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DE ANDRADE
OBRAS COMPLETAS-4
M A R C O ZERO
Oswald de Andrade planejara a obra cí-
clica Marco Zero em cinco volumes, mas
dela só publicou dois: A Revolução Melan-
cólica e Chão. Para realizá-la consumiu
anos de trabalho, de rebusca documental, de
pesquisas e notas. Graciliano Ramos depõe
que o material recolhido pelo escritor pau-
lista, em 1937, "derramava-se em 80 ca-
dernos", riscados a lápis, cadernos que
ocupariam, depois daquela data, "parte de
um arranha-céu de Copacabana".
Partindo da idéia de que "o romance
participa da pintura, do cinema e do deba-
te público, mais do que da música que é
silêncio, é recolhimento", Oswald afirma que
"Marco Zero tende ao afresco social, é uma
tentativa de romance mural". Trata-sè, na
verdade, de obra ambiciosa que, valendo-se
de processo simultaneista, cinematográfico,
se estilhaça em miríades de fragmentos —
que são suas cenas breves, densamente po-
voadas de -personagens de vária condição.
Compõe, assim, vasto painel de uma dada
circunstância histórica numa dada geogra-
fia. Vasto tempo e vasto espaço se con-
densam nessas páginas tantas vezes desor-
denadas, até caóticas, porém desordenadas
e caóticas como a própria realidade de que
foram arrancadas. É preciso não esquecer
que Oswald quebra sempre a rotina das es-
- truturas de composição, das concepções e
conceitos estéticos vigentes, das formas e
regras pré-fixadas ou pacificamente aceitas.
Parte para a aventura criadora.
. Em Marco Zero está todu o processo
de debate dos grandes temas do nosso tem-
po e do nosso Pais — nosso Pais inserido
nas coordenadas da inquietação universal:
às contradições, caminhos e descaminhos,
buscas, erros, hesitações, anseios e derrotas
^a trajetória humana do após guerra de 18
Marco Zero
n
Chão
Coleção
VERA CRUZ
(Literatura Brasileira)
V o l u m e 147-C
CDD B 869.35
R.M.M. CDU 869.0
Oswald de Andrade
Obras Completas
IV
Marco Zero
ii
Chão
2' edição
civilização
brasileira
!974
Exemplar ^ 1493
Desenho de capa:
DOUNÊ
Diagramação:
LÉA CAULLIRAUX
,1974
Impresso no Brasil
Prínted in Brâzil
Para meu neto
José Oswald
em seu quinto dia
Em 5 de maio de 1944.
Chão
(Do japonês)
Sumário
O presídio dormia.
A lâmpada do alto batia no rosto de Leonardo. Pare-
cia-Ihe que não estava mais preso, que estava num trem.
Quando viria a tomada do poder? Ele via em sonho o êxodo
do campo. No momento, a atração que exercia a cidade não
passava de uma mudança do modo de produção que a hu-
manidade usava para subsistir e progredir dentro de suas con-
dições históricas. Era a força revolucionária da máquina que
chegava àquele canto perdido do mundo — o Brasil. A gente
arruinada da província procurava a cidade. Eram os Frelin,
vindos de Brejal, era a pequena Felícia recitando versículos
da Bíblia. Um passarinho alegre a manso. A fábrica cons-
tituía um signo de civilidade. Os rapazes e as moças não
pensavam na escravidão que trazia a condição de operário.
Só enxergavam as vantagens exteriores da cidade. O ves-
tido de seda vistoso, o sapato lustrado. Uma meia fina, um
cabelo em permanente. Havia uma fictícia mudança de clas-
se trazida pelo êxodo. O próprio cenário da cidade, em que
a vida passava a se desenvolver, cultivava essa ilusão. Para
o campo afluíam, ao contrário, os destroçados de outras
terras, os cansados e os vencidos ou os pioneiros e os marca-
dos de aventura. Mas no Brasil o problema tornava-se agu-
do. Estavam suspensas as imigrações continentais e decres-
ciam assustadoramente os braços para a lavoura. Fazia-se
apelo ao braço nacional. O baiano era indicado para subs-
tituir o colono europeu. O morre-andando deixava faminto
e miserável as margens do São Francisco. Mas vinha en-
contrar em São Paulo a exploração organizada na mão dos
fazendeiros em ruína. E corvejava e crescia a atividade dos
boys do Imperialismo os banqueiros.
