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LUIZ COSTA LIMA

é professor de Literatura
Comparada da
Universidade do Rio de
Janeiro e da PUC-Rio e
autor de, entre outros,
Ignota. A Construção de
Os Sertões (Civilização
Brasileira).

Sobre Bandeira
e Cabral
Texto apresentado no seminário
“Cabral – Bandeira – Drummond”,
na Fundação Casa de Rui Barbo-
sa (RJ), em mesa-redonda de que
também participaram Augusto
Massi e Júlio Castañon Guimarães,
em 23 de março de 2001.
LUIZ COSTA LIMA

P rocuraremos demonstrar que os modelos poé-


ticos de Manuel Bandeira e João Cabral de
Melo Neto são bastante distintos, sem que
sejam antagônicos. Isso significa que, discre-
pantes, admitem um traço de semelhança. Mas para fazê-
lo antes precisamos vir à própria expressão “modelo
poético”: ela é vaga e, portanto, sujeita a equívocos.
Seja este pois nosso primeiro esclarecimento: ao con-
trário do que sucede na indústria, “modelo” aqui não
significa a reprodução a priori indeterminada de um
mesmo padrão mas, ao contrário, uma disposição fun-
damental, uma protoforma que abriga variações, estas
sim múltiplas. Tentaremos concretizar essas protoformas
por um número bastante reduzido de textos. Se conse-
guirmos, teremos mostrado que, de Bandeira a Cabral,
a estruturação da linguagem poética brasileira se enri-

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queceu com variedades e alternativas. An- dade dos modelos bandeiriano e cabralino,
tes de fazê-lo, dois outros esclarecimentos traduzo a abertura do ensaio em que seu
são necessários: a) o mais importante está autor, Ernst Bloch, explicava o conceito.
em declarar que tal mudança na estruturação Dizia ele então: “Nem todos estão no mes-
implica a modificação drástica do eixo de mo agora. Aí se encontram apenas externa-
composição do poema, isto é, que ele passa mente, de modo que são hoje de ser vistos.
a utilizar sua matéria-prima, as cenas de Mas não é por isso que vivem no mesmo
referência, de maneira incomparável; b) o tempo que os outros” (E. Bloch, 1935, p.
segundo esclarecimento responde a uma 104). A passagem é bastante clara para que
crítica que tem acompanhado o Lira e seja ainda esclarecida. Apenas se acrescen-
Antilira, tanto em sua primeira edição te: afirmar a contemporaneidade do não-con-
(1968) como na segunda (1995). O livro, temporâneo supõe que o tempo, em vez de
que tinha por meta analisar a poesia brasi- tomado como um fio que se desenrola, com-
leira, a partir do modernismo, em suas fi- preende o descompasso, a fratura, a irregu-
guras mais marcantes, de Bandeira a laridade; o heterogêneo. Em nosso caso, isso
Cabral, veio a ser criticado por praticar significa dizer que, se considerarmos, no
um evolucionismo que podemos dizer re- momento de agora, o tempo pós-cabralino,
tardado, que teria Bandeira por termo ini- é de se prever a contemporaneidade tam-
cial e encontraria seu ápice em Cabral. A bém de uma poesia de estruturação antes
crítica partia pois do suposto que o Lira e bandeiriana ou até seguidora doutras
Antilira se conformava a uma concepção estruturações. Cada uma delas provocará ra-
linear de tempo, em que o posterior have- mificações ou estratificações diversas, sem
ria de ser mais complexo e melhor do que que tal marcação de origem condicione seu
o termo precedente. maior ou menor valor.
Não pretendo dizer que meus críticos Esclarecimentos feitos, venhamos ao
eram arbitrários, mesmo porque nada ali se objeto de escolha: mostrar a diferença das
dizia contra a suposição que explorariam. protoformas bandeiriana e cabralina.
Além do mais, como razões de economia Tanto de Bandeira como de Cabral, to-
editorial tinham reduzido a parte dedicada maremos como peças básicas poemas co-
a Bandeira a dois parágrafos da “Introdu- nhecidos, porém não dos mais famosos. No
ção” e o capítulo sobre Cabral era o mais primeiro caso, “Meninos Carvoeiros”, per-
extenso, o leitor podia subentender que se tencente ao Ritmo Dissoluto (1921), publi-
afirmava a absoluta superioridade do autor cado na primeira reunião de sua obra, Po-
de “Uma Faca só Lâmina”. Outros motivos esias (1924).
encaminhavam na mesma direção: as pes-
soas ligadas ao meio literário sabiam que, “Os meninos carvoeiros
por um lado, Cabral servia de respaldo para Passam a caminho da cidade.
a experiência da poesia concreta e, por ou- – Eh, carvoero!
tro, de minha admiração e amizade com os E vão tocando os animais com
irmãos Campos. A “evolução” que então [um relho enorme.
viam praticada no livro, em suma, parecia-
lhes uma justificativa indireta do Os burros são magrinhos
concretismo. A razão mais importante, po- [e velhos.
rém, ocorria por culpa minha: embora o Cada um leva seis sacos de
conceito de “contemporaneidade do não- [carvão de lenha.
contemporâneo” (Ungleichzeitigkeit) tives- A aniagem é toda remendada.
se sido elaborado em 1932 e circulasse em Os carvões caem.
livro desde 1935, no momento da feitura
do Lira e Antilira, eu simplesmente o des- (Pela boca da noite vem uma
conhecia. Como ele é fundamental para que [velhinha que os recolhe,
se entendam as conseqüências da diversi- dobrando-se com um gemido).

