
Ambos, pelo seu afastamento deste conceito, não podem ser aqui
considerados mais de perto; estão aqui apenas como marcos
delimitadores para o domínio que propriamente nos interessa.
Mas, agora, por que caminhos deve enveredar o verdadeiro
tradutor que queira efetivamente aproximar estas duas pessoas tão
separadas, seu escritor e seu leitor, e propiciar a este último, sem
obrigá-lo a sair do círculo de sua língua materna, uma compreensão
correta e completa e o gozo do primeiro? No meu juízo, há apenas
dois. Ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranqüilo possível e
faz com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais
tranqüilo possível o leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro.
Ambos são tão completamente diferentes que um deles tem que ser
seguido com o maior rigor, pois, qualquer mistura produz
necessariamente um resultado muito insatisfatório, e é de temer-se
que o encontro do escritor e do leitor falhe inteiramente. A diferença
entre ambos os métodos, onde reside a sua relação mútua, será
mostrada a seguir. Porque, no primeiro caso, o tradutor se esforça
por substituir com seu trabalho o conhecimento da língua original,
do qual o leitor carece. A mesma imagem, a mesma impressão que
ele, com seu conhecimento da língua original, alcançou da obra,
agora busca comunicá-la aos leitores, movendo-os, por conseguinte,
até o lugar que ele ocupa e que propriamente lhe é estranho. Mas, se
a tradução quer fazer, por exemplo, que um autor latino fale como,
se fosse alemão, haveria falado e escrito para alemães, então, não
Sobre os diferentes métodos de traduzir 243

apenas o autor move-se até o lugar do tradutor, pois, tampouco para


este fala em alemão o autor, senão latim; antes coloca-o diretamente
no mundo dos leitores alemães e o faz semelhante a eles; e este é
precisamente o outro caso. A primeira tradução será perfeita em seu
gênero quando se pode dizer que, em havendo o autor aprendido
alemão tão bem como o tradutor latim, ele teria traduzido a sua obra,
originalmente redigida em latim, tal como realmente o fez o
tradutor. A outra, por sua vez, ao não mostrar o autor ele mesmo
como ele teria traduzido, mas sim como ele teria escrito
originalmente em alemão e, enquanto alemão, dificilmente poderia
ter outro critério de perfeição que não fosse o de poder assegurar
que, se os leitores alemães em conjunto se deixassem transformar
em conhecedores e contemporâneos do autor, a obra mesma teria
chegado a ser para eles exatamente o mesmo que é agora a tradução,
ao haver-se transformado o autor em alemão. Seguem este método,
evidentemente, quantos utilizam a fórmula de que se deve traduzir
um autor como ele mesmo haveria escrito em alemão.
Esta confrontação expõe, sem dúvida, quão diferente tem
que ser o procedimento em cada caso, e como, se no mesmo
trabalho se quisesse alternar os métodos, tudo resultaria
incompreensível e inadequado. Porém, desejo afirmar também que,
fora destes dois métodos, não pode haver outro que se proponha um
fim determinado. Acontece que não há mais procedimentos
possíveis. As duas partes separadas ou bem tem que ir encontrar-se
em um ponto médio, e este sempre será o do tradutor, ou bem uma
tem que se adaptar inteiramente à outra e, então, cai no domínio da
tradução um único gênero e do outro apenas apareceria se, em nosso
caso, os leitores alemães chegassem a dominar de todo a língua
latina ou, mais precisamente, se esta chegasse a se apoderar deles
por completo até os transformar.
Assim, pois, tudo o que se disse sobre traduções segundo a
letra ou segundo o espírito, traduções fiéis ou traduções livres, e
tantas outras expressões que pudessem alegar o direito de vigência,
ainda que se trate de métodos diversos, têm que poder reduzir-se aos
dois mencionados. E se o que se quer é mostrar vícios e virtudes,
244 Friedrich E. D. Schleiermacher

resultará que a fidelidade e a conformidade ao sentido, ou a


literalidade e a liberdade excessivas de um método, serão diferentes
das do outro. Minha intenção é, por conseguinte, prescindir de todas
as questões particulares acerca deste objeto, já tratadas pelos
especialistas, e considerar apenas os traços mais gerais desses
métodos para que se possa ver mais facilmente em que consistem as
vantagens e as dificuldades de cada um deles e, portanto, em que
sentido alcança melhor um e outro o fim da tradução e quais são os
limites dentro dos quais podem aplicar-se cada um deles.
Desde um ponto de vista tão geral, haveria que se
empreender duas tarefas, das quais este ensaio constitui somente a
introdução. Poderíamos esboçar regras para cada um dos dois
métodos, levando-se em conta os diversos gêneros de discurso e
poderíamos comparar os mais destacados esforços feitos de acordo
com uma ou outra opinião, julgá-los, e assim esclarecer mais ainda o
tema. Ambas as coisas eu tenho que deixar para outros ou, ao
menos, para outra ocasião.
O método que aspira produzir no leitor, mediante a tradução,
a mesma impressão que, como alemão, ele teria da leitura da obra na
língua original, tem que determinar antes de tudo que classe de
compreensão da língua original deseja de certo modo imitar. Pois,
há uma que não deve e outra que não pode ser imitada pela tradução.
A primeira é uma compreensão escolar que se abre, mas com
esforço e quase com repugnância, por meio de cada frase e por isso
nunca chega à clara visão do todo, à compreensão viva do conjunto.
Enquanto a parte culta de um povo não tenha, em geral, nenhuma
experiência de uma penetração mais profunda em línguas
estrangeiras, oxalá o gênio guia dos que avançaram mais os livre de
empreender tais traduções. Pois, se pretendessem erigir como regra a
sua própria compreensão, eles mesmos seriam mal entendidos e
conseguiriam pouco; e se sua tradução tivesse que representar a
compreensão corrente, dever-se-ia relegar o quanto antes ao
esquecimento uma obra tão tosca. Assim, pois, em tais
circunstâncias, convém primeiro despertar e afinar o gosto do
estranho mediante imitações livres e preparar com paráfrases uma
Sobre os diferentes métodos de traduzir 245

compreensão mais geral, preparando assim o caminho para futuras


traduções 1 .
Porém, há outra compreensão que nenhum tradutor pode
imitar. Pensemos nesses homens fortes que a natureza produz às
vezes, como que para mostrar que também pode destruir em casos
isolados as barreiras do nacional; homens que sentem tão singular
afinidade com uma existência estranha que se situam inteiramente,
vital e ideologicamente, dentro de outra língua e de suas produções
e, ao entregarem-se por completo ao estudo de um mundo
estrangeiro, deixam que se tornem de todo estranhos seu próprio
mundo e sua própria língua; ou bem esses homens estão como que
destinados a representar em toda a sua amplitude a capacidade
lingüística, para quem todas as línguas que pode alcançar são de
todo equivalentes e as percebem como feitas a sua medida: estes
homens se situam em um ponto em que o valor da tradução se reduz
a zero. Com efeito, como em sua compreensão de obras estrangeiras
já não se dá o menor influxo da língua materna e a consciência de
sua compreensão não lhes chega de nenhum modo nesta língua,
senão que a adquirem direta e espontaneamente na do original,
tampouco sentem a menor incomensurabilidade entre seu
pensamento e a língua em que lêem. Por isso, nenhuma tradução
pode alcançar nem expor a compreensão que eles obtêm. E, do
mesmo modo que traduzir, para eles, seria verter água no mar ou no

1
Esta era ainda, no conjunto, a situação dos alemães naquele tempo em que,
segundo Goethe (A. m. Leben, III, 111), as traduções em prosa, inclusive de obras
poéticas – e tais traduções terão que ser sempre mais ou menos parafrásticas –,
eram mais proveitosas para a formação da juventude e nisto estou totalmente de
acordo com ele; pois, em tempos como aquele, da poesia estrangeira apenas a
invenção poderia tornar-se inteligível, enquanto que os valores métricos e
musicais não poderiam ainda ser apreciados. Porém, não posso crer que ainda hoje
o Homero de Voss e o Shakeaspeare de Schlegel somente devam servir para o
entretenimento mútuo dos eruditos; como tampouco que ainda hoje possa uma
tradução de Homero em prosa ser conveniente para a autêntica formação do gosto
e promoção da poesia; senão para as crianças, uma refundição como a de Becker,
e para os adultos, jovens e velhos, uma tradução métrica, como, certamente, talvez
ainda não a tenhamos. Entre ambas, eu não saberia colocar nenhuma outra coisa
interessante.
246 Friedrich E. D. Schleiermacher

vinho, assim também costumam eles, desde sua altura, sorrir


compassivamente, e não sem razão, ao ver as tentativas que se
fazem neste domínio. Pois, na verdade, se o público para o qual se
traduz fosse igual a eles, seria inútil tal esforço.
A tradução se ordena, pois, a um estado que se acha a meio
caminho entre estes dois e o tradutor tem que se colocar como meta
proporcionar ao seu leitor uma imagem e um prazer semelhantes aos
que a leitura da obra na língua original busca o homem culto, a
quem, no melhor sentido dessas palavras, costumamos chamar
aficionado e entendido, que conhece suficientemente a língua
estrangeira sem que deixe de lhe parecer estranha e já não necessita,
como os alunos, repensar na língua materna cada parte antes de
compreender o todo, mas, inclusive quando mais sem travas desfruta
das belezas de uma obra, siga notando sempre a diferença entre a
língua em que está escrita e a sua língua materna. Certo é que, ainda
depois de fixar estes pontos, o círculo de ação e a delimitação desta
maneira de traduzir seguem nos parecendo bastante imprecisos. O
único que vemos é que, assim como a inclinação a traduzir somente
pode nascer quando entre a parte culta do povo se há difundido certa
capacidade de trato com línguas estrangeiras, assim também a arte
somente pode crescer e apontar cada vez mais alto, à medida em que
o interesse e o conhecimento de obras estrangeiras se estenda e se
eleve entre aquela parte do povo que exercitou e educou seu ouvido
sem fazer da aprendizagem de línguas seu verdadeiro ofício. Mas,
ao mesmo tempo, não podemos ocultar que, quanto mais sensíveis
sejam os leitores a tais traduções, tanto mais se acumulam também
as dificuldades da tarefa, sobretudo se se leva em conta os produtos
mais peculiares das artes e das ciências de um povo, que certamente
são para o tradutor os objetos mais importantes. E, sendo a língua
um ente histórico, não pode haver autêntica sensibilidade para ela
sem sensibilidade para a sua história. As línguas não se inventam, e
trabalhar nelas ou sobre elas de modo puramente arbitrário é sempre
um disparate; as línguas se descobrem pouco a pouco, e a ciência e a
arte são as forças que promovem e completam este descobrimento.
Todo espírito raro, em que uma parte das intuições do povo se
Sobre os diferentes métodos de traduzir 247

configuram de modo peculiar em uma de ambas as formas, trabalha


e atua dentro da língua em tal sentido e, também, suas obras têm que
conter, por conseguinte, uma parte da história de sua língua.
Isto causa ao tradutor de obras científicas grandes
dificuldades, inclusive com freqüência insuperáveis; pois, para
quem, provido de conhecimentos suficientes, lê na língua original
uma excelente obra deste tipo, não escapa facilmente o influxo
exercido por ela sobre a língua. Observa que palavras, que
construções se mostram ali talvez em seu primeiro brilho de
novidade; vê como se deslocam na língua através das exigências
próprias deste espírito e da força que o caracteriza, e esta observação
determina em grande medida a impressão que recebe. O tradutor
deve, pois, transmitir também isto a seus leitores; do contrário,
perderiam eles uma parte, seguidamente muito importante, do que
lhes está destinado. Mas, como se pode conseguir isto? Já no
particular, quantas vezes a uma palavra nova da língua original
corresponde na nossa precisamente uma palavra velha e gasta, de
modo que o tradutor, se quer mostrar também então como atua a
obra original modelando a língua, teria que colocar na passagem um
conteúdo estranho e, portanto, passar ao terreno da imitação!
Quantas vezes, ainda que possa reproduzir o novo com o novo,
resultará que a palavra mais semelhante por sua composição e
procedência não é a que melhor reproduz o sentido, e terá que
suscitar outras conotações, se não quer destruir a coerência
imediata! Terá que se consolar pensando que em outras passagens,
em que o autor usou palavras velhas e conhecidas, pode se
distanciar, alcançando assim no conjunto o que não pode conseguir
em cada caso. Mas, se a formação de palavras de um mestre é
seguida em sua totalidade, ao uso que faz de vocábulos e radicais
afins, em grandes volumes de escritos relacionados entre si, como
quer o tradutor ter êxito ali, quando o sistema de conceitos e de
signos é em sua língua totalmente diverso dos da língua original, e
os radicais, em vez de cobrirem-se paralelamente, antes se
entrecruzam em direções as mais diversas? Por isso, será impossível
que a língua do tradutor tenha sempre a mesma coerência que a de
248 Friedrich E. D. Schleiermacher

seu autor. Aqui, por conseguinte, terá que se contentar com alcançar
em casos isolados o que não pode alcançar em conjunto. Terá que
estipular com seus leitores que, ao ler uma obra, não pensem nas
outras com igual rigor que os leitores originais, senão que antes as
considerem em separado; mais ainda, que inclusive devem o elogiar
quando, dentro de cada obra, e, muitas vezes, ainda que apenas seja
em partes da mesma, consegue manter para os temas de maior
importância tal uniformidade que uma palavra não receba uma
multiplicidade de suplentes totalmente diferentes, nem reine na
tradução uma variedade confusa quando a língua original conserva
na expressão uma afinidade firme e constante.
Estas dificuldades se apresentam sobretudo no domínio da
ciência. Há outras, e não menores, no da poesia e também no da
prosa artística, para a qual tem também especial e superior
importância o elemento musical da língua que se manifesta no ritmo
e na entonação. Todo o mundo nota que no espírito mais fino, o
encanto supremo da arte em suas obras mais acabadas, se perde se
aquele elemento musical é descuidado ou destruído. Por
conseguinte, o que ao leitor sensível da obra original impressiona
neste aspecto como característico, intencionado e eficaz quanto ao
tom e a disposição de ânimo, e como decisivo para o
acompanhamento rítmico ou musical do discurso, deve também
transmiti-lo o tradutor. Mas, quantas vezes – mais ainda, é já quase
um milagre não ter que dizer “sempre” – a fidelidade rítmica e
melódica estará em discordância irreconciliável com a fidelidade
dialética e gramatical! E, quão difícil é, na vacilação acerca do que
se deve sacrificar aqui ou ali, com freqüência não se tome
precisamente a decisão errada! Quão difícil, inclusive, é que o
tradutor, quando há ocasião para isto, restitua equitativamente e de
verdade o que aqui teve que tirar a cada parte e não caia, ainda que
inconscientemente, em obstinada unilateralidade por inclinar-se
mais seu gosto pessoal a um elemento artístico que a outro! Com
efeito, se nas obras de arte prefere a matéria ética e seu tratamento,
perceberá menos os estragos que fez ao elemento métrico e musical
da forma e, em vez de pensar em repará-los, se contentará com uma
Sobre os diferentes métodos de traduzir 249

translação cada vez mais cômoda e mais próxima à paráfrase. Mas,


se acontece que o tradutor é músico ou metrificador, postergará o
elemento lógico para se apoderar somente do musical; e, ao enredar-
se mais e mais nesta unilateralidade, trabalhará cada vez mais
insatisfatoriamente e, se se compara sua translação com a obra
original em conjunto, ver-se-á que, sem dar-se conta, cada vez se
aproxima mais daquela insuficiência escolar que perde o todo para
salvar o detalhe; pois, se, graças à semelhança material do tom e do
ritmo, o que na língua é fácil e natural se reproduz na outra com
expressões duras e chocantes, a impressão do conjunto tem que ser
totalmente diferente.
Se o tradutor atenta para sua relação com a língua em que
escreve e a relação de sua tradução com as outras obras, no entanto,
apresentam-se outras dificuldades. Excetuando-se esses mestres
admiráveis que se movem com igual leveza em várias línguas, aos
quais inclusive uma língua aprendida chega a lhes ser mais natural
que a materna, para quem, como já dissemos, a tradução carece de
sentido, todos os demais homens, por mais fácil que resulte a leitura
em uma língua estrangeira, resta sempre ante ela a sensação de algo
estranho. Como fará, então, o tradutor para que esta mesma sensação
de encontrar-se diante de algo estrangeiro passe também a seus
leitores, a quem apresenta a tradução em sua língua materna? Dir-se-
á, sem dúvida, que faz já muito que se fechou a chave para este
enigma, a que com freqüência se deu entre nós uma solução talvez
demasiada feliz; com efeito, quanto mais se aproxima a tradução dos
giros do original, tanto mais estranha será a impressão que o leitor
recebe. Naturalmente; e é bastante fácil sorrir, em geral, diante deste
procedimento. Mas, se não se quer alcançar esta satisfação a um
preço demasiado baixo, se não se quer colocar no mesmo nível o
mais perfeito e o mais pobre e defeituoso, terá que se admitir que
este método de tradução exige inevitavelmente da língua uma
atitude que não somente não é cotidiana, senão que, além disso, abre
o flanco para a censura de não ser espontânea e acomodar-se mais a
uma semelhança exótica. E é preciso confessar que fazer isto com
arte e com medida, sem prejuízo próprio e sem dano à língua, talvez
250 Friedrich E. D. Schleiermacher

