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DOR E CULTURA

modos de produção e às instituições de


PIMENTA, C. A. M. & PORTNOI, A. G. Dor
trabalho (Helman, 1994).
e Cultura. In: CARVALHO, M. M. Dor: um
Estudo Multidisciplinar. Summus, São Grande parte dos valores, crenças e
Paulo, 1999, p.159-73 atitudes relativos à saúde é adquirida
durante a infância no processo de
socialização, que é quando os padrões de
“A quantidade e a qualidade da dor que comportamento característicos de um grupo
sentimos é determinada pelas nossas são aprendidos.
experiências prévias e de quanto bem nos
Valores são objetivos sociais considerados
lembramos delas; pela capacidade de
como desejáveis de obtenção; são também
entender suas causas e compreender suas
as normas, princípios ou padrões sociais
conseqüências. Ainda, a cultura em que
aceitos e mantidos pelo indivíduo e pela
estamos inseridos tem papel essencial em
sociedade. Valor é algo cuja importância foi
como sentimos e respondemos à dor”.
estabelecida ou arbitrada de antemão.
(Melzack & Wall, 1991)
Crenças são convicções íntimas
culturalmente compartilhadas, são noções
Dor no Processo de Socialização pré-existentes sobre a realidade, são
formas de assentimento que, embora
Dor foi considerada como uma emoção por objetivamente insuficientes, subjetivamente
Aristóteles e como uma sensação por se impõem com grande evidência. Atitudes
Descartes. A dor enquanto experiência são disposições estáveis e duradouras que
culturalmente aprendida, embora incluída implicam na tendência a responder às
na definição atualmente aceita sobre dor, pessoas, instituições ou eventos tanto
não tem sido enfatizada pelos estudiosos positiva quanto negativamente, isto é,
do tema. envolvem a necessidade de classificar e
Cultura pode ser definida como “um categorizar. Comportamento pode ser
complexo de conhecimentos, crenças, definido como respostas observáveis
artes, moral, leis, costumes e quaisquer objetiva e publicamente. Em síntese,
outras habilidades ou hábitos adquiridos valores são os objetivos e princípios de
pelo homem enquanto membro de uma uma sociedade, crenças são noções
sociedade”. As culturas são “sistemas de prévias e convicções íntimas
idéias compartilhadas, sistemas de compartilhadas culturalmente e atitudes são
conceitos, regras e significados que disposições organizadas para a ação que
subjazem e são expressos nas maneiras se refletem diretamente no comportamento
pelas quais os seres humanos vivem”. Este de indivíduos e grupos. (Chaplin, 1986;
conjunto de princípios, implícitos e Lazarus & Folkman, 1984; Ferreira, 1986).
explícitos, ensina ao indivíduo o modo de O processo de socialização é essencial ao
“ver” os fatos, como percebê-los, como desenvolvimento de valores, crenças,
vivenciá-los emocionalmente, como lhes atitudes e comportamentos relativos à dor.
atribuir significados e como se conduzir A internali-zação destes elementos culturais
diante deles. A cultura é como uma “lente” inicia-se na infância e é denominada
através da qual se vê o mundo. A aquisição socialização primária. O processo de
desta “lente” é gradual e deve-se internalização de aspectos do mundo
principalmente à família, ao sistema familiar é realizado como “único mundo
educacional, às instituições religiosas, aos possível” e não como “um dos mundos
possíveis”. Disto resulta que os aspectos

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culturais internalizados na infância são expressão de dor em meninas e mulheres é
muito mais arraigados do que os que se mais tolerada por representar fragilidade e
originam da socialização secundária. vulnerabilidade (Meinhart; McCaffery, 1983;
Socialização secundária é a internalização Bates, 1987). A dor é parte integrante de
dos “outros mundos possíveis”, isto é das todos os relacionamentos precoces e se
diversas subculturas institucionais tais associa a sentimentos de acolhimento e
como escolas, profissões, trabalhos, etc. conforto, punição e culpa. Desde a infância
Estas subculturas constituem realidades o choro induzido pela dor provoca
parciais que contrastam com o “único respostas de ajuda na mãe ou em terceiros.
mundo possível” da cultura familiar e da Crianças quando se machucam e
socialização primária, o que implica que expressam sua dor costumam ser levadas
certos conteúdos, para serem devidamente ao colo, acariciadas e consoladas e,
internalizados, deverão se sobrepuser a quando se “comportam mal”, costumam ser
outros já existentes (Berger, Luckman, castigadas, taxadas de “más” e induzidas a
1996). É importante ressaltar que fatores sentimentos de culpa e arrependimento.
