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Percepção e Cinema - um olhar


ontologicamente cinematográfico
28.8.15 Dossiê

Luize de Queiroz*

Em 1945, ano em que publica sua principal obra, La phénoménologie de la


percepcion, o filósofo fenomenólogo existencialista Maurice Merleau-Ponty
profere uma conferência intitulada Le cinéma et la nouvelle psychologie, o que nos
dá subsídios suficientes levados por esta coincidência temporal para pensar uma
evidente ligação entre os temas percepção e cinema. Fortemente influenciado
pelo pensamento de Martin Heidegger, pela fenomenologia transcendental de
Edmund Husserl e pela teoria Gestalt podemos encontrar resquícios desses
pensamentos na fenomenologia da percepção proposta pelo filósofo e pelo que
mais tarde vem a se configurar em uma ontologia. Resquícios estes que será de
suma importância para uma ampla compreensão do que ele irá estabelecer na
sua argumentação sobre as artes.

Apesar da evidente preocupação por parte do filósofo de se pensar as


questões pertinentes à filosofia e o cinema, as reflexões acerca das artes em M.
Merleau-Ponty está intrinsicamente ligada à pintura, o que se pode constatar nos
textos Le doute de Cézanne e em L’oeil et l’espirit os quais se constituem como
exclusivamente dedicado à discussões sobre a pintura, apesar de apresentar
como contraponto argumentativo outras modalidades artísticas como a
escultura, literatura, o teatro e até mesmo o cinema. Observando este destaque
que o filósofo dá a pintura em um segundo momento de seu pensamento,
podemos notar certo distanciamento das reflexões com intuito de definir a
percepção em detrimento de uma aproximação desta à reflexão sobre a visão, e
neste sentido, toma a pintura em especial à de Cézanne para empreitar este
projeto. A visão segundo M. Merleau-Ponty, “É um pensamento que decifra
estritamente os sinais dados no corpo”, mas antes ainda, nos esclarece que a
visão “para além dos “dados visuais” abre para uma textura do Ser” [1] Em
outras palavras, a visão é onde acontece o encontro de todos os aspectos do
Ser. Discutiremos essas questões com mais ênfase mais adiante.

Ao que diz respeito ao cinema, podemos encontrar já algumas referências


na obra La phénoménologie de la percepcion, mas o tema ganha mesmo destaque
e corporeidade como já dito na conferência proferida em 1945, Le cinéma et la
nouvelle psychologie, no capítulo L’art et le monde perçu de Causerus (1948) e por
fim nas aulas de estética de 1952/1953 (Résumés de cours. College de France,
1952-1960).

Contudo, levando em conta a ligação possível entre as discussões


estabelecidas pelo pensamento de M. Merleau-Ponty acerca das artes, portanto,
à pintura com as referências sobre o cinema ainda que nos apresente escassas,
a questão que se pode estabelecer é: de que modo podemos entender a
importância do cinema na sua filosofia e para a filosofia no modo geral? Esta
pergunta, embora não seja a questão do intuito deste artigo, estimamos podê-la
responder no seu desenvolvimento. Susana Veigas, em seu artigo sobre
percepção e cinema, também se pergunta: “[...] como entender a importância e
o interesse que o cinema teve na sua filosofia?”[2]. Para ela, a resposta se
encontra na evidencia dos discursos apresentados pelo próprio filósofo. Stefan
Kristensen, em sua obra Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement,
defende que “Merleau-Ponty tinha uma abordagem cinematográfica às artes
visuais em geral e que, se a pintura é, na verdade, a linguagem que mostra a
génese da nossa relação com o mundo, o cinema é aquela que torna visível o
invisível das nossas relações com o outro”[3]
CINEMA E PERCEPÇÃO

O tema do cinema em M. Merleau-Ponty é, sobretudo, mediado pelo


fenômeno da percepção principalmente porque acolhe ainda que criticamente os
princípios da Gestalttheorie, cuja exploração da relação entre conteúdo e forma,
fundo e figura se faz aparente. Tendo isto em vista, o filósofo considera que a
sétima arte vivificaria, não só a experiência de nossa inerência no mundo, como
também às coisas e o outro, enquanto meio de interrogação filosófica no sentido
além do ilustrativo. Nesta perspectiva, a relação entre cinema e filosofia, traz em
voga a significação estética do mundo, dada em nossa percepção das coisas e
de outrem.

A conferência Le cinéma et la nouvelle psychologie, ao tratar da questão do


cinema, o faz de modo breve e exploratório aludindo a questões contemporâneas
a respeito da psicologia no que se refere a percepção, a intersubjetividade e, por
conseguinte, do lugar em que ocupa a arte do cinema. O fio condutor
estabelecido por M. Merleau-Ponty se desenvolve a partir do esclarecimento a
respeito da percepção. Para o filósofo, no sentido intelectualista não muito
estimado por ele, “a percepção torna-se uma interpretação dos signos que a
sensibilidade fornece conforme os estímulos corporais, uma hipótese que o
espírito forma para explicar suas impressões.”[1] Uma segunda concepção da
percepção ainda solidária a primeira vem por parte do empirismo moderno, que
afirma ser a sensação e a percepção causadas pelos estímulos dos objetos
externos, onde temos a partir disso, um processo de associação de sensações
em uma percepção.

