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Como escreve Luis Cayón

7 de Maio de 2018 by José Nunes

Luis Cayón é professor no Departamento de Antropologia da Universidade de


Brasília.

Como você começa o seu dia?


Você tem uma rotina matinal?

Depois de acordar, costumo fazer um par de exercícios de ioga para esticar a


coluna vertebral; em seguida, ligo o computador para ver e-mails e ler os
jornais e termino tomando café. Conforme as obrigações de cada dia, posso
ler, preparar aulas, atender alunos, dar atenção ao meu filho, resolver
pendências em casa ou na universidade. Muito raramente escrevo de manhã.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum
ritual de preparação para a escrita?

Com o passar das horas sinto que minha mente fica mais ativa, então prefiro
escrever de tarde ou à noite. Antes de ser pai, escrevia à noite e de madrugada
para aproveitar o silêncio e gostava de sentir certas “forças” de inspiração que,
em algumas ocasiões, anulavam o transcorrer do tempo e me levavam a
reflexões sobre sermos instrumentos de musas e divindades, por exemplo. No
entanto, com a maturidade, fui percebendo que havia muito de improviso
desordenado nesse modo de escrever e que a intermitência do fluxo da escrita
me deixava desconectado do texto e logo me dava trabalho voltar ao ponto em
que tinha parado. A paternidade tem me mostrado alguns limites e potenciais
e, por isso, agora consigo ser mais constante e disciplinado quando escrevo.
Antes de começar a escrever um artigo, que é o tipo de texto que mais
elaboro, sempre tenho uma ideia geral do que quero dizer. Depois começo a
ler bastante sobre o assunto, o qual muda a ideia inicial ou a reformula, e só ao
sentir que o excesso de leitura está me levando a fugir do tema é que decido
enfrentar a página em branco.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você


tem uma meta de escrita diária?

Escrevo em períodos concentrados, mas gostaria de escrever todos os dias,


porque sempre surgem ideias que, com frequência, deixo escapar com a vã
esperança de que serão elaboradas no meu inconsciente e dali brotarão
esplendorosamente no seu devido tempo. É claro que engano a mim mesmo,
porque depois nunca mais me lembro delas. Seria bom ter uma meta diária
(uma vez vi uma entrevista com García Márquez onde ele explicava que, na
sua jornada cotidiana de várias horas de concentração na escrita, apenas
conseguia produzir uma página), mas sou realista e sei que não adianta me
pressionar: às vezes escrevo quatro páginas, outros dias dois parágrafos ou
uma linha e não sinto nenhuma culpa. Essa oscilação produtiva harmoniza-se
com uma sensação interna que dialoga com a satisfação do que escrevi ou
com a frustração, os bloqueios normais e as dúvidas que aparecem. Se percebo
que não vou conseguir escrever além de um par de linhas, paro imediatamente
e vou fazer outra coisa.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas
suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a
escrita?

Sempre é difícil começar. Demoro muito mais tempo escrevendo as páginas


introdutórias, até acertar o tom, que fazendo as descrições e análises. Gosto de
escrever escutando música e escolho-a em conformidade com o humor do dia.
A música de fundo me ajuda a concentrar e minhas preferências abrangem um
leque amplo que vai desde a música erudita (antiga, clássica ou
contemporânea), passa pelo jazz, o blues, o rock progressivo, até gêneros
latino-americanos, em especial caribenhos quando acordo com saudades da
Colômbia.