como genéticos, a idade, o sexo, a Cabe ressaltar que a dor infligida pelo
aparência, a personalidade, a inteligência, “castigo” corporal representa uma forma de
entre outros, interferem, de modo crucial, expiação da culpa (Engel, 1959).
na internalização da realidade objetiva. No
entanto, “a cultura exerce importante
influência em muitos aspectos da vida das Tolerância à Dor e Cultura
pessoas, incluindo suas crenças, A bagagem cultural tem um poderoso efeito
comportamentos, percepções, emoções, na tolerância à dor, uma vez que estímulos
língua e linguagem, religiões, estrutura que produzem dor insuportável para uma
familiar, alimentação, vestuário, imagem pessoa podem ser perfeitamente toleráveis
corporal, conceitos de espaço e tempo, por outra.
além das atitudes em relação à doença, dor
e outras formas de infortúnio” (Helman, O conceito de dor atualmente aceito
1994). compreende três componentes: o sensitivo-
discriminativo (sensação física), o afetivo-
Enquanto unidade social básica, a família motivacional (emocional) e o cognitivo-
possui função mediadora entre as avaliativo (pensamento). A informação
demandas individuais e as normas sociais. dolorosa é transmitida da periferia para o
Para o indivíduo, representa o grupo sistema nervoso central e, ao atingir as
primário e a primeira fonte significativa de estruturas encefálicas, interage com fatores
comparação e aprendizado, passíveis de emocionais e culturais que podem interferir
influenciar a atenção dada aos estímulos e modificar a percepção da informação
dolorosos e às lembranças de experiências inicial. A experiência dolorosa resulta da
anteriores. Para a sociedade, a família interpretação do aspecto físico-químico do
responde pela formação dos estímulo nocivo e da sua interação com
comportamentos precoces relativos à dor fatores emocionais e culturais individuais
permitindo que certas respostas sejam que estejam de alguma forma relacionados
reforçadas e outras ignoradas ou mesmo à dor tais como o humor, experiências
punidas. anteriores, crenças, atitudes, conhecimento,
Os métodos de educação infantil das significado simbólico atribuído à queixa
diferentes culturas influenciam ativamente a dolorosa, entre outros. A apreciação da dor
formação de condutas e expectativas frente é uma experiência privada e subjetiva que,
à dor na idade adulta. O estoicismo diante como descrito anteriormente, não resulta
da dor em meninos e homens é um apenas das características da lesão
componente cultural associado a valores tecidual (Melzack; Wall, 1991).
como coragem e virilidade, enquanto que a

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As variações na experiência dolorosa entre significativas. Essas diferenças se
as pessoas se devem, entre outros fatores, mostraram compatíveis com a diversidade
a diferenças nos limiares de dor. Os atitudinal frente à experiência dolorosa,
limiares de dor são medidos através da previamente conhecida nesses grupos. As
aplicação de estímulos (choque, calor, mulheres descendentes de italianos
pressão) de intensidade crescente, a uma apresentaram menor tolerância à dor do
pequena área da pele. O limiar de que as americanas e as de origem judaica
percepção à dor representa a menor (Sternbach; Tursky, 1965). Em população
intensidade em que o estímulo passa a ser semelhante à descrita anteriormente, a
percebido como doloroso. A tolerância à dor comparação de outros parâmetros
é a menor intensidade em que o estímulo fisiológicos (batimentos cardíacos, potencial
passa a ser percebido como desconfortável e resistência galvânica da pele, temperatura
a ponto do indivíduo se retrair e/ou solicitar facial e respiração) reforçou o achado de
sua interrupção. Embora o limiar de que as diferenças fisiológicas entre os
percepção à dor seja muito semelhante grupos étnicos estudados se comportavam
entre os indivíduos, a tolerância à dor varia de maneira paralela às suas atitudes com
muito e está relacionada a fatores relação à dor (Tursky; Sternbach, 1967).