seja a maior dificuldade que tem que vencer nosso tradutor. A tarefa
aparece como o mais assombroso estado de degradação em que pode
colocar-se um mau escritor. Quem não deseja apresentar sempre sua
língua materna com a beleza mais castiça que possa se dar em cada
gênero? Quem não prefere engendrar filhos que mostrem
genuinamente a linhagem paterna, ao invés de mestiços? Quem se
aplicará com gosto a executar em público movimentos menos soltos
e elegantes do que sem dúvida poderia e, pelo menos às vezes,
parecer rude e travado, a fim de parecer ao leitor bastante estranho
para que este não perca de vista as circunstâncias? Quem admitirá de
boa vontade que o considerem torpe, enquanto se esforça por
conservar frente a língua estranha toda a proximidade que tolera à
própria, e que se lhe censure como aos pais que entregam seus filhos
a treinadores, porque, em vez de exercitar a sua língua materna em
uma ginástica apropriada, trata de acostumá-la a contorções
estranhas e anti-naturais? Quem, afinal, permitirá de bom grado que
precisamente os mais entendidos e os melhores mestres lhe
dediquem o sorriso mais compassivo e digam que não entenderiam
seu trabalhoso e precipitado alemão sem recorrer ao latim e ao
grego?
Estas são as renúncias que nosso tradutor há que se impor
necessariamente; estes os perigos a que se expõe se, ao esforçar-se
por manter exótico o tom da língua, não respeita uma finíssima raia,
e aos que nem ainda assim escapará nunca de todo, porque cada um
traça para si essa raia de maneira muito distinta. Se, por outra parte,
pensa no inevitável influxo do costume, pode chegar a temer que
também em suas produções livres e originais se depreenda desde a
tradução mais de um elemento impróprio e rude, e se lhe embote um
pouco o delicado sentido que percebe o bom estado natural da
língua. E, se pensa, além disso, no grande exército de imitadores, e
na preguiça e na mediocridade reinantes no público escritor, tem que
se enterrar ao ver quanto relaxamento e irregularidade, de quanta
verdadeira torpeza e rigidez, de quantos danos de toda índole
inferidos à língua terá que se sentir em parte responsável; pois, os
Sobre os diferentes métodos de traduzir 251

melhores e os piores serão quase os únicos que não tratarão de tirar


falso proveito de seus esforços.
Esta queixa, que semelhante maneira de traduzir tem que
prejudicar desde dentro a pureza da língua e seu tranqüilo
desenvolvimento, se ouve com freqüência. Porém, se no momento
queremos calá-las com o conselho frouxo de que, sem dúvida,
haverá vantagens que compensam estes danos e que, pois todo bem
leva consigo um mal, a sabedoria consiste precisamente em alcançar
o mais possível do primeiro e receber o menos possível do segundo:
isto é o que resulta, em todo caso, da difícil tarefa de querer refletir
o estranho na língua materna. Em primeiro lugar, que este método
de traduzir não pode prosperar igualmente em todas as línguas,
senão que tão somente nas que estão livres das ataduras demasiado
apertadas de uma expressão clássica, fora da qual tudo é reprovável.
Essas línguas restringidas podem buscar a ampliação de seu
território fazendo falar por estrangeiros a quem não lhes basta sua
língua materna; sem dúvida serão muito aptas para isso; podem
apropriar-se de obras estrangeiras por meio de imitações e talvez de
traduções do outro tipo; mas, desta maneira têm que deixar para as
línguas mais livres, que toleram melhor desvios e novidades, de cuja
acumulação pode surgir, em determinadas circunstâncias, um caráter
determinado. Segue-se, também, com bastante claridade que esta
maneira de traduzir não tem nenhum valor se em uma língua apenas
se pratica isolada e casualmente. Pois, está claro que não se alcança
este fim simplesmente soprando o hálito estrangeiro sobre o leitor;
senão que se este há de receber uma idéia, ainda que remota, da
língua original e do que a ela deve a obra, e assim há de diminuir em
certo modo o fato de que não a entenda, não basta que ele
experimente a confusa impressão de que o que ele lê não soa de todo
à indígena, senão que tem que lhe soar como algo determinado e
diferente, o qual apenas é possível onde consegue estabelecer
comparações massivas. Se leu algo que sabe traduzido, e traduzido
deste modo, de outras línguas modernas, e algo também das antigas,
sem dúvida se desenvolverá nele certo ouvido para distinguir o
antigo do moderno. Mas, tem que haver lido já muito mais para
252 Friedrich E. D. Schleiermacher

poder distinguir a origem grega da latina, ou a espanhola da italiana.


E, sem dúvida, inclusive dificilmente se alcançará com isto o fim
mais alto; senão que o leitor da tradução somente se equiparará ao
melhor leitor da obra original quando for capaz de vislumbrar e
compreender paulatinamente com precisão, junto com o espírito da
língua, o espírito próprio do autor tal como se manifesta na obra. O
único órgão para isto é sem dúvida o talento da intuição individual;
mas, aqui precisamente é imprescindível uma massa de comparações
muito maior ainda. E estas não se dão se em uma língua apenas de
vez em quando se traduzem obras de mestres em gêneros isolados.
Desse modo, inclusive os leitores mais cultos apenas podem
conseguir, por meio da tradução, um conhecimento sumamente
imperfeito do estranho; e que possam elevar-se até um verdadeiro
juízo, tanto da tradução como do original, não há nem como pensá-
lo. Por isso, esta maneira de traduzir requer absolutamente uma
atuação em massa, um transplante de literaturas inteiras a uma
língua e, portanto, somente tem sentido e valor para um povo
decididamente inclinado a assimilar o estranho. Os trabalhos
isolados deste gênero somente têm valor como precursores para o
desenvolvimento e a formação de um interesse mais geral por esse
procedimento. Se não suscitam este interesse, tropeçam em algo que
lhes será contrário no espírito da língua e de seu tempo; e, então,
somente podem aparecer como tentativas falhadas e seu êxito,
inclusive isoladamente, será pouco ou nenhum. Porém, ainda que a
tarefa vá adiante, não se pode esperar facilmente que um trabalho
desta índole, por excelente que seja, consiga a aprovação geral.
Diante das muitas precauções que há que se tomar e dificuldades a
vencer, tem que se desenvolver diferentes opiniões sobre que
aspectos da tarefa devem ser postos em relevo e quais atenuados.
Assim, se formarão, de certo modo, diversas escolas entre os
mestres e diferentes partidos no público que os segue; e, ainda que
sempre está na base o mesmo método, poderá haver
simultaneamente diferentes traduções de uma mesma obra
concebidas desde pontos de vista diferentes, das quais nem sequer
poderia se dizer que uma seja no conjunto superior ou menos
Sobre os diferentes métodos de traduzir 253

perfeita, senão que apenas algumas partes estarão melhor realizadas


em uma e outras partes na outra, e unicamente todas juntas e
relacionadas entre si, ao fazer uma mais apoio nesta e outra em
noutra a aproximação à língua original, cumprirão de todo a tarefa,
pois, cada uma por si mesma nunca terá mais que um valor
condicionado e subjetivo.
Estas são as dificuldades que enfrenta este método de
traduzir e as imperfeições inerentes à sua natureza. Porém,
reconhecidas estas, contudo, há que se valorizar a tarefa em si e não
se pode lhe negar o mérito. Este se baseia em duas condições: que a
compreensão de obras estrangeiras seja uma situação conhecida e
desejada, e que se conceda certa flexibilidade à língua nacional
mesma. Quando tais condições se cumprem, esta maneira de traduzir
chega a ser um fenômeno natural, intervindo no processo total da
cultura e, ao alcançar um valor determinado, proporciona, por sua
vez, um prazer seguro.
O que diremos do método oposto, que, sem exigir de seu
leitor nenhum trabalho nem fadiga, quer por em sua presença,
diretamente e como que por encanto, o autor estrangeiro, e mostrar a
obra tal como seria se o autor mesmo a tivesse escrito originalmente
na língua do leitor? Não poucas vezes se há apresentado esta
exigência como a única que poderia se fazer a um verdadeiro
tradutor, e como muito mais elevada e perfeita que a outra;
inclusive, fizeram-se tentativas isoladas, ou talvez obras mestras que
indubitavelmente se haviam fixado esta meta. Vejamos, pois, o que
há nisso e se não conviria, talvez, que este procedimento, até agora
indiscutivelmente menos praticado, se tornasse mais freqüente e
eliminasse o outro arriscado e em muitos pontos insuficiente.
O que se vê de imediato é que a língua do tradutor não tem
nada a temer deste procedimento. A sua primeira regra deve ser não
se permitir, pela relação de seu trabalho com uma língua estrangeira,
nada que em sua própria língua não se permita também a qualquer
escrito original do mesmo gênero. Mais ainda, o tradutor está tão
obrigado como qualquer outro a procurar ao menos com igual
cuidado a pureza e a perfeição da língua, a esforçar-se por conseguir
254 Friedrich E. D. Schleiermacher

a mesma agilidade e naturalidade de estilo que honram a seu escritor


na língua original. Também é certo que, se queremos fazer com que
nossos compatriotas vejam claramente o que um escritor foi para sua
língua, não podemos propor nenhuma fórmula melhor que o
apresentar falando como temos que pensar que haveria falado na
nossa, sobretudo, se o grau de evolução em que ele falou sua língua
tem semelhança com aquele em que precisamente se encontra a
nossa. Podemos, de certo modo, pensar como teria falado Tácito se
houvesse sido alemão, ou, mais exatamente, como falaria um
alemão que fosse para nossa língua o que foi Tácito para a sua; feliz
daquele que o pense tão vivamente que o possa fazer falar
realmente! Porém, que isto possa acontecer, fazendo-se dizer o
mesmo que o Tácito romano disse em latim, é já outra questão, a
qual não é fácil dar uma resposta afirmativa. Pois, uma coisa é
compreender bem e expor de algum modo o influxo que um homem
exerceu sobre sua língua, e outra muito diferente é querer saber que
giro haviam tomado seus pensamentos e a expressão destes
pensamentos, se tivesse tido o costume de pensar e se expressar
originalmente em outra língua! Quem está persuadido de que,
essencial e intimamente, o pensamento e a expressão se identificam,
e nesta persuasão se funda, certamente, toda a arte da compreensão
do discurso e, por conseguinte, também toda tradução, poderia
querer separar de sua língua nativa uma pessoa e pensar que esta, ou
inclusive apenas um de seus raciocínios, pode chegar a ser
exatamente igual em duas línguas? Ou, ainda admitindo que de certo
modo seja diferente, pode pretender analisar o discurso até os seus
últimos elementos, isolar a participação nele da língua e, por um
novo processo semelhante aos da química, fazer que o mais íntimo
dele se combine com a estrutura e a força de outra língua? Pois,
evidentemente, para levar a cabo esta tarefa, teria que eliminar com
precisão tudo o que na obra escrita de um homem seja efeito,
inclusive remotíssimo, de qualquer coisa que desde sua infância
tenha falado ou ouvido em sua língua materna; logo, por assim
dizer, alcançar a singularidade de seu modo de pensar, em sua
relação com um objeto determinado, separar tudo o que teria sido
Sobre os diferentes métodos de traduzir 255

influência de tudo o que, desde o começo de sua vida ou desde seu


primeiro contato com a língua estrangeira, tivesse falado ou ouvido
nesta língua, até adquirir a faculdade de pensar e escrever
originalmente nela. Isso não será possível até que se consiga
sintetizar produtos orgânicos mediante um processo químico
artificial. Mais ainda, pode-se dizer que a meta de traduzir tal como
o autor mesmo teria escrito originalmente na língua da tradução não
é apenas inatingível, senão que também é nula e vã em si mesma;
pois, quem reconhece a força modeladora da língua e como ela se
identifica com a singularidade do povo, tem que confessar que
precisamente nos mais destacados é onde mais contribui a língua em
configurar todo o seu saber e também a possibilidade de o expor,
que, portanto, ninguém está unido a sua língua apenas mecânica e
externamente como que por correias, e com a facilidade com que se
solta uma parelha e atrela outra, também um pensamento alguém
poderia à vontade atrelar a uma outra língua, senão que cada um
produz originalmente apenas em sua língua materna e, portanto, nem
sequer pode colocar-se a questão de como haveria escrito suas obras
em outra língua. Contra isto, sem dúvida, qualquer um apontará dois
casos bastante freqüentes. Em primeiro lugar, é notório que houve
em outros tempos, não apenas exceções individuais, pois assim
ainda continua ocorrendo, mas também em grande escala, uma
destreza para escrever e inclusive filosofar e cultivar a poesia
originalmente em línguas que não eram a nativa. Por que, então,
para obter uma regra tanto mais segura, não há que se estender
mentalmente esta destreza a todo escritor que alguém queira
traduzir? Seguramente, porque tal destreza apenas se dá quando, na
língua nativa, ou não pode em absoluto dizer-se o mesmo, ou ao
menos não pode dizer ele mesmo. Se nos remontamos aos tempos
em que as línguas românicas começavam a se formar, quem pode
dizer qual língua era então a nativa para os que viviam naqueles
países? E quem poderá negar que para os que então cultivavam as
ciências foi o latim mais língua materna que o vulgar? Mas, isto vai
muito mais longe para determinadas exigências e atividades do
espírito. Enquanto a língua materna não está ainda madura para elas,
256 Friedrich E. D. Schleiermacher

continua sendo parcialmente materna a língua desde a qual se


comunicaram a um povo nascente aquelas tendências do espírito.
Grotius e Leibnitz não podiam, ou ao menos não sem ser totalmente
diferentes do que foram, filosofar em alemão ou holandês. Mais
ainda, inclusive quando aquela fonte está já inteiramente seca, e o
broto completamente separado de sua antiga raiz, quem não seja
pessoalmente ao mesmo tempo criador de língua e revolucionário,
terá que ainda recorrer muitas vezes, voluntariamente ou por razões
secundárias, a uma língua estrangeira. Ao nosso grande Rei, todos
os pensamentos mais finos e elevados lhe chegaram por uma língua
estranha que ele havia assimilado, para este campo, de modo mais
íntimo. O que ele filosofou e poetou em francês, ele era incapaz de
filosofar e poetar em alemão. Nós devemos lastimar que a grande
predileção pela Inglaterra, que dominava uma parte de sua família,
não pode direcioná-lo a desde a infância assimilar a língua inglesa,
cuja última época de ouro então florecia, e que é muito mais
próxima à alemã. Porém, é lícito acreditar que, se houvesse
desfrutado de uma educação rigorosamente científica, ele teria
preferido filosofar e poetar em latim antes que em francês. Isto
depende, pois, de certas condições e não pode qualquer um produzir
em qualquer língua, senão em uma determinada, e somente aquilo
que não poderia produzir em sua língua materna; logo, não se pode
utilizar como prova a favor de um método de traduzir, o qual quer
mostrar como teria escrito alguém em outra língua o que realmente
escreveu na sua.
No segundo caso, porém, o ler e escrever originalmente em
línguas estrangeiras, parece mais favorável a este método. Pois,
quem vai negar a nossos homens cosmopolitas e da corte que as
coisas amáveis que pronunciam em alguma língua estrangeira as
pensam diretamente nessa mesma língua, sem haver traduzido-as,
quiçá em seu interior, do nosso pobre alemão? E assim como lhes é
glorioso poder dizer estas doçuras e belezas com igual perfeição em
muitas línguas, sem dúvida também as pensam com a mesma
facilidade em todas e, além disso, cada um sabe muito bem, também
dos outros, como haveria dito em italiano precisamente o que acaba
Sobre os diferentes métodos de traduzir 257

de dizer em francês. Certamente, porém, estes discursos não


procedem do domínio em que os pensamentos brotam com a força
de raiz profunda de uma língua própria, senão que são como brotos
que um homem engenhoso faz crescer, sem terra alguma, sobre um
pano branco. Estes discursos não constituem nem a sagrada
seriedade da língua nem seu belo e bem medido jogo; senão que,
como os povos se entremesclam nestes tempos de uma maneira
antes pouco conhecida, resulta que, onde quer que haja mercado, e
estas são as conversações de mercado, sejam de caráter político ou
literário, ou social, e não pertencem verdadeiramente ao domínio da
tradução, mas apenas ao do intérprete. E mesmo quando, como às
vezes acontece, são reunidos em um conjunto maior e tornam-se um
escrito, então, estes escritos, que são simples jogos da vida
superficial e elegante, sem revelar nenhuma profundidade da
existência nem conservar nenhuma peculiaridade do povo, podem
traduzir-se segundo esta regra; mas, também apenas estes, porque
somente eles poderiam ter sido redigidos originalmente com igual
perfeição em outra língua. E esta regra não pode estender-se mais, a
não ser também aos acessos e portais de obras mais profundas e
dominantes que, muito freqüentemente, foram construídas no pleno
campo da vida social e elegante. Pois, quanto mais caracterizados
estão os diferentes pensamentos de uma obra e sua concatenação
pela peculiaridade do povo, e talvez também pelo caráter de um
tempo há muito transcorrido, tanto mais perde esta regra seu
significado. Pois, ainda sendo verdade que em alguns aspectos
somente pelo conhecimento de várias línguas chega o homem a ser
culto em certo sentido e um cidadão do mundo, assim temos que
confessar que, tal como não consideramos legítimo o
cosmopolitismo que em momentos importantes sufoca o amor à
pátria, assim, relativamente às línguas tampouco é adequado e
verdadeiramente formador um amor universal que, para o uso vivo e
mais elevado, quer equiparar à língua pátria qualquer outra, antiga
ou moderna. Como a uma pátria, o homem tem que se resolver a
pertencer também a uma língua ou a outra; do contrário, andará
indeciso em uma posição intermédia desagradável. Todavia, é justo
258 Friedrich E. D. Schleiermacher