Em grande medida, eu penso escrevendo e me surpreendo positivamente pelos


rumos mais ou menos autônomos que as ideias tomam durante o processo da
escrita. Dependendo do tipo de texto, me sintonizo mais profundamente ou
não, porque a elaboração de textos depende do limite de páginas exigido, dos
prazos e de fatores diversos, como convites para tratar temas específicos sobre
os quais ainda não tenho uma reflexão, explorações preliminares para
apresentar em congressos, leituras inspiradoras que iluminam alguns aspectos
da pesquisa e conduzem a novas análises e desdobramentos de ideias
anteriores, tentativas de construções teóricas ou metodológicas, ou o simples
desejo de realizar uma descrição etnográfica, entre muitas outras. A escrita
antropológica é potencialmente muito ampla e, por isso, o estilo deve adequar-
se às necessidades da ocasião, já que pode variar de um texto para outro,
conforme a temática; não é a mesma coisa escrever algo técnico sobre
parentesco e organização social, por exemplo, onde é preciso usar um arsenal
de conceitos misteriosos para leitores leigos em antropologia, e descrever a
participação numa sessão de cura xamânica, onde caberiam descrições mais
literárias. O ideal seria combinar ambas as coisas. Eu me preocupo com tentar
encontrar um equilíbrio entre o rigor técnico que exige a disciplina e uma
escrita mais sensível que possa transmitir ao leitor alguma compreensão
derivada das situações que tenho vivido junto aos indígenas. Como autores
deveríamos nos preocupar com uma escrita menos técnica para atingir
públicos mais amplos, uma vez que o conhecimento antropológico costuma
ficar trancafiado na sua própria torre de marfim. A única maneira de darmos a
conhecer os fascinantes universos indígenas é escrever de modo mais fluido e
direto sobre questões complexas desses mundos que pesquisamos e sobre os
quais apenas arranhamos a superfície da compreensão. Lidar com isso não é
nada fácil – daí que muitos colegas se ocultam na nebulosa e barroca
dimensão da escrita conceitual, do jargão inteligível apenas para os iniciados –
e traz à tona reflexões necessárias, porém complicadas, sobre os limites da
tradução, a incomensurabilidade dos mundos, etc.

Fiz este grande desvio apenas para mostrar que não tenho um único processo
de escrita. Contudo, não poderia fazer nada sem voltar sempre aos meus dados
etnográficos que funcionam como âncora. Tenho índices temáticos que me
permitem navegar pelos meus diários de campo e muitas vezes “descubro”,
porque nunca me lembro, que já nesses diários eu delineava análises
embrionárias que ganharam corpo mais tarde. Outras vezes procuro e não
encontro nada; percebo que não tenho os dados e aí recorro à memória ou
anoto as perguntas para preencher as lacunas quando tiver a oportunidade de
me comunicar com algum interlocutor indígena ou de voltar ao campo. Assim,
a pesquisa se transforma em algo que nunca termina e me faz voltar a
reexaminar os mesmos temas uma e outra vez, formando camadas cada vez
mais densas e profundas resultantes de perguntas e análises que depois se
transformam em novas perguntas e análises…

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo


de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em
projetos longos?
Acho que cada vez mais conheço minhas limitações e por isso não tenho
grandes expectativas em produzir teoria, que é algo que paralisa centenas de
alunos em fase de escrita de monografias, dissertações e teses, e os impede de
produzir belas etnografias. Consolo-me em saber que as melhores ideias
antropológicas chegam com a maturidade, por isso, quero crer que daqui a
uma década começarei a escrever meus melhores textos.

No trabalho acadêmico devemos estar abertos às críticas dos colegas, e desde


que não venham envenenadas para esmagar reputações, costumam enriquecer
as reflexões. Os prazos ajudam a limitar a procrastinação que vem disfarçada,
inclusive, de trabalhos burocráticos inadiáveis, até que, em certo momento,
não há mais remédio que deixar tudo de lado, pegar o touro à unha, sentar e
escrever até terminar. Sobre as travas da escrita, é bom desconectar um pouco,
dormir, assistir a um filme ou a um jogo de futebol. Outras vezes nada melhor
que produzir endorfinas; por exemplo, antes eu sentia que destravava mais
quando fumava um cigarro atrás do outro, mas agora que não fumo é bem
mais complicado e demora mais tempo porque preciso fazer uma sequência de
exercícios ou sair para caminhar pensando no assunto sobre o qual estou
escrevendo.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão
prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de
publicá-los?