sensoriais (extensão e localização da lesão
Diferentes grupos étnicos podem se
tecidual, fatores genéticos (relativos ao
assemelhar na maneira como expressam a
sistema nociceptivo e de modulação da
dor, entretanto, os fatores que influenciam a
dor), emocionais (medo, raiva, ansiedade,
expressão individual podem ser bastante
depressão), culturais (aprendizagem,
distintos. Quando as expressões de dor de
experiências anteriores, significado
pacientes com dores faciais pertencentes a
simbólico da dor) e sociais (possíveis
diferentes grupos culturais (negros,
ganhos secundários de ordem econômica,
irlandeses, italianos, judeus e porto-
social e afetiva). Frente à ampla gama de
riquenhos) foram comparadas, a análise
fatores envolvidos na apreciação e
dos resultados demonstrou que, para a
expressão da dor, a sensação de
maioria dos aspectos da comunicação da
desconforto resultante da estimulação
dor, existia uma homogeneidade entre os
nociceptiva tende a variar muito entre os
grupos. No entanto, os fatores que
indivíduos. Os profissionais, cientes do
influenciam a expressão apresentavam-se
caráter multidimensional, individual e
heterogêneos dentro de cada grupo (Lipton;
privado da experiência dolorosa, devem
Marbach, 1984).
atentar que os doentes sejam vistos como
autoridades sobre sua dor). O efeito cultural passa a ser mais evidente
no que se refere aos limiares de tolerância
Os fatores culturais parecem interferir de
à dor. Os indivíduos tendem a mudar
maneira determinante sobre os limiares de
significativamente seus padrões de
dor. Existe uma estreita relação entre as
comportamento de acordo com sua
reações fisiológicas dos indivíduos e as
associação a diferentes grupos A tolerância
atitudes relacionadas à dor desenvolvidas
à dor de mulheres judias e protestantes foi
durante o processo de socialização. A
comparada em dois estudos distintos. No
comparação de limiares de percepção à
primeiro estudo as pessoas foram tratadas
dor, tolerância à dor e resposta galvânica
como estudantes voluntárias para participar
da pele de donas de casa pertencentes a
de uma investigação científica e eram
diferentes grupos étnicos (pioneiros
informadas que seu grupo religioso tolerava
americanos, judeus, italianos e irlandeses)
menos a dor que outros grupos religiosos.
revelou que as diferenças de limiar de
No segundo estudo, foram tratadas como
percepção à dor não foram significativas,
membros de um grupo religioso e, em
mas a tolerância à dor e as respostas
subgrupos, foram informadas que seu
galvânicas da pele apresentaram diferenças
grupo tinha como característica tolerar mais

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ou menos dor do que outros grupos Significado Cultural da Dor
religiosos, deixando claro que a
O aprendizado social é essencial no
comparação era entre judeus e
desenvolvimento dos significados atribuídos
protestantes. No primeiro estudo apenas as
à dor dentro do contexto cultural. Este
mulheres judias revelaram aumento nas
aprendizado se inicia na unidade familiar e
médias de tolerância à dor, e, no segundo,
se modifica, integra e mantém, na
tanto as judias como as protestantes
convivência social mais ampla. Em grande
aumentaram sua tolerância à dor (Lambert;
parte das culturas, a dor é considerada
Libman; Poser, 1960).
como uma das possíveis fatalidades que
Comparações entre grupos tendem a podem ocorrer a seus membros. Diante de
aumentar a tolerância à dor. Os limiares de uma experiência dolorosa os indivíduos
tolerância à dor induzida por choque costumam se perguntar: “Porque isto
elétrico foram comparados entre homens aconteceu comigo?” ou “O que eu fiz para
agrupados por diferentes graus de merecer isto?” Em busca de respostas para
identificação de acordo com a estas questões recorrerem não apenas à
nacionalidade, sexo, religião, vocação, ciência, mas às religiões, às crenças e aos
idade, etc. Os limiares foram avaliados valores morais de sua cultura.
através de duas séries de choques, sendo
As religiões desempenham um papel
que entre a primeira e a segunda série, os
importante no processo de socialização.
indivíduos recebiam informações falsas
Elas representam um conjunto organizado
sobre o nível de tolerância à dor de seu
de crenças e práticas, cuja finalidade é a de
grupo de referência. Estas informações
responder pela orientação ética, filosófica e
aumentaram os limiares de tolerância na
ideológica de um determinado grupo. As
segunda avaliação, sendo que, quanto
religiões moldam a percepção que o
maior o grau de identificação maior foi o
indivíduo tem de si mesmo e também sua
aumento na tolerância à dor (Buss; Portnoy,
resposta à dor. A fé religiosa pode auxiliar
1967).