que ainda hoje entre nós se siga escrevendo oficialmente em latim,


para manter viva a consciência de que esta foi a língua materna
científica e litúrgica de nossos antepassados; é saudável que siga
sendo assim também no domínio da ciência comum européia, para
facilitar seu intercâmbio; mas, ainda nesse caso, somente se terá
êxito na medida em que, para tal exposição, o objeto seja tudo e o
particular modo de ver e combinar pouco. O mesmo é o caso com as
línguas românicas. Quem, obrigado por seu cargo, escreve em uma
dessas línguas, sem dúvida observará que seus pensamentos no
começo da concepção são alemães, mas bem cedo, enquanto ainda o
embrião está se formando, começa a traduzi-los; e aquele que por
amor a uma ciência se impõe este sacrifício, somente se livrará das
travas, sem traduzir secretamente, quando se sentir inteiramente
dominado pelo objeto. Certamente, há também uma afecção livre
para escrever em latim ou em românico, e se com isto se pensa a
sério produzir em uma língua estrangeira com igual perfeição e
originalidade que na própria: sem vacilar declararia eu tal afecção
arte perversa e mágica, como o reduplicar-se, tentando assim não
apenas burlar as leis naturais como também perturbar os outros.
Porém, não é bem assim, antes esta afecção é somente um fino jogo
mímico com o qual alguém passa o tempo agradavelmente nos
vestíbulos da ciência e da arte. A produção em língua estranha não é
original, apenas a rememoração de um escritor determinado ou do
estilo de certa época, a qual representa algo assim como uma pessoa
genérica, que é para a alma quase como uma imagem viva, que, ao
ser tomada por modelo, orienta e determina a produção. Por isso,
também, raras vezes surge por esta via algo que, com exceção da
exatidão mímica, tenha verdadeiro valor; e se pode desfrutar tanto
mais inocentemente desta sofisticada mostra de habilidade artística
porque sempre transparece com bastante claridade a pessoa
representada. Mas, se alguém, contra natureza e costume, tenha se
convertido formalmente em exilado da língua materna e tenha se
entregue a outra: então, talvez não seja afetada e fingida burla se
assegura que já realmente não pode mover-se na primeira; mas, é
apenas uma comprovação, que ele deve a si mesmo, que sua
Sobre os diferentes métodos de traduzir 259

natureza é verdadeiramente um prodígio contrário a toda ordem e a


toda regra, e uma tranqüilização para os outros, que ele pelo menos
não se duplica como um fantasma.
Nos demoramos obviamente em demasia no estranho, como
se estivéssemos falando da escrita em línguas estrangeiras e não da
tradução de línguas estrangeiras. As coisas são diferentes, porém.
Quando não seja possível escrever originalmente em uma língua
estranha algo que mereça e ao mesmo tempo necessite da tradução,
considerada como arte, ou quando isto constitua ao menos uma
exceção rara e grandiosa: então, não se pode ditar para a tradução a
regra de que deve pensar como haveria escrito o autor mesmo
exatamente na língua do tradutor; pois, não há suficientes exemplos
de autores bilíngües para se retirar uma analogia que o tradutor
pudesse seguir, senão que este, segundo se diz, em toda obra que
não se pareça com a conversação ligeira, ou ao estilo comercial,
estará quase por completo abandonado à sua imaginação. Mais
ainda, o que se responderia se, a um tradutor que diz ao leitor, Aqui
te apresento o livro tal como o seu autor o teria escrito se o tivesse
escrito em alemão, o leitor contestasse, Eu estou tão agradecido
como se você me tivesse apresentado o retrato do homem tal como
pareceria se sua mãe o tivesse engendrado com outro pai? Pois, se
das obras, que em um sentido mais elevado, pertencem à ciência e à
arte, o espírito peculiar do autor é a mãe, sua língua pátria é o pai.
Tanto um artifício como o outro pretendem intuições misteriosas
que ninguém tem e apenas como jogo se pode desfrutar de um tão
inocentemente quanto do outro.
Até que ponto se reduz a aplicabilidade deste método e
como no domínio da tradução chega a ser quase nula, o melhor
modo de comprová-lo é perceber quão insuperáveis são as
dificuldades com as quais tropeça em alguns ramos da ciência e da
arte. Se, já no uso da vida corrente, é preciso admitir que em uma
língua há poucas palavras a que corresponda exatamente outra
palavra de qualquer outra língua, de modo que esta possa ser usada
em todos os casos em que se usa aquela e, nas mesmas articulações,
produzam ambas sempre o mesmo efeito, isto se aplica mais ainda a
260 Friedrich E. D. Schleiermacher

todos os conceitos quanto mais se aproxime do filosófico seu


conteúdo e, portanto, em grau último, à filosofia autêntica. Aqui,
mais que em nenhum outro domínio, cada língua contém, apesar das
diversas opiniões coexistentes ou sucessivas, um sistema de
conceitos que, precisamente porque se tocam, unem e completam na
mesma língua, constituem um todo a cujas distintas partes não
corresponde nenhuma do sistema de outras línguas, exceto Deus e
ser, o substantivo e o verbo primitivos. Pois, até o simplesmente
universal, apesar de encontrar-se fora do domínio da particularidade,
é iluminado e colorido por ela. Nesse sistema da língua tem que se
desenvolver a sabedoria de cada um. Cada um constrói com o que
está disponível e ajuda a trazer à luz o que, sem estar disponível
ainda, está já pré-formado. Apenas assim tem vida a sabedoria do
indivíduo e pode governar eficazmente sua existência, a qual
integra-se inteiramente nessa língua. Portanto, se o tradutor de um
filósofo não quer se decidir por acomodar a língua da tradução, na
medida do possível, à língua do original, para fazer entrever no
possível o sistema de conceitos estabelecido nesta; se prefere fazer
falar o seu escritor como se houvesse formado os pensamentos e o
discurso originalmente em outra língua, que outra coisa pode fazer,
dada a dessemelhança dos elementos de ambas as línguas, senão ou
parafrasear – com o que não alcança seu objetivo, pois uma
paráfrase nunca parece nem pode parecer algo originalmente
produzido na mesma língua –, ou então terá que adaptar toda a
sabedoria e a ciência de seu autor ao sistema conceitual da outra
língua, transformando assim todas e cada uma das partes e, então, já
não se consegue ver que limites se pode colocar para a
arbitrariedade mais selvagem. Sim, deve-se dizer, quem tem um
mínimo de respeito aos esforços e desenvolvimentos filosóficos não
pode se entregar a um tão solto jogo.
Platão que me desculpe, se do filósofo passo ao
comediógrafo. Este gênero artístico, no que se refere à língua, é o
mais próximo ao terreno da conversação social. A inteira
representação vive nos costumes da época e do povo, os quais, por
sua vez, se refletem mais vivamente na língua. A ligeireza e a
Sobre os diferentes métodos de traduzir 261

naturalidade na graça são suas primeiras virtudes; e, precisamente


por isso, as dificuldades da tradução segundo o método que
acabamos de considerar são aqui enormes. Pois, toda aproximação a
uma língua estrangeira menospreza aquelas virtudes da declamação.
E, se o tradutor quer fazer falar um autor de obras cênicas como se
este houvesse escrito originalmente na língua da tradução, terá
muitas coisas que nem sequer poderá fazer expressar, pois, não são
nativas deste povo e, por isso, tampouco têm na língua algum signo.
O tradutor deve aqui ou bem cortar inteiramente, e assim destruir a
força e a forma do conjunto, ou tem que colocar em seu lugar outra
coisa. Desse modo, portanto, nesse domínio, seguir completamente
esta fórmula conduz evidentemente à simples imitação, ou a uma
mescla ainda mais chocante e confusa de tradução e imitação, que
torna o leitor como que uma bola rebatendo-se entre o seu mundo e
o estranho, entre a invenção e graça do autor e as do tradutor, com o
que aquele não pode experimentar nenhum prazer genuíno e
termina, sem remédio, com tontura e cansaço redobrados. O tradutor
que segue o outro método, ao contrário, não é tentado por esses
deslocamentos arbitrários, porque seu leitor deve ter sempre
presente que o autor viveu em outro mundo e escreveu em outra
língua. Ele apenas tem de atender à arte, sem dúvida difícil, de
suprir o conhecimento deste mundo estranho de maneira mais rápida
e conveniente, e deixar que em toda parte transpareça a grande
leveza e naturalidade do original. Estes dois exemplos, tomados dos
mais opostos extremos da ciência e da arte, mostram bem quão
difícil é conseguir o autêntico fim de toda tradução, a saber, o gozo
autêntico das obras estrangeiras, com um método que a todo custo
quer insuflar na obra traduzida o espírito de uma língua que lhe é
estranha. Acrescenta-se a isto ainda que toda língua tem sua
singularidade nos ritmos da prosa tanto quanto nos da poesia e que,
se há de fingir-se que o autor podia ter escrito na língua do tradutor,
terá que se o apresentar como seguindo também os ritmos desta
língua, com o que sua obra se desfigura ainda mais e limita-se mais
ainda o conhecimento de sua singularidade proporcionado pela
tradução.
262 Friedrich E. D. Schleiermacher

De fato, esta ficção, unicamente sobre a qual se funda a


teoria da tradução ora em consideração, influi mais ainda na
finalidade dessa atividade. A tradução desde o primeiro ponto de
vista é algo necessário para um povo do qual apenas uma pequena
parte pode adquirir conhecimento suficiente de outras línguas, mas
uma parte maior tem a sensibilidade para o prazer de obras
estrangeiras. Se esta parte pudesse se transformar na primeira,
aquela tradução resultaria inútil e dificilmente alguém tomaria para
si tarefa tão ingrata. Não acontece o mesmo com o último tipo. Este
não tem nada a ver com a necessidade, antes é mais bem o fruto da
cobiça e da arrogância. As línguas estrangeiras podem estar já
completamente difundidas e o acesso às suas obras mais sublimes
aberto a todo aquele que fosse capaz de gozá-las; seguiria sendo
possível uma curiosa tarefa que reuniria um auditório tanto mais
numeroso e desejoso, se alguém prometesse apresentar uma obra de
Cícero ou de Platão tal qual estes autores teriam escritos agora
diretamente em alemão. E se alguém chegasse ao ponto de fazer isto
não apenas na própria língua, mas também em língua estrangeira,
ele seria evidentemente o mestre supremo na difícil e quase
impossível arte de resolver os espíritos das línguas um no outro.
Porém, logo se vê que, a rigor, isto não seria traduzir e sua
finalidade não seria tampouco o gozo mais autêntico possível das
obras mesmas; antes, se converteria cada vez mais em uma imitação
e apenas poderia gozar bem tal obra de arte ou habilidade quem já,
sem isto, conhecesse a tais escritores diretamente. E o fim
verdadeiro apenas poderia ser, em particular, por de manifesto como
certas expressões e combinações de diferentes línguas estão em
igual relação com um caráter determinado e, no conjunto, ilustrar a
língua com o espírito peculiar de um mestre estrangeiro, mas depois
de separá-lo e desligá-lo por completo de sua língua. Agora, como
aquele não é mais que um hábil e artificial jogo, e este descansa em
uma ficção quase impossível, se compreende que esta maneira de
traduzir apenas se pratique em tentativas muito raras que, além do
mais, mostram com suficiente claridade que, em geral, não se pode
proceder deste modo.
Sobre os diferentes métodos de traduzir 263

Isto explica também que apenas grandes mestres, a quem


lhes é permitido coisas extraordinárias, possam trabalhar com este
método; e com razão apenas aqueles que cumpriram já seus
verdadeiros deveres para com o mundo e por isso agora podem
entregar-se a um jogo incitante e um tanto perigoso. Mas, também se
compreende tanto mais facilmente que os mestres que se sentem
autorizados a tentar algo semelhante olhem com certa piedade a
atividade daqueles outros tradutores. Pois, eles pensam que ser os
únicos que verdadeiramente praticam a arte bela e livre, enquanto
que aqueles lhes parecem estar muito mais próximo do intérprete,
pois também servem à necessidade, ainda que esta seja um pouco
mais elevada. E os julgam dignos de pena porque gastam muito mais
arte e esforço do que seria razoável para um ofício subalterno e
ingrato. Por isso, também estão sempre dispostos a aconselhar que,
em vez de fazer semelhantes traduções, seria melhor ajudar-se no
possível com paráfrases, como costumam os intérpretes em casos
difíceis e discutíveis.
Como, então? Devemos compartilhar esta opinião e seguir
este conselho? Os antigos, evidentemente, traduziram pouco naquele
sentido estrito, e também a maioria dos povos modernos,
intimidados pelas dificuldades da verdadeira tradução, contentam-se
em geral com a imitação e a paráfrase. Quem pretenderá afirmar que
alguma vez se traduziu algo para o francês seja das línguas antigas
seja das germânicas? Mas, nós alemães, por mais atenção que se dê
a este conselho, não o seguiríamos. Uma necessidade interna, na
qual se expressa claramente uma vocação peculiar de nosso povo,
nos impulsionou em massa para a tradução; não podemos retroceder
e temos que seguir adiante. Do mesmo modo que, por acaso tivesse
sido preciso trazer e cultivar aqui muitas plantas estrangeiras para
que nosso solo se fizesse mais rico e fecundo, e nosso clima mais
agradável e suave, assim também sentimos que nossa língua, porque
nós mesmos, em razão do pesadume nórdico, a movimentamos
pouco, apenas pode florescer e desenvolver-se plenamente sua
própria força por meio dos mais variados contatos com o
estrangeiro. E com isto vem coincidir, sem dúvida, o fato de que
264 Friedrich E. D. Schleiermacher

nosso povo, por sua atenção ao estrangeiro e por sua natureza


mediadora, parece estar destinado a reunir em sua língua, junto com
os próprios, todos os tesouros da ciência e da arte alheios, como em
um grande conjunto histórico que se guarda no centro e coração da
Europa para que, com a ajuda de nossa língua, qualquer um possa
gozar, com a pureza e perfeição possível a um estranho, a beleza
produzida pelos tempos mais diversos. Esta parece ser, com efeito, a
verdadeira finalidade histórica da tradução em grande escala, tal
como se pratica entre nós. Mas, neste tipo de tradução apenas pode
aplicar-se o método considerado no início. E a arte tem que
aprender, no possível, a vencer suas dificuldades, que não
dissimulamos. Um bom começo foi feito, mas ainda falta o mais
importante. Também aqui tem que precederem muitos ensaios e
exercícios antes de se alcançarem algumas obras primorosas; e há
coisas que brilham no começo, mas logo outras melhores as
superam. Pode-se ver em muitos exemplos em quão grande medida
artistas individuais venceram já em parte as dificuldades e em parte
as evitaram de maneira feliz.
E, ainda que também conhecedores medíocres trabalhem
nesse campo, não devemos temer de seus esforços danos terríveis
para nossa língua. Pois, em primeiro lugar, deve-se ter presente que
em uma língua em que se pratica a tradução com tal extensão há
também um domínio lingüístico próprio das traduções e nele muito
se dever permitir que não deve aparecer em outros domínios. Quem,
apesar de tudo, propague indevidamente tais inovações, encontrará
poucos seguidores ou nenhum e, se não queremos fechar a conta em
um espaço de tempo demasiado breve, podemos confiar no processo
assimilador da língua que acabará eliminando tudo o que havia sido
aceito apenas por necessidade momentânea e que não responde
propriamente a sua natureza. Por outro lado, não devemos esquecer
que há na língua muita beleza e muita força que somente graças à
tradução se desenvolveram ou foram resgatadas do esquecimento.
Nós discursamos muito pouco e proporcionalmente falamos
demais; e não se pode negar que, desde há muito tempo, também a
maneira de escrever avançou nesta direção mais do que o devido e
Sobre os diferentes métodos de traduzir 265

que a tradução contribuiu não pouco para restabelecer um estilo


mais severo. Quando chegar um dia em que tenhamos uma vida
pública que, por uma parte, tenha que desenvolver uma
sociabilidade mais rica de conteúdo e mais atenta à linguagem e, por
outra, proporcione espaços mais livres para o talento do orador,
então, talvez necessitaremos menos da tradução para o
aperfeiçoamento da língua. Que esse dia chegue apenas quando
tenhamos percorrido dignamente o inteiro ciclo de esforços do
tradutor!

* * *
RESENHAS

Tindale, C. Rhetorical argumentation. Principles of Theory


and Practice. Thousand Oaks: SAGE Publications, 2004.

Jorge Alberto Molina *

O estudo da argumentação faz parte hoje de uma abordagem


interdisciplinar da qual participam filósofos, lingüistas e estudiosos
da comunicação. Esse campo de estudos recebeu, após o eclipse da
Retórica, há mais ou menos cento e cinqüenta anos, um novo
impulso devido à aparição, na década de 50 do século passado, de
duas obras, ambas escritas por filósofos que hoje são consideradas
clássicos dentro da área: o Tratado da argumentação, dos belgas
Perelman e Tyteca, e os Usos do Argumento do inglês Toulmin.
Embora a análise da prática argumentativa já tivesse sido
iniciada na Grécia antiga pelos sofistas, foi Aristóteles que, em
grande medida, fixou o marco teórico a partir do qual os autores
posteriores abordaram a argumentação. O filósofo distinguiu três
tipos de discurso argumentativo (silogismos na sua terminologia): o
discurso demonstrativo ou científico, cuja forma é objeto de estudo
dos Primeiros Analíticos e cujo uso na ciência é normatizado nos
Segundos Analíticos, o discurso dialético, apresentado por ele nos
seus Tópicos e nas Refutações Sofísticas, e o discurso retórico, tema
da sua obra, cujo título é precisamente Retórica. O estagirita
explicitou sua distinção na forma seguinte: o discurso demonstrativo
é aquele que procede de premissas necessariamente verdadeiras e
almeja demonstrar uma conclusão que seja também necessariamente
verdadeira; já o discurso dialético é aquele que a partir de premissas

*
Professor da UNISC e da UERGS. E-mail: molina@unisc.br

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 267-276.


