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Em sua obra intitulada Verso universo em Drummond (1975), José Guilherme Merquior

propõe-se a abordar a poética de Carlos Drummond de Andrade, num primeiro plano, sob o
viés essencialmente estilístico, como anuncia na própria introdução do livro o seu percurso
crítico – o que, neste caso, destaca-se A Rosa do Povo (1945). Dentre os aspectos que perpassam
este arcabouço teórico-metodológico, Merquior toma como fenômeno estilístico capital, a
saber, a “mescla de estilo” (Stilmischung) pontuada por Erich Auerbach na sua importante obra
Mimesis (1946). O crítico alemão parte da tônica do “estilo mesclado” para traçar um estudo
panorâmico desde a Antiguidade clássica, figurada por Homero, até os mais contemporâneos
como a escritora Virgínia Woolf.
Para os antigos havia uma divisão hierarquizante entre os estilos, como está ilustrada na
célebre “A roda de Virgílio”: o estilo simples, representado pela obra Bucólicas; o médio, pela
Geórgicas; o sublime, pela Eneida (GUIRAUD, 1970, p. 26). Porém, a partir dos românticos
contemporâneos, tais como Stendhal e Balzac, há uma ruptura com “a regra clássica da
diferenciação dos níveis, segundo a qual a realidade cotidiana e prática só poderia ter seu lugar
na literatura no campo de uma espécie estilística baixa ou média, isto é, só de forma
grotescamente cômica ou como entretenimento agradável, leve, colorido e elegante”
(AUERBACH, 1987, p. 500). Em outras palavras, vislumbra-se a intersecção do sublime – de
uma esfera elevada, nobre, do belo artístico – com o grotesco – da dimensão do vulgar, do
baixo, do que causa estranheza.
Segundo José Guilherme Merquior, em A Rosa do Povo há o predomínio de um lirismo
“puro”, embora os poemas “A flor e a náusea”, “Nosso tempo” e “O mito” explorem, por
excelência, a mescla de estilo. Esta obra de Drummond elabora uma poética do cotidiano e, por
assim dizer, da experiência vivida. Além disso, encena um romantismo modernizado, anti-
idealista e antissentimental. Estes desdobramentos figuram-se nos seguintes versos de
“Consideração do poema”: “Poeta do finito e da matéria/ cantor sem piedade, sim, sem frágeis
lágrimas,/ boca tão seca, mas ardor tão casto” (ANDRADE, 1980, p. 75). Como observa o
crítico carioca em um ensaio intitulado “Notas em função de ‘Boitempo’ (I)” – publicado anos
antes na obra A astúcia da mímese (1972) –, o próprio

modernismo representa a instalação do tipo de discurso batizado por Auerbach de


‘mescla estilística’, isto é, de estilo ‘impuro’, porque, contrariamente aos preceitos da
poética do classicismo, aspira à apresentação de acontecimentos ou de situações
sérios, trágicos ou problemáticos mediante o emprego de uma linguagem prosaica ou
‘vulgar’ – por oposição à terminologia aristocrática a que a norma clássica, através da
observância da regra de separação hierárquica dos estilos (nobre, médio, vulgar),
reservava, em exclusividade, o domínio da tragédia, da épica e da lírica (MERQUIOR
apud BRAYNER, 1977, p. 123).
Dentre os poemas listados por Merquior, “A flor e a náusea” é um dos mais conhecidos
e representativos do conjunto da obra, cujo período em que foi escrita e publicada remonta a
uma época conturbada da história humana, a saber, a Segunda Guerra Mundial. Neste sentido,
este poema denuncia a opressão, o autoritarismo e o profundo “tédio” diante da realidade,
mediante um “lirismo anti-heróico do cotidiano urbano” (MERQUIOR, 1980, p. 80). Por outro
lado, “o ideal surge como fôrça de redenção e, sob a forma tradicional de uma flor, rompe as
camadas que aprisionam. Apesar da distorção do ser, dos obstáculos do mundo, da
incomunicabilidade, a poesia se arremessa para a frente numa conquista, confundida na mesma
metáfora que a revolução” (CANDIDO, 1970, p. 105):

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

[...]
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
(ANDRADE, 1980, p. 75-76, v. 34-43; v. 48).

O “estilo mesclado” configura-se em “A flor e a náusea” na conjugação de uma


problemática dita séria e, por assim dizer, sublime – no que tange a uma existência
“melancólica”, sufocada e alienada em busca de uma “redenção” ainda que poética – com a
esfera do grotesco relacionada ao vulgar e ao “baixo material e corporal”, como denominou
Mikhail Bakhtin. E, ainda, “orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como
a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz” (BAKHTIN, 1993, p. 23). No
verso 8 (“O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera”), há a introdução do
termo “fezes”. Já no verso 15 (“Vomitar esse tédio sobre a cidade”), emprega-se o verbo
“vomitar” na sua construção poética. Estes elementos destacados assinalam textualmente a
Stilmischung auerbachiana, na medida em que “o baixo, o sórdido invadem brutalmente o
discurso” (MERQUIOR, 1976, p. 80); tornando-o, portanto, “impuro”.
Em suma, A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, instaura uma dicção
poética eminentemente moderna a partir da assimilação de traços da estética cômico-grotesca
e, por extensão, de um rompimento com a tradição clássica e o romantismo idealista. O lirismo
de Drummond converge com a “revolução estética dos primeiros modernistas”, de modo que
“seu papel foi antes o de realizar a promessa literária do modernismo de choque, criando uma
poesia rica e substancial” (MERQUIOR, 1976, p. 243). Poemas como “A flor e a náusea”
operam a problematização, por um lado, em torno da hostilidade que permeia as relações de
trabalho e de “negócios” e, ao mesmo tempo, o período de guerra; por outro, da própria
condição do homem em seu percurso marcado por sentimentos como o medo, a angústia e a
coerção. Sendo assim, o poeta mineiro procura refletir crítica e conscientemente, por meio dos
procedimentos estéticos empregados em sua obra literária, acerca da dimensão sócio-histórica-
cultural do país, da existência humana e do próprio engendrar poético.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond. A Rosa do Povo. In: ______. Reunião: 10 livros de poesia.
Introdução de Antônio Houaiss. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p. 75-153.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução
coletiva para a língua portuguesa. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Perspectiva, 1987.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 2. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília:
Editora da UNB, 1993.
CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: ______. Vários escritos. São
Paulo: Duas Cidades, 1970.
GUIRAUD, Pierre. A estilística. Tradução de Miguel Maillet. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Tradução de Marly de Oliveira.
2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
______. Notas em função de “Boitempo” (I). In: BRAYNER, Sônia (Org.). Carlos Drummond
de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira; Instituto Nacional do Livro, 1977. p. 123-
145.

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