muito na tolerância à dor, mas pode,
A presença de modelos pode influenciar os também, levar o indivíduo a interpretar a
limiares de dor. A avaliação de indivíduos dor como punição e procurar, em preces e
expostos a modelos que simulavam rituais, o perdão para possíveis erros (Wolff;
diferentes níveis de desconforto e Langley, 1968; Meinhart; McCaffery, 1983).
susceptibilidade à dor demonstrou que Essas concepções sobre dor foram
sujeitos expostos a modelos tolerantes à observadas em estudo realizado em nosso
dor aceitavam mais choques do que meio, onde cerca de 10% das 800 pessoas
aqueles que observavam modelos entrevistadas considerou, entre outras
intolerantes, não tinham modelo ou possibilidades, a vivência de dor como um
possuíam um modelo controle. Os registros meio de purificar a alma (Teixeira; Shibata,
de medidas autonômicas como resposta Pimenta, Corrêa, 1996).
galvânica da pele e batimentos cardíacos,
Se a dor for vista como punição divina, os
entretanto, não revelaram diferenças
indivíduos tentarão experimentá-la sem
significativas entre os grupos. Se esses
queixas para que se transforme numa
registros forem considerados índices de
forma de expiação para aliviar sentimentos
desconforto, esse estudo mostrou que os
de culpa. Se for interpretada como
indivíduos que aceitaram choques de maior
conseqüência de transgressões morais,
e menor intensidade experimentaram o
procurarão a cura através de penitências,
mesmo nível de desconforto (Craig;
jejuns ou preces. Se for atribuída à
Neidermayer, 1974).
malevolência de terceiros (através de
feitiçaria ou encantamentos) tentarão alívio

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de maneira indireta, através de rituais ou queixo para aparar as gotas de sangue.
exorcismo (Helman, 1994). Esta operação é culturalmente aceita como
um procedimento que produz alívio de
Para determinadas culturas a dor possui um
dores crônicas (Melzack; Wall, 1991).
conteúdo sagrado. Em algumas regiões da
Índia, ainda hoje, existe um ritual onde se
escolhe um indivíduo como representante
Comunicação da Dor e Cultura
do poder dos deuses para abençoar as
crianças e os campos de cultivo. Para a A comunicação é parte essencial do
realização deste ritual, ganchos de aço são processo de socialização. A dor, embora
presos por cordas sob a pele e músculos experiência solitária, só pode ser
das costas do escolhido, que é então comunicada e assim compartilhada, através
alçado ao alto de um veículo especial que o de comportamentos manifestos (incluindo-
leva de aldeia em aldeia, balançado-o em se a ausência de reações). A reação inicial
grandes giros, sustentado apenas pelos à dor, em geral, é involuntária e instintiva,
ganchos. Durante todo o ritual ele não manifestando-se através de um
demonstra o menor sinal de estar sentindo distanciamento súbito da fonte de dor. As
dor, ao contrário, parece estar em estado reações voluntárias envolvem a remoção da
de exaltação. Ao final do período causa da dor, o tratamento dos sintomas e
cerimonial, os ganchos são retirados e o a intervenção de terceiros, sendo que,
indivíduo é tratado com as cinzas que se justamente por envolverem outras pessoas,
encontram nos altares das aldeias são estes os comportamentos que têm,
(Kosambi, 1967). entre outras, a função de comunicação da
experiência dolorosa e são susceptíveis à
Em outras culturas, a tolerância à dor se
influência de fatores sociais e culturais
inclui nos valores morais que fundamentam
(Helmann, 1994).
a identidade de seus membros. Os bariba,
um pequeno grupo étnico na África Oeste, A dor pode ser comunicada1 através
são conhecidos por não manifestarem comportamentos motores (retorcer-se, bater
comportamentos de dor, mesmo quando os dentes, etc.); verbais (gritar, gemer,
sujeitos a ferimentos, rituais de iniciação e queixar-se, etc.) sociais (retração do
trabalhos de parto. A base da identidade contato social, alteração no desempenho de
bariba reside na adequação da resposta à papéis, etc.) e mesmo pela ausência de
dor, isto é, no estoicismo. Quando comportamento manifesto, ocultando ou
questionados, evitam falar sobre a dor suprimindo sinais de dor extrema
preferindo discorrer sobre honra e coragem, (Zborowski, 1969).
