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Este texto busca compreender o conceito de verdade em dois autores que produziram suas
obras no século XX. O primeiro, Gilles Deleuze, começou a publicar na segunda metade do
século passado; o segundo, Martin Heidegger, despontou nos anos vinte, mas continuou
produzindo até 1970, pouco tempo antes de seu encantamento em 1976.
Ambos os autores têm o intuito de superar o conceito de verdade estabelecido pela
tradição metafísica, entretanto, enquanto Deleuze se volta para Nietzsche em sua crítica da
verdade e consequente afirmação da potência do falso, Heidegger retrocede ainda mais,
voltando até os gregos antigos e ao conceito de Alethéia, entendendo a verdade enquanto
desvelamento, pois, para o filósofo alemão, Nietzsche, ao conceber a verdade como valor,
ainda é presa de certo humanismo e, consequentemente, da metafísica.
Não é nossa intenção aqui apontar quem está certo ou errado. O que pretendemos
é demonstrar como a questão da verdade é tratada em ambos os filósofos e, a partir daí,
apontar possíveis aproximações ou distanciamentos.
René Magritte
2.1.Liberdade e Verdade
2.2.Errância
A errância é o vagar do homem na ocultação do ser. Ela não é como o erro que a
tradição metafísica ocidental consolidou e que consiste na não conformidade do juízo e na
falsidade do conhecimento. Para Heidegger, este é apenas um modo, e ainda assim o mais
superficial, de errar. A errância tem origens mais profundas, ela não é subjetiva, mas
historial. Principia quando o homem resolve ignorar o mistério e decide que a totalidade do
ente é um objeto a ser conhecido e desvendado por meio do cálculo. Não há traição maior
que o esquecimento do mistério! O que se nos oculta neste momento é, justamente, o ente
em sua totalidade. Entretanto, se a verdade enquanto alethéia, ou seja desvelamento, é um
aparecer emergente que saiu do mistério, então o encobrimento também pertence à
essência da verdade historial do ser. A não-verdade original, isto é, o velamento do ente em
sua totalidade, é mais antigo do que toda a revelação de qualquer um dos entes. O que
preserva o deixar-ser nesta relação com a dissimulação é o mistério (Geheimnis), o
velamento do ente como tal é o que possibilita a relação de dissimulação com o deixar-ser
(Seinlassen). Nem mesmo o posicionamento do homem como sujeito é um erro do homem
enquanto sujeito, mas uma dissimulação do ser. Segundo Heidegger, “o desvelamento do
ente enquanto tal é, ao mesmo tempo e em si mesmo, a dissimulação do ente em sua
totalidade. É nesta simultaneidade do desvelamento e da dissimulação que se afirma a
errância. A dissimulação do que está velado e a errância pertencem à essência originária da
verdade.”[12]
Em Ser e Tempo, a existência do erro é justificada por Heidegger através da
relação ek-sistente-insistente que constitui o Dasein. O homem in-siste ek-sistindo,
entregue à frenética agitação cotidiana, correndo de um lado para outro, fugindo do
mistério e encobrindo o fato de que é finito – isto é o errar. O homem erra, move-se no
centro da errância. Ele não cai na errância num dado momento, mas erra sobre a Terra. “A
errância em cujo seio o homem se movimenta não é algo semelhante a um abismo ao longo
do qual o homem caminha e no qual cai de vez em quando. Pelocontrário, a errância
participa da constituição íntima do ser-aí à qual o homem historial está abandonado. A
errância é o espaço de jogo deste vaivém no qual a ek-sistência insistente se movimenta
constantemente, se esquece e se engana novamente.” [13]
O Dasein possui uma estrutura essencialmente ambígua, ele é ao mesmo tempo
ek-sistência e in-sistência. Esta essência dupla do Dasein explica a errância como o
caminho pelo qual a humanidade deve caminhar.
Entretanto, o homem não sucumbe no desgarramento e na errância se for capaz de
provar a errância enquanto tal e não fechar os olhos para o mistério. O mergulho na
agitação cotidiana é útil ao homem, protege-o, funciona feito um narcótico, arranca de seus
olhos o espanto e impede que o homem sinta aqui o frio de lá. O homem se entrega de bom
grado à errância para não encarar sua própria finitude, mas se “salva” no momento em que
ou forçado por um tumor, ou arrastado por alguma tragédia, ou, uns poucos, por terem
sempre os olhos inundados de interrogações coloca a pergunta essencial: que é o ente
enquanto tal em sua totalidade? Esta é uma pergunta que o cálculo não responde e a
ciência contemporânea sequer coloca, mas que habita o homem em seus abismos mais
profundos.
É o próprio abismo tornado pergunta.
Considerações finais
Vimos como tanto Heidegger quanto Deleuze tecem uma crítica contundente à
Metafísica e àquilo que Deleuze chama de imagem dogmática do pensamento e Heidegger
de imagem de mundo; para o alemão, algo característico da modernidade. Deleuze, em
consonância com Nietzsche, entende a verdade como valor, muda conforme a perspectiva e
opõe à vontade de verdade a potência do falso, cujo domínio é a criação artística. Para
Heidegger a verdade é a verdade do ser[14]. A interpretação heideggeriana sobre o ser
encontra-se no encalço da interpretação grega da verdade como Aléthea. A questão é
problematizada por Heidegger no âmbito do que poderíamos chamar de hermenêutica
ontológica, a qual investiga as palavras originárias do pensamento grego, buscando
desvelar o sentido mais profundo que elas possam ter em relação à interpretação do ser. A
reflexão hedeggeriana, assim como também acontece em Deleuze, buscará, naquilo que
alguns comentadores chamam de Heidegger segundo, uma aproximação com a obra de
Arte. Entretanto, enquanto Deleuze concebe a Arte como a mais alta potência do falso, em
Heidegger, a obra de arte é o pôr-se em obra da verdade, mas isto já é assunto para outro
estudo.
Bibliografia
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São
Paulo: Graal, 1988.
_______________. Nietzsche e a filosofia, Trad. Ruth Joffily e Edmundo Fernandes
Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
_______________. Cinema II – A imagem tempo, Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro. São
Paulo: Editora Brasiliense, 2013.
_______________. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo:
Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Rafael
Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
_______________. O que é filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.
São Paulo: Editora 34, 2010.
________________. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34,
1997.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
________________. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis: Vozes, 1988.
________________. Sobre a Essência da verdade (Coleção Os Pensadores –
Heidegger) São Paulo: Abril Cultural,1979.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos – Como filosofar com o
martelo. São Paulo: Golden Books, 2009.
[1] DELEUZE, 1976, p. 49
[2] Idem, Ibidem, p. 49
[3] NIETZSCHE, 2009, p. 48
[4] DELEUZE, 2013, p. 168
[5] Idem, Ibidem, p. 168
[6] Idem, Ibidem, p. 168
[7] Idem, Ibidem, p. 173
[8] HEIDEGGER, 1979, p.134
[9] Idem, Ibidem, p. 138
[10] Em http://www.jornaldepoesia.jor.br/ad01.html, acessado em 20 de setembro de
2014.
[11] HEIDEGGER, 1979, p.138
[12] Idem, Ibidem, p.143
[13] Idem, Ibidem, p.143
[14] O grande problema é que não sabemos que é o ser, ser não se define. Assim em
determinados momentos, ele pode carregar, ou dissimular, uma cruz suástica no ombro,
cabelo que a vaca lambeu e bigodinho fino.