A percepção para M. Merleau-Ponty, “não é uma espécie de ciência iniciante


e um primeiro exercício da inteligência; é preciso que reencontremos um
comércio com o mundo e uma presença, nele, mais antiga que a inteligência”[2].
Em suma, a percepção para nosso filósofo é a questão privilegiada de onde
sobrevém o cinema como um tema que seduz, pois toda a arte só se exerce
sobre um fundo inalienável do qual nos possibilita perceber o mundo, as coisas
e o outro. A ideia da experiência enquanto comércio com o mundo, nos leva
segundo as mais recentes análises psicológicas sobre a percepção
estabelecidas pela Gestalt ao problema do outro. Ao contrário da psicologia
clássica, que compreendia a percepção como um mosaico, reunindo e
reorganizando partes extra partes do qual formaria um campo perceptivo, a
psicologia Gestalt ou da forma afirma a percepção como global de abertura do
estar-já-no-mundo ou numa terminologia heideggeriana, Ser-aí. Já que estamos
imersos no mundo, a percepção é imediata e sintética configurando um todo, da
forma sobre o fundo.
O interesse de M. Merleau-Ponty pelo cinema, enquanto algo percepcionado, se
baseia a partir do que foi posto pela fenomenologia da percepção, do olhar e também
a partir de uma aproximação do outro à intersubjetividade. No cinema, esse caráter
em que o espectador compreende de um modo excessivo aos dados do sentido, é de
suma importância, pois Merleau-Ponty nos diz: “quando percepciono, não penso o
mundo, ele organiza-se perante mim” [3] e com isso quer dizer que as análises de
um objeto em geral se aplicam igualmente ao cinema ao passo que este é um objeto
a se percepcionar e não a se pensar de modo imediato. Ou ainda, “é através da
percepção que podemos compreender a significação do cinema: não se pensa o
filme, percepciona-se” [4]. Tal como no sistema da percepção em que o todo
antecede as partes, também o cinema é percepcionado com um todo, onde o som, a
imagem, o diálogo se encontram em um todo alcançando uma forma temporal.
Uma vez que as análises que a psicologia faz sobre o ato perceptivo no
cinema, da relação intríncica entre o espectador e as imagens que são
projetadas se constituem, podemos aplica-la igualmente à percepção do mundo
e do outro. Na percepção de um filme aprendemos a compreender a mudança
de cenário, a sobreposição de objetos, o desaparecimento do campo de visão,
entre outros, porque a nossa percepção não está, temporalmente, fechada no
instante presente, já que o filme é percepcionado como um todo temporal. Daí a
importâncias das análises de M. Merleau-Ponty, pois elas permitem não só
compreender o cinema como a arte de tornar visíveis certos objetos como
também certos comportamentos.
Há de um modo geral, um aspecto cinematográfico na própria realidade, que
torna possível um modelo de compreensão psicológico e filosófico que lhes é
comum. Já que inicialmente afirmamos que existe uma reviravolta no
pensamento filosófico de M. Merleau-Ponty, das reflexões contidas na
fenomenologia da percepção para uma reflexão a cerca da visão com os estudos
sobre a arte (mais específicamente sobre a pintura) podemos também
considerar legítimo que o cinema se destaque como objeto que concilia os dois
projetos contribuindo, de maneira positiva, tanto para a reflexão sobre a
percepção como para a reflexão sobre a visão.

O OLHAR CINEMATOGRÁFICO SOB UMA ONTOLOGIA DO VER

Logo no prefácio de La phénoménologie de la percepcion o problema da


percepção é compreendido como o meio pelo qual temos acesso a verdade. No
entanto, a verdade não nos dá nunca o acabado. Pois, uma verdade acabada seria a
paralisia do presente, da situação que por ventura nos encontramos, que nos
possibilita erros e acertos. A percepção originária, segundo M. Merleau-Ponty, olha
as coisas como que pela primeira vez. Uma percepção originária, dirá o filósofo, é já
expressão. Se a expressamos novamente, haverá, portanto duas expressividades, a
expressividade do mundo e a das linguagens expressivas, ou seja, a linguagem da
literatura, da pintura, que serão especialmente tratadas pelo filósofo, ou da música
e do cinema como nos possibilita a interpretação.
A relação entre percepção e diferentes formas de expressão é assunto
tratado em Le Langage Indirect et les Voix du Silence. Neste texto, M. Merleau-
Ponty se propõe a compreender diferentes formas que a expressão se
apresenta, como a expressão da pintura e da literatura, mas também a história,
em sua expressividade e seu sentido, como fundadas na percepção. No entanto,
será em uma nota de trabalho de Le visible et l’invisible, que M. Merleau-Ponty vai
pensar o ser como fundo da percepção. Essa percepção se assentará para ele
na oposição entre figura e fundo, que constitui o ser. Em tudo que é visto o olhar
muda de posição em um surgir e desaparecer, ou numa terminologia
heideggeriana, um velar-se enquanto se desvela, que constitui o modo de nosso
acesso sempre limitado do ser. O ver só é possível, no entanto, porque o visto
emerge de um fundo que se ausenta.