valores que são enfatizados ao longo do A comunicação da dor varia de acordo com
processo de socialização, especialmente a bagagem cultural. A avaliação das
durante a circuncisão e a clitoridectomia diferenças nas respostas à dor entre
(Sargent, 1984). pioneiros americanos, judeus, italianos e
Existem culturas onde as crenças em irlandeses revelaram que cada grupo
determinadas práticas relacionam-se apresenta sua própria configuração de
diretamente com a percepção da dor. Na atitudes em relação a estímulos dolorosos e
África Leste, existem indivíduos que, sem à expressão da dor. Os pioneiros
anestesia ou outras drogas, submetem-se a americanos tendem a apresentar uma
uma operação, chamada “trepanação” na orientação mais fleumática, centrada no
qual o couro cabeludo e músculos problema e na ajuda do médico; os judeus
subjacentes são cortados para expor uma
grande área do crânio. Enquanto o crânio é 1
Manifestações neurovegetativas, tais como
raspado o indivíduo fica sentado taquicardia, palidez, suor, etc. embora úteis na
calmamente segurando uma vasilha sob o comunicação da dor, não são aqui incluídas por
serem involuntárias (nota das autoras).

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costumam manifestar preocupação com as errôneas, medos infundados dos doentes
implicações da dor e descrédito nas sobre os efeitos colaterais dos analgésicos,
medidas paliativas; os italianos expressam, medo do desenvolvimento de tolerância e
geralmente, desejo de alívio imediato e os de habituação ao fármaco são freqüentes
irlandeses tendem a inibir expressões de entre os doentes com dor e câncer e estes
sofrimento e de preocupação com as conceitos podem influir desfavoravelmente
conseqüências da dor (Zborowski, 1952). na resposta aos regimes terapêuticos,
mesmo que adequadamente propostos.
A compreensão da dor comunicada
também sofre a influência dos fatores Estudo sobre o significado atribuído à dor
culturais. A comparação de descritores pelo doente oncológico observou que
verbais de dor entre orientais (chineses) e doentes que julgavam que a presença de
ocidentais (americanos e escandinavos) dor era sinal de avanço da doença
revelou que existem dimensões da dor que neoplásica, experimentaram dores mais
são compartilhadas por estas culturas: intensas do que os que não faziam esta
tempo, intensidade, localização, qualidade relação (Ahles; Ruckdeschel; Blanchard,
e potencial de cura. Entretanto, os 1983).
conceitos contrastantes de dor “real” e dor
Em inquérito populacional acerca das
“imaginada” (enquanto conflitos
concepções sobre o controle da dor do
psicológicos que se converteriam em dor
câncer, que envolveu 496 indivíduos de
percebida) são específicos das culturas
uma cidade da América do Norte, observou-
ocidentais, enquanto que o conceito de
se que a dor oncológica foi imaginada como
“suantong” que engloba dores ósseas,
muito intensa ou extremamente dolorosa
musculares, articulares e odontológicas é
por 48% dos entrevistados. Deles, 72%
tipicamente chinês (Moore; Dworkin, 1988).
concordava com a frase "a dor no câncer
As diferenças culturais interferem na pode se tornar tão forte que a pessoa pode
avaliação que a equipe de saúde faz da dor considerar interromper a vida a prolongar o
do paciente. Nos Estados Unidos o modelo tratamento". Mais de 50% da população
cultural de resposta à dor, isto é, o demonstrou preocupação com os conceitos
comportamento esperado e valorizado de tolerância, dependência psicológica e
pelos profissionais de saúde, assemelha-se confusão mental oriundas dos opiáceos
ao dos americanos de origem européia. (Levin; Cleeland; Dar, 1985). Achados
Espera-se que os doentes sejam calmos, semelhantes foram descritos por outros
estóicos e que se retraiam quando a dor se autores. Entre 82 doentes com dor de
torna intensa. Comparados a estes, os origem oncológica 20% tinha preocupação,
americanos de origem mexicana são de moderada a elevada, com o
considerados como queixosos, que desenvolvimento de dependência
demandam alívio imediato para sua dor. As psicológica e 23% apresentava
diferenças culturais entre os membros da preocupação com a tolerância
equipe de saúde e o paciente acabam medicamentosa. Encontraram correlação
induzindo à subestimação da dor do positiva entre a intensidade da dor e a
paciente. (Calvillo; Flaskerud, 1991). preocupação com o desenvolvimento de
tolerância (Jones; Rimer; Levy; Kinman,
1984).
