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412 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA A pégs. 179 e segs. vemos uma resposta sobre a obrigac&o moral de alimentos em caso de paternidade duvidosa. Poucas paginas adiante lemos um parecer de grande aplicagio em todos 08 tempos: «se é licito a alguma pessoa receber ou pedir dédiva ou coisa de preco e valor, para alcangar de quem tem em mdos o governo algum oficio, dugar ou dignidade». E como estes, outros muitos casos em que o Doutor Eximio responde umas vezes em poucas palavras, por o assunto nao requerer maiores explica- ‘gdes, outras longamente com o bom senso, perspicacia, clareza e erudicdo que foram sempre o apandgio dos escritos do ilustre professor conimbricense. Este volume talvez nao aumente a gloria literéria de Sudérez. Mas ao menos servird para mostrar que ele ndo era um mero tedrico, pois sabia aplicar aos pequenos casos que Ihe eram submetidos os principios que expendia nas ‘suas obras maiores. Foi por isso meritdria a publicacdo deste volume. Oxal vejamos em breve o segundo. — A. Leite, ACTO DA ESSENCIA OU ESSENCIA EM ACTO?—E célebre a contro- vérsia que divide tomistas e suarezianos na tese escolistica da distingdo de esséncia € existéncia, Os primeiros requerem como absolutamente necesséria a distingdo real de dois principios metafisicos e valem-se da autoridade de S, Tomés ; os se- gundos, apoiados em Sudrez, rejeitam-na e admitem apenas a distingdo de razao com fundamento real, Suarez discute pormenorizadamente o assunto na Disputatio XXX/ das Disputationes Metaphysicae. Esforca-se de inicio por esclarecer bem 0 pro- blema. E esta preocupagdo de clareza fé-lo diluir o raciocinio, multiplicar repetigdes, para evitar todos os mal entendidos. Nas Secgdes I e Il trata da esséncia possivel e da poténcia objectiva. Concorda com S. Toms: 0 possivel ndo é uma realidade em si nem no ser finito, exprime apenas uma no-repugnancia a existéncia e diz relagao a uma poténcia agente (Ill, 4). Com esta exposicao minuciosa intenta dilucidar bem a nocdo de ens in potentia para a opor A nocdo de ens in actu e assim declarar © que € a existéncia. Ser em poténcia e ser em acto distinguem-se formalmente como ser e do ser (ill, 1). Donde @ esséncia em acto, rigorosamente, néo € qualquer coisa acrescentada a esséncia em poténcia, mas uma e outra opdem-se imedia~ tamente como ser e no ser. E, na hipétese de a esséncia em acto exigir outra entidade para existir, contudo difere de si mesma enquanto possivel, ndo pela existéncia mas pela sua mesma entidade (Ill, 8). Suponhamos a distingdo real : a esséncia em acto difere de si mesma em poténcia pela propria entidade endo pela entidade da existéncia. Eo que é para Sudrez a existéncia ? «Certum est apud omnes existen- tiam esse id quo formaliter et intrinsece res est actu existens»(V, 1). E noutra parte: «Esse existentiae nihil aliud est quam illud esse quo formaliter et immediate entitas aliqua constituitur extra causas suas, et desinit esse nihil, ac incipit esse aliquid (IV, 6)». E ainda aqui Sudrez confessa que todos estdo de acordo, o que € ilusério, As mesmissimas palavras escondem sentidos diferentes alids entrevistos por Suarez. NOTAS, INEDITOS E DOCUMENTOS 413. A esséncia existe formatmente pela existéncia. Esta frase oculta dois sentidos: ou formatmente se refere a um constitutive formal, e, nesse caso a esséncia & constituida pela existéncia; ou se refere a um acto que actua uma potencia subjectioa, e entdo a existéncia estaria no género das causas formais. Dissemos que a uniformidade na concepedo da existéncia era aparente. Para Sudrez as expresses actu existens, ens actu e ens in actu equivalem-se (V, 11). Mas actus pode opor-se a potentia obiectiva e a potentia subiectiva. Ora Suérez afirma expressamente que actus e actualitas se tomam aqui, enquanto se opdem a pofentia obiectiva. Os textos para demonstrar esta assercdo multiplica-os em toda a Disputatio: v. g.1V,5e6; V, 11; V, 15; X, 12e 13; Xi, 175 XIll, 23. Podemos condensar o pensamento do Doutor Eximio numa formula que ele mesmo nos deixou: «luxta nostram sententiam existentia ut in reipsa invenitur non est tam acfus essentiae quam ipsa essentia in actu» (X, 18). E desta concepcdo inicial segue-se ldgicamente a tese da nio distincao, como da concepcdo tomista se segue necessiriamente a distingao real. Aceite a divergéncia neste ponto, nas consequéncias divergirdo forcosamente em vir- tude da légica implacavel’ dos principios. Vejamos mais em concreto como Suarez firma a sua tese. O fundamento da‘prova resume-se nisto: Nada pode ser constituido como ser real por alguma coisa distinta de si mesmo; porque, pelo facto desse ser real se d tinguir dessa alguma coisa como ser de outro ser, segue-se que ambos sido. seres e, conseguintemente, um nao constitué 0 outro (I, 13). Mais, a actualidade da esséncia é uma existéncia. A demonstragao deste enunciado, nos princfpios de Sudrez, é simplicissima, A esséncia real tem uma actualidade, enquanto a actualidade se opde a poténcia objectiva (IV, 2). Essa realidade actual nao é intrinsecamente constituida por outra real dade distinta (IV, 3). E agora o nervo da questo, o inicio das divergéncia «Dico tertio: illud esse quo essentia creaturae formaliter constituitur in actua- litate est verum esse existentiae» (IV, 4). Lembremos que esséncia actual se opde a esséncia em poténcia objectiva e que a existéncia é a actualidade con- traposta a esséncia em poténcia e veremos com clareza meridiana a conclusao: lade actual da esséncia é uma existéncia. Daqui segue-se a inutilidade e impossibilidade da distineao real de que trata a Sect. V. Suérez vé-se obrigado a esta conclusdo pela ldgica dos prin- cipios. Se a existéncia é a actualidade que se opde ao estado possivel, toda a entidade real serd uma existéncia, E a conclusdo forcada de quem concebe a existéncia como esséncia em acto e nao como acto da esséncia, Consolidada a sua tese, Sudrez passa ao exame das opinides adver- sérias. Examina primeiro a opiniéo dos que patrocinam a distincdo real, de modo que a existéncia constitua formalmente a esséncia. Isto é, a realidade pela qual a esséncia é esséncia seria a existéncia realmente distinta da mesma esséncia. A existéncia constituiria formalmente na sua realidade de esséncia a mesma esséncia e contudo seriam entidades realmente distintas. Suarez parece julgar que é esta a opinido corrente dos tomistas. Para nos nao deter- mos numa opinido absurda, insustentavel, concluamos com o Doutor Eximio: « 414 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA (VI, 2). Mas sem virmos a este absurdo, nao seria possivel que a existéncia estivesse para a esséncia como acto real para a sua poténcia real? Em vérias passagens se refere o Eximio a opinido que sustenta que a composicao de esséncia e existéncia é uma composigdo de poténcia e acto, andloga a de matéria e forma. E é 0 tinico parecer contrario que Ihe merece uns visos de plausibilidade. «Hic modus respondendi et declarandi hanc sen- tentiam est minus improbabilis quam caeteri» (VI, 6). Mas logo acrescenta: «sed revera habet easdem difficultates». Em resumo fiel, pensa assim: a existéncia é a actualidade; mas a enti- dade da esséncia real é uma actualidade e, por conseguinte, uma existéncia, Se a esséncia para estar em acto basta a entidade da esséncia, para que éa entidade da existéncia? «Existens et ens acta, id est, non in potentia, idem omnino sunt, Si ergo illa entitas (existentia) non est necessaria ad consti- tuendum intrinsece ens actu, non est etiam necessaria ad constituendum int sece ens existens» (VI, 6). Porque é que a existéncia nao é necesséria para constituir intrinsecamente o ser actual ? Porque se supde que a existéncia é a esséncia em acto e ndo acto da esséncia, Em terminologia rigorosamente tomista a expressdo esséncia pos- sivel & inaceitavel porque s6 o ser é possivel. Em terminologia suareziana, com a sua concepgo da existéncia, a formula & exactissima. De maneira que todas as divergéncias derivam da concep¢do fundamental da existéncia. E todas as dificuldades que 0 Doutor Eximio poe a tese de S. Tomas se baseiam nesta diferenca inicial. Citemos um exemplo. Na hip6tese tomista, segundo Suarez, a matéria e a forma exerceriam a sua causalidade sem existir (X, 5-12). E porqué? A matéria recebe a forma; mas néo a pode receber se ndo for existente. Caso contrdrio, matéria e forma causariam sem existir, pelo menos por uma prioridade de natureza, o que é absurdo. Mas s6 transportando para o campo tomista a sua concepeao da existéncia se chega a esta contradigdo patente. Para Suarez a tudo o que € real convém, per se e imediatamente, uma existéncia proporcionada (VIII, 9; IX, 8; XI, 8e 9). E isto em virtude, mais uma vez, da sua teoria que julga undnimemente aceite. Em conclusdo: nesta disputa secular, que divide as escolas, as divergén- cias reduzem-se a uma $6 que se situa na nogdo diferente de existéncia. Suérez opds a propria concepgio a de S. Tomas e, com a liberdade de espirito que Ihe é caracteristica, permitiu-se neste ponto discordar do Mestre. — Celestino Pires.

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