268 Jorge Alberto Molina

prováveis, chega a uma conclusão também provável, e o discurso


retórico, por sua vez, é aquele cujo objetivo consiste em persuadir a
outros da aceitação de uma tese. A diferença entre Analítica e
Dialética está dada, segundo Aristóteles, pela natureza das
premissas, necessárias na primeira, prováveis na segunda. 1
Entretanto, para separar a Dialética da Retórica, Aristóteles usou,
como critério, a função dos dois tipos de discursos: chegar a
conclusões prováveis num caso, persuadir no outro. 2 Há também
diferenças entre o contexto de emissão que acompanha esses
diferentes discursos. O discurso demonstrativo ocorre no ensino de
uma ciência, por um mestre que força o assentimento de um
discípulo, ao mostrar-lhe as proposições que decorrem dos primeiros
princípios. 3 O discurso dialético aparece quando uma tese é proposta
por um dos participantes de um diálogo e outro participante
manifesta seu desacordo com essa tese. Nesse caso, o discurso
dialético visa a resolver uma diferença de opinião através da
argumentação. O discurso retórico é aquele que é proferido face a
uma assembléia, uma multidão, ou um corpo colegiado qualquer. A
classificação aristotélica dos discursos argumentativos e a
identificação de suas respectivas situações de emissão determinaram
para a posteridade a perspectiva a partir da qual devia ser
considerada a argumentação.
No estudo da argumentação, voltamos hoje a reconhecer
aquelas três perspectivas identificadas por Aristóteles: lógica,
dialética e retórica. Os autores que abordam a argumentação desde
uma perspectiva lógica, como é ocaso de Toulmin e dos lógicos
formais e informais 4 , estarão interessados, dado um argumento
qualquer, em determinar qual é a força com que se segue a
conclusão a partir das premissas, bem como a ordem e o tipo de

1
Cf. Tópicos 100 a 18-100b18.
2
Cf. Retórica 1355b 25-35.
3
Cf. Refutações Sofísticas 165b 1-10.
4
Para ver as origens da Lógica informal ver: Johnson, R. H e Blair, A Logical Self-
Defense 3 ed., Toronto: Mc Graw Hill-Reyerson, 1994, e Walton, D. Informal
Logic: A Handbook for Critical Argumentation. New York: Cambridge University
Press, 1989.
Resenha 269

encadeamento das razões presentes nesse argumento. Aqueles que se


aproximam da argumentação desde uma perspectiva dialética, como
é o caso da escola holandesa de pragmadialética 5 , se ocuparão do
tipo de regras que devem reger um diálogo argumentativo, isto é,
dos procedimentos segundo os quais deve ocorrer a argumentação
para que ela possa ser julgada razoável. No final, os que se
aproximam da argumentação desde a perspectiva da Retórica se
interessarão pela totalidade da situação argumentativa,
considerando, dentro dela, não apenas o seu produto, que é o
argumento proferido oralmente ou por escrito, mas também o
emissor dele e o seu destinatário (audiência). Nessa última
perspectiva, situam-se Perelman e Tyteca, que deram origem ao que
se conhece como Nova Retórica, e também o autor cujo livro
passamos a resenhar agora.
O livro do professor de Filosofia Antiga Christopher
Tindale, da Universidade de Trent, Ontário, Canadá, Rhetorical
Argumentation, coloca-se claramente dentro da abordagem retórica
do estudo da argumentação. Esse texto está escrito com dois fins:
defender a abordagem retórica face às perspectivas rivais, lógica e
dialética; advogar por uma concepção mais ampla da Retórica que
não considere essa disciplina só como uma arte para obter a
persuasão por meio do discurso, mas como uma arte para ganhar
novos conhecimentos sobre matérias que são objeto da deliberação.
No Capítulo 1, que tem por título O giro retórico para a
argumentação (p. 1-26), Tindale tenta mostrar as insuficiências das
abordagens lógica e dialética. O lógico, segundo Tindale, ocupa-se
somente do produto da ação de argumentar, isto é, do argumento, e
negligencia as condições de sua produção (p. 6-7). Dentro dessas
condições, reconhecemos a audiência à qual se dirige aquele que
argumenta, com seus valores e crenças. Também devemos levar em
conta os conhecimentos compartilhados pelo argumentador e sua
audiência. Esses conhecimentos determinam o que Tindale chama
de entorno cognitivo (cognitive environment). Quando o lógico se

5
Cf. Eemeren, F. H. van e Grootendorst, R. A Systematic Theory of Argumentation.
The pragma-dialectical aprroach. Cambridge University Press, 2004.
270 Jorge Alberto Molina

encontra face a um argumento, lhe interessa saber se a conclusão se


segue das premissas através de esquemas de inferência válidos.
Esquemas ou formas válidas são caracterizados pela propriedade de
permitir concluir uma verdade a partir de premissas verdadeiras, ou,
expresso de um outro modo, eles se caracterizam por transmitir a
verdade. A versão mais forte da abordagem lógica da argumentação
é aquela da lógica formal, que considera que o que determina a
validade de uma inferência é sua forma, sua estrutura. O objetivo da
lógica formal seria, então, fornecer métodos para reconhecer quais
são os esquemas de inferência válidos. Mas Tindale não polemiza
contra essa concepção forte da abordagem lógica, que já tinha sido
criticada sobretudo por Toulmin e Perelman, mas contra uma versão
mais fraca da mesma, aquela da chamada lógica informal de
D.Walton, J.A. Blair e R.H. Johnson (p. 8-14). Como alvo de suas
críticas, Tindale escolhe o livro de R. H. Johnson, Manifest
rationality: A pragmatic theory of argumentation. Conforme
Tindale, Johnson reconheceu, nesse texto, a importância dos
aspectos dialéticos na argumentação, pois, segundo Johnson, o
argumentador, no ato de construir seu discurso, estaria pensando
também nas possíveis objeções que seus ouvintes ou leitores
poderiam fazer contra ele, objeções que determinariam a natureza do
seu discurso. Assim, em certa medida, Johnson sai da abordagem
lógica tradicional ao buscar relacionar a ordem das razões presente
num argumento (the illative tier) com a audiência possível ou
potencial (the dialectical tier). Entretanto, analisando as coisas
desde outra perspectiva, Johnson mantém ainda traços da abordagem
lógica tradicional, ao considerar que o objetivo da argumentação é a
verdade, e não a verossimilhança, e ao expressar que a Retórica
almeja só a persuasão.
O outro alvo visado no Capítulo 1 é a concepção dialética da
argumentação, representada hoje pela escola holandesa de
pragmadialética, formada, entre outros, por F. H. van Eemeren, R.
Gootendorst e P. Houtlosser. Essa escola tenta recuperar parte do
conteúdo da antiga dialética dos gregos, fundamentando-a agora na
Resenha 271

integração da teoria de P. Grice 6 sobre as trocas verbais racionais


com a teoria de Searle sobre os atos de fala. A pragmadialética se
ocupa dos procedimentos segundo os quais ocorrem as trocas
argumentativas entre um proponente de uma tese e seu oponente,
quando os dois tentam resolver suas diferenças de opinião. Esses
procedimentos não devem violar determinadas regras que encontram
sua justificação nas normas estabelecidas por Grice para a
comunicação racional. Tindale reconhece três defeitos nesse tipo de
abordagem (p.14-19). Em primeiro lugar, mesmo que Van Eemeren
e Houtlosser tenham integrado, em trabalhos recentes, a Retórica ao
seu modelo 7 , eles a consideram a Retórica como uma servente
(handmaid) da Dialética. Essa posição decorre do fato de os autores
holandeses supracitados considerarem que a Dialética versa sobre
questões abstratas ao passo que a Retórica se ocupa com casos
específicos e que a efetividade desta deve estar subordinada à
racionalidade daquela. Em segundo lugar, segundo Tindale, nem
toda argumentação pode ser representada como um processo que
visa a resolver diferenças de opinião entre dois adversários. Em
terceiro lugar, outro defeito da abordagem pragmadialética está, para
Tindale, em negligenciar que todo discurso argumentativo está
dirigido a uma audiência que não se reduz ao oponente explícito de
uma tese proposta. São procedimentos usuais, dentro do discurso
argumentativo, a prolepsis ou antecipação, através da qual aquele
que argumenta se adianta a possíveis objeções, e a apóstrofe, que
consiste em se dirigir a um interlocutor ou grupo de interlocutores
que não aparecem explicitamente dentro do diálogo argumentativo.
A perspectiva da pragmadialética, segundo Tindale, não lograria
encaixar, de forma satisfatória, dentro do seu modelo, esses recursos
argumentativos.

6
Cf. Grice, P. Study in the Way of Words.Cambridge, MA: Harvard University
Press, 1989 e Grice, P. Logic and conversation. In: P.Cole e J.Morgan(eds.),
Syntax and Semantics, v. 3: Speech Acts. New York: Academic Press, p. 41-58,
1975.
7
Cf. Eemeren, F. H. van e Houtlosser, P. Rhetoric in pragma-dialectics.
Argumentation, Interpretation, Rhetoric,
www.argumentation.spb.ru/2000_1/index.htm, 2000.
272 Jorge Alberto Molina

O Capítulo 2, Argumento como Retórica (p. 29-57) possui


um caráter histórico-filosófico. Nesse capítulo, Tindale se propõe
como objetivo desfazer a concepção tradicional da Retórica vista
como uma arte cujo único fim consistiria na persuasão e que não se
importaria com valores epistêmicos. De acordo com nosso autor,
tanto Platão quanto Aristóteles, nos transmitiram uma imagem
distorcida da Retórica, o primeiro mais que o segundo. No Górgias,
ela é apresentada por Platão como uma arte que consiste em iludir.
Seria a uma genuína ciência da justiça o que a culinária é para a
medicina ou a cosmetologia é para a ginástica. 8 Assim, se nós
queremos apreender o seu autêntico caráter, sustenta Tindale,
devemos ir até sua origem, nos sofistas gregos do século V. a.C., em
personagens como Górgias e Protágoras. Neles reconheceremos a
Retórica como uma arte convidativa (Rhetoric as invitational) cujo
objetivo consiste na construção coletiva de conhecimentos e valores.
Assim, não é verdade que essa arte negligencia qualquer tipo de
valor epistêmico. Mesmo que a argumentação retórica não nos possa
dar conclusões necessariamente verdadeiras, serve ela para sustentar
conclusões prováveis. Em grande medida, Tindale atribui à Retórica
características que Aristóteles já lhe outorgara na sua Retórica. Parte
essencial dessa disciplina é a inventio, a arte de encontrar
argumentos para defender uma determinada tese. Nesse labor de
encontrar argumentos, descobrimos fatos e hierarquias de valores.
No Capítulo 3, Retórica como argumento (p. 59-86),
Tindale se ocupa das figuras retóricas. No período final da Retórica
greco-latina, as figuras retóricas começaram a ser consideradas
como trópoi , recursos estilísticos destinados a embelezar o discurso
literário, formas de usar a linguagem que alteram o significado
literal das palavras. 9 A partir dessas perspectivas, foi feita a
distinção tradicional entre figuras de palavras, como a aliteração e

8
Cf. Górgias, 465.
9
No final da Antigüidade, a Retórica se transformou de uma teoria da
argumentação em uma arte para embelezar o discurso. Para o estudo desse
processo ver: Todorov, T. Teorias do Símbolo, Cap. 2 e 3, Campinas: Papirus,
1996, e Ricoeur, P. A Metáfora viva. Estudos I e II , São Paulo: Loyola, 2000.
Resenha 273

figuras de pensamento, como a ironia. Perelman e Tyteca se


afastaram dessa caracterização e reconheceram também o valor
argumentativo, e não apenas estilístico das figuras retóricas 10 . Elas
podem ser ainda pensadas como esquemas argumentativos
condensados. Assim, os autores do Tratado da Argumentação
consideraram a metáfora uma analogia abreviada. Quando, por
exemplo, nós falamos do outono da vida, estamos estabelecendo a
seguinte analogia: o outono é para o ano o que a idade madura é
para o tempo de vida. A metáfora surgiria, na visão de Perelman, a
partir da omissão de dois termos da analogia 11 . Desde uma outra
perspectiva, também J. Fahnestock reconheceu o valor
argumentativo das figuras retóricas. O livro de Fahnestock,
Rhetorical figures in science, ilustra o uso das figuras retóricas
dentro do raciocínio científico. No Capítulo 3, Tindale, apoiando-se
nas investigações de Perelman-Tyteca, de Reboul e de Fahnestock
advoga por uma concepção das figuras mais ampla do que aquela
que as considera como tropoi. Muitas figuras retóricas, afirma
Tindale, são aptas para servir como argumentos e para engajar a
audiência devido às maneiras como são interpretadas (p. 73-86) .
O Capítulo 4, Contextos retóricos e o dialógico ( p. 89-110),
é um dos mais importantes do livro, quiçá o mais importante. Aqui
Tindale tenta fazer uma síntese entre os aportes de Bakthin 12 e
aqueles vindos da Nova Retórica de Perelman-Tyteca. O conceito de
polifonia que Bakhtin usou na análise de textos narrativos também
pode ser aplicado ao texto argumentativo, porque nele
reconhecemos também diferentes vozes. O texto argumentativo deve
ser considerado como contendo, no seu seio, diferentes diálogos,
mesmo quando, aparentemente, ele se reveste da forma de um

10
Cf. Perelman, Ch. e Tyteca, L. O. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. Segunda Parte, Cap. 3, p. 189-203.
11
Cf. Perelman, Ch. e Tyteca, L. O. Tratado da argumentação, São Paulo: Martins
Fontes, 1996. Terceira Parte, Cap. 3, p. 453-459.
12
Cf. Bakhtin, M .The dialogic interpretation: Four essays Tradução para o inglês
de C. Emerson e M. Holquist.Austin: University of Austin Press, 1981, e Bakthin,
M. Speech genres and other later essays. Tradução para o inglês de C. Emerson e
M. Holquist, Austin: University of Texas Press, 1986.
274 Jorge Alberto Molina

monólogo, como no caso do ensaio filosófico ou sociológico. O


argumentador está sempre argüindo contra alguém, contra um
oponente que existiu, exista ou possa existir. Essas objeções reais ou
possíveis determinam a forma de construção da argumentação.
Nesse capítulo, Tindale introduz elementos do que ele chama do
dialogismo de Bakthin para construir um novo modelo para a
argumentação desde uma perspectiva retórica.
No Capítulo 5, Marcianos, filósofos e pessoas razoáveis: a
construção da objetividade (p. 115-130) Tindale se ocupa da
seguinte estratégia argumentativa: como arma para fazer prevalecer
seus pontos de vista, o argumentador se coloca fora da situação da
argumentação (como se fosse um marciano) e julga seus oponentes
irracionais. Assim, ele se poupa do esforço de construir um
argumento para convencê-los. O recurso a esse expediente é uma
forma de omitir o debate. Na seqüência, Tindale desenvolve a
questão da possibilidade de se estabelecerem parâmetros de algum
tipo para avaliar os argumentos, isto é, para distinguir entre um bom
argumento e um argumento ruim. Um dos objetivos de qualquer
teoria da argumentação é distinguir entre argumentos que possamos
considerar razoáveis e argumentos falaciosos. Para aquele que
advoga por uma abordagem lógica para a argumentação, o critério é
claro: o argumento bom é aquele cuja conclusão se segue de
premissas verdadeiras, usando esquemas de inferência corretos. É
tarefa da Lógica, formal ou informal, identificar e inventariar esses
esquemas, e o critério para reconhecê-los é claro: são válidos
aqueles que nos levam de premissas verdadeiras a conclusões
verdadeiras. Na perspectiva da pragmadialética, um argumento
falacioso é aquele que viola alguma das regras necessárias para que
tenha lugar uma discussão crítica. Mas, para quem advoga, como
Tindale, por uma abordagem retórica, a distinção entre bons e maus
argumentos deve estar dada em termos da audiência, nesse caso,
pela audiência universal. É ela a fonte para os padrões objetivos que
determinam uma boa argumentação.
No Capítulo 6, Desenvolvendo a audiência universal (p.
133-154), Tindale explicita o conceito de audiência universal,
Resenha 275

introduzido nos estudos sobre argumentação por Perelman. 13 Cada


argumento, observou Perelman, está dirigido a uma audiência
específica, e aquele que o profere leva em conta isso. Mas há
argumentos, como os da Filosofia, que estão dirigidos a qualquer ser
humano, enquanto mero ser racional, fazendo abstração das
particularidades que possam ter. Os homens, considerados desse
modo, formam o que Perelman chama a audiência universal, que dá
os parâmetros para a boa argumentação. Um argumento que
convença a audiência universal é um bom argumento. É claro que
essa é uma abstração, mas uma abstração, segundo Tindale, bem
fundada porque surge a partir de uma idealização das audiências
reais.
No Capítulo 7, A verdade sobre os orangotangos: critérios
opostos de adequação das premissas (p. 157-177) Tindale se ocupa
dos valores epistêmicos presentes na argumentação. Segundo a
perspectiva lógica, o fim da argumentação é obter a verdade,
conforme à perspectiva dialética, a verossimilhança, e de acordo
com a retórica, a persuasão. Verdade e verossimilhança são valores
epistêmicos. Como o autor redefine a Retórica, aproximando-a da
Dialética dos gregos (e não da Dialética da escola holandesa da
pragmadialética), torna evidente que considera o objetivo da
argumentação a verossimilhança. Os valores epistêmicos são os que
permitem fundamentar critérios de aceitação para um argumento. Se
escolhermos a verdade como valor, falaremos de argumentos válidos
e diremos que um argumento é válido quando, de premissas
verdadeiras, obtemos conclusões verdadeiras. Se escolhermos a
verossimilhança, falaremos de argumentos aceitáveis e diremos que
um argumento é aceitável quando, de premissas verossímeis
obtemos uma conclusão verossímil. A razão levantada por Tindale
para preferir a verossimilhança à verdade é que, segundo ele, não
existe nenhuma teoria filosófica satisfatória da verdade. A teoria da
verdade como correspondência, ainda que aparentemente simples, só
se mostra satisfatória no caso de linguagens artificiais, como os

13
Cf. Perelman, Ch e Tyteca, L. O. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. Primeira Parte, Cap. 1, p. 34-39.
276 Jorge Alberto Molina

sistemas formais estudados pelos lógicos matemáticos. Uma outra


teoria da verdade é aquela da verdade como coerência. Mas Tindale
apenas se refere a ela no seu livro. Uma terceira forma de teoria de
verdade diz respeito àquelas teorias relativistas que situam a noção
de verdade num determinado contexto sociocultural. Mas o autor
não vê vantagens em aceitá-las, pois, em sua opinião, elas se acham
muito mais próximas de nos dar um critério de aceitabilidade de
argumentos que um de validade, de forma que chegamos, assim, ao
mesmo resultado que teríamos obtido se, de início, houvéssemos
colocado a verossimilhança como valor epistêmico a ser obtido
através do discurso argumentativo.
O Capítulo 8, Conclusões retóricas (p. 179-190), é um
resumo dos resultados obtidos. O título da primeira parte desse
capítulo, De Protágoras a Bakhtin, nos dá idéia da novidade desse
livro que está na tentativa de fazer confluir duas tradições
intelectuais diferentes, a da Retórica clássica e a da polifonia e do
dialogismo de Bakhtin, no intuito de obter um modelo satisfatório
da argumentação.
Rhetorical Argumentation é um livro escrito por um
filósofo, mas que interessa não apenas àqueles interessados na
Filosofia antiga e na argumentação filosófica, mas também a todos
os que estudam a comunicação e a linguagem. Cada capítulo está
acompanhado por um resumo final, sumário das conclusões obtidas
previamente. Além de referências a textos clássicos, o livro contém
outras a trabalhos bem recentes que o autor analisa com suma
atenção, mas que não são suficientemente conhecidos no nosso
meio.
Reboul, Olivier. Introdução à retórica. 2. ed. Tradução de
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
253 páginas.