Enquanto estou escrevendo reviso muitas vezes. Cada nova jornada, em lugar
de continuar desde o último ponto, leio e corrijo tudo o que escrevi antes. Vou
e volto muitas vezes, mudo as frases, edito, acrescento coisas. Essa parte é
bem artesanal. Quando termino, imprimo uma versão para corrigir com lápis
ou caneta. Faço as mudanças finais e peço para ler e comentar a uma ou duas
pessoas cujo critério respeito. Sempre vêm mudanças e melhoras após as
contribuições dos colegas.

Não sei se um texto chega um dia a ficar pronto. Quando leio um dos meus
escritos depois de certo tempo, tenho sensações contraditórias: surpresas
agradáveis, frustrações, arrependimentos, satisfação, etc. Para lidar com isso,
penso que cada texto é como uma foto que você tira para capturar
determinado momento do pensar. Essa maneira de refletir me dá consciência
de ser um autor em movimento e que posso melhorar, em grande medida,
porque não preciso defender até a morte as minhas próprias ideias. Não
enxergo o mundo acadêmico como um campo de batalha e não me interesso
pela guerra de egos. Cada escrito tem vida própria e segue seus próprios
caminhos, alguns são curtos, outros vão mais longe e podem, inclusive, tocar
leitores além da academia.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros
rascunhos à mão ou no computador?

Escrevo diretamente no computador. Algumas vezes rabisco um roteiro ou um


quadro cheio de setas para ligar as ideias centrais.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva


para se manter criativo?

Não sei muito bem de onde as ideias vêm, porque às vezes chegam como o
impacto repentino de um raio e em menos de um segundo acontecem muitas
coisas na mente. Infelizmente nem sempre consigo replicá-las depois. Outras
ideias surgem da leitura; outras chegam mais refletidas, em momentos
inesperados, como tomando banho, na esteira de sonhos ou ouvindo música;
outras vêm dos acontecimentos cotidianos. Sou muito curioso desde criança e
gosto de observar com atenção e escutar, acho que por isso escolhi a
antropologia; também gosto de saber alguma coisa sobre assuntos diversos
para depois criar conexões e tecer minhas hipóteses sobre a vida. Desfruto
muito conversar com meus orientandos e dar aula, porque me dou a liberdade
de falar sobre essas outras coisas sem me fechar na antropologia, embora esse
olhar filtre minha compreensão sobre o mundo. Além de observar e escutar
com atenção, o único hábito para me manter criativo é conversar e trocar
ideias.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?

Acho que mudou uma questão relacionada com a sensibilidade e que me


parece fundamental para dar mais força a certas explicações. Meus escritos
mais antigos eram muito imaturos, porque eu não tinha tantas leituras na
cabeça: vivia redescobrindo a pólvora ou fazendo certas comparações
exageradas, e por isso me arrependo de alguns dos meus primeiros escritos.
Paradoxalmente, naquela época, eu me esforçava mais para escrever com
“objetividade”. Sempre refleti sobre porque, nos trabalhos antropológicos,
parte da vivência e transformação que se passa no campo raramente é
registrada ou fica quase no nível do anedótico nas introduções das etnografias.
Com o tempo percebi que deveríamos fazer gestos recíprocos. Por quê
escrever intimidades de outros povos sem tocar nas nossas próprias? Boa parte
do conhecimento antropológico se constrói a partir da subjetividade dos
etnógrafos e etnógrafas e por isso tocar nesse assunto é central para que o
leitor também entenda as fontes de certas análises ou os motivos de certas
analogias. O que dizer de pessoal ou íntimo dessas experiências fortíssimas de
viver outros mundos e alteridades precisa de bom senso para não exotizar ou
caricaturar os índios, e de sensibilidade sobre os dois mundos para que o autor
consiga transmitir ao leitor alguns elementos intensos daquilo que admira e
acha maravilhoso e belo dessas outras formas de viver e estar no mundo.
Transmitir essas sensações precisa de uma escrita sensível que se
complementa com alguma fluidez literária. A escrita conceitual não ajuda
muito nisso e algo de beleza sempre é necessário para marcar a memória
daqueles que nos leem.