Dor Oncológica e Conceitos Culturais
Em estudo com 103 doentes com dor
As crenças, o conhecimento e as atitudes relacionada ao câncer, em tratamento
dos doentes sobre dor e analgesia domiciliar observou-se que, em 83% dos
influenciam a apreciação, a expressão e doentes, as medicações foram utilizadas
manejo da dor e há, na literatura, diversas menos freqüentemente que o
relatos clínicos desse conceito. Informações recomendado. Em doentes internados em

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hospitais, isto ocorreu em 60% dos casos. acreditavam que: deve-se tomar a menor
As razões apontadas para a baixa adesão quantidade possível de remédios para
ao tratamento foram: sensação de que a deixar altas doses para o futuro quando a
dor não poderia ser tratada, medo de viciar, dor é pior (média=2,5), que analgésicos só
ocorrência de tolerância e confusão com as devem ser tomados quando a dor é muito
doses. A família exerceu papel chave no forte (média = 3,6) e que os remédios para
cuidado ao doente em casa. As atitudes dor são perigosos (média=3,7). A crença de
dos familiares sobre dor e analgesia que os indivíduos com câncer que tomam
influíram no manejo do quadro álgico. É a remédios para dor ficam viciados foi
família, apoiada nos conhecimentos, também muito importante (média = 4,8).
crenças e valores que possui sobre dor e Essas médias indicaram que grande parte
analgesia, que decide o que dar e quando dos doentes entendia a dor no câncer como
medicar. Foi observado que a família tem incontrolável e que esta seria, fatalmente,
dúvidas sobre o conceito de administrar os muito mais intensa nas fases finais da
remédios antes que a dor apareça, tem evolução da doença oncológica. Os
medo de que o doente fique viciado e sente doentes julgavam que os remédios
que é sua obrigação evitar que isto utilizados para controlá-la eram muito fortes
aconteça. Suportados por essas e perigosos e que analgésico só se usa
concepções os familiares escondem os quando há dor intensa. Analisando-se a
remédios e tentam limitar a quantidade da existência de relações entre a intensidade
medicação utilizada (Ferrell; Scheneider, da dor e o conhecimento e a atitude sobre
1988; Ferrell; Ferrell; Rhiner; Grant, 1991; dor oncológica e analgesia encontrou-se
Ferrell, Cohen, Rhiner, Rozek, 1991; correlação negativa. Esta correlação
Ferrell, Ferrell, Ahn, 1994). indicou que quanto menor o conhecimento
sobre dor oncológica e analgesia, foi maior
Estudo realizado em nosso meio tinha
a intensidade da dor. A confirmação da
como hipótese que os doentes possuíam
hipótese de que as opiniões e a percepção
lacunas de informação e crenças errôneas
do doente sobre sua doença e tratamento
sobre dor oncológica e analgesia e que isto
repercutem na vivência do quadro doloroso
poderia interferir na vivência de dor, o que
são de extrema importância para subsidiar
de fato pôde ser observado (Pimenta,
a atuação educativa, visando melhor
1995). Foram avaliados 57 doentes com dor
controle da dor.
neoplásica utilizando-se inventário
composto por oito assertivas que visou A influência de diferenças culturais e de
identificar a opinião dos doentes sobre as linguagem na apreciação da intensidade da
questões: a dor oncológica pode ser dor oncológica e na interferência desta nas
aliviada; os remédios só devem ser atividades de vida diária, humor e
tomados em casos de dores intensas; com relacionamento com outras pessoas, não foi
tempo, o vício é inevitável; deve-se tomar a observada em estudo que envolveu 1106
menor dose possível para deixar altas americanos, 324 franceses, 147 chineses e
doses para o futuro (tolerância); utilizar 267 filipinos. A intensidade da dor e os
analgésicos de rotina é melhor do que só prejuízos nas atividades de vida diária
quando há dor; as intervenções não (sono, atividade física, trabalho e
farmacológicas são efetivas e analgésicos deambulação), no humor, no
são perigosos pelos efeitos colaterais. A 8a relacionamento interpessoal e na
assertiva avaliou a concepção de que os apreciação da vida, foram avaliados por
doentes são medicados em excesso. A nota meio de instrumento de auto-relato. Não se
máxima para cada assertiva foi 10 e o total observaram diferenças significativas entre
de pontos 80. Encontrou-se que o os entrevistados. Estes dados são
conhecimento sobre dor oncológica e surpreendentes. Os autores consideram
analgesia foi muito baixo. Os doentes que há muito a se investigar sobre em que

7
tipos de dor, em quais domínios da vivência of Personality & Social Psychology, v.6, n.1,
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