Glenn W. Erickson *

Originalmente publicado em 1991 sob o título Introducion à la


rhetorique: théorie et pratique, e como a primeira edição portuguesa
foi publicada em 1998, este estudo introdutório à ciência retórica já
é clássico. O aparato formal inclui Prefácio, Introdução, Notas,
Bibliografia sumária, e Índice remissivo e glossário dos termos
técnicos.
Alternamente histórico e sistemático, o texto principal tem
nove capítulos e uma conclusão “A guisa de uma conclusão”. Os
primeiros quatro capítulos revisam a história da retórica com a teoria
aristotélica bem no centro. O primeiro capítulo, “Origens da retórica
na Grécia”, documenta as contribuições de Córax, Górgias,
Protágoras, Isócrates e Platão no desenvolvimento da retórica. O
segundo capítulo, “Aristóteles, a retórica e a dialética”, analisa a
definição de Aristóteles em que retórica “é a arte de achar os meios
de persuasão de que cada caso comporta” (p. 24), tratando as
relações entre retórica e filosofia. O terceiro capítulo, “O sistema
retórico”, revisa as quatro partes da retórica na acepção aristotélica:
invenção, disposição, elocução e ação. E o quarto capítulo, “Do
século I ao XX”, trata da fortuna da retórica na era cristã, dividida
entre o período romano, o declínio e as múltiplas retóricas da
atualidade.
Depois do tratamento histórico, o resto do livro introduz
vários termos técnicos e ilustra a leitura retórica. Os capítulos quinto
e sexto, “Argumentação” e “Figuras”, tratam de dois aspectos
destacados pelas novas retóricas alternativas mencionadas acima.
*
Professor titular do Departamento de Filosofia da UFRN. E-mail:
ericksons@ufrnet.br

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 277-281.


278 Glenn W. Erickson

Reboul insiste em que retórica é sempre argumentativa e estilística


ao mesmo tempo. O último destes capítulos divide seu tópico em
figuras de palavras, de sentido, de construção e de pensamento. Por
fim, o sétimo (“Leitura retórica dos textos”), oitavo, (“Como
identificar argumentos?) e nono (“Exemplos de leitura retórica”)
capítulos analisam noções de, e exemplos para, a leitura retórica.
A Introdução, “Natureza e função da retórica”, define
retórica como “a arte de persuadir pelo discurso” (p. xiv), onde
discurso é “toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por
uma frase ou por uma seqüência de frases, que tendo começo e fim e
apresente certa unidade de sentido” (p. xiv), e persuadir é “levar
alguém a crer em alguma coisa” (p. xv). Logo em seguida, Olivier
Reboul (1925-1992) refina sua definição por dizer que “em retórica
razão e sentimentos são inseparáveis” (p. xvii). Assim
demonstração, no sentido de um “meio de convencimento
puramente racional”, não é retórica (p. xviii).
Nosso interesse imediato no livro se deriva de sua relevância
para a filosofia. Já no Prefácio, Reboul, que é por sinal filósofo
acadêmico, argumenta que a retórica foi instrumento de filósofos (p.
xi). Na Introdução, ele argumenta que, por pretender persuadir, o
tratado de filosofia é retórico de acordo com sua definição (p. xiv).
Um professor de filosofia avalia redações em termos de conceitos
retóricos: “respeito para o assunto, ao plano, à argumentação, ao
estilo, a personalidade” (p. xxii). Note-se que para a colocação de
Reboul de ser válida, o tratado de filosofia não pode ser, por ser do
tipo do discurso que ele é, um meio de convencimento puramente
racional. Em outras palavras, este gênero filosófico é
intrinsecamente argumentativo no sentido de que ele sempre tem um
aspecto afetivo (ver xviii).
No quinto capitulo, Reboul dá cinco argumentos segundo os
quais a filosofia pode não ser demonstrativa no sentido técnico.
Primeiro, desde que qualquer língua natural é polissêmica e a sua
sintaxe ambígua, demonstração é possível apenas em uma língua
artificial sem estas limitações (p. 94). Segundo, talvez filosofia não
lida com o verdadeiro ou falso e sim com o mais ou menos
Resenha 279

verossímil (p. 95). Terceiro, “os filósofos chegam a doutrinas muito


diferentes, muitas vezes opostas, embora a demonstração só possa
redundar numa verdade única” (p. 110). Quarto, “as estruturas de
demonstração não são as mesmas, segundo se trate de cartesianos,
Kant, Hegel, Bérgson, Husserl, neopositivistas e outras. Há uma só
matemática, enquanto existem várias filosofias” (p. 110). E o quinto
“é que os filósofos todos recorreram, em maior ou menor grau, à
argumentação” (p. 110). Para Reboul, a reivindicação filosófica de
ser demonstrativa não passa de um “lugar” (argumento-tipo) de
filosofia.
Aqui Reboul advoga a doutrina neokantista de que as
crenças típicas de um “epistemé” (Foucault) constituem um a priori
concreto ou histórico, correspondentes a uma realidade imanente e
não transcendente à razão humana. Ele utiliza “lugares” (padrões de
expressão convencionais) tradicionais contra a filosofia para
estabelecer a autonomia relativa (ou até mesmo a hegemonia) da
retórica. Assim Reboul é cruzamento de Sexto Empírico com Ernst
Cassirer.
Enquanto a função primordial da retórica é aquela nomeada
na sua definição, a saber, persuasão (p. xvii), há três outras funções
da retórica: a hermenêutica (interpretação ou compreensão), a
heurística (descoberta ou invenção) e a pedagógica (transmissão ou
formação) (v. xviii-xxii). Retórica funciona do modo hermenêutico
porque a sua lei fundamental é que o praticante nunca está sozinho:
ele sempre pratica seu discurso em função de outros (p. xvii-xix).
Não fica claro para mim por que seu caráter interpessoal faça a
retórica hermenêutica, desde que ela é inevitavelmente hermenêutica
caso o praticante tenha que interpretar o que ele mesmo está
pensando. Ainda que a língua seja interpessoal, como Saussure
mantém, e mesmo que significado tenha que envolver critérios
públicos, como o argumento da linguagem privada de Wittgenstein
implica, isto não confirma a teoria comunicativa da linguagem,
conforme a qual a linguagem funciona no primeiro momento para
comunicar. Como Heidegger representa, antes que se possa
comunicar um pensamento a alguém, é mister que o pensamento se
280 Glenn W. Erickson

apresente, e isto já implica uma expressão lingüística compreendida


(hermeneuticamente).
Enquanto lia Reboul, fiquei pensando que ele estava se
posicionando sobre assuntos filosóficos, mas de tal maneira que o
seu jogo ficou escondido. Dando a aparência de passar inócuas
explicações sobre a retórica aos iniciantes, ele estava de fato
argumentando em prol de certa metafísica, certa epistemologia.
Quando pergunto qual peixe Reboul está vendendo, a reposta
sempre vem “Neokantismo!” A sua célebre definição de retórica
como a arte de persuadir por discurso já indica sua orientação. Uma
vez que persuadir significa “levar alguém a crer em alguma coisa”,
Reboul prioriza crença, ou seja, uma postura com respeito à verdade
ou inverdade de uma proposição. Em breve, retórica é uma arte que
se deriva da faculdade de conceitos, isto é, o entendimento no
sentido kantista. Desde que o homem não tem uma intuição
intelectual e sim, sensual (leia-se: linguisticamente natural), ele não
pode ter uma arte demonstrativa (de convencimento puramente
racional). Assim filosofia é inevitavelmente uma aplicação da
retórica, combinando argumento e oratória.
No quarto capítulo Reboul caracteriza a diferença de
retóricas contemporâneas daquela tradicional em termos de três
aspectos: em vez de produzir textos, a nova retórica os interpreta;
em vez de limitar-se à argumentação judiciária, deliberativa e
epidíctica, a nova retórica amplia-se para incluir novos ramos de
persuasão (propaganda e relações públicas) e mesmo práticas não
persuasivas (poesia). Entre as teorias recentes (p. 88-90), Reboul
destaca uma retórica de estilo (Jean Cohen, o grupo UM, Gerard
Genette, Roland Barthes), que destaca figuras ou tropos (e o
conceito de “escritura grau zero”), de um lado, e um retórica de
argumentação (Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteka), que
destaca lugares (commonplaces), de outro. Note-se que a sua própria
definição, sem dar prioridade a qualquer uma destas alternativas, é
bem no espírito de Ferdinand de Saussure quando ele nega que pode
especificar qual a extensão do signo lingüístico. Estas alternativas
servem como as posições, respectivamente empirista e racionalista,
Resenha 281

que Reboul sintetiza neokantistamente-demasiadamente-


neokantistamente.
Vamos examinar um detalhe do ceticismo reboulesque.
Etimologia foi um modismo na filosofia do século vinte: Heidegger
desenvolve suas considerações muitas vezes em cima de etimologia,
e J. L. Austin (em Como Fazer Coisas com Palavras) argumenta
que uma vez que as palavras nunca perdem inteiramente seu sentido
radical, convém para o filósofo determinar o significado das
palavras no contexto das suas origens. Por contraste, Wittgenstein
dispensa totalmente etimologia. Nas Investigações Filosóficas, ele
mantém que o filósofo pode inventar história natural (das palavras,
por hipótese) para seus propósitos. Reboul fica com Wittgenstein
quando ele identifica etimologia como uma figura de palavras (e
assim um argumento retórico), a saber, a antanáclase (p. 118-19),
que é o tomar uma palavra em dois sentidos um pouco diferentes (p.
243).
Acho Reboul nada antipático em ser tão anti-filosófico em
tudo. Todavia, sendo de um humor heideggeriano, eu me encontro
defendendo que há um modo de pensamento (digamos, pós-
filosófico) – e, o que é mais, uma exposição de pensamento – que
escapa de ser retórico mesmo nos termos neutros (ou até
honoríficos) que ele entende. Diferentemente que filosofia, o
“pensamento essencial” (projetado por Heidegger) não tenta
persuadir ninguém de nada, não está iludido com o ideal
demonstrativo (nem com a pretensão à verdade) das ciências, e está
longe de envergonhar-se da sintaxe e semântica da língua natural.
Ele não é heurístico, muito menos pedagógico, e sim, hermenêutico,
não porque seja interpessoal (ainda que o seja), mas por ser a
compreensão enquanto compreensão (ratio qua ratio). Para mim,
pensamento essencial aproxima aquilo que Aristóteles trata como a
diferença específica entre o homem e a besta (dito: logos, razão,
verbo) especialmente quando o homem não se trata, à modo de
Aristóteles, como uma besta com valor extra. Dasein autêntico,
palavra de honra!
Brito, Adriano Naves de (Org.). Ética: questões de
fundamentação. Brasília: UnB, 2007. 352 páginas.

Ivanaldo Santos *

O livro organizado por Adriano Naves de Brito é resultado das


discussões realizadas durante o Simpósio sobre Ética em 1988 na
cidade de Goiânia-GO. Este simpósio tinha como proposta central a
discussão sobre a possibilidade de haver uma fundamentação para a
ética e as perspectivas decorrentes dessa possibilidade. O catalisador
inicial das discussões foi o pensamento do filósofo alemão Ernst
Tugendhat, ou seja, a preocupação investigativa desse filósofo em
discutir e, se possível, desonerar a moral de todo dogmatismo, sem,
contudo, deixá-la à mercê do relativismo. Entretanto, o leitor deve
ver o pensamento de Tugendhat apenas como um ponto de partida
das discussões e não como o centro de possíveis deliberações
teóricas.
O livro é uma relevante discussão, realizada por vários
filósofos, sobre os limites e as conseqüências do ceticismo moral, do
niilismo que anuncia o fim da ciência e da crise dos paradigmas
éticos ocidentais. É organizado em três grandes partes, partes que
não possuem um títulos; essas partes são, na essência, áreas de
discussões e de interface entre a possibilidade de fundamentação da
ética e outras áreas da filosofia como, por exemplo, a estética e a
lógica.
A primeira parte do livro é iniciada com dois textos de
Tugendhat. No primeiro, “Reflexões sobre o que significa justificar
juízos morais”, o autor coloca a necessidade de discutir a
problemática da fundamentação em ética. Em suas palavras; “a
suposição de que juízos morais estão relacionados com razões, que
eles precisam de justificação, não é um capricho e não deriva de
uma analogia problemática com juízos fáticos, mas da própria

*
Professor do Departamento de Filosofia da UERN. E-mail:
ivanaldosantos@yahoo.com..br

Princípios, Natal, v. 14 n. 21, jan./jun. 2007, p. 282-288.


Resenha 283

necessidade de justificação inerente aos juízos morais” (p. 21).


Apesar de apontar essa necessidade, o texto de Tugendhat esbarra no
problema da consistência conceitual da própria discussão realizada e
é concluído apresentando a questão das relações intersubjetivas mais
desejáveis pro parte dos indivíduos.
No segundo, “O contratualismo na moral”, Tugendhat
apresenta, de forma sucinta, as três dificuldades do contratualismo
na moral. Para ele, essas dificuldades são: 1) O contratualismo teria
que ver a consciência como um resíduo de uma moral esclarecida
que deveria ser desmontada. 2) No contratualismo, a moral não teria
sempre só aquela extensão que é útil para as pessoas? O problema
dessa pergunta é que uma moral como essa não pode ser entendida
nem como igualitária e nem como universal. 3) Se a moral deve ser
entendida como contrato implícito, então como deve ser entendido
esse contrato?
Tugendhat reflete sobre essas três dificuldades é na tentativa
de fundamentar a moral a partir do contratualismo, ele chega a
seguinte conclusão: “O que é importante lembrar é que o acordo é
um contrato não só para as ações, mas igualmente para ter os
correspondentes afetos mútuos. Assim, o contrato implica a
motivação para criar e cultivar a consciência, quer dizer, a
disposição afetiva de respeitar o acordo” (p. 46). O problema da
conclusão de Tugendhat, ou seja, que para se fundamentar uma
moral é necessário, além de ter o contrato explícito, haver a
“disposição afetiva” dos membros do contrato em cumpri-lo, é que é
possível se fazer uma séria objeção a esta conclusão. A objeção é
que os membros do acordo podem cumpri-lo apenas por medo de
sofrer alguma represália, seja psicológica, física ou econômica, e,
dessa forma, a disposição afetiva torna-se apenas uma forma de
camuflar este medo. Sobre essa possível objeção, Tugendhat não
realiza qualquer discussão.
O terceiro texto é de Julio Cabrera, professor do
departamento de filosofia da Universidade de Brasília. Seu texto,
“Ética e condição humana: notas para uma fundamentação natural
da moral”, é uma constatação de que o problema da fundamentação
284 Ivanaldo Santos

da moral existe e tem que ser discutido. Entretanto, ao contrário de


Tugendhat que critica a tentativa de fundamentação natural da
moral, Cabrera percebe essa tentativa como válida. Neste sentido,
Cabrera apresenta-se como um crítico de Tugendhat. Em suas
palavras: “Aquilo que impede Tugendhat ... de visualizar a
possibilidade de uma fundamentação natural da moral é sua
impossibilidade de conceber a natureza fora de suas concepções
maximalistas (metafísico-teológicas) tradicionais” (p. 72).
É justamente a possibilidade que limita Tugendhat que
Cabrera tenta construir. Ele tenta construir essa possibilidade
recorrendo à racionalidade da condição humana. O problema dessa
tentativa é que Cabrera não explica como superar a crise da
racionalidade e como em um mundo carregado por conflitos
culturais definir uma condição humana universal.
O quarto texto é de Adriano Naves de Brito, professor do
departamento de filosofia da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Este texto, intitulado “Sobre a fundamentação da moral”, é
uma crítica, um tanto quanto cética, aos programas de
fundamentação da moral edificados a partir da razão pura tal qual
Kant inicialmente projetou. Para Brito, “não há um sentido objetivo
para a justificação moral, ou seja, um sentido independente de
nossas preferências subjetivas. Em última instância, essa preferência
subjetiva manifesta-se em nossa escolha” (p. 115). Apesar da
brilhante exposição crítica contra o fundacionismo moral de
inspiração kantiana, Brito não consegue demonstrar a proposição
que, pelo menos inicialmente, deseja demonstrar, ou seja, de que
“em uma palavra, a justificação [da moral] não pode ser arbitrária”
(p. 103).
Este texto recebeu uma réplica de Julio Cabrera, intitulada
“Acerca de uma fundamentação natural da moral (Breve réplica ao
comentário de Adriano Naves de Brito)”. Nela Cabrera muito mais
que debater com o texto de Brito procura demonstrar, de forma
cética e cautelosa, a necessidade de discutir a fundamentação da
moral dentro das diversas exigências (científicas, religiosas,
culturais, etc.) que norteiam o nascente século XXI. Entretanto, essa
Resenha 285

procura deixa a posição de Cabrera ainda mais enfraquecida. Isto se


dá porque, de um lado, ele não consegue introduzir novos
argumentos que fortaleçam sua posição com relação a necessidade
da fundamentação natural da moral e, de outro lado, ele não
consegue repelir, de forma convincente, a posição teórica adotada
por Brito.
Após a réplica de Cabrera tem-se o texto de Thomas
Kesselring, professor de filosofia na universidade alemã de Bern.
Seu texto, “O ser humano no campo de tensão entre tradição e
universalização”, é norteado pelos três seguintes desafios. Primeiro,
a questão específica da ética moderna universalista tornar-se mais
evidente. Isto se dá à medida que contrapõe-se à concepção de uma
ética tradicional pré-iluminista. Segundo, chama a atenção para uma
característica da moderna ética universalista, à qual esta deve de
modo significativo seu caráter progressivo, mas que também,
considerada mais de perto, pode ser identificada como um
indubitável ponto de fraqueza. Terceiro, a moral moderna é
suficientemente flexível para superar pontos fracos. A conclusão que
ele chega é que é preciso realizar uma síntese dos “paradigmas da
ética pré-iluminista e da ética moderna” (p. 141). Entretanto, o leitor
crítico ficará um tanto quanto decepcionado com a proposta de
Kesselring, justamente porque ele lança essa proposta audaciosa mas
não dá qualquer caminho argumentativo e teórico para se alcançar
essa proposta.
Já o texto de Fernando Rodrigues, professor do
departamento de filosofia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, intitulado “A estrutura dos juízos morais”, realiza uma
discussão sobre a fundamentação semântica dos juízos morais. Para
tanto, concentra essa discussão na importância, na utilização e nas
formas de manifestação do verbo “dever”. Segundo ele, essa
concentração é importante porque “como nos juízos morais em que
ocorre o verbo ‘dever’ parece que nos comprometemos de fato com
a verdade da frase” (p. 155). Entretanto, Rodrigues não consegue
demonstrar se é possível fundamentar alguma perspectiva moral a
partir do verbo “dever’.
286 Ivanaldo Santos