Voltou-se agitado no leito. Uma multidão de homens
e de mulheres esfarrapados, em fila, vinha do Norte, penetrava
na prisão, saía, partia para a desgraça da fazenda paulista.
Nada se resolveria sem os sovietes. A situação não se resol-
veria nunca dentro do regime de contradição feudal no seio
da burguesia avançada. Só viria a fixação no campo dando-se
as vantagens e os atrativos que a Rússia soubera dar, liqui-
dando o feudo. As grandes fazendas coletivas, onde o povo
trabalhador sente que a terra é sua, com seus clubes, sua
cultura especializada, sua higiene. Só isso podia fixar o ho-
mem ao campo e contrabalançar a enorme vocação para a
indústria que tomara conta do homo [aber, do homem con-
temporâneo .
O militante sacudiu o beliche. Apanhou o cobertor ralo
e esburacado que estava caindo no leito inferior. Um com-
panheiro tossiu espalhafatosamente.
n
que são os espíritos de luz e a senhora vem com essas Boba-
gens de baixo espiritismo!
Um ônibus rebentou em frente a eles. Num empurrão
nervoso o Major fez a velha embarcar. Roçou o corpo de
Eufrásia. Havia um lugar vazio na frente e ele gritou para
Umbelina que se sentasse. Segurou o braço da moça e com
ela acomodou-se no fundo. Sentiu de repente toda a sua
presença sexual. Comprimiu-a no banco estreito. Ela olhava
pela janela a avenida de casas baixas com anúncios lumn
nosos, pensando: "Onde estive com a cabeça? Será que eu
estive algum dia nos braços nojentos desse bêbado?" O Major
quieto, a barba crescida, o livro aberto sobre os joelhos, es-
perava o cobrador. De repente sua voz grave leu:
— "Continuai na jornada de alegrias e no caminho de
dissabores. Porque obedeceis ao Mestre de quem recebestes
a ordem taxativa! Curai os enfermos de graça, dai aos outros
o que de graça recebestes. Lembrai-vos de que a Providência
colocou nos lábios do maior clínico da Antigüidade, cinco
séculos antes de Cristo, o verso áureo: 'Aliviar a dor é
obra d i v i n a . . . Sed&re dolorem divinum opas est'..." —
Três m e i a s . . .
O cobrador deu o troco permanecendo em frente a Eu-
frásia, de pernas abertas, como se a cheirasse. Umbelina?
voltou-se para trás fazendo sinais aflitos. O Major percebeuí
— Que é mãe?
•—• Eu também quero ouvir.
m
Vitalino segurou o riso. O velho exclamou:
— Se a Formosa tiver que ser vendida, ficará nà família!
y
m
5
Tapete dos Terreiros
"Salvai o morío
Curai o doente
Livrai da peste
Que vem dei repente!"
"Amei-te no silêncio
De noites tão belas
Se dormes ainda
Desperta donzela!"
"Acorda, desperta
Saia da cama
Venha ouvir a voz
De quem tanto te ama!"
Fortes (Pancrário)
Fortes (Vitória)
Fortes (Isabel) — Bélica, a criança loura
Boreal (Aurora)
e
A Revolução Melancólica Chão,
o romance cíclico
MARCO ZERO
OSWALD DE ANDRADE
tentou realizar o romance mural, em que a coletividade é o grande
personagem. Nela põe em debate os grandes temas do nosso tem-
po e do nosso País, pintando também um vasto painel das inquie-
tações do homem e da sociedade brasileiros.
C r $ 16,00
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA