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Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum
ritual de preparação para a escrita?
Com o passar das horas sinto que minha mente fica mais ativa, então prefiro
escrever de tarde ou à noite. Antes de ser pai, escrevia à noite e de madrugada
para aproveitar o silêncio e gostava de sentir certas “forças” de inspiração que,
em algumas ocasiões, anulavam o transcorrer do tempo e me levavam a
reflexões sobre sermos instrumentos de musas e divindades, por exemplo. No
entanto, com a maturidade, fui percebendo que havia muito de improviso
desordenado nesse modo de escrever e que a intermitência do fluxo da escrita
me deixava desconectado do texto e logo me dava trabalho voltar ao ponto em
que tinha parado. A paternidade tem me mostrado alguns limites e potenciais
e, por isso, agora consigo ser mais constante e disciplinado quando escrevo.
Antes de começar a escrever um artigo, que é o tipo de texto que mais
elaboro, sempre tenho uma ideia geral do que quero dizer. Depois começo a
ler bastante sobre o assunto, o qual muda a ideia inicial ou a reformula, e só ao
sentir que o excesso de leitura está me levando a fugir do tema é que decido
enfrentar a página em branco.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas
suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a
escrita?
Fiz este grande desvio apenas para mostrar que não tenho um único processo
de escrita. Contudo, não poderia fazer nada sem voltar sempre aos meus dados
etnográficos que funcionam como âncora. Tenho índices temáticos que me
permitem navegar pelos meus diários de campo e muitas vezes “descubro”,
porque nunca me lembro, que já nesses diários eu delineava análises
embrionárias que ganharam corpo mais tarde. Outras vezes procuro e não
encontro nada; percebo que não tenho os dados e aí recorro à memória ou
anoto as perguntas para preencher as lacunas quando tiver a oportunidade de
me comunicar com algum interlocutor indígena ou de voltar ao campo. Assim,
a pesquisa se transforma em algo que nunca termina e me faz voltar a
reexaminar os mesmos temas uma e outra vez, formando camadas cada vez
mais densas e profundas resultantes de perguntas e análises que depois se
transformam em novas perguntas e análises…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão
prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de
publicá-los?
Enquanto estou escrevendo reviso muitas vezes. Cada nova jornada, em lugar
de continuar desde o último ponto, leio e corrijo tudo o que escrevi antes. Vou
e volto muitas vezes, mudo as frases, edito, acrescento coisas. Essa parte é
bem artesanal. Quando termino, imprimo uma versão para corrigir com lápis
ou caneta. Faço as mudanças finais e peço para ler e comentar a uma ou duas
pessoas cujo critério respeito. Sempre vêm mudanças e melhoras após as
contribuições dos colegas.
Não sei se um texto chega um dia a ficar pronto. Quando leio um dos meus
escritos depois de certo tempo, tenho sensações contraditórias: surpresas
agradáveis, frustrações, arrependimentos, satisfação, etc. Para lidar com isso,
penso que cada texto é como uma foto que você tira para capturar
determinado momento do pensar. Essa maneira de refletir me dá consciência
de ser um autor em movimento e que posso melhorar, em grande medida,
porque não preciso defender até a morte as minhas próprias ideias. Não
enxergo o mundo acadêmico como um campo de batalha e não me interesso
pela guerra de egos. Cada escrito tem vida própria e segue seus próprios
caminhos, alguns são curtos, outros vão mais longe e podem, inclusive, tocar
leitores além da academia.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros
rascunhos à mão ou no computador?
Não sei muito bem de onde as ideias vêm, porque às vezes chegam como o
impacto repentino de um raio e em menos de um segundo acontecem muitas
coisas na mente. Infelizmente nem sempre consigo replicá-las depois. Outras
ideias surgem da leitura; outras chegam mais refletidas, em momentos
inesperados, como tomando banho, na esteira de sonhos ou ouvindo música;
outras vêm dos acontecimentos cotidianos. Sou muito curioso desde criança e
gosto de observar com atenção e escutar, acho que por isso escolhi a
antropologia; também gosto de saber alguma coisa sobre assuntos diversos
para depois criar conexões e tecer minhas hipóteses sobre a vida. Desfruto
muito conversar com meus orientandos e dar aula, porque me dou a liberdade
de falar sobre essas outras coisas sem me fechar na antropologia, embora esse
olhar filtre minha compreensão sobre o mundo. Além de observar e escutar
com atenção, o único hábito para me manter criativo é conversar e trocar
ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Sobre a tese, hoje eu me diria o mesmo que digo aos meus orientandos: a tese
não será sua obra prima; então, diminua um pouco suas expectativas e tente
fazer algo que seja bom o suficiente e lhe satisfaça pessoalmente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro
você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Por outro lado, sobre o livro que ainda não existe e que gostaria de ler ou
escrever, vejo que todo aluno de doutorado sempre tem um projeto faraônico
de tese que nunca é possível concretizar por causa dos prazos cada vez mais
curtos; então, todo mundo faz a tese que pode, não a que deseja. O projeto que
gostaria de fazer seria relacionado com meu projeto faraônico de tese, quando
queria poder transmitir sensivelmente algumas compreensões que tive sobre o
xamanismo dos Makuna, o povo indígena da Amazônia colombiana com
quem tenho convivido, e que não conseguia expressar em palavras. Já
atualizado, o projeto seria um livro que também fosse algo parecido a uma
instalação artística; ou seja, convidaria o leitor ou leitora a entrar num jogo
onde haveria certos comandos e sugestões no texto, como ler tal parágrafo ao
som de tal música, interromper a leitura para tomar um café ou um chá,
acender um incenso, ou pedir para ler até certo ponto e ir dormir para ver se é
possível sonhar. Mexer com os pensamentos e os sentimentos a partir da
escrita, de modo a produzir uma experiência singular por meio de ações que se
fazem junto com a leitura e suas pausas. Agora, não sei se tenho imaginação
suficiente, a sutileza e as qualidades literárias necessárias para seduzir ou
persuadir os leitores a adotar uma proposta de interação com a leitura onde o
autor lhes tolhe certa liberdade de escolha ou lhes pede para fazer coisas,
embora agradáveis, em momentos em que não estejam dispostos. De qualquer
modo, uma boa escrita já tem poder suficiente para levar longe o pensamento
e produzir sensações fortes nas pessoas, quiçá porque algumas palavras e
frases ficam imantadas pela força mental e emocional que emana do autor nos
instantes de fascínio que produz o ato de escrever.
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