A segunda parte do livro possui dois textos que abordam a


temática a partir da discussão realizada por Heidegger. O primeiro é
o texto de Zeliko Loparic, professor do programa de pós-graduação
em psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Neste texto, intitulado “A ética originária e a práxis
racionalizada”, o autor parte da crítica de Tugendhat à Heidegger.
Nas palavras de Loparic, “Convencido da força de sua posição, por
ela ser ‘metodologicamente correta’ e ‘teoricamente relevante’,
Tugendhat propõe-se a decidir quais teses de Heidegger são
aceitáveis, quais, embora mal formuladas, podem ainda ser salvas e
quais, finalmente, são simplesmente erradas” (p. 169). Após uma
breve exegese da obra de Tugendhat e de Heidegger, Loparic
conclui que ao “perder de vista a problemática kantiana do a priori,
Tugendhat também fechou a porta de entrada ao pensamento
heideggeriano” (p. 178). A partir dessa conclusão ele afirma que em
Heidegger o homem não é definido pelas necessidades empíricas,
mas por uma urgência que possibilita a priori todos os outros
aspectos da vida humana. Dentro da discussão proposta pela
temática geral do livro, o texto de Loparic torna-se relevante porque
apresenta os limites e falhas do pensamento de Tugendhat.
O segundo texto é o de Claudia Drucker, professora do
departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa
Catarina. Neste texto, “A autodeterminação em Heidegger”, a autora
defende o pressuposto que embora relevante a tradição filosófica
não consegue formular o problema da autodeterminação de forma
satisfatória. Para ela, um bom exemplo desse problema é Heidegger.
Apesar dele discutir de forma brilhante os limites da tradição e uma
possível releitura da mesma, não consegue apontar, de forma
convincente, mecanismos para refundar a autodeterminação a partir
da tradição ou buscar além dela essa autodeterminação.
Na terceira parte do livro discute-se a temática central a
partir de três perspectivas, sendo elas: Aristóteles, Rawls e Bloch. O
primeiro texto é de Marco Zingano, professor do departamento de
filosofia da Universidade de São Paulo. Este texto, intitulado
“Deliberação, indeterminação e inferência prática em Aristóteles”,
Resenha 287

realiza uma longa exegese da Ética a Nicômaco de Aristóteles.


Entretanto, ao invés de apresentar uma possível fundamentação da
ética a partir desse texto realiza o contrário, ou seja, encontra nele
fissuras teóricas que possibilitam impor um “limite considerável às
ambições de toda moral” (p. 295).
O segundo texto é de Wilson Mendonça, professor do
departamento de filosofia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Intitulado “Calculando com direitos e bens: deontologia em
Rawls”, parte das objeções realizadas por Alasdair MacIntyre, no
livro After Virtue (Depois da virtude) ao pensamento de Rawls. A
idéia central da argumentação de Mendonça é que toda sociologia
moral tem como contrapartida uma sociologia particular. Ele parte
do debate entre MacIntyre e Rawls. Neste texto o autor apresenta a
possibilidade de se construir uma fundamentação da moral a partir
dos elementos constitutivos da sociedade contemporânea e de
mercado. Entretanto, assim como no texto de Cabrera, Kesselring e
de Rodrigues não há uma demonstração ou uma apresentação
consistente de uma possibilidade viável para a construção dessa
fundamentação.
O último texto da coletânea, ou seja, o texto de Susana
Albornoz, professora do departamento de filosofia da Universidade
de Santa Cruz do Sul, intitulado “A união de Dioniso e Apolo: os
ideais morais segundo Ernst Bloch”, levanta a possibilidade de que
os elementos característicos de Apolo e de Dioniso, isto é, a regra
moral e a inclinação natural, podem ser unidos. Para este fim,
Albornoz reconstrói, fundamentado em Ernst Bloch, as duas figuras
mitológicas, Dioniso e Apolo, e por meio dessa reconstrução
procura abrir um horizonte para uma ética da conciliação. Essa ética
teria como objetivo criar uma “utopia de cunho moral” (p. 335) que
libertaria o ser humano da exploração e da violência da sociedade
capitalista. O problema do texto de Albornoz é que ao invés de
procurar construir um fundamento filosófico para a chamada “utopia
moral”, ela limita-se a realizar uma exegese do capítulo XVIII do
livro O princípio esperança de Bloch. A discussão que,
aparentemente, é promissora termina caindo em uma simples
apresentação exegética.
288 Ivanaldo Santos

Para encerar é preciso afirmar que o livro é uma ótima


apresentação da problemática contemporânea sobre a
fundamentação da ética. Nele são abordados questões e autores
variados que abordam a temática de diversos ângulos diferentes.
Erickson, Sandra S. F., e Erickson, Glenn W. Logos &
poesis: neoplatonismo e literatura. Natal: EDUFRN, 2006.
193 páginas.

Pablo Capistrano *

Uma forma usual de problematizar as relações possíveis entre


literatura e filosofia se dá através do manuseio de definições.
Compreender abstratamente a definição de literatura e a definição de
filosofia para, a partir daí, problematizar seus espaços de contato
pode ser uma imensa tentação intelectual, mas, talvez, não seja o
melhor caminho para se tratar do tema. A ilusão metafísica de que
existem duas categorias fechadas (“literatura” e “filosofia”) pode
contribuir para um exercício aporético e circular que não leva muito
longe. O melhor modo de se tratar das relações envolvendo textos
literários e filosóficos parece ser mesmo o de observar, in loco,
como obras filosóficas dialogam com obras literárias. Abandonar a
ilusão da existência de universais fechados e compreender os
particulares em suas particularidades. O livro objeto da presente
resenha partilha desse entendimento e constrói com rigor e exatidão
uma forma de análise que privilegia, ao invés de definições gerais e
estáticas a partir de conceitos vazios, exemplos de obras literárias,
para fazer surgir os pontos de conexão dessas mesmas obras com a
tradição filosófica.
Nesse sentido o referido livro é uma coletânea de ensaios
críticos, produzidos em inglês e em português, que investigam as
relações entre literatura e filosofia a partir da análise crítica de textos
de Geoffrey Chaucer, Cervantes, Mario Vargas Llosa, Cunninghame
Graham e Euclides da Cunha, incluindo também uma análise sobre o
filme Brazil, de Terry Gilliam.
O livro se inicia com um ensaio acerca da melancolia
criativa e do modo como esse tópico de ausência e de busca de um
objeto perdido do desejo é transportado a partir de uma tradição

*
Doutorando do PPgEL/UFRN. E-mail: pablocapistrano@yahoo.com.br

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 289-293.


290 Pablo Capistrano

filosófica que remonta à Empédocles, até a moderna crítica literária


norte americana, a partir das apropriações e construções teóricas de
Harold Bloom. Há uma divisão temática clara nos ensaios. Surge
nos primeiros quatro textos (“Melancolia & poesia: em busca de um
estatuto para o objeto perdido do desejo”; “Neoplatonic consolation
in Chaucer´s The Book of The Duchess”; “Cristianismo
neoplatônico em La Celestina”; e “Reality, Identity & Ideality in
Don Quixote de La Mancha”), bem como no último (IX To Old
Brazil), uma maior variedade temática com objetos diversos, que
orbitam desde a presença da influência do neoplatonismo cristão no
The Book of the Duchess de Chaucer e La Celestina, ou da discussão
epistemológica que pode ser recomposta a partir da interpretação do
personagem Dom Quixote, na obra de Cervantes.
A partir dessa gama variável de temas e leituras, os autores
constroem tessituras teóricas que permitem emergir do mais
profundo dos textos o liame que obras literárias mantêm com
diversos aspectos da tradição filosófica ocidental. Como por
exemplo, no que diz respeito às relações que o texto de Chaucer
sustém com a obra “Comentário sobre ‘O sono de Cipião’” de
Macrobius, apropriando-se o primeiro das fontes imagéticas que
povoam o segundo texto. Esse é um claro exemplo de como é
possível, a partir da leitura de um texto literário especifico, extrair a
base da tradição filosófica que o compõe. Neste sentido, o casal
Erickson identifica elementos do pitagorismo presentes na estrutura
numerológica existente na obra de Chaucer assim como mostram a
presença de relações astrológicas comuns ao ambiente intelectual
neoplatônico.
As chaves neoplatônicas presentes na Teologia Cristã dos
primeiros anos do milênio passado aparecem também na
interpretação do texto La Celestina de Fernando de Rojas. Nessa
obra, os Ericksons apontam a presença dos modelos matemáticos
estabelecidos a partir da academia de Platão, conectando as
tradições que envolvem desde as formas geométricas dos triângulos
pitagóricos, às fontes imagéticas e numerologias do Apocalipse de
São João e ao Tarô de Ferrara. Assim fica evidenciado um conjunto
Resenha 291

de imagens presentes na obra de Rojas que o filiaria a esse mesmo


corpus neoplatônico.
No ensaio sobre Dom Quixote, a base filosófica que se
configura a partir da obra de Cervantes se dá de uma outra forma, no
sentido de uma discussão epistemológica presente na crítica literária,
acerca do status da personagem central. A loucura de Quixote é vista
a partir de uma base epistêmica que problematiza as relações entre
realidade e idealidade a partir do ponto de vista do homem de La
Mancha. A defesa dos autores do livro é que a opção de Cervantes
não foi a de construir um personagem delirante, preso em uma
esfera de esquizoidia lingüística que o apartasse da realidade e que
substituísse a sanidade do ambiente que o cercava por uma ordem
caótica interior. Quixote não é, a partir da leitura dos Ericksons, um
“louco” no sentido psiquiátrico do termo. Não há delírio, distorção
no conteúdo do pensamento. Talvez alucinação, mudança de
enfoque do olhar de Quixote. A construção de Cervantes passaria
por uma nova angulação para velhas coisas, com um intuito claro de
subverter a ordem política de uma Espanha recém saída de uma
violenta guerra de reconquista e marcada fortemente pela presença
de uma inquisição selvagem e totalitária.
A parte mais substancial do livro objeto dessa resenha é, no
entanto, o conjunto de ensaios que gira em torno da obra de Euclides
da Cunha, Os sertões (“A Dialética da terra & do homem em Os
sertões”; “Cunninghame Graham’s Plagiarism of Os sertões”;
“Dialectics in Mario Vargas Llosa’s La guerra del fin del mundo”) e
de textos que orbitam em torno de seu núcleo temático como o livro
de Vargas Llosa A Guerra do Fim do Mundo e de Brazilian Mystic
(um plágio da obra de Euclides da Cunha, escrita por um obscuro
escritor escocês Robert Bontine Cunninghame Graham). No
primeiro destes ensaios, os Ericksons contam com a participação de
Dejalma Cremonese, Professor de Filosofia na UNIJUI e ex-rientado
dos autores junto ao programa de Pós-graduação em Filosofia na
UFSM.
A leitura feita a partir da obra de Cunha mostra que Os
sertões pode ser lido como uma monografia filosófica. Isso se daria
292 Pablo Capistrano

menos por sua forma acadêmica do que por sua filiação direta a
determinadas categorias do pensamento de Hegel. Os autores tomam
como ponto de partida a concepção hegeliana de tragédia exposta na
leitura que Hegel faz de “Antígona” de Sófocles, na Fenomenologia
do Espírito. Para Hegel, o ponto fundamental da tragédia clássica
seria o conflito dialético entre personagens que representariam
estágios do desenvolvimento da coletividade. Sob esse aspecto, o
conflito que envolve Antígona e Creonte no texto de Sófocles a
partir da leitura de Hegel poderia ser comparado com os conflitos
dialéticos presentes nas obras que orbitam em torno da temática de
Canudos. Contradições, oposições, antagonismos, antíteses que
oporiam personagens no decorrer da narrativa, em suas várias
versões, seriam assim exemplos da tensão dialética que oporia o
universo medieval do sertão de Canudos, prenhe de misticismo
cristão e de primitividade mestiça; ao mundo moderno, representado
pelas forças da República que tentariam impor aos sertões um novo
padrão social e cultural.
Na tragédia de Sófocles eclode o confronto dialético entre
Sittlichkeit (moralidade familiar) representada pelo discurso de
Antígona e pelo apego as tradições funerárias da antiga religião
privada grega; e a Legalität (legalidade institucional) representada
pelo discurso de Creonte de defesa dos interesses da polis e dos
cultos públicos. Em Os sertões de Euclides da Cunha, vai eclodir
um confronto de mesmo modelo, com base nas mesmas categorias
hegelianas. Uma moralidade arcaica e familiar, representada pelos
clãs sertanejos, arrebanhados pelo profetismo bíblico de Antonio
Conselheiro, contra o discurso da legalidade institucional da
República do general Moreira César.
Logos & Poesis, constitui-se assim, em um livro que
demonstra de modo bem eficaz um interessante mecanismo
hermenêutico, que elucida as relações e conexões entre literatura e
filosofia a partir da base de uma tradição intelectual comum, que
não permite diferenciações artificiais. A despeito dos problemas de
relacionamento entre filósofos e poetas, provavelmente datados
apartir da leitura que Al Farabi faz do famoso episódio da expulsão
Resenha 293

dos poetas da República platônica, literatura e filosofia, logos e


poesis, não podem ser entendidos como esferas estanques e
estacionarias, mas como formas que se interpenetram por sobre o
solo de uma mesma e irredutível tradição.
Sellars, Roy, e Allen, Graham (Orgs.). The Salt Companion
to Harold Bloom. Cambridge: Salt, 2007. 505 páginas.

Sandra S. F. Erickson *

Em comemoração ao septuagésimo quinto aniversário do célebre


teórico de crítica literária, os professores Graham Allen (University
College, Cork) e Roy Sellars (Universidade da Dinamarca do Sul,
Kolding) organizaram The Salt Companion to Harold Bloom.
Embora a palavra Companion possa dar a idéia de que se trata de
material introdutório e auxiliar para ler e compreender o sistema de
Bloom, a coletânea é mais uma análise crítica de pontos vulneráveis
ou frágeis da teoria de Bloom e sua recepção no meio crítico do que
uma explicação de como ela funciona. Assim, esse “companheiro”
não é uma ponte entre Bloom e o leitor não familiarizado com seu
sistema de pensamento e seu estilo de crítica literária, ainda que esse
leitor tenha familiaridade com a vasta biblioteca publicada por
Bloom. O livro é uma poética, nos dois sentidos principais do termo,
apresentando estudos que investigam os processos e os componentes
teóricos do sistema de pensamento de Bloom e, como abertura ao
compêndio, poemas escritos para ou sobre Bloom.
Cada ensaio apresenta sua própria bibliografia. Todas as
referências são as mais atualizadas sobre os temas tratados por cada
ensaio. A bibliografia exclusivamente sobre Bloom toma por
referência Frank Lentricchia (After New Criticism, Chicago, 1980),
Daniel O´Hara (The Romance of Interpretation: Visionary Criticism
from Pater to de Man, 1985), Jean-Pierre Mileur (Literary
Revisionism and the Burden of Modenity, 1985) e Peter de Bolla
(Towards Historical Rhetorics, 1988), todos recomendáveis para
estudiosos do pensamento pós-moderno, especialmente da ética, da
estética e produção cultural contemporânea.

*
Professora adjunta do Departamento de Letras da UFRN. E-mail:
ericksons@ufrnet.br.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 294-302.