O sujeito da percepção deixa de ser o corpo próprio, este corpo de cada um


como o vive e o percebe, para se tornar carne que é para ele um elemento do
Ser. Onde esta mantém com a carne do mundo relações mais imbricadas.
A carne é o elemento comum entre sujeito e mundo, de modo que corpo e mundo
se constituem numa reciprocidade de experiência tecida no fundo carnal. Ela é
o ponto de origem, daquilo que antes do que nada é pensável. A carne sustenta,
como elemento originário, possibilidade e tecido invisível, o visível que irradia um
modo de Ser, que aparece como cristalização momentânea a partir da
experiência no mundo que une sujeito e mundo, corpo e coisas, num horizonte
comum. Ela liga aquilo que é visível, ou seja, a coisa do mundo e aquele que vê,
ao corpo, sendo condição de que ambos são feitos, indicando uma relação de
proximidade que dá àquele que vê uma espécie de familiaridade prévia com o
visível. [8]

Maurice Merleau-Ponty influenciado pela Gestaltheorie vai compreender


também o Ver nesta relação figura-fundo. Ver se torna, no entanto, um jogo de
posições, oposições e equivalências entre as figuras do ser e seu fundo invisível.
“Ver [...] é [...] assistir por dentro à fissão do Ser” [9]. A respeito disso, Alberto
Tassinari no posfácio da edição brasileira de L’oeil et l’Espírite, vem dizer: “Se a
fissão do Ser é sua separação, sua divisão, ela é a separação entre o Ser que é
figura e o Ser fundo, invisível. Ela é enfim, a diferença diacrítica entre o que vejo
e o que não vejo. E que só pode ser vista por dentro do Ser, pois o Ser não tem
um fora.” [10]

Nesta passagem, ele nos remete a tomada de M. Merleau-Ponty do


pensamento de F. Saussure, no qual o filósofo influenciado por ele formula uma
concepção do Ver como um sistema diacrítico ao associar Ser e Ver. É evidente
que em L’oeil et l’espirit, M. Merleau-Ponty pretende renovar e tornar mais
concreto o pensamento de M. Heidegger, quando fala sobre os aspectos do
visível. Já que Ver é ver sobre um fundo de Ser, os aspectos do visível são como
categorias do Ser. O Ser enquanto tal, não pode ser dito. Retrai-se na linguagem
em que ele mesmo surge. Não pode ser dito nem visto. Então se faz importante
ser dito que M. Merleau-Ponty não fala de uma visão do Ser, fala de uma fissão
do Ser. Diante disso nos explica Marilena Chauí:
Ao fazer falar a experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-nos de volta ao
recinto da encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a
filosofia julgava poder explicá-la, perdendo-a. Doravante, não se trata, em primeiro
lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata, em
segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao recinto da
experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a decifrar a fissão
no Ser.[11]

Levados a essa experiência pelas artes, ainda em L’oeil et l’espirit, M.


Merleau-Ponty busca na pintura, sobretudo em Cézanne uma profundidade que
é igualável a um ramo do Ser. A profundidade para o filósofo é a figura que vai
mais longe em direção ao fundo do Ser, pois ela pulsa entre a visibilidade e a
invisibilidade. Essas deformações por assim dizer da arte moderna, é o que
espera M. Merleau-Ponty compreender por uma ontologia do Ver, ou seja, como
expressões concretas dessa ontologia. Sem os ramos do Ser (profundidade, cor,
forma, linha, movimento, contorno) tudo perderia densidade. E assim se dá sua
concepção de relação entre o Ser e o Ver, em suas reflexões acerca da pintura
constituindo uma Ontologia do Ver.

Mas o olhar que aqui nos interessa é o olhar cinematográfico. Ora, no


cinema o olhar de quem percepciona torna-se um olhar cinematográfico, um
olhar que coincide e coexiste com o próprio filme. Onde o vidente coexiste com
o visível. O olhar no cinema, é reinventado a si próprio como olhar visível. Por
isso, o potencial filosófico do cinema será o de mostrar por meio da significação
estética do mundo, que é dada por meio da nossa percepção das coisas, de que
modo estamos imersos no mundo e nos outros, e principalmente de que modo a
própria intencionalidade se manifesta. O exterior dos corpos, nos seus
comportamentos e gestos, são uma manifestação de uma consciência
intencional, de uma consciência que toca.

Maurice Merleau-Ponty mostra que o interior invisível se mostra no


exterior visível e, neste sentido o cinema tem o poder de mostrar o interior do
corpo através do exterior do corpo vivido, por meio das representações dos
gestos. No entanto, o filme em sua criação de forma temporal, não consiste
apenas em anexar som e imagens, porque a relação entre os dois elementos é
primordial, pois há um sincronismo entre som e imagem a fim de criar uma
realidade envolta na relação visível e invisível.
Chamando a atenção para outra ordem de realismo, capaz de revelar não
só o mundo, mas o outro e as coisas em nossa percepção originária, como seres
reais, ou seja, carnais, M. Merleau-Ponty busca compreender, na imagem
cinematográfica, não apenas uma representação do mundo, mas a própria
presença viva de nossa carnalidade, ou seja, para o filósofo a imagem é carne.
Do mesmo modo que a tela de um pintor, o filme transcende sua materialidade
gráfica, pois revela em “carne e osso”, a presença[12]. O amor, o medo ou até
mesmo o ódio, que vemos em tela expressam igualmente estes sentimentos
vividos fora dela. Escreve ele:
Eis porque a expressão humana pode ser tão apreensível no cinema: este não nos
dá os pensamentos do homem, como o fez o romance durante muito tempo: dá-nos
a sua conduta ou o seu comportamento, e nos oferece diretamente essa maneira
especial de ser no mundo, de tratar as coisas e os outros, que é, para nós, visível
nos gestos, no olhar, na mímica e que define com evidência cada pessoa que
conhecemos.[13]

A exemplo da arte pictórica, o cinema em sua técnica cinematográfica nos


permite ser compreendida, nas palavras do próprio filósofo, como uma “técnica
do corpo”, pois, “ela figura e amplifica a estrutura metafísica de nossa carne”[14],
esta carne que se transfigura como meio formador entre mim e outrem, o ator e
o espectador, o visível e o invisível. Desse modo, na nossa experiência carnal
do movimento existe um espaço e um movimento, que é presença total no
mundo que se vivifica a partir do cinema. Diz M. Merleau-Ponty:

O cinema, inventado como meio de fotografar os objetos em movimento ou como


representação do movimento tem descoberto junto a si muito mais que a mudança
de lugar, isto é, uma maneira nova de simbolizar os pensamentos, um movimento
de representação. Pois, o filme, seu corte, sua montagem, suas mudanças de ponto
de vista solicitam e por assim dizer celebram nossa abertura ao mundo e ao outro,
do qual ele faz perpetuamente variar o diagrama.[15]

A arte cinematográfica, no entanto, cria uma nova linguagem, e por isso,


um novo modo de dizer o Ser. Uma nova estética que faz surgir uma dialética do
visível e o invisível tomados como contrapartida um do outro. Na imagem
cinematográfica, “um filme significa como temos visto em ultima análise o que
uma coisa significa: um e outro não falam a um entendimento separado, mas se
dirigem ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo e os homens e coexistir
com eles.”[16] O cinema e a filosofia nos conduz a um valor estético que leva M.
Merleau-Ponty a dizer: “O cinema está particularmente apto a tornar manifesta a
união do espírito com o corpo, do espírito com o mundo e a expressão de um no
outro. Eis por que não é surpreendente que o crítico possa, a propósito de um
filme, evocar a filosofia.” [17]
AUTORA
* Luize de Queiroz — Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia - UFRB.

Referência bibliográfica:
ALVIM, Mônica Botelho. A ontologia da carne em Merleu-Ponty e a situação
clínica na Gestalt-terapia: entrelaçamentos. Revista: Abordagem Gestalt. Vol.17
nº2 Goiânia dez. 2011.
CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty a obra fecunda. Revista: Cult. Ed. 123. 2010
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
_____________. O visível e o invisível. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
_____________. O olho e o espírito (seguido de A linguagem indireta e as vozes
do silêncio e A dúvida de Cézanne). Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina
Galvão Gomes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari.
Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2004.
____________. Textos escolhidos/ Maurice Merleau-Ponty; seleção de textos de
Marilena Chauí; Tradução e notas de Marilena Chauí, Nelson Aguilar, Pedro
Morais. – 2ª ed.- São Paulo; Abril Cultural, 1984. (Os pensadores).
____________. Sens et Non-sens. Paris: Gallimard, 1996.
____________. Résumés de Cours: College de France (1952-1960). Paris: Gallimard,
1968.
VIEGAS, Susan. Film&Philosophy-Mapping an Encounteur. Maurice Merleau-Ponty.
Instituto de Filosofia da Linguagem. 2010.
XAVIER, Ismael. A experiência do cinema: Antologia. Rio de Janeiro: Edições
Graal: Embrafilme, 1983. (Coleção arte e cultura; v. nº 5)

[1] MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo


: Abril Cultural, 1984. p. 91.
[2] Cf. VIEGAS, Susan. Film&Philosophy-Mapping an Encounteur. Maurice Merleau-Ponty.
Instituto de Filosofia da Linguagem. 2010.
[3] KRISTENSEN, Stefan. Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement. Archives de
Philosophie, 69 (1) (Printemps 2006), p. 123. Apud. VIEGAS, Susan. Opt. cit.
[4] MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens: Gallimard, 1996. p.42
[5] Idem. 1996, p. 66.
[6] Idem. 1996, p. 91.
[7] Idem. 1996, p. 104.
[8] Cf. ALVIM, Mônica Botelho. A ontologia da carne em Merleu-Ponty e a situação clínica na
Gestalt-terapia: entrelaçamentos. Ver. Abordagem Gestalt. Vol.17 nº2 Goiânia dez. 2011.
[9] MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo
: Abril Cultural, 1984. p.108.
[10] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito (seguido de A linguagem indireta e as
vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne). Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão
Gomes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari. Rio de Janeiro: Cosac
& Naify, 2004. P.155.
[11] CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty a obra fecunda. Ver. Cult. Ed. 123. 2010
[12] Cf. PINTO, Débora Morato... [et al] Ensaios sobre a filosofia francesa contemporânea. São
Paulo: Alameda, 2009 p. 134-137.
[13] MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens: Gallimard, 1996. p. 74.
[14] Idem. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1984.
p. 92.
[15] MERLEAU-PONTY, Maurice. Résumés de Cours: College de France (1952-1960). Paris:
Gallimard, 1968. p. 20.
[16] Idem. Fenomenologia da Percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fonte, 2006. p. 73.
[17] Idem. op. cit., p. 74.
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Percepção e Cinema - um olhar


ontologicamente cinematográfico
28.8.15 Dossiê

Luize de Queiroz*
Em 1945, ano em que publica sua principal obra, La phénoménologie de la
percepcion, o filósofo fenomenólogo existencialista Maurice Merleau-Ponty
profere uma conferência intitulada Le cinéma et la nouvelle psychologie, o que nos
dá subsídios suficientes levados por esta coincidência temporal para pensar uma
evidente ligação entre os temas percepção e cinema. Fortemente influenciado
pelo pensamento de Martin Heidegger, pela fenomenologia transcendental de
Edmund Husserl e pela teoria Gestalt podemos encontrar resquícios desses
pensamentos na fenomenologia da percepção proposta pelo filósofo e pelo que
mais tarde vem a se configurar em uma ontologia. Resquícios estes que será de
suma importância para uma ampla compreensão do que ele irá estabelecer na
sua argumentação sobre as artes.

Apesar da evidente preocupação por parte do filósofo de se pensar as


questões pertinentes à filosofia e o cinema, as reflexões acerca das artes em M.
Merleau-Ponty está intrinsicamente ligada à pintura, o que se pode constatar nos
textos Le doute de Cézanne e em L’oeil et l’espirit os quais se constituem como
exclusivamente dedicado à discussões sobre a pintura, apesar de apresentar
como contraponto argumentativo outras modalidades artísticas como a
escultura, literatura, o teatro e até mesmo o cinema. Observando este destaque
que o filósofo dá a pintura em um segundo momento de seu pensamento,
podemos notar certo distanciamento das reflexões com intuito de definir a
percepção em detrimento de uma aproximação desta à reflexão sobre a visão, e
neste sentido, toma a pintura em especial à de Cézanne para empreitar este
projeto. A visão segundo M. Merleau-Ponty, “É um pensamento que decifra
estritamente os sinais dados no corpo”, mas antes ainda, nos esclarece que a
visão “para além dos “dados visuais” abre para uma textura do Ser” [1] Em
outras palavras, a visão é onde acontece o encontro de todos os aspectos do
Ser. Discutiremos essas questões com mais ênfase mais adiante.

Ao que diz respeito ao cinema, podemos encontrar já algumas referências


na obra La phénoménologie de la percepcion, mas o tema ganha mesmo destaque
e corporeidade como já dito na conferência proferida em 1945, Le cinéma et la
nouvelle psychologie, no capítulo L’art et le monde perçu de Causerus (1948) e por
fim nas aulas de estética de 1952/1953 (Résumés de cours. College de France,
1952-1960).

Contudo, levando em conta a ligação possível entre as discussões


estabelecidas pelo pensamento de M. Merleau-Ponty acerca das artes, portanto,
à pintura com as referências sobre o cinema ainda que nos apresente escassas,
a questão que se pode estabelecer é: de que modo podemos entender a
importância do cinema na sua filosofia e para a filosofia no modo geral? Esta
pergunta, embora não seja a questão do intuito deste artigo, estimamos podê-la
responder no seu desenvolvimento. Susana Veigas, em seu artigo sobre
percepção e cinema, também se pergunta: “[...] como entender a importância e
o interesse que o cinema teve na sua filosofia?”[2]. Para ela, a resposta se
encontra na evidencia dos discursos apresentados pelo próprio filósofo. Stefan
Kristensen, em sua obra Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement,
defende que “Merleau-Ponty tinha uma abordagem cinematográfica às artes
visuais em geral e que, se a pintura é, na verdade, a linguagem que mostra a
génese da nossa relação com o mundo, o cinema é aquela que torna visível o
invisível das nossas relações com o outro”[3]

CINEMA E PERCEPÇÃO

O tema do cinema em M. Merleau-Ponty é, sobretudo, mediado pelo


fenômeno da percepção principalmente porque acolhe ainda que criticamente os
princípios da Gestalttheorie, cuja exploração da relação entre conteúdo e forma,
fundo e figura se faz aparente. Tendo isto em vista, o filósofo considera que a
sétima arte vivificaria, não só a experiência de nossa inerência no mundo, como
também às coisas e o outro, enquanto meio de interrogação filosófica no sentido
além do ilustrativo. Nesta perspectiva, a relação entre cinema e filosofia, traz em
voga a significação estética do mundo, dada em nossa percepção das coisas e
de outrem.

A conferência Le cinéma et la nouvelle psychologie, ao tratar da questão do


cinema, o faz de modo breve e exploratório aludindo a questões contemporâneas
a respeito da psicologia no que se refere a percepção, a intersubjetividade e, por
conseguinte, do lugar em que ocupa a arte do cinema. O fio condutor
estabelecido por M. Merleau-Ponty se desenvolve a partir do esclarecimento a
respeito da percepção. Para o filósofo, no sentido intelectualista não muito
estimado por ele, “a percepção torna-se uma interpretação dos signos que a
sensibilidade fornece conforme os estímulos corporais, uma hipótese que o
espírito forma para explicar suas impressões.”[1] Uma segunda concepção da
percepção ainda solidária a primeira vem por parte do empirismo moderno, que
afirma ser a sensação e a percepção causadas pelos estímulos dos objetos
externos, onde temos a partir disso, um processo de associação de sensações
em uma percepção.