Sobre a tese, hoje eu me diria o mesmo que digo aos meus orientandos: a tese
não será sua obra prima; então, diminua um pouco suas expectativas e tente
fazer algo que seja bom o suficiente e lhe satisfaça pessoalmente.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro
você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Estou iniciando uma pesquisa bibliográfica e comparativa sobre sistemas


regionais pré-colombianos na Amazônia, nos Andes colombianos e nas
savanas do Orinoco. Para além dos futuros resultados acadêmicos dessa
pesquisa, já me passou pela cabeça escrever um romance etnográfico sobre
como poderia ter sido a vida indígena na Amazônia antes da chegada dos
europeus. Seria um romance informado pelos nossos conhecimentos atuais da
arqueologia, da etnologia e da ecologia histórica, porque assim seria mais fácil
chegar a um público mais amplo que desconhece fatos maravilhosos sobre o
passado amazônico. Podem não haver pirâmides ou imponentes construções
em pedra como em outros lugares do continente, mas o que poucos sabem é
que a obra prima dos humanos na Amazônia é a própria floresta e sua
diversidade de vida. Esse fato também tem um fundo político poderosíssimo
para legitimar os territórios e as formas de vida, práticas e conhecimentos
indígenas frente àqueles que, por ignorância ou má fé, acreditam que os índios
são atrasados e atrapalham o desenvolvimento dos nossos países.
Infelizmente, conhecimentos tão importantes para a preservação da vida no
nosso planeta não se ensinam nas escolas, e as gerações crescem ao ritmo das
necessidades e dos estereótipos que reafirmam os interesses do grande capital
e do modo de vida ocidental.

Por outro lado, sobre o livro que ainda não existe e que gostaria de ler ou
escrever, vejo que todo aluno de doutorado sempre tem um projeto faraônico
de tese que nunca é possível concretizar por causa dos prazos cada vez mais
curtos; então, todo mundo faz a tese que pode, não a que deseja. O projeto que
gostaria de fazer seria relacionado com meu projeto faraônico de tese, quando
queria poder transmitir sensivelmente algumas compreensões que tive sobre o
xamanismo dos Makuna, o povo indígena da Amazônia colombiana com
quem tenho convivido, e que não conseguia expressar em palavras. Já
atualizado, o projeto seria um livro que também fosse algo parecido a uma
instalação artística; ou seja, convidaria o leitor ou leitora a entrar num jogo
onde haveria certos comandos e sugestões no texto, como ler tal parágrafo ao
som de tal música, interromper a leitura para tomar um café ou um chá,
acender um incenso, ou pedir para ler até certo ponto e ir dormir para ver se é
possível sonhar. Mexer com os pensamentos e os sentimentos a partir da
escrita, de modo a produzir uma experiência singular por meio de ações que se
fazem junto com a leitura e suas pausas. Agora, não sei se tenho imaginação
suficiente, a sutileza e as qualidades literárias necessárias para seduzir ou
persuadir os leitores a adotar uma proposta de interação com a leitura onde o
autor lhes tolhe certa liberdade de escolha ou lhes pede para fazer coisas,
embora agradáveis, em momentos em que não estejam dispostos. De qualquer
modo, uma boa escrita já tem poder suficiente para levar longe o pensamento
e produzir sensações fortes nas pessoas, quiçá porque algumas palavras e
frases ficam imantadas pela força mental e emocional que emana do autor nos
instantes de fascínio que produz o ato de escrever.

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