Resenha 295

Na segunda parte há vinte e um ensaios. Alguns abordam a


teoria de Bloom e sua recepção na crítica contemporânea e a
inserção de seu pensamento no contexto do decontrucionismo de
Derrida e da Escola de Yale; outros tratam do esquema
metodológico desenvolvido por Bloom e das relações entre o
sistema de pensamento de Bloom e a cabala judaica. O prefácio é
dos organizadores e o posfácio (Afterword) do próprio Bloom. Os
ensaios sobre as relações do pensamento de Bloom com a cabala são
os melhores que já vi porque, além da erudição dos autores, a cabala
é tratada como forma e metodologia de pensar as relações do ser e
do tempo no tempo e não meramente como pensamento religioso ou
místico.
Talvez o público alvo do volume seja os estudiosos da
crítica e teoria literária. Digo talvez porque o nível de sofisticação
das discussões tem como leitor implicado aqueles que estão “por
dentro” das idéias de Nietzsche, Lyotard, Levinas e marxismo
contemporâneo. Mas, consciente do agon entre Literatura e
Filosofia, e dos riscos que corro, considero o livro interessante para
a área da filosofia, porque os ensaios discutem Bloom sempre a
partir dos referenciais teóricos mais sofisticados e “fundantes” da
deconstrução, ética, estética e teologia judaico-cristã com a devida
profundidade filosófica. Questões de alteridade e subjetividade
encontram suas bases na Fenomenologia de Heidegger e de
Merleau-Ponty; incursões sobre a natureza ideológica do cânone ou
da teoria de Bloom se fundamentam no velho Marx e na dialética do
esclarecimento de Adorno; questões éticas são levantadas a partir de
Levinas e as estéticas são embaladas por grandes sereianos
canônicos, como nos ensaios de Andrew H. Klitgaard (“Bloom,
Kierkegaard, and the Problem of Misreading”) e Martin McQuillan
(“Bloom, Freud e Derrida”). Assim, sem ser um diamante, o livro
tem suas pequenas pérolas para o deleite dos interessados nos temas
já destacados.
Alguns dos ensaios são fracos, a exemplo de “Sublime
Theorist: Harold Bloom´s Catastrophic Theory of Literature,” de
Heidi Sylvester, porque se limita a um esboço mal feito da teoria do
296 Sandra S. F. Erickson

sublime, cuja historiografia é bem mais complexa e interessante do


que ele apresenta. Além disso, o ensaio não consegue articular de
forma coerente, sistemática e objetiva, a contribuição de Bloom para
o assunto, que é significante e radical; qual seja a redefinição do
conceito freudiano de sublime como repressão de conteúdos
psíquicos ameaçadores ou desagradáveis para um contra-sublime,
que representa o confronto do poeta com a grandeza estética e o
poder poético deslumbrante do poeta-pai. No agon com o pai
poético ele tem que opor ao sublime do poema-pai um antídoto
(contra-sublime), ou seja, ele tem que lançar mão de sua força
poética para reduzir, afastar, ofuscar, distanciar-se, limitar e negar o
sublime no poema pai, não por introjeção ou repressão, mas, ao
contrário, por expectoração (expulsão). No sentido de Bloom,
sublime representa a necessidade do poeta de expelir de dentro de
seu imaginário, de sua psiquê poética, tudo o que se relaciona com o
poder lingüístico do poeta pai. Por isso, “solipsismo” e “transunção”
são termos usados como sinônimo de sublime. Sente-se falta, ainda,
nessa discussão, do ensaio de Jean-François Lyotard (Lessons on the
Analytic of the Sublime, traduzido para o inglês por Elizabeth
Rottenberg, 1994), pensador que é essencial para todas as
abordagens pós-modernas em qualquer área, inclusive a de Bloom.
E, enquanto é verdade, como Sellars aponta, em seu prefácio, que “o
sublime não pode ser pensado criticamente sem Bloom” (xix)
também não pode sê-lo, sem a reflexão de Lyotard do conceito a
partir do legado de Immanuel Kant até nós. Até Bloom.
Muitos ensaios como o de Peter Morris (“Harold Bloom,
Parody, and the Other Tradition”, 425-478), tratam da insistência de
Bloom sobre a centralidade de Shakespeare para o cânone. Essa
parte também é vulnerável, tanto no livro, como no próprio
pensamento de Bloom. Os comentários de Bloom não são
questionados nem problematizados com a devida perícia. O
problema é complexo, pois toca no sistema nervoso central da teoria
de Bloom.
A mudança de postura de Bloom com relação a Shakespeare
e Milton é objeto dos ensaios de Morris e John W. P. Phillips. Eles
Resenha 297

apontam, corretamente, que na primeira edição de Anxiety of


Influence (1973), Bloom coloca Milton no centro do cânone,
considerando-o a esfinge contra quem todo agonista tinha que se
confrontar para obter a Mãe-Musa (linguagem) e a quase impossível
individualidade poética. Na segunda edição (1997), Milton passa
para o escanteio.
Bloom esclarece, no Prefácio, que “não estava pronto para
mediar entre Shakespeare, e a originalidade” (Anxiety of Influence,
2nd ed., xii), porque, desde os quatrocentos anos de sua morte,
“Shakespeare influenciou o mundo muito mais do que foi
influenciado por ele” e ele “faz a história muito mais do que é feito
por ela” (xvi e xxvi). Os juízos já proferidos em Shakespeare: The
Invention of the Human (1998) são reafirmados e o Prefácio termina.
Não há mudanças substanciais na teoria. Todavia, o prefácio é
importante por colocar outro poeta acima de Milton, ou seja, por
rebaixar o status de Milton no cânone. Os paradigmas teóricos
continuam os mesmos, mas, as relações das linhagens poéticas
mudam substancialmente. Por que essa mudança radical de
paradigma?
O problema é mais complexo do que Morris coloca porque o
tropo principal de Milton é a alusão, que no esquema de Bloom é o
menor em termos de poder poético. Paradise Lost (1667) é uma
enciclopédia de referências clássicas através das quais Milton tenta
roubar o fogo da tradição épica. Todavia, não encontramos, como
em Shakespeare, viradas tropológicas radicais. É verdade, conforme
William Blake já apontou, que o Satã de Milton se torna, contrário à
intenção dele, o grande herói e que Satã consegue fazer com que
Deus se amesquinhe diante de nossos olhos, corações e mentes (e,
no desempate de pênaltis, acaba fazendo o gol da vitória). Também
é verdade que, ao tentar o projeto inviável de escrever um poema
épico a rigor do ponto da teologia cristã, Paradise Lost, é sim um
poema interessante e a as soluções de Milton para os problemas
“técnicos” para a escritura de uma épica cristã são criativas.
Todavia, o poema, do ponto de vista estrutural, não possui a força
poética de Homero e do ponto de vista do conteúdo é menos
298 Sandra S. F. Erickson

relevante ainda, pois sua titanomaquia não dá conta de Hesíodo e se


restringe aos leitores mais identificados com o cristianismo. Milton
é, como seu Sansão, seduzido pelo paganismo (Dalila); cego, ele
tenta arrebentar os pilares do templo. Arrebenta, mas sucumbe com
ele. Seu poema Samson Agonistes (1671) é bem emblemático desse
seu agon com a tradição grega.
Bloom consegue seu clinamem (“virada”) ao interpretar o
poema como uma guerra poética e ler, ou desler, Satã como o
protótipo do agonista em franca rebelião contra os pilares do cânone.
Mas, as estratégias de Milton são fracas, pois, conforme já
apontamos, seu tropo recorrente é a alusão, assim, Milton fica ali, na
primeira fase da luta poética, caindo, como Satã para o degredo do
inferno dos ressentidos que não conseguem dar a volta por cima, ou
seja, não realizam a apófrades.
Talvez o problema de Bloom tenha sido sua identificação
(provavelmente inconsciente) com as estratégias de Milton. Com
relação à literatura crítica sobre seu grande poeta, Bloom, como
Milton, não consegue mais do que o clinamen: ele é o porta-voz de
Johnson, Joseph Addison, John Dryden, Alexander Pope, William
Hazlitt, Walter Pater, Charles Lamb, Thomas de Quincey, Thomas
Carlyle, Algernon Charles Swinburne, George Santayana, sobre o
poeta. Desse modo, Bloom não consegue uma “postura poética”
(poetic stance) própria sobre seu bardo e nem sequer realiza uma
leitura desviante (swerving) da tradição. Ao contrário, seus
comentários sobre o grande bardo, revivem os juízos mais
poeticamente forte e criticamente consolidados sobre a supremacia
poética de Shakespeare. Juízos que qualquer amante das Nove,
como também da própria crítica literária não se cansa de ouvir, mas
que não acrescentam nada à fortuna crítica do poeta.
Por exemplo, ele poderia problematizar Romeu e Julieta,
peça que pode ser uma crítica ao amor paixão não apreciado pelos
renascentistas e uma exortação à obediência. Muito ao contrário do
que consta na fortuna crítica da peça, a qual Bloom endossa, O
mercador de Veneza é uma crítica ferrenha ao anti-semitismo. O que
é mais, A megera domada seria mais bem apreciada se os leitores
Resenha 299

compreendessem a teoria dos humores (importante para o


desenvolvimento da teoria sobre a melancolia) que é tematizada na
peça no tratamento de Petrucchio para o pretenso caráter irascível de
Kate.
Ao invés, Shakespeare: The Invention of the Human pouco
acrescenta às profundezas das peças, mesmo em Hamlet,
personagem que Bloom idolatra por considerá-lo representativo da
consciência moderna dos limites da ação, do pensamento e do
tempo. Hamlet é um príncipe, herdeiro legítimo de uma sucessão
real complicada pelo fato de que a rainha-mãe se casa, antes que ele
possa se apossar de e/ou exercer seus direitos políticos com o
possível assassino de seu pai e rei e, por isso, ele sequer pode
reclamar seu direito régio. Acusar o rei-padrasto, mas possível
assassino, de regicídio exigia muita habilidade. Hamlet era ainda um
espadachim competente, como se vê na tranqüilidade com que ele
encara – e vence – o duelo com Laertes, treinado na elite militar
francesa. Cercado por traição, é mais do que natural que ele suspeite
de tudo e de todos, inclusive da rainha-mãe, cuja lealdade (como
esposa, governante e súdita) ao rei-pai morto é incerta. Ele precisava
“dar uma de doido” até achar uma solução para seus muitos e
complexos problemas políticos, sua angústia de saber quem deveria,
por direito, ser ou não ser o rei legítimo da Dinamarca. Bloom não
está nem aí para nada disso.
O que torna seus comentários sobre Shakespeare relevantes
é o contexto. Atualmente, Shakespeare tem que competir pelo
espaço devotado à leitura nas academias e nos cursos de literatura
não apenas com os outros imortais. Por causa da política de
reorganização do cânone promovida pelos defensores da inclusão,
Will tem que competir também com mortais comuns – os agonistas
ainda no processo de seleção. Bloom expressa – e muito bem – a
necessidade de manutenção do espaço dos esteticamente fortes. O
cuidado com as seleções que possam descaracterizar o próprio
cânone. “Literatura alta”, ele defende (Anxiety of Influence, 2nd ed.,
xvii), “é exatamente isso, uma conquista estética e não propaganda
de estado”. Segundo ele, “em uma resposta para a tripla pergunta do
300 Sandra S. F. Erickson

agon – mais que, menos que, igual a? – não pode haver valor
estético (O cânone ocidental, 31).
Talvez na sociedade norte-americana sua revolta seja
pertinente. Não só porque o caráter privado da educação superior na
América faz com que as decisões curriculares sejam ditadas,
manipuladas e determinadas pelas demandas dos mercados do
capital, mas porque o estágio avançado do capitalismo selvagem na
América se manifesta através da alienação quase total dos valores da
cultura humanista que Bloom representa. A civilização de alta
tecnologia deixa cada vez mais menos espaço para a leitura, a
reflexão, as atividades humanísticas a partir das quais um novo
iluminismo possa ser articulado. A universidade privada, claro, não
é o lugar de debate, de evasão de angústias ontológicas e ideológicas
sobre o estado de coisas. Longe disso, é o próprio porta voz do
sistema. Contra ele Bloom se ergue. Por isso, os últimos humanistas
o consideram um herói. E ele o é.
Aqui no Brasil, a despeito do que se diz por aí, a leitura está
de vento em popa. Nunca se produziu, leu e comprou tanto livro.
Shakespeare, assim como a alta cultura que ele ironicamente
representa está em alta. A universidade pública da qual somos
gestores garante os cursos e os currículos humanísticos dos quais
também somos gestores.
O livro trás também um ensaio, “On the Raft Stone” (149-
169) de Christopher Rollason, sobre a relação de Bloom com as
literaturas portuguesas que pode ser de especial interesse para nós.
Rollasson salienta a benevolente postura de Bloom para com as
literaturas portuguesas, ressaltando o lugar destacado que o escritor
português José Saramago conquistou na lista de canônicos de
Bloom. A Catalunha, aquela pequena comunidade autônoma da
Espanha, terra natal de Salvador Dali, também tem sido efetiva em
fazer chegar ao cânone seus candidatos. Rollason fala do ponto de
vista eurocêntrico, pois nós, conterrâneos de Euclides da Cunha,
Augusto dos Anjos e Guimarães Rosa ainda estamos, assim como o
genial escritor peruano naturalizado espanhol, Mario Vargas Llosa a
ver navios...
Resenha 301

Outro ensaio fraco é o de Maria Rosa Menocal, professora


de Estudos Medievais e Culturais em Yale, “How I Learned to Write
Without Footnotes”, onde as críticas e objeções que o estilo
medievalista (ausência de citações, referências, bibliografia – enfim
do aparato acadêmico ensinado, exigido e reforçado pela e para a
escritura acadêmica erudita) de Bloom são tratadas. Evocando o
exemplo insólito de Erich Auerbach que escreveu Mimesis enquanto
se exilava do nazismo na Turquia sem biblioteca e sem livros,
Menocal tenta justificar a postura de Bloom.
Conforme a própria Menocal admite, o caso de Bloom não é
o de Auerbach. Sua recusa de providenciar referências para o leitor é
mais uma de suas provocações, pois o leitor tem que sozinho
decifrar a dívida enorme do autor para com a tradição. No caso de
Shakespeare, por exemplo, a grande maioria de seus comentários –
exceto a “coisa da ansiedade,” como atualmente ele se refere à sua
teoria – o que ele diz do bardo já está escrito e inscrito na fortíssima
e enorme fortuna crítica. A própria tese de que somos invenção de
Will está no clássico ensaio, “Preface to Shakespeare” (1765), de
Samuel Johnson (1709-1784). Apesar do feito inédito de reunir num
só volume comentários sobre cada uma das peças de Shakespeare,
alguém que conhece os ensaios dos críticos shakespereanos mais
poderosos ficaria desapontado e insatisfeito. Bloom, como já
observamos, não realiza sua poetic stance e nem sequer produz uma
leitura desviante da tradição. Ao contrário, sua leitura é
completamente inserida, espelhada da tradição a qual ela reflete e
remete. Desse modo, seu compêndio pode levar ao leitor não
familiarizado com a crítica a conclusões errôneas e assumir que
muitas teses ali contidas são teses de Bloom.
Como parte do sistema acadêmico, sou a favor da escrita
acadêmica culta e dos rituais pertinentes à escritura, especialmente
as referências. A prática medievalista da imitatio já foi superada
pelo próprio desenvolvimento das técnicas da escrita. Para os que
escrevem como profissão, é estranho essa volta ao passado. Como
vamos insistir com os nossos alunos que incluir referências é parte
essencial dos rituais acadêmicos, é parte do rito de passagem
302 Sandra S. F. Erickson

acadêmico de se inserir no banquete das falas da tradição? Uma fala


que é como uma tocha passando de geração a geração e que faz
parte do ritual dar crédito aos que nos precederam no banquete.
Referências servem ainda ao propósito de reverenciar a tradição da
pedagogia da e pela palavra. A crítica é poesia, conforme o próprio
Bloom mantém, mas seu exercício poético se dá em um modo de
produção diferente e diferenciada. Enquanto o poeta pode e deve
usar e abusar da licença poética, e, assim, do tropo “alusão,” o
crítico, que opera numa esfera mais pedagógica (no sentido de
educar o leitor para a apreciação da poesia) deve deixar claro o que e
o como do que está fazendo.
Mesmo tendo sido compilados por seus amigos e
admiradores, os ensaios realmente discutem Bloom no melhor da
tradição da crítica literária inglesa: com honestidade e agon. Críticas
sérias e competentes são oferecidas aos postulados e os leitores não
familiares com o espírito de disputa inglesa e com a seriedade com
que o ofício é exercido, poderiam perguntar: com amigos como
esses, quem precisa de inimigos? Apesar de estudar Bloom há vários
anos, considero a coletânea um valioso instrumento de atualização
sobre o sistema de Bloom e sobre as questões estéticas que estão no
topo da pauta dos debates culturais e literários de hoje.
Bauchwitz, Oscar Federico. A caminho do silêncio: a
filosofia de Escoto Eriúgena. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2003. 130 páginas. [Coleção Metafísica, n. 1].