A percepção para M. Merleau-Ponty, “não é uma espécie de ciência iniciante


e um primeiro exercício da inteligência; é preciso que reencontremos um
comércio com o mundo e uma presença, nele, mais antiga que a inteligência”[2].
Em suma, a percepção para nosso filósofo é a questão privilegiada de onde
sobrevém o cinema como um tema que seduz, pois toda a arte só se exerce
sobre um fundo inalienável do qual nos possibilita perceber o mundo, as coisas
e o outro. A ideia da experiência enquanto comércio com o mundo, nos leva
segundo as mais recentes análises psicológicas sobre a percepção
estabelecidas pela Gestalt ao problema do outro. Ao contrário da psicologia
clássica, que compreendia a percepção como um mosaico, reunindo e
reorganizando partes extra partes do qual formaria um campo perceptivo, a
psicologia Gestalt ou da forma afirma a percepção como global de abertura do
estar-já-no-mundo ou numa terminologia heideggeriana, Ser-aí. Já que estamos
imersos no mundo, a percepção é imediata e sintética configurando um todo, da
forma sobre o fundo.

O interesse de M. Merleau-Ponty pelo cinema, enquanto algo percepcionado, se


baseia a partir do que foi posto pela fenomenologia da percepção, do olhar e também
a partir de uma aproximação do outro à intersubjetividade. No cinema, esse caráter
em que o espectador compreende de um modo excessivo aos dados do sentido, é de
suma importância, pois Merleau-Ponty nos diz: “quando percepciono, não penso o
mundo, ele organiza-se perante mim” [3] e com isso quer dizer que as análises de
um objeto em geral se aplicam igualmente ao cinema ao passo que este é um objeto
a se percepcionar e não a se pensar de modo imediato. Ou ainda, “é através da
percepção que podemos compreender a significação do cinema: não se pensa o
filme, percepciona-se” [4]. Tal como no sistema da percepção em que o todo
antecede as partes, também o cinema é percepcionado com um todo, onde o som, a
imagem, o diálogo se encontram em um todo alcançando uma forma temporal.
Uma vez que as análises que a psicologia faz sobre o ato perceptivo no
cinema, da relação intríncica entre o espectador e as imagens que são
projetadas se constituem, podemos aplica-la igualmente à percepção do mundo
e do outro. Na percepção de um filme aprendemos a compreender a mudança
de cenário, a sobreposição de objetos, o desaparecimento do campo de visão,
entre outros, porque a nossa percepção não está, temporalmente, fechada no
instante presente, já que o filme é percepcionado como um todo temporal. Daí a
importâncias das análises de M. Merleau-Ponty, pois elas permitem não só
compreender o cinema como a arte de tornar visíveis certos objetos como
também certos comportamentos.
Há de um modo geral, um aspecto cinematográfico na própria realidade, que
torna possível um modelo de compreensão psicológico e filosófico que lhes é
comum. Já que inicialmente afirmamos que existe uma reviravolta no
pensamento filosófico de M. Merleau-Ponty, das reflexões contidas na
fenomenologia da percepção para uma reflexão a cerca da visão com os estudos
sobre a arte (mais específicamente sobre a pintura) podemos também
considerar legítimo que o cinema se destaque como objeto que concilia os dois
projetos contribuindo, de maneira positiva, tanto para a reflexão sobre a
percepção como para a reflexão sobre a visão.

O OLHAR CINEMATOGRÁFICO SOB UMA ONTOLOGIA DO VER

Logo no prefácio de La phénoménologie de la percepcion o problema da


percepção é compreendido como o meio pelo qual temos acesso a verdade. No
entanto, a verdade não nos dá nunca o acabado. Pois, uma verdade acabada seria a
paralisia do presente, da situação que por ventura nos encontramos, que nos
possibilita erros e acertos. A percepção originária, segundo M. Merleau-Ponty, olha
as coisas como que pela primeira vez. Uma percepção originária, dirá o filósofo, é já
expressão. Se a expressamos novamente, haverá, portanto duas expressividades, a
expressividade do mundo e a das linguagens expressivas, ou seja, a linguagem da
literatura, da pintura, que serão especialmente tratadas pelo filósofo, ou da música
e do cinema como nos possibilita a interpretação.

A relação entre percepção e diferentes formas de expressão é assunto


tratado em Le Langage Indirect et les Voix du Silence. Neste texto, M. Merleau-
Ponty se propõe a compreender diferentes formas que a expressão se
apresenta, como a expressão da pintura e da literatura, mas também a história,
em sua expressividade e seu sentido, como fundadas na percepção. No entanto,
será em uma nota de trabalho de Le visible et l’invisible, que M. Merleau-Ponty vai
pensar o ser como fundo da percepção. Essa percepção se assentará para ele
na oposição entre figura e fundo, que constitui o ser. Em tudo que é visto o olhar
muda de posição em um surgir e desaparecer, ou numa terminologia
heideggeriana, um velar-se enquanto se desvela, que constitui o modo de nosso
acesso sempre limitado do ser. O ver só é possível, no entanto, porque o visto
emerge de um fundo que se ausenta.