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– Eh, carvoero! carvoeiros / passam a caminho da cidade”,
Só mesmo estas crianças raquíticas “Quando voltam […]” – não há, na verda-
Vão bem com estes burrinhos de, um antes e um depois porque, vazio de
[descadeirados. presente, o tempo olha para trás. A carac-
A madrugada ingênua parece feita para terística pois a acentuar consiste na con-
[eles… versão da expressão temporal em impres-
Pequenina, ingênua miséria! são afetiva. Com o que os elementos da
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais cena externa se imobilizam e se transfor-
[como se brincásseis! mam em agentes de emoção.
– Eh, carvoero! A essa conversão acrescenta-se outro
traço: a carga emocional que domina o
Quando voltam, vêm mordendo num pão poema não decorre de alguma exploração
[encarvoado, do psicológico. Não há exploração de um eu
Encarapitados nas alimárias, mas uma afetividade que, unânime, domina
Apostando corrida, toda a cena. Como dizia Mário de Andrade,
Dançando, bamboleando nas cangalhas “o poeta se generaliza”, “por mais pessoais
[como espantalhos desamparados”. que sejam assuntos e detalhes, mais o poeta
se despersonaliza” (M. Andrade, 1931, p.
A flagrante irregularidade métrica – 30). A despersonalização, como veremos, é
fonte, contudo, de um ritmo singular e não o traço que emigra até Cabral. A “poesia do
só dissoluto –, as formas diminutivas, a cotidiano”, que Bandeira viria a dizer haver
grafia segundo a pronúncia oral do refrão aprendido a apreciar em Blaise Cendrars (M.
exclamativo são sinais evidentes da ado- Bandeira, 1957), conduz o poeta a um coti-
ção do coloquial modernista, que o poeta diano em que o tempo presente se refugia
só não segue pelo uso eventual da segunda em um instante da memória, esvaziando-se
pessoa do plural. A continuação do exame junto com a pessoalidade. Sob o eu que se
das marcas verbais revela contudo um tra- dissolve, a afetividade impregna os versos
ço curioso: embora todas as formas verbais simples, para que, sob a forma de emoção, o
estejam no presente do indicativo, no pre- leitor a reacenda.
sente progressivo ou em reduzidas Ainda tenhamos umas mínimas corro-
gerundiais transformáveis em presente do borações. A subordinação do presente a uma
indicativo, com ênfase nos versos finais – cena guardada na memória é bastante ób-
“apostando corrida”, “dançando, bambo- via no belíssimo “Profundamente” (em Li-
leando” –, que ressaltam o efeito de cena bertinagem, 1930). O presente apenas se
presente, esse presente gramatical não tem anuncia para dizer-se que não está mais aqui:
nenhuma relação com o presente referen- “Hoje já não ouço mais as vozes daquele
cial. Ao contrário, a cena em que estão os tempo”. Onde estão as vozes dos que amei,
verbos no presente antes aparece como uma onde aqueles que hoje apenas nomeio? O
cena da memória. Os meninos carvoeiros tempo presente vaza para o subsolo. O po-
passam como se o tempo houvesse cessa- ema propriamente dito só contém uma su-
do, para que sobre seu vazio melhor se perfície: a que o passado instila.
destacassem suas tristes figuras sujas. E o As variantes da protoforma são múlti-
refrão exclamativo se encrava como uma plas e seria impossível catalogá-las. Consi-
voz anônima, que, em sua coloquialidade, deremos apenas a comprovação doutra
adensa de afeto o tempo congelado. Pois é variante: “Momento num Café” (em Estre-
bem a afetividade que prepondera, ocu- la da Manhã, 1936). “Quando o enterro
pando o lugar do que, nas artes plásticas, passou”, todos reverenciaram o morto au-
desde o Renascimento até o neoclássico, tomaticamente, exceto um cuja singulari-
fora reservado ao tratamento perspec- dade admitia a afirmação no presente: “Este
tivístico. Assim, embora sejam assinala- sabia que a vida é uma agitação feroz e sem
dos um antes e um depois – “Os meninos finalidade / Que a vida é traição”. O pre-

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sente se mostra pleno apenas quando se depois, o crescente interesse que ela pôde
trata de indicar o caráter escorregadio, o inspirar-me, nem sempre me deixaram to-
passo em falso provocado pela matéria que talmente livre de hesitações ou suspeitas”
compõe a vida. O afeto sobre o qual será (S. B. Holanda, 1952, p. 516). Na verdade,
engendrada a emoção que o poema provo- o crítico não tinha razão em se envergonhar
ca responde a esse saber. É mesmo por se de suas hesitações. Acompanhando suas
mostrar traidora a vida que o tempo pre- diversas alusões ao poeta e a seus compa-
sente se esvazia, foge do presente, con- nheiros de geração, verifica-se que Sérgio
centrando-se em instantes privilegiados, Buarque compreendera com nitidez o que
em que o que fora tão-só privado e pessoal os separava. Assim, indispondo-se contra
se socializa. a opinião que deveria ser corrente naqueles
Em síntese, o esquema axial ou a anos, observava nada ser mais falso do que
protoforma de Bandeira supõe o esvazia- se falar a propósito de Cabral em forma-
mento do presente, concentrando-se o tem- lismo (p. 520). E, contudo, era explicável
po em instante raro do passado, que se re- que o choque causado ainda o fizesse man-
vestirá de um afeto impessoalizado que ter certas hesitações. É assim que, ante
propiciará a socialização do emotivo. passagem da Psicologia da Composição –
Pequeno parêntese: aqueles que conhe- “[…] a forma atingida / como a ponta do
çam a análise que Davi Arrigucci dedicou novelo / que a atenção, lenta, / desenrola,
a “O Cacto” (cf. D. Arrigucci, 1997, pp. aranha […]” – , Sérgio Buarque se pergun-
17-76) poderão estranhar o destaque da tava: “Até onde nos levará essa valoriza-
afetividade como traço constitutivo da ção do artesanato pelo artesanato […]?”
protoforma bandeiriana. “Belo, áspero, (p. 521). Participava do mesmo equívoco
intratável” é tanto o cacto referencial, como dúvida anteriormente expressa: “[…] A luta
o poema em que o cacto se transforma. do poeta pela expressão nítida, cristalina,
Embora seu tratamento seja excepcional na que vai aos extremos de uma linguagem
obra de Bandeira – Murilo Mendes, no crítica, já não parece traduzir [a] aspiração
“Murilograma” que lhe dedicava, o desig- de um mundo sereno, povoado de essên-
nava “Anticacto és” –, seu exemplo é lem- cias puras que prolonga, requintando-o ape-
brado para que se reitere que uma pro- nas, o próprio ideal de beleza herdado do
toforma não é algo fixo e invariante, senão renascimento e do petrarquismo?” (p. 520).
que um conjunto hierarquizado de marcas Tais hesitações não impediam que Sérgio
ou traços. Ora, a aspereza de “O Cacto” Buarque compreendesse o fio da meada em
não afeta seu tratamento do tempo – no que se depositava a composição cabralina:
máximo, seria possível dizer-se, a partir da “O que parecia traduzir-se naquele zelo
comparação da planta com o “Laacoonte”, sempre atento não era apenas uma poética,
que o poema estende até o presente a atro- na acepção mais corrente e usual do vocá-
cidade, comum aos diversos tempos, da bulo. Era mais, e principalmente, uma es-
vida. E isso significa que o presente evacu- pécie de norma de ação e de vida. A estéti-
ado é seu traço mínimo. ca, em outras palavras, assentava sobre
Antes de passarmos à transformação uma ética” (p. 517, grifos meus).
que esse esquema receberá em João Cabral, As passagens transcritas mostram cla-
será oportuno verificar-se o choque que a ramente o que representou para um crítico
poesia deste outro pernambucano causará. de qualidade o início da produção cabralina.
Testemunho evidente desse choque é for- Seria hoje mesquinho criticá-lo por suas
necido por um crítico que, desde o começo, dúvidas, quando não só soubera distinguir
soube reconhecer que algo ali soava dife- Cabral da tradição luso-brasileira, do mo-
rente. Refiro-me a Sérgio Buarque de dernismo e de seus companheiros da gera-
Holanda. Em artigo de agosto de 1952, dizia ção de 45, como perceber que sua produ-
ele: “Confesso bastante envergonhado que ção supunha “uma norma de ação e vida”,
meus primeiros contatos com sua obra e, pela qual a estética se enraizava em uma