Soraya Guimarães da Silva *

O filósofo Oscar Bauchwitz interpreta em seu livro A caminho do


silêncio a obra de João Escoto Eriúgena, atendo-se especialmente
sobre o Periphyseon, Sobre a Natureza (De Divisione Naturae),
onde vai buscar nos revelar o sentido fundamental do silêncio. Ao
ter como argumento inicial uma reflexão sobre o lugar do silêncio
no mundo contemporâneo, o autor nos leva à questão do silêncio,
pensado enquanto seu sentido fundamental. Falar sobre o silêncio
impõe em si uma superação que, em Eriúgena, como defende o
autor, se dá na comprovação da existência divina que confronta a
própria palavra. O pensamento sobre o silêncio vai servir, então, de
base para uma análise da obra do místico irlandês, na medida em
que o tema sustenta, de acordo com o autor, o “equilíbrio dialético”
(p. 12) de sua filosofia. Assim, Bauchwitz disserta sobre o princípio
da obra eriugeniana, sobre o conceito primeiro de physis, natura,
num pensamento sobre o ser e não ser, sobre palavra e silêncio – o
além de qualquer significação. Como vai se confirmar na leitura da
obra completa, é pois o caráter particular de sua abordagem que
torna esse livro chave, como resultado de um acurado trabalho de
pesquisa que tem o mérito de tornar público o legado de Eriúgena e
da filosofia medieval. Bauchwitz é capaz de, em refletindo sobre a
idéia do silêncio, incorporar de maneira clara e com propriedade,
numa só obra, o fundamental e singular da obra do filósofo irlandês.
A caminho do silêncio é, digamos, uma versão mais literária
da tese de doutorado de Oscar Bauchwitz, defendida com o título
original de “Hacia el silencio – para uma fundamentación ética a
*
Doutoranda do Programa Interinstitucional de Filosofia UFPB-UFPE-
UFRN.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 303-306.


304 Soraya Guimarães da Silva

partir de la filosofía de Juan Escoto Eriúgena”, pela Universidade de


Salamanca, em 1999.
O primeiro capítulo, “A natureza como palavra e silêncio:
ser e não ser” dedica-se, no Periphyseon, ao conceito criado por
Eriúgena para definir a natureza. Um ponto interessante a destacar
neste trecho da obra é o caráter de intertextualidade entre a
construção histórica da definição de physis e da origem da filosofia.
A diferença fundamental que como o autor defende é fundação da
própria filosofia é discutida num pano de fundo à inquietação do
filósofo irlandês, na apresentação dos seus modos de interpretação
da diferença entre ser e não ser. Surge também neste capítulo um
conceito chave: o de participação, apresentado também de modo
esclarecedor para a compreensão do todo da obra do místico. “A
partir da diferença fundamental entre ser e não-ser, palavra e
silêncio, funda-se uma perspectiva que abarca toda a natureza. Essa
perspectiva compreende em si mesma tudo o que é e o que não é”
(p. 35).
No que concerne às fontes de pesquisa, o autor demonstra
acuracidade ao apoiar-se em referências como Édouard Jeanneau e I.
P. Sheldon-Williams, reconhecidos pelas suas contribuições aos
estudos de filosofia medieval, em especial, sobre a obra de Eriúgena
para a Academia.
A doutrina da teofania é tematizada no terceiro capítulo,
onde são apresentados conceitos importantes como o do “fazedor”
(offina ominium); “o mundo de fantasias” (in mundo suo). Nesse
ponto da obra, torna-se claro para o leitor como se dá o
conhecimento de Deus, de forma indireta, por meio da palavra, as
teofanias. “Deus se mostra em suas teofanias e o digno nelas é que
permitem ao homem conhecer não o que é Deus, senão
simplesmente o que é” (p. 68).
No quarto capítulo, em que o autor discute o paradoxo da
simultaneidade da eternidade e da criação do nada apenas parece
afastar-se da questão própria do silêncio para tratar indiretamente do
problema do devir, da criação ex nihilo. Bauchwitz defende a
introdução da questão do nada como prerrogativa para uma analítica
Resenha 305

do ser do homem. No capítulo cinco, a figura do homem é então


apresentada como a imagem e semelhança do divino. “O homem é
Deus por participação e graça” (p. 109). Mas é propriamente no
discurso sobre a possibilidade de definição do homem pela palavra
que o autor retoma o fio condutor central da tese, a saber, o
problema do ser e não ser a partir da palavra e silêncio. Neste ponto,
o leitor é levado à intricada compreensão da mística eriugeniana,
onde se demonstra a impossibilidade de definição do homem e de
Deus, visto que estão além do conhecimento lógico. No entanto, há
que se considerar sempre as particularidades da filosofia de sua
época, na qual o supracitado esforço de pensar Deus confunde-se
com a motivação de se provar a existência de Deus, em última
instância; aqui não ignoramos que nem todos os comentadores
compartilham desta mesma visão crítica.
As notas explicativas são um diálogo correlato
indispensável aos pesquisadores, revelando a marcante
intertextualidade da obra. Porém, ao leitor cabe o esforço extra de
mergulhar no universo da mística medieval a fim de reconhecer a
importância e amplitude deste estudo.
No sexto capítulo, o autor finalmente demonstra como é
possível superar o que seria um obstáculo para a condução de sua
pesquisa: a ausência, em Eriúgena, da definição conceitual de
silêncio. “Utilizando termos mais nossos que seus, o silêncio se
mostra fundamental, seja contemplado por uma (me)ontologia, seja
por uma epistemologia” (p. 119).
A caminho do silêncio reúne, nos principais elementos de
sua tese, o pensamento sobre a liberdade humana e sua própria
natureza, o pecado inerente à sua existência e, por fim, o próprio
silêncio como limite da experiência do conhecimento sobre o
Divino, ao passo em que constitui-se como contraprova de sua
suprema existência. Ao final da leitura, podemos nos indagar, não
obstante o domínio na condução do tema, para onde é conduzido o
leitor; como e em que condições o pensar sobre o silêncio ao modo
da teofania eriugeniana pode nos levar a pensar sobre o hoje.
Indubitavelmente, este livro demonstra que a obra do filósofo
306 Soraya Guimarães da Silva

irlandês abre caminho para um pensamento renovado. Oscar


Bauchwitz conclui de forma, porque não dizer, poética, um
pensamento que, guiado pela mística medieval, torna-se, no hoje,
por demais eloqüente para quem propõem-se a falar sobre o silêncio.
Erickson, Glenn W.; e Fossa, John A.. A linha dividida:
uma abordagem matemática à filosofia platônica. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2006. 186 páginas. [Coleção
Metafísica, n. 4].

Jorge dos Santos Lima *

Entre muitos assuntos sobre Platão há um que concentra poucos


debates no Brasil. A discussão, como se observa nos encontros de
filosofia nacionais e regionais, sobre o tema “linha dividida em
Platão” tem sido minimamente explorado. Interpretar essa questão é
assunto por demais complicado devido à variedade de direções no
pensar os escritos de Platão. Portanto, objetiva-se aqui apenas
analisar e comentar uma das obras que ousa refletir e indicar
caminhos de reflexão sobre o tema em apreço, essa é A linha
dividida: uma abordagem matemática à filosofia platônica, escrita
por Erickson e Fossa.
A problemática principal dessa obra é: qual a importância e
significado da linha dividida para o pensamento platônico? Depois
surgem outras como: qual a estrutura da linha dividida? Como a
matemática fundamenta essa estrutura? Desse modo vê-se Erickson
e Fossa tecerem uma interpretação que possui certa coerência em
abordar o pensamento de Platão. Eles afirmam de forma plausível
que há um núcleo na filosofia de Platão. O núcleo é a linha dividida.
Parece estranho para alguns comentadores entender se há e o que é
esse núcleo, assim a leitura das propostas de Erickson e Fossa é
valorativa para o debate filosófico no Brasil e no mundo. Convém
ainda enfatizar que a obra é uma publicação recente e passiva de
algumas modificações, mas que seu conteúdo é, mesmo assim,
significativo para a filosofia.
N’A linha dividida de Erickson e Fossa, além da discussão
sobre Platão em seis capítulos exclusivos há dois dedicados à

*
Professor substituto do Departamento de Filosofia da UFRN.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 307-312.


308 Jorge dos Santos Lima

relação entre o pensamento de Platão e Aristóteles. Nesse sentido,


convém expor de forma breve o conteúdo de cada capítulo para
depois lançar algumas considerações críticas.
No primeiro capítulo, “Razões Irredutíveis e Triângulos
Pitagóricos”, é exposto o que é um triangulo pitagórico e, na medida
em que se enfatiza sua presença nos contextos religiosos, científicos
e culturais na antiguidade, destaca-se sua influência na reflexão
filosófica. Naquela época grandes filósofos, como Pitágoras e
Platão, ocuparam-se com a matemática dando surgimento a
explicações diferenciadas sobre questões a exemplo do que ficou
conhecido por triângulos pitagóricos. Assim, hoje são conhecidas a
fórmula pitagórica, a fórmula de Platão e a babilônica como origens
de tais triângulos apesar de ser mais difundida a pitagórica.
Erickson e Fossa explicam a origem do triângulo pitagórico
através da fórmula pitagórica e da fórmula platônica e como essas
duas se originam da fórmula babilônica uma vez que os babilônicos
conheciam uma maneira de gerar triângulos pitagóricos antes
mesmo de Pitágoras. Nessa discussão sobre as três fórmulas,
Erickson e Fossa, ao apresentarem as relações entre elas, comentam
ainda que a fórmula babilônica tinha surgido primeiro, depois a de
Platão e, por fim, a fórmula pitagórica na medida em que “fica
difícil ver como a Fórmula de Pitágoras se deriva da fórmula dos
babilônios sem passar primeiro pela Fórmula de Platão” (p. 18).
Desse modo, tecem e explicam passo a passo as relações entre essas
fórmulas e como a fórmula de Platão está ligada a alegoria da linha
dividida expressa no final do livro VI d’A República. A fórmula de
Platão, portanto, é o alicerce matemático da linha dividida, ou seja, é
o fator responsável pela compreensão de que a linha dividida é uma
doutrina metafísica emergida do interior do saber matemático.
Nesse sentido, Erickson e Fossa utilizam a matemática
pitagórica presente em Platão para justificar que a linha dividida é o
núcleo do pensamento platônico. Apesar de ser exposto no fim do
livro VI numa linguagem simples, a alegoria da linha dividida
assume um alto teor de complexidade quando é colocada sob o crivo
da matemática. Essa linguagem complexa não fica apenas no campo
Resenha 309

da reflexão matemática, mas promove a fusão entre reflexão


metafísica e matemática.
O segundo capítulo: “A Dialética”, inicia fazendo menção
às influências pitagóricas em Platão e a repercussão, sobre sua
postura literária e filosófica, da morte de seu mestre Sócrates. Esses
elementos e outros, a exemplo da convivência com o tirano Dionísio
em Siracusa, afirmam Erickson e Fossa, levam Platão a alcançar sua
maturidade intelectual. Platão, na fase madura de sua vida, revê seus
pensamentos dando-lhes maiores conotações pitagóricas.
Nesse capítulo, discute-se mais uma vez a presença
matemática na filosofia platônica ao considerar-se que a linha
dividida é uma doutrina e que está “profundamente imbuída com a
visão pitagórica de que o universo é, de fato, um universo
matemático” (p. 56). Assim, retomam a discussão analisando a
estrutura filosófica da doutrina da linha dividida.
A linha dividida é uma doutrina porque o pensamento de
Platão está organizado segundo a estrutura presente nessa linha.
Porém, inclusive a própria linha dividida, enquanto pensamento
filosófico que representa os pathematas da alma, está estruturado
por ela mesma. Dizem Erickson e Fossa: “a própria Linha Dividida
deveria ser entendida em relação a um dos quatros modos de
apreensão postulado por esta doutrina” (p. 57). Os modos de
apreensão são: eikasia, pistis, diánoia e nóesis. A linha dividida se
auto-estrutura em cada um desses modos ou partes consoante o todo
de sua estrutura.
Depois de pensar a linha dividida como estrutura de si
mesma, o capítulo dois expõe brevemente como ocorre essa
estruturação das partes segundo o todo da linha, e, depois, conclui
com algumas considerações relacionais entre Platão, o
neoplatonismo e Aristóteles.
Enquanto no primeiro capítulo há uma explicação de quais
são as bases matemáticas da linha dividida, no segundo está em
destaque as origens matemáticas do pensamento platônico e suas
abrangências no mundo antigo clássico através dos neoplatônicos e
Aristóteles, esboçando, no centro do capítulo, sua interpretação
310 Jorge dos Santos Lima

sobre o significado da linha dividida. Assim, Erickson e Fossa, após


esses comentários limitam-se nos próximos três capítulos a esmiuçar
o que se mencionou até o momento sobre a linha dividida, isto é,
como a linha dividida se articula em cada um dos quatro modos de
apreensão.
No terceiro capítulo: “A caverna”, explica-se a abordagem
da linha dividida no nível da eikasia, aqui, “a doutrina da Linha
Dividida é simplesmente o mito da caverna” (p. 67). Erickson e
fossa comparam as etapas presentes no mito com os níveis da linha
dividida e demonstram que o mito da caverna é um discurso
equivalente ao modo de apreensão da eikasia. Depois, no capítulo
seguinte: “Ciência”, aplicam a mesma Doutrina da Linha Dividida a
pistis ao denominarem este segmento de formas cosmológicas ou
opinião científica e, logo em seguida no capítulo cinco: “A
matemática”, a diánoia no sentido de significar formas matemáticas.
Em cada um desses capítulos os dois autores explanam o porquê do
uso de termos para interpretar cada uma das secções são diferentes
dos que outros comentadores utilizam.
Enquanto a Doutrina da Linha Dividida na eikasia é
expressa como o mito da caverna (cap. 3); na pístis (cap. 4), essa
Doutrina surge ainda na figura dos mitos pois são apenas discursos e
histórias plausíveis (p. 90) que possuem um fim prático sustentado
nos interesses humanos. Nesse contexto, os tipos de República, pois
referem-se a discursos práticos, podem ser o campo de expressão da
Doutrina da Linha Dividida para o modo de apreensão pístis. Porém,
porque os dois modos de apreensão, citados aqui, estão limitados à
opinião, não é possível o reconhecimento de alguma verdade.
O capítulo cinco possui uma discussão com maior
profundidade, do que os comentários do capítulo dois, sobre a
matemática na metafísica de Platão. Faz-se uma abordagem histórica
sobre as influências das reflexões matemáticas em Platão e culmina
numa análise criteriosa sobre o papel da matemática na formação do
filósofo através do estudo das disciplinas numéricas no fim do livro
VII. Uma forma de perceber a presença da Doutrina da Linha
Dividida no modo de apreensão nóesis é pela ordenação hierárquica
Resenha 311

das disciplinas que são: aritmética, geometria, estereometria,


astronomia e música.
Durante a exposição de cada uma delas, Erickson e Fossa
demonstram como a linha dividida está presente nesses saberes e
qual a repercussão do estudo das relações entre as disciplinas
numéricas com os modos de apreensões inferiores à diánoia. Agora,
após ascender à diánoia há um descer para nova apreciação dos
modos de apreensão no mundo da opinião.
Concluído as considerações sobre o capítulo cinco que se
refere à diánoia poderia se esperar que o próximo capítulo aborde o
nível da nóesis tal como é comentado no capítulo dois. Porém
Erickson e Fossa se abstêm dessa tarefa e preferem demonstrar
exemplos citados por Platão que focalizam as relações entre
matemática, ciência e prática. O capítulo analisa as passagens do
número nupcial (geométrico) e o número da criatura divina como
constam no livro VIII d’A República.
Os dois últimos capítulos, “Uma Nota de Rodapé” e “Outras
Notas de Rodapé”, analisam a Doutrina da Linha Dividida na sua
relação com o pensamento de Aristóteles e outros filósofos da
antiguidade e do século XX. De um lado, o capítulo sete enfatiza
detalhadamente a filosofia aristotélica como complementar a
Doutrina da Linha Dividida em Platão. Por outro lado, o capítulo
oito analisa o segmento da linha dividida detentora do modo de
apreensão diánoia por diferenciar Aristóteles de Platão. Para
Aristóteles os elementos do terceiro segmento são as categorias e
para Platão, como diz Erickson e Fossa, são as formas matemáticas.
Por fim, neste último capítulo faz-se uma análise das mudanças que
ocorreram na filosofia, as quais mantiveram a estrutura da linha
dividida como fator de incentivo, crítica e amadurecimento do
pensamento de filósofos como Nietzsche, Descartes, Heidegger
dentre outros.
A linha dividida de Erickson e Fossa é uma obra intrigante,
inquietante e de enorme contribuição para a crítica no pensamento
platônico. A exposição realizada até o momento, concentra-se em
expor algumas idéias principais de cada capítulo, porém não traduz a
312 Jorge dos Santos Lima

amplitude de sua relevância. É certo que alguns pontos devem ser


repensados pelos autores, principalmente a respeito da interpretação
de termos em grego, assim, deve-se considerar que os dois autores
tentam manter certa fluidade no texto sem a preocupação de indicar
as fontes de alguns comentários e parágrafos.
Não é fácil ler e compreender esse escrito de Erickson e
Fossa porque fica evidente que a obra não está direcionada para um
público propedêutico em filosofia. O primeiro capítulo demonstra
que o leitor deve ter uma mente experimentada nas dificuldades da
leitura filosófica para poder perceber o jogo de idéias inovadoras
que, em muitos casos, precisam ser ainda desenvolvidas,
aprofundadas. A linha dividida, mais que um escrito filosófico, é um
discurso que leva o leitor atento a fluir seu pensar para novos
horizontes de interpretação de Platão e de toda a filosofia.
Princípios
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Lista de Pareceristas da Revista Princípios 2007

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Celso Reni Braida (UFSC)
Cinara Maria Leite Nahra (UFRN)
Claudio Ferreira Costa (UFRN)
Daniel Durante Pereira Alves (UFRN)
Denílson Luis Werle (USJT)
Edrisi de Araújo Fernandes (UFRN)
Fernanda Machado Bulhões (UFRN)
Flávio Miguel de O. Zimmermann (USP/Fapesp)
Gigi Anne Horbatiuk Sedor (UFSC)
Giovani Mendonça Lunardi (UNIR)
Glenn Walter Erickson (UFRN)
Jaime Biella (UFRN)
José Claudio Morelli Matos (UDESC)
Juan Adolfo Bonaccini (UFRN)
Luís Felipe Bellintani Ribeiro (UFSC)
Marcos Rodrigues da Silva (UEL)
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Markus Figueira da Silva (UFRN)
Oscar Federico Bauchwitz (UFRN)
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