O sujeito da percepção deixa de ser o corpo próprio, este corpo de cada um


como o vive e o percebe, para se tornar carne que é para ele um elemento do
Ser. Onde esta mantém com a carne do mundo relações mais imbricadas.
A carne é o elemento comum entre sujeito e mundo, de modo que corpo e mundo
se constituem numa reciprocidade de experiência tecida no fundo carnal. Ela é
o ponto de origem, daquilo que antes do que nada é pensável. A carne sustenta,
como elemento originário, possibilidade e tecido invisível, o visível que irradia um
modo de Ser, que aparece como cristalização momentânea a partir da
experiência no mundo que une sujeito e mundo, corpo e coisas, num horizonte
comum. Ela liga aquilo que é visível, ou seja, a coisa do mundo e aquele que vê,
ao corpo, sendo condição de que ambos são feitos, indicando uma relação de
proximidade que dá àquele que vê uma espécie de familiaridade prévia com o
visível. [8]

Maurice Merleau-Ponty influenciado pela Gestaltheorie vai compreender


também o Ver nesta relação figura-fundo. Ver se torna, no entanto, um jogo de
posições, oposições e equivalências entre as figuras do ser e seu fundo invisível.
“Ver [...] é [...] assistir por dentro à fissão do Ser” [9]. A respeito disso, Alberto
Tassinari no posfácio da edição brasileira de L’oeil et l’Espírite, vem dizer: “Se a
fissão do Ser é sua separação, sua divisão, ela é a separação entre o Ser que é
figura e o Ser fundo, invisível. Ela é enfim, a diferença diacrítica entre o que vejo
e o que não vejo. E que só pode ser vista por dentro do Ser, pois o Ser não tem
um fora.” [10]

Nesta passagem, ele nos remete a tomada de M. Merleau-Ponty do


pensamento de F. Saussure, no qual o filósofo influenciado por ele formula uma
concepção do Ver como um sistema diacrítico ao associar Ser e Ver. É evidente
que em L’oeil et l’espirit, M. Merleau-Ponty pretende renovar e tornar mais
concreto o pensamento de M. Heidegger, quando fala sobre os aspectos do
visível. Já que Ver é ver sobre um fundo de Ser, os aspectos do visível são como
categorias do Ser. O Ser enquanto tal, não pode ser dito. Retrai-se na linguagem
em que ele mesmo surge. Não pode ser dito nem visto. Então se faz importante
ser dito que M. Merleau-Ponty não fala de uma visão do Ser, fala de uma fissão
do Ser. Diante disso nos explica Marilena Chauí:
Ao fazer falar a experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-nos de volta ao
recinto da encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a
filosofia julgava poder explicá-la, perdendo-a. Doravante, não se trata, em primeiro
lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata, em
segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao recinto da
experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a decifrar a fissão
no Ser.[11]
Levados a essa experiência pelas artes, ainda em L’oeil et l’espirit, M.
Merleau-Ponty busca na pintura, sobretudo em Cézanne uma profundidade que
é igualável a um ramo do Ser. A profundidade para o filósofo é a figura que vai
mais longe em direção ao fundo do Ser, pois ela pulsa entre a visibilidade e a
invisibilidade. Essas deformações por assim dizer da arte moderna, é o que
espera M. Merleau-Ponty compreender por uma ontologia do Ver, ou seja, como
expressões concretas dessa ontologia. Sem os ramos do Ser (profundidade, cor,
forma, linha, movimento, contorno) tudo perderia densidade. E assim se dá sua
concepção de relação entre o Ser e o Ver, em suas reflexões acerca da pintura
constituindo uma Ontologia do Ver.

Mas o olhar que aqui nos interessa é o olhar cinematográfico. Ora, no


cinema o olhar de quem percepciona torna-se um olhar cinematográfico, um
olhar que coincide e coexiste com o próprio filme. Onde o vidente coexiste com
o visível. O olhar no cinema, é reinventado a si próprio como olhar visível. Por
isso, o potencial filosófico do cinema será o de mostrar por meio da significação
estética do mundo, que é dada por meio da nossa percepção das coisas, de que
modo estamos imersos no mundo e nos outros, e principalmente de que modo a
própria intencionalidade se manifesta. O exterior dos corpos, nos seus
comportamentos e gestos, são uma manifestação de uma consciência
intencional, de uma consciência que toca.

Maurice Merleau-Ponty mostra que o interior invisível se mostra no


exterior visível e, neste sentido o cinema tem o poder de mostrar o interior do
corpo através do exterior do corpo vivido, por meio das representações dos
gestos. No entanto, o filme em sua criação de forma temporal, não consiste
apenas em anexar som e imagens, porque a relação entre os dois elementos é
primordial, pois há um sincronismo entre som e imagem a fim de criar uma
realidade envolta na relação visível e invisível.

Chamando a atenção para outra ordem de realismo, capaz de revelar não


só o mundo, mas o outro e as coisas em nossa percepção originária, como seres
reais, ou seja, carnais, M. Merleau-Ponty busca compreender, na imagem
cinematográfica, não apenas uma representação do mundo, mas a própria
presença viva de nossa carnalidade, ou seja, para o filósofo a imagem é carne.
Do mesmo modo que a tela de um pintor, o filme transcende sua materialidade
gráfica, pois revela em “carne e osso”, a presença[12]. O amor, o medo ou até
mesmo o ódio, que vemos em tela expressam igualmente estes sentimentos
vividos fora dela. Escreve ele:
Eis porque a expressão humana pode ser tão apreensível no cinema: este não nos
dá os pensamentos do homem, como o fez o romance durante muito tempo: dá-nos
a sua conduta ou o seu comportamento, e nos oferece diretamente essa maneira
especial de ser no mundo, de tratar as coisas e os outros, que é, para nós, visível
nos gestos, no olhar, na mímica e que define com evidência cada pessoa que
conhecemos.[13]

A exemplo da arte pictórica, o cinema em sua técnica cinematográfica nos


permite ser compreendida, nas palavras do próprio filósofo, como uma “técnica
do corpo”, pois, “ela figura e amplifica a estrutura metafísica de nossa carne”[14],
esta carne que se transfigura como meio formador entre mim e outrem, o ator e
o espectador, o visível e o invisível. Desse modo, na nossa experiência carnal
do movimento existe um espaço e um movimento, que é presença total no
mundo que se vivifica a partir do cinema. Diz M. Merleau-Ponty:

O cinema, inventado como meio de fotografar os objetos em movimento ou como


representação do movimento tem descoberto junto a si muito mais que a mudança
de lugar, isto é, uma maneira nova de simbolizar os pensamentos, um movimento
de representação. Pois, o filme, seu corte, sua montagem, suas mudanças de ponto
de vista solicitam e por assim dizer celebram nossa abertura ao mundo e ao outro,
do qual ele faz perpetuamente variar o diagrama.[15]

A arte cinematográfica, no entanto, cria uma nova linguagem, e por isso,


um novo modo de dizer o Ser. Uma nova estética que faz surgir uma dialética do
visível e o invisível tomados como contrapartida um do outro. Na imagem
cinematográfica, “um filme significa como temos visto em ultima análise o que
uma coisa significa: um e outro não falam a um entendimento separado, mas se
dirigem ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo e os homens e coexistir
com eles.”[16] O cinema e a filosofia nos conduz a um valor estético que leva M.
Merleau-Ponty a dizer: “O cinema está particularmente apto a tornar manifesta a
união do espírito com o corpo, do espírito com o mundo e a expressão de um no
outro. Eis por que não é surpreendente que o crítico possa, a propósito de um
filme, evocar a filosofia.” [17]

AUTORA
* Luize de Queiroz — Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia - UFRB.

Referência bibliográfica:
ALVIM, Mônica Botelho. A ontologia da carne em Merleu-Ponty e a situação
clínica na Gestalt-terapia: entrelaçamentos. Revista: Abordagem Gestalt. Vol.17
nº2 Goiânia dez. 2011.
CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty a obra fecunda. Revista: Cult. Ed. 123. 2010
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
_____________. O visível e o invisível. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
_____________. O olho e o espírito (seguido de A linguagem indireta e as vozes
do silêncio e A dúvida de Cézanne). Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina
Galvão Gomes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari.
Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2004.
____________. Textos escolhidos/ Maurice Merleau-Ponty; seleção de textos de
Marilena Chauí; Tradução e notas de Marilena Chauí, Nelson Aguilar, Pedro
Morais. – 2ª ed.- São Paulo; Abril Cultural, 1984. (Os pensadores).
____________. Sens et Non-sens. Paris: Gallimard, 1996.
____________. Résumés de Cours: College de France (1952-1960). Paris: Gallimard,
1968.
VIEGAS, Susan. Film&Philosophy-Mapping an Encounteur. Maurice Merleau-Ponty.
Instituto de Filosofia da Linguagem. 2010.
XAVIER, Ismael. A experiência do cinema: Antologia. Rio de Janeiro: Edições
Graal: Embrafilme, 1983. (Coleção arte e cultura; v. nº 5)

[1] MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo


: Abril Cultural, 1984. p. 91.
[2] Cf. VIEGAS, Susan. Film&Philosophy-Mapping an Encounteur. Maurice Merleau-Ponty.
Instituto de Filosofia da Linguagem. 2010.
[3] KRISTENSEN, Stefan. Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement. Archives de
Philosophie, 69 (1) (Printemps 2006), p. 123. Apud. VIEGAS, Susan. Opt. cit.
[4] MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens: Gallimard, 1996. p.42
[5] Idem. 1996, p. 66.
[6] Idem. 1996, p. 91.
[7] Idem. 1996, p. 104.
[8] Cf. ALVIM, Mônica Botelho. A ontologia da carne em Merleu-Ponty e a situação clínica na
Gestalt-terapia: entrelaçamentos. Ver. Abordagem Gestalt. Vol.17 nº2 Goiânia dez. 2011.
[9] MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo
: Abril Cultural, 1984. p.108.
[10] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito (seguido de A linguagem indireta e as
vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne). Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão
Gomes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari. Rio de Janeiro: Cosac
& Naify, 2004. P.155.
[11] CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty a obra fecunda. Ver. Cult. Ed. 123. 2010
[12] Cf. PINTO, Débora Morato... [et al] Ensaios sobre a filosofia francesa contemporânea. São
Paulo: Alameda, 2009 p. 134-137.
[13] MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens: Gallimard, 1996. p. 74.
[14] Idem. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1984.
p. 92.
[15] MERLEAU-PONTY, Maurice. Résumés de Cours: College de France (1952-1960). Paris:
Gallimard, 1968. p. 20.
[16] Idem. Fenomenologia da Percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fonte, 2006. p. 73.
[17] Idem. op. cit., p. 74.

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