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ética. Essa última observação, de fato, ser- ou as ondas da multidão
ve de abertura para a compreensão da lutando na praça cheia.
protoforma cabralina.
A exemplo do que fizemos com Ban- Então, é da praça cheia
deira, procuraremos concretizá-la pelo exa- que o canavial é a imagem:
me de um poema, “O Vento no Canavial” vêem-se as mesmas correntes
(em Paisagens com Figuras, publicado em que se fazem e desfazem,
Duas Águas, 1956).
voragens que se desatam,
“Não se vê no canavial redemoinhos iguais,
nenhuma planta com nome, estrelas iguais àquelas
nenhuma planta maria, que o povo na praça faz”.
planta com nome de homem.
Salvo o primeiro verso das estrofes 1 e
É anônimo o canavial, 2, octossilábico, as onze estrofes se organi-
Sem feições, como a campina; zam em setissílabos. Os verbos estão todos
É como um mar sem navios, no indicativo presente. Porém, à diferença
papel em branco de escrita. de Bandeira, não há oposição entre presen-
te gramatical e presente referencial. Muito
É como um grande lençol ao contrário, um é o outro. Mas a diferença
sem dobras e sem bainha; apenas começa. À coincidência entre os
penugem de moça ao sol, aspectos gramatical e referencial do pre-
roupa lavada estendida. sente corresponde um dinamismo que se
modifica a cada grupo de estrofes. Não um
Contudo há no canavial dinamismo que resultasse do relato de uma
oculta fisionomia: história mas o que se constitui pelo desdo-
como em pulso de relógio bramento interno do título-lema: o vento
há possível melodia, no canavial. À diferença no tratamento do
tempo se ajunta uma semelhança: como já
ou como de um avião em Bandeira, não há pessoalização, não há
a paisagem se organiza, psicologia. Ela no entanto se acompanha
ou há finos desenhos nas doutra diferença: a impessoalização não é
pedras da praça vazia. substituída pela afetividade envolvente. A
emotividade do leitor só será despertada se
Se venta no canavial ele contar com sua sensibilidade intelectu-
estendido sob o sol al. E a presença humana dependerá do tra-
seu tecido inanimado balho sobre o lema, tendo por núcleos o
faz-se sensível lençol, trabalho verbal sobre uma única imagem
condutora: a planta cana. Como se cumpre
se muda em bandeira viva, esse trabalho imagético? Como essa renún-
de cor verde sobre verde, cia da afetividade em um poema de sime-
com estrelas verdes que tria métrica quase absoluta não converte o
no verde nascem, se perdem. texto em uma peça fria, estática, neopar-
nasiana? Tudo dependerá da dinâmica que
Não lembra o canavial o move. Em vez de estatuária, o canavial
então, as praças vazias: forma, a exemplo de Calder, um verdadei-
não tem, como têm as pedras, ro mobile. O mobile se inicia com a
disciplina de milícias. dessingularização do objeto: “Não se vê no
canavial / nenhuma planta com nome /
É solta sua simetria: nenhuma planta maria”. Por outro lado, a
como a das ondas na areia variante das rimas – desde a ausência de

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rimas, passando pelas rimas toantes (“nome trofe: a oculta fisionomia é a que há na
– homem”; “campina – escrita”), até a per- melodia possível em pulso de relógio ou
feita homofonia – cria a ambiência para a como a paisagem se organiza de um avião
dinâmica a ser processada. Assim, afirma- ou como os desenhos que traçam as pedras
da a impessoalidade de início, a máquina da praça vazia.
do poema começa por alargar seu campo Aos dois movimentos até agora reco-
visual: o canavial “é como um mar sem nhecidos – o movimento de ampliação do
navios, / papel em branco de escrita”. E o canavial e sua escavação interna – agora
campo visual continua a se alargar: “É como um terceiro se acrescenta: o vento no cana-
um grande lençol / penugem de moça ao sol vial. Até então as plantas sem nome guar-
/ roupa lavada estendida”. A extensão do davam sua possível melodia. Ao agitá-las,
visualizado por si só, entretanto, ameaça- o vento criará desenhos diversos. Desde
ria fazer o poema sossobrar no estático. logo, “seu tecido inanimado / faz-se sensí-
Trata-se de rever o campo desdobrado, em vel lençol”. Já não é lençol sem dobras mas
que o canavial contém o mar que, sem na- sim que se anima e então converte em ban-
vios, é comparável a uma presença femini- deira – não alegórica, porém viva e aleató-
na sem eros – “penugem de moça ao sol” – ria. Isso, pois, como declara o verso: “É
e compreender que tudo aquilo se deposita solta sua simetria”. O que, de sua parte,
sobre outra camada. É o que declara a quar- permite um outro alargamento imagético:
ta estrofe: “Contudo há no canavial / oculta “como a das ondas na areia / ou as ondas da
fisionomia: / como em pulso de relógio / há multidão / lutando na praça cheia”. A figu-
possível melodia”. Como, entretanto, po- ra humana que reaparece se integra, sem
der-se-á dizer que a oculta fisionomia é privilégios privados, ao mundo. O coletivo
vista? Como ver a possível melodia? Não vegetal se transforma no coletivo humano
faz sentido falar-se em ver ou outro qual- da praça cheia, por sua vez comparável ao
quer sentido. Assim como a cena material coletivo mineral e líquido da areia e das
– o canavial – se ampliara noutras cenas ondas marinhas. Mas as duas comparações
que, embora materiais, não são, em seu – a das ondas na areia ou as da multidão na
conjunto, materiais, pois apreendidas e de- praça – não têm o mesmo peso. As duas
pendentes tão-só da estruturação verbal, estrofes finais intensificam ao máximo o
assim também “ver” se desdobra noutra campo da visualização – correntes que se
dimensão, não confundida com um órgão fazem e desfazem, voragens que se desa-
dos sentidos. A essa outra dimensão cha- tam, redemoinhos.
mamos visualização. Uma análise mais A leitura que acabamos de fazer é
demorada mostraria que a visualização é apenas a que segue a ordem da leitura. Numa
resultante da plasticidade que Cabral di- releitura, veríamos como a composição,
zia haver aprendido com Murilo Mendes. depois de configurar seu campo, retrabalha
Aqui no entanto basta assinalar que seus elementos e os desdobra em sua inten-
visualização, na poesia cabralina, signifi- sidade aleatória. Porque aleatória, a inten-
ca o ultrapasse da oposição clássica entre sidade não dispõe de um clímax, acorde
campo dos percepta e intervenção da ima- final de um relato. A planta sem nome, per-
ginação. O visualizável atualiza o que está tencente a um coletivo vegetal, mostra con-
sob o que se vê; radiografia passível de ser ter dentro de si voragens, redemoinhos,
processada apenas pela palavra ou, no “estrelas iguais àquelas / que o povo na
pintor, pelo pincel. Contudo, para que o praça faz”.
que está sob não se espiritualize, isto é, Não escolhemos este poema senão de
para que não dependa da tematização do maneira também aleatória. Embora fosse
imaginário que abandona o campo absurdo pensar-se que houvéssemos cap-
perceptual, será preciso que o poeta não tado a fórmula poemática de Cabral (!), po-
supervalorize a imagem gerada. Daí as demos supor que “O Vento no Canavial”
alternativas que se reiteram na quinta es- torna palpável a protoforma de sua “psico-

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logia da composição”. Caso estejamos cer- to recair, como ainda temia seu excelente
tos, ela se opõe ao modelo bandeiriano de leitor, na “aspiração de um mundo sereno,
imediato pela ocupação, completamente povoado de essências puras”. Esta ética,
diversa, do tempo. O presente, em vez de mesmo porque enraizada no presente, é uma
esvaziado em função de uma cena medita- ética da pólis, ao passo que a bandeiriana,
tiva do passado, é intensificado tanto no oriunda de um passado afetivizado, é uma
sentido horizontal – os percepta formam ética da fraternidade.
um conjunto não apreensível como per- Proponente de uma ética da pólis, não
cepta, o que os reduziria a um poema rea- há em Cabral essências, muito menos pu-
lista – como no sentido vertical – há no ras, ou aspiração de um mundo sereno, não
canavial possível melodia, que, entretanto, há envolvimento imediato do leitor, mas
não tem a regularidade de uma peça sim a sua instigação para um alerta sensível
cantabile, pois é solta sua simetria. Presen- e pensado para os jogos sem conta do mun-
te intensificado que, como já dissera Sér- do. Estes não se dão ao lado ou fora do
gio Buarque de Holanda, supõe uma esté- poema, pois os jogos do mundo, como diria
tica assentada em uma ética, sem entretan- o filósofo, são jogos da linguagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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